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SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO E
CONHECIMENTO CIENTÍFICO NO
PROCESSO DE PRODUÇÃO DO SABER
APROPRIADO: A EXPERIÊNCIA DA
ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS
PRODUTORES DE POÇO FUNDO/MG
ROSANA VIEIRA RAMOS
2008
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ROSANA VIEIRA RAMOS
SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO E CONHECIMENTO CIENTÍFICO
NO PROCESSO DE PRODUÇÃO DO SABER APROPRIADO: A
EXPERIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS PRODUTORES DE
POÇO FUNDO/MG
Tese apresentada à Universidade Federal de Lavras,
como parte das exigências do Curso de Doutorado em
Administração, área de concentração em Gestão
Social, Ambiente e Desenvolvimento, para obtenção
do título de “Doutor”.
Orientador
Prof. Dr. José Roberto Pereira
Co-orientador: Prof. Dr. Casimiro Balsa
LAVRAS
MINAS GERAIS - BRASIL
2008
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Ficha Catalográfica Preparada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da UFLA
Ramos, Rosana Vieira.
Saber de experiência feito e conhecimento científico no processo de
produção do saber apropriado: a experiência da Associação de Pequenos
Produtores de Poço Fundo/MG / Rosana Vieira Ramos. -- Lavras :
UFLA, 2008.
209 p. : il.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Lavras, 2008.
Orientador: José Roberto Pereira.
Co-orientador: Casimiro Balsa.
Bibliografia.
1. Lavoura. 2. Saber. 3. Conhecimento científico. 4. Agricultura
familiar. I. Universidade Federal de Lavras. II. Título.
CDD – 307.72
ROSANA VIEIRA RAMOS
SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO E CONHECIMENTO CIENTÍFICO
NO PROCESSO DE PRODUÇÃO DO SABER APROPRIADO: A
EXPERIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS PRODUTORES DE
POÇO FUNDO/MG
Tese apresentada à Universidade Federal de Lavras,
como parte das exigências do Curso de Doutorado em
Administração, área de concentração em Gestão
Social, Ambiente e Desenvolvimento, para obtenção
do título de “Doutor”.
Lavras (MG), 28 de maio de 2008.
Profa. Dra.Lúcia Helena Alvarez Leite
Prof. Dr. Cândido Ferreira da Silva Filho
Prof. Dr.Rubens José Guimarães
Prof. Dr. Robson Amâncio
Prof. Dr. José Roberto Pereira
(UFLA)
Orientador
LAVRAS
MINAS GERAIS - BRASIL
2008
Aos agricultores e agricultoras de Poço Fundo:
da Associação de Pequenos Produtores de Poço Fundo,
E da Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço Fundo e região.
Plantadores e plantadoras das sementes do ato de cuidar da terra como planeta
vivo, como planeta humano e, do humano como planeta terra.
Principais autores desta tese.
A vocês:
Luz do amanhecer e colheitas da “vida saudável” neste planeta.
“Saber só de experiências feito’, como diz Camões, é exatamente o saber de
senso comum. Discordo dos pensadores que menosprezam o senso comum,
como se o mundo tivesse partido da rigorosidade do conhecimento científico”.
(Freire, 2001, p. 232).
AGRADECIMENTOS
No instante em que o sentimento de celebração da Vida supera a necessidade de
lamentação, teremos alcançado o estado de união definitiva dos opostos. É
chegada a hora de recomeçar a rir e resgatar nosso direito divino de vivermos
felizes, cumprindo nosso sagrado papel de seres humanos.”
Do livro As cartas do caminho sagrado: a descoberta do ser através dos
ensinamentos dos índios norte-americanos. Jamie Sams.
À VIDA
Ao meu pai, Raimunonato, e à minha mãe, Carmosina: que me deram a
vida. Vida nascida do amor. Gravidez banhada nas águas de Brasilândia;
espantada por cobras e onças. Amor reconhecido e recriado por mais de
cinqüenta anos. É chegada a hora de rir e comemorar. A vocês, a celebração da
colheita, a vida em abundância.
À Rute, minha única irmã, e à sua filha, Sabrina nosso bem-querer.
Nascida da barriga de Rute, brotou e floresceu em nossos corações. A vocês,
flores de laranjeira. Favos de mel.
Aos meus irmãos: Roberto, Raimundo e Rubens - cada um, a seu modo,
festejam comigo. A vocês, café com quitanda.
Ao Luís Carlos e à Rosângela, ao Luís Adauto e à Cida, ao Marcos e à
Elisângela, ao Donizete e à Carminha, ao João Ademir e à Cláudia - moradas de
hospedagem. Imensa gratidão pelo tempo dedicado à minha presença, ao meu
aprendizado. Vidas apresentadas. Longas conversas, tempo de germinação e de
colheitas do saber. A vocês, o presente do retorno das dádivas.
Aos agricultores e às agricultoras, os autores nas entrevistas, nas
conversas ao visitar cada casa, nas visitas guiadas às lavouras, nas falas em
reuniões e assembléias - meus mestres no aprendizado sobre o plantio e o
cuidado com as lavouras do saber, lavouras da vida. A vocês, a luz das estrelas
no planeta humano, na terra viva como terra humana e no humano como terra.
À minha Comadre Luciene, por seu afeto incondicional, conselhos que
animam e sustentam o vivido no cotidiano ato de plantar e colher sementes da
dúvida existencial entre ser e não-ser, fazer e deixar de fazer. Nisso se nossa
criação. A você, a alegria da colheita. Ao Pedro, meu afilhado, e a todas as
crianças – vidas em criação. Travessia de gerações.
À Nilde e à Conceição, irmãs do coração, para quem a distância não se
fazia e não se faz limite para estarem comigo no dia-a-dia desse plantio. Temos
o afeto como calda para nutrição da vida. A vocês, café no terreiro, lindos grãos
de diferentes tons.
À Maroca, pela delicada companheirice, pelos preciosos elogios nos
momentos em que a auto-estima fraquejava e, fundamentalmente, por seu olhar
cuidadoso na leitura e contribuições feitas à produção desta tese. A você, a
florada do café.
À Jacqueline e ao Roberto, pela trilha percorrida juntos. Sobe morro.
Desce morro. Neste sul das Gerais e no centro da existência. Pelo socorro
imprescindível. Jacque, minha querida “Profa. Portuga”. A vocês, o calor
revigorante do cafezinho quente.
Aos amigos Jovino e Norma, acudindo minha vida sempre que se fez
necessário. A vocês a beleza dos ramos com café maduro.
À Maura Lygia, amiga constante. Disponível ouvir. Domingos de
almoço em comunhão ao longo de grande parte do tempo em que vivo em
Lavras. Companheira, parceira cuja presença assegurou minha serenidade nos
últimos fazeres do texto final, produzindo figuras, trabalhando junto na produção
da apresentação da tese para a defesa. A você e ao Marco Aurélio, seu filho,
preciosos grãos do café.
À Rosa e ao João. Um amor que ensina o aprendizado do novo. Em
minha vida: afeto que recria o ato permanente de viver. A vocês, e ao filho
Francisco, o broto da semente.
Ao meu amigo Gilson Dantas, querido, contemporâneo e ilustre
debatedor de Karl Marx. Para quem a prática revolucionária é sempre possível
como emergência da insurreição popular e porque (ainda) nisso, tarefa para
todos nós. A você, replantio de mudas.
Ao Maga, doce violão, eruditos sons. “Agri-cultor” da compreensão.
Para você, o canto do anoitecer na roça e a luz da aurora.
À Adriana e à Juliana, porque os estudos no DAE nos colocaram juntas,
aqui e em qualquer lugar. Vidas em corredeiras, cachoeiras e nascentes. A vocês,
água pura.
Ao Carlinhos, ao Alemão e à Márcia, andantes em semelhantes
caminhos. A nós: as guias do café.
Ao Marcelo, aliança de amor. Aqui ou além mar. A você, barreiras de
fruteiras. Banana madura.
À Valéria, à Edwiges, à Cida, à Maria Eunice, à Delisete, à Ilze, ao
Eduardo Werner e aos amigos de Luminárias: comigo – gente na roda da cura. A
vocês, lavouras da vida: “a terra ensina”.
Aos alunos e alunas da pós-graduação e da graduação. Com vocês
aprofundamos nossos compromissos com a Educação Pública. A vocês, raízes
das lavouras do saber, lavouras da vida.
Aos “meninos e meninas” do PPJ (Projeto Padre Justino), especialmente
ao Elias, “cobra” em produção de figuras e, Luís Henrique, o “Machado”
contribuição na digitação da bibliografia. Com vocês, meninos e meninas
acreditamos e realizamos a possibilidade de um compromisso diferenciado com
o desenvolvimento brasileiro. A vocês, colheita do feijão plantado nas “ruas” do
café orgânico – “alimento saudável”.
Ao prof. Eduardo Ribeiro, com quem vivi a possibilidade de ruptura e
aproximação. Pela experiência rica de mútuo respeito, apesar das diferenças. A
você, o aprendizado do café plantado com barreiras de bananeiras, que separam
projetos de agricultura tão diferentes, mas que não separam convivência com
estas mesmas diferenças. Porque sei que sua vida é comprometida com as lutas e
práticas de agricultores familiares, como aqueles de Poço Fundo e de tantas
regiões das minas e dos gerais. “Somos amigos”, dizem os agricultores.
À Marízia, doce e decidida parteira do texto escrito, com quem vir à luz
se fez ato compartilhado. Pelo re-encantamento com a vida. Pelo aprendizado da
beleza de plantar o agradecimento no corpo, no coração e, em todos os
relacionamentos. A você, o cantorio da colheita, os frutos lançados ao céu.
Ao Prof. José Roberto, o orientador desta tese. Por ter me acolhido.
Lidamos com tensão, silêncio, distância. Poda e cortes fizeram-se necessários.
Mas, sua leitura cuidadosa, seu zelo com a correção minuciosa dos passos e
descompassos na produção do conhecimento contribuíram para o meu
aprendizado. perdas e ganhos a serem “equilibrados”. Com os agricultores
aprendemos que, com a poda, as plantas retornam vigorosas e, novamente, a
abundância torna-se possível. A você, o vento que assopra: o livre espalhar das
sementes. Sementes de nova vida. Há, nisso, “um aprendizado eterno”, afirmam
os agricultores e as agricultoras.
Ao Prof. Casimiro, co-orientador, educador mestre e aprendiz.
Presença estrangeira que se fez amigo, cuja solidariedade traduz-se em gestos de
compreensão e firmeza nas discussões da metodologia de pesquisa e na
necessidade de se fazer da academia um lugar de luz, “com vida e alma”, diz ele.
Você é Luz branca como Lisboa e chama acendedora desta tese. Sem você, esta
tese perderia a abundância da colheita. Para você, as montanhas do sul das
Gerais e as flores do cerrado, no norte. Os abraços da chegança e o canto da
passarada. Aqui ou lá, os laços tecidos e inacabados tecem a vida. Porque, como
dizem os agricultores: “Somos universais”.
Ao Programa de Pós-Graduação em Administração/DAE/UFLA, pela
oportunidade. A todas e a todos vocês: terra, luz do sol e água fontes da vida:
vida cuidada pelo humano.
Aos colegas do Departamento de Educação da UFLA, pelo estímulo.
Este trabalho foi possível, porque aceitaram o “sobretrabalho” decorrente de
minha liberação parcial. Juntas (os) buscamos caminhar (há passos,
descompassos e, fundamentalmente, procura) no terreno da possibilidade de
construir um projeto e uma prática de educação ao modo de Paulo Freire. Ivani,
solícita atenção. Fatinha, nossa comunicadora. Iara, secretária da pós. Marisa
ambiente limpo. A todas e a todos nós, o raiar do sol e a bonança das chuvas: “a
planta ensina”.
Aos participantes da banca examinadora desta tese: Á Lúcia Helena,
pelo gosto apurado na leitura do texto, revitalizando a teoria e suas vinculações
com a vida. Destaque para a emoção, a poesia e beleza como dimensões do
trabalho acadêmico. Por sua aproximação imediata com os agricultores e
agricultoras de Poço Fundo com quem conversou, compartilhou a refeição e se
comprometeu em discutir com eles a nova escola da Coopfam. Ao Cândido, pelo
cuidado com a forma do texto.
Ao prof. Rubens, pelo desafio de fazermos juntos, na UFLA, a
aproximação da ciência com o senso comum pela via da extensão universitária,
da pesquisa e do ensino. Ao Robson, pela sensibilidade expressa em público, por
nos confirmar com emoção que vida e compromisso político implicam dores e
alegrias. A vocês, a alegria de ver crescer o café plantado e cuidado no cotidiano
da vida que se transforma por práxis humana.
Ao Centro de Assessoria Sapucaí, acolhida. Abertura de arquivos.
Renato, jovem alegria. A todos vocês, a celebração do compromisso realizado.
Os frutos colhidos: dádivas e riquezas compartilhadas.
Ao CEOS, Instituto de Investigações Sociológicas, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa: acolhida portuguesa,
providências para minha integração e cuidadosa atenção. A nós, fartas colheitas
das lavouras do saber, lavouras da vida; luso-brasileiras.
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS............................................................i
LISTA DE QUADROS ........................................................................................ii
LISTA DE FIGURAS..........................................................................................iv
RESUMO..............................................................................................................v
ABSTRACT .......................................................................................................vii
CAPÍTULO 1........................................................................................................1
A PERGUNTA COMO SEMENTE, A EXPERIÊNCIA COMO SEMENTEIRA
..............................................................................................................................1
CAPÍTULO 2......................................................................................................11
A TERRA PREPARADA: O PRINCÍPIO DA SEMEADURA – O CONTEXTO
DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO ........................................................11
CAPÍTULO 3......................................................................................................31
SENSO COMUM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO: CHÃO TEÓRICO....31
CAPÍTULO 4......................................................................................................47
CAMINHADAS NO TERRENO DA PESQUISA: PASSOS E
DESCOMPASSOS.............................................................................................47
4.1 O relato do vivido .........................................................................................55
CAPÍTULO 5......................................................................................................67
SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO: NASCEDOURO; CONHECIMENTO
CIENTÍFICO: PONTE .......................................................................................67
5.1 Os sujeitos em diferentes temporalidades.....................................................67
5.2 As organizações: os pioneiros e os novatos, os dentro e os de fora..............84
CAPÍTULO 6....................................................................................................111
RELAÇÕES GERADORAS DO SABER APROPRIADO .............................111
6.1 Agricultores: os sujeitos, os educadores e as situações educativas.............115
6.2 “A planta mesmo ensina a gente”...............................................................133
6.3 “Hoje, o café compra tudo” ........................................................................146
6.4 “Nós somos universais”..............................................................................157
6.5 Outros achados no processo de produção do saber apropriado ..................160
CAPÍTULO 7....................................................................................................168
O SABER APROPRIADO E O MÉTODO......................................................168
7.1 O processo de produção do saber apropriado: fundamentos (raízes), guias
(método) e colheita (resultados) .......................................................................174
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................184
ANEXOS..........................................................................................................190
i
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AS-PTA – Assessoria de Serviços a Projetos em Tecnologias Alternativas
ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural
BCS – BCS ÖKO-Garantie GMBH (Control System Peter Grosch)
CAV – Centro de Agricultura Vicente Nica
CEB – Comunidades Eclesiais de Base
Coopfam – Cooperativa dos Agricultores Familiares de Poço Fundo e Região
CPT – Comissão Pastoral da Terra
DAE - Departamento de Administração e Economia
DED – Departamento de Educação
DRP – Diagnóstico Rápido Participativo
Emater – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FLO – Fair Trade Labelling Organizations International
GPS – Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global
IBC – Instituto Brasileiro do Café
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Infoam – International Federation of Organic Agriculture
Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ONG – Organização não-governamental
PPGA – Programa de Pós-Graduação em Administração
PPJ – Núcleo de Pesquisa e Apóio à Agricultura Familiar Justino Obers/UFLA
Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
UFLA – Universidade Federal de Lavras
ii
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1. Caracterização sintética dos agricultores associados..................109
iii
LISTA DE QUADROS E TABELAS
TABELA 1. População urbana e rural de Poço Fundo.......................................13
iv
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Relações dialógicas de produção do saber.......................................85
FIGURA 2. Processo de produção do saber: participação pela representação. 108
FIGURA 3. Processo de produção do saber: agricultor, terra, planta...............115
FIGURA 4. Relação horizontal de produção do saber......................................119
FIGURA 5. Processo de produção do saber: participação externa...................121
FIGURA 6. Logomarca das certificadoras. ......................................................146
FIGURA 7. Dinâmica de produção do saber apropriado..................................168
FIGURA 8. Temas geradores do saber apropriado...........................................176
v
RESUMO
RAMOS, Rosana Vieira. Saber de experiência feito e conhecimento científico
no processo de produção do saber apropriado: a experiência da Associação
de Pequenos Produtores de Poço Fundo/MG. 2008. 169 p. Tese (Doutorado em
Desenvolvimento, Gestão Social e Ambiental) Universidade Federal de
Lavras, Lavras, MG
1
.
Introdução: esse estudo trata do processo de produção do saber apropriado por
agricultores familiares. Ancora-se no objetivo central de analisar o processo de
produção do saber apropriado por agricultores nas relações sociais e culturais
entre o saber de senso comum e o conhecimento científico. Especificamente,
buscamos: (1) analisar o processo de produção e organização do saber de senso
comum na cultura camponesa; (2) analisar a avaliação e o controle realizado
pelos agricultores em relação ao conhecimento científico; (3) analisar a
produção do conhecimento “gestado” pelos agricultores em diversas relações
sociais e culturais de seu cotidiano. Realizamos uma pesquisa de caráter
etnográfica em que estabelecemos uma estreita convivência com os agricultores
em sua residência, lavouras, reuniões e assembléias da Associação dos Pequenos
Produtores de Poço Fundo e da Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço
Fundo/MG e região. O saber apropriado é produzido e consolidado em espaços
de compartilhar experiências, como as lavouras, os grupos locais nos bairros e o
grupo de representantes de bairro; nesses, a troca de experiência de agricultor
para agricultor é a dinâmica validada como a que mais favorece a produção do
saber apropriado. Nela, os procedimentos de experimentação, a avaliação dos
resultados e os riscos são ouvidos, discutidos, testados; assim, o saber é
compartilhado numa relação entre iguais ou em relações horizontais. A troca de
experiência ocorre no nível local e, também, quando esses agricultores saem do
1
Comitê: Prof. Dr. José Roberto Pereira (Orientador) UFLA. Prof. Casimiro Balsa (Co-
orientador) – Universidade de Nova de Lisboa/Portugal
vi
município para compartilhar suas experiências e conhecer outras experiências
ou, ainda, quando recebem grupos e pessoas de outros locais no Brasil ou no
mundo. Trata-se de um processo de ensinar e aprender permanente e dialógico.
As lavouras são um todo articulado, tecido de relações de aprendizados simples
e complexos; nelas, a terra e as plantas ensinam e os sujeitos sociais aprendem e
ensinam, simultaneamente. Esse é um modo de ver e viver o mundo que descarta
a separação, entre senso comum e ciência, exigida pela ciência moderna; busca
unir o que essa ciência separou. Consideramos que se trata de um senso comum
emancipatório e de uma possibilidade da experiência de uso do conhecimento
com prudência: são essas, as lavouras do saber apropriado.
vii
ABSTRACT
RAMOS, Rosana Vieira. Wisdom containing experience and scientific
Knowledge in the output of learning process: the experience of the small
growers from Poço Fundo, in MG. 2008. 169 p. Thesis (Doctorate in
Management) – Federal University of Lavras, MG
2
.
Introduction: This study deals with the production process of familiar farmers’
proper knowledge. This bases upon the central goal in analyzing the production
process of familiar farmers in social and cultural relationships between the
scientific knowledge and the common sense wisdom. Specifically, we search for
: (1) analyzing the production process and the common sense; (2) analyzing the
assessment and control carried out by the farmers regarding the scientific
knowledge; (3) analyzing knowledge production gestated by the farmers in
several everyday social and cultural relationship. We carried out a research of
ethnographic character in which we set up a narrow closeness to the farmers in
their residences, farming and their meetings in the small growers association
from Poço Fundo and in the familiar farming cooperative from Poço Fundo,
MG, and region. The proper knowledge is produced and consolidated within
spaces for exchanging experiences as the farming, local area groups and area
representatives groups; there the exchange of experiences from farmer to farmer
is the validated dynamic that best favors the proper knowledge production. In
that, the experimentation procedures, the assessment results and risks are heard,
discussed, tested; therefore, the wisdom is shared in a relation among similar or
in horizontal ones. The exchange of experience occurs at a local level, and also
when those farmers leave the town for sharing their experiences and know other
ones or, even when welcome groups and people from other areas both in Brazil
and in the world. It is a matter of a dialogic and permanent teaching and learning
viii
process. The farming is in al put together, comprising simple and complex
learning relationships; in those, the land and plants teach and the social subjects
learn and teach, simultaneously. This is a way of living and see the world which
discard through the by the modern science; the division between common sense
and science, required divided. We consider it is a matter of emancipation
common sense through the and a possibility of experience for using the
knowledge carefully: those are the proper knowledge farming.
Keywords: farming, knowledge, scientific knowledge, familiar farming.
2
Committee: Prof. Dr. Jo Roberto Pereira (Adviser) – UFLA. Prof. Casimiro Balsa (Co-
Adviser) – Universidade de Nova de Lisboa/Portugal.
1
CAPÍTULO 1
A PERGUNTA COMO SEMENTE, A EXPERIÊNCIA COMO
SEMENTEIRA
O óbvio na condição de conhecer é a criação da pergunta. A pergunta é
semente. A pergunta suspende a certeza e inaugura novas possibilidades de
conhecer. Esta tese nasce de uma pergunta. Novidade nenhuma: princípio.
Antes de escrevê-la, ela já se encontrava como pergunta colhida no
cotidiano da nossa convivência com agricultores e trabalhadores. Era
inicialmente assim: como se o processo de produção do saber próprio desses
homens e mulheres? Como funciona a famosa “escola da vida”? E o “mundo”,
como ensina? Como aprendem e como ensinam o saber feito de experiência da
vida fora da escola “oficial”?
A impossibilidade ou a restrição de acesso à escola é contraposta por um
modo de saber ou uma sabedoria da vida, do mundo. Esses sábios formados na
escola da vida desafiam nossa curiosidade de pesquisa.
O saber de experiência feito, gestado na labuta do cotidiano para
garantir a vida, quando visto como senso comum tem pouca valia aos olhos
acadêmicos. Por quê?
Verificada a associação do saber de experiência ao saber de senso comu,
encontramos uma explicação para a desvalorização desse saber na academia
onde se produz ciência, onde se produz logos. Senso comum é visto como mera
opinião destituído de logos. Gramsci (1999), nos Cadernos do Cárcere, por
exemplo, proclamou teses sobre a negatividade do senso comum.
Entretanto, em nossas leituras, Paulo Freire e Carlos Rodrigues Brandão
sustentaram as buscas de compreensão daquelas questões. Com eles, o saber
desses sujeitos transcende do lugar do desprestígio para o lugar do (re)
conhecimento.
2
A pergunta permanecia: como agricultores aprendem e ensinam o saber
feito de experiência? No mestrado em educação, essa pergunta transformou-se
veio a ser: como aprendem por via da luta pela terra? A luta ensinou. Foi a
escola da vida. Essa, uma certeza. Dez anos depois, aquela pergunta retornou
modificada: como aprendem e ensinam os agricultores? Mudaram os sujeitos,
de sem-terra para agricultores, muitos proprietários de terras, outros parceiros no
uso da terra. O retorno da pergunta estimulou o retorno aos bancos da academia.
No doutorado em administração, ela se transformou em “como se o processo
de produção do saber dos agricultores? O olhar da administração mudou a
mirada, transformou o aprender em produção do saber.
No doutorado, a busca da relação entre questão empírica e questão
teórica alçou a pergunta para outro plano. Considerando que o saber dos
agricultores em foco contém o saber de experiência dos pais e antepassados e,
também, parte de experiências produzidas pelo conhecimento científico,
vinculamos o processo de produção do saber dos agricultores ao saber
tradicional e ao conhecimento moderno. Uma dicotomia complexa, porque
corria o risco de remeter o saber tradicional sobre agricultura ao atraso e, ao
moderno o conhecimento científico - ao progresso. Escapamos dessa
complexidade visto que a tradição está sendo re-significada e o moderno não é
mais a certeza do progresso. E o que é o progresso? E ciência o que é? Teria a
ciência nascido de si mesma? Ou, como a cria nega a própria origem? Novas
questões abertas a outros pesquisadores.
Depois de deparar com a complexidade dessa discussão sobre a relação
entre o tradicional e o moderno na produção do saber dos agricultores,
abandonamos essa dicotomia e agarramo-nos na proposição de Paulo Freire:
Saber de experiências feito’, como diz Camões, é exatamente o saber de
3
senso comum. Discordo dos pensadores que menosprezam o senso comum,
como se o mundo tivesse partido da rigorosidade do conhecimento científico
3.
Agora buscamos uma possível aproximação do que a prática científica
separou: o “saber de experiência feito” e o conhecimento científico. Afinal, o
saber de experiência feito era o saber de senso comum colocado de um lado e, de
outro, encontrava-se o conhecimento científico. Esta possível união é celebrada
por Santos (2002, 2003) dando sustentação às elaborações constantes neste
trabalho. Na construção dessa ponte, colocamos a questão central desta tese:
“como os agricultores administram o saber de senso comum na relação social e
cultural com o conhecimento científico? É essa a pergunta-semente. A
experiência dos agricultores é a sementeira. O ponto nascente é o saber de
experiência feito dos agricultores de Poço Fundo-MG.
Os agricultores são sujeitos distintos: são produtores vinculados à
Associação de Pequenos Produtores de Poço Fundo, Minas Gerais. Escolhidos
por causa da singularidade de sua trajetória de vida e por apresentarem uma
história de resistência e produção do saber exatamente nesta travessia que nos
interessa: a travessia do senso comum ao conhecimento científico e vice-versa.
Fizeram ainda uma outra travessia importante: romperam com uma possibilidade
(um destino?) de pobreza e exclusão e transformaram suas condições de vida e
trabalho em vida digna e trabalho digno. Exemplo conhecido e visitado por
outros agricultores, por pesquisadores, visitantes nacionais e estrangeiros.
Aprendem e ensinam um outro projeto de produção na agricultura. Porque a
preservação da vida e do planeta é seu propósito, o grande objetivo de suas vidas
e de suas organizações.
Os agricultores, ao produzirem cultivos, produzem bens materiais e
3
FREIRE, A. M. (Org.). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001. 300 p.
(Serie Paulo Freire).
4
simbólicos, produzindo a si mesmos. Utilizam práticas que geram
conhecimentos que os reproduzem historicamente, na convivência agricultor
com agricultor, fundamentalmente, e com mediadores (técnicos; pesquisadores;
agentes da universidade, das empresas agropecuárias, do governo e de
organizações não-governamentais – ONGs).
Eles estão fazendo seu próprio caminho. Alguns fizeram a travessia da
agricultura camponesa para a agricultura moderna. Muitos deles não adotaram
práticas da tecnologia da agricultura moderna, mas vieram da agricultura
camponesa para a agricultura alternativa e dessa para a agricultura sem uso de
agrotóxico o que eles denominam de agricultura convencional sem agrotóxico
e agricultura orgânica. Exatamente na encruzilhada colocada pela permanente
ameaça de exclusão sinalizada pelo desenvolvimento da agricultura no Brasil.
Esse caminho não é linear e seqüencial. Implica pontos de partida diferentes,
permanências e rupturas que produzem o saber desenvolvido por esses
agricultores. As experiências vividas o marcas que sinalizam o caminho e os
rumos adotados.
Encontram-se hoje inseridos no mercado internacional como
exportadores de café orgânico
4
e café convencional sem agrotóxico. Esse café é
fruto e produto dos saberes que nos interessam nesta tese. O café-fruto
representa todo complexo de relações de produção de saberes da experiência de
4
Café orgânico está sendo discutido dentro do que se compreende por produção orgânica definida
pela Instrução Normativa 7 do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, Brasil/1999,ou
seja: considera-se como produção orgânica agropecuária e industrial aquela em que se adota
tecnologias que buscam otimizar o uso de recursos naturais, sociais, econômicos e culturais.
Objetiva a auto-sustentabilidade, a maximização de benefícios sociais, a minimização do uso de
energias não renováveis, a eliminação do uso do agrotóxico e outros insumos artificiais tóxicos,
organismos geneticamente modificados, radiações ionizantes, dentre outros. Prioriza a preservação
da saúde humana e ambiental. Estes entre outros, critérios normativos mais importantes, são
exigidos e controlados de acordo com esta normativa em todos os processos de produção,
embalagem, armazenamento, transporte e comercialização. BRASIL. Ministério da Agricultura e
do Abastecimento. Instrução Normativa, n º 7, de 7 de maio de 1999. Dispõe sobre normas para a
produção de produtos orgânicos, vegetais e animais. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, n. 94, p. 8, maio 1999. p.8.
5
vida dos agricultores que o cultivam e o café-produto é mercadoria, bem de troca
visto por eles como relação de solidariedade e justiça entre produtores e
consumidores aliados no mercado (dito) justo fair trade. O café como mescla
fruto e produto, é a síntese da produção do saber apropriado desenvolvido por
esses agricultores.
O que pretendemos fazer é analisar o processo de produção do saber
apropriado por agricultores nas relações sociais e culturais entre o saber de senso
comum e o conhecimento científico. Este é o objetivo geral. Especificamente,
buscamos: (1) analisar o processo de produção e organização do saber de senso
comum na cultura camponesa, identificando as práticas apropriadas; (2) analisar
a avaliação e o controle realizado pelos agricultores em relação ao conhecimento
científico; (3) analisar a produção do conhecimento “gestado” pelos agricultores
em diversas relações sociais e culturais de seu cotidiano.
Nesta pesquisa relatos da experiência do modo de produção do saber,
partindo da experiência de adoção e não adoção de saber camponês; adoção e
não adoção de conhecimento científico utilizado na produção da agricultura
moderna, ancorada na chamada revolução verde. Essas experiências fazem as
pontes, as aproximações do senso comum ao conhecimento científico e deste
para aquele na produção do café orgânico e convencional sem agrotóxico.
A tese segue um movimento de ir e vir da elaboração teórica ao empírico
e deste àquela. É por essa razão que desde as primeiras páginas há dados
colhidos no campo, mesclados com problematização, interpretações, relações
teóricas, conclusões. Aproximamos o final do começo.
Nesse percurso, iniciações de análises de dados mostram resultados que
se antecipam. Resultados fora do lugar? Conclusões precipitadas? o leituras
possíveis. Entretando, esse movimento faz parte de uma intencionalidade. É
fruto da alquimia desejada. Resultado de um trabalho de construção, que brota
como descoberta no ato de sua produção.
6
No texto verificam-se passos, descompassos, circularidade, becos sem
saída, caminhos trilhados na apropriação das vinculações entre o senso comum e
o conhecimento científico, no contexto de vida dos agricultores.
Em ntese, em seu primeiro capítulo, são apresentadas as intenções do
estudo, com a finalidade de situar o leitor. No capítulo dois, informações
contextuais sobre a trajetória dos agricultores. O aporte teórico fundante está no
terceiro capítulo. No capítulo quatro, encontra-se o percurso metodológico. O
quinto capítulo destina-se aos achados colhidos. A propósito das considerações
finais, o capítulo seis traz feixes que tentam amarrar toda a produção desta tese.
O municio escolhido como locus deste estudo é Poço Fundo, cidade do
sul de Minas Gerais. Minas, que no centro do coração de seu território, teve o
ouro lavrado a céu aberto, debaixo da terra ou em águas correntes no tempo da
exploração colonial espoliadora, tem hoje outra fonte de riquezas: o café. São
toneladas de sacas de riqueza produzidas especialmente nesta Região Sul e no
Triângulo Mineiro. Poço Fundo, o município ora estudado, faz parte desse
terreno fértil de produção cafeeira.
O antigo povoado pertencente ao município de Alfenas, denominado
inicialmente de Machadinho
5
passa, em 1870, à condição de distrito com o nome
de São Francisco de Paula do Machadinho, em homenagem a esse santo. Veio a
ser município em 1923 com o nome de Gimirim. Somente em 1953 recebe a
denominação usada atualmente: Poço Fundo. Com um território de 475 km² de
área total, possui clima tropical-temperado, temperatura média anual de 20ºC e
altitude máxima de 1435 m. Localiza-se a 395 km de Belo Horizonte, 455 km do
Rio de Janeiro, 275 km de São Paulo e 1.110 km de Brasília, o que torna
5
Fonte: Secretaria da Cultura em 01/10/1999 citado pelo INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
APLICADAS IGA. Cidades Poço Fundo, MG. Belo Horizonte. Disponível em: <
www.iga.br/mapas/cgi/iga_ooo.php>. Acesso em: 10 de mar. 1999. no site referido na nota de
rodapé nº 4.(abaixo).
7
estratégica sua posição geográfica. Soma-se a isso o lugar de destaque ocupado
por Minas Gerais como produtora de café.
A localização geográfica de Poço Fundo pode ser visualizada no mapa
abaixo.
Fonte: IGA (1999)
6
.
Outra localização importante é a posição em que entramos a Associação
de Pequenos Produtores de Poço Fundo no google earth. Uma localização vista
por satélite na qual podemos vê-la na face planeta terra. Uma localização virtual
e, de forte significação, para situarmos esses agricultores em suas relações com o
mundo. Ou para destacarmos sua importância no contexto internacional em que
6
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Municípios mineiros.
Belo Horizonte. Disponível em:
http://www.almg.gov.br/index.asp?grupo=estado&diretorio=munmg&arquivo=municipios&munic
ipio=51701. Acesso em: 14 mar. 2008.
8
se encontram. Podemos observar isso no recorte retirado do programa de
computador visto via internet – o google earth:
O Brasil é soberano na produção de café, respondendo, na safra
2005/2006, por cerca de 30% da produção mundial (aproximadamente 42.512
milhões de sacas de 60 Kg). Os principais produtores de café no mundo são
Brasil, Vietnan, Colômbia e Indonésia. O café é importante gerador de divisas
para o País. Minas Gerais detém 49% da produção nacional de café (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2005).
O crescimento do consumo de café orgânico pode ser explicado pelo
surgimento de um tipo de consumidor mais exigente e comprometido com
valores como produto de qualidade saudável, preservação ambiental e relações
de produção e de trabalho mais justas. Segundo Oliveira et al. (2007) citando
Moreira:
9
O consumo de cafés especiais como os orgânicos tem aumentado na
medida (sic) em que a sociedade vem questionando a sustentabilidade
do modelo agrícola atual. Utilizando-se de grandes quantidades de
insumos, a agricultura comum é responsável por uma série de
intoxicações a seres humanos (diretas ou indiretas), aos animais e ao
meio ambiente, Moreira (2005). A cultura do café vendido como
commodity é a terceira no país a receber maiores quantidades de
agrotóxicos com um total geral de 30 mil toneladas de produtos
vendidos em 2000, perdendo apenas para o milho e para a soja”.
Ainda considerando Oliveira et al. (2007, p.4) que citando Pegurier
(2005), apresentam dados quantitativos sobre a produção de café orgânico no
mundo. No contexto mundial, segundo esses autores temos que:
“A produção brasileira alcançou 200 mil sacas no ano passado, 0,4%
do total, e deve dobrar em 2005. O maior produtor de café orgânico, no
mundo, é o México cujas lavouras são pequenas e artesanais, mas em
grande número. A modalidade representa 10% da cafeicultura do país.
o Brasil representa o sexto lugar na produção de café orgânico,
atrás da Costa Rica, Equador, Peru e Tanzânia.Em 2005, quase toda a
produção do café orgânico se destinará ao mercado internacional
(principalmente Europa, Estados Unidos e Japão)”.
Dados da Embrapa Meio Ambiente
7
, que está realizando uma pesquisa
junto aos agricultores da Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço Fundo
e região a Coopfam merecem destaque. Segundo esses pesquisadores esta
cooperativa
“possui hoje 800 mil pés de café orgânico, cem por cento arábica, que
produzem em média 5.000 sacas por ano em altitudes que variam de
7
Silveira, M. A. da.; Ferraz, G. J. M.; Tordim, M.C. Projeto de pesquisa da Embrapa dá ênfase
à cafeicultura familiar orgânica no sul de Minas. Jaguariúna: Embrapa Meio Ambiente 2006.
Disponível em:
<http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/recursos/Silveira_Ferraz_Tordin_projetoID-
0ZRghzBTFL.pdf>. Acesso em: 14 de mar. 2008.
10
800 a 1.000 metros. O café da região, de alta qualidade, conhecido em
vários países por seu aroma incomparável, foi considerado o melhor
café do mundo. Tendo a maior parte destinada à exportação, o sistema
de secagem em terreiro é natural, lentamente ao sol, o que faz com que
não perca a sua integridade. O Brasil é o único país produtor que
possui esse tipo de seca”.
Assim a Coopfam se alinha ao mercado internacional, na trilha do fair
trade ou o mercado justo como se traduz. Esta cooperativa exporta um café de
qualidade reconhecida por pesquisadores, consumidores e que se faz o orgulho
dos agricultores integrados nesta cooperativa e que resgata uma história
sedimentada em laços tecidos pela família, pela vida comunitária e pela
resistência das lutas da Associação de Pequenos Produtores de Poço Fundo na
qual encontram seu alicerce.
11
CAPÍTULO 2
A TERRA PREPARADA: O PRINCÍPIO DA SEMEADURA – O
CONTEXTO DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
A terra olhada de perto e do alto dos morros mostra lavouras que se
fecham com fileiras de cercas verdes, barreiras que separam lavouras de café
orgânico e café sem agrotóxico, de outras lavouras que usam veneno
8
, como
dizem os agricultores usualmente. As lavouras de café sobem e descem a terra
ondulada por morros e pontilhada de casas onde vivem os agricultores que
cultivam café em Poço Fundo-MG.
Mas, isso não foi sempre assim, contam os antigos moradores. Antes o
café tinha a serventia do consumo para a família, bem como arroz, milho e
feijão, lavouras mais importantes do ponto de vista da subsistência humana.
Essas alternavam-se com pasto para gado de leite e davam tonalidades diferentes
às cores do cenário. Além disso, significavam práticas e relações sociais de um
outro modo de ser e produzir saberes típicos da agricultura camponesa.
Nesse cenário, a terra dividida expressa acesso a pequenas parcelas de
lavoura por parte da grande maioria de agricultores nesse lugar. Entrevistamos
moradores de 83, 74 e 65 anos, que explicaram a baixa concentração fundiária
do município. Eles sempre viveram ali, tiveram filhos e filhas. Muitos casaram-
se entre primos. Tiveram a lavoura em regime de parceria com os donos da terra,
8
Falas dos agricultores, sujeitos deste estudo. Constam do Caderno de Campo da pesquisadora.
São aqui utilizadas como antecipação dos resultados da pesquisa, com a intenção de aproximar o
empírico do teórico. São apresentadas ao longo do texto, com a indicação de quem as pronúncia,
utilizando-se de pseudônimo, para preservar o sigilo da identidade, a não ser quando se tratar de
um discurso recorrente, como o acima citado.
Caderno de Campo é um instrumento utilizado para o registro dos dados de campo, ao longo do
terreno da pesquisa. Constam dele: falas dos agricultores (conversas e entrevistas), fichas de
identificação dos entrevistados, registro de observações, síntese de dados secundários. Será melhor
apresentado no capítulo 4 que trata da metodologia de pesquisa.
12
pequenos fazendeiros, outros foram eles mesmos os proprietários da terra, que
partilhada na sucessão por herança,fazem de seus filhos os proprietários de hoje.
No tempo revivido por esses antigos moradores, eles não situam a
grande fazenda ou o latifúndio como modo de apropriação da terra. “A terra é
partilhada para a produção a meia. Aqui era tudo de meu pai. Eles morreram.
Os fazendeiros não dão terra pra arrendamento, nem em parceria. Pra falar a
verdade, nem fazendeiro tem”, disse Da. Dália, mãe de Thiago
9
.
Não fomos resgatar a história de divisão da terra ou da ocupação do
município. Pensamos que esse é um bom estudo para outras pesquisas. Mas a
repartição da terra é visível, ao depararmo-nos com o fato de que ali não
grandes propriedades, mas propriedades que variam de 2 a 40 hectares, como já
observado em outros estudos.
Segundo dados do IBGE (2005), nesse município predominância de
“micro e pequenas propriedades, onde 49,4% dos estabelecimentos possuem
área total de até 10 ha”. Do total da área cultivada, 25% estão ocupados por
lavouras permanentes e temporárias.
Poço Fundo caracteriza-se como um município onde boa parte da
população ainda se concentra na área rural, como se pode observar na Tabela 1.
A propriedade da terra, a terra dividida com os filhos, o sacrifício para
comprar um pedaço de terra”, as formas de parceria, as relações de
reciprocidade, as alianças e conflitos misturam temporalidades diferentes na
produção do café: o tempo (1) da agricultura camponesa; (2) da agricultura
moderna; (3) da agricultura sem agrotóxico e da agricultura orgânica. É essa a
experiência vivida por aqueles que aceitaram participar desta pesquisa.
9
Thiago, 32 anos, Bairro Amarelo, produtor de café orgânico (2000 pés) e sat (5000 pés) não tem
terra própria; é parceiro do pai e do tio. Estudou até a 5ª série do fundamental. ( Esta identificação
aparecerá a cada primeira vez em que ocorre a fala dos interlocutores que concederam entrevista.
O mesmo não será feito com outras falas decorrentes de conversas ou reuniões).
* Preservando o nome original foram escolhidos nomes de apóstolos para os entrevistados, nome
de flores para as mulheres e outros nomes para os demais participantes desta pesquisa.
13
TABELA 1. População urbana e rural de Poço Fundo.
URBANA RURAL TOTAL ANOS
Habitantes % Habitantes % Habitantes
1970 4.200 32,94 8.552 67,06 12.752
1980 5.341 43,01 7.077 56,99 12.418
1991 6.911 50,02 6.906 49,98 13.817
2000 8.406 55,51 6.737 44,49 15.143
2005 (1) 15.982
Fonte: IBGE, 2005
(1) Dados preliminares
A agricultura camponesa é considerada, para efeito deste estudo, o
nascedouro do processo de produção do saber. É afirmada e negada no processo
de produção do saber apropriado. A agricultura moderna é objeto de crítica e
rejeição para aqueles que optaram pela agricultura orgânica, sendo adotada
seletivamente. A agricultura orgânica é o ponto de chegada visualizado como
ideal a ser atingido; já alcançado por alguns e almejado por outros. Esses modos
de fazer agricultura trazem apropriações do saber de senso comum e do
conhecimento científico, que constituem o processo analisado neste estudo.
O caplantado por agricultores de Poço Fundo-MG, nessas diferentes
temporalidades, espalha suas raízes sobre a terra e a vida desses homens e
mulheres que, no mesmo ato de plantar e colher os frutos de seu trabalho,
plantam e colhem suas experiências tecidas no modo de produção do saber
feito e fazendo-se no cotidiano.
Alguns aspectos dessa experiência foram investigados nos campos da
agronomia e da administração no âmbito da Universidade Federal de Lavras
(UFLA). Foram seis pesquisas de mestrado (duas em agronomia e quatro em
administração) e duas pesquisas de doutorado (em agronomia). Dessas, uma
dissertação e uma tese foram conduzidas em área de experimento fora do
14
município
10
.
Esses estudos são considerados como parte da terra preparada para esta
investigação. Trazem elementos sobre o contexto de produção do saber dos
agricultores de café de Poço Fundo, situado em diferentes temporalidades e
articulado com diversos sujeitos, dentre eles a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), a Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Emater-MG) e a UFLA, a associação e a cooperativa
deles.
Carrieri (1992) faz um longo trabalho de reconstituição da história de
vida desses agricultores e busca dar conta da complexidade das relações
existentes, articulando agricultura, pecuária, consumo e comércio, produção e
reprodução, tendo por base o período de 1970 a 1980.
Nessa reconstituição, o autor destaca que a formação dos cafezais é
antiga e foi passada de geração para geração, entre as famílias de agricultores de
Poço Fundo. Porém, a integração deles ao circuito comercial ocorreu na década
de 70, quando o café passou a ser cultivado com tecnologia moderna e como
monocultura
11
. Isso provocou mudanças no ambiente, no trabalho familiar e nas
relações sociais e econômicas. Carrieri (1992, p. 72) observa que a expansão do
café mudou práticas agrícolas, mudou a paisagem:
O ca começou a aparecer no bairro de Cardoso conquistando,
também agora, as lombadas de espigão, as terras consideradas secas, a
10
São os estudos em agronomia de Theodoro (2001), pesquisa desenvolvida no município de
Santo Antônio do Amparo; tese de doutorado, experimento realizado em uma fazenda no
município de Lavras. Segundo relato pessoal de Theodoro, o que ensejou tais estudos foi sua
“descoberta” do café orgânico produzido pelos agricultores de Poço Fundo, quando atuava como
inspetora de certificadora de café. Ver ainda, THEODORO, V.C. A. Transição do manejo da
lavoura cafeeira do sistema convencional para orgânico. 2006. 142 p. Tese (Doutorado em
Fitotecnia) - Universidade Federal de Lavras, Lavras.
11
“O café foi o grande motor das modificações em Poço Fundo. A expansão da cafeicultura em
toda a região, motivada pelo Plano de Renovação de Cafezais (1969) veio modificar a estrutura da
pequena propriedade concorrendo por mão-de-obra, terra e recursos com as culturas
tradicionalmente cultivadas”, conforme o Diagnóstico... (1994, p. 3).
15
partir de vários incentivos por parte da assistência técnica local.
Incentivos que traziam, é gico, algumas técnicas novas como:
adubação a pé, a variedade de café, a plantação em nível, as mudas
em blocos [...].
Antes disso, o café era produzido apenas para o consumo da família, e
alimentos como milho, arroz eram prioridade. O leite e o fumo eram a produção
agrícola comercial, é o que diz “Seu” José, pai de Matheus
12
: “Meu avô mexia
com leite e fumo. Trabalhava, produzia, vivia apertado, para no fim do ano,
juntar um dinheirinho para comprar um pedaço de terra. No tempo de meu avó,
o café era só pro gasto
13
Seu Raimundo acrescenta: “A lavoura de tradição
era o fumo, milho, feijão e arroz. O arroz quase desapareceu. Era plantado em
várzea. O custo ficou muito alto. Existe alguma pessoa que planta arroz de
sequeiro. Hoje a pessoa planta duas sacas de café e compra o arroz pro ano
inteiro”. Essa fala relaciona o passado e o presente, a mudança relativa à
importância do café primeiro como produto para consumo, depois, para
comercialização e, hoje, a valorização do café, que vem substituindo outras
atividades produtivas. É o que afirma Seu Damião, pai de Thiago: Hoje o café
compra tudo. Arroz antigamente pegava desde a Vargem até Pouso Alegre;
nessa época, comia, bebia e pagava as contas vendendo arroz. Hoje não sei se
ficou mão-de-obra mais cara, está tudo na cidade [...]”.
Os agricultores expressam mudanças ocorridas com a introdução do café
em novas bases tecnológicas a partir do incentivo governamental. Vejamos o
que dizem os pais de Thiago e de Matheus, respectivamente:
Minha lavoura, desde que meu sogro plantou, tem 30 anos de lavoura,
nunca usou ramdap [agrotóxico], plantou naquele sistema antigo,
entre ele [o café] cresce, cresce... usava adubo químico, 20-05-20 e o
12
Matheus. Bairro da Cachoeirinha. Tem 40 anos, casado, duas filhas (uma com 2 anos, outra com
um ano de idade). “Planta na terra do pai”.É produtor de café orgânico.
13
Falas grafadas em negrito são destaques da pesquisadora.
16
governo exigia dois banhos [de agrotóxico] a cada dois anos. Passou os
dois anos a gente nem banho dava. Plantava alimento no meio da rua.
Mais ou menos em 1978. Primeiro em bloco [modo de plantio da
semente em cova funda], só pro gasto [...]. O [citava o nome do técnico]
da Emater dava uma olhada. O café não chegava a banhar não. Veneno
quase não punha. arava, gradeava, punha calcário para ajudar. A
gente vai aprendendo com o povo, a gente que quanto mais
agrotóxico, a gente vai conscientizando.
Evitar o uso de agrotóxico “nem banho dava” e plantar alimento no
meio da rua”, nas entrelinhas do café, significavam um uso apropriado da
tecnologia proposta pelo programa governamental, dando mostras de adoção
seletiva do conhecimento científico.
No estudo de Aguiar (1992, p. 92), que se empenhou em analisar a
relação entre o saber camponês e o saber técnico, a introdução do “saber
técnico”, iniciada na década de 1970, gerou mudanças nas práticas agrícolas.
