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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
Belo Horizonte, 2008
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Elder João Teixeira Mourão
Denis Diderot: a formulação de uma crítica de arte
para além do Iluminismo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários, da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras: Teoria da
Literatura.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Literatura e outros sistemas semióticos
Orientadora: Professora Dra. Márcia Maria Valle Arbex
Belo Horizonte, 2008
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Dissertação intitulada Denis Diderot: a formulação de uma crítica de arte
para além do Iluminismo, de autoria do mestrando ELDER JOÃO
TEIXEIRA MOURÃO, submetida à banca examinadora constituída pelos
seguintes professores:
Profa Dra. Márcia Maria Valle Arbex – FALE/UFMG – Orientadora
Prof. Dr. Julio Jeha
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários da UFMG
Belo Horizonte, xx de setembro de 2008.
Agradeço a meus pais Ernesto e Maria Vera (em lembrança),
aos meus irmãos Elaine e Ernesto Filho,
aos amigos Andréa Rocha, Aparecida Guedes Otoni,
Brenda Silveira, Catarina e Elke Rezende, D. Déa e Janice Barreto,
Frederico Antoniazzi, Lourdes Piscitelli, Lucas Figueiredo,
Luiz Alvarenga, ao outro Luiz – o Miguel –,
Manoel Chaves Jr., Mariana Berutto e a minha sobrinha
Sofia de Carvalho – alento em mim.
Diderot en liberté
Le panthéon révolutionnaire n’en a pas plus voulu que l’Académie
française: Diderot disparaissait derrière le monument dont il était le
principal architecte, l’Encyclopédie. Longtemps l’histoire de la
littérature l’a trouvé trop philosophe et l’histoire de la philosophie
trop littéraire. On ne savait où le ranger. En un mot, il dérangeait.
Aujourd’hui encore son matérialisme radical choque certains et sa
passion pour les forces de l’esprit, pour l’imaginaire et l’exception
individuelle interdit d’en faire un simple militant. Mais son oeuvre ne
cesse d’inspirer scientifiques et artistes. Elle entre en résonance avec
nos doutes et nos espoirs. Au système, Diderot a toujours préféré le
dialogue; à l’affirmation l’interrogation; aux hiérarchies et aux
frontières le désordre et l’hybridation. Penseur de la complexité, du
fugitif et de l’individuel, il s’impose comme un compagnon du XXIe.
siècle.
Michel Delon
RESUMO
Este trabalho é um exame da crítica de arte diderotiana através de um
colóquio entre a Carta sobre os surdos e mudos: para uso dos que ouvem e falam
(1751) e os Ensaios sobre a pintura (1766). Observaremos que os quinze
anos que separam a publicação destes dois textos, indicam o abandono,
em alguns casos, o amadurecimento e a evolução, em outros, do
pensamento estético de Diderot, Enciclopedista e Filósofo, a partir da
análise de suas reflexões e comentários sobre quadros dos pintores Jean-
Baptiste-Siméon Chardin, Jean-Baptiste Greuze e Joseph Vernet, expostos
no Salão de 1765, e o fizeram ficar conhecido como o fundador da crítica
de arte moderna.
Palavras-chave: Crítica de arte, temporalidade, espacialidade.
Résumé
Ce travail est un examen de la critique d’art diderotienne à travers un
colloque entre la Lettre sur les sourds et les muets à l’usage de ceux qui
entendent et qui parlent (1751) et les Essais sur la peinture (1766). Nous
observerons que les quinze années qui séparent la publication de ces
deux textes, indiquent l’abandon, dans certains cas, le mûrissement et
l’évolution, dans d’autres, de la pensée esthétique de Diderot,
Encyclopédiste et Philosophe, à partir de l’analyse de ses réflexions et
commentaires sur les tableaux des peintres Jean-Baptiste-Siméon
Chardin, Jean-Baptiste Greuze et Joseph Vernet, exposés dans le Salon
de 1765, et qui l’ont fait connaître comme le fondateur de la critique
d’art moderne.
Mots-clef: critique de l’art, temporalité, spatialité.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................... 9
CAPÍTULO I – A ESTÉTICA/POÉTICA DE DIDEROT .....................................22
1.1 – O sensualismo .............................................................................22
1.2 – A escrita como hieróglifo ..............................................................26
1.3 – Temporalidade e espacialidade .....................................................30
CAPÍTULO II – DIÁLOGOS (IM)PERTINENTES ENTRE A CARTA SOBRE OS
SURDOS E MUDOS E OS ENSAIOS SOBRE A PINTURA..................................37
2.1 – A Carta sobre os surdos e mudos ..................................................37
2.2 – Os Ensaios sobre a pintura...........................................................38
2.3 – Interseções e contrastes...............................................................40
2.3.1 – Aspectos seminais .............................................................40
2.3.2 – In(congruências)................................................................45
CAPÍTULO III – SALÃO DE 1765...................................................................54
3.1 – Abertura......................................................................................54
3.2 – Chardin: A enumeração como método ..........................................58
3.3 – Greuze: O confessionário ateu......................................................67
3.4 – Vernet: O encantamento crepuscular ...........................................78
CONCLUSÃO ...............................................................................................88
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................96
LISTA DE FIGURAS:
Figura 1: Jean-Baptiste-Siméon Chardin, Les attributs de la musique,
0,91 x 1,45, 1765, Musée du Louvre, Paris ...........................................................66
Figura 2: Jean-Baptiste Greuze, Jeune fille qui pleure son oiseau mort,
52 × 45,6, 1765, Édimbourg, National Galleries of Scotland................................77
Figura 3: Joseph Vernet: Naufrage, 96 x 134,5 cm, 1759,
Musée Groeninge, Bruges......................................................................................86
Figura 4: Joseph Vernet: Première vue du port de Bordeaux:
prise du côté des Salinières, 1,65 x 2,63 m, 1758,
Musée National de la Marine, Dépôt du Musée du Louvre, Paris.........................87
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho é um exame da crítica de arte diderotiana
através de um colóquio entre a Carta sobre os surdos e mudos: para uso
dos que ouvem e falam (1751) e os Ensaios sobre a pintura (1766), onde
observar-se-á que os quinze anos que medeiam a publicação entre um e
outro, indicam o abandono, em alguns casos, o amadurecimento e a
evolução, em outros, do pensamento estético de Diderot, mediante
análises de suas reflexões e comentários sobre quadros dos pintores
Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), Jean-Baptiste Greuze
(1725-1805) – tidos como pintores de gênero: aqueles que tratam das
naturezas-mortas e das cenas do cotidiano -, e Joseph Vernet (1714-
1789), pintor de história – que trata da natureza viva -, expostos no
Salão de 1765, e que tornaram Diderot conhecido como o fundador da
moderna crítica de arte.
As primeiras exposições de pintura e escultura aparecem em
França no século XVII e sabe-se que, em 1673, eram realizadas no
Palais-Royal restritas a um seleto público. Os temas sagrados,
históricos e mitológicos predominavam. No século seguinte, em 1727, o
duque d’Antin – Louis Antoine de Pardaillan de Gondrin (1665-1736),
diretor geral, depois superintendente dos edifícios reais -, abriu-as ao
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PARA ALÉM DO ILUMINISMO
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público em nome do rei Louis XV. Dez anos mais tarde, a imprensa
começa a ocupar-se daquelas exposições, já então conhecidas como
Salões. O periódico Mercure de France catalogava em suas páginas as
obras expostas seguidas de breves comentários meramente descritivos,
escritos por diletantes sem nenhuma credencial. À porta dos Salões
começaram a surgir panfletos em prosa e verso comentando as
principais obras, criticando-as, outros replicando às críticas, todos
escritos por amigos ou inimigos dos artistas, na maioria das vezes
ofensivos e preconceituosos, revelando as vidas íntimas dos mesmos,
não perdoando sequer as das pouquíssimas mulheres expositoras. Era
o reinado dos criticastros. Para o historiador da arte Lionello Venturi
(1984, p. 124) “as oportunidades de crítica de arte encontravam-se nos
tratados de arte e nas vidas dos artistas”. Aos Salões acorriam
multidões e a poesia e a música não encontravam tão grande número
de admiradores.
Ao final dos Seiscentos e na primeira metade dos Setecentos,
apoiados num vocabulário específico requeridos aos tratados de arte da
segunda metade do século XVII, surgem os connaisseurs. A apreciação é
a ferramenta de trabalho daqueles que seriam os primeiros mediadores
entre as obras de arte e o público. Falta-lhes, porém, o meio condutor
para que pudessem ser reconhecidos como críticos: a forma e o
conteúdo literários para o exercício de uma atividade crítica.
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É desse quadro que emerge um homem de curiosidade
insaciável em todos os domínios, conforme testemunha sua
correspondência com Louise Henriette Volland (1725-1784), chamada
por ele Sophie, em cuja casa acontecia um dos vários salões literários
parisienses do qual era freqüentador. Jaime Brasil, em Diderot, conta
que “se a vida intelectual de Paris no século XVIII decorria nas ruas,
nos alfarrabistas, nos ‘Cafés’, nas exposições de arte, era nos salões
literários que tinha sua expressão mais nobre” (Brasil, 1940, p. 22).
Posteriormente chamado Filósofo ou Enciclopedista, pelo exercício de
suas atividades, e tido como o criador da crítica de arte, tinha
personalidade multifacetada e nele viviam em conflito razão e emoção,
mas, também, uma tendência a superá-lo, em busca de critérios justos
que pudessem atuar como reguladores de sua crítica de arte, às vezes,
demasiada acerba. Entre Dioniso e Apolo, o demiurgo. Recapitulemos
aqui seus principais dados biográficos:
Denis Diderot nasceu em Langres em 05 de outubro de 1713,
filho de Didier Diderot (1685-1759), mestre cuteleiro, reconhecido pela
fabricação de instrumentos cirúrgicos e de Angélique Vigneron (1677-
1748), também artesã. De família abastada, é encaminhado à carreira
eclesiástica em 1723 para estudar com os jesuítas de sua terra natal,
sendo tonsurado em 1726 quando passou a ser chamado de abade. A
partir daí sua vida é pontuada por uma série de acontecimentos que
fariam dele um dos expoentes máximos do Iluminismo. Em 1729
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prossegue os estudos em Paris nos colégios Louis-le-Grand e Harcourt
e, investido de tudo o que o ensino de então podia proporcionar-lhe,
recebe em 1732 o título de maître ès arts da Universidade de Paris. No
ano de 1742 trava amizade com Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e,
no ano seguinte, casa-se com Antoinette Champion, à meia-noite do dia
06 de novembro, na igreja de Saint-Pierre-aux-Boeufs, destinada aos
matrimônios clandestinos, isto porque o pai de Diderot não consentia
com aquela união. Quatro anos mais tarde, o impressor Le Breton e os
livreiros Briasson, Durand e David o contratam para dirigir, junto com
Jean le Rond d’Alembert (1717-1783), a redação da Enciclopédia – a
grande obra de sua vida. Daí por diante durante trinta anos, mal
remunerado, perseguido, prosseguiria com perseverança em sua tarefa,
que seria a grande realização do espírito do século XVIII. O ano de 1749
vê o seu encarceramento após a publicação da Carta sobre os cegos
para uso dos que vêem e, dois anos mais tarde, é nomeado membro da
Academia de Berlim que permite tacitamente a publicação da Carta
sobre os surdos e mudos. Em 1759 a Enciclopédia é condenada pelo
Parlamento. O rei revoga a licença de impressão e ordena a queima dos
sete volumes publicados. O papa coloca a obra no Index. Os
manuscritos em poder dos enciclopedistas são apreendidos, mas seu
amigo Chrétien Guillaume de Lamoignon de Malesherbes (1712-1794),
chefe da polícia, os esconde em sua casa. Paralelamente, obtém-se um
privilégio para a publicação das pranchas. Lança-se à crítica de arte,
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iniciando Os salões, série de nove ensaios que vão até 1781. Com a
morte de Samuel Richardson (1689), em 1761, publica Elogio a
Richardson e inicia a redação do Sobrinho de Rameau. No ano seguinte,
Catarina II (1729-1796) da Rússia propõe a continuação em seu país da
Enciclopédia e, três anos mais tarde, compra, em troca de uma renda
anual vitalícia, sua biblioteca. Neste mesmo ano – 1765 – a Enciclopédia
é concluída. Em 1766 os Ensaios sobre a pintura são publicados para
acompanhar o Salão de 1765, sendo nomeado membro da Academia
Imperial de Artes de São Petersburgo em 1767. No ano de 1775 envia a
Catarina II um Plano de uma universidade para o governo da Rússia e
publica Pensamentos esparsos sobre a pintura, a escultura, a
arquitetura. Morre em 31 de julho de 1784 em Paris e, no dia 1º de
agosto, é sepultado em Saint-Roch. Em 1821, é publicado o Sobrinho de
Rameau, romance de verve pitoresca, texto atípico às características
iluministas que chama a atenção de Friedrich Hegel (1770-1831), por
antecipar a dialética. Nele, o sobrinho de um músico francês, destrói a
linguagem racional do tio, mostrando os desacertos nela contidos.
Nasce em Paris Charles Baudelaire, neste mesmo ano.
Diderot nasceu num tempo em que a França era devastada
por epidemias que sacrificavam famílias e pequenas comunidades
inteiras, também vítimas de revoltas e da fome, muitas outras da falta
de higiene. A alta taxa de mortalidade está ligada também a ignorância
sujeita à vontade divina, ao conhecimento humano subordinado à
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tirania da magia, da crença em presságios imprevistos determinados
pela emoção impregnados de concepção subjetiva. Sem nenhuma
organização social, àqueles que poderiam contribuir – intelectuais e
pensadores – para a construção de tempos melhores, eram impingidas
regras e censuras que lhes impossibilitavam o exercício da liberdade.
Era uma França dominada por arcaísmos. Esta estrada – metáfora das
trevas -, tem seu percurso desviado pela luz da inteligência e, já na
segunda metade daquele século XVIII “muitas transformações agitam a
mente dos homens” (Borges, apud Masi Pepe, 2003, p. 20), podendo-se
resumi-las em uma única e ampla confirmação: “os conhecimentos
adquiridos pelo homem são sistematizados no interior de um modelo
extremamente elástico” (Masi Pepe, 2003, p. 21). A ordem não é mais
divina e, a metafísica percorre um movimento descendente, trazendo a
filosofia do campo celestial para o terreno. O pensamento humano
amplia constantemente a compreensão da existência, no sentido de
entendê-la em seu todo, buscando uma realidade capaz de abranger as
demais, o Ser, fazendo do homem o eixo central de toda consideração.
Essa transformação é o fundamento do pensamento iluminista. Para
colocá-lo em movimento é que surge a Enciclopédia: “Por coerência com
a importância atribuída pelo Iluminismo à razão e à liberdade do
homem, a Enciclopédia não é apresentada como uma bíblia, como um
modelo consagrado, mas sim como um instrumento capaz de fornecer
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todos os meios ao leitor, para que ele se torne seu próprio professor”
(Masi Pepe, 2003, p. 21, 22).
Considerados os pais da Enciclopédia, os obstinados Diderot e
d’Alembert, tiveram como colaboradores/redatores os espíritos mais
aguçados e brilhantes do século XVIII que se encontravam e
confrontavam suas idéias, formando uma rede interdisciplinar de
conhecimentos, perfilando um total de cento e quarenta nomes
conforme créditos iniciais de cada volume, embora estime-se que esse
número tenha chegado a cerca de cento e sessenta. Dentre eles é
inegável a contribuição de um catalisador-receptivo e hospitaleiro: Paul
Henri Dietrich, barão d’Holbach (1723-1789), filósofo francês, nascido
em Edesheim. D’Holbach, barão parvenu, além de animador cultural e
promotor científico, viu muitos de seus textos proibidos, censurados e
condenados à fogueira, apreciados por Diderot, Hegel e, especialmente,
por François Marie Arouet (1694-1778), chamado Voltaire. Seu livro
Sistema da natureza (1770), expõe um pensamento que “respira
honestidade, energia, inteligência, generosidade, repúdio a qualquer
hipocrisia, intransigência e também humor”, segundo Pierre Naville
(apud, Mais e Pepe, 2003, p. 11). Sua contribuição para a elaboração da
Enciclopédia é pouco clara, embora se saiba que iniciou traduzindo do
alemão e, posteriormente, tenha se envolvido na redação de
aproximadamente quatrocentos artigos. Ostensiva foi a generosidade
hospitaleira de seu salão em Paris, situado à rue Saint-Roch e de sua
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quinta em Grandval, às margens do Marne, onde os enciclopedistas
eram recebidos de portas abertas, tendo à disposição o dinheiro, os
sessenta mil livros e o gabinete de história natural herdados de seu rico
tio Franciscus Adam d’Holbach. Amigos desde que se conheceram,
provavelmente apresentados por Rousseau, Paul foi enterrado com
Diderot em Saint-Roch. Nas propriedades do barão d’Holbach a
Enciclopédia foi engendrada. O seleto grupo de seus redatores foi
fundamental para uma sociedade emergente que estava preparando sua
marcha rumo ao desenvolvimento de uma outra ordem constitutiva. A
Enciclopédia torna-se, portanto “uma expressão da nascente burguesia
francesa: a construção de máquinas, a metalurgia, a engenharia de
mineração, a indústria têxtil, o artesanato são obras ‘filosóficas’ tanto
quanto a física e a matemática” (Masi e Pepe, 2003, p. 34). Citando
Borges, Pepe lembra que para o grande escritor portenho “não é
necessário esquecer que Diderot e d’Alembert tiveram por acaso o
século mais elevado da prosa francesa, que eles, de resto, contribuíram
para enriquecer” (Borges, apud Masi e Pepe, 2003, p. 39).
