Download PDF
ads:
FERNANDO MATTIOLLI VIEIRA
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO E
A GÊNESE DO CRISTIANISMO
Assis
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
FERNANDO MATTIOLLI VIEIRA
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO E
A GÊNESE DO CRISTIANISMO
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – UNESP
Universidade Estadual Paulista para a
obtenção do título de Mestre em História
(área: História e Sociedade).
Orientador: Prof. Dr. Ivan Esperança
Rocha
Assis
2008
ads:
3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Vieira, Fernando Mattiolli
V658m Os manuscritos do Mar Morto e a gênese do cristianismo /
Fernando Mattiolli Vieira. Assis, 2008
122 f. il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Manuscritos do Mar Morto. 2. Qumran, Comunidade
de. 3. Bíblia. 4. Cristianismo. I. Título.
CDD 296.155
220
4
A meus queridos pais
Isaias Vieira Sobrinho e Nair Mattiolli Vieira
5
AGRADECIMENTOS
Sinto-me compelido em agradecer pessoas que direta ou indiretamente estiveram
ligadas a meu trabalho. Primeiramente, falo sobre aqueles que me ajudaram enquanto
meu trabalho se encontrava em estado germinal, da qual destaco a Profª. Drª. Andréa
Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP/Assis). Seus apontamentos a meu
Projeto pareciam sempre “duros” e “desanimadores” em um primeiro momento, mas
logo após vinham as correções, adequações necessárias e incentivos para que eu não
desistisse. Foram suas palavras que me deram coragem para levar em frente uma
pesquisa difícil, e graças a estas meu Projeto inicial teve o arremate necessário para que
eu pudesse ingressar no Programa de Pós-Graduação de História da Unesp de Assis.
Logo após esse complicado período, dentro do Programa, os conselhos do
Prof. Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero (EST, São Leopoldo-RS) foram extremamente
importantes para que houvesse o desenvolvimento de minha pesquisa de forma melhor
focalizada, definindo de modo cada vez mais claro o objeto de trabalho e as
delimitações da fonte.
andando pelo caminho certo, em uma segunda etapa do trabalho, recebi a
ajuda do Prof. Dr. Márcio Loureiro Redondo (editor e tradutor pela Edições Vida Nova
e coordenador do GT de História Antiga da ANPUH do Paraná) em meu Exame Geral
de Qualificação. Seus conselhos foram indispensáveis para que o trabalho tivesse
melhor acabamento a partir de então. Posteriormente a isso, mesmo estando distante,
ajudou-me em outras ocasiões até o presente.
No entanto, a pessoa que se fez presente e não me desamparou por algum
momento nesse duro trajeto foi meu orientador Ivan Esperança Rocha (UNESP/Assis).
Seus conselhos práticos, suas correções e incentivos fizeram-se presentes por todo o
tempo; e se não mais, o motivo foi puramente por minha ausência, esgotado por uma
temática tão encantadora quanto fatigante. Tivemos encontros de orientação em horas
que podiam ser consideradas um tanto impróprias. Por vezes fiz ligações em horários
considerados inoportunos; mas mesmo assim, sempre dedicou o possível a mim e
compreendeu a necessidade de situações como essas. Agradeço seus estímulos a
participar de congressos (muitos por sinal), fazer comunicações, a participar do NEAM
(Núcleo de Estudos Antigos e Medievais – UNESP/Assis); todos estes momentos foram
6
plenamente aproveitados em favor de meu trabalho. Os erros que se seguem aqui,
portanto, são de plena responsabilidade minha.
Não posso deixar de levar em consideração a ajuda financeira que propiciou que
este trabalho tivesse uma riqueza maior em seu conteúdo. O fomento cedido pelo CNPq
(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) foi fundamental
para que pudesse ter aparato em todos os itens citados aqui. Todas as viagens que tive
de fazer para congressos nacionais e internacionais, livros de conteúdo altamente
específicos (alguns importados), textos e Bíblias; puderam ser adquiridos graças à
ajuda financeira que recebi. Tento às vezes imaginar se conseguiria ter chegado a esse
patamar sem essa ajuda, uma vez que todo esse material não é encontrado facilmente
como ocorre em outras áreas científicas. Com certeza, não alcançaria o mesmo
resultado.
Sobre as pessoas que estiveram relacionadas indiretamente com meu trabalho,
devo citar uma em especial, meu grande amigo Heber Ricardo da Silva. O momento
mais complicado relacionado à minha pesquisa foi o período inicial, quando estava
ainda prestes a ingressar no Programa. Depois de tudo pronto, eu havia desistido. Se não
fossem suas admoestações tão incisivas, até certo ponto coercitivas, eu teria
insensatamente aberto mão de tudo o que mais amo – Clio.
Finalmente, as pessoas que se fizeram mais presentes durante todo esse tempo
foram meus queridos pais. Durante meus dias de chateação, indisposição, de humor
inconstante; às vezes ao lado, mas ao mesmo tempo tão distante; eles desconsideraram
todos esses infortúnios e propiciaram a base para que eu conseguisse desenvolver minha
pesquisa. Mesmo não tendo conhecimento das coisas com que trabalho, sempre me
perguntavam sobre elas para que eu me manifestasse – o que me deixava feliz por poder
falar a alguém sobre o que faço. Por atitudes simples, mas importantes como estas,
dedico agradecimentos especiais a meus queridos pais.
7
RESUMO
Um jovem pastor beduíno sai à procura por um de seus animais perdido na
região do deserto da Judéia, próximo às bordas do mar Morto, no ano de 1947. Quando
ingenuamente joga uma pedra em uma fenda de um penhasco, ouve um barulho de jarro
quebrando. Assim ocorreu a maior descoberta de textos antigos jamais feita até então
os Manuscritos do Mar Morto. Uma série de cavernas foi encontrada em seguida, das
quais algumas também possuíam material manuscrito. Após isso, percebeu-se que estes
manuscritos eram oriundos de um sítio arqueológico próximo, conhecido atualmente
como Khirbet Qumran. O material literário que foi descoberto nestas cavernas passou
desde então a ser estudado por eruditos do mundo inteiro. Entre estes manuscritos, uma
parcela importante é de textos hinários que eram utilizados pela comunidade que residiu
neste assentamento até pouco tempo antes da destruição de Jerusalém, em 70 d.C. Os
textos hinários eram largamente utilizados pela comunidade de Qumran, com uma
função importante dentro dos rituais comunitários e em manifestações pessoais de
louvor a Deus. Da mesma maneira, percebemos através dos livros do Novo Testamento
que nas comunidades cristãs do primeiro século, a prática do canto hinário foi uma
constante. Não suas composições hinárias, mas aspectos doutrinais destas
comunidades apresentam influências consideráveis de materiais anteriores e de outras
fontes contemporâneas. Antes da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, acreditava-
se que as maiores influências à literatura do Novo Testamento provinham somente da
Bíblia Hebraica. Atualmente, percebemos mais do que isso. Alguns hinos e passagens
do Novo Testamento possuem analogias ainda mais aparentes e singulares se
comparados com os textos encontrados em Qumran. Esta Dissertação procura elucidar
como se deram os possíveis contatos entre tradições diferentes, ocasionando em
adaptações ou empréstimos. Procura provar que o diálogo entre comunidades religiosas
do primeiro século era muito maior do que se pensava. Para tanto, são utilizados
principalmente o material hinário de Qumran e os documentos mais antigos do Novo
Testamento - as epístolas paulinas. Estas servem como uma fonte precisa e mais
próxima cronologicamente dos manuscritos de Qumran para se descobrir o quanto pôde
ter havido de contribuição e quais os limites destas.
Palavras-chave: Manuscritos do Mar Morto, comunidade de Qumran, hinos, Novo
Testamento, cristianismo.
8
ABSTRACT
A youth bedouin shepherd was searching for one of his lost animals in the area
of the Judean desert, near the border of the Dead Sea, in the year of 1947. When he
ingenuously threw a stone in a rift of a cliff, he heard a vessel noise breaking. Thus
happened like this the largest discovery of old texts ever done until then – the Dead Sea
Scrolls. A series of caves was found soon after, several of which contained hand written
material. Archaeologists soon realized that these manuscripts were originating from a
nearby archaeological site, known now as Khirbet Qumran. Scholars worldwide have
studied the literary material that was discovered in these caves. The hymnary texts that
were used by the community that resided in this settlement from before the destruction
of Jerusalem in 70 A.D. are among the most priceless documents discovered. The
broadly used hymnary texts of the Qumran community had a significant function in the
religious and ritualistic life of the community as evidenced by the personal
manifestations of praise to God in the texts. This is analogous to the practices of the
early Christian communities of the first century, as described in the New Testament, in
which the practice of singing hymns was a daily occurrence. In addition to containing
hymnal compositions, the texts also present the doctrinal aspects of the Qumran
community. The doctrine presented in the texts shows a considerable influence from
older sources and contemporary sources of the Qumran community. Before the
discovery of the Dead Sea Scrolls, it was believed that the largest influence to the
literature of the New Testament was solely derived from the Hebraic Bible. Thanks to
the Dead Sea Scrolls we now know otherwise. Some hymns and passages of the New
Testament are clearly analogous to the texts found in Qumran. This Dissertation intends
to elucidate the possible contacts that occurred among different traditions, causing
adaptations or borrowings between those traditions. Additionally, it will attempt to
prove that the dialogue among religious communities of the first century was much
more significant than previously thought. The primary sources used are the hymnary
material of Qumran and the oldest documents of the New Testament the Pauline
epistles. These documents are closely related chronologically and it stands to reason that
they share common roots.
Keywords: Dead Sea Scrolls, community of Qumran, hymns, New Testament,
Christianity.
9
ABREVIATURAS E SIGLAS
1QH Hodayot (hinos de ação de graças)
1QpHab Pesher (comentário) de Habacuc
1QS Regra da Comunidade
1QSa, 1Q28a Regra da Congregação
a.C. antes de Cristo
Apud junto de
AT Antigo Testamento
BAR revista Biblical Archaeological Review
c. circa, aproximadamente
cap. capítulo
caps. capítulos
CD Documento de Damasco
cf.
confers, conforme, confira, confronte com
d.C. depois de Cristo
DJD Discoveries in the Judaean Desert
e.g. exempli gratia, por exemplo
ex. exemplo
i.e. isto é, ou seja
MMM Manuscritos do Mar Morto
MMT (4QMMT) Micsat Ma’aseh há-Torá, “Algumas Regras
Relativas à Tora”, ou “Carta Haláquica”
MQ Manuscritos de Qumran
NT Novo Testamento
org. organização
p. página
passim aqui e ali, e em outras passagens
pp. páginas
séc. século
trad. tradução
v. versículo
vv. versículos
10
TEXTOS BIBLICOS USADOS (POR ORDEM ALFABÉTICA) SEGUINDO O
SISTEMA DE ABREVIAÇÃO DA BÍBLIA DE JERUSALÉM
1Cor 1 Coríntios
1Cr 1 Crônicas
1Jo 1 João
1Mc 1 Macabeus
1Pd 1 Pedro
1Rs 1 Reis
1Sm 1 Samuel
1Tm 1 Timóteo
1Ts 1 Tessalonicenses
2Cor 2 Coríntios
2Cr 2 Crônicas
2Pd 2 Pedro
2Sm 2 Samuel
2Tm 2 Timóteo
Am Amós
Ap Apocalipse
At Atos
Cl Colossenses
Dn Daniel
Dt Deuteronômio
Ef Efésios
Ex Êxodo
Fl Filipenses
Gl Gálatas
Gn Gênesis
Hb Hebreus
Is Isaías
Jd Judas
Jl Joel
Jo Evangelho segundo João
Jr Jeremias
11
Jz Juízes
Lc Evangelho segundo Lucas
Lv Levítico
Mc Evangelho segundo Marcos
Mt Evangelho segundo Mateus
Nm Números
Os Oséias
Rm Romanos
Sf Sofonias
Tg Tiago
Zc Zacarias
12
SUMÁRIO
Abreviaturas e siglas 7
Introdução 11
1 A literatura de Qumran e o Novo Testamento 15
1.1 A caracterização dos redatores de Qumran segundo as fontes clássicas 15
1.2 As interpretações contemporâneas acerca da literatura de Qumran e os
escritos cristãos
24
1.3 Análises críticas sobre as relações entre os manuscritos e o Novo
Testamento
31
2 Os hinos de Qumran e as epístolas paulinas 42
2.1 A música no Velho e no Novo Testamento 42
2.2 Qumran e a música: herança e criação 47
2.3 Paulo e a influência qumrânica 54
3 As relações entre os hinos de Qumran e os hinos do Novo Testamento
72
3.1 Hinos do mar Morto e Hinos cristãos: continuidade ou nova tradição? 77
3.2 Outros hinos do Novo Testamento 85
3.3 Algumas considerações sobre analogias 90
Considerações finais 99
Referências bibliográficas: 101
Fontes 101
Obras de referência 101
Bibliografia 102
Glossário 110
Apêndice 118
Cronologia 121
13
INTRODUÇÃO
Desde a descoberta dos comumente chamados Manuscritos do Mar Morto,
1
no
deserto da Judéia, muito se tem cogitado acerca das possíveis influências literárias e
estruturais legadas aos primeiros escritos cristãos, passivos de uma literatura e práticas
anteriores às descritas nos livros do NT. Por muito tempo, pesquisadores bíblicos
acreditaram que muitos aspectos da teologia e eclesiologia encontrados nos livros
canônicos do NT eram “puramente” e/ou “originalmente” cristãos. No entanto, se
considerarmos os MQ com o devido cuidado, compreenderemos os motivos dessa
preposição não mais ser aceita em sua plenitude atualmente.
Examinando as interpretações consideradas ao longo dos 60 anos da
descoberta destes manuscritos, percebemos que muitas propostas para explicar a origem
do cristianismo com base nos MQ são falhas. Com a liberação dos manuscritos à
comunidade acadêmica internacional e o término da publicação dos manuscritos pouco
tempo atrás,
2
o ritmo das publicações se acelerou perceptivelmente e várias pesquisas
inovadoras estão agora vindo à tona.
3
Uma ampla revisão bibliográfica vem sendo
feita acerca das primeiras interpretações dos manuscritos, já que muito do que foi
escrito sobre Qumran está totalmente ultrapassado. Conceitos outrora tidos como certos,
principalmente sobre o nascimento do cristianismo, são atualmente obsoletos frente às
novas interpretações. Outro sério problema é que muito do que foi (ou é) trazido à tona
entre as possíveis relações entre a comunidade de Qumran e o cristianismo nascente é
comprometido por uma visão tendenciosa por parte de alguns escritores, ora negando
qualquer influência, ora atribuindo todas as bases da nascente da religião cristã como
fruto de empréstimos, como se o cristianismo nascente não tivesse nada de peculiar.
Com certeza, uma análise mais acurada desse material pode favorecer uma melhor
compreensão do ambiente palestino dos séculos II a.C. até meados do I d.C. e do
alcance e limites de sua interação com o cristianismo.
1
Manuscritos do Mar Morto ou Manuscritos do Deserto da Judéia (ou Judá) é o nome genérico atribuído
a uma ampla gama de textos descobertos na região do mar Morto. São oriundos de sítios diferentes e de
períodos diferentes. Doravante, utilizarei a expressão
Manuscritos de Qumran (MQ) para designar os
descobertos em Qumran e para dar maior particularização aos textos, uma vez que são apenas estes os
usados neste trabalho. Dentre todas as coleções de textos encontradas na região do mar Morto, a mais
abundante e significativa provêm de Qumran.
2
Sobre o término das traduções e liberação a acadêmicos do mundo todo, cf. p. 27.
3
O Brasil também começa a dar suas contribuições. existem dissertações e teses concluídas e em
andamento, artigos acadêmicos publicados e grupos de pesquisa. No ano de 2004, o Brasil chegou
inclusive a hospedar uma exposição de manuscritos do mar Morto, fato que mobilizou acadêmicos da
área e despertou maior interesse no público leigo.
14
A literatura qumrânica supriu em partes o vazio documental existente no período
intertestamentário. Por estar escrita em sua maioria na língua hebraica, podemos
visualizar com maior precisão certos conceitos teológicos e literários próprios do
ambiente palestino dos dias de Jesus e da formação das primeiras comunidades cristãs.
Percebemos atualmente e os MQ vieram a dar mais certeza a essa afirmação que
muitos conceitos anteriores e contemporâneos a esse período eram exclusivos ao grupo
criador apenas em seu nascimento. Posteriormente, eles acabavam sendo
compartilhados com outras comunidades religiosas.
Essa proposta de que nem tudo era peculiar a determinada comunidade religiosa
durante muito tempo é amplamente aceita pelos pesquisadores de hoje. No entanto, o
maior problema tem sido definir quais os “caminhos” percorridos entre o nascimento de
determinado conceito criado por certo grupo até o seu uso por uma outra comunidade
religiosa.
O primeiro estágio quando se trabalha na busca de paralelos é o da
“identificação”. O segundo é o que visa estabelecer como estes conceitos chegaram e
eram usados por outro grupo religioso, ou seja, procura preencher o espaço vago entre
um ponto e outro.
Nessa etapa vemos as maiores complicações. Muitos equívocos são cometidos e
vários questionamentos importantes são deixados de lado. O fato de se encontrar dois
pontos semelhantes entre os livros de Qumran e o NT não prova que tenha existido um
empréstimo direto, muito menos que tal ponto era restrito a qumranitas e cristãos. Pelo
contrário, tais pontos poderiam pertencer a um ambiente maior, mas acabamos por
entender o contrário devido à escassez de material documentário. Graças a problemas
como esse, muitas das conclusões atuais têm de ser revistas.
No decorrer deste trabalho, poderemos ver alguns exemplos convincentes que
mostram os caminhos pelos quais algumas comunidades cristãs foram influenciadas.
Outros, por sua vez, não levam em consideração os métodos investigativos necessários.
Assim, mesmo parecendo que haja algo compartilhado por Qumran e comunidades
cristãs em um pequeno aspecto, se este for analisado a luz de outros métodos ou se levar
em consideração outros fatores, percebe-se que não analogia, podendo o ponto em
questão ser algo corrente ao ambiente palestino.
Um dos caminhos propostos à frente envolve a literatura hinária. Ela pode ser
encarada como veículo condutor de aspectos teológicos e literários, explicando como
muitos conceitos qumrânicos foram encontrados entre comunidades cristãs.
15
Os hinos eram utilizados como uma das formas mais importantes de manifestar
louvor a Deus. Segundo os registros bíblicos, mesmo em períodos remotos da história
israelita a música se mostrava como parte essencial do culto. Outros registros de
tempos posteriores podem ser usados para compreender como ela era utilizada no
Templo. Com a reconstrução desse ambiente anterior ao nascimento do cristianismo
podemos entender com maior clareza o porquê de as primeiras comunidades cristãs
também valorizarem a literatura hinária.
No mesmo período de tempo em que cristãos começavam a organizar seu tipo de
culto em que a música recebia grande importância, a comunidade de Qumran
muito a tinha como um dos pontos centrais em seus rituais. A proposta aqui é a de que
essa literatura hinária qumrânica tenha transpassado seus limites comunais e abrangido
um espaço geográfico maior onde tenha alcançado outras comunidades religiosas,
basicamente cristãs. Por muitas analogias encontrarem-se nos escritos paulinos e por
esse apóstolo manter um contato estreito com comunidades cristãs, podemos presumir
que estas comunidades receberam influências do material qumrânico e posteriormente
elas foram trocadas com o apóstolo e com os grupos próximos a ele. Esse caminho
proposto explicaria não expressões compartilhadas entre Paulo e Qumran, mas até
aspectos teológicos e organizacionais, servindo como uma forma confiável de análise.
16
Bendito aquele que diz a verdade com um coração puro,
e não calunia com sua língua.
Benditos os que se apegam às suas leis,
e não se apegam a caminhos perversos.
Benditos os que se regozijam nela,
e não investigam em caminhos loucos.
Benditos os que a buscam com mãos puras.
e não solicitam com coração traidor.
Bendito o homem que alcança a Sabedoria,
e caminha na lei do Altíssimo,
e aplica seu coração a seus caminhos,
e se obriga à sua disciplina,
e em suas correções se compraz sempre;
e não a abandona na aflição de seus males,
e no tempo da angústia não a despreza,
e não a esquece nos dias de espanto,
e na aflição de sua alma não a aborrece.
Pois sempre pensa nela,
e em seu mal ele medita a lei,
e durante toda a sua existência pensa nela,
e a põe ante seus olhos
para não caminhar por caminhos de maldade.
4QBem-aventuranças (4Q525 [4QBéat]) Frag. 2. 2:1-7
17
1. A LITERATURA DE QUMRAN E O NOVO TESTAMENTO
1.1 A CARACTERIZAÇÃO DOS HABITANTES DE QUMRAN SEGUNDO AS
FONTES CLÁSSICAS
Um dos grandes problemas despontados com a descoberta dos manuscritos foi
quanto à identidade daqueles que habitaram o
Khirbet Qumran, nome árabe que
significa ruínas de cinzas, dado atualmente ao complexo existente próximo ao mar
Morto. Através dos registros bíblicos, sabemos que existiam duas correntes judaicas no
século I d.C., conhecidas como
fariseus (At 15:5; Lc 15;17) e saduceus (At 4:1; Mc
12:18; Mt 3:7). Flávio Josefo (37-95 d.C.), historiador judeu que legou dados
importantes sobre a sociedade judaica de seu período, coloca ao lado dos fariseus e dos
saduceus uma terceira corrente judaica, conhecida como essênios (Guerra dos Judeus
II: 119-61; Antiguidades Judaicas XVIII: 18-22). Este ramo judaico muito
provavelmente possui sua origem com o movimento dos
assideus (do hebraico
hassidim, que significa “os piedosos”), grupo religioso que se engajou na luta ao lado
dos macabeus (168-142 a.C.) contra Antíoco Epifânio, rei dos selêucidas da Síria (1Mc
2: 42-43). O motivo desse conflito se deve ao amplo programa de helenização da Judéia
proposto pelos selêucidas após a tomada da região aos ptolomeus do Egito.
Com a vitória da violenta resistência macabéia, o regime sacerdotal deveria ter
sido restabelecido às mãos dos zadoqueus, pois séculos a gerência sacerdotal era
efetuada por esta linhagem.
4
No entanto, Jônatas Macabeu que era de linhagem
asmoneana usurpou o sacerdócio indevidamente entre os anos 152-142 a.C.
(
Antiguidades Judaicas XIII: 5, 9, 171-172). O resultado desta atitude fez com que
houvesse uma cisão entre os apoiadores da resistência, originando um problema de
natureza interna desta vez.
Este é o pano de fundo histórico utilizado pela maioria dos eruditos para situar
tanto a origem dos essênios quanto o posterior nascimento da comunidade de Qumran.
5
4
O principal sacerdote do rei Davi, Zadoque, foi também o fundador da linhagem que durou até o século
II a.C. Josefo afirma que Zadoque foi o primeiro sumo sacerdote no Templo de Salomão (
Antiguidades
Judaicas
, X: 152).
5
É certo que, o grupo sacerdotal que dirigia a comunidade de Qumran era pertencente à classe zadoquita.
Eles seriam os descendentes de Zadoque, que segundo a tradição deveriam exercer o sacerdócio em
Israel. Porém, após o rompimento, sob orientação sacerdotal, parte do grupo seguiu rumo ao deserto para
lá restaurarem o sacerdócio “válido” segundo o ponto de vista zadoqueu.
18
Esses fatos são indissociáveis se atribuído a origem do grupo formador de Qumran
como pertencente a parte do movimento essênio.
Embora essa tese sobre o nascimento da comunidade de Qumran seja a mais
aceita, ainda assim possui objeções. Uma outra proposição, a da “origem babilônica”,
remonta a um período anterior ao acima citado. Jerome Murphy O’Connor, o maior
defensor dessa tese, acredita que um grupo de judeus fervorosos que ainda residia em
Babilônia na época da retomada da adoração judaica pelos macabeus, resolveu voltar a
sua pátria com esse momento propício. Porém, após se fixarem de volta na Judéia, não
se contentaram com a situação da região e seguiram rumo ao deserto sob a tutela do
Mestre da Justiça.
6
Para sustentar essa tese, O’Connor se utiliza em grande parte do
Documento de Damasco (CD), onde ele apresenta a simbólica Damasco como sendo
Babilônia. Esse livro, para O’Connor, seria um texto normativo que visava auxiliar os
judeus residentes neste ambiente pagão (O’CONNOR: 1990).
7
No tocante à identidade dos habitantes de Qumran, Lawrence Schiffman,
professor de Estudos Judaicos da Universidade de Nova Iorque, acredita que estes ao
invés de essênios, pertenciam na verdade à corrente saducéia. Schiffman acredita que
algumas leis descritas em documentos encontrados em Qumran – principalmente em um
conhecido como MMT (Micsat Ma’aseh há-Torá, “Algumas Regras Relativas à Torá”)
tenham mais relação com o que se sabe sobre os saduceus do que com alguma outra
corrente religiosa da época. Apoiando-se em pontos um tanto indefinidos, utilizando-se
de poucas referências e de literatura posterior ao movimento qumrânico como a Mishná,
insta “que ou a seita não era de essênios, mas de saduceus, ou então que o movimento
essênio deve ser totalmente redefinido como tendo emergido de fontes saducéias”
(1993:44). Que de fato o movimento teve uma abrangência maior é algo certamente
concreto. O estudo das fontes clássicas pode nos mostrar o quanto o movimento essênio
foi múltiplo, podendo ter abarcado com vários grupos com crenças em comum. Essa
maneira pluralizada de enxergar os movimentos sectários do período certamente induz o
pesquisador a estabelecer uma relação mais intrínseca entre estes dois grupos,
provavelmente por isso dá-se a desconfiança de Schiffman em atribuir à origem dos de
Qumran como estritamente essênia. Esse ponto é passivo de discussão, afinal, não se
pode ter a certeza da concretude do movimento essênio ainda em meados do século II
a.C., sendo que a identidade do movimento como um todo provavelmente ainda estava
6
Informações mais precisas sobre o Mestre da Justiça serão dadas adiante.
7
Tese bastante criticada por possuir muitas lacunas.
19
em construção. Porém, a afirmação categórica de que a seita não era de essênios, mas
de saduceus”,
é facilmente contestada quando comparada com outras evidências.
James C. Vanderkam, professor de Antigo Testamento da Universidade de Notre
Dame, acredita que os de Qumran eram essênios. Ele diz que o número de semelhanças
utilizadas por Schiffman para provar sua tese da origem saducéia é muito menor que o
de disparidades quanto à associação dos de Qumran com os saduceus. Dando uma
ênfase maior às fontes clássicas e analisando outros documentos de Qumran além do
MMT, Vanderkam confia que algumas crenças, legitimamente “anti-saducéias como a
existência de multidões de anjos e a força dominadora do destino (1993:62), são
indícios que provam com maior evidência que estes eram essênios ao invés de saduceus.
A palavra
essênio simplesmente não existe em nenhuma parte dos MQ.
8
Esse é
um fato aparentemente simples, porém determinante para alguns eruditos questionarem
se os de Qumran eram mesmo essênios. Gabrielle Boccaccini, da Universidade de
Michigan, em seu livro
Beyond the Essene Hypothesis (Além da Hipótese Essênia,
1998), insta que Qumran não foi ocupado por essênios, mas sim por um grupo judeu
extremista. Em sua análise das fontes clássicas, o autor diferencia os escritores judeus
(Flávio Josefo e Fílon de Alexandria) dos não-judeus (Plínio, o Velho, e outros que o
utilizaram como fonte), dizendo que a abordagem feita por estes é diferente. Segundo
Boccaccini, os autores judeus estariam retratando grupos de origem essênia, o que não
acontece com os autores não-judeus, que descrevem um outro grupo de identidade
desconhecida. Boccaccini também se utiliza do contexto histórico, de textos e da
localização da seita para sua argumentação de que a comunidade de Qumran não era
formada por essênios.
Outras proposições de autores menos expressivos atribuem a seita de Qumran
como sendo caraíta, zelota ou até judeu-cristã. A discussão destas teorias mais
“exóticas” sobre a origem da comunidade (assim como outras teorias recentes que
julgam que o assentamento tenha sido uma espécie de “colônia de férias” de famílias
abastadas de Jerusalém ou um centro comercial dedicado ao fabrico de cerâmicas) faz-
se desnecessária, visto que as mais importantes conclusões contrárias à teoria essênia
foram abordadas acima.
8
São vários os nomes encontrados entre os MQ que os redatores de Qumran usavam para se auto-
intitular. Palavras como:
numerosos, Judá, comunidade, lote dos santos, são algumas delas. Porém,
qualquer designação que lembre a palavra
essênio não existe entre os MQ.
20
Neste trabalho, tenho por base que a comunidade de Qumran era formada por
judeus essênios. Para tanto, dou ênfase ao testemunho dos escritores clássicos, somando
a isso os indícios internos encontrados nos próprios MQ.
Um material documentário que traz uma importante contribuição para a
compreensão da comunidade judaica essênia assentada em Qumran é proporcionado
pelos historiadores Fílon de Alexandria (c. 20 a.C.-50 d.C), Plínio, o Velho (23-79 d.C)
e pelo já citado historiador judeu Flávio Josefo.
Fílon de Alexandria era filósofo judeu-helenista e rabino. Escreveu – em grego –
a respeito dos essênios, porém; não sobre os que habitaram o assentamento às margens
do mar Morto, mas sim sobre os que residiam no Egito. Os essênios (do grego
essaioi
ou essênoi) do Egito são comentados nas obras Quod Omnis Probus Liber Sit (Que todo
homem bom é livre
) e Hypothetica (Apologia dos Judeus). em outra obra, De vita
contemplativa (Vida contemplativa), o autor fala sobre um outro grupo egípcio
provavelmente essênio. Esse grupo, chamado de “terapeutas” (do grego therapeutai), é
descrito de uma forma bastante parecida com os essênios a que Fílon se refere nas
outras obras. O termo therapeutai possui uma afinidade fonética muito grande com a
palavra hebraica teroupha, que significa cura. Por sua vez, a palavra essênio (do
hebraico hassidim e/ou do aramaico hassayya,) até hoje não possui consenso a respeito
de seu real significado, mas muito provavelmente significa “os pios” ou “os que
curam”, mantendo a analogia com o termo grego terapeutas.
Essa proximidade entre as palavras é uma das razões pela qual certos eruditos
associam os terapeutas aos essênios. Isso é plausível de se pensar levando-se em
consideração que as comunidades, devido a seu isolamento, acabavam por desenvolver
elementos próprios se comparadas à inteira concretude do movimento; ou seja, por
alguma peculiaridade, Fílon poderia ter denominado esse grupo de essênios do Egito
por outro nome.
Tanto na descrição dos essênios quanto dos terapeutas feita por Fílon, vem à
tona a idéia de que estes homens pudessem – como o próprio sentido dos termos induz a
pensar cuidar do corpo com a intenção de buscar a cura de alguma enfermidade. No
entanto, ao longo da narrativa de Fílon, percebe-se que não é esse o tipo de terapia à
qual esses indivíduos se dedicavam (apesar de aparentarem conhecer muito bem o corpo
humano). A preocupação deles aparentemente não era com o corpo físico, mas sim com
uma espécie de “cura espiritual” daquele que abraçava a corrente religiosa. O desejo
humano era considerado como algo que levava o indivíduo à corrupção. Segundo Fílon,
21
o objetivo deles era fazer com que os “desejos da carne” fossem repelidos para que o
“paciente” pudesse alcançar uma vida contemplativa, com virtudes que trariam
refrigério e felicidade ao indivíduo. Fílon os descreve como tendo uma função superior
à dos médicos que cuidam da carne, pois estes se restringem ao corpo, enquanto a cura
da
psiqué (alma) visa algo maior: a cura de moléstias como o medo, o prazer
desenfreado, o desejo exacerbado, a tristeza, e uma série de outros comportamentos
considerados pelos essênios como “enfermidades do espírito”.
No campo religioso, os essênios divergem em alguns aspectos centrais da
corrente saducéia e farisaica. Como mostrou Vanderkam acima em sua comparação
entre essenismo e saduceísmo, a crença em anjos, no destino e na imortalidade da alma,
embora não fossem exclusivas do essenismo, eram contrárias à da classe sacerdotal
saducéia – o que é extremamente relevante levando-se em consideração que ambas eram
correntes sacerdotais. O caso da crença em anjos, por exemplo, existia também no
judaísmo farisaico (cf. At 23:7-8). Fílon também destaca outras de suas práticas que são
aplicadas com austeridade como a comunhão de bens, o celibato e a vida comunal.
Fílon insta que os essênios estão em vários lugares (o que confirma a idéia de
não existir essênios apenas no assentamento de Qumran, mas que eles na verdade se
encontravam esparsos por um grande território), porém, não traça contrastes entre estes
que residiam no Egito com os de outras regiões, mas limita-se em apresentar o sistema
de vida social e religioso dos residentes no Egito.
Dos três autores do século I que falam a respeito dos essênios, Fílon é o único
que faz uma narrativa de um ponto de vista filosófico. Destaca a necessidade de uma
vida contemplativa frente ao ambiente vivido, o grau de desenvolvimento da alma
trazido pela evolução espiritual e o desapego completo pelos bens materiais.
Apesar de Fílon ser um filósofo de uma proeminente família judaica de
Alexandria, chefe de um centro cultural helenístico e grandemente influenciado pela
filosofia de Platão; suas descrições sobre os essênios não foge ao comentário dos outros
escritores clássicos. Apenas o enfoque que Fílon faz é diferente dos outros. Enquanto
Plínio e Josefo abordam o assunto de forma mais descritiva, Fílon apresenta o modo de
vida essênio como um modelo filosófico, tentando conciliar fontes judaicas e o
conteúdo bíblico com a tradição filosófica ocidental.
