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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE LETRAS E LINGÜÍSTICA
LIDIANE MARIA FERREIRA
A PRESENÇA DA ÁGUA E DO ELEMENTO ERÓTICO NA POESIA DE
FEDERICO GARCÍA LORCA
Uberlândia
2008
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LIDIANE MARIA FERREIRA
A PRESENÇA DA ÁGUA E DO ELEMENTO ERÓTICO NA POESIA DE
FEDERICO GARCÍA LORCA
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Teoria Literária da
Universidade Federal de Uberlândia, como
exigência para obtenção do título de Mestre
em Letras.
Linha de pesquisa: Poéticas do texto
literário: cultura e representação.
Área de concentração: Teoria Literária.
Orientadora: Profª. Drª. Irley Margarete
Cruz Machado.
Uberlândia
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
F383p
Ferreira, Lidiane Maria, 1982-
A presença da água e do elemento erótico na poesia de
Frederico
García Lorca / Lidiane Maria Ferreira. - 2008.
101 f. : il.
Orientador : Irley Margarete Cruz Machado.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de
Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Letras.
Inclui bibliografia.
1.Poesia espanhola – História e crítica – Teses. 2.Amor na
literatura-
Teses. 3. Garcia Lorca, Frederico, 1898-1936 – Crítica e
interpretação –
Teses. I. Machado, Irley Margarete Cruz. II. Universidade
Federal de Uberlândia. Programa de Pós-
Graduacão em Letras.
III. Título.
CDU: 860(091)
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação /
mg / 07/08
Àqueles que amo, e que me sustentam em meu percurso:
minha mãe, minha filha e meu companheiro.
AGRADECIMENTOS
Àquele que tudo provê, sem o qual não há inteligência nem vida sobre a terra.
À minha família, pelo apoio, incentivo e compreensão.
À Irley Machado, pela disponibilidade e atenciosa orientação.
As agências de fomento que possibilitaram a realização deste mestrado.
E por fim, a todos os professores que me orientaram durante o curso e contribuíram
para o meu crescimento intelectual e humano durante esse período.
“Eu era uma mulher ferida pelo fogo, cheia de chagas por
dentro e por fora, e seu filho era um pouquinho de água, ...mas
o outro era um rio escuro, cheio de ramagens... e me mandava
centenas de pássaros que me impediam de andar e
derramavam orvalho nas minhas feridas de mulher fraca e
abatida, de moça acariciada pelo fogo...”
Federico García Lorca
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é verificar como a água, e os demais elementos da natureza, se
constelam na obra poética de García Lorca, através de evocações eróticas, que aparecem de
maneira simbólica nos poemas. Sabe-se que o mbolo é algo que está inserido em nosso
meio social, cultural e psicológico e está presente no centro da nossa vida imaginativa e,
em nossa vida como um todo. São os símbolos que revelam os segredos do inconsciente.
García Lorca foi um poeta que utilizou elementos simbólicos ligados à natureza para
produzir imagens poéticas. A água é algo bastante recorrente em suas obras, e um elemento
marcante que através de sua simbologia vem expressar inúmeras imagens e dar diferentes
conotações a sua produção literária. Associada ao útero feminino capaz de gerar vida, ela
tem valorização feminina, sensual e maternal, sendo a água do lago, noturna, leitosa e
lunar, uma manifestação da libido feminina que desperta. As sensações que temos quando
estamos em contato com a natureza e seus elementos podem trazer uma carga erótica, se
considerarmos que o erótico vai além do sexual. Em Lorca há uma relação mútua entre o
erotismo e a água. A imagem do banho feminino vem carregada de erotismo, como se pode
constatar em Cacida da moça dourada. Desta forma, a mulher e a água juntas são
elementos associados facilmente ao erotismo, elemento que aparece na obra lorquiana de
forma sublimada. O erotismo se apresenta através de imagens poéticas, metáforas ricas,
percebidas a partir de uma leitura aprofundada. Para desenvolver o trabalho utilizamos um
corpus que se limita a duas obras poéticas de Federico García Lorca: Livro de poemas e
Diva de Tamarit, desses dois livros foram selecionados os seguintes poemas: “Cacida da
moça dourada”; “Mar”, “Meditação sob a chuva”, “Chuva”, “Sonho”, “Amanhã”,
“Madrigal de verão”, “Gazel do amor imprevisto”, “Elegia” e “Cacida da mulher
estendida”.
Palavras-chave: 1. Poesia espanhola, 2. História e crítica, 3. Amor na literatura, 4.García
Lorca, 5. Crítica e interpretação.
RÉSUMÉ
L’objectif de cette étude est de vérifier comment l’eau et d’autres éléments de la nature
sont mise em action dans l´oeuvre poétique de García Lorca. Ils apparaissent comme
évocations erótiques, de façon symbolique dans des poèmes. Il est connu que le symbole
est ancré dans notre environnement social, culturel et psychologique et se trouve même
dans le centre de notre vie et de notre imagination. Les symboles révèlent les secrets de
l’inconscient. García Lorca est un poète qui utilise des nombreux éléments liés à la nature
dans le but de produire des images poétiques. L’eau est un symbole qui manifeste de
nombreuses connotations dans sa production littéraire. Le sentiment que nous avons
lorsque nous sommes en contact avec la nature et ses éléments peuvent apporter une charge
érotique, compte tenu du fait que l’érotisme va au-delà de la sexualité. Chez Lorca, il a une
relation mutuelle entre l’érotisme et l´eau, comme on peut le voir dans “Cacida de la fille
d’or”. Ainsi, les femmes et l’eau sont des éléments facilement associés à l’érotisme. Cet
élément apparaît dans les travaux de Lorca de façon sublimée. Le poète utilise les éléments
naturels comme des symboles, à travers des métaphores du désir et d’un érotisme, centre
dans des forces de la terre. Pour realiser ce travail nous avons choisi un corpus qui se
trouve dans le Livre de Poémes et Divã de Tamarit, et les poèmes suivants: “Cacida de la
fille d’or, “Mèr”, “Meditation sur la pluie”, “Pluie”, “Dream”, “Demain”, “Madrigal
d’été”, “Gazelle de l’amour inattendu”, “Elegia” et “Gazelle de la Femme étendue’.
Mots clés: 1. Poésie espanhole, 2. Histoire et critique, 3. Lamour dans littérature, 4. García
Lorca, Federico, 5. Critique et interpretation.
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................08
RÉSUMÉ....................................................................................................................09
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................11
2. REFLEXÕES TEORICAS.......................................................................................18
2.1. Os símbolos.................................................................................................................18
2.2. Água, elemento material simbólico.............................................................................23
2.3. O erotismo...................................................................................................................26
3. A ÁGUA E SUA SIMBOLOGIA NA POESIA LORQUIANA.............................31
3.1. A água existencialista..................................................................................................31
3.2. A água sensorial..........................................................................................................35
3.3. A água da fonte como confidente................................................................................40
3.4. A água como elemento erótico....................................................................................42
3.5. A água que purifica e regenera....................................................................................49
4. AS FACES DO EROTISMO NA POÉTICA DE LORCA.....................................55
4.1. O erotismo reprimido..................................................................................................56
4.2. O desejo realizado.......................................................................................................59
4.3. O erótico intocado: o desejo de ser mãe não realizado...............................................64
4.4. O erótico do corpo morto em correspondência com a natureza..................................70
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................75
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................77
ANEXOS.............................................................................................................................80
Anexo A.......................................................................................................................80
Anexo B.......................................................................................................................98
1. INTRODUÇÃO
A pesquisa tem como objeto de investigação a presença da água e do elemento
erótico na poesia de Federico García Lorca. Como se vê, pela epígrafe, esses dois
elementos juntamente com o fogo se constelam e se encontram, na obra de Lorca, como
elementos simbólicos. Como mbolos representam, entre outras coisas, a presença do
desejo, da criação e do imaginário. Lorca, um dos maiores poetas da lírica espanhola,
ganhou o mundo com a sensibilidade e beleza de sua poesia, ele extrai da natureza
elementos simbólicos que assumem grandes proporções. Estudar os símbolos aquáticos e
eróticos, presentes na poesia de Lorca torna-se fundamental, uma vez que o símbolo está
inserido em nosso meio social, cultural e psicológico, enfim, está presente em nossa vida
como um todo.
Neste trabalho estuda-se a linguagem do poeta como parte do imaginário e
representação da cultura de sua época: o erotismo manifestado e a significação que a água
assume em alguns textos poéticos encontrados em seu Livro de Poemas e em Divã do
Tamarit.
A escolha do corpus se deu por uma questão de gosto. E porque são obras menos
estudadas do que, por exemplo, Romancero Gitano. Ambos livros possuem uma distância
cronológica, são quinze anos que separam uma obra da outra, em que Livro de poemas, de
1921, foi o primeiro livro publicado por Lorca, consta como uma obra de juventude. Já
Divã do Tamarit, de 1936, é uma obra madura. Os dois são livros bastante diversos do
ponto de vista estético. As imagens dos gázeis e cacidas, de Divã do Tamarit, são muito
mais insólitas, complexas, e ricas do ponto de vista hermenêutico. Esse livro é muito mais
elaborado do ponto de vista estético do que Livro de poemas, que, apesar de ser muito
bonito, reúne composições da juventude. Apesar de tantas divergências algo que os
aproxima, as confluências simbólicas. E esse é o motivo por optar por obras tão distantes:
mesmo com anos passando-se, Lorca continua tendo o simbolismo, principalmente o da
natureza, como algo constante em sua obra.
Livro de poemas é definido pelo próprio poeta como: “Ardor juvenil, tortura, y
ambición sin medida, la imagen exacta de mis as de adolescencia y juventud”. “Tendrá
este libro la virtud, de recordar mi infancia apasionada” (PLAJA, s.d., p. 26).
A primeira obra de Lorca foi criada através de três elementos, segundo Díaz-Plaja
(s.d., p. 27), terra, juventude e a inspiração dada pela influência de outros poetas. Porém,
12
essa influência não significa cópia, mas criação a partir da técnica dos poetas
consagrados. García Lorca como conhecedor da natureza e do valor simbólico que tem
cada planta, cada animal, das supertições populares na literatura e com seu domínio
filosófico, escreve seu primeiro livro de poesias. Em que cria imagens por via de
associações, dando um valor emblemático ao branco, que dão o valor de uma imagem fina.
Outra característica do poeta jovem, de acordo com o autor, é o afã filosófico, típico da
juventude, quando se rebela contra tudo, até contra Deus.
Divã do Tamarit é, para Dias-Plaja, o signo da repatriação espiritual de Lorca, pois
esse livro foi escrito após o poeta retornar à Europa. Nessa obra García Lorca compõe
versos curtos e estrofes com mesmo caráter, utilizando muito do artifício da metáfora.
título à suas poesias de “gacelas” e “cacidas”, o primeiro nome é dado para composições
mais extensas, e o segundo nome é para as composições mais breves e musicais. Divã do
Tamarit é um livro que caminha para o realismo.
Há recorrência, ao longo das análises, em fazer referência a Chevalier e Gheerbrant
com a intenção de complementar a fundamentação teórica. Assim, não se tem como fim
recorrer ao dicionário de símbolos como puro aparato teórico, mas como um auxiliar a
compreensão de outros estudiosos, como Bachelard, Durand, Jung, Romano Affonso de
Sant’Anna etc.
Nosso trabalho foi dividido em três capítulos de estudo, além da introdução e das
considerações finais.
No capítulo I, “Reflexões teóricas” uma subdivisão em dois tópicos, apresenta a
teoria estudada, e aplicada como respaldo do trabalho, e a fundamentação teórica sobre os
símbolos, presentes em toda a análise; sobre a água e o erotismo. Desta forma, para a
elaboração do primeiro tópico desse capítulo foi necessário buscar o estudo que Eich e
Gibson fazem sobre o poeta. Ambos pesquisam a vida e a obra de Lorca, os feitos do
poeta. Sobre os símbolos trabalharemos com o conceito de símbolo proposto por Jung, o
qual define o mbolo como toda expressão ou mesmo imagens que nos são familiares na
vida diária, mas que implicam algo vago, desconhecido ou oculto para nós. Veja-se o
conceito dado pelo psicanalista sobre o símbolo:
O símbolo é uma expressão indeterminada, ambígua, que indica alguma
coisa dificilmente definível não reconhecida completamente. O símbolo
possui numerosas variantes análogas, e quanto mais possuir, tanto mais
completa e correta é a imagem que traça do seu objeto (JUNG, 1986, p.
112).
13
Cirlot define como símbolo algo que é ao mesmo tempo um veículo universal e
particular das aspirações e representações humanas. No entanto, Chevalier e Gheerbrant e
Gheerbrant entendem o símbolo como alguma coisa que varia de acordo com a percepção
pessoal de cada indivíduo. Desta maneira, cada ser tem uma forma de ver, interpretar e
sentir determinado símbolo. Para G. Durand os símbolos são imagens construídas no
imaginário humano, e define tais imagens a partir de dois regimes: o regime diurno e o
regime noturno da imagem. Danielle Pitta, estudiosa da teoria de Durand, concebe o
símbolo como uma necessidade que o ser humano tem de modificar o mundo.
Em “Água, elemento material simbólico”, faz-se uma explanação sobre a
simbologia da água e suas qualidades de fertilizadora, purificadora e fluídica. Para Cirlot
essas são as qualidades dominantes da água. Já Bachelard analisa a psicologia da
“imaginação material” da água ligada ao elemento feminino. Chevalier e Gheerbrant e
Gheerbrant dizem que as significações simbólicas da água podem ser reduzidas a três
temas dominantes: como fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência.
Enquanto Durand afirma que a água, além de bebida, foi o primeiro espelho dormente e
sombrio. Assim a água tem propriedade de espelho. Esse estudioso define a água pautado
no estudo de Bachelard. E complementa afirmando que a feminilidade da água está
relacionada como sua própria liquidez, que é o elemento dos fluxos menstruais.
Sobre “o erotismo” estuda-se Affonso Romano de Sant’Anna, que define o
erotismo a partir do desejo masculino sob o feminino, e esse desejo se apresenta sob a
constelação das águas. Enquanto Durigan acredita que o erotismo é algo que não deve ter
uma definição precisa, pois cada indivíduo o entende sob a perspectiva de vida, de cultura
e da época em que vive. Octavio Paz dá ao termo a acepção de que “o erotismo é o reflexo
do olhar humano no espelho da natureza.” (PAZ, 1999, p. 31). É a imitação que o homem
faz dos ruídos dos animais, é a imitação da vida animal, da sexualidade desses mesmos.
Irley Machado vê o termo como algo ligado à paixão, ao deus do amor, Eros. Bataille
define o erotismo a partir da morte. Isto é, para ele o erotismo é presença da vida dentro da
morte. Há, para o autor, uma relação entre a morte e a excitação sexual.
O erotismo e a poesia possuem uma relação muito próxima, pois os dois trabalham
diretamente com a imaginação. E é isso que Octavio Paz defende em A dupla chama: amor
e erotismo. Tanto a poesia quanto o erotismo utilizam o sensorial, ato imaginativo e de
criação, para sobreviver. Os sentidos em ambos são de extrema importância. São as
14
imagens palpáveis, visíveis e audíveis que dão o resultado final do erotismo poético e da
erótica verbal.
Dessa forma, se uma correlação entre um e outro entende-se a importância que
exercem na vida de todos. Possuem grandes afinidades. Sendo que o erotismo é uma
metáfora da sexualidade, a poesia é a erotização da linguagem, nas palavras de Paz (1994,
49).
No segundo capítulo, enfocamos a simbologia da água na poesia lorquiana. No
último capítulo voltamos ao elemento água e ao erotismo. Nesse momento estudamos não
apenas a teoria sobre o que são esses símbolos, mas como esses se constelam no corpus de
estudo. Esses dois capítulos também são divididos em tópicos e em cada um deles faz-se
estudo dos poemas mencionados. A análise se na observação da teoria referenciada e
ao sentido simbólico encontrado nas obras. Cada poema em estudo foi denominado de
acordo com a acepção que melhor o definia, como por exemplo, no capítulo dois tem-se a
análise do poema “Meditação sob a chuva” que aborda o aguçar dos sentidos revelados
pela chuva com seu som suave, seu cheiro, seu frescor, então foi intitulado “a água
sensorial”. No capítulo seguinte um dos poemas estudados é “Elegia”, no qual há o
impedimento da realização erótica e maternal, desta maneira ele é definido como “O
erótico intocado: o desejo de ser mãe não realizado.”
Após o último capítulo tem-se as considerações finais, as referências bibliográficas
e os anexos que contêm os poemas citados durante o texto dissertativo, em forma
completa, e ainda algumas reproduções de pinturas do banho feminino.
Federico García Lorca nasceu em Fuente Vaqueros, Espanha, em 1898. O poeta foi
brutalmente assassinado devido a suas convicções políticas no início da Guerra Civil
espanhola. Essas convicções dizem respeito a Lorca ser socialista o que representava uma
ameaça para o conservadorismo católico e político de Espanha. Porém, outro motivo para
sua morte, foi sobretudo, a incompatibilidade entre poesia, a arte de maneira geral, e
regimes totalitários. Não de direita, como no caso de Franco na Espanha, versão do
nazismo nesse país, mas também, como podemos ver em países comunistas. Lorca foi, sem
dúvida, um grande gênio de sua época, um “homem de mil faces artísticas” segundo
Gibson (1989, p. 18). Além de excelente poeta e dramaturgo foi também pianista,
conferencista, contador de histórias, ator, diretor de teatro, mímico. (GIBSON, 1989, p.18).
Naturalmente seu talento está intimamente relacionado ao incentivo recebido de uma
família de artistas e de pessoas cultas.
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Sua morte e sua obra foram tabus na Espanha durante quase meio século. Só após
1975 é que se pode falar abertamente sobre o desaparecimento do poeta. Entre os motivos
que levaram García Lorca a ser conhecido no mundo está sua trágica morte, e, em sua obra
dramática, sua lírica e as tendências gerais da literatura moderna, sobretudo o surrealismo,
o exotismo e erotismo, presentes em suas imagens poéticas. A sensualidade e o erótico
presentes com freqüência na obra lorquiana são, de acordo com Eich (1970, p.110),
resultado do atentado contra certos tabus burgueses. Para o autor, Lorca teria sido a
antítese vivente de toda ordem segura.
García Lorca é considerado o poeta da intensidade pela musicalidade que sai de
seus versos, pela plenitude dos sentidos e sentimentos; por conseguir através de suas obras
traduzir um elemento que angustia o ser humano em geral, e é algo que se tornou marcante
na poesia de Lorca: a presença da morte.
Segundo Eich (1970, p. 134), a água, as árvores, as plantas e os animais participam
misteriosamente do mundo de Lorca, e sem dúvida, sua poesia é dona de uma inesgotável
profundidade e revela grande fascinação por esses elementos. A presença da água em sua
obra pode ser influência de sua infância, vivida em FuenteVaqueros: a aldeia tinha como
característica abundância de água.
Para Eich, no terreno do sensual, da fecundidade e do poder gerador, encontra-se na
maioria das vezes a água em múltiplas formas, acompanhada por uma lua misteriosa.
Segundo Eich (1970, p. 144), a lua e com ela os elementos como o rio (cuja
materialidade liquida essencial e fluente é intrínseca ao elemento móvel e fecundante da
água) e o pássaro aparecem fazendo parte da obra do poeta como presença absoluta, o que
se poderá constatar no estudo do poema intitulado “Cacida da moça dourada”.
As composições de Lorca são inspiradas na alma do povo andaluz. A fantasia do
poeta faz parte das imagens atávicas, arrancadas da alma do povo espanhol. Ele utiliza
recursos que remetem ao passado, motivo e razão da presença dos elementos naturais em
sua obra, como as flores de laranjeira, a terra as noites ardentes, os pássaros, a luz da lua
etc.
Assim, como postula Afonso Romano Sant’Anna (1993, p.11), os poetas em muitos
momentos falam das fantasias eróticas do homem comum. Eles representam o imaginário
social e apresentam uma configuração ideológica da sociedade em que vivem. Lorca
representa um imaginário, criando personagens em suas peças e em sua obra poética, que
fazem parte da sociedade espanhola de sua época. Ele fala dos sentimentos de uma nação e
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de seus sentimentos individuais de maneira particular em sua criação literária. Seus
poemas são a tradução do desejo de liberdade erótica e social expresso pela comunidade.
Para Gibson (1989, p. 20), o melhor da obra de Lorca é o fato de ela nos por em
contato com nossas emoções e nos obrigar a lembrar que somos parte integrante da
natureza. O que se torna perceptível pelo uso que o poeta faz de elementos que se repetem
ao longo de toda sua obra, tais como: água, lua, metais, sol, vento, terra, fogo.
Através da significação simbólica da água, o poeta vem expressar inúmeras
imagens e gerar diferentes conotações em sua produção literária. E segundo Eich (1970, p.
49), a água é um estágio da evolução de Lorca que reflete a forma de vida do poeta que se
manteve perto da superfície; foi um rio, uma fonte e até um poço profundo chegando a
intensidade do mar, como pode ser visto nos versos seguintes:
“Água, aonde vais?
Rindo, vou buscando o rio
À beira- mar.
Mar, aonde vais?
Rio acima vou buscando
fonte onde descansar.
Choupo, e tu que farás?
Não quero dizer-te nada.
Eu... tremer!
O que desejo, o que não desejo,
pelo rio e pelo mar?
(Quatro pássaros sem rumo
no alto choupo estão).”
1
Através da estrofe, acima citada, podemos compreender o que Eich afirma. Lorca é
como a água que está sempre buscando repouso onde descansar, procurando um lugar onde
encontrará a felicidade almejada.
Toda poesia e obra dramática de García Lorca foram marcadas por um momento de
sua vida, cada uma delas é fruto de uma intensidade. Na infância o poeta deixou inacabada
sua primeira peça teatral Mi aldeã. Outra fase do poeta, destacada pelo estudioso, é a do
vazio. No livro Cante Jondo e em parte das Canciones em que se encontram a
intemporalidade, a rigidez, a imobilidade e a morte são realizadas pela imagem do deserto.
Romancero Gitano (1928) instaura uma nova fase em Lorca, agora são os valores plásticos
de seu mundo poético que são expressos. Entre 1929 e 1930, em meio à crise econômica
americana, Lorca escreve o livro de poemas Poeta en Nueva York. Sua vida em Nova York
e as crises vividas transformou o poeta que dela saiu artisticamente maduro. Em 1933
1
“ Àgua, aonde vais?”, Canciones (2002, p. 341-343).
17
publica Bodas de Sangre. Sonetos del amor oscuro e Diván Del Tamarit, foram as últimas
obras poéticas escritas pelo poeta, embora em 1936 ele tenha escrito A casa de Bernarda
Alba.
18
2. REFELEXÕES TEORICAS
2.1.Os símbolos
Em toda obra de Lorca os símbolos são uma constante, faz-se, portanto, necessário
visitar algumas concepções teóricas sobre o símbolo. Segundo Jung (2002, p.21), “o
homem também produz símbolos, inconsciente e espontaneamente, na forma de sonhos”.
Para ele símbolos são expressões ou mesmo imagens que nos são familiares na vida diária,
contudo, implicam algo vago, desconhecido ou oculto para nós. Quando a mente explora
um símbolo ela é conduzida por idéias que estão fora do alcance da razão. Inúmeras coisas
estão fora do alcance da compreensão humana: isto faz com que se necessite com
freqüência de expressões simbólicas para representar o que não se pode definir ou
compreender integralmente. Os sonhos fazem parte desta realidade incompreensível,
possivelmente o que gera a necessidade de símbolos para sua interpretação.
