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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
A VIAGEM INFINITA
UM ESTUDO DE TERRA SONÂMBULA
Peron Pereira Santos Machado Rios
Recife, março de 2005
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Peron Pereira Santos Machado Rios
A VIAGEM INFINITA
UM ESTUDO DE TERRA SONÂMBULA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras (PPGL), da
Universidade Federal de Pernambuco,
como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em Teoria da
Literatura.
Mestrando: Peron Pereira Santos
Machado Rios
Orientadora : Profa. Dra. Zuleide Duarte
Recife, março de 2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
A VIAGEM INFINITA: UM ESTUDO DE TERRA SONÂMBULA
Dissertação defendida e aprovada pela Banca Examinadora composta pelos
seguintes professores:
Profa. Dra. Zuleide Duarte
Orientadora
Profa. Dra. Luzilá Gonçalves Licari
Examinadora – UFPE
Profa. Dra. Silvia Cortez Silva
Examinadora – UFPE
Dissertação aprovada no dia / /2005, no Departamento de Letras da UFPE
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ABSTRACT
This dissertation examines the main themes of Mia Couto’s fiction, in
particular of his first novel, Terra Sonâmbula, published in 1992. Among the examined
subjects, we will show how the links between orality and writing play a decisive role in the
formation of the Mozambican identity. This identity is mithologically formed through
Couto's use of magic realism, expanding the usual concept of mimesis. There are two
perceptions of the world presented in the novel: an adult's view and a child's view. The old
man represents a past that must be updated by the child, the country’s future. Terra
Sonâmbula, fable that questions all plastered genres, gives new meanings to old archetypes
like the symbols of water and soil, for instance, carrying into modernity, through its
singular language elaboration, one of its most poetic epopees.
RÉSUMÉ
La dissertation est une étude sur les thèmes principaux dans la fiction de Mia
Couto, en particulier sur son premier roman, Terra Sonâmbula, publié en 1992. Parmi les
sujets examinés, nous allons montrer comment les relations entre oralité et écriture jouent
un rôle décisif dans la formation de l’identité mozambicaine. Cette identité est construite
mythologiquement à partir de la récuperation du réalisme merveilleux, et vient amplifier la
conception de mimesis. Il y a deux répresentations de monde présentées dans le roman: le
regard de l’enfant et celui de l’homme âgé. Le dernier est une image d’un passé qui doit
être remanié par l’enfant, le futur du pays. Terra Sonâmbula, fable qui met en chèque tous
les genres plâtrés, offre d’autres significations à des anciens archétypes comme les
symboles de l’eau et de la terre, portant à la modernité, à travers un travail de langage
singulier, l’une de ses épopées les plus poétiques.
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O escritor Mia Couto, natural da Beira, Moçambique, embora dono de uma
literatura que vem se desenvolvendo mais de uma década, artisticamente refinada,
não tem uma fortuna crítica que venha ombrear o seu valor. A maior gama de
estudos se concentra em terras d'além-mar, nas universidades portuguesas. Ainda
assim, poucas são as teses e dissertações sobre seus romances, sendo grande parte
dos textos artigos ou ensaios a propósito de temas pontuais.
Toda pesquisa deve significar sempre uma trilha por terrenos ainda não
tateados. A ênfase sobre determinados temas, de um certo modo, vem saturar o
próprio escritor abordado (o que é bem perverso) e também a todo leitor possível.
No que diz respeito ao nosso campo, a literatura, não podemos esquecer as palavras
do crítico norte-americano Ezra Pound:
o crítico honesto deve contentar-se em encontrar uma parcela MUITO
PEQUENA da produção contemporânea digna de atenção séria; mas deve
também estar pronto para RECONHECER essa parcela, e para rebaixar de
posto uma obra do passado quando uma nova obra a supera
1
.
Nosso estudo não visa necessariamente a estabelecer uma hierarquia de
escritores, por Ezra Pound defendida. Na verdade, o exercício é sobretudo de
garimpagem e reconhecimento.
Autor de livros luminares como Terra Sonâmbula (uma passagem obrigatória
na alta literatura mundial), Cada Homem é Uma Raça e seu recente Um Rio
Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, ele vai, pelo viés da palavra,

1
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José P. Paes. São Paulo: Cultrix, [ 1972 ]. p.
85.
reaglutinando o que a barbárie transformou em ca(c )os. De fato, Mia Couto foi um
militante (participante ativo da FRELIMO Frente pela Libertação de Moçambique) na
guerra pela independência de seu país, consumada politicamente em 1975. Mais
importante, porém, é a atenção frente às ciladas do panfletismo fácil, no qual a
principal função do escritor seria dissolvida. Octavio Paz dizia que o primeiro
compromisso do escritor é com a linguagem, e o próprio Ezra Pound vem afirmá-lo
na mesma obra que citamos: “Os escritores, como tais, têm uma função social
definida, exatamente proporcional à sua competência COMO ESCRITORES
2
. Mia Couto
revela uma dupla pertinência : a pertinência de linguagem e a pertinência social. É
um escritor artista (como pedia Fernando Pessoa) e, simultaneamente, comprometido
com a percepção das mazelas de seu tempo e lugar.
Grande parte dos estudos que lhe são dedicados figura como textos de
conferências ou capítulos de obras gerais. Entretanto, pouco ou nada se de
pesquisa de fôlego que tenha explorado sua arte verbal, suas nuances ou o
significado simbólico que toda a sua obra encarna, no laço inextricável entre
literatura e identidade. A situação é mais grave, entretanto. uma parca produção
de trabalhos em torno da literatura africana de língua portuguesa, se compararmos os
estudos realizados sobre as literaturas africanas anglófonas e francófonas. Salvato
Trigo já nos alertava para isso :
Existe uma grande desproporção entre os estudos teóricos, críticos e
divulgativos sobre as literaturas africanas anglófonas e francófonas e os das
literaturas africanas de expressão portuguesa. o razões de ordem
política estarão na base desse fenómeno, ainda que sejam determinantes
3
.
É em momentos semelhantes que ensinamentos como os de Osman Lins não

2
POUND, Ezra. Op. cit. p. 36.
3
TRIGO, Salvato. Luandino Vieira : o logoteta. Porto : Brasília Editora, 1981. p. 7. Atualmente, ele já
reconhece que a discrepância é menor, não deixando, contudo, de existir.
se podem olvidar. Segundo o escritor pernambucano, a Divina Comédia se constitui
dela mesma e de tudo o que sobre ela se escreveu. Há ‘divinas comédias’ que nem
o próprio Dante imaginaria ser possíveis. Exatamente como no efeito Joule : a
energia da energia se perfaz. A função do crítico, portanto, é alargar o alcance da
obra, fazendo-a chegar aonde ela é silêncio. E duplamente: fazê-la ser conhecida
onde é ignorada e sempre sugerir novas leituras, transformando o silêncio do cifrado
em linguagens decifradas. Recorrendo a uma tautologia, a literatura na leitura
ganha voz. Assim, não se pode deixar um escritor da dimensão atual de Mia Couto
num limbo literário, consagrando-o quiçá burocraticamente, como resultado não de um
real interesse, mas de algum pendente remorso.
A idéia inicial era vislumbrar, como do alto de uma montanha, sua obra, mas o
tempo nos deu a crença de que é descendo em um específico terreno que
podemos pôr no estreito espaço que o trabalho dispõe alguns dos elementos que nos
parecem luminares. O material escolhido foi o romance Terra Sonâmbula, publicado
pela editora Caminho, de Portugal, em 1992. Terra Sonâmbula veio confirmar o
estatuto de artesão que Mia Couto esboçara desde sua primeira obra de ficção, o
livro de contos Vozes Anoitecidas. Em nossa dissertação, os capítulos serão um tubo
de ensaio, onde problemas que percorrem a Teoria Literária serão recuperados.
Após um breve percurso histórico sobre Moçambique e suas expressões literárias, o
primeiro estudo será uma busca de compreensão das relações entre oralidade - moeda
cultural das comunidades africanas - e a escritura, no sentido que Roland Barthes deu
à palavra: escrita artesanal. Equívocos que se instalaram como verdades serão
repensados dentro de um olhar comparativo, seja sincronicamente - na relação entre
os escritores atuais - ou diacronicamente, a partir de uma retomada de alguns textos
que a História preservou por seu valor específico.
Em seguida, será a mímese nosso campo de reflexões. O problema, no
decorrer das investigações, ganhou uma complexidade que extrapola as margens das
denominações correntes, como realismo mágico ou literatura fantástica. A rigor,
nenhum desses termos tem suficiente largueza para abraçar as nuances do texto. O
que, sem um conhecimento mais amplo da etnologia, parece uma fissura com as
formas sociais, sobretudo a linguagem, inúmeras vezes vem ser a sua afirmação mais
funda. Nada, no entanto, que mereça a redutora classificação de linguagem especular
ou escrita fiel e absolutamente mimética. Em nossa abordagem, a própria idéia de
mímese será bolinada, mostrando que a única fidelidade possível da alta literatura é
a da amplitude criadora.
A ampliação mimética do “maravilhoso”, termo que, juntamente com Irlemar
Chiampi, preferimos, acaba sendo uma saída recorrente de culturas em estado de
afirmação (a África e a América Latina, sobretudo). Com efeito, não parece casual
que a Argentina tenha trazido um imaginário - como o de Jorge Luis Borges ou o
de Julio Cortázar - tão avesso a um realismo com pretensão de fidelidade, que o
México tenha entregue um romance como Pedro Páramo, de Juan Rulfo, o Brasil
tenha produzido um Murilo Rubião, um J.J. Veiga, um Machado de Assis, e a África,
um Luandino Vieira e um Mia Couto. A recusa do realismo é uma recusa do
referente que se impõe, dos modelos que são dados.O próprio Mia Couto, em
entrevista concedida em Paris, no evento Visions d’ailleurs, visions intérieures, afirma:
L’idée que j’ai du monde n’est pas ce qui est mais ce qui advient. Ce
qui advient implique ce que nous avons comme certitudes, comme garanties
de ce qui est vrai ou pas, existant ou inexistant. Or, cette frontière est
toujours menacée car il peut arriver des choses que nous jugeons
irrationnelles. Pourtant, ce qui est considéré comme non plausible
aujourd’hui, c’est quelque chose que nous avons expurgé de la raison, sauf
que cette raison est comme une intelligence domestiquée. Il y a ainsi une
nécessité intérieure de placer notre raison en un lieu sauvage pour que
notre âme puisse oser
4
.
Esse estar sempre na corda-bamba do real deságua em outra incerteza (o
poeta é aquele que sempre vai nos furtar confortáveis convicções). A pulverização
dos gêneros é esse outro campo minado a explorar. Mia Couto trabalha com o que
a Teoria da Literatura moderna denomina gêneros de fronteira, ou seja, aqueles cujos
traços limítrofes estão completamente embaçados. De fato, iremos apontar que a
literatura que perpassa um Estórias Abensonhadas não pode ser poesia ou prosa,
senão uma prosa poética do mais afinado requinte. De modo similar, se observou
que seus romances são uma seqüência de narrativas menores.
Mia Couto, porém, não deixa apenas os gêneros fora de lugar. A língua, de
um modo amplo, é também “desarrumada”. Ao mesmo tempo que isso é resultado
de um compromisso de todo escritor (pôr a linguagem em seus avessos), não deixa
também de ser uma maneira de, pela infração expressiva, dar vazão à inflação do
olhar. Como diria Hilda Hilst, “os sentimentos vastos não têm nome”. Cabe, então,
ao poeta, inventá-los, ir além do que a língua standard nos oferta, refigurando
imagens da memória arquetípica dos povos. “A linguagem ‘despedaçada’ espelha a
dificuldade que as pessoas têm de compreender...”, sugere um jornalista da Folha de S.
Paulo, ao que o escritor responde:
... a dificuldade que as pessoas m, no português padrão, sem desvio’, de
encontrar a expressão para traduzir aquilo que é o seu mundo. Elas estão
lidando com uma língua que é de outro mundo, com outra gica, e elas
têm que despedaçá-la para que a língua possa ser sua
5
.
Desse modo, no esforço de rastrear uma identidade, essa desconstrução da

4
RODRIGUES, Elisabeth Monteiro. Visions d’ailleurs, visions intérieures. In : http://
www.harmattan.fr/index.asp?navig=catalogue&obj=article&no=745.
5
THOMAZ, Omar Ribeiro; CHAVES, Rita. Escrita Desarrumada. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 nov.
1998.
língua espelha o caráter épico da obra, como dissemos acima. Todo grande épico
reinventou a língua, como por exemplo Homero, Dante, Camões ou Joyce.
Essa relação literatura e identidade em Mia Couto ganha um ingrediente a
mais, e essencial : o papel do velho em sua escritura. É nos alforjes da memória
dos idosos (Ecléa Bosi trata desse assunto, em Memória de Velhos) que se preservam
os caracteres de um povo. Em Terra Sonâmbula, o narrador dá a exata conseqüência
da morte do velho Siqueleto :
[ ... ] no falecimento de Siqueleto havia um espinho excrescente. Com ele
todas as aldeias morriam. Os antepassados ficavam órfãos da terra, os vivos
deixavam de ter lugar para eternizar as tradições. o era apenas um
homem mas todo um mundo que desaparecia
6
.
Em resumo, aqui se encontram os maiores problemas que permearão nossas
investidas. Naturalmente, até mesmo pelo efeito associativo, no decorrer da fatura de
escrita, outros irão surgir e se desenvolver, como um rizoma. Mas as matrizes estão
aqui e só a partir delas as surpresas e o advento do inesperado podem vicejar.

6
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1995. p. 103.
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1.1 Breve percurso histórico-literário
Moçambique, localizado na África austral, foi, desde o final de século XV, uma
espaço habitado pelos portugueses, com a chegada de Vasco da Gama, em 1498, à Ilha de
Moçambique. Logo de início, o país era considerado parte da Índia Portuguesa, passando
ao grupo constituinte da África Lusitana em 1751, tornando-se em 1951 uma província
ultramarina de Portugal. Ganhou alforria política em tempos relativamente recentes, no ano
de 1975.
O processo emancipatório, porém, longe de ter sido pacífico, figura entre as grandes
carnificinas que a humanidade conseguiu acumular. Considerado uma extensão portuguesa
d’além-mar, Moçambique era submetido a trabalho escravo, sobretudo após a subida ao
governo português do ditador Antônio Salazar, em 1932. Com interesses completamente
mercantis, Salazar impôs uma política de exportação dos produtos agrícolas da região,
principalmente o arroz e o algodão, diminuindo a produção voltada para a subsistência
interna, conduzindo o país à fome, que teve maior ênfase nas décadas de 40 e 50 do século
passado. Pródigo também em ouro, zinco e marfim, Moçambique foi vítima de intensa
atividade extrativista, sendo alvo, muitas vezes, da ambição de outros países europeus,
como Inglaterra e Alemanha.
As insatisfações de seus habitantes se avolumavam em geométrica progressão e, em
1962, Eduardo Mondlane funda a FRELIMO Frente de Libertação de Moçambique –,
enfrentando os mais duros combates contra a inexorável resistência lusitana. Em 1974, com
a queda de Salazar na Revolução dos Cravos, os moçambicanos deram um largo passo para
a fatura de sua independência política. Depois de dezesseis anos de conflitos contra a
metrópole, o país, em 25 de junho de 1975, festejou sua emancipação, mas recebendo,
naturalmente, o peso de autogerenciar-se
7
. A FRELIMO, conduzindo um governo de
tirânicos traços, provocou um generalizado descontentamento. Desde então, o movimento
de oposição, liderado pela RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), entrou em
contenda contra o poder, culminando na guerra civil que Mia Couto vai usar como cenário
no romance Terra Sonâmbula, material de nosso estudo.
Durante seu percurso histórico, as terras moçambicanas são divulgadas ao ocidente
através da literatura, seja com Garcia de Resende, Gil Vicente, o épico camoniano, os
cronistas portugueses ou até mesmo Tomás Antônio Gonzaga, que por lá ficou após ter sido
exilado. Com o rosto voltado para o Índico e tendo recebido árabes no século XII,
Moçambique também serviu de porto de passagem a chineses e indianos, acumulando dessa
forma uma singular diversidade cultural. A conseqüência imediata desse fato é a
multiplicidade de povos e idiomas que por ali circulam, fazendo da língua portuguesa,
apesar de idioma oficial, apenas de uso secundário frente às línguas dos nativos. Todas
essas tensões históricas foram o que não admira, pois a maioria das nações tem como
documento de sua primeira idade a literatura – registradas por textos literários, de maior ou
menor qualidade artística.

7
Sobre a repressão de Moçambique pela PIDE, polícia política de Salazar, Mia Couto escreveu o romance
Vinte e Zinco. Solicitado a escrever um texto em homenagem ao 25 de junho, o título finda por ser uma
referência irônica à data, que não pedia comemorações, uma vez que o zinco, uma das maiores riquezas
naturais do país, continuava a ser extraído e espoliado.
No período colonial, a literatura revela sua importância principalmente enquanto
propaganda política: ali, o escritor deveria ser um homem de textos armados. Escassos
foram os poetas com a contenção e a sobriedade que solicitava Maiakovski
8
. Somente no
período pós-independência a poesia atuou como um detector das feições de uma nação. Até
mesmo porque a partir dali este substantivo poderia ter sentido. A língua portuguesa
não era vista com a mesma aversão, mas, em vias inversas, se fazia percebida como meio
mais eficiente para unificar o país.
O nascimento, em 1854, do jornalismo em Moçambique - e sua consolidação - foi
imprescindível para a formação de uma consciência identitária, porque possibilitou a
literária expressão. Foi em periódicos similares a O Brado Africano, editado pelos irmãos
João e José Albasini, que Noémia de Sousa, Rui Noronha ou Virgílio Lemos ganharam voz.
Por sua vez, a revista Itinerário, em circulação de 1941 a 1955, pôs às mãos do público
uma antologia dos poetas em Moçambique, onde figurariam nada menos do que Rui
Knopfli e Craveirinha, duas das maiores expressões poéticas do país. Francisco Salinas
Portugal dividirá a literatura moçambicana, dessa forma, em períodos essenciais, como a
pré-história (onde se enquadrarão João Albasini, com O Livro da Dor, de 1925, um ponto
de partida da poesia moçambicana e João Dias, com seu conhecido conto de 1952 intitulado
Godido, referência da prosa nacional) e o período de formação, no qual se enquadra
Noémia de Sousa, escrevendo, em 1951, Sangue Negro, obra que já marca enfaticamente a
presença da oralidade na literatura moçambicana. Também a esse momento literário
pertencerão, pela divisão de Salinas Portugal, Rui Knopfli, Rui Nogar e Craveirinha. Este
último, apesar de aclamado pela sua obra de 1974, Karingana Ua Karingana, não ombreia,
a nosso ver, com o admirável projeto estético de Knopfli, com seu livro de poemas A Ilha
de Próspero, de 1972. De todo modo, é nesse período que aparecem como as duas maiores

8
Referimo-nos ao seu poema de 1929, A Plenos Pulmões, onde escreve : Também a mim a propaganda
cansa/ é tão fácil alinhavar romanças/ mas eu me dominava, entretanto, / e pisava a garganta do meu canto”.
referências poéticas das letras moçambicanas. Será depois da década de 60 que a prosa irá
ganhar maiores expressões. Até aquele instante, a produção poética era quase um
monopólio. Surgem, então, coletâneas de contos como Nós Matamos o Cão Tinhoso
(1964), de Luís Bernardo Honwana e, dois anos depois, Portagem, primeiro romance de
Orlando Mendes.
Após 1975, os escritores moçambicanos dedicam-se a um aperfeiçoamento da
linguagem, com Rui Nogar (escrevendo em 1982 o livro de poemas Silêncio Escancarado),
Ungulani Ba Ka Khosa (publicando, entre os novos prosadores, Ualalapi, em 1987),
Paulina Chiziane (publicando Balada de Amor ao Vento, em 1990 e Ventos do Apocalipse,
em 1999) e Lília Momplé (Ninguém Matou Suhura, 1988, e Os Olhos da Cobra Verde,
1997). Dentre os poetas, destacam-se Eduardo White, com País de Mim (1989) e Luís
Carlos Patraquim, que traz a lume um livro de poemas como A Inadiável Viagem, em 1985,
só pra ficar com tais exemplos.
Aqui desponta a prosa poética de Mia Couto, que havia publicado em 1983 um
livro de poemas intitulado Raiz de Orvalho que, se não pode ser julgado como de baixa
qualidade, está longe de suas maiores realizações estéticas. Obra de 1986, Vozes
Anoitecidas é a coletânea de contos que traz ao público a forma de expressão com que o
escritor se sentirá à vontade. Desde então, icompor narrativas onde ficará registrada a
vivência cultural de Moçambique, de suas crenças religiosas ao ciúme pela palavra
oralizante. Até escrever Terra Sonâmbula, texto desse nosso estudo, o escritor ainda nos
iria entregar duas obras de narrativas curtas, Cada Homem é Uma Raça, em 1990 e, no ano
posterior, a seleta Cronicando, onde a implosão de gêneros começa a dar sinais. Mas é
em Terra Sonâmbula que todos os seus experimentos de linguagem, desenvolvidos na
técnica do conto, irão se aglutinar: a escritura cantada, a ordenação mágica do mundo e a
fatura da trama em refinada arquitetura
1.2 Identidade, voz, escritura
Entre a voz e a escritura escoam tintas de teses e tratados. Sea fala uma
rede de suficiente resistência para conservar uma granítica literariedade ? Certamente
sim, nos diria a História, uma vez que nos oferece, disso, alguns exemplos
incontestáveis, a começar pelas obras atribuídas a Homero. Em seu princípio, as
linhas do poema estiveram atadas às do pentagrama e o canto é que as fazia
existir. A poesia, na verdade, ganhava seu valor no laço semiótico, e a palavra não
pairava morta no silêncio de um volume.
Paul Zumthor, em La Lettre et la Voix, vai dizer que a literatura funda-se na
oralidade. Recorda que, na Idade Média, a voz surgia como elemento nuclear e os
cantadores eram um símile dos aedos na Antiguidade Clássica. Com o divórcio
gradual entre a poesia e a música, o artefato poético teve de sedimentar-se, de
reelaborar-se para ganhar um status de independência. Com recursos próprios, música
e imagem revelados na linguagem, o poema parece voltar-se agora, numa sorte de
despeito amoroso, contra toda sugestão de reenlace ou recuperação de um tempo
mítico perdido. Olha-se com desconfiança a palavra animada pela fala e os círculos
iniciáticos dissolvem-se nos pontos solitários dos silenciosos leitores de bibliotecas.
A verdade é que a resistência parece não ter muitos argumentos com que
digladiar. A lírica trovadoresca é estudada como poesia, mas as letras de músicas da
atualidade nem de longe, para muitos, podem ter a ousadia de ser alçadas a
semelhante patamar. Os contos, as lendas, as canções de gesta, estão nos currículos
escolares para as atividades de leitura. Mas que os alunos possam ter alguém ao
centro de um círculo para a narração das estórias, da memória de um povo isso
vem sendo trabalho de poucos. A escrita ganhou imensa credibilidade em detrimento
do poder vocal, o que se confirma no latino e tão conhecido provérbio verba volant,
scripta manent.
A oralidade dissemina, no círculo ativo da audiência, toda a cultura da comunidade,
que se guarda e se reinventa na memória. O “verba volant, scripta manent” perde
credibilidade no exemplo das culturas africanas. Lourenço do Rosário, aliás, em A
Narrativa Africana de Expressão Oral, afirma sem hesitações:
a tendência de se pensar que somente a escrita pode resistir ao desgaste do
tempo, transmitindo às gerações vindouras os seus ensinamentos. É natural que tal
convicção o corresponda à realidade dos factos. Está mais que provado que as
comunidades sem escrita encontram formas, por vezes muito mais eficientes de
conservação e veiculação dos seus valores através das gerações
9
.
Além disso, a escrita acaba se revelando um meio ambíguo de transmissão. O seu
caráter solitário é obstáculo ao permanente câmbio de energia. Por vezes, a escritura eleva a
literatura à mortal condição de deusa imortal: corpo decadente em que o fluxo sanguíneo
houvesse estancado, amortizando lentamente suas partes integrantes. Soma-se a isso o fato
de que a escrita tranqüiliza a memória: o papel conserva as lembranças, eximindo a
responsabilidade de uma recordação individual.
As literaturas elaboradas na África são abordadas sob aspectos inúmeros, mas um
especialmente é quase passagem obrigatória: as qualidades orais que as escrituras querem
enfatizar. Em países ágrafos ou sem competências de leitura, é a oralidade uma linha com
que se enlaçam os habitantes, reunindo-os para fazer ecoar a tradição da tribo. O problema,
aqui, retorna com máxima força: seriam as narrativas orais africanas o que a modernidade
chamou de literatura ? Para os formalistas russos, sem dúvida alguma, afinal,