Seus escritos sobre os essênios, em essência, estão de acordo com as descrições
de Josefo e com as interpretações contemporâneas a esse respeito, principalmente no
22
que tange à abdicação dos prazeres, desapego aos bens materiais, imortalidade da alma
e a busca por uma evolução espiritual.
Caio Plínio Segundo, mais conhecido como Plínio, o Velho, na sua ambiciosa
obra de 37 volumes chamada
História Natural, faz uma descrição física da Judéia,
passando pelo mar Morto e chegando até uma comunidade situada às suas margens.
Plínio é o único dos três autores clássicos que fala de uma comunidade situada entre as
cidades de Engedi e Jericó, e assevera que os que ali residiam eram essênios.
Plínio comenta a respeito de práticas conhecidas também por Josefo e Fílon,
como a ausência de dinheiro e de mulheres no assentamento, inclusive suas renúncias
aos desejos sexuais.
Dentro dos manuscritos descobertos em grutas próximas ao assentamento
descrito por Plínio, um texto bem conservado encontrado na Gruta 1 conhecido como
Regra da Comunidade (1QS), diz em início ao cap. 5: “E este é o preceito para os
homens da comunidade que se comprometeram a abandonar todo o mal e a aderir a
todos os Seus mandamentos segundo a Sua vontade”.
9
Este trecho de 1QS escrito por
essênios está de acordo com o comentário de Plínio, quando este diz que
“ dia após dia uma multidão de refugiados é recrutada em número igual por
abundantes admissões de pessoas fatigadas da vida e dirigem-se para
(Qumran) pelos caminhos da fortuna para adotar seus modos” (V:73,
tradução e grifo meus).
Nesse aspecto, percebe-se que tanto os essênios de Qumran como os essênios
(ou terapeutas) de Alexandria descritos em De Vita por Fílon, tinham características
comuns. O ingresso nas seitas essênias não era devido à ação proselitista de seus
membros, mas sim por atitude espontânea e individual dos ingressos.
Curta, embora extremamente significativa, a descrição esclarecedora deste
romano naturalista reforça os pontos em comum entre essênios que por mais que
distantes, compartilhavam de elementos estruturais similares. Plínio, assim como Fílon,
não deixa de demonstrar sua admiração pelos essênios, dizendo que esta “é a tribo mais
notável entre todas as outras do mundo inteiro” (V:73).
9
Para a citação dos textos de Qumran, utilizo: MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran,
Edição Fiel e Completa dos Documentos do Mar Morto.
Trad. Valmor da Silva. Petrópolis: Vozes, 1995.
23
Para completar a plêiade dos autores mais importantes que descrevem os
essênios, Flávio Josefo, em suas obras
Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas, faz
um relato rico acerca do modo de vida essênio no aspecto social e religioso. Ele, que na
sua juventude freqüentou uma (ou algumas) comunidade essênia, a descreve com uma
riqueza de detalhes muito maior do que as outras duas “filosofias” (saduceus e fariseus).
Apesar de descrições um tanto precisas sobre o modo de vida essênio, as
contribuições de Josefo não são extensas quando comenta sobre os aspectos litúrgicos
da comunidade. Isso provavelmente se deve ao fato de ele não ter podido participar
efetivamente como membro da mesma, não chegando a ser mais do que um iniciado. O
ingresso de postulantes na comunidade era marcado por três anos de prova. Nesse
tempo era feita a iniciação aos mistérios da seita, que abrangiam esclarecimentos
religiosos e sectários (sociais). Josefo, tendo em mente que sua permanência com o
grupo poderia lhe acarretar contratempos, restringiu sua permanência apenas a um
período inicial (cf. HADAS-LEBEL, 1991:47).
As provas de sua limitação dentro do grupo são perceptíveis em seus próprios
comentários. Quando fala a respeito da prática essênia do banho ritual, conclui do
seguinte modo: “feito isto, recolhem-se todos em certos lugares onde não pode entrar
homem de outra seita... o silêncio que guardam parece aos que estão fora dali uma
coisa muito secreta e muito venerável” (1961:149, tradução minha). É certo que quando
Josefo faz essa descrição, encontra-se privado do acesso aos “certos lugares”, não
podendo relatar as práticas particulares dirigidas aos membros plenamente aceitos.
Na Regra da Comunidade de Qumran, citado em comparação com o texto de
Plínio, estão descritas uma série de normas que servem para balizar o comportamento
do postulante e a preparação para o indivíduo se enquadrar no ambiente religioso das
comunidades. Em harmonia com isso, Josefo relata:
Aos que desejam entrar nesta seita, não os recebem logo em suas reuniões,
mas dão-lhes um ano inteiro de comer e beber com a mesma ordem como se
estivessem juntamente com eles, dando também uma túnica, uma vestidura
branca e uma sandália. Depois que com o tempo há dado sinal de sua virtude
e continência, recebem-no a comer com eles e participa de seus banhos e
lavagens, para receber com eles a castidade que deve guardar, mas não se
juntam com ele para comer... (1961:150, tradução minha).
As várias citações de Josefo na Guerra, como a abstinência de riquezas,
mulheres e escravos, a comunhão dos bens materiais, o rigor para com as atividades
24
religiosas entre outras, coincidem com as informações presentes nos documentos
encontrados entre os MQ, como 1QS.
Um testemunho extremamente importante deixado por Josefo diz respeito ao
casamento. A repulsa essênia pelas mulheres se prende à justificativa de que estas
corrompem a casta do marido. A forma encontrada então para a perenidade dos
membros da seita era a adoção de filhos de judeus simpatizantes. No entanto e está
a diferença mais significativa citada por um autor clássico , havia uma (ou
provavelmente algumas) outra escola de essênios que possuía uma opinião diferente
sobre o matrimônio. Estes se casavam alegando a necessidade de contribuir para povoar
o mundo. Essa consideração atestada por Josefo pode trazer à mente o fato de que as
comunidades essênias não se comportariam todas de forma unificada. Diferentes
motivos levariam as comunidades essênias a terem comportamentos díspares umas das
outras. Infelizmente, são poucos os indícios que nos levam a compreender essas
diferenças dentro do essenismo, sendo a mais explícita e importante a citada por Josefo
sobre o casamento.
Um comentário de suma importância feito por Josefo é o da existência de
comunidades, e não de apenas um centro essênio (como parece ter sido Qumran). Isso
vai de encontro à idéia de que existisse um número muito reduzido de essênios. Tanto
Fílon (Que todo homem bom é livre) quanto Josefo (Antiguidades Judaicas) dizem que
o número destes é de 4 mil. Como ambos chegaram a essa cifra não se sabe. O certo é
que os essênios não compunham uma seita isolada, pelo contrário, possuíam um
contingente considerável com comunidades interligadas. Como atestou Josefo, os
essênios
não têm uma cidade determinada onde se recolham; mas em cada uma
vivem muitos, e vivendo alguns mestres da seita, oferecem-lhe tudo o que
tem, como se fosse coisa própria... embora nunca os tenham visto, como
muito amigos e muito acostumados; por isto em suas peregrinações... em
cada cidade tem um procurador do mesmo colégio, o qual tem o cargo de
receber a todos os hóspedes que vêm (1961:148, tradução minha).
Mais importante do que saber que essas comunidades eram difundidas por
territórios esparsos, é compreender sua possível ligação com comunidades religiosas de
outra natureza que se formariam durante o período relatado por Josefo em Guerra dos
Judeus, principalmente as comunidades cristãs. A “distância” entre as comunidades
religiosas do século I não era tão grande como se podia pensar (principalmente antes das
25
descobertas dos MQ). As influências e trocas de capital religioso foram constantes
durante esse período, sobretudo para o cristianismo, que apesar de ser um fenômeno
novo com peculiaridades, apropriou-se de certos aspectos religiosos judaicos que não
permitiam que fosse enxergado como de todo “exótico” frente ao ambiente em que se
originava. A análise dos documentos de Qumran pode ajudar a entender como se deram
algumas dessas influências.
10
Um exame apurado das fontes clássicas pode nos dar uma interpretação bastante
segura quanto à identidade dos homens de Qumran. Esse material, somado a diversos
textos encontrados nas grutas do mar Morto, dá uma sabe sólida para acreditar que os de
Qumran seguramente eram essênios. Ir de encontro à “hipótese essênia” resulta na
criação de muitas afirmações que não se encaixam facilmente, sempre com lacunas em
que não explicação coerente. Conforme o comentário do renomado erudito bíblico
Frank More Cross,
O estudioso que “tivesse receio” de identificar a seita de Qumran com os
essênios se colocaria numa posição espantosa: deveria propor seriamente
que
duas facções importantes criaram grupamentos comunais na mesma
região do deserto em torno do mar Morto e viveram efetivamente lado a lado
durante dois séculos, esposando as mesmas opiniões estranhas, cumprindo
atos de purificação, refeições rituais e cerimônias semelhantes ou
praticamente iguais. Ele deveria supor que uma delas, descrita em detalhes
por autores clássicos, desapareceu sem deixar vestígios de suas construções
ou mesmo restos de utensílios de cerâmica; da outra, sistematicamente
ignorada pelas fontes clássicas, restaram extensas ruínas e até mesmo uma
grande biblioteca. Eu prefiro ser afoito e categoricamente identificar os
homens de Qumran com seus permanentes convivas, os essênios (1993:26).
Após elucidada a importante questão sobre a identidade dos homens da seita do
mar Morto, tornar-se-á mais fácil a compreensão das posições tomadas a partir de agora
neste trabalho.
10
Não “trocas simbólicas” são depreendidas através destes documentos, assim como não aprendemos
apenas sobre as origens do cristianismo. Lawrence Schiffman apresenta em um artigo as contribuições
dadas pelas descobertas de Qumran para a compreensão do judaísmo farisaico do século I (SCHIFFMAN,
Lawrence.
Uma nova luz sobre os fariseus. In: SHANKS, H. (Org.). Para compreender os Manuscritos
do Mar Morto
. Trad. Laura Rumchinsky. RJ: Imago, 1993.). Em textos como o Pesher Naum (4QpNah),
Schiffman consegue discernir que trechos do texto fazem uma crítica aos fariseus (denominados de
“Efraim”) e a seus ensinamentos. Esse exemplo demonstra que por mais que os grupos fossem contrários,
conheciam muito bem um ao outro.
26
1.2 AS INTERPRETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ACERCA DA
LITERATURA DE QUMRAN E OS ESCRITOS CRISTÃOS
As descrições trazidas por esses autores do século I d.C. servem como auxílio
para se interpretar os MQ. Se utilizando delas, o historiador e arqueólogo Ernest Renan
(1823-1892), em seu livro
La Vie de Jesus (A vida de Jesus), de 1863 (ou seja, bem
antes da descoberta dos MQ), dizia que o cristianismo foi um “essenismo que teve
amplo sucesso” e que Jesus foi o melhor exemplo do que era ser um essênio. Segundo
Renan, os essênios eram apartados das questões políticas, eram ascetas, místicos e
celibatários, e o Jesus histórico que ele revelou possuía também essas características.
Edmond Bourdeaux Szekely (1900-1979), filólogo e lingüísta, tradutor de textos
aramaicos atribuídos aos essênios, publicou vários livros baseando-se nos escritos de
Fílon, Plínio, Josefo, e em manuscritos existentes na Biblioteca do Vaticano, dos
Habsburgo em Viena e na Biblioteca do Museu Britânico (1981:11). Famoso por
traduzir um manuscrito na década de 1920 que recebeu o nome de
Evangelho da Paz,
Szekely percorre a mesma linha de Renan ao creditar ao Jesus dos Evangelhos o melhor
exemplo do modo de vida essênio.
Outros pesquisadores têm opiniões que vão ainda mais longe, atribuindo aos
essênios a escrita dos Evangelhos do NT, utilizando como principal argumento o fato de
não haver nenhuma citação explícita a estes, mas somente aos fariseus e saduceus.
Se antes da descoberta dos MQ alguns estudiosos afirmavam uma ligação do
cristianismo com o essenismo, as especulações aumentaram ainda mais depois da
descoberta. Um grande especialista do “International Team”,
11
John Marco Allegro
(1923-1988), fazia declarações aparentemente comprometedoras ao cristianismo.
12
Dizia que os essênios de Qumran possuíam elementos cristãos uns cem anos antes de
11
No ano de 1952, em Jerusalém oriental, é criado o polêmico “International Team” no Museu
Arqueológico da Palestina (mais tarde renomeado Museu Rockefeller) pertencente à Jordânia. Essa
equipe ficou responsável pela vasta maioria dos manuscritos. Muitos dos manuscritos obtidos pelo Museu
Arqueológico da Palestina tiveram de ser comprados das mãos de mercadores sustentados por beduínos
que descobriram algumas grutas antes dos arqueólogos. O Governo Jordaniano ajudava na aquisição, mas
ainda assim não era o suficiente. Para tanto, foi necessário a ajuda de universidades e instituições, que em
troca, recebiam uma compensação pelo direito de publicação e nomeavam um especialista para formar
esta equipe. O chefe do
International Team foi o padre dominicano Roland De Vaux. Sob seu comando
estavam os norte-americanos Frank More Cross e Patrick Skenan, os ingleses John Allegro e John
Strugnell, o polonês J. T. Milik, o francês Jean Strarky e o alemão Clauss-Huno Hunzinger. Essa foi a
composição da equipe inicial.
12
Disse em uma certa ocasião a John Strugnell: “Se eu fosse você, não me preocuparia com aquele
emprego teológico. Quando eu tiver terminado a minha pesquisa, não lhe restará nenhuma igreja à qual
se filiar”
(BAIGENT, 1994: 68).
27
Cristo, como a oração do Pai-Nosso, o batismo e a Santa-Ceia (1979, passim). De fato,
as similaridades aumentam ainda mais quando se faz uma comparação entre os
chamados
manuscritos de seita”
13
com os Evangelhos, o livro de Atos, a carta aos
Hebreus, a literatura joanina e as Epístolas de Paulo. Para muitos estudiosos, esses
elementos eram amplamente conhecidos pela população judaica da época, o que
ajudaria a explicar a rápida expansão do cristianismo no século I d.C. Outras
semelhanças entre Qumran e o cristianismo ocorrem na linguagem teológica, nas
doutrinas escatológicas, na liturgia e nas relações organizacionais.
Embora seja concreta a existência dessas analogias entre estes corpus literários,
deve-se questionar sobre que tipo de essenismo influenciou as primeiras comunidades
cristãs e quais comunidades cristãs foram influenciadas. Como exposto acima nos
comentários sobre os escritores clássicos, existem alguns pequenos pontos de
contradição acerca de suas descrições, o que pode indicar que as comunidades essênias
não eram tão herméticas como se presumia. Essa maneira de compreender o movimento
faz com que o essenismo transforme-se em “essenismos”, fato que aumenta em muito o
número de possibilidades de contato com comunidades ou personalidades cristãs.
Um exemplo de dissidência da doutrina central essênia foi o caso de João
Batista. Este, discordando de aspectos fundamentais da doutrina essênia de Qumran,
carrega consigo o capital religioso que possui e o imprime sob uma outra ótica.
Batista é um bom exemplo de como comunidades religiosas podiam se
interligar. Seu modelo demonstra claramente como se estabeleciam links entre tradições
religiosas diferentes. As influências transmitidas a determinada corrente religiosa
ocorriam sempre de forma sutil, particularizada. A dissensão de membros como Batista
certamente tornava isso possível. Para Otto Betz, “João Batista foi criado nessa
comunidade junto ao mar Morto e dela recebeu forte influência, tendo partido mais
tarde para pregar a uma comunidade maior de judeus” (1993: 216).
Um dos aspectos discordantes entre ele e a comunidade essênia provavelmente
foi quanto a questão do “banho ritual”. Eles eram praticados rotineiramente entre os
essênios, simbolizando pureza frente a Deus. Com Batista, o “banho” recebe um sentido
diferente a partir do momento em que ele é realizado uma única vez, sob uma nova
13
São conhecidos como “manuscritos de seita” os textos não-bíblicos encontrados nas grutas de Qumran.
Apesar da importante descoberta de quase todos os livros das Escrituras Hebraicas entre os MQ (o único
livro não encontrado foi o de Ester), os manuscritos de seita são mais importantes por ajudarem a
preencher o “vazio” documental do período, auxiliando na compreensão na sociedade judaica dos séculos
II a.C. a I d.C.
28
ótica, reforçando grandemente o caráter teológico e diminuindo sua importância social.
João Batista serviu claramente como um “vetor”, que trouxe consigo a maneira de
pensar de certo grupo, e, tendo migrado a outro, seu ponto de vista recebeu uma nova
roupagem.
Como dito acima, o essenismo com certeza não era um movimento inteiramente
coeso ideologicamente. No caso do cristianismo também não podemos limitar seu
nascimento a um único estrato, pois as comunidades cristãs se encontravam amplamente
dispersas no território bíblico e sob a influência de personalidades diversas. Isso nos
leva à conclusão de que o mais correto é tratar o cristianismo do século I como
“cristianismos”. Infelizmente, a maior parte dos especialistas, ao tratar das influências
essênias sobre o cristianismo, não dá respostas claras quanto ao caminho percorrido por
estas influências e/ou empréstimos, sobre quais foram os estratos cristãos que sofreram
influência e se estas vieram de Qumran ou de uma outra comunidade sectária.
Estes são questionamentos extremamente importantes que devem ser feitos ao
objeto de pesquisa antes da formulação de determinada proposição. Porém,
infelizmente, muitos foram os casos (alguns persistem ainda hoje) em que estes
questionamentos foram desconsiderados.
O comportamento áspero de Allegro no trato de assuntos referentes ao
cristianismo foi muito explorado por pessoas que se utilizavam de seus comentários (e
até certo ponto seus equívocos) para cunho sensacionalista. Afinal, um membro da
própria equipe de edição era o responsável por tais críticas. Allegro, único membro da
equipe original que não seguia alguma religião, foi muito criticado por seus colegas de
equipe por suas interpretações de alguns manuscritos. Conforme ressaltou Joseph
Fitzmyer a respeito da quinta publicação da série Discoveries in the Judaean Desert
14
(1968) encabeçada por Allegro, “a maior parte dos textos da Gruta 4 publicados na
série DJD ou em edições preliminares foi editada com competência. Mas há uma
exceção notória. É o volume publicado por John M. Allegro” (1997:166).
Alguns pesquisadores que estavam fora do International Team e não possuíam
conhecimento dos problemas internos pelos quais passava a equipe no que concerne à
14
A edição oficial dos textos encontrados no deserto da Judéia foi publicada na série Discoveries in the
Judaean Desert
(DJD). A coleção abrange não só textos oriundos das grutas de Qumran, mas também de
Massada, Wadi Daliyeh, Wadi Seiyal, Nahal Mishmar, Khirbet Mird, Nahal Hever, Wadi Murabba’at e
Nahal Se’elim. Compõe-se de 39 volumes publicados (sem contar os adicionais) desde 1955 até 2002 pela
Oxford University Press. Se somadas, o número de páginas da coleção alcança mais de 12.000.
29
publicação dos manuscritos, atribuíam as críticas que Allegro recebia por sua conduta e
interpretações como sendo “perseguição”, insinuando que ele seria uma espécie de
“delator” de conteúdos que poderiam abalar a cristã algo que desagradaria o resto
da equipe. Ora, a equipe original formada por oito estudiosos passou por intensas
modificações até a chamada “revolução” de 1991,
15
atingindo mais de 60 especialistas.
Por fim, o número alcançado ao final das publicações da série
Discoveries in the
Judaean Desert
, em 2002, foi de 106 estudiosos. Ainda assim, nenhum conteúdo que
pudesse “destruir” a Igreja foi encontrado, mesmo por aqueles que a princípio não
faziam parte da equipe original e a ela desferiam acusações de protecionismo referente a
assuntos que pudessem pôr em “xeque” o cristianismo.
Entre a primeira geração de estudiosos dos MMM, também existiram outros que
se utilizaram destes documentos com a intenção de “desmistificar” o cristianismo assim
como Allegro.
16
André Dupont-Sommer (1900-1983), na década de 50, dizia entre
outras coisas que o relato de Jesus no NT era uma transposição do que ocorreu
anteriormente a uma figura histórica da comunidade de Qumran, conhecida pelo nome
de Mestre da Justiça (Moreh Tsedeq). O modelo deixado pelo Mestre da Justiça nos
MQ, segundo Dupont-Sommer, precede o de Jesus em bondade, humildade, amor ao
próximo e outras qualidades dadas a ele no NT. Atribui a “originalidade” ao Mestre da
Justiça e apresenta a figura de Jesus construída à imagem dele. Hoje, alguém que tenha
um conhecimento razoável dos MQ e do NT, percebe que o número de disparidades
supera em muito o de semelhanças. Uma insinuação como esta não é cabível, mesmo
tratando-se da época em que foram feitas as descobertas dos MQ, que não havia base
documental para tais afirmações.
À medida que os estudos foram avançando e novas publicações trazendo mais
informações, teses como a de Dupont-Sommer foram caindo por terra. O mesmo
aconteceu com a teoria de Edmund Wilson (1895-1972). Wilson, que considerava o
cristianismo como um “desenvolvimento natural de uma forma do judaísmo”,
acreditava que a comunidade de Qumran tinha sido o elo dessa “evolução” (cf.
VANDERKAM, 1993:191). Essa “evolução”, compreendida como tal, estaria com a
15
Essa “revolução” teve início um ano antes, com a saída de John Strugnell da direção do International
Team
. Logo em seguida, as instituições responsáveis pela divulgação dos manuscritos começaram a
liberar paulatinamente seus arquivos.
16
Allegro, depois de descreditado por sua publicação mal elaborada na série DJD e por sua malvista
busca pelos “tesouros” descritos no Pergaminho de Cobre, acabou ainda mais desacreditado depois de
publicar obras ainda mais incisivas contra o cristianismo, a saber:
The Sacred Mushroom and the Cross
(1970) e The Dead Sea Scrolls and the Christian Myth (1984).
30
descoberta dos MQ recebendo seu impulso maior, chegando a uma situação sem volta
em que as provas demonstrariam como esse “processo” ocorreu.
Como dito acima, essas interpretações que supostamente abalariam os alicerces
da fé cristã foram sendo suprimidas à medida que os estudos dos MQ avançaram sob as
mãos de pesquisadores mais prudentes e pacientes. No entanto, mesmo em tempos
recentes, pode-se encontrar alguns estudiosos com posições que divergem em pontos
fundamentais da maioria dos outros pesquisadores. Entre esses, um dos mais destacados
é o historiador Robert Eisenman, da Universidade da Califórnia. Eisenman afirma que
personagens históricos dos MQ, como o
Mestre da Justiça, o Mentiroso e o Sacerdote
Ímpio, são pseudônimos atribuídos a indivíduos também conhecidos do NT. Para ele, a
comunidade de Qumran tinha um relacionamento amplo com Jerusalém. Além disso,
ela veio a tornar-se uma comunidade sectária muito tardiamente, apenas no século I d.C.
Essa é a base cronológica criada por ele para que sejam possíveis as comparações entre
figuras históricas da comunidade com as conhecidas do NT; como Tiago, irmão de
Jesus (este é para Eisenman o Mestre da Justiça) e o apóstolo Paulo (Paulo tornou-se o
Mentiroso).
Seguindo a mesma linha de Eisenman no que refere à identificação dos
pseudônimos de Qumran, Bárbara Thiering, teóloga da Universidade da Austrália,
acredita que João Batista foi o Mestre da Justiça e que Jesus foi o Sacerdote Ímpio (cf.
FITZMYER, 1997:123).
Não é necessário fazer comentários aprofundados sobre os equívocos de teses
aparentemente “reveladoras” como estas, basta dizer que toda a cronologia consensual
acerca da comunidade de Qumran tem de ser ignorada. São poucos os especialistas que
defendem teorias similares.
Todo esse conteúdo envolvendo questões aparentemente comprometedoras ao
cristianismo foi muito aproveitado pela mídia sensacionalista e por autores
descompromissados com o devido rigor científico. Entre esse tipo de produção, um
livro chamado As intrigas em torno dos Manuscritos do Mar Morto (do original em
inglês The Dead Sea Scroll Deception, de 1991) recebe destaque. Os autores, dois
jornalistas que já escreveram sobre temas completamente díspares (sobre MMM e Santo
Sudário, por ex.), reúnem as teses mais criticadas no meio acadêmico e as apresentam
com a alegação de trazerem à tona um “conteúdo proibido” pelos que estavam próximos
aos manuscritos. Com capítulos intitulados como “o escândalo dos manuscritos” e “a
31
inquisição do presente”, a dupla seleciona simplesmente os autores cujas teses foram as
mais excêntricas nos assuntos relacionados ao cristianismo, como as de John Allegro,
Duppont-Sommer, Edmund Wilson e Robert Eisenman.
O contra-ataque por parte dos outros estudiosos foi imediato. Um ano após o
lançamento desse livro, o fundador e editor da revista
Biblical Archaeology Review,
Hershel Shanks, dedica um capítulo inteiro de um livro por ele organizado para discutir
as teses de Baigent e Leigh, autores do livro. Shanks critica a polêmica criada pelos
autores principalmente em sua tese central, de que havia uma prestação de contas do
International Team para com a École Biblique,
17
que por fim recebia orientação direta
com o Vaticano. A despeito de a dupla fazer comentários apreciativos sobre a campanha
da revista
BAR em favor da liberação dos manuscritos ainda secretos (da qual Shanks
estava à frente), Shanks afirma que tal acusação não tem fundamento, e que
“é tão
cheia de falhas que chega a ser absurda”. Pior ainda, segundo Shanks, é basear-se na
idéia de que “os estudiosos independentes dos dias de hoje (1992) possam ser forçados
por intimidação a reprimir suas opiniões” (1993:299-300, grifo meu).
Entre os estudiosos independentes que eram contra o International Team, deve-
se lembrar que alguns pertenciam ao clero católico como Robert North, Joseph Fitzmyer
e José O’Callaghan, o que rechaça a inocente idéia de pesquisadores trabalharem sob a
égide da Igreja católica. Shanks lembra ainda que, ao contrário do que a atividade
sensacionalista pudesse apresentar, estudiosos católicos e instituições de pesquisa
bíblica à qual estes estão ligados se mantêm como vanguardistas nos estudos bíblicos
(cf. 1993:299).
Com idéias similares às de Shanks, Julio Trebolle Barrera, membro do Comitê
Internacional de edição dos Manuscritos do Mar Morto, expressa a seguinte opinião
sobre esse tipo de material:
O fato de se passarem mais de quarenta anos sem que viesse à luz a
totalidade dos manuscritos encontrados nas grutas do mar Morto deu lugar a
suspeitas que ultrapassaram em algumas ocasiões os limites do razoável. O
verdadeiramente escandaloso é o próprio escândalo: que uma imensa faixa
de público leitor e informado e os meios de comunicação que os abastecem a
leitura e as imagens concedam total credibilidade a “suspeitas” e teorias
muito minoritárias e desconfie, ao contrário, do juízo majoritário dos peritos.
O escândalo de Qumran constitui mais um fenômeno social do que
acadêmico. O escandaloso é que uma mistura adequada de informação
17
Alvo de polêmica para os críticos, a École Biblique et Archéologique Française desempenhava o papel
de financiar pesquisas religiosas, porém; as críticas eram feitas a esta instituição por ela ter sido criada
pela Igreja católica (1890); podendo, na opinião dos críticos, ter uma forte ligação com o Vaticano.
32
científica de primeira mão com certa dose de sensacionalismo constitua um
tipo de literatura que tem êxito garantido (1996:38).
Barrera trata o livro acima comentado como sendo uma mistura de “informação
e desinformação”, que ignora as dificuldades enfrentadas pelo
International Team para
que fossem feitas as publicações.
A frase dita pelo famoso erudito bíblico Geza Vermes, em 1977, de que a maior
descoberta de manuscritos estava se tornando rapidamente
“o escândalo acadêmico por
excelência do século XX”
(1977:24), não soou bem aos ouvidos de muitos estudiosos.
Esse episódio marca o início em que as oposições em favor da liberação dos
manuscritos ganham corpo. Entretanto, as teorias para explicar o porquê da demora não
levaram em consideração os problemas “sociais” (parafraseando Barrera) pelos quais
passava a equipe, ganhando destaque entre estas a acusação de que haveria um
“complô” para não prejudicar o cristianismo.
Apesar do objetivo aqui não ser o de descrever os problemas enfrentados pelo
International Team, é importante traçar um panorama geral das proposições criadas
referentes ao cristianismo, por mais que estas, às vezes, escapem à razão. Os
verdadeiros motivos alegados por todos os conhecedores da história da publicação dos
manuscritos tanto de membros da equipe quanto de outros foram que estes eram
oriundos de problemas como: luta por direitos autorais, acondicionamento do material,
dificuldades financeiras, questões geopolíticas sucessivas à criação do Estado de Israel
18
e racismo. Estes sim, foram alguns dos mais importantes condicionantes responsáveis
pelo atraso das publicações, não motivos religiosos. Se os críticos levassem esses
problemas em consideração antes de emitirem suas opiniões, muitos equívocos teriam
sido evitados e uma literatura de maior honestidade e seriedade chegaria às mãos do
público.
18
Um dos acontecimentos que fez com que o ritmo das publicações perdesse o compasso foi o
desencadeamento da
Guerra dos Seis Dias (1967), em que Israel anexa a parte oriental de Jerusalém a seu
território e toma o Museu Arqueológico da Palestina, onde se encontravam a maior parte dos manuscritos.
Foi durante esse período que o arqueólogo Yigael Yadin apossou-se do
Pergaminho do Templo em mãos
de um comerciante que morava em Belém, cidade anexada ao território israelense.
33
1.3 ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE OS
MANUSCRITOS E O NOVO TESTAMENTO
A introdução feita acima é essencial para que se entenda a relação entre as
primeiras interpretações criadas sobre as possíveis ligações da literatura qumrânica com
o cristianismo nascente, além de compreender como estas interpretações estavam
intimamente ligadas a toda situação vivida durante os anos das publicações dos MMM.
Isso pode ajudar ao leitor a se familiarizar com o assunto e a tomar os devidos cuidados
com o que lê.
Buscando uma análise que se distancie tanto do sensacionalismo como da
negação de qualquer influência qumrânica, pode-se focar com maior precisão as
relações entre os escritos do mar Morto com uma grande porção dos escritos cristãos
os canônicos do NT.
Diversos especialistas chegaram a interessantes conclusões nesse campo em suas
pesquisas. A descoberta dos MQ deu início a uma nova era nos estudos bíblicos,
envolvendo tanto o Judaísmo Antigo, movimentos sectários e origem do cristianismo.
Muito do que foi escrito tem de passar atualmente por uma revisão, lenta e gradual.
Como admitiu Cross, “não é nada agradável ficar sabendo que existe um novo
manuscrito e que todos os nossos livros terão de ser reescritos” (1993:176). A
evolução sofrida no campo do estudo das religiões e a interdisciplinaridade com outras
ciências colaborou para que houvesse uma grande evolução no quadro teórico e
interpretativo (cf. GERRIERO, 2003:12).
Outro motivo que explica o porquê das pesquisas bíblicas não terem apresentado
um grande avanço no estudo da estrutura religiosa do cristianismo primevo durante
séculos, é devido à falta de fontes externas ao material canônico. Porém, a recuperação
gradual – principalmente no decorrer dos dois últimos séculos – de uma série de
documentos antigos, na íntegra ou fragmentados, conhecidos ou desconhecidos,
transformou a situação.
Para muitos especialistas, entre todas as espécies de fontes que podem trazer luz
ao cristianismo nascente, as que mais colaboram para isso são as descobertas em
Qumran. Várias crenças eruditas foram abandonadas após a descoberta de elementos
como figuras de linguagem, estruturas textuais, expressões paralelas, e mesmo de
práticas organizacionais sectárias encontradas entre os membros da comunidade. O
citado Frank More Cross, um dos mais produtivos do International Team, identifica
34
vários pontos de contato entre escritos sectários de Qumran e o NT. Cross pôde
perceber semelhanças na linguagem teológica, nas doutrinas escatológicas e nas
relações organizacionais e litúrgicas da comunidade do mar Morto (cf. 1958, passim).
Focalizando os escritos joaninos, termos que pareciam peculiares a João como
espírito da verdade e o espírito do erro” (1Jo 4:6),
19
luz da vida” (Jo 8:12), vida
eterna”
(Jo 3:15,16); existiam na Regra da Comunidade de Qumran. Não apenas
estes termos, mas também as antíteses da literatura joanina como:
luz e escuridão,
verdade e mentira, espírito e carne, amor e ódio, morte e vida termos característicos
do dualismo bondade/maldade , são encontrados na literatura qumrânica. Apesar de
termos como esses e os citados acima também aparecerem em outras partes do NT, a
literatura joanina deve ser analisada diferentemente dos outros livros do NT, pois possui
linguagens e pensamento peculiares. Como resumiu Frank Kermode, é atualmente
consensual que o Quarto Evangelho tem fontes tão antigas quanto as disponíveis aos
sinópticos, embora amplamente independentes delas” (1997:473).
Antes das descobertas dos MQ, pensava-se que os escritos joaninos fossem uma
forma de gnosticismo,
20
a saber, o mandeano. Após, pôde-se perceber o quanto João
bebeu da água dos essênios.
Veja como o dualismo é trabalhado neste hino da Regra da Comunidade:
Do manancial da luz provêm as gerações da verdade,
e da fonte das trevas as gerações de falsidade.
Na mão do Príncipe das Luzes
está o domínio sobre todos os filhos da justiça;
eles andam por caminhos de luz.
E na mão do Anjo das trevas
está todo o domínio sobre os filhos da falsidade;
eles andam por caminhos de trevas.
