Depois, sente a mão de seu pai lhe afagando a cabeça. Olha o seu rosto e
vê que, afinal, seus olhos eram sábios. Foi como se, repente, toda a bondade
dele ficasse visível, redonda.
- Pai, por que nunca me mostraste como eras, dentro de ti?
- Tinha medo, filho. Não podia mostrar esse defeito e dizer : olha este
coração que nunca cresceu !
Seu pai estava ali, grande, sem mentira. Pela primeira vez alguém lhe
dava abrigo. O mundo se estreava, já não havia escuro, não havia frio.
59
É preciso lembrar que Tuahir se recusava à entrega dos afetos, e que, por sua
vez, Muidinga não percebia o amigo como pai. Nas “mentiras” da representação,
fluem as verdades silenciadas. Ao contrário, portanto, do que pensava Platão, é
possível haver mentiras de natureza profundamente ética: eis a raiz de toda grande
literatura. Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, indaga ao leitor:
Será que a Odisséia não é o mito de todas viagens ? Talvez para
Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não existisse, talvez ele narrasse
a mesma experiência ora na linguagem do vivido, ora na linguagem do
mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande, sempre é
Odisséia
60
.
A teia de Terra Sonâmbula se costura no recontar de estórias
61
, na
recuperação da poesia mítica. A narrativa ilude a carência e alarga o real estreito dos
( sobre ) viventes: “Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos
improvisos. As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o
mundo”
62
.
Empresas épicas se instauram – o que será mais adiante aprofundado -, como a
do sujeito que escava, incansavelmente, para fazer nascer um rio ou ainda, de eco
profundamente homérico, as passagens por várias terras como Matimati, onde se
59
COUTO, Mia. Op. Cit. P. 188.
60
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo : Cia. das Letras, 1998. p. 24.
61
Segundo o novo acordo ortográfico, “estórias” não figura mais no vocabulário da língua normativa.
No entanto, preferimos manter a distinção, que a língua inglesa guarda ( story, history ), uma vez que o
próprio Mia Couto assim registra o termo em sua escrita.
62
COUTO, Mia. Op. cit. p. 18.