9
ROSÁRIO, Lourenço do. A Narrativa Africana de Expressão Oral. Lisboa: ICALP`, 1989. p. 50.
pour pouvoir être retenus, ces énoncés ont besoin d’être soumis à un traitement
particulier du signifiant au moyen d’un certain nombre de procédés stylistiques:
allitérations, assonances, rimes, répétitions, symétries et chiasmes divers… Ce
traitement facilite leur mémorisation, mais leur confère en me temps une
qualité poétique’ au sens que Jakobson donne à ce terme. C’est le fameux style
formulaire que Milman Parry a si bien étudié à propos de l’épopée homérique. Si
l’on suit ce point de vue, on est conduit à considérer que tout énoncé de tradition
orale, c’est-à-dire consigné dans un répertoire, tend à être englobé dans le champ
de la production littéraire. Ce sera d’autant plus vrai si cet énoncé est mémori
par le signifiant ( textes appris par cœur ) plutôt que par le signifié
10
.
Inúmeros são, porém, os equívocos que vigiam a temática. A África parece vir
substituir, no imaginário ocidental, o que a América representou nos séculos XV e XVI
para os europeus. Um romantismo que nunca se extingue, sempre seqüestrado, quer se
libertar em terras que guardam seus segredos e despontam como exóticas. O africano é, em
tempos atuais, o bon sauvage idealizado por Rousseau, que a Europa, numa crise de
consciência, quer recuperar. Em Introduction à la Poésie Orale, o referido Paul Zumthor
faz uma romântica defesa da oralidade, entendendo-a como algo essencial, natural ao
continente. Para ele, o calor humano está na voz ouvida que a escritura silencia.
Derrida havia, por outro lado, feito duras críticas a esse pensamento em De la
Grammatologie, referindo-se a vi-Strauss, que defendia o bom selvagem acusando a
Europa de seu assassinato. Parece haver, portanto, uma nostalgia do europeu que se quer
paliada na oralidade africana.
Ana Mafalda Leite faz um retrospecto da situação em Oralidades e Escritas nas
Literaturas Africanas. Ela crê que as teorias evolucionistas contribuíram em muito para o
mito de que a Europa simbolizava um estado adulto da civilização, enquanto a África (e a
América, outrora) representava a sua infância, por via do discurso oral. Fazendo um
balanço dessa imaginária naturalidade nos países africanos, a escritora observa:

10
FONKOUA, Romuald et al. La Périodisation de l’oralité. In : Les Champs Littéraires Africains. Paris: s.n.,
2001. p. 98.
A predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e
históricas e não uma resultante da ‘natureza’ africana; mas muitas vezes este facto
é confusamente analisado, e muitos críticos partem do princípio de que há algo de
ontologicamente oral em África, e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e
alienígeno para os africanos
11
.
Complementa ainda que Honorat Aguéssy, em Visões e Percepções Tradicionais,
enfatiza o fato de a oralidade, como caráter do campo cultural, ser dominância, não
exclusividade. O problema, bem analisado, escamoteia um outro subliminar e mais nocivo
à literatura. Lourenço do Rosário, em A Narrativa Africana, diz ser tamanha a importância
do discurso oral em Moçambique, por exemplo, que “para chegarmos à compreensão do
sentido da escrita teremos necessariamente que passar pela oralidade. Quer isto dizer que,
na actualidade, a literatura escrita só toma o seu sentido de moçambicanidade na medida em
que não se ignorar essa realidade”
12
.
Aqui reside o problema : a África coleciona países em procura de ideologias que
dêem suporte a seu status de independência, muitas vezes justificada no diferencial. Impõe-
se à literatura um dever que a rigor lhe é inteiramente estranho. Declina ao esquecimento o
“insignificante” detalhe de que o texto literário é antes de tudo uma arte e, se pode
porventura dar vozes a discursos de fundo político, deve sempre ser avaliada a partir de seu
autotelismo. Por que, com a mesma freqüência que se faz com a literatura, não se enfatiza
o viés ideológico da música de Beethoven ou das esculturas de Rodin ? A literatura é uma
vítima fácil dessas correntes, uma vez que maneja uma moeda cotidiana ( a linguagem ),
logo identificada como detentora de uma funcionalidade referencial. Não se dá peso ao fato
de que, ali, a linguagem só tem obrigação de ser narcísica, como a melodia, o ritmo ou a
harmonia na música, a luz e a cor na pintura ou a movência da imagem no cinema.
Adjetivar a literatura é quase sempre reduzir-lhe o universo e encarcerá-la em um gueto.

11
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa : Edições Colibri, 1998. p.
17.
12
ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de Expressão Oral. Lisboa : ICALP/Angolê,
1989. p. 13.
Querer que um escritor como Mia Couto fabrique sua narrativa em função de uma
moçambicanidade é pensar o literário como puro reflexo de uma sociedade. Iona Hederi-
Remege questiona Amos Oz : “Certos comentaristas vêem em A Terceira Esfera um
testemunho sobre ‘a situação israelense’, ao que o escritor retorna :
A Terceira Esfera não é um testemunho sobre a ‘situação israelense’. uma
sorte comum da literatura escrita nas partes ‘melodramáticasdo mundo : como a
América do Sul, a Europa oriental, a África do Sul e Israel. Se Moby Dick de
Melville tivesse aparecido sob a assinatura de García Márquez, se teria dito que a
baleia branca era certamente uma parábola sobre a ditadura. Na África do Sul, sob
a assinatura de Nadine Gordimer, se teria dito que era uma parábola sobre os
brancos e os negros. Sob a de Kundera, a baleia seria Stálin. E no Oriente Médio,
assinado por Ben-Ner, Moby Dick evocaria os palestinos perseguidos pelos
israelenses. É uma parte dos problemas postos pelo acolhimento reservado à
literatura de países onde a história penetra também ela nos quartos de dormir.
Porém mesmo em Israel, há uma vida após a política
13
.
Fazer da arte um projeto político é perverso e temerário. Perverso porque se
aproveita de suas formas para transformá-las, de personagem principal, em mero veículo
ideológico. Temerário dado o risco de, sob o emblema “literatura social”, o adjetivo sufocar
o substantivo, como disse alguma vez Antônio Carlos Secchin. O próprio Mia Couto, no
seu belíssimo texto Os Sabores da Forma, referindo-se à pintura de Eugénio Lemos,
indaga:
Este talvez o seu arrojo. Sujeitar-se ao exame dos puristas da realidade: e onde
está o país, onde estão os infalíveis emblemas da fome, o fatal estigma da criança
agonizante ? E dos sequiosos juízes da autenticidade africana : onde está o
deferimento da africanidade ?
Talvez se acuse esta pintura desse desvio, talvez se denuncie a sua falta de
inserção nas raízes africanas. Digo apenas : talvez. Não me compete, neste
contexto, professar nenhuma defesa. A arte, se é verdadeira, dispensa tais arautos.
A única defesa da pintura é a sua própria condição livre, o seu estatuto avesso à
rotulação. o sei se importa ajuizar a moçambicanidade da pintura de Lemos.
Nem sei mesmo se alguém pode definir os limites dessa moçambicanidade
14
.

13
OZ, Amos. Les Deux Morts de Ma Grand-Mère. Paris : Folio, 1995. p. 165.
14
COUTO, Mia. Os Sabores da Forma. In : O Desanoitecer da Palavra. Lisboa : Embaixada de Portugal,
1998. p. 99.
A realidade de Moçambique, seu sentimento, é fractal, o que faz a identidade
movediça
15
:
- Tio, eu me sinto tão pequeno...
- É que você está só. Foi o que fez essa guerra : agora todos estamos sozinhos,
mortos e vivos. Agora já não há país.
16
Se uma moçambicanidade em Terra Sonâmbula, ela certamente se desvenda na
própria viagem de Kindzu, imaginária e de impressões, mas que também é “um revelador
da cultura e da identidade moçambicanas”
17
. A afirmação e a busca de identidade são algo
absolutamente compreensível nos escritores, dada a idade adolescente de inúmeros países
africanos. Lembra Patrick Chabal:
Se hoje se questiona a identidade ou o papel da literatura moçambicana é porque
Moçambique é um país recém-independente em que a construção da identidade
nacional está ainda em processo. Daqui a 50 anos estas duas questões deixarão de
ter sentido.
18
No mesmo capítulo, observa que a querência por uma identidade é algo
absolutamente natural quando o Estado se forma antes do sentimento de nação, sendo este
possível apenas na partilha de experiências históricas. Octavio Paz dirá o mesmo, referindo-
se à América, em seu ensaio Literatura de Fundação :
( ... ) a Europa é o fruto, de certo modo involuntário, da história européia,
enquanto nós somos a sua criação premeditada. Durante muitos séculos os
europeus ignoraram que eram europeus e só quando a Europa tornou-se uma
realidade histórica que saltava aos olhos, deram-se conta de que pertenciam a algo
mais vasto do que sua cidade natal. E ainda hoje não é muito certo que os
europeus sintam-se europeus: sabem disso, mas sabê-lo é muito diferente de senti-

15
Como nos dizem Salinas Portugal, Cremilda Medina e o próprio Mia Couto, em recente ensaio ( “A
Fronteira da Cultura” ) publicado pela revista Continente n. 29, ano III, os assimilados como o chamados
os letrados em Moçambique têm um sentimento de indiferença em relação a tudo o que extrapole os limites
de Maputo, o se interessando por conhecer o interior de sua terra, as regiões rurais. A fragmentação não é
tão-somente exterior, mas se encontra no seio de seu próprio povo.
16
COUTO, Mia. Op. cit. p. 185.
17
TUTIKIAN, Jane; SILVA, Vivian Ignes Albertoni da. Viagem para Lembrar o Esquecimento de um Povo
ou o Desatento Abandono de Si ( Um Estudo de Terra Sonâmbula de Mia Couto ). p. 6.
18
CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas. Lisboa : Vega, 1994.
lo. Na Europa a realidade precedeu ao nome. América, pelo contrário, começou
por ser uma idéia. Vitória do nominalismo : o nome engendrou a realidade
19
.
A busca da identidade é nostálgica. Na África, aceitar outras formas culturais seria
uma descaracterização. Inserido o problema nessas margens, a oralidade é um escudo. Na
mão de escritores mais talentosos, como Mia Couto, será a obliqüidade alegórica o
elemento a evitar uma paralisação medusante, a cristalização da linguagem em mera
reprodução do real. Ana Mafalda Leite vem esclarecer:
Ao usar a personagem num processo de hibridação formal, que conjuga a
tipificação da herança oral com a complexificação simbólica, o autor recriou
personagens-narrativa, reformulando estratégias de tratamento dos seres e da
enunciação narratológica, conjugando narradores, narrativas e personagens numa
única polivalência
20
.
De fato, a oralidade é considerada elemento-chave da narrativa do autor de Terra
Sonâmbula ( como veremos em seguida, o gênero conto, em si, é herança das tradições
orais ). No entanto, sempre há, nessa fluência, um estranho recife que fará desviar sua
corrente, obrigando as águas a ganharem um percurso sinuoso e, quiçá, mais envolvente.
Em conversa com Nelson Pestana, do Centro de Estudos Africanos de Lisboa, pudemos
compreender a dimensão do cancelamento mimético elaborado pelo escritor. Segundo
Pestana, “ninguém em Moçambique fala da maneira como escreve Mia Couto, e esse é
apenas um dos pontos que revelam sua inovação lingüística”. O diálogo entre a oralidade e
sua ressignificação na escritura é sublinhado por Ana Mafalda Leite :
As estratégias de tratamento dos registros da oratura sofisticaram-se muito com o
decorrer dos anos no romance, e pensamos que a contribuição do romance
moçambicano é significativa, o que nos leva a considerar que esta inscrição,
crescente, da oralidade na escrita, corresponde a uma das mais insistentes
estratégias discursivas pós-coloniais africanas
21
.

19
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo : Perspectiva, 1996. p. 127.
20
LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa : Colibri, 2003. p. 73.
21
Idem, ibidem.
Lembrar é preciso, entretanto : não é apenas a oralização da escrita africana que vai
enriquecê-la, mas, em vias inversas, o enriquecimento simbólico, condensado no manejo do
significante, investido nas tradições orais. A identidade, aqui, deve ser dupla: pertinência a
um espaço geográfico e, sobretudo, a um espaço de linguagem. Moçambicanidade mas,
principalmente, literatura. Em seu texto sobre a pintura de Berry, Mia Couto sublinha
a necessidade de fazer orgânico o processo criativo, reatá-lo definitivamente à vida
que lhe deu origem. A relação entre a escrita e a fala aparece, logo, de viés : A
escrita anseia também saltar dos limites que são impostos por uma linguagem
codificada. A linguagem escrita olha com ciúme a linguagem oral, a sua mobilidade
e, sobretudo, a possibilidade de uma não leitura”
22
. A afirmação do escritor soa
estranha quando lembramos que a escritura a escrita artesanal não tem motivo
algum para lançar esse olhar ciumento sobre uma fala móvel. A alta literatura e a
sua se encaixa reorganiza os elementos criando novas substâncias. O trabalho
literário é uma alquimia verbal que integra e modifica, pela seleção e organização
de leitmotivs, o imaginário popular. E em Mia Couto é exatamente a linguagem luminar
que, não imitando a fala de Moçambique como lembra Pestana -, a enriquece de
possibilidades, de uma cinética, uma teia semiótica : fala, escrita, imagem, música e
símbolo. A rigor, não como estabelecer oposições entre as duas manifestações. A
palavra “oratura”, formada por uma espécie de aglutinação, assinala obrido aspecto entre
a voz e a grafia. Chabal esclarece, em Vozes Moçambicanas :
A questão que nos interessa é a forma como os escritores africanos conciliaram
até agora uma tradição de cultura oral com uma literatura escrita numa língua
européia. (...) Uma vez que é hábito contrastar a chamada cultura ‘tradicional’
africana com a designada ‘moderna’ literatura escrita, gostaria aqui de sublinhar
que tal dicotomia é errada (...). Na realidade, toda a cultura é uma constante fusão

22
COUTO, Mia. Os Desabitantes da Tela. In : O Desanoitecer da Palavra. p. 132.
transformativa do tradicional e do moderno. Deste modo, modernidade não é o
inverso de tradição, mas antes tradição tal como mudou e se modernizou
23
.
Outro mito que circula em torno dos africanos é a sua tendência inata para o conto e
para o canto, em detrimento, por exemplo, do romance. Tal compreensão longe está de se
desvincular do problema da oralidade :
( ... ) De que forma é que as literaturas africanas recuperam ou reintegram o
intertexto oral ? Um dos primeiros modos de equacionar esta relação foi através
da ideia de ‘continuidade’, exposta como vimos, por exemplo, através da ideia do
‘género’ ocidental ; ou seja, é ‘natural’ que um escritor africano use o conto,
porque este é o género que permite estabelecer a continuidade com as tradições
orais
24
.
Ora, seria demasiado ingênuo sustentar essa crença, uma vez que a literatura não
pretende continuar a tradição, mas criar-lhe justamente uma fenda, refratá-la, para que uma
nova percepção ganhe lampejo. O texto literário está três graus afastado da naturalidade : a
cultura é um acréscimo à natureza ; a literatura é um acréscimo à cultura, ainda que para
tanto tenha de se lhe opor, numa sorte de contracultura. A mesma Mafalda Leite vai,
adiante, alertar :
( ... ) Uma das mais importantes propriedades da literatura e do texto literário é a
ficcionalidade, definida como um conjunto de regras pragmáticas que regulam as
relações entre o mundo instituído pelo texto e o mundo empírico. O texto literário
constrói um mundo fictício através do qual modeliza o mundo empírico,
representando-o e instituindo uma referencialidade mediatizada
25
.
Também o poema, enquanto canto, é imaginado como forma inata das sociedades
africanas. O problema é mais delicado do que os teóricos supõem. O que está em jogo não é
o fato de ser ou não a poesia uma característica de povos primitivos. Isso parece ser uma

23
CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas. Lisboa : Vega, 1994. p. 23.
24
LEITE, Ana Mafalda. Op. cit. p. 28.
25
Idem, p. 29.
das poucas verdades definitivas, como assinalavam Borges e Octavio Paz
26
. O discurso
subliminar que pulsa e se revela transformado ( por causa do politicamente correto ) é, na
verdade, o de que a África ainda é um continente de comunidades, na fase da infância -
primitiva.
O entendimento de que a oralidade é essência dos países africanos e de que a escrita
é uma herança européia se aprofundou de tal modo que já adeptos de uma expressão no
mínimo “maladroite” : literatura neoafricana. Ora, se andam opondo à literatura a idéia de
oratura, como falar em literatura neoafricana se agora é que o literário, nos moldes que
conhecemos, está se afirmando? A oralidade não é essência, mas contingência. É uma
circunstância material e uma postura ideológica, onde germina a noção de identidade. Ana
Mafalda Leite é categórica quanto a isso, em Oralidades e Escritas nas Literaturas
Africanas :
A predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e
históricas e não uma resultante da ‘natureza’ africana; mas muitas vezes este facto
é confusamente analisado, e muitos críticos partem do princípio de que há algo de
ontologicamente oral em África, e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e
alienígeno para os africanos
27
.
Do mesmo modo que o mito do essencialismo abrange a oralidade e a escrita,
também toma por vítima as formas literárias. Há uma contaminação, uma espécie de
desvairado vislumbre em algumas castas de teóricos que, por ignorar o extenso curso que a
tradição seguiu, quer atribuir aos africanos o privilégio da arte das estórias ou, como dizem
os americanos, das estórias curtas.
Também a poesia e a música, seguindo esse olhar, seriam modalidades inerentes ao
negro africano :

26
Octavio Paz lembra que nem todos os povos m escrita, mas é quase universal a elaboração, ainda que
pelas vias da oralidade, da poesia como expressão.
27
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa : Colibri, 1998. p. 17.
Os pressupostos teóricos mais ou menos extremados, idealistas e mitificados
acerca da oralidade e das tradições orais africanas levaram naturalmente a
asserções desvirtuadas, ou pouco claras, no âmbito do estudo e da análise crítica
das literaturas africanas, um pouco na sequência da ideia negritudiana de que a
poesia é natural’ nos africanos, a dança e a música o talentos mais ou menos
inatos. Um africano nasceria supostamente com o espírito da dança e por isso
seria naturalmente vocacionado para o jazz, o canto, etc
28
.
A linguagem oral em Mia Couto é filtrada, selecionada ( ato artesanal, diria
Aristóteles ), e essa escolha do que deve compor o texto e do que, sendo real, é excluído,
vem alargar a representação, criar uma fenda no realismo grosseiro a que alguns inimigos
da literatura a querem reduzir.
Vários críticos, como o senegalês Mohamadou Kane, em Roman Africain et
Tradition, entendem que a escrita - mesmo a literária, mais elaborada - é uma continuação
do registro oral. Nos modelos de Northrop Frye ( Anatomia da Crítica ), isso significaria a
passagem do epos para a ficção.
A idéia de que a escrita é uma continuação da oralidade parece trazer implícita uma
noção de máximo reflexo e mínima refração. uma distinção fundamental a ser
explorada: enquanto a oralidade é uma forma imediata, que visa sobretudo à comunicação,
à manutenção dos ideais da tribo, a escrita literária não pretende, em princípio, comunicar,
como nos fala Octavio Paz, em A Dupla Chama. Ela quer significar. A narrativa oral deseja
uma coesão didática, a escrita, uma fractalidade pedagógica. Porque o ensino reflexivo não
subentende a facilidade da transparência que perpetua ideologias, mas o desconforto de
uma linguagem que as ponha sempre em dúvida. Patrick Chabal parece ter compreendido
de modo similar, ao dizer que
the force of the story lies ( ... ) in the way in which the three aspects of the telling
intermingle. What Couto likes best, when he can, is to leave a conto without
obvious resolution, without simple closure. For him, a short story is not a fable; it
is not edifying but symbolic. And it is in this respect that his writing, though

28
LEITE, Ana Mafalda. Op. cit. p. 24.
influenced by local oral culture, is not really derivative of the African tradition of
orature, which is almost always didactic
29
.
É mais interessante, talvez, pensar a oralidade como um intertexto, como um
registro fundamental, mas não único ou principal, da teia semiótica de Terra Sonâmbula.
Sem as peias da escrita, o imaginário parece ganhar vôo para além do razoável. Os
elementos mais freqüentes nas narrativas africanas são a fabulação do texto, sua conversão
para o onírico, a concentração poética do provérbio e o narrador sempre ser o mais velho da
comunidade. Héli Châtelain, estudando a literatura oral dos povos africanos, definiu seis
categorias para a oratura angolana : as estórias maravilhosas e fantásticas, as estórias
verdadeiras ( ou assim imaginadas ), as estórias em que os feitos da tribo eram repassados
pelos anciãos, os provérbios ( como condensação de uma estória ), a poesia e a música. Ora,
pelo menos as cinco primeiras qualidades se localizam nos textos do também africano Mia
Couto, nosso tema de estudo.
No lembrado Narrativas Africanas, Lourenço do Rosário retoma Wladimir Propp
ao dizer que, nas narrativas orais, o elemento maravilhoso, mágico-religioso, é
historicamente anterior ao elemento racional tal como a própria concepção mágico-religiosa
do mundo é anterior à concepção racional”
30
. Acrescenta ainda que “a simplicidade
orgânica é anterior à complexidade orgânica, quer dizer que a articulação simples e lógica é
anterior à articulação complexa, interpelada e algumas vezes incoerente”
31
.
O griot, por sua vez, é o iniciado, frequentemente o mais sábio e antigo do grupo.
Mestre responsável por esse reencantamento do mundo, através de sua voz. Maria Fernanda
Afonso pontua que os escritores africanos reciclaram literariamente as narrativas populares
que se disseminavam pela voz do griot. Eis o que temos em O Conto Moçambicano:

29
CHABAL, Patrick. Mia Couto or the Art of Storytelling. Reevaluating Mozambique. In: Portuguese
Literary and Cultural Studies, Lisboa, v. 10. Spring 2003. p. 111.
30
ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de Expressão Oral. Lisboa : ICALP, 1989.
p. 71.
31
Idem,ibidem.
Os escritores moçambicanos, quase todos de origem urbana, escolarizados em
português, têm em geral pouco contato com o campo. Todavia, mesmo se a
relação com as tradições orais é feita em ‘segunda o’, neles um entusiasmo
crescente pela reutilização de materiais culturais que inscrevem a palavra
tradicional no âmago da escrita narrativa
32
.
A literatura enquanto material de “segunda o” é uma prática corrente, que vai de
Homero aos contos orientais de Marguerite Yourcenar. Aqui, desembocamos
inevitavelmente em Bakhtin : discurso original, em primeira mão, mesmo o elaborado
pelo mítico Adão. Posteriores discursos são, a rigor, reciclagens e reescrituras, onde a
palavra deve ser reinventada a partir dos usos e significações por que fora anteriormente
habitada. Nenhum texto pertence apenas à imaginação brilhante do criador. Há, por baixo
da mesa, da toalha escritural, vários outros escritores enviando voz e imagem ao novo texto
em formação.
O testemunho oral faz da fidelidade aos textos uma vez narrados um valor maleável.
Do mesmo modo que episódios e personagens podem faltar num texto que se reconta,
outras vozes podem surgir numa segunda narração, apócrifas à fábula primeva. A velha
portuguesa Virgínia, em Terra Sonâmbula, ao narrar estórias cria derivações das narrativas
originais, com reduções ou com amplificações. Vem a retificação das crianças, o que nos
faz retomar o pensamento de Brémond:
a exigência de um texto imutável, objecto de um respeito escrupuloso, aparece
a nível de dois limites culturais : o limite inferior da criança que exige da mãe,
todas as noites, a mesma narrativa, e se insurge com as modificações. E o limite
superior do chefe tirano que aspira ao culto da obra que o imortalize
33
.
Mia Couto mantém similaridades com a narrativa africana ao desenhar personagens
que reorganizam, pelo imaginário, a composição matriz, e tal processo de reescritura e