Por causa do Anjo das trevas se extraviam
todos os filhos da justiça, e todos os seus pecados,
suas iniqüidades, suas faltas e suas obras rebeldes,
estão sob o seu domínio (1QS 3:19-22).
O autor desse texto torna bem explícito o pensamento sectário a respeito da
polarização do bem e do mal. Em João, podem-se encontrar várias passagens que
19
Nas citações bíblicas (salvo as que possuem outra indicação) utilizo a BÍBLIA DE JERUSALÉM. 7
o
Impressão Revista. São Paulo: Paulinas, 1995.
20
Segundo o Dicionário ilustrado das Religiões (SCHWIKART), o gnosticismo (do grego gnôsis:
conhecimento) foi uma corrente espiritual paralela ao cristianismo nascente. Os adeptos do gnosticismo
procuravam dar resposta à pergunta “como apareceu o mal no mundo”. Pregava que o homem como tal
não é pecador, mas dentro dele trava-se uma luta perpétua entre Bem e Mal”. O objetivo do
gnosticismo era identificar essa luta através do conhecimento e assim alcançar a redenção.
35
expressam o sentimento dualístico. Similar ao Anjo das trevas de Qumran, encontramos
em João as sentenças:
“Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de
vosso pai” (Jo 8:44). Embora nesta comparação seja dado apenas o lado mal desse
dualismo (ambos utilizando inclusive uma deidade maligna para representá-lo), o lado
do bem demonstra uma simbologia ainda mais acentuada, enunciada comumente pela
expressão
luz. O texto de 1QS 3:19-22 mostra que a luz também possui seu
representante o Príncipe das Luzes e que ele possui maior autoridade. De forma
resumida, porém não menos inteligível, outra passagem da
Regra manifesta esse
dualismo:
As coisas reveladas sobre os tempos fixados de seus testemunhos,
para amar a todos os filhos da luz,
cada um segundo o seu lote no plano de Deus,
e odiar a todos os filhos das trevas,
cada um segundo a sua culpa (1QS 1:9,10).
Esta passagem de 1QS destaca a expressão benei ’or” (filhos da luz), utilizada
pelos habitantes de Qumran para se autodenominarem. Seu uso prova a concepção
própria de uma seita escatológica, ao contrastar
luz e trevas e polarizar o mundo entre
filhos destes e filhos daqueles.
Traçando um paralelo com João, veja como o evangelista se utiliza da expressão
em Jo 12:36: “enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da luz”.
Esta passagem manifesta bem a importância que o apóstolo dava na designação
daqueles que pertenciam a seus círculos, sendo a terminologia empregada por ele igual à
utilizada pelo autor de 1QS. Em 1Jo 3:10, o apóstolo mostra um exemplo de sua
habilidade no manejo do jogo de antíteses similar à dos autores de Qumran, trabalhando
o embate entre essas duas forças do seguinte modo:
“Nisto se revelam os filhos de Deus
e os filhos do diabo: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele que
não ama o seu irmão”.
Vale lembrar que a expressão filhos das trevas” citada em 1QS não é
encontrada no NT, sendo a expressão “filho da perdição”, atestada em Jo 17:12, a mais
próxima daquele termo. Graças a isso, não se pode aplicar a divisão do mundo entre
dois grupos adotada por Qumran como sendo similar à mensagem de João e do restante
NT. Esta em geral, apesar de não apresentar univocidade em seus estratos e estágios
iniciais, pretende-se como universal.
36
Estes exemplos citados acima sobre a tradição joanina mostram o quanto ele
pôde ter utilizado e aprimorado fontes diversas (possivelmente essênias) ou tenha sido
receptor de determinada tradição oral. Após isso, já influenciado por algum destes
meios, efetuou a redação de seus textos.
Os escritos joaninos são encarados de forma diferenciada pelos especialistas,
como pertencentes a uma tradição exclusiva do cristianismo. Isto pode dar vazão para se
pensar que as similaridades com os MQ ocorram em seus escritos. As semelhanças
nas fórmulas literárias, linguagens e teologia também estão presentes em outros livros
do NT que pertencem a estratos diferentes. Além dos escritos joaninos, livros como os
sinóticos, a epístola aos Hebreus e as epístolas paulinas compõe o rol dos canônicos que
apresentam o maior número de paralelos.
Para não abrir o leque dos exemplos citados, retomo a expressão
“filhos da
luz” encontrada em 1QS e em João. O termo também é encontrado em Lc 16:8,
21
1Ts
5:5 e Ef 5:8. Esses livros do NT são provenientes de tradições diferentes da joanina,
além de serem escritos em diferentes períodos por diferentes autores. Mesmo assim,
carregam essa raiz semítica.
Entre os sinóticos, é quase consensual que o livro de Marcos é o mais antigo,
tendo servido de base para a redação de Mt e Lc.
22
Apesar do Evangelho de Marcos
possuir mais “semitismos” que os outros, os paralelos com a literatura de Qumran não
são tão grandes quanto presume-se que poderiam ser. No caso de Mt e Lc, os
compositores muito provavelmente se utilizaram além do texto de Marcos de um
corpus diferente de fontes, explicando o porquê de certas terminologias e estruturas
textuais serem encontradas nestes Evangelhos. O recolhimento de fontes de autores
ignorados juntou-se à composição dos Evangelhos de Mateus e Lucas, tornando-os mais
“aprimorados” que o marcano.
Em Mt, um paralelo sempre lembrado pelos estudiosos é o das Bem-
Aventuranças,
23
descritas em 5:3-11. Apesar destas Bem-Aventuranças também
existirem no AT,
24
a sua disposição em várias sentenças é peculiar a Qumran e
21
Para alguns estudiosos do assunto, essa é uma rara passagem bíblica em que há uma citação aos
essênios. Ao final da parábola do
Administrador Infiel, Jesus diz: “Pois os filhos deste século são mais
prudentes com sua geração do que os filhos da luz”
. Por esse ponto de vista, o termo “filhos deste
século”
foi a designação utilizada por Lucas para representar aqueles que estavam ligados às
comunidades cristãs contemporâneas aos essênios, chamados de
“filhos da luz”.
22
Cf. nota 30.
23
O termo hebraico baruk é comumente vertido como bem-aventurado, bendito, abençoado ou louvado.
24
Pode parecer anacrônica a utilização do termo AT para o período trabalhado aqui, sendo que durante no
período de formação do cristianismo ainda não existia um AT estritamente conciliado. Sabe-se que foi
37
Mateus.
25
A dualidade de Qumran entre luz e trevas expressa em 1QS é vista em Mt em
sua diferenciação entre os dois
“caminhos” (Mt 7:13-14). Em 1QS 3:20-21, o autor fala
sobre “caminhos de luz” e “caminhos de trevas”. A exortação do não-juramento
incentivada por Mateus (5:35-36) também possui antecedentes em Qumran.
A preocupação geral de Mateus em seu Evangelho é a de provar o quanto os
eventos narrados por ele são o cumprimento das expectativas messiânicas anunciadas no
AT. A expressão “para que se cumprisse...” é encontrada diversas vezes (1:22; 2:15;
2:23; 4:14; 5:17,18; 8:17; 12:17; 13:35; 21:4). Sua intenção em ressaltar a legitimidade
de acontecimentos do presente pelas “Escrituras” (21:42; 22:29; 26:56), mostra a
importância que ao querer relacionar seu Evangelho com os livros considerados
sagrados da época. Isso pode fazer-nos pensar que as fontes utilizadas por Mateus não
foram tão abrangentes assim. Porém, não analisando as suas formas de discurso como
um todo, mas apenas pequenos aspectos etimológicos e teológicos, notamos que
indícios de sincretismos morfológicos.
Lucas, quando narra as Bem-Aventuranças, vai além ao acrescentar uma série de
“ais” (6:24-26) contra os “ricos e saciados”. O bendizer dos pobres e o maldizer dos
ricos é também encontrado no sectário livro de Enoch, mostrando que a evolução das
Bem-Aventuranças como descritas por Mateus e Lucas podem ser paralelas à evolução
dos ais.
Em 1956, William Foxwell Albright (1891-1971), renomado arqueólogo e
epigrafista de seus dias, resumiu a questão das analogias entre os sinóticos e os MQ,
abrindo espaço para onde deveria fixar-se o foco das pesquisas:
muitas analogias entre os novos pergaminhos e os Evangelhos
Sinópticos, as epístolas paulinas e os livros restantes do N.T, mas essas
analogias são mais abundantes nas áreas em que os livros do N.T. em
questão se assemelham mais ao Evangelho de João. As analogias entre os
novos pergaminhos e a literatura paulina são quase tão importantes para
nosso propósito quanto as outras, uma vez que tem havido uma tendência
secular de afastar o máximo possível o Evangelho de João das epístolas de
São Paulo. O mesmo dualismo ético aparece em todo o N.T., mas mais uma
vez é expressado com mais força por João e Paulo (ALBRIGHT, 1956:167,
apud FLUSSER, 2000:50).
depois da destruição de Jerusalém (70 d.C.), provavelmente até o final do século I, que realizou-se na
cidade de Jâmnia, ao sul da Palestina, um sínodo que estabeleceu o fechamento do cânon hebraico. A
expressão
Antigo Testamento, em certo ponto aviltada pelo cristianismo, é originária do apóstolo Paulo
(2Cor 3:14). Antes disso, os livros eram chamados apenas por
Escrituras, como visto em algumas
passagens dos Evangelhos (Mt 21:42; Mc 12:24). No entanto, para uma generalização que venha a
auxiliar na compreensão de passagens e livros aqui citados, será utilizado o emprego do termo por diante.
25
O texto traduzido por Émile Puech denominado 4Q525 é um fragmento de obra sapiencial que contém
uma série de
Bem-Aventuranças.
38
Esse comentário nos leva a entender a diferença existente entre a tradição textual
paulina, joanina e dos sinóticos. Tendo em mente que a divisão destas tradições é
necessária, posicionando-as em estratos e estágios diferentes, as possibilidades de se
encontrar analogias entre os livros de Qumran e os escritos do NT se tornam maiores e
mais fidedignas. Como expressado por Albright acima, desde as primeiras publicações
dos MQ até hoje, esse raciocínio apresenta-se como correto.
Após este esboço acerca dos paralelos entre o NT e os MQ, analisando de forma
mais pormenorizada os escritos joaninos e os sinóticos, faz-se necessário observar o
corpus bíblico paulino, que apresenta, tanto quanto o joanino, um grande número de
analogias com os escritos de Qumran.
Se nos escritos paulinos a idéia de
redenção não girasse em torno da e do
Cristo (Gl 2:16), seria difícil provar que trechos de suas epístolas não teriam tido
influências dos essênios. Essa diferença existe graças à escatologia cristã do século I
estar um capítulo à frente da qumrânica; pois nesta, ainda se aguardava a vinda de um
mashiah (Messias), fato já ocorrido para as comunidades cristãs.
Uma das sinas de Paulo que podem ser testificadas em suas epístolas é a da
natureza pecadora dos indivíduos e sua capacidade de obter o perdão não por sua
própria vontade, mas sim pela misericórdia divina que o foi concedida. Este é o
resultado alcançado devido à condição decaída da humanidade, “pois todos pecaram e
estão privados da graça de Deus” (Rm 3:23). Essa idéia paulina é encontrada nos livros
sectários de Qumran. Alguns dos autores dos manuscritos compartilham desse mesmo
sentimento de insignificância frente ao Altíssimo ou aos Seus poderes. Em um hino da
Regra da Comunidade pode-se perceber isso:
Porém eu pertenço à humanidade ímpia, à assembléia da carne iníqua;
minhas faltas, minhas transgressões, meus pecados, com as perversões de
meu coração, pertencem à assembléia dos vermes e dos que andam nas
trevas. Pois ao homem (não lhe pertence) o seu caminho, nem ao ser
humano o afirmar seu passo; posto que o juízo (pertence) a Deus... Quanto a
mim, se eu tropeço, as misericórdias de Deus serão minha salvação para
sempre; se eu caio em pecado de carne, na justiça de Deus, que permanece
eternamente, estará o meu juízo (1QS 11:9-12).
Nos Hinos de Ações de Graças (1QH), pode-se encontrar em diversas passagens
o mesmo ponto de vista descrito em 1QS 11:9-12 e em Paulo, como por exemplo:
39
Quem é justo diante de ti quando é julgado?
Nenhum espírito pode responder à tua repreensão,
Ninguém pode manter-se diante de tua ira.
A todos os filhos de tua verdade
Os levas ao perdão em tua presença,
Os purificas de seus pecados
Pela grandeza de tua bondade
E na abundância de tua misericórdia,
Para faze-los estar em tua presença
Por todo o sempre.
Porque é um Deus eterno
E todos os teus caminhos permanecem de eternidade em eternidade.
E não há ninguém fora de ti
Que é o homem vazio, dono de vaidade, para compreender tuas grandes
obras maravilhosas? (1QH 15:28-32).
26
A justificação em Paulo recorre aos mesmos argumentos apresentados pelos
autores dos MQ. A sensibilidade dos poetas qumrânicos ante a pecaminosidade humana
produz um arcabouço teológico complexo para a explicação dessa situação. Não é de se
estranhar que se encontre dentro dessas explicações a dualidade necessária para se
entender o processo de resignação da condição pecaminosa. Enquanto de um lado a
impiedade, a transgressão, a perversão, o pecado; do outro temos a purificação e a
misericórdia.
A dualidade encontrada em João entre espírito/carne, luz/trevas,
verdade/falsidade etc., é também corrente em Paulo. Um texto paulino sempre
lembrado que expressa essa dualidade qumrânica é o de 2Cor 6:14-7:1; note como o
autor trabalha com esse dualismo:
Não formeis parelha incoerente com os incrédulos. Que afinidade pode
haver entre a justiça e a impiedade? Que comunhão pode haver entre a luz e
as trevas? Que acordo entre Cristo e Beliar? Que relação entre o fiel e o
incrédulo? Que há de comum entre o templo de Deus e os ídolos? Ora, nós é
que somos o templo do Deus vivo, como disse o próprio Deus: Em meio a
eles habitarei e caminharei, serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
Portanto, saí do meio de tal gente, e afastai-vos, diz o Senhor. Não toques o
que seja impuro, e eu vos acolherei. Serei para vós um pai, e serei para mim
filhos e filhas, diz o Senhor todo-poderoso. Caríssimos, de posse de tais
promessas purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito. E
levemos a termo a nossa santificação no temor de Deus.
O dualismo como encontrado nos textos de 1QS não possui semelhanças apenas
com os escritos joaninos. Como podemos ver, o dualismo paulino também apresenta
características muito próximas.
26
Hino trabalhado na íntegra na p. 62, seguindo a tradução de Norbert Lohfink.
40
A literatura atribuída a Paulo compõe os escritos mais antigos do NT. Além
disso, as comunidades a que Paulo escreve são todas fora da Judéia. Essa é uma análise
um tanto esquecida pelos pesquisadores, uma vez que se limitam por vezes a fazer uma
análise exegética das terminologias, porém restringem o contexto histórico a poucos
comentários. Mais à frente, trabalharei pormenorizadamente com a literatura hinária
produzida em Qumran e sua relação com a teologia e hinos paulinos, buscando explicar
os limites entre as contribuições dadas pela teologia e eclesiologia essênia ao apóstolo
Paulo.
Por fim, pode-se questionar: não seriam estes e outros paralelos encontrados
entre os MQ e o NT oriundos de uma fonte comum que contasse com essas
semelhanças? Presume-se que, em muitos casos, o que de fato serviu como base aos
escritos do NT foram composições extraídas diretamente dos livros que viriam a
compor o AT no século I. De forma resumida, pode-se dizer que essas influências
existem. No entanto, os documentos do mar Morto apresentam-se como um prisma mais
fidedigno para compreender certas passagens. O exemplo usado acima dos
“filhos da
luz” (benei ’or) pode expressar bem isso. No AT, a expressão “filhos de ...” ocorre
diversas vezes para representar ora um grupo étnico ou uma classe (e.g. “filhos do
Oriente” [benei qédem], Is 11:14; “filhos de Israel” [benei Isra’el], Jl 4:16; “filhos dos
profetas” [benei ha-nabî’îm], 1Rs 20:35), ora um grupo possuidor de uma função
dentro da teologia judaica (e.g. “filhos da humanidade” [benei ’adam], Dn 10:16, cf.
SCHÖKEL, 2004:107). A polarização desse mundo teológico em luz e trevas (ou
escuridão) também é encontrada no AT, sobretudo nos escritos proféticos (e.g. Is 5:20;
9:1; 45:7; Jr 13:16; Jl 2:2). Essas nomenclaturas, por sua vez, nunca são combinadas no
AT. A idéia de grupo ou classe representada pela expressão “filhos de ...”, com o
simbolismo dual de luz e trevas é encontrada em Qumran e no NT. Na literatura
judaica, anterior e posterior a 70 d.C., esses termos não são encontrados em conjunto.
A atribuição ao AT como fonte única aos escritos cristãos não é correta. Os
escritos cristãos apresentavam-se como “continuadores” e “confirmadores” da
mensagem do AT (muitas vezes com atribuições falsas e equivocadas), o que pode dar a
entender que o AT seria a única fonte para a redação dos escritos cristãos.
O contexto histórico em que os livros do NT foram escritos foi completamente
diferente do vivido pelos autores do AT. A influência da língua e cultura gregas se
fazia presente muito tempo no Mundo Mediterrâneo, incluindo a Palestina desde a
época dos Macabeus. A incorporação da língua grega trouxe consigo uma tradição
41
filosófica e literária nunca utilizadas na Bíblia Hebraica. Gêneros como a biografia, a
prosa e a utilização de cartas – comuns na literatura e práticas greco-romanas da época –
criaram novas fórmulas quando unidas à literatura do Oriente Próximo. O resultado
disso vê-se no conteúdo do NT, que na verdade abarca com uma mescla de formas
literárias de diversas influências.
Em várias passagens do NT podemos perceber a influência de diversas correntes
de pensamento e ideologias sectárias. Uma delas foi o gnosticismo. Mais do que uma
forma de pensamento sectário, o gnosticismo compunha-se de elementos sincréticos
unidos a diversas formas de manifestações religiosas durante os primeiros séculos
cristãos. O Evangelho de João foi durante muito tempo considerado como um ótimo
exemplo. Na sentença “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8:32), se
encontra o princípio da busca da
gnose, próprio das seitas gnósticas do século I. Este
Evangelho, até pouco antes da descoberta dos MQ, era tido por pesquisadores como um
livro procedente de uma tradição cristã-gnóstica, conseguindo sobreviver como
canônico ao contrário de muitos outros escritos gnósticos que foram reprimidos,
proibidos e destruídos pelos Pais da Igreja. Felizmente, em uma descoberta quase tão
importante quanto a dos MMM, na cidade egípcia de Nag Hammadi, camponeses
descobriram no ano de 1945 uma série de jarros de barro que continham exemplares de
livros gnósticos em língua copta que servem desde então como auxílio para a
compreensão de como era o pensamento gnóstico. No caso dos escritos joaninos,
considerados durante muito tempo como uma junção da tradição gnóstica com a cristã,
percebeu-se que havia mais similaridades com os MQ do que com os escritos gnósticos,
caindo por terra as proposições iniciais sobre seus livros.
Além de grupos gnósticos, mas em menor escala, havia grupos ascetas que
certamente exerceram grande influência sobre pensadores religiosos tanto antes do
nascimento do cristianismo como durante o período em que este começou a dar seus
primeiros passos. Nesse aspecto, João Batista também é considerado um bom exemplo.
Sem dúvida, ele foi um indivíduo de grande destaque que influenciou comunidades
religiosas durante seus dias. Um dos casos mais conhecidos que envolve seu nome até
os dias de hoje é o dos mandeanos. Corrente religiosa considerada gnóstica que
sobrevive atualmente em pequenas comunidades no I e Iraque (e parcamente em
outros lugares do mundo), os mandeanos acreditam que João Batista era o verdadeiro
Messias. A seita se opunha aos cristãos no século I, por considerar Jesus como um
“falso profeta” que perverteu os ensinamentos de Batista. Seus preceitos centrais
42
transitam pelo puro dualismo, além da prática do batismo em água corrente como feita
por Batista e atestada nos Evangelhos.
Todo esse contexto histórico que engloba movimentações entre grupos sociais
na Palestina do século I, juntamente com os aspectos de sincretismo cultural, devem ser
levados em consideração para que se possa entender que tipo de literatura foi criada
como resultado dessa amálgama. As contribuições dadas pelas descobertas em Qumran
após 1947, vieram a dar maior compreensão de como a literatura do NT foi composta.
Muitas terminologias que se pensavam oriundas de outras fontes como da prosa grega
ou do pensamento gnóstico, desvelaram-se provenientes dos habitantes da seita do mar
Morto. Esse material somado a contextualização histórica deste período nos ajuda a
compreender que as influências sobre a literatura cristã vieram de fontes múltiplas,
servindo os MQ para identificar quais estratos e estágios do cristianismo se
aproveitaram dos ideais sectários essênios.
43
Então exultarão juntos os céus e a terra.
Que se regozijem, pois, todas as estrelas do crepúsculo.
Alegra-te Judá, alegra-te!
Alegra-te e transborda de gozo!
Celebra tuas festas, cumpre teus votos,
porque não há em teu interior nenhum Belial.
Levanta tua mão, reforça tua destra!
Eis que teus inimigos perecerão
e serão dispersos todos os que operam o mal.
E tu, Senhor, para sempre!
Tua glória será para todo o sempre!
4QSalmos (4Q88 [4QPs
f
]) 10:5-14
44
2. OS HINOS DE QUMRAN E AS EPISTOLAS PAULINAS
Desde as primeiras interpretações dos MQ, estudiosos mais conscientes e
coerentes identificaram que as analogias com o NT não ocorriam de forma completa em
todo o corpus bíblico canônico cristão. Estes estudiosos procuraram identificar quais
eram os estratos do cristianismo novel que possuíam as maiores analogias com os
escritos qumrânicos (cf. FLUSSER, 2000:50-51). O que se pôde notar foi que, entre os
estratos que obtiveram maior influência, um dos mais destacados é o paulino.
Em Paulo, pode-se perceber que, diferentemente de outros escritos do NT que
apresentam semelhanças questionáveis ou possivelmente até desconexas, existe um
sistema teológico e terminológico que apresenta semelhanças consideráveis com a
literatura sectária. Algumas dessas são perceptíveis nos escritos hinários dos MQ.
Portanto, podemos presumir que essa literatura tenha servido de veículo para que Paulo
pudesse açambarcar com conceitos da teologia de Qumran.
2.1 A MÚSICA NO VELHO E NO NOVO TESTAMENTO
Para que se compreenda de maneira clara a literatura hinária e a música do NT,
não se deve esquecer o quanto esta foi receptora das influências judaicas. O AT traz
inúmeros exemplos nesse tocante que podem servir de base para recriar-se tal ambiente.
A música
27
judaica no Israel Antigo, mais do que uma manifestação de louvor, era
também uma forma de educar religiosamente uma população que possuía uma cultura
oral muito forte (cf. Dt 6:6-7). Em um ambiente onde apenas uma pequena porcentagem
da população possuía o conhecimento da leitura, uma das melhores maneiras de se
educar o povo no aspecto religioso e fixar ideais nacionais como parte da consciência
coletiva era através da música.
27
Em diante, pode-se perceber que os termos “música”, “canção”, “cântico” e “hino”, serão utilizados
praticamente todas às vezes como sinônimos. Independentemente da semântica dos termos, o objetivo é a
relação que possuíam no culto judaico e cristão primevo. Sempre quando apresentado no AT ou nas
poucas passagens no NT um registro referente à música, existia por trás disso um texto hinário utilizado
no culto. Por isso, estes termos chegam a se confundir ao fazer uma análise “grosso modo” de um
pequeno processo ritualístico que se iniciava com um texto escrito e terminava com diversas formas de
cantoria. No verbete
músicado Dicionário Ilustrado das Religiões (2001), o termo está associado a
canto, utilizado como um elemento importante nas cerimônias religiosas de muitas culturas”. Na Bíblia
Hebraica são várias as passagens que fazem alusão a estes termos como que relacionados. O verbete
hino
deste mesmo dicionário define-o como um cântico de festa e louvor”. A íntima relação entre estes
termos na hora de sua aplicação resulta na não-necessidade de diferenciação etimológica em seu uso neste
trabalho.
45
Na maioria dos casos, as referências à música no AT estão relacionadas ao culto
litúrgico, que eram subdivididos em festividades locais, festas nacionais, culto do
Templo, cultos particulares etc. Nestas festividades de caráter religioso entoavam-se
cânticos de
marchas (Nm 10:35-36, esse, de caráter guerreiro, provavelmente fazia
parte de um ritual da Arca nos combates), de colheita (Ex 23:16, uma alusão clara de
uma festividade relacionada à colheita), cânticos de
vitória (Ex 15:1-18; Jz 5:1-31),
normalmente cantados em eventos da qual participavam ampla gama da população de
Israel. Outros textos do AT, mesmo não sendo hinos como os acima citados, fazem
alusão à música em Israel mencionando o uso de instrumentos musicais, como Gn 4:21
(lira e charamela), 31:27 (tamborins e lira), Is 24:8 (tambores e cítaras) etc.
Os registros relacionados à música no AT não se limitam apenas à música sacra,
mas abrangem também referências à música secular. Os cantos seculares, assim como
no caso dos sacros, eram direcionados a situações diversas. Muito provavelmente, o
cântico da vinha (5:1-7) e o da prostituta (23:16) registrados em Isaías, parecem ser
exemplos de hinos seculares. O Cântico dos Cânticos, um livro completo de poesia
amorosa profana que ganhou canonicidade, chegou a tal ponto graças a leitores
posteriores que o apresentaram como um texto religioso, atribuindo-o ao rei Salomão
(cf. FOX, 1993: 88).
Os exemplos citados acima são alguns dos poucos em que se pode afirmar uma
divisão clara entre cânticos sagrados e profanos. Em virtude da esfera religiosa ser
demasiadamente ampla e alcançar extremos da vida social e particular da população (e
dos poetas), é difícil determinar com segurança se a intenção do texto tende a ser sacra
ou profana. O que ajuda muito nesse aspecto são as diferenciações quanto ao conteúdo
dos hinos, se de fato harmonizam-se com grande parte dos escritos considerados
sagrados do período no que diz respeito a contradições com textos de maior autoridade.
A música dedicada à liturgia, por sua vez, era muito mais profunda que a
profana. Após a construção do Primeiro Templo de Jerusalém (séc. XI a.C.), a música
sacra passa a possuir um alto grau de organização. O relato de 1Cr 15:17-22, retrata a
grande virada ocorrida na tradição sacro-musical de Israel. A responsabilidade de arcar
com esta mudança coube aos levitas, profissionais de ótima conduta pessoal, com idade
apropriada (1Cr 23:3,24) e possuidores de boa experiência instrumental (1Cr 23:5). Tão
rico foi esse período de mudança que a terceira parte do livro de Salmos é atribuída a
Asaf, que foi o criador de uma escola de cantores do Templo chamada de “Filhos de
46
Asaf” (1Cr 25:1). O papel dos levitas foi extremamente importante para o
desenvolvimento da música e por sua propagação entre a população israelita.
A continuidade da tradição bem estabelecida dependia principalmente de
achar um método para a melhor transmissão possível da prática musical
corrente para gerações vindouras. Os cantores levitas, os guardiões
escolhidos da tradição, foram compelidos a inventar e a desenvolver mais
amplamente tal método (SENDREY, 1964:112, apud FREDERICO,
2001:78).
Com o advento das sinagogas (a partir do exílio babilônico, séc. VI a.C.), a
música sacramental assume uma nova forma. Passa a não necessitar dos instrumentos
musicais como antes; por outro lado, desenvolve-se no caráter lírico, ambientado por
uma liturgia de tipo doméstico. Ao contrário da música instrumental, a música vocal
recitativa de preces e textos sagrados ganhou mais espaço e pôde se desenvolver em
detrimento dessa nova conjuntura espacial. A inculcação a partir de então, dava-se
através de formas musicais mais particularizadas, como a cantilena, também conhecida
como salmodia ou recitativo; uma espécie de “ladainha” como conhecemos
popularmente.
Os textos bíblicos do AT não trazem detalhes tão específicos sobre como era
realizado o cerimonial envolvendo o canto. No entanto, o que se pode extrair é
suficiente para saber que a prática musical, envolvendo material hinário, era comum à
sociedade judaica em todas as esferas sociais.
O livro bíblico que reúne o maior material relacionado à liturgia é o livro de
Salmos, conhecido no texto hebraico por sefer tehillîm. Neste livro pode-se encontrar
diversos gêneros literários como hinos, súplicas, ações de graças, e outros que pairam
entre esses gêneros. Estes escritos eram utilizados de forma coletiva ou individual, de
acordo com o momento em que o indivíduo se encontrava (e.g. cântico das subidas,
caps. 120-134). Todavia, não se pode provar que todos estes salmos eram utilizados
liturgicamente, ou que de fato fossem cantados nestes momentos (cf. ALTER, 1997:
266).
O uso dos tehillîm na liturgia judaica foi uma constante até a destruição do
Segundo Templo em 70 d.C., inclusive sendo usado por comunidades cristãs até este
período (cf. FREDERICO, 2001:85). Através deles, o fiel era exortado:
celebrai a Iahweh com harpa,
tocai-lhe a lira de dez cordas,
47
cantai-lhe um cântico novo,
cantai-lhe com arte na hora da ovação! (33:2-3).
Outros salmos ressaltam a importância de louvar a Deus (encarada como ordem
divina pela letra da Lei,
e.g. 81:3-5), inclusive com a utilização de instrumentos (43:4;
81:2-4; 92:1-3; 98:4-6; 150:3-6 etc.).
No NT não temos a mesma possibilidade de descrever como se davam os
cerimoniais cristãos (ao menos das comunidades descritas no NT) com a mesma
eficácia com que podemos relatar sobre o judaísmo no AT. A falta de informações
concretas sobre a organização eclesial não permite que saibamos como a música era
utilizada pelas comunidades cristãs.
28
Apenas com referências e citações indiretas pode-
se recriar uma parca idéia de como a música era usada nas igrejas.
Instrumentos musicais também são citados no NT, mas apenas em ilustrações e
não em uso pelos concrentes (e.g., Mt 6:2; 11:17; Lc 7:32; 1Cor 13:1; 14:7-8; Ap 5:8).
A renúncia a instrumentos musicais ocorreu pelo motivo destes serem utilizados em
festividades pagãs. Para que houvesse a pureza no culto cristão, o banimento dos
instrumentos musicais tinha de acontecer (cf. FREDERICO, 2001:94).
Em outras passagens, por sua vez – inclusive nos Evangelhos – , acham-se
citações literais do uso da música (Mt 9:23; Lc 15:25). Uma citação direta, a descrita em
Mt 26:30 (=Mc 14:26), insta que o próprio Jesus participou de um canto hinário após
ser realizada a Última Ceia. Passagens como estas, porém, não provam sobre seu uso já
por “cristãos”.
29
No fundo, mostram ao menos que os redatores sabiam do que estavam
falando.
Os textos encontrados nos Evangelhos relatam sobre o primeiro estágio cristão,
o da pregação de Jesus. Embora sejam livros cristãos canônicos, os Evangelhos não
fazem citações do uso de hinos por parte de comunidades cristãs emergentes ou mesmo
por cristãos convertidos (analisando em um grau menor). Pelo que se sabe, os
Evangelhos foram redigidos no segundo estágio do cristianismo,
30
mas ainda assim,
28
O que é razoável de se pensar, que essas comunidades ainda não possuíam uma desvinculação
acentuada com o judaísmo.
29
O testemunho descrito em At 11:26, mostra a primeira vez que os seguidores de Jesus recebem o título
de “cristãos”. Em outra passagem, At 24:5, apresenta os seguidores de Jesus como pertencentes à seita
dos “nazarenos”, título que provavelmente muito era usado para designá-los. Essa é uma prova
bíblica concreta sobre o início do lento processo de desvinculação entre cristianismo e judaísmo.
30
Deve-se levar em consideração a possível “Fonte Q”, que supostamente serviu de base para a redação
do Evangelho de Marcos, e daí (ou até) aos outros sinóticos. Segundo Woodruff, a Fonte Q começou a ser
48
discorrem sobre acontecimentos do primeiro estágio, refletindo um ambiente puramente
judaico.
O ideal, nesta busca por indícios que apontem para a manutenção da prática
musical nas comunidades cristãs, é investigar os textos que refletem estágios
posteriores. Isso, no entanto, torna ainda mais reduzido o número de referências
encontradas nos textos canônicos, embora estas escassas referências sejam
extremamente significativas para compreender seu uso entre os cristãos.
Essas comunidades continuaram a fazer uso de certos elementos do culto
judaico, porém; a ênfase do culto cristão era mais voltada para a eucaristia, de cunho
doméstico, ao contrário da realizada no Templo (e em menor grau nas sinagogas) com
suas cerimônias, rituais e organização eclesial (cf. FREDERICO, 2001:84).
A “distância” entre a sinagoga e as comunidades cristãs ocorreu paulatinamente.
Cristãos ainda utilizavam o Templo para prestação do culto (At 3:1; 2:46). À medida
que elementos novos foram sendo adotados pelas comunidades cristãs, o tipo de culto
cristão tomou um corpo maior e mais diferenciado.
As primeiras comunidades cristãs eram incentivadas a louvar a Deus com
salmos, hinos, e cânticos espirituais” (Ef 5:19; Cl 3:16). Ambos os textos são seguidos
de expressões que são peculiares ao modo de orar judaico, utilizadas em orações mais
antigas e contemporâneas. Em Ef, o autor segue com uma berakah (“bendição” ou
“ação de graças”, v. 20), assim como em Cl (v. 17). Discute-se há muito sobre a autoria
destas duas epístolas, se foram ou não compostas por Paulo. Na maioria dos casos elas
são atribuídas a seguidores da teologia paulina (após sua morte) ou a seus círculos (cf.