Ainda de acordo com o psicanalista, o devaneio pessoal restabelece os símbolos
atávicos. O sonho é uma força da natureza. E o devaneio vem como elemento ligado ao
sujeito lírico. O sonho, para o autor, é um fenômeno psíquico normal, “transmite à
consciência reações inconscientes ou impulsos espontâneos. Muitos sonhos podem ser
interpretados com o auxílio do sonhador, que providencia tanto as associações quanto o
contexto da imagem onírica por meio dos quais podemos explorar todos os seus aspectos”
(JUNG, 2002, p. 67). Isso acontece porque nossa mente também se constrói através de
referências inconscientes do passado, “por meio da linguagem e de outras tradições
culturais” (JUNG, 2002 p. 67). A psique resulta do acúmulo de gerações que são a base da
mente humana, é o que Jung classifica como arquétipo.
De acordo com Cirlot (2005 p. 20-21), os sonhos são uma das formas pelas quais o
ser humano se põe em contato com suas aspirações profundas. Tais aspirações estão
ligadas aos sonhos, como se vê:
Os símbolos oníricos não são, pois, a rigor, diferentes dos míticos,
religiosos, líricos ou primitivos. que, entre os grandes arquétipos,
misturam-se como submundo os resíduos de imagens de caráter
existencial, que podem carecer de significado simbólico, ser expressões
do fisiológico, simples lembranças, ou possuir também simbolismo
relacionado com o das formas matrizes e primárias de que precedem.
(CIRLOT, 2005 p. 21).
19
Cirlot, na citação acima, faz diferenciações entre as formas simbólicas existentes,
distinguindo os símbolos dos sonhos dos demais símbolos.
Para Chevalier e Gheerbrant e Gheerbrant, em nossos gestos, sonhos e linguagem,
nos servimos dos símbolos. Eles estão no centro da vida imaginativa. Revelam os segredos
do inconsciente. Para os autores, “A expressão simbólica traduz o esforço do homem para
decifrar e subjugar um destino que lhe escapa através das obscuridades que o rodeiam”
(CHEVALIER E GHEERBRANT, 2006, p. XII). Os símbolos são utilizados para decifrar
e representar nossa imaginação, reabilitada na sociedade atual, graças às interpretações
modernas dos mitos antigos e ao surgimento de novos e modernos mitos.
O símbolo escapa a toda e qualquer definição. Ele é completo de significação por si
só. O sentido do símbolo varia de acordo com a percepção pessoal de cada indivíduo.
Desta maneira, cada indivíduo tem uma forma de ver, interpretar e sentir determinado
símbolo.
Ainda segundo Chevalier e Gheerbrant (2006, p. XIV), o símbolo tem a
propriedade de sintetizar através de uma expressão sensível todas as influências do
inconsciente e da consciência do homem. Temas imaginários, representados através de
desenhos, figuras ou objetos, podem ser universais, intemporais e enraizados na
imaginação humana, é o que Jung classifica como “imagens primordiais” ou arquétipos:
uma tendência instintiva, para formar as representações de algo sem perder a sua
configuração original. “Os arquétipos não apenas se ajustam a situações exteriores, como
tendem a manifestar-se em um arranjo sincronizado que inclui tanto a psique quanto a
matéria” (FRANZ, 2006 p. 309), e emergem nos indivíduos através dos sonhos.
Na concepção de Chevalier e Gheerbrant (op. cit. p. XVIII), o símbolo é muito
mais do que um simples signo ou sinal. Ele transcende o significado e depende da
interpretação que se ao mesmo, pois vem carregado de dinamismo e afetividade, além
de afetar estruturas mentais, em que introduz uma nova ordem de múltiplas dimensões.
Cada sociedade e época têm seus mbolos. “O símbolo é uma linguagem universal
por ser virtualmente acessível a todo ser humano, sem passar pela interpretação de línguas
escritas ou faladas, e por emanar de toda psique humana” (CHEVALIER E
GHEERBRANT, 2006 p. XXIX-XXX).
O símbolo faz parte do domínio do imaginário e de uma dimensão que foge ao
racional e parece inscrever-se na lógica da psique humana.
20
Para Cirlot (2005, p. 12), “o símbolo é ao mesmo tempo um veículo universal e
particular. Universal, pois transcende a história; particular por corresponder a uma época
precisa”. Ele liga os mundos físico e metafísico.
Os elementos da natureza também podem exercer uma função simbólica. Assim, o
fogo, o ar, a terra, as plantas, os metais, a lua, o sol, a água são muitas vezes símbolos
expressivos presentes na vida cotidiana, dos sonhos, ou como imagens literárias: aspectos
esses que se encontram na obra de Lorca.
G. Durand trata dos mbolos e das imagens construídas no imaginário. Dentre
essas imagens investiga-se o significado que podem assumir a água, o sol, o fogo, a noite e
os elementos cíclicos para uma determinada cultura e observa-se como esses elementos
aparecem e são representados na poesia lorquiana.
Ao dedicar-se ao estudo do imaginário, Durand, preocupou-se com a formação das
imagens. De acordo com ele, é possível agrupar imagens vizinhas naquilo que ele
convencionou chamar de Regime. Ele divide o regime em dois grupos: Regime Diurno e
Regime Noturno da imagem. “O Regime Diurno seria a representação da consciência
masculina (animus), enquanto o Regime Noturno seria o da representação da consciência
feminina (anima)” (DURAND, 2002, p. 382).
Animus e anima são termos utilizados por Jung para definir a presença de
características masculinas e femininas no inconsciente humano. Segundo A. M. Von Franz
(2002, p.177), anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na
psique do homem: os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a
receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza. Como
verificamos através das análises da obra de Lorca, pode-se dizer que o poeta possuía uma
anima que se manifestava com uma certa predominância sobre suas características
masculinas. A manifestação mais freqüente da anima é a que toma a forma de uma fantasia
erótica. E segundo a estudiosa o caráter da anima é moldado pela mãe.
O animus seria personificação masculina no inconsciente da mulher. O animus, de
acordo com Franz (2002), não costuma se apresentar, como a anima, sob fantasias eróticas;
ele aparece mais comumente como uma convicção secreta “sagrada” e firme. Sendo seu
caráter moldado pelo pai.
Retornando a Durand, ele trata de elementos que fazem parte da cultura
antropológica e que se acham presentes na transfiguração artística e literária como a lua, o
21
cavalo, a água, a noite e todo o sistema diurno e noturno (divide-se em imagens místicas e
sintéticas) das imagens.
O regime diurno divide o universo em opostos. E caracteriza-se pela luz que
permite as distinções. Enquanto o regime noturno une os opostos. Sua propriedade é a da
conciliação e da noite enquanto unificadora das imagens.
Durand define os regimes do imaginário como agrupamentos de estruturas
(conjunto de elementos heterogêneos, reunidos empiricamente numa permanência)
vizinhas. E Maria Zaira Turchi (2003, p. 29), a partir desses agrupamentos faz um estudo
sobre a teoria durandiana. Assim, o regime diurno engloba as estruturas esquizomorfas,
ligadas à dominante postural; o regime noturno divide-se em estruturas sintéticas,
ligadas à dominante copulativa, e em estruturas místicas, próprias da dominante digestiva.
Danielle Pitta (2005) faz um estudo sobre a maneira como Durand trata a questão
dos símbolos no imaginário. Para ela, o ser humano tem uma necessidade muito grande de
mudar constantemente o mundo em que vive, modificar o que foi feito pela natureza. E
isso ocorre porque o homem está exercendo uma função que lhe é própria, a de dar sentido
ao mundo. Assim, para criar ou dar significação ao que lhe rodeia, ele usa a imaginação, o
que é uma função da sua mente.
Mas, segundo ela, para criar significado não basta o raciocínio tem-se que imaginar
também, pois o raciocínio não cria significado, ele permite sim analisar os fatos. o
imaginário é a encruzilhada das mais diversas ciências, sendo assim diz respeito ao
conhecimento como um todo.
Para o ser humano nada é insignificante, e dar significado à natureza implica entrar
no plano do simbólico (e simbolizar faz parte da própria natureza humana). Os símbolos
fazem parte do imaginário e são a maneira de expressar esse último, assim o imaginário, na
concepção de Pitta (2005, p. 15),
pode ser considerado a essência do espírito, à medida que o ato de
criação (tanto artístico, com o de tornar algo significativo), é o impulso
oriundo do ser (individual ou coletivo) completo (corpo, alma,
sentimentos, sensibilidade, emoções...), é a raiz de tudo aquilo que, para
o homem, existe.
Desta maneira, o imaginário está acoplado ao ser humano como essência de seu
próprio corpo, não vivendo sem ele.
O símbolo, para a autora, é representação (que faz aparecer um sentido secreto), é
todo signo concreto que evoca, por uma relação natural, algo ausente. O símbolo é a
22
tradução do arquétipo dentro de um contexto específico. O arquétipo por sua vez dá forma
à imagem. Entende-se por arquétipo a imagem primeira de caráter coletivo inato. Ele é o
ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais. E se caracteriza por sua
ambigüidade e pela infinitude de seus significados.
Os símbolos, para Pitta, se dividem em três grandes temas: símbolos teriomórficos
(relativos à animalidade) o fervilhamento (larvas amontoadas visguentas e agitadas, a
insetos em geral), o arquétipo do caos, a animação (movimento em si, incontrolável, dos
grandes animais: cavalo e touro), a “mordicância” (ato de morder, de devorar); símbolos
nictomórficos (relativos à noite) dizem respeito à escuridão Situação de trevas (seja
provocada ou natural, situação de cegueira, por exemplo), água escura triste (do rio que
passa e não volta mais; a água estagnada, convite ao suicídio; o espelho; a cabeleira);
símbolos catamórficos (relativos a queda) são aqueles que dizem respeito às experiências
dolorosas da infância.
Dentro do regime diurno da imagem tem-se: os mbolos de ascensão (elevação) –
Verticalidade, asa e angelismo, a soberania uraniana e o chefe; os mbolos espetaculares
(relativos à visão) Luz e sol, o olho e o verbo; símbolos da divisão (ou diairéticos) trata-
se da separação cortante entre o bem e o mal – as armas do herói, as armas espirituais.
No regime noturno da imagem na sua estrutura mística (sentido de construção de
uma harmonia) tem-se: os símbolos da inversão expressão do eufemismo, encaixamento
e redobramento, hino à noite, mater e matéria; símbolos da intimidade o túmulo e o
repouso, a moradia e a taça, alimentos e substâncias. Na estrutura sintética do imaginário
(movimento cíclico do destino, o tempo torna-se positivo) tem-se: símbolos cíclicos o
ciclo lunar, a espiral, a tecnologia, mito do progresso e o sentido da árvore.
Segundo Pitta (2005, p. 38), a imaginação simbólica tem uma função
transcendental. E imaginar é criar um mundo, um universo.
Na mesma linha que Pitta, Maria Zaira Turchi (2003) estuda a questão do
imaginário ligado aos símbolos, e vai além da literatura. Na concepção durandiana de
imaginário, Turchi associa os regimes definidos por Durand aos três gêneros literários: o
épico se relaciona com o sistema mítico do regime diurno do imaginário; o lírico com o
sistema mítico do regime noturno stico do imaginário e o dramático com as figuras do
regime noturno sintético do imaginário.
A autora considera a imaginação humana como algo que transcende e ordena todas
as outras atividades da consciência. E essa imaginação (não é algo que tem apenas a função
23
reprodutora, mas possui também a função criadora) é a aventura humana do prazer da
descoberta ou redescoberta do mundo através do sentido simbólico que é dado às coisas
por meio dos símbolos e mitos.
Turchi (2003, p. 30-31) define três dimensões para o símbolo: Mecânica, genética e
dinâmica. A dimensão mecânica diz respeito ao conjunto de noções (clima, tecnologia,
área geográfica, fauna, estado cultural) que definem o aparelho simbólico. A segunda
dimensão é a genética que está ligada à compreensão do homem como animal simbólico. É
através da cultura que o imaginário aparece plenamente, desta maneira o símbolo nasce nas
construções imaginárias culturais. A terceira, e última dimensão do símbolo apresentada é
a dinâmica. Esta mesma é constituída pelo mito (põe em movimento a dialética cultural
que alimenta o símbolo).
A partir das concepções teóricas aqui referendadas é que se construirá o estudo
analítico do corpus selecionado.
2.2. A água, elemento material simbólico
Para Cirlot a água possui qualidades dominantes, às quais são associados elementos
simbólicos. Ela fertiliza, purifica e dissolve, como se pode constatar em sua própria
afirmação: a dissolução das formas, a carência de formas fixas (fluidez) vem ligada às
funções de fertilização ou renovação do mundo vivo material, e à purificação ou renovação
do mundo espiritual...” (CIRLOT, 2005 p. 34).
A água é um dos elementos materiais a que Bachelard se dedica. É um elemento
rico em simbologia e imagens. O autor considera a imagem como uma planta que necessita
de substância e de forma. imagens que possuem pouca durabilidade, isso acontece
porque são meros jogos formais, não adaptados à matéria que ornamentam, ao contrário, as
imagens poéticas possuem, elas próprias, uma matéria, da qual se nutrem.
Segundo Bachelard (2002 p. 4), os sonhos estão sob a dependência dos quatro
elementos fundamentais: os sonhos dos biliosos (coléricos) que são de fogo; os sonhos
dos melancólicos que são de terra (enterro); os sonhos dos pituitosos (ligado a doenças
pulmonares) de água (rio); os sonhos dos sangüíneos de ar (vôos de pássaros). Esses
elementos tornam-se símbolos, ou se manifestam como elementos simbólicos nos sonhos.
24
Em A água e os sonhos, Bachelard (2002) analisa a psicologia da “imaginação
material” da água ligada ao elemento feminino. Ela é o oposto do fogo: o fogo sendo um
elemento Yang, enquanto a água é o elemento Yin por excelência. Capaz de gerar a vida
ela adquire segundo, Chevalier e Gheerbrant (2006 p. 21), uma valorização feminina,
sensual e maternal considerando que é no plasma uterino que a vida se forma.
A água pode ter também uma conotação violenta, representada pelas águas do mar
ou pelas grandes catástrofes provocadas pelas águas. Essa violência pode ser associada à
cólera feminina, sendo a água elemento feminino, também é capaz de exalar sua cólera.
Um exemplo da fúria feminina pode ser encontrado na personagem clássica Medéia,
quando a mesma mata seus próprios filhos, por vingança à traição e ao abandono do
esposo, Jasão:
Eis aquilo, meus filhos, a mãe
move o coração e move a cólera...
Dores sofri, dores que valem grandes prantos.
Ó malditos filhos de hedionda mãe, pereçam
com o pai e desapareça toda a casa.
(Eurípides, 1991, p. 37).
Tal cólera também se faz presente em toda peça A casa de Bernarda Alba, de
Lorca, em que a matriarca Bernarda vive em fogo: amarga por ter reprimido seu erotismo
feminino e não se ter realizado no casamento; proíbe suas filhas de ter tal sentimento
enclausurando-as nas dependências de sua casa. Sua fúria e brutalidade são notadas em
quase todas as suas falas, veja-se:
Menos gritos e mais obras. Devias ter procurado que tudo isto estivesse
mais limpo para receber o duelo. Olhe. Não é este seu lugar. (A criada
sai chorando.) Os pobres são como os animais; parece como se
estivessem cheios de outras substâncias (LORCA, s/d, p. 1445).
Como a água agitada do mar com furor destruidor, quando em ressaca ou em
tempestade, a mulher também exala fúria quando tem seu erotismo enclausurado.
Para Bachelard (2002, p. 97), a água é favorável à combinação dos elementos
materiais, pois ela assimila muitas substâncias e impregna-se de cores, cheiros e sabores.
Daí a água ser a substância química dos poetas, pois possibilita inúmeras associações.
Segundo o autor, as combinações imaginárias reúnem apenas dois elementos, nunca
três. Nenhuma imagem natural pode receber os quatro elementos. Em cada combinação
faz-se necessário o domínio de apenas um elemento As imagens do devaneio são unitárias
25
ou binárias. A mistura das matérias constitui um casamento na união das substâncias, como
se elas se sexualizassem.
O autor mostra o caráter matrimonial da química comum ao fogo e a água. Diante
da virilidade do fogo, a feminilidade da água é irremediável: unidos esses dois elementos
criam tudo. A água e o fogo estão intimamente associados a lendas que demonstram seus
traços sexuais.
Um outro elemento que o autor trata é o da imagem material da umidade quente,
em que a imaginação sonha com a união duradoura da água e do fogo. A umidade quente é
a matéria tornada ambivalente, ou seja, a ambivalência materializada.
Uma outra forma de casamento da matéria que leva ao devaneio está na associação
da água com a noite. A noite vai penetrar as águas, impregná-la. Adensamento tão
profundo que mesmo a luz do dia o lago conserva um pouco das substâncias noturnas.
De acordo com o fenomenólogo, ambas, noite e água, também causam frescor.
horas em que a água e a noite unem sua doçura. Adquirem, juntas, um perfume comum.
Assim, a sombra úmida tem um perfume de duplo frescor, a noite nos o perfume das
águas. A lua impõe seu perfume sobre a mesma.
Para Chevalier e Gheerbrant (2006, p.15-22), a água representa a infinidade dos
possíveis, contendo toda a promessa de desenvolvimento, mas também todas as ameaças
de reabsorção. Cada cultura, porém, concebe ao símbolo da água dimensões e matizes
diferentes, assim como aos símbolos em geral. Dessa maneira, ela pode ser origem da vida,
da criação, símbolo da pureza, da fertilidade, da sabedoria, da graça, da virtude, da fluidez,
assim como da fúria e da destruição. No entanto, “em todas as tradições do mundo a água
desempenha igualmente papel primordial, que se articula em torno de três temas:
purificação, regenerescência e fertilidade, mas com insistência particular nas origens”.
(CHEVALIER E GHEERBRANT, 2006 p. 19). A água recobre-se de dois complexos
simbólicos antitéticos: a água descendente e celeste, a chuva que vem fecundar a terra; e a
água primeira, a água nascente, que brota da terra e da “aurora branca”, nesse caso é
feminina.
Ao observar todas as definições simbólicas dadas à água, que variam de autor e
cultura, serão empregadas tais considerações de acordo com a necessidade que cada poema
apresentar. Ou seja, em cada poema a água se constelará carregada de uma determinada
simbologia: como maternal, erótica, purificadora etc.
26
2.3. O erotismo
Outro aspecto que será analisado nas obras escolhidas é como o erotismo se
constela e qual sua relação com a água.
Affonso Romano Sant’Anna estuda, em Canibalismo amoroso, como o desejo e a
interdição (aspecto visto por Bataille em Erotismo) se apresentam na cultura brasileira
através da poesia. Para tanto, faz um esboço sobre como os poetas nacionais tratam o
erótico, o desejo, enquanto representantes do imaginário de uma cultura masculina.
O autor trabalha o desejo através das ninfas aquáticas, das mulheres em seu banho
no rio, o que será de grande valia para a pesquisa, principalmente na análise do poema
“Cacida da moça dourada”, que trata justamente do banho feminino.
Sant’Anna (1993, p. 90) considera que as metáforas da taça, do vaso e da concha
mantêm uma relação estreita com a imagem da mulher, sendo a água o elemento mediador
entre eles. Esses três elementos figuram as variantes do desejo e da mulher. A mulher
possui um corpo que funciona como fonte da vida, assim, naturalmente se aproxima da
idéia de um vaso sagrado, que transporta a água e que dá a vida.
para Durigan (1985, p.7), o erotismo pode ter diversas definições dependendo da
contextualização em que se encontra, pois as representações culturais não possuem uma
natureza fixa e imutável. Para o autor “o texto erótico se constituiria em uma forma com
finalidade de montar textualmente o espetáculo erótico, tecendo de mil maneiras as
relações significativas que configuram” (DURIGAN, 1985, p.31).
É ainda Durigan que afirma: “o texto erótico se apresenta como uma representação
que depende da época, dos valores, dos grupos sociais, das particularidades do escritor, das
características da cultura em que foi elaborada” (1985, p.7). E segundo Sant’Anna, o que
mais o fascina ao organizar um estudo sobre o desejo é “ver como cada época organiza
literalmente seu imaginário erótico” (SANT’ANNA, 1993, p. 14).
Pensando na questão da representação, Octavio Paz (1999, p. 30-35) trata do tema
dizendo que o homem representa no ato sexual. Esse imita a sexualidade animal. “Na
linguagem e na vida erótica cotidiana os participantes imitam os rugidos, relinchos,
arrulhos e gemidos de todo tipo de animais” (PAZ, 1999, p. 31). Assim, a imitação tem
como finalidade complicar o jogo erótico acentuando o seu caráter de representação. Então
“o erotismo é o reflexo do olhar humano no espelho da natureza” (PAZ, 1999, p. 31).
27
A distinção entre o erotismo e a sexualidade feita pelo autor seria, de maneira
concisa: “O erotismo é sexual, a sexualidade não é erotismo. O erotismo não é uma
simples imitação da sexualidade – é sua metáfora” (PAZ, 1999, p. 33).
De acordo com Durigan (1985, p.30), a palavra “erotismo” provém
etimologicamente de erotikós (relativo a Eros). “Mais tarde, a psicanálise transformou-o
em símbolo da vida, princípio da ação, sendo seu oposto Tanatos, símbolo da morte,
princípio da destruição”(sic!) (DURIGAN, 1985 p.30).
Segundo o autor, o sentido da palavra erotismo não se esgota. Ela possui um
conjunto de significados que se complementam, ou até se opõem, dependendo da situação.
Ao citar Freud, tal autor afirma que as sensações sexuais não são apenas genitais, mas que
a vida sexual é composta dessas sensações e de processos psíquicos.
Irley Machado, estudiosa de García Lorca, especificamente dos elementos
simbólicos que permeiam suas obras e coordenadora do grupo de estudos “A dramaturgia
poética de Federico García Lorca”, conceitua o erótico a partir do deus Eros. De acordo
com ela, Eros está ligado à paixão. Veja-se o que ela afirma sobre o termo:
O nome do deus deriva do verbo grego érasthai que significa “estar
inflamado de amor”. Eros não é um deus “todo-poderoso”, está mais
ligado a uma energia. Ele foi associado pelos poetas a “um garotinho
louro com asas, mas sob máscara de um menino que nunca cresce (pois
sabe-se que a idade da razão, ou o logos, é incompatível com o amor)
esconde-se uma energia terrível de controlar, um deus terrível” que
envenena com sua flecha, carregada de amor, o coração humano.
(MACHADO, 2007, p. 103).
Assim, o erótico está relacionado ao deus do amor, capaz de “condenar” as pessoas
a padecer de uma energia incontrolável que é a paixão impulsionada pelo desejo.
Porém, o erótico vai além do sexual, as sensações que temos quando estamos em
contato com a natureza e seus elementos também podem ser eróticas. Tudo aquilo que está
ligado ou mexe com os sentidos constela um aspecto sensual. O contato da água com o
corpo ou o calor do sol que aquece pode ser erótico, provoca a sensualidade, provoca os
sentidos. É essa a visão sobre o erotismo que será adotada, no trabalho em questão, não
apenas o erótico ligado ao sexual, mas também ao sensual.