Concluiu: “as tecnologias foram introduzidas, o de forma intensiva, nos
moldes idealizados por seus fomentadores, mas de forma adequada às
necessidades e condições de produção da unidade doméstica”. Naquele período,
houve mudança, mas houve também resistência. O domínio do “como fazer” e a
revitalização cotidiana e permanente desse saber na relação com o saber técnico
é creditado ao que a autora denominou como “experimentação camponesa” e à
construção de uma “complexa rede de conhecimentos”.
A década de oitenta caracterizou-se como de grande mobilização.
Grande parte dos agricultores de Poço Fundo se encontra vivendo em
comunidade os bairros rurais. Esses eram constituídos de famílias cujos laços
de parentesco e vizinhança traduziam e ainda traduzem fortes vínculos de
sociabilidade. Nesses bairros, grupos organizaram-se em torno das Comunidades
Eclesiais de Base por volta de 1984. Naquela época, aprenderam a plantar a
agricultura alternativa sob a orientação de Padre Justino e agentes da Comissão
17
Pastoral da Terra. Aquela agricultura era “alternativa ao sistema”; ao modo de
plantar e ao modo de organizar a sociedade, contrapondo-se politicamente à
agricultura capitalista. Aprenderam a produzir um alimento e “produto
saudável”, como reconhecem os próprios agricultores atualmente: “Nossa
família sempre foi muito católica, faz 23 anos que funciona [a associação] e
100% das pessoas que estão na associação são católicas e vêm de participação
na comunidade”, diz Gabriel, irmão de Matheus.
Cursos, encontros, debates e trocas de experiência com agricultores de
outros municípios fizeram emergir a valorização do saber próprio e a autonomia
dos agricultores. Carrieri (1992) anunciou que, na década de 80, havia uma
disputa de poder entre a Igreja e o Estado, ou entre o roco local e a Emater.
Nessa disputa, os agricultores romperam com a Emater.
Esse rompimento não significou negação radical do conhecimento
científico trazido por aquela instituição. Para Aguiar (1992), Carrieri (1992), a
Emater veio ensinar tecnologias modernas de produção de café, segundo o Plano
de Renovação de Cafezais do Instituto Brasileiro do Café (IBC). Os agricultores
aprenderam selecionando o que avaliaram como útil e negando o que
consideraram inadequado.
Por outro lado, hoje, os agricultores avaliam que a introdução da
tecnologia moderna na produção do café atingiu altos custos de produção, com
conseqüências diversas, tais como: precarização da qualidade
14
, baixo preço do
produto no mercado e degradação da terra. Essa situação suscitou e sustenta
alguns questionamentos. Como lidar com o conhecimento vindo de fora? No que
esse conhecimento agregou valor ao produto e aos modos de produção até então
adotados? Como essas alterações influenciam ou produziram mudanças nas
condições da vida desses agricultores?
14
Também assinaladas no Diagnóstico...
(1994).
18
Problematizar a realidade, refletir sobre a vida, fortalecer iniciativas
favorecedoras de mudança eram alguns dos propósitos que dinamizam as CEBs.
Sua marca é reafirmada hoje de diferentes maneiras e por diferentes pessoas. Há
relatos que misturam o desejo de fazer mudança e a concretude da vida, alianças
que buscaram casar organização local e projeto de sociedade inspirado na justiça
e na vida com dignidade.
O relato de Francisco, ex-padre, agente da CPT que esteve por e volta
hoje como convidado para reuniões específicas um outro modo de voltar
descreve o contexto dos anos 80 e o sentido do vivido daquele tempo ao tempo
atual. Conta o vivido e aprendido como “caminhada”, como metodologia de
tornar potencial a sabedoria do povo.
Em 1983 a gente chegou aqui em Poço Fundo: cabelo comprido e uma
mochila. Trazia um grande desejo de conviver com o povo. O povo tem
uma sabedoria que deve ser potencializada. Nós começamos um grupo
de trabalho de comunidade. Nesse tempo eu sentia um grande amor por
esse povo. Nós caminhamos juntos, nós comemos sal juntos. existia
um objetivo construir uma sociedade justa. Durante aquele tempo,
nós nos reunimos e decidimos fundar uma associação. [Em tempos
difíceis muitas vezes pediam para fechar a associação]. Hoje vocês são
uma das maiores organizações desse nível no mundo. Vocês colocaram
Poço Fundo como o centro do mundo do caorgânico. Saímos de um
pequeno sonho para ser o que vocês são. Hoje vocês estão fazendo seu
destino. Existe alguém ou alguma coisa que funciona como uma janela,
nós ajudamos vocês a olhar nesta janela [...]. Não deixem enfraquecer
seu espírito, nem só de pão vive o homem.
Atualmente, as CEBs deixaram de contar com a presença animadora de
padres e diáconos, mas simbolicamente ficaram no alicerce do processo de
organização, práticas e saberes dos agricultores, e o compromisso com “um
outro mundo possível”; ou transcrevendo suas próprias palavras, usadas no
folder de divulgação da Associação de Pequenos Produtores de Poço Fundo e da
Coopfam: Em um mundo em que cada vez mais os alimentos se tornam
19
artificiais ou modificados geneticamente, estas famílias levam até sua mesa o
alimento na forma como Deus o criou natural e saudável, além de ser
produzido com justiça social.
Nos anos 90, esses agricultores constituíram uma organização própria e
autônoma. Fundaram a Associação dos Pequenos Produtores de Poço Fundo (em
1991) e depois, em 2004, a Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço
Fundo e região – a Coopfam
15
. Essas organizações são espaços importantes para
a produção do saber dos agricultores e fonte de interlocução para esta pesquisa.
A organização dos agricultores em associação é uma via por onde se
consolidam a problematização da realidade vivida, a proposição de soluções e a
viabilização em ações concretas. Nesse sentido, na pesquisa realizada por Souza
(1995), resgatou-se a história dos primeiros momentos da criação e organização
da associação até o momento das discussões iniciais sobre a comercialização dos
produtos no mercado internacional. Buscou-se analisar a “prática que caracteriza
o processo de gestão participativa” da Associação de Pequenos Produtores de
Poço Fundo, no período de 1980 a 1994.
Segundo essa autora, o nascimento da associação ocorreu no contexto do
que ela denominou de “capitalização da agricultura”, sob a orientação
“produtivista e difusionista da Emater,” que atuava na viabilização do projeto de
desenvolvimento da agricultura implicada em um intenso processo de
modernização tecnológica. Tal projeto era contestado pelos movimentos sociais
no campo e pela ação da Igreja Católica por meio das CEB.
Em julho de 1994, foi realizado o Diagnóstico para o Planejamento da
Melhoria de Vida dos Pequenos Produtores de Poço Fundo, denominado como
DRP, uma iniciativa da Associação dos Pequenos Produtores de Poço Fundo,
15
Abrange os municípios de Poço Fundo, Natércia, Andradas, Campestre, Ouro Fino e Cambuí.
20
que contou com o apoio do Centro de Assessoria Sapucaí
16
e da Escola Superior
de Agricultura de Lavras (hoje Universidade Federal de Lavras), por meio do
Departamento de Administração e Economia, em uma atuação que primou pelo
diálogo: acolhendo a demanda dos agricultores, trabalhando segundo seus
objetivos; considerando-os como sujeitos do conhecimento e da possibilidade de
intervenção em sua própria realidade.
O trabalho de realização do Diagnóstico rápido participativo ( DRP) se
deu com intensa participação das comunidades de Cardoso, Barreiro dos
Francos, Moraes, Custodinho, Dourado dos Lopes, Gonçalves, Canto, Luzias,
Boa Vista, São Miguel, Barreiro, Jacutinga, Cachoeira, Pinhalzinho, Serra dos
Coutinhos, Lambari, Quebra Machado e Barro Amarelo. Contou, ainda, com o
apoio da CPT.
Margarida, esposa de Lucas
17
, foi participante ativa no processo de
construção desse diagnóstico. Ela mostrou com orgulho fotografias. Lembra-se
dos professores e estudantes que estiveram por lá. Destacamos de suas
lembranças: “O primeiro mapeamento [DRP], ficamos muito tempo, muitos
meses pedindo pouso, até definir o que queria, ficou claro o que a maioria
16
O Centro de Assessoria Sapucaí é uma Organização não Governamental. Fundada em 1985 era
sediada na cidade de Pouso Alegre. Desde sua fundação trabalhou desenvolvendo programas e
projetos nas áreas rural e urbana nos quais participaram 15 municípios da região sul mineira. O
Sapucaí, como é conhecido, teve como objetivos “melhorar a qualidade de vida dos agricultores
familiares envolvidos através de: incentivo ao desenvolvimento organizacional autônomo nas
comunidades rurais; apoio à adoção de sistemas agroecológicos de produção visando à
sustentabilidade da unidade familiar de produção; apoio à articulação necessária para a captação
de recurso para a permanência digna das famílias no campo; certificação e comercialização da
produção e crescimento e consolidação do mercado de produtos agroecológicos [orgânicos]”. A
ONG encontra-se m um momento de dificuldade pela não renovação de projetos de apoio
financeiro. Notas do Caderno de Campo.
17
Lucas. Bairro Cardoso. Tem 40 anos, casado. Duas filhas (uma de 5 e outra de 8 anos) e um
filho de 3 anos de idade. Usa terra em parceria com o pai. É produtor de café orgânico. Produz mel
(média de 500 a 1000 kg/ano) e, 4 toneladas/ano de hortaliças orgânicas para comercialização.
Não concluiu a 8 ª série do ensino fundamental. A produção de mel orgânico é compreendida de
acordo com a Normativa, 11. BRASIL. Instrução Normativa 11, de 20 de outubro de 2000.
Estabelece o regulamento técnico de identidade e qualidade do mel. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, p.16-17, out. 2000. Seção 1.
21
queria: decidiu plantar café. Lucas não tinha experiência com café, tinha 16, 17
anos [de idade]. O Tomé e dona Perpétua “mexiam com fumo”. Hoje o saber de
experiência feito sobre a produção de café é objeto deste estudo.
Na feitura do diagnóstico, algumas críticas foram resgatadas em relação
à atuação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) e da Emater,
demonstrando a oposição dos agricultores a essas instituições. Seus argumentos
eram contundentes: o sindicato era considerado “pelego” e assistencialista (fazia
apenas atendimento médico-odontológico); suas eleições eram “viciadas”.
Naquele momento registravam a disputa pelo poder sindical e a derrota nas
eleições. A partir daí, romperam laços com o sindicalismo. Quanto à Emater, o
cerne da crítica situava-se no modo de atuação, que desconsiderava necessidades
e demandas daqueles agricultores.
Além disso, o DRP gerou retorno importante sobre a atuação da
associação. Sua presença mostrava-se concentrada em alguns bairros, pouco
significativa ou ausente em outros. Havia demanda para entrada de novos
sócios. Houve quem dissesse aos parceiros na realização do Diagnóstico...
(1994, p. 42): “A associação é pequena porque não consegue envolver o povo e,
de outro lado, é grande porque vai à Europa”. Esse era um argumento forte na
construção da crítica, pois traduzia a dificuldade da associação em se expandir
no nível local, mas já anunciava sua inserção no plano internacional.
Questionando os objetivos da associação, os não-associados
reivindicavam maior compromisso com a conscientização, reuniões realizadas
nos bairros, comercialização direta e em conjunto, assistência técnica,
construção de barracões e aquisição de secadora. Ao discutirem uma estratégia
para a agregação de novos sócios, sugeriram: nucleação e participação dos
convidados em reuniões por bairros; visitas às propriedades; debates de temas,
como tecnologia de produção, agricultura orgânica, alimentação alternativa,
organização da associação, questões políticas, entre outros.
22
Com o diagnóstico, ficou a constatação de que o café promoveu a
ampliação das relações desses agricultores com o mercado. Segundo esse
documento (Diagnóstico..., 1994, p.05):
[...] mercado consumidor era pouco dinâmico; a economia por se
basear na pequena propriedade e esta reunir maior número de pessoal
ocupado nas atividades agrícolas, confere um baixo poder de consumo
à maior parte da população local. O consumo de insumos agrícolas de
origem industrial é restrito à aquisição de sementes bridas, adubos
químicos e agrotóxicos, também minimizada pela baixa renda e
pequena capacidade econômica de reposição dos meios de produção da
pequena propriedade.
Lucas ressalta essa decisão no plano da posição política e da reflexão
sobre a influência do mercado de insumos agrícolas sobre a vida dos
agricultores: “Em 1990, percebemos que havia uma relação muito grande entre
adubação química, veneno e multinacionais. Esse tripé, para o agricultor, não era
bom”.
Além dessas questões, o Diagnóstico... (1994, p. 45) indicou como
principais problemas no sistema de produção do café: a “qualidade do produto, a
pauperização e degradação do solo, a baixa qualidade das mudas e manejo pós-
colheita, incluindo o armazenamento.” A comercialização do café, realizada no
mercado local, era controlada por comerciantes proprietários das máquinas de
beneficiamento que, por sua vê, controlavam a classificação e os preços do
produto.
Muito embora tenham constatado a existência de tais problemas, isso
não significou paralisação. Ao contrário; busca de saída. “Saída tem.... Não pode
ter chegada sem saída, né?”. Nessa fala, destacada do Diagnóstico... (1994, p.
28), o Sr. Gérson, da comunidade de Pinhalzinho, demonstrou a expressiva
disposição de mudança da realidade revelada pelos agricultores a partir daquele
diagnóstico. A realidade é vista como “chegada” e “saída”, numa compreensão
23
profunda da dialética da própria vida. É o que Freire (2003) entende como “com-
texto”, “palavra-mundo” e via de realização da mudança da realidade pelos
sujeitos que problematizam e pronunciam seu mundo.
Nesse contexto, esses agricultores escolheram e assumiram o risco de
serem produtores de café orgânico e sem agrotóxico para a comercialização no
mercado internacional, isso no início dos anos 90. Realizaram esforços no
sentido do atendimento às exigências da certificação
18
do produto e a inserção
no mercado de exportação de café que se deu em 1996. Implicou o aprendizado
de atender aosprocedimentos burocráticos relativos a todo processo de venda
coletiva e estabelecer relações com técnicos do Brasil e do exterior,
credenciados para certificação, objetivando-se a exportação do produto. André
19
relata:
A maioria dos produtores orgânicos tem uma pequena área plantada.
A principal diferença é a ideologia, o ideal de estar no comércio justo.
São pessoas que querem pagar um pouco mais para que os produtores
tenham uma vida melhor, por isso a gente tem a consciência de não
usar agrotóxico. O preço hoje não tem grande vantagem, muitos estão
insatisfeitos e não têm o idealismo de estar fazendo algo diferente ou
por si mesmo ou pela natureza.
O início do terceiro milênio é marcado pela presença do café de Poço
Fundo no mercado internacional, reconhecido como um entre os melhores do
18
O processo de certificação da lavoura envolve: a decisão do agricultor e período de transição -
cumprimento das exigências das certificadoras. Segundo Azevedo et al. (2002, p55) “O tempo que
transcorre desde o início da conversão de uma área até o recebimento do selo de orgânico é
chamado de transição”. Podendo variar de um a cinco anos. No caso de Poço Fundo é exigido, no
mínimo 18 meses, quando se trata da transição de café sat para orgânico. Às normativas nacionais
são incorporadas também as normas da International Federacion of Organic Agriculture – IFOAN
19
André. Bairro Barreiro, casado. Tem uma filha de 5 anos. Tem duas lavouras de café sat (10.000
pés de café).
24
mundo, tal qual entendem Marques et al. (2008)
20
, quando fazem a seguinte
avaliação:
De toda evidência, a cafeicultura brasileira tem apresentado respostas
a expectativas e demandas por produtos associados à representação de
qualidade destacada acima [ no artigo citado]. No âmbito da pesquisa
no Sul de Minas Gerais, os projetos em torno da Coopfam, talvez a
referência mais importante na oferta mundial de café orgânico Fair
Trade vinda do Brasil (Silveira et al., 2006), foram escolhidos para a
análise em razão de sua profunda ancoragem nestas tendências em
torno das representações de qualidade.
Dois outros estudos científicos mais recentes, desenvolvidos na UFLA,
podem ser destacados. Um no campo da agronomia e outro no campo da
administração trataram de aspectos da vida desses agricultores e de sua produção
do café, especificamente no período de 2001 a 2003, considerando as lavouras
como agroecossistema
21
.
Martins (2003) teve como objetivo caracterizar três agroecossistemas de
produção de café orgânico avaliando as propriedades químicas, físicas e
microbiológicas do solo, incidência de pragas e doenças, nutrição de plantas e
produtividade. Realizou uma pesquisa de caráter experimental em que o
experimento foi realizado em três áreas de lavoura dos agricultores de Poço
Fundo.
20
MARQUES, P. E. M.; SILVEIRA, M. A.; CARON, D. Iniciativas em torno da cafeicultura
familiar no sul de Minas Gerais: desenvolvimento territorial em questão. Disponível em: <
http://www.cnpat.embrapa.br/sbsp/anais/Trab_Format_PDF/106.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2008.
21
Conceito de agroecosistema adotado por Martins (2003, p.3). “Para se entender
agroecossistema, cabe definir primeiramenrte o ecossistema. O ecossistema é um sistema
funcional de relações complementares entre organismos vivos e seu ambiente, delimitado por
fronteiras escolhidas arbitrariamente, as quais no espaço e no tempo parecem manter um equilíbrio
dinâmico, porém estável. Assim, um ecossistema tem partes físicas com suas relações particulares
– a estrutura do sistema -, que juntas participam de processos dinâmicos – a função do sistema. Os
componentes estruturais mais básicos dos ecosistemas são fatores bióticos, organismos vivos que
interagem no ambiente, como solo, luz, umidade e temperatura. Um agroecosistema é um local de
produção agrícola uma propriedade agrícola, por exemplo é compreendida como um
ecossistema”.
25
Gonçalves (2003) analisou as relações entre agroecologia, saber local
e mercado. Um aspecto pode ser considerado central nessa pesquisa a
produção de produtos orgânicos. Vista na perspectiva do eco-desenvolvimento,
da agroecologia e do desenvolvimento sustentável, esse tipo de produção
também se coloca dentro da análise do sistema de desenvolvimento capitalista,
cujo processo de acumulação apresenta limites diante das restrições impostas
pela natureza. O caso estudado em Poço Fundo mostrou uma forma de
aproveitamento dos recursos naturais diferente da utilizada no sistema de
desenvolvimento considerado como fordista-fossilista”, afirma Gonçalves
(2003).
Martins (2003), ao desenvolver sua pesquisa, considerou os agricultores
como os sujeitos do saber que viabilizou os agroecossistemas existentes.
Procurou respeitar esse saber e não interferir nas práticas locais de produção.
Essa autora afirma que:
como forma de integrar o conhecimento científico ao conhecimento
local buscou fazer a seleção e o trabalho de campo nos
agroecossistemas que foram implantados e conduzidos de acordo com o
conhecimento de cada um dos agricultores e através de troca de
experiências com o grupo, priorizando aqueles cujo manejo orgânico
vigora desde 1997.
22
Martins (2003,p.2)
Martins (2003), também situou sua pesquisa no questionamento ao
pacote tecnológico produzido pela revolução verde que introduziu práticas que
visavam ao aumento da produção e da produtividade, mas que, simultaneamente,
causaram e ainda permanecem causando danos ao meio ambiente e às condições
de vida saudável para a humanidade. No Brasil, tais práticas estão vinculadas a
políticas públicas que aumentam a desigualdade social no campo. Nesse
22
Para isto foram realizadas coletas mensais de solo e folhas, durante o período de dois anos,
considerando o período seco e o período chuvoso.
26
contexto, a autora considerou que agricultura ornica constitui-se em uma
alternativa a esse modelo, aproximando-se da posição das pesquisas acima
discutidas.
Nesse modo de olhar, a agroecologia é uma possibilidade de analisar o
desenvolvimento de forma “holística e sistêmica”, levando em conta as
dimensões de sustentabilidade: ecológica, econômica, social, cultural, política e
ética. É importante considerar, como diz Mangabeira (2003), “que os produtores
familiares são responsáveis por 70% da produção nacional de produtos
orgânicos”, citado por Martins (2003, p.6).
Essas, entre tantas outras experiências vividas por esses agricultores,
trazem um saber contido, experimentado, selecionado e apropriado. Este estudo
versa sobre o processo de produção desse saber. O tempo referido nesta tese
comporta o período a partir do qual escolheram ser “agricultores orgânicos” e
“convencionais sem agrotóxicos”
23
, forma como eles mesmos se reconhecem e
se autodenominam. Essa autodenominação é categoria de análise empírica usada
como referência ao longo deste estudo.
Esses sujeitos tratam a terra como terra viva, onde plantam,
especialmente, dois tipos de café diferenciados e conhecidos como “café
orgânico” e “café convencional sem agrotóxico”, esse também denominado
“café sat”
24
. Esses dois tipos de café conferem uma dimensão da identidade
25
dos agricultores e são produzidos por um saber também diferenciado.
É isso que justifica a focalização deste estudo a partir do produto uma
23
Os agricultores da COOPFAM usam a denominação de “convencional” de maneira diferente
dos pesquisadores que relacionam o termo à agricultura convencional ou moderna. Para eles,
agricultor convencional é aquele que produz café sem agrotóxico- sat.
24
SAT ou Sistema organomineral. Considerando Caixeta & Pedini (2002) dos quais destacamos:
“Trata-se de um manejo no qual o produtor elimina da propriedade toda e qualquer forma de
aplicação de agrotóxico, mas continua, utilizando, por um período determinado, fertilizantes
sintetizados quimicamente, proibido pelas normas orgânicas”.
25
Identidade para efeito deste estudo não é uma categoria teórica; é apenas uma referência
empírica decorrente da autodenominação. Eles dizem: “eu sou orgânico”, “ele é convencional
[sat]”, “eu sou orgânico e convencional”. Caderno de Campo.
27
outra possibilidade de olhar para essa realidade, no escopo das ciências sociais.
Estudos anteriores são ancorados na análise das categorias: terra, trabalho e
família, como se pode observar em Abramovay (1993), Carneiro (1998),
Grzybowski (1987), Lamarche (1993) e Martins (1975, 1989). Silva (1982)
tratou das implicações da modernização da agricultura no Brasil e a ausência de
alterações na estrutura fundiária do país, o que este autor denominou de
“modernização dolorosa”.
A diversidade de produtos, vista como estratégia de sobrevivência –
outra maneira usual de ver a agricultura familiar, é um aspecto discutível, no
caso de Poço Fundo, porque o café orgânico e o café sem agrotóxico, por terem
mercado garantido (esse é o ganho), estão ocupando, em muitos casos, o lugar
da “lavoura branca” designação própria dos agricultores para produtos como
milho, arroz, feijão e outros alimentos. uma interferência do mercado na
escolha dos produtos plantados. É possível que o preço do café no mercado
internacional tenha estimulado o aumento da área plantada. Por outro lado, a
queda do preço de produtos da lavoura branca também favorece a expansão das
lavouras de café. Com isso, perde-se em diversidade.
As falas de Da. Dália e de Seu Raimundo, a seguir, já anunciam essa
preocupação:
Hoje falta preço da lavoura branca e valorização do café. Hoje o
pensamento do povo é plantar café. [pondera Da. Dália]
A gente sonha em procurar alternativa, porque café vai virar
monocultura. O café mesmo, a pessoa que vende aqui, ela tem um
produto que na hora que quer vender pode vender. Tem gente que está
plantando café em terra que não é adequada [...] O café dá bem um ano
e outro não [...] A gente acredita que o café vai ficar bom, mas até
quando? [questiona Seu Raimundo].
28
Lucas analisa a situação do café no mercado internacional em relação às
alterações do preço do produto e o custo de produção. Considera a existência de
uma desvalorização do café orgânico que vem se dando desde a inserção da
associação no mercado justo. Vejamos em suas próprias palavras: “É desafio
para os produtores orgânicos aumentar a produtividade do café. São problemas
atuais: 1) preço da commodity “a diferença entre o café plantado de qualquer
jeito e o café orgânico está em torno de 40%. No início, o saco de café orgânico
chegava a valer quatro sacos de café plantado de qualquer jeito”.
A diferença segundo ele é de “R$ 400,00 para R$250,00” [no ano de
2006]. Ele conclui com muita lucidez: “A aventura inicial... era bonito, ético;
hoje precisa nos sustentar”.
O mercado exportador transforma-se em personagem, um ator que joga
com esses agricultores. Articula os cálculos da diferença entre o preço pago pelo
café certificado e os preços pagos pelos produtos da lavoura branca. Joga
também com a ausência de comércio “justo” no mercado brasileiro. Os
agricultores exportam seu café e dependem da cotação do dólar, sujeita às
oscilações do mercado cambial. Assim, esses agricultores têm suas vidas
colocadas nessa balança.
No resgate feito, o tempo expresso traz um olhar possível na
historicidade das práticas e relações vividas e analisadas até aqui. Neste
trabalho, optamos por focalizar um tempo muito recente na vida desses
agricultores, fazendo um recorte de 1994 a 2006. Mas, é um tempo atravessado
pelo passado e pelo futuro que se mesclam no tempo presente, deixando raízes,
frutos e sementes nos registros desse saber.
Os modos de plantar as lavouras, as formas de lidar com as mudanças
decorrentes do modo de saber fazer, as relações cotidianas de produção do saber
são práticas analisadas para reconhecer o café-fruto e café-produto nos quais se
misturam valor ético-cultural e valor do saber comprometido com a vida.
29
Originalmente, os frutos do saber camponês, que não foi apagado,
voltam como lições que podem ser afirmadas ou negadas. Mas o deixam de
ser fundamentos do saber produzido hoje. Essa afirmação vem de respostas à
questão: como se dão as práticas de apropriação do saber da agricultura
camponesa dentro do processo de produção do saber dos agricultores? Temos
como premissa a proposição de que o saber camponês é o saber de senso comum
fundante nesse processo.
Foi pela via do questionamento e da adoção seletiva do conhecimento
científico que o saber camponês se manteve como um modo de viver e fazer,
gerados na observação cotidiana da natureza, na recriação da tradição familiar e
comunitária e na apropriação de conhecimentos científicos em um processo
permanente de aproximação.
Esse saber produziu indagações e curiosidades singulares,
experimentações e observações próprias. Lidou com situações-limite
26
e
soluções construídas. Em sua produção, foram realizados: estudos com temáticas
geradas na necessidade cotidiana; encontros entre agricultores e com pessoas de
referência de dentro e de fora do grupo; troca de experiências. Além disso, os
agricultores valeram-se de vários instrumentos de acesso ao conhecimento
científico, tais como: livros, revistas, televisão, computadores e Internet. E,
ainda, contaram com a presença de pesquisadores e estudantes de universidades
e institutos de pesquisa, técnicos de ONGs e de certificadoras. Viagens
internacionais de intercâmbio também fazem parte dessa trajetória de construção
do saber.
O saber camponês desses agricultores aproxima-se ou afasta-se do
conhecimento científico. Este último foi introduzido com a intervenção
governamental, que buscou modernizar a agricultura no Brasil mediante a da
adoção de tecnologias de produção fundadas no conhecimento científico. Como
26
Conceito usado por Freire (1985, 1992, 2002), explicitado mais adiante.
30
o uso de tecnologia altera relações sociais, práticas agrícolas e tipos de produtos,
esses agricultores precisaram aprender a lidar com esse conhecimento científico.
Para tal, estabeleceram uma relação que mostra o modo como se apropriaram de
parte desse conhecimento.
Se existe apropriação do conhecimento científico na produção do saber
desses agricultores, perguntamos: como se deu essa apropriação? Como usam o
conhecimento científico a seu favor? Como negam o conhecimento científico
considerado inadequado? Como misturam o saber camponês e o conhecimento
científico?
Esses questionamentos vão permitir a colheita de lições que eles
aprendem e ensinam. No processo de apropriação do conhecimento, eles vão
fazendo aproximações, que podem significar: afirmação, negação, adoção,
ruptura, adaptação, criação (e re-criação), como possibilidades múltiplas no
processo de produção do saber apropriado.
Entendemos que as relações entre senso comum e conhecimento
científico são dialógicas. Não são dicotomias! Aproximação é a dinâmica
central desse processo. Contém um movimento que passa por observação e
experimentação, configurando-se no ir-e-vir, de ser e se fazer no cotidiano.
Geram o que estamos denominando de saber apropriado”. Apropriado
no sentido de terem tomado posse, de fazerem seu o saber e o conhecimento
científico. Apropriado, também, porque adequado aos interesses e modos de
viver na sociedade.
É esse processo que inspira a realização deste estudo. O próximo
capítulo traz contribuições teóricas sobre senso comum e conhecimento
científico – aproximações possíveis, rupturas necessárias para que possamos
considerar a possibilidade de superação do saber de experiência feito ingênuo,
para o saber crítico, saber esclarecido”, emancipatório. Essa é a busca
empreendida neste trabalho.
31
CAPÍTULO 3
SENSO COMUM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO: CHÃO TEÓRICO
Um percurso teórico vai ser realizado para que possamos compreender o
que é o saber apropriado pelos agricultores de Poço Fundo. Nesse percurso,
conceituar “senso comume “conhecimento científico” tornou-se uma escolha
norteadora do rumo adotado no estudo. Dialogar com alguns autores orienta a
possibilidade de conhecer a produção desses conceitos.
Freire (1981, 1985 1992) entende que o saber de senso comum é o
“saber de experiência feito” que contém a experiência e a possibilidade de sua
própria superação pela via da práxis social. Já Santos (2001, 2002 , 2003)
enfatiza que se trata de um saber de senso comum, que ao se aproximar do
conhecimento científico, torna-se um saber de senso comum “novo, prático
esclarecido ou emancipatório”. Moscovici & Hewstone (1984) tratam senso
comum como “saber de primeira mão”, que se transforma na aproximação do
conhecimento científico.
Por outro lado, Santos (2003) destaca que a ciência moderna tem na
racionalidade matemática uma de suas determinantes. Assim, segundo Santos
(2003, p.15) temos que:
Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico
aferece-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do
objecto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a
imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir O que
não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o
método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é
complicado e a mente humana não o pode compreender completamente.
Conhecer significa dividir e classificar para depois determinar as
relações sistemáticas entre o que se separou”.
32
Portanto, o “rigor nas medições” revela o objeto do conhecimento. A
mensuração como método exigido é, como afirmado acima, garantia da
cientificidade. Essa, porém, reduz a complexidade da realidade. Nesse
paradigma, o método é a vida, e a vida é racionalidade. Dividir, classificar,
definir regularidades ou relações sistemáticas entre o que se separou significa
conhecer e fazer ciência. Decorrente disso, constituíram-se as leis gerais da
ciência moderna. Ancoradas nesses princípios, tais leis “privilegiam o como
funciona” das coisas em detrimento de “qual o agente” ou qual o “fim” das
coisas.
Para Moscovivi & Hewtone (1984), ciência é elucidação, é
sistematização, serve para peneirar, refinar o senso comum, transforma pela
razão o que se acumulou pela tradição e submete ao controle da experiência o
que não foi submetido ao controle da prática e do grupo.
E que relação existe entre senso comum e ciência? Santos (2003) diz que
não relação entre ambos. Ao contrário, há ruptura, separação. Diante desse
posicionamento, analisa a oposição: saber de senso comum versus conhecimento
cientifico. Em suas próprias palavras:
“É por esta via que o conhecimento científico rompe com o
conhecimento do senso comum. É que, enquanto o senso comum, que se
traduz no conhecimento prático, a causa e a intenção convivem sem
problemas, na ciência a determinação da causa formal obtém-se com a
expulsão da intenção”(Santos, 2003, p.16)
A esse rompimento, o autor denomina de primeira ruptura
epistemológica. Esse rompimento funda a ciência. Essa procurou, na formulação
de leis gerais explicativas do mundo, sustentar como pressuposto um mundo
ordenado, uma idéia de passado que se repete no futuro. A segunda ruptura
epistemológica, proposta por esse autor, é a ruptura da ruptura, ou a
aproximação da ciência com o senso comum, “[...] a dupla ruptura procede de
33
um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência.”, como
afirma Santos (2002, p. 45).
Assim, trabalharemos no nível da segunda ruptura epistemológica, nos
termos de Santos (2002, p. 44), considerando que “o senso comum é prático e
pragmático; reproduz-se colado às trajectórias e às experiências de vida de um
dado grupo social e, nessa correspondência, afirma-se de confiança e
segurança”. Se na ciência moderna, a primeira ruptura se deu no plano da
separação do conhecimento científico do senso comum, na segunda ruptura,
ocorre ou ocorrerá a aproximação da ciência com o senso comum, ambos
transformando-se mutuamente, produzindo tecnologia e sabedoria de vida,
orientadas pela “prudência".
Enquanto Santos (2003) aborda a dupla ruptura para que ocorra a
aproximação da ciência ao senso comum, Moscovic & Hestone (1984) tratam de
aproximação. que o ponto de partida dessa aproximação é o movimento do
senso comum para a ciência, transformando-a em complemento. Moscovic &
Hewstone (1984, p. 542) perguntam: no jogo da ciência e no jogo do senso
comum, como pensam as pessoas comuns, o homem da rua? O ensino, os
livros, os jornais, os meios de comunicação social, as conversas e as trocas de
informações entre homens comuns – amadores – favorecem a formação do
homem comum, sábio amador, valendo-se dessas diversas formas de divulgação
da ciência que tornam disponível o conhecimento científico. O autor fala da
geração de uma epistemologia popular que tem como objeto de estudo particular
o senso comum, um dos focos desta tese.
Para estudar as sociedades e os seres sociais no âmbito do conhecimento
moderno, Santos (2002), Moscovici (1976) e Moscovici & Hewstone (1984)
consideram que, no século XVIII, as ciências sociais adotaram um caminho que
seguiu o mesmo paradigma dominante e o mesmo modelo de racionalidade que
orientavam a produção de conhecimento nas ciências naturais. Assim,
34
transformaram o ser humano em coisa, mensurável, obediente ao controle
rigoroso da epistemologia princípios e métodos que validavam a ciência
hegemônica ou moderna.
Santos (2003) faz uma distinção de duas vertentes: a primeira é a
aplicação dos princípios epistemológicos e metodológicos usados nas ciências
naturais desde o século XVI, vertente positivista conhecida como física social.
Nessa vertente, considera que, “por maiores que sejam as diferenças entre os
fenômenos naturais e os fenômenos sociais, é sempre possível estudar os
fenômenos sociais como se fossem os primeiros”. A segunda vertente, vigente a
partir do século XIX, foi marginal inicialmente, e legitimada ao longo do tempo.
Nesta, as ciências sociais trataram de buscar os estatutos epistemológico e
metodológico próprios, escapando à física social ou à análise do social, usando
princípios e métodos usados nas ciências da natureza. Nesta última, o argumento
fundamental é que a ação humana é radicalmente subjetiva. Assim, o
comportamento humano não pode ser descrito apenas considerando-se sua
externalidade, suas dimensões observáveis, mensuráveis e objetivas, torna-se
indispensável considerar a subjetividade das ações humanas. Dessa reflexão, se
deu a construção de uma epistemologia e de métodos qualitativos que buscam
um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo. É essa a posição
adotada nesse estudo.
Interessa-nos compreender como o homem comum se faz “sábio
amador”, considerando, neste caso, os agricultores de Poço Fundo. São esses os
sujeitos que, no cotidiano, buscam fazer aproximações do senso comum com a
ciência; por isso, passamos a apresentá-los considerando a noção de cultura e,
nela, a especificidade da cultura camponesa como dimensão fundante do
processo de produção do saber apropriado.
Construindo o conceito de cultura, Chauí (2003) discute a relação entre
cultura popular e ciência. Trata da produção do conceito de cultura no momento
35
histórico brasileiro, dos anos 60 e 70, nos quais os estudos sobre a sociedade e
os movimentos sociais no Brasil identificavam-se com a oposição clara entre
povo e classe dominante, e a afirmação de que existiam duas culturas distintas: a
cultura popular e a cultura de elite. Sendo a ciência e o conhecimento científico
associados à cultura de elite, a autora problematiza essa dicotomia e também
coloca em questão o prestígio adquirido pela ciência, vista como discurso
competente. Ainda, é possível considerar as lutas decorrentes das desigualdades
geradas pela legitimação da ciência como discurso competente que,
simultaneamente, produz a incompetência do saber popular.
Ao se fazer, fazendo o mundo, os sujeitos sociais fazem cultura. É o que
entende Freire (1977, p.54), em sua análise de processo, quando afirma: “a
cultura é enquanto está sendo. permanece porque muda. Ou, talvez,
dizendo melhor: a cultura dura no jogo contraditório da permanência e da
mudança”.
Tratamos, ao modo de Freire (2001), a cultura como um “que fazer
global”, a partir do saber de experiência feito, que se supera na ação de criação e
recriação do mundo. Para ele, o mundo é ato criado pela práxis humana. É
produto do trabalho do saber ou da cultura, no sentido original de cultivar
(plantar, fazer agri-cultura) e no sentido histórico de relação de luta e
exploração, além de ser também possibilidade de solidariedade e reciprocidade
nos diferentes modos de estar-no-mundo e fazer-o-mundo.
Freire (1985) assume que, na problematização da relação homem-mundo
ou da relação criador e criatura da cultura, os seres humanos são,
simultaneamente, determinados, determinantes e determinadores dos modos de
ser-no-mundo e estar-no-mundo. Freire (1981), de certa forma, resolve esse
dilema que encerra a idéia de circularidade, ao reconhecer o ser humano como
ser inacabado. Seu in-acabamento, sua ação-reflexão e sua práxis social podem
ser a saída ou a ruptura do ciclo vicioso da história feita pelos seres humanos,
36
não nas condições em que escolheram, mas naquelas em que re-criam a cultura
forjada nas lutas.
Trata-se de defender uma preocupação de perceber os processos a partir
de diferentes combinações de relações tecidas entre os sujeitos, designadamente
a forma como eles criam e recriam o saber vivido em experiências e práticas
cotidianas, nas respostas dadas a situações-limite
27
conceito usado por Freire
(1985, 1992, 2002), ao se referir às situações em que os sujeitos sociais
defrontam-se com obstáculos impostos pela realidade diante dos quais podem se
submeter ou subverter. Ao subverterem, superam o obstáculo. Na superação das
situações-limite, os sujeitos realizam atos-limite dentro do que o autor chama de
inédito-viável ou a possibilidade concreta de ação transformadora da realidade.
Torna-se importante compreender os laços sociais que os constituem:
nas relações familiares, nas comunidades de vizinhança, no contexto da
produção, em suas relações com o exterior, dos recursos que criam ou dos quais
se apropriam e das estratégias que utilizam, dentro do processo de participação
no desenvolvimento da agricultura brasileira, hoje intensamente moderna ou
convencional. Esse contexto, ao modo de olhar de Freire (2003), é uma
construção que pode ser desdobrada em com-texto, ou seja, é um mundo que
produz um texto, uma linguagem, um modo de ser, viver e dizer o mundo ou
mundos, porque, ainda segundo esse autor, o mundo não está pronto, está
inacabado, e é um mundo em processo de construção, construído pelos homens e
mulheres que o habitam.
O inacabamento do mundo nos permite a criação, a re-criação e o
inusitado, a permanência e a mudança. Freire (1981, p. 47) afirma: essa é a
razão pela qual não mundo humano isento desta contradição [...] o mundo
humano é porque está sendo, e está sendo na medida em que se dialetizam
a mudança e o estático”. O inacabamento do mundo, em Freire (1981,1985,
27
Ver explicitação na interpretação de Vasconcelos & Brito (2006, p.179).
37
1987,2003) orienta a análise do vivido e transformado pelos agricultores de Poço
Fundo em um processo de reflexão-ação-reflexão o que exige a compreensão
dessa incompletude do ser humano e do mundo, destacando-se a possibilidade
de mudança. Nesse contexto, o conceito de cultura é constitutivo do processo de
produção do saber que produz o mundo.
Marilena Chauí como Paulo Freire, considera a cultura como produção
inscrita em condições determinadas da e na existência humana. Além disso,
trata-a como uma noção de consistência plural, ou seja: se considerarmos a
cultura como ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados
exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e com
o poder, bem como a maneira com a qual interpretam essas relações (Chauí,
2003,p.45). Este é o olhar adotado neste trabalho.
Nos estudos de Brandão (1980, 1986, 1999) observamos que a prática da
reciprocidade que ocorre na relação do ser humano com a natureza, vitalizando
um ciclo de dar-receber-retribuir, é parte do processo de produção do saber
camponês. Nessa relação, criador e criatura, ao cultivar a terra e produzir
cultivos, o agricultor produz também cultura e sua própria reprodução como
sujeito.
Segundo Brandão (1980, 1986, 1999), cultura vincula-se à noção de
identidade social, deixando evidente que o trabalho com a natureza e a relação
dos homens entre si constituem o processo de fazer cultura e produzir a vida. O
conceito de cultura apresentado por ele é tecido com base na análise de
“conhecimentos e imaginários, de regras de relacionamentos e códigos de
transações sociais e sócio-naturais, fragmentos de estratégias tecnológicas e
sociais de reprodução cotidiana, sazonal e ancestral da matéria física da
sociedade e de um estilo de vida próprio” (Brandão, 1999, p. 12-13). Esses são
critérios sócio-culturais que criam feixes de sentidos das relações e modos de
pensar sobre si, o outro, o cotidiano, o passado, o presente e o futuro, que fazem
38
o mundo onde vivem os camponeses.
Há, na proposição de Brandão (1999), uma lógica do ambiente e uma
ética dos relacionamentos (sociais, dos seres humanos com os seres da natureza
e, até mesmo, com os seres sobrenaturais). O autor descreve a existência de uma
lógica da complementaridade, uma gramática polissêmica e uma gramática
social dos relacionamentos que envolvem os seres humanos, da natureza e
sobrenaturais. um saber que pode ser reconhecido, por exemplo, como uma
geografia da chuva, que ajuda a fazer sua previsão pelo canto dos pássaros, pelo
tipo de floração ou brotação, pelos insetos e animais que se acasalam. São sinais
lidos que indicam respostas ao calendário cultural que promove o cultivo ou o
descanso da terra.
Para Brandão (1986, 1999), o trabalho é um processo constituído de
diferentes técnicas que, na lógica camponesa, tem uma seqüência de
procedimentos fundados em conhecimentos consolidados, interpretações,
práticas concretas e simbólicas que expressam um saber da alquimia da terra, de
plantas que tiram a força da terra ou dão força à outra planta; ou que, por outro
lado, são inimigas em determinados momentos do ciclo de cultivo e parceiras se
plantadas em tempo e na forma adequada. Os animais, o sol, a chuva forte ou
fraca têm serventias distintas. Há um poder na natureza que pode ser revigorado
pela ação de um saber que também produz a própria dignidade, ética e moral dos
atores que agem com a natureza ou sobre a natureza.
Por exemplo, os fertilizantes e reflorestamentos, vindos “de fora”,
degradam não a natureza, mas também a construção de sentido, os saberes
próprios dos camponeses, os “princípios de trocas com a natureza, preceitos de
reciprocidade entre as pessoas”, nas próprias palavras de Brandão (1999, p.111).
Nessa direção, segundo Woortmann & Woortmann (1997), uma
relação entre a produção da cultura como ação recíproca do ser humano que
aprende atuando na natureza e a natureza que ensina quando observada e
39
cultivada.
Esses autores, ao tratarem a categoria “natureza e saber sobre a
natureza”, tecem vinculações entre a ação humana expressa no trabalho do
saber que se funda no trabalho das idéias. O trabalho sobre a natureza é
informado, antecipadamente, por um “trabalho das idéias, o trabalho do saber,
acumulado e em constante processo de atualização” (Woortmann & Woortmann,
1997, p. 36). Portanto, a cultura, como trabalho do saber, produz bens materiais
e simbólicos: meios materiais e meios intelectuais de produção e reprodução
social. Além disso, não se deixa estagnar, cristalizar: contém permanência e
mudança, como já foi destacado em Paulo Freire.
Ao estudar o campesinato sergipano, Woortmann & Woortmann (1997)
encontraram elementos constitutivos do saber desenvolvido pelos agricultores
que expressam o que os autores denominam de lógica e simbólica da lavoura
camponesa”. Verificaram que uma ordenação entre relações da vida e do
trabalho cosmovisão que se compõe de oposições que não são contradições,
mas complementaridades ou reciprocidades simples e complexas. Essa
cosmovisão orienta a vida, a construção dos espaços sociais e o trabalho de se
produzir e reproduzir, na relação com a natureza e a cultura.
Esses autores afirmam que o trabalho pensado antecede o trabalho
realizado ou, dito de outra maneira, a produção do conhecimento acontece
primeiro no plano da concepção das idéias e essas são concretizadas na produção
de bens materiais e/ou simbólicos. O trabalho das idéias transforma o mundo
desconhecido natural, em um ordenamento cognitivamente apreendido,
permitindo ao trabalho material transformar a natureza em espaço de cultivo ou
espaço de cultura. Esse corpo do saber, simbólico e material, produz um código
lingüístico, um complexo de representações. Seu aprendizado e transmissão são
os meios de reprodução desse grupo social. Assim, ocorre o que Woortmann &
Woortmann (1997) chamam de “trabalho do saber”, que produz a cultura e, ao
40
mesmo tempo, o trabalhador como “força plena” ou aquele que é conhecedor do
saber técnico e do saber cultural, reconhecido pelo grupo familiar e pela
comunidade.
Na descrição sobre as diferentes etapas do processo de trabalho,
Woortmann & Woortmann (1997, p.14) buscam revelar “os princípios que
informam estratégias dimicas e orientadas seletivamente na incorporação de
conhecimentos e práticas novas, como ‘respostas’ a mudanças no ambiente
natural e social”. nessa afirmação o reconhecimento da permanência e da
mudança como dinâmica de reprodução camponesa. Segundo estes
pesquisadores, a reprodução do saber pode ser ampliada, pois o corpo do saber
incorpora continuamente novos elementos. diferenças importantes entre o
“saber próprio” e o saber prático. O saber próprio pode apresentar resultados
práticos, mas estes podem ser materiais e simbólicos. As relações entre esses
saberes se aproximam de “um modelo cognitivo ‘holístico’, um modelo de
ordenação do mundo”, no dizer de Woortmann & Woortmann (1997, p. 13).
Ainda segundo esses pesquisadores, uma diferença importante entre
agricultura camponesa e agricultura capitalista, moderna. Esta última pretende
“corrigir” a natureza que está errada: “corrige o solo”; faz adaptação das plantas
e animais ao solo, ao clima; não respeita as combinações de plantas e os ciclos
naturais, tendendo a colocar as demandas do mercado acima dos limites da
natureza. Para os camponeses, a natureza ensina e está correta, o trabalho do ser
humano sobre a natureza é, para eles, aprender com a natureza, sobre sua
diversidade, seus diferentes tempos e ciclos, sobre o tipo de terra e as plantas
que dali nascem, animais que ali crescem, suas combinações, oposições e
complementaridades.
Agregamos a essa elaboração teórica um outro importante debate que
aqueceu as discussões na academia dos clássicos estrangeiros aos brasileiros dos
anos sessenta e setenta. Esse debate ancora-se na polêmica sobre a possibilidade
41
de permanência ou desaparecimento dos camponeses no processo de
modernização da agricultura, fundada na racionalidade científica. Nesse debate,
Martins (1975), ao estabelecer relações entre o processo de industrialização e a
questão agrária no Brasil coloca essa discussão no plano macro, afirmando que
são processos articulados dentro de um mesmo processo de desenvolvimento
brasileiro.
Posteriormente, Martins (1986) analisa a produção da sociologia rural
que atravessa a explicação do rural como dicotomia rural versus urbano, a partir
da ambigüidade à dualidade na reflexão sociológica. Oliveira (1972) faz uma
crítica da razão dualista. Garcia Júnior (1989) aprofunda a discussão sobre as
estratégias de resistência dos camponeses para permanecer no cenário de
desenvolvimento da agricultura brasileira.
Por lado, Silva, (1981), Kautysk (1972) e Schultz (1965), por exemplo,
afirmam a eficiência e a racionalidade dos grandes empreendimentos agrícolas
que tendem a produzir a exclusão dos pequenos. Chayanov (1974) é outro autor
destacado nessa discussão e que, em contrapartida, defende a eficiência do
pequeno estabelecimento agrícola que se sustenta no balanço” entre a
composição da família, a capacidade de trabalho familiar, o consumo familiar e
a produção.
Nesse sentido, segue uma breve apresentação desse debate, focalizando a
importância dos camponeses nesses estudos. Existem camponeses e agricultores
diversos espalhados no Brasil e no mundo, assim como diferentes abordagens
teóricas que buscam compreendê-los. Pelo viés do tamanho do estabelecimento,
da quantidade de produção ou de suas práticas de gestão, são, por vezes,
considerados como sujeitos de práticas vistas como irracionais ou opostas à
racionalidade do desenvolvimento tecnológico, o que os conduziria ao
desaparecimento no cenário agrícola. Entretanto, não se extinguiram como se
previa em vários estudos, nem sucumbiram ante a im (provável) soberania dos
42
grandes estabelecimentos agrícolas.