Paralelamente ao nascimento de uma nova sociedade, a França
do século XVIII vê vir à luz a estética entendida, segundo Celina Maria
Moreira de Mello, como “um conjunto de textos voltados para uma
reflexão filosófica sobre a arte”, onde, “os paralelismos entre poesia –
aqui entendida como criação – e pintura constituem uma constante”
(Mello, 2004, p. 13, 14). Tendo Diderot tomado para si a ocupação da
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descrição das artes na Enciclopédia, ei-lo novamente no centro desta
discussão.
Para compreender a contribuição de sua extensa obra estética
à formulação de uma crítica de arte para além do Iluminismo, é preciso
examiná-la e aos muitos estudos teóricos e críticos que têm sido
realizados desde o seu aparecimento.
As discussões ligadas ao movimento estético vigente no século
XVIII – o Neoclassicismo – e seus modelos de perfeição resgatados à
Antiguidade, bem como a supremacia do sensível sobre o visível,
percorrem os textos diderotianos confirmando o elemento fundamental
sedimentado em sua crítica: a temporalidade. É dentro deste contexto
que a imagem torna-se falante e o quadro pictural passa a ter vida.
Evitando a mera descrição, a obra crítica de Diderot procura em esforço
permanente uma linguagem capaz de conferir às suas análises uma
forma literária. Misturando os estilos epistolar e ensaístico, o Filósofo
traduz suas opiniões ora conduzidas pela emoção, ora pela
engenhosidade para enfileirar alguns elementos fundamentais de sua
crítica, tais como a digressão, a imaginação e a simultaneidade. Sobre o
primeiro – a digressão -, ao analisar Jacques o fatalista e seu amo
(1796), condensado das produções filosófica e estética do
Enciclopedista, Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, analisa-o como
sendo “estilisticamente homogêneo, mas cujas coordenações embora
descontínuas revelam sempre uma lógica” (Calvino, 2004, p. 114).
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Quanto aos dois últimos, Diderot toma-os emprestados aos dois
sentidos que nos proporcionam o sentimento estético: a visão e a
audição, fazendo uma análise criadora do espírito, como a faculdade de
compor imagens que exige reflexão e solicita o concurso da razão.
Superior à fantasia, a imaginação traz em sua essência a constatação
de que sem imagens não existe pensamento. Apoiado em sua atividade
crítica, o Filósofo alinha suas opiniões sobre os dois componentes
abordados, levando às últimas conseqüências a afirmação horaciana: ut
pictura poesis.
Assim, “a crítica de Diderot, exemplo vivo do elemento
temporal integrado na análise de um quadro, ilustra também a
liberdade de interpretação deixada ao espectador” (Oliveira, 1993, p.
19). O quadro passa a ser definido fora da sua estrutura para ser “lido”
através de outros caracteres que nos remetem à legibilidade. Este
último aspecto será privilegiado pela moderna crítica de arte, se
considerarmos os conceitos de “texto” e de “leitura”.
O presente estudo deter-se-á em três capítulos e conclusão. O
primeiro discute a estética e a poética de Diderot a partir do abandono
da influência da moral do sentimento, própria de uma descrença teísta
que o acompanhou desde a juventude até sua adesão ao sensacionismo
materialista da idade adulta. Depois daquele momento foi-lhe permitido
deduzir que a partir das sensações a matéria torna-se pensante. É do
centro dessa discussão que surge a Carta sobre os surdos e mudos e
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sua teoria hieroglífica, onde uma relação das questões do espírito e a
linguagem é discutida, proporcionando àquele que se manifesta a
capacidade de perceber e expressar-se simultânea e sucessivamente, o
que, em última análise, é a concepção própria da poesia. É desse
momento em diante que o “parentesco” da poesia com a música e as
artes plásticas começa a ser discutido, surgindo uma formulação
estética, pois ao hieróglifo – também denominado emblema – é
permitido individualizar, mas também reunir os elementos temporais –
da poesia – e espaciais – das artes plásticas.
O segundo capítulo cristaliza as proposições delineadas no
primeiro através de um diálogo entre a Carta sobre os surdos e mudos e
os Ensaios sobre a pintura. Depois de uma apresentação de ambos os
textos, onde percebe-se a complexidade labiríntica do primeiro e a
objetividade rigorosa do segundo, são examinados os aspectos seminais
que os compõem: a linguagem poética como centro de uma estética, na
Carta, e a tendência a confundir natureza e arte, nos Ensaios. O
trânsito – interseções e contrastes – entre eles é estudado com o
objetivo de se obter uma análise dos elementos essenciais da crítica de
arte diderotiana e que levava aos seus leitores vislumbrar o nem sempre
visto. Esses escritos obedeciam a critérios minuciosos de observação,
longe dos maneirismos artificialistas do final do Rococó e muito
próximos da justa medida, da pureza e da clareza de estilo do
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Neoclassicismo, então emergente na França da época, além de nos
revelar as bases investigativas estéticas de Diderot.
O terceiro capítulo examina as críticas feitas aos quadros de
Chardin e Vernet e à tela Jovem que chora seu pássaro morto (1765) de
Greuze, expostos no Salão de 1765, em que Diderot, através da
apreciação do material visível, confere aos textos uma espessura
literária através, como já observado, da digressão, imaginação e
simultaneidade, nos quais se destacam alguns aspectos comuns a todos
os comentários, tais como o uso de exclamações para exprimir, de um
modo geral, o sentimento de admiração que as obras lhe causam, ou,
até mesmo, por não possuir recursos suficientes para apreciá-los.
Outros, específicos, são tomados principalmente à retórica, conforme as
necessidades exigidas, até àqueles próprios da construção romanesca,
quando a imaginação ficcional tende para o aventuroso sem ter nenhum
compromisso com a verossimilhança, abordando até mesmo aspectos
psicológicos, ocasião em que o estatuto dialogal é usado pelo crítico em
suas análises.
Na conclusão, a modernidade dos escritos sobre arte de
Diderot é confirmada através de uma interlocução com os textos de
Baudelaire – A exposição universal de 1855, Salão de 1859 e A arte
romântica (1868) -, procurando enfatizar aspectos ainda não ou pouco
abordados anteriormente dos escritos diderotianos, tais como a retórica
dramática, no qual a cena teatral é descrita como se um quadro fosse e
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outros relacionados ao desenho. Outros, já vistos, como as questões da
cor e da imaginação, são reexaminados para se concluir que as
preocupações com os elementos constitutivos da poesia e da pintura
também estiveram presentes nas formulações estéticas baudelairianas.
Para finalizar, esclarecemos que todos os textos do Filósofo
não publicados em português, foram traduzidos do francês pelo autor
desta dissertação e os originais, como recomendam as normas vigentes,
encontram-se citados em notas de rodapé.
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CAPÍTULO I
A estética/poética de Diderot
Neste capítulo será feita uma breve apresentação da
estética/poética de Diderot, a partir dos seguintes conceitos: o
sensualismo, a escrita como hieróglifo e as questões afetas à
temporalidade e espacialidade circunscritos aos textos que tratam do
assunto.
1.1 – O sensualismo
Ao abandonar o teísmo – sistema que rejeitando toda espécie
de revelação divina e, pois, a autoridade de qualquer igreja, aceita a
existência de um criador, que poderá ou não haver interferido na
criação do Universo –, Diderot adere ao sensualismo – orientação que
atribui às sensações, todo e qualquer conhecimento. A partir de então,
o Enciclopedista passa a manifestar-se dicotomicamente: de um lado,
sobre o estado de nossa alma e, do outro, sobre a percepção mesma,
seja de nós ou de outrem. Alguns estudiosos da crítica de arte
diderotiana, sem muito esclarecer, aproximam essa bifurcação à
estética sensualista abraçada pelo filósofo. De fato, um breve exame do
Tratado das sensações (1754), de Etienne Bonnot de Condillac (1715-
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1780), tido como um dos mestres da escola sensualista, comprova a
suspeita desses estudiosos. Contemporâneos, Diderot e Condillac,
primeiramente alinharam-se aos empiristas ingleses dos séculos XVII e
XVIII que admitiam uma dupla origem das idéias: a sensação e a
reflexão. Posteriormente, Condillac passou a aceitar somente a
sensação. Para ele, a reflexão em sua origem não é mais do que a
sensação sentindo-se a si mesma. É a afirmação de que as idéias
derivam dos sentidos. Os nossos conhecimentos só têm, em última
análise, uma fonte que é a sensação. Para ilustrar seu sistema no
Tratado recorre à hipótese do Homem-estátua:
Imaginemos uma estátua organizada interiormente como
nós, e animada por um espírito privado ao princípio de
toda espécie de idéias. Suponhamos ainda que o exterior
todo de mármore não lhe permita o uso de nenhum dos
sentidos, e que tenhamos a liberdade de irmos abrindo
livremente as várias impressões de que são capazes
(Condillac, apud Lahr, 1968, p. 159).
De fato, Condillac abre-lhe sucessivamente cada um dos
sentidos, colocando-os em comunicação com o mundo externo, a
começar pelo olfato e finalizando no tato. Aproximando-lhe das narinas
uma rosa, a estátua que não possuía nenhuma faculdade nem mesmo
consciência, experimenta uma primeira sensação: o perfume da flor. A
sua atenção é desperta, goza ou sofre com o odor, sente saudades ou
teme a ausência dele. À medida que o cheiro volatiza-se começa a
recordar-se dele. Dê-la outra flor que não a rosa para cheirar e sua
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atenção multiplica-se: compara, julga, difere, imagina etc.; abstrai,
adquire idéias de número e infinito. A este sensualismo deu-se o nome
de sensação transformada e a alma não é mais do que pura
receptividade de impressões: “o eu de cada homem não é mais do que a
coleção das sensações que experimenta e das que a memória lhe
recorda. É ao mesmo tempo a consciência do que é, e a lembrança do
que foi” (Condillac, apud Lahr, 1968, p. 159).
No apêndice à Carta sobre os surdos e mudos, publicada antes
do Tratado das sensações de Condillac, em correspondência à Srta. La
Chaux, o Filósofo manifesta-se assim a respeito dos sentidos:
Dissestes que não concebíeis como, na suposição
singular de um homem distribuído em tantas partes
pensantes quantos são os seus sentidos, poderia ocorrer
que cada sentido se tornasse geômetra, que se formasse
uma sociedade com os cinco sentidos, na qual se haveria
de falar de tudo, embora, porém, somente o que fosse
dito em geometria pudesse ser entendido. Vou tentar
esclarecer esse ponto, pois se tendes dificuldades em me
entender, devo pensar que é por minha culpa. O olfato
voluptuoso só pode deter-se em flores; o ouvido delicado
deve ser afetado pelos sons; o olho alerta e rápido,
passear por diferentes objetos; o paladar inconstante e
caprichoso, mudar suas preferências de sabor; o tato
pesado e material apoiar-se em sólidos. [Tudo isso se
passa] sem que reste a cada um desses observadores a
memória, ou a consciência de uma, duas, três, quatro
etc. percepções diferentes, ou então a mesma percepção
uma, duas, três, quatro vezes reiteradas e, por
conseguinte, a noção de número um, dois, três, quatro
etc. As experiências freqüentes, que nos fazem constatar
a existência dos seres ou de suas qualidades sensíveis,
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conduzem-nos ao mesmo tempo à noção abstrata de
número (Diderot, 1993, p. 67, 68).
Este sistema, hoje universalmente abandonado – uma vez que
permitiria aos animais possuidores dos mesmos sentidos, a articulação
de idéias –, aponta para uma certa subjetividade contemporânea,
presente na crítica de arte do Filósofo, pois ao leitor é permitida a
faculdade de ler – ficcionalmente – o que a ele se dirige; numa palavra, a
subjetividade é um romance da alma, não a sua história, isto é, da
narrativa romanesca. Na mesma correspondência, quando indagado
sobre a possibilidade de sentir várias percepções ao mesmo tempo
responde com um silogismo:
Tendes dificuldade em concebê-lo; porém, concebeis
facilmente que podemos formar um juízo, ou
compararmos duas idéias, somente se uma delas estiver
presente na percepção, e a outra, na memória. Em várias
ocasiões, intentando examinar o que se passava em
minha cabeça e apanhar meu engenho no ato
, entreguei-
me à mais profunda meditação, retirando-me em mim
mesmo com toda contenção de que sou capaz. Tais
esforços, contudo, nada produziram. Pareceu-me que
seria preciso estar ao mesmo tempo dentro e fora de
mim, desempenhando simultaneamente o papel do
observador e o da máquina observada. Ocorre ao
engenho o mesmo que ao olho: não vê a si mesmo
(Diderot, 1993, p. 70, 71).
O sensualismo é, pois, um sistema empírico-reflexivo, já que
admite quanto à origem do conhecimento, que este provenha
unicamente da experiência, para se chegar a um resultado, mesmo que
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este não tenha sido previamente estabelecido. Este procedimento é
usado por Diderot em seus comentários sobre as naturezas-mortas
pintadas por Chardin, onde os elementos que as compõem são
relacionados metodicamente.
1.2 – A escrita como hieróglifo
Ao hieróglifo – um ideograma típico de algumas escritas
analíticas e, figurativamente, qualquer coisa aparentemente ilegível – é
atribuído pelos franceses o sentido de grimoire – livro dos mágicos e dos
bruxos de escrita indecifrável. A ele é associada também a idéia de uma
figura simbólica – emblema – atributo destinado a representar o visível
ou o invisível.
Para o antropólogo Claude Lévi-Strauss em seu livro Olhar
escutar ler, ao se referir a um dos significados da poesia – aquilo que
desperta o sentimento do belo –, Diderot “com sua teoria dos
‘hieróglifos’ reconhece à poesia o poder de, ao mesmo tempo, dizer e
representar as coisas” (Lévi-Strauss, 2001, p. 61). Na Carta sobre os
surdos e mudos, o texto poético deixa de ser apenas uma exposição
descritiva para tornar-se, sobretudo, “uma trama de hieróglifos
empilhados uns sobre os outros, que o pintam. Nesse sentido, eu
poderia dizer que toda poesia é emblemática” (Diderot, 1993, p. 46). As
coisas, na escrita poética, tornam-se simultâneas, pois “ao mesmo
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27
tempo que o entendimento as capta, a alma comove-se, a imaginação as
vê, o ouvido as escuta” (Diderot, 1993, p. 46). O que Lévi-Strauss capta
no texto diderotiano é a constituição de uma unidade capaz de reunir
as partes de um todo, ou, até mesmo, a materialização das formas que
compõem um abstrato dado. Não obstante, “a poesia, por assim dizer,
navega contra a corrente, indispõe-se contra o rumo comunicativo e
analítico, de que o francês seria o instrumento por excelência; seu signo
é sintético e não linear, é um signo-volume”, como assinala Luiz Costa
Lima (1988, p. 151). O emblema diderotiano estabelece relações entre
elementos, que nem sempre são peculiares aos seus significados
primeiros, conferindo-lhe, como esclarece ao destinatário de sua
correspondência, “um momento indivisível (...) representado por uma
multidão de termos que a precisão da linguagem exigiu” (Diderot, 1993,
p. 39). O hieróglifo, ao contrário da expressão verbal, que é contínua,
passa a exprimir pictoricamente infinitos signos plásticos pertinentes à
concomitância.
A teoria hieroglífica diderotiana, é pois, aquela que vivifica o
pensamento causador do discurso poético. Indagando-se sobre a
natureza desse espírito predominante, o Filósofo responde sem admitir
réplica ou contestação na Carta: “Senti-lhe a presença algumas vezes;
sei apenas que é ele que faz com que as coisas sejam ditas e
representadas simultaneamente; (...) e o discurso não é mais um mero
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encadeamento de termos enérgicos que expõem o pensamento com
força e nobreza” (Diderot, 1993, p. 46).
Elemento de fusão, reúne as diversas partes de um conjunto,
num percurso do uno ao complexo, trazendo à luz uma outra
proposição que não privilegia nem o verbal nem o visual, tornando a
estética diderotiana paralela aos princípios fundamentais realizados
hoje sobre as poéticas do visível. Herbert Dieckmann em Diderot’s
conception of genius, desvela o grimoire do filósofo:
Não só todas as palavras novas e as combinações de
palavras são exclusivamente obra do gênio, mas também
é ele que cria estas expressões. Diderot as chama
hieróglifos – que sintetizam muitas coisas, pensamentos e
imagens, em um todo indissolúvel e que constitui a
beleza poética (Dieckmann, apud Lima, 1988, p. 153).
O hieróglifo traz em si aspectos cumulativos onde se pode
encontrar expressões translúcidas do pensamento, embora estas
expressões possam desaparecer em uma tradução perfeita. Também é
capaz de captar o exato momento no qual uma palavra passa a ser
expressão mais fiel do elemento observado. Há uma relação de sentidos
que confere ao hieróglifo uma poesia da imagem, como observar-se-á,
principalmente, nas seções do último capítulo dedicadas a Greuze e
Vernet.
Tudo isso parece surpreendentemente atual. Mas, para
sermos fiéis à idéia de Diderot é necessário insistir na
diferença de que parte: ao passo que o signo “prosaico”
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contraria a simultaneidade das representações psíquicas,
o hieróglifo capta sua instantaneidade. A espessura do
signo poético conduziria enfim à recuperação de
visualidade, da concretude, perdidas no comércio com a
prosa. Ao compreendermos melhor sua idéia, verificamos
como era falso considerar a passagem antecipadora de
uma reflexão contemporânea que identifique na poesia
um trabalho sobre o plano do significante e já não do
mero significado. A comparação diderotiana da poesia
com o hieróglifo segue caminho distinto, dada a
separação constante entre pensamento e expressão: seu
papel é o indicar a possibilidade de uma palavra que se
mantivesse próxima das coisas (Lima, 1988, p. 152).