PIXLEY, 2002:112 n. 42/43; GOULDER, 1997:515; SCHNELLE, 1999:24-39).
31
Independente disso, os dois textos representam um estágio em que as comunidades
dispunham da orientação sobre como se devia prestar louvor a Deus. Por sua
importância, com uma forma clara de admoestação, estes são textos sempre lembrados
atualmente na liturgia de algumas comunidades religiosas.
Em outras raras passagens do NT, pode-se ver mais do que uma citação à música
e sim uma orientação desferida de forma imperativa por parte do autor. Isso acontece no
caso da epístola a Tiago, quando diz: “Está alguém alegre? Cante” (5:13).
redigida por um grupo cristão na Síria Oriental na década de 40 d.C. Esta comunidade, segundo o autor,
teve contato com o apóstolo Paulo antes da compilação de Q, já o iniciando doutrinariamente (cf.
1995:81, n. 22).
31
As referências à música citadas em livros considerados estritamente paulinos ou citações a Paulo e o
uso da música por sua parte são trabalhadas à frente.
49
Estes são casos em que ainda consegue-se ver citações claras ao uso da música e
de hinos. Outras referências encontradas em algumas partes são mais sutis. Mesmo
assim, ajudam a reforçar a idéia de que a prática hinária era extensiva nas comunidades
cristãs, embora haja grande dificuldade de se reconstruir esse ambiente e estabelecer
parâmetros entre essas citações. Um caso em que esse tipo de caminho é trilhado é o
efetuado por Carlos Mesters. Fazendo um apanhado de indícios no livro de Atos
importante por trazer descrições de algumas das primeiras comunidades cristãs ele
ajuda-nos a visualizar que as referências à oração, música, hinódia; são ainda maiores
do que se pode pensar (2003:151-153, n. 45). Dessa maneira, ele chega à convincente
conclusão de que
“os cristãos formavam comunidades orantes, dedicadas à Palavra e à
Oração”
(2003:153, n. 45).
2.2 QUMRAN E A MÚSICA: HERANÇA E CRIAÇÃO
Foi com o capital simbólico do ambiente judaico, junto com toda sua
religiosidade, cultura, problemas internos e pressões externas que nasceu a comunidade
de Qumran. Com a ajuda das evidências arqueológicas e literárias, a maior parte dos
especialistas no assunto situa a origem da seita às margens do mar Morto entre meados
do século II a.C., e seu fim, muito provavelmente em 68 d.C. O contexto histórico
relacionado ao nascimento da comunidade remete ao período do sacerdócio exercido
por Jônatas Macabeu (152-142 a.C.), que era de família asmoneana, rompendo com a
tradição secular de direção zadoquita. Apesar da restauração da autonomia de Israel
frente ao governo dos selêucidas da Síria e os esforços macabeus em rechaçar a cultura
helenística, valores helenos foram adotados pela população judaica, sobretudo entre as
classes superiores (cf. MOMIGLIANO, 1991, passim).
Dentro desse contexto (o de uma população que não se dedica de forma plena à
observância da Lei
32
e com um sacerdócio exercido de forma “irregular”), um grupo de
judeus insatisfeitos com tal situação inviabilizada sua coabitação com o restante da
população judaica maculada. Por fim, a solução encontrada foi a de saírem desta terra e
32
Evidentemente que não se deve analisar a sociedade judaica do período como inteiramente uniforme. O
problema envolvendo o Mestre da Justiça não foi oriundo da desviança da inteira sociedade israelita, mas
sim da querela ocorrida entre ele que se considerava no direito legal do exercício sacerdócio e o
ocupante (ou “ocupantes”, segundo o que acredita Martinez, graças à chamada “Hipótese de Groningen”,
que acomoda a cronologia junto das provas arqueológicas e textuais acerca de Qumran; cf. MARTÍNEZ,
1995:41) ilegítimo desse cargo.
50
retomarem a “adoração verdadeira” em um outro lugar, suscitando um “Mestre da
Justiça”
(CD 1:11) para guiá-los nesse novo caminho.
Este Mestre da Justiça foi um indivíduo histórico. Embora não se consiga
identifica-lo verazmente com alguma figura de seu período,
33
é certo que ele foi um
homem de grande estatura moral e espiritual em seus caóticos dias.
Aqueles que seguiram o Mestre da Justiça até o deserto levaram consigo o modo
de vida que possuíam até então, com todos os costumes relacionados à vida religiosa e
secular que desfrutavam os judeus do ambiente palestino.
Após a fixação do grupo em Qumran, percebe-se através de seus escritos uma
mudança significativa no modo de vida de seus pactuantes quando comparada à vida
anterior que estes possuíam em seu antigo ambiente. Essas mudanças são facilmente
perceptíveis em suas interpretações das Escrituras. Desenvolveram uma teologia
adaptada às situações enfrentadas pela comunidade, com uma halakah (i.e., o corpo de
leis religiosas judaicas) que passou a abranger ainda mais aspectos da vida individual e
coletiva dos adeptos. Apesar destas profundas modificações na vida comunal, regida por
um microcosmo com “desvios” de uma estrutura social maior e mais complexa que fora
abdicada, os alicerces sociais e o capital cultural individual e coletivo dos qumranitas
estavam calcados na tradição proveniente do ambiente outrora habitado.
Um destes alicerces à qual a comunidade do mar Morto estava subordinada
referia-se à música, salmos, orações e fórmulas de louvor como a doxologia.
34
Em
Qumran, a descoberta de um rico material poético foi esclarecedora para se confirmar
tal afirmativa. Os MQ que abrangem conteúdo sapiencial em forma hinária eram
amplamente usados nos cerimoniais da comunidade.
As provas que possuímos disso provêm do próprio material hinário. Note quão
importante para se entender isso são os versículos descritos em 1QM 19:
23. Então cantarei com a harpa da salvação,
a cítara da alegria,
o pandeiro do gozo
33
Salvo se seguirmos as interpretações “religiosas” já citadas (p.28).
34
A palavra grega doxa, que significa glória, representa um tipo de exaltação a alguém ou geralmente a
Deus. A doxologia apresenta-se como uma forma litúrgica de louvor, geralmente ritmada. No AT, são
muitas as passagens que apresentam doxologias, sendo que um grande número destas foi utilizada pelo
cristianismo nascente. Um dos vários exemplos de doxologia nos escritos cristãos está em Ef 1:3, que diz:
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo...”. A doxologia pode possuir várias temáticas, no
caso do cristianismo, encontramos temas como a cristologia e o trinitarismo (cf. Ef 1:3-14) inseridos em
alguns textos. No caso do AT, podemos citar algumas aparições semelhantes dos Salmos, como
“Bendito
seja o Senhor, o Deus de Israel desde agora e para sempre! Amém! Amém!”
(72:18; 89:53; 106:48).
51
e a flauta do louvor,
sem cessar.
24. E quem entre tuas criaturas
pode contar toda a tua glória?
Pela boca de todos teu nome é louvado,
25. por todo o sempre te bendizem segundo seu conhecimento,
dia após dia proclamarão com uma voz gozosa.
33. (...) Puseste na boca de teu servo
ações de graças, louvores,
34. súplicas, e a resposta da língua.
Estas são evidentes indicativas de que a prática hinária era parte fundamental
dentro da liturgia qumrânica. O referencial musical como feito nas sinagogas da
Palestina não foi abdicado por Qumran.
A utilização de instrumentos musicais também é citada nesse e em outros textos,
embora saber se de fato eram usados é difícil afirmar. Existe a possibilidade de que
estes fossem apenas citados em sentido figurado (levando em consideração que o culto
era aberto somente a iniciados e efetuado dentro de um ambiente reduzido) como em
algumas passagens referentes à música encontradas no NT.
Apesar de ser um material rico, é difícil tentar recriar como se dava o cerimonial
em que os textos hinários eram recitados utilizando-se apenas dos próprios textos
problema similar ao enfrentado na tentativa de se recriar o ambiente litúrgico cristão. Os
manuscritos que nos ajudam a compreender como os hinos eram utilizados nas
cerimônias são principalmente o 1QS e o CD, textos normativos da comunidade. Em
uma espécie de apêndice de 1QS, a Regra da Congregação (=1QSa e 1Q28a), a
descrição de como se dava uma refeição cerimonial:
E quando se reunirem à mesa da comunidade ou para beber o mosto, e
estiver preparada a mesa da comunidade e misturado o mosto para beber,
que ninguém estenda sua mão à primícia do pão e do mosto antes do
sacerdote, pois ele é quem bendiz a primícia do pão e do mosto e estende
sua mão para o pão diante deles. (...) E depois abençoará toda a congregação
da comunidade, cada qual de acordo com sua dignidade. E segundo esta
norma atuarão em cada refeição, quando se reunirem ao menos dez homens
(2:17-22).
A maneira clara com que o autor descreve o cerimonial dá-nos luz para entender
como eram utilizados os textos litúrgicos. Outros indícios (não tão transparentes) podem
ser encontrados nos livros jurídicos que nos ajudam a compreender seu uso. As críticas
desferidas pelos autores de Qumran contra Israel nos ajudam a refazer esse quadro. Por
exemplo, no CD 3:12-15, o autor condena Israel por “seus sábados santos e suas
festividades(certamente por considerá-los desviados da Lei) e em 1QS 1:13-15 faz-se
52
um apelo para a importância das festividades não se realizarem em outras datas (por
serem taxadas como “erradas” cronologicamente, devido ao uso de um calendário
diferente em Qumran;
35
e pela maculação da inteira sociedade israelita).
As festividades que eram realizadas em Israel tinham a música como uma de
suas principais manifestações. Os textos hinários encontrados entre os MQ são
exemplos de que estas festividades também existiam entre os sectários.
No calendário de Qumran figuravam festividades como a das Semanas, a
Páscoa, o Kippur, a festa dos Tabernáculos, entre outras.
36
Mesmo sendo uma
comunidade separada, com um calendário diferenciado, possuíam um esquema
particular de festas: rituais de Renovação da Aliança, abluções e refeições comunais;
todos precedidos por cânticos de origem sectária. Isso prova que os hinos eram usados
de forma corrente na comunidade de Qumran.
É bastante complicado saber sobre a função destes hinos dentro da comunidade.
Podemos notar que uma parte destes era diretamente dedicada ao culto litúrgico
comunitário. Por exemplo, com uma leitura atenta, percebemos que o hino 21 de 1QH
certamente refere-se à Renovação da Aliança, enquanto o 22 era utilizado quando da
entrada de um novo convertido à comunidade. Entretanto, outros hinos, aqueles que se
apresentam claramente como fruto de elucubrações sapienciais particulares dos poetas
qumrânicos, têm probabilidade maior de não terem sido utilizados no culto comunitário.
Segundo Martínez, mesmo a divisão entre os hinos que são particulares ou comunitários
é difícil conceber (cf. MARTÍNEZ, 1994:347). Embora isso seja um fato, a maior parte
dos estudiosos prefere acreditar que todos os hinos eram utilizados nos cerimoniais,
que abarcavam um conteúdo comum para a comunidade.
Sobre a função teológica deste material hinário, pode-se dizer que tinham
importância próxima a algo místico, em que era reconstruído um modelo celeste de
adoração dentro da comunidade na hora da comunhão, cujos hinos tinham uma função
especial dentro desse ritual (cf. SMARGIASSE, 2003:10-11). Uma espécie de “êxtase”
espiritual descreveria a situação dos concrentes no momento da reunião. Não algo
próximo aos ritos ditos “primitivos” normalmente usados como exemplo, mas uma
experiência “racional” e regrada que os levava à ascensão espiritual. Seria difícil de ser
35
A ênfase nessa questão dava-se graças à Qumran se utilizar de um calendário solar, diferentemente de
Jerusalém que possuía um calendário lunar (cf. MARTÍNES, 1996:77).
36
Essas festividades correspondiam às realizadas em Jerusalém, salvo na questão cronológica. Qumran,
por sua vez, ampliou ainda mais o leque de festividades. Essas estavam ligadas às novas situações que
passaram a existir a partir da fundação da comunidade. No Rolo do Templo 13:8-30:2, uma série de
festividades descritas que são particulares a Qumran.
53
tão diferente disso uma vez que as práticas que conheciam remetiam indubitavelmente à
forma como o culto era feito em Israel, de forma organizada, tanto no Templo quanto
nas sinagogas.
Será que essa literatura hinária redigida em Qumran restringiu-se apenas à
comunidade do mar Morto? Antes de responder tal questão, é importante relevar a
datação dos manuscritos. Apesar de não se chegar a uma datação exata de composição
dos hinos de Qumran devido a falta de dados para isso, os estudiosos do assunto
acreditam, em sua maioria, que durante todo o tempo em que a comunidade esteve
assentada no
Khirbet (c. 150 a.C.-68 d.C.) houve a redação de hinos. É possível também
que alguns hinos de composição anterior a esse período tenham migrado com os
pactuantes para o assentamento, sendo a partir daí acrescidos. No entanto, é certo que a
maioria é de elaboração qumrânica, tendo por base sua teologia, exames de carbono 14
e datação paleográfica.
A hipótese de textos hinários criados em Qumran terem transpassado seus
limites comunais é pouco discutida entre os especialistas, mesmo dos mais renomados.
No máximo, quando alguns são obrigados a falar da multiplicidade do movimento
essênio, discutem brevemente se Qumran na verdade foi “o” ou “um” centro essênio de
sua época. Soma-se a isso a seguinte questão: assumido que o movimento tinha uma
amplitude mais abrangente, a dispersão dos textos certamente ocorreria com facilidade
muito maior. O fato de Qumran não ser o único lugar em que habitavam essênios prova
que sua literatura pode ter alcançado limites geográficos maiores que os imaginados.
Um exemplo disso é o local da primeira descoberta de um MQ fora dos limites de
Qumran. No ano de 1897, em uma guenizá
37
da sinagoga Bem Ezra, no Cairo,
encontrou-se a primeira cópia do Documento de Damasco (CD). Nada se sabia a
respeito desse livro na época. Imaginava-se que havia pertencido a uma seita judaica
medieval. Porém, após a descoberta dos MMM, encontrou-se a origem do documento.
Um outro exemplo, este ainda mais importante por se tratar de um hino, o 4Q400
(4QShirShab), conhecido como Cânticos do Sacrifício Sabático, teve cópias
encontradas nas cavernas 4 e 11 de Qumran, além da surpreendente cópia encontrada
nas escavações em Massada por Yigael Yadin (MasShirShab).
38
Estes são exemplos de
37
Local recôndito dentro de uma sinagoga onde eram armazenados textos sagrados não mais usados.
38
Para mais informações, cf. YADIN, Y. The Masada Fragment of the Qumran Songs of Sabbath
Sacrifice
. IEJ: 34, 1984. pp. 77-88.
54
cópias manuscritas de livros qumrânicos que sobreviveram fora do limites geográficos
em que foram redigidos.
Em um dos poucos comentários que podemos encontrar sobre o pluralismo do
movimento essênio, Martínez ressalta:
As informações sobre os essênios proporcionadas pelas fontes clássicas são
precisas ao descrever o movimento essênio como um movimento de grande
envergadura e de tipo nacional, cujos membros não vivem separados do
resto do judaísmo mas se acham disseminados por todas as cidades do país.
Reduzir o essenismo ao fenômeno marginal que é Qumran supõe deixar sem
explicação o movimento não qumrânico, um fenômeno mais amplo e mais
importante que o fenômeno de Qumran (1994:39).
Não acredito que Qumran tenha sido apenas um “fenômeno marginal” como
expresso pelo autor, ainda porque o local parece ter sediado festividades de maior
envergadura e abriga em seu cemitério corpos femininos (a julgar que os de Qumran
tenham sido celibatários, pelo que parece). Quanto à informação de que o essenismo foi
um movimento mais amplo e diversificado, não objeção. Para Vermes, que uma
importância muito maior ao assentamento, Qumran era um centro onde se reuniam
pactuantes tanto do deserto como das cidades. Era em Qumran que se dava o ritual de
Renovação da Aliança em que se reuniam essênios que inclusive compartilhavam
hábitos diferentes, principalmente no que tange ao celibato (cf. 1995, passim). Esse é
um fato que entra em acordo com as descrições de Josefo e reforça a idéia de
multiplicidade do movimento.
No que concerne à redação dos hinos claramente qumrânicos, alguns eruditos
acreditam que ao menos uma parte (outros acreditam que todos) tenha sido redigida
pelo Mestre da Justiça. Um indício de que isso seja verdadeiro é encontrado em alguns
hinos que se utilizam do pronome pessoal “eu” em um sentido mais estrito, autoritativo;
não como sendo um “eu” representativo de um povo ou uma classe o Novo Israel
figurado pela Nova Aliança , mas sim em um sentido particular, individual. Segue
como exemplo um trecho do hino 20 de 1QH:
E eu, o Instrutor, te conheci, Deus meu,
pelo espírito que me deste,
e escutei fielmente teu segredo maravilhoso
por teu santo espírito.
Abriste em meu interior
o conhecimento do mistério de tua sabedoria,
55
o manancial de teu poder, [...]
39
(vv. 11-13).
É fácil perceber que a disposição do cântico encontra-se em primeira pessoa. O
uso de expressões como “Instrutor”, ajuda a reforçar a idéia de que quem estava em
contato com Deus era alguém que servia como guia ou intérprete dos desígnios divinos
dentro da comunidade, levando a crer que este seria ninguém mais que o Mestre da
Justiça.
Apesar deste ponto de vista ser plausível de crédito, é necessário lembrar que o
estilo de escrita dos hinos está em harmonia com grande parte dos MQ, o que entraria
em desacordo com a idéia da redação direta do Mestre da Justiça; pois, pelo que tudo
indica, ele teve uma vida curta dentro da comunidade, remetendo somente a seus
primórdios.
Diversos estudiosos acreditam que parte destes hinos foi composta por
discípulos do Mestre da Justiça, que deram continuidade à criação dos hinos com o
mesmo estilo o que solucionaria a questão das semelhanças entre os hinos. Estes
seriam hinos comunais, que com o passar do tempo foram sendo amalgamados com os
redigidos pelo Mestre da Justiça (artifício literário que ocorria com freqüência no
Antigo Israel), apesar de parecerem textos superficialmente homogêneos e coesos. Essa
junção entre diversos textos hinários foi paulatinamente atingindo uma forma final (fato
verificado mais facilmente em hinos de maior extensão, como 1QH). Muito
provavelmente as que chegaram até o presente foram também as que se consolidaram
no primeiro século cristão.
40
Infelizmente, com os dados que possuímos acerca dos hinos de Qumran, não se
pode fazer uma construção exata da evolução da vida litúrgica da comunidade, ou
mesmo se ter a certeza de que todo o material poético era destinado à liturgia (uma parte
parece representar manifestações individuais de louvor). No entanto, podemos ter a
certeza de que esse material era utilizado em grande escala entre os comunitários, sendo
muito provavelmente exportado para fora de Qumran.
39
Quando o uso de colchetes dessa maneira em um MQ ([...]), significa que o trecho do manuscrito
não pôde ser traduzido devido a seu mau estado de conservação. Em outras partes, inserido em colchetes,
pode se encontrar uma palavra ou frase (ex.
Sucedeu que quando [se multiplicaram naqueles dias os
filhos dos homens, nasceram-lhes filhas] formosas e bel[as. Os Vigilantes, filhos do céu, viram-nas e
desejaram]
. 4QHenoc 2:2-3). Isso indica que o trecho pôde ser reconstruído seguindo diversos modos
aplicados pelo tradutor.
40
Para uma melhor compreensão da liberdade textual em Qumran, cf. CROSS, F. M. O texto por trás do
texto da Bíblia Hebraica
. In: SHANKS, H. (Org.) Para compreender os Manuscritos do Mar Morto.
Trad. Laura Rumchinsky. RJ: Imago, 1993.
56
Esses argumentos nos fornecem a idéia de que a sociedade judaica dos
conturbados séculos II a.C a I d.C. era muito mais complexa e ao mesmo tempo
entrelaçada do que se pode imaginar. Apesar de Qumran poder ser considerado como
uma espécie de “laboratório” para o estudo de um desenvolvimento religioso e seus
habitantes como sendo sectários
stricto sensu, não a possibilidade de se pensá-los
como completamente desvinculados da sociedade em que viviam. Sua própria oposição
ao “outro” é o que os dava identidade, reconhecimento. Os testemunhos deixados por
seus escritos, as fontes clássicas e os vestígios arqueológicos nos ajudam a compreender
esse quadro – daí a necessidade de enquadrá-los no inteiro contexto social de seu tempo.
2.3 PAULO E A INFLUÊNCIA QUMRÂNICA
Em meio ao desenvolvimento decorrido em Qumran tanto em seu sentido
teológico como na consolidação de suas estruturas sociais, muito provavelmente quando
o scriptorium
41
de Qumran ainda funcionava com esmero; começaram a ser compostas
as primeiras epístolas paulinas.
No ano de 68 d.C., data em que o assentamento foi destruído pelos romanos,
presume-se que Paulo e seus círculos haviam redigido os primeiros escritos que
viriam posteriormente a compor o NT.
42
Judeu zeloso pela Lei (Gl 1:13-14), Paulo foi responsável por perseguições entre
membros das primeiras comunidades cristãs (At 8:3; 9:1-2; 26:10-11). Entre seus feitos
radicais mais conhecidos está o apedrejamento de Estevão (At 7:55-59). Paulo além de
ser judeu, era também cidadão romano desde nascença, o que dava a ele grande
vantagem e status em diversas questões (cf. At 22:28). Seus pais eram judeus, e assim
como ele, pertenciam ao ramo farisaico do judaísmo (At 23:6; Fl 3:5). Paulo era
certamente um cidadão culto, versado mais do que a maioria da população em sua
própria cultura hebraica (Gl 1:14) e grande conhecedor da cultura grega. O domínio dos
dois idiomas, hebraico e grego (é possível que ainda conhecesse o aramaico), é mais um
fator que serve como indício de que ele pode ser pensado como um link entre duas
tradições (At 21:37-40).
41
Sala localizada nas ruínas do complexo de Qumran em que se encontraram tinteiros, uma mesa de
tijolos de cinco metros de comprimento ao lado de três mesas menores e um banco. O lugar sugere – e por
isso o termo é utilizado por especialistas que era nesse local que se faziam as cópias e composições da
comunidade.
42
O escrito cristão mais antigo que compõe o NT é a primeira Epístola aos Tessalonicenses. Sua datação
remete de forma consensual a 51 d.C.
57
tornado “cristão” após o milagroso evento ocorrido em sua ida à cidade de
Damasco (At 9:3-9), Paulo passa a ser a principal figura no desenvolvimento e
expansão do cristianismo no mundo bíblico de seu período. Foram muitas as peripécias
enfrentadas por ele durante os anos de sua pregação (cf. 2Cor 11:23-28), o que mostra
quanto denodo teve em seu relacionamento com as comunidades cristãs relacionadas a
ele.
Além de experiências particulares, Paulo foi contemporâneo de acontecimentos
importantes de seu período em vários campos. Embora sua data de nascimento e morte
sejam incertas, presume-se através das parcas informações bíblicas que ele tenha
nascido aproximadamente no início da era cristã e foi morto anos antes da destruição de
Jerusalém (cf. PIXLEY, 2002:111 n. 42/43). Este foi um período de modificações
intensas para a Palestina tanto no campo social quanto no político, que afetaram
profundamente a vida de toda a população.
Todas essas experiências vivenciadas por Paulo certamente fizeram com que
novas formas de pensar o mundo em sua volta fossem construídas. A necessidade de
novas explicações para sua realidade religiosa é o que fazia com que existisse uma
amálgama de conceitos em suas respostas.
43
O desenvolvimento de sua teologia notada em seu corpus paulinum, demonstra
um amadurecimento que por mais inovador que seja, recebeu uma parcela de
influências do ambiente vivido. Por exemplo, o próprio Gamaliel, renomado instrutor
farisaico de Paulo que certamente muito o influenciou, parece ter sido um indivíduo
bem tolerante a outras idéias e crenças.
44
Não dúvida de que parte do cruzamento de conceitos religiosos feito por
Paulo foi aproveitado do judaísmo. Um dos quesitos que ele utilizou desse ambiente foi
no tocante a prática e a literatura hinária.
Uma citação clara de que Paulo fazia uso disso está registrada em At 16:25. Ali,
Paulo e Silas, “em oração”, cantavam “louvores a Deus” enquanto estavam na prisão.
Similar a este texto, aos coríntios Paulo diz: “cantarei com meu espírito” (1Cor 14:15).
Essas são indicações evidentes de que ele continuou partícipe da tradição hinária como
43
Devemos lembrar que nem tudo em sua teologia é resultado de empréstimos, mas caracteriza-se
também por elementos particulares.
44
Em Atos 5:34-39, o registro sobre Gamaliel diz que a forma de tratar discípulos cristãos não
necessitava ser agressiva, afinal, se “
sua obra provêm dos homens, destruir-se-á por si mesma; se vem de
Deus, porém, não podereis destruí-los. E não aconteça que vos encontreis movendo guerra contra Deus
”.
Atitude bem diferente do que se podia esperar de um membro do Sinédrio naquela época, devido a tantos
problemas de ordem religiosa.
58
feita no judaísmo. Referente à procedência, é difícil saber se os hinos que Paulo cantava
eram provenientes dos salmos bíblicos, salmos sectários ou não canônicos, ou ainda
composições hínicas judaico-cristãs oriundas das comunidades às quais Paulo trocava
influências (o que para o período é difícil de se confirmar uma vez que as comunidades
eram de pouca idade).
Um texto ainda mais importante e significativo que os citados acima é o de 1Cor
14:26. Este relato é extremamente elucidativo para a compreensão de como se dava a
liturgia das comunidades em contato com Paulo. Diz-nos:
“Quando estais reunidos,
cada um de vós pode cantar um cântico, proferir um ensinamento ou uma revelação,
falar em línguas ou interpreta-las; mas que tudo se faça para a edificação!”. Paulo
exortava continuamente os cristãos a serem seus
“imitadores” (1Cor 4:16; 11:1; Fl
3:17). O texto de 1Cor 14:26 se caracteriza por sua imperatividade. Sabemos, portanto,
que Paulo
em orações cantava louvores a Deus, mais do que isso, dizia que os cristãos
também deviam assim fazer. Ótimo exemplo, esta passagem genuinamente paulina
apresenta um vislumbre sobre a orientação tida pelas comunidades cristãs.
Estes são pequenos, porém indícios concretos de que a prática hinária esteve
presente nas nascentes comunidades cristãs.
Alguns especialistas instam que uma parte do material hinário utilizado nas
primeiras comunidades cristãs não teve influência apenas do judaísmo ou do helenismo,
mas também de literatura sectária. Nesse último aspecto, pode-se citar o caso particular
de Qumran. Suas influências são percebidas em alguns livros canônicos e várias destas
se encontram nas epístolas paulinas.
Algumas das contribuições paulinas ao cristianismo são resultadas de
experiências de sua pré-conversão ao cristianismo e posteriormente de seu diálogo com
comunidades cristãs dispersas; em que primeiramente ele recebeu influências e
posteriormente as trocou com estas comunidades.
Relativo a isso, o professor Woodruff destaca importantes elementos
comprobatórios de que doutrinas paulinas possuíam uma pré-história, atestadas em suas
próprias epístolas. O autor identifica que:
– ele (Paulo) diz que “recebeu” uma tradição;
– ele corrige uma prática existente;
ele se refere a uma doutrina ou prática que ele aceita, mas que não tem
vocação para promover;
– o ensino dele é semelhante ao de Jesus;
59
– ele se refere a uma doutrina ou prática cristã que não aparece nas tradições
sinóticas (1995:80 n. 22, grifo meu).
Estes são indícios bíblicos sutis que demonstram o quanto Paulo esteve engajado
com comunidades cristãs antes da redação das epístolas que chegaram até nós. Igrejas
pré-paulinas existentes em locais como Damasco, Síria, Jerusalém e Ásia Menor
estiveram por muito ou pouco tempo em contato com Paulo. O relato de sua conversão
foi redigido na época em que seu contato com estas comunidades se tornava mais
acentuado.
Essas comunidades por sua vez, se enquadram dentro de uma problemática
bastante complicada com que temos de lidar ao menos brevemente aqui, se afinal elas
podem ser consideradas estritamente como sendo “cristãs”. Por este viés, o problema
perpassa os limites da consideração do cristianismo como seita. Visa, no entanto, ir
mais a fundo, elucidando a questão da natureza das comunidades ditas cristãs de forma
particularizada. Woodruff traz-nos uma consideração interessante sobre isso. Para ele,
se se levar em consideração fatores como: “iniciação de adeptos num ritual;
assembléias ou reuniões regulares, (...) obrigações morais, que podiam ser exigentes ou
até ascéticas; obediência obrigatória ao líder e tradições e disciplinas arcanas”;
algumas das comunidades nascentes cristãs podem ser comparadas com as
“religiões de
mistério”
(1995:79 n. 22). Qumran e outras comunidades essênias se enquadrariam
nessa perspectiva. Woodruff, a partir destes dados, conclui que
é possível (...) que uma organização social semelhante à das religiões de
mistério era possível (e conhecida!) dentro do judaísmo palestino. (...) Não
podemos ter certeza que a organização do tipo “mistério” se originou em
Antioquia
(na Síria, onde Paulo teve um contato mais intenso com as
igrejas)
; os primeiros passos podem ter sido tomados na Palestina
(1995:79 n. 22, grifo meu).
Levando, portanto, em consideração que o sectarismo do tipo arcano era
existente em comunidades fora e dentro da Palestina, pode-se concluir que algumas (ou
quase todas) comunidades com que Paulo se relacionava eram mais “sectárias” do que
se pode imaginar, não recebendo este título apenas por sua desvinculação com o
judaísmo.
Através disso, concluí-se que a aproximação de Paulo com comunidades
sectárias era muito mais estreita do que se pode pensar, uma vez que estas nascentes
comunidades ainda não possuíam uma teologia cristã bem delineada. Eram na verdade
60
comunidades mal-definidas religiosamente. Continham estruturas da religião judaica e
ao mesmo tempo elementos de religiões de mistério; e junto com isso passaram a
desenvolver o cristianismo. O conteúdo destas comunidades, olhando por esse ângulo,
era uma mescla de doutrinas conhecidas com ensinos sectários, da mesma forma como
nas religiões de mistério.
Esta com certeza foi a forma pela qual houve a entrada de ideais essênios dentro
das comunidades cristãs. Estes acabaram penetrando dentro destas comunidades de
forma bastante sutil e se solidificaram com o passar do tempo. Tanto a tradição paulina
quanto outras receberam essas influências, umas mais outras menos. A literatura hinária,
dentro dessa perspectiva, foi um dos principais “fios-condutores” responsável por esta
conexão.
Faz-se necessário agora apontar onde encontram-se as possíveis colaborações do
essenismo ao estrato cristão paulino, o qual me limito trabalhar neste capítulo.
Um exemplo interessante é o da utilização do conceito
pobreza na teologia de
Paulo. Esse conceito pode ser melhor entendido quando trabalhado à luz da
terminologia “pobres de espírito”, encontrada em Mt 5:3. O termo pobres de espírito,
representado pela expressão hebraica anwê ruah, era utilizado nos hinos do mar
Morto antes da composição do livro de Mateus e das epístolas paulinas (e.g. 1QH 6:3).
45
A expressão procura enfatizar a simplicidade e a humildade frente a um espírito da
perversão (1QH 5:21), termo esse utilizado para representar aqueles que não se
enquadravam nos ditames da seita.
Nos hinos de Qumran, nos deparamos diversas vezes com termos relacionados à
pobreza, representando sempre um espírito brando, humilde. A palavra ’ebyôn (pobre),
é a mais freqüente entre as que procuram representar a pequenez do homem. Em 1QH,
encontramos o conceito pobre em algumas passagens em conjunto com outro termo,
como “alma do pobre” (13:18) e “pobres da misericórdia” (13:22). Estes não são
casos isolados descritos em 1QH. O termo ’ebyôn é encontrado também em 10:32,
11:25, 13:16 e no fragmento 16:3 (=3:3). Além desse, nos deparamos com termos
correlatos como ‘anaw (13:21), que se refere a humilde, desamparado, oprimido
(traduzido por Martínez em 6:3 como “pobres de espírito”). Outros termos semelhantes
45
Os textos citados de 1QH são pertencentes à recomposição feita por Émile Puech, que é a utilizada por
Martinez em sua tradução. Anterior à publicação de Puech, existe a
editio princeps de Sukenik, que
possuía erros que ele mesmo reconheceu posteriormente. Sua numeração dos hinos de 1QH é diferente da
que Puech adotou, que por sua vez é a que sigo com a tradução de Martinez.
61
são ‘anawâ (5:22; humildes, modestos), ‘anî (9:36; 10:34; 13:13-14; miseráveis,
oprimidos
), yatôm (13:20; órfão), petî (10:9; 5:2; simples, ingênuos, cândidos,
inocentes), e ainda ra’s e nimharîm com sentidos parecidos. Norbert Lohfink, após
analisar o hino 1QH 1:31-37, onde existe um dualismo de palavras muito forte que
retratam as divergências entre a ‘edâh (comunidade) e Israel, chegou à conclusão de que
o conjunto indica que o elemento da pobreza não é introduzido para
designar o orante na sua pequenez perante Deus, mas por causa da sua
marginalização social. Aqui está um indivíduo isolado, combatido,
perseguido contra a comunidade de Israel oficial e numerosa que não poupa
nenhum meio contra ele (2001:73).