32
AFONSO, Maria Fernanda. O Conto Moçambicano : escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho,2004. p. 207.
33
Apud LEITE, Ana Mafalda. Op. cit. p. 81.
reelaboração contínuas são, bem observado, palimpsestos. A profunda cisão que o escritor
moçambicano vai instalar no interior das tradições está, no entanto, no espaço da palavra e
do sintagma. O contrato mimético, aqui, é definitivamente dissolvido, como havia
salientado Nelson Pestana. Guimarães Rosa, em carta ao tradutor alemão Lorenz, dizia que
as sensibilidades têm de ser remexidas, removidas da inércia, e o contato com uma língua
“desarrumada” ( expressão de Mia Couto ) era, para isso, um dos primeiros passos
necessários. No mundo literário, a escrita de Mia Couto ganha um sucesso que surpreende,
que é pouco esperado, uma vez que não reproduz as expectativas que quase sempre são
força motriz das literaturas de massa. Longe de perpetuar as dadas estruturas ou a pronta
receita, Mia Couto está para a linguagem corriqueira o que está o artesanato para a
produção seriada. Criar e recriar incessantemente é um ofício de Ulisses, pelo qual Calipso
lamenta a perda do herói, outrora escravizado e agora viajor de renovadas águas.
O provérbio é uma forma flagrante da oralidade presente no romance Terra
Sonâmbula, assim como no restante da obra de Mia Couto. Elaborado de forma
sentenciosa, quase sempre lastreada no paralelismo, o provérbio condensa conhecimentos
partilhados pelas experiências dos “antigos”. De estrutura muito similar ao aforismo, a
sentença proverbial acumula em si uma carga poética de conceitos e premissas aglutinados
numa conclusão que se revela na imagem. Daí ser uma prática tão exercida pela tradição
oriental, cujo pensamento se acomoda mais na via do perceptus do que exatamente do
conceptus. Raciocinando por essa trilha, recuperamos imediatamente o ABC of Reading, do
crítico norte-americano Ezra Pound : literatura é linguagem concentrada ao máximo grau
possível. Os alemães parecem tê-lo percebido ao associar à palavra “poesia” a mesma que
quer dizer “condensação( Dichtung ). Sendo o provérbio a aglutinação de um saber e da
memória, trazendo subliminares premissas que apenas à filosofia interessa encontrar, temos
nessa estrutura de oralidade cristalina a poeticidade horaciana : o poema, além de deleitar,
procura também maneiras de ensinar: ut doceat.
No entanto, dizer de outro modo é dizer outra coisa. A partir de uma alteração
formal dos mesmos elementos, a fragilidade do grafite vez à resistência do diamante. A
pedagogia de Mia Couto vai além das facilidades da reprodução proverbial das culturas que
viveu. Em verdade, o escritor estabelece a prática do que Fernanda Cavacas chamou de
improvérbios. Elaboração tão freqüente em Guimarães Rosa, as frases o recriadas e, da
alça de mira da linguagem, vislumbram-se novas percepções conceituais e novas nuances
de seu referente. Caso clássico encontramos em Terra Sonâmbula : “em terra de cego,
quem tem um olho fica sem ele”, cujo significado será mais à frente detalhado. No uso
inteligente do improvérbio pode-se mesmo dizer que Moçambique “estava numa dessas
situações em que nem a água é mole nem a pedra é dura”.
34
Terreno absolutamente
movediço, a insegurança é o único chão.
Terra Sonâmbula revela, a todo instante e de modo sutil o pacto entre o artista e seu
virtual espectador, o narratário. O romance existe graças à suspensão da descrença do velho
Tuahir. Sem a crença na legitimidade dos textos, todos os outros personagens simplesmente
desapareceriam. Muidinga a história de Kindzu, sobre a qual muito da imaginação do
miúdo poderia repousar. Farida, Virgínia, dentre tantas outras personagens, dão
imortalidade a suas vivências pelo frágil intermédio da voz : “ Assim falou Farida : - Esta é
a minha estória, nem sei por que te conto. Agora, estou cansada de falar”
35
.
Mia Couto põe lado a lado os dois universos de voz e de escritura - em muitos de
seus textos. Dessa forma, relativiza a tradição : era comum os anciãos narrarem aos infantes
os feitos de sua comunidade. No entanto, isso foi possível chegar ao miúdo pela via
escrita que o caderno preservou, vencendo a morte de seu criador. De forma similar,

34
COUTO, Mia. Op. cit. p. 170.
35
COUTO, Mia. Op. cit. p. 100.
Siqueleto desejoso da preservação dos valores se fez eterno pela grafada palavra no
sagrado símbolo de uma árvore. Ali, se fez semente, grão capaz de ressuscitá-lo, despertá-lo
em novo ramo.
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2.1 A mímese e a palavra desqualificada
O capítulo que se descortina quer esclarecer as relações entre literatura e
realidade, no romance de Mia Couto. Pertencente à família de escritores que
ultrapassam as margens de segurança e “lucidez” que o real estabelece, o
moçambicano preenche sua narrativa com aspectos maravilhosos, sempre vizinhos ao
que se convencionou chamar de absurdo. Antes, porém, de penetrar na investigação
desse “olhar lunático” de Terra Sonâmbula, convém perceber como o ocidente lidou
inicialmente com a naturalidade da magia, excluindo-a, posteriormente, ao limbo da
ilegalidade.
No tempo em que o mundo se permitia explicar pela via mítica, a palavra
possuía inteira credibilidade. Se as coisas eram ditas é porque se acreditava que de
fato existiam e, em sentido inverso, cria-se que a tudo no mundo existente era
possível o verbo iluminar. A mímese - não sendo a palavra um terreno fértil de
ilusões - não era sequer cogitada como um fenômeno ficcional ( afinal de contas, o
que era ficção? ). A linguagem não representava ou tornava nada verossímil, mas
parecia dizer o mundo com exatidão, a palavra aderia a seu objeto referente. Era
uma realidade natural, ou melhor, sobrenatural. O poeta, intimamente atado aos reis e
aos guerreiros, assumia a função de demiurgo, repassando aos mortais a palavra dos
deuses. Não era por acaso que a Paidéia ensinava às crianças da Grécia antiga:
“Homero não é um homem, é um deus”
36
. Assim, a expressão poética era sempre
assertórica: não podia ser provada e tampouco interrogada.
Começou-se a perceber, no entanto, que também os deuses, em seus momentos
de conflito, e para fruir de algum poder, possuíam seus ardis. Dava-se o primeiro
passo para que o poeta se desqualificasse. Havia um descompasso entre palavra e
aletéia, sombra e luz de um real transfigurado. O mais duro golpe, porém, contra o
status da linguagem surgiu com a descredibilidade da leitura mítica do mundo, da
separação entre mythos e logos. uma lógica fundada na razão, pensavam os pré-
socráticos, poderia ser capaz de solucionar as antinomias que o mundo em silêncio
acumulava. Sendo o mito um sinônimo de engano, fazia-se um corolário quase
imediato: o poeta era um grande ilusionista da linguagem.
Os textos escritos por Platão são certamente o ponto mais alto de combate
aos poetas, detentores do poder de desestabilizar os suportes de uma sociedade
utópica. A partir da referida concepção de linguagem, fez da mímese um de seus
temas de estudo. Os livros III e X da República ditam algumas normas que deveria
o poeta seguir para ser um instrumento da cidade. Flagra-se, ali, um conceito
utilitário de arte, onde a ética seria sempre o lastro das metas do artista. Os sofistas
despertaram ( ou acirraram talvez ) a percepção da palavra como flutuante, podendo
estar ora a serviço de um clã, ora à mercê de seu avesso. O escritor, agora, longe de
ser um demiurgo detentor da palavra sagrada, passava a ser um poderoso meio de

36
Ver BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. 6. ed. São Paulo : Cia. das Letras, 2000. p. 164.
engano. Em toda sua obra (da qual a passagem mais famosa é o mito da caverna),
Platão pretende alargar o hiato entre luz e sombra, lucidez e desrazão, polarizando
sempre o olhar na direção da luminosidade. O dogma religioso de que não se
devem adorar ídolos tem na sua raiz um platônico alicerce. O ídolo
37
é a imagem, a
sombra, um engodo contra a luminar presença.
Segundo Platão, quanto maior a mediocridade do poeta, maior o mero de
suas imitações: a vileza, a covardia e todas as baixas qualidades seriam objeto de
uma cópia. A concepção platônica de mímese, portanto, era de identificação entre o
representante e o representado. As almas puras, sob o risco de contágio por
intemperança, gula ou ambição, deveriam encontrar na poesia apenas ensinamentos de
justiça e de valores guardados no Mundo das Idéias, com a mentira proscrita do
poema. A verossimilhança platônica, dessa forma, era externa e anterior ao mundo
físico. Como todo discurso direto (dramaturgia) no olhar do filósofo era imitativo,
que se aproximava das características alheias para expô-las em público, apenas os
discursos indiretos (poesia ditirâmbica) estavam absolvidos da deportação. Somente os
poetas que os praticassem deveriam permanecer na sua república ideal.
Aristóteles, seu mais famoso discípulo, seria o próximo pensador a concentrar
algumas forças sobre o tópico da mímese. Seu estudo sobre o conceito o amplia e,
de fato, oferece aos Estudos Literários uma contribuição até então sem precedentes.
A diferença fundamental entre a teoria platônica e a aristotélica está no fato de que
o valor da poesia em Platão relaciona-se imediatamente com as qualidades morais
do texto. Ao passo que Aristóteles privilegia as propriedades estéticas, na sua
elaboração formal (seleção de elementos para composição da fábula, presença de
reconhecimento, peripécia, etc.). A ética aristotélica não é um requisito, mas um fim

37
Êidolon, do grego: imagem.
que se alcança pelas vias da catarse
38
. O prazer da mímese, segundo o estagirita, se
polariza entre aprender ( conhecimento ) e identificar ( reconhecimento ):
(...) Aprender é sumamente agradável não aos filósofos, mas igualmente
aos demais homens, com a diferença de que a estes em parte pequenina. Se
a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as
contempla aprender e identificar cada original; por exemplo, ‘esse é
Fulano’
39
.
O reconhecimento de Aristóteles, aqui, é similar ao de Roland Barthes, em La
Chambre Claire : ‘tu es cela’ ( tu és isto ). Ainda que trabalhem com registros que se
criam a partir da realidade, para o filósofo a poesia se diferencia da história pela
seleção dos fatos, baseada no verossímil e necessário para a unidade fabular. A
poesia, desse modo, teria um maior alcance filosófico que o discurso histórico, uma
vez que o virtual delineia sua universalidade, enquanto a descrição factual da história
a inscreve nas particularidades do tempo
40
.
Como se observa, desde Platão a mímese tem sido um tópico central na
reflexão sobre o objeto artístico. O fenômeno enquanto imitatio (reprodução fiel)
viveu seu apogeu no período da Renascença, século XVI, no qual as formas
deveriam ser proporcionais aos seus referentes de origem. A exigência do simétrico
equilíbrio criava no artista uma necessidade de escamotear, com a máxima
competência possível, os semas da diferença que toda obra acumula em si [ ver fig.
1, Madona no Prado, de Rafael ]. Três séculos mais tarde, essa percepção começou,
contudo, a revelar suas ruínas. O período romântico exigia, ao contrário dos artistas

38
O fim último do poeta era a purificação das almas, a eliminação dos males que as habitavam.
39
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo : Nova Cultural, 1996. p. 33.
40
Com os avanços que a modernidade proporcionou, diríamos hoje um pouco mais : toda reconstrução
histórica esà mercê do necessário. A memória individual tem um Inconsciente a vencer para criar
a sua fábula. Há uma seleção agenciada que libera as imagens que não desestabilizem o equilíbrio
do indivíduo. A memória coletiva, por sua vez, é refeita com lembranças que interessam às os que
as escrevem.
do Renascimento, a criação pessoal como talento absoluto. Nesse mesmo período,
paralelo à criação literária de revalorização do sujeito, também a filosofia contribuiu
para a reconsideração da mímese. Os escritos de Kant, Heidegger, Schopenhauer,
Nietzsche e de Freud sem dúvida alargaram as percepções da condição humana e
de sua conseqüente representação. Kant, na Crítica da Razão Pura, fala exatamente
da impossibilidade de flagrar o real em sua essência, da subjetividade de toda
apreensão fenomenológica :
(...) Toda a nossa intuição nada mais é do que a representação do
fenômeno. (...) As coisas que intuímos o são em si mesmas como as que
intuímos, nem as suas relações são em si mesmas constituídas como nos
aparecem. E mais: (...) se fizermos abstração do nosso sujeito ou mesmo
apenas da constituição subjetiva dos sentidos em geral, toda a maneira de
ser, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo e ainda o espaço
e o tempo desapareceriam. que, como fenômenos, não podem existir em
si, mas unicamente em nós
41
.
De Kant chegamos à fenomenologia de Heidegger, segundo a qual o sujeito
não guarda fixa identidade, uma vez que o ato de estar-no-mundo ( Dasein ) o faz
suscetível às nuances de impressões que o tornam outro, incessantemente. O olhar
fenomenológico descredibiliza toda imposição de uma verossimilhança instituída. Os
modelos de realidade não se fazem fixos, senão ondulatórios. Schopenhauer, em O
mundo como vontade e representação, curso ao pensamento kantiano, com duras
críticas ao idealismo racionalista de Hegel, sempre insistindo no papel decisivo do
sujeito: “Todo objeto, seja qual for a sua origem, é, enquanto objeto, sempre
condicionado pelo sujeito, e assim essencialmente apenas uma representação do
sujeito”.
42

41
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Alex Martins. São Paulo : Martin Claret, 2003. p. 80.
42
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. 6. ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor,
2001. p. 240.
Fig. 1 Rafael - Madona no Prado, 1505-6 Fig. 2 - O jardim de Nebamun, c. 1400 a.C.
Essa atenção sobre o indivíduo desembocará no perspectivismo nietzschiano,
que pretendia relativizar certezas absolutas e demonstrar que a ilusão da naturalidade
dos fenômenos era fruto da precariedade dos sentidos e, no espaço social, dos
discursos ideológicos. Freud, por fim, será a última grande ferida narcísica contra a
mímese lastreada por um olhar pré-iluminista, proveniente do Renascimento. Depois
dos estudos da psicanálise, a espécie “superior” foi obrigada a se inscrever no
movimento das pulsões, que a destituiriam de seu agenciamento pelas vias do
controle racional. Em vez disso, as imagens do inconsciente o fariam refém de um
“controle imaginário”, para usar uma expressão de Costa Lima.
Essas novas formas de pensar não foram menos que areia volante sobre os
olhos que se queriam límpidos. A mímese como pura representação, ou melhor, como
representação pura, não satisfazia a arte que se punha à disposição. Escritores
como Cortázar ou pintores como Picasso não podiam ser apreciados a partir da
esteira tradicional da ‘imitação’. No que diz respeito à literatura, ainda outros
problemas que se mostram implacáveis frente ao anseio realista de flagrar, com
excelência de fidelidade, os objetos aos quais fazem referência.
Antes de tudo, é preciso insistir que a narrativa nunca merece confiança. O
narrador relata apenas o que é de seu desejo e o que lhe é dado ao vislumbre. O
ponto de vista faz o objeto aparecer ou desaparecer. As ideologias também clareiam
ou ocultam os seus referentes de acordo com a sua vontade. Além disso, a
linguagem não é, por si só, cristalina. ambigüidades, mudanças de sentido no
tempo e no espaço - das palavras, nuances onde os braços da linguagem já não
podem alcançar. Assim, por mais boa-fé que tenha o narrador para refletir fielmente
o real, ele se defronta com esses três impasses fundamentais : sua ideologia ( sempre
presente mas nem sempre consciente ), o ponto de olhar em que se encontra e as
imperfeições da linguagem que lhe serve de suporte. E como estamos falando de
literatura, a problemática se agrava: é um discurso que se pretende ficcional por
natureza. Assim, diante de uma situação em que o leitor retorce o nariz e diz: mas
isso não aconteceria jamais, convém lembrar Magritte: é porque, na realidade, isto
não é um cachimbo.
Criar uma fenda na representação figurativa significa mostrar a imperfeição
do ser representado. Em outras palavras, recriar o objeto é uma confissão da
insatisfação do artista com a realidade que o envolve. Para os egípcios, por exemplo,
era provavelmente considerado o melhor artista aquele que pudesse fazer
suas estátuas o mais parecidas com os belos monumentos do passado ( ... ).
É certo que surgiram novas modas, e novos temas foram pedidos aos
artistas, mas a maneira de representar o homem e a natureza permaneceu
essencialmente imutável
43
.

43
GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro : LTC, 1999. pp.65-67.
Entretanto, para criar uma cisão com essa ideologia reinante, o rei Amenófis
IV, herético, afastou a idéia politeísta e passou a encomendar pinturas em que a
representação circulava em torno de Aton, deus único para o governante, peças “que
devem ter chocado os egípcios de seu tempo pela novidade”
44
.
Diante de um conceito tão maltratado e abordado pela superfície, nunca é
demais enfatizar o quanto a mímese não pode ser uma cópia exata da realidade,
mas apenas um reflexo de como o mundo é detectado por um povo ou por um
indivíduo. O Jardim de Nebamun [ fig. 2 ], obra egípcia datada de 1400 a.C., ou o
óleo sobre tela de Théodore Géricault, Corrida de cavalos [ fig. 3 ], servem de
exemplo a essa afirmativa. No primeiro caso, é imediato o estranhamento se houver
comparações do Jardim com a arte que nos habituamos a apreciar. Não existem
pontos de fuga e nem coerência alguma de perspectiva. Alguém sem um apoio
histórico nas mãos poderia mesmo imaginar tratar-se de uma arte primitiva. O que
ocorre é que, para os egípcios, não importava o ângulo do olhar ou a fidelidade aos
pontos de fuga. O que lhes interessava era a clareza do objeto a ser representado.
Desse modo, as árvores devem ser vistas de lado, o tanque de cima e os animais de
perfil, simultaneamente. Na obra de Géricault, por sua vez, tudo parece perfeito. Os
adeptos da mímese como imitatio não teriam, em princípio, do que se queixar.
Descobriu-se, porém, com o advento da fotografia, a impossibilidade das patas dos
cavalos realizar o movimento que se retratava, dada a necessidade de impulso que
lhes era própria. Aqui temos uma prova indiscutível de como a representação
subordina-se às limitações de nossos sentidos e de nosso conhecimento. Afinal,
seriam diversas as representações “fiéis do mundo nos tempos de Ptolomeu (a
cosmogonia de Dante, por exemplo) em confronto com a época de Copérnico.

44
Op. cit. p. 67.
Por razões como essas, os anseios previstos pelo novo romance francês se
mostram impraticáveis. Alain Robbe-Grillet, para lembrar um caso concreto, fazia
uma defesa do romance objetivista, no qual a realidade psicológica, à maneira
proustiana, deveria ser excluída da escrita, conservando-se apenas o olhar exterior,
objetivo como o de uma filmadora. Ernesto Sábato, em seu livro O Escritor e seus
Fantasmas, ironiza a pretensão:
De acordo com a doutrina da prescindência, não se compreende por que
Robbe-Grillet escreve romances como O Ciúme. Um romance em que o
criador e a palavra criador’ teria de ser substituída por outra não
intervém com seu ponto de vista particular e com suas opiniões próprias
deveria ser uma vasta, ou melhor, total descrição do universo, de tudo o que
se pode ver, tocar, cheirar, degustar e apalpar, para não sair do
sensacionismo básico da doutrina. Qualquer escolha de um tema em
detrimento de outro, de um determinado personagem, de um drama em
particular, seria uma intervenção intolerável do autor, muito menos tolerável
que as modestíssimas intervenções que Robbe-Grillet denuncia nos
escritores que não praticam sua teoria
45
.
Antes de tudo, não se pode esquecer que mesmo a filmadora não é objetiva.
Aristóteles por trás de tudo ( e aqui se o quanto a mese aristotélica está
longe de um realismo grosseiro ): existe sempre uma seleção da realidade, como
Sábato sugere, de acordo com a necessidade de unidade fabular. Os cineastas
certamente se espantariam com essa concepção de neutralidade que se atribui à
fabricação das imagens, inutilizando o seu trabalho de edição, um dos fatores
diferenciais de seu talento cinematográfico.

45
SÁBATO, Ernesto. O Escritor e seus Fantasmas. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo : Cia. das Letras,
2003 . p. 43.
Fig. 3 Théodore Géricault - Corrida de Cavalos em Epsom, 1821
Elemento indispensável em qualquer discussão sobre mímese, o narrador ( como
o olhar da filmadora ) sempre ocupa uma posição especial, singular, fora de uma
doxa totalizante que porventura se lhe conceda. O narrador onisciente é um mito
criado pela teoria literária. O que existe, e se habituou a chamar onisciência, é uma
emissão de opiniões a partir do lugar que ele adotou. A mudança de ponto de vista
altera radicalmente a verdade imaginada. Clássica virada de olhar lemos em Um
Copo de Cólera, de Raduan Nassar. O marido expõe ao leitor uma supremacia sobre
a mulher, relata o quanto ela o deseja e se revela com total controle da situação
amorosa. No final da novela - peripécia de Raduan -, a palavra é ofertada à parte
outra, e a esposa confidencia o sentimento de ternura e maternidade que por ele
insiste em nutrir. Outro caso central na literatura brasileira, o Dom Casmurro bem
que poderia dar alguma voz à personagem Capitu. Sugestão nada original, uma vez
que existem romances e peças de teatro a explorar tal estratégia
46
. Bento, se fosse
flagrado o seu discurso subliminar, poderia escrever : não narro o que vejo com

46
De fato, a peça O Enigma de Capitu”, escrita por lvia Montanari, e o romance “Amor de
Capitu”, de Fernando Sabino, são ensaios de inversão do foco narrativo, reconsiderando, desse modo, a
ambigüidade do romance original.
clareza, mas apenas o que vejo do real e o que quero que se faça lembrar, porque
também a memória é uma seleção das imagens.
O narrador de Terra Sonâmbula tem um olhar plongé, crê insolúvel a
situação da guerra civil : “Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua
terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranqüilo”.
47
Não se trata de
anseio ou esperança, mas de engano. O narrador está fora da diegese e guarda um
conhecimento sibilino. Os defensores incansáveis da verossimilhança quase nunca se
dão conta desse pacto ficcional: de onde vem o ser que narra, em Terra Sonâmbula?
Onde se encontrava para saber tanto, uma vez deserta a estrada ?
Muitos foram os que investiram nos labirintos do conceito mimético, a fim de
surpreender suas contradições. Luiz Costa Lima, em seu livro Mímesis e
Modernidade, teoriza sobre a insuficiência da mímese de representação diante das
obras de escritores como Stéphane Mallarmé e Jorge Luis Borges. A physis, natureza
primária de todas as coisas, não é integralmente mantida pelos autores modernos,
dando ênfase ao que Costa Lima chamou de antiphysis, elemento essencial para a
construção da idéia de mese de produção. O que interessa não é representar o
real, mas como o artista é por ele afetado a ponto de recriá-lo, de redimensionar a
sua physis. Aqui relembramos Kant: a coisa-em-si é uma utopia, um capricho de
nossa vaidade; o único possível é expressar o efeito que o referente proporciona, a
partir de nossa sensibilidade, de uma percepção sensorial. Pablo Picasso, como
veremos nas imagens em anexo, pintou dois registros de animais similares. Em seu
Galinha com pintos [ fig. 4 ], Picasso desejou manter a natureza do ser representado,
com a máxima semelhança possível. Entretanto, mais adiante, pintando o Galo Novo [
fig.5 ], procurou a expressão do objeto a partir da impressão que lhe causou,

47
COUTO, Mia. Op. cit. p. 9.
valorizando o despertar do impacto frente à neutralidade da indiferença. E. H.
Gombrich, em seu A História da Arte, glosa sobre a distinção entre um e outro
quadro:
Por certo ninguém vai encontrar defeitos nessa encantadora representação
de uma galinha com seus fofos pintos. Mas, ao desenhar um galo novo,
Picasso não se contentou em fazer a mera reprodução da aparência física
da ave. Quis expressar sua agressividade, sua insolência e estupidez
48
.