Ainda para I. Machado, para se falar de erotismo em Lorca é necessário alargar
nossa visão e entender o mesmo como algo que possui um sentido mais universal. A autora
faz distinção entre pornografia e erotismo, pois o erótico se “distingue dela pelo seu caráter
estético, mas, sobretudo, por seu simbolismo místico, de união com o todo, uma união
mais íntima e espiritualizada” (MACHADO, 2007, p. 103). Uma vez que em García Lorca
28
o erótico está ligado à natureza, sua obra é totalmente sinestésica. Ao tocar os sentidos, faz
“descobrir uma pulsão erótica”. O poeta descreve paisagens e cheiros através da associação
de idéias e metáforas. Seu conteúdo erótico reside nessa associação de idéias, metáforas
que nos transmitem visões, odores e sabores naturais.
Paz (1999, p. 21) define o erotismo a partir da diferenciação da sexualidade.
Segundo o autor, o erotismo não se reduz à pura sexualidade animal. Ambos são de reinos
independentes. E afirmar que os atos eróticos são instintivos é lugar-comum. Um mesmo
ato pode ser erótico ou sexual, depende de quem o realiza. Para ser erótico tem que ser
praticado por um humano, enquanto o puramente sexual é desempenhado por um animal.
Dessa maneira, a sexualidade é mais geral; o erotismo, singular. O erotismo tem alguma
coisa a mais que a sexualidade, tem uma complexidade que essa não possui, é desejo
sexual e algo mais, e esse último que constitui sua própria essência. De tal modo, o
erotismo é um mais além. “Algo mais que a história, mais que sexo, mais que a vida, mais
que a morte” (PAZ, 1999, p. 35).
O erotismo, para o estudioso, é uma convenção social. É a sexualidade socializada,
posta sob regras, leis que dominam o instinto animal. E como ato humano, o erotismo é
histórico. Ou seja, “muda de uma sociedade para outra, de um homem para outro, de um
instante para outro.” (PAZ, 1999, p. 27). É uma cerimônia que se realiza de costas para a
sociedade. Se assim não o fosse o homem agiria como os animais, que praticam sua
sexualidade de acordo com seus instintos em qualquer lugar e a qualquer hora. Para Paz
(1999, p. 32), o erotismo é, ao mesmo tempo, fusão com o mundo animal e ruptura. Sendo
um mundo fechado tanto à sociedade quanto à natureza, pois acontece em lugares também
fechados: num quarto, numa cabana etc.
Definido, por Octavio Paz (1999, 36), como linguagem, uma vez que é expressão e
comunicação, o erotismo nasce com ela, e acompanha-a em sua transformação, além de
servir-se de todos os seus gêneros, inclusive o literário.
Bataille (1987, p. 11) define o erotismo como presença da vida dentro da morte.
Sendo assim, o erotismo seria transgressão, violência, profanação, vontade de anular-se
para fundir-se ao outro. Para ele, essa é uma fórmula que sentido ao erotismo. Na
definição precisa do autor, “o erotismo é uma atividade sexual com uma procura
psicológica independente do fim natural encontrado na reprodução”. Há, para Bataille
(1987, p. 12), uma relação entre a morte e a excitação sexual, pois a passagem do estado
normal ao de desejo erótico supõe a dissolução relativa do ser. Essa dissolução se na
29
medida em que no erotismo dos corpos há a fusão de dois seres que se misturam, para ao
final encontrarem o mesmo ponto de dissolução. Para haver a concretização do erótico
deve inicialmente acontecer a destruição da estrutura do ser individual, fechado sobre si
mesmo.
De acordo com o autor, o sexo e a morte são os dois maiores interditos da
sociedade ocidental. Mas sabe-se que o interdito não anula o desejo. E mais, as proibições
fundadas sobre o medo se tornam desejadas; a ação proibida adquire um sentido que não
tinha antes. Devido a isso, a relação entre a prefixação de espaços e o comportamento pelo
menos ambíguo das metalinguagens, obriga o “erótico” a refugiar-se no domínio do não-
dito, das entrelinhas, do sussurro, que, com o tempo, passa a ser aceito debaixo de
máscaras alternativas que se desenvolvem como características absolutas. No entanto, o
interesse pelo assunto é uma constante e as múltiplas manifestações “informativo-
formativas” espalham conhecimentos sobre o sexo e o erotismo em diversas direções.
Sem o interdito, de acordo com o autor, o homem não poderia ter chegado à
consciência clara. Os interditos são a chave de nova atitude humana. E eles são impostos
de fora, inicialmente. Porém tornam-se com o tempo atos interiores, que fazem parte de
nossa inconsciência. Assim, são irracionais. Estão dentro de nós e quando os transgredimos
sentimos angústia sem a qual o interdito não existiria. A experiência leva à transgressão
realizada e bem-sucedida, o que sustenta o interdito e dele tira o prazer. Então de um ato
proibido alcança-se o prazer erótico.
Voltando à afirmativa, que é feita logo no início da exposição sobre a teoria de
Bataille, de que o erotismo e a morte são dois grandes interditos para a espécie humana,
pode-se dizer que a prática da sepultura é o testemunho da morte (o que é definida através
da consciência que se tem dela). A sepultura e o cadáver nos remetem à imagem do destino
do homem, é o testemunho de uma violência que destruirá a todos. O interdito que a morte
introduz é a interrupção da vida. O ser que é descontínuo, mas que recusa tal condição, se
vê perante o desfalecimento de seu sonho de ser contínuo.
A atividade sexual, assim como a morte, interessa ao homem desde os primórdios.
Ela teve de ser limitada pelo interdito para que não atrapalhasse o desempenho do homem
no trabalho. E em todos os tempos e lugares “o homem é definido por uma conduta sexual
subordinada a regras, a restrições definidas: o homem é um animal que permanece
“interdito” diante da morte e da união sexual” (BATAILLE, 1987, p. 47).
Para Barthes, o erótico, ou a parte mais erótica de um corpo, é “o ponto em que o
30
vestuário se entreabre” (1973, p.44). Para ele é a cintilação que seduz ou a intermitência da
pele que cintila entre duas peças. A encenação do aparecimento-desaparecimento. Não é o
streep-tease que é erótico, mas a excitação na esperança de ver-se o oculto que se deixa
entrever.
Assim, diante de tantas definições vê-se que o conceito dado ao erótico ou erotismo
é bastante amplo, dependendo de cada autor, cultura e época para defini-lo. Pensando
nisso, nota-se em Lorca a existência de um erotismo sensorial e sublimado, em que a
natureza, na maioria das vezes, torna-se símbolo desse erotismo. No último quadro da peça
Bodas de Sangue, percebe-se a presença do erotismo referido. A personagem Noiva utiliza
a água e o fogo para simbolizar o desejo que sentia por Leonardo e explicar à personagem
da Mãe porque abandonou o Noivo no dia de suas núpcias, veja-se:
NOIVA: Porque eu fugi com o outro, eu fui! (Com angústia)
Você também teria ido. Eu era uma mulher ferida pelo fogo, cheia de
chagas por dentro e por fora, e seu filho era um pouquinho de água, de
quem eu esperava filhos, terra, saúde; mas o outro era um rio escuro,
cheio de ramagens, de onde me chegava o sussurro dos juncos e um
murmúrio abafado. E eu corria com seu filho, que era um fiozinho de
água fria, e o outro me mandava centenas de pássaros que me impediam
de andar e derramavam orvalho nas minhas feridas de mulher fraca e
abatida, de moça acariciada pelo fogo. Eu não queria, ouviu bem? Eu
não queria! Seu filho era o meu fim, e eu o o traí, mas o braço do
outro me arrastou como a correnteza do mar, como um coice, e teria me
arrastado sempre, sempre, sempre, mesmo que eu fosse velha e todos os
filhos do seu filho me agarrassem pelos cabelos! (LORCA, 1977, p.140-
141).
O erotismo que queima a Noiva é definido, pela personagem, como fogo, seu corpo
estava queimando e cheio de chagas por dentro e por fora. É uma mulher que arde de
desejo, porém o Noivo não é capaz de aplacar esse sentimento, pois ela o apenas como
um fiozinho de água, o que é pouco para acalmar-lhe os sentidos. Todavia, Leonardo é
visto como “um rio escuro e cheio de ramagens”. Como algo misterioso e que a puxava
como a correnteza do mar que a tudo arrasta com furor. Ao mesmo tempo em que se
tornava orvalho que a molhava com delicadeza e curava a dor de seu desejo. Leonardo era
água que a deixava sem chão e sem movimentos para andar ou fugir, como se centenas de
pássaros a segurassem nas alturas.
Como se nota, o erotismo presente em Lorca é simbólico, pleno e sublime, o que é
alcançado pela comparação aos elementos da natureza.
31
3. A ÁGUA E SUA SIMBOLOGIA NA POESIA LORQUIANA
3.1.A água existencialista
No reino da imaginação, para Bachelard, é possível estabelecer uma lei dos quatro
elementos, que classifica as diversas imaginações materiais segundo elas se associem ao
fogo, ao ar, à água e à terra. Toda obra poética recebe componentes de essência material, e
para que o devaneio se torne obra escrita é preciso que ele encontre sua matéria.
A água possui um tipo de intimidade diferente daquela que o fogo ou a pedra
sugerem. É um tipo particular de imaginação. Elege um tipo de destino, o vão destino de
um sonho que não se acaba. O homem tem o destino da água que corre. A água é um
elemento transitório, efêmero, assim como o homem, pois possui implícita a morte
cotidiana: ela corre sempre, cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. É mais
sonhadora, seu sofrimento é infinito. É o que vemos no poema “Mar”, de Lorca, onde mar
e homem possuem o mesmo destino, o de ser efêmero e transitório, veja-se:
O mar é
o Lúcifer do azul.
o céu caído
por querer ser a luz.
Pobre mar condenado
a eterno movimento,
havendo antes estado
quieto no firmamento!
Mas de tua amargura
te redimiu o amor.
pariste a Vênus pura,
e ficou-te a fundura
virgem e sem dor.
Tuas tristezas são belas,
mar de espasmos gloriosos.
Mas hoje em vez de estrelas
tens polvos verdosos.
Agüenta teu sofrer,
formidável Satã.
Cristo velou por ti
como também o fez Pã.
A estrela Vênus é
a harmonia do mundo.
Cale o Eclesiastes!
32
Vênus é o profundo
da alma...
... E o homem miserável
é um anjo caído.
A terra é o provável
paraíso perdido.”
(LORCA, 2002, p.153)
O mar é o diabo das águas, é como um céu sob a terra. Assim, o mar é um “deus”
do mal que governa um céu (azul) que está na terra.
Pode-se ver no poema a comparação do mar a Lúcifer, o anjo caído do céu, o mar é
o céu caído, e torna-se a extensão violenta do azul calmo e sereno do céu, porque as águas
do mar podem ser ferozes, destruidoras, violentas como o anjo caído, Lúcifer. Como
conceitua Bachelard: “Um mar calmo é acometido por uma súbita ira. Rosna e ruge.
Recebe todas as metáforas da fúria, todos os símbolos animais do furor e da raiva”. (2002,
p. 178). Como Lúcifer o mar transforma-se neste “ser” irado e violento por ter perdido o
paraíso do céu, por ter querido ser Deus e por ter sido expulso do paraíso divino. Ainda,
segundo o autor, “a água violenta é um dos primeiros esquemas da cólera universal”
(BACHELARD, 2002, p. 184).
Mas o mar possui um sofrimento, devido ao eterno movimento a que está
condenado. Assim, como o vão destino do homem que morre a cada dia que vive. Motivo
pelo qual o eu lírico do poeta expressa o lamento pelo mar ter perdido a quietude do
firmamento. O céu é infinito e imóvel enquanto o destino das águas é um deslocar-se
contínuo para um não sei onde também infinito. Mario Quintana, ao tratar desse correr
infindo, também expressa tristeza em seu poema “Deixe-me seguir para o mar”:
Deixa-me ser
o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo...
e o meu destino é sempre seguir...
é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
deixa-me fluir, passar, cantar...
toda a tristeza dos rios
é não poderem parar.
(QUINTANA, 1986. p. 30).
Assim como Lorca, Quintana canta o eterno correr das águas e sua tristeza de
nunca poderem parar.
33
Lorca, em seu poema, diz “Agüenta teu sofrer,/ formidável Satã.” O mar, deus
maldito, todavia poderoso, não tem outro desígnio, assim como o homem, a não ser
perpetuar o absurdo de uma existência que se repete, seu destino ligado a um sofrimento
eterno, a um movimento eterno. Como o mito de sifo, exemplo do destino humano: do
homem condenado a rolar indefinidamente a pedra de sua existência: homem miserável/
é um anjo caído./ A terra é o provável/ paraíso perdido.” Nesta metáfora poética homem/
mar/ Lúcifer - o homem é esse ser condenado ao sofrimento do cotidiano, é um anjo que
caiu do paraíso, na busca de seu próprio paraíso perdido e vivendo na terra buscando o
céu, mesmo estando nela (por não entender que o paraíso pode ser encontrado dentro
dele mesmo) vive a constante busca de “uma felicidade perdida não sei onde e nem
porque”, é o espelho deste mar de sentimentos em constante movimento. Desta maneira,
parece viver um eterno sofrer romântico em que nunca está em paz com o mundo em que
vive, está sempre em busca de um outro mundo idealizado, e em fuga do cotidiano que o
assola.
Mar e homem sofrem o vão destino do efêmero na superfície terrestre, de acordo
com Octavio Paz (1984, p. 89): “A analogia não só é uma sintaxe cósmica, é também uma
prosódia. Se o universo é um texto ou um tecido de signos, a rotação desses signos é regida
pelo ritmo. O mundo é um poema...”
E na quarta estrofe descobre-se que apesar de possuir um destino triste, o mar não
deixa de ser belo: “Tuas tristezas são belas,/ Mar de espasmos gloriosos./ Mas hoje em vez
de estrelas/ Tens polvos verdosos.” Porém suas estrelas não são como as do céu brilhantes,
ofuscantes, são sim polvos verdejantes. O brilho que o mar recebe não é a luz dourada das
estrelas, mas o brilho verde dos seres que habitam seu interior. A cor verde dos habitantes
marinhos remete à falta de repouso desses seres. Aqui o verde é a cor de quem perdeu o
céu, a cor do desespero irremediável. Lorca faz uma subversão de sentidos cristalizados
dos símbolos em seus poemas. Assim, em muitas de suas obras, os símbolos não têm o
mesmo sentido dos dicionários. O poeta os recria. “Mar” é um exemplo disso. Aqui a cor
verde não lembra a calmaria ou a esperança, como de práxis, mas a cor da agitação e da
putrefação dos entes das profundezas do mar.
O mar é símbolo da dinâmica da vida: “Pobre mar condenado/ A eterno
movimento”. O movimento de suas águas pode simbolizar o estado transitório entre as
“possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação ambivalente, que
é de incerteza, de vida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal.”
34
(CHEVALIER E GHEERBRANT, 2006, p. 592-593). A própria vida humana, em que
cada dia é um novo nascer sem que se saiba o que poderá acontecer, o mistério de viver.
A imagem de Vênus aparece na terceira e quarta estrofes do poema. Vênus, deusa
romana, do amor, equivalente à Afrodite dos gregos, possui uma relação estreita com a
água. Ela nasce de uma concha, como bem retrata Botticelli em Nascimento de Vênus
1
(observe a figura abaixo):
A obra de Botticelli representa bem o nascimento da Vênus, como descreve Lorca
no poema: “pariste a Vênus pura,/ e ficou-te a fundura/ virgem e sem dor.” Ambos, poesia
e tela, representam o nascimento de Vênus do profundo das águas marinhas. Segundo a
mitologia romana, a deusa nasce dentro de uma concha de medrepérola, tendo sido gerada
pelas espumas. Seu nascimento redime o mar de sua amargura e rebeldia: “Mas de tua
amargura/ te redimiu o amor.” Pois, Vênus é “A estrela Vênus é/ a harmonia do
mundo/.../Vênus é o profundo/ da alma...”
1
Botticelli (1483).
35
Nos versos citados, no parágrafo anterior, temos a imagem do erotismo: o mar é
fecundado e gera Vênus dentro de uma concha. A própria Vênus, a deusa nascida das
águas, revela não apenas sensualidade, mas ligação espiritual que ultrapassa o erótico
material.
Em Lorca certas formas nascidas das águas são mais atraentes, mais misteriosas e
estão ligadas ao destino do homem e ao tempo histórico deste: “A água era negra no fundo
das eras, quando chega a ponte ali para e canta” (LORCA, 1968 p.27).
A imaginação é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade. A
imaginação inventa vida nova, inventa mente nova; abre os olhos para novos tipos de
visão. A verdadeira poesia tem a função de despertar. Mas deve guardar a lembrança dos
sonhos preliminares.
3.2. A água sensorial
Um outro elemento a ser considerado é o frescor. Segundo Bachelard (2002, p.34),
uma característica mais simples da psicologia das águas; é um componente da poesia das
águas primaveris, cintilantes de imagens. Observemos os seguintes versos dos poemas
“Meditação sob a chuva” e “Chuva”, em que se têm tais propriedades:
Meditação sob a chuva
Beijou a chuva o jardim provinciano,
deixando emocionantes cadências nas folhas.
O aroma sereno da terra molhada.
Rasgam-se nuvens grises no mundo horizonte.
Sobre a água adormecida da fonte, as gotas
se cravam, levantando claras pérolas de espuma.
Fogos-fátuos que tremor das ondas apaga.
A pena da tarde estremece com minha pena.
Encheu-se o jardim de ternura monótona.
Todo o meu sofrimento há de perder se, meu Deus,
como se perde o doce som das frondes?
Oh, tranqüilidade a do jardim com a chuva!
Toda a paisagem casta meu coração transforma
num ruído de idéias humildes e apenadas
Que põe em minhas entranhas um agitar de pombas.
Todo o eco das estrelas que guardo n’alma
36
será luz que me ajude a lutar com minha forma?
E a alma verdadeira se desperta na morte?
E nisto que agora pensamos, a sombra o tragará?
Sai o sol.
O jardim dessangra em amarelo.
Palpita sobre o ambiente uma pena que afoga,
eu sinto a nostalgia de minha infância intranqüila,
minha ilusão de ser grande no amor, as horas
passadas como esta contemplando a chuva
com tristeza nativa.
Chapeuzinho vermelho
ia pela senda...
Acabaram-se minhas histórias, hoje medito, confuso,
ante a fonte turva que do amor me brota.
Todo o meu sofrimento há de perder-se, meu Deus,
como se perde o doce som das frondes?
Torna a chover.
O vento vem trazendo as sombras.
(LORCA, 2002 p. 145)
Chuva
A chuva tem um vago segredo de ternura,
algo de sonolência resignada e amável,
uma música humilde se desperta com ela
que faz vibrar a alma adormecida da paisagem.
É um beijar azul que recebe a Terra,
o mito primitivo que torna a realizar-se.
O contato já frio de céu e terra velhos
com uma mansidão de entardecer constante.
É a aurora do fruto. A que nos traz flores
e nos unge do sagrado espírito dos mares.
A que derrama vida sobre as sementeiras
e na alma tristeza do que não se sabe.
A nostalgia terrível de uma vida perdida,
o fatal sentimento de ter nascido tarde,
ou a ilusão inquieta de uma manhã impossível
com a inquietude quase da cor da carne.
O amor se desperta no gris de seu ritmo,
nosso céu interior tem um triunfo de sangue,
mas nosso otimismo converte-se em tristeza
ao contemplar as gotas mortas nos cristais.
E são as gotas: olhos de infinito que fitam
o infinito branco que lhes serviu de mãe.
Cada gota de chuva treme o cristal turvo
37
e lhe deixam divinas feridas de diamante.
São poetas da água que viram e que meditam
o que a multidão dos rios não sabe.
Oh! Chuva franciscana que levas a tuas gotas
almas de fontes claras e humildes mananciais!
Quando sobre os campos desces lentamente
as rosas do meu peito com teus sons abres.
Minh’alma tem tristeza de chuva serena,
tristeza designada de coisa irrealizável.
tenho no horizonte um luzeiro aceso
e o coração me impede que corra a contemplá-lo.
Oh! Chuva silenciosa que as árvores amam
e és sobre a planície doçura emocionante;
dás à alma as mesmas névoas e ressonâncias
que pões na alma adormecida da paisagem!
(LORCA, 2002, p.43- 45).
Aqui a poesia de Lorca assume seu caráter sensorial. A chuva cai serena no jardim,
deixando a musicalidade nas folhas. Ao fecharmos os olhos somos capazes de ouvir a
chuva, aspirar o cheiro da terra e sentir a cadência das folhas que sacodem. Esses
elementos ao provocarem a sensação de prazer, mexem com nossos sentidos: com o olfato,
o tato e a audição, o que se constela neste vivenciar erótico da natureza: “Toda a paisagem
casta meu coração transforma/ Num ruído de idéias humildes e apenadas/ Que põe em
minhas entranhas um agitar de pombas
.”
Em “Chuva” o aguçamento dos sentidos dado
pela música que a chuva traz ao cair sob a natureza “Uma música humilde se desperta com
ela/ Que faz vibrar a alma adormecida da paisagem.”; o mesmo beijo é recebido pela terra
nos poemas: “É um beijar azul que recebe a Terra”. (“Chuva”), “Beijou a chuva o jardim
provinciano” (“Meditação sob a chuva”). O verbo beijar é significativo dessa afetividade
sensual.
Em “Chuva” a cor dada pelo eu rico para simbolizar o celestial é o azul, pois essa
cor tem conotação de paraíso, de felicidade. O lugar de onde a chuva vem.
A exaltação ou louvor à chuva se dá em todo o poema “Chuva”, porém nos
seguintes versos uma consagração ainda maior, onde a chuva é vista como algo
bondoso, que ajuda o próximo, sendo capaz de doar-se em favor dos irmãos. Ela é
comparada, ou lhe é dada a qualidade de franciscana, aquela que se oferece em favor dos
outros, que ajuda e que é humilde: “Oh! Chuva franciscana que levas as tuas gotas/ Almas
de fontes claras e humildes mananciais!”
38
A chuva é o agente fecundador do solo: “Beijou a chuva o jardim provinciano,/
Deixando emocionantes cadências nas folhas./ O aroma sereno da terra molhada”
(“Meditação sob a chuva”). A chuva deixa na terra um cheiro que causa serenidade, e a
terra molhada torna-se fértil e pronta para germinar as sementes. No segundo poema tem-
se o mesmo sentido, em que a chuva é vista como algo primitivo que se repete sempre.
Primitivo no sentido que ocorre desde o princípio do mundo e que é uma dádiva, algo tido
como paradisíaco, pois fertiliza a terra e proporciona à natureza continuar viva dando seus
frutos e flores: “É a aurora do fruto. A que nos traz flores/.../ A que derrama vida sobre as
sementeiras”.
O jardim que aparece em “Meditação sob a chuva” é símbolo do Paraíso terrestre,
“de que é a representação, dos estados espirituais, que correspondem às vivências
paradisíacas” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2006, p.512). Dessa forma, o jardim, ao
ser tocado pela chuva remete a um lugar celestial, puro, de paz.
Na segunda estrofe de Meditação sob a chuva” tem-se uma imagem bela criada
pelo poeta: “Sobre a água adormecida da fonte, as gotas/ Se cravam, levantando claras
pérolas de espuma./ Fogos-fátuos que o tremor das ondas apaga.” Essa imagem nos leva a
visualizar as gotas da chuva caindo sobre a água, já parada no chão, formando algo
semelhante aos fogos que dão uma beleza instantânea. Dessa maneira, a pérola no poema
tem a conotação de brancura e o formato arredondado que forma quando os pingos d’água
atingem a superfície. Os pingos d’água também lembram o diamante: “Cada gota de chuva
treme o cristal turvo/e lhe deixam divinas feridas de diamante.” As feridas a que o ser do
poeta refere pode ser as gotas da chuva que caem abrindo a água que está sobre a
superfície.