De fato, essa análise nos ajuda a compreender a base do dualismo e da
justificação, temas correntes nas epístolas paulinas. Em várias outras passagens de
1QH, juntamente com as expressões pobre e aflito, vemos sentenças como daí a
aliança para os que a buscam (1QH 13:9). Isso mostra que o ponto de vista
qumrânico, de se autodenominarem como sendo os
’ebyônim, possui um caráter social
atrelado ao teológico. Não a intenção de mostrar a
pobreza somente ligada ao lado
material. Se assim o fosse, resultaria no emprego de um outro termo, como dal,
utilizado diversas vezes no AT para retratar a falta de meios econômicos (Lv 14:21; Is
25:4; Jr 5:4; Am 5:11; Sf 3:12 etc.). O fato citado acima sobre a importância da
“aliança para os que a buscam”, ressalta o valor da existência física da comunidade
como refúgio espiritual daqueles que procuram não mais habitar entre o Israel
maculado.
O apóstolo Paulo a mesma importância a isso, no entanto, trabalha essa
questão não apenas no aspecto social, mas a evolui para uma outra etapa, dando a ela
um sentido mais complexo. Essa complexidade se vê quando Paulo a utiliza não só para
dar reconhecimento aos cristãos dentro do meio social como os de Qumran faziam, mas
ele reforça a relação vertical, dos homens para com Deus.
Em partes de suas epístolas pode-se encontrar esse ideal sendo exposto
juntamente com seu dualismo. Estrofes como “não como isso, mas sim como isso”,
exprimem uma dualidade característica dos termos utilizados em Qumran, claro que de
uma forma diferenciada, inclusa dentro de um outro tipo de gênero. Quando Paulo diz
aos coríntios: “em todas as coisas nos mostramos como ministros de Deus... como
tristes, mas sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como não tendo
nada, mas possuindo a tudo” (2Cor 6:4-10), percebe-se bem como ele maior
62
importância à condição dos despossuídos tanto em aspecto material como espiritual.
Certamente, com o cristianismo expandindo-se primeiramente entre aqueles
desprovidos de condição financeira, era importante o conselho de Paulo ao instar que o
materialismo não era um caminho que levava a Deus. Esse era um conselho muito
inteligente para o fortalecimento das comunidades cristãs, que, à medida que passavam
por provações, conscientizavam-se que aquilo era necessário para a redenção (1Cor 1:8-
12). A censura que ele faz aos gálatas em 1:6-21, de estes estarem dando atenção a um
outro “evangelho”, poderia muito bem ser um desvio de conduta que trouxesse mais
satisfações para a vida carnal (possivelmente ao lado das riquezas), contrário ao estilo
de vida que o apóstolo pregava.
O uso da palavra pobre nos textos paulinos, por si só, não cria uma analogia com
os escritos qumrânicos. É perceptível que Paulo se utiliza do conceito de
pobreza
fazendo uso de termos similares aos usados no mar Morto e empregando-os aos
primeiros cristãos, mas o que demonstra mais proximidade entre a doutrina paulina e a
qumrânica é sua orientação teológico-social, que percorre o mesmo caminho. Para
Paulo, os humildes, os sofredores, atribulados, e até marginalizados eram os primeiros
cristãos. Assim, pode-se ver onde existe a idéia de pobreza em sentido espiritual
retratada por Paulo.
Essa bipolarização do espaço espiritual faz com que haja a necessidade de postar
os humanos em um dos dois lados. Nessa divisão, tanto os cristãos como os da seita de
Qumran se encontravam entre os oprimidos. Ver as riquezas ao lado dos que não são
concrentes significava que estes estavam em um lado mais fácil de viver do que o
daqueles; junto dos prazeres, da perversão, da riqueza; coisas opostas à pobreza (cf. Cl
3:5).
Como dito, a semelhança com o pensamento paulino não se encontra somente no
uso de um determinado termo, mas sim no inteiro conceito de pobreza. Para isso, é
evidente que Paulo necessitava utilizar um léxico complexo, que por sua vez
correspondia ao usado em Qumran. Até que ponto o uso das palavras pode ter
contribuído para a formulação desse conceito em Paulo é difícil saber. No entanto, é
com maior facilidade que se percebe o uso do conceito pobreza, antagônico ao de
riqueza, que por fim vão estar no meio de uma estrutura teológica ainda maior, que
pertence tanto ao dualismo quanto à justificação.
Para que se compreenda melhor esse uso, utilizo o termo ‘anaw (humilde)
somado ao contexto de alguns versículos paulinos. Tanto no AT como nos MQ, o termo
63
possui o mesmo sentido que em Paulo quando faz sua polarização entre bondade e
maldade. Ao aconselhar os colossenses a revestirem-se de “entranhas de misericórdia,
de benignidade, de humildade, de modéstia, de paciência” (3:12), Paulo não deixa de
destacar o lado oposto, retratado por más qualidades como “a fornicação, a impureza, a
lascívia, os desejos maus e a avareza” (3:5), atributos que existem “só para a
satisfação da carne”
(2:23), algo contrário ao espírito de humildade.
O próprio Paulo se considerava como modelo de humildade (2Cor 10:1) e
instava que o modo de vida do cristão não deveria aspirar às coisas “altas”, mas
acomodar-se às “coisas humildes” (Rm 12:16).
A relação entre esses termos em Qumran, particularmente entre
pobres e
humildes, é intrínseca. Segundo Lohfink,
... não há dúvida de que as palavras para pobreza em Qumran não significam
privação física, ser oprimido, ser perseguido. Incluem ao mesmo tempo
que essa sorte é aceita perante Deus; mais, que pode valer como verdadeira
expressão daquilo que o homem é em relação a Deus: nascido do pó. Nesse
sentido o seu significado estende-se até à palavra “humildade” (2001:42).
O mesmo pode-se dizer em Paulo. Devido ao arcabouço léxico com termos
relacionados à pobreza utilizado por ele para explicar temas inseridos na teologia cristã,
podemos deduzir que seu uso possui raízes sectárias.
Talvez se possa imaginar que essas formulações paulinas tenham sido oriundas
do AT ao invés do sectarismo. Na verdade, a idéia de pobreza relacionada com a
humildade não é originária de Qumran. Ela existe não só no AT, mas também em todo o
Antigo Oriente (cf. LOHFINK, 2001:42). No entanto, a ênfase dada a ela na
comunidade, com seu desenvolvimento e desdobramento em uma série de termos
correlatos, é o que faz a diferença em Qumran. É essa a maneira que a comunidade do
mar Morto pensava a questão da pobreza, e foi daí que Paulo provavelmente apanhou e
desenvolveu a idéia em sua teologia.
Outro aspecto da teologia paulina sempre lembrado por alguns autores é a
respeito da doutrina da justificação. Os hinos qumrânicos expressam muito bem a base
desse conceito que Paulo se apropriou e desenvolveu à sua maneira. Encontramos no
texto 1QH 15:26-33 um importante precedente da justificação paulina:
64
Eu te louvo, ó Adonai!
Porque me ensinaste a tua verdade
e me fizeste conhecer os mistérios do teu poder maravilhoso,
e o teu amor ao homem pecador,
e a tua rica misericórdia para com os perversos de coração.
Quem é como tu entre os deuses, ó Adonai?
E quem é comparável à tua verdade?
E quem pode ser declarado justo perante ti, quando julgado?
E não há ninguém que possa responder á tua acusação, toda glória é vento,
e ninguém pode resistir diante de tua sabedoria.
Mas todos os filhos da tua verdade, através do perdão tu os levas à tua
presença,
para purifica-los dos seus pecados na tua rica bondade e na abundância da
tua misericórdia coloca-los em tua presença por toda a eternidade.
Pois tu é um Deus eterno,
E todos os teus caminhos estão firmes para todo o sempre,
e não há ninguém fora de ti.
E o que é este homem do caos e Senhor do sopro do vento
para compreender as obras do teu poder maravilhoso, os grandes?
46
O tema justificação é facilmente observado no decorrer do hino. A forma de
expressar-se do autor, como se estivesse conversando diretamente com Deus, procura
demonstrar sua pequenez frente a Este. Ao mesmo tempo em que o autor se refere aos
atributos de Deus como “tua verdade”, “tua misericórdia”, “tua sabedoria”; refere-se
a si como sendo um “homem pecador”.
A salvação para os habitantes de Qumran era possível graças à ratson, ou seja, a
“complacência” ou “benevolência” de Deus para com os desmerecidos desse favor.
Enquanto Deus é onipotente, o homem por um outro lado é dependente da vontade
divina.
A idéia da
justificação em Qumran servirá como matriz palestina para Paulo. Por
exemplo, a expressão
mi yitsdaq lepaneka beyissapetô (“quem pode ser declarado justo
perante ti, quando julgado?”) encontrada nesse hino, é usada por Paulo em suas
epístolas. No entanto, a justificação em Qumran possui uma direção diferente da usada
por Paulo – é voltada para a Lei.
O julgamento de Deus para com o sectário será bom desde que ele não se desvie
do “caminho da luz”. Nas palavras do próprio poeta qumrânico: “se eu tropeçar por
causa de um pecado da carne, meu julgamento será conforme a justiça de Deus” (1QS
11:12, trad. de Fitzmyer).
Não surpreende o fato de a justificação, como descrita nos hinos de Qumran,
remeter à Lei como quesito principal para a salvação. Para alguém que possui um
46
Neste texto sigo a tradução e a disposição em estrofes proposta por Lohfink. Assim, ignoro a divisão
dos versículos que ocorrem entre as estrofes, tentando com isso seguir a ordem que seria a mais “original”
e ao mesmo tempo dando melhor sonoridade ao hino (cf. LOHFINK, 2001:55).
65
conhecimento razoável dos textos normativos de Qumran, fica fácil compreender que
um desvio simples de conduta entre os sectários resultava em punição na comunidade
fato encarado como sendo de orientação divina. O
“tropeçar por causa de um pecado
da carne” era cometer um desvio da Lei, algo que ainda assim poderia ser
desconsiderado no Dia do Juízo de Deus graças à sua benignidade, caso houvesse o
arrependimento do transgressor e este voltasse a andar segundo as prerrogativas da
comunidade. O hino a seguir demonstra bem essa afirmação:
[...] Bendito sejas, Senhor, porque o espírito de carne é perdoado por tuas
misericórdias [...] com a força de teu poder, a grandeza de tua graça, com a
abundância de teu bem, a lentidão de tua cólera e o zelo de teu limite (1QH
5:4-5).
Segundo o modo de ver qumrânico, se houvesse o retorno do dissidente à
comunidade, Deus certamente não hesitaria em perdoá-lo. Deus é “quem perdoa aos
que se convertem do pecado” (1QH 6:24), uma vez que o fiel esteja unido “aos
Numerosos [...para não] abandonar todos os teus preceitos” (1QH 7:15-16). Nunca se
pode esquecer que a concepção qumrânica de obediência a Deus está intrinsecamente
ligada pela obediência à Lei e aos acréscimos comunitários.
Evidentemente que Paulo, a despeito de demonstrar grande semelhança no
tocante à justificação, não conservaria a Lei como em Qumran; pois segundo ele, os
homens “são justificados gratuitamente, por sua graça... realizada em Cristo Jesus”
(Rm 3:24).
Paulo possuía uma preocupação muito grande com temáticas relacionadas à Lei,
demonstrando isso a partir de suas cartas aos cristãos coríntios (cf. SCHNELLE,
1999:55). Porém, em sua doutrina da justificação, Paulo não se mostrava preocupado
em sua relação com a Lei da mesma forma como era em Qumran. Paulo queria dar uma
resposta ao judaísmo como um todo. Por isso, da relação existente entre a justificação e
a Lei na seita, só a primeira teve-lhe utilidade, sendo a Lei substituída por outro
artifício. O professor Schnelle destaca como se deu isso em Paulo:
Paulo, por causa dos judeus, respeita os preceitos da Lei, para não os
escandalizar desnecessariamente e ganha-los para o Evangelho. O apóstolo
rejeita a Lei como caminho salvífico, mas pode acatar seus preceitos em
virtude do anúncio do Evangelho. Do mesmo modo pode ser um sem-Lei,
66
embora não o seja para Deus e viva na Lei de Cristo. Com isso, ele não é de
modo nenhum desprovido de vínculos, pois Cristo é sua norma (1999:56).
Esse é um dos motivos de a justificação em Paulo não poder se associar por
completo à noção sectária de Qumran. Na seita, o ponto norteador da
justificação é a
’emunah (fidelidade) à Lei. Já em Paulo, isso possui uma transformação, adquirindo um
sentido teológico mais complexo, tornando-se a em Cristo (cf. FITZMYER,
1997:140). A diferença central no papel da justificação em Paulo ocorre pelo advento de
Cristo (Rm 4:24-25) e a necessidade da fé nele (Ef 2:8).
Estas doutrinas vistas acima, de forma superficial ou incisiva estão calcadas sob
um conceito bem mais amplo conhecido como dualismo. O dualismo entre o bem e o
mal serve de alicerce para outras doutrinas e conceitos tanto em Qumran como em
Paulo. Além dos que são bem visualizados dentro dos escritos hinários da comunidade
como o conceito de pobreza, a justificação; a Lei e uma série de terminologias; vemos
outros como a Nova Aliança,
47
a eleição divina,
48
a oposição carne/espírito; conceitos
que não são plenamente definidos entre os hinos de Qumran, mas que como os
primeiros, possuem base dualista.
Cada etapa de desenvolvimento ocorrido durante o amadurecimento em cada
uma dessas doutrinas podia ser compartilhado entre grupos diferentes. No entanto, não
se pode cair no erro de atribuir todas estas como sendo resultado de empréstimos. Dizer
que todo o sistema teológico paulino é conseqüência de empréstimos é negar todo o
progresso independente que Paulo demonstrou. A idéia inicial era compartilhada, mas o
desenvolvimento desta era particular. O mesmo princípio pode ser aplicado a outras
figuras importantes do século I.
47
O conceito de Nova Aliança é claramente baseado na profecia de Jeremias (31:31-32), que diz: Eis
que dias vêm, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá.
Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do
Egito, porquanto eles anularam minha aliança
. Em Qumran, a comunidade assumiu a responsabilidade
ao se considerar a
Nova Aliança, algo bem demonstrado pelo Documento de Damasco (6:19; 8:21;
20:12). Paulo, com palavras semelhantes faz o mesmo (1Cor 11:25; 2Cor 3:6, 14; Gl 4:24-31 etc.). A
diferença entre a forma como estes conceitos são trabalhados refere-se aos aspectos social e teológico.
Segundo Flusser, enquanto
“para a seita, a aliança tem um aspecto prático e cerimonial” e em menor
grau, teológico ,
“no cristianismo, o aspecto social é mais fraco e o aspecto teológico é intensificado
por seus vínculos com a cristologia”
(2000:67). O autor de hebreus também destaque a essa Nova
Aliança
(Hb 8:6-13).
48
A idéia de eleição (behiri) divina também é encontrada em escritos hinários (1QH 10:13), embora
receba maior destaque nos livros normativos. No NT, essa doutrina é própria a Paulo. As citações em
outras epístolas parecem se dar por influência das idéias paulinas.
67
Quando tratamos do dualismo em suas comparações entre comunidades
sectárias, devemos ter como preocupação central indicar em que estágio se encontrava a
doutrina (ou outro conceito coligado) quando serviu de influência para um pensador ou
grupo. Uma vez que o
dualismo era compartilhado entre as principais correntes de
pensamento da época, muitas das semelhanças que vemos poderiam ser na verdade
coincidências, mesmo após passarem por um desenvolvimento particular pelas mãos de
alguém ou algum grupo. Evidentemente que isso não se aplica em todos os casos pelo
mesmo motivo citado acima: um determinado conceito em construção ou
“plenamente formulado” servia como base a uma outra corrente religiosa ou pensador
“independente” que estava em outro estágio.
Deparamo-nos com um grande problema ao analisar-mos o dualismo de Qumran
comparado com os que são vistos no NT. A semelhança com os dualismos gregos e
gnóstico (espírito/matéria) é considerável. Pode-se destacar como maior diferença o fato
de em Qumran não haver o desprezo pelo material como entendido pelas outras
correntes dualistas, que para Qumran a matéria era criação divina e por isso digna de
louvor. Para os gregos e gnósticos pelo contrário, a matéria era desprezível.
Estabelecer as diferenças entre estes dualismos não é fácil. Como admitiu
Flusser, “não se pode negar, é claro, que ambas as visões são muito semelhantes, e
quase idênticas em suas conseqüências morais e práticas. Um homem em contato com o
pensamento grego e judaico deve ter combinado com facilidade essas duas doutrinas”
(2000:79). Relevando esse fator, percebe-se que uma análise a fundo neste tema nos
levaria a uma direção que fugiria demasiadamente da proposta inicial deste trabalho.
Sendo assim, nas comparações entre o dualismo qumrânico com o paulino, limito-me a
trabalhar com analogias em textos que apresentam idéias claramente de origem
palestina.
O citado texto de 2Cor 6:14-7:1,
49
é uma referência muito boa quando se usa
a delimitação citada acima. O texto destaca o dualismo entre justiça e impiedade, luz e
trevas, Cristo e Belial. Por isso, acaba sendo uma passagem-chave para comparação
com textos qumrânicos. O trecho condensa bem e reflete melhor do que qualquer outro
a proximidade com dualismo essênio. Em 1QM 13:1-4, vemos uma forma bastante
parecida a esta, quando se faz bendito o Deus de Israel e maldito Belial e seu lote. Se
49
Cf. p. 37.
68
fosse feita uma troca do termo Deus por Cristo nessa passagem do mar Morto, o texto
praticamente se tornaria “cristão”.
Embora esse seja um texto extremamente significativo, deve-se levar em
consideração o problema que cerca a autoria desse trecho. Ele parece ser uma
interpolação feita posteriormente por um outro autor que não Paulo (cf. FITZMYER,
1997:143). Independente disso, sendo ou não uma interpolação, o trecho reflete bem os
ideais essênios. Mesmo se forem levados em consideração apenas critérios textuais
nessa análise, o texto é bem colocado para fazer comparações.
Esse texto paulino procura acentuar a incompatibilidade entre os dois lados
como em Qumran.
“Tu instruis o teu servo [...] dos espíritos do homem, porque de
acordo com os espíritos os designas entre o bem e o mal”
(1QH 6:11). São vários os
textos qumrânicos que como esse, procuram polarizar o mundo em dois blocos. Note
como 1QS 3:19-22 evidencia essa polarização com clareza:
Do manancial da luz provêm as gerações da verdade, e da fonte das trevas as
gerações de falsidade. Na mão do Príncipe das Luzes está o domínio sobre
todos os filhos da justiça; eles andam por caminhos de luz. E na mão do
Anjo das trevas está todo o domínio sobre os filhos da falsidade; eles andam
por caminhos de trevas. Por causa do Anjo das trevas se extraviam todos os
filhos da justiça, e todos os seus pecados, suas iniqüidades, suas faltas e suas
obras rebeldes, estão sob o seu domínio.
Pelo modo de ver qumrânico, a parcela pertencente ao bem, que estava sob o
domínio das luzes e que por esta caminhava eram os próprios homens de Qumran. Este
texto, se colocado ao lado de 2Cor 6:14-7:1, apresenta semelhanças consideráveis.
Em muitas outras partes dos MQ podemos encontrar o mesmo dualismo,
utilizando por vezes palavras diferentes, mas preservando o mesmo sentido. Nos
escritos hinários podemos encontrá-lo também.
Porém, tu revelaste os caminhos da verdade e as obras da maldade, a
sabedoria e a loucura, [...] suas obras: verdade e inteligência, iniqüidade e
loucura. Todos marcharam [...] misericórdias e graça eterna para todos os
seus períodos de paz, e ruína para todos [...] os seus juízos. Glória eterna,
delícia e gozo perpétuo para a obra boa... porém... castigos para a obra
(1QH 5:9-13).
São dois os caminhos propostos pelo poeta. Cada um destes abriga um lote de
pessoas que receberá a recompensa de acordo com sua posição dentro desse arranjo
celeste.
69
O livro 1QH é repleto de expressões características ao dualismo. A palavra
Belial, por exemplo, entidade muito usada para representar o mal na literatura
qumrânica, é encontrada em 11:28,32; 12:12,13; 13:26,39.
50
Outra que apresenta um simbolismo bastante explorado em Qumran é luz (’or).
Ela é usada muitas vezes em contraposição à palavra trevas, empregada com bastante
ênfase para reforçar a desarmonia entre os dois lados (cf. 1QH 17:26). O termo também
é usado em livros do NT, e apresenta um desenvolvimento particular e significativo nos
escritos joaninos (Jo 1:5; 3:19; 1Jo 1:5,7; 2:8-10 etc.). Nas epístolas paulinas podemos
encontrá-lo em vários lugares (e.g., 1Ts 5:5; 2Cor 11:14).
Tão importante quanto os citados, o termo espírito (ruah) possui enfoque
importante na literatura qumrânica. Quando ela está associada a uma outra palavra
pode-se perceber com maior facilidade o objetivo de seu uso. Os exemplos mais
freqüentes são “espírito da carne” (1QH 5:19), “espírito de perversão” (1QH5:21),
“espírito de santidade” (1QH 8:10,11,15), “espírito santo” (1QH 8:20), “espírito de
erro” (1QH 9:22). Nos livros paulinos estes termos também são encontrados, muitas
vezes refletindo o dualismo como na literatura de Qumran (cf. 2Cor 2:12-15).
Que dizer no caso das epístolas que não foram escritas por Paulo? Para o erudito
inglês Michael Goulder e a grande maioria dos que se deparam com esta questão, as
epístolas autenticamente paulinas são:
I Tessalonicenses, I Coríntios, Gálatas, II Coríntios, Romanos, Filemom e
Filipenses, provavelmente nessa ordem. As pseudônimas são I e II Timóteo,
Tito, e Hebreus; II Tessalonicenses, Colossenses e Efésios são controversas,
principalmente a última (1997:515).
Assim, como explicar as similaridades entre os escritos qumrânicos com as
epístolas que certamente não foram escritas por Paulo ou possuem sua autoria
questionável? Sabendo-se que uma divisão das epístolas faz-se necessária, debatemo-
nos indiscutivelmente com mais esta problemática.
Como vimos, os escritos paulinos tiveram influências da literatura sectária. Estas
influências também são vistas nas epístolas pseudo-epístolas. Logo, temos de levar em
consideração o problema despontado com isso, o fato destas epístolas possuírem
datação posterior quando comparadas às autenticamente paulinas, e claro, serem
50
Todas estas passagens encontradas em 1QH retratam Belial com o mesmo sentido que é dado por Paulo
no texto aos coríntios.
70
redigidas por autores desconhecidos. Dessa maneira, para explicar como estas epístolas
possuem similaridades com os escritos do mar Morto, temos de descobrir qual o
caminho percorrido até chegarem a estes redatores desconhecidos. São duas as
propostas: se Paulo influenciou seus discípulos de forma intensa como imagina-se ter
ocorrido, este teria sido o caminho mais direto (e provavelmente mais fácil) para que
houvesse a continuação de ideais semelhantes aos usados no mar Morto pelos
seguidores de Paulo. Desse modo, a teologia similar à qumrânica encontrada nestas
epístolas não seria oriunda de outra fonte, mas sim resultante do desenvolvimento da
teologia paulina por parte de seus discípulos. A outra hipótese é de que estes redatores
tenham tido uma influência apartada da que Paulo teve. É o que dá-nos a entender
Martínez, quando diz que
É mais provável que discípulos de Paulo, membros da escola paulina, como
os que compuseram a epístola aos Efésios, tiveram um contato mais direto
com correntes essênias ou talvez com os grupos essênios convertidos ao
cristianismo (1996:268).
Continuando com essa linha de raciocínio, Martínez insta que com o fim da
comunidade de Qumran, essênios do mar Morto e também de outras localidades teriam
se refugiado em regiões da Ásia Menor, onde teriam ali influenciado os redatores das
epístolas pseudo-paulinas. Nesse caso, as influências tidas pelos escritores de tais
epístolas não teve a mesma direção que a de Paulo. Ela sobreveio posteriormente a seus
discípulos seguindo um caminho diferente, mas com uma doutrina similar à entendida
por Paulo. O caso que Martínez cita, o da Epístola aos Efésios, é singular devido a seu
alto grau de semelhança com aspectos da teologia de Qumran. Um dos textos de Ef
mais citados quando se trata deste assunto é o trecho 5:5-11.
Com efeito, sabei-o bem, nenhum fornicador ou impudico ou avaro, o qual é
um idólatra, terá herança no reino de Cristo e de Deus. Ninguém vos seduza
com palavras vãs, porque por estas coisas vem a ira de Deus sobre os filhos
rebeldes. Não queirais, pois, ter comunhão com eles. Outrora éreis trevas,
mas agora sois luz no Senhor. Andai como filhos da luz, porque o fruto da
luz consiste em toda a espécie de bondade, de justiça e de verdade.
Examinando o que é agradável a Deus, não tomeis parte nas obras
infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as (BIBLIA SAGRADA, Trad.
João Ferreira de Almeida).
Note que são várias as partes em que se pode encontrar elementos doutrinais
qumrânicos:
71
Pureza frente à comunidade;
51
Não-comunhão com pecadores;
Dualismo: luz/trevas;
Terminologias: filhos da luz, justiça, verdade.
Outra epístola que nos trás informações importantes é a de Hebreus. A figura de
Melquisedec, conhecida em Gn 14:18-20 e citada em Salmos 110:4 tem grande
importância para o autor de Hebreus. Este autor visa assemelhar Jesus a Melquisedec,
como um
“sacerdote do Deus altíssimo”, “eterno”, “justo” e “sem genealogia” (Hb
7:1-3). Esse ponto de vista imprimido pelo autor visa provavelmente persuadir aqueles à
quem a Epístola é destinada; na opinião de alguns, uma comunidade de essênios
convertida ao cristianismo (cf. FITZMYER, 1997:143).
52
Por este modo de ver, a intenção em comparar as figuras de Jesus e Melquisedec
tinha por objetivo tornar mais fácil a aceitação de Jesus por parte da comunidade
desconhecida.
Para os habitantes de Qumran, Melquisedec havia sido uma pessoa importante.
O motivo disso certamente se deve ao fato da comunidade ser formada em torno de um
personagem sacerdotal (com o Mestre da Justiça e posteriormente com aqueles
designados pela Congregação para assumir o cargo) assim como o texto de Gn descreve
Melquisedec. Prova de que a figura de Melquisedec era importante para os essênios é o
texto de
11QMelquisedec (=11QMelch, 11Q13), um texto de tamanho pequeno e com
algumas partes ilegíveis encontrado entre os MQ. No texto é retratada uma discussão
sobre o jubileu, em que Melquisedec terá participação essencial no juízo divino. Ele
“expiará por todos os filhos de Deus e pelos homens” do seu “lote” (v. 8), e “os
livrará da mão de Belial” (v. 25). Dessa maneira,
Melquisedec é apresentado como um ser angelical que eleva os santos de
Deus por feitos de julgamento e que tira vingança divina sobre o mal. Aqui,
Melquisedec apresenta uma condição sobre-humana, que claramente
abrange a vida eterna, da mesma forma como em Hebreus (VANDERKAM,
1997:201).
51
Para mais esclarecimentos sobre “pureza” em Qumran, cf. RODRIGUES, Elisa. Não misturar, não
contaminar: as prescrições de 4QMMT. Limites e identidade social dos membros de Qumran
. Oracula
Revista eletrônica de Pesquisas em Apocalíptica Judaica e Cristã. São Bernardo do Campo: UMESP, nº.
4, 2006.
52
Não deve deixar de ser descartada uma segunda hipótese, a de que a epístola de Hebreus tenha sido
redigida por um autor cristão que tenha pertencido ao essenismo.
72
Com a intenção de retratar Jesus como sacerdote à maneira de Melquisedec, o
autor de Hebreus mostra o quão próxima está sua interpretação do modo como se
pensava em Qumran. Com esta comparação entre 11QMelquisedec e o importante
trecho de Hb 7:1-3, temos um importante
“pano de fundo para a compreensão da
cristologia da Epístola aos Hebreus” (FITZMYER, 1997:146).
Outros indícios que podem ser considerados como paralelos são encontrados em
terminologias. Sentenças como “conhecimento da verdade” (Hb 10:26= 1QS 9:17;
1QH 8:29), “fruto de lábios” (Hb 13:15= 1QS 9:5,26; 10:8; 1QH 9:28), “fim dos
tempos” (Hb 9:26= 1QS 4:16; 1QM 1:8), são encontrados também nos textos
qumrânicos.
Nas epístolas agregadas ao bloco paulino é possível encontrar pequenos
paralelos com os escritos qumrânicos, no entanto, seu grau de significância é pequeno.
Se fôssemos analisá-los a fundo, teríamos de fazer regressões um tanto desnecessárias
que não viriam a acrescentar algo melhor do que o que fora destacado acima. No mais,
podemos dizer que ambos os caminhos propostos para que houvessem empréstimos
podem ter sido utilizados, principalmente o que remete à continuação das suas doutrinas
por seus círculos.
Paulo não deixou-se influenciar, mas também influenciou comunidades
cristãs. Pessoas próximas a ele continuaram sua teologia, desenvolvendo-a sob sua base.
Ou seja, no caso destas epístolas em que vemos semelhanças com doutrinas qumrânicas,
podemos compreender sem dificuldades porquê e como elas se mantiveram em epístolas
não escritas por ele. A epístola que mais foge a essa regra é a de Hebreus, que de fato é
toda peculiar. Como o próprio Orígenes admitiu: “para expressar o meu parecer, diria
que os pensamentos são do Apóstolo (Paulo), mas... quem a redigiu, só Deus sabe”.
53
53
Citado por Eusébio, História Eclesiástica, IV, 14:25.
73
Dou-te graças, Senhor,
porque me puseste na bolsa da vida
e me protegeste de todas as armadilhas da fossa,
pois os violentos buscaram minha alma
quando eu me apoiava em tua aliança.
Eles são um conselho de vaidade,
uma assembléia diabólica.
Não sabem que por ti eu me mantenho,
que em tua misericórdia tu salvas minha vida,
pois de ti vêm meus passos.
Eles – por ti atacam minha vida,
para que sejas honrado pelo juízo dos ímpios
e te engrandeças em mim
diante dos filhos do homem,
pois em tua misericórdia me mantenho.
Eu disse: heróis acamparam contra mim
rodeados de todas as suas armas de guerra;
atiram flechas, sem remédio algum;
o fio da lança, como fogo que devora as árvores.
Como o estrondo de águas tumultuosas
é o rugido de suas vozes,
qual tempestade de furacão
que destrói a muitos.
Até os astros explodem
a vaidade e o nada
quando se elevam suas ondas.
Porém tu, quando meu coração se derretia como água,
Afirmaste minha alma em tua aliança.
E a rede que eles estenderam
prendeu os seus pés,
nas armadilhas que puseram à minha vida caíram.
“Meu pé se mantém no caminho reto,
em sua assembléia bendirei teu nome”.
1QH 10:20-30
74
3. AS RELAÇÕES ENTRE OS HINOS DE QUMRAN E OS HINOS
DO NOVO TESTAMENTO
Como pudemos perceber no capítulo anterior, a literatura hinária era
amplamente utilizada e valorizada no período do Segundo Templo. Encontram-se textos
hinários em diferentes espaços geográficos, estratos sociais e grupos étnicos e sectários,
com muitos elementos em comum.
Sem a intensificação dos estudos bíblicos multidisciplinares ocorrida nas últimas
décadas, ficaria difícil reconstruir a Judéia entre os séculos II a.C. a I d.C., com seus
conflitos de variadas ordens, imposições, resistências e “trocas simbólicas”. Sabendo
que esse período era marcado por uma mistura muito grande de elementos diversos,
podemos nos perguntar: era o ambiente religioso passível dessa circularidade existente
na sociedade? Será que os acontecimentos em outros segmentos da sociedade
implicavam, por mínimo que seja, no ambiente religioso?
O trânsito de indivíduos entre comunidades religiosas era constante, sobretudo
no século I d.C. Estas comunidades abrigavam pessoas de culturas, línguas e etnicidades
diferentes, e vinham a assumir uma forma particular de representação somente depois
de muito tempo. Esse foi o caso do cristianismo se pensado até Constantino. Antes dele,
a heterogeneidade existente era muito grande.
É com este cristianismo inicial, pouco ortodoxo, que queremos traçar
comparações com um
corpus de fonte anterior, ou seja, com os MQ. As fontes cristãs,
canônicas ou não-canônicas, possuem origens diversas, um fato que começa a ser
perdido de vista com a “constantinização” do cristianismo. Ao invés de se pensar o
movimento partindo de sua heterogeneidade, essa visão traz a idéia equivocada de
univocidade do movimento, impedindo que se vislumbre a realidade de seu período de
formação. Segundo Pablo Richard,
Existe uma falsa imagem da origem do cristianismo como movimento
único, com uma estrutura institucional e corpo doutrinal, onde a
diversidade teria vindo depois. Existiria uma unidade ortodoxa primitiva e
uma dispersão posterior com múltiplas heresias. Identifica-se unidade com
ortodoxia e diversidade com heresia.
Tudo isto é contrário à realidade
histórica
(1995:8, n. 22, grifo meu).
Segundo este mesmo autor, o inteiro cânon do NT é composto de uma coletânea
de textos de tendências cristãs diversas. Jerusalém, Galiléia, Samaria e Síria foram as
75
primeiras localidades pré-70 a terem contato com o Evangelho. Cada uma destas
localidades – e posteriormente outras como Antioquia, Éfeso, Egito e Roma – acabaram
tornando-se centros independentes de difusão do cristianismo, que por sua vez, eram
passivos do ambiente em que se encontravam (cf. RICHARD, 1995:8, n. 22).