Fig. 4 Pablo Picasso - Galinha com Pintos, 1941-2 Fig. 5 Pablo Picasso – Galo Novo, 1938
Costa Lima explora, então, duas categorias de significação: o sema da
semelhança - ou os termos que mantêm uma relação imediata de parecença com a
referência - e o sema da diferença, coleção de elementos que vão deformar, desfalcar
o real de seu reconhecimento límpido e pretensamente inalterado. A diferença se
perfaz no estranhamento da linguagem, na infração dos códigos datados, na
significação inestancável do discurso. Os estruturalistas franceses da década de 60

48
GOMBRICH, E.H. A História da Arte. 16.ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro : LTC, 1999. p. 26.
diziam haver um triunfo - ou uma preferência - da semiose ( recriação de sentido )
sobre a mímese, na literatura. A teoria da mímese de produção vem mostrar que a
semiose se opõe somente à mímese representativa. O conceito, sendo mais amplo,
finda por ser uma função da semiose. Uma alteração semiótica cria outra
configuração do objeto, que continua sendo ele mesmo, apenas com um olhar
deslocado na linguagem.
A mímese de produção deseja dar mais peso a um dos pratos: mais vale
conhecer (sema diferencial) do que reconhecer (sema de similitude). O reconhecimento
é apenas um suporte para manter um vínculo inteligível entre a obra e o mundo.
Afinal, não é possível uma exclusividade polar, em que a outra zona significativa
esteja excluída por inteiro. O que é, sobretudo, um fator predominante. A
fotografia embaçada amplia, da coisa, o seu campo perceptual. A fotografia exata (
utópica por si ) seria uma violência contra o olhar desejante que quer ver mais do
que as aparências lhe ofertam. Ou, como dizia Baudelaire : “celui qui regarde du
dehors à travers une fenêtre ouverte ne voit jamais autant de choses que celui qui
regarde une fenêtre fermée”
49
. Além disso, veremos que a fidelidade é não raro um
pretexto para escamotear um desequilíbrio social, e também para mantê-lo intacto.
A controvérsia sobre a mimese se agrava quando nos apropriamos de um
texto que pertence a outros modelos culturais. O real é, também, uma categoria
social. Não é rara a crença, nas comunidades africanas, de que alimentar os
ancestrais é preciso, para que fiquem atados à terra. Também o rito funerário é
condição para salvaguardar o estatuto de ancestral. Uma vez que os ritos, nas
sociedades africanas patriarcais, se consumam pelos filhos primogênitos, é uma real
catástrofe a ausência de rebentos para o homem. Para se tornar ancestral, faz-se

49
“Aquele que olha de fora através de uma janela aberta não nunca tantas coisas quanto aquele que olha
uma janela fechada” ( texto “Les fenêtres”, extraído dos Petits Poèmes en Prose ).
necessária a extensão ao limite de ancião. Os infantes mortos não se destinam à
ancestralidade, mas à reencarnação. Em grupos, no entanto, como os Bwa de Haute-
Volta, a criança que foi submetida a um ritual iniciático atinge um estado de
pureza” que dispensa a reencarnação. O velho Taímo de Terra Sonâmbula situa-se
preso entre os mundos e não encontra ainda sua condição de ancestral. “De même
qu’il y a des stades dans la mort, il existe plusieurs moments dans le passage du
défunt à sa situation d’ancêtre, donc plusieurs degrés dans la hiérarchie des manes”
50
dizem Louis Vincent-Thomas e René Luneau, em La Terre Africaine et ses
Religions, o que vem de certo modo justificar o estado da personagem.
Aqui, Mia Couto, se estivesse lastreado apenas em sua narrativa gica, seria
mimético. Aos nossos olhos iluministas, essa dimensão tico-religiosa ganharia um
status de fabulação, distanciando-se de uma realidade sóbria e fiel. Ora, o que nos
soa um cancelamento mimético, é sua mais pura afirmação, a figuração do cadinho
cultural daqueles povos. Em outros termos, guiando-se o pensamento de uma
comunidade por um viés de magia, a captura desse real pode estar nos
parâmetros de normalidade. Ana Margarida Fonseca observa o fenômeno no texto
coutiano, ao dizer que “em vez de um discurso antimimético teremos, se é possível
chamar assim, um discurso plurimimético, que encontra a sua força na coexistência
de modelos de mundo ( segundo o modelo ocidental-racionalista ) antagônicos”.
51
Os
ouvintes do velho Taímo, que vivia no limiar da loucura, punham em xeque a veracidade do
que narrava. Para aquele público, tratava-se do que Todorov iria chamar “literatura
fantástica”, caracterizada pela impossibilidade de afirmar tratar-se de real ou absurdo.

50
THOMAS, Louis-Vincent; LUNEAU, René. La Terre Africaine et sés Religions. Paris: Editions
l”Harmattan, 1977. p.101.
51
FONSECA, Ana Maria. Projectos de Encostar Mundos. Lisboa: Difel, 2002. p. 184.
Sobre a atribuição de fantástico aos modelos de escrita predominantes na literatura africana,
manifesta-se novamente Ana Margarida Fonseca ( 2002 ):
Na verdade, a aplicação do conceito de fantástico às literaturas africanas e sul-
americanas poderá revelar-se problemática, uma vez que, ao fazê-lo, admitimos
poder estabelecer objectivamente, ou seja, independentemente de avaliações por
parte de sujeitos individual e colectivamente considerados, o que é real e irreal, o
que pertence à ordem natural e o que é exterior a essa ordem.
52
De um certo modo, Mia Couto perpetua sua cultura. Frente ao cadinho cultural que
desvanece, sua voz é uma fermata, signo que estende ao máximo uma melodia finda. É
ingênuo falar de mimese sem levar em conta as versões do real de cada sociedade. Mia traz
ao leitor as crenças, os ritos, as formas de transmissão de Moçambique. Farida, filha gêmea
e símbolo da morte, representa maldição à comunidade :
Quant aux jumeaux, leur destin s’annonce ambivalent. Tantôt, ils sont honorés et
ils deviendront alors des morts privilégiés ( Dogon ) ; tantôt, dès leur naissance
l’un d’eux sera sacrifié ; la fille, s’il y a fille et garçon ; le plus maigre, s’ils sont
du même sexe ; le dernier arrivé, s’ils sont semblables ( Diola )”
53
.
Mas esses fatos culturais são trazidos e traídos, porque não há um endosso definitivo
na escritura, senão nas aparências. As críticas e reservas não são dadas de chofre ou por
juízos, via narrador. A singularização do sentimento é recurso suficiente para que as águas
da cultura se façam revolutas. Todas as angústias vividas por Farida despertam no leitor
uma compaixão, força que desestabiliza, mais do que todo e qualquer discurso crítico.
Todorov faz uma distinção, em Introdução à Literatura Fantástica, entre o
maravilhoso - o sobrenatural aceito - e o fantástico, a impossibilidade de separar as luzes da
razão da magia luminar. O romance de Mia Couto, no entanto, vem trazer mais um
problema à temática tão controvertida. Quase todas as visões fantásticas do texto se dão

52
FONSECA, Ana Maria. Op. cit. p. 180.
53
THOMAS, Louis-Vincent; LUNEAU, René. Op. cit. p.101.
entre o sono e a vigília : “Desperto, no meio da noite, ainda o escuro não se apagara. ( ... )
Foi quando vi a fogueira. Lá, no pleno mar, uma fogueirita pirilampejava”
54
. Não há como
confiar na “lucidez” do narrador. Do mesmo modo, como dar créditos a Muidinga, que nos
narra os episódios com sua criação onipresente, inflacionária ? Aqui, o leitor descuidado vai
dizer que Terra Sonâmbula é um grande exemplo dessa impossibilidade de desvendar
própria do fantástico todoroviano. Contudo, outro elemento se mistura e nos tira dos pés o
equilíbrio da classificação. Os eventos mágicos que matizam o romance são absolutamente
aceitos pelas personagens, que ainda preservam a compreensão mítica do mundo. E, como
deixamos dito há pouco, a filosofia romântica fez maleáveis as pilastras do real. No caso da
realidade africana, Ana Margarida Fonseca entendeu que “não se trata de distinguir
realidade e fantasia, mas sim de opor duas concepções radicalmente diversas do real, por
sua vez resultantes de sistemas culturais intersubjectivos de natureza diversa”
55
. Os povos
de África têm outro coeficiente mimético, outra interpretação das coisas que circulam.
Classificar a literatura africana como fantástica significa congelar o fluxo inestancável da
realidade à irrealidade. Sendo mais rigorosos, seria uma atitude de soberba, onde haveria,
subjacente, uma hierarquia ( nosso mundo é que é o real ).
2.2 Novos lugares do mito
Representação e ideologia é uma conexão que não poderia ser feita de modo
ávido. Nas literaturas em fase de afirmação ( e vinculadas a culturas que se
encolhem ), o problema tem arestas que devem ser polidas por lâminas sensíveis.
Dar a ver o viés mágico do pensamento africano através da escritura pode parecer,
num primeiro instante, apenas uma reprodução dos códigos culturais. Não se pode,

54
COUTO, Mia. Op. cit. p.72.
55
FONSECA, Ana Margarida. Op. cit. p. 172.
contudo, nublar os olhos a uma resistência subliminar, de outra ordem. Envolvidas
por uma solaridade aparente a da razão formas de pensar que lhe sejam avessas
tendem a minguar, ter espoliada sua voz. Se apenas através dos sentidos pode pairar
algum sopro vital, impor rituais religiosos e modos de percepção é manter-se vivo,
fenomenologicamente existente. Preservar uma crença, um sentido que na alma se fez
luminoso significa evitar uma morte mais funda, não obstante imperceptível. Por
outro lado, atuar qual mero difusor de costumes seria um ato profundamente
político, mas não literário. Aqui se daria uma nova sinonímia : reproduzir e amortizar.
Reavivar os mitos pela força verbal, como um vento que ergue de cinzas uma
chama restante. Mia Couto garimpa as riquezas da língua para mudá-la em
linguagem. O texto, tecido dessa dupla insubordinação.
O mito é um congelamento da História, pensa Vincent-Thomas. A mitologia
representa uma estabilidade fincada na tradição. Após a reorganização social por
força da nova fisionomia política, países como Moçambique abdicaram dos mitos
para se aventurar na busca incessante e polifônica das ideologias. O mito é um
uníssono regido pelo ancião da tribo. Cabe lembrar que também a ideologia é uma
voz que reina, tendo por regente uma entidade diluída entre estratos de poder.
A mudança da fisionomia social do pós-colonial influenciou diretamente a
ordem tradicional pela qual se guiavam os africanos. Os mitos hoje, mesmo em
países atados fortemente à tradição, ganharam três diversas veredas, segundo o
mesmo Louis-Vincent Thomas: sua manutenção ( seja a partir do olhar original, seja
com novas perspectivas culturais ); sua rejeição total ou parcial; reinterpretação mais
ou menos consciente do mito antigo. Quando o mito tradicional é mantido, de uma
ou outra forma está descredibilizado, o que se mascara sob um discurso complacente
ou puramente hermenêutico. Dizem os intelectuais progressistas, desligados de sua
crença incondicional: “o mito contém alusões históricas válidas”, revela a mentalidade
ou a filosofia de uma época”, “é a expressão simbólica de um fato histórico”, “se
confunde com a autêntica história” ou ainda “não faz mais do que traduzir um
modo arcaico de produção”. Ao contrário do que pensa Thomas, aqui a aceitação é
apenas aparente. uma racionalização do mito, o que é absolutamente avesso às
suas raízes. O olhar não é religioso, não sobre os relatos. O que parece
existir é uma atitude de soberba, que se caracteriza na “correção” do olhar, que
Rouanet iria chamar de “o olhar iluminista”. O instrumento necessário para dispor de
tal compreensão lúcida dos mitos é lançar sobre eles a luz iluminista. Expressão
redundante pelos termos destacados, para mostrar a amplitude da pretensão
etnocêntrica.
Atualmente, os mitos ganham outro sentido e mesmo a palavra em si foi
espoliada de seu peso. Lúdicos, o passam muitas vezes de um mero patrimônio
cultural. A assimilação, processo com larga referência em romances como Vinte e
Zinco, Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra e Terra Sonâmbula, de
Mia Couto, nova natureza às formas de interação social e de trânsito cultural.
Muidinga lê, Kindzu transmite narrativas pelas vias da escrita. É Marianinho,
aculturado pela “língua dos brancos”, quem se encarrega de preservar a memória da
aldeia. A respeito dessa abertura às outras terras, pronunciam-se mais uma vez
Vincent Thomas e René Luneau:
Soit par usure ou générescence, soit par suíte du contact avec les valeurs
d’Occident introduisant un double jeu de destructions ( passage de l’oralité à
l’écriture, modifications profondes dês structures hiérarchiques et de
sustèmes d’autorité ), bien des mythes ont disparu, transformés en maigres
légendes ( comme chez les Diola du Senegal ) ou se sont fragmentes. En fait,
dans les zones urbanisées plus spécialement mais non pas uniquement et
sous la doublé influence du christianisme ou de l’islam le mythe a souvent
laissé la place soit aux stéréotypes, soit aux fantasmes individuels.
56
Mia Couto não teme a mestiçagem cultural e está longe de querer uma
xenofóbica pureza de valores. Com dedos leves e sutis, reorganiza o conceito de
tradição. Só pela busca do novo e do desconhecido um povo não gangrena. O velho
Taímo aposta na inércia e pune o experimento de outras terras, exige cerimônias
funerárias, a tradição para ele é imóvel, como as águas do sonho : O mar parava,
imovente. As ondas se aplanavam, seu rugido emudecia”. Aqui, a figuração da idéia precedera
a visão : “Eu estava preso naquele infinito”
57
. ganha sentido a tradição que
fabrica movimento, que parte de seus elementos e os dispõe em nova ordem, em
fisionomia nova.
2.3 Mia Couto : entre sonho e memória
Textos como As ruínas circulares de Jorge Luis Borges, A Outra Volta do
Parafuso de Henry James, O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde ou as
Memórias Póstumas de Machado de Assis são sempre um desafio para o nosso
código iluminista de aceitação. Afinal de contas, como compreender um homem ser
sonhado por um outro, duas crianças tornarem insolúvel uma narrativa baseada em
visões sobrenaturais, a eterna juventude de um homem enquanto seu retrato se
desfaz, ou, pior, o fato de um morto narrar a própria existência pregressa? É preciso,
antes de mais nada, ouvir um pouco Coleridge : the willing suspension of disbelief.
Qualquer espécie de crença ortodoxa conduz fatalmente à intolerância. Princípio

56
THOMAS, Louis-Vincent; LUNEAU, René. Op. cit. p. 300.
57
COUTO, Mia. Op. cit. p. 53.
fundamental das guerras e do genocídio, como lembrava Lourival Holanda, em Sob o
Signo do Silêncio.
É diante desse clima de intransigência que Mia Couto constrói Terra
Sonâmbula. Se fôssemos levados ao vezo da classificação, talvez o incluíssemos na
esteira do que se habituou chamar de realismo mágico. No entanto, após o olhar
que jogamos acima sobre as flutuações da realidade, faz-se óbvio que o próprio
substantivo já não pode repousar em paz. A temática circula em torno à guerra pós-
-independência de Moçambique, com suas mazelas humanas e os maus tratos que a
natureza, por conseqüência, passou a receber :
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada ( ... ). A paisagem se mestiçara
de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores
sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de
levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se
acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte
58
.
Dois retirantes do conflito, Muidinga e Tuahir, cuja relação é paterno-filial,
abrigam-se em um machimbombo, no qual descobrem alguns escritos de Kindzu,
personagem morto. A narrativa se duplica nas ações dos personagens acima e na
leitura do diário que chegou às suas mãos. As vidas no decorrer do romance se
entrelaçam e a escrita de Mia Couto se torna uma metáfora da literatura. Muidinga
se reflete nos cadernos, reflexo todavia distorcido, dada a inexatidão de sua imagem,
sempre desfocada. Um dos mais evidentes instantes dessa atitude de reconhecimento
ocorre quando o miúdo sugere ao amigo uma teatralização : ele seria o filho Kindzu,
ao passo que Tuahir representaria o pai, o velho Taímo. A cena resulta numa
revelação similar às epifanias clariceanas:

58
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1995. p. 9.
Depois, sente a mão de seu pai lhe afagando a cabeça. Olha o seu rosto e
vê que, afinal, seus olhos eram sábios. Foi como se, repente, toda a bondade
dele ficasse visível, redonda.
- Pai, por que nunca me mostraste como eras, dentro de ti?
- Tinha medo, filho. Não podia mostrar esse defeito e dizer : olha este
coração que nunca cresceu !
Seu pai estava ali, grande, sem mentira. Pela primeira vez alguém lhe
dava abrigo. O mundo se estreava, já não havia escuro, não havia frio.
59
É preciso lembrar que Tuahir se recusava à entrega dos afetos, e que, por sua
vez, Muidinga não percebia o amigo como pai. Nas “mentiras” da representação,
fluem as verdades silenciadas. Ao contrário, portanto, do que pensava Platão, é
possível haver mentiras de natureza profundamente ética: eis a raiz de toda grande
literatura. Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, indaga ao leitor:
Será que a Odisséia o é o mito de todas viagens ? Talvez para
Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não existisse, talvez ele narrasse
a mesma experiência ora na linguagem do vivido, ora na linguagem do
mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande, sempre é
Odisséia
60
.
A teia de Terra Sonâmbula se costura no recontar de estórias
61
, na
recuperação da poesia tica. A narrativa ilude a carência e alarga o real estreito dos
( sobre ) viventes: “Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos
improvisos. As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o
mundo”
62
.
Empresas épicas se instauram o que será mais adiante aprofundado -, como a
do sujeito que escava, incansavelmente, para fazer nascer um rio ou ainda, de eco
profundamente homérico, as passagens por várias terras como Matimati, onde se

59
COUTO, Mia. Op. Cit. P. 188.
60
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo : Cia. das Letras, 1998. p. 24.
61
Segundo o novo acordo ortográfico, “estórias” não figura mais no vocabulário da língua normativa.
No entanto, preferimos manter a distinção, que a língua inglesa guarda ( story, history ), uma vez que o
próprio Mia Couto assim registra o termo em sua escrita.
62
COUTO, Mia. Op. cit. p. 18.
encontram mulheres ardilosas quais a Calipso de Odisseu, na epopéia clássica.
Alfredo Bosi escreve em O Ser e o Tempo da Poesia:
A consciência que ditava aquelas paródias do épico fazia a sátira do estilo
‘alto’, mas à luz da saudade de um tempo em que a forma heróica se teria
casado harmonicamente com a moral da honra e da devoção. Logo, uma
consciência nostálgica que poderia ser vista, dialeticamente, como uma
consciência possível inconformista
63
.
Assim como o Ulysses, Terra Sonâmbula é uma escritura nostálgica. As
referências veladas a Homero são uma forma de resgate dos tempos de heroísmo.
Aqui, Mia Couto reserva uma grande similitude junto a uma decisiva diferença em
relação a James Joyce: o herói do romance é o homem comum, mas sem as
categorias da paródia, o que o faz esquivar-se da mímese farsesca. A grafia do
sonho, flagrante no romance, forma em silêncio uma linha de resistência e recusa.
De fato, a mímese é um modo de representação social. Aristóteles conheceu
em sua teoria esse limite capital, fazendo a obra imanente, excluindo dela o contexto
que indiretamente a influencia. Representar o real seguindo as normas da imitatio é
compactuar com as estruturas sociais cristalizadas. Desmontar aqui e ali a physis do
referente é uma das formas possíveis de crítica ideológica. Em Terra Sonâmbula, por
exemplo, a dissonância mimética, a suspensão racional, são uma resposta do escritor à
agressão européia contra os modelos de pensamento africano. Como lembrava Bosi, a
resistência tem muitas faces, seja o lirismo de confissão de Manuel Bandeira, seja a
sátira menipéia de Machado de Assis. A poesia mítica também é uma delas. O
próprio Bosi, em seu texto, vem justificar Terra Sonâmbula:
A extrema divisão do trabalho manual e intelectual, a Ciência e, mais do
que esta, os discursos ideológicos e as faixas domesticadas do senso

63
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. 6. ed. São Paulo : Cia. Das Letras, 2000. p. 197.
comum preenchem hoje o imenso vazio deixado pelas mitologias. É a
ideologia dominante que dá, hoje, nome e sentido às coisas.
64
Mia Couto, atento neologista, tenta reativar a vontade mitopoética já no ato de
nomear, renomear, entregar às coisas outra identidade possível, para que desse modo
elas consigam suprir os desfalques a que as categorizações ideológicas submetem
todo ser. Essas, que furtam, pelos rótulos, as virtualidades. Um dos maiores ardis da
ideologia é o de naturalizar tudo o que a circula : falas, divisões sociais ou pontos
de vista. O papel de escritores como Mia Couto é exatamente o de prover uma
resistência por meio da desnaturalização. Às vezes, a simples refabulação de um
provérbio amplia uma compreensão de mundo, reinaugurando tudo no flagrante do
espanto. No espaço agressivo em que o romance se estende, dizer “em terra de cego
quem tem um olho é rei” seria impor uma conivência à barbárie. Mais vale, ali, a
sugestão do alerta : “em terra de cego quem tem um olho fica sem ele”.
65
No
processo de fatura do romance, os sentimentos de patriotismo ou qualquer espécie de
chauvinismo, que parecem aos olhos de muitos bastante naturais, são destilados sem
nenhuma condolência. Esse tipo, às vezes dissimulado, de segregação é o princípio
vital ( ou seria letal ? ) de inúmeros conflitos, inclusive os religiosos :
Surendra disse então :
- Não gosto de pretos, Kindzu.
- Como ? Então gosta de quem ? Dos brancos ?
- Também não.
- Já sei : gosta dos indianos, gosta da sua raça.
- Não. Eu gosto de homens que não têm raça
66
.
Mais à frente ainda, o Kindzu narrador constata : “Seria preciso esperar
séculos para que cada homem fosse visto sem o peso de sua raça”
67
. Essa obsessão

64
BOSI, Alfredo. Op. cit. p. 164.
65
COUTO, Mia. Op. cit. p. 156.
66
COUTO, Mia. Op. cit. p. 33.
pela desnaturalização de etnias se vislumbra também nos contos do moçambicano,
que escreveu uma coletânea cujo título vem enfatizar : cada homem é uma raça.
houve quem apontasse como falha estrutural do romance o início do
quinto caderno de Kindzu. Os dois personagens saem das imediações do
machimbombo, tardando o regresso. Lá, Muidinga havia esquecido os escritos, o que
não o impede de recontá-lo a Tuahir, pelas vias da memória :
Deixei os cadernos no machimbombo. Mas eu li outro
caderno, mais à frente. Lhe posso contar o que diz, palavra por palavra.
- Fala devagarinho para eu o compreender. Se adormecer, não pára.
Eu lhe ouço mesmo dormindo
68
.
A narração “palavra por palavra” contraria as expectativas de verossimilhança.
Na leitura dos cadernos, o fato se agrava : o miúdo narra em primeira pessoa, como
se fora o falecido relatando : Farida dormia na cabina do capitão. Enquanto eu
dormia fora, deitado entre cordas e panos velhos”
69
.
Ora, se imaginarmos o relato de Muidinga sem os cadernos em mãos, em
primeira pessoa e, segundo ele diz, com todas as palavras, fatalmente seremos
tentados a pensar numa artificialidade inverossímil do romance. Contudo, talvez fosse
oportuno o convite a ler o texto experimentando outras vias. Mia Couto escreve, a
todo instante, na corda-bamba entre o factual e o imaginário (o próprio miúdo,
descobrimos no final do romance, pode ser uma personagem dos cadernos). Não é
possível saber quando Muidinga é “sincero” e quando dá poder à sua capacidade de
criar. Tuahir não era alfabetizado, de forma que não podia conferir o que de fato
estava escrito. Além disso, declarações da parte do miúdo que põem em xeque
sua credibilidade. Na passagem da representação teatral, Tuahir em princípio mostrou-

67
Idem, p. 138.
68
Idem, p. 110.
69
Idem, p. 111.
se relutante a incorporar o personagem, por receio metafísico : “- Você não sabe o
que pode fazer um morto incompleto. Não lhe contei o que sucedeu com o pescador
Nipita ? ” ao que responde Muidinga : “ - Conte, tio. Se é uma estória me conte,
nem importa se é verdade”
70
.
A infância, no romance, conserva uma função de suspender realidades. Ainda
que o miúdo tenha atingido a juventude, sua desmemória o torna sem passado,
refazendo-o criança. “O velho teve que lhe ensinar todos os inícios : andar, falar,
pensar. Muidinga se meninou outra vez”
71
. Sem adesão, portanto, a nenhum tecido
cultural, sem as falas internalizadas de uma tribo anterior, todo o seu olhar
iluminava-se de uma infância inaugural, olhar de estrangeiro, capaz de remimetizar
tudo, de atribuir novos sentidos ao mundo e, assim, de repoetizá-lo.
A veracidade não figura, ao miúdo, de grande relevância : “verdade, em
infância, é um jogo de brincar”
72
. Ora, é muito provável que Muidinga o soubesse
ler. Se Tuahir lhe ensinou todos os inícios e não tinha domínio da leitura, quem
então iniciou o garoto no seu letramento ? Com esses elementos à mostra, como não
supor que os cadernos de Kindzu o um completo devaneio criado pelo infante ?
Longe de ser uma falha estrutural do romance, essa parece ser a fresta que Mia
Couto, com hábil sutileza, deixa ao leitor para compreender a fabulação completa, a
perda de um real que lentamente se desfia. Terra Sonâmbula preserva, ao menos aqui,
uma coerência estrutural, elemento indispensável à persuasão criada na
verossimilhança interna. Esse aparente descompasso do arcabouço narrativo é possível
e necessário, como pedia Aristóteles, à flutuação imaginária que percorre toda a obra.