As práticas desses agricultores não podem ser vistas como atraso versus
modernização da agricultura produzida com bases no conhecimento científico.
Nessa posição, Martins (1986) chama a atenção dos estudiosos sobre a onda de
dualismo vigente nos anos sessenta e de anti-dualismos posteriores na produção
acadêmica da sociologia rural. na introdução desta obra o autor afirma que
“Em verdade, a crítica à razão dualista vem de longe, num ritmo constante, e foi
desde sempre vinculada à necessidade de produzir uma explicação totalizadora e
histórica para os descompassos entre a cidade e o campo, na cidade e no campo”
(Martins, 1986, p.11).
Martins (1993) destaca a importância deste sujeito como tema de
estudos da sociologia e a necessidade de reconhecê-lo não como atraso, mas
como sujeito de lutas políticas importantes no desenvolvimento do capitalismo
brasileiro. Martins (1993, p.28) afirma que:
Já não é mais o camponês folclórico, o camponês das festividades
populares, o camponês que simboliza a prática do atraso. Agora é o
camponês que ocupa terras desocupadas, que questiona a todos, que
luta, que desafia o Conselho de Segurança Nacional, que nos questiona
a todos, que invade a rígida demarcação positivista da antropologia e a
sociologia. Portanto, estamos diante de sujeitos históricos que nos
obrigam a repensar esquemas.
A par disso, podemos dizer que o desaparecimento aqui, a permanência
ali e o ressurgimento do camponês, adiante, são processos combinados,
imbricados na própria lógica do capital.
Oliveira (1997) crítica a razão dualista que contrapõe de um lado a
agricultura camponesa e a agricultura familiar representadas pelos pequenos
estabelecimentos agrícolas e de outro lado, a agricultura empresarial dos
grandes estabelecimentos agrícolas. A primeira representaria o atraso, a segunda,
43
a modernização. Trata-se, como afirma o autor, de duas faces do mesmo
processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. Assim, atraso e
modernização são dicotomias opostas de forma enganosa. não são categorias
de análise que dão conta da diversidade das faces dos atores sociais que se
apresentam no cenário de desenvolvimento agrícola brasileiro. Os estudos sobre
os agricultores brasileiros destacam grande diversidade de relações sociais e
culturais, em convivência ou conflito, não sendo possível definir uma única
categoria conceitual para compreendê-los.
Nos estudos realizados por Garcia Junior (1989, o autor discute a saída
do camponês nordestino para o sul (do Brasil) e seu retorno do sul para o roçado,
sua origem. O sul é o caminho que possibilita a saída da condição de a-
sujeitamento (a negação do sujeito) dos que não têm terra aos donos da terra.
O trabalho no “sul” viabilizava o acesso à terra, assim os sujeito, retornando do
sul para o nordeste – ao se tornarem donos de um pedaço de terra tornavam-se
sujeitos libertos. Também destaca a cultura na constituição da identidade social
dos camponeses nordestinos. Em sua análise sobre os componentes econômicos
e políticos da cultura camponesa, usa o conceito da autodenominação
28
sujeitos e
libertos como categoria de análise empírica para reconhecimento dos
agricultores por ele estudados. Da mesma forma, utilizaremos a categoria
autodenominação para nos referir aos sujeitos deste estudo.
Garcia Junior (1989),Woortmann & Woortmann (1997) verificaram,
ainda, que as mudanças históricas de acesso à terra implicaram mudanças
culturais de relação com a natureza e com a terra dos homens e não mais terra de
28
Ramos (1993) encontrou a autodenominação de “moradores” junto aos agregados da Fazenda
Barreiro no município de Iturama/MG em seu estudo da luta por desapropriação desta fazenda.
Ali, também, os “moradores” eram sujeitos, a-sujeitados, submetidos ao mando do proprietário da
terra até o momento de sua identificação com seus pares. Inicialmente como “posseiros” na luta
por usucapião e, posteriormente, como “sem-terra”, na luta por desapropriação do latifúndio junto
aos sem-terra da região do Triângulo Mineiro, quando conquistaram a desapropriação de 2693
hectares de terra da Fazenda Barreiro. Como novos proprietários daquelas terras, tornaram-se
libertos.
44
Deus dádiva para os homens. Os cercamentos das terras deixam, hoje, apenas
na memória, o ideal de “terras soltas” e “homens libertos”. Além disso, tais
cercamentos mudaram as formas tradicionais baseadas no ley system, ou no
plantio que usava pousio (descanso de parte da terra por 20 a 30 anos), plantio
em outra área e replantio na área que esteve em pousio.
A cultura camponesa permanece e muda ao longo das trajetórias
percorridas pelos agricultores no Brasil. A permanência e a mudança forjam-se
nas lutas de resistência dos agricultores no cenário brasileiro. Assim, novos
atores estão presentes nesse cenário, entre os quais o agricultor familiar, desde a
década 1980, com as conquistas dos movimentos sociais do campo.
Os autores estudados deixam-nos vislumbrar um fio condutor na
interpretação da cultura camponesa, na qual uma ética dos relacionamentos
entre o mundo humano, o mundo natural, a terra, a lua, o sol, a chuva, as plantas,
os animais, os seres naturais e sobrenaturais, e na qual nada está desvinculado.
Os vínculos, sentidos e hierarquia são respeitados, em todos os planos da
existência: as trocas, a complementaridade, a reciprocidade, as mesclas e os
conflitos parecem explicar os saberes costumeiros que resistem e ancoram o
saber que produz os homens e as mulheres, o trabalho ou o conhecimento que
informam a técnica de transformar a natureza em cultura, tornando-a
socialmente útil e compartilhada.
Santos (2001, 2002, 2003) ajuda a formular a questão teórica central
deste trabalho, que é a relação existente entre o saber de senso comum e o
conhecimento científico. Considerando que Santos (2002, 2003) trata de grandes
revoluções paradigmáticas, este estudo se coloca no “chão da terra”, quando
busca apresentar um caso singular que faz o orgulho dos sujeitos sociais
envolvidos e desperta o interesse pela temática.
Moscovici & Hewstone (1984), a partir da discussão da science au sensu
commum, compreendem o processo de apropriação da ciência pelos sujeitos
45
possuidores do saber de senso comum. A par desse entendimento, não
pretendemos transformar o saber de experiência feito ou o saber apropriado em
uma análise que desemboque na construção de representações sociais, como
fariam aqueles autores. Estamos restringindo-nos às suas análises a respeito da
busca da compreensão do movimento de aproximação do senso comum com a
ciência, no que esses dois autores diferenciam-se de Santos (2002, 2003), ao
tratar da segunda ruptura epistemológica, como já referida neste texto.
Destacando da produção escrita por Freire (1981, 1985, 1992, 2002,
2003) arriscamos considerar que ele, como educador, entenderia o processo de
produção e superação do saber do senso comum como práxis que transforma um
“saber de experiência feito” em sua própria superação. Ou, em suas palavras
(Freire, 1992, p.59):
Possivelmente foi a convivência sempre respeitosa que tive com o
“senso comum”, desde os idos de minha experiência no Nordeste
brasileiro, a que se junta a certeza que em mim nunca fraquejou de que
sua superação passa por ele, quem me fez jamais desdenhá-lo ou
simplesmente minimizá-lo. Se não é possível defender uma prática
educativa que se contente em girar em torno do “senso comum”,
também não é possível aceitar a prática educativa que, zerando o
“saber de experiência feito”, parta do conhecimento sistemático do (da)
educador (a).
A temática até aqui tratada será retomada, mais adiante, quando
abordarmos especificamente do processo de produção do saber apropriado pelos
agricultores de Poço Fundo. A experiência vivida por aqueles agricultores pode
ser vista como um processo que indica a dinâmica de aproximação do senso
comum à ciência ou vice-versa. Tal aproximação contém práticas de adoção e
ruptura oposições complementares ou similaridades que se opõem e
similaridades que se aproximam, produzindo um saber apropriado às suas vidas.
E às nossas vidas também!
46
Para realizar o trabalho proposto nesta tese, um percurso metodológico
foi necessário. Tal percurso se deu com o que consideramos como passos e
descompassos que fazem parte das caminhadas no terreno da pesquisa. Esses
passos são: conhecer e escolher leituras, consolidar e ganhar novos conceitos,
aprender e criar vinculações, reconhecer equívocos, recomeçar. Lidar com a
orientação na interlocução estabelecida com professores orientadores.
Compartilhar a vida e o trabalho na convivência escolhida entre os sujeitos
envolvidos na pesquisa e, consolidando tudo isso, trabalhar a produção do texto
escrito. A seguir, faremos a apresentação da metodologia adotada na pesquisa.
47
CAPÍTULO 4
CAMINHADAS NO TERRENO DA PESQUISA: PASSOS E
DESCOMPASSOS
A pesquisa se deu no entrecruzamento de diferentes terrenos. Não
podemos nos referir a ela apenas como o trabalho de campo; assim,
descreveremos a seguir os diversos terrenos percorridos nas andanças da
pesquisa: o terreno da trajetória pessoal ou a história de vida que gestou a
questão de pesquisa; o terreno das leituras; o terreno da interlocução com os
orientadores; o terreno da expansão dos horizontes o doutorado sanduíche; o
terreno da convivência com os sujeitos da pesquisa.
Este estudo se pauta pela opção de uma abordagem qualitativa, de cunho
etnográfico, tomando de empréstimo referenciais da antropologia de Geertz
(2001), da pesquisa em educação de Lüdke &André (1986),Fazenda (1989) e da
sociologia em vários autores, dentre eles, Maroy (1997), em coletânea de artigos
traduzidos do francês Pratiques et méthodes de recherche en sciences sociales,
publicada em Portugal, onde encontramos uma análise refinada sobre a relação
entre teoria, práticas e métodos de investigação social.
A pesquisa qualitativa busca uma compreensão do social, considerando a
complexa relação existente entre quem pesquisa e quem é envolvido na
pesquisa, os dois – sujeitos sociais – estão em interação dentro do mesmo
contexto. Ou tratando-se de uma experiência de etnografia, afirma Fazenda
(1989, p.38): “O que caracteriza mais profundamente a pesquisa de tipo
etnográfico é, primeiramente, um contato direto e prolongado do pesquisador
com a situação, as pessoas ou grupos selecionados”. Citando Spradley (1979),
Lüdke & André (1986, p. 13-14), dão mais precisão ao conceito e, assim,
podemos dizer que “[...] etnografia tem um sentido próprio: é a descrição de um
48
sistema de significados culturais de um determinado grupo”. Para a realização
dessa descrição, dois instrumentos de coleta de dados foram fundamentais: a
observação e a entrevista.
A observação e os registros do observado na situação estudada
constituem a possibilidade de descrição densa das configurações do contexto
físico e social em que se inscreve esta pesquisa. Guias e alertas sobre a
observação e o papel do observador são dados por Lüdke & André (1986).
A entrevista como método de coleta de dados também tem a
contribuição das autoras referidas acima e se enriquece com o que Ruquoy
(1997), recupera do contexto em que surgiram os fundamentos da entrevista
como técnica em pesquisa qualitativa. Segundo ela, a entrevista foi usada,
inicialmente, nas investigações das ciências exatas; foi importada” daquelas
para as ciências sociais e transformada em decorrência de diferentes correntes
teóricas (Ruquoy, 1997, p. 91), tais como: a) corrente da biografia oral na qual a
compreensão do social deve passar por uma “abordagem compreensiva”, uma
maneira de se “decifrar o sentido que o ser humano atribui à sua ação”; b) a
corrente da escola de Frankfurt que, pela via interdisciplinar, “busca detectar nos
discursos não apenas opiniões, mas, sobretudo traços de personalidade de que os
detentores não estão necessariamente conscientes”. Estas, dentre outras,
informam o propósito deste trabalho de campo no qual se busca ir ao encontro
do informante em seu próprio ambiente.
A experiência desta pesquisa de campo, para efeito deste estudo, é
denominada de terreno de convivência com os sujeitos da pesquisa, contribuiu
para que os dados coletados apresentassem cuidadosamente a situação vivida
as práticas, os diálogos, as reuniões, as formas de atuação dos agricultores em
diferentes situações de vida e trabalho, as lavouras, as relações familiares, as
relações com suas organizações, com parceiros ou não, enfim, o modo de ser,
fazer e perceber o mundo no qual atuamos como observadora e fomos
49
observada. Assim, recolhemos dados talhados pelo exercício da observação
participante ou não-participante e da entrevista semi-estruturada, guiada por um
roteiro. A análise dos dados buscou “seguir um processo indutivo”, como
recomenda Lüdke & André (1986, p. 13), Maroy (1997, p.117). Na análise dos
dados, que não são doação da realidade, mas são dados construídos, alguns se
perderam nos descompassos da caminhada. Os que ficaram dão corpo ao
processo de produção da tese.
Neste modo de fazer pesquisa não houve mediação ou transferência de
trabalho para outro pesquisador, a presença foi intransferível. O fio condutor do
olhar, da fala e da observação era o processo do modo de ser e de plantar as
lavouras da vida, lavouras do saber. Podemos ter pecado por exagerar na
tentativa de capturar a realidade naquilo o que diz ou faz o informante, mas eles
e elas foram o centro de nossa atenção. Para evitar distorções, buscamos tratar
suas falas e os registros das observações lendo inúmeras vezes o material
coletado, aproximando revelações, conferindo repetições significativas,
descobrindo afirmações únicas, também cheias de significado.
A metodologia de pesquisa foi vivida como atos duplos: caminhar e
olhar, ler e ver, perguntar e escutar, falar e silenciar, observar e registrar, ir e
voltar em passos e descompassos.
Vários são os terrenos por onde caminhamos seguindo a trilha da
indagação “como se dá o processo de produção do saber dos agricultores de
Poço Fundo?” Ao buscar respostas à indagação da pesquisa, consideramos ser
importante reconhecer a experiência pessoal como um terreno de onde nascem
as indagações e motivam a busca de respostas.
A experiência pessoal que origina esta pesquisa se deu na Fazenda
Barreiro, no município de Iturama, região do Triângulo Mineiro: ali os
trabalhadores lutaram e conquistaram seu pedaço de terra e, ainda hoje,
mobilizam os trabalhadores sem-terra para avançar da terra conquistada para a
50
Reforma Agrária desejada. Podemos considerar que ali ocorreu um processo de
construção coletiva do saber. Os trabalhadores assentados na Fazenda Barreiro e
em muitas das terras desapropriadas são agricultores, sujeitos históricos da luta
por conquistas de direitos e para o fortalecimento de outras lutas por
democratização do Estado Brasileiro.
Outra experiência destacada da trajetória pessoal foi vivida junto aos
agricultores do Vale do Jequitinhonha que apresentam experiências culturais e
produtivas típicas de resgate e/ou preservação de práticas antigas, como modo de
vida e, hoje, como prática concreta de preservação ambiental no projeto de
agrossilvicultura, desenvolvido pelo Centro de Agricultura Vicente Nica – CAV,
que atua no município de Turmalina-MG e região.
Os agricultores de Turmalina vêm recuperando “terras de pelador”
como chamam as terras nuas, quase improdutivas, resultantes do excessivo uso
sem descanso ou pousio; prática antiga e originária de sua tradição, quando as
terras eram “soltas” o rodízio da plantação podia esperar até 20 anos para
voltarem a plantar na mesma terra. Hoje, impossibilitados de exercerem tal
prática, devido à divisão da terra para herança dos filhos e, também, devido ao
cercamento das terras por empresas reflorestadoras que plantaram eucalipto para
produção de celulose, fizeram com que o plantio sem o tempo necessário do
repouso da terra (pousio) produza os conhecidos pelador”. A prática da
agrosilvicultura agricultura envolvida por floresta também uma prática
tradicional, hoje associada ao conhecimento científico, do qual são portadores os
técnicos agrícolas do CAV, os professores parceiros do CAV na Universidade
Federal de Lavras, que no trabalho de extensão, apóiam o projeto e levam
estudantes dos diferentes cursos Agronomia, Engenharia Agrícola, Engenharia
Florestal, Administração, dentre outros –, que vão a campo para aprenderem a
aprender com os agricultores.
Assim, o vivido com esses agricultores foi a oportunidade de ser
51
aprendiz do ofício de ser educadora-educanda, sempre aprendendo com eles,
compreendo-os como educadores-educandos, portadores de um saber e que,
numa relação dialética e dialógica que se estabelecia entre nós, demonstravam,
permanentemente, práticas e saberes que iluminaram essa trajetória pessoal.
Hoje, revisando essa trajetória, contribuem para elaboração de questões
norteadoras desta pesquisa. Sendo esta a experiência que nos coloca no campo,
junto com agricultores, explicamos por que não fomos estudar a educação que se
realiza em sala de aula. Nossa sala de aula é sala sem muros; possui cercas.
Cercas que, quando aprisionam a terra, podem nos aprisionar. Cercas que,
quando abrigam a vida, podem permitir colheitas divididas e saberes
compartilhados.
Essa trajetória levou-nos ao doutorado e a um segundo terreno – o
terreno das leituras. Um terreno de andanças pela administração, sociologia e
educação que constituem a mirada, o horizonte visado. Enquanto os passos
trilhados pelo domínio da administração configuraram-se como passos em um
novo terreno, um chão até então desconhecido, os passos trilhados pelo campo
da sociologia e da educação mostraram-se como um reconhecimento de rumos já
percorridos e abertura de caminhos novos.
Um terceiro terreno situa-se no processo de interlocução construído,
inicialmente, com professores orientadores um no Brasil e outro em Portugal.
O primeiro acolheu o desafio de orientar uma colega. Uma mulher teimosa,
movida por argumentos que, muitas vezes, impediram nossa aproximação. Mas,
aprende-se a lidar com o poder da diferença; a reconhecer limites e construir
possibilidades. Este trabalho foi construído nessas bases.
A interlocução com o co-orientador português ensinou e ensina um
modo de construir conhecimento por via de mão-dupla e de uma relação
dialógica, que proporcionou aprofundar questões, leituras e olhares sobre os
terrenos nos quais estávamos caminhando. Os processos eram os fundamentos; a
52
problematização, o enunciado de sua orientação; o jogo, as interações e busca de
sentido, o sentido de nossas buscas. A confusão, a escrita fragmentada, podia ser
apresentada desavergonhada, confiante porque não eram vistas como produto,
mas como processo. O ser por trás da escrita estava presente, buscando sentido
não para os achados e perdas vividos nos terrenos percorridos, mas também
para os achados e perdas da vida pessoal. Apresentamos a seguir um recorte de
sua correspondência,no qual podemos reconhecer sua posição, que, ao modo de
Paulo Freire é educador e educando, ensina e aprende, simultaneamente.
Emoção e vida incluem-se no processo de produção do trabalho acadêmico. Isso
pode ser conhecido no trecho de uma de suas correspondências para orientação
deste trabalho:
Estava algo inquieto, sem notícias suas e do seu processo de produção.
Por aqui, estamos em pleno Verão. Tempo de plenitude, de horizontes
quietos, serenos. As nossas inquietudes existenciais ou prosaicas de
ser(es) não podem beliscar a nossa paz interior e são pouca coisa face a
esta Harmonia. Bem sei que é Inverno. Mas, vendo bem, é apenas a
Harmonia que muda de cor. E mesmo se, por causa da natureza
imperfeita do meu corpo, me acontece preferir alguma das estações,
gosto de pensar que, em breve, as minhas preferidas vão chegar.
Não sei quando voltarei a Minas. Talvez a Montes Claros em 2008 se
um projecto que apresentámos na Capes/FCT-Grices for aceite. Estarei
no Rio no final do mês para um seminário rápido e em Brasília em
Outubro para um encontro de dois dias num ministério e depois um
projecto de actividade em Curitiba, em Novembro, mas um pouco
hipotecado por causa do financiamento.
Acredito que não seja muito fácil partilhar um momento de escrita-
descoberta. Mas seria bom que pudéssemos ir conversando durante esse
processo. Não acompanhei o andamento do seu projecto depois da fase
final de recolha.[coleta de dados] Mas gostava de saber como evoluiu a
“história” que está a construir. Não precisa contá-la como o fará na
sua tese. Pode contá-la para um amigo que vive num outro universo e a
quem gostaria de transmitir uma idéia do sentido do teatro jogo de
53
sombras em que as sombras são elas mesmas actores a que está a
assistir, plantando o contexto da cena, apresentando os actores,
inventariando os recursos em torno dos quais os actores se mobilizam,
descrevendo as acções (sem esquecer que elas podem estar
armadilhadas e aproximar ou desviar deliberadamente alguns actores
do acesso aos recursos), assinalando as alianças (e os interesses que as
motivam), crispando os momentos de tensão (os que perturbam a
serenidade das múltiplas situações que estão a ser jogadas e que
alimentam os “dramas” que podem ser percebidos a partir de cada uma
dessas situações) com a intenção de meter medo. Tentando descobrir a
“verdade” que motiva e mobiliza cada um dos actores, as razões por
que eles aceitam de jogar nessas cenas (e cada um terá as suas, nas
quais acredita ou faz por acreditar, por interesse ou por estratégia…),
os princípios ou as entidades que os mandam, em nome dos quais eles
aceitam de jogar… Claro que esta história torna-se ainda mais
extraordinária, pelo facto da sua narradora/produtora (viu que estou a
aprender coisas?...) fazer ela mesma parte da cena: quando conta, ela
também é número; quando descobre ela se descobre; quando denuncia
ela se sente apontada; em momentos de dúvida, ela tem medo; perante o
desconhecido ela se angustia; quando tenta encontrar razões, ela
procura as suas…
Isto dará, talvez, uma longa carta… mas se for preciso e porque os
serões de Inverno são longos, escreva duas. Estou ansioso por lê-la.
De modo geral, a interlocução com os orientadores transitou no campo
das aproximações sucessivas com o tema, o problema, a fundamentação teórica,
as definições metodológicas e a produção do trabalho escrito. Tudo isso exigiu
idas e vindas; caminhos longos e atalhos, pontes e travessias; ponto de partida e
ponto de chegada. Esse foi um terreno em que a caminhada se deu com muitos
descompassos no difícil equilíbrio entre expectativa e resposta.
Uma aliança Brasil-Portugal permitiu o acesso ao quarto terreno o
terreno da ampliação dos horizontes. O Brasil é terra de nascença e
pertencimento, onde a história da pesquisadora mistura-se com a dos
agricultores; é o terreno matriz a terra-mãe onde plantamos as sementes e
colhemos os frutos de lavouras da vida.
54
A terra lusitana e sua capital, Lisboa, conhecida como cidade “branca”,
onde se situa a Universidade Nova de Lisboa, a Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, na qual vivemos a experiência de compartilhar indagações, leituras e
achados com o professor co-orientador desta tese, durante cinco meses, é o
terreno da expansão de horizontes.
Inicialmente, pretendíamos investigar sobre mudanças e permanência do
tradicional e do moderno nas práticas culturais e de produção do saber de
experiência feito. A aliança Brasil-Portugal permitiria a realização de um estudo
comparativo.
Estivemos em Barcelos, região do Minho, onde visitamos agricultores
plantadores de milho
29
. Ali, encontrei velhos agricultores que plantavam milho
“só por gosto”, gostavam da broa tradicional portuguesa. Seus filhos não se
encontravam lá, estavam em outros países da Europa trabalhando nas mais
diversas ocupações, prioritariamente na construção civil. Voltavam, por ocasião
das férias, uma vez por ano, ou para construir casas, a de seus pais e suas
próprias. Mas, não mais prometiam voltar para Portugal como agricultores. A
integração de Portugal à União Européia produziu reestruturação produtiva e
mudanças no cotidiano da vida desses agricultores e dos portugueses em geral.
O milho e esses velhos agricultores estavam sendo excluídos daquele terreno.
Seus filhos não representavam sua reprodução social como agricultores.
Não podendo avançar nesse propósito, mesmo mudamos o tema e o
rumo da caminhada no terreno da pesquisa: não mais seria pesquisa comparativa
entre agricultores no Brasil e em Portugal. Buscamos ajustar a indagação inicial
ao campo restrito de agricultores no Brasil. Assim, chegamos aos agricultores de
29
Primeira pesquisa exploratória realizada em 2005. Estive em Portugal para realização de
doutorado sanduíche, no período de outubro de 2005 a março de 2006 segundo o acordo
interinstitucional assinado entre a Universidade Federal de Lavras/DAE e a Universidade Nova de
Lisboa/FCSH/CEOS. Nesta oportunidade, realizamos estudos de sociologia e metodologia de
pesquisa, sob a orientação do prof. Dr.Casimiro Balsa.
55
Poço Fundo, como aqueles que lograram êxito em sua vida particular e sua
inserção coletiva como produtores de caintegrados ao mercado internacional.
É esse o terreno da convivência com os sujeitos da pesquisa.
Poço Fundo, Minas Gerais, lugar onde vivem os agricultores escolhidos
como sujeitos do processo de produção do saber ora estudado, suas casas, suas
lavouras de café, seus ambientes de organização constituem o terreno da
convivência com as famílias dos agricultores, compartilhando a vida,
conhecendo o trabalho do saber fazer lavouras de café e os modos de se
organizar, aprender e ensinar em grupos, associação e cooperativa, a
possibilidade consentida de imersão no trabalho de campo.
Assim, o vivido por esses agricultores foi analisado por um estudo de
abordagem qualitativa. A coleta de dados e interpretação é ancorada no
contexto. A seguir, deteremo-nos na descrição do caso estudado, trazendo
especificidades do terreno da convivência com os sujeitos da pesquisa.
4.1 O relato do vivido
Antes de ir, era preciso fazer a mala com os instrumentos para o trabalho
de campo. Na primeira visita ia, a questão-problema e o pedido, a solicitação
para a realização da pesquisa. Na segunda visita realizamos uma pesquisa
exploratória. Ainda, segundo Lüdke & André (1986, p. 22), essa fase é “o
momento de especificar as questões ou pontos críticos, de estabelecer contatos
iniciais para a entrada em campo, de localizar informantes e as fontes de dados
necessários”.
Nas visitas subseqüentes, a convivência possibilitou observação
(participante e não participante) e a realização de entrevistas. Os roteiros de
observação e de entrevistas foram os instrumentos de coleta de dados utilizados
(Anexo A).
Definição de cuidados, atenção nos registros, sem perder de vista a
56
situação e a pessoa envolvida, discrição e transparência na explicitação dos
objetivos da presença, confiança como presente recebido no cotidiano da
convivência com os sujeitos envolvidos na pesquisa tudo isso foi intenção e
prática aprendidas.
As anotações foram no dia-a-dia, engrossando o caderno de campo
lugar do registro de todas as observações, as conversas, as reuniões, dúvidas
sobre linguagem, contexto, histórias, experiência, informações, questões,
recomendações, reflexões pessoais de ordem analítica ou empírica, propostas de
redefinições e buscas complementares de dados e leitura. Depois da coleta
desses dados, o caderno de campo foi digitalizado e configura-se em um
trabalho de 150 páginas que complementa esta tese.
A realização da investigação ocorreu mediante a negociação da proposta
de pesquisa e a clareza dos agricultores que questionam a presença de
pesquisadores que entram e saem do terreno de suas vidas e “pouca”
contribuição deixam para o processo vivido por eles. Entre nós, ocorreu um
estranhamento, necessário aos objetivos da pesquisa, se olhado pelo lado da
objetividade exigida por manuais de metodologia de pesquisa. Objetividade que
pode ser vista na dupla face em que coexiste com a subjetividade.
Estranhamento difícil, visto que a experiência pessoal constituiu-se de uma
relação de confiança e cumplicidade com os trabalhadores sem-terra e
temporários, com agricultores familiares, com quem, por aproximadamente 15
anos, a pesquisadora teve sua vida empenhada. Não aqui no sul de Minas, mas
no Triângulo Mineiro e em outras regiões do país (como descrito no terreno
da trajetória pessoal). Mesmo que respaldada por essas experiências, o fato de
ter chegado ali apenas para fazer uma pesquisa não definida por eles ou com
eles, causou o estranhamento, um descompasso inicial decorrente do
afastamento, da distância entre nós. Esse é um estranhamento típico da relação
entre pesquisador e sujeitos sociais envolvidos quando a confiança ainda não se
57
estabeleceu. Outro é o “estranhamento científico” recomendado pela pesquisa
em ciências, sociais no qual adentramento na realidade e afastamento
(estranhamento) possibilitam a interpretação da realidade. Geertz (2001, p. 44)
vai dizer sobre a “natureza do distanciamento científico”, o seguinte:
o distanciamento não é um dom natural nem talento fabricado, mas
uma conquista parcial laboriosamente alcançada e precariamente
mantida. O pouco desprendimento que se consegue atingir não vem da
inexistência de emoções, de seu desconhecimento nos outros, tampouco
do ensimesmamento no vácuo moral”.
Inicialmente, houve uma certa resistência dos agricultores e antevemos
dificuldades para a realização da pesquisa. A saída do “vácuo moral” levou
algum tempo e, ainda considerando Geertz (2001, p.45), destacamos que “tudo o
que dizemos, tudo o que fazemos e até o simples cenário físico têm ao mesmo
tempo que formar a substância de nossa vida pessoal e servir de grão para nosso
moinho analítico”. Acrescentaríamos ainda que tudo que o dizemos e não
fazemos, quando temos clareza de nossa omissão, também deve “servir de grão
para nosso moinho analítico”. Disso ficaram as perguntas: para que e para quem
serve esse tipo de pesquisa? Trata-se de um caminho de dupla-mão? Nesse caso,
a omissão de pesquisadores quanto à não-devolução, ou tradução dos resultados
das pesquisas para os agricultores, é o não-dito por aqueles que nos
antecederam. Pode ser uma resposta sobre a unilateralidade da posição de
pesquisadores. Hoje os agricultores exigem, e há um compromisso explícito com
o retorno e o debate deste trabalho em uma de suas reuniões ampliadas. Seria
suficiente? Uma resposta que não podemos antecipar.
Longe e perto são significados construídos e se dão em espaços de poder
e relações diversas. O caminho da aceitação da pesquisa passou do poder do
presidente e gerente da cooperativa, ao presidente da associação, à reunião
mensal dos representantes dos grupos de bairro até chegar às famílias que
58
hospedaram a pesquisadora em suas casas. A reunião mensal, ou “reunião do
primeiro domingo do mês”, foi o locus do poder que definiu a aceitação da
pesquisa e da pesquisadora. Ali, o agricultor apresentava-se com disponibilidade
ou não para hospedar a pesquisadora em sua casa, por um período de 3 a 4 dias.
Essas casas foram o ponto de referência nas quais, do amanhecer ao
anoitecer, a vida apresentava-se simples e aberta à observação e a longas
conversas. De novo, distanciamento e aproximação eram relativizados. O
marido, a esposa, as crianças à volta da mesa ou caminhando na lavoura
apresentavam-se mostrando o trabalho e o modo de viver de sua família. Nessas,
a acolhida se abria na convivência com o cotidiano da vida da família, na
observação do trabalho na lavoura e do trabalho no terreiro de secagem de café,
nas relações com os vizinhos, os grupos locais de bairro, as idas e vindas de casa
em casa, registrando o observado, as conversas e, posteriormente, realizando as
entrevistas
30
.
Estivemos nos bairros Cardoso, Barreiro, Barro Amarelo, Dourado dos
Lopes, Bocaina e Cachoeirinha. Entrevistamos nove agricultores e uma
agricultora; conversamos com 17 casais, quando visitamos residências daqueles
que são vizinhos da família que nos hospedava. Participamos de três reuniões de
30
Fiz duas viagens a Poço Fundo no ano de 2006 e seis viagens em 2007. Na primeira, 12/07/06
apenas visitei a Associação e a Cooperativa. Conversei com o gerente da cooperativa apresentando
a proposta de pesquisa; agendei um retorno para minha participação na reunião do primeiro
domingo do mês (reunião dos representantes de bairro ocorrida em 27/08/06). Retornei para
realização da pesquisa exploratória no período de 27 a 30/08/2006. Volto ao trabalho de campo em
janeiro de 2007, ficando hospedada na casa de uma família de agricultor. Estive presente nas
reuniões do primeiro domingo nos meses de fev/2007, marco/2007 e abril/2007 e nas reuniões de
grupo, nos bairros do Cardoso (10/01/2007) e Dourado dos Lopes (abril/2007). Procurei realizar
temporadas de permanência de 2 a 4 dias nas quais convivia com a família que me hospedava e
realizava visitas para conversar ou entrevistar os agricultores vizinhos das casas onde fui
hospedada. Participei da Assembléia Geral da COOPFAM em março de 2007 e de uma reunião
realizada pela representante da certificadora FLO, na mesma data. Visitei o escritório da ONG
Centro de Assessoria Sapucaí, em Pouso Alegre, em março/2007.Concluí a pesquisa de campo em
Poço Fundo participando da Festa do Dia do Trabalhador, em maio/2007. Em agosto de 2007
estive em Montes Claros/MG onde entrevistei a engª agrônoma que realizou uma das pesquisas
citada neste trabalho.
59
representantes de bairro e duas reuniões de grupo de bairro, além de uma
assembléia geral da associação e da comemoração da festa do de Maio o
Dia do Trabalhador.
Tendo a família que hospedava como ponto de referência, não era
preciso outra apresentação que não esta, para visitar as casas da vizinhança
anunciando apenas “onde” estava e “o que” estava fazendo. Em outros lugares,
fomos acompanhados pelo agricultor que nos hospedara. Juntos, íamos visitar
casas e lavouras vizinhas. Íamos de caminhonete, carro, moto ou a pé. Uma ou
mais crianças pequenas sempre acompanhavam o pai quando saíamos para as
visitas. A presença da criança pequena, acompanhando o pai, parecia-nos uma
indicação da moral camponesa, que procura preservar o respeito a uma mulher
sozinha e à família-guia, nas trilhas, atalhos e estradas que nos ligavam à
próxima casa ou lavoura. Aproximação e distanciamento mesclaram-se na
tecelagem que dá sentido aos achados da pesquisa.
As conversas, a descrição de cenários observados, registrados no
caderno de campo são parciais porque sofrem ou beneficiam-se nossos limites e
também porque são objetivamente recortadas, são fragmentos incapazes de dar
conta de explicitar o vivido. Muitas das conversas foram motivadas por um
comentário ou uma questão colocada e, nesses casos, os registros consentidos
aparecem como um monólogo, no qual apenas o agricultor ou agricultura
expressa sua fala.
Quando se tratava de um registro sem gravador ou manuscrito, uma
redução da abrangência do que é dito, a interlocução se perde. Passamos a ser
apenas uma ouvinte-escrevente, mas, na realidade, estava lá, presente, propondo
e ouvindo questões, fazendo comentários, construindo argumentos, admirando e
“puxando conversa”. Freire (1981, 1992) diz que admirar contém ad+mirar,
significando adicionar adentramento (proximidade, olhar de dentro) à mirada, ao
olhar, ao foco, à possibilidade de conhecer. Era isso que procurávamos fazer.
60
A informalidade das visitas facilitava o desenrolar das conversas. Essas
adicionam dados novos para a descrição da vida, que extrapolam o quadro de
referência das questões propostas no roteiro de entrevistas.
Nas entrevistas, foram utilizados alguns critérios para a definição dos
entrevistados:
Sujeito representante de grupo de bairro, investido no papel de
articulador e educador; com disponibilidade de hospedagem para a
pesquisadora e vizinhos indicados pelo agricultor de referência.
Produtores de café orgânico e sem agrotóxico.
Disponibilidade de tempo para convivência; acompanhamento nas
visitas a famílias, lavouras e diferentes reuniões de sua organização
e, para a realização da entrevista propriamente dita.
O agricultor que nos hospedava em sua casa era representante de grupo
de bairro. Nessa representatividade encontrava-se um poder político, capacidade
de formação, de articulação e compartilhamento de experiência.
Cada representante de bairro está situado em um núcleo de atuação, cuja
abrangência é significativa: no bairro onde reside, reúnem, em média, de 10 a 15
agricultores que compõem os grupos de bairro que podem agregar um, dois ou
três bairros. Além disso, à volta de suas casas, vizinhos e amigos aproximam-se
para conversar, para compartilhar experiências, pedir ou dar um conselho, um
modo de re-plantar um acerto, arrancar um erro, aprendendo e ensinando no “ato
do acontecido”, “no saber esparramado”, como foi dito por Ciço, um agricultor
do sul de Minas em entrevista a Brandão (1980). Tal qual Ciço, o agricultor,
investido no papel de educador, ensina aprendendo e aprende ensinando,
vivenciando a prática da educação dialógica, proposta por Freire no conjunto de
sua produção escrita adotada nesta tese.
61
O representante é escolhido por indicação unânime ou por votação no
grupo de bairro. Ele faz a articulação entre propostas, problemas e
recomendações dos membros do grupo no bairro e as diferentes instâncias
organizacionais da associação ou da cooperativa. No contato com vizinhos, o
agricultor-representante escuta, acolhe proposições, queixas, experiências bem-
sucedidas ou não e leva essa problemática a outras instâncias: reunião do grupo
de bairro, reunião dos representantes de bairro (primeiro domingo de cada mês)
e às assembléias da associação e da cooperativa.
As entrevistas tiveram um roteiro de questões, denominado guia de
entrevista por Ruquoy (1997, p. 110). Para essa autora, esse guia “distingue-se
do protocolo do questionário”, que orientar a conversa, esaberto a novas
questões. Deve, simultaneamente, permitir respostas dentro dos objetivos da
pesquisa e aprofundá-las considerando a fala do entrevistado.
Ainda, assim, o guia de entrevistas pode aprisionar. E isso ocorreu em
alguns casos. Um aprisionamento que pode ser rompido com a capacidade de o
pesquisador fazer do diálogo o modo de conhecer. O roteiro foi, muitas vezes,
superado pelo encantamento com a expressividade das falas e a densidade do
saber, que permitiu diálogos ricos e aprendizados preciosos. O exercício de ser
perguntadora e ouvinte produziu relatos e lições que relevam a importância do
registro desse saber. As poucas mulheres que se expressaram, suas falas e seus
silêncios não são menos densos ou significativos. Nas entrevistas, muitas
estiveram presentes, faziam pequenos comentários ou respondiam a questões
relativas à especificidade do trabalho da mulher na lavoura e na casa. apenas
um caso em que uma agricultora foi protagonista da entrevista. Na associação e
na cooperativa, as mulheres estão presentes na assembléia, têm direito à voz,
mas não têm direito a voto.
As falas foram registradas, manuscritas ou gravadas, trazendo a
linguagem própria dos agricultores, as práticas de vidas e identidades
62
particulares e diversas e, ao mesmo tempo, tão comuns e similares porque
ancoradas em uma cultura, uma história comum de luta, de organização. Trata-se
do processo coletivo de produção de um saber que vinha à tona em cada
experiência contada, em cada prática mostrada, em cada reunião participada, em
cada cenário ou situação observada.
Além da experiência vivida no terreno da convivência com os sujeitos,
outras fontes de coleta de dados foram importantes para nos suprir com
elementos constitutivos do saber apropriado pelos agricultores: são as fontes
documentais. Dentre elas, destacam-se planilhas de venda de café e relatórios da
atuação da ONG Sapucaí, que foram utilizados como dados secundários desta
pesquisa.
As planilhas de venda do café eram feitas pelo contador da cooperativa,
conhecido por “tio Mauro”. Ele é o responsável pela contabilidade. Com um
perfil de jornalista, escreve suas análises de conjuntura econômica e fixa-as no
quadro de avisos de sua sala junto com as planilhas de cada ano agrícola. A
apresentação dos resultados da contabilidade, na assembléia geral da
cooperativa, é um interessante trabalho de números precisos e comentários,
avaliações e apreciações do mercado presente e do mercado futuro, que apóia a
tomada de decisão dos agricultores.
Foi importante também ir a Pouso Alegre, sede da ONG Sapucaí, onde
foram recolhidas cópias de relatórios de seu trabalho de formação e assistência
técnica, desenvolvidas junto aos agricultores de Poço Fundo. Esses relatórios
foram olhados com um zelo especial. Recortes deles constam no Caderno de
Campo. (Anexo B).
O terreno da convivência com os sujeitos da pesquisa foi traçado por três
aproximações. Descrevê-las dá mostras da experiência vivida.
A primeira aproximação com os sujeitos ocorreu em agosto de 2006,
visita a Poço Fundo, para a proposição da pesquisa. Nessa aproximação inicial,
63
na sede da cooperativa, havia grande movimento de entrada e saída de
agricultores. Era momento de pico da colheita: carregamentos de sacas de café
chegavam para armazenamento e posterior comercialização. O gerenciamento
do trabalho para receber cada produtor, anotando informações, mobilizava duas
secretárias, o gerente da cooperativa e o contador. O trabalho de carga, descarga
e transporte do café, muitas vezes, é compartilhado entre dois, três ou mais
produtores a depender dos acordos entre vizinhos.
Nesse momento, tivemos oportunidade de encontrar em Poço Fundo com
pesquisadores dos Estados Unidos e da França, em atividade de coleta de dados,
com a utilização de questionários com perguntas fechadas uma interlocução
com dificuldade de compreensão do idioma e dificuldades relativas à
inadequação do momento e do contexto. Na sala de espera, agricultores, menos
apressados, dispunham-se a responder aos questionários. Essa situação
mostras do “assédio” a qual se referiu o presidente da cooperativa e confirma o
interesse de pesquisadores pela experiência vivida pelos agricultores da
associação e da Coopfam. Ali estavam pesquisadores centrados em si mesmos,
alimentados por um questionário, desconhecendo o contexto ou a situação vivida
por aqueles que davam as respostas.
O terreno da convivência com os sujeitos da pesquisa teve uma segunda
aproximação o momento da pesquisa exploratória, experiência de chegar ao
campo de pesquisa com questões embrionárias e desconhecimento da situação a
ser pesquisada. Era preciso o movimento de dupla mão, do aperto de mão que
sela a mútua disposição de nos conhecermos. Conhecer a linguagem e as
práticas vividas para construir uma ponte de vinculações entre nós. Tecer os fios
da linguagem comum, a despeito de questões geradas por objetivos teóricos
definidos a priori. Ver, observar, conhecer, deixar-se conhecer, buscar
reescrever as questões, tornando-as mais inteligíveis e coladas ao vivido no
cotidiano dos sujeitos a serem envolvidos na pesquisa.
64
Essa foi uma experiência densa: saber com quem estava falando e se
deixar conhecer para que eles também pudessem saber com quem estavam
falando. Para tanto, estivemos durante quatro dias na casa de um agricultor, no
mês de agosto 2006. Essa foi a primeira convivência com uma família e
oportunidade de visita a duas outras, além de visita a duas lavouras, onde eles
apresentavam seu trabalho à pesquisadora. Naquele período, também estivemos
na sede da associação e da cooperativa, em livre observação.
O fio condutor das conversas estava delineado. Era o processo de
produção do saber. As primeiras questões embrionários foram: quem eram eles,
segundo eles mesmos, ou seja: como se autodenominavam e como se
autodenominam hoje? Como, quando e com quem aprendiam e ensinavam?
Essas foram as questões de frente da pesquisa exploratória, que suscitaram as
questões norteadoras do roteiro de entrevista.
Eles autodenominam-se como “agricultores orgânicos” e “agricultores
convencionais”. O termo “convencional”, no sentido usado, é diferente da
caracterização de produtores integrados no processo de produção da agricultura
moderna. Para os agricultores de Poço Fundo, ser agricultor convencional
significa ser produtor de café sem o uso de agrotóxico, ou produtor de café do
tipo “sat”. Essa autodenominação expressa a tecnologia adotada na produção do
café, mas também é a via que possibilita sua participação na Associação dos
Pequenos Produtores e Coopfam. Essas duas organizações trazem elementos que
compõem a identidade de seus participantes e são princípios fundantes de dupla
identidade: a dos agricultores e, simultaneamente, a identidade dessas
organizações. O tamanho da área de terra utilizada leva-os a se denominarem
“pequenos”. O modo de produzir, além de expressar a tecnologia utilizada,
expressa relações familiares e processo de trabalho estruturado na família.
A pesquisa exploratória preparou o retorno para a convivência com as
famílias, ajustou a linguagem, permitiu a melhor vinculação entre os objetivos
65
da pesquisa e as questões a serem observadas e propostas nas entrevistas,
orientou a terceira aproximação. Da casa da família que nos hospedava para as
casas dos entrevistados, o caminho até o próximo entrevistado era delineado e, a
apresentação da pesquisa já estavam estava legitimada. Bastava, somente,
combinar os horários de chegada para conversas, visita à lavoura e entrevista.
Era tempo de muita chuva, isso inviabilizou algumas visitas programadas às
lavouras.
Todos os registros do vivido e observado, das entrevista gravadas,
ouvidas e transcritas pela própria pesquisadora são os dados que compõem o
caderno de campo.
A análise dos dados não se deu em um momento estanque, em que o
pesquisador pára para fazê-la. Ela é processual, contínua e simultânea ao
movimento de viver e interpretar. O final é arbitrário, depende de prazos e
competências do pesquisador e objetivos buscados. um sinal que pode ser
lido como o momento de se colocar o ponto final: a saturação observada nas
respostas que não apresentam novidades.
Há, ainda, um momento dedicado ao refinamento da análise dos dados
colhidos para elaboração do texto escrito o produto “acabado”, a tese
encadernada. Essa contém o (in)acabamento típico do ser humano e como parte
dos ciclos da vida, permite um final como um possível novo começo.
A análise dos dados é feita a partir do que Maroy (1997, p.120) chama
de descrição analítica”, em que as categorias não são definidas a priori, mas
“descobertas” no material coletado, “a partir das quais é possível descrever e
compreender a realidade”. Da descoberta e articulação entre as categorias,
passamos a agregá-las em eixos temáticos, procedendo a outro vel de análise,
em que se dá a interpretação ou busca de compreensão da realidade.
A análise dos dados é momento da colheita. Colheita seletiva, trabalho
árduo. Dele depende a produção do texto escrito como tese entese. Ler e reler
66
todo material, descobrir e relacionar categorias empíricas e teóricas, interpretar o
dito e o não dito, escrever, analisar, escrever e escrever. Essas são as tarefas para
a produção “final” da tese.
67
CAPÍTULO 5
SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO: NASCEDOURO; CONHECIMENTO
CIENTÍFICO: PONTE
Sob esta temática, pretendemos descrever e analisar o processo de
produção do saber decorrente das relações que os agricultores estabelecem entre
o saber de experiência feito ou saber de senso comum ou e o conhecimento
científico. Partimos da compreensão de que a produção do saber envolve o
sujeito social no nível individual, familiar, da comunidade e suas organizações e,
especificamente, as práticas de produção do café, considerando-se a terra, a
planta e o fruto, café-fruto produto.
Esse processo implica a dinâmica de aproximação que envolve relações
sociais e práticas de produção, que passam pela afirmação, negação, adoção,
ruptura, adaptação, criação (e re-criação), como dito anteriormente.
Assim, os sujeitos estão desenvolvendo práticas de consolidação de
saberes que foram ou ainda são vinculados à experiência vivida com a
agricultura camponesa, por um lado, e a agricultura moderna por outro lado,
mediadas por organizações que lhes conferem a autodenominação. É em que nos
deteremos a seguir.
5.1 Os sujeitos em diferentes temporalidades
No tempo de meu avô o café era só pro gasto
Seu Damião, pai de Thiago
O tempo da agricultura camponesa era o tempo em que o café era fruto
usado apenas para autoconsumo, ainda não era mercadoria. A produção do saber
orientava-se pela lógica da subsistência - o plantio “só pro gasto” ou consumo de
68
subsistência. O café era um entre muitos produtos da agricultura diversificada.
O avô é referência da geração de “antepassados” que ainda está presente
na vida dos agricultores e agricultoras mais velhos (entre 65 e 83 anos) e seus
filhos e filhas adultos, entre 30 e 45 anos de idade, os sujeitos que nos deram o
privilégio de registrar conversas ou gravar entrevistas para revelar o “saber
esparramadono cotidiano de suas vidas. O saber dos antepassados é referido
em práticas de produção do saber aceitas como continuidade ou recusadas como
ruptura com um saber “passado”, que também é presente nessa continuidade
e/ou ruptura. O narrador é o pai, proprietário da terra dividida entre os filhos. Os
filhos adultos são os representantes de grupo e aqueles que nos acolheram e nos
hospedaram em suas casas.
Naquele tempo, “do avô”, o café o ocupava o centro da produção
agrícola. O milho, o arroz e o feijão a lavoura branca e o fumo,
predominavam como práticas de produção camponesa. Na composição da
produção diversificada, tinham, ainda, vacas, porcos e galinhas “só um
pouquinho”. Relatos da vida, da situação da família, do acesso e uso da terra, do
trabalho na lavoura, do tipo de produção e da condição das mulheres retratam o
primeiro tipo de agricultor encontrado no processo de produção do saber sobre o
café orgânico e o café sem agrotóxico: o agricultor camponês. Não usavam
“veneno”, o adubo era esterco. Foram, originariamente, os precursores da
produção sem agrotóxico, a raiz de onde nasceu o café orgânico e o café sat
(sem agrotóxico).