Seria um erro pensar as comunidades cristãs do século I desconsiderando
aspectos econômicos, sociais e culturais. Levando estes aspectos em consideração,
compreendemos que comunidades religiosas de ambientes díspares tiveram suas
peculiaridades, sendo influenciadas por diferentes agentes e movimentos.
Analisando a literatura composta por estas comunidades, pode-se perceber que
cada uma tem preocupações próprias. Um determinado
corpus procura dar respostas a
distintas questões enfrentadas pelas comunidades cristãs. Algumas questões levantadas
por determinado autor são comuns a todos os seus livros. No entanto, quando não existe
relação entre os livros bíblicos percebe-se o quão diferente são suas preocupações.
Encarar os escritos cristãos como não sendo inteiramente coesos e harmônicos
(tendo como base os livros canônicos do NT), nos ajuda a compreender quais eram as
preocupações do autor quando criou seu texto e/ou como manipulou sua fonte. As
mudanças e construções feitas por determinado autor são formas salutares que podemos
utilizar para compreender a circularidade cultural do período. É em meio a esse embate
de forças, sob uma complexidade sócio-cultural extremamente complexa, que podemos
encontrar as colaborações dos MQ.
No que diz respeito aos estudos dos saduceus e fariseus do século I, temos
muitas informações sobre sua atuação política e social, mas o mesmo não acontece com
os essênios. Muitos que se dedicaram ao estudo das facções judaicas do século I, não
deram o valor merecido aos essênios por estes não serem considerados “ativos” social e
politicamente. As fontes clássicas indicam que a atuação social dos essênios parece ter
sido limitada ou não foi tão incisiva como a dos saduceus e fariseus. Uma leitura sem
muitos questionamentos dessas fontes apresenta os essênios como um grupo de sectários
que se abstinham da política e que não dialogavam com outras tradições religiosas. No
entanto, os essênios têm um papel ativo na sociedade judaica, ainda que preocupando-se
particularmente com o campo religioso, muito mais que outros segmentos da sociedade
judaica.
Na análise das descrições clássicas e dos MQ percebe-se que a preocupação
central das comunidades essênias era a “restituição do verdadeiro Israel”; para tanto,
76
havia a necessidade de uma vigilância estrita da Lei, o que acabava gerando seu auto-
isolamento da sociedade judaica e de seus problemas seculares.
Os MQ mostram que a teologia da comunidade passou por uma grande evolução
teológica desde sua fundação. Podemos afirmar que até a formação do judaísmo
rabínico, a evolução teológica saducéia e farisaica é de longe inferior à dos essênios,
tendo como base a documentação que chegou até nós.
54
Admitindo-se que saduceus e fariseus foram mais ativos na sociedade nos
aspectos seculares, e que o essenismo se destacou com uma teologia mais elaborada,
mais ampla e inovadora, poderíamos nos questionar sobre qual desses grupos poderia
fornecer maior número de influências a movimentos religiosos nascentes, sobretudo
para o cristianismo. Sem dúvida, o controle secular era ditado majoritariamente pelos
saduceus e fariseus, principalmente pelo primeiro grupo, devido à sua ligação política
com Roma e anteriormente com os selêucidas da Síria. O essenismo por sua vez,
afastava-se conscientemente destas questões, mas ao mesmo tempo procurava dar uma
resposta para esse tipo de situação.
Problemas sociais enfrentados pela população judaica recebiam uma resposta
teológica por parte dos essênios. Um exemplo é o emprego do termo kittim encontrado
em 1QpHab. O nome é derivado do grego Kition, cidade antiga da ilha de Chipre (atual
Larnaca). Encontramos o termo utilizado em alguns versículos bíblicos representando
povos diferentes. Em Gn 10:4 o termo é aplicado aos descendentes do grego Javã. Em Jr
2:10 designa os povos do Mediterrâneo ocidental e em Dn 11:30 parece representar os
romanos (outros textos são 1Cr 1:7; Is 23:1; Nm 24:24). Para os “comentadores” de
Qumran essa representação teve uma grande importância. Na composição de sua
doutrina escatológica, os kittim se posicionam ao lado dos “filhos das trevas” na guerra
final – algo que não acontece em citações do AT.
Essa característica, de responder a situações seculares conturbadas pelo viés
religioso, existia tanto no essenismo quanto no cristianismo. O comentário sobre Jesus
em Mt 11:28 demonstra bem isso. Ele disse que deviam vir a ele os que estavam
“cansados sob o peso do vosso fardo”, com a preocupação de trazer alívio para estes
que viviam “como ovelhas sem pastor” (Mt 9:36), pessoas provavelmente
desamparadas pelo aparelho governamental daqueles dias. Esse é um dos exemplos que
54
Um exemplo disso é o do desenvolvimento da escatologia qumrânica que se caracteriza pela descrição
da relação entre os “filhos da Luz” e dos “filhos das trevas”. Enquanto de início a proposta era sectária,
com o passar do tempo parece ter dado um passo mais humanista em favor da coabitação pacífica pelos
dois grupos até que o “fim” não chegasse (cf. FLUSSER, 2000:163).
77
mostra que, da mesma forma que o essenismo mesclava questões sociais e teológicas,
estratos do movimento cristão assim também faziam.
Os movimentos que possuíam matriz judaica tinham um diálogo maior entre si
quando comparado a outros que possuíam raízes estrangeiras. Isso ocorria pela repulsa
de grande parte da população a ideais de inspiração descaradamente externos que
viessem porventura a se mesclar com concepções judaicas e/ou judaico-cristãs. Essa é
uma das razões para crer-se que, mais do que possíveis, as trocas simbólicas foram
constantes entre o judaísmo jerosolimita (considerado “oficial”) e os sectários, para com
uma série de outras seitas que possuíam alguma coisa em comum. Foi nesse ambiente
que surgiram e se desenvolveram os “cristianismos”. Nas palavras do professor Néstor
Míguez,
Seria, porém, uma simplificação falar do cristianismo como tal; na realidade
surgem “os cristianismos”. (...) Durante o primeiro século temos de
considerar uma pluralidade de formas do cristianismo que, embora tenham
certo grau de identidade e reconhecimento mútuo, adquirem formas
institucionais distintas e vão fazendo suas próprias construções simbólicas a
partir de mundos vitais relativamente diferenciados (1995:32, n. 22).
Estas formas de cristianismo variadas não rompem radicalmente com o
judaísmo, como Míguez salientou acima. “Os primeiros cristãos eram judeus de
origem, falavam hebraico ou aramaico e continuavam a freqüentar os dois locais
antigos de culto (o Templo e a sinagoga), cada qual com sua adoração peculiar”
(FREDERICO, 2001:83, grifo meu). Registros encontrados no NT sobre cristãos
participando nas festividades judaicas provam que, até pouco tempo antes do período
conturbado que culminou na destruição de Jerusalém, eles participavam normalmente
das celebrações judaicas. Essa mistura imprecisa de crenças durante esse período foi o
que fez com que muito do que se sabe sobre as colaborações do judaísmo para com o
cristianismo no que tange à literatura poética chegasse a nós.
Alguns livros do NT nos dão um retrato apropriado sobre o ambiente litúrgico
vivido por Jesus, seus seguidores e os judeus do século I. Desde o exílio babilônico e
principalmente depois, com as sinagogas, consolidaram-se três formas de reunião: a
familiar, que realizava-se em casa; a comunitária, semanal, feita na sinagoga; e a
nacional, que englobava as festividades do Ano Litúrgico, realizadas no Templo.
“Criava-se assim, um ambiente familiar e comunitário impregnado pela leitura orante
78
da palavra de Deus, dentro do qual as pessoas aprendiam de memória os salmos e
orações”
(MESTERS, 2003:143, n. 45).
Em casa, as pessoas rezavam várias vezes por dia; normalmente de manhã, ao
meio-dia e à noite. Essa reza consistia na recitação de sentenças salmódicas como as
tefillot, um conjunto de orações proferidas nas sinagogas nos dias de Jesus. Note a
primeira das
Dezoito Bênçãos da oração:
bendito, Senhor nosso Deus e Deus de nossos pais, Deus de Abraão, de
Isaac e Deus de Jacó, Deus grande e forte e venerado, Deus excelso, que dás
a recompensa e crias todas as coisas; lembra-te da piedade dos pais e faz
que o redentor venha para os filhos dos seus filhos, em favor do teu Nome,
com amor. Rei libertador, que ajudas, salvas e defendes. bendito Senhor,
escudo de Abraão (Benção nº. 1. Trad. de Di Sante).
Este conjunto de orações recebe um outro nome bastante conhecido, Shemoneh
Esreh, que em hebraico significa dezoito, o número de bênçãos contidas na oração.
55
Junto com o Shemá
56
e a utilização de salmos bíblicos, estes textos compunham
o dia-a-dia litúrgico do povo judeu. Assim, com repetições contínuas de orações, textos
sagrados e hinos; as pessoas aprendiam e memorizavam os preceitos da judaica.
Qualquer membro de uma família judaica que nascia nesse ambiente considerava isso
como parte de seu modus vivendi, uma escola cotidiana de preceitos que ditavam o
comportamento do indivíduo. Jesus, por exemplo, é descrito pelos evangelistas como
alguém ligado a estas práticas. Certamente, as orações e as bênçãos que Jesus promoveu
(e.g. Mc 1:35; 10:16; Lc 9:16; 24:30), por mais que fossem revestidas de expressões
individuais, remetiam a uma base comum conhecida. Além de realizar isso a nível
individual, ele participava semanalmente dessas no âmbito da sinagoga ou ainda em
eventos de maior envergadura como os efetuados no Templo. Utilizando-se da síntese
de Mesters:
Foi naquele contexto familiar e comunitário, impregnado pela oração dos
salmos, e na convivência com pessoas como aquelas descritas por Lucas,
55
Recebendo ainda um terceiro nome, Amidah (do verbo ‘amad, “manter-se em pé”. Por isso, a oração é
recitada pelo orante estando em posição ereta.), o Shemoneh Esreh é uma coleção de bênçãos recitada
durante os três serviços diários de orações judaicas (manhã,
shacharit; tarde, mincha; e noite: maariv).
Apesar do nome, a oração possui atualmente
19 bênçãos, tendo sido incluída a décima segunda, Contra os
Heréticos
(birkat ha-minim), no conselho de Jâmnia (c.90/100 d.C).
56
O Shemá vem da expressão shem‘a Isra’el (“Ouve, ó Israel”), encontrada em Dt 6:4-9. A recitação das
palavras do Shemá eram feitas diariamente,
“estando no leito (ao deitares), e ao levantar-te” (v. 7, Bíblia
Sagrada Edições Paulinas). Ou seja, a leitura do Shemá faz parte do rol diário de orações, sendo recitado à
noite e pela manhã segundo o mandamento bíblico. A resposta de Jesus em Mc 12:29, parece ser uma
citação explícita ao Shemá.
79
que Jesus nasceu e se formou, que ele “crescia em sabedoria, graças e
tamanho diante de Deus e dos homens (Lc 2:52)” (2003:147, n. 45).
Posteriormente, as primeiras comunidades cristãs também se envolvem em atos
litúrgicos individuais ou coletivos. Com o passar do tempo, apesar das muitas
similaridades entre o culto judaico e cristão, aos poucos essa prática foi assumindo um
corpo diferenciado entre os cristãos, marcando um distanciamento entre o cristianismo e
o judaísmo.
3.1 HINOS DO MAR MORTO E HINOS CRISTÃOS: CONTINUIDADE OU
NOVA TRADIÇÃO?
Para analisar as possíveis relações entre as tradições hinárias do NT e tradições
anteriores, particularmente Qumran, é necessário traçar um paralelo entre elas.
A princípio, destaco a importância dos hinos registrados em Lucas 1:46-55,
conhecido como Magnificat; e em Lucas 1:68-79, este conhecido como Benedictus.
Ambos os trechos parecem inserções forçadas, acrescentadas posteriormente ao
texto e oriundos de uma fonte diferente. No caso do Magnificat, quando se analisa mais
de perto sua relação com o contexto, parece não haver harmonia entre o hino e o
restante do relato. Se do versículo 45 fosse dado um salto diretamente para o 56, não se
perceberia um “vazio” na descrição. Fica claro, então, que este hino foi inserido no texto
recorrendo a uma fonte distinta da utilizada para o restante do capítulo, embora não se
possa precisar se esta inserção foi de fato lucana ou posterior a ele. Pode-se ter certeza,
no entanto, que embora a fonte utilizada para a redação do Magnificat tenha sido outra,
ela provêm de um ambiente puramente judaico.
quem defenda, como Gourgues, que tanto o Magnificat como o Benedictus
possuem traços da redação de Lucas (1995:53). Isso mostraria que, na verdade, o hino é
obra de Lucas e não de um outro autor posterior. Segundo o autor citado, algumas
expressões do hino fazem alusão direta a Maria, o que provaria a despeito de o hino
possuir uma pré-história que o hino recebeu um “novo rosto” com a compilação de
Lucas. Termos como “sua serva” (v. 48) e “fez grandes coisas em meu favor” (v. 49),
se vistos como manifestações singulares de louvor, induzem-nos a pensar que foram
feitas modificações na estrutura do hino para que se pudesse adaptá-lo à história de
Maria.
80
Uma aproximação interessante é feita com a aclamação de Ana, mãe do profeta
Samuel, registrada em 1Sm 1:11. Vemos que a sentença
“olhou para a humilhação de
sua serva” (v. 48) encontrada no Magnificat, não apresenta grandes diferenças se
comparada com a sentença “se quiseres dar atenção à humilhação da tua serva”,
atribuída a Ana no livro de Samuel. Tanto a estrutura do texto como a idéia apresentam
similaridade.
Estes dois exemplos citados remetem a uma base comum. Nos tempos bíblicos, a
gravidez era encarada pelas mulheres como uma bênção de Deus (Sl 127:3; 128:3). A
esterilidade, por sua vez, era considerada como motivo de vergonha para uma mulher
que estivesse em época produtiva. O relato das irmãs Léia e Raquel, dadas como
esposas a Jacó, ilustra bem esta questão (Gn 29:30-35). Apesar de Jacó não amar Léia
tanto quanto Raquel, Deus “a tornou fecunda” (Gn 29:31) por Sua compaixão pela
mulher mal amada. O fato de Léia ter dado à luz vários filhos causou ciúmes em Raquel,
que se considerava uma “mulher morta” por não poder ter filhos (Gn 30:1). Essa história
contada no livro de Gênesis serve como um bom exemplo para compreender o valor que
era dado a isso. O mesmo simbolismo está presente em Lucas nos versículos anteriores
ao Magnificat. Isabel, mãe de João Batista, que segundo o relato era estéril e avançada
em anos, disse depois de sua concepção: “Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou
retirar o meu opróbrio perante os homens!” (v. 25).
57
Esse “opróbrio” em que Isabel
acreditava viver resume-se ao fato dela pertencer a uma casta de mulheres
desprivilegiadas moralmente, mulheres solteiras, desposadas e principalmente estéreis.
Mais importante do que saber se estes relatos foram fatos verídicos ou fictícios é
perceber o seu simbolismo. A compreensão da temática inserida nos hinos, como no
Magnificat e no Benedictus, pode ajudar a conhecer suas origens. Por exemplo, os
versículos 51-53 do Magnificat refletem uma linguagem guerreira, típica de diversas
correntes de pensamento do período do Segundo Templo que não condiz com o estilo de
escrita lucano. Uma das hipóteses que explica a influência de uma “literatura de
resistência” em meio ao Magnificat é levantada por David Flusser, que indica uma
origem qumrânica para tais hinos. Analisarei sua proposta mais à frente. A princípio,
faz-se importante analisar a segunda metade do hino (vv. 51-55), que abriga o que pode
ser chamado de literatura de resistência.
57
Nota da Bíblia de Jerusalém: “A esterilidade era considerada desonra (Gn 30:23, 1Sm 1:5-8), e até
mesmo castigo (2Sm 6:23, Os 9:11)”
.
81
A linguagem guerreira adotada na segunda parte do hino (vv. 51-54) utiliza o
conceito de pobreza (humildade), um tanto comum ao judaísmo Antigo e fortemente
destacado em Qumran. Lohfink, ao analisar como se dispõe a idéia da pobreza dentro do
Magnificat, conclui que o hino
não é de forma alguma um elogio da pequenez, da modéstia, da existência
na obscuridade. Pelo contrário, é a mensagem de um Deus que faz justiça
aos prejudicados deste mundo e exclui aqueles que se apropriam de partes
demasiadas deste mundo (2001:19).
Segundo este ponto de vista, sentenças como “dispersou os homens de coração
orgulhoso” (v. 51) e “depôs poderosos de seus tronos” (v. 52), colocam-se como uma
mensagem para o tempo presente e não para uma expectativa do porvir ou algo
parecido, mas “isso totalmente aqui nesse mundo” (LOHFINK, 2001:20). Esse
conteúdo “subversivo” reflete o ambiente palestino do século I com todos os seus
problemas de ordem social e dominação estrangeira do período. Neste contexto, dá-se o
nascimento e desenvolvimento do gênero literário apocalíptico, que acaba assumindo o
papel de literatura de resistência. Esta foi uma das formas encontradas para lutar contra
o imperialismo político e militar imposto por potências estrangeiras. Utilizando uma
linguagem simbólica cuja compreensão é restrita a um número seleto de pessoas,
autores pseudônimos relatavam fatos conturbados de seus dias por meio de metáforas,
que tinham por objetivo se contraporem à opressão de um governo estrangeiro sobre o
judaísmo. No AT, o melhor exemplo é o livro de Daniel, escrito provavelmente em
meados do século II a.C., período que corresponde à forte influência selêucida e à luta
dos Macabeus para rechaçá-la. No NT encontramos este gênero representado no livro de
Apocalipse, escrito durante um contexto que possui uma realidade semelhante, mas
contando com um opressor diferente, Roma. Em Qumran, parecia haver um consenso de
que se estava vivendo os “últimos dias”, fato que motivava uma interpretação
apocalíptica do tempo presente.
58
No caso do Benedictus, cântico atribuído por Lucas a Zacarias que
aparentemente retrata as expectativas futuras sobre João, encontram-se várias
semelhanças com o Magnificat. dúvidas a respeito de sua composição e origem,
mesmo assim, inclui elementos que permitem compreender melhor as relações entre
grupos do período. É o que se nota na introdução do hino. A expressão “bendito seja
58
O gênero apocalíptico era bem conhecido por Qumran. Entre os livros deste estilo descobertos,
destacam-se 4Q246, 4QPsDa, 4Q521 e 6Q14.
82
o Senhor Deus de Israel” (Lc 1:68) possui um histórico interessante. Em textos como Sl
66:20 e 68:36, o termo
baruc ’elohim(bendito seja Deus), prova que essa fraseologia
era anterior ao seu uso pelos cristãos.
59
Como vimos anteriormente, a comunidade
de Qumran não deixou de utilizar esta expressão de louvor, criando inclusive uma
disposição diferente, uma seqüência de bênçãos que encontra paralelo com as Bem-
Aventuranças
de Mateus (5:3-10). Além de textos pertencentes ao AT, temos o exemplo
do próprio
Shemoneh Esreh. A primeira parte da Benção nº. 1 possui pontos de contato
com o hino lucano. Vejamos a primeira parte dessa benção seguindo a tradução de
Gourgues:
Bendito sejas Tu, Senhor nosso Deus de nossos pais (...)
Tu que lembras das boas obras dos pais,
Tu que suscitarás um Redentor para os filhos de seus filhos.
As palavras e a ordem contêm correspondentes no Benedictus (“Bendito sejas o
Senhor”, “nossos pais”, “lembras”). Segundo Gourgues, a expectativa messiânica
descrita por Lucas tinha se extinguido com a chegada de Jesus, por isso o discurso tanto
do AT como de orações recitadas antes da chegada do Evangelho é feito no tempo
verbal futuro (suscitarás), enquanto que no Benedictus esta expectativa se cumpriu
(suscitou-nos). A compreensão do futuro/passado na expectativa messiânica israelita é
chave para se entender as diferenças ideológicas de textos que passaram por adaptações.
Essa versão “cristianizada” da fonte utilizada por Lucas nada mais é que a manifestação
literária dessa forma judaico-cristã de se pensar. Ainda segundo Gourgues, “enquanto o
primeiro painel (vv. 68-75) recorre a uma ‘formulação judaica’ toda inspirada no
Antigo Testamento, o segundo (vv. 76-79) emprega uma formulação cristã ou
cristianizada” (1995:40). Este resumo, apesar de poder ser questionado, demonstra bem
o que pensam aqueles que procuram encontrar a origem do Benedictus.
Alguns estudiosos já propuseram que tanto o Magnificat quanto o Benedictus são
hinos de Isabel, mãe de Batista; apesar de o Magnificat ser atribuído por Lucas a Maria.
Segundo esta hipótese, a origem destes dois hinos pertence aos círculos de João Batista.
Essa opinião também é a defendida por David Flusser (1917-2000), sobretudo depois de
sua leitura de um hino presente no Pergaminho da Guerra (1QM). Segundo ele, “existe
59
Muitos exemplos são encontrados na Bíblia Hebraica sobre a junção de dois termos como os citados
acima. As expressões conjuntas
baruc ’adonai ’elohim (sendo o tetragrama lido como ’adonai) aparecem
em textos como Gn 24:27, 1Sm 25:31, 2Sm18:28, 1Rs 1:48, 8:15, Sl 41:14, 72:18, 1Cr 16:36, 29:10, 2Cr
2:11, 6:4. A presença dos termos
baruc ’adonai pode ser vista nos textos Ex 18:10, 1Rs 5:20, 8:56, Zc
11:4, Sl 28:6, 31:22, 89:53, 124:6, 135:21, 144:1.
83
de fato um hino guerreiro essênio do tipo que está por trás do Magnificat e do
Benedictus”
(2000:153).
Vimos acima que ambos os hinos lucanos abarcam um conteúdo militante. João
Batista, ao que tudo indica, não foi considerado subversivo por castas superiores
somente por seu questionamento da conduta de Herodes Antipas que tinha se casado
com a mulher de seu irmão ainda vivo
60
(Mt 14:3-4; Lc 3:19-20). Pelo contrário, João
parece ter tido um papel bem mais “ativo” em seus dias; presumindo-se, portanto, que
sua condenação foi ocasionada por apenas um de vários motivos não relatados. Os dois
hinos retirados de uma espécie de
“evangelho do nascimento de João Batista”
(FLUSSER, 2000:150), eram na verdade a adaptação de um ou mais hinos utilizados
por Batista e/ou seus seguidores. Os ideais guerreiros, patrióticos e até certo ponto
revolucionários, constituem uma mensagem própria dos círculos de João, cujos
antecessores Flusser localiza entre os membros da comunidade de Qumran.
O hino a que Flusser se refere encontra-se em um texto escatológico que abrange
vários estilos literários. Destaca figuras messiânicas, grupos que atuarão no “fim dos
tempos” e o papel da comunidade na Guerra Final guerra entre os “filhos da Luz”
contra os “filhos das Trevas”. O hino encontra-se em 1QM 14:4-13:
4. Bem-aventurado seja o Deus de Israel
Que preserva misericórdia para Sua aliança
tempos marcados (predestinados) de salvação
para o povo de Sua redenção
5. Ele chamou os errantes para façanhas poderosas.
Ele reuniu uma multidão de nações para a destruição
Total que não deixará sequer um remanescente.
6. Pela justiça Ele exaltará o pusilânime e
abrirá a boca do mudo para alegre
louvar os atos poderosos de Deus.
Ele ensinará a arte da guerra para aqueles com mãos
deficientes.
7. Ele dá força àqueles com joelhos fracos para
se manterem firmes e fortalecerá
os ombros do ferido.
Pelo pobre de espírito (...) de coração duro.
Pelos inocentes no proceder todas as nações más
chegarão ao fim.
8. Nenhum de seus homens poderosos será capaz de ficar de pé.
Mas nós, os remanescentes de Teu povo, abençoaremos
Teu nome, ó Deus de misericórdias, que preservas
a aliança feita com nossos pais.
9. Em todas as nossas gerações Tu fizeste
Maravilhosas Tuas misericórdias aos remanescentes da
nação de Israel, mesmo durante o
60
Não haveria problemas se tivesse se casado com ela após a morte do irmão, pois isto estava previsto na
legislação israelita.
84
domínio de Belial.
Pois não fomos levados para longe de Tua aliança
pelos mistérios de seu ódio.
10. Tu repreendeste seus espíritos destrutivos e
Os expulsastes de nós. Tu protegeste
a alma de Tua redenção em meio
à iniqüidade perpetrada por homens sob
seu domínio.
11. Mas Tu ergueste os caídos com Tua força,
Tu derrubarás os altos de estatura e
humilharás os arrogantes.
Seus homens poderosos não terão ninguém para os salvar
e seus homens velozes não terão lugar para onde fugir.
12. Tu trarás desprezo sobre seus nobres e
sua vã existência será reduzida a nada.
Mas nós, o povo de Tua santidade, louvaremos
Teu nome por causa das obras de Tua verdade.
13. Nós exaltaremos para sempre Teus atos poderosos em todos
os pontos decisivos de épocas e estações marcadas
para a eternidade na chegada do dia e à
noite e também na partida do anoitecer
e pela manhã.
Grandioso é Teu glorioso desígnio e os mistérios de
Teus prodígio estão em Teus altos céus, Tu
exaltas para Te levantares do pó e humildade
dos anjos (Trad. de Flusser).
As diferenças existentes no hino, se comparado aos dois hinos da Natividade de
Lucas, ocorrem em sua maior parte graças ao grupo a que está direcionado o hino.
Termos encontrados neste hino como “Tua aliança”, “Sua redenção”, “remanescentes
de Teu povo”, “povo de Tua santidade”, são referências explícitas à comunidade de
Qumran e ao seu papel a ser desempenhado na grande Guerra Final.
As similaridades deste com o Benedictus e o Magnificat, são, por sua vez, muito
interessantes. Logo no início do hino, encontramos a expressão “Isra’el baruc ’el”, uma
fórmula idêntica à encontrada no Benedictus. Não apenas na etimologia, mas
principalmente nas temáticas, é onde podemos encontrar as analogias mais intrigantes.
O quadro a seguir coloca lado a lado as partes em que ocorrem analogias.
1QM Lucas 1
Bendição e aliança:
4-5. Bem-aventurado seja o Deus de Israel,
que preserva misericórdia para Sua aliança
e os tempos marcados (predestinados) de
salvação para o povo de Sua redenção.
68. Bendito o Senhor, o Deus de Israel
70. como falou pela boca dos santos
profetas, desde o princípio do mundo (...).
85
Livramento dos inimigos:
5. Ele reuniu uma multidão de nações para
a total destruição, que não deixará sequer
um remanescente.
Fortes e fracos:
6-8. Ele dá força àqueles com joelhos
fracos para se manterem firmes (...).
Nenhum de seus homens poderosos será
capaz de ficar de pé. (...)
11. Mas Tu ergueste os caídos com Tua
força. Tu derrubarás os altos de estatura e
humilharás os arrogantes.
11-12. Seus homens poderosos não terão
ninguém para os salvar e seus homens
velozes não terão lugar para onde fugir. Tu
trarás desprezo sobre seus nobres (...)
Misericórdia e aliança:
8-9. Ó Deus de misericórdias, que
preservas a aliança feita com nossos pais;
em todas as nossas gerações Tu fizeste
maravilhosas tuas misericórdias. (...)
Exaltação:
12-13. Mas nós o povo de Tua santidade,
louvaremos teu nome por causa das obras
de Tua verdade. Nós exaltaremos para
sempre Teus atos poderosos (...)
51. dissipou os soberbos (...).
70. para nos livrar dos nossos inimigos
(...).
52. depôs de tronos os poderosos, e elevou
os humildes.
51. Com seu poder obrou valorosamente,
dispersou os soberbos no pensamento de
seus corações.
72-73. para manifestar misericórdia a
nossos pais, e lembrar-se do seu santo
concerto, e do juramento que jurou a
Abraão nosso pai (...).
74-75. de conceder-nos que, libertados da
mão de nossos inimigos, o serviríamos sem
temor, em santidade e justiça perante ele,
todos os dias de nossa vida.
O hino precede o Magnificat e o Benedictus em diversas temáticas e, até certo
ponto, na estrutura. Com palavras não tão díspares, pode-se perceber onde se encontram
as sentenças-chave que teriam sido utilizadas por Lucas em sua redação.
Existe ainda a hipótese de que tanto o hino do
Pergaminho da Guerra quanto os
hinos lucanos fossem oriundos de uma fonte mais antiga, ou seja, um outro hino que
tivesse todos estes elementos principais e que ainda não tivesse recebido os acréscimos
tanto do redator qumrânico quanto de Lucas, sendo assim o “original” de todos. Flusser
reconstruiu a oração com suas temáticas principais seguindo a mesma ordem dos três
hinos, chegando ao seguinte texto:
(4) Bem-aventurado seja o Deus de Israel, Que preserva misericórdia para
Sua aliança (...) (e) salvação para o povo de Sua redenção. (5) Ele chamou
os errantes para poderosas bravuras. Ele reuniu uma multidão de nações
86
para a destruição total (...). (6) Ele exaltará os pusilânimes (...) Ele ensinará
a arte da guerra àqueles com mãos deficientes. (7) Ele dá força àqueles com
joelhos fracos para se manterem firmes e fortalecerá os ombros dos feridos.
Pelos pobres de espírito (...) de coração duro. Pelos inocentes no proceder
todas as nações más chegarão ao fim. (8) Nenhum de seus homens
poderosos será capaz de ficar de pé. Mas nós (...) (abençoaremos) Teu
nome, ó Deus de misericórdias, Que preserva a aliança feita com nossos
pais (...). (11) Mas tu ergueste o caído por Tua força, Tu derrubarás os altos
de estatura [e humilharás o soberbo]. Seus homens poderosos não terão
alguém para os salvar e seus homens velozes não terão lugar para onde
fugir. Tu trarás desprezo sobre seus nobres. Mas nós, o povo de Tua
santidade, louvaremos Teu nome (...) (13) (e) exaltaremos Teus atos
poderosos para sempre (2000:159).
Essa reconstrução com os elementos principais nos leva a compreender a pré-
história do Magnificat e do Benedictus. Por mais hipotética que seja, uma vez que não
existem fontes que possuíssem hinos mais antigos, essa forma de reconstrução é a mais
cabível de crédito por ser um método bastante confiável utilizado pela maioria dos
historiadores bíblicos.
A reconstrução feita por Flusser conduz a um outro questionamento: se existiu
mesmo uma fonte mais antiga que serviu de base ao hino do Pergaminho da Guerra,
não foi esta a utilizada por Lucas? Se isto tivesse ocorrido, os hinos lucanos não teriam
influência de um MQ e toda esta proposta cairia por terra. No entanto, a resposta é:
1QM,
Magnificat e Benedictus, destacam componentes nacionais, sociais e até
revolucionários; elementos próprios da ideologia essênia. Ou seja, se de fato essa fonte
original existiu e influenciou, ela
era essênia, assim como o Pergaminho da Guerra; o
que por fim, não mudaria muito a ordem das coisas. Uma fonte essênia foi recopilada e
“retocada” por outro autor essênio, tornando-se posteriormente parte de 1QM
61
e
chegando só depois às mãos de Lucas integralmente ou em partes.
62
Outro ponto importante é saber como este hino chegou até Lucas. Como dito
acima, o Magnificat e o Benedictus são atribuídos por estudiosos a Isabel e Zacarias,
pais de João Batista. Estes hinos tiveram sua recopilação final, ou seja, praticamente se
61
Isso ocorre devido ao processo de redação do livro. Muito provavelmente, todos os grandes
manuscritos encontrados em Qumran passaram por um longo processo redacional, tornando-se a “versão
consolidada” depois de muito tempo. Isso é algo mais perceptível nos textos que possuem estilos
literários diversos. Na medida em que o texto foi sendo construído, inserções de outros textos também
ocorreram. No caso de inserção de hinos, normalmente seu acréscimo não entrava em contradição com o
restante do conteúdo graças a sua pouca significância escatológica, o que os tornava mais fácil em
harmonizar com o texto inteiro.
62
É bem provável que os hinos de Qumran alcançassem uma abrangência ainda maior do que as obras
que possuíam outros gêneros. Os cânticos tinham a possibilidade de se “descolar” do restante do texto
com razoável facilidade, podendo ser adaptados a outros conteúdos, como no caso dos hinos citados
acima. O texto que chegou às mãos de Lucas, não necessariamente deve ter sido o texto completo do
Pergaminho da Guerra como o conhecemos.
87
“transformaram em Magnificat e Benedictus” pelos seguidores de João Batista,
considerado um dissidente essênio que tinha acesso ao rol dos livros qumrânicos e que
difundiu algumas de suas ideologias (políticas e libertárias) a “todo o Israel” sob uma
outra ótica que defendia uma salvação mais abrangente e não somente para um grupo
fechado, no caso, os essênios. Essa é a opinião de Flusser, que pode assim ser resumida:
A afinidade entre os dois hinos e a oração de ação de graças do Pergaminho
da Guerra essênio forçou-nos a sugerir que
o Magnificat e o Benedictus
foram compostos por discípulos de João
. Como João Batista pertencia num
sentido mais amplo ao movimento essênio, a conexão entre os dois hinos
compostos pelos discípulos de João e uma oração essênia não é nem um
pouco surpreendente (2000:162, grifo meu).
Ainda assim, apesar das opiniões convincentes sobre a origem do hino, pode-se
concluir que ao menos a segunda parte do Benedictus possui traços lucanos. A
contribuição de Flusser deveras, é imprescindível para elucidar como eram possíveis e
fartos os casos de adaptação, apropriação e trocas entre grupos do início de nossa era.