Costa Lima, no mesmo comentário, chama a atenção para a
especulação diderotiana sobre a constituição das línguas na qual a
linguagem pantomínica seria mais familiar às palavras não declináveis,
isto é, estaria mais próxima do seu universo visual. Na Carta sobre os
surdos e mudos Diderot esclarece que “quando o tema de uma
proposição oratória ou gesticulada não é anunciado, a aplicação dos
outros signos permanece suspensa. É isso que sucede a todo momento
nas frases gregas e latinas, mas nunca nas frases gesticuladas, quando
são bem construídas” (Diderot, 1993, p. 29). Costa Lima observa que
esse raciocínio mostra que Diderot “antevia um acordo entre os
hieróglifos particulares a cada arte – i. e., realizados por seus próprios
meios – e que este acordo se encontraria nas leis que organizam a
natureza” (Lima, 1988, p. 153). A partir deste momento Diderot
estabelece uma consonância entre os hieróglifos de cada arte,
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independente do meio artístico no qual eles se organizam que é a base
de sua teoria hieroglífica e, embora não se possa afirmar, talvez seja
este o motivo do título de sua carta a Batteux.
1.3 – Temporalidade e espacialidade
O exame das questões temporal e espacial em Diderot é
extensão da escrita hieroglífica, posto que tais assuntos foram
abordados na Carta sobre os surdos e mudos e anteciparam em quinze
anos a mesma discussão como ver-se-á a seguir.
Embora se credite a Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) o
estatuto de uma base estética que estabeleceu critérios distintos para a
análise das artes poéticas e plásticas e, não tendo o escritor alemão
mencionado Diderot em sua obra que trata da fronteira entre as artes
do tempo e do espaço – Laokoon ou sobre os limites da pintura e da
poesia (1766) –, é inegável a influência da Carta no texto de Lessing,
ainda que esta não seja suficiente para tirar o mérito do Laokoon.
Explica-se: o autor de Nathan o sábio (1779), que já condenara a
imitação da dramaturgia clássica francesa pela alemã, ignorou o que
Diderot já havia proposto ao abade Batteux em 1751:
Após haver fixado a data da introdução do hieróglifo
silábico nas línguas em geral, observei
que cada arte de
imitação tem o seu hieróglifo, e que seria desejável que
um escritor instruído cuidasse de fazer as comparações.
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31
Nessa altura, tentei fazer com que entendêsseis, senhor,
que algumas pessoas esperam de vós esse trabalho, e que
os que leram vossas belas artes reduzidas à imitação da
bela natureza imaginam ter o direito de exigir-vos uma
explicação clara do que seja a bela natureza. Enquanto
aguardava vossa comparação dos hieróglifos da poesia,
da pintura e da música, ousei arriscar a minha nesse
mesmo tema (DIDEROT, 1993, p. 63).
E, confirmado nos Ensaios sobre a pintura de maneira
enfática: “O pintor dispõe de apenas um instante e lhe é vedado
abranger tanto dois momentos quanto duas ações” (Diderot, 1993, p.
106). “Por este lado, o livro de Diderot antecipou o célebre Laocoonte
quer Lessing o tenha lido ou não”, observa Franklin de Matos (2001, p.
149).
Como é notório, os textos estéticos diderotianos estão
segmentados em dois momentos: no primeiro, percebe-se o prazer
sensista oriundo das inclinações poéticas próprias do autor (Carta) e,
no segundo, manifesta-se o rigor e a observação próprias do filósofo
(Ensaios sobre a pintura, dentre outros). A despeito de contradições ou
não “esse paradoxo se concentra na simultaneidade das tendências de
pensar a arte subordinada ao útil e ao eticamente bom e de antever a
possibilidade de uma pura análise sensível-textual” (Lima, 1988, p.
140). Assim, a tensão temporalidade e espacialidade encontra no
hieróglifo diderotiano uma unidade imprevista que não é aquela própria
da expressão verbal, que é sucessiva, e nem da plástica, que é
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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simultânea. Para uma melhor compreensão dessa síntese contraditória,
faz-se necessária a transcrição do estudo realizado por Lima:
Por isso, no poeta, as relações entre expressão e
pensamento se tornam diferentes: enquanto uma
sensação psíquica (“l’état d’âme”, diz Diderot) se forma de
maneira imediata, a expressão verbal não pode declará-la
senão de maneira sucessiva. Assim “uma coisa é o estado
de nossa alma; outra coisa, darmo-nos conta dele, seja a
nós mesmos, seja aos outros” (Diderot, D.: 1751a, 369).
Este hiato contudo se interrompe com a poesia, que
recupera a instantaneidade das representações internas,
tornando-se então um tableau mouvant (Lima, 1988,
p. 152).
E Lima continua sua reflexão, apoiando-se em Doolittle,
dizendo que:
O “état d’âme” é complexo e simultâneo; daí se segue que
a poesia deve comunicá-lo na medida do possível
simultaneamente. Isso só pode ser feito por meio de uma
pintura, de uma representação plástica, evocada na
imaginação do ouvinte com a ajuda do som e do ritmo
(Doolittle, apud Lima, 1988, p. 152).
Ao final do capítulo II dos Ensaios – Algumas de minhas idéias
bizarras sobre a cor, encontra-se um exemplo sutil do Enciclopedista,
quando ao se manifestar sobre cores amigas e cores inimigas, diz não
ser do seu “intuito destruir na arte a ordem do arco-íris. O arco-íris é,
na pintura, o que o baixo fundamental é na música” (Diderot, 1993, p.
51). Confundir a ordem natural das cores do arco-íris, é possível,
tamanha a proximidade umas das outras e, seria-nos quase
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33
imperceptível a mudança, pois, segundo o Filósofo, em sua Carta,
“assim como invertemos o baixo fundamental em baixo contínuo para
torná-lo mais encantador”, este será “verdadeiramente agradável
somente à medida que o ouvido faz a progressão natural do baixo
fundamental, que a sugeriu” (Diderot, 1993, p. 44, 45). Explica-se a
comparação com a música: sendo a nota fundamental do acorde, o seu
baixo fundamental corresponderia a cada uma das cores do arco-íris em
sua ordem natural. O baixo contínuo é a estrutura fundamental da
música, isto é, a composição musical, e nela os acordes formam uma
harmonia, a mesma do conjunto das cores do arco-íris, independente de
sua seqüência natural, porém, embora não consigamos distingui-las em
suas composições elementares, identificá-las conforme a natureza as
justapôs, só aumentaria o prazer de admirá-las. Há aqui uma
consideração sobre os fatos em si mesmos, mas, também, uma relação
entre estes mesmos fatos – a harmonia.
A comparação pintura/música é um passeio imaginativo do
Enciclopedista que, não abandonando os cânones plásticos presentes
no arco-íris: cores, forma, linhas, elementos sensíveis da beleza e da
harmonia, irá, da mesma maneira, usar o desvio de assunto –
principalmente em suas críticas àquelas pinturas ditas de costume, isto
é, as que tratam de cenas mais comuns e familiares –, para articulações
ficcionais e psicológicas típicas de um romance, onde a escrita
passional e derramada anteciparia em um século o romantismo.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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A supremacia do sensível sobre o visível é a confirmação do
que Diderot iria sedimentar em sua crítica de arte: a temporalidade. A
imagem torna-se falante e o quadro passa a ter vida, exigindo do crítico
tanto imaginação quanto poesia, como igual conhecimento dos
componentes picturais que sustentam uma composição. Evitando a
mera descrição, a obra crítica diderotiana procura em esforço
permanente uma linguagem capaz de conferir-se uma forma literária.
Em seu livro Literatura e artes plásticas, Solange Ribeiro afirma:
Diderot foge ao lugar comum de descrever os quadros
sobre os quais emite julgamento. Procura outros meios
de levar o leitor a imaginá-los. (...) Prenuncia-se o
relativismo do mundo moderno, o descentramento, que
admite vários ângulos de visão, todos igualmente válidos.
Além da teatralização do espaço, Diderot ao propor um
“passeio” pelo quadro, introduz na pintura, um elemento
de temporalidade (Oliveira, 1993, p. 17).
Ao intérprete/leitor é dada a possibilidade de uma leitura
pessoal, na qual ele se encontra contextualizado, tendo em vista a
pluralidade e sucessividade de índices que o emblema diderotiano
carrega consigo. Levando-se em consideração que o texto do Filósofo
inclui o leitor dentro da sua origem – é corrente o uso do pronome
indefinido on equivalente à nossa primeira pessoa do plural –, e que
isso, de alguma forma, caracteriza cumplicidade, torna-se necessária a
leitura dos elementos que compõem a temporalidade de um trecho da
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35
Carta, onde com poucas palavras ele se debruça e esclarece o assunto
com exatidão e minúcia:
O estado da alma num momento indivisível foi
representado por uma multidão de termos que a precisão
da linguagem exigiu, os quais distribuíram em partes
uma impressão total. Como esses termos eram
pronunciados sucessivamente e não eram entendidos
senão na medida que eram pronunciados, fomos levados
a crer que as afecções da alma que os representavam
tinham a mesma sucessão, mas não é bem assim. Uma
coisa é o estado de nossa alma; outra, a atenção
sucessiva e detalhada a que fomos forçados para analisá-
la, manifestá-la e nos fazermos entender (Diderot, 1993,
p. 39, 40).
Para Arnaud Buchs, Diderot não fala de outra coisa: da poesia
que estará vinculada à sua crítica de arte: “É pois por natureza que a
linguagem é fragmentária: mergulhada no tempo, na sucessão, ela só
pode exprimir ‘em elementos’ o que não pode ser dividido” (Buchs,
2000, p. 118).
1
A descrição de elementos indivisíveis traz ao leitor
recortes de cenas teatrais, com se fossem frames – fotogramas –
fílmicos, que observados seqüencialmente e narrados pelas histórias
que o Filósofo cria para ilustrá-las dramatizam o espaço pictural. Daniel
Bergez, no ensaio A crítica pictural dos escritores, incluso no livro
Literatura e pintura, ao explicar esta fenomenologia é categórico: “Ela
lhe impôs submeter-se à ilusão engendrada pelo quadro e de deixar
1
“C’est donc par nature que le langage est fragmentaire: plongé dans le temps, dans la succession, il ne
peut exprimer q’“en parties” l’indivisible”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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36
perceptível a emoção que ele causou. (...) O estilo é então
prazerosamente expressivo, como se fosse uma cena teatral” (Bergez,
2004, p. 202).
2
Enfim, todos os procedimentos críticos usados por
Diderot tomados aos da literatura, da poesia dramática e, em especial e
principalmente aos do signo poético, têm um só objetivo: proporcionar
ao leitor a ilusão de estar vivenciando algo real.
A interação dos elementos espaciais e temporais mostra que a
cadeia crítica diderotiana é formada por uma evolução ininterrupta que
se inicia com sua adesão ao sensacionismo amadurecido através da
escrita hieroglífica, onde as representações momentâneas e
descontínuas das artes plásticas passam a ser analisadas
sucessivamente tais como tivessem sido vivenciadas no lugar mesmo da
cena.
2
“Elle lui impose de se soumettre à l’illusion engendrée par le tableau et de rendre sensible l’émotion
qu’il produit. (...) Le style est alors volontiers expressif, comme pour rendre compte d’une scène
théâtrale”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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CAPÍTULO II
Diálogos (im)pertinentes entre a
Carta sobre os surdos e mudos e os Ensaios sobre a pintura
2.1 – A Carta sobre os surdos e mudos
A Carta sobre os surdos e mudos (1751), cujo destinatário é o
abade Charles Batteux (1713-1780), tem por objetivo contestar, às
vezes em tom de pilhéria, as Cartas sobre a frase francesa (1747-48) e
As belas artes reduzidas ao mesmo princípio (1746), ambas de autoria
do retor. Nela, Diderot, longe da influência da moral do sentimento
defendida pelo inglês Anthony Shaftesbury (1671-1713) e já entregue ao
sensualismo que irá acompanhá-lo para o resto da vida, toma como
orientação inicial um tema pertinente à retórica, o das anástrofes, em
maior ou menor grau, da ordem natural das palavras, e atomiza-o até a
sua ultrapassagem da barreira da eloqüência. Para Magnólia Costa
Santos “a trilha do ‘labirinto’ da Carta atravessa, como se vê, campos
que hoje se chamam Lingüística, Epistemologia e Estética” (Santos,
1993, p. 11). Nela encontram-se reveladas as bases de sua estética, tais
como a tautocronia e a intenção de examinar os caracteres específicos
da música, da pintura e da poesia, não obstante o mesmo princípio que
as origina: a verossimilhança. Com relação à similitude ou não dos
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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38
elementos individualizadores das três diferentes manifestações
artísticas, Diderot aconselha ao abade Batteux “reunir as belezas
comuns da poesia, da pintura, da música, mostrar-lhes as analogias,
explicar como o poeta, o pintor e o músico produzem a mesma imagem,
captar os emblemas fugazes de sua expressão, examinar se há
similaridade entre esses emblemas etc.” (Diderot, 1993, p. 57). Além de
sua beleza literária, o que fica claro na Carta é a preocupação
diderotiana em criar um estilo plástico – harmonia entre os dispositivos
espacial e temporal –, que irá condensar-se em sua crítica. De acordo
com Franklin de Matos:
A Carta sobre os surdos e mudos é hoje considerada uma
pequena obra-prima, que interessa não apenas aos
leitores de Diderot, mas também àqueles que lidam com
poesia e estética. Para os primeiros representa, no dizer
de Georges May, um dos pilares do portal que dá acesso
à obra do filósofo; para outros contém uma reflexão sobre
a natureza da poesia, sobre aquilo que a distingue e a
aproxima das outras formas de arte (Matos, 2001, p.146).
2.2 – Os Ensaios sobre a pintura
O interesse de Diderot pelas artes plásticas, leva-o em 1757 a
visitar o Salão – exposição de obras de pintura e escultura feita em uma
das salas do Louvre – acompanhado do amigo barão Melchior de Grimm
(1723-1807), que conhecera em 1742, e que era redator da
Correspondance littéraire, philosophique et critique destinada à nobreza
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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39
européia, informando sobre a vida parisiense. Em 1759, o
Enciclopedista assume a crítica dos Salões para a Correspondance
exercendo-a por vinte e dois anos, até 1781. É nesse período que os
componentes estéticos de seu pensamento prenunciados na Carta sobre
os surdos e mudos irão amadurecer. Ao final dos escritos sobre o Sao
de 1765, em que comentou entre quatrocentos e quinhentos quadros,
Diderot anuncia sua intenção de escrever um Tratado de pintura.
Concluído em julho de 1766, o Tratado é publicado separadamente em
1795 com o nome de Ensaios sobre a pintura. Logo:
Um dos grandes interesses dos Saes e dos Ensaios,
portanto, é mostrar a progressiva conversão do filósofo
em crítico de arte. Esse tipo de transformação, aliás, é
bem característico de Diderot, filósofo cheio de máscaras
e que, para falar de si mesmo ou de suas personagens,
freqüentemente invocava Vertumnus, deus romano que
presidia as transformações do tempo e das estações
(Matos, 2001, p. 192).
Nos Ensaios, para enfileirar os seus pensamentos sobre os
dispositivos estéticos da pintura e a maneira de descrevê-los, Diderot
vale-se de uma análise que gravita em torno da leveza do desenho, das
tramas da luz e da sombra, da verdade das cores, dos mistérios da
composição, do único e do plural, enfim de toda a matéria que constitui
o texto pictural e que irá forjá-lo.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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40
2.3 – Interseções e contrastes
2.3.1 – Aspectos seminais
Dois aspectos seminais: a linguagem poética como centro de
uma estética na Carta e a tendência a não distinguir natureza e arte,
misturando-as completamente nos Ensaios, perpassam os dois tratados
estéticos diderotianos. Examiná-los pois, torna-se necessário para um
estudo comparativo de ambos.
Na Carta sobre os surdos e mudos, ao colocar a linguagem
poética no centro de uma estética, o que em última análise é meta-
estética, Diderot retoma, segundo Arnaud Buchs, “os fundamentos da
ut pictura poesis, pois ele demonstra (...) que uma reflexão sobre a
linguagem estética – esta que nomeio poética – é a condição primeira de
toda estética”. Segundo Buchs, o quadro interessará a Diderot “pela sua
capacidade de suscitar a escrita” (Buchs, 2000, p. 116).
3
No Sao de
1763, e exercendo a simultaneidade, Diderot acusa o pintor Vernet de
“ladrão” da maneira mais poética possível: “É ele que ouse, sem receio,
colocar o sol ou a lua no seu firmamento. Ele roubou à natureza seu
segredo: tudo que ela produz, ele pode repetir” (Diderot, 1996, p. 270).
4
É sabido também que o Diderot dos Salões, escrevia suas críticas chez
lui, e que, a quadros sobre os quais nada pudesse escrever, fazia breves
3
“(...) les fondements de l’ut pictura poesis, car il démontre (...) qu’une réflexion sur le langage
esthétique – ce que j’appelle une poétique – est la condition première de toute esthétique, (...) pour sa
capacité à susciter l’écriture (...)”.
4
“C’est lui qui ose, sans crainte, placer le soleil ou la lune dans son firmament. Il a volé à la nature son
secret: tout ce qu’elle produit, il peut le répéter”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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41
menções ou não, atribuindo-lhes apenas as medidas. Alguns exemplos
podem ser observados no Salão de 1765. O primeiro de um quadro de
Jean-Philippe-Jacques Loutherbourg (1740-1812) e, o segundo, de
Jean-Baptiste Le Prince (1733-1781): “Ladrões atacando viajantes em
uma garganta de montanhas – Quadro de 2 pés de largura por 1 pé e 8
polegadas de altura;
5
A pesca nos arredores de Pétersbourg – Triste e
infeliz vítima de Vernet” (Diderot, 1996, p. 404, 408).