A terra também era “pouquinha” em parceria ou própria. Na produção
“pro gasto”, não incluem, nos relatos, o comércio de excedente que favoreceu a
compra de terra e o patrimônio, daqueles que são hoje os agricultores donos da
terra. Terra recebida dos pais como doação (usufruto da terra sem partilha),
herança terra partilhada ou parceria com o pai. O discurso do “pequeno” é
predominante na fala desses agricultores e ainda permanece na maioria dos
69
relatos dos “filhos” os membros da associação de “pequenos” produtores da
qual são integrantes. “Plantavam de tudo”: a produção diversificada garantia a
subsistência, a parceria o acesso ao uso da terra, o trabalho da família e o
sacrifício, a compra da terra. A vida difícil da família camponesa teve como
núcleo central a dificuldade de acesso à propriedade da terra e a subsistência da
família.
As mulheres descrevem o trabalho na roça e o trabalho doméstico,
naquele tempo, como uma “vida sacrificada”. O beneficiamento caseiro dos
alimentos: “socava arroz no pilão”, a conservação dos alimentos quando não
tinham geladeira, não havia energia elétrica ou água encanada, lavar e passar
roupa eram tarefas árduas. A distância entre a roça e a cidade percorrida a
aumentava o sofrimento quando se tratava de doenças ou de gestante “na hora
do parto”. Cesariana, não se fazia, porque “o pobre não sofre, pobre pode
esperar”, fala dona Dália. Mas, a vida da mãe, a bisavó para este estudo era
“muito mais sacrificada”, diz ela. Famílias com grande número de filhos, a
produção sustentada no trabalho familiar estabelecia dois tempos na vida dos
filhos: o tempo da escola e o tempo de trabalho na roça. A escola rural, onde os
filhos estudaram era multiseriada, “uma professora para 1ª, 2 ª, e série,
tudo junto”.
Em algumas casas, pudemos observar fogão à lenha ao lado do fogão a
gás, situação comum nas residências mais antigas e mais recentes. É sinal da
convivência do antigo com o atual, do passado com o presente, da economia de
energia e de dinheiro e da preservação de costumes. Na casa do Pedro, por
exemplo, ainda se mata porco e a família usa banha de porco na alimentação. O
“capado” porco gordo que dá carne e gordura – é partido, defumado no fogão a
lenha, parte é cozida e guardada em latas com gordura. O toucinho, ainda
pingando, e a lingüiça são defumados na cozinha. Costumam matar porco uma a
duas vezes por mês e essa “é a carne da família”. Um frango por semana varia o
70
cardápio. Quiabo, jiló, abóbora, mandioca e frutas são plantados no quintal, tem
sempre “uma mistura”.
A integração desses agricultores ao mercado pelo cultivo ca não os
transformou em agricultores especializados. Não ocorre, portanto, uma ruptura
total de suas práticas da agricultura camponesa. Carrieri (1992) corrobora essa
posição. Ainda preservam práticas de diversificação da produção com plantio de
milho e feijão. Esses cultivos, o cultivo do café e outras atividades agropecuárias
são mantidas com a organização do trabalho sustentada na família, nas relações
de parentesco, de vizinhança, na mútua ajuda e práticas coletivas. A propriedade
é vista como um todo, tecido de diferentes relações entre o ambiente social,
político e econômico. Na atividade produtiva diversificada associada à produção
comercial, processa-se uma estratégia de produção e reprodução ativa dos
produtores em uma dinâmica que é produzida pelo balanço entre as necessidades
da família, do trabalho disponível e de recursos limitados.
A agricultura modernizada, a produção do café como produto para
comercialização e o uso de tecnologias de produção oriundas do conhecimento
científico são a saída do tempo do avô, em que o café era “só para o gasto” e a
entrada no processo de expansão da produção de café em que esse passa a ser
produto mercantil, comercializado no mercado nacional.
É importante reconhecer que a esperada passividade no uso do pacote
tecnológico não se verificou. No início dos anos oitenta, esses agricultores
rompem com determinadas práticas introduzidas pelo conhecimento científico.
Esse é um momento que segundo Freire (1985, 1992, 2002) ocorreu uma
experiência de superação de situação-limite: esses agricultores, percebendo os
comprometimentos decorrentes da dependência do uso de crédito, sementes
selecionadas, adubos e defensivos agrícolas, passam a questionar a intervenção
do Estado, a intervenção da Emater, o uso de tecnologia de produção agrícola
moderna. Apoiados pela Igreja, por meio da CPT e das comunidades eclesiais de
71
base, muitos orientam sua produção na perspectiva da agricultura alternativa.
Essa pode ser considerada uma experiência de superação de situação-limite.
As terras já reduzidas e continuamente divididas pelo processo de
sucessão, o alto custo da tecnologia moderna e a ausência de políticas de apoio
aos agricultores familiares alimentaram, naquela década, o movimento de reação
que levou esses agricultores a buscar outra estratégia de reprodução social na
agricultura alternativa e na organização social.
Na década de 90, em Poço Fundo, o sistema de produção moderno-
conservador tinha por base dois produtos: o fumo e o café, coexistia com a
agricultura alternativa, que favoreceu o resgate de conhecimentos de gerações
passadas em uma tradição recriada e o teste de experiências novas como
possibilidade de sustentação alternativa, assegura Carrieri (1992) . Na terra de
cultivo do café, a prática da monocultura foi substituída pela diversidade de
culturas, o café passa a conviver com o milho e o feijão. A diversificação de
culturas é uma prática que permaneceu constante [...] e traduz uma lógica
própria, em que estão integrados trabalho e produtos, tempo, experiências e
observações sistematizadas em conhecimentos não livrescos, em conhecimentos
empíricos [...]”, afirma Carrieri (1992, p.96) A avaliação dos custos do trator os
fez retornar ao uso da tração animal, e volta ao cenário o carro de boi. O
planejamento das ações ao longo do calendário agrícola nasce do cálculo das
despesas com a família, do “zelo” no cuidado cotidiano com sua lavoura e
animais. Mais uma vez, a observação e o conhecimento diário são as fontes
originais desse planejamento.
O conhecimento do mercado também é um saber prático relativo à
qualidade do produto, à melhor hora de negociar, às mudanças nos preços, à
cotação anunciada na televisão, às ofertas dos compradores (atravessadores) no
local e na região. A ruptura com práticas do conhecimento científico
simultaneamente produz um retorno a práticas do saber de senso comum, que
72
não se perde. Ao contrário, é matriz de sustentação das decisões e práticas
adotadas.
A experiência portadora do saber de senso comum é a experiência
camponesa, além das práticas de produção, essa deixa traços fundantes das
relações sociais cotidianas; são fundadores dos bairros rurais
31
o contexto no
qual são tecidos os laços de reciprocidade, as trocas de experiências e o saber
compartilhado, o modo de cuidar da terra, plantas e animais. Enfim, as relações
sociais e culturais produzidas nesse modo de viver, plantar, colher e comer os
frutos da lavoura. Os bairros rurais são formações decorrentes de propriedades
maiores, que na partilha ou doação de terra pontuam a área rural do município
de aglomerados de famílias, constituídas de pais, filhos, tios, sobrinhos, primos
que se casaram com primos ou com homens e mulheres que, da cidade, vem
morar nos bairros rurais. Cada bairro é uma comunidade composta de uma
média de 20 famílias. Essas relações são os vínculos originais que sustentam a
produção de frutos da terra e aprendizado do modo de ser agricultor.
A solidariedade e a reciprocidade entre familiares e vizinhos e o uso de
adubo orgânico podem ser credenciados ao saber próprio do camponês, que
subsiste e ancora as relações sociais e de produção atual. Outras práticas
descritas, posteriormente, vão indicar a negação do saber camponês.
Na família camponesa, encontram-se os bisavós e os avós e um tempo
passado muito recente de gerações muito próximas na trajetória da família destes
agricultores. De acordo com os dados da pesquisa de campo, eles constituíram
famílias compostas de 8 a 11 filhos, bisavós, avós, tios, primos e pessoas
vinculadas que residem na propriedade familiar. Os agricultores e agricultoras
mais velhos – os donos da terra – plantaram “lavoura de tradição” – arroz, feijão,
milho e fumo em alguns casos, e em outros, arroz, feijão, milho e gado de leite.
73
Produziam para a subsistência e pequeno excedente para a
comercialização. São os proprietários da terra que foi dividida – em “doação” foi
passada para os filhos que plantam na terra dos pais. Os pais, ainda vivos, fazem
a divisão da terra, mas não concretizam a herança via titulação legal. São os
donos da terra. O domínio da terra, porém, é compartilhado com os filhos, que
produzem lavouras de café com o trabalho familiar. Propriedades de,
aproximadamente, 40 hectares, como as de Seu Damião, foram divididas entre
três domínios: do pai (ele mesmo), do filho e da filha com o marido. Seu José,
pai Matheus, dividiu sua terra entre 11 filhos, dez homens e uma mulher, que
‘toca lavoura” junto com o marido. Pedro
32
e Dona Emília
33
são irmãos,
receberam terra de herança dos pais, falecidos, que também dividiram a terra
entre 14 filhos que são cinco homens e nove mulheres. As parcelas de terra
recebidas como herança variam entre 2 e 10 hectares de terra.
Outra situação-limite enfrentada foi a superação da exploração ocorrida
no comércio do café que, ao ser vendido pelos produtores isoladamente, esses
sofriam as determinações de preço dos atravessadores compradores locais. A
primeira luta política nesse sentido, dirigiu-se para a conquista do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Poço Fundo. Derrotados nas eleições sindicais, criaram
a Associação de Pequenos Produtores de Poço Fundo. Souza (1995, p. 76)
registra: a Assembléia de Fundação da Associação de Pequenos Produtores do
Município de Comarca de Poço Fundo ocorreu em 13 de fevereiro/1991, com a
31
Segundo Cândido (1975) citado por Gonçalves (2003) o bairro rural pode ser definido como “o
grupamento territorial mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela participação dos
moradores em trabalho de ajuda mútua”. Neste caso se confunde com a idéia de comunidade.
32
Pedro, 57 anos. Bairro Dourado dos Lopes. Casado, pai de dois filhos ( um de 12 anos e outro
de 22 anos) e uma filha adulta que mora na cidade. Tem cinco irmãos homens e nove mulheres.
Dentre eles oito são agricultores; cinco estão na COOPFAM. A terra é herança de seus pais e dos
pais da esposa. Produz café orgânico (uma lavoura de 3500 e outra de 5000 pés de café). Planta
cana para produção de rapadura para comercialização. Concluiu a 4 ª série do ensino fundamental.
33
Emília, 48 anos, irmã de Pedro. Bairro Dourado dos Lopes. Casada. Mãe de uma filha adulta.
Produz café orgânico (12.000 pés de café) Terra herança dos pais e da família do marido. A filha
planta 1000 pés de café em parceria.
74
presença de 14 produtores, sendo um mulher e 13 homens e uma assessora
representante do Centro de Assessoria Sapucaí que acompanha os trabalhos da
Associação”. Com a fundação da associação, buscavam alternativas para a
comercialização de seus produtos, evitando o atravessador. Dourados foi o
primeiro bairro a fazer comercialização conjunta do café; e compra conjunta de
adubo.
Além disso, Souza (1995, p.92) registra o momento inicial de vinculação
desses agricultores a relações internacionais: “Após 4 anos de sua criação, a
Associação, hoje, (...) está prestes a exportar café para a Bélgica, através da
Fundação Max Havelaar. Foi também convidada a participar de um Encontro
Internacional de Pequenos Produtores a se realizar em Gana, na África, em
1995”.
Com a participação na associação vieram a ser produtor convencional
sat (sem agrotóxico) e “produtor orgânico”. A associação funda-se sobre o
princípio da ruptura radical com o uso de agrotóxico, princípio carregado de
significados e se relaciona a uma ruptura com o conhecimento científico. A
bifurcação, produção camponesa de um lado, produção moderna de outro, indica
sentidos de práticas e projetos de vida distintos. O tipo agricultor convencional
“comum”, aquele que permaneceu usando agrotóxico e não pode ser participante
da associação, aqui é visto apenas como identidade oposta, alteridade, não é foco
desse trabalho.
O aprendizado como agricultor moderno situa-se no intervalo entre o
tempo de produção de subsistência, ou do modo de vida camponesa, e a
produção de café orgânico para exportação. Nesse aprendizado, o agente de
interferência na produção do saber foi a Emater, responsável pela viabilização de
programas governamentais de modernização da agricultura brasileira. Naquele
período, os agricultores tiveram acesso ao conhecimento cientifico matriz da
produção da agricultura moderna. É o tempo em que foram estimulados ao uso
75
do adubo químico e agrotóxico
34
.Essa foi uma “situação-limite,” em que o
vivido e o aprendido geraram um saber próprio; como já foi afirmado pelos
estudos de Aguiar (1992).
Inicialmente, alguns agricultores adotaram parcialmente o conhecimento
transferido; posteriormente, recusaram esse conhecimento e produziram um
outro tipo de conhecimento que gera a produção do café orgânico. Essa recusa
fundamenta um dos princípios que orientam a vida das organizações dos
agricultores de Poço Fundo: o não ao uso de defensivos agrícolas – o agrotóxico
o “veneno”, como dizem. Agrotóxico é veneno para a terra, para a planta, para
o ser humano. Isso passou a ser um valor cultural central nas práticas que
ancoram a singularidade dos agricultores da Coopfam. O não ao uso do
agrotóxico é princípio exigido para a participação na associação e na
cooperativa. Essa é uma situação que corrobora com o argumento central desta
tese, ou seja: houve uma ruptura com o saber de senso comum (plantio
camponês, “sem veneno”), uma adoção das práticas preconizadas pelo este caso,
a negação é fundante do princípio que organiza as práticas adotadas pela
Associação dos Pequenos Produtores de Poço Fundo.
Esses agricultores desenvolvem um processo de busca de superação de
tais práticas ao reelaborarem o saber até então produzido. Tratamos, assim, de
um exemplo de aproximação do senso comum ao conhecimento científico
adoção desse último – posterior negação ou ruptura e, da ruptura da ruptura ou a
segunda ruptura, segundo Santos (2002).
A situação atual é muito complexa, já que envolve o embricamento de
práticas de produção geradas em três experiências de produção do saber: o
34
Quando fazemos referência exclusiva ao uso de agrotóxico, não estamos fazendo uma
simplificação do significado do modelo de produção agrícola moderna. Esta referência é usada a
partir da adoção do não ao uso do agrotóxico” como princípio central que rege as práticas
agrícolas e sociais dos agricultores da Associação de Pequenos Produtores de Poço Fundo e da
COOPFAM.
76
aprendizado como camponês, o aprendizado como agricultor modernizado e o
aprendizado como agricultor “orgânico” ou convencional “sat”, como se
autodenominam.
Os agricultores produtores de café orgânico e sem agrotóxico (sat) são
aqueles a quem estamos denominando de agricultores associados. Daqui para
diante, serão assim referidos. Mas essa identidade não é única, pode ser
mesclada, entre “sat” e “orgânico”, preservando-se, porém, como princípios
definidos pela organização “o não-uso do agrotóxico” e a participação na
associação e na cooperativa, porque afirmam “nem todo associado é cooperado,
mas todo cooperado é associado, é um critério de participação na cooperativa”,
como disse claramente Tomé
35
.
Os produtores de café orgânico têm duplo certificado, usado para
comercialização via exportação. Um pela FLO
36
- que possibilita o acesso ao
mercado justo ou fair trade. Outro, pela ÖKO Garantie BCS, que possibilita o
acesso ao mercado de produtos orgânicos. os “sat” possuem apenas o
certificado do fair trade. Logo, integram-se apenas ao mercado (dito) justo. O
mercado fair trade busca fortalecer aspectos importantes da vida dos
agricultores, quais sejam: o caráter familiar da produção, o trabalho ancorado na
base familiar, na justiça social, na inclusão de mulheres, na importância da
educação formal para crianças e adolescentes, evitando-se a exploração do
35
To, 42 anos. Bairro Barreiro. É casado. Tem um filho de 11 anos e uma filha de 6 anos.É
produtor de café orgânico ( 6 ha.) e sat.(5 ha.). Terra própria, 17,6 ha. Fez curso técnico agrícola e
graduação em Filosofia.
36
A Fairtrade Labelling Organizations – FLO é uma organização guarda-chuva que foi criada
em 1997 por 17 Associações do Comércio Justo da Europa. Hoje, a FLO conta com 20
Associações na Europa, EUA, Japão, Austrália e Nova Zelândia, sendo o Brasil a 21ª iniciativa.
Além disso, seguindo a sua vocação de diálogo e envolvimento com as partes interessadas, a FLO
incorporou como novos associados três Associações que representam as organizações de
produtores certificados Fairtrade na América Central, América Latina, África e Ásia”.
FAIRTRADE. Brasil. O que é fairtrade Disponível em: <
http://www.fairtradebrasil.net/oquee.asp>. Acesso em: 14 mar. 2008.
77
trabalho infanto-juvenil, o fortalecimento das organizações próprias dos
agricultores e a preservação ambiental. Juntando, ainda, como valor importante
experiências de intercâmbio entre agricultores e os consumidores. Os produtores
de café certificado como orgânico cumprem exigências maiores do que aqueles
que são certificados apenas pelo mercado fair trade. Isso, entretanto, garante
maior preço para o café orgânico. muito rigor no controle da qualidade de
café, uma qualidade em que estão embutidos valores mercantis e valores
culturais, modo de produzir, relações sociais balizadas por valores, como saúde e
dignidade (individual e coletiva, local e planetária), relações “limpas” e
preservação ambiental, e também reciprocidade entre agricultores e
consumidores.
No mercado “justo” ou fair trade os consumidores pagam um valor
mais alto por um produto de melhor qualidade e querem que os produtores
“pequenos”, “familiares”, tenham vida digna; é o discurso e a prática buscada
pelos agricultores, a certificadora, os compradores e os consumidores que
viabilizam tais relações no mercado internacional. No Brasil, esses agricultores
comercializam apenas o “resíduo” do café, aquele que sobra da classificação
para e exportação, porém, em pequena quantidade. É importante observar que o
café orgânico produz e é vendido em menor quantidade, porém com maior valor
comercial, o café tipo “sat” é vendido em maior quantidade. O equilíbrio entre
essas quantidades e valores é também uma forma de aplicação do saber
desenvolvido por esses agricultores.
Destacamos, a seguir, um box
37
explicativo do que adotamos como
entendimento do comércio justo, mercado justo ou fair trade:
37
O box é uma maneira de fazer citações longas, e podem ser longas. Pretende levar o leitor à
situação vivida (contexto descrito em etnografia) ou introduzir um texto explicativo.
78
Comércio justo
O comércio justo não é mais uma palavra desconhecida; ele é
objeto de muita atenção. Não é, portanto, um conceito novo, o
comércio justo existe há 40 anos. Chamado, no início, de
comércio alternativo, ele foi progressivamente lançado por
ONGs nos anos 60 na Inglaterra e nos países baixos sob a
forma de boutiques e lojas especializadas. Foi preciso quase
uma década para que o comércio justo atingisse uma
amplitude até se consolidar. Organizações do comércio justo
especializadas na importação emergiram em vários países e a
variedade de produtos oferecidas se ampliou.
No final dos anos 80, o movimento do comércio justo reuniu
seus esforços para oferecer os produtos em lugares
freqüentados pelo grande público. Estas organizações
procuraram aumentar o volume de vendas a fim de apoiar o
maior número possível de produtores e de favorecer a uma
agricultura mais ecológica. Esta tendência criou, em 1988, nos
países baixos a primeira iniciativa de certificado batizada de
Max Havelaar. Um selo de certificação garantia aos
consumidores que o organismo independente havia verificado
que o produto respondia às normas éticas e ambientais. O
primeiro produto alimentar com selo vendido na Europa foi o
café comprado de uma comunidade de agricultores no
Chiapas, México. Progressivamente, o chá, o chocolate, a
banana, o suco de laranja, o arroz, o açúcar e o mel com selo
fizeram sua aparição nas prateleiras de lojas especializadas e
nas grande redes de supermercados. Em 1997, os diversos
organismos de certificação dentre eles a Max Havelaar se
reagruparam na FLOR (Fair Trade Labelling Organization
Internacional). Mas o que é o comércio justo? O movimento
internacional de comércio justo o define como uma parceria
79
comercial baseada no diálogo, na transparência e no respeito
que visa mais justiça no comercio internacional. O comércio
justo contribui com o desenvolvimento durável [sustentável]
propondo melhores condições comerciais aos produtores
marginalizados, especialmente no sul, assegurando seus
direitos.
Os objetivos do comércio justo são os seguintes:
assegurar uma remuneração justa do trabalho dos
produtores e artesãos mais desfavorecidos, permitindo
satisfazer às suas necessidades elementares em matéria
de saúde, educação, moradia, proteção social;
garantir o respeito aos direitos fundamentais das pessoas,
recusa da exploração infantil, do trabalho forçado, da
escravidão;
instaurar relações duráveis entre parceiros econômicos;
favorecer a preservação do meio ambiente;
oferecer aos consumidores produtos de qualidade.
Fonte: Tradução livre do texto de Dam (2005, p. 85-86)
No aprendizado desenvolvido pelos agricultores associados, o exercício
da recusa do modo de produzir da agricultura moderna procura se sustentar na
radicalidade contra o uso de agrotóxico ou “veneno”, no compromisso com a
preservação ambiental, utilizando práticas de cultivo e manejo preservacionistas
e a independência de multinacionais vendedoras de insumos, como afirmaram,
anteriormente, Lucas e Pedro.
Assim, a singularidade desses agricultores torna-os particulares, tão
semelhantes e diferentes dos agricultores espalhados no Brasil e no mundo.
Estão situados no lugar onde vivem, nas alianças e rupturas entre terra, família e
produção. Em seu projeto de mundo, buscam fazer uma aliança entre família,
consumidor, produção “saudável” e ambiente saudável. Nesse processo, buscam
80
realizar na “ideologia” e na “filosofia” um modo de viver “diferente”, que cuida
da terra para cuidar da planta e cuida da planta para colher um produto
“saudável” sem “veneno”, sem agrotóxico. Saudável é a terra, são as relações
sociais e de trabalho produzidas por eles, afirmam. Saudável é o café produzido
em lavouras cercadas por barreiras verdes, que também são bandeiras que
pretendem anunciar a possibilidade de “produzir nossa terra”, em ambiente
preservado.
Se o modo de produzir café é um pilar na constituição da
autodenominação desses agricultores, três outros componentes também são
elementos fundantes dessa constituição: a família, a terra e as organizações
sociais que integram a vida do agricultor, porque eles se reconhecem como
produtor ou agricultor familiar o trabalho é garantido pela base familiar; são
pequenos produtores porque usam pequenas parcelas de terra e são integrantes e
participantes da associação e da cooperativa que construíram ao longo dessa
história.
Da família considerada como elemento fundante da identidade desses
agricultores trazemos três gerações que dão a conhecer os processos vividos e as
escolhas que definiram saberes e modos de produzir café, que tecem
semelhanças e diferenças eles.
Geralmente aprende-se desde pequeno, indo para a roça junto com o pai
e a mãe. Estamos chamando de aprendizado ao processo que origina e
desenvolve a produção do saber.No aprendizado do trabalho com a lavoura,
aparece pouco a diferença de gênero, o menino ou a menina aprendem com o pai
ou com a mãe, “indo para a roça”. Dona Rosa, mãe de Lucas e de Gérbera, fala
sobre a educação de seus filhos na família e na lavoura:
Lucas ia pequenininho para a roça e aprendeu com o pai. Eu ensinei ele
a cozinhar: fazia comida, merenda, lavava roupa. Tem gente que fala
que menino não pode fazer serviço de casa: é a mesma coisa, tanto faz.
81
Minha filha aprendeu com nós. Ela ia apanhar café pros outros que
usavam veneno, então fazia muito mal para ela. o Geraldo [o pai]
começou a dar café na meia para ela. Ela trabalha na roça até hoje.
Para analisar o processo de produção do saber, consideramos que há uma
imbricação do tempo vivido como agricultor camponês e do tempo atual. São
duas temporalidades; falamos da primeira como distinta da segunda, porém, esta
é portadora de traços da cultura camponesa. Na família dos agricultores
associados, estamos lidando com agricultores com um na roça e outro na
cidade, um no Brasil e outro no mundo; uma travessia inconclusa de modos
de viver e produzir que comportam a possibilidade de ler o com-texto, ou o texto
inscrito em seu contexto, como modo de produzir saber, diria Freire (1985, p.83)
que, partindo de uma concepção histórica e problematizadora da condição
humana, afirma: “Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão
sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com sua realidade, que sendo
histórica também é igualmente inacabada”. [grifos do autor].
Como já foi dito, a agricultura moderna foi adotada integralmente por
uns, parcialmente por outros; negada e re-apropriada pelos agricultores
associados (orgânicos e sat) que juntam, separam, selecionam e descartam
saberes de todos esses modos de plantar e estão gestando um saber apropriado a
seu projeto de vida hoje.
Os interlocutores privilegiados para efeito desse trabalho ou aqueles que
concederam entrevistas gravadas são a segunda geração; estão entre 30 e 50 anos
de idade. Estão constituindo famílias menos numerosas, com 2 a 4 filhos. Seus
filhos estão entre 1 e 20 anos de idade, de acordo com os dados da pesquisa de
campo. Grande parte destas famílias vive na propriedade dos pais porque ainda
não se deu a partilha por herança. A terra é compartilhada entre os pais e os
filhos. Outro pilar que ancora sua autodenominação é o modo de acesso à terra.
casos em que a terra, sendo de propriedade dos pais, configura uma parceria
82
entre pais e filhos. Quando ocorreu a partilha por herança,a terra é dividida
entre os filhos – homens e mulheres, sem distinção.
No limite, há dois caminhos para a sucessão ou o acesso à terra e
reprodução da família dos agricultores associados: são “a terra produzida”, a
compra de terra e a parceria para acumulação e produção de riqueza que venham
sustentar o projeto dos filhos, e isso que estão fazendo. Porém, o mercado de
terra no local é restrito e o preço é alto. “Terra produzida”, como veremos mais
adiante, é terra de fertilidade mais ou menos estabilizada (a estabilidade é
resultante de um equilíbrio frágil entre adubação, manejo e cuidado
permanente). Oferece indicadores para a previsão da produção e colheita. Nessa
“terra produzida”, o café sem agrotóxico e o café orgânico tem qualidade
garantida. Será uma mercadoria negociada no mercado internacional regulado
pela bolsa de valores no momento da colheita e também define a previsão para a
produção que é negociada no mercado futuro.
O projeto de vida de seus filhos não foi objeto desse estudo, porém, no
subtexto da fala dos pais, expectativa de continuidade e investimento nessa
continuidade. O investimento na lavoura em terra própria, do pai, de parceiros
em que o agricultor pode ser o dono da terra e explorar a parceira, ou ser o
produtor em relação de parceria no uso de terras. Todas essas formas de acesso à
terra possibilitam a produção ora analisada. Assim, o que está em jogo na
quantidade e qualidade do café produzido é a reprodução social desses
agricultores.
O filho que aprende com os companheiros, inverte essa ordem e ensina
ao pai, pela experiência bem-sucedida e experimentada, assim o pai se convence
e também se “converte”. Como podemos observar na fala de Damião, pai de
Thiago: “Eu não queria plantar orgânico, mas os filhos deram em cima, me
disseram que os cinco primeiros anos a lavoura ia ficar feia, amarelar. A
primeira colheita deu 11 sacos, a R$350,00, o convencional [sat] a R$300,00,
83
um filho pegou a meia no convencional e outro orgânico [...]”
Ouvimos de caso de família que dá a lavoura em parceria para criação de
um patrimônio para o filho ou filha que ainda não pode trabalhar. Mas
também aqueles que gostam “mais ou menos da roça” e podem não permanecer
lá, e outros que não pretendem permanecer na escola e dedicam ao trabalho na
lavoura. Raros, porém, entre as famílias entrevistadas, são os casos de filhos que
trabalham na cidade como forma de contribuir com a sustentação da família na
roça. Esses agricultores sustentam-se com a lavoura de café e outras atividades
agrícolas, como apicultura, produção de horta orgânica ou atividades ligadas à
pecuária; ainda um caso de agricultor produtor de rapadura. O trabalho o
agrícola remunerado como forma de complementação da renda familiar – o
recurso da pluriatividade
38
como concebem Silva (1999) , Carneiro (1998) é
pouco utilizado.
Outro investimento dos pais no projeto de futuro dos filhos é a educação.
Seus filhos têm na educação formal - ensino fundamental, médio e no almejado
ensino superior uma promessa de valor importante na reprodução social da
família. Há um tempo da escola e um tempo do trabalho para filhos maiores, uns
“vão seguindo os pais”, outros entusiasmam-se com a “lavourinha de café” que
receberam do pai “pra tomar gosto” pelo trabalho ou pra ter “seu próprio
dinheiro”.Esse é o processo de formação do agricultor “força plena”, como
analisaram Woortmann & Woortman (1997), com uma diferença, aqui estamos
tratando de filhos de agricultores em que a educação escolarizada é outro
componente do aprendizado que já não se restringe ao saber fazer como o pai.
38
Revere-se ao crescimento do mero de pequenos agricultores que buscam combinar a
agricultura com outras fontes de rendimento, normalmente não vinculadas diretamente ao processo
de produção agro-pecuários. A exemplo, cita-se a prestação de serviços, lazer, turismo
rural,comércio ou formas de assalariamento part time -em atividades não agrícolas rurais ou
urbanas.
84
5.2 As organizações: os pioneiros e os novatos, os dentro e os de fora
A Associação dos Pequenos Produtores de Poço Fundo e a Coopfam, são
as duas organizações que estruturam dois outros pilares da construção da
autodenominação adotada pelos agricultores associados. Como pilares, também
podem ser consideradas no processo de produção do saber aqui analisado; essas
organizações , como as CEBs, são estrutarantes desse processo.
A associação é o braço social e a cooperativa é o braço comercial que
agregam esses agricultores, espaços onde aprendem e ensinam. Esses espaços
bifurcam-se em determinados momentos e, em outros, transformam-se em um só
caminho, nos quais os agricultores constroem sua trajetória de organização.
A associação e a cooperativa desenvolvem, para a dinâmica de
construção de seus objetivos e projetos coletivos, práticas de fortalecimento de
espaços organizacionais como, a família, os grupos de bairro, os grupos de
representantes de bairro e a assembléia geral da associação e da cooperativa. O
movimento, no processo de produção do saber, é dialógico, contém um
permanente ir e vir. É também balizado por relações entre iguais, ou o que
estamos denominando de relações dialógicas de produção do saber nas quais a
vinculação do agricultor com a família, os grupos de bairro, o grupo de
representantes de bairro é as assembléias, que são os espaços sociais e culturais
fundamentais nesse processo de produção do saber. Essa dinâmica pode ser
observada na representação apresentada na figura 1.
Os grupos de bairro, instâncias que integram a organização da
associação e da cooperativa, reúnem-se uma vez por mês, logo após as reuniões
dos representantes de bairro que ocorrem no primeiro domingo do mês, outra
instância que amplia a sua organização. Ser representante de grupo de bairro na
reunião do primeiro domingo do mês é competência adquirida pela capacidade
de relacionamento com os integrantes dessas organizações no bairro, e de
exercer um poder delegado por votação no grupo e referendado na assembléia de
85
suas organizações.
Filipe explica esse processo de organização da associação e cooperativa
tratando do que nós estamos chamando de “dinâmica de relações horizontais”
39
de produção do saber:
É o seguinte, né? Tem uma reunião mensal lá, né? E tem uma reunião
mensal aqui também. Por exemplo: lá é todo primeiro domingo, aí todas
as comunidades se reúnem. traz de para e leva daqui para lá.
Tem duas assembléias por ano, assembléia geral. Tem comissão de dois
formada lá, que sempre reúne para discutir, programação que não
depende de todo mundo, esses dois....eles resolvem, planejam um
assunto. Tem uma comissão de ética, comissão que julga se de repente
uma pessoa precisa sair ou precisa chamar a atenção.
[...] traz de lá para cá e leva daqui para lá.
Felipe, agricultor associado.
FIGURA 1 Relações dialógicas de produção do saber
39
Durante todo processo de construção da tese, vinha tratando da relação dialógica existente de
agricultor para agricultor como processo central de produção do saber. No dia 19\01\2008 ouvi
pela primeira vez esta expressão no Seminário sobre Metodologias de trabalho da ASPTA junto ao
Núcleo de Estudos sobre Agricultura Familiar Padre Justino Obers/DAE/UFLA com a fala de sua
assessora Adriana G. Freire. Esta expressão é apropriada para explicar com clareza o sentido de
horizontalidade de relação a que me refiro como dialética e dialógica ancorada em Paulo Freire.
Com a devida permissão da palestrista passo a adota-la. Além disto considero importante
estabelecer esta relação teórico-prática com uma ONG do porte e experiência consolidada junto a
agricultores como a ASPTA.
Famílias
Grupos
de bairro
Grupo de
Representantes
de bairro
Assembléias
Famílias
Grupos
de bairro
Grupo de
Representantes
de bairro
Assembléias
86
Ser participante dos grupos é “obrigação”; é a forma de legitimação da
participação na tomada de decisão da associação e/ou da cooperativa no que diz
respeito aos interesses coletivos e individuais, objetivados em práticas cuja
dinâmica depende de proposições feitas no interior dos grupos, desses para os
grupos de representes de bairro e também dos últimos para os primeiros. Nesse
processo, as assembléias da associação e da cooperativa são momentos
culminantes para a consolidação do processo de participação dos agricultores no
fortalecimento dessas organizações e no processo de produção do saber.
Estamos tratando, portanto, de um processo de aprendizagem organizacional
de produção do saber – que leva em conta todos os espaços representados,
anteriormente, na Figura 1.
Não basta a filiação formal, a participação é outro princípio que legitima
a identidade construída dentro dessas organizações: o agricultor “é da
associação”, “é da Coopfam”, assim se reconhecem. A participação,
inicialmente, se deu pela atuação nas CEB e pela fundação da associação; Souza
(1995) corrobora com essa afirmação. Atualmente, a participação pode ser
viabilizada pela “conversão”, a “escolha”, o cumprimento do regulamento:
deixar o uso do agrotóxico ou deixar o uso do adubo e agrotóxico; a mudança do
modo de plantar e do modo de viver. Esse modo de plantar e viver éorientado
pelos princípios que orientam o funcionamento da associação e da cooperativa.
Cada um deles foi explicado pelos agricultores e podem ser vistos abaixo:
1. Promoção da vida: preservação do meio ambiente “É
importante ter uma preocupação com a terra. Ninguém é dono da
terra, como vamos deixar a terra?” Não utilizar agrotóxico em suas
lavoura: “Chegou o caso de um produtor que veio e disse que ia usar
veneno e saiu da associação”. “Antigamente a gente via aquelas
pessoas pegar palhas de cana e tocar fogo”. ( Sr. Raimundo)
87
2. Sustentabilidade e fortalecimento da produção familiar: “Hoje
temos que aprender a viver dentro de um pedaço pequeno de terra e
tirar o sustento dela”. (Sr.Raimundo)
3. Formação e participação: para ser participante da associação é
necessário aceitar a formação preparatória participando de grupos de
bairro compostos, em média de 10 a 30 famílias, que se reúnem
mensalmente.“A pessoa tem um ano de formação, a pessoa vai
fazendo uma avaliação e o grupo também vai fazendo uma
avaliação”, . (Sr. Raimundo)
4. Troca de experiências: “Chegamos a ir duas vezes a o Paulo. No
parque das Águas Brancas”. Também recebiam e recebem muitos
visitantes: “Chegava aqui ônibus de gente, tanto a gente saía como
recebia também”. (Da. Rosa).
5. Protagonismo dos agricultores: A Associação dos Pequenos
Produtores de Poço Fundo e a Coopfam se orientam pelo princípio
de que os próprios agricultores são responsáveis por sua gestão. “O
trabalho em Poço Fundo tem mais de 20 anos, a associação tem 16
anos e a cooperativa tem 2 anos”. Não contratam gerentes “de fora”.
(Lucas)
Ser associado e cooperado é princípio de afirmação da autodenominação
desses agricultores, o “nós” é constituído dos agricultores produtores de café
orgânico e “sat”, os outros, os de fora”, usam agrotóxico, não cumprem outro
princípio fundante dessa autodenominação. É como afirma Freire (1985, p.81):
“Na verdade, não eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu
constituinte do eu constitui-se na constituição do eu constituído. Dessa forma, o
mundo constituinte da consciência torna-se mundo da consciência, um percebido
objetivo seu, ao qual se intenciona.
88
Além da autodenominação que tem por eixo central a família, o trabalho
familiar e o modo de produzir café (sat e/ou orgânico), encontramos, ainda, nas
falas (que representam relações sociais) dos agricultores, expressões
significativas para a compreensão de quem são eles em relação a si mesmos.
Eles são “os de dentro”. São os integrantes da associação e da Coopfam. Os “de
fora” o os agricultores que não se integraram. Além disso, “os dentro” podem
ser “pioneiros”. São aqueles que fundaram a associação, estão nesse processo
desde o início, quando se reconheceram como Comunidades Eclesiais de Base –
as CEBs. Ou seja: fazem essa história desde 1980, quando chegaram ao
município os primeiros agentes da CPT. Entre “os dentro”, encontram-se
também, os “novatos” são aqueles que se integraram ao processo à partir da
fundação da Coopfam em 1994.
Portanto, como acima afirmado por Freire (1985), o eu constituído é uma
relação entre a consciência do eu e do não-eu; nesse caso, os de dentro e os de
fora; os pioneiros e os novatos na participação nessas organizações.
Os “novatos” passam por um processo de admissão nestas organizações
que implica na adoção imediata do não ao agrotóxico’ como princípio básico.
Trata-se apenas de agricultor familiar e “pequeno”, como já foi explicitado nesse
estudo. O novato é, inicialmente, filiado á associação; não é, ainda, participante
da Coopfam; permanece por seis meses participando dos espaços citados na
figura 1. Nesse período, o novato” é avaliado e, simultaneamente, avalia seu
interesse em permanecer nesta organização; como bem claro vimos com a fala
de Seu Raimundo.. A lavoura de café do novato é acompanhada por seus
vizinhos, com quem aprende o manejo do café sem agrotóxico. Após o período
mínimo de 18 meses sua lavoura poderá ser considerada adequada para receber o
“selo” de certificação, condição indispensável para a exportação do café.
Quando começa a vender seu café via Coopfam, o novato é totalmente
integrado, passa a ser um associado e cooperado. Nesse processo, podemos
89
reconhecer um cuidadoso trabalho de formação e de aprendizagem do saber.
A percepção do eu se amplia na percepção do outro, como afirmado por
Freire (1985). Os “de fora” podem ser da família, são o pai o dono da terra
irmãos, primos e outros parentes que compartilham a terra. Os de fora podem ser
também vizinhos amigos ou o vizinhos em conflito. Mas, há vizinhos
amigos ou em conflito entre os “de dentro”, na disputa de poder entre os que
viveram toda a história de aproximadamente 20 anos de trabalho em
comunidades de base, os pioneiros; os que fundaram e consolidaram a
associação. conflitos entre os “pioneiros” e os “novatos”, que “os que
chegaram agora”. Muitos deles participam da associação e da cooperativa em
um acordo tácito mútuo, em que é preciso aumentar o número de participantes
nestas organizações para fortalecê-las e para atingirem uma quantidade de café
exportado cada vez maior.
Nas situações de conflito interno, as discordâncias são toleradas,
produzindo apenas tensão. A depender do nível de tensão (demanda de um
grupo maior ou um problema sério colocado por um agricultor associado), as
discordâncias são discutidas e resolvidas de maneira democrática nas reuniões
dos grupos locais, e, se necessário, nas reuniões de representantes de bairro ou,
em última instância, na assembléia geral.
Na associação e na cooperativa, a entrada de novos sócios e saída de
sócios mais recentes vai deixando claro a diferença entre aqueles que viveram a
história, os pioneiros” e os “novatos” ou os que “agora vêm para usufruir”,
eles ponderam.. O significado da participação na história que consolidou a
associação e a cooperativa constitui um vínculo estreito com a manutenção da
organização delas. Os “pioneiros’ não são, apenas, fundadores, são também
memória viva desta história. Alguns “novatos” tendem a se orientar por posições
fundadas em valores econômicos, o melhor preço do café e as vantagens de
participação na cooperativa são referências mais fortes do que a “filosofia” de
90
“vida saudável”, de preservação ambiental ou a crença de participarem de um
“mercado justo”, o mercado “fair trade”, no qual são certificados. Mas essa
posição não é restrita aos novatos, pioneiros que também adotam essa
posição, ou seja: não é apenas a história de participação que determina a posição
situada por cada um deles. A entrada dos novos participantes significa o
crescimento e o fortalecimento da associação e da cooperativa e, ainda, uma
exigência de ampliação do trabalho de “formação” para que os “novatos”.
Duas notas de observação da pesquisa de campo trazem situações
importantes discutidas no interior dessas organizações. Vejamos a primeira:
04/05/07
Reunião do primeiro domingo
Reunião dos representantes de grupos de bairro.
A conversa foi iniciada com o tema do aquecimento global e a
posição da Igreja a respeito desse tema. Foi lembrada a diferença da
posição da Igreja Carismática e a Igreja que fez a opção preferencial
pelos pobres, a igreja que proclama o evangelho e a igreja que se
compromete com a vida. A afirmação do coordenador convoca a
todos para uma conversão que não pode ser apenas intelectual,
mas tem que ser na vida”. Esteve presente um representante da
Cemig/Furnas que veio apresentar propostas governamentais
vinculadas ao programa do governo federal denominado “Luz para
Todos”. Um dos agricultores apresentou como demanda o seguinte:
“Nossa causa, nossa essência é a questão ambiental, temos uma
carência muito grande para construção de fossa séptica. É
importante cuidar de nossa propriedade para evitar a
contaminação dos rios, o que vai além, pode chegar até Furnas”.
E outro agricultor continua: A preservação das nascentes está
sendo feita. Já estamos afastando o gado dali, afastando o
plantio, deixando a mata crescer”. Esses argumentos não alteraram
a proposta do funcionário do governo que vinha propor projetos
91
coletivos de atividades como esfriamento de leite ou beneficiamento
de café; esse último foi aceito como possibilidade de elaboração de
um projeto para solicitar o recurso.
Outros assuntos tratados: a exportação do café safra 2006/2007
ainda não poderá ser feita em Poço Fundo porque a construção
do galpão não foi concluída. As dificuldades de encontrar outra
empresa de rebenefício em Varginha e o fato da informação ter
“vazado” da Coopfam para Varginha. Os dirigentes da cooperativa
chamaram os agricultores para o compromisso de não discutir temas
como exportação do café com pessoas de fora da cooperativa, por se
tratar de um assunto que exige sigilo, visto que os concorrentes
podem prejudicá-los. Estão negociando com outra empresa
exportadora que também deve ser credenciada.
Mais uma vez, os agricultores foram chamados “ao sacrifício
para chegar à autonomia”, nesse momento, as dificuldades dizem
respeito ao café que ainda não foi vendido por causa da queda do
dólar. Um dos agricultores propôs que a próxima venda seja feita de
maneira proporcional: Se o café está todo estocado eu acho que
porque vender 250 sacos de um e só 10 sacos de outro que só tem 20
sacos de produção?”. Devemos priorizar os que têm menor
produção, estamos pecando em cima disso”. Propõe: “ vende 100 de
quem tem 200 e 5x20 de quem tem pouquinho. Entramos na
associação para ajudar a quem mais precisa”. O presidente da
cooperativa explica que o problema não é de prioridade, na verdade
os donos do café decidem quando querem vender, junta-se a isto
as demandas dos compradores e a necessidade de completar um
contêiner.
Fonte: pesquisa de campo
A segunda nota registrada em uma reunião de grupo de bairro também
apresenta a mesma prática de debate de temas gerais e pessoais relativos ao
modo de viver e plantar os princípios das organizações. É o que podemos
verificar na situação abaixo, destacada do caderno de campo:
92
07/02/07
Reunião do Grupo de Dourado dos Lopes
As reuniões ocorrem, nos bairros, usualmente de noite, em um local
de uso comunitário (igreja, salão, sala) ou em uma residência. Nesse
caso ocorreu na Igreja da comunidade, que foi construída com
recursos financeiros e trabalho dos agricultores moradores no bairro.
Foi construída “tijolo por tijolo” [literalmente, porque eles fizeram os
tijolos], explica Pedro, o coordenador do grupo local. Um local pode
agregar mais de um bairro devido à proximidade e a necessidade de
composição do grupo, visto que bairro que possui um número
reduzido de participantes na Coopfam
Esta reunião contou com a presença do presidente da associação e
após os repasses da reunião do primeiro domingo, foi apresentado e
discutido um vídeo para fortalecimento da organização. Estiveram
presentes uma mulher e dez homens, dentre eles quatro jovens.
Foram comunicados os seguintes resultados e encaminhamentos:
A necessidade de se realizar uma pesquisa sobre a produtividade
do café orgânico que se encontra em discussão e para qual se
necessário definirem 15 propriedades de café orgânico. Sobre os
recursos financeiros, uma sugestão de se pedir patrocínio de
empresas que vendem insumos.
O problema da desistência de alguns produtores de café orgânico
que estão retornando para a produção de café “sat”: “ várias
lavouras estão sendo abandonadas de orgânico porque na hora de
comprar adubo químico, o sujeito tem dinheiro, mas não cuida do
orgânico”.
“O dólar caiu demais e a cooperativa teve que adiantar mais ou
menos 70.000 para os produtores, a cooperativa está ficando quase
sem dinheiro’.
Passar para orgânico não é largar mão da lavoura”.
93
O IBD e a Ecocerty “é o que mais vende produto orgânico”. “Tudo
que a gente vai comprar a gente liga para a BCS [certificadora], a
gente liga para o [ refere-se ao representante da FLO] que analisa e
libera o uso do produto.”
Comunicado sobre a participação da associação na feira de
produtos orgânicos na Alemanha; o presidente da associação foi
representá-los, afirmou que “35% do café e outros produtos
[consumidos] na Europa já são orgânicos”.
“Se continuar o tempo como está em 2007/2008, a carga do café vai
dar colheita muito grande”.
Fonte: pesquisa de campo
A vida comprometida com um outro modo de plantar e comercializar o
café é permanentemente confrontada com a necessidade de fazer escolhas.
Escolhas que são construídas e reconstruídas no cotidiano. Trata-se de uma
escolha nascida do reconhecimento, enfrentamento e superação de situações-
limite, prática geradora da aproximação com novas práticas e novas posições. A
fala de Matheus é reveladora desse processo:
Escolhi pela filosofia de vida mesmo, desde muito jovem mesmo, desde
15 anos eu me identifiquei com esse grupo que fundamos a Coopfam,
que a gente ia trabalhar com transparência, com compromisso social
que nosso produto não nos prejudicasse e não prejudicasse aquele que
consumisse. Então na realidade foi isso e a gente ter esse olhar do
ecossistema, do planeta, da terra, da pureza, do alimento puro. Então
esse é o princípio, na realidade a opção orgânica não é uma opção
econômica, é uma opção de vida, de filosofia de vida.
Entretanto, um misto de “compromisso social” e “filosofia de vida”
aparece vinculado ao valor econômico do produto. A “questão financeira”
também pode ser considerada um elemento importante na origem da escolha e
conversão para a produção sem agrotóxico, como podemos verificar quando
Thiago explica o porquê de sua escolha: “pela humanidade, para preservar o
94
meio ambiente e porque o produto orgânico tem preço diferenciado hoje no
mercado, na questão financeira, tem um preço mais acessível no mercado hoje”.
Para os “primeiros”, foi uma opção por um “projeto de vida”; para os
“novatos”, pode ser e pode não ser um projeto de vida, pode significar uma
busca de melhoria de suas condições econômicas, favorecendo-se de uma
organização de base sólida que vem dos primeiros, os agricultores pioneiros que
construíram e estão construindo um projeto coletivo de vida. A mudança ou
“conversão”, como no “princípio”, está imbuída da ética religiosa, da Igreja
Católica; segundo eles, 90% das pessoas participantes da Coopfam são católicos,
vieram das primeiras comunidades.