Os poemas mostram o estado de espírito do eu lírico. São apresentados em ambos
os mesmos sentimentos, desilusões perante a vida e ao amor e exaltação aos benefícios que
a chuva traz consigo. Até o sentimento análogo entre o eu lírico e a natureza é recorrente
nos dois poemas. A cor acinzentada deixada pela chuva um colorido triste à paisagem e
ao estado emocional do eu lírico: “Rasgam-se nuvens grises no mundo horizonte.”
(“Meditação sob a chuva”) e “O amor se desperta no gris de seu ritmo”. (“Chuva”).
A chuva que inicia os poemas é algo que acalma e remete a uma condição de
pureza espiritual, de paz. E como o próprio título de um deles remete, o eu lírico está
meditando sob a chuva. O dia chuvoso o leva a analisar a vida. Temos nos poemas também
o sentimento romântico do homem fugir de suas dores para a natureza. No entanto, a chuva
39
também deixa o dia escuro e triste e é assim que o eu lírico se sente. Pode-se notar tal
sentimento a partir dos versos que dizem “Rasgam-se nuvens grises no mundo horizonte.”
Depois tem-se a seqüência: “Toda a paisagem casta meu coração transforma/ Num ruído
de idéias humildes e apenadas/ Que põe em minhas entranhas um agitar de pombas”. E
mais a frente: “Eu sinto a nostalgia de minha infância intranqüila,/ Minha ilusão de ser
grande no amor, as horas/ Passadas como esta contemplando a chuva/ Com tristeza
nativa.” (“Meditação sob a Chuva”). “A nostalgia terrível de uma vida perdida,/ O fatal
sentimento de ter nascido tarde,/ Ou a ilusão inquieta de uma manhã impossível/ Com a
inquietude quase da cor da carne.” (“Chuva”) Nota-se a angústia do eu lírico que se sente
como as nuvens cinzentas e carregadas. E toda aquela paisagem que a chuva traz
transforma seu estado de espírito levando-o a meditação, a recordações de um passado
intranqüilo, de dor e que o remete a uma tristeza profunda, a um sofrimento que o abate.
A desilusão ou angústia vivida nos poemas ocorre porque não realização do
desejo de vida que o eu lírico sonhou: “Minh’alma tem tristeza de chuva serena,/ Tristeza
designada de coisa irrealizável”.
A tristeza sentida no poema “Chuva” é ratificada pelos versos em que é dito que as
gotas da chuva caem e ferem como um diamante, e que os poetas são capazes de
experimentar e compreender a dor de um dia chuvoso, de uma desilusão, de ver e sentir o
que as pessoas comuns não são capazes: “São poetas da água que viram e que meditam/ O
que a multidão dos rios não sabe.” Isto é, o poeta tem a alma sensível, consegue captar
coisas e sentimentos que os simples mortais não conseguem.
Na paisagem acinzentada logo aparece o sol que é a fonte da luz, do calor, da vida,
ele surge, nas estrofes finais do poema “Meditação sob a chuva”, como algo que vem para
colorir de amarelo aquela paisagem antes cinzenta causada pela nebulosidade da chuva.
Desta maneira, o sol tem aqui a simbologia da alegria, da luz após a escuridão. Porém a
claridade não muda o estado de espírito do eu lírico. Mesmo a escuridão passando, ele
ainda sofre por não ter conseguido se realizar no amor como sonhava: “Sai o sol./ ... Eu
sinto a nostalgia de minha infância intranqüila,/ Minha ilusão de ser grande no amor, as
horas/ Passadas como esta contemplando a chuva/ Com tristeza nativa.” E seu sentimento
de tristeza não acaba, ele se perpétua na estrofe final: “Torna a chover./ O vento vem
trazendo as sombras.” a reafirmação do sofrimento. Enquanto em “Chuva” o eu lírico
pede à chuva que ela possa lhe trazer a tranqüilidade, e como faz com as árvores dar a paz,
a harmonia a sua alma: “Oh! Chuva silenciosa que as árvores amam/ E és sobre a planície
40
doçura emocionante;/ Dás à alma as mesmas névoas e ressonâncias/ Que pões na alma
adormecida da paisagem!” Aqui o pedido de alívio para o sofrimento, assim a
possibilidade de mudança.
3.3.A água da fonte como confidente
Como se viu na análise anterior de “Meditação sob a chuva” e em “Chuva”, a água
ou a natureza está em constante analogia com o eu lírico. Seguindo essa mesma linha,
encontra-se em “Sonho” o sentimento de proximidade ou se pode dizer de fusão entre o
homem, ou seus sentimentos, e a água. Esse elemento está em união com os anseios
demonstrados no poema. Veja-se:
Meu coração repousa junto à fonte fria.
(Enche-a com teus fios,
aranha do olvido.)
A água da fonte sua canção lhe dizia.
(Enche-a com teus fios,
aranha do olvido.)
Meu coração desperto seus amores dizia.
(Aranha do silêncio,
tece-lhe teu mistério.)
A água da fonte escutava-o sombria.
(Aranha do silêncio,
tece-lhe teu mistério.)
Meu coração se curva sobre a fonte fria.
(Mãos brancas, distantes,
detende as águas.)
E a água o leva cantando de alegria.
(Mãos brancas, distantes,
nada fica nas águas!)
(LORCA, 2002, p. 81-83)
Em “Sonho” a água pode ter o sentido de vida. De vida amorosa: do amor sentido e
vivido. O eu lírico sente-se como esse elemento.
41
Logo na primeira estrofe tal simbologia aparece. O eu lírico diz: “O meu coração
repousa junto a fonte fria”. -se que a água está em consonância com o coração do eu
lírico, com o processo amoroso sofrido pelo mesmo. À medida que ele se apaixona a
aranha tece os mistérios do amor e a água pára de correr.
No primeiro verso o coração do eu lírico está em repouso, ou seja, quieto como
uma fonte fria. Está sem amor, e a aranha (pode ser símbolo do tempo que passa) como ser
que tece e prende sua presa nas suas teias misteriosas, vai construindo os mistérios de um
sentimento esquecido pelo poeta. A canção da água da fonte desperta o coração, que diz
seus amores: “Mãos brancas, distantes, detende as águas.” E o ser efêmero que é a água, e
em correspondência o amor, vai-se, leva o sonho de ser correspondido. O amor e a água
são passageiros: “Mão brancas, distantes, nada fica nas águas.”
A mão aparece todo o tempo no poema. Ela tem simbologia de ação, de poder e de
dominação. Assim, a mão nos versos analisados tem o poder de decidir, de segurar o amor
do eu lírico, porém ela o deixa escapar. Ela decide o destino. Mas, mesmo as mãos sendo
poderosas não são capazes de prender algo tão líquido, escorregadio e misterioso como a
água e o amor, e ele se vai.
A água e o ser do poeta dialogam, em uma linguagem recíproca, eles se comunicam
através do sentimento. A voz do homem é a dor e a da água é a sua canção ao escoar pela
fonte. De acordo com Bachelard (2002, p. 193), “a água é a senhora da linguagem fluida,
na linguagem sem brusquidão, da linguagem contínua, continuada, da linguagem que
abranda o ritmo, que proporciona uma matéria uniforme e ritmos diferentes”. E é através
dessa mesma linguagem que o eu lírico se comunica com a fonte. Tal fonte, símbolo do
amor, faz com que as emoções do poeta venham à tona. A fonte com a voz da água canta a
durabilidade do sentimento e da dor sentida: “E a água o leva cantando de alegria.//(Mãos
brancas, distantes,/nada fica nas águas!)”.
A fonte torna-se confidente do eu lírico, é a seus pés que o mesmo confessa suas
dores: “Meu coração desperto seus amores dizia.//A água da fonte escutava-o sombria.” E
a água parece corresponder ao sentimento do expositor, pois se torna sombria ao ouvi-lo.
Estar sombria é aqui uma forma de dialogar (de estar em correspondência) com o ser
angustiado do poeta.
Como se referiu no inicio do estudo, Turchi (2003, p.8) divide os gêneros de acordo
com os regimes do imaginário definidos por Durand. O gênero lírico está associado ao
regime noturno do sistema tico. Desta forma, a poesia, corpus do estudo em questão,
42
para penetrar na alma, para tocar a sensibilidade de seus admiradores ou simplesmente
leitores, utiliza como recurso a analogia e a similitude (uma coisa conforme outra, que
possui a mesma forma, mas não é a mesma coisa). Motivo pelo qual Durand considera
ambas como princípios que sustentam o regime noturno. Para Turchi (2003, p. 59), a
poesia procura reduzir a distância entre a palavra e a coisa.
Então, através da poesia, uma relação ou semelhança estreita entre o mundo
(natureza) e o homem. E isso é possível graças ao espírito delicado ou mesmo especial que
o poeta possui, ao seu potencial imaginativo. Esse fato pode ser comprovado pelas análises
aqui realizadas. Lorca está em constante correlação com a natureza. Em seus poemas como
é o caso dos três últimos estudados, o eu rico e a água, bem como a paisagem, estão em
plena harmonia, um sente o que o outro transmite. O dia chuvoso e melancólico faz com
que o espírito do eu lírico se contamine de tal sentimento e torne-se assim também. Ou será
que não é o estado em que se encontra o primeiro que faz com que a natureza chore e
derrame-se em chuva? Há uma semelhança muito grande entre um e outro.
No caso de “Sonho” a água torna-se análoga à dor do desprezo ou desilusão de
amor sofrida pelo eu lírico, que se torna sombria. A aranha é essa angústia tecida, dia pós
dia.
Através dessa analogia construída a cada verso pela similitude entre o mundo e o
sentimento, o mundo e a vida é que se consegue imagens tão puras e sedutoras quanto as
alcançadas nos poemas em questão.
3.4.A água como elemento erótico
Para Bachelard (2002), a canção do rio é fresca e clara. As águas risonhas, os
riachos irônicos, as cascatas ruidosamente alegres, são imagens e evocações literárias
constantemente encontradas. Às vezes, o que reflete na água carrega a marca feminina e
provoca devaneios intensos e sensuais. As águas do rio evocam a nudez e se douram com a
presença feminina. A nudez presente e insinuada em “Cacida
2
da Moça Dourada”, é
altamente sensual. Observe-se:
A moça dourada
banhava-se na água
e a água se dourava.
2
Composição de origem árabe que se caracteriza pela existência de versos curtos.
43
Logo as algas e as ramas
com a sombra assombravam
e o rouxinol cantava
louvando a moça branca.
E veio a noite clara
toldada de má prata
com peladas montanhas
por sob a brisa parda.
A moça molhada
era branca na água
e a água, toda em chamas.
Veio a aurora sem mancha,
com cem caras de vaca,
veio hirta, amortalhada
com geladas grinaldas.
A moça toda em lágrimas
banhava-se entre chamas
e o rouxinol cantava
com as asas queimadas.
A moça dourada:
Era uma garça branca
E a água dourava.
(LORCA, 2002, p. 557-559)
O eu lírico, ao descrever a moça banhando-se no rio, branca e molhada, nos traz a
imagem da mulher que se banha nua evocando a sensualidade feminina. A água e a mulher
juntas trazem um simbolismo erótico, o que faz com que a imagem do banho venha
carregada desse estigma. Esse aspecto sensual do banho feminino despertou em todas as
épocas o desejo de ser aprisionado, não apenas pelos poetas, mas também pelos pintores.
Observe-se nas reproduções pictóricas, o banho feminino é uma constante nas artes
plásticas no decorrer da História
3
.
Segundo Bachelard (2002, p. 37), a mulher nua pode ser representada pela imagem
de um cisne. O cisne torna-se, então, feminino na contemplação das águas luminosas. O
seu canto pode ser interpretado como eloqüentes juras do amante. Na concepção do autor,
a imagem do cisne é sempre a imagem de um desejo. Enquanto desejo, ele canta. Assim, o
canto do cisne pode ser o símbolo do desejo sexual: mas seu canto vem carregado de morte
- ao cantar ele morre, assim, como afirma Bataille, como todo desejo, ao realizar-se morre,
3
Observe em anexos II, pinturas.
44
na fusão de dois corpos que se entregam tornando-se um. Aqui uma estreita correlação
entre a mulher e o cisne.
Segundo a mitologia grega, Zeus, ao ver Leda banhar-se no rio, apaixonou-se por
ela e para aproximar-se da mesma tomou a forma de um cisne. Fascinada com a beleza da
ave Leda entregou-se aos seus encantos e desse amor nasceu Helena, Castor, lux e
Elitemnestre.
Tanto Cirlot (2005, p. 45) quanto Bachelard (2002, p.38) concordam que a imagem
do cisne é hermafrodita, podendo ser feminino na contemplação das águas luminosas e
masculino na ação.
A imagem do cisne, na poesia de Lorca, parece ter sido substituída pela imagem da
garça: “A moça dourada:/ uma garça branca/ na água que a dourava.” Aqui a imagem do
cisne se metamorfoseia em garça. A moça é a garça branca, é a mulher nua a que
Bachelard se refere. É o próprio desejo, uma vez que o dourado também é uma
representação sensual: como cor quente, lembra o calor dos corpos, e o calor do desejo.
O poema “Cacida da moça dourada” é totalmente imagético, constrói imagens a
cada verso. É duplamente simbólico pela junção dos elementos água e fogo. Além da lua, a
água e a garça branca são elementos que unidos expressam a carga erótica do poema.
Para Bachelard, um complexo é um fenômeno psicológico tão sintomático que
basta um único traço para defini-lo por inteiro. A imaginação literária, que pode
desenvolver-se no reino da imagem é mais propícia que a imaginação pictórica para
estudar a nossa necessidade de imaginar. A imagem de Ofélia é uma imagem fundamental
ao devaneio das águas. “Cacida da moça dourada” lembra o complexo de Ofélia por tratar
da cabeleira que a moça dourada espalhava sobre as águas do rio. Não é a forma da
cabeleira que faz pensar na água corrente, mas seu movimento. E, de acordo com Durand
(2002, p. 233), o símbolo da cabeleira está ligado ao da mulher que se despe.
A imagem da cabeleira de Ofélia é retomada na imagem da moça dourada: pelas
algas, ramos e grinaldas: “As algas e os ramos/ em sombra a assombravam/ [...]/ Veio a
aurora sem mancha,/ [....] /com geladas grinaldas”. Nessa estrofe, a moça dourada, assim
como Ofélia se deixa levar pelas águas do rio, com seus cabelos soltos, imagem que está
configurada nas grinaldas que denotam as núpcias que deviam acontecer, que alimenta o
erotismo da imagem. A imagem, em que a Rainha, em Hamlet, anuncia a morte de Ofélia
aproxima-se da imagem criada pelo poema: “Ali com suas líricas grinaldas/ de urtigas,
margaridas e rainúnculos/ e as longas flores.../ [...]. Suas longas vestes/ se abriram,
45
flutuando sobre as águas.” (SHAKESPEARE, 1968 p. 196-197). Em “Cacida da moça
dourada”, as grinaldas podem ser símbolos de morte da aurora. Porém, também podem
denotar a vida erótica, não se pode separar nunca eros de tânatos.
A água constela não simplesmente a imagem da morte, mas um outro aspecto.
Através dela um reforço do aspecto negativo desta água feminina e nefasta por
excelência que no imaginário pode ser o sangue menstrual.
O que constitui a irremediável feminilidade da água é que a liquidez é o
próprio elemento dos fluxos menstruais. Pode-se dizer que o arquétipo
do elemento aquático e nefasto é sangue menstrual. O que é confirmado
pela ligação freqüente, embora insólita a primeira vista, da água e da
lua.[...]
as águas estão ligadas à lua porque seu arquétipo é
menstrual.
(DURAND, 2002, p. 101-102).
Nessa análise Durand associa a água e a mulher à lua. A terceira estrofe do poema
expressa bem o casamento da água com a noite e vem associar o caráter feminino da lua e
da água: “E veio a noite clara/ toldada de prata.” A lua ilumina o corpo da moça
dourada. A noite, sendo clara, é iluminada pela lua, seu brilho frio é representado pela
palavra “prata”. Esse mesmo brilho, que exala a claridade, como dissemos, deixa em
evidência o corpo da moça dourada, seus seios nus aparecem sob a metáfora das peladas
montanhas, mostrando toda a sensualidade do corpo feminino, não esquecendo que a
claridade da lua desnuda a natureza. A brisa parda também lembra a sensualidade, o calor
desse corpo dourado - pardo -, é exalado por essa brisa sensual. Na cultura chinesa, a
“montanha e a água são símbolos que remetem respectivamente a dois princípios sexuais
constitutivos do universo: o Yang e o Yin.” (Durand, 2002, p. 129). Assim, a montanha
seria o masculino e a água o feminino.
A imaginação material, gerada pelos quatro elementos, gosta de jogar com as
imagens e suas combinações, ela tem a necessidade da idéia de combinação.
Bachelard (2002, p. 101) mostra o caráter matrimonial da química comum do fogo
e da água. Diante da virilidade do fogo, a feminilidade da água é irremediável, unidos esses
dois elementos criam tudo.
O autor diz que a água termal é imaginada antes de tudo como a composição direta
da água e do fogo. Entre os poetas, o cunho direto dessa composição será feito através de
súbitas metáforas.
Para Bachelard (2002 p. 104), é na imagem material da umidade quente que a
imaginação sonha com a união duradoura da água e do fogo. A umidade quente é a matéria
46
tornada ambivalente, ou seja, a ambivalência materializada. A estrofe que expressa a
imagem da umidade quente é: “A moça molhada/ era branca na água/ e a água, labareda”.
O fogo é, assim como a água, utilizado nos ritos como elemento purificador e
batismal. O símbolo do fogo é polivalente: existe um fogo espiritual e um fogo sexual. O
fogo da madeira, segundo Durand (2002, p. 333), está diretamente ligado ao ato sexual.
Na primeira estrofe de “Cacida da Moça Dourada” vemos essa mistura da água e do
fogo. E logo percebemos a correspondência entre o corpo da moça e da água em que a
mesma se banhava: A moça dourada/ banhava-se na água/ e a água se dourava.” É o
próprio desejo, uma vez que o dourado também é a representação do sensual, sendo uma
cor quente, lembra o calor dos corpos, o brilho do sol, a cor da pele morena, o desejo em si.
A moça dourada torna-se um elemento alquímico ligado ao calor, ao fogo e à luz. A água
se torna reflexo e espelho da figura feminina. Esse reflexo faz com que a moça dourada
perca seus contornos, e sua imagem se funda no espelho. O dourado, de acordo com
Durand (2002, p. 148-150), é representativo da espiritualização e tem um pronunciado
caráter solar. Na simbólica alquímica, pode passar se constantemente da meditação da
substância ouro para o seu reflexo graças ao seu brilho torna-se o sol. “O sol,
especialmente o sol ascendente ou nascente, será, portanto, pelas ltiplas determinações
da elevação e da luz, do raio e do dourado, a hipótese da excelência das potências
uranianas.” (DURAND, op. cit.). Na verdade o sol é antes de tudo luz.
Como já foi dito, a união entre fogo e água evoca o erotismo. O banho feminino por
si é erótico: associado ao fogo, ao dourado, produz uma imagem de calor, de desejo.
Em: “A moça toda em lágrimas/ banhava-se entre chamas/ e o rouxinol cantava/ com as
asas queimadas.” A moça queima-se nas chamas do desejo. Bataille, em sua obra O
Erotismo, trata da morte ligada ao elemento erótico. Na fusão dos corpos, a morte de
dois seres para que renasça apenas um. Se no poema se encontra a imagem da moça
dourada, quente, pelo desejo que se banha numa água pura e fresca, límpida, o que reflete a
sensualidade, o rouxinol pode ser o eu lírico em chamas, porém “o rouxinol cantava/ com
as asas queimadas” mas este se queima pela impossibilidade de realizar seu desejo,
impedido de completar-se através da fusão erótica o que, por outro lado, também causa a
morte.
Assim, pode-se realizar através do poema uma analogia: o rouxinol que canta pode
ser o poeta, e as asas queimadas podem igualmente significar a impossibilidade do poeta
em exercer seu erotismo devido a sua homossexualidade e por sofrer o preconceito de uma
47
sociedade repressora, que não aceita a expressão erótica do poeta. O Rouxinol assume a
simbologia de cantor do amor e da morte. Sua figura aparece em Romeu e Julieta, de
Shakespeare, cantando o amor e o final trágico de ambos. Há um conto de Oscar Wilde que
capta bem esse significado dado ao pássaro, em que uma jovem dama aceita dançar, em
um baile, com o pretendente se esse lhe trouxer uma rosa vermelha, e o estudante
encarrega o rouxinol de lhe trazer a bela flor. Porém nos jardins dali existem rosas
brancas, e o pássaro, então na sua busca para que realizasse o amor do nobre cavalheiro,
acaba se ferindo e o sangue que sai de seu corpo colore a flor de vermelho: o rouxinol
morre por amor para a realização de um outro amor.
Esse conto parece ilustrar explicar a simbologia do rouxinol no poema e na vida de
Lorca. Ele foi um poeta que viveu para a realização do amor, mesmo quando era
necessário recalcar seus desejos, sufocando-os. García Lorca era o “Rouxinol de
Andaluzia” porque cantava em seus poemas e dramas o amor e a morte.
A moça dourada pode representar o Yin, a anima, o feminino que vive dentro do eu
lírico, do poeta. “A moça de grimas banhava-se em chamas” as lágrimas quentes,
tornam-se uma extensão do prazer e da dor. Nesses versos pode-se encontrar uma outra
aproximação com a imagem de Ofélia, conforme Durand as lágrimas possuem um aspecto
secundário da água noturna, para ele “As grimas podem introduzir indiretamente o tema
do afogamento”. (DURAND, 2002, p.98) Esse afogamento pode traduzir-se no desespero
pela repressão dos sentimentos. A água, ligada intimamente às lágrimas, assume a
característica de uma “matéria do desespero.”
Complementando as informações dadas no capítulo teórico sobre os símbolos, a
questão dos regimes caracterizados por Durand, o regime diurno da imagem é marcado
pela antítese. Dentre as imagens aqui estudadas no agrupamento diurno encontra-se: a
água, o sol, o dourado e o fogo. O regime diurno da imagem antecede ao regime noturno,
sendo que este último “estará constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo”
(DURAND, 2002, p. 197). As imagens da noite e das trevas: tempo, morte e erotismo,
sucedem o dia. Essas imagens se conjugam sob a dominação de Cronos, Tânatos e Eros. A
noite é duplamente ameaçadora, pois é irmã do sono, do esquecimento e da morte. O
devaneio da matéria é um devaneio tão natural que a imaginação aceita quase sempre o
sonho que se insinua e entra na matéria das coisas. A noite é uma substância, é matéria
noturna, é apreendida pela imaginação material.
48
Como a água é a substância que melhor se oferece às misturas, a noite vai penetrar
a água, impregná-la. Essa impregnação é tão profunda que mesmo na luz do dia, a água
pode se revestir de substâncias noturnas. Um bom exemplo são as águas do lago em sua
quietude. A cantiga de ninar com que o personagem da Mulher, em Bodas de Sangre,
embala seu filho é carregada do simbolismo noturno da água. Veja-se:
Nana, meu menino,
do cavalo grande
que não quis a água.