6
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), depois de saudar
entusiasticamente os Ensaios em seu L’essai sur la peinture de Diderot
publicado parcialmente na revista Die Propyläen em 1799, faz algumas
objeções a um dos fundamentos da estética defendida por Diderot:
“Para o autor do Fausto ‘todas as suas [de Diderot] afirmações tendem a
confundir a natureza e a arte e a misturá-las completamente’”
(Dobránszky, 1993, p. 15). É o que se constata em uma passagem do
capítulo VI dos Ensaios, intitulado – O que tenho a dizer sobre a
arquitetura – quando, ao comentar sobre alguns grandes coloristas,
indaga: “tão impressionante é a imitação da natureza que dela não
poderíeis tirar os olhos?” (Diderot, 1993, p. 137). Pergunta, então, a si
mesmo se ela não seria a própria natureza. E manifesta-se também
sobre tão perfeitas imitações, em alguns momentos de sua crítica, como
5
l pé = 30,48cm; 1 polegada = 25,40mm.
6
“Des voleurs attaquant des voyageurs dans une gorge de montagnes – Tableau de 2 pieds de large sur
1 pied et 8 pouces de haut; La pêche aux environs de Pétersbourg – Triste et malheureuse victime de
Vernet”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
42
se pode observar à análise feita ao quadro O frasco de azeitonas de
Chardin, exposto no Salão de 1763:
Os objetos estão fora da tela e são de uma verdade que
engana os olhos. (...) O artista colocou sobre uma mesa
um vaso de porcelana antiga da China, dois biscoitos, um
frasco cheio de azeitonas, um cesto de frutos, dois copos
de vinho pela metade, uma laranja da terra, com patê.
(...) Este vaso de porcelana é de porcelana; estas
azeitonas estão realmente separadas dos olhos pela água
na qual elas estão mergulhadas (Diderot, 1996, p. 264,
265).
7
O que para Goethe era indistinção entre arte e natureza, em
Diderot era reflexo de suas próprias formulações estéticas e existenciais
e que trouxe para a posteridade uma obra crítica que pode ser
examinada à luz da estilística de Leo Spitzer. Tendo Diderot
estabelecido uma linguagem que revela no crítico as impressões
causadas no escritor emanadas das obras de arte, a concepção
estilística da sua apreciação é expressão de sua personalidade. Sendo,
aqui, a linguagem extensão do sentimento, é da mesma forma retorno a
ele. Para Ângela Vaz Leão, em seu estudo sobre a escola crítica
formulada por Spitzer, “uma obra literária é, pois, um documento que
nos permite conhecer aquele que a criou, o seu clima espiritual, a sua
visão do mundo” (Leão, 1960, p. 22). É o que se observa nos próprios
7
“Le bocal d’olives. Les objets sont hors de la toile et d’une vérité à tromper les yeux. (...) L’artiste a
placé sur une table un vase de vieille porcelaine de la Chine, deux biscuits, un bocal rempli d’olives,
une corbeille de fruits, deux verres à moitié pleins de vin, une bigarade, avec un pâté. (...) C’est que ce
vase de porcelaine est de la porcelaine; c’est que ces olives sont réellement séparées de l’oeil par l’eau
dans laquelle elles nagent”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
43
Ensaios, quando admite que grandes artistas, tais como Vernet e
Chardin, comprazem-se em misturar seus arrojados pincéis, variada e
harmoniosamente, as cores tênues e suaves do arco-íris às fortes e
vibrantes de suas palhetas, lembra sempre “que o homem não é Deus; é
que o atelier do artista não é a natureza” (Diderot, 1993, p. 51),
desfazendo aqui e, momentaneamente, o motivo que originou a crítica
de Goethe – o de interpor natureza e arte – e, voltando às bases deístas
de sua primeira formação, aceitar a existência de um Deus, que poderá
ou não ter criado o Universo.
Segundo Michel Delon, Diderot inventou um gênero
inteiramente novo onde a escrita rivaliza com a pintura, no qual “a
análise da arte se inscreve através de uma nova elaboração
materialista” (Delon, 2000, p. 64).
8
Após o Salão de 1781, o Filósofo escreve os Pensamentos
esparsos sobre a pintura e, refletindo sobre a distribuição das sombras
e das luzes, lega aos pintores o que só a escrita pode elaborar: “Iluminai
vossos objetos segundo vosso sol, que não é aquele da natureza; sejais
discípulo do arco-íris, mas não seu escravo” (Diderot, 1996, p. 1023).
9
A Carta sobre os surdos e mudos antecede o Tratado sobre o
belo publicado primeiramente com o título O belo no volume II da
8
“L’analyse de l’art s’inscrit dans l’élaboration d’un matérialisme nouveau”.
9
“Éclairez vos objets selon votre soleil, qui n’est pas celui de la nature; soyez le disciple de l’arc-en-
ciel, mas n’en soyez pas l’esclave”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
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44
Enciclopédia, em 1752. Na Carta, Diderot estabelece uma formulação
estética na qual o Tratado se apóia e que tem como uma de suas fontes
a Monadologia (1714) do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz
(1646-1716), segundo a qual os seres são constituídos por mônadas –
substâncias simples, ativas, indivisíveis – entre as quais há uma
harmonia preestabelecida. Em apêndice à Carta sobre os surdos e
mudos, intitulado Advertência a vários homens, dirigindo-se à senhorita
de La Chaux, o Filósofo, ao abordar o tema dos sentidos, esclarece: “a
percepção das relações é um dos primeiros passos de nossa razão”
(Diderot, 1993, p. 73). Essa delineação de uma opinião sistematizada
das relações e que é o eixo central do artigo Belo requer reciprocidade
com a noção do que é verdadeiro; segundo Diderot “essa relação exata
das partes de um todo entre elas, que o constitui em UNO, era para
Santo Agostinho, o caráter distintivo da beleza” (Diderot, 2000, p. 232).
O exame do sumário dos Ensaios sobre a pintura mostra a preocupação
do Enciclopedista, em examinar as partes constitutivas de um todo – a
pintura, apesar do estranho nome do Capítulo I – Minhas idéias
bizarras sobre o desenho. Os demais: Capítulo II – Algumas de minhas
idéias sobre a cor; Capítulo III – Tudo que pude entender sobre o claro-
escuro; Continuação do capítulo anterior – Estudo sobre o claro-escuro;
Capítulo IV – O que todo mundo sabe sobre a expressão e algumas
coisas que ninguém sabe. Sunt lacrymae rerum, et mentem mortalis
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
45
tangunt;
10
Capítulo V – Parágrafo sobre a composição, aonde quero
chegar; Capítulo VI – O que tenho a dizer sobre a arquitetura e,
Capítulo VII – Um pequeno corolário do que se acabou de dizer,
observadas as premissas que os regem: cor; claro-escuro; expressão;
composição e arquitetura, são a base de um raciocínio que, além do
estabelecimento de relações para se chegar a uma conclusão,
equivaleriam à harmonia que há entre as mônadas. No Tratado sobre o
belo, assinala que em arquitetura a beleza do conjunto obedece a
critérios de decência, justeza e graça. Interroga então ao arquiteto se o
belo o é assim porque agrada, ou se agrada porque é belo. Certifica-se
pelo arquiteto: “convireis ao menos sem maior esforço que a similitude,
a igualdade, a conveniência das partes de vosso edifício, reduz tudo a
uma espécie de unidade que contenta a razão” (Diderot, 2000, p. 233).
Assim, a arte que proporciona a beleza entusiástica ao olhar deverá ter
além do componente sensível, autoridade sobre si mesma.
2.3.2 – (In)congruências
Gestados em estilos diferentes que expressam distintamente
as intenções do autor: a carta – gênero muito comum entre os escritores
dos séculos XVII e XVIII – permite a manifestação de idéias soltas e
desordenadas, descompromissadas com encadeamentos lógicos e está
10
Virgílio, Eneida, I, 462: “Existem lágrimas das coisas, e o que é mortal toca o coração”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
46
em oposição aos ensaios, onde as reflexões diversas dos assuntos
abordados não os esgotam plenamente. Diderot apropria-se de ambos
os estilos para traduzir através de maneiras diversas suas investigações
estéticas. Se na Carta a supremacia do sensível sobre o visível é
predominante, nos Ensaios os modelos de perfeição resgatados à
Antiguidade são utilizados pelo Filósofo para a enumeração de
elementos fundamentais da sua crítica de arte. Dialogando consigo
mesmo para dizer que os labirintos de uma carta não são defeitos, na
correspondência enviada ao filho do editor da Carta e que serve de
prefácio à mesma, é taxativo ao afirmar:
(...) a mim, preocupa-me somente fazer a obra, ainda que
correndo o risco de ser um pouco menos lido. Quanto à
multidão de objetos sobre os quais me apeteceu
sobrevoar, sabei e dizei aos que vos aconselham que ela
não é defeito numa carta, onde é permitido conversar
livremente e onde a última palavra é suficiente para que
se faça a transição (Diderot, 1993, p. 16)
A inter-relação – multiplicidade/unicidade – observada como
reflexo de representar e simbolizar a “multidão de objetos” é, também,
outro dos temas centrais que percorrem a Carta e os Ensaios, posto que
ela será o elo entre expressão e pensamento. Diderot observa, na
primeira, que “a nossa alma é um quadro profundo que pintamos sem
cessar: gastamos muito tempo tentando mostrá-lo com fidelidade, mas
ele existe como um todo inteiro, onde tudo se passa simultaneamente”
(Diderot, 1993, p. 40) e reitera, no segundo, “o rosto humano, essa tela
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
47
que se agita, movimenta-se, alonga-se, descontrai-se, colore-se,
empalidece conforme a quantidade infinita de oscilações desse sopro
ligeiro e móvel que se chama alma!” (Diderot, 1993, p. 53). Ao associar o
rosto humano à alma, atribuindo àquele uma sucessão de
características ligadas a expressões agora visíveis, própria do exame
pictural, porém permeadas de linguagem temporal, o Filósofo inter-
relaciona elementos. Para Luiz Costa Lima, deparamo-nos com “um
surpreendente Diderot pré-estruturalista” (Lima, 1988, p. 165).
Novamente os hieróglifos tornam-se elementos verbo-visuais e “o
caminho que conduz o objeto à representação passa pela idéia”
(Chouillet, apud Lima, l988, p. 171). Defrontamo-nos com uma
linguagem fragmentária pontuada de símbolos indivisíveis e sucessivos
próprios da digressão temporal: o rosto humano não é uma tela, nem
uma tela se agita, movimenta-se, alonga-se, descontrai-se, colore-se e
empalidece porque a ela não pertence o sopro ligeiro e móvel da alma,
mas as oscilações postas simultaneamente podem ser pintadas sem
interrupção. Segundo Arnaud Buchs “é assim o emblema eficaz da
escrita e da estética de Diderot, que formam uma só e mesma coisa”
(Buchs, 2000, p. 120).
11
Ao comentar os Saes para a Correspondande littéraire,
Diderot estava informando aos assinantes do jornal o que eles nem
11
“est ainsi l’emblème performatif de l’écriture et de l’esthétique de Diderot, qui ne forment qu’une
seule et même chose”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
48
sempre tinham visto, tendo, portanto de descrever as obras expostas de
maneira fiel e comentá-las do seu ponto de vista. Segundo Daniel
Bergez:
É verdade que o crítico é essencialmente, e por definição,
aquele que julga a qualidade de uma obra. Mas o leitor
tem também outras expectativas: que ele o informe da
existência da obra (função primeira da crítica jornalística,
como nos Saes de Diderot), que ele a classifique num
repertório de formas ou de gêneros conhecidos
(procedendo então a um trabalho de “poética” ao sentido
de Aristóteles), e que ele a analise tornando-a inteligível
(este é o aspecto principal da crítica universitária).
Informativa, classificativa, analítica e avaliativa, tal é a
quadrúpla função da crítica (Bergez, 2004, p. 196, 197).
12
A primeira função da crítica, na formulação de Bergez,
segundo os cânones diderotianos – a informativa – deve considerar a
atividade comunicacional que se processa através da interação de uma
fonte com um receptor. O que fala deve expor inteligivelmente o assunto
abordado para aquele que vá recebê-lo o compreenda. Diderot é enfático
ao afirmar na Carta “que a boa construção é a que exige que se
apresente primeiramente, a idéia principal, porque esta, depois de
manifesta esclarece as demais” (Diderot, 1993, p. 29). No Capítulo V
dos Ensaios confirma a mesma concepção, valendo-se, de uma forma
12
“Certes, le critique est essentiellement, et par définition, celui que juge de la qualité d’un ouvrage.
Mais le lecteur attend aussi bien d’autres choses: qu’il l’informe de l’existence de l’oeuvre (fonction
première de la critique journalistique, comme des Salons de Diderot), qu’il la classe dans un répertoire
de formes ou de genres connus (procédant alors à un travail de “poétique” au sens d’Aristote), et qu’il
l’analyse en la rendant intelligible (c’est l’aspect principal de la critique universitaire). Informative,
classificatrice, analytique et évaluative, telle est la quadruple fonction de la critique”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
49
digressiva, da monadologia leibniziana: “A idéia principal, concebida
claramente, deve exercer sua tirania sobre todas as outras. É a força
motriz da máquina, que, semelhantemente àquela que mantém os
corpos celestes em suas órbitas e os atrai, atua na razão inversa da
distância” (Diderot, 1993, p. 115).
A segunda característica procura categorizar as obras
analisadas. No mesmo capítulo, o Filósofo as classifica primeiramente
em pitorescas ou expressivas, pois para ele:
É muito importante para mim que o artista tenha
distribuído suas figuras de modo a conseguir os mais
atraentes efeitos de luz, se o conjunto absolutamente não
me fala à alma, se esses personagens aí apresentam-se
como particulares que mutuamente se ignoram em um
passeio público ou como os animais ao sopé das
montanhas para o paisagista (Diderot, 1993, p. 114).
Em seguida, observando os agrupamentos de espécies, fatos e
caracteres comuns, usando critérios taxionômicos, as classifica por
assuntos: as de gênero “que imitam a natureza bruta e morta” e de
cenas do cotidiano, e as de história “que imitam a natureza sensível e
viva” esclarecendo que ambas exigem do artista “o mesmo tanto de
talento, de imaginação, até mesmo de poesia” (Diderot, 1993, p. 122),
além do domínio de todas as técnicas picturais.
13
13
Interessante observar que o organizador do tomo IV das Oeuvres – Esthétique-Théâtre, Laurent
Versini, para explicar o termo pittoresque, usa um verbete tomado ao Dictionnaire français-latin, dit
de Trévoux, de 1771, portanto posterior à publicação dos Ensaios. O verbete traz em seu conteúdo, de
forma mais organizada os conceitos delineados por Diderot em suas classificações: Pitoresco: “(...)
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
50
Ao estabelecer diretrizes, o Filósofo, de acordo com François
Dagognet “censura severamente a pintura detalhada, minuciosa, aquela
da ‘fotografia’ antes da letra” (Dagognet, 1973, p. 159).
14
O quadro mostra-me tudo, ele não me deixa fazer nada.
Ele me cansa, me impacienta. Se uma figura caminha,
pinte seu porte e sua leveza: eu me encarrego do resto. Se
ela está inclinada, fale-me somente dos seus braços e
ombros: eu me encarrego do resto... Eu percebo os
detalhes e perco o conjunto (Diderot, apud Dagognet,
1973, p. 159).
15
As raízes desses princípios críticos que requerem a
participação por meio da imaginação daquela que julga, encontram-se
amadurecidas na Carta, onde Diderot discute a relação entre juízo e
memória:
Uma grande memória pressupõe uma grande facilidade
de ter simultânea ou rapidamente várias idéias
diferentes, e essa facilidade prejudica a comparação
tranqüila de um pequeno número de idéias que o
engenho deve, por assim dizer, encarar fixamente. Uma
cabeça povoada de um número muito grande de coisas
disparatadas assemelha-se bastante a uma biblioteca de
volumes desaparelhados (Diderot, 1993, p. 41).
que é da imaginação de um pintor. Que é próprio da pintura. [...] Diz-se da disposição dos objetos, do
aspecto dos locais, da atitude das figuras que o pintor acredita a mais favorável à expressão”. [(...) qui
est de l’imagination d’un peintre. Qui est le propre de la peinture. [...] Se dit de la disposition des
objets, de l’aspect des sites, de l’attitude des figures que le peintre croit le plus favorable à
l’expression”.]
14
“Et Diderot blâme sévèrement la peinture détaillée, minutieuse, celle de la ‘photographie’ avant la
lettre”.
15
“Il me montre tout, il ne me laisse rien à faire. Il me fatigue, il m’impatiente. Si une figure marche,
peignez son port et sa légèrete: je me charge du reste. Si elle est penchée, parlez-moi de ses bras
seulement et de ses épaules: je me charge du reste... Je sens vos détails et je perds l’ensemble”. Cf.
Diderot, D. “Salon de 1767”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
51
O terceiro aspecto – analítico –, encontrará no capítulo III
desta dissertação, toda a sua materialidade e expressividade.
A apreciação – última função da crítica – remete Diderot na
Carta aos versos de Virgílio, quando este, na Eneida, relata a agonia de
Euríalo, comparando a cabeça do jovem e belo guerreiro troiano
pendente pela nuca às flores das papoulas baixadas pelo peso da
chuva:
Na análise dessa passagem de Virgílio, é fácil ser levado
a crer que ela nada deixa a desejar. Depois de nela se
notarem tantas belezas, de se encontrarem, talvez,
mais belezas do que de fato possua, seguramente mais
do que o poeta quis colocar, é provável que minha
imaginação e meu gosto se satisfaçam plenamente
(Diderot, 1993, p. 49).
O Filósofo, neste trecho, aponta para o sentido estético do
gosto, ou seja, a faculdade de compreender e apreciar a beleza tanto na
natureza quanto na arte. Mais que isso, ao colocar também a
imaginação como pressuposto de sua observação, indica um elemento
ideal que será aquele que permitirá o julgamento. Com relação à
plenitude de sua satisfação, fala do comover-se, isto é, da sensibilidade.
Nos Ensaios, ao se indagar sobre o que é a capacidade de
julgar valores estéticos subjetivamente, sem normas preestabelecidas,
responde: “Uma facilidade adquirida, mediante experiências contínuas,
para captar o verdadeiro e o bom, com a circunstância que o torna belo,
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
52
e ser por ele pronta e vivamente tocado” (Diderot, 1993, p. 145, 146).