Esse projeto ainda está em construção é “um aprendizado eterno”, está se
“fazendo e aprendendo”; como projeto inacabado, vai se fazendo enquanto os
sujeitos também se fazem, pode-se afirmar, segundo, em Paulo Freire. Ser
agricultor orgânico o tem um “modelo”, “um método fechado, formulado,
concreto, não existe receita pronta, a receita é aberta”. “Existe maneira, técnicas,
mas sempre abertas para se fazer experiências”, explica Matheus. Novas
mudanças, experimentações abrem-se a esses sujeitos aprendizes de um modo de
ser agricultores e produtores de café. Matheus, como Pedro, Lucas, Tomé e
Paulo, situando apenas alguns, são “pioneiros”. Os primeiros tiveram maior
dificuldade: faltava informação, pesquisas em universidades, insumos orgânicos,
recursos financeiros para agricultores que lutavam contra uma vida fundada na
subsistência ou na exploração no mercado local, onde faltava “preço justo”.
Os primeiros começaram “com a cara e a coragem”, enfrentando todas as
dificuldades, mas, animados pela coragem de construírem um “projeto de vida”.
Nesse projeto, optaram por “cuidar da natureza”, a ser deixada para filhos e
netos, deixada para o futuro. A natureza, mesmo sendo de Deus”, deve ser
cuidada pelos homens e mulheres, invertendo o princípio do uso para “acabar”
ou a exploração da terra até seu esgotamento, assumindo o compromisso do “uso
95
para preservar”. Essa mudança exigiu de muitos uma verdadeira “conversão”,
porque como diz o Sr. Filipe: “eu plantei usando veneno”. Essa conversão exige
uma tomada de decisão: “é resolver hoje eu não vou mais jogar veneno e
pronto”. Para outros, a conversão implicou deixar de usar adubo químico e
adotar o manejo orgânico. É indispensável sair do “veneno”, inclusive a
sociedade precisa “despertar” para implicações como intoxicação humana e
contaminação do planeta. O processo de transição até a conversão de
agricultores a produtores de café sat e/ou orgânico é uma situação importante
para nossa análise do processo de produção do saber.
Tadeu, um dos novatos, tem quatro anos de participação, está em
“transição” ou “conversão” do café sem veneno para orgânico. Está enfrentado
muitas dificuldades, o café “sentiu muito”, diz ele. A mudança, nos primeiros
anos queda de produção, baixa de produtividade, “é necessário persistência”,
afirma outro agricultor. Os primeiros tiveram muitas dificuldades, porém, a
maior delas decorreu da falta de acesso ao conhecimento. Os agricultores que
fazem a “opção” hoje, por um lado, já podem contar com o conhecimento
acumulado e compartilhado pelos companheiros; por outro lado, lidam com os
limites de acompanhamento desses mesmos companheiros, porque a Coopfam
“cresceu” muito, pondera Lucas.
No contexto local, esses sujeitos se autodenominam internamente a partir
de suas práticas de produção do café contrapondo-se aos agricultores que não
são associados da Coopfam. Valores, práticas e projetos de sociedade são
definidoras de diferenças e semelhanças que os afastam e aproximam no
relacionamento cotidiano: são amigos, vivem conflitos, mas se respeitam,
fortalecem-se mutuamente. um princípio que separa “os de dentro” e os “de
fora”, os cooperados e não-cooperados, como já vimos.
Na descrição dos “outros”, os que estão fora da cooperativa sinalizam a
existência de um conflito maior entre os produtores orgânicos e sat e os
96
convencionais comuns, estão em lugares opostos. Conflitos menores podem
ocorrer entre agricultores orgânicos e sat mas estão no mesmo lugar, ambos
participam da cooperativa. Entre eles, a amizade e a vizinhança podem favorecer
o diálogo e a solução amigável do conflito ou a tolerância com o conflito. Os do
lado de podem ser vistos pelos “de fora” como “loucos”, “trabalho que não
leva a lugar nenhum”, ou bem-sucedidos, porém, “radicais”, que não acolhem os
agricultores pequenos, familiares, porque não abrem mão do princípio de não
uso do agrotóxico. Os “de fora” estão do “outro lado”; são vistos como fechados
porque não se abrem a uma outra filosofia de vida, são “egocêntricos”, “pensam
no econômico”, afirma Matheus. Thiago descreve os três tipos de agricultores:
São grupos muito diferentes. Têm interesse comum, no caso deles
quererem vender café junto com nós, com o grupo da associação. No
caso do café orgânico, é um grupo que preserva o ambiente,
trabalha junto, já faz mutirão, tem uma caminhada de 20 anos, é
um grupo lido. No caso do café convencional, fair trade, o grupo
surgiu após, por causa do orgânico, tinha gente que era “cobra”, cobra
entre aspas, trabalhando com parceria, em terra de outra pessoa. E
aquela pessoa que era dona da terra não aceitava esse método, ele era
uma pessoa, pequeno produtor, e trabalhava na terra do vizinho. Numa
comparação, ele não poderia vender o café, foi indo, foi indo consegui o
mercado “sat” fair trade não você não usa agrotóxico e aí você vai
entrar pro nosso grupo. surgiu, 4, 5 anos atrás, o fair trade. No
caso de café que o pessoal usa agrotóxico, tem uma ação assim de
pessoa para pessoa de amizade, de negócio para negócio inimigo.
Porque a pessoa que está com o café com agrotóxico ele que vende
[venderia] o café, mais bem colocado, com mais valor agregado ao
produto, mas não querem abrir mão daquele produto. Ou pra eles
entrar nesse mercado, eles teriam que abandonar o agrotóxico, fazer
parte da associação, trabalhar junto com o grupo, eles não aceitam
isso. Falam que o café produz menos, que a lavoura não vai dar mais,
porque eles pensam na quantidade de saco na máquina e não na
qualidade do café. E o comprador de café que vem comprar o café da
associação ele pergunta primeiro a qualidade do café e não a
quantidade. É por isso que tem essa diferença.
97
As relações de vizinhança mantêm os vínculos entre os integrantes e não
integrantes da associação e da cooperativa, as diferenças podem ser contornadas
e evitam o isolamento dos agricultores da Coopfam no contexto do município.
Porém, para alguns, a convivência não é tão amigável, “é uma guerra”. Situações
concretas de enfrentamento entre agricultores “de dentro” e os “de fora” foram
citadas. Pedro relata:
Olha a gente convive, mas ainda é uma guerra porque o pessoal que
trabalha com agrotóxico tenta provocar um desafio o tempo inteiro
com os abusos do agrotóxico. Dizendo que esse trabalho sem
agrotóxico, orgânico, não em nada, mas eles quer embarcar em um
comércio seguro, mas não quer ter em um trabalho seguro, então esse
ainda continua sendo um desafio muito grande: hoje chegou o
comércio a gente tem dificuldade de identificar porque tem pessoa que a
gente passa a conhecer depois que chega o dinheiro, ela enganava a
gente o tempo inteiro; começa a pensar em si próprio, pensa
em ganhar [...].
Os “companheiros” produtores orgânicos e sat juntam-se no interesse
comum de participação no “comércio seguro”, mas a diferença entre ambos
também é grande. Os princípios e práticas que os aproximam são participação
na cooperativa e associação, o não-uso do agrotóxico e produção sustentada com
base na agricultura familiar. O uso de adubo solúvel, que também compromete a
terra e a qualidade do produto, é uma contradição consentida. Consentida porque
fortalece a organização pelo aumento do número de produtores integrados ao
mercado justo e por flexibilizar a posição dos produtores orgânicos. Poucos são
os tipos “puros”, que produzem apenas café orgânico. Nesta situação, o café de
tipo sat é o recuo e a margem de manobra ou a estratégia de sobrevivência para
muitos. É também um lugar, um tempo de espera para deixar e voltar a ser
orgânico dependendo de situações familiares particulares que impediram o
investimento em dinheiro ou em trabalho na exigente produção orgânica. A
98
saída para o café “sat” é um recurso necessário para aqueles que não atingiram a
estabilidade da “terra produzida’ a terra de produção orgânica com fertilidade
mais estabilizada, como já foi dito.
Lucas conta sua experiência dos relacionamentos entre produtores,
modos de produzir, custo de produção, valor de mercado e valor do projeto de
vida: gosto pelo cuidado que recupera a terra, a qualidade do produto; o presente
e futuro movem o trabalho e a esperança:
Essa é uma relação boa [relação entre cooperados orgânicos e sat],
uma relação tranqüila, a única diferença que existe é que os que usam
café “sat”, vêem que trabalhando com adubo químico, eles acham que
podem ter uma produção bem maior. Por isto, eles não estão dispostos
a enfrentar o manejo orgânico e os produtores orgânico, embora
achando que talvez não tenha uma produção tão grande, muitos têm
uma produção baixa mesmo, mas gostam daquilo que fazem, tem uma
qualidade muito boa e vêem futuro nisto, já que é um mercado bastante
garantido e tem muita possibilidade de aumento de preço, de
valorização, de agregar valor a esse produto. Então, muita
possibilidade com relação a isso. Então o pessoal está esperançoso.
A diferença de custo de produção e preço do produto são pesos
colocados na balança que define a diferença entre esses sujeitos e os “outros”: os
produtores de café convencional comum; Tomé continua:
Café convencional [comum], as pesquisas que eu vi mostram o custo em
torno de 218 e 230 reais por saco [em 2007]. O café sat não muita
diferença porque um aumento que vai ter nele é que não vai passar
herbicida. Então vai ter um custo de mão-de-obra, então vai mais uns
5% a 8% em cima disto, o que varia então para 240 reais por saca. Já o
orgânico, tem um custo bem maior porque, além disto, a adubação
orgânica está ficando bem mais cara, ele chega a ficar em 50% em
média para quem ainda tem um solo meio desequilibrado. A grande
vantagem que a gente nesse trabalho é que o solo pega uma
estabilidade e de uma certa época em diante, eu, por exemplo, atingi
esse pique esse ano. Quando a gente vai olhar uma análise de solo, a
99
gente não precisa por quase nada, porque a terra recuperou.
Não uma “guerra”, como o desrespeito” pela opção, pela escolha,
expressam conflito entre os produtores orgânicos e os convencionais comuns.
Trata-se de um conflito marcado por grande diferença com relação à percepção
sobre o comprometimento e risco entre um “sistema falível” e uma “opção
viável favorável à vida”. O argumento de Tomé é contundente:
Na verdade existe um desentendimento entre os produtores de café
orgânico e os produtores de café convencional. Eu sou produtor de
café orgânico porque fiz uma opção espontânea para estar nesse
trabalho de produção orgânica. Mas quem não quer produzir café
orgânico não tem problema, vai produzir o café que quer produzir o
sat (sem agrotóxico) ou com agrotóxico. Agora o que a gente tem
percebido por parte dos produtores com o agrotóxico é o que eu chamo
de desrespeito, né. O sistema de convencional é um sistema falível, né?.
Nesse caso eu argumento, defendo e contesto porque que eu saiba, pelos
conhecimentos que eu aprendi com os antepassados, a natureza nos
ensina, que não existe na necessidade nutricional de uma planta, eu
nunca vi que uma planta precisasse de algum tipo de veneno para que
ela pudesse produzir. Eu nunca vi isso. O que eu vejo é que ela precisa
de algum tipo de equilíbrio, de condições de solo fértil e de condições
favoráveis de clima: chuva, sol na medida exata. Mas, agrotóxico eu
nunca vi nenhum cientista que descrevesse a necessidade básica de uma
planta, colocar agrotóxico como uma coisa indispensável para a
sobrevivência de uma planta.
Por outro lado, essa diversidade também é sempre boa, né? Se você es
em um sistema de produção no caso o agrotóxico- e você [refere-se
ao agricultor “convencional comum”] se intoxica, existe então a
possibilidade de você mudar para um sistema que não oferece
nenhuma situação de risco, né? Então, ela é uma opção também para
muitos produtores que estão nela fugindo de fato de uma situação de
intoxicação e de doença que a pessoa chegou a comprometer alguns
órgãos, né. Então nós somos essa opção viável e favorável à vida.
[...]Pelo contrário, ele[ o “de fora”] que tem que gastar energia e
conhecer como é que a gente faz para estar dentro de um projeto de
produção que além de você ter um retorno financeiro, ainda assegura
100
qualidade de vida e saúde para você e para quem consome seu produto.
[...] hoje, no mundo inteiro, cresce a exigência dos consumidores em
estar consumindo produtos ecologicamente corretos, ambientalmente
corretos.
O processo de conscientização e participação, para Dona Emília, tem
mais de 15 anos, para os “pioneiros”, que começaram no início da década de 80,
comemoram mais de 20 anos de “luta”. A persistência e a luta estão em
permanente relação com a sobrevivência, queixas consideráveis sobre o
mercado, tanto no que diz respeito ao preço pago pelo café, como ao custo de
produção. No ano agrícola de 2006/7, o preço dos insumos para a produção
orgânica foi considerado muito alto. Para Thiago “[...], quase inviável, R$420,00
a tonelada de torta de mamona é muito dinheiro. Sendo que o outro [o adubo 20-
05-20] você compra por R$290,00”. Assim, alguns agricultores orgânicos
acabam retornando para a produção convencional, sat fair trade. Ele explica
tudo isso analisando a mudança no mercado de insumos, a concorrência entre
muitas empresas vendedoras de produtos “tem vidro de remédio de todo jeito
no mercado” nesse caso, a concorrência não reduziu o preço dos insumos
orgânicos.
Podemos nos referir a um enfrentamento desigual entre agricultores e
grandes produtores apoiados por uma política pública que os favorece na
produção do combustível. Assim sendo, o agricultor analisa o aumento do preço
da mamona essencial para a produção da “torta” que se transforma em adubo
orgânico e também para a produção do combustível. No enfrentamento desigual,
perdem os agricultores. Entre ganhos e perdas, a “conversão” para a produção
orgânica o é definitiva, não se sustenta apenas em valores éticos, morais,
sociais, filosóficos ou políticos. É sempre mediada pela sobrevivência e essa
depende do valor econômico; assim, o projeto de sociedade é conformado pelo
projeto de vida individual e familiar. “Nem de pão vive o homem”, o
101
princípio bíblico, que questiona valores materiais e orienta a vida para valores
simbólicos, também pode ser relacionado com o princípio econômico, como
valor na manutenção da vida.
Podemos considerar que uma presença forte como amálgama da
organização da associação e da cooperativa é a religião e, dela, as Comunidades
Eclesiais de Base, que são importantes no nascimento da organização dos
agricultores. As CEBs, contando com a presença de agentes da CPT, foram
espaços fundamentais de discussão da situação vivida pelos agricultores. Sob a
orientação da prática do ver-julgar e agir, os envolvidos vão conhecendo melhor
sua realidade, seus problemas e potenciais de superação. Hoje, os agricultores
são independentes da CPT, porém, trazem as noções e valores da religião grande
força de grande poder e de valores simbólicos, como: terra dom de Deus somos
filhos de Deus, comunidade, fraternidade, partilha, abundância, justiça, luta,
dignidade e a vida como valor central, são alguns dentre muitos dos valores
simbólicos compartilhados por aqueles que expressam sua em Deus e
vinculam-se à Igreja Católica, nesse caso. Esses valores ancoram as relações
sociais, práticas cotidianas e projetos de vida e sociedade justa. No processo de
produção do saber, destacamos a importância da CPT e das CEBs, como se
verifica a seguir:
Fonte: pesquisa de campo.
Usualmente, os agricultores invocam o nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo e rezam, como irmãos, a oração do Pai-Nosso na abertura das
reuniões de grupos de representantes e das assembléias das organizações que
agregam os produtores, a associação e a cooperativa. A Igreja Católica,
Agricultor
CPT
CEB
Agricultor
102
catalizadora da fé e legitimação das comunidades com bases eclesiais, apresenta-
se na oração, no discurso e nas práticas que reafirmam valores cristãos. A
fidelidade, fraternidade, o resgate da travessia da terra de escravidão para a terra
de libertação são aclamados e ouvidos como bálsamo para curar conflitos, inveja
e desencontros provocados pelo “inimigo”, personificado nos insatisfeitos que
“só pensam em dinheiro” e saíram da cooperativa ou naqueles que sempre
estiveram fora da cooperativa porque não aceitam cumprir o princípio: o não-uso
de agrotóxico e ainda alimentam críticas “de fora” .
A assembléia geral da cooperativa é um amplo espaço rico de debate,
construção de posições coletivas e espaço onde se tecem relações de poder no
qual os sujeitos, protagonistas, explicitam problemas e proposições de solução.
O contexto local, nacional e internacional que interfere em suas vidas é o tecido
que pauta suas discussões. O esforço de exercício da democracia é evidente. O
espírito da religião é manifesto: são irmãos que lutam juntos. A assembléia
chega a durar de 5 a 6 horas de reunião. Voz e vez são dadas a todos e todas
(inclusive aos convidados). O voto é estatutário, somente os cooperados
(homens) têm direito ao voto. As mulheres ainda não votam, mas é uma
demanda delas, sua posição ainda é representada pelo marido. Um recorte da
observação registrada no caderno de campo pode nos situar:
18/03/2007
Assembléia Geral da Coopfam
A assembléia, como todas as reuniões, se inicia em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, de rezam a oração do
Pai Nosso.
Estiveram presentes 116 pessoas, 86 assinaram a ata. Data
show e lap top foram usados para registrar as propostas
discutidas e deliberadas.
103
O coordenador faz a abertura chamando à união, à luta, à
força. O clima de tensão está fundado na dificuldade de
venda do café, queda do preço do lar e insatisfação
daqueles que ainda não venderam seu café. Argumentos
são colocados para discussão. “As organizações em algum
momento m um esfriamento, isso é normal especialmente
quando a questão financeira nos atinge: porque alguns
demoram a vender o café? Porque os preços não
correspondem? O que devemos fazer nessa situação? A
nossa cooperativa tem um lugar de destaque no Brasil e no
mundo”. O mundo que espera a gente lá fora é um mundo
cruel e por isso s devemos nos organizar”. A fala
continua resgatando o princípio: “pilares que nos sustentam:
trabalhar a nossa produção em função da qualidade de
vida”. A prestação de contas foi apresentada e votada sua
aprovação. Em ato simultâneo foi afirmado: O processo
democrático é isso, nós temos que respeitar as diferenças.
A pessoa que discorda não sediscriminada”. A história foi
recontada: “A associação nasceu primeiro, todo processo é
assim a gente vai crescendo e avançando. Como a
associação não tem como princípio a comercialização, então a
gente teve que criar a cooperativa”. Em 1997, a Organização
Max Havelaar, certificou o café fair trade, em 2001 foram
realizadas “as primeiras vendas de café fair trade, cada
lote ia em nome do produtor. Em 2004 com a criação da
cooperativa, as notas dos produtores m para a
Coopfam, a partir daqui a cooperativa emite uma nota ,
encurtou o caminho dos papéis. O certificado do orgânico é
em nome da Coopfam e do fair trade em nome da associação,
mas nós é o mesmo grupo, por isso a proposta de criação de
um selo só. A associação tem que pagar pelo certificado,
104
sendo que ela não tem receita”. A proposta de unificação do
selo foi aceita por unanimidade. A assembléia prosseguiu
discutindo os pontos da pauta. Nestas discussões as propostas
apresentadas eram registradas em lap top e projetadas
por.meio de data show.Iam sendo escritas, discutidas,
corrigidas e confirmadas após votação.
Fonte: pesquisa de campo
Francisco, ex-padre participante da CEB; que originou o trabalho de
organização dos agricultores em Poço Fundo, esteve nesta assembléia como
convidado para resgatar a história e apresentar um pedido de solidariedade dos
agricultores de Poço Fundo aos agricultores da região. Assim, passamos a
transcrever excertos de sua fala:
É com muita alegria que a gente participa dessa assembléia aqui. Nosso
coração está unido nesta maravilha de causa. Peço licença para falar
de duas idéias. Uma é com relação a vocês, 20 anos vocês estavam
governando mal a sua casa. Por quê? Vocês entregavam para os
outros o seu suor e seu sangue [referindo-se a venda dos produtos a
intermediários].
Vou me juntar porque ele é meu irmão de luta e de fé e quero aprender
a governar bem a minha casa. E vocês deixaram de ser aqueles que
produziam isolados. Hoje, vocês têm um poder maravilhoso. Hoje,
vocês podem se lembrar “um dia eles passaram fome e Deus mandou
o maná”. Hoje vocês vão comer dos frutos da terra e de seu trabalho.
Isso é a coisa maravilhosa que a cooperativa está fazendo. Vocês
abriram as porteiras. O pessoal de Poço Fundo falando de marketing e
propaganda. Quem deu visibilidade a vocês? Foi a prefeitura? Não.
Foram vocês, que acreditaram em um sonho, em uma libertação. Todo
ano, há 3200 anos eles [os judeus] param para comemorar a libertação
da escuridão. Por que fazem isto todo ano? Porque senão os novos vão
esquecer o que foi feito e vão se matar. Muita gente nessa associação,
gente de fora e gente de dentro deu sua vida aqui é preciso todo ano
fazer a memória para não esquecer [...].
105
Agora, vocês estão se metendo na Alemanha, na Holanda, mas não
podem negar o espírito de onde ela [a associação] nasceu. Não só de
pão vive o homem”, não só de exportar café [...].
Estou aqui como embaixador do SAPUCAÍ , que uma vez abriu uma
janela para vocês e agora vocês têm um pátio enorme e esse prédio
grande. Mas, tem muita gente em outras regiões que ainda não viram a
janela. Quem vai ajudar? Se a cooperativa achar que está na hora da
SAPUCAÍ fechar... mas eu vim pedir ao comitê gestor para que a
SAPUCAÍ receba algum apoio. O projeto ATER, grande parte dele foi
aplicado aqui. Tem produtor aqui que aprendeu a usar o GPS [Global
Positioning Syystem ou Sistema de Posicionamento Global] com esse
recurso [deste projeto].
É interessante analisar a virada de posição: a ONG, Centro de Assessoria
Sapucaí, apoiadora desde o início do processo, hoje com dificuldade de
renovação de seus projetos de manutenção e pagamento de pessoal (via
organismos internacionais ou governamentais), considera a possibilidade de ser
apoiada pela organização que deu apoio e que hoje se tornou mais forte que sua
apoiadora. Essa seria uma indicação para outros estudos.
As duas inspetoras da FLO vieram de São Paulo para participaram dessa
assembléia. Fizeram uma entrevista coletiva
40
com representantes dos grupos de
bairro e permaneceram em Poço Fundo, para a inspeção nas lavouras. Sua
presença é claramente fiscalizadora. Elas vieram para fazer a inspeção que
assegura a manutenção da qualidade do produto exigido para a certificação fair
trade. A certificadora, mesmo que exercendo um poder de controle rígido,
contribui com o processo de produção do saber dos agricultores. Trata-se de uma
relação de poder de dupla mão e os agricultores também estão conscientes dos
limites e possibilidades de barganha com a certificadora, e aprendem com esse
exercício de poder. Em notas do caderno de camp, podemos situar a clara
40
A pesquisadora negociou sua participação nesta entrevista coletiva, inicialmente com a diretoria
da COOPFAM e, posteriormente, com as inspetoras da FLO.
106
posição de controle das duas inspetora da FLO ao tratarem de checar as práticas
e propósitos dos agricultores, quando, após a assembléia, convocaram uma
entrevista coletiva com agricultores representantes dos grupos de bairro.
Vejamos a seguir excerto do caderno de campo que testemunham essa ação
controladora da certificadora FLO:
Entrevista coletiva
18/03/2007
Inspetora da FLO: Venho acompanhando vocês como
associação e agora como cooperativa. Estamos verificando
se a cooperativa está funcionando como deve funcionar e
também como cada cooperado está trabalhando na
propriedade. Ver como está sendo acompanhado a
rastreabilidade do produto porque esse produto está sendo
vendido exatamente porque é produto da agricultura
familiar. Gostaria de estar conversando com um grupo
menor, de pessoas que nunca falaram comigo. Quero abrir
espaço para perguntas sobre comércio justo e certificação.
Agricultor perguntou sobre o preço do café. Ela respondeu
[aproximadamente assim]: Existe no comércio justo um preço
mínimo e quando o preço do mercado é maior o que deve ser
aplicado é o preço do mercado.
Agricultor: Tem possibilidade da FLO certificar grandes
produtores de café?
Resposta: Essa é uma discussão dentro da FLO,
originalmente a FLO certificava o pequeno produtor.
dois anos, a FLO se abriu para a certificação de fazenda,
por causa da situação do trabalhador ia-fria nas fazendas
[fazenda que cumprem obrigações trabalhistas] e o pequeno
produtor não estava suprindo o mercado. O acordo da FLO
107
com a articulação nacional dos agricultores fair trade era
garantir uma moratória de 2 anos e não certificar fazenda. Por
enquanto a FLO vem cumprindo o acordo.
Agricultor: tem muitos produtos proibidos no mercado da
Europa e, no Brasil ,esses ainda estão sendo permitidos pela
FLO...
Resposta: No Brasil, a periodicidade da lista de produtos é
maior. A gente trabalha na perspectiva que temos preferência.
Agricultor: Em que base se dá o preço mínimo da FLO?
Resposta: É feita com base no estudo do custo de produção e
abarca um grande número de países e realidades muito
diferentes. São feitos estudos de custo e coloca-se uma
margem de segurança.
Fonte: pesquisa de campo
O mercado é um personagem presente nesse contexto, trazendo discurso
e práticas de solidariedade e justiça; porém,a diferença do mercado justo dentro
do mercado globalizado pode ser subsumida. influências desse último, que é
maior que o primeiro, e se sobrepõe. Além disso, as oscilações dos preços dos
produtos estão determinadas pelas oscilações do valor do dólar. Os agricultores
reconhecem confronto com “escolhas” que são feitas não em condições
determinadas pelos agricultores ou pelo mercado justo, mas são determinantes
externas enfrentadas no mercado globalizado. Assim, os agricultores são ora
vencedores, ora vencidos. Verificam-se conflito e ambigüidade que
movimentam a flexibilidade da “opção”, movimentando a escolha no que diz
respeito a ser agricultor produtor de café orgânico ou convencional, sem
agrotóxico. As certificadoras são mediadoras entre o mercado e o produtor; sua
presença ali tem influência marcante.
Encontros e congressos nacionais são espaços de debate de problemas
108
enfrentados com a certificação, o mercado e as lutas por políticas públicas
adequadas às suas demandas e projeto de sociedade. Nessa perspectiva,
participam, por exemplo, da Articulação Nacional dos Agricultores
Agroecológicos. Tais experiências vão dando consistência ao processo da
produção do saber aprendido pelos agricultores. Na figura 2 verifica-se a
relação dialógica e horizontal ou a relação de agricultor para agricultor central
nesse processo, em conecção com as experiências de participação nas atividades
referidas.
FIGURA 2. Processo de produção do saber: participação pela representação.
Fonte: pesquisa de campo.
Um quadro sintetizador expressa as diferenças e aproximações possíveis
entre os agricultores camponeses, convencional “comum”/moderno,
convencional sat e agricultor orgânico.
Agricultor
Representação
eleita
visitas técnicas
encontros
congressos
viagens internacionais
Agricultor
109
QUADRO 1. Caracterização sintética dos agricultores associados.
Tipologia
agricultor
Visão de
natureza
Uso de
insumos
Princípios das
Relações
Projeto de
Vida
Tipo de
produção
Destino da
produção
Expressão do
mercado
Relação com
políticas
públicas
Tipo de saber Ambiente
Camponês Cosmovisão
Natureza
correta e
Ensina (pela
observação)
Terra dádiva
Não uso de
Agrotóxico
Não adubo
químico.
Uso de
adubo
orgânico
natural
Reciprocidade,
Natureza
Família
Comunidade
Sobrevivência
da família
Diversificada “só para o
gasto”
Consumo da
família
Mínima
Autoconsumo
Mínima:
emergência
médica,
Escola
básica.
Senso
Comum
Conserva-
ção
Saúde
Convencional
“comum”
Visão
parcelar
Natureza
errada,
precisa ser
corrigida
Terra:
substrato
Terra morta
Uso de
Agrotóxico
Uso de
adubo
químico
Ação
unilateral do
homem sobre
a Natureza
Lucro
Aumento do
nível de
consumo
Especializada
Monocultura
Máxima
produção e
produtividade
Lucro,
nacional,
globalizado
Crédito
agropecuário
Conhecimento
Científico
Exploração
Degradação,
Doença.
Convencional
Sat
Visão
bipolar
A natureza
está
parcialmente
correta
Terra dádiva
e substrato
Não uso de
agrotóxico
Uso de
adubo
químico
Ação
parcialmente
unilateral do
homem sobre
a
Natureza
Retorno
financeiro e
lucro
Sociedade
justa e
“saudável
Tendência à
monocultura
Máxima
produção e
produtividade
Internacional,
Fair trade,
Globalizado
Crédito para
Agricultura
familiar
Políticas
públicas
Conhecimento
Científico e
Senso comum
Preservação
parcial
Continua...
110
QUADRO 1. COntinuação.
Tipologia
agricultor
Visão de
natureza
Uso de
insumos
Princípios das
Relações
Projeto de
Vida
Tipo de
produção
Destino da
produção
Expressão do
mercado
Relação com
políticas
públicas
Tipo de saber Ambiente
Orgânico Cosmovisão.
Natureza
correta e
ensina.( pela
observação )
Terra dádiva
Terra viva
Não uso de
Agrotóxico
Uso de
adubo
orgânico
(natural ou
industrial)
Reciprocidade
natureza,
família,
companheiros,
Consumidores.
Retorno
financeiro
justo
Saúde da
família, do
consumidor,
do planeta
Sociedade
justa e
“saudável
Tendência à
monocultura
Produção e
produtividade
equilibradas
Internacional,
Fair trade,
Globalizado
Orgânico
Crédito para
Agricultura
familiar e
orgânica
Políticas
públicas
Saber de
Senso comum
e
conhecimento
Científico.
Preservação
radical
Fonte: pesquisa de campo.
111
CAPÍTULO 6
RELAÇÕES GERADORAS DO SABER APROPRIADO
Para tratar das relações sociais que dinamizam a produção do saber,
selecionamos, ao modo de Paulo Freire, temática geradoras da produção do
saber em estudo. No círculo de cultura, educadores e educandos discutem sua
realidade para encontrarem os temas geradores da possibilidade de “ler o
mundo”, para depois fazerem a leitura da palavra que também é palavra
geradora do saber sobre o mundo. Porém, a temática é contextual e não deve ser
vista como fragmentos ou unidades isoladas. Nesse estudo buscamos localizar os
“temas” e “palavras geradoras” na convivência com os agricultores e,
especialmente, como já dissemos na metodologia de pesquisa, no momento da
pesquisa exploratória, foram recolhidos os temas que geraram as questões
norteadoras das entrevistas, conversas e temas que geraram as categorias de
análise utilizadas.
Na produção do saber dos agricultores e agricultoras, os contextos, as
práticas e os conteúdos estão imbricados, indissociáveis. o intenção e gesto,
trabalho das idéias e trabalho das mãos, pés e sentimentos, valores e ações
correlatas, incompletude que busca o “aprendizado eterno” no cotidiano.
Estamos tratando de um saber que é e está sendo gerado com raízes na terra, na
família, na história de organização da comunidade, da associação e da
cooperativa, na produção e exportação do café diferenciado e, no projeto de
sociedade mais justa e atuante no sentido de preservação do meio ambiente.
Vejamos exertos de uma conversa com André, retirados do Caderno de
Campo, rica em temas e geradora de saberes.
112
30/08/2006
Visita à lavoura do agricultor
Tem duas lavouras de café convencional sat. Uma é de sua
propriedade; a outra é em parceria. Em sua lavoura plantou
10 mil pés de café. Preserva uma mata, planta ainda milho e
feijão. Dentro da propriedade, disse ele: “passa um córrego
que tinha maior quantidade de água e era água muito boa.
Depois fizeram um açude, um mangueiro de porco, roçaram a
cabeceira da nascente. Hoje a gente traz água de casa pra
beber na lavoura”. Esta se encontra a 6 km de sua residência.
André continua guiando a visita e falando: “Os outros
proprietários fazem uso muito grande de agrotóxico no café.
A topografia toda em serra...”. Tentava explicar o
comprometimento da terra e da água com contaminação
decorrente do uso de agrotóxico: “A febre do café começou de
10 anos pra cá, cresceu muito até o ano passado”. [A queda no
preço em 2005 implicou a redução da produção]. Sobre o
aprendizado com o café outras lições temas geradores do
saber:
“Assa-peixe serve para sombreamento e arrebentação do
solo; ele tem muitas raízes e serve para arrebentar o solo”.
“Duas colméias servem para o consumo e para atrair insetos
(a abelha e o marimbondo, controlam o bicho mineiro)”.
“O caexige terra para ele, então a gente não planta nada
de fora, deixa que a natureza brote. Tentamos plantar amora
(para dar frutos para os pássaros), mas não vingou. O bem-te-
vi faz a caça da cigarra (controle biológico). De 20 pés de
amora resultou apenas em dois pés; a formiga saúva não
deixou a amora sair. Como a formiga saúva não prejudica o
café, então a gente não controla a formiga”.
113
“No ano passado houve várias chuvas, no período seco o mato
rebrotou e nesse ano a gente fez a capina e não choveu, a terra
ficou muito exposta. O mato no período seco compete com a
água para o café e também faz drenagem para evitar a
evaporação da água. No período chuvoso a gente planta
feijão, soja, guandu, mamona para adubação verde. Não se
pode deixar dar frutos, uma baga de mamona compromete o
café como bebida. A gente roça antes do período da colheita”.
“Capoeira branca é uma árvore nascida, a gente deixa semear
naturalmente”; é uma planta para sombreamento do café, suas
sementes são levadas pelo vento e pela chuva.
“O casombreado tem uma conservação de maturação muito
maior (2 meses), agente tem mais tempo para fazer a colheita.
Outra vantagem (da capoeira branca), ela troca muito as
folhas, então dá muita matéria orgânica e menos capina”.
Uma experimentação apresentada por André: espaçamento
adensado. “o espaçamento de 2,60 de rua para 1,30 entre
plantas, estou fazendo experiência com 1,50 de rua por 1,0 m
de planta. No sexto ano de vida [ do café] a gente está fazendo
o corte das plantas com crescimento menor (corte seletivo),
agora estamos desgalhando para diminuir uma rua. Vendo a
floração a gente corta ou deixa, a floração indica a produção a
ser prevista)”.
“A bananeira, usada como “barreira” (quebra vento e cerca
viva para separar lavoura sem agrotóxico), também serve de
alimento e para reprodução dos pássaros”.
“Colheita seletiva do café, é colheita de café maduro. Varia de
60 a 90 dias de diferença. O café tem o costume de dar duas
floradas. Esse ano deu 6 floradas, a gente faz a colheita
meio termo (espera uns grãos secarem, outros estão maduros e
outros sem terminar de amadurecer. Isso prejudica a qualidade
114
da bebida, mas reduz o custo da apanha. Dificuldades: na
mesma guia (ramo do café), sementes em diferentes
momentos de maturação. Se fosse pagar apanhador, seria em
média 6 reais por medida de 50 litros, de 70 a 75 reais por dia.
A colheita é feita por mim, meu pai e minha esposa”.
Limite do crescimento: “o produtor que aumenta sua produção
de 100 para 200 sacas ele deixa de trabalhar no cae fica
gastando tempo levando e trazendo pessoal [para a colheita] e
aumenta a despesa com o custo de produção”.
“A maioria dos produtores orgânicos tem uma pequena área
plantada. A principal diferença é a ideologia, o ideal de estar
no comércio justo. São pessoas que querem pagar um pouco
mais para que os produtores tenham uma vida melhor, por
isso a gente tem a consciência de não usar agrotóxico”.
“O preço hoje não tem grande vantagem, muitos estão
insatisfeitos e não têm esse idealismo de estar fazendo algo
diferente ou por si mesmo ou pela natureza”.
Fonte: pesquisa de campo.
Temos aqui um exemplo de como uma visita guiada à lavoura de um
agricultor descortinou múltiplas possibilidades de acesso ao saber apropriado.
Os elementos que se seguem aparecem separados, no limite da escrita; mas no
com-texto – do vivido – contém um único texto de múltiplos fazeres. As lições e
aprendizados relativos aos sujeitos, à terra e à planta constituem os temas
geradores do saber apresentados a seguir. Na figura abaixo, apresentamos uma
síntese da relação visualizada entre os três temas selecionados como geradores
do saber: os agricultores, a terra e as plantas. Cada um desses temas será
analisado a seguir.
115
FIGURA 3. Processo de produção do saber: agricultor, terra, planta.
Fonte: pesquisa de campo.
6.1 Agricultores: os sujeitos, os educadores e as situações educativas
Aqui não é competição, se a gente aprendeu alguma coisa a gente passa aquilo
adiante, se a gente aprende e guarda para si não vai ajudar nada, se agente
passa adiante aquilo vai dar muito fruto”.
Seu Raimundo, agricultor associado.
Com quem aprenderam? Perguntamos. Não um professor
“específico”, um lugar determinado, uma situação pontual de produção do saber.
Pessoas, situações, formas de organização são referências importantes nesse
processo. Porém, destacam com primazia o aprendizado com a terra, a planta, o
fruto colhido e o produto vendido. O aprendizado com dos agricultores contém
dinâmicas de relações construídas e práticas de produção do saber que são
elementos constitutivos do saber ora analisado. A metodologia da produção do
saber funda-se na troca de experiência entre agricultores, na observação e na
experimentação. Assim passamos a descrever processos e lições colhidas a
cafeeiro
raízes
folhas
flores
frutos
Terra
Plantas
plantas
espontâneas
plantas do lugar
plantas
introduzidas
Agricultor
Agricultor
116
partir do olhar colocado sobre cada um desses elementos do saber.
Alguns dos formadores, educadores como diria Paulo Freire, foram
citados nominalmente. Uma referência importante é o Padre Justino. Ele era
holandês; viveu grande parte de sua história de vida no Brasil. Tinha residência
em Campo Belo. Atuou em Minas Gerais, espalhando o saber sobre agricultura
alternativa. Entre os agricultores do lugar podemos dizer que os “pioneiros”,
como eles mesmos se referem aos fundadores da cooperativa, podem ser
destacados como educadores. Assim, o Antônio aqui e o Gabriel lá na Bocaina
ensinaram o modo de produzir e também a coragem para se dar o primeiro
passo. Thiago afirma: “foram pessoas que incentivaram a entrar para esse
sistema de café orgânico e de vida sem agrotóxico”. Lucas incentivou a escolha
e ensinou o modo de plantar café orgânico a seu pai e sua irmã Gérbera. Pedro, à
sua irmã Emília. Thiago incentivou o Bartholomeu
41
, seu vizinho; Tomé, ao seu
irmão Paulo. Todos eles são educadores e educandos, aprendem e ensinam,
simultaneamente, aos que no cotidiano se fazem “companheiros”. Esse
aprendizado entre “companheiros” ou agricultores entre si é considerado por eles
como o “que mais avança”. Assim, sucessivamente, a teia de relações de
parentesco e vizinhança faz os nós que atam escolhas individuais e coletivas,
demarcando terreno social da produção do saber.
Aqueles cujos nomes o foram citados, rosto e nome conhecidos, são
todos aqueles que estiveram ou estão juntos na troca de experiências que os faz
agricultores que aprendem e ensinam simultaneamente, como entende Pedro:
“algumas coisas [aprendizados] a gente aprendeu no cabo da enxada, sentado
com outro companheiro igual a gente” em muitas situações, a enxada substitui
a caneta, a prática subscreve a teoria.
41
Bartholomeu. Bairro Bocaina. Casado. Três filhas ( 13, 14 e 15 anos de idade) e um filho de 19
anos. Terra (propriedade do sogro) 11 ha. Produz café orgânico ( 3700 pés) e sat (4400 pés). O
filho trabalha em um supermercado na cidade.
117
São “companheiros” todos os produtores da cooperativa e de outras
regiões que aqui vêm visitar ou os recebem lá, como convidados - um duplo
movimento que singulariza a troca. Tomé diz que “são várias pessoas, juntando
vários conhecimentos, juntando várias experiências praticadas por pessoas e
chegamos onde nós estamos hoje – em um projeto bastante avançado nesse
sistema de produção”.
Os pioneiros abriram caminho como se costuma dizer: não havia
“tecnologia”, “uma fórmula pronta” para o sistema de produção orgânica, a
“pesquisa de universidade ainda é pobre nesta dimensão orgânica”, afirmam
eles. Muitos consideram que aprenderam sozinhos, observando e
experimentando, estabelecendo uma relação estreita de acompanhamento às
ações e reações ocorridas entre a ação humana, a dinâmica da terra, da planta e o
fruto colhido. Aprender “sozinho” não estanca o processo de ação
compartilhada, associada, cooperada, vivida nos espaços de organização na
associação e da cooperativa – os grupos de bairro, as reuniões de primeiro
domingo do mês, e nas assembléias.
O ensino formal da escola agrotécnica foi uma experiência vivida por
dois agricultores entre os entrevistados. É referido apenas como diferença que
marca o conhecimento da agricultura convencional e a agricultura orgânica o
saber da agricultura orgânica é um saber de experiência feito no dia-a-dia.
Como estão desenvolvendo um processo de apropriação da tecnologia de
dentro e de fora, uma rede de vinculações e distribuição do saber que
transforma experimentos de lavouras familiares em saber compartilhado,
conhecimento coletivo. Essa rede é tecida pela associação e pela cooperativa.
Esse saber de “dentro” expressa o orgulho do aprendizado de apropriação do
conhecimento disponível e adequado “de dentro” e “de fora”, preservada a
dinâmica da produção do saber que se dá pela afirmação, adoção, uso seletivo ou
adaptação; seja pela negação e criação (ou re-criação), vão fazendo a
118
apropriação desse conhecimento, segundo seus objetivos e destinos. Impressiona
o fato de a linguagem comum expressar modos de pensar e práticas tão
semelhantes em aprendizados individuais que poderiam ser pontuais e
particulares e, no entanto, como se repetem nas falas dos entrevistados, é
possível considerar que o processo de produção do saber seja compartilhado.
Esses agricultores afirmam que aprendem e ensinam entre si. Da análise
feita até aqui, podemos considerar que esse aprendizado constitui um dos eixos
centrais do processo de produção do saber apropriado. Esse processo ocorre na
dinâmica de relações sociais horizontais de agricultores para agricultores - que
produzem e são produzidas pelos sujeitos. Esse eixo é um tema gerador do
conhecimento produzido nesta tese.
Com relação às práticas de cultivo do café, afirmam: aprendem com a
terra e com a planta. As vinculações entre esses elementos do processo de
produzir saber tornam o café fruto de seu trabalho e de suas vida, coberto de
significados: econômico, cultural, social e político. O café é fruto enquanto
vinculado ao “consumo para o gasto”, cultivado na temporalidade da
agricultura camponesa. Passa a ser fruto e produto na temporalidade da
agricultura sem agrotóxico, quando práticas da agricultura camponesa
permanecem porque mudam, e nelas são agregadas seletivamente práticas da
agricultura moderna (ou convencional?) e práticas da agricultura orgânica.
No processo de produzir o saber apropriado, usam o método” de
observação permanente de reconhecimento dos indicadores apresentados
“palmo a palmo” de terra, planta por planta, situação por situação em que “cada
caso é um caso”. Dos “dados” colhidos nessa observação, decidem o que fazer,
como fazer e sabem por que fazer. Aprenderam o porquê fazer, fazendo a
relação entre o observado e os resultados, fazendo experimentações. Tais
experimentações podem estar sendo feitas em sua lavoura, ou na lavoura do
vizinho; a troca de experiências possibilita o ensaio, o risco trocado. Cada
119
agricultor, porém, não escapa do risco particular, porque como eles mesmos
afirmam: “Cada caso é um caso”. Essa dinâmica ganhou corpo e transformou-se
em um processo de produção do saber que vem sendo apropriado por cada
agricultor e pelo conjunto deles.
FIGURA 4. Relação horizontal de produção do saber.
Fonte: pesquisa de campo.
Eles participaram de um programa de formação para ter acesso a
conhecimentos teórico-práticos sobre os mais diversos assuntos. Os relatórios
42
do Centro de Assessoria Sapucaí, no período de 1997 a 2006, dão testemunho
das atividades e temáticas que demonstram a importância do atendimento a essa
demanda (Anexo B). Nesses relatórios, verificamos cursos, palestras e
seminários que abordam:
42
O levantamento de atividades foi realizado no escritório do Centro de Assessoria Sapucaí, nos
dias 05 e 06/03/07 em Pouso Alegre/MG. Foi elaborado um recorte em relatórios desta ONG
destacando apenas atividades relacionadas a Poço Fundo e municípios da área de abrangência da
COOPFAM. Este recorte constitui o anexo B.
Processo de produção do saber apropriado
Agricultor
Agricultor
120
agricultura orgânica: manejo orgânico de solo, nutrição vegetal,
fertilidade do solo, interpretação da análise de solo, controle
alternativo de pragas e doenças;
nutrição do cafezal, colheita e secagem do café, qualidade do café,
provador de café;
produção orgânica: feijão orgânico (manejo e comercialização),
cultivo de hortaliças orgânicas em estufas, fruticultura, , produção
animal orgânica;
planejamento, monitoramento e avaliação da produção e da
comercialização;
importância da mulher (o trabalho de secagem do café e qualidade
do produto);
estruturação e organização da associação e da cooperativa
(formação de novos e antigos sócios), associativismo,
cooperativismo;
administração rural, gerenciamento da propriedade; e
educação ambiental, agrotóxico e seu impacto no ambiente e na
saúde humana.
A dinâmica de formação envolvia, além de cursos, palestras e
seminários, oficinas, dias de campo, unidades demonstrativas, mutirões, feiras,
reuniões, encontros regionais de agricultores, visitas técnicas. Cabe destacar que
a assistência técnica sistemática desenvolvida pelo Centro de assessoria Sapucaí
chegou a fazer 700 visitas em 180 propriedades; isso apenas no ano de 2004.
Além desta assessoria técnica, outras atividades e agentes externos, vistos como
colaboradores, foram citados pelos agricultores envolvidos nesta pesquisa.
Apresentamos a seguir, um diagrama como síntese:
121
FIGURA 5. Processo de produção do saber: participação externa.
Fonte: pesquisa de campo.
Parceria e acesso a programas governamentais favoreceram a
participação dos agricultores em encontros de capacitação em certificação
participativa e treinamento em GPS, por exemplo.
Mas, uma coisa é o programa de formação, outra é o uso efetivo do
conhecimento e práticas que resolvem os problemas enfrentados pelos
agricultores, como disse Lucas, “o que mais avança é a troca de experiências”
entre agricultores. Não cercas ou barreiras para o aprendizado que,
aparentemente, poderia tornar iguais associados e cooperados que passaram pelo
mesmo processo de acesso ao conhecimento, via suas organizações; nessas todos
dão iguais.
A desigualdade econômica é superada pela igualdade legitimada pela
participação nestas organizações. Nesse caso, na desigualdade decorrente da
situação econômica diferenciada; as cercas são outras e variam de acordo com o
tamanho da família, o acesso à terra via herança, compra ou parceria, a história e
acumulação econômica de cada família maior ou menor quantidade de
recursos financeiros disponíveis, a capacidade de trabalho familiar, que se conta
a partir composição e idade dos membros da família e, ainda, dizem eles, da
“capacidade pessoal de trabalho”. Na análise do processo de produção do saber,
consideramos que tais diferenças são contornadas nos espaços de convívio de
vizinhança, parentela e comunidade, lugares de maior proximidade e relações de
aprendizado legitimado e reforçado na associação e na cooperativa.
122
Lições do cotidiano, experiências, produtos, problemas, proposições de
solução e debates sobre temas e assuntos diversos alimentam o projeto familiar e
coletivo de produção, comercialização e organização. Como disse seu Filipe
43
,
há um movimento de “trazer de lá pra cá e levar daqui pra lá”, há um movimento
de dupla-mão dos grupos de bairro para as organizações e destas para aquela.
Existem, ainda, “duas assembléias por ano” trata-se da reunião anual do mês
de dezembro”, nem sempre é assembléia, mas é sempre uma reunião, que conta
com 80% a 90% de participação dos associados e cooperados. Questões locais e
gerais, nacionais e internacionais, enfim, até a preocupação com o destino do
planeta e da humanidade são discutidas nesses espaços.
Grandes festas comemorativas também são espaços educativos. A participação
de jovens e crianças “vestindo a camisa” da associação e da cooperativa denota a
explicitação de um projeto de sucessão e de transmissão da cultura e saber
apropriados O Dia Internacional de Trabalhador, por exemplo, apresentou-se
para s como uma grande demonstração desse projeto na agenda dessa
organização. Naquele dia em que estivemos observando, o resgate da história, a
gratidão ao padre Elias, o pioneiro que por chegou, mostras da relação
educativa que fazem tecendo vínculos entre o passado e o presente. Anúncio de
um outro futuro se fazendo. Vejamos notas de observação da comemoração do
Dia do Trabalhador, comemorado em 6 de maio de 2007:
Festa do Dia do Trabalhador
Tema: ”Preservar hoje para viver amanhã”.