Os outros hinos da Natividade registrados por Lucas não nos trazem maiores
novidades. Muito do que foi dito sobre os dois hinos acima no que tange aos métodos
investigativos, serve também para o Gloria in Excelcis
63
(2:14) e o Nunc Dimittis
64
(2:29-32). O Gloria in Excelsis apresenta-se como uma aclamação doxológica enquanto
o Nunc Dimittis parece retratar as esperanças messiânicas do período. Quanto às origens
dos hinos, no estágio atual em que se encontram as pesquisas, é impossível afirmar algo
mais do que sua origem judaica em sentido geral.
3.2 OUTROS HINOS DO NOVO TESTAMENTO
Não é possível pensar os hinos do NT analisando-os em uma visão de conjunto.
Na verdade, os próprios livros que os abrigam não possuem conjunto. São oriundos de
autores diversos sem relações ente si, outros são incógnitos ou incertos; somando-se a
isso a dificuldade de determinar os gêneros literários envolvidos. Um caso à parte
poderia ser o dos sinóticos, onde, de forma geral, há “concordância” entre os textos. No
entanto, deve-se levar em consideração que um serviu como fonte para a redação dos
outros, algo que ainda assim não descredencia o comentário supracitado.
63
Expressão latina equivalente a “Glória a Deus nas Alturas”, existente no início do hino.
64
Sentença, também latina, que significa “despedes em paz o teu servo”, encontrado no prólogo do hino.
Este hino possui o nome mais popular de “cântico de Simeão”.
88
Dediquei maior atenção aos hinos da natividade de Lucas, pois dentre todos os
existentes no NT, são os que permitem um estudo mais aprofundado. O fato de serem
hinos mais extensos ajuda em muito o seu estudo. Não é o caso do restante dos hinos do
NT.
Alguns dos hinos encontrados nos outros livros do NT são caracterizados por
conterem expressões salmódicas, fórmulas de louvor, doxologias e similares (cf.
FREDERICO, 2001:86). Várias dessas expressões eram semíticas e acabaram inseridas
em escritos cristãos, mesmo de tradições diferentes. Por mais que o texto em que elas se
encontram não seja caracterizado como hino, a expressão utilizada remete às orações e
cantos recitados no século I pela população judaica. A mais famosa destas certamente é
a “’amen”. Essa exclamação usada normalmente ao final de um texto, asseverando uma
declaração, é bastante utilizada no AT para ratificar bênçãos (
e.g. Jr 11:5) ou invocações
do mal (e.g. Dt 27:15-26) em expressões salmódicas e orações. A palavra “Amém” em
hebraico significa “assim seja” ou “é verdade”. Foi usada amplamente pelas igrejas
primitivas com o mesmo sentido com que era usado no judaísmo. São vários os livros
do NT que abrigam o termo, o que prova o seu uso rotineiro entre as várias
comunidades.
65
Outro caso é o do termo “hosana” (do hebraico hoshi‘ah na’, “salve-nos!”),
usado pela população ao saudar Jesus em sua entrada em Jerusalém montado num
jumento (Mt 21:9,15; Mc 11:9,10; Jo 12:13). O termo provavelmente foi retirado dos
Salmos mais precisamente do Salmo 118 cantados nas épocas em que havia
festividades no Templo. O aspecto messiânico que essa palavra representava certamente
fazia com que ela continuasse a ser usada pelas comunidades cristãs do século I em suas
petições diárias. Similarmente à importância teológica do termo hosana, mas com
apenas uma aparição nos textos do NT (1Cor 16:22), a expressão aramaica “maranata”
(maran ’at’a) está relacionada com a esperança messiânica das comunidades cristãs
primitivas. Na maioria das traduções o termo é entendido como “o Senhor vem”,
mostrando a crença já consolidada na segunda vinda de Cristo.
66
65
Textos em que se encontram o emprego do termo Amém no NT: Rm 1:25, 9:5, 11:36, 15:33, 16:27;
1Cor 14:16; 2Cor 1:20; Gl 1:5, 6:18; Ef 3:21; Fl 4:20; 1Tm 1:17, 6:16; 2Tm 4:18; Hb 13:21; 1Pd 4:11,
5:11; 2Pd 3:18; Jd 25; Ap 1:6, 3:14, 5:14, 7:12, 19:4, 22:20,21.
66
Com menos incidência, o termo às vezes é vertido como “o Senhor veio”, o que muda a forma de
pensar sobre a compreensão paulina sobre a vinda de Cristo em sua epístola aos coríntios, já que a
esperança messiânica está intimamente relacionada com o passado/futuro. Nota da Bíblia de Jerusalém:
“Palavras aramaicas que haviam passado para a linguagem litúrgica; exprimiam a esperança da
Parusia (segunda vinda de Cristo) próxima”
.
89
Uma expressão doxológica bastante usada pelas primeiras comunidades cristãs
foi
“a Ele seja dada a glória pelos séculos dos séculos”. Essa expressão, encontrada
algumas vezes no AT (e.g. Dn 2:20), é bastante empregada no NT próxima a
aclamações litúrgicas.
67
São muitas as expressões encontradas no NT que refletem o “ambiente judaico”.
As citadas acima estão relacionadas com práticas de louvor. Mesmo que não se
caracterizem, integralmente, em hinos como os da Natividade lucanos ou outros ,
reforçam a idéia de que essa prática cristã, em sua gênese, se apropriou de elementos
existentes.
É difícil querer atribuir a todos os outros hinos do NT uma matriz judaica, ou
ainda mais, qumrânica. As comunidades cristãs possuíam uma miscigenação étnica bem
maior do que a conhecida pelo judaísmo, e à medida que as pregações foram
aumentando, seu caráter de Evangelho “universal” foi se consolidando. A teologia e a
eclesiologia cristã, por sua vez, desenvolveram-se não somente com elementos
pertencentes às correntes judaicas da época, mas utilizaram-se também de rudimentos de
outras correntes de pensamento provindas de lugares em que ocorreu a expansão do
cristianismo. Essa apropriação de elementos não-judeus pode ser percebida no NT, e
não deve ser desconsiderada quando encontrados possíveis paralelos com fontes
anteriores ou contemporâneas. No caso da maioria dos hinos encontrados no NT,
percebe-se que as influências advindas do judaísmo parecem ser mais sutis porque se
acham misturadas a um outro linguajar e a novas concepções teológicas.
Encarar estes hinos pela sua temática pode ser um bom caminho para
compreender a inserção de novas idéias e a manutenção de antigas doutrinas nos
escritos cristãos.
Alguns dos hinos do NT são considerados como “hinos cristológicos”, destacam
de forma central a figura de Jesus como Messias. São muito importantes e significativos
por apontarem para a cristologia em sua gênese dentro das primevas comunidades
cristãs. São os hinos que se encontram em Fl 2:6-11, Cl 1:15-20, Ef 2:14-16, 1Tm 3:16,
Hb 1:3 e 1Pe 3:18-19, 22. Dentre estes, se destacam os dois primeiros, escritos por
Paulo. Estes hinos abrigam motivos comuns, que giram em torno da redenção, mediação
e ressurreição de Cristo. É o caso do hino de Filipenses 2:6-11:
67
As passagens no NT são as seguintes: Lc 2:14, Rm 11:36, 16:27, Ef 3:21, Fl 4:20, Gl 1:5, 1Tm 1:17,
2Tm 4:18, 2Cor 11:31, Hb 13:21, 1Pd 4:11, 5:11, 2Pd 3:18, Jd 25, Ap 1:6, 5:13, 7:12 e 19:1.
90
6. Ele tinha a condição divina,
e não considerou o ser igual a Deus
como algo a que se apegar ciosamente.
7. Mas esvaziou-se a si mesmo,
e assumiu a condição de servo,
tomando a semelhança humana.
E, achado em figura de homem,
8. humilhou-se e foi obediente até a morte,
e morte de cruz!
9. Por isso Deus o sobreexaltou grandemente
e o agraciou com o Nome
que é sobre todo o nome,
10. para que, ao nome de Jesus,
se dobre todo o joelho dos seres celestes,
dos terrestres e dos que vivem sob a terra,
11. e, para a glória de Deus, o Pai,
toda língua confesse: Jesus é o Senhor.
Aqui vemos a inserção da temática cristológica da seguinte maneira: a)
contradição entre a natureza terrena e divina e a abdicação desta última, b) morte
imerecida e humilhação pela cruz, c) ascensão triunfal em glória.
A disposição do hino segue uma estrutura mais ou menos similar à de outros
hinos. Neste caso, os versículos 6-8 referem-se ao aniquilamento, enquanto que os
versículos 9-11 refletem a exaltação. Esse hino parece ser um exemplar antigo das
primeiras comunidades judaico-cristãs anteriores a Paulo.
“Os exegetas são quase
unânimes em ver neste texto um hino emprestado das comunidades e citado por Paulo”
(GOURGUES, 1995:67). Entretanto, esse antigo hino não foi enviado aos filipenses sem
que passasse antes por mudanças nas mãos de Paulo.
Se Paulo acrescentou esta frase a um hino existente, deve ela valer como
um comentário destinado a seus leitores filipenses. Em uma cidade romana,
para os ouvidos de cristãos que certamente se sentiam orgulhosos de
pertencer a uma colônia romana (cf. At 16:10), esta menção da cruz devia
soar como algo de horrível e repugnante. Com efeito, a morte na cruz era
reservada aos escravos e às pessoas de classe social inferior. Ora, o Senhor
da Igreja consentiria em terminar sua vida em um patíbulo romano e, assim,
no modo de ver dos judeus, morrer sob o peso da condenação divina
(MARTIN, 1982:99-100, apud GOURGUES, 1995:70).
Na Epístola aos Colossenses, sem dúvida, o ponto alto é o hino cristológico em
1:15-20. O número de semelhanças deste hino com o de Fl é bastante interessante. A
“preexistência” é vista nos versículos 15-17 e no versículo 2:6 de Fl, além da “condição
divina” atestada no versículo 15, encontrada no mesmo versículo de Fl acima citado. É
91
possível que a fonte dos dois hinos possa ter sido a mesma ou semelhante, somando-se
posteriormente a teologia e vocabulário de Paulo.
Dentre os hinos cristológicos, estes são os mais importantes. A riqueza destes
hinos está na certeza da redação paulina (Fl) e sua influência (Cl), de serem hinos
emprestados por Paulo e por mostrarem como pensava a primeira geração de discípulos
cristãos. Além disso, são ótimos exemplos que mostram como foram incorporadas
novas temáticas ao cristianismo e como estas foram assimiladas pelas comunidades.
Nestes hinos Jesus é apresentado como pré-existente, de natureza divina, fazendo-se
homem em condição de servo, sendo proclamado Senhor por este motivo.
Pertencentes a uma outra categoria, os hinos registrados em Ef 1:3-14;
68
1Pd 1:3-
5; 2Cor 1:3-4 e Rm 11:33:36, são considerados como
“hinos a Deus”, dedicados
diretamente à Ele, porém, ainda assim fazem citação à pessoa de Cristo. Começam com
a expressão “bendito”, salvo na epístola aos Romanos (cf. FREDERICO, 2001:87).
69
Outras epístolas no NT que possuem hinos são as do bloco conhecido como
epístolas católicas. Estas recebem esse nome por não possuírem um destinatário fixo
como uma comunidade ou alguma personalidade, mas por terem um destino mais
“universal”. Os hinos nela existentes se encontram em 1Pd 4:11; 5:10-11; 2:22-25; 3:18-
22; 5:5:5-9; 1:3-5 e Tg 4:6-10.
No último livro da Bíblia, o Apocalipse – que enfrentou diversos problemas para
sua canonização – , a música está relacionada com o culto celestial, trazendo à memória
o ritual na forma como era executado no Primeiro Templo de Jerusalém, transportando
toda a sua organização temporal a um nível celestial. A forma usada na liturgia do
templo terreno serviu de modelo para que fossem construídas as imagens celestes
criadas por João neste livro. Por ele ter se espelhado em uma tradição mais antiga, a do
AT, o Apocalipse pode não ser considerado um bom exemplo para ser usado como
prova de que as comunidades cristãs tinham a música utilizada em sua liturgia. Dentre
os poucos exemplos que mostram o uso da música nas primeiras comunidades cristãs, os
melhores são Cl 3:16 e Ef 5:19, citados anteriormente. No entanto, se o objetivo for
encontrar a presença de literatura hinária, o livro de Apocalipse se torna um dos
68
Também considerado um hino trinitário.
69
Estes são textos que estão relacionados com a “eulogia”, do verbo grego “eulogeo abençoar. A
semelhança do
eulogetos grego (abençoado) se dá com o baruk hebraico (abençoado). Além destas
passagens relatadas como hinos a Deus que utilizam a expressão
abençoado, na Bíblia de Jerusalém
podemos encontra-los em: Mt 21:9; 23:39; Mc 11:9,10; 14:61; Lc 1:42,68; 13:35; 19:38; Jo 12:13; Rm
1:25; 9:5; 2Cor 11:31; 1Tm 1:11; e 6:15. São várias as situações em que estes termos aparecem próximos
a expressões doxológicas e formas de louvor, o que mostra que na prática eram utilizados da mesma
maneira que na liturgia judaica.
92
melhores. Os trechos considerados hinos pela maioria dos biblistas são: 1:5-8; 4:8-11;
5:9-14; 11:17-18; 12:10-12; 15:3-4; 18:22-23; 19:1-9 e 22:16-17,20; com poucas
variações.
3.3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ANALOGIAS
Vários eruditos colaboraram para uma grande lista de termos compartilhados
entre os livros do NT e a literatura de Qumran. Os “trabalhos da Lei”, os “filhos da
luz”, “Belial”, as “bendições”; são apenas alguns dos termos já identificados que
compõe esta relação. No entanto, a busca incessante por analogias entre os MQ e o NT
resultou em inúmeras páginas escritas sem grande rigor científico e o devido cuidado
com a interpretação da fonte.
70
Por isso, faz-se necessário tratar brevemente sobre este
assunto neste capítulo, que utilizei-me de algumas comparações utilizando escritos
hinários.
Infelizmente, vários paralelos apresentados por especialistas são na verdade
criações a priori, muito mais resultantes da intenção do interpretante do que da
veracidade da comparação. Em alguns exemplos citados a seguir, poderemos perceber
que as palavras de Martínez se fazem verídicas, quando diz que é fácil encontrar
paralelos nos textos qumrânicos, quando estes foram previamente “cristianizados”,
atribuindo-se-lhes um significado que não tinham” (1996:271).
Sabe-se que é grande a importância que as analogias possuem quando se trata
das relações entre Qumran, essenismo, e cristianismo. O sensacionalismo e a busca por
sucesso editorial
71
certamente são os maiores responsáveis pelo grande número de
disparates no trato MQ, comunidade de Qumran, NT e cristianismo. Curiosamente,
analogias mais excêntricas praticamente inexistem quando se trata de relacionar os MQ
com outros escritos como o AT; ou mesmo quando o que se analisa são estruturas
políticas e sociais da época.
Foram muitas as relações traçadas entre estes dois corpus literários desde a
descoberta dos MQ. Alguns estudiosos, um tanto enfáticos em suas confrontações,
defenderam inclusive que partes dos Evangelhos haviam sido encontradas entre os MQ.
Presume-se que o Evangelho de Marcos tenha sido escrito antes de ter ocorrido a
destruição do assentamento de Qumran (c. 68 d.C.). Em um caso certo, o das epístolas
70
Faço uso aqui dos termos analogia e paralelo em seu sentido sinonímico.
71
Assunto melhor tratado nas páginas 26-31.
93
paulinas, sabe-se que possuem datação anterior à destruição do assentamento. Esse
argumento, para alguns, é o suficiente para especulações de que o material escrito era
diretamente compartilhado em um
link entre cristãos e a comunidade de Qumran. Essa
especulação é tão ousada quanto recusada no meio acadêmico.
Analisar a cronologia certamente não é o suficiente para explicar as relações
ocorridas entre comunidades contemporâneas do princípio da era cristã. Se observados
outros aspectos, principalmente temas ligados ao conjunto de crenças qumrânico,
percebe-se o quão difícil é estabelecer e provar paralelos; que até hoje, sabe-se que o
número de diferenças é maior que o de semelhanças.
José O’Callaghan, jesuíta espanhol, disse ter encontrado partes do Evangelho de
Marcos e outros textos do NT escritos em grego, em fragmentos da Gruta 7 de Qumran.
De fato, a Gruta 7 é bem peculiar entre todas por possuir material escrito em grego.
Foram encontrados lá o livro de Êxodo na versão da Septuaginta, uma epístola a
Jeremias (não presente no cânon hebraico, mas existente na versão grega), o livro de
Enoch e uma série de fragmentos não identificados, também em grego. Entretanto, os
textos em que O’Callaghan baseou suas comparações são muito curtos, o que
evidentemente abre espaço para várias interpretações. Se estas proposições apresentadas
por ele estivessem corretas, muitas das teorias centrais acerca de Qumran teriam de ser
reconsideradas.
Após perceber que falsos paralelos estavam a cada dia tomando tempo
desnecessário em algumas pesquisas, o rabino e professor Samuel Sandmel (1911-
1979), no encontro anual da Sociedade Bíblica de Literatura (EUA), em 1961, instou
que a busca perniciosa por analogias entre os MQ e o NT, se tornava nas mãos de
alguns eruditos uma espécie de “paralelomania”, exageros cometidos na busca por
paralelos. Segundo ele:
Podemos para nossos propósitos definir paralelomania como uma
extravagância entre os eruditos que primeiro excedem a suposta semelhança
em passagens e então começam a descrever a origem e derivação
insinuando uma conexão literária dentro de uma inevitável ou
predeterminada direção (1962:1).
Sandmel não nega que existam paralelos. Pelo contrário, concorda que eles
existam e em grande número por sinal. Entretanto, os exageros, assimilações forçadas
entre uma fonte e outra criam relações apenas verossímeis.
94
As respostas encontradas nas fontes analisadas variam de acordo com os
interpretes, o que é algo puramente normal. O problema existe quando estas respostas
(paralelos) se tornam “superinterpretativas”. A fonte utilizada nem sempre quer “dizer”
o que o intérprete “ouve”, mas para provar o que quer ele acaba distorcendo o que a
fonte expressa, procurando dentro dela somente indícios obscuros que podem
corroborar com o que pensa. Comentando sobre as relações entre os escritos paulinos e
qumrânicos, Martínez explicita que
“é preciso evitar recortar dados de uns e outros
textos sem nenhum método crítico, fazendo uma embrulhada de textos que nunca
tiveram relação alguma entre si” (1996:268). Este cuidado certamente deve ser
colocado em primeiro plano ao propor qualquer analogia encontrada entre os MQ e o
NT.
Os paralelos podem existir em diversas formas: lingüísticos, estruturais,
temáticos, ideais e afins. Para ilustrar melhor como estes são utilizados, cito alguns
exemplos. Um paralelo terminológico foi encontrado em um fragmento conhecido como
4Q246 (também conhecido por 4QApocalipse Aramaico), que traz a expressão
messiânica “filho de Deus”, termo esse também encontrado no NT (Lc 1:35; Jo 19:7;
At 8:37; Gl 2:20). O texto é o que se segue:
1- Será denominado filho de Deus, e lhe chamarão filho do Altíssimo. (...)
4- Até que se levante o povo de Deus e tudo descanse da espada. 5- Seu
reino será um reino eterno, e todos os seus caminhos em verdade e direito.
6- A terra estará na verdade, e todos construirão a paz.
Ora, a expressão “filho de Deus” era conhecida no AT em diversos sentidos
(e.g. Gn 6:2; 2:1; Sl 82:6). No entanto, o contexto deste fragmento demonstra uma
direção incomum se comparado a todos os outros versículos da Bíblia Hebraica que
possuem esta expressão. No fragmento, é destacado o aspecto messiânico de modo
muito mais próximo à forma utilizada no NT quando se refere a Jesus do que a qualquer
outra expressão similar precedente encontrada no AT (cf. FITZMYER, 1997:125-127).
O caso do fragmento 4Q246 é um bom exemplo que mostra que para se ter um
paralelo, não bastam apenas coincidências. A expressão “filhos de...” já era utilizada no
AT de vários modos,
72
porém, em nenhum o termo possui caráter messiânico como em
4Q246. Pode-se concluir, portanto, que este fragmento possui uma orientação
72
Cf. p. 38.
95
messiânica. Se foi feito um empréstimo direto ao cristianismo é difícil saber. Porém, tão
importante quanto saber se ouve o empréstimo, é saber que o uso dessa terminologia
com esta direção não restringiu-se apenas ao cristianismo, mas era algo
anterior (ou
contemporâneo) ao cristianismo e já conhecido na Palestina do século I.
Como neste exemplo demonstrado acima, ao analisar a fonte que supostamente
pode ter servido de base para algum escrito do NT, faz-se necessário estar atento a
outros aspectos além dos que se considera como base para a analogia, pois apenas um
ponto semelhante pode não ser o suficiente para se afirmar que houve empréstimos.
Fitzmyer aponta um caso muito interessante de leitura tendenciosa, de conteúdo
desvirtuado. O citado historiador Robert Eisenman teve acesso a um pequeno
fragmento de Qumran que, segundo ele, apresenta o líder da comunidade do mar Morto
como modelo de Jesus. Sendo assim, este líder comunitário deixaria de ser apenas o
“interpretante” das Escrituras e uma figura sacerdotal entre seus adeptos, assumindo um
papel ainda maior, o de Messias salvador. Além disso, provaria como Eisenman
intenta dizer que o modelo de Jesus não possuía “originalidade”.
73
Fitzmyer também
fez a tradução deste fragmento e percebeu que não existe uma citação explícita a algum
Messias. Ainda mais, o texto não “extravasa” as expectativas messiânicas conhecidas
pelo judaísmo da época. Pior que isso, como demonstrou Fitzmyer, é fazer uma leitura
parcial (facciosa) de alguns termos do manuscrito, direcionando-o à um outro sentido.
Como disse:
Eisenman o texto como leu por causa de sua tese geral de que os textos
de Qumran se referem aos inícios do cristianismo. (...) Não conheço
nenhum outro intérprete dos MQ que concorde com ele. Eisenman passa
por cima da datação paleográfica dos manuscritos e dos fragmentos, das
provas arqueológicas que apóiam essa datação, e da datação radiocarbônica
(1997:174).
A intenção de provar o que se quer dizer ao invés do que o texto diz acaba dando
“vozes” inexistentes a ele. Por vezes, não chegam a atingir nem a verossimilhança. Um
caso como este “mostra como a leitura e interpretação de um texto de Qumran podem
ser manipuladas por alguém que prejulgou o assunto com base numa tese de sua
preferência” (FITZMYER, 1997:175).
73
O texto possui linhas incompletas, deterioradas graças ao tempo. Estas lacunas são as responsáveis para
que infelizmente não haja uma leitura retilínea do fragmento. As sentenças utilizadas por Eisenman, como
“um ramo sairá da cepa de Jessé, o rebento de Davi”, “e o príncipe da congregação o entregou (ou
entregará à morte), “e com pregos”; são insuficientes para provar que essa figura “messiânica” era
alguém do tempo presente e não do porvir.
96
Muitas interpretações tendenciosas e equivocadas surgem de fragmentos. Por
meio deles é mais fácil “provar” a intenção do interpretante, possivelmente contrária à
intenção do texto. Interpretações audaciosas, que se baseiam em probabilidades,
dificilmente são feitas em textos grandes e bem conservados, já que o número de
lacunas no texto é pequeno, ou o inteiro contexto do manuscrito não permite uma
interpretação extravagante.
Um exemplo de extravagância tem tido grande repercussão atualmente. Alguns
estudiosos se deleitam em procurar “códigos” implícitos dentro da Bíblia Hebraica. O
método usado constitui na escolha de uma letra inicial como base, e a partir dela dá-se
“saltos” eqüidistantes seguindo uma razão. À medida que as letras vão aparecendo
como resultado disso, vão se formando sentenças “reveladoras”. Entre os adeptos desta
prática, o mais famoso nos últimos anos é um escritor de nome Michael Drosnin, que
fez grande sucesso com um livro chamado
The Bible Code.
74
Acontecimentos como a
morte de Yitzhak Rabin, a ida do homem à lua, o atentado terrorista de 11 de setembro;
foram alguns dos fatos que segundo Drosnin, estavam descritos implicitamente na
Bíblia.
Abro um espaço para falar de algo assim graças à repercussão que tal fato
consegue abranger. Não se deve duvidar que atualmente alguém possa fazer isso
conscientemente, visando apenas sucesso editorial.
75
Apesar de as interpretações
excêntricas de alguns especialistas dos MQ aparentemente não serem tão absurdas
assim, a intenção final parece ser a mesma.
76
Se fosse somado todo o material textual encontrado nas cavernas de Qumran,
presume-se que o número de manuscritos devesse chegar a mais ou menos 800. Como a
maioria destes encontrava-se rasgados, o número de fragmentos chega, segundo
algumas cifras, a mais de 15.000.
77
Muitos fragmentos não nos ajudam em nada devido
74
Em português: DROSNIN, Michael. O Código da Bíblia. Trad. Merle Scoss. São Paulo: Ed Cultrix,
1997.
75
Após o grande sucesso alcançado em seu primeiro livro, Drosnin lança Bible Code II (2002), contendo
várias outras de suas “profecias”.
76
As palavras em hebraico não são escritas com o uso de vogais, usa-se somente um radical consonantal e
por ele ocorrem diversas variações. Apesar disso, uma pessoa depois de ser bem iniciada na língua
consegue ler, já que quando se pronuncia há o acréscimo das vogais. Algumas letras assumem uma
postura diferente de acordo com o radical. Por exemplo, a sexta letra do alfabeto hebraico,
“waw”, pode
assumir o som das letras “o”, “u” e “v”. Certamente esta foi uma letra muito especial para ajudar Drosnin
a fazer suas previsões.
77
O maior número de material fragmentário é proveniente da Gruta 4. Existem duas hipóteses aceitas
para explicar o porquê disso: 1) soldados romanos perseguiram habitantes de Qumran que guardavam
97
a vários motivos: ou estão muito decompostos (ilegíveis) pela ação do tempo ou
encontram-se num estado tão fragmentário que não é possível encaixá-lo em seu
quebra-cabeça o manuscrito em sua totalidade. Alguns fragmentos possuíam apenas
uma única letra, algo que por si torna praticamente impossível sua associação com o
manuscrito. O
International Team tentou durante muito tempo montar esse quebra-
cabeça gigante, enfrentando diversos problemas técnicos para isso. No tocante à
manipulação do conteúdo dos documentos por parte da equipe que ela era acusada
de manipular (no sentido pejorativo do termo) os textos a seu favor , foram vários os
ataques lançados por especialistas no assunto contra esse empreendimento.
A acusação de alguns (basicamente os de fora do International Team) era a de
que na montagem dos fragmentos fosse dado um sentido diferente do que o que o texto
queria dizer. Com a demora exagerada na publicação dos textos, inevitavelmente
criaram-se diversos rumores de que os MQ estavam trazendo à luz um conteúdo que
pudesse prejudicar as bases do cristianismo. Para solucionar isso (segundo os
acusadores), a forma encontrada pela equipe foi a de “relacionar os fragmentos de uma
forma que não viessem à tona informações prejudiciais”. Não sem razão, pesquisadores
lutaram contra a monopolização dos textos, e entre todas as críticas desferidas pelos de
fora, essa foi uma das mais importantes (embora hoje tenhamos certeza de sua falta
de fundamentação).
A forma com que o International Team foi acusado de tratar os manuscritos
fragmentários com a suposta intenção de proteger o cristianismo teria sido similar à
utilizada por Eisenman: manipular partes menores para encaixá-las em uma idéia geral.
Foi necessário um bom tempo de estudo e a inclusão de muitos outros especialistas para
se concluir que o que os manuscritos não embaraçam a cristã, mas sim ajudam a
compreender melhor a sua gênese.
Podemos encontrar analogias em vários textos de Qumran. Fazendo delimitações
textuais cortes arbitrários nas fontes a serem comparadas , pode-se trabalhar melhor
com as possíveis analogias. Nos escritos hinários, por exemplo, normalmente os
manuscritos na Gruta 4, a mais importante. chegando, destruíram o que conseguiram, deixando o que
sobrou em estado fragmentário. Esta gruta provavelmente foi uma das mais (ou a mais) freqüentadas
pelos de Qumran, uma vez que vestígios arqueológicos de madeiras que davam sustentação à caverna
foram ali encontrados. Isso mostra que esta gruta, embora de origem natural, foi adaptada para ocupação
humana. 2) a Gruta 4 foi descoberta primeiramente por pastores beduínos. Após saberem que arqueólogos
ligados a autoridades governamentais estavam pagando por pedaços de manuscritos, os beduínos
começaram a picar textos que eram originalmente maiores.
98
paralelos são encontrados na estrutura textual. Quando colocadas lado a lado, as
passagens bíblicas hinárias apresentam concordâncias, ou ao menos aproximações
estruturais que convencem o interpretante de que houve contribuições e/ou adaptações.
Entre os escritos joaninos, além de se encontrarem paralelos na terminologia, as
idéias expressas por João são também semelhantes a diversas passagens dos
pergaminhos. Os textos atribuídos a João compõem uma fonte muito rica para se
entender as diferentes formas assumidas pelo cristianismo nascente. Ajudam a entender
também que as influências não ocorriam na totalidade de um determinado movimento,
mas sim em particular, em correntes de pensamento particulares.
Nos textos paulinos, vemos as maiores semelhanças na teologia. Não existem
paralelos entre algumas das idéias de Paulo quando comparadas a outros livros do NT.
Mas, convincentemente, percebe-se que a relação com alguns aspectos da teologia da
comunidade do mar Morto é muito próxima. O que se depreende frente a isto é que
existem escritos cristãos que apresentam maiores proximidades com os textos
qumrânicos, outros não.
Para que se busquem essas relações é necessário definir critérios para
caracterizar a existência de paralelos. Entre os cuidados que têm de ser tomados, um dos
principais está em saber que um paralelo não significa necessariamente um
empréstimo.
Algumas passagens talvez indiquem que o uso de determinado termo foi algo corrente
na Palestina no século I, não pertencendo exclusivamente a um determinado grupo
religioso. Por sua vez, afirmar que houve um empréstimo direto de um lugar para outro
tem uma diferença muito grande. Por isso, mais do que apenas identificar um paralelo, é
necessário também que se mostre o “caminho” deste, e se de fato ele se caracteriza
como um empréstimo, que o afrontamento de passagens correlatas tidas como
análogas em textos diversos podem na verdade ser meras coincidências; ou numa
situação mais típica, ser fruto de um ambiente maior.
A explicação de como um determinado documento foi influenciado ou recebeu
empréstimos é fundamental para provar a existência de paralelos. Um exemplo
lembrado entre escritores que tratam do tema é o de Lorenzo Valla (1406-1457). Ele
demonstrou que o famoso documento conhecido como Constitutum Constantini era uma
fraude. Ao fazer uma análise filológica do documento, Valla provou que algumas
expressões lingüísticas encontradas eram implausíveis para a suposta datação do
documento, início do século IV (c.f. ECO, 1997:81-82; LE GOFF, 1984:100). A análise
lingüística do documento feita por Valla é uma das técnicas fundamentais para que as
99
analogias possam ser provadas como verídicas ou não. Os especialistas que desde cedo
se utilizaram da paleografia para a datação dos MQ chegaram a datas convergentes com
os testes de radiocarbono, datando em sua maioria entre o século II a.C. e meados do I
d.C. Essa datação é praticamente consensual entre os que trabalham com as fontes de
Qumran, o que em suma, elimina de antemão a idéia de estes serem contemporâneos ao
menos da maioria dos livros do NT.
Ainda se referindo aos aspectos lingüísticos, antes de se traçar uma analogia
entre um manuscrito de Qumran ou do AT com passagens do NT, é importante relevar
que o que está sendo usado como fonte para o NT, está escrito em sua maioria na língua
hebraica, enquanto que o NT está em grego. Não que as analogias não devam ser
propostas e estudadas alegando que certos termos e expressões tivessem sentido
peculiar à respectiva língua (o que não deixa de ser verdade), mas sim que uma analogia
pesquisada utilizando uma tradução em língua moderna tem de ser encarada com maior
rigor, pois pode não ser correspondente em sua língua original, o que de fato determina
se o termo (ou estrutura e etc.) é análogo ou não.
É verdade que a tradução, por melhor que seja, introduz mudanças que podem
afetar a estrutura semântica ou narrativa dos textos. Entretanto, na medida em que o
pesquisador procura se isentar do “culto ao objeto” (“fetichismo” pelo próprio texto), os
problemas ao usar uma tradução moderna são menores (embora não deixem de existir).
Como uma segunda etapa de trabalho, o pesquisador pode comparar os resultados da
análise depreendida do texto em sua língua original (cf. CHABROL, 1980:7). Havendo
potencial do pesquisador para isso, tal fato enriqueceria grandemente a pesquisa, além
de dotá-la de mais crédito.
Felizmente, algumas comparações feitas com o rigor necessário trouxeram
importantes revelações, mostrando que alguns termos gregos possuíam correspondentes
semíticos anteriores que serviram de base quando da composição dos escritos cristãos.