A água era negra no fundo das eras!
quando chega à ponte,
ali pára e canta.
Quem dirá menino,
o que tem a água
de cauda tão longa
em tão verde sala?”
(LORCA, 1977, p. 27).
A água em estreita união com a noite torna-se traiçoeira e liga-se à morte. Para
Durand (2002, p. 111), a água negra é sempre o sangue, o mistério do sangue que corre nas
veias ou escapa com a vida pela ferida, cujo aspecto menstrual vem ainda determinar a
valorização temporal. “O sangue é temível porque é o senhor da vida e da morte e porque
na sua feminilidade é o primeiro relógio humano, o primeiro sinal humano correlativo do
drama lunar.” (DURAND, 2002, p. 111).
Na cantiga de ninar acima mencionada, outra imagem significativa e símbolo de
morte aparece: o cavalo. O cavalo, este ser isomorfo das trevas e do inferno. A cavalgada
pode ser fúnebre e infernal se unida à fuga, proporcionando um tom de eminente
fatalidade. O cavalo assume uma simbologia erótica: torna-se o símbolo do desejo
desenfreado e insatisfeito, a pulsão erótica de vida instintiva e livre. Mas o “cavalo grande
que não quis a água” traz em si a imagem de uma rejeição sofrida por esta Mulher que não
se sente mais objeto do desejo deste “cavalo”, que metaforicamente encarna o personagem
do marido. A água é ela, capaz de aplacar a sede do desejo, mas ao mesmo tempo, funesta
e perigosa, escura como a noite, parada no tempo, como o desejo sufocado que arde em seu
peito.
Segundo Durand, há culturas que ligam o cavalo ao mal e à morte. Mas a cavalgada
pode ter um sentido “psicanalítico e sexual”, que se manifestaria numa constelação
hipomórfica, reveladora da violência. O cavalo é associado pelo autor a água, não pelo
esquema do movimento sugerido pela água corrente, pelo trote rápido do corcel, mas pelo
49
caráter terrificante e infernal do abismo aquático. Nos versos citados de Bodas de sangre,
percebe-se a ligação do cavalo e do abismo aquático. Ambos denotam morte. A primeira
qualidade da água sombria está associada ao fato de a água que corre ser um signo da
viagem sem retorno, ou como diz o autor “a água escura é ‘devir hídrico’. A água que
corre é amargo convite à viagem sem retorno é figura do irrevogável. A água é epifania
da desgraça e do tempo”. ((DURAND, 2002 p. 96).
Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 202-212) postula que o cavalo é filho da noite e
do mistério, ele é associado pela imaginação à água, à sexualidade e à lua. E está ligado a
impetuosidade do desejo. Como foi visto nos versos citados de Bodas de Sangre, o cavalo
da peça está intimamente ligado a essa simbologia: a água parada é o desejo reprimido,
estagnado, a lua liga-se à morte e à noite. Todos os símbolos presentes estão ligados ao
cavalo.
momentos em que a água e a noite unem-se na doçura. Adquirem, juntas, um
perfume comum. Assim, a sombra úmida tem um perfume de duplo frescor, a noite traz o
perfume das águas. O frescor da noite sobre as águas presentifica a influência da lua: “por
sob a brisa parda.” E traz a imagem de uma noite fresca, que derrama seu frescor sob a
“moça dourada” nas águas.
A lua, intimamente associada à noite, aparece também ligada à obsessão do tempo
e da morte. Mas a lua, simultaneamente, medida do tempo, torna-se por seu aspecto cíclico
promessa explícita do “ eterno retorno.” (DURAND, 2002, p. 294).
“Cacida da moça dourada”, assim como a estrofe citada de Bodas de sangre, é um
poema que possui várias imagens construídas sob o devaneio da água. A água desse poema
é pura, enquanto transparência: ela e a mulher se misturam. É misteriosa como a mulher,
pois esconde o mistério da noite e o brilho prateado da lua. É sensual pela junção de vários
elementos que revelam a carga erótica do poema. As imagens são formadas a partir do
devaneio poético originário dos símbolos e arquétipos.
3.5.A água que purifica e regenera
No devaneio da água, esta converte-se em heroína da doçura e da pureza. De
acordo com Bachelard, a água doce sempre de ser, na imaginação dos homens, uma
50
água privilegiada. Ela é a qualidade da bebida necessária e fundamental à sobrevivência do
homem, por isso sagrada como Lorca expressa no poema “Amanhã”:
E a canção da água
é uma coisa eterna.
É a seiva entranhável
que madura os campos.
É sangue de poetas
que deixaram suas almas
perderem-se nas sendas
da Natureza.
Que harmonias derrama
ao brotar da penha!
Abandona-se aos homens
com suas doces cadências.
[...]
Que é o santo batismo
senão Deus feito água
que nos unge as frontes
com seu sangue de graça?
[...]
Ela encerra segredos
das bocas humanas,
pois todos a beijamos
e a sede nos mitiga.
È uma arca de beijos
de bocas já fechadas,
é eterna cativa,
do coração irmã.
Cristo deveu dizer-nos:
“Confessai-vos com a água
de todas as dores,
de todas as infâmias.
A quem melhor irmãos,
entregar nossas ânsias
do que a ela que sobe ao céu
em envolturas brancas?”
Não há estado perfeito
como o de tomar água,
nos tornamos mais meninos
e melhores: e passam
nossas penas vestidas
com rosadas grinaldas.
51
E os olhos se perdem
em regiões douradas.
Oh! Fortuna divina
por alguém ignorada!
Água doce em que muitos
seus espíritos lavam,
não há nada comparável
a suas margens santas
se uma tristeza funda
nos deu suas asas.
(LORCA, 2002 p. 37-41)
No poema acima a água aparece como um elemento purificador e curativo que livra
o homem do pecado com o batismo; sacia a sede dos sedentos, e através de sua canção
eterna serve de inspiração aos poetas. O batismo, segundo Chevalier e Gheerbrant (2006,
p. 126), é símbolo de purificação e renovação. E tem dois gestos ou duas fases de notável
alcance simbólico: a imersão e a emersão. Veja-se o simbolismo desses dois atos:
Imersão, hoje reduzida à aspersão, é por si rica de muitas
significações: indica o desaparecimento do ser pecador nas águas da
morte, a purificação através da água lustral, o retorno do ser às fontes de
origem da vida. A emersão revela a aparição do ser em estado de graça,
purificado, reconciliado com a fonte divina de vida nova. (CHEVALIER
E GHEERBRANT, 2006, p. 126).
Assim, o batismo por si purifica, cura e reconcilia o homem consigo mesmo e
com Deus.
A água torna-se o símbolo da grande mãe, no poema mencionado, pois assume
consideravelmente esse papel, pois aparece como redentora, como interventora em favor
de seus filhos, os homens.
Para Bachelard (2002 p.196-197), dizer que as consoantes líquidas não passam de
uma curiosa metáfora dos foneticistas é uma recusa da correspondência entre o verbo e o
real. É descartar todo âmbito da imaginação criadora: imaginação da palavra e do falar.
Essa imaginação sabe bem que o rio é uma palavra sem pontuação. Não perceber este
aspecto da imaginação falante é dar sentido restrito à função onomatopaica. Assim, quando
se escutam todos os seus sons, tão belos, tão simples, tão frescos, parece que a água “vem à
boca”. A liquidez é o princípio da linguagem: a linguagem deve estar inchada de águas:
“Ela encerra segredos/ das bocas humanas,/ pois quando a beijamos/ e a sede nos mitiga...”
a imagem da água que sacia a sede do prazer está aqui presente de forma marcante,
imagem sinestésica.
52
Bachelard (2002 p. 199) diz ainda, não existe grande poesia sem largos intervalos
de silêncio. Perto da água dormente a gravidade poética aprofunda-se. Para bem
compreender o silêncio nossa alma tem a necessidade de ver alguma coisa que se cala. De
todos os elementos, a água é o mais fiel “espelho das vozes”. É o que percebemos quando
o poema diz que “a canção da água/ é uma coisa eterna”, e completa pelos versos seguintes
“é seiva entranhável/ que madura os campos. É sangue de poetas/ que deixaram suas
almas/ perderem-se nas sendas da natureza. // Que harmonias derrama ao brotar da penha!/
Abandona-se aos homens com suas doces cadências.” Aqui mais uma vez nota-se caráter
sensorial da poesia de Lorca, como em “Meditação sob a chuva” em que a chuva prova a
cadência na folhas e ao molhar o chão traz um aroma de tranqüilidade. Em “Amanhã” é o
som da água ao sair da pedra que provoca a calma.
A água possui uma voz, provoca e expressa imagens. É algo que se entranha na
alma e inspiração aos poetas e artistas. Como elemento natural leva ao devaneio, leva o
poeta a entregar-se à natureza e “abandona-se aos homens/ com suas doces cadências”. O
canto da água seduz, envolve, inspira e proporciona o sonho.
Para Bachelard (op. cit., p. 199), “a água tem também vozes indiretas. A natureza
repercute ecos ontológicos. De todos os elementos, a água é o mais fiel ‘espelho das
vozes’”. Vemos isso em “escutai os romance/ da água nos choupais./ São pássaros sem
asas/ perdidos entre as ervas!”. A água no tronco seco reproduz o som triste do canto dos
pássaros quando estão perdidos. Essas vozes indiretas da água ligadas ao sentido
ontológico lembram a espiritualidade do próprio elemento.
A água reflete a beleza da lua, torna-se rosa ao amanhecer quando nela o sol toca.
A água pura é algo sagrado que é “Deus feito água/ que nos unge as frontes” no batismo. É
também erótica quando trocada no beijo “É uma arca de beijos/ de bocas já fechadas,/ é
eterna cativa,/ do coração irmã.” A água aqui é erótica no beijo e encerra segredos de
amor, desejo, paixão. Seduz pela boca fechada que convida a matar a sede de outra boca e
está sempre presa à mesma. Ao saciarmos a sede com a água pura ela também se
transforma num beijo que satisfaz este desejo.
A água expressa também o sagrado: na estrofe em que o eu lírico diz que Cristo nos
pede para confessar nossos pecados com a água, e aqui a água doce torna-se curativa,
purificadora. Sabe-se que a água é capaz de curar as dores musculares, reduzir a febre.
Desta forma, a água suaviza as dores e pode curar a dor da alma. Quando confessamos a
53
ela a dor do espírito, ela sobe aos céus através do vapor e esta água espiritual que liga o
homem ao divino chega à Deus.
Na última estrofe é confirmada a graça que a água doce e pura ao ser humano
“não estado perfeito/ como o de tomar água”... e a purificação que ela causa: “água
doce em que muitos/ seus espíritos lavam”. Aqui a pureza da água é vista como uma
aspersão curativa.
Uma das características que devemos aproximar do sonho de purificação sugerido
pela água límpida é o sonho de renovação sugerido pela água fresca. Mergulha-se na água
para renascer renovado. Para tratar desse poder de renovação da água, o autor fala da fonte
Juventa: o frescor. Todos possuem em casa uma fonte de Juventa em sua bacia de água
fria, numa enérgica manhã. É uma experiência trivial que desenvolve o complexo da
Poética de Juventa. A água fresca desperta e rejuvenesce o rosto, sob a fonte despertada
ganha vida um novo olhar. A água fresca restitui as chamas ao olhar, é o olhar que se
refresca. É um despertar.
Ao Complexo da Fonte de Juventa liga-se naturalmente à esperança de cura. A cura
pela água, em seu princípio imaginário, se faz por um sentido duplo da imaginação
material e da imaginação dinâmica: imaginação material -o homem projeta seu desejo de
curar e sonha com a substância compassiva; imaginação dinâmica - mais geral e mais
simples, a água é mais elementar, o ser vai pedir à fonte uma primeira prova de cura por
um despertar de energia. Desta forma, a hidroterapia tem um componente moral: desperta
os centros nervosos. No poema o complexo de Juventa, a água como purificadora e que
leva ao frescor e rejuvenescimento: “não estado perfeito/ como o de tomar água,/ nos
tornamos mais meninos/ e melhores...”
Bachelard (op. cit., p. 149) defende que: a substância valorizada pode agir, mesmo
em quantidade ínfima, sobre uma grande massa de outras substâncias. Essa é também a lei
do devaneio de poder. Tal lei vale tanto para o bem quanto para o mal. Prova de seu caráter
eminentemente ativo: uma gota de água pura basta para purificar o oceano; uma gota de
água impura basta para macular o universo. Assim, tudo depende do sentido moral da ação
escolhida pela imaginação material. Quem comanda é o interior. Então, as águas impuras
não são mais pensadas como substâncias, mas como forças. Quando nos submetemos
inteiramente à imaginação material, a matéria sonhada em seu poder elementar se exaltará
até tornar-se um espírito, uma vontade.
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Em “Amanhã” a água possui três aspectos marcados: é fonte de vida (alimento para
a alma sonhadora do poeta): “É sangue dos poetas/ que deixaram suas almas perderem-se
nas sendas da natureza”; é meio de purificação e centro de regeneração: “Confessai-vos
com a água/ de todas as dores./ de todas as infâmias./ A quem melhor, irmãos/ entregar
nossas ânsias/ do que a ela que sobe ao céu/ em envolturas brancas?
Como se a água pode ter muitas simbologias dependendo do contexto em que
aparece, pode ser fonte da vida, purificação, ter conotação erótica, algo que refresca e
fertiliza. Cada poema analisado nesse capítulo mostra a água com uma função
diferenciada. O símbolo tem esse poder: ser dotado de vários significados.
55
4 AS FACES DO EROTISMO NA POÉTICA DE LORCA
Antes de iniciar a análise dos poemas eróticos de Lorca vale tecer algumas
considerações sobre o erotismo e a libido, uma vez que estes são a base de estudo no
capítulo em questão.
Durand (2002) considera o erótico, assim como o tempo (marcado pelo dia e pela
noite) e a morte sob o mbolo de Eros, Cronos e Tanatos, como elemento que faz parte do
regime noturno da imagem. Estes símbolos ou imagens aparecem com muita freqüência
nos poemas a serem analisados sob a forma do feminino. Feminino que causa o desejo e
que é, conseqüentemente, a causa da dor provocada pela sua não realização. E disso
aparece o erotismo sublimado, não concretizado, recalcado, sofrido e interditado de Lorca.
Para Durand (2002, p. 195-196), a libido, causa do erotismo, do desejo, tem em
torno de si a imagem da morte e da queda, da qual formou-se uma constelação feminina e
em seguida sexual e erótica. É o que se percebe no estudo a seguir. A morte permeia o
desejo de possuir o feminino ou do próprio feminino querer realizar-se no prazer: seja
prazer erótico ou no prazer de ser mãe.
A libido, para Durand (op. Cit. 195-196), é ambivalente por ser um vetor
psicológico com pólos repulsivo e atrativo, mas também por esses pólos serem duplos e
ambíguos. Assim, o amor (Eros) pode carregar-se tanto de sentimentos bons, quanto de
ódio e da aspiração de morte, em que essa última pode ser desejada como fim de um
sofrimento ou de uma aspiração alcançada pela realização do prazer. É o que acontece em
“Gazel do amor imprevisto”, em que a boca da amada serve de consolo para a morte
desejada e esperada pelo eu lírico: “O sangue de tuas veias em minha boca,/ Tua boca
sem luz para minha morte.” Para Bachelard (2002, p. 122), a boca e os lábios são o terreno
da sexualidade permitida, é a primeira felicidade positiva.
Segundo o estudioso, libido significa “experimentar um violento desejo”. “A libido
tem, portanto, o sentido de desejar em geral, e de sofrer todas as conseqüências desse
desejo” (DURAND, 2002, p. 196). E esse desejo, ligado à eternidade, assume um aspecto
feminino e materno quando leva a imagens da morte, da carne e da noite. Tal aspecto pode
ser encontrado no poema “Elegia” e na peça Yerma, que serão estudados neste capítulo, em
que a vontade de realização de um desejo carnal e de ser mãe configura-se como desejo de
uma vida, algo violento e incontrolável.
56
Para Jung (1986, p. 120), a libido não está relacionada apenas à sexualidade, mas
também a outras áreas que nada têm a ver com o sexual. Ela é um apetite em seu estado
natural. Seria a vontade ou o desejo, a pouco referido com Durand. São as necessidades
físicas como “a fome, sede, sono, sexualidade e os estados emocionais, os afetos que
constituem a natureza da libido” (JUNG, 1986, p. 123).
Observe-se a seguir os poemas e suas análises sobre o erotismo.
4.1.O erotismo reprimido
Neste item pretende-se estudar o erotismo reprimido, sublimado e espiritual de
Lorca, em que se encontra a presença do elemento água. O primeiro poema em análise será
o “Gazel
1
do amor imprevisto”. Como todos os poemas estudados de García Lorca, o
símbolo aparece nele de maneira constante. Aqui a proposta é verificar os elementos da
natureza como símbolos. Tais elementos estão presentes nos seguintes versos, como algo
recorrente e representação de um erótico sublimado pelo feminino puro e belo. Veja-se:
Ninguém compreendia o perfume
da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
entre os dentes um colibri de amor.
Mil cavalinhos persas dormiam
na praça com luar de tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites
tua cintura inimiga da neve.
Entre gesso e jasmins, o teu olhar
em um pálido ramo de sementes.
Eu procurei, para dar-te, em meu peito
as letras de marfim que dizem sempre,
Sempre, sempre: jardim de minha agonia,
teu corpo fugitivo para sempre,
o sangue de tuas veias em minha boca,
tua boca já sem luz para minha morte.
(LORCA, 2002, p. 537)
Símbolo do feminino e da vida, o ventre que aparece na primeira das estrofes do
poema anuncia uma visão do poeta sobre o corpo feminino. No primeiro verso o perfume
da magnólia é associado à fragrância desse corpo. O perfume que desperta a memória
afetiva das pessoas e as transporta para um tempo e um espaço único. Enquanto a magnólia
1
Poesia amorosa, espécie de ode, dos persas e dos árabes, em dísticos.
57
escura do ventre nos faz associar imediatamente à imagem do púbis feminino. Segundo
Chevalier e Gheerbrant, o perfume tem um poder sobre o psiquismo, ligado às lembranças
involuntárias que a memória traz: os cheiros que nos marcaram têm a propriedade de nos
transportar para um passado e evocar imagens. Os aromas ligados a flores e jardins nos
remetem a um espaço paradisíaco que nos desperta perante o acontecer de uma
sensualidade pura e universal. É o que ocorre no poema, o cheiro do corpo da mulher
lembra a magnólia (o qual exala o perfume dessa planta), mais especificamente do ventre
da mulher amada, ou a flor da púbis, pois o eu lírico diz: “...o perfume da escura magnólia
do seu ventre.” A púbis seria a flor escura desse ventre. Assim, -se na estrofe citada o
desejo representado pelo cheiro que a flor pubiana exala, aroma característico da mulher
desejada, e também do desejo feminino.
Há, no poema, de maneira clara nessa estrofe introdutória, um desejo e um erotismo
sublimado e recalcado: “Ninguém sabia que martirizavas/ entre os dentes um colibri de
amor.” É um desejo escondido e sofrido. O colibri é martirizado entre os dentes, isto é, o
desejo que é esmagado. O beija-flor, ou colibri, é uma ave que vive livre tocando as flores,
de uma a uma colhe o néctar das mesmas. Estando preso entre os dentes (metáfora para a
repressão do erotismo) ele não pode realizar o seu anseio. À mulher do poema não se
permite realizar o próprio desejo.
O erotismo reprimido, na segunda estrofe, aparece sob o símbolo de cavalinhos que
dormem, são hiperbolicamente mil cavalinhos. O número mil pode ser representativo, da
imortalidade da felicidade e possui um significado paradisíaco, relacionado ao paraíso. O
cavalo que aparece aqui é diferente daquele visto no estudo de “Cacida da moça dourada”,
que possui simbologia de morte, mas também de vida, estando ligado a impetuosidade do
desejo. Os mil cavalinhos podem ser o desejo adormecido, ou imaturo de um amor
adolescente, de juventude ainda não despertado. É algo sonhado e manifestado sob a luz da
lua, nas sombras da noite.
Ao estudar Durand, vê-se quão complexo é o simbolismo animal. Ao utilizar-se um
símbolo desse tipo como representação da imaginação, ele passa a agregar alguns valores
que partem de suas características e que o sobredeterminam. Eles apresentam
particularidades que não se ligam diretamente à animalidade, o que neles prima são as
qualidades não propriamente animais. Além do mais, as representações animais
acompanham a imaginação humana desde a idade mais tenra. Desde criança as imagens
58
dos animais se acoplam ao seu imaginário, através de histórias infantis ou dos bichinhos de
pelúcia.
Pensando no estudo dos poemas, pode-se citar, como exemplo, do que foi dito
sobre o pássaro e o cavalo. O pássaro em “Gazel do amor imprevisto” aparece
representado pelo Colibri, que enquanto pássaro revela as características de liberdade, o
voar e cortejar as flores em busca do néctar num vai e vem incessante. Tal ação é coibida
porque a ave está presa. A asa, dessa forma, assume a particularidade toda do pássaro,
tomando a parte pelo todo. Ela é o instrumento, segundo Durand (2002, p.130), ascensional
por excelência. E “o pássaro é desanimalizado em proveito da função” (DURAND, 2002,
p.131) de voar que exerce. O pássaro pode ser o símbolo do Eros sublimado. No poema
analisado, o beija-flor aparece com essa função simbólica.
O cavalo tem como algumas de suas características o símbolo do tempo, a
impetuosidade e a virilidade. Essa virilidade aparece com a conotação de um erotismo
muito acentuado, e no poema em análise o erótico ou a libido aparecer no diminutivo como
algo ainda em amadurecimento, ou prematuro, como já mencionamos.
O instinto, de acordo com Jung (1986, p. 164), é freqüentemente apresentado como
touro, cavalo ou cão. Assim, a libido representada pela impulsividade animal é símbolo do
estado erótico reprimido.
A lua que aparece no verso seguinte é um elemento feminino, que pode simbolizar
a periodicidade e a renovação pelo seu ciclismo: pode ser símbolo de transformação e
crescimento. A lua está ligada à epifania do tempo, é um astro que, graças às suas quatro
fases, está submetida à temporalidade e à morte, mas também ao renascimento. Aqui, a lua
pode tornar se símbolo do sonho e do inconsciente.
Dessa forma, o erotismo e o desejo se manifestam através do sonho inconsciente ou
não dos amantes regidos pela lua, nas noites em que o amante tem sua amada sob seus
braços. São quatro noites em que ele a enlaça, pela cintura inimiga da neve (pode se referir
também à cor escura da moça), quente de desejo. O quatro pode ser símbolo da plenitude,
seria a plenitude do erotismo exaltado no poema. No sistema junguiano, o número quatro
representa o arquétipo da psique humana, a totalidade dos processos psíquicos conscientes
e inconscientes. E a noite, período em que acontece todo esse furor do desejo, é a imagem
do inconsciente, é no sono da noite que o inconsciente se libera.
A busca pela realização do desejo é marcada na penúltima estrofe, em que o eu
lírico diz procurar a amada para afirmar o amor e o desejo eterno que sente pela mesma,
59
declarado pela palavra “sempre”. Aparece nesses versos a flor (jasmim), o gesso, o ramo e
as sementes e o marfim. São elementos que podem simbolizam a eternidade do sentimento
sustentado pelo amante. A flor em si é símbolo do amor; o gesso como elemento duro e
branco pode simbolizar o sentimento duradouro e “puro” recalcado pelo eu lírico; o ramo
no cristianismo simboliza a imortalidade da vitória; as sementes também podem denotar
vida, nascimento. E o marfim pode reafirmar, pela sua alvura, a pureza dos sentimentos e
sua incorruptibilidade. No entanto, o gesso e o marfim são substâncias frias, lápides
eternas, mas antipoder da vida.