70
Idem, p. 186.
71
Idem, p.10.
72
Idem, p. 195.
Podemos, a partir dessa hipótese do Miúdo criador, compará-lo ao menino de
Abril Despedaçado, filme de Walter Salles baseado no romance homônimo de
Ismaael Kadaré. Recebendo de artistas de circo um livro com algumas imagens,
Menino perfaz um universo fabular, caminho de saída para a realidade implacável. O
seu alargamento mimético desfaz o conformismo do irmão e, a partir daí, as ficções
que se criam no livro recebido abrem uma fresta de esperança, uma tangente
possível para a vingança circular. Um outro exemplo de limite sutil do espaço
imaginário ( dentre tantos outros que a literatura nos dispõe ) encontramos na trama
do Visconde Partido ao Meio, relato de Italo Calvino. O texto é a esperança de
esquiva às opressões de um real sem alternativas. O narrador é personagem de uma
escritura mítica, na qual um visconde é atingido por uma bala de canhão e se
divide em uma metade maldosa e em outra plena de virtudes. Sem declarar
textualmente a não-veracidade do relato, ele a sugere:
Tinha chegado ao limiar da adolescência e ainda me escondia entre as
raízes das grandes árvores do bosque para contar histórias para mim
mesmo. Uma rama de pinheiro podia representar para mim um cavaleiro, ou
uma dama, ou um bufão; fazia-a movimentar-se diante de meus olhos e
exaltava-me em relatos intermináveis
73
.
A semelhança entre as situações romanescas é de fato espantosa. Assim como
em Terra Sonâmbula, as duas outras narrativas surgem como recursos de se
desfraldarem liberdades frente ao fechamento de um mundo que insiste em nomear-
se de real. No texto de Calvino, o anônimo narrador lamenta a perda de um
personagem inventado ( Dr. Trelawney ), sabendo que ali se desatava o barbante que

73
CALVINO, Italo. O Visconde Partido ao Meio. Trad. Wilma de Carvalho. Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1988. pp. 112-3.
o ligava à fantasia libertária : Mas os navios desapareciam no horizonte e eu
fiquei aqui, neste nosso mundo cheio de responsabilidade e de fogos-fátuos”
74
.
Aqui se descortina uma das funções da literatura : destilar a carne dos germes
de um silêncio opressor. Tornar possível, como vasos comunicantes, o fluxo
cambiante entre o real e o possível. Daí a incoerência, como lembra Octavio Paz, de
se falar em progresso da literatura. Porque, ao contrário do discurso científico”,
acentua Costa Lima,
onde é de se presumir que, dentro de um mesmo paradigma, a passagem
diacrônica implique a evolução da abordagem, pelo refinamento da pesquisa,
pela experiência acumulada, etc., tal expectativa é ilegítima no caso do
poético, porque, não pretendendo o maior domínio do real, não supõe a
constância de uma posição perante o real. A descontinuidade aqui é de
regra, notadamente em uma época, como a da modernidade, onde se cultua
o indivíduo e é forçosa a mudança
75
.
Em Terra Sonâmbula, a descontinuidade é algo essencial. O escritor o
pretende dominar a realidade, uma vez que ela é apenas uma convenção, como
alertava Roland Barthes. É tudo uma questão de luto das origens ou das referências.
Luz e sombra, perfeição e deformação. Diante desses ideais platônicos de limitação
grosseira e etnocêntrica ( “só os filósofos são clarividentes” ), o poeta, como André
em Lavoura Arcaica, num acesso verbal revira a mesa de jantar, símbolo da ordem.
Os candelabros luminosos se apagam, restando escuridão : elemento da noite, do
sonho e do luto. A sombra platônica é pano mortuário, envolvendo ruínas dessa
ordem que a literatura clandestinamente implode e desestabiliza. O verossímil de
linha imitativa produtor de luz - está sempre associado ao código de
reconhecimento. Um dos requisitos da Teoria da Informação de Abraham Moles,
aplicada às artes, é justamente o envenenamento desse código compartilhado pelo

74
CALVINO, Italo. Op. cit. p. 113.
75
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: formas das sombras. 2.ed. São Paulo : Paz e Terra. P. 147.
senso comum. O objetivo maior dos artistas modernos era, desse modo, ser
inverossímil, surpreender as expectativas, ampliar o possível que o verossímil faz
estreito. As mitologias barthesianas se definiam como discursos que, por força de
circulação, se instalaram como verdades. Esse verossímil fundado nos valores
consolidados não deixa de ser uma das mitologias referidas
76
.
O real e o imaginário são uma dança, alternando seus corpos em trocáveis
lados. Farida, espírito ou xipoco, não enxerga o tchóti que conduziu Kindzu a a
embarcação. O próprio Kindzu, afetado pela vida, não percebia o duende
personagem. De que lado seria a morada do real ? O farol, por sua vez, antes
ocultado, surgia aos olhos do herói com nitidez. Então, vem-lhe a indagação : Eu e
Farida trocáramos de ilusões ?”
77
. A rigor e bem pensado, o real, sob a ótica de Mia,
é este farol, acendendo e apagando, num trêmulo desejo de viver.
Outro personagem essencial para a trama do romance e para a revisão da
noção de mese é Virgínia, a velha portuguesa. Como o velho Siqueleto, reúne em
si uma memória dupla: a sua e a do país a que pertence. Recupera-se a imagem do
ancião que atrai ao seu redor a comunidade para repassar suas experiências, recontar
estórias de vida e do dia. O texto de Mia Couto parece se inscrever naquele gênero
de escritura mítica a que se refere Alfredo Bosi, em O Ser e o Tempo da Poesia:
A resposta ao ingrato presente é, na poesia mítica, a ressacralização da
memória mais profunda da comunidade. E quando a mitologia de base
tradicional falha, ou de algum modo não entra nesse projeto de recusa, é
sempre possível sondar e remexer as camadas da psique individual. A
poesia trabalhará, então, a linguagem da infância recalcada, a metáfora do
desejo, o texto do Inconsciente, a grafia do sonho
78
.

76
Ver, de Barthes, o texto Crítica e Verdade, onde o autor tenta desmitificar a noção, enfatizada por
Raymond Picard, de verossímil crítico.
77
COUTO, Mia. Op. cit. p. 112.
78
BOSI, Alfredo. Op. cit. p. 174.
Virgínia é a mãe adotiva de Farida, uma jovem à procura de Gaspar, um de
seus filhos gêmeos que se extraviou. Da velha, já não mais quem se lembre, o
que resulta num fato curioso: em Terra Sonâmbula, os que desatam devaneios estão
sempre sob o signo da falta: Farida em busca do filho, o miúdo não tem passado e
a velha é viúva e sem amigos. E, de certa forma, todos os outros personagens vivem
sob a intensa privação imposta pela guerra. Isso, contudo, é bem inteligível: o sonho
é primo do desejo, que na falta encontra alimento. Virgínia, malgrado sua idade
bastante avançada, o sonha “com o fim da vida, mas com as nascenças que lhe
faltavam”. Solicita a Farida que lhe escreva cartas imaginárias, como se os parentes
o houvessem feito. Aqui, a viúva se revela, junto à mãe do borgiano conto O
impostor inverossímil Tom Castro ( que aceita o díspar simulacro de seu filho morto
graças à disposição que tem a acreditar ), um exemplo de desarme poético ideal. A
suspensão voluntária da incredulidade se lhe incorporou de tal forma que, mesmo
conhecendo a ilusão que ela própria mandou preparar, se desata em lágrimas ao
receber as cartas. Em outros termos, o seu alcance mimético ampliou-se ao ponto de
o limite entre o factual e o ilusório ter sido ignorado, como se as águas do sonho,
numa súbita montante, invadissem a orla arenosa da lucidez. Nesse ápice poético-
psicótico,
sobre velhas fotografias, com um lápis, a velha portuguesa [ Virgínia ]
desenhava outras imagens. Às vezes, recortava-as com uma tesourinha e
colava as figuras de umas fotos nas outras. Era como se movesse o
passado dentro do presente
79
.
Também nos momentos de contar estórias às crianças do lugar seu
imaginário não estanca atividades:

79
COUTO, Mia. Op. Cit. p. 91.
No enquanto da estória, o dito a ia perdendo o nome, saltitando de
morada e profissão. As falas de Virgínia não se acertavam. Os meninos, por
sua vez, corrigiam : o mucunha Curucho, o esqueça vavó. Mais Virgínia
repete os contos, mais a verdade se resvala : o avô Cruz de olhos louros,
hoje; amanhã um negro de rosto carapinhoso. A criançada nem se importa.
Verdade, em infância, é um jogo de brincar
80
.
Virgínia é, talvez, a metáfora ficcional do equívoco de Aristóteles: a História
não narra exatamente o que houve. Gaston Bachelard, em sua Poética do Devaneio,
esclarece:
Em sua primitividade psíquica, Imaginação e Memória aparecem em um
complexo indissolúvel. (...) O passado rememorado não é simplesmente um
passado da percepção. Já num devaneio, uma vez que nos lembramos, o
passado é designado como valor de imagem. A imaginação matiza desde a
origem os quadros que gostará de rever. Para ir aos arquivos da memória,
importa reencontrar, além dos fatos, valores
81
.
Ainda que haja documentos, certidões, a construção histórica paga tributo a
um núcleo clandestino de imaginação, recriação. Da História, talvez a especialidade
que mais se utilize desse recurso ficcional seja a arqueologia. Aqui, História e poesia
reatam um casamento longínquo realizado em textos como os de Heródoto, e
separado pelo desejo positivo-iluminista de uma lúcida razão.
De sua arca pessoal, de seu baú de recordações, Virgínia também desmonta os
referentes, altera o feixe de luz criado pelos fatos e retira daí suas parcelas de
sombra, de possíveis realidades que a razão ( o verossímil ) asfixia a todo instante. A
recusa à condição na qual se acomoda vai adubando a terra maltratada e sonâmbula
que acolhe os viventes. Terra Sonâmbula, portanto, é imantado por essas duas e
polares atitudes: sonho e memória, concebidos por velhice e infância. Dois elementos
que tentam, sem muitos alardes ( e com maior eficácia ) ir minando as representações

80
Idem, p. 195.
81
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. Trad. Antônio Danesi. São Paulo : Martins Fontes,
2001. p. 99.
sociais que levaram à desumanização extrema, a uma guerra que nunca pode ser
indenizada. Mia Couto, ao lado de Borges, Cortázar ou Juan Rulfo, impõe uma linha
de resistência. O autor desse romance fabuloso inscreve, subliminar, uma forte
negação ao que as ideologias conseguiram nomear de realismo. Negação, no entanto,
que se viabiliza por um “sim” voluptuoso como o “sim” de Molly Bloom, a
afirmação do desejo, do gozo, da literatura.
CAPÍTULO 3
M
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A
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A
A
Na nossa infância, o devaneio nos dava a liberdade(...).
Que outra liberdade psicológica possuímos, afora a liberdade
de sonhar? (...) O ser do devaneio atravessa sem envelhecer
todas as idades do homem, da infância à velhice. Eis porque,
no outono da vida, experimentamos uma espécie de
recrudescimento do devaneio quando tentamos fazer reviver os
devaneios da infância (BACHELARD. A Poética do
Devaneio).
O filósofo Theodor Adorno afirmou certa vez ser impossível se fazer poesia
depois de Auschwitz
82
. O mito de que o homem havia alcançado um estágio em
que a brutalidade estava domada em seu espírito ( graças à poesia, à filosofia e às
conquistas técnicas que de um modo ou de outro o amadureceram ) havia sido
imperdoavelmente aniquilado. A guerra e as humilhações que ela provocou revelou a
fragilidade de nossas riquezas luminares. Eis o que o pensamento de Adorno parece
ter tido como pressuposto. Entretanto, como assinala Freud referindo-se à primeira
guerra, todo luto cedo ou tarde há de findar. E para isso a poesia se faria mais que
necessária, pois nela é que se constroem os campos dos possíveis, dos sonhos contra
os quais o real falido investe para destruir. Mia Couto, no prefácio de seu livro de
contos Estórias Abensonhadas, responde melhor à sentença de Adorno:
Estas histórias foram escritas depois da guerra
83
. Por incontáveis anos as
armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me
surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra,

82
Ver BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. 6. ed. São Paulo : Cia. Das Letras, 2000. p. 17.
83
Guerra Civil pós- Independência, em Moçambique.
pensava eu, restavam apenas cinzas, destroços sem íntimo. Tudo pesando,
definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu
semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais
inacessível de nós, onde a violência não podia golpear, onde a
barbárie o tinha acesso. Em todo este tempo, a terra guardou, inteiras, as
suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No
escuro permaneceram lunares.
Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e
vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse
território onde todo homem é igual, assim : fingindo que está, sonhando que
vai, inventando que volta
84
.
É alimentando esse credo que Mia Couto publica Terra Sonâmbula. Romance
que fala do conflito sem abdicar, porém, da sua função de despertar, função de toda
literatura maior. Devolver as palavras às suas fontes primordiais seria, sem dúvida,
um dos doze trabalhos de um Hércules da sensibilidade. Mia Couto não apenas cria
uma linguagem que insinua significados diversos, mas também parece erotizar a tal
ponto o corpo das palavras que os sentidos as desejam, as procuram para se reatar
em um novo laço amoroso.
A narrativa ganha no romance um valor encantatório, em que as estórias
bruxuleiam pelo imaginário o que os olhos não conseguem, no horizonte devastado,
vislumbrar. A mímese de representação vai aos poucos sendo dissolvida para dar
lugar à mímese da produção. A desconstrução da razão e a montagem de episódios
oníricos fazem de Terra Sonâmbula um romance fabuloso, com toda a ambigüidade
que o adjetivo possa comportar. Ao mesmo tempo, essa escolha não deixa de ser,
longe de um panfletismo fácil, uma resposta política sutil: todo iluminismo
escamoteia uma trilha ideológica fascista ( que permite apenas um modo correto
de percepção ), e a única maneira de reagir a essa Razão, na qual a guerra se
nutriu, é o retorno à desformalização lógica do mito e do maravilhoso.

84
COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1996. p. 5.
Dois pólos temáticos são fundamentais para a fatura do romance: o sonho e
a memória. Um, prospectivo, o outro retrospectivo, mas ambos, em Mia Couto, sempre
introspectivos. Muidinga é um adolescente sem memória de si, o que faz de todo
olhar que projeta sobre as coisas um olhar inaugural. Por efeito amnésico, a infância
se afirma, uma vez que toda experiência é primária. Essa desmemória é essencial
para recuperar o espanto sem pressupostos que tanto exigia em seus textos Merleau-
Ponty. Muidinga é a representação da alienação completa: é alheio a si e também
ao mundo real, sempre refratado pelos sonhos que alargam o campo dos possíveis,
qual no poema de Píndaro. A infância em Terra Sonâmbula é a metáfora do olhar
poético, da possibilidade de fabulação por via desse olhar sempre inaugural, porque
similar ao do estrangeiro ( à poesia, lugar algum do mundo é sua pátria ; sua pátria
está fora dele ). Eu hesitei, valia a pena ? ” - Kindzu se interroga. “ A velha nunca
aceitaria minhas dúvidas. Quem, neste mundo, validade a uma criança ? ”. Daí a
infância ( in- fare ) : sem voz. E, aos que não têm voz, restam o sonho ou a revolução.
E quase sempre esses dois traços se desenham como linhas convergentes. Ambos,
sonho e revolução, convergem para a construção do futuro, do qual o garoto é imagem.
Aqui se desenha outra analogia: os miúdos um Moçambique nascente, como Junhito,
símbolo do país em estado de infância. Por sua vez, Kindzu e Tuahir morrem para deixar-
lhe nas mãos uma identidade. Mas também uma responsabilidade.
Um real falido, com saídas estreitas ou nenhumas, onde “a guerra tinha morto
a estrada”, eis o que os olhos de nossos personagens podem vislumbrar. Mia Couto
desloca a idéia ingênua de que em tempos difíceis não espaço para poemas de
amor, por exemplo. O fundamental não é mais a sobrevivência biológica, mas a
conservação da utopia. Nhamataca, por tal razão, se afoga duplamente : em seu sonho
de águas, e nas águas oriundas dos sonhos. A infância desata o devaneio e pratica,
desse modo, uma pedagogia do imaginário. Tuahir parecia ter uma significação c
da existência:
- Tira só essa papelada. Serve para acendermos a fogueira.
- Veja, Tuahir. São cartas.
- Quero saber é das comidas
85
.
Os sonhos, não fosse o miúdo, seriam logo logo sacrificados. Tuahir, a partir
de uma aprendizagem, vai abandonando as resistências de razão - deserto de
solaridade cáustica - como se abre uma mão fechada em deslumbrante primavera. Os
dedos vão se abrindo como uma rosa, pétala por pétala, até que o personagem se
surpreenda, as mãos espalmadas, com o espanto do imaginário.
O miúdo sugere a Tuahir representarem, respectivamente, os papéis de Kindzu
e do velho Taímo. Após uma certa relutância, o velho finalmente aceita dar “à vida
real suas justas férias de irrealidade” , como dizia Bachelard. Ele sabe que no espaço
do faz-de-conta pode viver o seu afeto paternal, que o mundo exterior lhe recusou,
uma vez que Taímo, nos cadernos, é o pai do Kindzu escritor. Eis um trecho-
revelação que nos reserva Mia Couto :
Depois, sente a mão de seu pai lhe afagando a cabeça. Olha o seu rosto e
vê que, afinal, seus olhos eram sábios. Foi como se, repente, toda a bondade
dele ficasse visível, redonda.
- Pai, por que nunca me mostraste como eras, dentro de ti?
- Tinha medo, filho. Não podia mostrar esse defeito e dizer : olha este
coração que nunca cresceu !
Seu pai estava ali, grande, sem mentira. Pela primeira vez alguém lhe
dava abrigo. O mundo se estreava, já não havia escuro, não havia frio
86
.
Aqui poderíamos dizer que se flagra a antilogia da literatura : na mentira da
ficção, as verdades do real. Uma metáfora da condição poética. Imprescindível porém:

85
COUTO, Mia. Op.cit. p. 13.
86
COUTO, Mia. Op. cit. p. 188.
o nome verdadestem necessariamente de manter-se no plural, porque singularizá-lo
seria romper, de maneira arbitrária, com a ambigüidade imposta no discurso. Em
outras palavras, como afirmar que, finalmente, a máscara de Tuahir escorrega? No
meio da representação, escapa uma risada que Muidinga teme ser a fissura do
fingimento, o que já é suficiente para manter a tensão ( poética ) da incerteza.
Mentiras como virtude, deslocadas de seu ostracismo, de seu incômodo
enquadramento de pecado, recuperam-se em Terra Sonâmbula. Importante lembrar o que
nos dizia Eliot: é impossível todo excesso de realidade. Em seu último romance - Um Rio
Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra -, Mia Couto maneja uma situação em que
compaixão e lirismo criam um amálgama. O neto quer iludir a avó, forjando-lhe um amor
conjugal que nunca houve. Ao fim, inteiramente lúcida do lúdico, ela arremata : “você
mente com tanta bondade que até Deus lhe ajuda a pecar”
87
. Em Terra Sonâmbula, Farida
nutre o jogo ilusório de Virgínia, que recebia cartas fictícias. O êxtase criado na suspensão
do real e na alforria do imaginário leva o narrador à conclusão : “Farida deveria enviar-lhe
cartas, falseando autorias, fingindo o longe. Foi o que passou a fazer, se entretendo a ser, de
cada vez, um diferente familiar. Nunca pôde imaginar a bondade que estava criando”.
88
anteriormente Tuahir havia usado o embuste como preservação. Na vontade de flanar na
esperança de encontrar sintomas de vida, encontra a resistência do miúdo, o que o leva ao
último recurso : “O melhor seria uma mentira, dessas tecidas pela bondade”.
89
Não é apenas a infância que se responsabiliza pelo alargamento do espaço
virtual. A velhice, por um caminho inverso ao do sonho pueril, também delineia seus
caminhos. Além de compreender as saídas prospectivas da fabulação onírica, os
velhos guardam nas mangas mais um trunfo : o olhar retrospectivo da memória. Para

87
COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003. pp.
50-1.
88
COUTO, Mia. Op.cit. p. 91.
89
COUTO, Mia. Op. cit. p. 78.
Platão, o envelhecimento enfraquece os grilhões do corpo e torna, conseqüentemente,
a alma liberta. A velhice é a iminência do retorno ao mundo ideal, por nós apenas
rememoriado. Entre Platão e Ícaro, dirá Sponville, “a oposição é completa : Ícaro
fabrica suas asas, so-be, depois cai ; a alma de Platão perde as asas, cai, depois torna
a subir. Ícaro : invenção, ascensão e queda. Platão : queda, reminiscência e assunção
90
”.
Segundo Platão, portanto, a liberdade ( a verdade ) se localiza na reminiscência do
sentido. A escritura de Mia Couto, por sua vez, percebe a liberdade na produção do
sentido ( poetização do mundo ). Nessa produção, não raro a reminiscência é
necessária, porém jamais numa memória superior e anterior ao mundo, mas na
memória histórica dos mitos que desejam o vislumbre dessa realidade anterior e
às vezes ideal
91
.
Os sonhadores vivem sob o signo da falta ( Farida órfã, Muidinga- sem
passado ). O que é muito natural, se pensarmos o sonho como primo do desejo. Os
velhos, por sua vez, querem retornar a um paraíso perdido, guardado na memória :
“Sobre velhas fotografias, com um lápis, a velha portuguesa [ Virgínia ] desenhava
outras imagens. Às vezes, recortava-as com uma tesourinha e colava as figuras de
umas fotos nas outras. Era como se movesse o passado dentro do presente”
92
.
Um dos episódios mais interessantes, porém, ocorre à própria portuguesa que,
diante de uma “vida de mentiras”, reinventa o passado, fazendo-o feliz. Pede a
Farida para escrever-lhe cartas com falsas autorias, como se fossem seus antigos
parentes a se corresponder. Nessa invenção, suspendia as descrenças, legitimava a
criação e se emocionava com o seu passado imaginado. A necessidade, na velha, de

90
COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do Desespero e da Beatitude. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo : Martins Fontes, 1997. p. 85.
91
Quase sempre os deuses conservam uma natureza humana.
92
COUTO, Mia. Op. cit. p. 91.
memória levou-a à reinvenção. Aqui temos uma metáfora da História não apenas
como ciência, mas também como ficção, como poesia ( poeisis : criação ).
Heidegger, em Ser e Tempo, nos fazia supor que a identidade não é possível
para o homem enquanto Dasein, ou seja, ser-no-mundo. A ininterrupta construção do
sujeito torna impossível estancá-lo e apreendê-lo inteiramente. A sua única essência é
a mudança, proposta por Heráclito. Somente na morte pode-se tentar detectar a
identidade de um ser outrora vivente. É quando o rio estanca e podemos vislumbrá-
lo parado. Nunca se deve perder de vista o último dia do homem, nem declarar
que alguém é feliz antes de vê-lo morto e reduzido a cinzas
93
, dizia Montaigne,
antecipando a hipótese fenomenológica. Na morte de um velho, entretanto, se aloja um
dos mais lamentáveis paradoxos : ganha-se a sua identidade e perde-se a de sua
tribo. Muidinga percebe que o velho Siqueleto, ao morrer, leva consigo a memória de
uma civilização e, sendo seu último habitante, a civilização ela própria :
[ ... ] no falecimento de Siqueleto havia um espinho excrecente. Com ele
todas as aldeias morriam. Os antepassados ficavam órfãos da terra, os vivos
deixavam de ter lugar para eternizar as tradições. o era apenas um
homem mas todo um mundo que desaparecia
94
.
Há, no romance, um intercâmbio entre as necessidades de sonho e memória. E
ambos se potencializam pela amplitude transgressora do poético. As duas pontas, as
duas fases opostas se tocando para produzir o seu circuito e deixar acesa uma
luminária de esperança. Não se deve, no entanto, imaginar que se trata de uma
esperança de natureza ingênua. É verdade que o otimismo é sempre uma crença
infundada de que se pode vencer a partir desse mundo falido. As regras do mundo
são sempre de natureza fagocitária ( Marx e Freud nos desesperançaram algum