Para Luiz Costa Lima, Diderot discute aqui a vinculação da beleza com
a verdade, o que não aparece na Carta. Para Lima:
(...) a relação que o belo estabelece com o verdadeiro ou o
bom não é imediata. Sua diferença contudo está apenas
em uma “circunstância”. O belo é concebido como
próximo à verdade, mas dela ainda separado por um
intervalo, que o trecho não se propõe explicar (Lima,
1988, p. 161).
Porém, nos Ensaios, Diderot parece insinuar a resposta:
Miguel Ângelo dá à cúpula de São Pedro de Roma a mais
bela forma possível. O geômetra de La Hire,
impressionado com essa forma, traça sua épura e
descobre que esta é a curva de maior resistência. O que
inspirou a Miguel Ângelo, dentre uma infinitude de
outras que ele poderia escolher? A experiência diária da
vida. (Diderot, 1993, p. 146).
É o mesmo Lima quem acaba concordando: “a bela forma,
idêntica à geometricamente mais resistente, é não só verdadeira quanto
boa (útil)” (Lima, 1988, p. 161).
Se na Carta a relação belo/verdadeiro inexiste, uma outra, a
das sensações com a percepção das idéias, traz à tona uma formulação
poética que permite aos sentimentos percebidos simultaneamente pela
nossa alma organizarem-se e expressarem-se de modo sucessivo,
temporal. Nos Ensaios a preocupação beleza/verdade faz Diderot
inventariar sobre os componentes das artes espaciais, para uma melhor
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
53
compreensão e admiração das mesmas. A crítica de arte diderotiana é,
pois, a justaposição de todos esses elementos, tratando-se, então, de
uma obra que reflete sobre si mesma, sobre os meios que a compõe e
sua maneira de se expressar.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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54
CAPÍTULO III
O Salão de 1765
O presente capítulo trará trechos escolhidos, em meio àqueles
escritos por Diderot sobre o Salão de 1765, abordando a apresentação e
as críticas feitas às telas de Chardin, Greuze e Vernet. Os textos serão
analisados e comentados à luz de seus estudiosos e do autor desta
dissertação, com base nos aspectos sobreditos: a temporalidade, a
digressão, a imaginação, simultaneidade e outros pertinentes à retórica.
3.1 – Abertura
Como todos os Salões, o de 1765 também foi realizado no
Salão Quadrado do Louvre, que desde 1748 passou a abrigar as
exposições realizadas pelos membros da Academia Real de Pintura e
Escultura de Paris.
No texto de abertura daquele Salão, Diderot dirige-se ao amigo
Grimm, num primeiro momento, fazendo uma reflexão sobre o que lhe
foi proposto:
É a tarefa que você me propôs que fixou meus olhos
sobre a tela e que me fez girar ao redor do mármore. Dei
tempo à impressão de chegar e de entrar. Abri minha
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
55
alma aos efeitos, me deixei penetrar. Recolhi a sabedoria
do velho e o pensamento da criança, o julgamento do
homem de letras, a palavra do homem do mundo e as
palavras do povo; e se eventualmente eu magoar o
artista, é com a mesma arma que ele tem afiado.
Interroguei e entendi o que seria a delicadeza do desenho
e a verdade da natureza, concebi a magia das luzes e das
sombras; conheci a cor; adquiri o sentimento da carne
humana. Só, meditei sobre o que vi e ouvi, e os termos da
arte, unidade, variedade, contraste, simetria, ordenação,
composição, caracteres, expressão, tão familiares em
minha boca, tão vagos em meu espírito, tornaram-se
circunscritos e retidos (Diderot, 1996, p. 29l).
16
Num segundo momento, estabelece a relação entre alguns
elementos e objetos pertinentes para o exercício das diversas artes e,
declara sua pretensão de, ao final, fazer um comentário sobre artes
plásticas, que posteriormente seria publicado com o título de Ensaios
sobre a pintura.
Oh! meu amigo, que estas artes que têm por objeto imitar
a natureza seja com o discurso, como a eloqüência e a
poesia, seja com os sons, como a música, seja com as
cores e o pincel como, a pintura, seja com o lápis, como o
desenho, seja com o cinzel e a terra mole, como a
escultura, o buril, a pedra e os metais como a gravura, a
torrinha, como a gravura em pedras finas, o bordão de
16
“C’est la tâche que vous m’avez proposée qui a fixé mes yeux sur la toile et qui m’a fait tourner
autour du marbre. J’ai donné le temps à l’impression d’arriver et d’entrer. J’ai ouvert mon âme aux
effets, je m’en suis laissé pénétrer. J’ai recueilli la sentence du vieillard et la pensée de l’enfant, le
jugement de l’homme de lettres, le mot de l’homme du monde et les propos du peuple; et s’il m’arrive
de blesser l’artiste, c’est souvent avec l’arme qu’il a lui-même aiguisée. Je l’ai interrogé et j’ai
compris ce que c’était que finesse de dessin et vérité de nature; j’ai conçu la magie des lumières et des
ombres; j’ai connu la couleur; j’ai acquis le sentiment de la chair. Seul, j’ai médité ce que j’ai vu et
entendu, et ces termes de l’art, unité, variété, contraste, symétrie, ordonnance, composition,
caractères, expression, si familiers dans ma bouche, si vagues dans mon esprit, se sont circonscrits et
fixés”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
56
metal, o ferro de foscar e o bico de aço para gravar em
água-forte, como a cinzeladura; são as artes demoradas,
penosas e difíceis! (...) Descreverei os quadros e minha
descrição será tal que com um pouco de imaginação e de
gosto os realizaremos no espaço e que colocaremos os
objetos lá mais ou menos como os vimos sobre a tela; e a
fim de que se julgue da essência, que possamos fazer
sobre minha censura ou sobre meu elogio, eu terminarei
o Sao trazendo algumas reflexões sobre a pintura, a
escultura e a arquitetura (Diderot, 1996, p. 291, 292,
293, 294).
17
Observadas as premissas críticas que nortearam os
comentários de Diderot para o Sao, é necessário esclarecer que a
composição poética em forma de carta adotada em seus comentários foi
a solução encontrada pelo Filósofo para resolver um conflito nunca
plenamente esclarecido por ele: ver versus escrever. A epístola permitia-
lhe, além de antecipar a descrição dos quadros não vistos por alguns
aristocratas e coroados leitores da Correspondance littéraire, modificar-
lhes as cenas sem lhes alterar os conteúdos, o que caracteriza uma
maneira digressiva de conceber a realidade onde o crítico “pretende
fazer melhor que os artistas que expõem”(Delon, 2000, p. 64).
18
Fato é
que Diderot ao literarizar as descrições das obras de arte, remetia os
17
“Ô mon ami, que ces arts qui ont pour objet d’imiter la nature soit avec le discours comme
l’éloquence et la poésie, soit avec les sons comme la musique, soit avec les couleurs et le pinceau
comme la peinture, soit avec le crayon comme le dessin, soit avec l’ébauchoir et la terre molle comme
la sculpture, le burin, la pierre et les métaux comme la gravure, le touret comme la gravure em pierres
fines, les poinçons, le matoir et l’échoppe comme la ciselure, sont des arts longs, pénibles et difficiles!
(...) Je vous décrirai les tableaux, et ma description sera telle qu’avec un peu d’imagination et de goût
on les réalisera dans l’espace et qu’on y posera les objets à peu près comme nous les avons vus sur la
toile; et afin qu’on juge du fond qu’on peut faire sur ma censure ou sur mon éloge, je finirai le Salon
par quelques réflexions sur la peinture, la sculpture, la gravure et l’architecture”.
18
“Il prétend faire mieux que les artistes qui exposent”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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Elder João Teixeira Mourão
57
leitores a um dos textos gregos mais importantes chegados até os
nossos dias, escrito por um dos quatro membros da família dos
Filôstratos (c. II e III d.C.) – o “Êikones (‘Imagens’), dois conjuntos de
descrições em prosa de quadros que o autor pretendia ter visto”
(Harvey, 1987, p. 236, 237). A evocação de imagens é um procedimento
que revela o modo reflexivo/especulativo e, também, uma outra face
provocativa do fundador da moderna crítica de arte:
Diderot não reduz nada, ele interroga, ele sugere. Ele
visita as exposições mas também os ateliês, freqüenta os
artistas, descobre as realidades da técnica. Ele solicita
seu leitor que se torna companheiro de visita, parceiro de
conversação. Ele lhe propõe um itinerário, uma
experiência. Do mesmo modo que o artista trabalha entre
um modelo vivo ou uma paisagem real e um sonho ideal,
o crítico avança entre a descrição das telas e uma
investigação abstrata. Entre a dispersão do comentário e
a coerência do pensamento (Delon, 2000, p. 64).
19
Há no método diderotiano um componente narrativo próprio
da sucessividade literária. Ao escritor é dada a temporalidade que a
espacialidade não permite ao pintor e, em seus comentários, a
momentaneidade do instante pictural serve-lhe para considerações, não
19
“Diderot ne réduit rien, il interroge, il suggère. Il visite les expositions mais aussi les ateliers,
fréquente les artistes, découvre les réalités de la technique. Il sollicite son lecteur qui devient
compagnon de visite, partenaire de conversation. Il lui propose un itinéraire, une expérience. De
même que l’artiste travaille entre un modèle bien vivant ou un paysage réel et un rêve idéal, le critique
avance entre la description de toiles et une investigation abstraite. Entre la dispersion du commentaire
et la cohérence d’une pensée.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
58
meramente descritivas. Para Delon: “Ele aproveita disso para se
emancipar de toda limitação da descrição” (Delon, 2000, p. 65).
20
3.2 – Chardin : A enumeração como método
No Salão de 1765, na seção dedicada a Chardin, dos oito
quadros comentados por Diderot a análise deter-se-á nos seis
comentários mais expressivos: aqueles que tratam dos Atributos das
Ciências, Artes e Música e os três Refrescos.
Ao se deparar com as pinturas de Chardin, Diderot dirige-se
ao artista como a um amigo, em tom missivo: “Você veio a tempo,
Chardin, para descansar meus olhos mortalmente angustiados pelo seu
colega Challe. Aqui está você novamente grande mágico, com suas
composições mudas! Como elas falam eloqüentemente ao
artista!” (Diderot, 1996, p. 345).
21
Indignado com os quadros de Charles-Miguel-Ange Challe
(1718-1778) – pintor de temas religiosos – Diderot faz uso de uma
digressão catártica, atribuindo ao olhar um estado pertinente ao fim da
vida, contrário ao da própria visão – a cegueira. Também, ao contrário
de usar o adjetivo ferido – blessé –, próprio a um momento agônico, usa
20
“Il en profite pour s’émanciper de toute contrainte de description”.
21
“Vous venez à temps, Chardin, pour récréer mes yeux que votre confrère Challe avait mortellement
affligés. Vous revoilà donc, grand magicien, avec vos compositions muettes! Qu’elles parlent
éloquemment à l’artiste!”
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
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59
outro de ordem emocional – affligé – para, em seguida, completando a
purgação que o êxtase daquele vislumbrar lhe havia proporcionado,
atribuir às telas um caráter que, também, não lhes é pertinente – o da
fala. Ele continua colocando em marcha um novo modo de criticar,
concepção sua. “Ele faz do Salão uma reflexão estética e um exercício
de estilo” (Delon, 2000, p. 64).
22
Exercício este que “tentará dar conta,
explicando a razão do prazer que disso dão poesia e pintura, tratados
conjuntamente, e de mostrar o benefício que dela tira a sociedade”
(Démoris, 1991, p. 21).
23
No entender de René Démoris, esta relação já
se encontra nas Réflexions critiques sur la poésie et la peinture (1719) de
autoria de Jean-Baptiste du Bos (1670-1742), e seria uma nova
configuração da catarse:
A alma tem suas necessidades como o corpo; e uma das
maiores necessidades do homem é aquela de ter o
espírito ocupado. O tédio que se segue à inércia da alma
é um mal tão doloroso para o homem, que ele empreende
com freqüência os trabalhos mais penosos a fim de
poupar-se da tristeza de estar atormentado (Du Bos,
apudmoris, 1991, p. 21).
24
O primeiro parágrafo do texto diderotiano é pontuado por
pontos de exclamação que, além de saudar as composições e o artista,
22
“Il fait du Salon une réflexion esthétique et un exercice de style”.
23
“il va tenter de rendre compte en expliquant la raison du plaisir que donnent poésie et peinture, traitées
conjointement, et de montrer le bénéfice qu’en tire la société”.
24
“L’âme a ses besoins comme le corps; et l’un des plus grands besoins de l’homme est celui d’avoir
l’esprit occupé. L’ennui qui suit bientôt l’inaction de l’âme est un mal si douloureux pour l’homme,
qu’il entreprend souvent les travaux les plus pénibles afin de s’épargner la peine d’en être tourmenté”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
60
saúdam também a bela imitação da natureza, a cor, a harmonia e até a
tridimensionalidade sugerida pela pintura: “Como o ar circula em volta
destes objetos!” (Diderot, 1996, p. 345).
25
Além do relevo dado aos
quadros de Chardin, cuida de reforçar o estilo do pintor e procura, à
altura daquelas naturezas-mortas que tem quase ao alcance de suas
mãos, transpô-las para o leitor, trazendo-lhe descrições nas quais usará
termos pertinentes aos fazeres picturais e literários. Para enfatizar mais
os aspectos admirativos que nutre pelas pinturas do amigo sugere, de
maneira obtusa, que Chardin faz melhor do que a natureza.
Comparando-o com o sol, diz: “É aquele lá [o sol] que não conhece nada
de cores amigas, de cores inimigas” (Diderot, 1996, p. 345).
26
Continuando a dirigir-se aos leitores afirma que não há como escolher
os quadros, “todos são perfeitos”, bastando-lhe, portanto, esboça-los
“rapidamente” (Diderot, 1996, p. 346).
27
E, através dos seus esboços,
podemos imaginar, mesmo nas notações em que as obras de alguns
artistas não lhe agradam. Foi o que aconteceu com Jean-Baptiste-Marie
Pierre (1714-1789), pintor de história com o qual Diderot sempre foi
muito severo pelos seus quadros de pintura oficial. Em 1761 o pintor
expôs Julgamento de Paris. Diderot redesenhou a cena e “o quadro
imaginado pelo crítico é oferecido ao leitor no lugar daquele que está
25
“Comme l’air circule autour de ces objets!”
26
“C’est celui-là qui ne connaît guère de couleurs amies, de couleurs ennemies”.
27
“Il n’y a presque point à choisir, ils sont tous de la même perfection. Je vais vous les esquisser le plus
rapidement que je pourrais”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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61
pendurado no Salão” (Delon, 2000, p. 65).
28
Não é o que acontece com o
pintor de cenas inanimadas, pois “Chardin é um imitador de natureza
tão rigoroso, um juiz tão severo de si mesmo (...)” (Diderot, apud
Démoris, 1991, p. 64).
29
Inicia analisando Os atributos das ciências (1765) onde
descreve alguns objetos que lhe são próprios – livros, microscópio,
campainha, luneta, mapas etc. – observando que estão “sobre uma
mesa coberta com uma toalha avermelhada” (Diderot, 1996, p. 346)
30
e
que há entre eles “um globo meio escondido por uma cortina de tafetá
verde” (Diderot, 1996, p. 346).
31
Conclui trazendo uma idéia de
tridimensionalidade:
É a natureza mesma pela verdade das formas e da cor; os
objetos separam-se um dos outros, avançam, recuam
como se fossem reais; nada mais harmonioso, e nenhuma
confusão, apesar do grande número de objetos num
pequeno espaço (Diderot, 1996, p. 346).
32
Adota o mesmo procedimento em relação aos Atributos das
artes (1765, museu do Louvre). Lá estão desenhos, tesouras, réguas,
pincéis e objetos análogos, todos “colocados sobre uma espécie de
28
“Le tableau imaginé par le critique est offert au lecteur à la place de celui qui est accroché au Salon”. .
29
“Chardin est un si rigoureux imitateur de nature, un juge si sévère de lui-même (...)”.
30
“sur une table couverte d’un tapis rougeâtre”.
31
“un globe à demi caché d’un rideau de taffetas vert”.
32
“C’est la nature même pour la vérité des formes et de la couleur; les objets se séparent les uns des
autres, avancent, reculent comme s’ils étaient réels; rien de plus harmonieux, et nulle confusion,
malgré leur nombre et le petit espace”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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62
balaustrada”, destacando uma estátua, “é aquela da fonte de Grenelle, a
obra-prima de Bouchardon” (Diderot, 1996, p. 346).
33
E encerra:
“Mesma verdade, mesma cor, mesma harmonia” (Diderot, 1996, p.
346).
34
Ao enumerar as peças das telas, fazendo sobressair o globo na
primeira e a estátua na segunda materializa-as no espaço, fazendo-nos
presenciar aquilo que não vemos, confirmando a idéia do emblema
hieroglífico que é aquela de ao mesmo tempo falar das coisas e torná-las
presentes.
N’Os atributos da música (1765), o crítico observa que a
abundância de objetos encontra-se, mais uma vez, espalhada sobre
uma mesa coberta com um forro avermelhado. Depois de esquadrinhá-
los: há uma estante, um archote, uma trompa de caça, bandolim,
pentagramas..., é tomado de surpresa por um deles que ocupa o centro
do quadro e, sem conseguir determiná-lo, num exercício de digressão,
recorre a uma comparação: “Se um ser animado nocivo, uma serpente,
fosse pintada igualmente verdadeira, ele assustaria” (Diderot, 1996, p.
346).