A festa, cheia de alegria e participação foi uma
demonstração da mobilização ativa que a associação
e a cooperativa são capazes de realizar. Coordenada
43
Filipe, 47 anos de idade. Bairro Cardoso.Casado. Tem um filho de 17 anos. Produz café
orgânico e sat. Em um total de 8000 pés.Terra: possui 3 parcerias ( 50% ou “meia”) uma delas
com um irmão; não possui terra própria.3 ª série do ensino fundamental.
123
pelo presidente da associação teve animação de
grupos vindos dos diferentes bairros que em
pequenas peças de teatro, música e poesias
apresentaram o tema da festa:“preservar hoje para
viver amanhã”. O trabalhador motivo internacional
da comemoração se transfigura na vida da terra e a
preservação da terra significa a continuidade da vida
do trabalhador no planeta.
A família inteira veio. .Os jovens estavam presentes
tanto nas apresentações como no gesto concreto de
acompanhar os pais nesse dia de festa. Crianças
corriam e brincavam com amigos e parentes que se
encontravam. A festa foi demorada porque todos
tinham participação. Ao longo da manhã o palco foi
cenário dessas participações. Jovens e adultos
apresentaram através de música, poesia e teatro o
tema da festa. Sorteio de brindes faziam a alegria dos
ganhadores e traziam a contribuição de diferentes
lojas do município que colaboraram com o evento. À
tarde, a celebração da missa, consagrou a
homenagem ao ex-padre Elias, o escolhido e
reconhecido como testemunha do início da história
das Comunidades Eclesiais de Base que deram
origem à associação e à cooperativa. A presença de
tantas famílias foi aclamada com orgulho e, foram
chamadas à reflexão coletiva sobre o significado da
história e a vitória daquele dia.
Registramos apenas o eixo central que orientava a
celebração. Destacamos algumas das falas, um
pequeno diálogo realizado no palco montado para
apresentação dos grupos das comunidades.
Agricultores escolhidos se dirigiram ao
homenageado:
“Você esteve sempre junto, não tinha tempo ruim.
Começou em 1982, era um tempo difícil para a vida
dos agricultores. Você nos ensinou a trabalhar junto.
Pegava na enxada, fazia mutirão”.
O homenageado respondeu: “Eu não ensinei nada.
Eu apenas escutava. Ouvir era uma forma de
aprender, eu aprendi muito. Vocês são os
responsáveis por tudo isto. Aqui nos temos a terra
boa, o evangelho da semente que brota em terra
124
boa acontece aqui com vocês. Procurei democratizar
o poder religioso, contribuir para que o povo exerça
o poder. Nós conhecemos a partilha, não a
acumulação”.
Presidente da associação: “Nós devemos cuidar da
vida hoje para ter a vida eterna”
Vice-presidente da Coopfam:“Nós cristãos devemos
ser os primeiros a preservar o ambiente que nós
defendemos a vida”
O povo também é terra. Nesse caso, terra boa onde a
semente lançada brota e vida. Os princípios da
organização: “ensinamentos, “comunidade”,
“mutirão”, “partilha”, “democracia”. “poder do
povo” foram sementes que brotaram nesta terra;
declaram eles. A semente que não dá fruto nesta terra
boa, segundo a afirmação do ex-padre, é a semente
da acumulação. A vida diz respeito ao tempo
passado, ao presente, ao amanhã. Extrapola o tempo
humano anunciando vidas que precisam ser
preservadas hoje para viver amanhã. O ambiente da
terra e do u o “reino de Deus” se misturam
nas mãos humanas. Vozes do coral, do povo, dos
violões e da sanfona entoaram cantos e destacaram
falas que teceram abraços. Foi bonita a festa!
Fonte: pesquisa de campo
“Estamos fazendo a nossa terra”
É o manejo de tocar a terra, o jeito né?. Nós capinava, nós passamos a
roçar agora. E nós mesmo próprio está fazendo a nossa terra, estamos
fazendo a nossa terra no dia-a-dia. De primeiro, nós jogava veneno, a
terra ficava pelada, depois vinha a chuva lavava tudo. Hoje não, a
gente conserva a terra. A gente conservando, ela vai estar boa.
Filipe, agricultor associado.
Da fala do agricultor, destacamos outra relação fundante do processo de
produção do saber ora analisado, ou seja, a relação criada e mantida entre o
agricultor e a terra. Sabemos que o tema terra é portador de inúmeros e
125
significativos sentidos. Terra é o “reino” que produz os frutos da “libertação”,
nela a comunidade se faz. E comunidade significa “laço de luta, laço de
solidariedade, laço político” que o estrangeiro” não consegue compreender ou
traduzir, mas quando compreende, valoriza. O produto vindo de mãos que
constroem a comunidade tem maior valor agregado para os consumidores do
mercado justo. A manutenção de relações sociais comunitárias resignifica as
relações que semearam, cultivaram, colheram e comercializaram o produto café,
vendido no nesse mercado. Os compradores e, mesmo os consumidores,
costumam vir a Poço Fundo para conhecer as famílias, as lavouras, os cuidados
e demais relações implicadas no café consumido. Eles vêm conferir também via,
inspeção e certificação, se os vínculos e práticas das relações de produção são
familiares, solidárias e de cooperação, de inclusão de mulheres, justiça e
preservação ambiental.
A terra produz os frutos do trabalho, do suor. Mas a terra também é
produzida, no sentido de melhoramento da fertilidade; eles dizem: “nos estamos
melhorando nossa terra”, a terra orgânica é viva, é terra familiar, local e
planetária; preservada. Sendo viva, a terra nutre a planta, significando equilíbrio
ou desequilíbrio. É diferente da terra na agricultura convencional que “usa a
terra apenas como substrato para manter a planta em pé”, constitui, portanto,
uma ruptura que produz a diferença da agricultura sem agrotóxico e orgânica, da
agricultura convencional, que corrige a terra e usa “veneno” para controlar
pragas, doenças e plantas consideradas indesejáveis e daninhas. Da terra,
depende a saúde da planta, do fruto, o alimento do produtor e consumidor; dela
depende a vida.
“Uma coisa que não pode sair da mão do pequeno é o pedacinho de
terra” diz Seu Raimundo. Terra também é “coisa”, matéria concreta, bem e
mercadoria que é negociada de preferência entre parentes e, em último caso,
com “gente de fora”. Como bem ou patrimônio, está na “mão do pequeno”
126
produtor e, por ser pequena, é um “pedacinho” que transforma o proprietário em
“pequeno” também. Esse “pequeno” se torna “grande” no processo de conquista
da capacidade produtiva, na força da organização e no projeto de preservação da
terra-planeta. Mas, em Poço Fundo, “não tem latifúndio”, “não tem fazendeiro”.
Os maiores proprietários têm até 100 hectares de terra, os “pequenos” têm entre
2 e 40 hectares de terra, como já dissemos. Entre eles os “fortes” e “fracos”.
Fortes são os proprietários, porque plantam em terra própria e ainda podem ter
lavoura em parceria com parentes e outros proprietários; os “fracos” estão em
lugar oposto. Nesse caso, o acesso à terra e a capacidade de produção tornam-se
elementos de diferenciação do agricultor.
Terra expressa uma teia de relações sociais. As relações de parceria no
uso da terra são baseadas nas relações de parentesco ou de propriedade da terra.
Os pais criam os mais variados arranjos para garantir a permanência dos filhos
na terra. As famílias m parcelas de terra próximas ou distantes da residência,
em parceria com os filhos e parentes ou com outros proprietários de terra.
acordos verbais, acordos registrados na associação, parceria de 50%, “a meia”,
30%, 40%, “o patrão (dono da terra) entra com a terra, o parceiro forma o
cafezal e divide a colheita” segundo o acordado na parceria. O “pequeno
produtor é proprietário, é “patrão temporário” quando contrata pessoal para a
colheita e pode fazer parcerias no uso de sua terra. A parceria é um contrato que
ocorre dentro ou fora da família, pode ser um contrato necessário quando a terra
do pai ainda não foi dividida entre os filhos, quando o agricultor pode expandir
sua área plantada, mas não pode comprar outra área de terra ou ainda quando ele
não é proprietário de terra.
Os filhos, futuros herdeiros, podem viver, construir sua casa na terra do
pai quando ainda não se deu a partilha do patrimônio; nesse caso, ocorre a
doação de terra de pai para filho ou filha. O pai pode ainda “separar um
cafezinho”, separar uma pequena área de lavoura de café, para o filho pequeno,
127
adolescente ou jovem. Os filhos maiores cedo começam a assumir serviço na
lavoura do pai ou naquela designada como “sua” lavoura, para aprender a cuidar,
“tomar gosto” pela lavoura e como força de trabalho familiar, ou força que
“ajuda”, diria Woortmann & Woortmann (1997), dependendo da idade e do
tempo disponível, porque a escola é prioridade em relação ao trabalho na
lavoura. O pai pode, ainda, comprar terra para o filho “que se casou; logo
precisam de mais terra para sustentar duas famílias”. O pai assume a
responsabilidade de sustentar” a ampliação da família; retorna o valor da
família extensa, típica da agricultura camponesa.
Conhecer a terra pelo olhar, pelo toque, pela observação das plantas que
nascem espontaneamente, pelos “bichos” que se encontram dentro e fora da
terra, pela florada do café e pela qualidade do produto essas são outras lições
que podemos descrever. Altitude e fertilidade adequada foram herança do
planeta terra no lugar onde se encontram as lavouras desses agricultores; a
fertilidade da terra oscila na balança do cuidado ou des-cuidado do agricultor, o
não uso agrotóxico e uso de adubo químico. A altitude poderá vir a ser prejuízo
se o aquecimento global alterar o clima local. Prevenidos, já discutem esse
assunto e fazem os primeiros ensaios de sombreamento do café.
experimentaram leguminosas, como árvores “boas para sombreamento”; mas
essa é uma introdução de conhecimento de “fora” para dentro; uma prática de
experimentação. A leguminosa serve também para adubação verde. Do trabalho
de observação, verificam que as plantas do lugar, como jacarandá, gema de ovo,
ipê e pereira dão sombra e protegem a “planta” – o cafeeiro.
O saber de senso comum não dispensa, como fiel da balança, a análise
técnica do solo feita em laboratório. Eles fizeram cursos e aprenderam a fazer
interpretação dessas análises. Ensinam e orientam os “companheiros”.
Nitrogênio, fósforo e potássio NPK são apenas três elementos químicos
importantes para a nutrição. Existem, dizem eles, de 17 a 42 nutrientes
128
importantes para a planta. Adubo 20-05-20 é o “pacote” que alimenta a planta
com apenas três nutrientes. Mas, além de necessidades nutricionais diferentes, as
características da terra apresentam grandes variações; Pedro diz: é preciso
“pesquisar o tempo inteiro [...], tentando descobrir a diferença de uma planta
para outra, de uma terra para outra”, a terra do sol nascente é diferente da terra
do poente, terra do lombo do morro é diferente da grotinha, a primeira é fraca, a
outra é fértil.
Ele continua, isto
44
é diferente do trabalho com agricultura
convencional, essa “já é um pacote: os mesmos tratos que usa em uma lavoura
daqui é receitado pra outras regiões do país” e, crítico, conclui: “isso é
enganação, porque a terra, a distancia de alguns metros, ela muda
completamente”. Não é preciso ser agrônomo, ou técnico, mas é preciso “ter
bom senso” e muita capacidade de observação para definir o que fazer. A análise
de solo feita por amostragem, tirada em um período determinado do ano, junho e
julho, de resultado generalizável é questionada. Porém, todos eles “devem” fazer
análise de solo encomendada em laboratório especializado; todos são
estimulados a fazê-lo nas reuniões do primeiro domingo e favorecidos pelo
apoio da cooperativa, que negocia o preço em acordos coletivos. A adoção da
análise de solo é uma apropriação do conhecimento científico, os resultados são
usados em combinação com outros indicadores da fertilidade do solo resultantes
do saber de senso comum.
Solo argiloso, retenção de água, quantidade de matéria orgânica, terra
compactada, terra não compactada, tipo de vegetação “que vai saindo’, cor da
terra são sinais que permitem uma outra análise e interpretação. Essa é uma
“sabedoria da natureza”, um saber de experiência feito. Observando, o agricultor
44
A entrevista com Márcia Martins, agrônoma, autora da tese de doutorado, realizada em Poço
Fundo, citada nesta pesquisa é aqui considerada como dado “testemunho” deste e de outros
achados do que estamos chamando de saber apropriado por estes agricultores. Ver entrevista no
caderno de campo.
129
aprende. Existem plantas que indicam “terra boa” e plantas que melhoram a
terra. No lugar de terra fraca, Pedro ensina semear mamona, deixar o ficar
criado, depois cortar, picar e jogar no meio da “rua” [entre as fileiras do café]
serve para “arrebentar” e “refrescar” a terra, além de dar resistência para a planta
o café. Ele continua ensinando: “guachuma”, sai quando a terra está
compactada, “terra dura”, lugar de pisoteio de gado. Ela tem raiz dura, concorre
com o café destruindo a lavoura.
Lucas ensina “ver” as qualidades da terra pela estruturação do solo,
“poroso” ou “adensado”, “pobre ou equilibrado”, isso se pode “ver” pela
vegetação nativa. Pelo “olhar”, afirma ele, se pode “ver” se tem bom teor de
matéria orgânica ou não. Terra muito rica em matéria orgânica “só tem esterco,
não tem argila”. Quando “caruru, picão, orapronobre, fazendeiro, cerralha,
itapueraba” aparecem, “entram na lavoura”, é sinal de terra boa, fértil; se
aparecem”quachuma e quabeira, ao contrário, é sinal de terra com deficiência
nutricional. Minhoca, “todo mundo sabe, em terra saudável”- adubo
químico e agrotóxico combatem a minhoca.
O estado de conservação do solo também é reconhecido – basta “olhar”.
Desse olhar, do acompanhamento sistemático e do trato no tempo adequado,
pode-se, por exemplo, evitar erosão da terra. Os tempos da chuva ou da seca são
tempos que exigem práticas distintas de cultivo e cuidado com a terra. A capina
não pode deixar a “terra muito limpa”, ou seja: também um termo adequado
de capina. Essa, se feita em dezembro, por exemplo, compromete a lavoura,
porque a chuva lava a terra, carrega a matéria orgânica, o que é prejuízo
econômico, considerando-se o desperdício do dinheiro investido na aquisição do
insumo, do trabalho despendido em sua incorporação à terra e da preservação do
ambiente. Lucas orienta:
A maioria dos casos, o pessoal evita, principalmente, deixar a lavoura
130
muito limpa, capinar ela demais, principalmente agora nesse mês de
dezembro e janeiro, que essa chuva muito grande, quem faz isso aí a
matéria orgânica vai toda embora. Vai ter enxurrada e ai a matéria
orgânica vai toda embora, ainda vai criar problema nas estradas, nos
córregos. Então, a gente evita deixar a roça muito limpa nesta época.
Porém, na entrada do tempo seco, se deixar mata, aí é prejudicial
demais. Então, quem tem uma visão maior, mesmo os convencionais
hoje já estão evitando deixar a roça limpa nesta época de muita chuva.
um prejuízo individual (da família) com a perda da matéria orgânica
e também consciência da perda para o ambiente com o comprometimento das
estradas e córregos. Contornando esses prejuízos, encontra-se o saber que
relaciona os tempos da natureza – sol e chuva – e os tempos do trabalho
humano, os valores contidos no manejo adequado de tratos culturais de acordo
com outro modo de se relacionar com a terra. Pela experiência e observação dos
vizinhos, eles dizem: até os agricultores “convencionais comuns” estão
aprendendo com esses agricultores algumas vantagens do manejo orgânico da
lavoura.
Animais como tatu e outros bichos, que retornam porque antes haviam
desaparecido, são bem-vindos, porque anunciam a vitalidade e a diversidade
contida na terra feita” pelo saber que faz dela reserva de valor econômico,
social, cultural e ecológico.
A terra produzida é aquela em que os agricultores estão estabilizando a
fertilidade da terra. É mescla de terra camponesa cultivada desde os tempos dos
avós sem “veneno” e terra convertida; é a terra viva, saudável. Fruto do trabalho
do saber e do fazer dos agricultores e agriculturas associados. Lugar de plantar e
arrancar saberes que implicam conservação e mudança de práticas costumeiras e
práticas introduzidas, experimentadas e repetidas, negadas e criadas, recriadas.
Nas práticas de conservação e mudança que geram o saber apropriado no qual a
terra está sendo produzida, eles afirmam: “nós fazemos nossa terra”. Terra feita
no cotidiano e ao longo dos anos. Esse saber é ato articulado, aprendido nas
131
relações familiares, nas relações de vizinhança, dos agricultores entre si, suas
organizações e relações com o mundo. Essa terra é terra que ensina, é dádiva. A
estreita relação entre a terra, a planta e o fruto retribuem a ação dos homens e
mulheres que, na compreensão dessa dádiva vinculam-se a ela a terra - na
prática da reciprocidade.
Lucas conta sobre o seu “tratamento” dado à terra, que atingiu a
estabilidade de fertilidade:
Durou de 5 a 6 anos, que eu peguei um tratamento mais sério mesmo
faz 4, porque minha lavoura estava muito ruim. Então, dentro de quatro
anos trabalhando mesmo firme, nossa recuperação foi fantástica.
Enquanto o adubo químico provoca acidez do solo, isso desequilibra e
você tem a necessidade de ficar usando calcário, corretivo, adubo
fosfatado, adubo com base em cálcio, todos os anos, principalmente,
sulfato de amônia, que é muito usado na agricultura convencional, tem
10% de acidez, quer dizer uma acidez muito alta, enquanto os adubos
orgânicos, nenhum tem acidez, então às vezes tem até o problema
inverso: o pH sobe demais, quase que passa a ser problema. No meu
caso mesmo faz quatro anos que eu não uso calcário, o pH vai
subindo, mesmo sem usar corretivo. Os níveis de fósforo também
subiram demais.
Observação e experimentação fazem dos agricultores aprendizes com
essa terra. Nela, nascem e crescem as plantas que também ensinam. Essa terra,
nas mãos daqueles que a tratam para que ela trate da planta, deixa de ser
substrato físico e passa a ser o lugar do equilíbrio biológico possível, resgatado
por mãos humanas. Resultante de grande mudança, nasceu da escolha, da opção
de vida, da filosofia que orienta a vida saudável: terra, planta, fruto e relações
sociais e de trabalho saudáveis. Práticas e discursos escondem e explicitam
conflitos de uma harmonia produzida mantida pelo fio de oposições
complementares, similaridades opostas, semelhanças combinadas.
A terra produzida é terra corrigida, quando os níveis de fertilidade
132
perdidos precisam ser reencontrados por trabalho intenso, cuidadoso e
caprichado daqueles que estão “fazendo” sua terra. Pesquisada palmo a palmo,
planta por planta, ano a ano vai se dando a conhecer por aqueles que escolheram
compartilhar a vida com ela. É natureza, “coisa de Deus”, é “sagrada”,
“cuidada”, vai ficar para os filhos, os netos, é presente e futuro conservada,
não vai ser esgotada. Seu valor é econômico, cultural, social e ecológico. Seu
fruto tem valor maior, é universal, não é local, é internacional, assegura
qualidade de vida para quem produz e para quem consome. É lavoura
acompanhada pela presença constante do “agricultor” aquele que cultiva a
terra e lê todos os seus sinais: desde a beleza das plantas, às manifestações de
desnutrição e doença. A planta, segundo eles, até se parece com os seres
humanos, logo, ao se encontrar mal nutrida, com fome, adoece.
A convivência de plantas espontâneas que nascem à volta da planta
principal indica as condições de fertilidade ou deficiências de fertilidade da
terra. São plantas espontâneas, e não daninhas; são indicadoras: dão sinais sobre
a situação da terra, ensinam, são interpretadas. Não são eliminadas com
defensivos, são manejadas; podem servir de cobertura verde para o solo em
determinados períodos do ano, ou são cortadas com enxadas ou roçadeira e
servem de cobertura morta, cobrindo a terra, protegendo-a do impacto do sol ou
chuva, contribuindo para o aumento da vida no solo ou ainda, podem ser
incorporadas ao solo enriquecendo-o. São amigas, não inimigas, como são
tratadas na agricultura convencional na qual são eliminadas com “veneno”,
asseveram os agricultores.
Os pássaros que, pelo canto, indicam chuva ou seca, espalham sementes
e povoam a terra, multiplicando as plantas naturais do lugar e as plantas que
vieram de outros lugares para se transformarem em adubação verde,
sombreamento, corretivo do solo ou cuidados com a fertilidade para que a terra
se mantenha equilibrada ou mesmo para a recuperação de terras desgastadas, em
133
transição, terras que estão sendo convertidas.
6.2 “A planta mesmo ensina a gente”
Basta cavucar um pouquinho a terra e a gente sabe, né? A terra que
boa, você cavuca um pouquinho assim e tem bicho, né. Tem bicho
trabalhando ali. E a terra que está ruim, você olha nela, ela é uma terra
morta. Você não acha nada, não tem matéria orgânica, não tem
bactéria, não tem nada. A própria guia da planta indica: você olha no
café ele está quase preto, esquase vermelho a diferença é grande
demais da conta. Se você que aquele está amarelo, aquele está
faltando adubo, ou tá faltando capina. É fácil: a planta mesmo ensina a
gente. Mudou a folha, pode saber que está com problema. A gente
aprende com a própria planta.
Filipe, agricultor associado.
Existe uma relação estreita entre a planta e a terra. É o que podemos ver
na fala de Filipe, quando ele faz vinculações entre aspectos da terra e da planta
que “ensinam”:
A “medida” da qualidade da terra é conhecida pelos agricultores,
também, por essa observação. Os indicadores observados vão do tamanho da
planta, que é correspondido pelo tamanho do “sistema radicular”, explicam
Tomé, Thiago e Dona Emília, ou seja: “da mesma forma que ela cresce para
baixo, ela cresce para cima”. Além disso, acompanham “o comportamento
ímpar” da reação da planta ao ambiente. Plantas “deitadas” dão sinal de terra
compactada, já que o sistema radicular não consegue descer.
A presença de pulgão manifesta falta ou excesso de algum nutriente. A
diversificação de plantas favorece o desenvolvimento equilibrado da planta, ela
ensina de maneira “sábia” o que está faltando ou sobrando, basta o ser humano,
também de maneira “sábia”, agir segundo os sinais que a planta apresenta. O
134
conceito de plantas daninhas – vindo do conhecimento científico - foi totalmente
alterado, elas são plantas indicadoras da situação da terra, elas chegam a “dizer”
o “que está faltando ou sobrando e onde nós devemos agir”.
Pragas e doenças também ganham novo sentido quando tratados com
tanta proximidade. Ferrugem e bicho-mineiro são típicas do cafeeiro e aqui o
são combatidas de forma direta, com aplicação de qualquer defensivo, são
“tratadas” de forma indireta, por meio da planta equilibrada. O pé de café
“saudável” convive com o bicho-mineiro e a ferrugem, esses sim, ainda vistos
como “praga” adquirida “de fora”, do café convencional, podem causar dano
econômico, mas a forma de tratá-lo muda - do “combate” para a convivência. O
trabalho, nesse caso, muda de foco, os agricultores deixam de focalizar as
“pragas e doenças” e focalizam a nutrição e o equilíbrio da planta, decorrente do
equilíbrio da terra. Nos casos graves, o café pode ser “banhado”, eles fazem os
mais variados “banhos” naturais ou industrializados, orgânicos. Lucas fala do
cuidado preventivo com relação à ferrugem, usando hidróxido de cobre, em
“banho de contato”. Outras doenças são conhecidas, como ácaro, cigarrinha e
phoma. Mas não se faz controle das doenças pelo combate, elas são vistas como
sinais, uma forma de “avaliação” indicativa do que deve ser feito.
Lucas explica: “Mas, uma planta equilibrada você percebe pela estrutura
geral dela, pela cor, pelo contato geral. Uma planta desequilibrada aparece
sintomas e é difícil ficar falando porque cada caso é um caso”. Essa é uma
expressão muito significativa que denota a complexidade das múltiplas situações
observadas, do cuidado e do tratamento ‘caso a caso’, como já vimos quando se
referem à terra, agora quando se referem á planta.
Se, para esse agricultor, existem, no mínimo, 17 nutrientes diferentes
necessários ao equilíbrio da relação existente entre a terra e planta, a falta de um
deles, a falta combinada de um ou mais, ou por outro lado, o excesso, implica
sintomas diferentes. Cada nutriente “mostra a planta de uma forma; por
135
exemplo: a carência de zinco provoca folhas compridas retorcidas com nódulos
muito perto, o que atrapalha radicalmente a produção. Carência de fósforo,
aparece a rama apical muito dura e armada, fósforo é nutriente do sistema
radicular, se esse não está se desenvolvendo bem , a planta não puxa [nutrientes]
fica emperreada. Se a terra está com pH baixo, pode provocar requeima da
planta, é o excesso de alumínio que queima as boquinhas das raízes” e, diz ele:
“assim por diante”, como quem afirma, de novo, que cada caso é um caso.
A cor da planta também é interpretada:” café amarelado tem deficiência
de boro, de zinco”, explica Thiago. Além disso, sinais no corpo da planta: a
“guia fica mais curta”, isso implicará produção desigual. Mas além de nutrientes,
a planta precisa também de “trato”, uma planta amarela pode indicar falta de
adubo e/ou falta de capina. “Mudou a folha, pode saber que está com problema.
A gente aprende com a planta”, já afirmou Filipe.
A cor e a beleza da planta não encantam, mas o sinais “levados em
consideração”: planta está sadia e equilibrada. Por comparação com lavouras
vizinhas e saber experimentado, Pedro esclarece a diferença entre lavoura
orgânica e lavoura “convencional comum”. E aqui, o elemento central de análise
não é a planta, mas a terra. Ambas estão em estreita relação, como dissemos.
Mas vamos à comparação:
Não tem planta boa com terra ruim e nem terra ruim com planta boa
[...] trato convencional com produto químico é como injeção na veia,
ela dá um resultado com 30 dias, 40 dias, de repente ela cai pior do que
antes, então a gente tem que ficar sempre com o remédio na boca.
Uma planta dependente de nutrientes químicos pode significar, também,
um agricultor dependente, considerando-se a situação daqueles que usam adubo
e insumo das indústrias agro-químicas. “Independência” em relação a essas
multinacionais é uma bandeira de luta desses agricultores.
136
Além da cor, a situação da planta é analisada também pelo tamanho da
folha; pela aparência, podemos dizer, segundo os agricultores: “se retraída”,
“folhas fechadas” “sintomas de fome, de necessidade de nutrientes”. Quando
se vê na folha “vigor, folha aberta, escura, cor bonita” pode-se afirmar a “saúde”
da planta. Matheus, Paulo
45
e Dona Emília relacionam a “saúde” da planta ao
processo de saúde do ser humano. A planta “é como a gente”, saudável se bem
nutrida, ou doente, “fraca”, se mal nutrida; alimento em excesso causa congestão
e outras complicações; é preciso saber a medida adequada.
Na agricultura convencional, o alimento (adubo químico) é colocado no
do café, “boca da planta”, prática radicalmente diferente na agricultura
orgânica, na qual a adubação disponibiliza os nutrientes em todo solo da
lavoura; nesse caso, a planta mostra saúde quando espalha e afunda suas raízes
na terra, indo “buscar longe os nutrientes”, isso é um indicador de saúde da
planta e da terra, explica Matheus.
Paulo fez conversão de café convencional comum para café orgânico e
fala da diferença da planta nutrida que consegue “sobreviver” às pragas e
doenças. Lembra-se do tempo em que “jogava agrotóxico” para combater os
inimigos da planta e matava também os amigos. Prática inversa a essa, é o
controle biológico de pragas e doenças; nesse caso, nem o uso de produto
orgânico é aconselhável, esse também pode “quebrar a cadeia do equilíbrio
biológico”; assim, as pragas e doenças são controladas pelo equilíbrio na relação
terra e planta.
As variedades de café estão sendo experimentadas. 10 anos Tomé,
por exemplo, acompanha suas lavouras que foram divididas em talhões com
cinco variedades diferentes, porém, de modo geral, o café “Mundo novo” e o
“Catuaí” são os mais utilizados. O acompanhamento alimenta a avaliação feita
45
Paulo, 43 anos de idade. Bairro Barreiro. Casado. Tem dois filhos (15 e 17 anos de idade).
Produz café orgânico e sat. (“aproximadamente”30.000 pés de café). Terra própria: 50 ha.
137
de acordo com critérios: produtividade, estrutura da planta, comportamento
diante das diferentes situações da terra mais arenosa, mais fresca, maior
umidade, mais seca ou terra argilosa. A adubação com matéria orgânica varia de
acordo com as diferentes situações apresentadas pela terra e pela planta.
plantas que são usadas para produção de matéria orgânica. A mamona é um
exemplo já citado, serve para adubação e sombreamento, efavorece o controle
biológico de pragas e doença.
Trata-se de um estudo minucioso, um acompanhamento detalhado e
permanente. Nesses “experimentos”, cada variedade de café é avaliada, isso
define também o tipo de manejo às vezes, é preciso roçar; outras, capinar;
outras ainda, é preciso “entrar com o subsolador”. Tomé continua dizendo:
“necessariamente, você tem que estar movimentando esse tipo de solo, então é
um estudo mesmo que é feito”. Trata-se de um processo de apropriação do
conhecimento científico, que é desenvolvido pela observação permanente e pela
experimentação intencionada, estudada.
Colheita do café
46
A mulher participa da colheita e da secagem do café. Porém, a
secagem do café colhido é trabalho, quase exclusivo, das
mulheres. O homem “ajuda”.A secagem do fruto colhido é um
ponto estratégico para a manutenção da qualidade do café,
aspecto essencial para a valorização do produto no mercado.
Café de qualidade é uma marca do produto, é o equivalente de
troca, é o retorno de todo trabalho despendido; é a
possibilidade de renovação do ciclo para a recriação da vida.
46
Este texto é uma homenagem às mulheres que nas entrevistas se recusaram a falar,
pouco falaram ou permitiram que suas falas fossem escondidas pela fala do marido.
Separadamente tiveram longas conversas com a pesquisadora.
138
Hortência, esposa do Thiago, veio da cidade para o campo.É
mãe de dois filhos pequenos. Conta como faz para trabalhar
na colheita do café. Acorda, arruma a casa, cuida das crianças.
Entre 7:00h e 7:30h sai de casa para a lavoura volta em torno
de 5 horas da tarde. Ao chegar, faz o jantar suficiente para o
almoço do dia seguinte. O trabalho na colheita é trabalho
árduo; no princípio, diz ela: o sol, o excesso de suor, a dor
nas costas, foi difícil acostumar”. Mas é um tempo bom, um
“tempo de convívio, um grita deoutro grita de cá, fica o dia
inteiro daquele jeito”, “brincam, xingam, gritam, falam um do
outro”, mas é “gostoso”. Ela parece manifestar uma nostalgia
da colheita, porque diz: “depois que acaba a colheita do café,
acabou. não reúne mais, não mais”. Além do
convívio, para quem “trabalha fora”, nesse caso é fora da
família, é trabalho para outro produtor companheiro que paga
“apanhadores”, “é a época que mais entra dinheiro para a
gente” [ as mulheres], afirma. No entanto, dependendo do tipo
de acordo, se colheita por medida - equivalente a 50 litros de
café, ou por diária, o valor do trabalho da mulher pode ser
menor do que o valor do trabalho dos homens. Ela dá um
exemplo: “quando você combina por dia, eles acham que
homem apanha mais, então vale mais”. “Ela reclama dizendo
que essa é uma “mentira”. A mulher sempre trabalha na
lavoura da família, ela e o marido; isso é prioridade. Assim
descreve o processo de “apanha do café”, antes manual, hoje
com o uso de uma máquina
47
.[...] “Põe um pano de 12
metros, no lado de cima e outro no lado de baixo, ajunta tudo
no meinho para não cair, passa com a maquininha; agente vai
catando o que sobrar. Olha os grãos mais verdes e vai
47
Segundo Tomé: roçadeira costal com engante para colheita. Usada em café sat e
orgânico.
139
catando”. Recolhem o café colhido juntando em um pano .
Tiram as folhas e “abanam”. Abanar é “peneirar café”
levantando os grãos na peneira vão arejando e limpando,
deixando somente os grãos. Depois disso, o café sai da
lavoura para o terreiro, da roça para a proximidade da casa;
começa o processo de secagem. Esse é serviço de mulher, ela
é responsável pela tarefa de “rolar o café”, pela secagem do
café no terreiro. É um trabalho de horas marcadas, quanto
mais freqüente, melhor. De meia em meia hora, normalmente,
ou de uma em uma hora, a mulher vai ao terreiro e com um
grande rolo feito de madeira ela realiza o trabalho. O “rolo de
rolar café” é conduzido em movimentos de ir e vir, de uma
ponta a outra do terreiro, fazendo retornos circulares toda vez
que chega na outra extremidade, assim o café vai sendo
revirado, mantendo a permanente exposição dos grãos ao sol.
Nos primeiros dias, até o café chegar no ponto de “meia seca”
(20% de umidade ou aproximadamente 19, 20 graus), o café
pode passar a noite descoberto, a partir daí, o “café dorme
coberto”. Thiago explica: “O café chega no terreiro com, em
média, 38, 37 graus [...]. Ele vem caindo, caindo, a hora que
ele chegar em 19, 20 graus, ele está de meia seca, aí já está no
ponto do calor do próprio monte, ele seca durante a noite”.
Os grãos são amontoados e cobertos com plástico preto.
Entretanto, o trabalho horário da mulher continua durante o
dia; esse dura aproximadamente 15 dias, dependendo do
clima. Hortência continua: “café não pode passar de 11 graus
e meio”. Esse cálculo de temperatura é feito na Coopfam, “ali
tem como medir. Mas a maioria deles, que sabe mais, deles
bater assim na mão [mostra], deles r na boca eles sabem a
secura do café.
Fonte: pesquisa de campo.
140
As combinações entre famílias podem resgatar o trabalho de mútua ajuda
ou troca dia, mas sempre um acerto dos dias trabalhados se uma das famílias
tem lavoura maior e ocupa maior número de dias trabalhados. Quando a família
“está muito individual”, precisa contratar pessoas de fora. É preciso distinguir a
família extensa patriarca, filhos adultos com família da família “individual”
que é a família reduzida à esposa e ao marido. Thiago fala de sua experiência:
Ultimamente nós estamos trabalhando junto, né. Nós tem a maquininha,
né. junta eu, Hortência, meu irmão tudo num café dum, pega uma
semana num, uma semana no outro, pega uma semana num, e assim vai
fazendo uma combinação no terreiro, porque tem café seco e café
verde, café de meia seca, até completar o terreiro. Nós panha tudo junto
e vamos acertar no final da colheita. Ultimamente nós tem feito assim.
Nesse caso, com o trabalho conjunto da família e o uso da máquina, é
possível evitar a contratação de pessoas de fora para a colheita.“Esse ano nós
não contratou (sic). Mas nos outro ano passado, quando nós estava mais
individual, cada um pra si, nos tinha que contratar”, disse Thiago. O terreiro
de secagem do ca é usado pelas três famílias. Dona Emília também conta
experiência semelhante, porém, as famílias fazem colheita manual: “As vezes,
acontece, a gente troca dia ou quando mais, [colheita e recursos financeiros],
acontece da gente pagar uns dias. Mas, praticamente, no ano passado, essa
quantia de café foi eu e meu marido. não tem domingo, não tem nada, é
direto”.
A colheita é o resultado de todo trabalho empenhado ao longo do ano
agrícola e do acompanhamento do processo produtivo ao longo de todos os anos
de trabalho, desde a “opção” do agricultor. É o resultado do trabalho complexo,
no qual as relações tecidas entre terra, planta, famílias, sujeitos individuais e
coletivos, atores locais, nacionais e internacionais, agricultores proprietários,
parceiros, patrões – contratantes de trabalho sazanal, tudo isso são relações
141
colhidas junto com os frutos do cafeeiro. E ainda, um resultado político que
envolve o projeto de sociedade gestado em todas essas relações. Carrega a
avaliação dos “erros e acertos”, os aprendizados colhidos na observação,
experimentação, na “pesquisa” cotidiana. Assim, Tomé afirma:
Tudo é questão da observação. Na verdade o que a gente está
observando nesse sistema de produção é que ele é uma filosofia de vida,
né. Você tem que ser observador, tem que ser um pesquisador na sua
produção. Então você percebe que o teu sistema está deficiente em
alguma coisa, você sabe que na hora que você vai ter uma diminuição
no seu sistema de produção a previsão sua vai ser mais pessimista.
Agora se você tem um sistema totalmente equilibrado, onde as plantas
estão vigorosas e saudáveis, é sinal que você tem uma variedade
produtiva e a combinação variedade produtiva mais solo equilibrado
certamente vai ser uma produção elevada. Se você tem essa planta
saudável, o solo equilibrado e ainda não consegue produzir, então
alguns fatores, é claro, tem [...] porque as plantas precisam de sol, da
chuva, precisam do vento, mas nada disso deve ser em excesso. Entã,
você tem que observar onde você está errando, onde está acertando e
procurar estabelecer essa harmonia também dentro de seu sistema de
produção.
Uma boa florada é sinal de uma boa colheita, das flores se pode esperar a
produção, a antecipação dos resultados do trabalho, mas é apenas “um sinal”. A
colheita depende mesmo do processo de produção do saber e do fazer
desenvolvido em curto e longo prazo, depende do trabalho humano e do trabalho
da natureza, assegura Tomé:
Uma boa florada, claro que é um sinal de uma quantidade de café que
você vai ter, ? É claro que tudo isto é conseqüência de tudo; de um
trabalho que vem sendo feito ao longo dos anos. Não é de um ano para
o outro, de um dia pro outro que você consegue manter esse equilíbrio
nas as relações nutricionais da planta, elas tem tudo a ver com a
produção. Então, é a observação inicial de que está havendo algum
desequilíbrio, alguma deficiência nutricional e é cuidando disso,
evidentemente, que você terá condição de fazer uma boa previsão e você
142
terá uma boa colheita. Não é uma coisa complexa porque a própria
natureza se encarrega disso. Nós devemos ficar mais como
observadores do que como atores.
A colheita envolve custos calculados sobre o valor do trabalho da família
e o valor da contratação de “gente de fora”, que aqui encontra condições justas
de remuneração do trabalho e “ambiente saudável”, para aqueles que trabalham.
Juntam-se também cálculos sobre o tempo de trabalho necessário para colher o
café no tempo definido pela natureza. É preciso habilidade e agilidade. O café
maduro, no pé, exige planejamento da relação entre quantidade produzida,
maturação do café e trabalho (quantidade de pessoas) necessário. É feito, então,
um balanço entre recursos de dentro da propriedade e recursos de fora. Tomé
continua explicando:
No caso nosso, a agricultura familiar, então se você considera que uma
parte desses gastos é executada pela própria família, né. Claro que isto
também tem um custo, mas você não precisa estar lançando mão de
recursos para estar colocando fora do sistema de produção. Então,
existe uma oneração maior no período da colheita onde você precisa
fazer uma colheita mais rápida. Tem que lançar mão de pessoas de
fora, mas dentro da medida do possível esses produtores m para teu
sistema de trabalho, mas vem trabalhar num ambiente saudável, que
não oferece nenhuma situação de risco para eles e é claro que quando a
gente tem que lançar mão de gente [ de fora. A gente remunerada
justamente [ pagamento justo] esses produtores porque o sistema nos
leva a crer que todo mundo precisa ter vida digna, não só quem
produz, mas quem colhe também.
A estimativa para a previsão da colheita e o cálculo da produção total
colhida pode ser resultantes de diferentes modos de calcular, que envolvem
cálculos matemáticos objetivos e subjetivos. Os cálculos subjetivos expressam
uma valoração conseguida com a combinação da experiência, “ os cabelos
brancos” de agricultor e agricultora trazem a “prática” e “uma maneira de
143
olhar”, difícil de “explicar”, traduzir” é olhar e ver ... pela floração, pelo
fruto tamanho e cor do fruto, as mudanças ocorridas no “tempo” relação
entre tempo agrícola e tempo climático - quando e quanto tiveram de chuva e
seca, frio e calor, entre outros. Os cálculos matemáticos objetivos são usados
em diferentes momentos ou usando diferentes elementos como referência ou
base para os cálculos. Para se fazer a previsão da colheita no tempo da “florada”,
é importante considerar como elementos de cálculo, o que diz Pedro:
Olha, a previsão de colheita primeiro começa na época da florada.
Como é que o clima na época da florada? Porque quando vem a flor,
o que a gente tem visto aqui, se a planta bonita e vem a florada do
café e a terra molhou bem e depois o tempo esquenta, é uma época boa
de pegar a florada. Mas, quando vem a florada e dá uns dias de
cerração, tempo frio, chuvoso, é um ano que a lavoura sempre
surpreende o produtor, porque quando dá uns dias frio e úmido no café
aparece muita fruta no lugar que está bem exposto, mas não tem fruta
dentro [...], daquelas ramadas fechadas porque a flor que está ali no
meio mela. Agora, quando no tempo da florada, o tempo está enxuto, a
terra está molhada, mas um dia quente, então o de café tem
muita fruta escondida dentro das ramadas. Então, abrindo a ramada
pra ver se tem café ou não. E isso muita surpresa pro produtor. Ás
vezes, aparece muito café, mas as ramadas naquelas partes baixas não
têm café, porque na época de flor teve bastante umidade e melou a flor
e não vingou.
O momento do período produtivo, florada com o café ainda verde,
depois com o café já maduro, ensina modos diferentes de olhar e calcular. A
colheita inicia-se com o café vermelho ou em estágio adequado de maturação
extensivo a 90% a 95% da lavoura, a depender da variedade do café e da
capacidade de espera do produtor, que se vincula à exigência da qualidade do
café e capacidade de pagamento de pessoal “de fora”, os apanhadores de café.
Depois do café colhido e limpo, explica Paulo, o cálculo da produção total é
feito com base na “comparação dos anos anteriores”. A partir da colheita de
144
alguns pés de café, que multiplicados pela área total plantada, dão um resultado
mais preciso. A comparação com os anos anteriores funda-se na experiência
vivida.
Thiago não faz colheita seletiva, e para calcular a produção, usa
procedimento semelhante: “Não, nós espera o café ficar normalmente vermelho,
panha um de café e tira quatro ou cinco punhados, tando 20% verde, 80%
maduro, nós panha daquele jeito, panha tudo”. Esse tipo de colheita, em que
apanham “tudo”, misturando café com diferentes pontos de maturação, é
diferente da colheita seletiva, na qual são apanhados grãos de café com ponto de
maturação mais homogêneo. Em uma ou em outra prática, a família planeja a
colheita considerando a relação entre quantidade de café a ser colhido, pessoal
necessário para a colheita, capacidade de trabalho da família, tempo necessário,
capacidade de pagamento de apanhadores, custos e recursos financeiros
disponíveis. Desses cálculos e dos recursos disponíveis, definem a forma de
colher. Thiago segue falando de sua família e a colheita do café:
É porque se a gente for apanhar seletivo, a gente não conta. Porque
a lavoura, é tudo do pai, meu e do Daniel [irmão], mais de 16.000
pés. Se a gente for ficar catando pra aqui, pra li, passa o tempo da
colheita. vem a chuva, o café começa a perder bebida, o café perde
no pé, broca. Colheita boa de café é junho, julho e agosto. É 90
dias, e esse 90 dias é o prazo mais amplo que tem pra fazer uma
colheita do café.
Na colheita feita com máquina, outros aspectos são utilizados no cálculo.
Após uma semana de colheita, fazem uma média da quantidade colhida e a
relação entre litros de café colhido por dia vezes quantidade de pés de café na
lavoura, dividem pela quantidade necessária para o saco de 60 quilos e concluem
quanto vão colher e quando vão terminar a colheita. Traduzindo em números
objetivos, no caso do Thiago: “Se apanhar 1500 litros por dia, chega no final da
145
semana vai dar 9000 litros, vai dar 28 sacos de café limpo”. Dependendo do
tamanho do grão, ou da variedade; o Catuaí, por exemplo, tem grãos menores;
nesse caso, é preciso maior quantidade de grãos para encher um saco de café;
assim se tem uma variação que vai de 380 a 420 litros de café por saco.
Outros agricultores tomam por base a produção de um de café e
multiplicam pela quantidade total da lavoura; um pode dar, em média, de 5 a
10 litros de café. uma dinâmica entre o olhar que presume im(preciso), mas
muito acertado; é uma ação a colheita parcial que antecipa a colheita total.
Nessas previsões, estão embutidos todos os outros lculos de custo de
produção, valor do trabalho café fruto e valor do produto café mercadoria.
Desses dois valores, decorrem a reprodução da lavoura e a reprodução social da
vida dos agricultores.
O tamanho do grão no momento da classificação para comercialização
ainda traz outro critério de valor: a qualidade do café. Essa se vincula à
tecnologia de produção, aos cuidados na colheita e a todas as exigências
descritas como posição adotada por esses agricultores e as vantagens e
implicações decorrentes de sua inserção no mercado internacional. A “qualidade
de bebida” é de previsão mais difícil; um dos indicadores é a “peneira
equilibrada” ou “maior número de peneira alta, acima de 14”. O café orgânico,
por ter uma nutrição mais equilibrada, aparece com vantagem em relação ao café
totalmente convencional; esse último, explica Lucas:
O convencional costuma dar muito grão chocho no meio, porque,
normalmente, faz uma adubação muito concentrada em nitrogênio o que
faz a planta puxar. Depois ela uma carga e não consegue ter
sustentação de todos os seus frutos, mais frutos “achochiados” que,
na hora de passar na peneira têm uma queda maior.
146
6.3 “Hoje, o café compra tudo”
Hoje, o café compra tudo, arroz antigamente pegava desde a Vargem
até Pouso Alegre, nesta época nós comia, bebia e pagava as contas
vendendo arroz. Hoje, eu não sei se ficou a mão-de-obra mais cara, está
tudo na cidade. Coisa que não pode sair da mão do pequeno é o
pedacinho de terra, isso não pode.
Seu Damião, pai do Thiago
O café produto é o café fruto transformado em mercadoria. O café fruto
carrega todo o processo vivido na história e no cotidiano da vida dos agricultores
produtores e, como o fruto do trabalho do saber chega à colheita, secagem e
embalagem: nos sacos feitos de juta, estampam a marca café do Brasil e o
selos fair trade para ca sat e para ca orgânico. Daqui para o mundo,
transforma-se em mercadoria. É o café produto. Direto do produtor para o
consumidor, eles afirmam.
FIGURA 6. Logomarca das certificadoras.
Fonte: FAIRTRADE. Brasil. O que é fairtrade. Disponível em:
< http://www.fairtradebrasil.net/oquee.asp>. Acesso em: 14 mar. 2008.
Um consumidor exigente; mesmo vivendo fora das fronteiras do Brasil,
pode mandar representantes para visitar as lavouras de café e conhecer a vida e a
organização dos agricultores. A qualidade do produto certificado está vinculada
147
a valores como justiça no processo de produção, fortalecimento da agricultura
desenvolvida com base no trabalho familiar, “pequenos produtores”,
participação emancipatória de mulheres e de trabalhadores, quando existir
contrato de trabalho e quando a relação de trabalho ocorre em bases familiares e
vínculos de reciprocidade. Tudo isso dentro do princípio de preservação
ambiental. Esses consumidores que visitam Poço Fundo fazem divulgação do
trabalho, e intercâmbio, levando e trazendo jovens e adultos para troca de
experiência. Estados Unidos e Europa são os destinos já visitados e os mercados
para onde vai o café exportado.
Como mercadoria, o café-produto é classificado, selado e vendido. Sai
do Porto de Santos diretamente ao destino. No Brasil, até 2007, o café depois de
classificado na Coopfam, passava pelo processo de beneficiamento em uma
empresa credenciada em Varginha, município próximo. Dali segue para os
conteiners de exportação do café em grão. Fica e é negociado no Brasil apenas o
resíduo
48
.
O grão ensacado e pronto para exportação é fruto de um processo que
começou nas lavouras desde o momento da “transição” e “conversão” do
agricultor, que passa a ser produtor de café do tipo “sat” ou “orgânico”. Envolve
práticas já existentes e práticas novas, como um longo processo de produção do
saber desenvolvido nas relações sociais já descritas e nas relação com a terra e a
planta, como práticas destacadas de apropriação do saber.
Além disso, o café-produto contém, ainda, o aprendizado com o
processo de certificação. Ao falarem sobre a certificação do café, os agricultores
dão respostas que trazem oposições, alguns dizem “aprendi tudo”, outros
“aprendi nada”. Os pioneiros, mais uma vez, consideram que mudou pouca
coisa, porque as práticas que já estavam acostumados a fazer para proteger o
148
solo, a certificação melhorou algumas coisas”, diz Lucas. Ao mesmo tempo,
ele aponta como melhoria:
A grande mudança que teve de bito na vida com a certificação é ter
de anotar tudo, porque o produtor não tem costume de anotar as coisas.