93
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. v. 1. São Paulo : Abril Cultural, 1996. p. 90.
94
COUTO, Mia. Op. cit. p. 103.
tempo da possibilidade de um contrato social semelhante ao de Rousseau ). Os
otimismos se banalizam pela atmosfera naïve que comportam. Mas a esperança de
Mia Couto escoa pelas margens do poético, tergiversa e recusa o próprio sistema
como trilha. A atitude literária é talvez o único modo de resgate, suspensão de um
seqüestro do sonho social. E isso se faz pela fratura com as regras iluministas
desse mundo instituído. O olhar poético transfigura um real despedaçado, desperta o
olhar outrora sonâmbulo e, desse modo, quer dar razão a Aristóteles : a História narra
o que houve ; a poesia, o que poderia ter havido. É a derrota do Alphaville de
Godard.
Os personagens do romance também fazem, qual Ulisses, o seu périplo
homérico. Ítaca, no entanto, pode ser qualquer lugar, desde que seja fora do mundo,
para dizer com Baudelaire. Muidinga, por exemplo, é capaz de sonhar, de criar
soluções imaginárias. É quando uma aporia se insurge e se impõe : será isto fruto da
leitura - atitude quixotesca cultivada o tempo inteiro -, ou as histórias dos cadernos
não seriam mais que fantasias iluminadas pelo infante ( Tuahir não sabia ler e as
aceitava, ou fingia aceitá-las, estivessem ou não de fato escritas ) ?
Esta segunda indagação ( da legitimidade dos cadernos ) é similar à que Italo
Calvino faz em relação à Odisséia. Como dar crédito a um narrador astucioso como
Ulisses? Como crer em Muidinga, incansável sonhador ? No capítulo Juras, promessas,
enganos, a narração dos cadernos sem ler acentua as desconfianças : “ Lhe posso
contar o que diz, quase sei de cabeça, palavra por palavra ”
95
. A manutenção do
foco narrativo na primeira pessoa ( Kindzu falando por si mesmo ) põe em xeque a
verossimilhança da leitura de Muidinga e alarga as possibilidades de tudo ser uma
grande fabulação ( como a de Menino, em Abril Despedaçado ). No capítulo Miragens

95
COUTO, Mia. Op. cit. p. 110.
da Solidão, Muidinga mais uma vez nos razão para a suspeita. Tuahir ao recusar
a representação do velho Taímo, argumentando que se tratava de um morto, diz ao
miúdo: “- Você não sabe o que pode fazer um morto incompleto. Não lhe contei o
que sucedeu com o pescador Nipita ? ” - ao que Muidinga lhe replica : “ - Conte, tio.
Se é uma estória me conte, nem importa se é verdade”.
96
A veracidade não tem a
menor relevância. Se é possível abrir portas ao devaneio, os fatos não passam de um
mínimo pretexto. De modo semelhante, após o aparecimento do fantasma de seu pai,
Kindzu desperta e, mais uma vez, deixa suspensa a veracidade lógica do texto. A
recorrência dessa prática implode os ideais racionalistas de mímese absoluta.
A partir daí, a indagação acima feita guarda uma enorme ingenuidade. Como
se perguntar sobre realidade ou impostura, se a razão do texto é vizinha à do
Quixote
97
, e onde o próprio narrador fecha o círculo ilusório como possível
personagem da fábula contada ? Assim, qualquer estranhamento inicial em relação a
um cancelamento mimético vai ser, em verdade, uma metonímia de todo o romance.
Um das grandes lições que podemos aprender do Taímo imaginado : toda escrita é
bruxaria, pois a linguagem é um sortilégio. Ilusão maior não está nas fronteiras do
texto, mas sobretudo fora dele : não porque dar tanto crédito à ambigüidade do
real, frágil como água que envolve sedutora e nos reduz a uma ilha.
Infância e velhice, assim como na Física, são pólos que permitem criar-se um
campo de forças: sonho e memória. A velhice, aqui, não pode vislumbrar-se pelo
olhar de um Platão. Conhecer não será reconhecer, algo iminente numa morte
aproximada. O conhecimento se fará pelo viés da criação. Imaginação e memória,

96
COUTO, Mia. Op.cit. p. 186.
97
O romance, aliás, é um grande intertexto do Quixote. Empresas como a do fazedor de rios é uma
lembrança luminar do personagem de Cervantes.
como lembra Bachelard
98
, são um complexo insolúvel. O passado é um caminho cujo
rastro é lembrado nas migalhas de pão. Migalhas que o pássaro da memória vai
furtar, fazendo incerta a trilha demarcada. Ao contrário, porém, leva consigo não as
porções que lhe agradam, mas exatamente as que lhe causam mal-estar. Quem quiser
voltar há de recriar caminhos com o invisível alimento de um chão imaginário.
A velha Virgínia talvez seja o melhor exemplo presente no texto. Confluência
de uma memória sua e da tribo. Ao tentar recuperar o tempo ( paraíso ) perdido, pede
a Farida para escrever-lhe cartas, como já dissemos antes. Virgínia é a realização
exata do que pedia Coleridge em relação ao leitor de poesia : uma completa
suspensão da descrença. De fato, ao receber as cartas, emocionava-se, chorava, se fazia
toda lírica. Contando estórias às crianças que a abordavam, mudava os fatos e as
personagens :
No enquanto da estória, o dito a ia perdendo o nome, saltitando de
morada e profissão. As falas de Virgínia não se acertavam. Os meninos, por
vezes, corrigiam : o mucunhaa Curucho, não esqueça vavó. Mais Virgínia
repete os contos mais a verdade se resvala : o a Cruz de olhos louros,
hoje; amanhã um negro de rosto carapinhoso. A criançada nem se importa.
Verdade, em infância, é um jogo de brincar
99
.
A memória não é apenas uma seleção imaginária de efeito inconsciente. Nos
velhos da aldeia, a memória era Sísifo levando a pedra da lembrança dos tempos de
alegria :
Aquele grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também.
não eram sábios mas crianças desorientadas. Mais que ninguém, eles
sofriam a visão da terra em agonia. Cada casa destruída tombava em
ruínas dentro de seus corações.
100

98
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo : Martins Fontes, 1988. p. 99.
99
COUTO, Mia. Op. cit. p. 195.
100
COUTO, Mia. Op. cit. p. 35.
Ao contrário do que queria Camus, não é possível imaginar Sísifo feliz. E a
fantasia é exatamente a indumentária que protege de um fascismo, iniciado em
Platão. Se a poesia é uma forma de ilusão, ou dizendo melhor, uma ilusão na forma,
a mentira pode ser profundamente ética, se usada como estética da liberdade. A
lembrança, retrospectiva e estática, aprisiona. Os sonhos, prospectivos e dinâmicos,
sugerem caminhos. A razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os
mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos”.
101
Essa ponte, no entanto,
pode ser cruzada por aqueles que tenham um olhar infantil, no qual o espanto é
possível e o real uma escolha. Virgínia, por exemplo, consegue segre-dar-se à
inocência das crianças. Os outros são muito cheios de ardis.
A velha só quer ser visitada por infâncias ? ” - interroga-se Kindzu - “ E se
eu me mostrar criança, quem sabe ela me aceita ? ” ( TS, p. 196 ). E, como se
fora uma réplica, ela lhe diz mais à frente : “Vamos para minha antiga
casa. Me faça uma coisa entretanto : me chama de vovó. Para eu lhe ver
como uma criança.
102
A infância é um centro de massa, com suas forças de atração sobre os
viventes. Morrer é um retorno à infância, existência que fecha seu circuito. Mia
Couto vem dizê-lo pelo viés oblíquo da metáfora. Frente aos corpos carbonizados,
Tuahir expõe : Estes arderam bem. Veja como todos ficaram pequenitos. Parece o
fogo gosta de nos ver crianças”. Através dos nomes, os personagens também trazem
sentidos adivinhados, onde a nostalgia ainda vive, tremeluzente: “Sou chamado de
Kindzu. É o nome que se dá às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às
praias. Quem não lhes conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente
chão?”
103

101
COUTO, Mia. Op. cit. p. 18.
102
COUTO, Mia. Op. cit. p. 197.
103
COUTO, Mia. Op. cit. p. 17.
O romance de Osman Lins
104
é simbolizado na espiral. Em Mia Couto, esses
dois pólos, fundamentais para a composição dos motivos, desenham-se melhor em
outra figura. Infância e velhice são, uma da outra, uma parábola ( sem descartar a sua
ambigüidade ). E uma parábola sobretudo descendente : nascimento, depressão,
renascimento. Ícaro às avessas, onde o mundo Ideal a que se retorna não vai além
da morte, porém à vida primária, reabilitada.

104
Avalovara.
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4.1 Os Gêneros no Meio da Neblina
Terra Sonâmbula é um rio caudaloso alimentado por inúmeros afluentes que
deságuam em seu irisado corpo narrativo. A informação paratextual que a capa nos oferece
é de que se trata de um romance, quando muitos poderiam argumentar tratar-se de um livro
de contos.
O problema, porém, é menos fácil do que supõe um olhar mais apressado. O texto
de Mia Couto se organiza de modo a ecoar as Mil e Uma Noites ou, poderíamos arriscar
dizer, o Quixote, de Cervantes. Terra Sonâmbula é elaborado com uma narrativa matricial,
vivida por Muidinga e Tuahir, que sopro e vida às experiências memoriais da
personagem Kindzu. Daí em diante, os cadernos que deixou escritos serão, para usar a
metáfora do último livro do escritor, um fio reunindo suas missangas, narrativas concisas,
pontuais, que se fazem necessárias para que significados estéticos e religiosos venham
fecundar a esterilidade do fio. A nosso ver, ainda que as estórias vislumbradas nos
cadernos da personagem Kindzu não necessitem umas das outras para a sua unidade de
sentido, o texto anterior as origina e delas depende para a compreensão dos heróis do
romance. o é difícil perceber que se trata, portanto, de uma composição mise-en-abîme:
um texto engendrando suas filiais.
É pela observação atenta dessas filiais que vamos tentando estruturar
simbolicamente a arquitetura do romance. Tuahir, para resfriar os aquecidos nervos do
velho Siqueleto, age semelhantemente a Sherazade : “Tuahir interrompe-o pedindo calma.
Lento como um rosário desfia toda a estória, razão de estarem ali, requerendo tais
ousadias”
105
. A aproximação com a narradora das Mil e Uma Noites, aliás, é uma das
marcas mais salientes do romance. Resgatado pelos nativos, Gaspar é exortado a desfiar a
sua história. Logo, no entanto, o ameaçam : Ai de ti se não gostarmos da tua
história”
106
.
Narrar é desfiar esse rosário, ato religioso, onde fragmentos se religam. Todo texto é
comunhão, explícita ou velada, de orações – reza a gramática. A escrita de Mia Couto, dada
a profusão de imagens que ali se bordam, traz uma apresentação barroca. O que não figura
inteiramente estranho, tendo em vista a filiação roseana de sua prosa. Algo se erotiza não ao
revelar sua imediata nudez, mas ao deixar-se vislumbrar pelo buraco da fechadura. A
palavra surge como um fio que se desprendeu e pelo qual se puxa, reduzindo as vestimentas
às suas mínimas partes. Atitude inegavelmente erotizante, narrar é tecer o gozo através de
uma lenta e gradual nudez das coisas. Numa conciliação entre o erotismo e a liturgia, o
narrador também é capaz de “amenizar” o universo, como um curandeiro.
Terra Sonâmbula se perfaz de contos absolutos, núcleos narrativos coesos,
costurados pelo périplo de leitura feito por Muidinga. Ao mesmo tempo, Mia Couto
conserva elementos do maravilhoso, o mantendo certos traços que seriam considerados,
ao gênero, essenciais. Tradição e ruptura.
Entende Yves Stalloni que o conto guarda um núcleo narrativo, sendo geralmente
curto e com um desfecho surpreendente. Edgar Allan Poe iria caracterizar o gênero como o
escrito ficcional capaz de ser lido rapidamente, de um lance. No tratamento dado às

105
COUTO, Mia. Op. cit. p. 82.
106
COUTO, Mia. Op. cit. p. 199.
narrativas de Terra Sonâmbula, Mia Couto revela a habilidade de nocautear o leitor a todo
instante, seja pela surpresa da linguagem, seja pelos desnorteantes desfechos. E isso, como
recorda Cortázar, é um privilégio do conto de valor:
um escritor argentino, muito amigo do boxe, dizia-me que nesse combate que se
trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos,
enquanto que o conto deve ganhar por knock-out. É verdade, na medida em que o
romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que um bom
conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases
107
.
Mia Couto é mestre no manejo condensado da escrita. Contos como “O Adeus da
Sombra”, As Baleias de Quissico”, “A Rosa Caramela” ou “Os Olhos dos Mortos” são de
não se esquecer. Terra Sonâmbula é, como a pintura de Arcimboldo, uma cabeça composta
( fig.6 ), que todos os contos têm uma forma independente, mas se reúnem para dar uma
fisionomia complexa. O capítulo 4, A Lição de Siqueleto”, é um exemplo do constitutivo
mosaico do romance. Enquanto exploram os arredores do machimbombo em que se
abrigam, Tuahir e Muidinga o apanhados por um velho desdentado, que os cativa numa
rede. No deslinde de sua história, Siqueleto - que era como se chamava diz que persiste
naquele lugar para o preservar, e esse seria o único modo de vencer a guerra : mantendo as
tradições, sendo fiel ao seu chão. Em certo instante, Muidinga escreve na areia o nome do
nativo. Embebido de espanto, liberta os viajantes para que o miúdo possa escrever seu
nome numa árvore. Uma vez gravado o seu nome, fecha a sua história com o desenlace de
si mesmo, num suicídio movido pela certeza de eternidade ou talvez renascimento : “Ele se
vai definhando ase tornar do tamanho de uma semente”
108
. A estória finda fulminante:
não há sinais, não restam pegadas que levem ao desfecho. Trata-se, a rigor, de uma
escritura epifânica e, com toda a delicadeza possível, Mia Couto desloca o herói. Não surge
nenhum indivíduo de força sobre-humana no meio da floresta que os venha libertar. O

107
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo : Perspectiva, 1993. p. 152.
108
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. p. 84.
herói, como em O Homem e sua Hora, de Mário Faustino, é a encantada e onipresente
linguagem.
Fig. 6. Outono, de Giuseppe Arcimboldo. Óleo
sobre tela (1573). Cada fruto tem sua forma
autônoma, mas na comunhão bem realizada se
opera um mais vigoroso sentido.
A partir de um evolucionismo que deve ficar sob suspeição, Salvatore d’Onofrio
divide o conto em popular ou maravilhoso e erudito ou literário. Segundo ele, o conto
maravilhoso é a “forma mais universal de transmissão da cultura de um povo ainda na fase
da oralidade, o conto popular ou maravilhoso documenta usos, costumes, fórmulas
jurídicas, folclore, etc.”
109
. De todo modo, a forma como hoje é compreendido se forjou no
século XVII, com Charles Perrault recolhendo narrativas populares que se disseminavam
sem o suporte da escrita. Stalloni traz ainda outros elementos distintivos do conto
maravilhoso:
o conto inclina-se em direção à fábula ou ao onirismo, renunciando ao
realismo e à verossimilhança;
- suas personagens pertencem ao domínio do simbólico, abandonando as
caracterizações individuais;

109
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto : prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo : Ática,
2001, p. 110.
- ele possui um fundamento popular, podendo inspirar-se na tradição oral e
coletiva ou no folclore;
- ele pode ser ( pelo menos teoricamente ) mais longo do que a novela, mas é,
como esta, um relato breve;
- ele procede de uma narração direta, inspirada pela oralidade : um narrador
que se assume enquanto tal ‘recita’ a história;
- ele comporta uma intenção moral ou didática, claramente expressa, ou
implicitamente contida na narrativa
110
.
Perfilando o gênero, qualificaríamos Terra Sonâmbula enquanto reunião de short
stories, como dizem os norte-americanos. Outros elementos, no entanto, ao conto
peculiares, vêm pôr às claras o quanto Mia Couto é transversal e, escorregadio, esquiva-se
às classificações.
Esta forma simples, para usar a terminologia de Jolles, escolhe o final feliz, onde o
bem suplanta o mal e o gosto popular é reverenciado. Ora, Terra Sonâmbula vai
deixando rastros de melancolia e fracassos das personagens no decorrer da narrativa. As
estórias não se fecham jubilares. Passando às macronarrativas, Kindzu o sobreviveu à
guerra e Muidinga, apesar das sugestões do final do texto, o ganhou uma tutela, como
desejaria o grande público. Aliás, o romance não encerra: seu desfecho é sugestivo, não
mais que uma possibilidade, um desenlace virtual.
O conto popular, lembra D’Onofrio, traz outros dois caracteres marcantes: o
anonimato e a internacionalidade. Em tal gênero, as personagens não têm nome ou pátria,
são identificadas por sua espécie ou pela função que exercem: caçador, lobo, rei, etc. o
um autor específico, inscrevendo-se a narrativa no folclore. O espaço também o é
pontual e definido: a geografia apenas o supõe, variando de acordo com o lugar em que as
estórias são narradas. Ao contrário disso, a escritura de Mia Couto apresenta personagens
muito bem especificadas por seus nomes, reflexos de um caráter. O chão, sempre
Moçambique.

110
STALLONI, Yves. Os Gêneros Literários. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro : DIFEL, 2001.
pp.120-1.
A verdade é que Mia Couto consegue se apropriar do conto oral e dar um tratamento
da mais alta literatura ao seu material. Afinal, as idéias o são suficientes sementes para o
plantio do objeto de arte. Transformar o causo ou o canto em escrita estética exige uma
reorganização, uma seleção da matéria-prima, um arranjo que substitua o complexo
semiótico o tom, o gesto, a expressão do olhar - em que se apóia a oralidade e que é
interdito ao texto gráfico. Cortázar bem lembra os casos Roberto Payró, Ricardo Güiraldes,
Horácio Quiroga e Benito Lynch que, garimpando temas tradicionais que fluíam na boca
dos velhos, remodelaram-nos em produto estético, em obra de arte. Mas, ressalva Cortázar,
Quiroga, Güiraldes e Lynch conheciam a fundo o ofício de escritor, isto
é, só aceitavam temas significativos, enriquecedores, assim como Homero teve de
pôr de lado uma porção de episódios bélicos e mágicos para não deixar senão
aqueles que chegaram até nós graças à enorme força mítica, à ressonância de
arquétipos mentais, de hormônios psíquicos como Ortega y Gasset chamava os
mitos.
111
enormes dificuldades para engavetar o escritor. O seu procedimento é fugidio:
sua atenção à palavra, por exemplo, é própria do mais requintado artefato poético, onde as
imagens visual e acústica trazem à memória um elaborado cristal. Por outro lado, o texto
não é um mero cerzir de estruturas menores. Apesar da força de unidade que cada estória
conserva, a macronarrativa de Muidinga ficaria vazia sem os episódios autônomos que, por
sua vez, dependem da voz do infante para ganhar vida. Qual nas pinturas do referido
Arcimboldo, onde cada fruto tem sua forma autônoma, mas na comunhão bem realizada é
que se opera um mais vigoroso sentido. Temos em mãos um romance que também se
estrutura em epístolas - porque em tempos de guerra, as cartas são a solitária possibilidade
de se atenuar a solidão. A correspondência existe, escreve Sponville
112
, porque o se pode

111
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo : 1993, p.159.
112
Ver Bom Dia, Angústia, Martins Fontes, 1997.
falar e nem calar. Escrever, aqui, é vencer o tempo, extrapolar espaços, que a guerra faz
estreitos.
Por outro lado, as personagens de Mia Couto, como havia observado Ana
Mafalda Leite, não têm psicologia. Sua exploração literária se enfaticamente ao nível da
linguagem, sem haver o mesmo investimento na pesquisa de outras estruturas do romance.
Desse ponto de vista, seu texto é muito mais poético do que romanesco. Terry Eagleton
observa com lucidez o fenômeno : “pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na
realidade, considerar toda literatura como poesia”.
113
Mas essa despsicologização da
narrativa vem desde o nouveau roman, que queria arejar o excesso de chafurdamento
psicológico dos romances franceses de então, como a literatura de Georges Pérec ou, um
pouco antes, a catedral escritural de Marcel Proust. Os impasses que podemos encontrar em
Mia Couto, por esta razão, não ficam exatamente na psicologia, mas se funda em motivos
outros. Se há problemas na prosa coutiana, este pode ser um deles: os cadernos se costuram
deixando ver as cerziduras. Como na passagem do nono para o décimo capítulo, brechas
que não se preenchem, entre os capítulos não interstício que os una. Não existe uma
transição fluente entre os dois pólos diegéticos: o de Muidinga e o de Kindzu.
Situações de revelação não são marcadas pelo encanto ou pelo espanto. Euzinha diz
a Kindzu da fraternidade entre Farida e Carolinda. O fato é uma surpresa, uma epifania,
mas não alterações na modulação dos personagens, nem silêncios ou desconcertos. A
narrativa continua inalterável, impassível, sem vigor plástico da cena:
– Agora me dá o colar de Carolinda.
Me surpreendi. Por que motivo ela me queria tirar aquela lembrança ?
- Você não deve mexer no destino dessas irmãs. Nenhuma pode saber nada sobre
a outra. Carolinda não pode saber eu sou tia dela. Senão, a desgraça lhes vai
escolher.
- Está certo, eu fico calado, disse eu, entregando o colar.
114

113
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura : uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 3. ed. São Paulo :
1997, p. 8.
114
COUTO, Mia. Op. cit. p. 221.
Mia Couto recupera, da fala, as associações aleatórias, mas a escrita romanesca
exige uma coesão que o texto não mantém. No enlace da fala com a escrita ecoa, por vezes,
uma harmonia dissonante. Entretanto, de modo compensatório, outros momentos são,
também em termos de estrutura, um índice de que se trata de alta literatura no none
mundial. E para isso Mia Couto não precisa recorrer ao argumento tacanho de estar inserido
nas minorias intelectuais.
O romance apresenta elementos de simetria. A situação paterno-filial entre Kindzu e
Taímo reflete como água parada a relação entre Tuahir e Muidinga. A teatralização
posterior, na qual os quatro personagens se confundem ( formando um quattuor ), vem
reforçar a evidência. Em determinado momento, a narrativa sugere outra simetria possível:
“Muitas vezes Farida sentiu desejo de a tratar por ‘mãe’. Mas ela não aceitou. Tua mãe não
haveria de gostar, dizia ela”
115
. Aliado a semelhante simetria, o romance, longe de ser
palavroso, não quer dizer o real, mas significá-lo, para usar a frase de Heráclito. Muidinga e
Tuahir saem em busca de alimentos. Não querem se afastar demasiadamente do autocarro,
para que não se percam os cadernos. Tuahir inicia a narração de como encontrou o miúdo,
acometido pelos males da maquela. Passado o episódio, o livro reinicia na leitura do
terceiro caderno de Kindzu. A economia narrativa, aqui, é quase insuperável. A mera
narração dos cadernos informa, sem que uma palavra seja dita a respeito, o sucesso no
regresso ( de outro modo, como teriam sido os escritos de Kindzu recuperados? ). Mia
Couto instala uma narratividade bíblica, onde muito do que ocorre está entredito e
submerso, não emergindo às águas rasas do texto.
Nas fronteiras entre poesia e prosa ( lírico e épico ), o texto apresenta uma forte
fisionomia dramática. Por ordem de um invisível contra-regra, as personagens entram,