A última estrofe do poema reafirma a impossibilidade da realização do amor e do
desejo: pela repetição da palavra “sempre”. O sempre é repetido com a intenção de marcar
a frustração e a dor constante da não realização do erótico, o que se torna uma agonia para
o eu lírico. O jardim aparece como símbolo do paraíso perdido, de um sonho inalcançável.
O sangue, outro elemento que aparece nos versos finais, pode ser símbolo de vida e o
veículo das paixões, das pulsões.
Portanto, o sangue, a vida, a pulsão da amante é sentido pelo eu lírico nesse desejo
recluso. Desta maneira, o princípio de vida é posto à boca num instante de morte. O eu
lírico deseja a boca viva e vermelha da amante, mas não alcança a realização de seu desejo
e morre com o erotismo reprimido, o que é sustentado pelos dois versos iniciais da estrofe:
“Sempre, sempre: jardim de minha agonia,/ Teu corpo fugitivo para sempre”. Aqui uma
busca pela proximidade em relação ao corpo da mulher que se esquiva, uma relação de
afastamento da mesma, o que leva à interdição do desejo. O sangue de tuas veias é um
sangue gelado como o mármore, de um corpo fugidio. E a boca sem luz, inexpressiva, sem
desejo, para a morte do desejo do eu lírico que é obrigado a sufocá-lo.
4.2. O desejo realizado
O poema que analisaremos a seguir foge, de certa forma, do padrão dos analisados
até aqui. Esse diferencial se no sentido de que em “Madrigal de Verão” o desejo, o
erotismo, se realiza. Ao contrário dos poemas anteriores em que o amante se queima e
sofre por um sentimento que não se cumpre. Observe-se:
Junta tua vermelha boca com a minha,
ó Estrela gitana!
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sob o ouro solar do meio dia
morderei a maça.
[...]
Ofereces-me em teu corpo requeimado
o divino alimento
que dá flores ao álveo sossegado
e luzeiros ao vento.
Como te entregaste a mim, luz morena?
Por que me deste cheios
de amor teu sexo de açucena
e o rumor de teus seios?
[...]
Pinta com tua boca ensangüentada
um céu de amor,
num fundo de carne a roxa
estrela da dor.
[...]
E mesmo que não me quisesses eu te quereria
por teu olhar sombrio,
como quer a calandra o novo dia,
só pelo orvalho.
Junta tua vermelha boca com a minha,
ó Estrela gitana!
sob o ouro solar do meio dia
morderei a maçã.
(LORCA, 2002, p. 61-65)
A concretização do desejo pode ser verificada na estrofe em que o eu lírico
questiona porque a moça se entregou a ele: “Como te entregaste a mim, luz morena?/ Por
que me deste cheios/ De amor teu sexo de açucena/ E o rumor de teus seios?”. Assim nota-
se que a jovem foi possuída, que ela se deu, se entregou ao desejo do amante.
O erotismo do poema é percebido logo na primeira estrofe. O eu lírico pede um
beijo a sua amada, esse beijo é representado pela boca vermelha da mesma: “Junta tua boca
vermelha com a minha”. E o desejo vem complementar-se pelo simbolismo da maçã, que
por si lembra o pecado original, a interdição divina: “sob o ouro solar do meio dia/
morderei a maçã”. A maçã ganha sua simbologia, na perspectiva do regime diurno da
imagem, ligada à queda da qual fazem parte o ventre sexual e o digestivo. Esse último está
unido à sexualidade, à oralidade, ao ato de comer, devorar que é uma forma de prazer:
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símbolo hedônico da descida feliz, ao mesmo tempo
libidinosamante sexual e digestiva. Pode-se, de resto, notar de
passagem que o digestivo é muitas vezes eufemização ao
quadrado: o ato sexual é simbolizado por sua vez pelo beijo bucal
(sic!). (DURAND, 2002, p. 203).
Comer a maçã pode significar ter a liberdade de escolha entre o bem e o mal. Sua
forma esférica significaria os desejos terrestres. Dessa maneira, pode-se dizer que a maçã
pode ser símbolo da liberdade de exercer o próprio desejo. E esse desejo será realizado à
luz dourada e brilhante do sol do meio dia. O meio dia é o ponto de intensidade máxima do
yang e do yin. É o encontro das duas metades, do feminino e do masculino. E para
Chevalier e Gheerbrant (2006, p.603), a palavra meio dia, na tradição bíblica, significa a
luz em sua plenitude, surge uma imobilização da luz em seu curso o único movimento
sem sombra uma imagem da eternidade. Destarte, o eu lírico escolhe o meio dia, a hora
da plenitude da luz, para que seu desejo seja realizado da mesma maneira.
O sol possui a cor do ouro e é brilhante como o mesmo. Ao meio dia o astro está
ainda mais com sua cor intensa e com ardor maior. Para Jung (1986, p. 110), a natureza
peculiar do sol é queimar. Ele é um contraste em si mesmo, pois sua essência produz coisas
boas e coisas más. E “é a força propulsora de nossa própria alma a que chamamos de libido
e cuja essência é produzir coisas úteis e nocivas” (JUNG, 1986, p. 110). O sol é a fonte de
energia e vida. Dessa maneira, pode-se afirmar que “o ouro solar do meio dia” a que o ser
do poeta se refere é a sua libido em pleno ardor, em completo movimento na realização de
seu Eros sexual. Uma vez que o psicanalista considera o sol como o símbolo da força vital
psíquica: a libido.
O vermelho, cor de sangue, a cor da boca da mulher, é símbolo de vida e de seu
mistério. É uma cor quente que remete ao fogo e ao erotismo do fogo. E a boca tem a
conotação de força criadora. Seu simbolismo alimenta-se nas mesmas fontes que o fogo,
mantendo uma relação profunda entre ambas. Assim, o beijo dado pela boca vermelha é
carregado de uma simbologia erótica.
Pelos versos do poema percebe-se que a moça é uma cigana: “ Ó Estrela gitana!/.../
Ofereces-me em teu corpo requeimado/ O divino alimento/.../ Como te entregaste a mim,
luz morena?” Estar com o corpo requeimado leva a conotação de erotismo, calor, fogo, ou
seja, o corpo arde num desejo, requeima (queima mais de uma vez). Lembrando “Cacida
da moça dourada”, o corpo feminino por si é erótico, então quando o eu lírico ao
descrever através do seu sexo e de seus seios revela tal sentimento: “De amor teu sexo de
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açucena/ E o rumor de teus seios?”. A açucena, como flor tem simbologia de juventude, do
amor e da harmonia. A flor, o mel do sexo – a intimidade prazerosa. Além de ser
representativo da pureza, por ter cor branca, do sexo virgem.
O desejo do eu lírico pela moça é tão grande que afirma, na penúltima estrofe, que
mesmo que ela não o quisesse ele a quereria sozinho, e queimaria nesse erotismo, pois, ela
é o frescor para o que sente. Esse frescor vem representado pelo orvalho. De acordo com
Bachelard (sd., p.257), o orvalho, sob o ponto de vista do imaginário, é o verdadeiro cristal
da água. É uma água celeste. Ao contrário da chuva que cai em forma rude, grosseira, pela
força que atinge o solo, o orvalho cai de maneira suave e mansa. É uma matéria pura,
impregnada do celeste. Ele abre o seio da terra para a fecundação, tem um poder
insinuante. E é o que pode ser visto na estrofe referida do poema: “E mesmo que não me
quisesses eu te quereria/ Por teu olhar sombrio, /Como quer a calandra o novo dia,/ Só pelo
orvalho.” Esse elemento celestial que refresca, o bálsamo para o calor erótico, como
aparece também em Bodas de sangue. Para o estudioso, o orvalho é um elemento da
manhã. “Ele é realmente a alvorada destilada, o próprio fruto do dia
nascente”(BACHELARD, sd, p. 260). Motivo pelo qual o eu lírico diz que a calandra
espera o novo dia apenas para sentir o orvalho. Com o raiar de uma nova manhã, a água
abençoada estará sobre a vegetação, o que causa a sensação de frescor.
O autor considera o orvalho como um cristal, um minério que desce do céu bem
preparado. É comparado a um cristal, por ser fertilizante da terra, e pela cor límpida e
transparente que suas gotas deixam sobre as folhas da vegetação. “O cristal que contém em
seu seio a mais bela das águas, o cristal da claridade perfeita que é, da terra e da água.
Condensação de todas as grandes substâncias” (BACHELARD, sd, p. 260).
O poema é encerrado com a repetição da primeira estrofe como forma de reafirmar
o erotismo que tem pela amada.
Esse poema pode ser como um “canibalismo amoroso”, expressão empregada por
Affonso Romano de Sant’Anna, em Canibalismo Amoroso. Isso se pela oralidade como
um canibalismo afetivo, imaginário e, portanto, simbólico. Tal oralidade assume um
impulso de incorporação do objeto desejado, que ocorre pela metáfora do “comer”:
“morder a maçã”. E as palavras “beijo”, “seios” e “morder” são representativas da
oralidade, do comer citado. São termos que remetem ao comer, à boca (ligada ao
erotismo). O beijo, como foi dito, é o princípio do desejo, os seios são partes do corpo
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feminino que denotam um erotismo acentuado desse desejo. Os seios são, também, a forma
de dar alimento ao recém-nascido: o ato de mamar é um princípio de prazer.
Apropriando-se de outra expressão usada por Sant’Anna (1993, p. 27), aparece no
poema a representação da mulher como fruto, mulher-fruto”, em que toma a forma da
maçã. Assim, o feminino surge como algo para ser devorado.
um ato de “violência” no poema, a “maçã” será mordida, devorada, e não
engolida. No capítulo sobre o complexo de Jonas, de A terra e os devaneios do repouso,
Bachelard trata da diferença entre a questão de ser engolido e devorado. Para o estudioso,
ser engolido faz parte dos mitos diurnos, enquanto ser devorado pertence aos mitos
noturnos. O eu lírico de “Madrigal de verão” não pretende apenas engolir o fruto, mas
morder, violentá-lo. A violência, no sentido de tirar de um estado puro para um estado de
desejo, enfatiza o erótico dos versos. “Devorar desperta uma vontade mais consciente.
Engolir é uma função mais primitiva” (BACHELARD, sd., p. 120).
A poesia, como foi afirmado, ligada ao gênero lírico pertence ao regime noturno
do imaginário, o qual se pauta na eufemização das imagens, e serve-se da analogia para
melhor atingir a alma. Dessa forma, Octavio Paz (1994, p. 11) diz que a poesia é o
“testemunho dos sentidos”. Pois suas imagens são palpáveis, visíveis e audíveis. Ou seja,
ela mexe com todos os sentidos, daí a poesia lorquiana ser tão sensorial. No entanto, quem
sente o poema são os sentidos espirituais que advêm da imaginação que mobiliza o ato
erótico e o ato poético.
No poema analisado, como nos demais referentes ao erotismo aqui estudados,
percebemos que o erotismo se expressa no poema. E o poema é elemento de erotização da
linguagem. Em “Madrigal de verão”, por exemplo, nota-se que ocorre uma erótica verbal,
como define Paz (1994, p.12), enquanto no erotismo dos corpos acontece uma poética
corporal. Entendendo o que foi exposto pode-se dizer que na poesia um erotismo que
acontece através da palavra escrita. A linguagem está presente nos dois tipos de erotismo.
Seja como sensação, cerimônia ou como representação (escrita ou oral).
Em “Madrigal de verão”, como nos demais poemas, não um erotismo que se
consolida no corpo através das palavras. Cada sugestão do desejo é produzida pela
imaginação. O erotismo poético é alcançado através da imagem poética: “Como te
entregaste a mim, luz morena?/ Por que me deste cheios/ De amor teu sexo de açucena/ E o
rumor de teus seios?”. Tem-se nessa estrofe a imagem da entrega corporal efetuada pela
mulher e pelo eu lírico. No entanto, tal doação é descrita pela imagem poética da açucena e
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dos seios, em que o ato sexual em si é representado por metáforas poéticas de extrema
sensibilidade.
Assim, o erotismo do poema é a convergência das imagens poéticas, metáforas de
uma sexualidade que se realiza de forma plena.
4.3. O erótico intocado: o desejo de ser mãe não realizado.
No poema a seguir retoma-se a temática de poemas anteriores. Ao contrário de
“Madrigal de verão”, em que a plenitude da realização erótica, em “Elegia” duas
formas de desejos recalcados: ligadas ao desejo erótico feminino e ao desejo materno
frustrados igualmente. Veja-se:
Como um incensário cheio de desejos,
passas na tarde luminosa e clara
com a carne escura de nardo murcho
e o sexo potente sobre o teu olhar.
Trazes na boca tua melancolia
da pureza morta, e no dionisíaco
cálice do teu ventre a aranha tece
o véu infecundo que cobre a entranha
nunca florescida com vivas rosas
frutos dos beijos.
Em tuas mãos brancas
trazes a madeixa de tuas ilusões,
mortas para sempre, e sob tua alma
a paixão faminto de beijos de fogo
e teu amor de mãe que sonha com distantes
visões de berços em ambientes quietos.
Fiando nos lábios o azul da canção de ninar.
Qual Ceres darias tuas espigas de ouro
se o amor adormecido teu corpo tocasse,
e qual a virgem Maria poderias fazer
brotar de teus seios outra via-láctea.
Tu murcharás como a magnólia.
Ninguém beijará tuas coxas de brasa.
nem à tua cabeleira chegarão os dedos
que tanjam como cordas de uma harpa.
[...]
Ninguém te fecunda. Mártir andaluza,
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teus beijos deveriam ser sob uma parreira
cheios de silêncio que tem a noite
e o ritmo turvo da água estancada.
Mas tuas olheiras vão-se agrandando
e teu cabelo negro vai ficando de prata;
teus seios resvalam escanceando aromas
E começa a curvar-se tua esplêndida espalda.
Oh! Mulher esbelta, maternal e ardente!
Virgem dolorosa que tem cravadas
todas as estrelas do céu profundo
em seu coração já sem esperança.
És o espelho de uma Andaluzia
que sofre paixões gigantes e cala,
paixões embaladas pelos leques
e pelas mantilhas sobre as gargantas
que têm tremores de sangue, de neve,
e arranhões vermelhos feitos por olhares.
[...]
Mas em vão escutastes os acentos do ar.
Nunca chegou a teus ouvidos a doce serenata.
Detrás de teus cristais ainda olhas anelante.
Que tristeza tão funda terás dentro d’alma
ao sentir no peito já cansado e exausto
a paixão de uma jovem recém-enamorada!
Teu corpo irá para a tumba
intacto de emoções.
Sobre a escura terra
brotará uma alvorada.
De teus olhos sairão dois cravos sangrentos,
e de teus seios, rosas como a neve brancas.
Mas tua grande tristeza ir-se-à com as estrelas,
como outra estrela digna de feri-la e eclipsá-las.
(LORCA, 2002, p. 51-53)
O poema trata da tristeza e desilusão de uma mulher que sofre por estar
impossibilitada diante da maior realização feminina que é ser mãe e de se realizar
eroticamente. Na primeira estrofe do poema nota-se a impotência dessa mulher em realizar
o seu desejo erótico. Pode-se constatar isso por: “Como um incensário cheio de desejos,/
passas na tarde luminosa e clara/ com a carne escura de nardo murcho”. O incensário,
recipiente que serve para colocar o incenso, pode simbolizar aqui o corpo da mulher que
está repleto de desejos, mas que não pode se realizar. O incenso está ligado à vida, como o
sangue, o esperma e a chuva. Dessa maneira, pode-se dizer que o corpo da mulher está
cheio do desejo de ser fecundada, ou seja, de deixar que queime o incenso que está retido
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dentro dela. Porém, o nardo, que é a planta que o incenso está murcho, isto é, não pode
ser queimado. Seus desejos não podem se realizar.
O desejo não pode efetivar-se. Embora o ventre da personagem do poema seja
puro, e cheio de volúpia, permanece sem que seja fecundado, por nunca ter sido
despertado: “com as vivas rosas/ frutos dos beijos.”
Tem-se nessa estrofe a presença de um animal simbólico: a aranha. Ela simboliza
“o ventre frio” e infecundo e o fio que ela tece é, para Durand (2002, p. 107), símbolo do
destino humano, da condição humana ligada à consciência do tempo e à maldição da
morte. No poema, o fio tecido pela aranha é símbolo do destino dessa mulher, que a cada
dia se vê distante da realização materna. O ventre infecundo, ao invés de ser preenchido
pela vida de uma criança, é atado por fios do tempo cruel.
Na terceira estrofe, a denúncia da desilusão sofrida por essa mulher a quem
corrói a dor de não ter sido amada e de não poder sentir o prazer de ser mãe: “..../ trazes a
madeixa de tuas ilusões./ mortas para sempre., [...]/ e teu amor de mãe que sonha com
distantes/ visões de berços em ambientes quietos. Fiando nos lábios o azul da canção de
ninar.” Nota-se que ela arde pela não realização de seus desejos: sua não realização erótica
tem como conseqüência a não concretização do sonho materno. A visão de berços a que o
eu lírico se refere é o sonho de ser mãe que, às vezes, torna-se delírio, imagem que se fecha
na mencionada cor azul, a cor do sonho. Tal cor possui uma conotação de
desmaterialização do real. É o caminho do infinito, onde o real transfigura-se em
imaginário, como acontece com a personagem Yerma da peça de mesmo título:
Yerma: Estás ouvindo?
Victor: O que?
Yerma: Não sentes chorar?
Victor (escutando): Não.
Yerma: Pareceu-me que chorava uma criança.
Victor: Uma criança?
Yerma: Muito perto. E chorava como afogada.
Victor: Por aqui há sempre muitas crianças que vêm roubar frutas.
Yerma: Não. É a voz de uma criança pequena. (Pausa).
Victor: Não ouço nada.
Yerma: Serão ilusões minhas. (LORCA, 1963, p. 46-47)
Yerma, assim como a personagem de “Elegia”, sonha com o filho que não chega:
enquanto a primeira ouve choro de crianças, a segunda “sonha com distantes visões de
berços.”
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A mulher de “Elegia” daria o mais precioso dos bens para poder realizar seu sonho
materno, assim como a deusa Ceres daria as espigas de ouro: “Qual Ceres darias tuas
espigas de ouro/ se o amor adormecido teu corpo tocasse,”. Ela queria ser concebida como
a virgem Maria e ver seus seios repletos do puro alimento, o leite materno: “e qual a
virgem Maria poderias fazer/ brotar de teus seios outra via-láctea.”
Parece que as duas mulheres estão amaldiçoadas por esse duplo desejo de
realização erótica e materna. É o que se comprova nas estrofes seguintes, em que diz: “Tu
murcharás como a magnólia./ Ninguém beijará tuas coxas de brasa./... Ninguém te
fecunda...”. O destino de ambas é envelhecer só até a morte:
Mas tuas olheiras vão se agrandando
e teu cabelo negro vai ficando de prata;
[...]
começa a curvar-se tua esplêndida espalda.
[... ]
Teu corpo irá para a tumba
intacto de emoções. (LORCA, 2002, p. 53)
No último ato, de Yerma, a personagem condenada a ter o corpo murcho sem nunca
ter concebido um filho, escuta a velha pagã a enxotá-la: Pois continua assim... como os
cardos das terras secas, espinhosa, murcha” (LORCA, 1963, p. 120) Ao que ela responde:
“Murcha, sim, sei. Murcha!” (LORCA, 1963, p. 121). “Murcha, murcha, mas segura.
Agora sim, que o sei com certeza. E sozinha!... com o corpo seco para sempre” (LORCA,
1963, p. 127-128). A personagem Yerma morrerá sem sentir a emoção de ter seu corpo
tocado pelo desejo que gera a força vital feminina, pois ela prefere matar João do que tê-lo
novamente como homem se não for para ter filhos. Casou-se com ele apenas para ser mãe,
como o esposo negou-lhe tal dádiva, ela também o nega como mulher, com seu “um
campo seco onde cabem, arando, mil juntas de bois”. Yerma é como a Noiva, de Bodas de
Sangue, “uma mulher ferida pelo fogo”. São mulheres plenas de desejo e que precisam de
muita água para lhes curar a secura e o ardor e seus maridos não são capazes de lhes
aplacarem a sede.
Yerma, assim como a mulher referida no poema, sofre do desejo não realizado.
João, o esposo da primeira, vive apenas para o trabalho e não tem em si a água da vida, que
pode proporcionar à esposa realizar a vontade de ser mãe. O marido não é capaz de
despertar os desejos de Yerma. Tendo se casado apenas para ter filhos, é frustrada em seu
princípio feminino mais sagrado. A única vez que teria sentido essa pulsão erótica e
precisou sufocá-la foi quando:
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Victor... tomou-me pela cintura e não lhe pude dizer nada, porque não
podia falar. De outra vez, o mesmo Victor, quando eu tinha quatorze
anos (ele era um pastor e tanto), tomou-me nos braços
para saltar um
rego d’água, e deu-me um tremor que até se me ouviam bater os
dentes... Com o meu marido é outra coisa. Foi-me dado por meu
pai, e eu o aceitei. Com alegria. Pois no primeiro dia de nosso
noivado... já pensei... nos filhos... (LORCA, 1963, p. 34).
Todavia o que sentia por Victor nunca foi realizado, pois era uma mulher casada e
honrada. Mais uma vez o desejo aparece como algo que não se concretiza. Em “Elegia”, a
segunda estrofe do poema descreve a solidão da personagem irrealizada eroticamente:
“Trazes na boca tua melancolia/ a pureza morta, e no dionisíaco/ cálice de teu ventre a
aranha que tece/ o véu infecundo que cobre a entranha/...” (LORCA, 2002, p. 51). “O céu
tem os seus jardins/ com roseiras de alegria;/ entre roseira e roseira,/ a rosa da
maravilha./.../ Senhor abre um roseiral/ nesta murcha carne minha” (LORCA, 1963, p.
112).
A simbologia da rosa, segundo Chavalier e Gheerbrant (2006, p.788-789), é da
manifestação, oriunda das águas primordiais, sobre as quais se eleva e desabrocha. A rosa,
na prece poética que Lorca põe nos lábios de Yerma, manifesta a intensidade de seu anseio
materno. Ela simboliza a taça da vida, a alma, o coração, o amor. A taça, de acordo com
Sant’Anna (1993, p. 93), “é a própria mulher a ser sorvida.” A rosa é símbolo também do
amor e mais ainda do dom do amor, o amor puro.
A moça de “Elegia” é a própria água. Porém, uma “água estancada”, parada, é o
desejo sem realização, pois, também, a ela ninguém fecunda. Tal água está ligada aos
símbolos da descida, da queda. Uma vez que para Durand, diante dos símbolos de
inversão, dentre eles o da descida, o que distingue a descida da queda é a sua lentidão. A
descida é lenta. E a essa lentidão junta-se uma qualidade térmica. “E se o elemento pastoso
é de fato o elemento da lentidão, se a descida só admite a pasta, a água espessa e
adormecida, ela retém do elemento ígneo a sua substância íntima: o calor”. (DURAND,
2002, p. 201). A água que é retratada em “Elegia” é representativa desse calor, é escura e
aquecida pelo tempo, como Yerma, pela impossibilidade de realizar um desejo.