35
Diante do ser/objeto indescritível, até mesmo para os
espectadores de hoje, Diderot não procurou identificá-lo, à época, junto
ao autor do quadro, seu contemporâneo. Para Démoris: “Na sua
impaciência de se satisfazer, Diderot, às vezes, pratica uma espécie de
33
“ils sont posés sur une espèce de balustrade (...) est celle de la fontaine de Grenelle, le chef-d’oeuvre
de Bouchardon”. [Edme Bouchardon (1698-1762), escultor francês, nascido em Chaumont-en-
Bassigny, autor da fonte da rua Grenelle].
34
“Même vérité, même couleur, même harmonie”.
35
“Si un être animé malfaisant, un serpent était peint aussi vrai, il effrayerait”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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livre associação (...)” (Démoris, 1991, p. 157).
36
Ao que tudo indica, a
primeira que surge em sua imaginação, é sugerida pela semelhança da
forma do objeto com uma serpente, sem o compromisso com a
fidelidade do que está sendo representado.
Na apresentação das obras de Chardin, outro exemplo de livre
associação por Diderot, dirigindo-se ao barão Grimm:
É necessário, meu amigo, que eu lhe comunique uma
idéia que me vem e que talvez não regresse em um
outro momento, é que esta pintura que nomeamos de
gênero deveria ser aquela dos velhos ou daqueles que
nasceram velhos; ela só indaga o estudo e a paciência,
nenhuma verve, pouco de gênio, nada de poesia,
muita técnica e verdade, e depois é tudo (Diderot,
1996, p. 346).
37
Ao final, ilustra-a de maneira despropositada, porém coerente
com o seu pensamento:
A propósito, meu amigo, destes cabelos grisalhos, vi esta
manhã minha cabeça prateada, e exclamei como Sófocles
quando Sócrates lhe perguntava como iam os amores: A
domino agresti et furioso profugi; escapo ao mestre
selvagem e furioso (Diderot, 1996, p. 346).
38
36
“Dans son impatience à se satisfaire, Diderot, parfois, pratique une espèce d’association libre (...)”
37
“Il faut, mon ami, que je vous communique une idée qui me vient et qui peut-être ne me reviendrait
pas dans un autre moment, c’est que cette peinture qu’on appelle de genre devrait être celle des
vieillards ou de ceux qui sont nés vieux; elle ne demande que de l’étude et la patience, nulle verve,
peu de génie, guère de poesie, beaucoup de technique et de vérité, et puis c’est tout”.
38
“A propos, mon ami, de ces cheveux gris, j’en ai vu ce matin ma tête tout argentée, et je me suis écrié
comme Sophocle lorsque Socrate lui demandait comment allaient les amours: A domino agresti et
furioso profugi; j’échappe au maître sauvage et furieux”. Em nota de rodapé Diderot cita a fonte :
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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64
São três os quadros intitulados RefrescosRafraîchissements
(1765), todos variações de um mesmo tema. Destas variações observa-
se:
A enumeração dos objetos comuns que os compõem – copos,
baldes de faiança e de folhas-de-flandres, frutos, garrafas de refrescos,
xícaras... tal qual a dos Atributos, pode indicar aqui, de acordo com
Démoris “a dificuldade de inventar da qual dá provas Chardin, e seu
hábito de retomar uma obra original para fornecer várias versões”
(Démoris, 1991, p.65).
39
A enumeração de coisas nestas críticas, parece encontrar em
Diderot o equivalente em Chardin a respeito das muitas variações sobre
o mesmo tema que o pintor nos legou, pois:
Tudo se passa como se uma vez esboçada a composição,
Chardin tentasse se poupar as angústias ou os
sofrimentos que contém a escolha do objeto – nos dois
sentidos que admite o termo, no campo do desejo e
naquele da arte, em que os afetos acham-se deslocados
(Démoris, 1991, p. 65).
40
No terceiro dos quadros: “Os biscoitos são amarelos, o frasco
verde, o guardanapo branco, o vinho tinto, e este amarelo, este verde,
[Cicéron, Caton l’Ancien ou De la vieillesse, XIV, 47, qui cite lui-même Platon, Republique, 329 c./
Cícero, Caton o Antigo ou Da velhice, XIV, 47, que cita Platão, República, c. 329].
39
“sans doute, la difficulté à inventer dont fait preuve Chardin, et son habitude de reprendre une oeuvre
originale pour en fournir plusiers versions”.
40
“Toute se passe comme si, une fois pris le risque de la composition, Chardin tentait de s’épargner les
angoisses ou les souffrances que comporte le choix d’objet – dans les deux sens que comporte ce
terme, dans le champ du désir et dans celui de l’art, où ces affects se trouvent déplacés”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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65
este branco, este tinto colocados em oposição descansam o olho pelo
acordo mais perfeito (...)” (Diderot, 1996, p. 348)
41
, estando todos sobre
um aparador. O Enciclopedista opta por apreciar o que há de mais
manifesto nas telas do pintor – a composição, retomando de uma outra
forma o que ele havia observado ao dirigir-se a Chardin quando ao se
deparar com as pinturas do mesmo, afirma que ele as executa de
maneira mais perfeita que a verdadeira natureza. Finalizando a crítica,
um exercício de tautologia: “É verdade que estes objetos não mudam
sob os olhos do artista, tais ele os viu um dia, tais ele os reencontra no
dia seguinte” (Diderot, 1996, p. 348).
42
E uma constatação: “Este
homem é o primeiro colorista do Salão e talvez um dos primeiros
coloristas da pintura” (Diderot, 1996, p. 348).
43
Ao exaltar a cor na
pintura de Chardin, Diderot a privilegia, não obstante a harmonia e a
verdade presentes nos quadros do pintor, tirante o desenho. Com
relação a procedimento enumerativo, Diderot parece trazer para sua
crítica, a repetição de temas usada por Chardin em sua obra.
41
“Les biscuits sont jaunes, le bocal est vert, la serviette blanche, le vin rouge, et ce jaune, ce vert, ce
blanc, ce rouge mis en opposition récréent l’oeil par l’accord le plus parfait (...)”.
42
“Il est vrai que ces objets ne changent point sous les yeux de l’artiste, tels il les a vus un jour, tels il les
retrouve le lendemain”.
43
“Cet homme est le premier coloriste du Salon et peut-être un des premiers coloristes de la peinture”.
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66
Figura 1: Jean-Baptiste-Siméon Chardin, Les attributs de la musique,
0,91 x 1,45, 1765, Musée du Louvre, Paris
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67
3.3 – Greuze : O confessionário ateu
Ao iniciar os comentários sobre as obras de Greuze, Diderot
dirige-se aos seus leitores como um crítico enfadonho, após incomodá-
los com a análise de cento e dez quadros de trinta e um pintores. Para
desculpar-se, anuncia que irá, a partir daquele momento apresentar
uma das grandes estrelas do Salão de 1765 da maneira seguinte:
Aqui está o meu e o pintor de vocês; o primeiro que entre
nós, lembrou-se de dar costumes à arte, e de encadear os
acontecimentos segundo os quais seria fácil escrever um
romance. Ele é um pouco frívolo, nosso pintor, mas sua
vaidade é aquela de uma criança, é a excitação do
talento; (...) leva seu talento para todos os lugares, às
balbúrdias populares, às igrejas, aos mercados, aos
passeios, às casas, às ruas; sem cessar ele vai recolhendo
ações, paixões, caracteres, expressões. Chardin e ele
falam altíssimo de seus talentos, Chardin, com
propriedade e sangue-frio, Greuze com calor e
entusiasmo. (...) Há um grande número de fragmentos de
Greuze, alguns medíocres, vários bons, muitos excelentes
(Diderot, 1996, p. 379, 380).
44
Ao saudar Greuze, Diderot, talvez, busque na personalidade
do pintor os motivos para entender as razões pelas quais a pintura dele
permite a exposição minuciosa de fatos: além da vaidade, é um homem
44
“Voici votre peintre et le mien; le premier qui se soit avisé parmi nous de donner des moeurs à l’art, et
d’enchaîner des événements d’après lesquels il serait facile de faire un roman. Il est un peu vain, notre
peintre, mais sa vanité est celle d’un enfant, c’est l’ivresse du talent; (...) porte son talent partout, dans
les cohues populaires, dans les églises, aux marchés, aux promenades, dans les maisons, dans les rues;
sans cesse il va recueillant des actions, des passions, des caractères, des expressions. Chardin et lui
parlent fort bien de leur talent, Chardin, avec jugement et de sang-froid, Greuze avec chaleur et
enthousiasme. (...) Il y a um grand nombre de morceaux de Greuze, quelques médiocres, plusieurs
bons, beaucoup d’excellents”.
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68
público ao contrário do austero Chardin cuja pintura não proporciona
relatos poéticos tamanha a verdade e a mestria de seus quadros.
E inicia a análise da próxima obra – Jovem que chora seu
pássaro morto (1765). Segundo Michel Delon, para criticá-la “todas as
formas lhe são boas: conto e diálogo, descrição e dissertação. Todas as
idéias podendo lá ser experimentadas” (Delon, 2000, p. 65).
45
Jovem que chora seu pássaro morto é um retrato que foge às
cenas do cotidiano e aos temas moralizantes mais presentes na obra de
Greuze que trata, também, das naturezas-mortas.
Segundo Italo Calvino nas suas Seis propostas para o próximo
milênio há “dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra
para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar
à expressão verbal” (Calvino, 2004, p. 99), ou seja, uma transposição
verbo/visual. Na crítica à tela de Greuze, Diderot parte do segundo.
Num primeiro momento, ele convoca o poeta e gravador suíço Salomon
Gessner (1730-1788), “autor de poemas descritivos e bucólicos (Idylles)
ilustrados por ele mesmo e que anunciaram o romantismo” (Larousse,
1980, p.1255):
46
“Que elegia encantadora! Que poema encantador! Que
idílio lindo teria Gessner feito disso! Podia ser uma vinheta ilustrando
45
“Toutes les formes lui sont bonnes: conte et dialogue, description et disssertation. Toutes les idées
peuvent y être expérimentées”.
46
“Il est l’auteur de poèmes descriptifs et bucoliques (Idylles) qui annoncent le romantisme et qu’il
illustra lui-même”.
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69
uma composição deste poeta” (Diderot, 1996, p. 381).
47
Põe-se, Diderot,
a escrever uma pequena narrativa de amor poético, suave e até mesmo
erótico, valendo-se da ekphrasis.
Usada primeiramente por Homero para descrever o escudo de
Aquiles, a ekphrasis clássica era aplicada para a descrição de objetos
circulares – taças, jarros, urnas, vasos etc. Com o passar do tempo, os
poetas dela se apropriaram para descrever obras de arte pictóricas e
escultóricas, valendo-se da aparência visível para suas manifestações
sensíveis, suas leituras pessoais e íntimas. O texto atinge seu mais alto
grau de saturação pictural e ao leitor é dado, segundo Leo Spitzer,
“separar as inferências simbólicas ou metafísicas extraídas pelo poeta,
dos elementos visuais que ele percebeu” (Spitzer, apud Lima, 1983, p.
125).
A crítica é circular e é a forma usada pelo Filósofo para unir
as duas extremidades do quadro que é oval. Ao iniciá-la, faz um relato
de cada uma das partes que formam o conjunto, adjetivando-as para
defini-las e anunciar a elegia que irá compor, trazendo à superfície uma
delicada seqüência regular de palavras – elemento essencial da
prosódia: “belo seu rosto; elegante o penteado; dor é profunda;
obsedada pelo sofrimento; bela mão; dedos delicados”, conforme ver-
se-á no corpo da citação:
47
“La jolie élégie! le joli poème! la belle idylle que Gessner en ferait! C’est la vignette d’un morceau de
ce poète”.
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70
Que quadro delicioso! O mais ameno e talvez o mais
interessante do Salão. Ela contempla o espectador; sua
cabeça descansa sobre a mão esquerda; o pássaro morto
está colocado na extremidade superior da gaiola, com a
cabeça pendente, asas pendentes, pés no ar. Que posição
natural a da menina! Que belo seu rosto! Que elegante o
penteado! Que expressão! Sua dor é profunda, ela está
inteiramente obsedada pelo sofrimento. Que belo
catafalco é essa gaiola! Que graça naquela grinalda de
folhas que a contorna. Que bela mão, bela mão! que
bonito braço! Vejam a verdade que há nos detalhes
daqueles dedos, daquelas covinhas, a suavidade, a
marquinha vermelha com que a pressão da cabeça
coloriu as pontas dos seus dedos delicados. Que encanto
tem tudo isto! (Diderot, 1996, p. 381).
48
Ao final, volta a comentar o rosto da jovem e, num corte
fotográfico, observa que o mesmo é de uma menina de uma idade e o
braço e a mão de outra de idade diferente, esclarecendo que a cabeça é
de um modelo e a mão de outro, para concluir que o detalhe não
compromete a harmonia do conjunto.
Tal amargura, na idade dela! E por um passarinho?
Então que idade tem ela? Como lhe responderei? E qual é
a sua pergunta? O rosto dela é de uma menina de quinze
anos, o braço e a mão de uma moça de dezoito ou
dezenove. É um defeito desta composição que se torna
mais notável porque a cabeça está apoiada na mão e as
48
“Tableau délicieux, le plus agréable et peut-être le plus intéressant du Salon. Elle est de face, sa tête
est appuyée sur sa main gauche. L’oiseau mort est posé sur le bord supérieur de la cage, la tête
pendante, les ailes traînantes, les pattes en l’air. Comme elle est naturellement placée! Que sa tête est
belle! qu’elle est élégamment coiffée! Que son visage a d’expression! Sa douleur est profonde, elle est
à son malheur, elle y est tout entière. Le joli catafalque que cette cage! Que cette guirlande de verdure
qui serpente autour a de grâce! Ô la belle main! la belle main! le beau bras! Voyez la vérité des détails
de ces doigts, et ces fossettes, et cette mollesse et cette teinte de rougeur dont la pression de la tête a
coloré le bout de ces doigts délicats, et le charme de tout cela”.
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71
duas não combinam. Se a mão estivesse colocada em
alguma outra parte seria menos notável que ela é um
pouco forte demais e bem definida. O fato, meu amigo, é
que a cabeça foi tomada de um modelo e a mão de outro.
No entanto, a mão é muito realista, muito bonita, o
desenho e o colorido são perfeitos. (...) A cabeça é bem
iluminada e a cor é tão congruente quanto é possível dar
a uma loura. Talvez se pudesse desejar um pouco mais
de solidez de formas. O lenço listrado é largo, leve, de
uma bela transparência. O conjunto é vigorosamente
desenhado sem prejudicar a figura do detalhe. O pintor
não teria feito melhor (Diderot, 1996, p. 383).
49
A execução procurou atender a uma função e o detalhe não é
fundamental. Diderot esclarece que “por disforme que seja um ser (...)
ele agradará contanto que seja bem representado. (...) o que me encanta
não supõe nenhuma beleza na coisa: o que admiro é a conformidade do
objeto e da pintura” (Diderot, apud Lima, 1988, p. 148).
50
O que fica claro na formulação da crítica é a preocupação no
primeiro e último momentos em desenvolver a descrição dos aspectos
exteriores/superficiais dos seres e das coisas representadas. Além da
parte da pintura que consta da cabeça e do torso da retratada, há a
49
“Cette douleur! à son âge! et pour un oiseau! – Mais quel âge a-t-elle donc? – Que vous répondrai-je,
et quelle question m’avez-vous faite? Sa tête est de quinze à seize ans, et son bras et sa main de dix-
huit à dix-neuf. C’est un défaut de cette composition qui devient d’autant plus sensible que la tête
étant appuyée contre la main, une des parties donne tout contre la mesure de l’autre. Placez la main
autrement, et l’on ne s’apercevra plus qu’elle est un peu trop forte et trop caractérisée. C’est, mon ami,
que la tête a été prise d’après un modèle et la main d’après un autre. Du reste, elle est très vraie cette
main, très belle, très parfaitement coloriée et dessinée. (...) La tête est bien éclairée, de la couleur la
plus agréable, qu’on puisse donner à une blonde; peut-être demanderait-on qu’elle fît un peu plus le
rond de bosse. Le mouchoir rayé est large, léger, du plus beau transparent, le fortement touché, sans
nuire aux finesses de détail. Ce peintre peut avoir fait aussi bien, mais pas mieux”.
50
Diderot foi tradutor para o francês de Anthony Shaftesbury (1671-1713) e a citação faz parte da nota à
tradução feita em 1745 do Ensaio sobre o mérito e a virtude do empirista inglês.
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enumeração de outros elementos que compõem o quadro: a gaiola –
transformada em andor mortuário do passarinho falecido, ornamentada
– como se última homenagem fosse à pequena criaturinha que ali
fenece – com uma coroa de folhas e o lenço de listras cujas cores não
são reveladas, porém transparente. A obra é descrita de maneira sóbria
característica do Neoclassicismo, sem os excessos superficiais e sem
nenhum valor estético do período que lhe é imediatamente anterior – o
Rococó.
A parte interna da crítica é formada pelas impressões que o
objeto pictural – descrito com riqueza de detalhes –, causou no escritor.
Expressa de forma imanente e imaginativa, a historieta inventada por
Diderot torna-se possível através de um recurso nomeado por Liliane
Louvel de “ekphrasis perambulante ou excursionista (verdadeira
divagação literária), dispositivo pelo qual o observador passeia pelo
quadro à maneira de Diderot descrevendo os quadros dos Salões para
Grimm” (Louvel, 2001, p. 186).
51
Nela estão expressas toda a ternura e
tristeza elegíacas, pois ao se tornar um perambulador da cena descrita
tentando consolar a jovem pela perda do pássaro que, supostamente, foi
agrado de um pretendente, coloca-se ele mesmo – o Filósofo – como o
fictício galanteador.
51
“L’ekphrasis baladeuse ou excursionniste (véritable excursion littéraire), dispositif par lequel le
personnage erre dans le tableau à la manière de Diderot décrivant des Salons à Grimm”.