Na certificação é obrigado ficar anotando, porque tem que emitir
relatório [...] agora as práticas agrícolas, mudou pouca coisa, porque
umas práticas a gente já estava acostumado a fazer.
Outra mudança nas práticas adotadas foi “plantar em nível. Antigamente
se plantava ladeira abaixo, agora se planta em nível”, como assegurou Lucas.
O misto de saber de senso comum e conhecimento científico sustenta a
flexibilidade e capacidade de mudança.
A prática de roçar em vez de capinar no período de chuva “é uma prática
que o pessoal faz e está dando muito certo”, mas deve, ainda, segundo Lucas, ser
“associada com capina; só “roçassão” a lavoura não agüenta”. O agricultor
aceita a recomendação da certificadora, cuja exigência se pauta pelo
conhecimento científico, mas acrescenta a prática aprendida em sua própria
experimentação e observação em sua lavoura que agüenta” ou “não agüenta”;
reconhece que essa prática “evita a erosão e aumenta o teor de matéria orgânica
no solo”.
Outra prática observada como de senso comum é a capina e
incorporação do mato à terra, ou o mato é deixado sobre a terra, vindo a ser
cobertura morta, proteção para o solo. A orientação para a adoção das exigências
da certificadora vem em uma carta de recomendação e seu cumprimento é
acompanhado pela fiscalização e liberação do selo de certificação da lavoura.
A certificadora recomenda também que o agricultor tenha um “caderno
48
A partir da safra de 2008/2009 a COOPFAM estará instalando máquinas e equipamentos para o
rebeneficiamento do café ( preparação do grão para exportação) em Poço Fundo, em suas próprias
instalações.
149
do produtor”, no qual o registrados todos os tratos dados à lavoura. “Anotar
tudo” ajudou o agricultor a aprender administração, a “calcular o que está indo
bem e o que está indo mal, então ajudou na prática da administração, o que
nenhum agricultor tinha costume de fazer”, diz Lucas. Essa prática, vista como
acesso ao conhecimento científico, favorece a construção do conhecimento
compartilhado quando, por exemplo, os agricultores buscam ajuda nos vizinhos
para aprenderem a preencher as informações solicitadas no caderno do produtor.
Há críticas sobre a postura autoritária e a falta de sensibilidade de alguns
técnicos “de fora” e, também, há um sentimento de “decepção”, eles estão
“escravos” de um outro tipo de “sistema”, o mercado de produtos orgânicos e o
mercado internacional; é o que aparece na fala do Pedro:
E isso pra nós é muito ruim, pra gente que vive na roça, vive do
serviço pesado, sofrido, que não é nada fácil: sol, chuva, geada, seca.
Tudo isso tamo enfrentando, a gente ainda tem pressão em cima. Eu
acho que se tem os regulamento, eu acho que as pessoas que vão
trabalhar, nessa área aí, pelo menos bastante educado e ser uma
pessoa sensível pra isso porque o trabalho na agricultura pra ter uma
produção desejável quase que acaba o produtor sendo escravo do
sistema da mesma forma; um pouco diferente do que era escravo
alguns anos atrás, mas, hoje nós estamos escravos do sistema. A
exigência pela qualidade é grande, a especulação também é grande. E
eu não sei, teve alguns inspetor que veio fazer visita, alguns trouxe
incentivo, outros de repente trouxe decepção. Começou uma
certificadora, ah pode usar tal produto e, de repente, não esse não pode.
Mas você tem que correr atrás de outro produto pra você usar na
lavoura, então você fica correndo atrás de produto o tempo inteiro e
tinha que ficar correndo atrás também: qual produto que eu posso, qual
eu não posso? Então; até parecia que a gente era um assassino da
terra, então eu vejo essa questão aí muito difícil, eu acho também que a
diretoria dessa certificadora devia ser pessoal que tivesse uma parte
dessa diretoria de quem vive de lavoura, para saber quanto custa,
porque esse é o caso de você discutir. Falar uma coisa é fácil, mas
viver ela é diferente.
150
A presença de técnicos que se mantêm à distância é uma “decepção”
para esse agricultor. A lavoura, para ele, é a vida, falar é diferente de “viver”. É
trabalho árduo, é luta por respeito, por autonomia. Produz indignação quando o
agricultor se vê submetido à certificadora quando, para definir qual insumo deve
comprar, e precisa dirigir a ela com a pergunta: “qual produto posso, qual não
posso?” O mercado de produtos orgânicos amplia suas ofertas, mas somente
aqueles aprovados pelas certificadoras podem ser usados pelos agricultores.
Portanto, na relação entre o mercado e os agricultores, mediada pela
certificadora, observa-se a recusa e a aceitação da dependência, ou uma
independência relativa porque a rigidez das normas é um claro limite. Tomé faz
uma crítica
Ou você se curva às normas que estão propostas, ou você está fora do
processo de certificação; isso, digo, não para a certificação
orgânica, mas para todo certificado, né?. Não existe nenhum produtor
nesses países, participando das certificações, dos processos que são
criados. Eles criam normas e mandam você engolir.
Em suas falas, encontra-se também uma proposição de participação de
agricultores na definição e criação de processos de certificação. Os agricultores
dizem ser aqueles que “sabem quanto custa”, o trabalho árduo, de sol a sol,
chuvas e secas, tratos e cuidados, colheitas da vida, não só do produto.
A dependência não gera conformismo. Tem um conteúdo contraditório
porque está contida em um processo de disputa de poder: os agricultores estão
indicando uma outra composição da diretoria da certificadora e consideram que
estão “um passo na frente” das certificadoras, em si tratando de alguns aspectos
importantes, como afirmam Lucas e Pedro, respectivamente, ao falarem da
proibição regimental adotada pela associação e pela Coopfam– não ao uso do
agrotóxico:
151
Em relação a várias coisas a gente está um passo na frente. Isso vem da
visão que tem a gente, com alguma visão que vem de fora e ajuda a
gente. A gente sempre teve uma visão, a gente vendo que o mundo
inteiro de um certo tempo pra cá vem nesta onda ecológica. Então já faz
tempo que a gente sabe que, mais cedo ou mais tarde, produto de
exportação com agrotóxico vai ter problema. A gente aqui correu logo
para evitar esse problema. Por exemplo, o Basistron [agrotóxico] que é
usado aqui [no Brasil], a gente sabe que é um produto alemão e na
Alemanha é proibido há 30 anos. A gente sabe que isso aqui não vai ter
futuro.
Convencional é, vem o pessoal que pressiona para entrar na
cooperativa e mas que libere o agrotóxico. E essa questão do
agrotóxico, a FLO permite o uso de agrotóxico, mas quem colocou esse
regulamento a exigência foi s da Coopfam. Dentro da Coopfam, nós
não permitimos o agrotóxico, isso é uma questão de ética para
oferecer um trabalho diferenciado. Porque, na verdade, nós aqui de
Poço Fundo nós não vendemos o café, s vendemos a nossa história,
de muitos anos de luta e trabalho sério, isso que deu a diferença.
Porque café com agrotóxico, café de cooperativa, café comum por aí,
isso tem muito no país. Então é muito bom quando você chega pro
consumidor você vai oferecer além do que ele que você vai oferecer
uma vantagem a mais porque se ele pede um café de produção
familiar, você oferece além de um café de produção familiar um café
sem agrotóxico você tem uma diferença a mais.[...] Porque o nosso
trabalho fez a diferença e isso nós não pode perder de vista nunca.
A fiscalização do cumprimento das exigências tornou-se de
responsabilidade dos agricultores. É uma conquista decorrente de negociação e
de busca de competência técnica para realizar a substituição (ainda parcial) dos
técnicos fiscais das certificadoras. O trabalho de visita para inspeção de todas as
lavouras é feito por eles, com equipes que receberam “treinamento” da própria
certificadora. Hoje, anualmente, os técnicos da certificadora fazem uma vistoria
por amostragem mínima (10% das propriedades) tomada por sorteio. Visitando
as lavouras sorteadas para inspeção, confrontam-se os dados observados com os
dados registrados nos relatórios dos fiscais equipe dos próprios agricultores -
152
os dados conferidos são generalizados. Isso reduziu o custo pago pelos
agricultores para a certificação, capacitou-os, aumentou seu poder de barganha e
negociação política. Evitou embates com técnicos “de fora”, que “não sabiam
nada e criavam confusão no meio dos agricultores”, acrescenta Lucas.
A previsão da colheita para negociação em mercado futuro é feita nos
meses de março a abril, “muito antes da colheita”. É de responsabilidade
compartilhada: os agricultores “anotam tudo” no caderno do produtor, os fiscais
dos agricultores que atuam por bairro ou de acordo com a quantidade de
cooperados de sua responsabilidade fazem um relatório setorial. A direção da
cooperativa junto com a certificadora analisam os dados, fazem a previsão da
colheita e fecham acordos comerciais. Nenhum dos entrevistados apresentou
conhecimento sobre esse tipo de negociação. Encontra-se, ainda, muito
centralizada na gerência da cooperativa. Nesse caso, podemos dizer que ainda
não estão, de forma coletiva, “a um passo na frente”, ainda não ocorre uma
apropriação coletiva do saber a respeito do processo de exportação de seu
produto. O saber está concentrado e delegado a seus representantes os
dirigentes da cooperativa e da associação, e especialmente, concentrado no
presidente e gerente da cooperativa.
Estão a um passo na frente” no que se refere às “complicações”, às
exigências da certificadora, negociaram práticas agrícolas exigidas e que são
inviáveis na agricultora de pequenas propriedades, como, por exemplo, barreiras
(as linhas de bananeira) de “50 em 50 metros no meio das terras”, dentro da
lavoura, mas fazem as “barreira em torno do terreno”, pondera Thiago.
avaliações que consideram erradas”, certas exigências da certificação que, por
ser internacional não consideram as diferenças entre os países integrantes dessa
rede. O tempo de transição passagem de café sat para orgânico - e acesso ao
selo que certifica o café orgânico é questionado, considerando que o Brasil é
regulado por normas externas às características de um país tropical.
153
Seus questionamentos conseguiram reduzir a burocracia da
certificação. Agora têm dois selos, dois certificados: um do café “sat” e outro de
café orgânico, vendidos no mercado fair trade, ou “mercado justo”. Encontram-
se na disputa com quatro grandes propostas: certificação participativa,
certificação de origem – um certificado nacional reconhecido internacionalmente
não uso de agrotóxico para produtores integrados ao “mercado justo” e o
(possível) fechamento desse mercado para grandes produtores. Por enquanto, a
FLO vem assumindo compromissos com esses agricultores, no que diz respeito
às duas últimas propostas. Mas, a certificação de origem é bandeira de luta de
agricultores participantes da rede nacional de agricultores orgânicos brasileiros,
é um luta política nacional de repercussão em negócios internacionais.
Matheus admite que a presença das certificadoras contribuiu como uma
“questão de educação”, uma contribuição no processo de produção do saber,
ponderamos nesse estudo. As exigências da certificadora envolvem um rigoroso
controle no manejo da lavoura, na secagem do café, na preservação ambiental,
no fortalecimento de relações de trabalho dignas e justas. Na inclusão da
valorização do trabalho das mulheres, por exemplo. Entretanto, Matheus põe em
questão o rigor das certificadoras no cumprimento de suas próprias exigências,
considerando que elas atendem a demandas do mercado e a grandes empresas;
ele se pergunta: “estariam combinando tudo isso com suas exigências de
preservação ambiental? Estariam elas assumindo suas posições com coerência,
honestidade e força? Uma coisa é sua exigência com os agricultores familiares
cujo rigor é muito claro, mas dúvidas sobre o rigor adotado por elas em
relação a outros produtores. Ele diz:
Não, em sei a certificadora... até porque esse processo não sei se ele é
seguido rigorosamente, porque a certificação é um certificado de
qualidade de produto, para nós ele significa isso. Agora a partir do
momento que a entidade preocupa com a certificação, ela faz inspeção.
154
Então, a gente que isso é uma questão de educação pra nós. Ter os
cuidados, seguir todos os critérios exigidos por eles está ajudando na
conscientização de que essa coisa não é pra ser desleixado. Agora, até
que ponto a certificadora tem uma preocupação ambiental ela pode ser
questionada hoje, porque, na verdade, a certificadora, a FLO, por
exemplo, o ela teve a intenção de querer certificar fazendas grandes e
não tinha uma preocupação rigorosa. Pode ser que a coisa nos
critérios deles seria isso, mas parecia que tava querendo passar pela
certificadora era a questão mais econômica, satisfazer a demanda do
mercado e não os critérios ambientais em si. Então, ficou uma certa
dúvida, para nós é importante toda inspeção que ela nos educa, mas
até que ponto a certificadora está sendo coerente e honesta com aquilo
que ela prega eu não sei, se é verdade isso, essa tendência demonstrou
a fragilidade dela.
Nessa afirmação verificamos a consciência das contradições da
certificadora. Sua atuação fiscalizadora pode ser observada na cobrança feita em
cada pergunta dirigida aos agricultores presentes na entrevista coletiva realizada
pela FLO, logo após a assembléia da Coopfam, em 18 de março de 2008. A
seguir, uma nota dos registros do caderno de campo testemunho desse
controle. Apresentamos um recorte das observações:
18/03/07
Entrevista coletiva.
(Inspetoras da FLO com os agricultores)
Esta reunião teve como objetivo uma entrevista coletiva com
representantes dos grupos. Ocorreu logo após a assembléia
geral da Coopfam.
FLO: Como vocês estão funcionando em termos de
comunicação e representatividade?
Agricultor: Somos organizados em núcleos ou grupos. Todo
primeiro domingo do mês acontece uma reunião de
representantes e uma reunião de grupo no bairro.
FLO: Esse representante é eleito?
155
Agricultor: É. Todo mundo tem o mandato de 2 anos, e é
eleito com a eleição da associação de Poço Fundo. “Todos são
associados, mas nem todos são cooperados”.
FLO: Como está a cooperativa na região?
Agricultor: Tem muita gente que quer entrar. Tem muito
assédio. Existem altos e baixos, por exemplo. o café está
dando bom preço, tem gente que quer entrar. Se com
preço ruim, quer sair.
FLO: Quais são as normas?
Agricultor: Primeiro, o usar veneno. Segundo, não
degradar. Quem pode entrar? O critério
49
é o mesmo do
PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar), 80% da renda vem da agricultura
familiar. A associação aqui é igual ao purgatório,[primeiro
passam 6 meses participando da associação, depois passam
a ser cooperados]; a pessoa tem que olhar para o futuro, não
só olhar para o presente.
FLO: Qual é a diferença entre estar na cooperativa e não
estar?
Agricultor: O mais importante é a organização, tem que
ser associado, tem que cumprir as normas. O mais
importante de estar aqui na cooperativa não é o
49
Critérios do PRONAF que definem agricultor familiar: 80% da renda é oriunda da
agricultura, a mão de obra é familiar com possibilidade de contratação de até 2 trabalhadores
permanentes, área de terra igual ou inferior a um módulo rural (30 hectares no caso da região sul).
O módulo rural, de acordo como o INCRA, “é uma unidade de medida, expressa em hectares, que
busca exprimir a interdependência entre a dimensão, a situação geográfica dos imóveis rurais e a
forma e condições de seu aproveitamento econômico”. INSTITUTO NACIONAL DE
COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Perguntas e respostas sobre a reforma agrária. O
que é módulo rural? Brasília, 2006. Disponível em: < http://www.incra.gov.br>. Acesso em: 27
mar. 2008.
156
produto, o valor do produto, é trabalhar a consciência,
trabalhar preservando a vida. A vida é o meio ambiente.
Agricultor: Minha segunda casa é aqui,; aqui é minha família,
se tem um problema na comunidade [...] nós temos pessoas
que estão passando dificuldade e nem por isto desistiram.
A nossa diferença é a estabilidade de preço. [o preço não
está adequado] Para enfrentar tudo que nós enfrentamos:
crítica dos outros, trabalho, nosso produto deveria ser melhor
valorizado.
* outras questões também foram respondidas: sobre a
participação das mulheres e sobre o destino do lixo na
propriedade.
Fonte: pesquisa de campo.
O trabalho de preservação ambiental é “rotina” na vida desses
agricultores, a certificação e os consumidores valorizam o produto que contém o
selo que garante essas práticas. Também para o agricultor, a certificação
significa confirmação da qualidade do produto.
Entre ensinar e não ensinar, exigir e complicar, as certificadoras estão
presentes no processo de produção do saber desses agricultores; se não atuaram
diretamente, atuaram indiretamente: reforçaram práticas do senso comum e
exigiram práticas do conhecimento científico que fizeram com que os
agricultores buscassem pessoas “de dentro” ou de “fora” para “ensinar”. A ONG
Sapucaí,
50
segundo Thiago, foi a que mais ajudou, “ensinou bastante: como é
que faz a barreira, como é que faz um café produzir, como é a terra, análise de
solo, mas tudo via Sapucaí, e não via certificação, não.” Para Paulo, a
certificação significou “aprender tudo”, já que ele fez a conversão de produtor
50
Centro de Assessoria Sapucaí, ONG, situada em Pouso Alegre e atuante em Poço Fundo e
região. Ver relatórios de cursos, visitas técnicas em Anexo B.
157
convencional para orgânico.
Dona Emília também aprendeu “a forma do adubo e de produzir”.
Aprendeu os cuidados com a secagem do café: dessa depende a qualidade da
bebida, valor de referência, uma das determinações do preço do café no
mercado. No terreiro de secagem de café, não se pode jogar lixo: plástico, toco
de cigarro, folhas de plantas diferentes, cascas de frutas, não pode passar
galinhas e outros animais. O lixo é recolhido, levado para casa e depois para a
cidade. Segundo ela,. a certificação “começa na planta”. E, como todos dizem,
os cuidados com a planta começam com os cuidados com a terra, terra e planta
“equilibradas” são frutos da relação entre o trabalho da natureza e o trabalho do
saber desses homens e mulheres – “agri-cultores”.
6.4 “Nós somos universais”
Nós somos universais. Nosso produto não é nosso. É de todas as
pessoas sem fronteiras. Na verdade, essa preocupação de que o nosso
produto vai pra outros lugares diferentes, de certa maneira, ele nos
satisfaz, nos enche nosso ego [riso] e faz a gente se preocupar de que
realmente nós somos mais importantes do que a gente parece ser.Então
por isso, a gente aprende a tomar mais cuidado ainda. A gente tem que
ser eficiente, tem que ser profissional naquilo que a gente faz.
Matheus, agricultor associado.
Possivelmente, o agricultor que faz essa observação esteja se
aproximado do que Berticelli (2006, p.22) afirma, ao tratar da categoria
“universal”, dizendo o seguinte:
o conceito de ‘homem/mulher universal’ que utilizo, nada tem a ver com
o sujeito moderno, centrado e consciente de si e que, num ato de
consciência, produz e domina o mundo. Esse/essa homem/mulher
universal é aquele que, entre os demais seres, compartilha com eles sua
158
natureza, mantidas as diferenças e singularidades. É universal
enquanto parte não estranha do universo. (grifos nossos)
O café-fruto que contém todas as relações já descritas é produto de
exportação. Significa também uma satisfação pessoal e coletiva; orgulho e
vitória podem ser traduzidos na dimensão de serem “universais” como
produtores de um “produto sem fronteira”. O café de Poço Fundo ganhou o
mundo, circula no mercado globalizado. Exportado para os Estados Unidos e
para a Europa “pertence a todos” além da fronteira do Brasil, mas,
simultaneamente, não pertence aos brasileiros consumidores, que “vivem à
margem do que é bom”, “mesmo quando somos nós os produtores”; são
expressões cruzadas de Tomé e Matheus.
O não-interesse do governo e de consumidores brasileiros pelo café de
Poço Fundo incomoda, mas ainda não mobilizou iniciativas de alteração dessa
situação-limite. A exportação hoje exige muito trabalho, negociações com
compradores e consumidores (que visitam Poço Fundo para conhecer a família e
a organização dos agricultores, o modo de plantar e o modo de viver que
asseguram a qualidade do produto), participação em feiras internacionais,
intercâmbio de pessoas e saberes vividos como troca de experiências. Existe um
tempo “antes” e “depois” da exportação do café; essa experiência é um marco.
Eficiência e profissionalismo passam a ser práticas e conceitos cobrados de
fora” e reproduzidos internamente; saem da casa para a lavoura, da organização
ao produto. A comercialização é a ponta do processo e, nessa ponta, poucos
chegaram como aprendizes da negociação o valor do produto é determinação
externa, depende de acordos internacionais e do valor do dólar; em Poço Fundo
é negociado primeiro no tempo da “florada” no mercado futuro.
É uma “escola” difícil. Entre um aprendizado “difícil” e o aprendizado
ao longo do processo produtivo e de organização, a exportação passou a ser ato
delegado da base ao representante eleito para presidente da cooperativa. A
159
delegação de representação tem poder parcial, encaminha deliberações da
assembléia, mas o poder do conhecimento de procedimentos, burocracias,
acordos internacionais, pagamentos, valores em moeda internacional e a
necessidade de agilidade na tomada de decisões tende à centralização das ações.
um aprendizado compartilhado: da “filosofia” um modo de ser,
pensar e fazer que orienta suas vidas e o compromisso com as práticas de
produção de um produto de qualidade, saudável, cujas dimensões sociais,
ecológicas e políticas são afirmadas como mais importantes do que o valor
econômico. Entretanto, o valor econômico é o valor importante, afirmado e
negado, ao longo das falas. Trata-se, portanto, de uma contradição que equilibra
pesos que simbolicamente recebem valores diferentes buscados como valor
simbólico que ancoram a proposta de sociedade justa. Simultaneamente, na
mesma lógica da busca da justiça como valor, o peso do valor econômico os fez
negociar seu produto fora do Brasil, ou seja: o valor econômico também é
definidor da estratégia de valorização de seu trabalho e de seu produto. Assim, a
queda no valor do lar produz definições e redefinições da política econômica
do governo brasileiro e vem implicando em desvalorização do café-produto a
cada ano. Poucos analisam as determinações de relações internacionais e a falta
de in (dependência) do Brasil. Tomé explica:
É grande o problema nosso, mas não é mais o valor pago em moeda
corrente, no caso, o dólar, né. Mas é a questão cambial nossa aqui no
Brasil, uma questão mais interna. Porque em 2001, quando nós fizemos
a primeira venda nós vendíamos ao dólar a 1,26 e chegamos a vender a
600 dólares a saca. Hoje [2006] a gente vende por 25 centavos ou mais
ou vendemos por 1,52 e recebemos 440,00 então a questão é cambial,
mais uma vez nós pagamos a conta da burrice de quem administra esse
país por não entender que o dólar desta forma, não adianta eu querer
levar meu produto a 1,80 porque o importador compra do México,
Peru, Colômbia a U$1,40, U$1.50 e a gente não consegue
vender.Então, isto é uma questão cambial, o real frente ao dólar está
muito valorizado, que isto não é benefício nenhum para o produtor
160
de café, pelo contrário, traz situações difíceis.
Há problemas nacionais e problemas internacionais; estão lidando com o
mercado – mesmo que, na vertente do mercado justo e solidário – não se trata de
uma fuga ao mercado, mas uma integração a ele, preconizando outros valores,
porém, o mesmo mercado. E como bem pondera Lucas: “no processo de
exportação [eles] têm que entrar no jogo das grandes empresas que estão ligadas
a isso. Tentar criar uma coisa independente fica muito difícil”. Novamente, a
independência é relativizada no jogo que está sendo jogado entre produtores,
compradores e consumidores. A relação direta entre produtores e consumidores,
preconizada também, como valor, é atravessada pela mediação dos grandes
supermercados e empresas multinacionais. Ao participarem de feiras
internacionais fazem divulgação do produto e dos produtores, fazem
“marketing”, não vendem o produto, mas estão levando o “trabalho” e a
“filosofia de vida”, como afirma Matheus.
6.5 Outros achados no processo de produção do saber apropriado
A prática de reconhecer a terra pelas plantas indicativas é prática adotada
do modo de produção camponesa: “olhar” e “ver” é uma “sabedoria” do tempo
dos avós, mas como assegura Lucas, esse “costume” mudou: antes a terra
reconhecida como “ruim”, “seca”, não poderia ser plantada, não daria produção,
hoje eles “sabem” que “a terra seca é terra de ph baixo, e hoje é possível corrigir,
então foi uma grande mudança, então hoje não tem mais terra que não produz, a
terra pobre a gente corrige”.
O acesso ou a aproximação do conhecimento científico produz, nesses
agricultores, a potência de quem pode alterar as condições “dadas” como
naturais, ou resultantes de degradação ambiental anterior para uma possível
“correção”, gerando a mudança das condições de fertilidade da terra, uma
161
correção feita com tecnologia de produção orgânica, que se diferencia, como já
dissemos, daquela realizada pela tecnologia de produção convencional/moderna.
também uma mudança no que conceituamos junto com Woortmann &
Woortmann (1997), a respeito do saber camponês que considera que a terra está
correta, é dom de Deus e como dádiva é preservada, é conservada.
No caso dos agricultores de Poço Fundo, a terra pode ser “corrigida”
com o uso de tecnologia apropriada para o aumento de sua fertilidade, o que
seria uma lógica da agricultura convencional moderna; uma aproximação do
conhecimento científico. Tal aproximação se dá no nível da necessidade de
aumento da fertilidade da terra e da produtividade da lavoura; porém se
fundamenta no princípio da preservação ambiental.
uma ruptura com o saber camponês no que diz respeito à lógica de
uso da terra “sem correção”; entretanto, estão garantindo o respeito á terra como
valor simbólico no sentido do uso de tecnologia de produção comprovadamente
preservacionista. Estão usando práticas que aumentam e estabilizam a fertilidade
da terra. Seus antepassados, os camponeses, não corrigiam a terra, mas faziam o
uso do sistema de rodízio, que combina pousio e lavoura, ou lavouras rotativas.
Enquanto as terras eram “soltas”, sem limites de fronteiras, foi possível a
manutenção da fertilidade da terra; porém com o cercamento das terras e o uso
continuado, esse antigo sistema provocou a redução e, em alguns casos o
esgotamento da fertilidade da terra. Como a terra está dividida ao limite de
produção para sustentação da família, eles avaliam que esta prática antiga”
estraga a terra, degrada.
Além do esgotamento da terra pelo sistema de pousio em áreas limitadas,
o desmatamento desenfreado, desordenado são “erros do passado”, junta-se a
isso a lavoura de coivara, que usava a prática da queimada; atualmente
abandonada por eles. Hoje depois de três, quatro anos de plantio a terra está
recuperada, no tempo deles” os avós - a terra ia descansar porque estava
162
“estragada”.
Tomé denomina essa prática camponesa de “sistema de migração”, “mas mesmo
assim eles tinham grande respeito pela natureza”, eles “descobriram o milagre da
semente plantada na terra que vai se transformar em um saco de alimento, eles
aprenderam o milagre da agricultura” e os agricultores associados trazem deles
esse aprendizado.
Na temporalidade da agricultura camponesa, o ritmo de vida não era
desenfreado, não havia uso especulativo da terra, “a terra era sagrada,
sobreviviam e matavam a fome da família”. Com eles, aprenderam que “a vida é
passagem, não somos donos do mundo”, desse princípio anunciam a necessidade
de criar uma vida saudável para a família, para o consumidor, para as gerações
futuras.
A preservação das nascentes era decorrente da lei costumeira, hoje é a
“força da lei”, das instituições legais e, no caso deles, as determinações do
mercado orgânico” que exige dos produtores a preservação de árvores junto às
nascentes, o que era feito “antes” e o uso de cercas para evitar acesso de
animais, o que é acrescentado hoje.
O sol, a chuva, a lua, a terra, a planta, os pássaros e os animais,
elementos nucleadores da cosmovisão da prática camponesa, como descreve
Woortmann & Woortmann (1997), e que se encontravam na gramática dos
relacionamentos”, em Brandão (1999), são resignificados na prática dos
agricultores associados. Sol, chuva e lua, não têm significados místicos, a lua é
quase apagada como referência da prática agrícola, alguns agricultores se
referem à lua como importante para a poda da planta o café. Nesse caso,
porém muitos dizem não se orientarem pela lua. O sol é importante, óbvio, mas
o olhar é de quem o compreende como aliado da natureza. O conhecimento dele
é um conhecimento técnico e o místico. É relacionado ao planeta, ao
aquecimento global e à lavoura. A luminosidade e a posição do sol poente ou
163
nascente são influências importantes na dinâmica de crescimento da lavoura,
“pegamento da florada”, “maturação do café”, equilíbrio da safra, da colheita.
Sem a chuva é praticamente impossível, a “planta necessita de uma umidade “x
para que a terra disponibilize seus nutrientes”. A chuva no tempo da colheita
“aumenta a catação” e pode prejudicar a qualidade do café e aumenta o custo da
“apanha”, diz Matheus.
Assim, elementos da “natureza” são relacionados a intervenções técnicas
específicas e previsões de custos demandadas, nesse caso, não uma lógica do
mundo criado por Deus, mas um mundo criado pelos homens e mulheres, em
uma posição de quem a natureza como aliada. adoção e ruptura do saber
camponês; adoção e ruptura do conhecimento científico na produção do saber
apropriado; nisto vão fazendo uma seleção.
Esse processo é mediado pelo mundo que estão fazendo e no qual estão
se fazendo, na superação do saber de experiência feito, dizemos fundamentados
em Freire (1985, 1992) com Santos (2001, 2002, 2003) consideramos as
relações possíveis, e que estão ocorrendo, entre o saber de senso comum e o
conhecimento científico em uma possível produção de saber de senso comum
emancipatório, um conhecimento prudente; com Moscovici & Hewstone, (1984)
dizemos que um processo de apropriação da ciência pelo sábio amador, o
agricultor de Poço Fundo, sujeitos desse processo.
ainda sua relação com a tecnologia de produção orgânica; nesta se
agrega a seleção do saber camponês e do conhecimento científico gerado nesse
processo de aproximação com os mesmos. Na relação com a tecnologia de
produção orgânica uma aderência, uma adoção com poucas restrições, trata-
se de uma escolha balizada em valores que fundam sua nova identidade e seu
projeto societário e planetário. Esta opção é potencializada com valores de
máxima positividade como a preservação da vida “saudável” de gerações
presentes e futuras, do ambiente, enfim do planeta terra vivo.
164
Agricultores associados lidam com o princípio de diversidade de
produção que se relaciona ao modo de produção da vida camponesa, e, aqui,
verificamos uma certa especialização desses agricultores. O café é o centro da
produção agrícola, em seu cultivo traços da prática da diversidade que se
mantém quando “no meio do café plantam de tudo”. Feijão e milho são
plantados, “só para o consumo”; acrescenta-se abóbora, mandioca e frutas como
mamão, abacaxi, limão, banana, abacate dentre outros: preserva-se o princípio
da subsistência porque esses não são produtos comercializados, são plantados
“só para o gasto”. Esses plantios exigem cuidados; no caso do abacaxi, Dona
Emília fala da dificuldade, tentou cobrir os frutos, mas “se bicho não come
por cima, come por baixo”, é a disputa entre passarinho e tatu. O amendoim,
também é atacado por tatu, uma forma de controle é mudar o plantio de lugar
“porque os animais se acostumam com aquele lugar”, no ano que fartura o
amendoim é trocado por rapadura, a mistura dá pé-de-moleque, doce muito
apreciado. Por outro lado, a presença dos “bichos” significa diversidade e
equilíbrio na relação terra “saudável” e lavoura “saudável”, sem veneno.
Lucas explica que um pouquinho de arroz e feijão podem ser plantados
em lavoura de café novo”, mas como o “arroz é da família das gramíneas”,
concorre com o café, “prejudica”; o “feijão só ajuda” porque é leguminosa
conhecida na adubação verde. Aqueles que se orientam pelo princípio da
subsistência plantando “de tudo na lavoura de café’ fazem uma redução no
dispêndio de dinheiro para a compra de tais alimentos, “sabem” a qualidade do
alimento consumido, e ainda diminuem o deslocamento da casa para a cidade.Há
nessa prática uma mostra da recriação do senso comum e da afirmação do
conhecimento científico.
A chuva que cai na terra fofa não prejudica o café orgânico, diferente do
café convencional comum; nesse, a chuva “encharca”, “lava demais” o solo no
qual se usa “veneno”, defensivo agrícola que deixa a terra dura. O trabalho do
165
agricultor garante que a planta tenha raízes que se espalham e aprofundam-se na
terra buscando água ou “alimento”.
Passarinhos controlam borboletas, gafanhotos e outros insetos, o controle
biológico produz o equilíbrio biológico, mas qualquer excesso de inseto pode ser
um tipo de praga. Essa, como já vimos, é controlada pelo equilíbrio da relação
terra-planta.
A sociabilidade entre famílias e vizinhos é traço preservado da cultura
camponesa, Matheus diz que a “socialização maior” vem de seus pais e avós.
Trata-se, segundo ele, de um saber familiar:
O saber eu considero a questão familiar é importante, na verdade os
nossos avós a socialização era muito maior do que é hoje. Hoje com a
tendência da economia neoliberal, uma tendência, um capitalismo
muito forte, as pessoas serem muito egoístas, trabalhar cada um por si
mesmo. Nossos pais, nossos avós, eles tinham um trabalho mais social,
família, muito maior. Então isso pra nós é um pouco preservado.
“Até hoje no caso de nossa família, isso ainda existe, não é talvez como
no passado, mas isso com certeza nós preservamos esses laços de
colaboração, de cooperação entre os membros da família, não é aquele
sistema de cada um pra si e Deus pra todos, é um sistema da gente
poder colaborar um com o outro na medida do possível. Principalmente
quando alguém tem uma dificuldade, problema de saúde junta o
pessoal, os irmãos, os vizinhos pra ajudar.
No processo de produção do café, outras rupturas visíveis. A capina
aprendida com os avós, “essa foi praticamente abandonada”, sendo substituída
pela rocadeira. “O ruamento das lavouras era diferente, hoje se planta em curva
de nível”. Segundo eles, os avós, as lavouras quanto mais alta, melhor, isso é
reproduzido, porque “é científico”, continua explicando Matheus:
Isso permanece, isso é científico mesmo. Quanto mais perto da água
maior risco para a qualidade, por causa da neblina. Quanto mais alto,
166
melhor. Então é uma coisa que nós aprendemos da teoria deles e isso é
comprovado cientificamente que é certo. Embora é um problema
ambiental, com essa orientação houve desmatamento das encostas, na
realidade no sistema que nós chamamos do ciclo da água isso é
prejudicial, porque nas encostas deveria ainda existir as matas para
que o excesso de chuva não escorresse pras vargens e fizesse as
enchentes. Se as nossas encostas ainda tivessem com suas matas nativas
nós diminuiríamos os índices de enchentes. O problema das enchentes
hoje é muito maior por causa do desmatamento das encostas. Então,
isso é uma idéia que foi passada de nossos avós que é errada, mas
ainda continua fazendo até hoje quase todas as encostas são ocupadas
com lavouras, quase todas.
A preservação das nascentes foi melhorada, “antes” conservavam, as
árvores, mas não evitavam o acesso do gado, hoje as nascentes são cercadas.
Outra sabedoria do tempo dos avós que não é mais usada é o plantio do
café em cova funda, explica Thiago. O carro de boi, a tração animal, “um
serviço lento”, como diz Pedro, deixou de ser usado devido a mudanças e
redução da área das propriedades. Mas, a lentidão do serviço do animal foi
trocada pelo uso da máquina para atender ao “corre-corre da vida hoje”. Afinal,
o serviço que o carro de boi fazia em 8, 10 dias, o trator faz em apenas um dia,
junta-se a isto o fato dos animais “ocuparem o espaço da lavoura”. Além disso,
na época de cuidar da lavoura é época de seca e nesta época o “bicho está fraco”;
esse serviço foi deixado, “não tem como voltar atrás”. O uso da “maquina” ainda
tem a vantagem de fazer aração e incorporação do mato de “terra suja”,
“aproveitando tudo que a terra criou”.
Deparamo-nos com em que a possibilidade de considerar que a cultura
camponesa está em uma bifurcação: por um lado, explica certos cultivos e, por
outro lado, é negada. Permanece porque muda, como afirma Freire (1977).
Categorias como a rentabilidade, o melhor preço e a busca de produtividade são
referências para explicar a lavoura escolhida e o modo de cultivar escolhido por
esses agricultores. A terra disponível para o plantio – própria e/ou em parceria, o
167
tamanho da família, sua capacidade de trabalho, o modo de plantar e a qualidade
do produto definem a quantidade a ser produzida. Sua produção se destina ao
mercado externo e o “pro justo” é objetivo político e garantia da reprodução
social desses agricultores. Sua produção não se destina apenas a suprir
necessidades de subsistência, mas assenta-se em uma base econômica que possa
assegurar outras formas de aquisição de bens materiais e simbólicos. Bens que
se concretizam em conforto expresso nas condições dignas de moradia,
educação e lazer; bem como na melhoria contínua de suas condições e meios de
produção, assim como no acesso a possibilidades de viagens de troca de
experiências com outros agricultores em diferentes lugares do Brasil,
participação em congressos, simpósios, realização de palestras e discussões em
escolas e universidades, ações de representação política no nível municipal,
nacional e internacional, viagens de intercâmbio internacional, participação em
feiras no exterior, acesso ao mundo exterior de maneira presencial e virtual
(computadores e Internet) fazem parte da dinâmica de suas organizações e de
suas vidas.
168
CAPÍTULO 7
O SABER APROPRIADO E O MÉTODO
Os agricultores sujeitos da produção do saber apropriado viveram e
vivem um processo de permanente aprendizado que gesta e torna vivo esse
saber. Trata-se de um processo aproximação e ruptura, repetição com
observação e experimentação, criação, recriação; adotação total ou parcial,
ruptura ou negação total ou parcial do saber de senso comum e do
conhecimento científico. Essa dinâmica produz uma síntese da relação entre o
saber de senso comum e o conhecimento científico que estamos chamando de
saber apropriado. É o que podemos visualizar na Figura 7:
FIGURA 7. Dinâmica de produção do saber apropriado
51
Fonte: pesquisa de campo
51
Este desenho é resultante de uma conversa com Gregório Jean Varvakis Rados, PhD,
Coordenador do Programa de Pós Graduação em Engenharia da Produção e Gestão do
Conhecimento/ EGC da Universidade Federal de Santa Catarina, Marízia Ferreira Araújo, doutora
em EGC e eu; realizada em fevereiro de 2008.
A dinâmica de produção do saber apropriado
Saber de
senso
comum
Conhecimento
científico
Saber
apropriado
169
Como vimos, o temas geradores das relações que produzem o saber
apropriado: os sujeitos e suas relações sociais, a terra, a planta, o fruto e o
produto..
As mudanças produzidas na vida desses agricultores revelam uma saída
da condição de pobreza, isolamento no local, desvalorização do produto de seu
trabalho, como vimos nas descrições e análises do Diagnostico...(1994) para o
acesso à condição de vida digna, expansão de sua sociabilidade reforçando laços
e vínculos locais que garantem a solidariedade e reciprocidade interna à família,
ampliada em suas organizações de grupos de bairro, grupos de representação
política, comercial e troca de experiências que se articulam nos níveis local,
nacional e internacional. Esse é o sujeito produtor do que estamos denominando
de saber apropriado; apropriado no sentido de se tratar de um saber refinado que
se tornou adequado às escolhas, objetivos e projeto de sociedade que ancora a
vida desses agricultores em sua trajetória de luta cotidiana permanente,
individual, familiar e coletiva.
Partindo do pressuposto de que o sujeito que conhece se move a partir da
curiosidade epistemológica, esses agricultores estão respondendo a questões
centrais como: o que é? Como se faz? Quais são os resultados? Dos resultados:
o que serve e o que não serve para suas vida? No limite da impossibilidade de
descartar saberes e exincias externas, vão produzindo acomodações que
compõem um significado de apropriação desses limites no corpo do saber que
assim sendo torna-se mais uma vez apropriado. baixo nível de ingenuidade e
alto nível de posição crítica. Não se con-formam, vão se formando.
Na relação com a natureza, como se viu não se trata, de uma natureza
natural, mas socializada, compreendida como meio ambiente em que os mesmos
se incluem ora como atores, ora como observadores contempladores,
observadores participantes, ora como experimentadores, “pesquisadores”
sujeitos ativos. Esta relação se faz, não pela subordinação e domínio da natureza
170
pelos seres humanos, mas pela respeitosa relação em que os últimos podem
aprender com a natureza de forma interativa.
Transparência e simplicidade, intenção e gesto fundados, no saber de
senso comum traduzido no saber de experiência feito, podem ser atribuídos a
uma dimensão do saber apropriado, mas esse apresenta grande densidade e
multiplicidade de formas práticas, que descrevemos de maneira parcelar nesse
trabalho.
Aproximam-se do método de trabalho científico quando reproduzem
observações e experimentações, porém, o modo de avaliação dos resultados tem
senso prático que articula atendimento a necessidades imediatas e de longo
prazo, próprias e locais, bem como coletiva e planetária. Os sujeitos do saber
apropriado expressam com clareza seu lugar posicionado no mundo, não
defendem neutralidade ou imparcialidade: um compromisso explícito com a
vida, a dignidade, a justiça e a solidariedade. Sua intenção não é oculta, sua
prática é compartilhada.
Procuram a teoria no interior da prática (do saber de camponês) e a
prática de teoria (do conhecimento científico) articulando diferentes dimensões
do ato de conhecer que costura momentos distintos ou complementares entre
adoção e adaptação; ruptura e criação (ou re-criação). Em cada uma dessas
dinâmicas, ou em todas elas, vai se dando a validação dos resultados do saber
experimentado para que se realize a apropriação desse saber. Tal apropriação
não se estanca finalizada, é inacabada. Se enraíza nos princípios da ética da vida
saudável e do planeta preservado - para as gerações do presente e do futuro. O
futuro é devir, mas não é frouxa promessa daqueles que esperam o que virá; é
fruto plantado no presente para ser colhido depois da floração, no tempo
adequado da maturação; é fruto cultivado hoje com muito cuidado e muito
trabalho. Dão prova e reafirmam em falas, práticas e relações entre si, com o
meio ambiente e com os “outros” de dentro e de fora parceiros ou não; que
171
não é mais possível acreditar que os seres humanos ocupam um lugar tão
privilegiado no planeta que possam fazer dele o que quiserem; ensinam uma
epistemologia fundada no entendimento dos seres humanos como parte do meio
ambiente e em complexa relação de interdependência. Nesta, é maior a
dependência do humano em relação à natureza, tal dependência é vista como
valor e não como ameaça. Assim, o reino vegetal, animal e mineral ensinam ao
“reino” humano a coabitação no planeta em relação de interdependência.
As situações-limite: pobreza, desvalorização dos produtos da agricultora
familiar, adoção da tecnologia de produção do café orgânico e sem agrotóxico, a
fragilidade da associação no início “choveu e ventou”- quase fecharam as
portas, a produção orgânica sem mercado diferenciado, a inserção no mercado
internacional, a certificação e a exportação do produto são experiências de
superação do limite. Foram ou ainda são ponto de inflexão, ponto de mudança.
No Brasil e no mundo, as mudanças ocorridas em Poço Fundo podem ser
vistas como mudanças locais, parciais, conquistas localizadas e limitadas, mas
são mudanças reais, lutas demarcadas dentro de limites reais e possíveis,
movidas pelo propósito de conquistas maiores, planetárias, tendo em vistas as
novas gerações, a humanidade. São um exercício possível, visível, reconhecido
nas lavouras do saber: lavoura da vidas. Onde há colheita dos frutos do trabalho
da família, da comunidade, das organizações, do café exportado. Trata-se de um
processo vivido no presente e de um devir intencional e um modo de se colocar
a caminho. Ser por estar sendo, conforme Freire.
A mudança é decorrente de um processo libertador, como defende
Freire (1979, 1981, 1985, 1995, 2002, 2003); ensina que a relação ser humano e
natureza não se faz, necessariamente, pela dominação, submissão, controle e
exclusão, como apregoa a ciência moderna mas, esta relação pode ser feita de
forma interativa e auto-organizacional. Funda-se na autonomia dos sujeitos e na
dependência conhecida, reflexiva, negociada, quando se trata, por exemplo, da
172
relação com o mercado.
O saber apropriado não vem de uma intenção oculta. A intenção é
explicita: plantar uma vida saudável, em um planeta saudável, resultante de
relações que buscam preservar o meio ambiente, relações sociais justas e
solidárias. É saber de senso comum que se aproxima do conhecimento científico.
Essa aproximação é uma dinâmica que contém processos inter-relacionados de
afirmação, negação, adoção, ruptura, adaptação, criação (e re-criação). Estas são
possibilidades múltiplas no processo de produção do saber apropriado. Nesta
aproximação o trabalho do saber realiza-se pela observação e experimentação
em uma atividade de “pesquisa” permanente.
A negação do conhecimento científico, nesse caso, não se configura
como pura negação à ciência moderna por serem refratários a mudanças. Esta
negação tem a consistência da experimentação possível, parcial, orientada por
necessidades que se movem a partir do princípio de preservação da vida.
Sentimentos como orgulho, amor e satisfação animam o cotidiano ato de
plantar a vida em lavouras do saber, ou expor o fruto e produto do trabalho nas
lavouras e em suas organizações para visitantes nacionais e internacionais, além
de se fazerem presentes em eventos nacionais ou internacionais levando a marca
e a singularidade do plantio de suas vidas. Razão e emoção são forças das idéias
que iluminam o saber fazer. Sua condição de produção epistemológica é a
compreensão do ser humano como parte da natureza e não em oposição ou um
ser que se coloca fora ou acima dela, podemos dizer que parte do pressuposto
que o mundo (natural e social transformado pelo saber apropriado) é um com-
texto, produz um texto tecido de múltiplas relações, nisto um “aprender
eterno”.
O procedimento de acompanhamento permanente das lições que a
natureza ensina é sistemático, programado e aleatório, orientado pelo olhar e
pelo fazer interativo: dedução e indução são práticas correlatas vinculadas à
173
observação e à experimentação. O conteúdo pode ser colhido de seu próprio
fazer ou da troca de experiência entre si e com os outros, os de dentro e os de
fora do contexto local. A capacidade crítica e a reflexividade são expressas na
avaliação dos resultados sobre o quê, como e porquê o saber se torna apropriado
ou não.
O uso das mãos no processo de produção familiar ou de grupos faz parte
do processo de saber fazer, mas a máquina já se interpõe entre eles, como
facilitadora de manejos de cultivos e colheita no processo de trabalho. A
apropriação da máquina também é escolha feita a partir da decisão de
valorização do trabalho (redução do sobretrabalho individual e familiar) e
adequação ao cuidado com a preservação do ambiente; esses são exemplos de
cálculos em que razão e sentimento são mesclados; há lógica e afeto ao humano
e à natureza. Desenvolvem nestas práticas um conhecimento que não é uma
ação predadora, mas recriadora da vida, em um sistema ou contexto complexo,
um sistema vivo, que se caracteriza por aspectos previsíveis e im(previsíveis) e
que não se enquadram no esquema de causa e efeito, ou no pensamento linear.
O método, por ser fundado no princípio da vida saudável, mantém uma
radicalidade que convive com conflitos internos e externos que os sustentam em
uma posição determinada, mas não se encontram solitários, isolados, vinculam-
se a redes de solidariedade. A solidariedade promove confiança e gera
motivação ampliada no cotidiano de cada dificuldade ou vitória alcançada,
realimentando continuamente a escolha original que define seu modo de viver e
plantar lavouras do saber.
A lógica do êxito imediato é questionada pelo trabalho paciente, de
longo prazo; tal lógica é vista como limite na construção de um mundo melhor,
possível. Esse projeto de mundo nasceu de uma crença inicial intuitiva, no saber
de senso comum, hoje em sua forma de superação, o saber é feito de experiência
validada, legitimada pela aprovação coletiva, pela correspondência entre a
174
lavoura de café e a lavoura da vida. A crença e a experiência fazem parte de
saberes distintos, mas estão na base do saber apropriado. A crença situa-se na
ética da religião; uma dimensão que podemos resgatar ao longo da narrativa
desse trabalho e, se vista como lógica da produção do saber apropriado, deixa
vislumbrar um terreno para outro estudo que mesmo desejado, não se tornou
possível no entardecer desse estudo. O estudo do saber apropriado prescindiu do
estudo da ética da religião no plano explícito, consideremos porém, que se trata
de um tema transversal aos temas geradores acolhidos na dimensão da
experiência.
As experiências de aprendizagem são processos individuais, familiares,
de grupos ou coletivos (das organizações) que são compartilhados e se
encontram na criação do mundo contexto em que se situam, o que significa
estar no espaço local, nacional e internacional, situando-se como sujeitos
autores e atores da produção do saber apropriado ao projeto de mundo que estão
construindo. Estão na onda da possibilidade de estarem nesses diferentes
espaços, ao mesmo tempo, e em tempo real deslocados por dispositivos de
tecnologia moderna como computadores e Internet. Esses deslocamentos dão
nova com-formação ao sujeito sempre reconstituído. Na aprendizagem
emergente, tais processos nem sempre são lineares, a aprendizagem nem sempre
é progressiva, pode se dar nestas e em outras dinâmicas. Pode se dar aos saltos,
em momentos inesperados, e não se trata de uma simples apreensão de
conteúdos, mas é uma aprendizagem de sentido e de interpretação de sentidos,
tendo em vista o projeto de mundo e de modo de viver.