A mulher, que aparece no poema, é a imagem, o símbolo da mulher andaluz ou
mesmo do povo de Andaluzia, cidade natal de Lorca, que sofre o preconceito de uma
sociedade machista que reprime todo o sentimento de paixão. É o mesmo preconceito que
o poeta sofre ao longo de sua vida. As pessoas falam entre sussurros da vida alheia: “És o
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espelho de uma Andaluzia/ que sofre paixões gigantes e cala./ paixões embaladas pelos
leques/ e pelas mantilhas sobre as gargantas/ que têm tremores de sangue, de neve,/ e
arranhões vermelhos feitos por olhares”.
E Yerma sofre a maledecência de suas vizinhas que comentam:
1ª Lavadeira: Eu cá não gosto de falar.
2ª Mas aqui se fala.
[...]
Lavadeira: Passou a noite de anteontem sentada na soleira da porta,
apesar do frio.
1ª Lavadeira: Mas, por quê?
4ª Lavadeira: Custa-lhe muito estar em casa.
Lavadeira: Essas machonas são assim. Preferem subir para o telhado
ou andar descalças por esses rios, quando podiam estar em casa, fazendo
renda ou compota de maçã.
Lavadeira: quem és tu para dizeres essas coisas? Ela não tem filhos,
mas não é culpa sua.
4ª Lavadeira: quem quer ter filhos, tem-nos. É que as mimosas, as
preguiçosas, as melosas não são feitas para ter o ventre enrugado. (riem-
se.). (LORCA, 1963, p. 54).
Aparecem, no poema e na peça, o luto e a melancolia. O luto está presente pela
perda da esperança de ser mãe. E a melancolia vem como resultado dessa mesma perda que
corrói a auto-estima de ambas. Segundo Freud (apud SANT’ANNA, 1993, p. 124), a
melancolia se prende muito mais à perda de uma coisa da natureza ideal e abstrata. Esse
sentimento está presente logo no inicio de “Elegia”: “Trazes na boca tua melancolia/ Da
pureza morta, .../ .../Em tuas mãos brancas/ Trazes a madeixa de tuas ilusões,/ Mortas para
sempre,...” Vê-se nesses versos a melancolia e o luto vividos por essa mulher que j sonhou
muito e perdeu-se na esperança não concretizada.
Yerma e a personagem do poema vivenciam um erotismo que ultrapassa a
sexualidade física. Yerma sente pelo marido não o desejo físico, erótico, o desejo de se
realizar como mãe, o desejo sublimado pela maternidade. O prazer que ambas poderiam
sentir justifica-se no prazer materno. E tanto o desejo sexual quanto o maternal estão sob
interdito. São proibidos, uma vez que João não é capaz de proporcionar a sua esposa nem
um dos dois tipos de realização.
A não realização materna vista nas duas obras de Lorca leva à teoria de Bataille
sobre o erotismo, em que ele trata da descontinuidade do ser. Segundo ele, no plano da
descontinuidade e da continuidade dos indivíduos, a fusão entre dois seres da mesma
espécie revela a continuidade fundamental deles: nela parece que a continuidade perdida
pode ser reencontrada. Dessa forma, na união carnal e no resultado dela a reprodução de
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dois seres descontínuos deixa essa condição para se tornarem contínuos. No caso
analisado, aqui, as duas mulheres são e continuarão sendo descontínuas, pois não união
física e muito menos a tão sonhada reprodução, do qual elas estão conscientes e pela qual
sofrem.
4.4 O erótico do corpo morto em correspondência com a natureza
Em “Cacida da mulher estendida” tem-se presente o erótico voltado para um corpo
feminino que está em plena correspondência com a natureza, mais especificamente com a
terra e com a água. Mais uma vez tem-se a questão da analogia da poesia com a natureza e
o homem.Observe-se:
VER-TE desnuda é recordar a terra.
A terra lisa, limpa de cavalos.
A terra sem um junco, forma pura
fechada ao porvir: confim de prata.
Ver-te desnuda é compreender a ânsia
da chuva que busca débil talhe,
ou a febre do mar imenso rosto
sem encontrar a luz de sua face.
O sangue soara pelas alcovas
E virá com espada fulgurante,
mas tu não saberás onde se ocultam
o coração de sapo ou a violeta.
Teu ventre é uma luta de raízes,
teus lábios são uma aurora sem contorno,
sob as rosas tépidas da cama
os mortos gemem esperando vez.
(LORCA, 2002, 552-555)
Como se o poema trata do desejo por um corpo feminino nu. Esse corpo em
estreita ligação com a terra é descrito a partir da beleza desta última. O corpo da mulher é
limpo, intocado e fechado como a terra em sua forma pura. Assim, é a descrição de algo
virgem, intocado: imagem presente nas duas primeiras estrofes.
em “Cacida da mulher estendidae em “Cacida da moça dourada” a exposição
do corpo das duas personagens. Tem-se o desejo perante um corpo belo de mulher: uma
está nua ou seminua sobre as águas, a outra está deitada, em primeira instância, sobre a
cama e depois sobre a terra e também nua: “A moça dourada/ banhava-se na água/ e a água
se dourava.” VER-TE desnuda é recordar a terra./ A terra lisa, limpa de cavalos.” Desta
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forma, tanto no primeiro poema, quando no que está em análise tem-se a presença da
natureza como fundo ou como elemento essencial, para a descrição da beleza feminina.
Ambas personagens são comparadas às forças e aos elementos da própria natureza: uma é a
água e outra a terra.
A água, como foi dito exaustivamente, é um elemento feminino. A terra também
tem esse caráter, vista como mãe genitora. Dela nascemos e a ela retornaremos, como diz a
passagem bíblica. É um elemento fértil como a água e a mulher, as três geram a vida e
revelam as mesmas propriedades. Assim, é algo que se identifica com a e e a
regeneração.
Segundo Durand (2002, p.230), as águas seriam as mães do mundo, enquanto a
terra seria a mãe dos seres vivos e dos homens. A terra, como a água, é a principal matéria
do mistério, a que é penetrada, que é escavada. Então esse corpo descrito todo o tempo
como a terra, tem a simbologia do repouso, da volta às origens maternas e primordiais da
existência. Se a terra é a mãe, é no seu seio que se descansa com a morte. O corpo da
amada é para o eu lírico sinônimo do erotismo natural, da realização e do repouso, embora
perturbador.
No poema essa fertilidade é vista pelo corpo comparado a terra sem junco, forma
pura, e o ventre da mulher é visto como uma luta de raízes. “Teu ventre é uma lua de
raízes”. A luta é algo que lembra a fecundidade e as raízes são sinônimas de vida.
o desejo, ou a busca pela realização da volição que o eu lírico experimenta pela
sua amada. Em todo poema contempla-se, venera-se o corpo nu. E a cada verso este é
comparado à terra pura, intocada. Os cavalos que aparecem no segundo verso são a
metáfora para o desejo masculino: “A terra lisa, limpa de cavalos.” Podem ser o corpo
admirado nunca fora possuído por ninguém, como a terra primeira em seu estado puro que
não foi pisada pelos cavalos, mas esse corpo continua fechado ao porvir, ao toque, ao
prazer sexual, está frio como a prata: “Fechada ao porvir: confim de prata.”
O erotismo em seu ponto máximo aparece na segunda estrofe: “Ver-te desnuda é
compreender a ânsia/ Da chuva que busca débil talhe/ Ou a febre do mar imenso rosto/
Sem encontrar a luz de sua face
.”
O eu lírico está tomado de desejo e usa a natureza como
metáfora para expressar seu anseio: ele sente-se como a chuva que cai desolada e como a
fúria do mar. São estados de plena excitação na tentativa de realizar seu desejo. Um desejo
que ultrapassa o carnal, pois a chuva como já se viu é metáfora também do espiritual.
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Nas duas últimas estrofes aparecem elementos que podem ser símbolos de morte: o
sapo, a violeta, o sangue, a espada, os lábios sem vida, as rosas geladas e os mortos. O
título do poema remete à imagem da morte, a mulher estendida” é a mulher deitada,
“morta”. Uma clara associação do erótico à morte. Erotismo e morte estreitamente
interligados.
Sant’Anna diz que o sapo está associado a imagens do subterrâneo do desejo. E
está inscrito no duplo do ascensional e descensional que se complementam. Pois o sapo se
insere, de acordo com Sant’Anna (1993, p. 147), no sistema de representações da queda e
da aspiração ascensional. No caso do anfíbio que aparece nos versos do poema, pode-se
dizer que está correlacionado com o aspecto descensional, ou mais especificamente com o
subterrâneo. “O coração de sapo” seria o erotismo escondido. A outro elemento simbólico
nessa estrofe, a espada. Ela pode ser símbolo fálico: “aquele que vi com espada
fulgurante” desvirginar a moça.
Para Bataille (1987, p. 11), a atividade erótica é inicialmente uma exuberância de
vida e a procura psicológica que o ser humano tem para satisfazer seus desejos,
independentemente da reprodução da espécie, o que não é estranho à morte. O domínio do
erotismo é o domínio da violência, da violação. E o ato mais violento para nós humanos é a
morte, pois ela nos arranca “da obstinação que temos de ver durar o ser descontínuo que
nós somos” (BATAILLE, 1987, p. 16). É a violência, na concepção do autor, que pode
passar o ser de descontínuo a contínuo e chegar à totalidade:
a violência pode, assim, fazer tudo vir à tona, a violência e a
inominável desordem que lhe está ligada! Sem uma violação do ser
constituído que se constitui na descontinuidade não podemos
imaginar a passagem de um estado a outro essencialmente distinto.
Encontramos nas passagens desordenadas dos animálculos engajados na
reprodução não a função de violência que nos sufoca no erotismo dos
corpos, mas também a revelação do sentido íntimo dessa violência.
(BATAILLE, 1987, p. 16).
Assim o erotismo dos corpos é a violação do ser dos parceiros, uma violação que
confina na morte, em um assassínio de dois seres num desejo. A passagem do estado
normal ao de desejo erótico nos leva à dissolução relativa do ser constituído na ordem
descontínua.
Para René Girard (1990, p. 51), uma estreita relação entre a sexualidade e a
violência pelas suas manifestações e pelas suas conseqüências. Segundo o autor, a
sexualidade causa desavenças, ciúmes, rancores e lutas, assim como a violência é
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causadora da desordem. Logo, quando o desejo sexual não é atendido, tende a deslocar-se
para objetos substitutivos, como ocorre com a violência. Ambas não podem ser contidas
por muito tempo, suas energias têm de ser liberadas. Além do que a sexualidade
contrariada conduz à violência. A excitação da primeira anuncia-se da mesma forma que a
segunda. Nota-se, desta forma, que Girard a sexualidade de uma maneira negativa, que
leva à violência, como algo que destrói ou fere. Diferentemente de Bataille que tende a
conceber o erotismo ou mesmo a sexualidade como algo bom, sinônimo de vida. A morte
anunciada por esse último é vista como uma passagem de um estado à outro e não como
destruição permanente. E é esse tipo de erotismo que se presentifica em Lorca.
De acordo com Bataille (1987, p. 17), a ação de desnudamento do corpo supõe ao
estado fechado, ou seja, ao estado de existência descontínua. “É um estado de comunicação
que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si
mesmo. Os corpos abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o
sentimento de obscenidade” (BATAILLE, 1987, p. 17).
No poema em análise, temos o corpo nu em estado fechado. Porém, ele não
representa um sentimento de obscenidade, pelo contrário, aparece a imagem de beleza, de
pureza e erotismo. a descontinuidade no sentido de que a mulher está nua sozinha a
mostrar-se a um outro ser também descontínuo e que busca a realização do seu desejo, e
assim alcançar a continuidade.
Quanto a morte, há a busca e a presença dela no poema. Essa busca se pela
violência de querer possuir aquele corpo puro, em estado de nudez virginal. “VER-TE
desnuda é recordar a terra./ A terra lisa, limpa de cavalos./ A terra sem um junco, forma
pura/ Fechada ao porvir: confim de prata./.../ Teus lábios são uma aurora sem
contorno,/Sob as rosas tépidas da cama/ Os mortos gemem esperando vez.” E ao pensar na
teoria de Bataille chega-se ao questionamento sobre esse corpo intocado, o sangue que soa
pelo quarto feminino, o corpo estendido sobre a cama coberto de rosas, e o gemer dos
mortos esperando a vez.
Pode-se constatar que há sim a morte dessa mulher, mas a morte descrita por
Bataille (1987, p. 94): a morte erótica. Essa morte que é o fim da crise sexual, a morte na
realização sexual, pois a moça está nua, estado de descontinuidade, pura e fechada, mas
nos versos finais aparece a imagem do sangue (símbolo tanto de morte quanto de vida),
esse sangue é a morte do estado de pureza para a passagem ao estado de mulher. Ao
realizar o desejo, o corpo fica estendido sobre a cama e perto dele as rosas de sangue. As
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rosas tépidas da cama são o sangue morno que jorra do corpo recém possuído pela primeira
vez. Essas rosas são símbolos do amor, da vida, da alma e do coração. O gemer dos mortos
pode ser a realização do prazer erótico, a imitação da sexualidade animal posta por Octavio
paz.
Dessa forma, pode se afirmar que a morte aparece em sentido figurado, o corpo
estendido significa estar deitado à espera de ser possuído. O corpo morto tem o sentido de
realização do desejo.
Como se pode notar, o erótico de Lorca é algo sublime, belo. uma sutileza em
se tratar o tema. É um erotismo que vem carregado de imagens é percebido a partir de
uma leitura aprofundada que leva ao deleite. A manifestação desse elemento na poesia
lorquiana vem acompanhada de um simbolismo instigante e de um imaginário superior. O
poeta utiliza os elementos naturais como símbolos, e como metáforas e no caso aqui
apresentado, essas últimas são metáforas do desejo, do erotismo.
75
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O símbolo é algo constante na obra de Lorca. E como verificamos aparece nos
poemas selecionados através de elementos da natureza. Esses elementos juntos criam o
sentido metafórico dos poemas, expressando a dor do eu lírico, e seu próprio erotismo,
impedido de manifestar-se. São eles que provocam as imagens poéticas da obra lorquiana.
Imagens que expressam a harmonia e a ligação da natureza vivenciada pelo poeta.
As imagens da água, que o poeta faz jorrar em seus poemas, são imagens de água
pura, que alivia os sofrimentos, e que aparecem como metáforas para o destino e o desejo
humano.
Por outro lado, o erotismo presente em sua obra se manifesta através de uma
metáfora-símbolo ligada ao feminino, ou pela presença da anima, vivenciada pelo eu lírico
como algo sufocado. O desejo não realizado queima. As mulheres que aparecem nos
poemas são mulheres que ardem de desejo, ou levam o eu lírico a arder.
Na obra de Lorca as mulheres assumem a imagem quase mítica das sereias: cantam
e seduzem, mas são impedidas de se realizarem através do amor: despertam o desejo de
seus amados, e são obrigadas a sufocarem o próprio desejo. Os poemas de Lorca retratam
mulheres sensuais, plenas de desejo, mas cuja pulsão erótica vive sob o signo da
interdição.
Lorca, como foi constatado a partir da pesquisa e do presente trabalho, é um gênio
poético, que através de metáforas materiais é capaz de remeter seus leitores a um estado de
devaneio total, que leva a sentir a natureza através das palavras. Sua poesia totalmente
sinestésica causa um arrebatamento dos sentidos que toca a alma. Através da criação de
imagens desperta a pulsão erótica da vida e do prazer, um prazer que segundo I. Machado
transcende os sentidos materiais e eleva-se ao espiritual.
O erótico em sua obra é puro, insinuante e belo. Esse erótico se manifesta através
das forças da natureza: da água como elemento natural que aparece constantemente em sua
obra, e que simboliza vida, pureza e cura do espírito, surge também sob uma constelação
da vida erótica associada aos elementos naturais e ao feminino como se analisou em alguns
poemas. A partir da fundamentação teórica estudada, se pode iniciar um desvelar da
imaginação e beleza, encontradas nos poemas selecionados.
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Após a análise dos poemas selecionados se pode constatar que o poeta transporta a
vivência humana para os poemas através das metáforas obtidas por meio dos mbolos da
natureza.Como o erotismo de “Cacida da moça dourada” e o “Cacida da mulher
estendida”, em que mulher e elementos naturais se misturam. A água como fonte de vida
está em harmonia com o sofrimento humano e com a vida efêmera, como em “Amanhã”,
“Mar”, “Sonhoe “Meditação sob a chuva” e “Chuva”. O erotismo também se encontra,
de forma análoga, com a natureza, com a água, os animais, a terra, a flores, como em:
“Madrigal de verão”, “Gazel do amor imprevisto”. A dor feminina não poderia ser
retratada de forma melhor, do que no poema “Elegia”, em que a personagem vive a
angústia de ter dois desejos negados: o de ser mãe e de viver sua pulsão erótica. O
feminino é a protagonista de seus poemas, expressando a dor do preconceito e do interdito
de mulheres que viveram numa época de machismo, sob tudo de um totalitarismo.
77
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ANEXOS
Anexo A: Poemas
1. Mar
O mar é
o Lúcifer do azul.
o céu caído
por querer ser a luz.
Pobre mar condenado
a eterno movimento,
havendo antes estado
quieto no firmamento!
Mas de tua amargura
te redimiu o amor.
pariste a Vênus pura,
e ficou-te a fundura
virgem e sem dor.
Tuas tristezas são belas,
mar de espasmos gloriosos.
Mas hoje em vez de estrelas
tens polvos verdosos.
Agüenta teu sofrer,
formidável Satã.
Cristo velou por ti
como também o fez Pã.
A estrela Vênus é
a harmonia do mundo.
Cale o Eclesiastes!
Vênus é o profundo
da alma...
... E o homem miserável
é um anjo caído.
A terra é o provável
paraíso perdido.”
(LORCA, 2002, p.153)
Mar
El mar es
el Lúcifer del azul
el cielo caído
por querer ser la luz.
¡Pobre mar condenado
a eterno movimiento,
habiendo antes estado
quieto en el firmamento!
Pero de tu amargura
te redimió el amor.
Pariste a Venus pura,
y quedóse tu hondura
virgen y sin dolor.
Tusa tristezas son bellas,
mar de espasmos gloriosos.
Mas hoy en vez de estrellas
tienes pulpos verdosos.
Aguanta tu sofrir,
formidable satán.
Cristo anduvo por ti,
mas también lo hizo Pan.
La estrella Venus es
la armonía del mundo.
¡Calle el Elclesistés!
Venus es lo profundo
del alma...
...Y el hombre miresable
es un ángel caído.
La tierra es el probable
paraíso perdido.
(LORCA, 2002, p.153)
2. Meditação sob a chuva
Fragmento
Beijou a chuva o jardim provinciano,
deixando emocionantes cadências nas
folhas.
O aroma sereno da terra molhada.
Inunda o coração de tristeza remota.
Rasgam-se nuvens grises no mundo
horizonte.
Sobre a água adormecida da fonte, as
gotas
se cravam, levantando claras rolas de
espuma.
Fogos-fátuos que tremor das ondas apaga.
A pena da tarde estremece com minha
pena.
Encheu-se o jardim de ternura monótona.
Todo o meu sofrimento de perder se,
meu Deus,
como se perde o doce som das frondes?
Todo o eco das estrelas que guardo
n’alma
será luz que me ajude a lutar com minha
forma?
E a alma verdadeira se desperta na morte?
E nisto que agora pensamos, a sombra o
tragará?
Oh, tranqüilidade a do jardim com a
chuva!
Toda a paisagem casta meu coração
transforma
num ruído de idéias humildes e apenadas
que põe em minhas entranhas um agitar
de pombas.
Sai do sol.
O jardim dessangra em amarelo.
Meditación bajo la lluvia
Fragmento
Ha besado la lluvia al jardín provinciano
dejando emocionantes cadencias en las
hojas.
El aroma sereno de la tierra mojada.
Inunda el corazón de tristeza remota.
Se rasgan nubes grises en el mudo
horizonte.
Sobre el agua dormida de la fuente, las
gotas
se clavan, levantando claras perlas de
espuma.
Fuegos fatuos que apaga el temblor de las
ondas.
La pena de la tarde estremece a mi pena.
Se ha llenado el jardín de ternura
monótona.
¿Todo mi sufrimiento se ha de perder,
Dios mío,
como se pierde el dulce sonido de las
frondas?
¿Todo el eco de estrellas que guardo
sobre al alma
será luz que me ayude a luchar con mi
forma?
¿Y el alma verdadera se despierta en la
muerte?
¿Y esto que ahora pensamos se lo traga la
sombra?
¡Oh, qué tranquilidad del jardín con la
lluvia!
Todo el paisaje casto mi corazón
transforma,
en un ruido de ideas humildes y apenadas
que pone en mis entrañas un batir de
palomas.
Sale o sol.
El jardín desangra en amarillo.
Palpita sobre o ambiente uma pena que
afoga,
eu sinto a nostalgia de mina infância
intranqüila,
minha ilusão de ser grande no amor, as
horas
passadas como esta contemplando a
chuva
com tristeza nativa.
Chapeuzinho vermelho
ia pela senda...
Acabaram-se minhas histórias, hoje
medito, confuso,
ante a fonte turva que do amor me brota.
Todo o meu sofrimento de perder-se,
meu Deus,
como se perde o doce som das frondes?
Torna a chover.
O vento vem trazendo as sombras.
(LORCA, 2002 p. 145)
Late sobre el ambiente una pena que
ahoga,
yo siento la nostalgia de mi infancia
intranquila,
mi ilusión de ser grande en el amor, las
horas
pasadas como esta contemplando la lluvia
con tristeza nativa.
Caperucita roja
iba por el sendero...
Se fueron mis historias, hoy medito,
confuso,
ante la fuente turbia que del amor me
brota.
¿ Todo mi sufrimiento se ha de perder-se,
Díos mío,
como se pierde el dulce soniod de las
frondas?
Vuelve a llover.
El viento va trayendo a las sombras.
(LORCA, 2002 p. 144)
3. Chuva
A chuva tem um vago segredo de ternura,
algo de sonolência resignada e amável,
uma música humilde se desperta com ela
que faz vibrar a alma adormecida da
paisagem.
É um beijar azul que recebe a Terra,
o mito primitivo que torna a realizar-se.
O contato já frio de céu e terra velhos
com uma mansidão de entardecer
constante.
É a aurora do fruto. A que nos traz flores
e nos unge do sagrado espírito dos mares.
A que derrama vida sobre as sementeiras
e na alam tristeza do que não se sabe.
A nostalgia terrível de uma vida perdia,
o fatal sentimento de ter nascido tarde,
ou a ilusão inquieta de uma manhã
impossível
com a inquietude quase da cor da carne.
O amor se desperta no gris de seu ritmo,
nosso céu interior tem um triunfo de
sangue,
mas nosso otimismo converte-se em
tristeza
ao contemplar as gotas mortas nos
cristais.
E são as gotas: olhos de infinito que fitam
o infinito branco que lhes serviu de mãe.
Cada gota de chuva treme o cristal turvo
e lhe deixam divinas feridas de diamante.
São poetas da água que viram e que
meditam
o que a multidão dos rios não sabe.
Lluvia
La lluva tiene un vago secreto de ternura,
Algo de soñolencia resignada y amable,
Una música humilde se despierta con ella
Que hace vibrar el alma dormida del
paisaje.
Es un besar azul que recibe la Tierra,
el mito primitivo que vuelve a realizarse.
El contacto ya frío de cielo y tierra viejos
con una mansedumbre de atardecer
constante.