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A gente com facilidade poderia ser apanhado falando com
a criança, consolando-a. Isto é tão verdadeiro que me
lembro de ter falado com ela da seguinte maneira em
muitas oportunidades. “Mas menininha, sua dor é tão
profunda, tão imensamente profunda. Que significa esse
ar sonhador e melancólico? O quê? Por causa do
passarinho? Você não está chorando. Está angustiada, e
os pensamentos se misturam com a sua angústia. Venha,
menininha, abra para mim seu coração, diga-me a
verdade. É realmente a morte desse passarinho que faz
você se fechar assim em si mesma tão triste?... Você
baixa os olhos, não me responde. Suas lágrimas estão
prontas para cair. Não sou seu pai. Não sou indiscreto
nem severo. Ah! Agora compreendo. Ele amava você, ele
jurou a você durante muito tempo. Ele era tão infeliz.
Como era possível ver tão infeliz uma pessoa que a gente
amava!... Deixa-me continuar. Por que fechar a minha
boca com a sua mão? Naquela manhã infelizmente sua
mãe não estava. Ele veio; você estava sozinha. Ele era tão
bonito, tão amoroso, tão terno, tão encantador! Quanto
amor havia nos olhos dele! Que sinceridade de expressão!
Ele falou as palavras que vão direto à alma, e enquanto
as falava estava naturalmente de joelhos aos seus pés.
(...) Ele é que lhe tinha dado o passarinho. Ora, ele vai
encontrar outro tão lindo como esse... Mas há ainda uma
coisa. Seus olhos se fixam em mim, cheios de tristeza.
Que mais há? Fale, não posso adivinhar o que você está
pensando. Suponhamos que a morte desse passarinho foi
um presságio... que devo fazer? que seria de mim? se ele
fosse ingrato? – Que tolice! Não fique com medo. Isso não
acontecerá, é impossível.” Mas, meu amigo, você não ri ao
ouvir uma pessoa grave e séria consolar uma criança em
um quadro pela perda do seu passarinho, pela perda de
qualquer coisa de que você gosta? Mas veja como ela é
bela! que interessante! Não gosto de causar sofrimento, e,
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
74
no entanto, não me importaria se fosse eu a causa da sua
aflição (Diderot, 1996, p. 381, 382, 383).
52
Na parte interior da crítica, o Filósofo vale-se do diálogo para
tentar desvendar a tristeza da jovem. Daniel Bergez afirma que:
Diderot utiliza plenamente os recursos do gênero
epistolar que lhe oferece a Correspondance littéraire para
qual ele redige os Saes. Ele se envolve diretamente nos
textos, e às vezes, até mesmo para confissões pessoais.
(...) Ele recorre também, freqüentemente, ao artifício do
diálogo para animar a cena crítica. (...) Ele faz, às vezes,
até mesmo falar os personagens e interpela
freqüentemente o leitor (Bergez, 2004, p. 202).
53
É o que se observa no recorte examinado, no qual Diderot
dialoga em dois pequenos trechos com o leitor. No início colocando-o em
52
“Bientôt on se surprend conversant avec cette enfant et la consolant. Cela est si vrai, que voici ce que
je me souviens de lui avoir dit à différentes reprises. “Mais, petite, votre douleur est bien profonde,
bien réfléchie! Que signifie cet air rêveur et mélancolique? Quoi, pour un oiseau! Vous ne pleurez pas,
vous êtes affligée, et la pensée accompagne votre affliction. Çà, petite, ouvrez-moi votre coeur,
parlez-moi vrai, est-ce la mort de cet oiseau qui vous retire si fortement et si tristement en vous-
même?... Vous baissez les yeux, vous ne me répondez pas. Vos pleurs sont prêts à couler. Je ne suis
pas père, je ne suis ni indiscret, ni sévère. Eh bien, je le conçois, il vous aimait, il vous le jurait et le
jurait depuis si longtemps! Il souffrait tant! le moyen de voir souffrir ce qu’on aime!... Et laissez-moi
continuer; pourquoi me fermer la bouche de votre main? Ce matin, là, par malheur votre mère était
absente; il vint, vous étiez seule; il était si beau, si passionné, si tendre, si charmant, il avait tant
d’amour dans les yeux, tant de vérité dans les expressions! il disait de ces mots qui vont si droit à
l’âme! et en les disant il était à vos genoux. (...) c’est lui qui vous l’avait donné. Eh bien! il en
retrouvera un autre aussi beau... Ce n’est pas tout encore; vos yeux se fixent sur moi et s’affligent;
qu’y a-t-il donc encore? Parlez, je ne saurais vous deviner. – Et si la mort de cet oiseau n’était que le
présage... que ferais-je? que deviendrais-je? s’il était ingrat? – Quelle folie! Ne craignez rien, cela ne
sera pas, cela ne se peut”. Mais, mon ami, ne riez-vous pas, vous d’entendre un grave personnage
s’amuser à consoler une enfant en peinture de la perte de son oiseau, de la perte de tout ce qu’il vous
plaira? Mais aussi voyez donc qu’elle est belle! qu’elle est intéressante! Je n’aime point à affliger,
malgré cela, il ne me déplairait pas trop d’être la cause de sa peine”.
53
“Diderot utilise pleinement les ressources du genre épistolaire que lui offre la Correspondance
littéraire pour laquelle il rédige ces Salons. Il s’engage directement dans ces textes, et même parfois
par des confidences personnelles. (...) Il recourt aussi fréquemment à l’artifice du dialogue pour
animer la scène critique. (...) Il fait même parfois parler les personnages et interpelle fréquemment le
lecteur”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
75
situação incomum – co-participação na cena, tornando-o seu cúmplice
e, ao final, em situação constrangedora – a possibilidade do riso ao
presenciar uma pessoa dirigindo-se a um quadro – e, depois
despudorada – declarando que não se incomodaria em ser ele mesmo
[Diderot] a causa do sofrimento da jovem. Com a jovem dialoga, numa
longa fala monologal e íntima pontuada de digressões: é realmente a
morte do passarinho a causa da tristeza dela?; existiria a possibilidade
de que aquela morte não passasse de um acontecimento que não
acontecerá? E, também, de imaginação: toda a dor, a beleza, a ternura,
o encanto, o amor e a sinceridade do jovem ajoelhado aos pés da
amada. Tudo isso para tentar aliviar a verdadeira dor que a jovem
oculta, trazendo-nos, mais uma vez, outro de seus belos paradoxos,
pois, ao mesmo tempo em que se dispõe a tranqüilizá-la, também se
predispõe a ser o seu algoz.
Em livro já mencionado, Luiz Costa Lima observa que a
“reflexão estética de Diderot é contemporânea ao choque entre as
correntes que, respectivamente, prolongam a tradição clássico-
racionalista e inauguram o destaque do sentimental” (Lima, 1988, p.
142). Considerando sobre a natureza do belo proposta por Diderot em
sua Investigações filosóficas sobre a origem e natureza do belo (1752),
Lima chama a atenção para o que o Enciclopedista, em suas
inquirições, trazia à baila, como ficou claro em sua crítica – o tema da
recepção: “utilizando sua própria terminologia, podemos então dizer que
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
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76
o belo real ou essencial é aquele cuja presença, se nos impõe, (...) o belo
percebido é aquele que se motiva dentro de nós para que então se
projete e reconheça no objeto” (Lima, 1988 p. 146).
O belo retrato falado feito por Diderot traz, além da descrição
pictural, um outro Diderot pré-romântico. Para Jean-Luc Chalumeau
Diderot, também:
preconiza nos seus Saes (de 1759 a 1781) e
sobretudo no seu Ensaio sobre a pintura publicado em
apêndice ao Salão de 1765, a liberdade de expressão
do artista, exaltando o valor primeiro dos sentimentos
e das paixões humanas. Se ele não tem mesmo idéias
estéticas originais, ele é um genial descritor das obras,
inventando fórmulas literárias novas para melhor fazer
penetrar seu leitor no mundo da pintura (Chalumeau,
1994, p. 39, 40).
54
54
“il prône dans ses Salons (de 1759 à 1781) et surtout dans son Essai sur la peinture publié em
appendice au Salon de 1765, la liberté d’expression de l’artiste en exaltant la valeur première des
sentiments et des passions humaines. S’il n’a pas vraiment d’idées esthétiques originales, il est un
génial descripteur des oeuvres, inventant des formules littéraires nouvelles pour mieux faire pénétrer
son lecteur dans le monde de la peinture’’.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
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Figura 2: Jean-Baptiste Greuze, Jeune fille qui pleure son oiseau mort,
52 × 45,6, 1765, Édimbourg, National Galleries of Scotland
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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3.4 – Vernet : O encantamento crepuscular
As páginas literárias descritas por Diderot a respeito das telas
de naufrágios e marinas pintadas por Joseph Vernet trazem uma
interrogação: seria necessário, realmente, ver os quadros para admirá-
los? De maneira clara, em sua apresentação às obras de Vernet
expostas no Salão de 1765, Diderot manifesta-se a respeito da
impossibilidade de reproduzi-las, convocando o leitor a vê-las.
As descrições intensamente líricas ou violentas produzem no
leitor um estranho efeito que é o de imaginar a natureza como criação
da arte. Já nos Ensaios sobre a pintura, referindo-se à sublimidade das
telas pintadas por Vernet, Diderot esclarece: “É como se víssemos a
natureza como produto da arte e, reciprocamente, se por acaso o pintor
repete o mesmo encantamento na tela, como se víssemos o efeito da
arte do mesmo modo que o da natureza” (Diderot, 1993, p. 61). A
afirmação encontra-se no capítulo dedicado ao estudo sobre o claro-
escuro e, para confirmá-la, o crítico exalta os tons sombrios, as
atmosferas vaporosas e as cores que compõem as noites, os dias, as
tardes e as águas de Vernet. Sugere, então, ao leitor: “Comparai uma
cena da natureza durante o dia e sob um sol brilhante com a mesma
sob um céu nublado. Lá, as luzes e as sombras serão fortes; aqui tudo
será embaciado e cinzento” (Diderot, 1993, p. 66).
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
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79
Na mesma apresentação às obras de Vernet, Diderot refere-se
a ele como um artista que cria a partir do nada e, por isso, ele não
descreve as cenas pintadas, ele as recria, comparando-o ao Criador e à
instantaneidade de suas criações, à realidade da natureza e aos poetas.
O Filósofo nos coloca dentro dos acontecimentos e os procedimentos
usados por ele para que possamos vivenciá-los são recursos retóricos de
elocução para causar-nos mais vivacidade e vigor, conferindo à frase
mais verdade e beleza.
(...) É como o Criador para a rapidez na execução, é como
a natureza para a verdade. Que efeitos incríveis de luz!
Belos céus! Que águas! Que distribuição ordenada! Que
prodigiosa variedade de cenas! (Diderot, 1996, p. 355).
55
Ao receptor é permitido o agradável alívio de estar acordando
de um pesadelo ou a decepção de ter interrompido um sonho do qual
não queria sair. Neste aspecto, Diderot é mestre e, para comprová-lo, é
fundamental a transcrição de trechos da apresentação das obras de
Vernet, feita de maneira geral, sem mencionar os títulos dos quadros e
que totalizam em si o conjunto das críticas feitas às paisagens expostas
pelo pintor naquele Sao. Tomando o conceito de hipotipose, não
apenas como um efeito ornamental, mas também como parte integrante
da crítica diderotiana, os excertos coletados apontam para um crítico
que se desdobra em personagem e/ou narrador, para junto com ou,
55
“(...) C’est comme le Créateur pour la célérité, c’est comme la nature pour la vérité. Quels effets
incroyables de lumière ! Les beaux ciels! Quelles eaux! Quelle ordonnance! Quelle prodigieuse
variété de scènes!”
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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separadamente, presenciar com os seus leitores o que se lhes
descortina à vista. Num único texto passamos, sem nenhum atropelo e,
bruscamente, de um naufrágio para uma serena marina – pela manhã
ou à noite, desta marina para uma paisagem campestre e desta
paisagem para a constatação de que em Vernet tudo é verdadeiro:
(...) O mar estronda, os ventos assobiam, o trovão ressoa,
o clarão sombrio e pálido dos relâmpagos rasga as
nuvens, mostra e furta a cena. Escutamos o barulho de
um navio cujos lados se fendem, seus mastros estão
inclinados, suas velas rasgadas; alguns sobre a ponte
têm os braços levantados em direção ao céu, outros são
lançados nas águas, eles são levados pelas altas marés
contra os rochedos vizinhos onde o sangue deles mistura-
se à espuma que os clareia; vejo os que flutuam, os que
estão prestes a desaparecer no abismo, os que se
apressam para alcançar a costa contra a qual serão
abatidos. A mesma variedade de sinais, ações e
expressões reina sobre os espectadores: alguns arrepiam-
se e desviam a vista, outros socorrem, outros olham,
imóveis; há os que acenderam o fogo sob uma rocha; eles
se ocupam em reanimar uma mulher moribunda, e
espero que consigam. Virem seus olhos sobre um outro
mar, e verão a calma com todos os seus encantos; as
águas tranqüilas, serenas e agradáveis estendem-se,
perdendo imperceptivelmente sua transparência e se
iluminando imperceptivelmente sua superfície, desde a
costa até onde o horizonte toca o céu; os navios estão
imóveis, os marinheiros, os passageiros estão todos
divertindo o mais que podem para distrair. Se é manhã,
que vapores leves se elevam! como os vapores dispersos
sobre as coisas da natureza os têm refrescado e
vivificado! Se é noite, como o cimo da montanha se
doura! De que nuanças os céus estão coloridos! Como as
nuvens caminham, se movem e vêm pôr nas águas a
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
PARA ALÉM DO ILUMINISMO
Elder João Teixeira Mourão
81
coloração de suas cores! Vão ao campo, voltem seus
olhares para o firmamento dos céus, observem bem os
fenômenos do instante, jurarão que cortamos um pedaço
da grande tela luminosa que o sol clareia, para o
transportar e colocá-lo sobre o cavalete do artista; ou
fechem suas mãos e façam um tubo que só deixe
perceber um espaço limitado da grande tela, e jurarão
que é um quadro de Vernet que pegamos sobre seu
cavalete e o transportamos para o céu. (...) É impossível
reproduzir suas composições, é necessário vê-las. Suas
noites são tão tocantes quanto seus dias são belos; seus
Portos são tão belos quanto esses pedaços de imaginação
são excitantes. Igualmente maravilhoso, seja seu pincel
cativo submetendo-se a uma natureza dada, seja sua
musa desimpedida de entraves seja livre e abandonada a
ela mesma; incompreensível, seja que ele empregue o
astro do dia ou aquele da noite, a luz natural ou as luzes
artificiais para iluminar seus quadros; sempre
harmonioso, vigoroso e sensato, tal qual os grandes
poetas, os homens raros nos quais o julgamento equilibra
tão perfeitamente a verve que eles nunca são nem
exagerados nem indiferentes; seus coretos, edifícios,
vestimentas, ações, homens, animais, tudo é verdadeiro.
(Diderot, 1996, p. 355, 356)
56
56
(...) “La mer mugit, les vents sifflent, le tonnerre gronde, la lueur sombre et pâle des éclairs perce la
nue, montre et dérobe la scène. On entend le bruit des flancs d’un vaisseau qui s’entrouve, ses mâts
sont inclinés, ses voiles déchirées; les uns sur le pont ont les bras levés vers le ciel, d’autres se sont
élancés dans les eaux, ils sont portés par les flots contre des rochers voisins où leur sang se mêle à
l’écume qui les blanchit; j’en vois qui flottent, j’en vois qui sont prêts à disparaître dans le gouffre,
j’en vois qui se hâtent d’atteindre le rivage contre lequel ils seront brisés. La même variété de
caractères, d’actions et d’expressions règne sur les spectateurs: les uns frissonnent et détournent la
vue, d’autres secourent, d’autres immobiles regardent; il y en a qui ont allumé du feu sous une roche;
ils s’occupent à ranimer une femme expirante, et j’espère qu’ils y réussiront. Tournez vos yeux sur
une autre mer, et vous verrez le calme avec tous ses charmes; les eaux tranquilles, aplanies et riantes
s’étendent, en perdant insensiblement de leur transparence et s’éclairant insensiblement à leur surface,
depuis le rivage jusqu’où l’horizon confine avec le ciel; les vaisseaux sont immobiles, les matelots, les
passagers sont à tous les amusements qui peuvent tromper leur impatience. Si c’est le matin, quelles
vapeurs légères s’élèvent! comme ces vapeurs éparses sur les objets de la nature les ont rafraîchis et
vivifiés! Si c’est le soir, comme la cime de ces montagnes se dore! De quelle nuances les cieux sont
colorés! Comme les nuages marchent, se meuvent et viennent déposer dans les eaux la teinte de leurs
couleurs! Allez à la campagne, tournez vos regards vers la voûte des cieux, observez bien les
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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82
É preciso ressaltar que, ao final da citação, comparando
Vernet àqueles poetas onde a harmonia e a verve estão subordinadas à
sensatez e ao equilíbrio, Diderot coloca-o no panteão dos artistas onde a
pintura se faz como poesia e toda a verdade surge transparente sem os
êxtases vaidosos de Greuze ou a fleuma de Chardin. Aqui, pois,
narrativa e enumeração podem caminhar juntas de maneira vigorosa e
a exaltação diderotiana reconhece ao talento de Vernet o que lhe [a ele
Diderot] foi negado pela Revolução e a Academia francesas. Posto isto, o
texto em tela traz inversões tão reais que apresentam à vista o que
querem significar – motivo da hipotipose –, pois narrador e leitores
vivenciam as ações descritas de um modo tão animado que lembra
aquele pertencente à linguagem cinematográfica, onde os instantâneos
operados dentro da narrativa põem em marcha uma sucessão de
acontecimentos contrários à imobilidade pictural. Assim, Diderot
observa que os personagens retratados por Vernet e que acompanham o
naufrágio são tomados pelos mesmos gestos, olhares e sensações dos
náufragos pintados. “A mesma variedade de sinais, ações e expressões
reina sobre os espectadores: alguns arrepiam-se e desviam a vista,
phénomènes de l’instant, et vous jurerez qu’on a coupé un morceau de la grande toile lumineuse que
le soleil éclaire, pour le transporter sur le chevalet de l’artiste; ou fermez votre main, et faites un tube
qui ne vous laisse apercevoir qu’un espace limité de la grande toile, et vous jurerez que c’est un
tableau de Vernet qu’on a pris sur son chevalet et transporté dans le ciel. (...) Il est impossible de
rendre ses compositions, il faut les voir. Ses nuits sont aussi touchantes que ses jours sont beaux; ses
Ports sont aussi beaux que ses morceaux d’imagination sont piquants. Également merveilleux, soit
que son pinceau captif s’assujettisse à une nature donnée, soit que sa muse dégagée d’entraves soit
libre et abandonnée à elle-même; incompréhensible, soit qu’il emploie l’astre du jour ou celui de la
nuit, la lumière naturelle ou les lumières artificielles à éclairer ses tableaux; toujours harmonieux,
vigoureux et sage, tel que ces grands poètes, ces hommes rares en qui le jugement balance si
parfaitement la verve qu’ils ne sont jamais ni exagérés ni froids; ses fabriques, ses édifices, les
vêtements, les actions, les hommes, les animaux, tout est vrai”.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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outros socorrem, outros olham, imóveis; há os que acenderam o fogo
sob uma rocha; eles se ocupam em reanimar uma mulher moribunda, e
espero que consigam”.