7.1 O processo de produção do saber apropriado: fundamentos (raízes),
guias (método) e colheita (resultados)
Na produção do saber apropriado, consideramos os fundamentos ou
raízes desse processo a cultura camponesa sua permanência e mudança e a
175
tecnologia de produção do café (orgânico e sat) articulados nos seguintes
princípios: promoção da vida, protagonismo dos agricultores, fortalecimento da
agricultura familiar, cosmovisão, reciprocidade, solidariedade, dignidade, justiça
e democracia.
A cultura camponesa comporta o princípio da reciprocidade no qual o
ato de dar-receber-retribuir (dar) espalha-se nas práticas de produção do saber
apropriado que está implicado nas relações dos sujeitos entre si, com a terra, a
planta e os frutos. É possível compreender o processo de produção do saber
tendo em vista a dinâmica do princípio de reciprocidade. Práticas da cultura
camponesa permanecem porque mudam; vividas pelos agricultores associados
passa por adoções e rupturas dentro da dinâmica de produção do saber
apropriado.
O passado e o futuro são tempos entrecruzados no tempo presente,
mediatizados pelo conhecimento humano, afinal o passado e o futuro só existem
como interpretação humana. O presente é constituído da ação concreta possível.
A preservação ambiental teve sua nascente na avaliação dos “erros” do passado
e na previsão de suas conseqüências no futuro. O futuro se torna real, previsível
- no presente - nos resultados vividos no cotidiano do aqui e agora.
A reciprocidade articula outro princípio, o da ordenação do mundo a
cosmovisão; por exemplo: o equilíbrio da planta depende do equilíbrio da terra,
desta depende a saúde do ser humano e do planeta como lugar humano. Nesse
caso, há uma ampliação do conceito e prática da cosmovisão, inicialmente,
restrita ao local, atualmente é ampliada e relaciona o local ao global, planetário.
Nesse sentido a preservação do ambiente é preservação do humano planetário; é
preservação da vida.
Originalmente a família camponesa era o núcleo central onde o filho
aprendia com o pai em uma relação vertical de autoridade portadora do saber; o
pai é mas, também o filho pode ser, “força plena”, na compreensão de
176
Woortmann & Woortmann (1997). Hoje, o processo de produção de saber é,
fundamentalmente, sustentado por relações horizontais, nas quais o agricultor
ensina a outro agricultor: são dois sujeitos que estão no mesmo lugar
hierárquico. Pode ocorrer também uma inversão na hierarquia da relação de pai
para filho; ao ser alterada esta relação, o filho ensina ao pai. A lavoura é um
lugar de aprendizado. Porém a lavoura de aprendizado pode estar próxima ou
distante, pode ser da família, do vizinho ou pode estar em qualquer lugar do
Brasil para onde os agricultores se deslocam para troca de experiências.
O entrelaçar das relação sociais descritas ao longo desse texto como
terrenos de produção do saber apropriado pelos agricultores associados torna-se
visível também na relação entre os três temas geradores desse saber vistas como
vínculos muito estreitos dos agricultores entre si ( considerando-se os
colaboradores externos), com a terra e com a planta. Assim, essas três dimensões
entrelaçadas podem ser visualizadas a seguir:
FIGURA 8. Temas geradores do saber apropriado.
Fonte: pesquisa de campo.
A troca de experiências entre agricultores é a dinâmica validada como a
AGRICULTOR
TERRA
PLANTA
177
que mais favorece a produção do saber apropriado. Nela, os procedimentos das
experimentações, a avaliação dos resultados e os riscos são ouvidos, discutidos,
testados; assim o saber é compartilhado numa relação entre iguais ou em
relações horizontais.
No âmbito da produção do saber, desenvolvem práticas de observação e
experimentação. A observação pode ser de contemplação – “olhar e ver”
desenvolvendo-se de maneira sistemática ou aleatória e o aprendizado se dá sem
a interferência do agricultor sobre o observado. Depois, o aprendido passa a ser
experimentação ou ação planejada para obter o resultado observado ou para
alterar, melhorar ou corrigir o resultado observado. No momento da
experimentação o sujeito é mais ativo. Na produção do saber de grupo, a
observação e experimentação podem ser decorrentes da ação individual, de
grupo ou coletivas. São as trocas ou o saber compartilhado que ampliam o a
produção do saber. O desenvolvimento e fortalecimento destas relações
horizontais favorecem a prática do protagonismo dos agricultores.
No nível local, o saber apropriado é produzido e consolidado em espaços
de compartilhar experiências como as lavouras, os grupos locais nos bairros e o
grupo de representantes de bairro. O saber individual e coletivo é ampliado,
permanentemente, pela troca de experiência que ocorre no nível local e que
também se desloca para outros espaços quando esses agricultores recebem
visitas de agricultores de outras regiões do país ou saem do município para
compartilhar suas experiências e conhecer outras experiências. Trata-se de um
processo de ensinar e aprender permanente e dialógico.
Podem ter como foco um determinado tema, mas esse se inscreve no
ambiente como um todo. Nada está desarticulado nas relações da parte com o
todo e do todo com a parte. Esse é um modo de olhar decorrente do princípio de
cosmovisão.
A associação e a cooperativa comportam os espaços propícios à
178
produção democrática e dialógica do saber apropriado que são, como já foi dito,
a lavoura, grupos de bairro e grupos de representantes de bairro. Nesses espaços,
o saber produzido circula em um fluxo de dupla-mão de para lá e de para
validando experiências. A representação e a participação direta o práticas
exercidas no cotidiano das reuniões e tomada de decisão. Estas indicam
possibilidades ricas para estudos sobre a teoria de campo e representação
política na perspectiva desenvolvida por Pierre Bourdieu.
As relações entre o local e o mundo globalizado ocorreram
fundamentalmente pela via do mercado justo, fair trade, mercado internacional.
Das primeiras participações em feiras internacionais até as visitas de intercâmbio
entre produtores e consumidores foram construídos os vínculos que os
colocaram integrados ao mercado que se caracteriza pelo princípio da
solidariedade.
Os vínculos criados com os consumidores e compradores traduzem uma
forma de proximidade e de intercâmbio importante na consolidação da rede de
solidariedade que motiva as relações internacionais e o marketing do produto
com valor agregado pelo fortalecimento da agricultura desenvolvida em
pequenas parcelas de terra, proveniente de trabalho familiar, social e
ecologicamente responsável. A relação direta entre os produtores e
consumidores é testemunho da busca da solidariedade em um plano
internacional. Nesse caso, porém, sofrem as restrições típicas do mercado que,
sob o signo da solidariedade, busca por um lado escapar do domínio explorador
desse mesmo mercado tratando esses sujeitos de forma diferenciada: preço justo,
o fortalecimento da agricultura familiar e a justiça nas relações de trabalho são
vantagens sinalizadas pelo mercado justo. Entretanto, escondem a desigualdade
das relações entre consumidores de países centrais em relação aos países
periféricos. Basta considerar que o Brasil é o maior exportador de café em grão
do mundo; porém, a Alemanha, uma das compradoras do café fair trade de Poço
179
Fundo, é a maior vendedora de café do mundo isso sem plantar um pé de café
em seu território
52
. O mercado justo aproxima sujeitos tão diferentes
(consumidores e produtores) e aparentemente exclui a possibilidade de ruptura
com tal contradição.
A garantia de preço, considerado justo, submete os agricultores a um
certo conformismo no qual a relação desigual é escamoteada. Entretanto, as lutas
por soberania do Brasil como vendedor de produto beneficiado e ruptura com
mercados hegemônicos já se encontram no discurso dos protagonistas desta
pesquisa ainda vislumbradas como sonho distante.
Em nome do princípio da autonomia, avanços e dificuldades,
contradições. A autonomia vem sendo conquistada desde a consolidação das
comunidades eclesiais de base. É uma autonomia com laços de e força da
religião. A igreja deixa marcas nesta trajetória: a constituição da identidade
referenciada nas comunidades e no “protagonismo dos agricultores”foi
estimulada pela igreja que se colocou como forte suporte nesse processo. O
avanço das instituições políticas reguladas pela organização interna como a
associação e a cooperativa por um lado, testemunha um forte braço que expressa
a autonomia dos agricultores, por outro lado, expressa seu afastamento de
instituições políticas de caráter classista como o sindicato ou estatais como a
Emater.
Abandonaram o Sindicato de Trabalhadores Rurais e sem representação
nessa instituição pouco podem fazer para alterar ou contribuir com a direção do
sindicato no sentido do cumprimento de demandas de interesse dos agricultores
em geral. É importante ressaltar que esses agricultores não adotaram a via
52
Em consulta à Empresa Internacional de Comunicação da Alemanha; Confirmaram que a
Alemanha não produz café para seu consumo nem para exportação; em suas próprias palavras: “O
clima não permite”. IMPRENSA Alemã. DW.World.De.Deustsche Welle. Disponível em:
< feedback.brazilian@dw-world.de>. Acesso em: 09 jun. 2008.
180
sindical como luta política, uma possível perda. Há ganhos políticos porém,
quando verificamos sua participação na Câmara Municipal com um vereador do
Partido dos Trabalhadores eleito por eles.
É possível considerar perdas com seu afastamento da Emater quando em
paralelo, consideramos a situação de agricultores de outros municípios que
conquistaram assistência técnica adequada a seus interesses junto a esta estatal.
A política de assistência técnica e extensão rural –ATER, nos anos 2000 não é
mais a mesma dos anos 70 e 80. A Coopfam resolve esta demanda com recursos
próprios. O crescimento do número de cooperados indicava, em 2006 a
necessidade de contratação de um técnico para acompanhamento aos associados.
A cooperativa estudava a possibilidade de contratá-lo para se manter autônoma.
Sob o princípio da autonomia esses agricultores tendem a restringir suas lutas
que seriam dirigidas ao estado, fortalecendo movimentos nacionais que
reivindicam políticas públicas vinculadas a um processo de democratização do
estado brasileiro. Nesse caso, o diálogo poderia construir uma mediação, por
exemplo, com esses agricultores e o Estado, na qual poderiam exigir a
contratação de um técnico para a Emater local com quem poderiam estabelecer
uma relação dialógica de produção do conhecimento fazendo uma pactuação
democrática.
Nesses dois casos, em nome da autonomia, eles optaram por resolver no
nível de suas organizações a associação e a cooperativa seus problemas,
suas demandas econômicas, sociais, de direitos básicos como produção, saúde e
até educação (há um forte desejo de criação de escola particular ou bolsa de
estudos para filho de cooperados em escola privada).
A cooperativa desenvolvendo sua função social resolve, no âmbito de si
mesma, demandas como assistência médica, terapêutica, odontológica, bolsa de
estudos, compra coletiva de bens através de contribuições via convênios com
cobertura de despesas combinadas com parte do cooperado e parte da
181
cooperativa. Como o poder público não responde a estas demandas o problema
dos cooperados é resolvido no nível de suas organizações, porém em suas lutas
maiores por cidadania ocupam espaço e participam de conselhos municipais
pouco efetivos (como o Conselho Municipal de Saúde e o de Educação) e a uma
representação na Câmara Municipal com a eleição de um agricultor para
vereador, como já foi dito.
A ruptura com as empresas multinacionais vendedoras de defensivos
agrícolas (agrotóxicos) é uma conquista inegável na defesa da vida, como
princípio e da preservação ambiental, como defesa da vida. No plano
econômico, uma autonomia restrita, ou seja: um avanço decorrente do
aprendizado e apropriação das práticas de compras coletivas, entretanto vivem
restrições porque as empresas vendedoras de insumos para a produção orgânica
atuam comercialmente sob o mesmo código da exploração e do lucro. Trata-se
do mercado. Não qualquer mecanismo de controle dos agricultores sobre o
preço desses produtos, não mercado solidário nesse campo e, nas fronteiras
das unidades de produção agrícola não há possibilidade de produção auto-
sustentada de insumos, dependência de recursos externos. Esta é uma tensão
típica de dois projetos societários: o emancipatório e o dominante, hegemônico.
É o contexto do desenvolvimento capitalista em que nos encontramos.
Outra presença importante nesse contexto é a dos auditores das
certificadoras: os diálogos de negociação traduzem avanços. Inicialmente, os
auditores ou técnicos das certificadoras atuaram de maneira autoritária e faziam
todo trabalho de vistoria independente dos agricultores, o custo do selo de
certificação era mais alto e havia pouco respeito ao saber dos agricultores. Os
agricultores, como vimos, conquistaram o reconhecimento de sua competência
técnica e substituíram em grande parte a presença de técnicos quando se
prepararam e legitimaram uma equipe deles mesmos para fazerem a inspeção.
Outra contradição que comporta essa experiência é o fato dos produtores
182
de café sat usarem adubo solúvel, proveniente de empresas multinacionais e
comprometedores do projeto de preservação ambiental. A produção de café do
tipo sat faz parte do processo de transição do convencional para orgânico. Seria,
portanto, ritual de passagem e, não ponto de paragem. Nesse caso, há uma
estratégia que combina necessidade de sobrevivência que implica em uma
solução econômica e uma contradição (consentida, usada como oposição
complementar, digamos assim) com o projeto emancipátorio de preservação
ambiental. Nesta situação os agricultores estão desenvolvendo uma experiência
de diálogo em que articulam necessidades pragmáticas, éticas, morais e de
negociação. Os custos da produção do café orgânico em termos de capital e
trabalho reduzem a possibilidade de transformação de todos os associados em
produtores orgânicos. Assim, os produtores de café sat estão no limiar entre
permanecerem nesta categoria ou, ultrapassado o período de transição e, pela
conversão, passarem a ser agricultores produtores de café orgânico. Existem,
ainda, processos de retorno de agricultores orgânicos para agricultores sat. O
projeto emancipatório é uma experiência concreta e um vir a ser conquistado no
cotidiano convivendo com contradições; os agricultores também lidam
internamente com a tensão entre dois projetos societários.
As relações estabelecidas com técnicos e pesquisadores são marcadas
pela experiência histórica negativa; em muitas situações, a relação autoritária
dos técnicos e pesquisadores desconsiderou esses agricultores como sujeitos. Em
resposta, eles fazem um discurso de negação da contribuição dos técnicos, mas é
inegável a importância dos cursos, dias de campo e assistência técnica
desenvolvidas sistematicamente pelo Centro de Assessoria Sapucaí, além
influência da Escola Agrotécnica Federal de Machado, prioritariamente e, de
maneira complementar, da Escola Agrotécnica Federal de Inconfidentes. O
discurso de negação é usado para sustentar uma posição que parcialmente se
realiza negação do conhecimento científico dos técnicos – essa negação é
183
usada para garantir o princípio de autonomia. Nesse caso, o avanço é a regulação
da atuação dos técnicos realizada pelos agricultores, porém é necessário repensar
esta negação da possibilidade de troca entre agricultores e técnicos considerando
a experiência local e histórica de aproximação do saber de senso comum ao
conhecimento científico. A presença da universidade também poderia ser
cobrada como parceira, atuando de acordo com as demandas dos agricultores.
Tudo isto pode parecer utopia. Utopia é algo que nós damos um passo
próximo dela, ela um passo se afastando de nós... Se damos dois
passos para próximo dela ela dois passos se afastando de nós.., no
entanto isso faz com que caminhemos”.Guterres, (2006 ,p. 91)
A utopia é o inédito viável. É ato. É caminho. É caminhar. Semeados no
terreno das situações limite. As situações-limites gestaram atos-limites na
criação e re-criação do mundo, diríamos que estas germinaram as sementes e os
frutos das lavouras da vida lavouras do saber. Essas lavouras são um todo
articulado, tecido de relações simples e complexas. São um modo de
compreender o mundo – natureza socializada e o humano tornado parte da
natureza como dimensões comunicantes. Nessa compreensão somos eternos
aprendizes. Esse modo de ver e viver o mundo descarta a separação exigida pela
ciência moderna, busca unir o que esta ciência separou. Lavouras da vida
lavouras do saber são lavouras onde colhemos os frutos do senso comum
emancipatório e da ciência prudente: são lavouras do saber apropriado.
184
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São
Paulo: Hucitec, 1993. 275 p.
AGUIAR, A. R. C. Saber Camponês e mudança técnica: um estudo de caso
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Lavras, Lavras.
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS.
Municípios mineiros. Belo Horizonte. Disponível em:
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190
ANEXOS
191
ANEXO A
Roteiro de Observação
Relações, situações de diálogo e práticas
1) Organizações: Associação e Cooperativa
2) Família
3) Lavoura
Cenários, aspectos da paisagem.
Roteiro de entrevistas:
I) 1 ª fase: conversa não gravada
Identificação:
Localidade
Nome escolaridade idade
1) Família
Composição da família
Moradores na casa do entrevistado ou entrevistada
Moradores no estabelecimento
Ocupação/trabalho não agrícola (quem, o quê)
2) Terra
Própria (herança, compra), área
Arrendamento (tipo de contrato, tamanho da área)
Parceria com parente (como ocorre)
Parceria com outro produtor (como ocorre)
Área total
Área ocupada com café orgânico e/ou sat
3) Produção
Agrícola (principais produtos, quantidade e uso – consumo próprio e venda)
Pecuária (principais produtos, quantidade e uso – consumo próprio e venda)
Outros
192
II) 2 ª fase: Entrevista gravada.
Processo de produção do saber:
1) Por que escolheu ser um produtor orgânico ou sat?
2) Onde, com quem, como aprendeu a ser agricultor orgânico?
3) Como se o processo de conversão dos café convencional (com
agrotóxico) para a produção do café sem agrotóxico (sat) e deste para o
café orgânico?
4) Como reconhecem:
qualidade do solo, conservação
situação da planta
pragas e doenças
previsão de colheita ( e outros aspectos que venham a ser
citados)
5) Como são considerados para o cultivo de café “sat” ou orgânico o sol, a
chuva, a lua, outras plantas e animais?
6) Quais são os conhecimentos e práticas antigas (de bisavós e avós) que
ainda são usados hoje?
7) Qual é o aprendizado vivido com a certificação do café: Como os
produtores participam?Com quem aprenderam? Como aprenderam?
fizeram alterações nesse aprendizado?
8) Qual é o aprendizado vivido com a exportação do café? Com quem
aprenderam? Como aprenderam? Como os produtores participam?
9) Qual é a relação existente entre os produtores de café orgânico e os
produtores de café sem agrotóxico e também com os produtores de café
com agrotóxico?
193
ANEXO B
Atividades do Centro de Assessoria Sapucaí
53
“Construção e articulação de atores sociais: empoderamento e intervenção para
um novo modelo de desenvolvimento local e de relações sócio-ambientais”
Projeto B-Bra-0211-0014-MG
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Curso: “Controle de Pragas e
Doenças na Lavoura”
Assistência Técnica junto as
famílias que desejam iniciar o
processo de transição
semestre/2003
Janeiro a Dezembro de 2004:
Assistência Técnica:
- Junto às famílias dos
agricultores agroecológicos
-Visitas em propriedades de
Poço Fundo.
- Formação de dois bancos de
sementes de 3 variedades de
leguminosas em Poço Fundo.
- Realização de 2 cursos de
café e 8 dias de campo para
novos associados
As visitas técnicas garantiram:
a) para uns, recuperação de
sua produção, para outros,
segurança para iniciar o
manejo orgânico;
b) em muitos casos, redução
nos custos de produção;
c) melhoria na qualidade dos
produtos;
d) introdução de novas
culturas e melhor
aproveitamento da área.
- Em propriedades
agroecológicas
- 24 agricultores (as) de
Andradas, visitaram duas
propriedades agroecológicas
em Poço Fundo.
Além da troca de experiências
com relação aos
esclarecimentos de dúvidas
e/ou à adoção de novas
técnicas de manejo,
registramos como resultado
significativo a rede de
contatos que vai se formando
inclusive em torno da
necessidade e/ou
fortalecimento da organização
regional dos agricultores.
Cursos: “Aprofundamento de
Manejo de Solos” (3
módulos)
- Participaram 100 famílias de
Poço Fundo (realizado em 8
dias – novos associados)
Maior valorização da
propriedade e de seus
produtos no mercado
Continua...
53
Recorte de atividades do Centro de Assessoria Sapucaí, período de 1997 a 2006, inerentes à sua
atuação na área de abrangência da COOPFAM.
194
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Cursos: Gerenciamento da
propriedade em regime de
economia familiar:
- Junto às famílias dos
agricultores que desejam
iniciar o processo de
transição.
- Em Poço Fundo
conseguimos realizar a
atividade com o grupo de
agricultores.
- Redução do desperdício e
consequentemente dos custos
de produção.
- Controle real de sua
capacidade produtiva e de
produção.
Oficina em dois módulos:
Planificação, monitora-mento
e avaliação da produção.
- Elaboração de um plano de
produção para plantio coletivo
- Parâmetros para comparação
e elaboração de custos de
produção X preços de venda.
Palestras: Incentivo a
agroecologia aos agricultores
interessados em mudar seu
sistema de produção
- Palestra para 53 agricultores
(as) de Poço Fundo, novos
integrantes da Associação de
Pequenos Produtores, sobre
produção de café orgânico e
associativismo.
- Ampliação do quadro de
sócios da Associação.
- Fortalecimento da
organização comunitária dos
agricultores (as)
Assistência Técnica:
- Junto às famílias dos
agricultores agroecológicos
- Visitas técnicas
individualizadas nas
propriedades.
- Troca de experiência na
produção agroecológica e
comercialização entre os
grupos apoiados.
Janeiro a Dezembro de 2005:
- 25 visitas técnicas em
propriedades de Poço Fundo.
- 12 agricultores de Andradas
visitaram os produtores de
Poço Fundo com o objetivo de
trocar experiência de
produção (café) e
comercialização;
- 05 agricultores de Bom
Repouso visitaram um
agricultor de Poço Fundo para
trocar experiências na
produção agroecológica de
tomate.
- A Associação de
Agricultores de Andradas
após 4 visitas e negociação
com a Associação de Poço
Fundo começou a
comercializar o café de seus
associados conjuntamente
com Poço Fundo.
- Elevação da consciência
ambiental das famílias dos
pequenos agricultores e
agricultoras.
- Filiação dos agricultores na
Cooperativa de Pequenos
Agricultores Familiares de
Poço Fundo, o que garantiu a
venda do café no mercado
justo (Estados Unidos).
Participam também da
Articulação Nacional de
Produtores Rurais e Urbanos
Extrativistas no Mercado
Justo e Solidário.
- Fortalecimento da
organização regional dos
agricultores (as) familiares
agroecológicos;
- Soluções para seus
problemas de comercialização
inclusive, com melhor
valorização de seus produtos.
Continua...
195
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Cursos:
- Capacitação e Efetivação de
unidades demonstrativas em
propriedades familiares
agroecológicas no Manejo de
Solo em Hortaliças e Café
- Qualidade do Café.
Oficina:
- Para capacitação e
efetivação de planejamento,
monitoramento e avaliação da
produção e da
comercialização.
- Curso realizado em Bom
Repouso, de Controle de
Pragas e Doenças com
participação do município de
Poço Fundo.
- Realizado em Poço Fundo –
35 participantes.
- Realização de 700 visitas em
180 propriedades familiares
por 12 monitores com apoio
do Ministério de
Desenvolvimento Agrário
dentro do programa de
Assistência Técnica e
Extensão Rural.
- Troca de experiências entre
os agricultores e melhoria no
manejo através de novas
técnicas apresentadas pelos
professores da Escola
Agrotécnica de Inconfidentes.
- Como o número de
associados da Associação de
Pequenos Agricultores
Familiares de Poço Fundo
vem crescendo e a base
econômica do município é o
café, há sempre demanda por
cursos técnicos para
nivelamento da produção de
café.
- Assistência técnica em todas
as propriedades.
Assistência Técnica - Visitas a Poço Fundo
apoio aos agricultores
- 5 agricultores de Bom
Repouso visitaram um
agricultor de Poço Fundo para
trocar experiências na
produção agroecológica de
tomate.
- Aprimoramento do
conhecimento técnico e a
educação ambiental das
famílias dos agricultores
familiares, na busca de
soluções para seus problemas
ambientais de produção e de
comercialização.
196
“Cidadania ativa de homens e mulheres, jovens e adultos no campo e na cidade”
Projeto Bra-9909-015 Pt: Bra – 0059
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Abril a Setembro/2000
Curso sobre Noções Básicas
de Agricultura Orgânica
- realizado em parceria com a
escola Técnica Agrícola de
Machado.
- A Unidade Certificadora
buscou recursos para o seu
funcionamento em 2001 junto
a agências de cooperação.
- Foi realizado um trabalho de
assessoria ao produtor rural
para ajudá-lo a planificar e
melhorar a qualidade/padrão
dos seus produtos.
- O SAPUCAÍ colaborou
ativamente na preparação de
amostras de café orgânico que
foram apresentados na Feira
de Pequenos Produtores
Familiares que ocorreu na
cidade de Bolonha na Itália.
- O encontro com os
agrônomos aconteceu ao
detectarmos um alto grau de
interesse dos produtores em
uma consultoria
individualizada que possa dar
respostas aos problemas
específicos da sua produção e
também pelo fato de não
termos na região agrônomos
preparados e disponíveis para
o orgânico.
Curso “A importância da
mulher na qualificação do
café”
Trabalho junto a um grupo de
mulheres (mães e filhas) de
pequenos produtores rurais
- Neste período foram feitos 2
encontros. Um deles
trabalhou-se a auto-estima,
realçando que a mulher é uma
força econômica com papel
importante na renda familiar.
No outro foram discutidos
questões relativas à saúde da
família. Nesse caso, estiveram
presentes mulheres e homens.
A partir das visitas e
pesquisas, constatamos que a
secagem do café é tarefa das
mulheres, então oferecemos
um espaço de valorização da
mulher, diferente dos
agricultores, algumas não se
conheciam, e foi solicitado ao
SAPUCAI que as
acompanhasse no processo de
secagem do café em suas
propriedades.
Outubro/99 a Março/2000
Divulgação nos meios de
comunicação a agricultura
sem agrotóxicos e seu
impacto benefício ao meio
ambiente e na saúde humana
Curso:
“Horticultura Orgânica
Comercial”
- Realização de visitas
técnicas nas propriedades.
- Acompanhamento e registro
semanal do desempenho do
produtor rural.
- Assessoria técnica
permanente ao produtor rural
- Participação de
Certificadores e de produtores
na Conferência Internacional
sobre Mercado Justo e Café
Orgânico em Machado.
- Consumidor consciente
- Inclusão do produto
orgânico no mercado.
- Os produtores de café, de
Poço Fundo, foram chamados
para relatarem sua experiência
na Conferência e na
oportunidade testemunharam
a importância do SAPUCAI
no processo de crescimento
deles.
Continua...
197
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Julho/02 a Dezembro/02
Divulgação - promover,
frequentemente, coletiva de
imprensa para divulgação da
agricultura familiar e sua
relação com o meio ambiente
e a segurança alimentar.
Veiculação de 4 matérias em
abrangência regional (180
municípios),. 6 matérias em
jornal local, realização de
palestras nas universidades
(Pouso Alegre, Alfenas),
Secretaria Regional de
Vigilância Sanitária em Pouso
Alegre)
- Neste semestre, houve a
intensificação e
direcionamento do trabalho de
divulgação da agroecologia e
sua relação com a agricultura
familiar e a segurança
alimentar.
- Resultado geral: produtores
de Poço Fundo, certificados,
estão buscando
conhecimentos técnicos para o
processamento do leite.
- O produto orgânico ampliou
sua participação no mercado.
- 15 agricultores familiares de
café, de Poço Fundo,
conseguiram exportar para os
Estados Unidos, venderam a
saca por USD180,00 (no
mercado interno o preço
estava em R$ 120,00)
198
“Animação, Assessoria e Capacitação de Lideranças”
Projeto Bra-9606-023 Pt: Bra – 0059
Histórico da Entidade
O Centro de Assessoria aos Movimentos Populares e Sindicais do Sul de
Minas Sapucaí, fundado em 08 de dezembro de 1985, com o objetivo de
prestar assessoria às Organizações Comunitárias, Associações, Movimentos
Populares, Pré-Sindicais e Sindicais Urbanos.
Anterior ao surgimento do Sapucaí, havia na região o trabalho de
agentes da CPT Comissão Pastoral da Terra. O CTP de Minas Gerais que até
1995 assumia em conjunto com o SAPUCAÍ a liberação de um agente na região.
O Sapucaí tem convênio firmado desde 1994 com a Universidade
Federal de Lavras. Este convênio nos permite ter acesso às informações e dados
sobre as questões rurais, o apoio de professores e estudantes na área de pesquisa
de campo e seminários, onde a instituição assume os honorários dos professores
e bolsa dos alunos.
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
1997
Associação dos Pequenos
Produtores Rurais de Poço
Fundo
- Estruturação Organizacional
- Programas de formação para
novos e antigos sócios.
- Incentivo à participação da
mulher
- Apoio na organização e
busca de recursos para a
participação de 1
representante em Munique, na
Assembléia de Produtores de
café – Comercio Eqüitativo
Encontro Anual de Pequenos
Produtores Rurais.
O menor resultado obtido foi
em relação a participação
efetiva das mulheres na
estrutura da Associação.
Entendemos que nesse
aspecto o peso cultural é
muito forte e levará um bom
tempo seguido de constante
preocupação e atividades no
intuito de levá-las a um maior
envolvimento.
-A elaboração do Regimento
Interno proporcionou a
participação efetiva de cada
associado.
-Os programas de formação
favoreceram a participação e o
fortalecimento da Associação.
- Cooperativa exportadora de
café COOXUPÉ, convoca a
Associação para comercializar
o café orgânico por preços
melhores;
- A Escola Técnica Agrícola
Federal de Machado MG,
fez um profundo diagnóstico
de sua eficácia na região e
solicitou a participação da
Associação na valorização da
agricultura familiar.
Continua...
199
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
1998
Programação de cursos:
Março – Agricultura Orgânica
Abril – Agricultura Orgânica
Agosto – Café Orgânico
Setembro – Piscicultura
Novembro Feijão Orgânico:
manejo e comercialização
- O Curso de Café Orgânico
foi realizado em uma
propriedade rural orgânica de
um membro da Associação de
Pequenos Produtores Rurais
de Poço Fundo.
- A Escola Técnica de
Agronomia de Machado,
motivada criou um núcleo de
estudo agroecológico dentro
da Escola. Reconhece e abre
espaço para que o pequeno
produtor se torne um agente
multiplicador da agroecologia
dentro da escola e na região.
Janeiro a Outubro de 1999
Cursos técnicos itinerantes
para a agricultura familiar
para jovens.
Divulgação nos meios de
comunicação mensalmente:
Março: “O Cultivo Orgânico
do Café”
Abril: “Manejo Orgâ-nico do
Solo e Nutrição Vegetal”.
Maio: “Controle Alter-nativo
de Pragas e Doenças”.
Junho: “Produção Animal
Orgânica”.
Estudo de viabilidade do
SAPUCAÍ criar uma Unidade
Certificadora de Produtos
Orgânicos
- Com a implantação da Feira
de Produtos Orgânicos em
Pouso Alegre, o tema foi
abordado em diversos jornais,
TV e rádios de Pouso Alegre
que atinjam a região.
- Todos os cursos
programados foram
realizados.
- Representante dos feirantes
participou do curso de
“Capacitação Gerencial” no
Rio de Janeiro (promovido
pela CAPINA)
- Comercialização conjunta do
café orgânico.
- “Consumidor Consciente”,
despertar interesse para uma
agricultura diferenciada.
- Destaque à participação
significativa da mulher;
- Maior aprofundamento de
conceitos, técnicas e
princípios da agricultura
orgânica;
- Presença de vários
agricultores da região com
interesse em se tornar
orgânicos;
- Favorecimento do processo
de transição de agricultura
convencional para agricultura
orgânica tanto para iniciantes
quanto para os que já possuem
selo SAT (estão a caminho do
orgânico).
- Com a diversificação da
propriedade/produto, saíram
da monocultura do café ou do
fumo e contam com dinheiro
semanalmente, podendo
planejar seus gastos, mesmo
ainda não sendo considerável
o ganho econômico na feira,
mas possuem vários produtos
para subsistência e para
comercialização;
Continua...
200
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
- Tiveram que aprender
negociar diretamente com o
consumidor, perceber as
exigências do mercado
(qualidade, preço, embalagem
etc), fazer cálculos, manusear
o dinheiro, verificar preços no
mercado e estabelecer o da
feira, planificar a produção,
gerenciar a propriedade e a
feira.
- Nos primeiros meses da feira
a mulher era ajudante do
marido. Hoje ela conversa
com o consumidor, percebe o
movimento do mercado, puxa
a organização, inclusive a
coordenação é feita por um
casal.
201
Avaliação das Atividades realizadas e Resultados na Relação com os
Objetivos:
Em 1998, relatamos o interesse de produtores, técnicos agrícolas e agrônomos
pelo sistema orgânico de produção (denominados ecológicos, biodinâmicos,
natural, sustentável, regenerativo, biológicos e agroecológico) e que na região,
não havia uma organização voltada para o tema e que neste sentido o SAPUCAÍ
é pioneiro.
Outro dado importante que a feira de produtos orgânicos revelou foi o da grande
participação da mulher, até então fazendo o mesmo trabalho, plantando,
ajudando no orçamento doméstico – agora não ajuda na plantação como
participa na venda.
É ilusório supor que a agricultura orgânica é uma volta ao passado no que se
refere ao emprego de novas tecnologias.
Esses produtores diante de sua produção, bastante diversificada se comparada
com sua situação anterior, tem demonstrado que são criativos e ágeis para
solucionar seus problemas.
Os cursos de qualificação oferecidos pelo SAPUCAI, sem dúvida ajudaram a
melhorar a qualidade da terra/produtos, a consciência ambiental, a educação dos
filhos que acompanham os pais e o testemunho comunitário.
“Agricultores familiares e consumidores aliados na produção agroecológica e no
comércio solidário”
Projeto Bra-35.250
“O presente Projeto está sendo desenvolvido em seis cidades,
comunidades da zona rural do Estado de Minas Gerais, dentre elas: Poço Fundo.
Seu objetivo principal é democratizar o acesso aos recursos federais
destinados à assistência técnica e extensão rural (Ater).
A base deste projeto é o treinamento de agricultores (jovens rurais) para
serem monitores em suas comunidades e a contratação de um técnico para
sistematizar as informações obtidas por eles.
A partir do atual Governo Federal, foram fortalecidos os Conselhos de
Segurança Alimentar (CONSEA’S) em todos os estados do país. Estes espaços
têm a representação dos poderes públicos e da sociedade civil organizada. Boa
parte dos recursos destinados ao programa Fome Zero são geridos por estes
conselhos, sendo uma parte deles destinado a projetos de produção
agroecológica.
O Centro de Assessoria Sapucaí vem ha quinze anos apoiando os
agricultores a criar em condições favoráveis à produção sustentável de alimentos
e a melhorar suas condições sócio-econômicas. Para isso, assessora estas
202
famílias no manejo agroecológico e busca meios de inserir a produção orgânica
nos mercados locais, nacionais e internacionais.
Possui Convênio com a Escola Agrotécnica Federal de Inconfidentes
para realização de análises de solo por uma taxa menor (a Universidade Federal
de Lavras também faz análise de solo, porém estamos mais próximos de
Inconfidentes)”.
Comunidades da Associação dos Pequenos Produtores Familiares de Poço
Fundo
Em meados de 2004, a Associação dos Pequenos Produtores Familiares
de Poço Fundo fundou a Cooperativa de Pequenos Produtos Familiares de Poço
Fundo e Região. Inicialmente, os associados foram os agricultores de Poço
Fundo (50) e hoje conta com 200 associados de 4 Associações (Campestre, Ouro
Fino, Andradas e Poço Fundo) fortalecendo a organização regional dos
agricultores de café e colocando no mercado seus produtos.
Todo o trabalho foi desenvolvido junto a Associação de Pequenos
Produtores Familiares de Poço Fundo e da Cooperativa dos Pequenos Produtores
Familiares de Poço Fundo e Região.
É bastante considerável o grau de fortalecimento das instituições
representativas. As Associações aumentaram seu número de associados e a
Cooperativa também. As associações se reúnem com maior freqüência e
procuram se articular regionalmente formando uma rede regional de agricultores
para troca de experiências técnicas, de mercado, de fortalecimento
organizacional e em alguns casos de interferência em políticas públicas e/ou
incorporação de novas formas democráticas de participação.
Com os recursos advindos da comercialização no mercado justo, a
Cooperativa recebe de seus associados, 15 dólares por/saca vendida que é
utilizado na implementação de bens e serviços para seus associados. Assim a
Cooperativa possui sede própria, um veículo e 13 computadores para cursos de
inclusão digital para as famílias dos agricultores.
Cederam a muda e plantaram 1.000 pés de café orgânico para consumo
do próprio asilo. Mensalmente, cada comunidade presta serviços de assistência
no local do plantio.
A Associação desenvolve trabalhos, em Poço Fundo, de formação
técnica, comercialização de hortifrutigranjeiros, incentiva também a organização
por comunidades e proporciona cursos, seminários e palestras de formação
política.
A associação é formada por oito comunidades: 1) Cachoeira Grande; 2)
Cardoso; 3) Jacutinga; 4) Gonçalves; 5)Pinhalzinho; 6) Pinhalzinho; 7) São
Miguel; 8) Dourado dos Lopes.
203
Balanço de associados às organizações apoiadas:
Organização Inicial 2004 Aumento Nominal Aumento %
Poço Fundo 47 162 115 244,68
Desafios Institucionais
“A Sapucaí passou por diversas dificuldades internas. Em 2005, como
havíamos planejado com Pão para o Mundo, deveríamos realizar uma Avaliação
Institucional.
Como o momento não era adequado para instalar um processo de
avaliação externa e sim de tentar buscar consenso interno e de perspectivas
acordamos com Pão para o Mundo interromper o processo.
Outro ponto que merece destaque é a captação de recursos para
continuidade de nossos trabalhos na região”.
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
2ª semestre / 2003
Cursos:
- Gerenciamento da
Propriedade em Regime de
Economia Familiar
- Participação de 65% dos
agricultores de Poço Fundo.
Atividades:
1) “Gerenciamento da
Propriedade em Regime de
Economia”
2) “Como calcular custos”
- Acréscimo da Produção
Orgânica nas propriedades
familiares.
- Cultivo de Estufas 3) “Cultivo em Estufas”: - Implantação de 5 estufas
para o cultivo de hortaliças;
- Adubação do café;
- Interpretação de análise de
solo;
- Controle de pragas e
doenças;
- Controle de pragas e
doenças;
- Manejo de hortaliças.
Visitas Técnicas
- 20 visitas técnicas realizadas
em Poço Fundo e São João da
Mata – 40 agricultores.
Feira Técnica-Cultural - Exposição dos produtos
orgânicos dos agricultores
familiares, durante uma
semana, na 2ª Feira Técnica
Cultural promovida pela
Escola Agrotécnica Federal de
Inconfidentes.
204
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Janeiro a Junho/2004
Oficina: “Formato Jurídico
adequado à Comercialização”.
- No grupo de Poço Fundo
havia na época prevista para
realização da oficina um
consenso que o formato seria
o de cooperativa que, aliás,
está constituída.
Encontros regionais de
agricultores familiares
orgânicos
- Encontro Regional de
Agricultores Agroecológicos
39 participantes de 7
municípios.
- Palestra e Debates
Junho a Julho/2004
Cursos:
- “Colheita e s-colheita no
café”.
- “Fertilidade e Manejo do
Solo”.
- Foi realizado 1 em Poço
Fundo, no grupo do
Pinhalzinho, que contou a
presença de 11 participantes.
- Foram realizados 1 teórico
(com todos os grupos de Poço
Fundo) e 8 práticos (um em
cada grupo)
- Demonstração das técnicas
de colheita e secagem de café
para obtenção de bebida de
qualidade.
- No Curso teórico, foram
apresentadas as diferenças
entre manejo orgânico e
convencional; processo de
formação do solo pela
natureza; processo de
destruição do solo pelo
manejo; diferença entre solos
tropicais e temperados e
construindo a fertilidade do
solo.
- Nos cursos Práticos:
materiais utilizados para
adubação e sua composição e
interpretação da análise de
solo.
Julho a Dezembro/2004
Reuniões nas comunidades - Poço Fundo e São João da
Mata (162 agricultores) 3
reuniões média de 9
agricultores
- Avaliação do semestre e
planejamento do -
participantes da feira.
- Avaliação do semestre e
planejamento do -
cafeicultores.
- Distribuição de sementes de
adubação verde para
multiplicação e marcar
avaliação do semestre e
planejamento 2005.
205
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Janeiro a Junho / 2005
Cursos para
Capacitação em Certificação
Participativa.
- A equipe participou de da
capacitação em Certificação
Participativa, realizada de 10
a 14 de maio em Santa Maria
do Jetibá ES. A partir desta
capacitação foi criada uma
articulação nacional (com
apoio do Governo Federal)
para difusão da idéia da
certificação participativa,
como uma alternativa de
médio longo prazos à
certificação por auditoria.
Cursos
“Colheita e pós-colheita no
café”
- 2 cursos foram realizados
em Poço Fundo, Grupos
Bocaina e Gonçalves e
contaram com 11 e 6
participantes respectivamente.
Reuniões
- Foram realizadas reuniões
em Poço Fundo e São João da
Mata (Associação dos
Pequenos Produtores) com os
representantes e agricultores
dos Grupos de: Bocaina; dos
Cardoso; Cachoeira Grande;
Gonçalves; Jacutinga;
Paiolinho; Pinhalzinho.
- Neste semestre foram
realizadas 2 reuniões
referentes a esta atividade.
Seminário Regional do meio
Ambiente
GTs:
-“Alternativas para diminuir o
transporte do café colhido”.
-“Alternativas para
diversificação da produção”,
em Poço Fundo.
GT Grupo de Trabalho
criado para estudar as formas
de transporte e
acondicionamento do café
recém colhido até sua chegada
ao terreiro, uma vez que a
forma como o café é
manejado nesse momento,
influi consideravelmente para
obtenção ou não de bebida de
qualidade.
206
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Encontros regionais de
agricultores familiares
orgânicos.
- Avaliação das atividades
2004 e planejamento 2005.
- Estimulada e consolidada a
organização comunitária dos
agricultores.
Cursos:
Colheita e pós-colheita;
Teórico de fertilidade do solo
e nutrição do cafezal;
Alternativas de nutrição e
manejo do gado leiteiro;
Provador de Café.
- Demonstração das técnicas
de colheita e secagem de café
para obtenção de qualidade
Julho a Dezembro/2005
Reuniões
- Foram realizadas reuniões
com as comunidades com os
objetivos de: avaliar as
atividades realizadas no
segundo semestre de 2005; e
planejar as atividades para
2006.
- Em Campestre com 22
agricultores;
- Em Poço Fundo e São João
da Mata, foram realizadas 5
reuniões nas comunidades:
Cachoeira Grande, Cardoso e
Jacutinga (1 c/ 12
agricultores); Gonçalves,
Bocaína e Pinhalzinho (1 c/
13 agricultores); São Miguel
(1 c/ 57 agricultores);
Dourado dos Lopes: (1 c/ 8
agricultores); Andradas (1 c/ 9
participantes da associação
local).
O objetivo de todas as
reuniões realizadas foi o de
avaliar as atividades
desenvolvidas no segundo
semestre/05 e tirar um
planejamento para 2006.
Seminário Regional de
Meio Ambiente
- Foi realizado o Seminário
proposto pela Cooperativa e
Associação de Pequenos
Agricultores Familiares de
Poço Fundo com parceria da
SAPUCAI e Escola
Agrotécnica Federal de
Machado, com 150
participantes de diversas
instituições da sociedade civil
organizada.
207
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Palestras:
- “Água Aspectos
Ambientais”;
- “Contaminação do Solo e
Água por Resíduos de
Agrotóxicos”.
Apresentação: “Sistemas de
Saneamento Comunitário para
Moradias Individuais”.
Curso: Provador de Café - Atividade realizada nos dias
23,24 e 25 de Novembro/05
na Escola Agrotécnica Federal
de Machado
- Participação de 3
agricultores de cada
município: Andradas Poço
Fundo e Campestre.
Curso de “Alternativas de
Manejo e Nutrição do Gado
Leiteiro”
- Curso realizado em Poço
Fundo no Salão da
Associação dos Pequenos
Produtores Familiares.
Produtores de leite de São
João da Mata também
participaram.
Conteúdo das atividades:
- Alternativas: - Tanque de
expansão; Associativismo
e/ou Cooperativismo;
- Nutrição: - Cana com Uréia,
alimentação saudável com
manejo correto; Pastejo
Rotativo;
- Manejo: - Manejo
Homeopático na
Bovinocultura Leite.
- As informações sobre
formas de manejo, nutrição do
gado e armazenamento do
leite demonstraram para os
produtores possibilidades de
redução dos custos de
produção e de melhores
preços de mercado.
Como o leite tem preços de
mercado muito baixo em
relação aos custos com
medicamentos, arraçoamento,
manejo, transporte e da
quantidade, muitos
agricultores familiares
deixaram de produzir para a
comercialização em laticínios.
Os que continuam com a
criação do gado, ou é para o
consumo próprio ou para
venda no corte. Assim numa
comunidade, por exemplo,
encontramos produtores de
leite, mas isolados, o que
dificulta a organização para
armazenamento em tanques
de expansão comunitário e
posterior venda conjunta.
Visita Técnica
Visita para conhecer as
estufas dos agricultores de
Lambari, com a participação
de 4 agricultores de Poço
Fundo mais 1 técnico do
SAPUCAÍ.
- Um agricultor de Poço
Fundo, Célio, construiu
inclusive no mutirão realizado
em sua propriedade uma Casa
de Vegetação (para formação
de mudas) e ainda necessita
construir uma estufa.
208
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Realização de Mutirões
- Atividade realizada em
15/12/05 – Sítio Paineira.
- Troca de Experiências,
fortalecimento dos laços
fraternos e da importância da
organização comunitária para
solução de problemas comuns
(mão-de-obra, por exemplo).
Compra de equipamentos e
treinamento GPS e SIG.
- Realização de um curso para
esclarecimentos de dúvidas do
programa Sofware Arc View
para 3 monitores do projeto
apoiado pelo Ministério de
Desenvolvimento Agrário
através da Secretaria de
assistência Técnica e
Extensão Rural – ATER.
- Dos 11 monitores (agentes
locais), 3 conseguem inserir
os dados no programa e gerar
as informações.
Visitas de monitora-mento
- De agosto a dezembro foram
realizadas, com o apoio de 11
monitores e 1 técnico
agrícola, 640 visitas 140
famílias em 127 propriedades.
- Como resultados têm-se:
a) 29 propriedades
georeferenciadas (mapa onde
visualiza melhor a
propriedade o que favorece o
monitoramento e
planejamento de diversas
situações que ocorrem no
sítio, ainda é um instrumento
de apoio para aquisição da
certificação agroecológica).
b) 108 propriedades, com
polígonos da lavoura, onde
constam informações tais
como: latitude, idade da
lavoura, variedades,
espaçamento, adubações,
sacas vendidas em 2004 e
2005 etc.
Vendas via CONAB
Programa Governamental de
Compra Antecipada para
abastecimento local de
instituições públicas e
privadas.
- O café foi vendido através
da Cooperativa dos Pequenos
Produtores Familiares de Poço
Fundo no mercado justo (para
os Estados Unidos).
- Foram vendidas 1920 sacas
do café orgânico por R$
400,00/ saca; 3.200 sacas do
SAT (sem agrotóxicos) por
R$ 300,00/ saca.
209
Atividades Planejadas Atividades Realizadas Resultados Alcançados
Atividades 2006
- Cursos de: Colheita e
secagem do café, de
Qualidade do Café, Nutrição
do Cafezal, de Interpretação
de análise de Solo, de
Controle de Pragas e Doenças,
de Fruticultura, de
Administração Rural,
de Processamento de Frutas e
Hortaliças (Mulheres de
Produtores)
Atividades em:
- Dourados dos Lopes,
Cachoeira Grande, Gonçalves,
Pinhalzinho, São Miguel,
Cardoso, Bocaina,
Pinhalzinho e Gonçalves.
Palestra sobre “As
conseqüências do uso de
agrotóxicos para a saúde
humana e o meio ambiente”.
Dourados dos Lopes
Querem a palestra para a
comunidade. Desejam
desenvolver a formação
comunitária
Estudo da viabilidade ou não
das embalagens do café para o
mercado regional.
- A Associação dos Pequenos
Produtores Familiares de Poço
Fundo e Cooperativa
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