Es la aurora del fruto. La que nos trae las
flores
y nos unge de espíritu santo de los mares.
La que derrama vida sobre las sementeras
en el alma tristeza de lo que no se sabe.
La nostalgia terrible de una vida perdida,
el fatal sentimiento de haber nacido tarde,
o la ilusión inquieta de un mañana
imposible
con la inquietud cercana del color de la
carne.
El amor se despierta en el gris de su
ritmo,
nuestro optimismo se convierte en tristeza
al contemplar las gotas muertas en los
cristales.
Y son las gotas: ojos de infinito que
miran
Al infinito blanco que les sirvió de madre.
Cada gota de lluvia tiembla en el cristal
turbio
y le dejan divinas heridas de diamante.
Son poetas del agua que han visto e que
meditan
lo que la muchedumbre de los ríos no
sabe.
Oh! Chuva franciscana que levas a tuas
gotas
almas de fontes claras e humildes
mananciais!
Quando sobre os campos desces
lentamente
as rosas do meu peito com teus sons
abres.
O canto primitivo que dizes ao silêncio
e a história sonora que contas à ramagem,
comenta-os chorando meu coração
deserto
em um negro e profundo pentagrama em
clave.
Minh’alma tem tristeza de chuva serena,
tristeza designada de coisa irrealizável,
tenho no horizonte um luzeiro aceso
e o coração me impede que corra a
contempla-lo.
Oh! Chuva silenciosa que as árvores
amam
e és sobre a planície doçura emocionante;
dás à alma as mesmas névoas e
ressonâncias
que pões na alma adormecida da
paisagem!
(LORCA, 2002, p. 43-45).
¡Oh lluvia franciscana que llevas a tus
gotas
almas de fuentes claras y humildes
manantiales!
Cuando sobre los campos desciendes
lentamente
las rosas de mi pecho con tus sonidos
abres.
El canto primitivo que dices al silencio
y la historia sonora que cuentas al ramaje
los comenta llorando mi corazón desierto
en un negro y profundo pentágrama sin
clave.
Mi alma tiene tristeza de la lluvia serena,
tristeza designada de cosa irrealizable,
tengo en el horizonte un lucero encendido
y el corazón me impide que corra a
contemplarle.
¡Oh lluvia silenciosa que los árboles
aman
y eres sobre el piano dulzura
emocionante;
das al alma las mismas nieblas y
resonancias
que pones en el alma dormida del paisaje!
(LORCA, 2002, p. 43-45).
4. Sonho
(Meu coração repousa junto à fonte fria.
(Enche-a com teus fios,
aranha do olvido.)
A água da fonte sua canção lhe dizia.
(Enche-a com teus fios,
aranha do olvido.)
Meu coração desperto seus amores dizia.
(Aranha do silêncio,
tece-lhe teu mistério.)
A água da fonte escutava-o sombria.
(Aranha do silêncio,
tece-lhe teu mistério.)
Meu coração se curva sobre a fonte fria.
(Mãos brancas, distantes,
detende as águas.)
E a água o leva cantando de alegria.
(Mãos brancas, distantes,
nada fica nas águas!)
(LORCA, 2002, p. 81-83)
Sueño
Mi corazón reposa junto a la fuente fría.
(Llénala con tus hilos,
araña del olvido.)
El agua de la fuente su canción le decía.
(Llénala con tus hilos,
araña del olvido.)
Mi corazón despierto sus amores decía.
(Araña del silencio,
téjele tu misterio.)
El agua de la fuente lo escuchaba
sombría.
(Araña del silencio,
téjele tu misterio.)
Mi corazón se vuelca sobre la fuente fría.
(Manos blancas, lejanas,
detened a las aguas)
Y el agua se lo lleva cantando de alegría.
(¡Manos blancas, lejanas,
detened a las aguas!)
(LORCA, 2002, p. 81-83)
5. Cacida da moça dourada
A moça dourada
banhava-se na água
e a água se dourava.
Logo as algas e as ramas
com a sombra assombravam
e o rouxinol cantava
louvando a moça branca.
E veio a noite clara
toldada de má prata
com peladas montanhas
por sob a brisa parda.
A moça molhada
era branca na água
e a água, toda em chamas.
Veio a aurora sem mancha,
com cem caras de vaca,
veio hirta, amortalhada
com geladas grinaldas.
A moça toda em lágrimas
banhava-se entre chamas
e o rouxinol cantava
com as asas queimadas.
A moça dourada:
era uma garça branca
e a água dourava.
(LORCA, 2002, p. 557-559)
Casida de la muchacha dorada
La muchacha dorada
se bañaba en el agua
y el agua se doraba.
Las algas y las ramas
en sombra la asombraban,
y el ruiseñor cantaba
por la muchacha blanca.
Vino la noche clara,
turbia de plata mala,
con peladas montañas
bajo la brisa parda.
La muchacha mojada
era blanca en el agua
y el agua, llamarada.
Vino el alba sin mancha,
con mil caras de vaca,
yerta, amortajada
con heladas guirnaldas.
La muchacha de lágrimas
se bañaba entre llamas
y el ruiseñor lloraba
con las alas quemadas.
La muchacha dorada:
una blanca garza
y el agua a doraba.
(LORCA, 2002, p. 557-559)
6. Amanhã
A canção da água
da eterna manhã.
É a seiva entranhável
Que madura os campos.
É sangue de poetas
que deixaram suas almas
perderem-se nas sendas
da Natureza.
Que harmonias derrama
ao brotar da penha!
Abandona-se aos homens
com suas doces cadências.
A manhã está clara.
As lareiras fumegam,
e a fumaça são braços
que levantam a névoa.
Escutai os romances
da água nos choupais.
São pássaros sem asas
perdidos entre as ervas!
As árvores que cantam
se partem e se secam.
E se tornam planícies
as montanhas serenas.
Mas a canção da água
é uma coisa eterna.
Ela é luz feita canto
de ilusões românticas.
Ela é firme e suave,
cheia de céu e mansa.
Ela é névoa rosa
Mañana
Y la canción del agua
es una cosa eterna.
Es la savia entrañable
que madura los campos.
Es sangre de poetas
que dejaron sus almas
perderse en los senderos
de la Naturaleza.
¡Qué armonías derrama
al brotar de la peña!
Se abandona a los hombres
con sus dulces cadencias.
La mañana está clara.
Los hogares humean,
y son los humos sao brazos
que levantan la niebla.
Escuchad los romances
del agua en los choperas.
!Son pájaros sen alas
perdidos entre hierbas!
Los árboles que cantan
se tronchan y se secan.
Y se tornan lanuurass
las montañas serenas.
Mas la canción del agua
es una cosa eterna.
Ella es luz hecha canto
de ilusiones románticas.
Ella es firme y suave,
llena de cielo y mansa.
Ella es niebla y es rosa
da eterna manhã.
Mel de lua que flui
de estrelas enterradas.
Que é o santo batismo
senão Deus feito água
que nos unge as frontes
com seu sangue de graça?
Por algo Jesus Cristo
con ella confirmóse.
De la eterna mañana.
Miel de la luna que fluí
de estrellas enterradas.
¿Qué es el santo bautismo,
sino Dios hecho agua
que nos unge las frentes
con su sangre de gracia?
Por algo Jesucristo
com ela se confirmou.
Por algo as estrelas
Em suas ondas descansam.
Por algo a mãe Vênus
em seu seio engendrou-se,
que amor de amor tomamos.
quando bebemos água.
É o amor que corre
todo manso e divino,
é a vida do mundo,
a história de sua alma.
Ela encerra segredos
das bocas humanas,
pois todos a beijamos
e a sede nos mitiga.
É uma arca de beijos
de bocas já fechadas,
é eterna cativa,
do coração irmã.
Cristo deveu dizer-nos:
“Confessai-vos com a água
e todas as dores,
de todas as infâmias.
A quem melhor, irmãos,
Entregar nossas ânsias
Do que a ela que sobe ao céu
Em envolturas brancas?”
Não há estado perfeito
como o de tomar água,
nos tornamos mais meninos
e melhores: passam
nossas penas vestidas
com rosadas grinaldas.
E os olhos se perdem
em regiões douradas.
Oh! Fortuna divina
por ninguém ignorada!
Água doce em que muitos
seus espíritos lavam,
não há nada comparável
a suas margens santas
se uma tristeza funda
nos deu suas asas.
(LORCA, 2002, p. 37-41)
Por algo las estrellas
en sus ondas descansam.
Por algo a madre Venus
en su seno engendróse,
que amor de amor tomamos.
cuando bebemos água.
Es el amor que corre
todo manso y divino,
es la vida del mundo,
la historia de su alma.
Ella lleva secredos
de las bocas humanas,
pues todos la besamos
y la sed nos apaga.
Es una arca de besos
de bocas ya cerradas,
es eterna cautiva,
del corazón hermana..
Cristo debió dicirnos:
“Confesaos con el agua
de todos los dolores,
de todas as infamias.
¿A quién mejor, hermanos,
Entregar nuestras ansias
que a ella que sube al cielo
En envolturas blancas?”
No hay estado perfecto
como al tomar agua,
nos volvemos más niños
y más buenos: Y pasan
nuestras penas vestidas
con rosadas guirnaldas.
Y los ojos se pierden
en regiones doradas.
¡Oh fortuna divina
por ninguno ignorada!
Agua dulce en que tantos
Sus espíritus lavan,
no hay nada comparable
con tus orillas santas
si una tristeza honda
nos ha dado sus alas.
(LORCA, 2002 p. 37-41)
7. Deixa-me seguir para o mar
Tenta esquecer-me... ser lembrado é
como
Evocar-se um fantasma... Deixa-me ser
O que sou, o sempre fui, um rio que vai
fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as
horas,
Me recamarei de estrelas como um manto
real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes verão em mim as criança
banhar-se...
um espelho não guarda as coisas
refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o
Mar,
As imagens perdendo no carinho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda tristeza dos rios
É não poderem parar!
(Quintana, 1986. p. 30)
8. Gazel do amor imprevisto
Ninguém compreendia o perfume
Da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
Entre os dentes um colibri de amor.
Mil cavalinhos persas dormiam
Na praça com luar de tua fronte,
Enquanto eu enlaçava quatro noites
Tua cintura inimiga da neve.
Entre gesso e jasmins, o teu olhar
Em um pálido ramo de sementes.
Eu procurei, para dar-te, em meu peito
As letras de marfim que diziam sempre,
Sempre, sempre: jardim de minha agonia,
Teu corpo fugitivo para sempre,
O sangue de tuas veias em minha boca,
Tua boca já sem luz para minha morte.
(LORCA, 2002, p. 537)
Gacela Del amor imprevisto
Nadie comprendía el perfume
de la oscura magnolia de tu vientre.
Nadie sabía que martirizabas
un colibrí de amor entre los dientes.
Mil caballitos persas se dormían
en la plaza con luna de tu frente,
mientras que yo enlazaba cuatro noches
tu cintura, enemiga de la nieve.
Entre yeso y jazmines, tu mirada
era un pálido ramo de simientes.
Yo busqué, para darte, por mi pecho
Las letras de marfil que dicen siempre,
Siempre, siempre: jardín de mi agonía,
Tu cuerpo fugitivo para siempre,
La sangre de tus venas en mi boca,
Tu boca sin luz para mi muerte.
(LORCA, 2002, p. 536)
9. Madrigal de Verão
Junta tua vermelha boca com a minha,
ó Estrela gitana!
Sob o ouro solar do meio dia
morderei a maça.
No verde olival da colina
há uma torre moura,
da cor de tua carne campesiana
que sabe a mel e aurora.
Ofereces-me em teu corpo requeimado
o divino alimento
que dá flores ao álveo sossegado
e luzeiros ao vento.
Como te entregaste a mim, luz morena?
Por que me deste cheios
de amor teu sexo de açucena
e o rumor de teus seios?
Não foi por minha figura entristecida?
(Oh, meus torpes andares!)
Ficaste com pena de minha vida,
murcha de cantares?
Por que não preferiste a meus lamentos
as coxas sudorosas
de um São Cristóvão campesino, lentas
no amor e formosas?
Danaide do prazer és comigo.
Feminino Silvano.
Cheiram teus beijos como cheira o trigo
resseco do verão.
Entruva-me os olhos com teu canto.
Deixa tua cabeleira
estendida e solene como um manto
de sombra na padraria.
Pinta com tua boca ensangüentada
um céu de amor,
num fundo de carne a roxa
estrela da dor.
Madrigal de verano
Junta tua roja boca con la mia,
¡oh Estrella la ginata!
Bajo el oro solar del mediodía
morderé le manzana.
En el verde olivar de la colina
hay una torre mora,
del color de tu carne campesina
que sabe a miel y aurora.
Me ofreces en tu cuerpo requemado,
el divino alimento
que da flores al cauce sosegado
y luceros al viento.
¿Cómo a mí te entregaste, luz morena?
¿Por qué me diste llenos
de amor tu sexo de azucena
y el rumor de tu senos?
¿No fue por mi figura entristecia?
(¡Oh mis torpes andares!)
¿Te dio lástima acaso mi vida,
marchita de cantares?
¿Cómo no has preferido a mis lamentos
los muslos sudorosos
de San Cristóbal campesino, lentos
en el amor y hermosos?
Danaide del placer eres conmigo.
Femenino Silvano.
Huelen tus besos como huele el trigo
reseco del verano.
Entúrbiame los ojos con tu canto.
Deja tu cabellera
extendida y solemne como un manto
de sombra en la pradera.
Pítame con tu boca ensanguentada
un cielo del amor,
en un fondo de carne la morada
estrella de dolor.
Meu pégaso andaluz está cativo
de teus olhos abertos;
voará desolado e pensativo
quando os vir mortos.
E mesmo que não me quisesses eu te
quereria
por teu olhar sombrio,
como quer a calandra o novo dia,
só pelo orvalho.
Junta tua vermelha boca com a minha,
ó Estrela gitana!
Sob o ouro solar do meio dia
morderei a maça.
(LORCA, 2002, p. 61-65)
Mi pegaso andaluz está cautivo
de tus ojos abiertos;
volará desolado y pensativo
cuando los vea muertos.
Y aunque no me quisieras te querría
por tu mirar sombrío,
como quiere la alondra al nuevo día,
solo por el rocío.
Junta tu roja boca con la mía,
¡oh Estrella la gitana!
Déjame bajo el claro mediodía
consumir la manzana.
(LORCA, 2002, p. 61-65).
10. Elegia
Como um incensário cheio de desejos,
passas na tarde luminosa e clara
com a carne escura de nardo murcho
e o sexo potente sobre o teu olhar.
Trazes na boca tua melancolia
da pureza morta, e no dionisíaco
cálice do teu ventre a aranha tece
o véu infecundo que cobre a entranha
nunca florescida com vivas rosas
frutos dos beijos.
Em tuas mãos brancas
trazes a madeixa de tuas ilusões,
mortas para sempre, e sob tua alma
a paixão faminto de beijos de fogo
e teu amor de mãe que sonha distantes
visões de berços em ambientes quietos.
Fiando nos lábios o azul da canção de
ninar.
Qual Ceres darias tuas espigas de ouro
se o amor adormecido teu corpo tocasse,
e qual a virgem Maria poderias fazer
brotar de teus seios outra via-láctea.
Tu murcharás como a magnólia.
Ninguém beijará tuas coxas de brasa.
Nem à tua cabeleira chegarão os dedos
que tanjam como cordas de uma harpa.
Oh! Mulher potente de ébano e de nardo!,
cujo alento tem brancura de bisnagas.
Vênus de xale de Manilha que sabe
do vinho de Málaga e da guitarra.
Oh! Cisne moreno!, cujo lago tem
lotos de setas, ondas de laranjas
e espumas de vermelhos cravos que
aromam
os meninos murchos que há sob suas asas.
Ninguém te fecunda. Mártir andaluza,
teus beijos deveriam ser sob uma parreira
cheios de silêncio que tem a noite
Elegia
Como un incensario lleno de deseos,
pasas en la tarde luminosa y clara
con la carne oscura de nardo marchito
y el sexo potente sobre tu mirada.
Llevas en la boca tu melancolía
de pureza muerta, y en la dionisíaca
copa de tu vientre la araña que teje
el velo infecundo que cubre la entraña
nunca florecida con las vivas rosas
fruto de los besos.
En tus manos blancas
llevas la madeja de tus ilusiones,
muertas para siempre, y sobre tu alma
la pasión hambrienta de besos de fuego
y tu amor de madre que sueña lejanas
visiones de cunas en ambientes quietos,
hilando en los labios lo azul de la nana.
Como seres dieras tus espigas de oro
si el amor dormido tu cuerpo tocara,
y como la virgen María pudieres
brotar de tu senos otra vía láctea.
Te murchitarás como la magnolia.
Nadie besará tus muslos de brasa.
Ni a tu cabellera llegarán los dedos
que la pulsen como las cuerdas de un
arpa.
¡Oh mujer potente de ébano y e de nardo!,
cuyo aliento tiene blancor de biznagas.
Venus del mantón de Manila que sabe
del vino de Málaga y de la guitarra.
¡Oh cisne moreno!, cuyo lago tiene
lotos de saetas, olas de naranjas
y espumas de rojos clavetes que aroman
los niños marchitos que hay bajo su alas.
Nadie te fecunda. Mártir andaluza,
Tus besos debieron ser bajo una parra
Plenos del silencio que tiene la noche
e o ritmo turvo da água estancada.
Mas tuas olheiras vão-se agrandando
E teu cabelo negro vai ficando de prata;
Teus seios resvalam escanceando aromas
E começa a curvar-se tua esplêndida
espalda.
Oh! Mulher esbelta, maternal e ardente!
Virgem dolorosa que tem cravadas
todas as estrelas do céu profundo
em seu coração já sem esperança.
És o espelho de uma Andaluzia
que sofre paixões gigantes e cala,
paixões embaladas pelos leques
e pelas mantilhas sobre as gargantas
que têm tremores de sangue, de neve,
e arranhões vermelhos feitos por olhares.
Vais pela névoa do outono, virgem
como Inês, Cecília, e a doce Clara,
sendo uma bacante que teria dançado
De pâmpanos verdes e videira coroada.
A tristeza imensa que flutua em teus
olhos
nos revela tua vida rota e fracassada,
a monotonia de teu meio pobre,
vendo passar gente lá de tua janela,
ouvindo a chuva sobre a amargura
que tem a velha rua provinciana,
enquanto ao largo soam os clamores
turvos e confusos de umas badaladas.
Mas em vão escutaste os acentos do ar.
Nunca chegou a teus ouvidos a doce
serenata.
Detrás de teus cristais ainda olhas
anelante.
Que tristeza tão funda terás dentro d’
alma
ao sentir no peito já cansado e exausto
a paixão de uma jovem recém-namorada.
Teu corpo irá para a tumba
Y del ritmo turbio del agua estancada.
Pero tus ojeras se van agrandando
Y tu pelo negro va siendo de plata;
Tus senos resbalan escanciando aromas
Y empieza a curvarse tu espléndida
espalda.
¡Oh mujer esbelta, maternal y ardiente!
Virgen dolorosa que tiene clavadas
todas las estrellas del cielo profundo
en su corazón ya sin esperanza.
Eres el espejo de una Andalucía
que sufre pasiones gigantes y calla,
pasiones mecidas por los abanicos
y por las mantillas sobre las gargantas
que tienen temblores de sangre, de nieve,
y arañazos rojos hechos por miradas.
Te vas por la niebla del otoño, virgen
como Inés, Cecilia, y la dulce Clara,
siendo una bacante que hubiera danzado
de pámpanos verdes y vid coronada.
La tristeza inmensa que flota en tus ojos
nos dice tu vida rota y fracassada,
la monotonía de tu ambiente pobre,
viendo pasar gente desde tu ventana,
oyendo la lluvia sobre la amargura
que tiene a vieja calle provinciana,
mientras que a lejos suenam los clamores
turbios y confusos de unas campanadas.
Mas en vano escuchaste los acentos del
aire.
Nunca llegó a tus oídos la dulce serenata.
Detrás de tus cristales aún miras
anhelante.
¡Que trsteza tan honda tendrás centro del
alma
al sentir en el pecho ya cansado y
exhausto
la pasión de una niña recién enamorada.
Teu corpo irá para a tumba
intacto de emoções.
sobre a escura terra
brotará uma alvorada.
De teus olhos sairão dois cravos
sangrentos,
e de teus seios, rosas como a neve
brancas.
Mas tua grande tristeza ir-se-á com as
estrelas,
Como outra estrela digna de feri-las e
eclipsá-las.
(LORCA, 2002, p. 51-53)
Intacto de emociones.
Sobre la oscura tierra
brotará una alborada.
De tus ojos saldrán dos claveles
sangrientos,
Y de tus senos, rosas como la nieve
blancas.
Pero tu gran tristeza se irá con las
estrellas,
Como otra estrella de herirlas y
eclipsarlas.
(LORCA, 2002, p. 51-53)
11. Cacida da mulher estendida
VER-TE desnuda é recordar a terra.
A terra lisa, limpa de cavalos.
A terra sem um junco, forma pura
fechada ao porvir: confim de prata.
Ver-te desnuda é compreender a ânsia
da chuva que busca débil talhe,
ou a febre do mar imenso rosto
sem encontrar a luz de sua face.
O sangue soara pelas alcovas
e virá com espada fulgurante,
mas tu não saberás onde se ocultam
o coração de sapo ou a violeta.
Teu ventre é uma lua de raízes,
teus lábios são uma aurora sem contorno,
sob as rosas tépidas da cama
os mortos gemem esperando vez.
(LORCA, 2002, 552-555)
Cacida de la mujer tendida
VERTE desnuda es recordar la tierra.
La tierra lisa, limpia de caballos.
La tierra sin un junco, forma pura
cerrada al provenir: confín de plata.
Verte desnuda es comprender el ansia
de la lluvia que busca débil talle,
o la fiebre del mar de inmenso rostro
sin encontrar la luz de su mejilla.
La sangre sonará por las alcobas
y vendrá con espada fulgurante,
pero tú no sabrás dónde se ocultan
el corazón de sapo o la violeta.
Tu vientre es una lucha de raíces,
tus labios son una alba sin contorno,
bajo las rosas tibias de la cama
os muertos gimen esperando turno.
(LORCA, 2002, 552-555)
12. [Água, aonde vais?]
Água , aonde vais?
Rindo, vou buscando o rio
À beira mar.
Mas, aonde vais?
Rio acima vou buscando
fonte onde descansar.
Choupo, e tu, que farás?
Não quero dizer-te nada.
Eu... tremer!
O que desejo, o que não desejo,
pelo rio e pelo mar?
(Quatro pássaros sem rumo
no alto choupo estão.)
(LORCA, 2002, p. 341-343)
[Agua, ¿Dónde vas?]
Agua, ¿dónde vas?
Riyendo voy por el río
a las orillas del mar.
Mas, ¿dónde vas?
Río arriba voy buscando
fuente donde descansar.
Chopo, y tú, ¿qué harás?
No quiero decirte nada.
Yo... ¡temblar!
¿Qué deseo, que no deseo,
por el río y por la mar?
(cuatro pájaros sin rumbo
en el alto chopo están.)
(LORCA, 2002, p. 341-343)
Anexo B: Pinturas:
1. “A banhista enxugando a perna direita”
Pierre-Auguste Renoir (1910).
2.
“Mulher enxugando o Braço Esquerdo”
Degas (1884)
3. “As grandes banhistas”
Renoir.
4. “A banheira”.
Degas (1886).
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