Em outro momento sugere aos leitores que voltem-se para
uma paisagem campestre onde poderão “recortar” um pedaço da
natureza e colocá-lo sobre o cavalete do pintor e vice-versa, mirar no
quadro do artista um detalhe e transportá-lo para o céu. Nos dois casos
imagem e movimento sustentam o traço iconológico do texto
diderotiano. No primeiro, aqueles que seguem o soçobro são tomados
pelos dolorosos e altruístas sentimentos daqueles que lutam para
sobreviver à tragédia pintada e, no segundo, os leitores são brindados
com um pedaço do firmamento como se aquele ali visto fosse real.
Além da hipotipose – selo do texto -, Diderot, excelente retor,
emprega outras figuras de retórica. Senão vejamos: Em dois momentos
há uma seqüência de idéias crescentes concatenadas através de termos
que, primeiramente, se encontram nos períodos anteriores àqueles onde
o clímax é atingido, uma na descrição do naufrágio e, posteriormente,
na da marina: “(...) alguns sobre a ponte têm os braços em direção ao
céu, outros são lançados nas águas, eles são levados pelas altas marés
contra os rochedos vizinhos (...)” e, num corte, passando do
tempestuoso à tranqüilidade e serenidade: “(...) as águas tranqüilas,
serenas e agradáveis estendem-se, perdendo imperceptivelmente sua
transparência e se iluminando imperceptivelmente sua superfície, desde
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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a costa até onde o horizonte toca o céu (...)” – o que caracteriza uma
gradação, no primeiro caso ascendente, pois os corpos lançados, são
posteriormente levados e, no segundo caso descendente pois da mesma
maneira que as águas imperceptivelmente vão perdendo sua
transparência, igualmente e, ao longe, sua superfície vai sendo
iluminada até perder-se de vista.
Em outra cena: “(...) onde o sangue deles mistura-se à espuma
que os clareia (...)”, a hipérbole é usada quando o branco da escuma é
chamado para minimizar o vermelho do sangue. Seguida de uma
preterição: “(...) vejo os que flutuam, os que estão prestes a desaparecer
no abismo, os que se apressam para alcançar a costa contra a qual
serão abatidos (...)”, onde o assunto que deverá ser evitado – a morte –,
é substituído por outro – a tentativa de salvação.
A afirmativa de que só vendo as composições de Vernet para
sentir o quanto são tocantes, Diderot enfatiza num belo exercício de
tautocronia quando, na crítica à tela Uma marinha ao adormecer do sol
(1765), convoca o espectador: “Se você viu o mar às cinco horas da
tarde no outono você conhece este quadro”.
57
Aqui pode-se observar
com mais clareza a “compreensão melhor do que ele entende por
verdade, conceito no qual germinam as sementes de uma estética plena
de contradições, como querem alguns, mas sobretudo complexa”
57
Une marine au coucher du soleil: “Si vous avez vu la mer à cinq heures du soir en automne vous
connaissez ce tableau”.
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85
(Dobránszky, 1993, p. 19), pois ao se transportar e os espectadores
para o espaço representado, Diderot está introduzindo o elemento
temporal nas artes plásticas, proporcionando-nos uma leitura da
imagem.
DENIS DIDEROT: A FORMULAÇÃO DE UMA CRÍTICA DE ARTE
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Figura 3: Joseph Vernet: Naufrage,
96 x 134,5 cm, 1759, Musée Groeninge, Bruges
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Figura 4: Joseph Vernet: Première vue du port de Bordeaux: prise du côté des
Salinières, 1,65 x 2,63 m, 1758, Musée National de la Marine,
Dépôt du Musée du Louvre, Paris
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CONCLUSÃO A MODERNIDADE DE DIDEROT
Os ensaios sobre artes plásticas e as críticas de Diderot
fundaram, como já observado, uma nova maneira de criticar e uma
nova categoria inexistente até o momento em que ele lançou-se a
escrevê-los: a dos escritores-críticos de arte. Além de reunir elementos
da criação literária, os textos nunca deixaram de cumprir o seu objetivo
primeiro: a descrição pictural. A fusão dos dois elementos trouxe aos
leitores descrições poéticas de imagens e uma fruição que passa pela
dramatização do espaço pictural, diferente daquela provocada por um
texto ficcional onde o compromisso com o visível não tem razão de ser.
Trata-se, portanto, de uma harmonia entre literatura e pintura, ora com
o privilégio de uma sobre a outra, mas nunca um conflito entre ambas,
o que inviabilizaria sua constituição. Desde o seu aparecimento – o que
posteriormente chamou-se moderna crítica de arte -, disseminou-se,
colocando à prova a força do próprio texto. Cristalizada no fim do século
XIX, esta nova maneira de criticar encontra em Charles Baudelaire
(1821-1867), expoente referencial da Modernidade, o primeiro e
principal discípulo de Diderot. Segundo Bergez,
Baudelaire, naturalmente, leu os Salões de Diderot; é
mesmo de seu exemplo que ele se autoriza, no Sao de
1846, para justificar a dureza de algumas de suas
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críticas: “Eu recomendo àqueles que minhas piedosas
cóleras teriam às vezes escandalizado a leitura dos Saes
de Diderot” (Bergez, 2004, p. 204).
58
Consagrada esta crítica, a despeito de sua complexidade e das
constantes literárias presentes nas obras dos escritores/poetas que a
exercem, nunca deixou de ter em mira a substancialidade dos objetos
examinados.
Baudelaire, herdeiro do romantismo e fiel, como Diderot, à
prosódia tradicional, traz em sua crítica uma visada em torno de tudo
aquilo que lhe é circundante e que viria a ser a fonte da sensibilidade
moderna. Trata-se de uma contextualização do tempo e, de acordo com
Daniel Bergez, se Diderot “teatraliza a obra pela retórica da emoção que
se deseja imediatamente comunicativa, Baudelaire apropria-se dela –
mas é para lhe dar uma ressonância que ele deseja universal” (Bergez,
2004, p. 208).
59
Este desejo de tomar a teatralização da obra pela
retórica da emoção e torná-la universal é, em ambos os autores, a
formulação que corresponde da melhor maneira possível à ordem dos
assuntos abordados, emprestando-lhes os aspectos de que nos fala
Bergez. Dois exemplos vêm de William Shakespeare (1564-1616), um
mencionado na Carta sobre os surdos e mudos, de Diderot, e outro na
58
“Baudelaire a naturellement lu les Salons de Diderot; c’est même de son exemple qu’il s’autorise,
dans le Salon de 1846, pour justifier la dureté de certaines de ses critiques: ‘Je recommande à ceux
que mes pieuses colères ont dû parfois scandaliser la lecture des Salons de Diderot’”.
59
“ (...) théâtralise l’oeuvre par une rhétorique de l’émoi qui se veut immédiatement communicative,
Baudelaire se l’approprie – mais c’est pour lui donner une résonance qu’il veut universelle”.
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90
Exposição universal de 1855, de Baudelaire, ao analisar o quadro
Hamlet (1839) de Eugène Delacroix (1798-1863). Para descrever a cena
do assassinato do rei na peça Macbeth (1605), e tendo confundido o seu
assassino, como observa a tradutora da Carta, que não foi a Lady
Macbeth e sim o seu marido, Diderot ao analisar a cena das mãos sujas
de sangue da Lady destaca: “há gestos sublimes que nem toda a
eloqüência oratória seria capaz de mostrar” (Diderot, 1993, p. 24). No
entanto, é através da retórica que o Filósofo consegue transmitir toda a
dramaticidade trágica da cena, ao narrar a perambulação da
personagem pelo palco:
Assim é o gesto de [Lady] Macbeth na tragédia de
Shakespeare. A sonâmbula Macbeth vaga silenciosa pelo
palco, com os olhos fechados, imitando a ação de uma
pessoa que lava as mãos, como se as suas ainda
estivessem manchadas do sangue do rei que degolara há
mais de vinte anos. Não conheço discurso tão patético
quanto o silêncio e o movimento das mãos dessa mulher.
Que imagem do remorso! (Diderot, 1993, p. 24).
Quanto ao Hamlet, Baudelaire, torna-se quase um co-autor do
quadro:
Este não é o Hamlet (...) amargo, infeliz e violento,
levando a inquietude às raias da turbulência. É
realmente a extravagância romântica do grande trágico;
mas Delacroix, talvez mais fiel, mostrou-nos um Hamlet
bastante delicado e um pouco pálido, de mãos brancas e
femininas, um caráter refinado, mas frágil, levemente
indeciso, com um olhar quase atônito (Baudelaire, 1998,
p. 53).
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Destacando-lhe sentimentos universais, revela um texto
preocupado com questões estéticas, que visa a sensibilização, tal qual
em Diderot.
Ao fazer uma defesa apaixonada do desenho de Delacroix no
mesmo texto de 1855, Baudelaire faz também uma defesa não menos
apaixonada do que na história da pintura francesa foi o Romantismo
iniciado nos anos 1820, época de grande agitação, em que uma nova
classe, a burguesia, conseguiu conquistar o poder. Os sentimentos
românticos são os de um tempo revolucionário e os mesmos que
perseguiram e conduziram Baudelaire e os seus escritos tanto poéticos
quanto críticos: descontentamento com o presente, apaixonada busca
do inatingível, intensidade de sentimentos, fatalismo inconformado,
imagens tristes, melancólicas, carregadas de expressão, desejo de
transmitir o inexprimível – o sobrenaturalismo baudelairiano. A beleza
para os românticos residia na natureza emocional do artista e na sua
capacidade de expressá-la com todas as suas vibrações mais íntimas.
Aos muitos detratores das representações de Delacroix esclarece de
forma enérgica:
Do desenho de Delacroix, criticado de forma tão absurda
e inepta, o que se deve dizer, senão que existem verdades
elementares completamente desconhecidas; que um bom
desenho não é uma linha dura, cruel, despótica, imóvel,
comprimindo uma figura como uma camisa-de-força; que
o desenho deve ser como a natureza, expressivo e
agitado; que a simplificação no desenho é uma
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monstruosidade, como a tragédia no mundo dramático;
que a natureza nos apresenta uma série de linhas
curvas, fugidias, quebradas, de acordo com uma lei
geradora impecável, onde o paralelismo é sempre indeciso
e sinuoso, onde as concavidades e convexidades se
correspondem e se procuram; que Delacroix satisfaz
admiravelmente todas essas condições e que, mesmo que
algumas vezes seu desenho deixe transparecer falhas ou
exageros, pelo menos tem o imenso mérito de ser um
protesto perpétuo e eficaz contra a bárbara invasão da
linha reta, linha trágica e sistemática, cujos estragos –
atualmente – já são imensos na pintura e na escultura?
(Baudelaire, 1998, p. 56, 57).
Em 1766, tempo em que o Classicismo acadêmico era
revalorizado segundo sua forma impessoal, descolorida, cuidadosa,
detalhada e de origem helênica, Diderot, em direção oposta, afirmava
nos Ensaios sobre a pintura:
Se é tão raro ver-se hoje um quadro composto de um
certo número de figuras sem encontrar aqui e ali algumas
dessas figuras, posições, ações, atitudes acadêmicas que
desagradam sumamente um homem de bom gosto e que
somente podem causar admiração àqueles que
desconhecem a verdade, acusai o eterno estudo do
modelo na escola (Diderot, 1993, p. 36).
Observa-se, em Baudelaire, que a natureza serve de modelo à
arte, ao contrário de Diderot, que tende a interpô-las, porém, são
muitos os aspectos que unem os textos estéticos diderotianos aos
escritos baudelairianos, embriões da recém-chegada Modernidade. O
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diálogo é constante e interminável. Sobre a cor e a harmonia, por
exemplo, ainda em Delacroix, Baudelaire afirma que a
pintura – como os feiticeiros e magnetizadores – projeta
seu pensamento à distância. Esse singular fenômeno se
deve à força do colorista, à combinação perfeita dos tons
e à harmonia (preestabelecida no cérebro do pintor) entre
a cor e o tema (Baudelaire, 1998, p. 55, 56).
Diderot, nos Ensaios sobre a pintura, já antecipava:
Não foi pequena a contribuição que fez a diversidade de
nossos tecidos e de nossas roupagens para o
aperfeiçoamento da arte de colorir. Há um encanto ao
qual dificilmente se resiste: é o de um grande
harmonista. (...) O tom geral da cor pode ser fraco sem
ser falso. O tom geral pode ser fraco sem que a harmonia
seja destruída; ao contrário, é o vigor do colorido que é
difícil casar com a harmonia (Diderot, 1993, p. 49, 50).
Sobre a imaginação, a quem Baudelaire nomeia A rainha das
faculdades no Salão de 1859, e que Diderot, comenta no capítulo
dedicado à composição nos Ensaios sobre a pintura, mostra que ambos
têm as mesmas idéias acerca dessa faculdade. Em Baudelaire, ela é
“análise e síntese. (...) Ela criou, no começo do mundo a analogia e a
metáfora. (...) ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo.
Como criou o mundo (...), é justo que o governe”. (Baudelaire, 1998, p.
76). Em Diderot, ela é uma exigência da expressão, portanto reveladora
e ligada à inspiração, pois sem ela os homens “não podem alçar-se a
nenhuma idéia extraordinária e grandiosa” (Diderot, 1993, p.116).
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Sobre as belezas comuns e os emblemas fugazes da poesia, da
pintura e da música, mencionados na apresentação da Carta sobre os
surdos e mudos, no segundo capítulo desta dissertação, o eco irá
prolongar-se até Charles Baudelaire cuja obra crítica (l’Art romantique,
1868) é a Modernidade. Segundo o crítico/poeta:
Embora o princípio universal seja uno, a natureza nada
oferece de absoluto, nem mesmo de completo; vejo
apenas indivíduos. Qualquer animal, em uma mesma
espécie, tem algo de diferente de seu próximo, e, entre
os milhares de frutos que uma árvore pode dar, é
impossível encontrar dois idênticos, pois eles seriam o
mesmo, e a dualidade, que é o contrário da unidade, é
também sua conseqüência (Baudelaire, apud
Dobránszky, 1993, p. 41).
60
Quanto aos elementos constitutivos da crítica de arte
diderotiana abordados neste estudo: o sensualismo, que permite o
estabelecimento de relações; o hieróglifo – emblema que condensa os
signos poéticos e visuais –; a imaginação, a digressão, a simultaneidade
e o uso constante de recursos retóricos, que trouxeram para ela a
temporalidade e uma nova forma de apreciação – informar, classificar,
analisar e avaliar –, observa-se que:
Ela trata diretamente da poesia, da tradução de uma
arte em outra, e mesmo de uma língua em outra. Obra
fundamental e moderna, porque considera a questão
atual de uma correspondência entre as diversas
60
Baudelaire, no texto original cita la contradiction e observa que a contradição e não o contrário é uma
invenção humana. Cf. BAUDELAIRE, Charles. Ecrits esthétiques. Paris: Unions Générale d’Èditions,
1986. p. 143-144; tradução Enid Abreu Dobránszky.
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formas de expressão e procura aliás, entre elas, a
mais impressionante, a mais incisiva (Dagognet, 1973,
p. 155).
61
Para Bergez, a lista de seguidores “na trilha de Diderot é
particularmente densa: Stendhal, Musset, Gautier, Zola, Laforgue,
Suarès, Proust, Valéry, Apollinaire, Artaud, Breton, Malraux, Genet,
Beckett e Ponge” (Bergez, 2004, p. 196).
62
Ao oferecer para exame a continuidade do instante fixado pelo
pintor, acrescentando-lhe outras leituras percebidas a partir do quadro
não como um todo, mas daqueles aspectos que proporcionam a
sucessividade literária, isto é, a criação de páginas próprias da
narrativa temporal: idas, vindas, diálogos, dramatizações, Diderot
apresenta à vista e ao espírito perspectivas que permitem ao leitor
concatenações nas quais ele se torna intérprete daquilo que examina.
61
“Elle traite directement de la poésie, de la traduction d’un art dans l’autre, voire d’une langue dans
une autre. Ouvrage fondamental et moderne, parce qu’il envisage la question actuelle d’une
correspondance entre les diverses formes d’expression er cherche d’ailleurs, parmi elles, la plus
frappante, la plus incisive”.
62
“dans le sillage de Diderot, est particulièrement fournie: Stendhal, Musset, Gautier, Zola, Laforgue,
Suarès, Proust, Valéry, Apollinaire, Artaud, Breton, Malraux, Genet, Beckett et Ponge”.
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