115
COUTO, Mia. Op. cit. p. 90.
narram um mínimo de suas vidas e retiram-se. Os heróis passam, ouvem os lamentos e
seguem. Aqui, Terra Sonâmbula é a Divina Comédia. A Dante, Virgílio : Fama di loro il
mondo esser non lassa; / misericordia e giustizia li sdegna; / non ragioniam di lor, ma
guarda e passa” ( Inferno, canto III ). A dramaticidade de escritura vem se aliar ao fato de
ter o teatro um significativo peso na cultura moçambicana
116
. Muito da obra coutiana foi
representada por grupos amadores: “A árvore da vida” e “Vozes Anoitecidas”, por
exemplo, foram representados pelo grupo Mutumbela Gogo, resultando na peça
“Xicalamidadi”. A mestiçagem de gêneros é, em Mia Couto, metonímia. Em verdade, toda
a sua obra vem marcada pela impureza, pela mácula que povoa todos os grandes textos.
Terra Sonâmbula é uma metáfora do alargamento de fronteiras: ousadia, experimento dos
possíveis, da quebra de estaticidade, onde o que pode haver de mais sólido o chão
também está, lento, em movimento.
4.2 Linguagem e epopéia em Terra Sonâmbula
Algumas formas de pureza têm como pressuposto a arrogância. Terra Sonâmbula é
um texto que traz dentre seus temas de lastro a aprendizagem. De morte e linguagem. A
pedagogia, como o nome deixa implícito, é uma via de retirar a eventual empáfia do
conceito para nos abrir a essa infância do prazer e do espanto, a surpresa do ignoto. Aqui
temos um livro plástico, visual e táctil, onde a palavra sai da abstração do som, da voz, para
atingir o mais imediato e brutal dos sentidos : a visão. Siqueleto se encanta duplamente ao
fitar o nome grafado: vislumbra-se, desaparece. Trata-se, sobretudo, de um livro onde a

116
Russel Hamilton vem nos dar tal informação, em Literatura Africana, Literatura Necessária : “Outra
forma de expressão cultural de alcance comunal é o teatro, que ganhou preponderância no Moçambique
independente como um meio de informação emotiva : o teatro agit-prop cujos actores amadores na sua
maioria estudantes de nível secundário e trabalhadores interpretavam temas patrióticos e reivindicatórios,
empregando motivos musicais tradicionais” ( p.67 ).
linguagem ( e os cadernos, por metonímia ) se perfila feminina, e toda relação com ela é
absolutamente erótica, voluptuosa. Os cadernos preenchem uma falta fundante no miúdo
Muidinga. São uma chuva possível numa árida paisagem, fazendo o personagem senti-lo
como objeto sensual, um desejo erótico: O jovem passa a mão pelo caderno, como se
palpasse as letras”
117
.
A voluptuosa sensação táctil transfigura a relação: não era um menino com um
livro, mas um homem com sua amante, parafraseando Clarice. O livro é uma promessa: ali,
a linguagem se revela, com sua força encantatória. Ao revelar-se, também desvenda quem a
visita: Ainda agora ele se admira : afinal, sabia ler ? Que outras habilidades poderia fazer
e que ainda desconhecia ?”
118
No tatear da linguagem, Muidinga faz um strip-tease das palavras. Toma-as inteiras
e desfaz a roupagem das letras, experimenta sua nudez e os sentidos que preservam :
Então ele com um pequeno pau rabisca na poeira do chão : AZUL’. Fica a olhar
o desenho, com a cabeça inclinada sobre o ombro. Afinal, ele também sabia
escrever ? Averiguou as mãos quase com medo ( ... ). Mais uma vez contempla a
palavra escrita na estrada. Ao lado, volta a escrevinhar. Lhe vem uma outra
palavra, sem cuidar na escolha : LUZ’. um passo atrás e examina a obra.
Então, pensa: ‘a cor azul tem o nome certo. Porque tem as iguais letras da palavra
‘luz’, fosse o seu feminino às avessas
119
.
A linguagem se erotiza também na imantada feminilidade de suas imagens, de suas
figuras. Kindzu chega ao navio onde se encontra Farida, conduzido pelo duende, o tchóti.
Assim é descrita a embarcação: “Uma montanha negra, uma ilha de ferro e torres”.
120
A
feminilização do navio guarda coerência com uma imagem maior. Um navio-mulher, sobre
o qual “as ondas espumavam rendas brancas no casco”.
121
Mulher grávida de uma outra

117
COUTO, Mia. Op. cit. p. 41.
118
Idem, ibidem.
119
COUTO, Mia. Op. cit. p. 44.
120
COUTO, Mia. Op. cit. p. 73.
121
Idem, ibidem.
(Farida), cuja beleza “era de fazer fugir o nome das coisas”. A imagem erotizante nos faz
lembrar o poema de Maiakóvski:
PORTO
Lençóis de água sob um ventre pando.
Rasgam-se em ondas contra dentes brancos.
Amor. Lascívia. Como o uivo que escorre
das chaminés por gargalos de cobre.
No berço-embocadura barcos presos
aos mamilos de madres de ferro.
À orelha surda dos navios agora
rebrilham brincos de âncora. ( trad. Haroldo de Campos )
Um navio ornado por brincos de âncora, navio que também será uma concha
protegendo sua pérola, como veremos depois. Seu ventre inflado flui na onda que no casco
espuma rendas brancas. A fluência da água nos meandros da escrita vem enfatizar ou
consolidar essa emblemática feminina. A liquidez do texto é uma forma que quer
clonar o leitmotiv. Imagens bóiam no fluxo do texto, no discurso. Bóiam de forma
belíssima, por vezes melancólica, adormecido semblante de Ofélia. Terra Sonâmbula é
um texto que se compõe de fotogramas, como dizia Haroldo de Campos a propósito da
Odisséia ( e, aqui, mais uma semelhança entre o romance e a narrativa de Ulisses ). De fato,
a obra de Mia Couto é uma festa para os olhos. Seus personagens exercitam o olhar de
modo que muitas vezes as palavras lhes sejam prescindíveis. “Minha mãe abanava a
cabeça. Ela nos ensinava a sermos sombras, sem nenhuma outra esperança senão seguirmos
do corpo para a terra. Era lição sem palavra, ela sentada, pernas dobradas, um joelho
sobre outro joelho”
122
.

122
COUTO, Mia. Op. cit. p. 20.
Romance inteiramente fanomelódico, eis aqui o toque dos dedos, tela de
Michelangelo recuperada
123
, deixando entrever suas filiações, seus hipotextos
subliminares: os poetas orientais Tagore, Bashô, Li Po, dentre tantos.
A figuração do texto se elabora em torno das imagens bestiais. O seqüestro do
sonho leva consigo uma marcha sem destinos, um caminhar sonâmbulo, onde o movimento
se dá pelo instinto, recolhendo homens à primariedade de feras :
Gentes imensas se concentravam na praia como se fossem destroços trazidos
pelas ondas. A verdade era outra : tinham vindo do interior, das terras onde os
matadores tinham proclamado seu reino. Consoante as pobres gentes fugiam
também os bandidos vinham em seu rasto como hienas perseguindo agonizantes
gazelas.
124
As imagens entorpecem a razão e sideram o homem em sua constelação semântica.
Retomando no discurso um pouco do viés crítico, o narrador duvida da crença de outrora :
Lembro mais são as noites. Lembro as estrelas, longínquas vizinhas que não
dormiam. Lembro a lua se exibindo como medalha no decote da noite. Eu olhava
o astro, suas pratas. Maldiçoava minha sina : os cornos da lua sempre apontavam
para cima ! Meu pai me ensinara a ler as luas. Aquelas pontas, viradas para o alto,
eram o sinal que a desgraça continuava apostada em mim. E me marrecava na
canoa, ingênio, acrediteísta.
125
( o grifo é nosso )
No texto, as imagens variam, dobradiça entre a morte e a esperança,
acumulando-se e sinalizando sentidos pela compressão simbólica. A estaticidade e a
carência de sonhos não vêm à tona por uma via conceitual, apenas por sua
tonalização: “minha alma era um rio parado, nenhum vento me enluava a vela dos meus
sonhos. Desde a morte de meu pai me derivo sozinho, órfão como uma onda, irmão das
coisas sem nome”.
126
Por vezes, o país é comparado a uma baleia agonizante, da qual já se

123
Referência ao quadro a fresco, de 1508, A Criação de Adão, do pintor italiano Michelangelo.
124
COUTO, Mia. Op. cit. p. 67.
125
COUTO, Mia. Op. cit. p. 52.
126
COUTO, Mia. Op.cit. p. 26.
rouba a carne. A baleia engole as vagas como se fossem a esperança uma maré vazando. O
cenário do país não é apenas morte, o que o texto deixa claro, quando a rede retórica
lança imagens de putrefação : “As paredes, cheias de buracos de balas, semelhavam a pele
de um leproso”
127
, ou ainda : “Quem constrói a casa o é quem a ergue mas quem nela
mora. E agora, sem residentes, as casas de cimento apodreciam como a carcaça que se tira a
um animal”.
128
A condição humana transformada em bestialidade merece, da parte de Mia Couto,
uma fanopaica freqüência. Junhito, imagem da Independência, é reduzido a um galinheiro e
finda por aprender a ser galinha ( a perda da humana linguagem sinaliza uma fragilidade,
que faz mudar a alma de acordo com os caminhos em que anda ). Sabemos que a galinha
desempenha o papel de psicopompo nas cerimônias iniciáticas e divinatórias dos bantos da
bacia congolesa. Assim, no ritual iniciatório das mulheres xamãs entre os luluas, a
candidata a xamã, à saída da fossa onde cumpre sua prova de morte e de renascimento, é
considerada definitivamente entronizada quando um de seus irmãos suspende uma galinha
em seu pescoço: é através desse sinal que ela vai exercer, daí em diante, o poder de atrair
no mato as almas de médiuns defuntos, para conduzi-los e fixá-los ao de árvores a eles
consagradas.
O sacrifício da galinha para a comunicação com os mortos, costume espalhado por
toda a África negra, provém do mesmo simbolismo. O contato com os desencarnados é
essencial para a cultura africana e os ancestrais exercem poder decisivo na sua cotidiana
conduta. Junhito passaria, por esse viés simbólico, a ser o ponto de interseção, o elemento
mediúnico entre as dimensões. Por outro lado, a ave, no romance, surge sempre como
obstáculo, ser de mau agouro: Depois, avançou ameaças : já que eu tanto queria a

127
COUTO, Mia. Op. cit. p. 27.
128
Idem, ibidem.
viagem, num dado entardecer, me haveria de aparecer o mampfana, a ave que mata as
viagens. Estará de asas abertas, pousado sobre uma grandíssima árvore, disse ele”
129
.
Robert Moser, no seu artigo Terra Sonâmbula : manifestações de uma Odisséia
africana no Moçambique pós-independência, lembra que obstáculos ao cumprimento da
viagem, como o mampfana ( “ave que mata as viagens” ), são típicos dos textos de
contornos épicos, similares ao poema homérico:
( ... ) A prova de resistência, tanto física como psicológica perante grandes
obstáculos constitui um tema fundamental na poesia épica. ( ... ) Tais provas de
resistência também permeiam as histórias de Terra Sonâmbula, embora com
diferenças e particularidades determinadas pela própria natureza do livro
130
.
O mau agouro, de fato, se realiza na figuração da ave : o destino de Junhito não se
define no texto, Taímo encontra a morte e Kindzu abandona a família restante. Para fugir às
marcas de sua viagem, Kindzu semeava plumas e colhia pássaros, que apagavam o seu
rastro. A leveza do pássaro, então, retirava o peso do corpo e da pena.
As imagens para desenhar a paisagem romanesca são da fauna emprestadas. Baleias,
zebras e lagartos dão suporte à abstração, fazem concreto o que o imaginário quer tocar.
Essa animalização em Terra Sonâmbula não está ali gratuitamente, sem propósito.
Alegoricamente, Mia Couto mostra que o status do humano de nada vale quando a cultura é
nulificada. E, nessa aniquilação, os personagens do romance são quase que somente
natureza. O veio poético dos cadernos é a fronteira entre cultura e natura. O realismo de
Mia Couto se define na descrição árida, na pintura do homem em condição equivalente à de
animais : cabritos e elefantes, ratos e hienas.

129
COUTO, Mia. Op. cit. p. 55.
130
MOSER, Robert. Terra Sonâmbula : manifestações de uma Odisséia africana no Moçambique pós-
independência. In: Portuguese and Cultural Studies 10 : reevaluating Mozambique, Massachussets : Spring,
2003, p. 141.
O velho se senta numa clareira, na margem da antiga machamba. Recolhe em seu
redor secos restos de mandioca. É a única cultura que resta, a única que resistiu à
seca. Sacode as raízes e nota dentadas na casca.
- Merda ! Os ratos chegaram primeiro.
131
O caminho da liberdade tem obrigatórias passagens. Despir os homens da grossa
camada bestial que os envolve é uma delas. Processo moroso mas necessário, como queria
Nietzsche, de fazer cada indivíduo se transformar, pelo ato reflexivo, num dividuum e de
sobrepor à primeira natureza - a instintiva uma segunda, a da vontade. Kindzu encontra
um feiticeiro que, perfilado por um messianismo, discursa visionária, apocalipticamente. O
mundo, porém, não finda, antes se refina e purifica pela ascese a que o sofrimento
submeteu os individuais espíritos. Passado o presságio de catástrofes, uma orelha de
otimismo deixa-se entrever, “e surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da
primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram
capazes de nos arrancar”. Mas há uma duríssima condição : destilar-se o homem,
transformar-se em cristalina água : “Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos
deste tempo que nos fez animais”.
132
Mia Couto, em suas narrativas, ao cenário uma significação decisiva em sua
obra, mas de maneira muito sutil, subliminar. Uma leitura menos ligeira nos fará notar uma
recorrência aos elementos materiais da terra e da água. É na terra que vemos o lugar de
massacres e ruínas. Basta lembrar, para isso, a frase de abertura do romance : naquele
lugar a guerra tinha morto a estrada”. É um campo semeado, mas literalmente de vazio e
morte. A água é a saída possível, o que de maleável num diálogo indispensável com o
impermeável do real a-terra-dor. A alegoria do texto tem nesse exílio para a água o seu
lastro. O último capítulo de Terra Sonâmbula descortina-se dizendo-nos : “A paisagem

131
COUTO, Mia.. Op. cit. p. 63.
132
COUTO, Mia. Op. cit. p. 243.
chegara ao mar. A estrada, agora, só se tapeteia de areia branca”
133
. Em seu caráter nômade
buscando uma liberdade, o chão na amplidão do mar faz sua aposta (assim como Godido,
conto de João Dias, Terra Sonâmbula é uma narrativa do exílio). Relembrando Pessoa,
grande influência de Mia Couto, Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ mas nele é que
espelhou o u” (Mar Portuguez). A água é o espaço do poético, da voz autêntica contra as
vozes anoitecidas. Abril Despedaçado e Les Quatre Cents Coups, filmes de Walter Salles e
François Truffaut, respectivamente, não mostraram outra coisa.
Antes de mais nada, precisamos contextualizar os fatos e a escrita. A água de ser
flagrada como ausência, escassez. Moçambique não tem relação pacífica com o desfrute da
água. A água é, aqui, uma metáfora do sonho, sua representação pelo viés da escassez e do
possível. Moçambique dorme à beira-mar ou, para dizer com Pessoa novamente, à beira-
mágoa. A água está ali, é uma liberdade virtual porém difícil, essencialmente épica, como
toda fratura que se impõe a um real, como toda grande poesia diante da tirania da
linguagem. Taímo é sepultado nas águas (nas ondas). Há, no mínimo, duas narrativas
intertextualmente enlaçadas : o fruto interdito (Gênesis) e a do mar que se fecha, ambas
bíblicas. A água vem purificar a terra do mal possível. Como diz o indiano Surendra Valá,
as águas não separam, mas costuram o mundo. Como a poesia, que aproxima realidades à
primeira vista incompatíveis. Um dos motivos perenes do romance é a empresa épica de
ampliar o mundo, através do imaginário poético, da mestiçagem de raça e existência. O mar
recebe, em Mia Couto, um significado hierático, sendo um novo Hades em que os
antepassados se mantinham vivos :
E era como se naquele imenso mar se desenrolassem os fios da história, novelos
antigos onde nossos sangues se haviam misturado. Eis a razão por que

133
COUTO, Mia. Op. cit. p. 233.
demorávamos na adoração do mar: estavam ali nossos comuns antepassados,
flutuando sem fronteiras
134
.
Kindzu também espera que o pai pelo mar ganhe regresso: Telêmaco, deixando à
vista terras homéricas. No trecho acima, o mar passa a ter a função da poesia (sendo dela
uma metáfora, como dissemos) : suspender as barbáries da História e restaurar o mito
unificador. Deixar emergir a consagração de um instante, para falar com Paz. A
sobrevivência da terra mora na memória. É tentador o pensamento de que o indivíduo,
diante de uma árida História como a de Moçambique, sobrevive só na deslembrança, na
loucura
135
ou na partida infinita pelo mar. O esquecimento é uma bem-vinda neblina
quando a paisagem em volta acumula uma tonalidade de morte. Pessoa bem poderia ter
dito, se africano fosse : “Moçambique, hoje és nevoeiro. É a Hora”. Hora, sobretudo, de
caminhar numa senda nublada, que é melhor do que uma aterradora visão, que petrifica. A
imagem parece adequada : a destruída paisagem faz estátua, como também, pela memória,
olhar pra trás. Pedi isso por causa é melhor não ter lembranças deste tempo que passou.
Ainda tiveste sorte com a doença. Pudeste esquecer tudo. Enquanto eu não, carrego esse
peso...”.
136
Nesse mare magnum, temos uma metáfora da viagem, na qual cada sonho, para
trazer a voz de João Cabral, “é a última onda que o fim do mar sempre adia”. De fato, a
mobilidade da terra é apenas imaginária, fruto do desejo : “O que faz andar a estrada? É o

134
COUTO, Mia. Op. cit. p. 29.
135
A evasão se por várias vias. A loucura é também um jogo, um artifício de defesa, bem ao modo
hamletiano, que Virgínia e Surendra parecem utilizar contra a violência estrangeira. Em outros textos, aliás,
Mia explora a temática, qual no conto “A Rosa Caramela”, pertencente à coletânea Cada Homem é Uma
Raça. A arte é outro artifício de sobrevivência: “Nunca fui mancha-prazeres: tristeza sempre eu tratei no
remédio de uma canção”, diz Kindzu na página 163 do Terra Sonâmbula.
136
COUTO, Mia. Op.cit. p. 152.
sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permaneceviva. É para isso que servem os
caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”
137
, dirá Mia Couto na epígrafe do romance.
Na diáspora de Kindzu em busca dos naparamas, remos transformam-se em árvores,
areias fazem-se água e ele mesmo se converte em peixe. Sob o signo da água, ressoam as
palavras do feiticeiro: no mar serás mar. No entanto, como o fogo, o mar finda por ser um
elemento ambíguo. Nele também circulam as angústias:
138
“O mar: por que eu me achegava
nele se, até então, suas águas só me ofereciam sofrimento? Talvez que ali, no meio de tão
extensas securas, o mar fosse a fonte que trazia e levava todos os meus sonhos”.
139
No mar,
os obstáculos se sucediam, mas por suas águas é que havia uma réstia de liberdade.
Também as chamas são, para os moçambicanos, ora um elogio, ora a condenação definitiva
de Prometeu: entre o iluminar das fogueiras e o aniquilar dos incêndios, oscila um deus
entre a culpa e a redenção.
A natura impõe outros arquétipos ao imaginário do texto. A árvore, por exemplo,
surge como símbolo de revitalização : “Eu sou como a árvore, morro só de mentira. E agora
perante os dois inesperados visitantes ele repete as suas parecenças com as árvores que
renascem cada ano”
140
, dirá Siqueleto aos dois viajantes. A terra, entretanto, é que ganhará
maior densidade simbólica no decorrer do texto, o que se faz sinalizar no título. Contra o
exílio pelo mar, temos então a lição de Siqueleto: a do apego à terra, ao fundo da qual ele
desce, semente de gerar a nação futura. No romance, a terra é descrita de modo humano,
afetivo, apresentando uma nudez mortuária, não-erótica. Para Alain Gheerbrant e Jean
Chevalier, ela representa o aspecto feminino em oposição à masculinidade celeste,
simbolizando, desse modo, a função maternal. O erotismo é artifício da natureza para a

137
COUTO, Mia. Op. cit. p. 6.
138
Queremos deixar, invariavelmente, o substantivo no plural, para reportar ambigüamente aos sentidos
primários adormecidos no étimo latino : angustiae, desfiladeiros mortais que habitavam os mares.
139
COUTO, Mia. Op. cit. p. 129.
140
COUTO, Mia. Op. cit. p. 80.
perpetuação dos seres, uma armadilha para a procriação, diria Schopenhauer
141
. Espoliadas
as ciladas do erótico, a terra nada mais pode esperar senão a morte, o grão estéril : “Tudo
fora abandonado, as culturas se tinham perdido, castanhamente. A terra toda se despira,
esperando em vão receber o beijo do arado”.
142
A desertificação da paisagem se faz pela
escolha exata do vocábulo, sem fazer flutuar a matéria verbal. O advérbio castanhamente
vem fazer funcionar a máxima horaciana ut pictura poiesis : a palavra, aqui, é literalmente
uma tonalidade, tornando a frase uma captura pictórica. A terra é a principal personagem,
sonâmbula, com seu anseio de triunfo, de fecundidade:
Tudo acontecera na vizinhança do autocarro. Era o país que desfilava por ali,
sonhambulante. Siqueleto ardendo, Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando
gafanhotos, tudo o que se passara tinha sucedido em plena estrada.
143
Traço absolutamente mágico, a mobilidade do chão pode se resolver
racionalmente, por uma compreensão alegórica da fábula: Muidinga, à medida que lê,
móvel essa paisagem, como se fora de fato sonâmbula a terra. A paisagem muda à medida
que os cadernos se desvendam. O cambiar, o caminhar da terra ocorre “ de cada vez que ele
os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras
visões”.
144
A artecom a fé que supõe – montanhas e terras (co)move. Pois ao real faz ver
com outros óculos.
Terra, no romance, ganha também a acepção de nação. Daí a ênfase, nos parece,
que Mia Couto lança sobre a mobilidade do chão, já vislumbrada no título de sua narrativa.
Sonâmbulo, por sua vez, o se refere somente à caminhada, mas sobretudo ao estágio
imediatamente anterior à vigília, à lucidez. A metáfora, então, revela sua dimensão política:
a paisagem sempre é de pouca nitidez, embaçada pelo constante cacimbo, como num

141
Ver Metafísica do Amor, Metafísica da Morte.
142
COUTO, Mia. Op. cit. p. 62.
143
COUTO, Mia. Op. cit. p. 165.
144
COUTO, Mia. Op. cit. p. 121.
estágio vacilante entre o sono e o despertar: Moçambique, flutuante ilha à mercê da água. A
conquista da independência também supõe a capacidade de autogestão, o que não se
verificou na prática. Inúmeros moçambicanos, atualmente, numa declaração imediata e sem
a contemplação histórica, afirmam ter sido melhores os tempos coloniais. Portugal, ao se
retirar das terras africanas, também levou consigo a responsabilidade de gerência. Em
entrevista ao Pasquim, o então presidente de Moçambique, Samora Machel constata:
“Alguns o gostaram de cortar o cordão umbilical com o colonialismo. O padrasto se foi.
Como ficamos agora? Estavam habituados a alguém que os ‘protegesse’. Sentiram-se
órfãos com a independência real que conquistamos”
145
. A terra, dessa forma, se personifica,
revelando-se metáfora dos desorientados, estonteados homens :
Estontinhada, débil existencial, ela ia rodando, gemente.
- Pare, Euzinha, pare !
- Não vê que estou parada, o mundo é que está dançar ?
146
Diante de similar situação, Kindzu quer assumir uma responsabilidade de herói, na
esperança de dar ordem à terra estilhaçada e sem rumos. O romance, por esse aspecto,
assume características de epopéia moderna, movida pelo desejo do autor dos cadernos a
integrar o bando dos naparamas. Não é por outro motivo que bem observa Alberto da Costa
e Silva, na orelha da edição brasileira do Terra Sonâmbula, que “este é um romance de
cavalaria”. Utopias quixotescas são ali recuperadas : Nhamataca, filho das águas, quer
construir um rio projeto desmedido ( “demasiado louco”, observa Muidinga ), bem ao
modo cervantino. As personagens, aliás, buscam, para os labirintos da guerra, saídas de
várias formas, possíveis e impossíveis, lembrando o cavaleiro de triste figura. A querência
pela solução com as próprias mãos é sintoma de um mundo e um tempo em que a lei é
estrangeira palavra, permitindo ao espaço o ressurgimento de um medievalismo tardio. Mia

145
MACHEL, Samora. Entrevista. Pasquim. São Paulo, jun 1979, p. 2.
146
COUTO, Mia. Op. cit. p. 231.
Couto, de declarada sintonia com Guimarães Rosa, mais uma vez se aproxima do escritor
brasileiro, que repõe ao imaginário moderno a Idade Média do sertão. Como dissemos em
outro texto,
é percorrer um solo rastreado dizer que o universo do sertão é uma versão
moderna da Idade Média. São transmudados em valores de nobreza os atos de
violência e barbárie. O coronelismo, estrutura social da primeira república
brasileira, representada enfaticamente em Zé Bebelo, reflete uma forma atualizada
de um feudalismo anacrônico. O romance, aliás, faz a todo instante uma
referência medieval, na oralidade dos causos, nas cantigas de cordel ou a na
recuperação textual de escritos como a novela de cavalaria História do
Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França .
147
Assim, também, Terra Sonâmbula. O esteio épico foi muito bem observado por
Moser, em seu referido texto no qual aproxima o moçambicano às narrativas de Homero.
Com efeito, as semelhanças são inúmeras e não exatamente casuais. Em diálogo com
Assane, Kindzu é orientado a seguir viagem. O ritual de partida é feito de modo no mínimo
curioso : “Me deram remos, água e mantimentos para prosseguir viagem. Antes de partir,
porém, bebi e dancei em cerimônia dos espíritos”
148
. A hospitalidade dos habitantes, as
libações do hóspede, a seqüência da cerimônia para a partida são uma completa
recuperação de Homero. A partida de Telêmaco, com o apoio de Atena, em busca de
Odisseu é assim narrada :
O vento inflou o seio da vela, e a vaga, fervilhando em torno do leme, rugia
fortemente ao avanço do barco, que sobre as ondas corria seguindo sua rota. Após
firmarem o aparelho no negro barco veloz, encheram crateras de vinho até as
bordas e libaram aos deuses imortais e eternos, sobretudo à filha de Zeus, de
olhos verde-mar. E o barco rompeu seu caminho pela noite toda mais a
madrugada
149
.

147
RIOS, Peron. Grande Sertão : sinuosa travessia. In:
http://www.abec.ch/Dokumente/GRANDE%20SERTAO.pdf
148
COUTO, Mia. Op. cit. p. 71.
149
HOMERO. Odisséia. Trad. Jaime Bruna. São Paulo : Cultrix, [ 1996 ou 1997 ].
A semelhança é espantosa, mas distinções essenciais: a concisão de Mia Couto,
em contraste com a descrição enfática de Homero, revela o tempo do escritor de
Moçambique, inserido na estética e nos valores da modernidade. Além disso, o herói
Kindzu não tem a imagem imbatível de Telêmaco. As epopéias atuais desnudam o herói de
sua aura imortal, e lhe acrescentam as fraquezas de sua humanidade
150
. De fato, Kindzu vai
confessar em seus cadernos : “Bebi, porém, bastante de mais. Pois, pela madrugada, o
me tinha corpo. Tiveram que me carregar pelos braços, meter no concho e dar um empurrão
para afastar o barquito”
151
. A filiação com o épico não se reduz a um exemplo. Mia Couto
narra as aventuras de Tuahir e Muidinga por via dos cadernos (e possivelmente com o
acréscimo imaginativo do miúdo), pondo a par do leitor as venturas de Kindzu. É no
caderno Matimati, a terra da água, que está prestes a iniciar-se, como foi dito
anteriomente, um mise-en-abîme, um espelho que se fita noutro espelho, multiplicando-se
infinitamente. Assim como em Homero, todos os personagens encontrados contam sua
história. Siqueleto, Farida, Assane reproduzem a Muidinga, Tuahir e a Kindzu o seu
passado. As imagens bestiais, há pouco referidas, também nos reportam à helênica epopéia.
Os animais e suas formas de surgimento indicam os humanos destinos. A hiena surge aos
dois prisioneiros, espreitando-os, sentada. É quando, ciente do significado do fato, indaga o
narrador : “Que vinha ali fazer aquele bicho sem aprumo, despromovido das traseiras ?”.
Dante, aqui e ali, também é pelo texto rememorado. Em Terra Sonâmbula, o mundo dos
mortos é formado de círculos superpostos : “Fica saber : o chão deste mundo é o teto de um
mundo mais por baixo. E sucessivamente, até ao centro onde mora o primeiro dos
mortos”
152
. Em outro momento, flagramos Kindzu em retorno pelas águas, vislumbrando

150
Exemplo mais claro do que dizemos está no grande épico moderno, o Ulysses, de James Joyce, onde
Leopold Bloom se mostra um homem comum, cotidiano, sem as qualidades superiores exigidas por
Aristóteles, na sua qualificação do gênero épico.
151
COUTO, Mia. Op. cit. p. 71.
152
COUTO, Mia. Op. cit. p. 51.
uma fogueira. Súbito, sobrevém a chuva e cai um anão ( um tchóti ) no barco do viajante.
Ali, “nel mezzo del cammin della vita, ritrovatto per una selva oscura”, está Kindzu e é
conduzido pelo anão/Virgílio até Farida/Beatriz : “Gritei para que o tchóti me explicasse o
motivo de tais vozes, mas o mar me abafou a pergunta. Fui seguindo o anão, ele caminhava
induvidável, parecendo conhecer os segredos do navio”
153
. Mais uma vez ecoa no texto a
genealogia épica, tendo recuperada a figura do guia a ciceronear Dante, na Commedia.
Conhecendo as condições em que o épico sempre se manifestou, não pode a
literatura de Mia Couto representar uma surpresa. Diante da fractalidade em que se achava
Moçambique àqueles momentos imediatamente posteriores à guerra, o épico veio atuar
como um colágeno, querendo dar forma a um corpo. Nesse ímpeto de desenhar as imagens
de um povo, o imaginário popular vem dar à escrita o seu suporte, porque, como diz
Stalloni,
texto fundador, a epopéia ancora-se na história de um país, do qual ela fornece a
crônica, amplamente alimentada por mitos e lendas. Mas, no decorrer do tempo,
essa representação dos fundamentos do mundo desliza mais para o lado da lenda,
até vir a colocar-se deliberadamente no terreno do imaginário maravilhoso
154
.
Assim Homero, Camões ou a Idade Média francesa. Terra Sonâmbula guarda o
“sentido da história” a que se refere o mesmo Stalloni. O épico narra um tempo nublado,
turvo e belicoso, onde a fé vem lastrear a procura de um equilíbrio pacífico. “Ela é sempre,
ao menos um pouco, a narrativa do nascimento de uma nação”
155
, acrescenta o crítico
francês. Já sem as tintas da maquiagem colonial, Moçambique procura, via Muidinga, os
traços de seu próprio rosto.

153
COUTO, Mia. Op. cit. p. 74.
154
STALLONI, Yves. Os Gêneros Literários. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro : DIFEL, 2001. p. 78.
155
STALLONI, Yves. Op. cit. p. 81.
Jane Tutikian e Vivian da Silva admitem que o romance apresenta esse contorno
épico, mas impondo a restrição de que se trata de um texto que não olha para trás, cantando
o passado:
Podemos chamá-la assim [ chamar a escritura de epopéia ] pois, como um texto fundante, esse
romance se ocupa em dar conta da ‘formação’ de seu país, caracterizando-o e dando-lhe um mito; mas
convém lembrar que Terra Sonâmbula é escrito utilizando o presente e o texto se projeta para o futuro, não se
limitando a explicar o passado
156
.
Ora, ao menos duas objeções temos a fazer sobre a observação. Primeiro, como
bem Käte Hamburger, o épico, ao narrar o passado, o faz recuperando suas glórias,
guardadas nos alforjes das experiências históricas de um povo. Que glórias se poderão
cantar no cenário histórico denunciado pelo texto? Em Moçambique, o tempo começa ali e
as sementes do porvir ainda estão sendo plantadas. O próprio romance nos traz essa
ausência de passado: “Afinal, nasci num tempo em que o tempo não acontece”
157
. O
esforço épico é de outra ordem, porque o se trata de exaltar feitos de uma nação que se
firmou, mas de levantar as pilastras do que está reduzido a ruínas. Os sacrifícios de Tuahir e
de Kindzu, a rigor, foram todos em função de Muidinga, metáfora do futuro, entregando ao
garoto a responsabilidade de dar uma positiva seqüência à História. Em segundo lugar, se
um gênero, tal qual os idiomas, não tem alteração, já pode estar cheirando a cadáver.
Revitalizar o épico significa, invariavelmente, emprestar-lhe novas formas. O próprio
gênero “romance” é considerado por muitos como uma versão moderna da experiência
épica: “Jacob Burckhardt foi um dos primeiros a advertir que a épica da sociedade moderna
é o romance”
158
, nos lembra Octavio Paz.

156
TUTIKIAN, Jane ; SILVA, Vivian Ignes Albertoni da Silva. Viagem para Lembrar o Esquecimento de um
Povo ou o Desatento Abandono de Si ( Um Estudo de Terra Sonâmbula de Mia Couto ).
157
COUTO, Mia. Op. cit. p. 27.
158
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 68.
Os avanços do pensamento o de pouca valia, quando não a possibilidade de o
trazer à luz por meio de uma vigorosa expressão. Parafraseando Brecht, o pensar tem na
linguagem as margens que o comprimem. Com essa consciência da forma, Mia Couto
elabora o seu texto, dando ao manejo frasal, como dissemos antes, uma atenção poética:
um investimento no corpo da palavra, na sintaxe, na reimantação semântica, exercitando
as potencialidades gestálticas do leitor. Não raro, tendo duas palavras por material fabrica
uma outra que vem iluminar de modo diverso aquelas que lhe serviram de matéria-prima:
“E me marrecava na canoa, ingênio, acrediteísta”
159
. Essa mescla vocabular finda por ser
uma figura, uma analogia com a mestiçagem cultural de Moçambique.
Trazendo novamente o tema das fronteiras de gênero no texto, dizemos que Mia
Couto a sua prosa um tratamento de poesia, onde o ritmo e a imagem sensualizam o
discurso, convencendo, talvez, mais do que um jogo articulado de idéias. “As imagens
humanizam, as idéias não”
160
, diria Carlos Nejar. É próprio da tradição prosaica o desfile
de idéias” de que nos fala Octavio Paz. Por tal razão, Valéry dirá que a prosa é o andar
( marcher ), ao passo que a poesia é dançar ( danser ). É quando a matéria verbal se explora,
com assonâncias e cesuras, aliterações e hipotiposes que “a prosa se nega a si mesma; as
frases não se sucedem obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas
pelas leis da imagem e do ritmo. um fluxo e refluxo de imagens, acentos e pausas, sinal
inequívoco de poesia”
161
. Convém, para ilustrar o que ora dizemos, buscar um fragmento
de escritura. Na abertura do nono capítulo de Terra Sonâmbula, “Miragens da Solidão”,
Mia Couto utiliza inúmeros recursos formais do gênero lírico :

159
COUTO, Mia. Op. cit. p. 52.
160
NEJAR, Carlos. Caderno de Fogo : ensaio sobre poesia e ficção. São Paulo: Escrituras Editora, 2000. p.
18.
161
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo : Perspectiva, 1996. p. 15.
Olhando as alturas, Muidinga repara nas várias raças das nuvens. Brancas,
mulatas, negras. E a variedade dos sexos também nelas se encontrava. A nuvem
feminina, suave : a nua-vem, nua-vai. A nuvem-macho, arrulhando com peito de
pombo, em feliz ilusão de imortalidade
162
.
No trecho, fica o desejo de repensar, desfazer apartheids étnicos e sexuais. Porém,
importa menos a mensagem dita do que a forma pela qual é arquitetada, princípio da função
poética de Jakobson. Com o encantamento poético, Muidinga observa a tonalidade das
nuvens. O narrador, incorporando o extasiar da personagem que descreve, numa forma
velada de discurso indireto-livre, retira da natureza física similitudes com a realidade
humana. Além de entregar, aqui, uma flagrante riqueza imagética, Mia Couto devolve à
lírica seu sentido etimológico. No primeiro período, a cesura oscila entre a segunda e a
terceira sílaba poética. O período seguinte preferência a um crescendo fanopaico, pela
mudança de matiz da nuvem em vislumbre : a música pediria uma inversão entre os
adjetivos negras e mulatas, mas parece querer o escritor enfatizar a passagem gradual da
cor preclara à obscura. Provisoriamente, o canto lugar à pintura. O que, entretanto, mais
chama a atenção do leitor é a exploração do corpo verbal no quarto período paragráfico.
Pelo jeu de mots nua-vem, nua-vai, temos a um só tempo a utilização poética de som,
imagem e idéias, frase fanologomelódica, a perfeição que um poema poderia almejar, diria
Ezra Pound. Observar a nuvem com atenção é desnudá-la, flagrar suas formas sem outro
ornamento que a remodele : nuvem nua. A qualidade de andarilha também é enfatizada
nesses versos. Nosso automatismo comunicativo esperaria a seqüência nua-vai, nua-vem,
mas Mia Couto a inverte, também para criar uma rima interna entre a expressão nua-vem e
o adjetivo suave, que a precede. O período que finaliza o trecho alia a percepção analógica
(o desenho da nuvem lembrando a ingênua valentia de um peito de pombo) a uma finíssima
ironia contra a prepotência patriarcal do mundo em geral e, em particular, da sociedade

162
COUTO, Mia. Op. cit. p. 185.
moçambicana
163
. No exemplo, metonímia de toda sua obra, Mia Couto forja seu discurso
como um campo magnético, energizando aliterações com o fonema v ou com o fonema p
do período final.
Novas formas de linguagem forçam as portas da memória, deslocam da mente suas
paredes e exortam outra sensibilidade. O lugar-comum é a expressão “que cai como uma
luva”, não exige esforço nem explora a flexibilidade dos tecidos. A mera reprodução relaxa
a inteligência, é a inteira indiferença, o sono sem sonhos do entendimento.
Laborar linguagem e figuras de modo obsessivo é o que distingue Mia Couto dos
outros escritores de seu chão. A linguagem tem, no romance, uma energia de mistério e
encanto, voltando a atenção para a palavra hierática e fundadora do real :
- Que desenhos são esses ? , pergunta Siqueleto.
- É o teu nome, responde Tuahir.
- Esse é o meu nome ?
O velho desdentado se levanta e roda em volta da palavra. Está arregalado.
Joelha-se, limpa em volta dos rabiscos. Ficou ali por tempos, gatinhoso, sorrindo
para o chão com sua boca desprovida de brancos. Depois, com voz descolorida
trauteia uma canção. Parece rezar
164
.
A linguagem como revelação do sagrado, hierofania, se torna quase uma evidência,
se olharmos para suas manifestações, no cotidiano ou na literatura : Riobaldo, como tantos
de nós, evita dizer “diabo”, porque o nome evoca o referente. Assim, atribui ao demônio
inúmeros epítetos : Coisa-Ruim, O-Que-Diga, o Tinhoso, etc. A palavra passa a atuar como

163
Terra Sonâmbula é um romance que deseja desestabilizar os modelos de tirania a que seus personagens se
expõem. Ali não escolhas a ser feitas. Como em todos os seus livros, sobretudo o último ( 2004 ), O Fio
das Missangas, a mulher está à espera, submissa. A canção de Chico Buarque, Mulheres de Atenas, poderia
ser uma loa de quase todas as personagens femininas de Mia Couto. Romão Pinto, cujo sobrenome parece
mais uma ironia do escritor, interdita da esposa liberdades e constrange em seus domínios a hóspede Farida. O
quadro é similar ao que Gilberto Freyre, em obras como Sobrados e Mocambos ou ainda em Casa-Grande e
Senzala, desenhou: o antigo descomedimento sexual do português com seus colonos é novamente observado.
164
COUTO, Mia. Op. cit. p. 84.
tabu, como nos diz Marilena Chauí. Aliás, fazendo menção à linguagem como uma
manifestação do religioso, ela afirma :
A linguagem tem um poder encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o
sagrado e o profano, trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo,
ou, como acontece com os místicos em oração, tem o poder de levar os humanos
até o interior do sagrado. Eis porque, em quase todas as religiões, existem
profetas e oráculos, isto é, pessoas escolhidas pela divindade para transmitir
mensagens divinas aos humanos
165
.
Siqueleto liberta Muidinga e Tuahir da armadilha e solicita que seu nome na árvore
seja gravado: “Ele queria aquela árvore para parteira de outros Siqueletos, em fecundação
de si”
166
. Ali a palavra posta iria parir outros Siqueletos, e a aldeia permaneceria viva na
seiva da árvore e da língua.
Compreendendo a energia evocadora que a palavra armazena, Mia Couto crê no
nome enquanto um presságio ( Nomen omen ). A onomástica é uma forma de significar: o
nome guia o destino daquele que o recebeu, numa relação determinista ou profética. Alice
indaga a Humpty-Dumpty: “- Deve um nome significar alguma coisa?”, ao que lhe
responde ele: - Claro que deve. O meu nome significa a forma que tenho e que é, aliás,
uma forma bem atraente. Com um nome como o seu, você pode ter qualquer forma”
167
. Em
Terra Sonâmbula, Farida, Siqueleto e Nhamataca vêm ser exemplos desse investimento
verbal: o nome “Farida” é pérola, em árabe, ou ainda, único, sem par. Em persa vai
significar “beleza incomparável”. No romance, de fato, Farida é pérola, fechada na concha
de seu navio. E de uma beleza de fazer fugir o nome das coisas”. Ao mesmo tempo,
poderíamos interpretar a partir de um hibridismo das nguas inglesa e portuguesa : far +
ida: aquela que vai ao longe. E que longe quer estar: Um barco desse tamanho não pode

165
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2003. pp. 148-9.
166
Idem, ibidem.
167
CARROLL, Lewis. Através do Espelho e o que Alice encontrou lá. Trad. Sebastião Uchoa Leite. 2.ed. Rio
de Janeiro, Fontana-Summus, 1977. p. 192.
ser esquecido. Os donos virão rebocar esta carcaça, eu irei junto. Para longe, muito longe,
Kindzu”.
168
Ou ainda: “Desde então ela queria cumprir um sonho antigo: sair dali, viajar,
para uma terra que ficasse longe de todos os lugares”
169
. Farida, ida para além dos vivos, é
um espírito que insiste na ternura de viver. Siqueleto, por sua vez, graças ao tipo físico,
“lembra um esqueleto e até o facto de ter tirado os dentes todos, porque são os dentes que
convidam à fome, justifica a parecença que lhe o nome, Siqueleto, corruptela de
esqueleto”
170
, nos esclarece Fernanda Cavacas. Nhamataca, o fazedor de rios, com a
acepção “corpo de terra ” no nome ( nhama: carne, corpo, nos dialetos do norte de
Moçambique + mataka: terra, em niúngue e na língua macua ), o líquido viria a ser
ungüento à sua chaga. A respeito disso, mais uma vez recorremos a Cavacas:
Embora ele seja filho das águas, resultado do amor de duas vidas inteiras,
abandonadas para sempre num barquito sem rumo, a dívida que ele quer pagar a
esse tempo mais antigo que o passado é gerar um rio porque talvez esse curso,
nascido a golpes de sua vontade, traga de volta o sonho àquela terra mal
amada
171
.
A partir do projeto do personagem Nhamataca, Mia Couto recupera o mito da
penalidade contra projetos de dimensões divinas. “Ruíram as paredes, desabou-se o teto”,
porque semelhantes empresas a um deus pertencem, sendo a morte o seu corolário. A
adjetivação redundante demonstra o estado de espírito das invisíveis divindades, sua
violenta represália: “Nhamataca tombando na torrente do furioso regato. O velho e o moço
querem segurar o corpo do covador, mas a corrente, redemoníaca, cresce em fúrias
desordenadas. E Nhamataca desaparece, misturado nas súplicas dos outros, o trovejar dos

168
COUTO, Mia. Op. cit. p. 118.
169
COUTO, Mia. Op. cit. p. 99.
170
CAVACAS, Fernanda. Mia Couto. Um Moçambicano Que Diz Moçambique em Português. 2002.
( Doutorado em Letras ) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2002. p. 467.
171
CAVACAS, Fernanda. Op. cit. pp. 467-8.
céus e o gorgolejar do rio, seu descendente”.
172
Mia Couto nos dá a ver uma Babel
revisitada, afinal, “o sujeito desafiava os deuses que aprontaram o mundo para os viventes
dele só se servirem, sem ousarem mudar a sua obra”
173
.
Observando à distância, como se fora uma tela, concluímos que o texto de Mia
Couto é essa comunhão de linguagens : nele, tintas se renovam pela mistura de todas as
outras, ultrapassando a erudição do pintor. O escritor de Moçambique age como a ama
negra, que “fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as,
tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as
sílabas moles”.
174
A reunião desses vários ingredientes dão ao texto um novo sabor, um
inteiro prazer. Terra Sonâmbula é exatamente isso: aquele texto de prazer de que nos fala
Roland Barthes, onde existe a coabitação das linguagens de forma consonante e pacífica,
que elabora sempre suas torres através das quais possa, do alto do campanário, ver o mundo
com outra amplitude. E aqui reside a função de todo escritor: inverter o mito bíblico,
transformar a punição em graça e, da pluralidade das línguas recriar, de fato, uma Babel
feliz.

172
COUTO, Mia. Op. cit. p. 108.
173
COUTO, Mia. Op. cit. p. 105.
174
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 43.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 387.
EPÍLOGO
livros que, como o canto de Orfeu, podem amolecer rochas e encantar ninfas.
Aqueles que, artesanalmente, saem das mãos de Mia Couto pertencem, por todas as razões
que enfatizamos em nosso estudo, a esta biblioteca seleta. O escritor moçambicano devolve
à palavra “estética” o seu sentido primordial: refinamento do sensível. Por essa razão,
romances como Terra Sonâmbula devem ter na leitura uma prioridade: a concentração
sobre a linguagem. Ainda que a literatura sempre aponte para referentes sociais, históricos
ou religiosos, é sempre como obra de arte que ela deve ser ignorada ou exaltada. Em
tempos nos quais o vale-tudo cultural ganha espaços, onde o cânone é repensado a partir de
esdrúxulos critérios, Mia Couto vem ser uma dobradiça, revelando que é possível debater
situações históricas de crise sem recorrer aos recursos fáceis e obtusos do panfletismo pós-
colonial.
Recuperando uma imagem tão freqüente no Terra Sonâmbula, podemos dizer que,
excepcionalmente - na água parada de tudo o que se escreve todos os dias, com talento
pouco ou nenhum –, surgem pedras que geram ondas, levando sua mensagem às margens
mais longínquas, consagrando instantes em sua azulada superfície lustral. Ruídos em
demasia são uma outra manifestação do silêncio. Todas as teses escritas não substituirão
jamais a criação e nem dirão com justeza o que faz dela uma obra luminar. Apenas
sinalizam, tentam percorrer os caminhos traçados pelo criador. Mas eis que ele nos abate e
confunde nossa linguagem, sempre de curto alcance para definir a obra por inteiro. Isso
porque as grades da teoria não conseguem, com todo o seu esforço, aprisionar o pássaro da
poesia. O mistério da criação, desse modo, continuará intacto.
Num romance cuja beleza é de “fazer fugir o nome das coisas”, personagens se
tornam emblemas ou exemplos. Como esquecer a solidão de Farida, sua punição de ter que
se desfazer dos filhos, sua ânsia de ir ao longe, de novos mundos e esperanças? A de
Nhamataca também é das mais líricas que produziu a literatura, talvez pela ingenuidade que
comporta: construir um rio para acariciar as feridas da terra. Ou ainda a hipnose de
Siqueleto diante do seu nome escrito, a epifania da palavra, o seu encanto... E todas essas
imagens sempre sedimentadas por uma linguagem que não cessa de significar.
Então, pode o leitor indagar a razão pela qual, frente às inefabilidades teóricas,
continuamos escrevendo, pretendemos continuar ensaiando em torno desses grandes
criadores. Talvez por este simples mas decisivo motivo: impossível não responder com
outro texto a um texto imantado. Eis a grande força do discurso literário, sua fatal
singularidade: ele não vence necessariamente pela razão dos argumentos, mas sobretudo
pela força do contágio, como dizia Malraux. Como toda escrita de Mia Couto já não
surpreende ( para a alegria de nós todos ), é quase uma certeza o prosseguir do nosso
estudo. E será de nosso intento encontrar um verbo luminoso que venha clarear o espírito
da letra, que porventura não pudemos dizer, e ainda é a carne do silêncio.
.
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TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
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TUTIKIAN, Jane ; SILVA, Vivian Ignes Albertoni da Silva. Viagem para Lembrar o
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