Um dos casos mais famosos entre estes pode representar muito bem o que é isso. O
citado termo “filhos da luz” é encontrado diversas vezes nos MQ demonstrando o ponto
de vista escatológico da comunidade. Essa expressão tem a sua base oriunda dos
escritos do AT, que se utiliza da designação “filhos de...” para representar grupos
étnicos ou classes sociais. A expressão “filhos da luz”, por sua vez, não é encontrada em
parte alguma no cânon hebraico, mas está presente tanto em Qumran como no NT. Este
vocábulo não era conhecido na língua hebraica até a descoberta dos MQ, mas no NT ele
era usado para designar os cristãos como grupo. Nele, os termos correspondentes em
100
grego são encontrados em Lc 16:8 (hoi huioi tou photos), Ef 5:8 (tekna photos) e em
outros como 1Ts 5:5 e Jo 12:36 (
huoi photos). A associação desse termo feita em duas
línguas diferentes pôde explicar como o cristianismo veio a adaptá-lo para sua
realidade, além de provar que ele era próprio do judaísmo palestino e utilizado em uma
escala maior do que se pensava e não apenas pelos essênios.
Atualmente, com as teses centrais sobre Qumran mais consolidadas e com o
número de pesquisadores aumentando gradativamente a nível mundial devido ao
término das traduções dos MMM, as analogias e comparações forçadas
(superinterpretativas) são cada vez mais difíceis de encontrar, mesmo quando o alvo
maior é o tão polêmico nascimento do cristianismo.
A expressão latina vacat, significa “vaga”; de vago, vazio. É muito comum
encontra-la nas traduções dos MMM. Mostra que o trecho traduzido para uma língua
moderna apresenta um espaço destruído ou ilegível onde o termo aparece. Analogias
mal construídas são como reconstruções desses trechos desconhecidos; em que na
verdade, o interpretante transforma o vacat em um espaço para imprimir seu ponto de
vista, ao invés de deixar, onde se pode, que o texto fale por si mesmo.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se fôssemos buscar explicações a todas as analogias encontradas entre os livros
de Qumran e os escritos cristãos, certamente o número de páginas desse trabalho se
multiplicaria exponencialmente. Praticamente em todos os livros do NT podemos
encontrar algo que nos faça remeter aos MQ. Sem dúvida, para que determinado
trabalho não se perca com o grande número de analogias é preciso fazer delimitações na
pesquisa. Através disso, pode-se focar com maior precisão o que está sendo analisado.
Desde a descoberta dos MQ, foram encontrados inúmeros pontos de contato
entre estes dois corpus literários, e em sua maioria não houve alterações desde suas
primeiras interpretações. Atualmente, a maioria dos estudos trazidos ao público dá mais
atenção a isso. Não trabalham com teses muito abrangentes, uma vez que estas
apresentam mais erros do que acertos. O caminho do “meio” parece estar a cada dia se
consolidando como ponto norteador das pesquisas que envolvem Qumran e o
cristianismo. A revisão de alguns conceitos que deve ser feita hoje deve-se ao fato de
muitas das interpretações equivocadas e tendenciosas ainda influenciarem pesquisadores
que não abrangem seu leque de leitura como deveriam.
A literatura hinária de Qumran pode ser encarada no presente como um caminho
para a compreensão de como alguns aspectos, principalmente literários e teológicos,
vieram a ser inseridos em algumas comunidades cristãs – além de aumentar nosso
conhecimento sobre a própria comunidade qumrânica. Não só o estrato paulino pode ser
avaliado sob luz da literatura hinária qumrânica, mas com os cuidados necessários,
outras porções do NT também podem se utilizar desse viés.
Quanto aos hinos do NT, a maior parte dos especialistas acredita que para serem
analisados adequadamente, o ideal é agrupá-los por suas temáticas ao invés de examinar
o hino de forma isolada ou junto apenas do contexto em que está inserido.
Principalmente no caso das epístolas, uma observação diferente desta acusaria a
necessidade de questionamentos de outras naturezas, como temporalidade, geografia,
autenticidade; coisas que no caso de alguns livros são impossíveis de se garantir.
Talvez, ainda assim com algumas reservas, os hinos que poderiam ser agrupados
relevando estes aspectos seriam os inseridos nas epístolas autenticamente paulinas, e
com mais ressalvas ainda, nas cartas que possivelmente pertencem a seus círculos.
Mesmo assim – e isso se aplica a todos os livros do NT – a intenção de dar uma resposta
102
definitiva à questão da fonte utilizada pelos autores cristãos pode levar-nos a digressões
um tanto incertas sobre a maioria dos livros, envolvendo mais suposições do que fatos
concretos. Mais incerto ainda é considerar que a maior parte destes hinos possui
antecedentes qumrânicos. Apesar de o movimento essênio ser bem mais amplo do que
parece e ter sobrevivido até pelo menos 70 d.C. (ou seja, coexistiu com os
cristianismos), é inseguro estabelecer paralelos terminantes com sua literatura.
103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES:
BÍBLIA DE JERUSALÉM (A). 7
o
Impressão Revista. São Paulo: Paulinas, 1995.
BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedades
Bíblicas Unidas, s/d.
BIBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA. (2
a
Edição), Deutsche Bibelgesllschaft
Stuttgart, Stuttgart, 1984.
FILON DE ALEXANDRIA.
Every good man is free (Quod omnis probus liber sit).
Philo’s works, v. IX. Trad. para o inglês por F. H. Colson. Edição bilíngüe grego/inglês.
Cambridge (Massachussets, EUA): Harvard University Press, 1995a. p. 1-101, (The
Loeb Classical Library).
________. De vita contemplativa. Les oeuvres de Philon d’Alexandrie, v. 29. Trad. para
o francês por P. Miquel, com introdução e notas de F. Daumas. Edição bilíngüe
grego/francês. Paris: Editions du Cerf, 1963.
MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran, Edição Fiel e Completa dos
Documentos do Mar Morto. Trad. Valmor da Silva. Petrópolis: Vozes, 1995.
FLAVIO JOSEFO. Guerra de los Judíos. Tradução e notas iniciais de Juan Martín
Cordero. Editorial Iberia, S.A.: Barcelona, 1961.
________. Jewish Antiquities. Tradução para o inglês de Louis H. Feldman. Edição
bilíngüe grego/inglês. Harvard College Press, 1965.
PLINY. Natural History. Tradução para o inglês de H. Rackham. Edição bilíngüe
latim/inglês. Cambridge Christ’s College, 1947.
OBRAS DE REFERÊNCIA:
LAMBDIN, Thomas O. Gramática do hebraico bíblico. Trad. Wlater Eduardo Lisboa.
São Paulo: Lisboa, 2003.
SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. Trad. Ivo Storniolo,
José Bortolini. SP: Paulus, 2004. 3
o
ed.
104
SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado das Religiões. Trad. Pe. Clóvis Bovo.
Aparecida, SP: Ed. Santuário, 2001.
BIBLIOGRAFIA:
ALBRIGHT, W. F. Recent Discoveries in Palestine and the Gospel of St. John. In:
Studies in Honour of C.H. Dodd, Cambridge: Cambridge University Press, 1956.
ALLEGRO, John M. O mito cristão e os manuscritos do Mar Morto. Trad. Maria Luisa
Ferreira da Costa. Lisboa, 1979.
________. The Sacred Mushroom and the Cross. Doubleday: New York, 1970.
ALTER, Robert; KERMODE Frank. (Org.) Guia literário da Bíblia. Trad. Raul Fiker.
São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
ARENS, E. A Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, Aspectos sociais e
econômicos para a compreensão do Novo Testamento. Trad. João Rezende Costa. São
Paulo: Paulus, 1998.
ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus. Quatro milênios de busca do Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
BAIGENT, M; LEIGH, R. As intrigas em torno dos Manuscritos do Mar Morto. Trad.
Laura Rumchinsky. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
BALLARINI, Teodorico. (ed). Introdução à Bíblia. Trad. Frei Simão Voigt. Petrópolis:
Vozes, 1968.
BARON, S. História e historiografia do povo judeu. Trad. Renato Mezan. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
BERGER, Klaus. Qumran e Jesus: uma verdade escondida? Petrópolis: Vozes, 1994.
BETZ, Otto. João Batista era essênio? In: SHANKS, Hershel. (Org.). Para
compreender os manuscritos do Mar Morto. Trad. Laura Rumchinsky. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
105
BOCCACCINI, Gabrielle. Beyond the Essene Hypothesis: Parting of the ways between
Qumran and Enochic Judaism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1998.
BOFF, Leonardo; LELOUP, Jean Yves.
Os terapeutas do Deserto. De Fílon de
Alexandria e Francisco de Assis a Graf Durckhein. RJ: Vozes, 1998.
BOURDIEU, Pierre.
A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
________.
O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989.
CARDOSO, C. F. (Org.)
Domínios da História Ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus, 1997.
CHABROL, C.
Semiótica narrativa dos textos Bíblicos. Trad. Kátia Hakim Chalita. RJ:
Forense – Universitária, 1980.
CHARLESWORTH, James H. Jesus dentro do judaísmo. Novas revelações a partir de
estimulantes descobertas arqueológicas. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
CHARTIER, Roger. História cultural. Entre práticas e representações. Trad. M.
Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
CLEMENTS, R. E. O mundo do Antigo Israel: perspectivas sociológicas,
antropológicas e políticas. Trad. João R. Costa. São Paulo: Paulus, 1995.
CROSS, Frank More. A luz das cavernas do mar Morto sobre a Bíblia In: SHANKS,
Hershel. (Org.). Para compreender os manuscritos do Mar Morto. Trad. Laura
Rumchinsky. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
________. O contexto histórico dos Manuscritos. In: SHANKS, Hershel. (Org.). Para
compreender os manuscritos do Mar Morto. Trad. Laura Rumchinsky. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
________. The ancient library of Qumran. Great Britain: Lowe & Brydone, 1958.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Trad. M.F. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
106
EISENMAN, R; WISE, M. A descoberta dos manuscritos do Mar Morto. Trad. Sieni
Maria Campos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994.
ELIADE, Mircea.
O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
FINLEY, M. I. História Antiga, testemunhos e modelos. Trad. Valter Lellis Siqueira.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
________.
Uso e abuso da História. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
FITZMYER, Joseph A.
101 perguntas sobre os manuscritos do Mar Morto. Trad.
Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 1997.
FLUSSER, David. O judaísmo e as origens do cristianismo. Trad. Reinaldo Guarany.
Rio de Janeiro: Imago, 2000. v. 1.
FOX, Robin Lane. Bíblia: verdade e ficção. Trad. Sérgio Flaksman. SP: Cia das Letras,
1993.
FREDERICO, Denise Cordeiro de S. Cantos para o culto cristão. São Leopoldo:
Sinodal, 2001.
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais; morfologia e História. Trad. Federico
Carotti. São Paulo: Ed. Schwarcz, 1991.
GOLB, Norman. Quem escreveu os manuscritos do Mar Morto? A Busca do Segredo de
Qumran. Trad. Sonia de Sousa Moreira Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GOULDER, Michael. As epístolas paulinas. In: ALTER, Robert; KERMODE Frank.
(Org.) Guia literário da Bíblia. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
GOURGUES, Michel. Os hinos do Novo Testamento. Trad. José Maria da Costa Villar.
São Paulo: Paulus, 1995.
GUERRIERO, Silas (org). O estudo das Religiões: desafios contemporâneos. São
Paulo: Paulinas, 2003.
107
HADAS-LEBEL, Mereille. Flávio Josefo, o judeu de Roma. Trad. Paula Rosas. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
KIPPENBERG, H. G.
Religião e formação de classes na Antiga Judéia. Trad. João
Aníbal G. S. Ferreira. São Paulo: Paulus, 1988.
KNOHL, Israel. O messias antes de Jesus: o servo sofredor dos manuscritos do Mar
Morto. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
LAPERROUSAZ, E.- M.
Os manuscritos do Mar Morto. Trad. Maria Stela Gonçalves
e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1989.
LE GOFF, J.
Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi. v1: Memória
História. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.
LOHFINK, Norbert. Hinos dos Pobres. Trad. Edwino Aloysius Royer. São Paulo:
Loyola, 2001.
MARTÍNEZ, Florentino García; BARRERA, Julio Trebolle. Os homens de Qumran.
Literatura, estrutura e concepções religiosas. Trad. Valmor Silva. Petrópolis: Vozes,
1996.
MESTERS, Carlos. Jesus e os salmos A oração dos salmos na vida de Jesus. In:
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Salmos. Petrópolis:
Vozes, 2003. n. 45.
MÍGUEZ, Néstor O. Contexto sociocultural da Palestina. In: RIBLA – Revista de
Interpretação Bíblica Latino-Americana. Cristianismos Originários (30-70 d.C.).
Petrópolis: Vozes, 1995. n. 22.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização. Trad. Cláudia Martinelli Gama.
Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. Trad. Vicente Ferreira de Souza.
São Paulo: Paulus, 1988.
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência religiosa e crítica social no
cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003.
108
O’CONNOR, Jerome Murphy. Paul and the Dead Sea scrolls. New York: Crossroad,
1990.
O'CALLAGHAN, José.
Papiros neotestamentarios en la cueva 7 de Qumran?. Revista
Bíblica do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, 1972. n. 53, pp. 91-100.
PINKUSS, Fritz.
Tipos de pensamento judaicos. São Paulo: USP, 1975.
PIXLEY, Jorge. As epístolas paulinas: de cartas ocasionais a Sagrada Escritura. In:
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana.
A Canonização dos
Escritos Apostólicos
. Petrópolis: Vozes, 2002. n. 42/43.
RENAN, Ernesto.
A vida de Jesus. Trad. Eduardo Augusto Salgado. Porto: Lello
Editores 1990.
RESENDE, Paulo-Edgar A. O arco do sagrado e do profano. In. GUERREIRO, Silas.
(Org.) O estudo das religiões: Desafios contemporâneos. São Paulo: Ed. Paulinas,
2003. p 31.
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. A Canonização dos
Escritos Apostólicos. Petrópolis: Vozes, 2002. n. 42/43.
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Cristianismos
Originários (30-70 d.C.). Petrópolis: Vozes, 1995. n. 22.
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Cristianismos
Originários Extrapalestinos (35-138 d.C.). Petrópolis: Vozes, 1998. n. 29.
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Escritos. Petrópolis:
Vozes, 2005. n. 52.
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Salmos. Petrópolis:
Vozes, 2003. n. 45.
RICHARD, Pablo. As diversas origens do cristianismo. Uma visão de conjunto (30-70
d.C.). In: RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Cristianismos
Originários (30-70 d.C.). Petrópolis: Vozes, 1995. n. 22.
ROCHA, Ivan Esperança. Práticas e representações judaico-cristãs. Assis: FCL –
Assis – Unesp Publicações, 2004.
109
ROST, Leonard. Introdução aos livros apócrifos e pseudepígrafos do Antigo
Testamento e aos manuscritos de Qumran.
Trad. Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. São
Paulo: Paulus, 1980.
ROUGIER, Louis.
O conflito entre o cristianismo primitivo e a civilização antiga. Trad.
Manuela Barreto. Lisboa: Veja, 1995.
SANDMEL, Samuel.
Parallelomania. Journal of biblical literature. 1962. n. 81. pp. 1-
13.
SANTAELLA, Lúcia.
O que é semiótica. São Paulo: Ed. Brasiliense: 1983.
SANTE, Carmine di.
Liturgia judaica fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo:
Paulus, 2006.
SAULNIER, C. A Palestina no tempo de Jesus. Trad. José Raimundo Vidigal. São
Paulo: Paulus, 1983.
SCHIFFMAN, Lawrence H. As origens saducéias da seita dos Manuscritos do Mar
Morto. In: SHANKS, Hershel. (Org.). Para compreender os manuscritos do Mar
Morto. Trad. Laura Rumchinsky. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
SCHNELLE, Udo. A evolução do pensamento paulino. Trad. Renato Rocha Carlos. São
Paulo: Loyola, 1999.
SCHONFIELD, Hugh J. The Essene Odyssey: the mystery of the True Teacher and the
Essene impact on the shaping of human destiny. Great Bretain: Element Books, 1984.
SHANKS, Hershel. (Org.). Para compreender os manuscritos do Mar Morto. Trad.
Laura Rumchinsky. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
SILVA, Clarisse Ferreira da. O Comentário (Pesher) de Habacuc: A comunidade de
Qumran reinterpreta o passado. 2004. 403 p. Dissertação Mestrado em História.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
USP, São Paulo, 2004.
SIMON, Marcel; BENOIT, André. Judaísmo e Cristianismo Antigo: de Antíoco
Epifânio a Constantino. Trad. Sonia Maria S. Lacerda. São Paulo: Pioneira, 1987.
110
SMARGIASSE, Marcelo Eduardo Cunha. Os Cânticos do Sacrifício Sabático:
Merkavah e Liturgia Angelical em 4Q405. Dissertação de Mestrado em História. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2003. 83p.
STEGEMANN, Ekkehard W.
História social do protocristianismo. Trad. Nélio
Shneider. São Leopoldo, RS: Sinodal; São Paulo, SP: Paulus, 2004.
STEGEMANN, Hartmut. Los esenios, Qumrán, Juan Bautista y Jesús. Trad. Rufino
Velasco. Madrid: Editorial Trotta, 1996.
SZEKELY, Edmond Bourdeaux.
Las enseñanzas de los esenios desde Enoch hasta los
rollos del Mar Muerto. Trad. Alma Alicia Martell Moreno. Barcelona: Ed. Sirio, 1981.
THEISSEN, Gerd.
La religión de los primeros cristianos: una teoría del cristianismo
primitivo. Salamanca: Sígueme, 2002.
VERMES, Geza. A religião de Jesus, o judeu. Trad. Ana M. Spira. Rio de Janeiro:
Imago, 1995.
________. Essenes and Therapeutai. Revue de Qumrân, 1961-62. n. 3. pp. 495-504.
________. The Dead Sea Scrolls in English. London: Penguin Books, 1995.
________. The Dead Sea Scrolls: Qumran in Perspective. London: Harper Collins,
1977.
VV.AA. Flávio Josefo, uma testemunha no tempo dos apóstolos. Trad. I. F. Leal
Ferreira. São Paulo: Paulus, 1986.
________. Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio. São Paulo: Paulus, 1985.
VANDERKAM, J. C. Os manuscritos do Mar Morto hoje. Trad. Rubens Figueiredo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
________. Os Manuscritos do Mar Morto e o Cristianismo. In: SHANKS, Hershel.
(Org.). Para compreender os manuscritos do Mar Morto. Trad. Laura Rumchinsky. Rio
de Janeiro: Imago, 1993.
111
________. O povo dos Manuscritos do Mar Morto: essênios ou saduceus? In:
SHANKS, Hershel. (Org.). Para compreender os manuscritos do Mar Morto. Trad.
Laura Rumchinsky. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
YADIN, Y.
The Masada Fragment of the Qumran Songs of Sabbath Sacrifice. IEJ: 34,
1984. pp. 77-88.
WILSON, Edmund. Os manuscritos do Mar Morto, Ensaios: 1947 1969. Trad.
Hildegard Feist. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
WOODRUFF, Archibald M. A igreja pré-paulina. In: RIBLA – Revista de Interpretação
Bíblica Latino-Americana.
Cristianismos Originários (30-70 d.C.). Petrópolis: Vozes,
1995. n. 22.
112
GLOSSÁRIO
Apocalíptica, literatura
Gênero literário que destaca um período cataclísmico, o “fim dos dias”. Possui uma
linguagem obscura; através de visões, sonhos e interpretações. Figuras divinas boas e
más são próprias deste gênero.
Apócrifos
Livros escritos em sua maioria por autores judeus entre 150 a.C. e 100 d.C. Encontram-
se inclusos na Septuaginta e na Vulgata, mas estão fora dos cânones judeu e protestante.
O catolicismo os reconhece com uma terminologia diferente – deuterocanônicos.
Asmoneus
Dinastia judaica aos quais pertenceram os Macabeus. Após a vitória contra a Síria, essa
dinastia passou a assumir tanto o poder religioso quanto político entre os judeus. Veja
Macabeus.
Assideus (Hassidim)
O nome provavelmente significa “os piedosos”. Representavam uma seita religiosa
judaica de estrita observância da Lei que se opunha a adoção de valores da cultura
helenista. Foram os precursores dos fariseus e essênios. São apoiadores do movimento
dos Macabeus, rompendo com estes após a usurpação do sacerdócio por Jônatas
Macabeu (152-142 a.C.).
Belial (Beliar)
Espírito do mal. Entre os habitantes de Qumran era considerado ora como um chefe
demoníaco ora como equivalente a Satanás.
Cairo, Guenizá do
Guenizá da sinagoga Bem Ezra, em Fustat (Cairo Velha, Egito). No ano de 1897, foram
descobertos nela um rico material documentário, como cartas, documentos legais e
textos literários, muitos dos quais contêm datas e referências históricas. A primeira
113
cópia do Documento de Damasco (CD) foi encontrada nesta sinagoga, antes mesmo de
ser conhecida entre os MQ. Veja
guenizá.
Cânon
Coleção de livros bíblicos aceitos como Sagrada Escritura.
Cristologia
Estudo sobre a pessoa de Cristo. Parte da teologia cristã que se dedica a explicar a
natureza de Cristo, sua obra, encarnação, ressurreição, ascensão, etc.
Eclesiologia (do grego ekklesia)
O termo grego significa literalmente “ajuntamento” ou “assembléia”. Seu uso na Bíblia
refere-se a organização física das comunidades cristãs; sua estrutura de funcionamento
quanto a local de adoração, lideranças, forma de culto, etc.
École Biblique et Archeologique (EBAF)
Foi fundada em 1890 pelo padre francês Marie-Joseph Lagrange. Tornou-se o centro
acadêmico de estudos em que o padre Roland De Vaux e a maioria dos membros
originais do International Team estavam ligados, especialmente aqueles que, como De
Vaux, pertenciam ao clero católico. Localiza-se a leste de Jerusalém. Pertenceu à
Jordânia antes da Guerra dos Seis Dias (1967), passando após esta data a pertencer ao
Estado de Israel.
Editio Princeps
Foi a primeira edição oficial de manuscritos (mas não a definitiva), feita por Eliezer
Lipa Sukenik, pai de Yigael Yadin.
Escatologia
Tipo de literatura religiosa que trata dos fins últimos do homem; a vida após a morte, o
Julgamento Final, imortalidade da alma, etc.
Essênios
Ao lado dos saduceus e fariseus, compunham a terceira corrente judaica nascida no
período do Segundo Templo. Em sua maioria eram separatistas, embora haja evidência
114
de que relacionavam de forma mais aproximada com a sociedade em algumas cidades.
Formavam uma sociedade comunal extremamente rígida no que tange à observação das
leis judaicas, como a estabelecida em Qumran. São descritos por historiadores do século
I d.C., a saber, Flávio Josefo, Fílon de Alexandria e Plínio, o Velho. Todos, nas “fontes
clássicas”, nos dão indícios precisos que nos levam a compreender que os habitantes de
Qumran eram desta seita, embora o único que tenha deixado isso claro foi Plínio.
Evangelhos Sinóticos
Os três primeiros Evangelhos assim chamados por apresentarem concordâncias entre si
– Mateus, Marcos e Lucas.
Fariseus
A mais “popular” das três seitas judaicas descritas por Josefo. Assim como os saduceus,
são citados no NT. Originalmente, um grupo essencialmente secular filiado aos
Assideus da época dos Macabeus. Eram caracterizados pela interpretação livre da
Bíblia, aderência às tradições orais, observância rígida de rito e interpretação, convicção
em retribuição futura, convicção em anjos e outros seres espirituais, providência divina,
imortalidade da alma, ressurreição dos mortos e um Messias próximo. Alguns
estudiosos sugerem que o Jesus fosse de uma família de fariseus.
Fontes clássicas
Registros sobre os essênios deixados pelos historiadores Flávio Josefo, Fílon de
Alexandria e Plínio, o Velho.
Guenizá (do hebraico “sala de armazenamento”)
Local designado, normalmente dentro de uma sinagoga, em que se armazenavam
escritos defeituosos, estragados ou antigos, visto não poderem ser destruídos por serem
considerados sagrados.
Gnosticismo
Forma de pensamento religioso difundido no Império romano, adotado de várias formas
por judeus e cristãos. O nome é oriundo da palavra grega gnosis (conhecimento).
Pregava que seus adeptos podiam receber o conhecimento secreto de Deus. A maioria
115
dos “gnosticismos” tinha características dualistas, enfatizando que o mundo era mal,
mas que o espírito humano era bom.
Halakah (pl. halakot)
Lei judaica. Conjunto de leis referente a rituais e direitos civis.
Judaísmo Rabínico
A forma de Judaísmo que foi aceita amplamente a partir do século II d.C. Adere a vários
ensinamentos dos rabinos (“mestres”). Por trás do Judaísmo rabínico encontra-se o
Judaísmo farisaico. Como os fariseus, os judeus rabinos aceitam a validez da tradição
oral, a crença em anjos e espíritos e a ressurreição dos mortos.
Khirbet
Ruína ou lugar destruído. Khirbet Qumran: ruínas de cinzas.
Kittim
O nome refere-se originalmente aos habitantes de Kition (atual Larnaca), capital da ilha
de Chipre. Era uma das expressões utilizadas pelos judeus para designar povos
opressores, primeiramente os gregos e principalmente os romanos. O termo é
encontrado tanto no AT como nos MQ.
Macabeus
Foi a família responsável por organizar a resistência contra a imposição do helenismo
pelos selêucidas da Síria. Governou a Palestina entre 164-67 a.C.
Mikva
Banhos rituais feitos nas cisternas de Qumran.
Mishnah
Coleção central de normas do início do Judaísmo rabínico. Baseada nas tradições orais,
foi compilada aproximadamente em 200 d.C. Contém ordens em assuntos tais como:
casamento, observação do sábado, sacrifícios, rituais de purificações, leis civis etc.
Museu Rockefeller
116
O museu foi aberto em 1938 durante o mandato britânico, construído com fundos
doados pelo magnata americano John D. Rockefeller (1839-1937). Foi nacionalizado
pelo governo jordaniano em 1966, recebendo o novo nome
Museu Arqueológico da
Palestina. Em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, Israel retomou o museu que voltou a
ter o antigo nome. O museu abrigou os manuscritos da Gruta 4 de Qumran usados pelos
membros do
International Team.
Nag Hammadi
Cidade do Alto Egito. Em um sítio foram descobertos textos antigos, no ano de 1945. O
local ficou conhecido como “Biblioteca de Nag Hammadi”.
Óstraco
Peça de cerâmica antiga com inscrições de nomes ou mensagens. Foram encontradas em
grande número em Qumran.
Paleografia
Ciência que se dedica ao estudo de escritas e inscrições antigas ou uma maneira antiga
de se escrever. Suas técnicas foram usadas em grande escala para a datação dos MMM.
Pentateuco
Os primeiros cinco livros das Escrituras: Gêneses, Êxodo, Levítico, Números,
Deuteronômio.
Pesher (do hebraico “interpretação”)
Nos MQ, pesher particularmente refere-se a um método de interpretação de textos
proféticos que relatam diversos eventos do passado ou futuro. Alguns dos pesharim
mais importantes são 1QpHab, 1Q14 (1QpMiq), 1Q15 (1QpSof), 1Q16 (1QpSal) e 3Q4
(3QpIs).
Primeiro Templo (c. 950-586 a.C)
Período da história judaica que abriga o tempo entre a construção do Templo pelo rei
Salomão e sua destruição e exílio dos judeus para Babilônia. Veja Segundo Templo.
Pseudo
117
Falso, enganoso. No contexto dos MQ, este prefixo é usado para indicar que um
manuscrito não pertence ao cânon consolidado. Assim,
pseudo-Daniel (e.g.) é um livro
ou parte de um livro de Daniel que não faz parte do Daniel canônico.
Pureza, ritual
No caso dos judeus, estado especial de limpeza observado por aqueles que respeitam as
leis do Pentateuco referentes ao que é puro e impuro. Envolve o cuidado com certas
pessoas (
e.g. leprosos) ou animais considerados sujos (e.g. ratos), e a prática de certos
tipos de banhos e outros rituais para purificar a si mesmo depois de entrar em contato
com coisas consideradas “sujas”.
Saduceus
Uma das três seitas judaicas atestadas por Flávio Josefo e descrita no NT. Compunham
a direção sacerdotal judaica e interpretavam a Lei de forma mais literal que os fariseus.
Rejeitavam a tradição oral, crença em anjos, espíritos, providência divina e a
ressurreição.
Scriptorium
Sala onde eram copiados textos, especialmente em monastérios medievais. A
probabilidade de ter havido um em Qumran é razoável, um tanto contestada, que
foram descobertos apenas três mesas de gesso e um par de tinteiros que supostamente
eram utilizados pelos copistas. Algumas evidências sugerem que o local se parecia com
um pequeno escritório militar usado após sua destruição pelos romanos. Mesmo assim,
tendo como certo que a grande maioria dos MQ foi redigida no sítio de Qumran,
acredita-se que este local tenha sido o que abrigou os redatores enquanto escreviam.
Segundo Templo (c. 520 a.C.-70 d.C.)
Termo utilizado para designar o período após a reconstrução do Templo de Jerusalém.
Foi durante esse período que ocorreu a separação do Judaísmo em seitas diferenciadas e
se deu a redação dos livros de Qumran. Termina com a destruição do Templo em 70
d.C., após a Primeira Revolta contra Roma.
Septuaginta
118
Tradução grega das Escrituras judaicas, incluindo os livros apócrifos que eram usados
entre os judeus de Alexandria. Traduzida por eruditos judeus entre os séculos III e II
a.C., foi a primeira tradução vernácula das Escrituras usada pelos judeus da Diáspora.
Shrine of the Book (Santuário do Livro)
Museu Israelense em Jerusalém que abriga vários dos MMM.
Sicários
Acredita-se que tenham sido um grupo militar recrutado dentre os zelotas para o embate
em Massada. Veja zelotas.
Ta’amiréh
Tribo de beduínos responsável por encontrar várias das cavernas de Qumran no deserto
da Judéia.
Targum (do hebraico “tradução”)
Qualquer das várias traduções aramaicas de porções da Bíblia Hebraica, normalmente
do Pentateuco.
Tehillim (Salmos)
Coleção de hinos bíblicos sagrados usados na adoração judaica, na comunidade de
Qumran e entre comunidades cristãs do século I. Na tradução grega da Septuaginta,
recebe o nome de Saltério.
Torá (normalmente vertido do hebraico como “Lei”)
Designa particularmente os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica, conhecidos
também como Pentateuco ou Livros de Moisés. Veja Pentateuco.
Vulgata
Tradução latina da Bíblia feita no séc. IV por Jerônimo. Nela, as Escrituras Hebraicas
foram traduzidas diretamente do hebraico para o latim.
Zadoquita
119
Descendente de Zadok. Linhagem dos Sumo Sacerdotes de Judá, selecionados desde o
tempo do rei Salomão. Após a Revolta Macabéia, o Sumo Sacerdócio foi ocupado pela
linhagem dos Asmoneus.
Zelotas
Movimento político e militar de instigadores da Primeira Revolta. Josefo parece
considerar os zelotas como um grupo bem definido que entrou em existência durante a
revolta.
120
APÊNDICE
Segue uma lista com os principais textos não-bíblicos de Qumran, uma vez que
são estes que recebem enfoque neste trabalho. É desnecessário fazer uma lista que
possua indicações sobre todos os manuscritos de Qumran. Deve-se lembrar que a
grande maioria dos textos são pequenos ou fragmentários, e segundo a maioria dos
estudiosos, colaboram “pouco” ou “nada” para as pesquisas.
Sobre a listagem que segue, algumas coisas importantes devem ser consideradas.
O número inicial que se encontra para designar o livro corresponde à gruta em que ele
foi encontrado. A letra “Q” em seguida ao número, significa que o manuscrito é oriundo
de Qumran (já que nem todos os Manuscritos do Mar Morto são provenientes das
cavernas de Qumran). Por fim, o nome em seqüência é o que a designação final ao
livro (ex. 1QRegra da Comunidade).
A divisão dos manuscritos aqui adotada é feita pela temática do texto,
hinários,
pesharim (comentários), etc. Outra medida utilizada para melhor compreensão é a de
seguir o número em que o texto foi catalogado. Assim, ao invés de usar o nome (ex.)
1QpZeph como encontrado muitas vezes, pela classificação numérica temos 1Q15. Essa
medida elimina os problemas ocasionados por algumas traduções (ex.
1QpZeph=1QpZephaniah/1QZephaniah Pesher, em português:
1QpSof=1QpSof/1QPesher Sofonias) e pode ser utilizado de forma universal de
maneira que a tradução não confunda o leitor. Mesmo assim, em seguida a classificação
numérica daqueles manuscritos considerados mais importantes, apresenta-se disponível
a segunda nomenclatura (ex. 11Q19 [11QT], Rolo do Templo) ou somente o nome
clássico pelo qual o manuscrito é conhecido (ex. 1QH, Hodayot).
Livros mais importantes de Qumran divididos por gênero
Normativos
1Q28a (1QSa) Regra da Congregação
1QS Regra da Comunidade
4Q159 (4QOrd
a
) Ordens
4Q181 (4QPerCr) Períodos da Criação
4Q397 (4QMMT
d
) Carta Haláquica
4Q513 (4QOrd
b
) Ordens
5Q13 (5QRegra) Regra Sectária
CD Documento de Damasco
121
Hinos e Preces
1Q29 Liturgia das Três Línguas de Fogo
1QH (1QHodayot
a
) Hinos de Ações de Graças
3Q6 (3QHino) Hino de Louvor
4Q242 (4QPrNab ar) Oração de Nabônides
4Q378 (4QPsJosua
a
) Salmos de Josué
4Q400 (4QShirShab
a
) Cânticos do Sacrifício Sabático
4Q500 Bênçãos
4Q503 Orações Cotidianas
4Q504-6 (4QDibHam
a-c
) Salmos (Palavras dos Luzeiros)
4Q507-9 Orações Festivas
4Q510-11 (4QShir
a-b
) Cânticos do Sábio
4Q525 (4QBéat) Bem-aventuranças
6Q16 Bênçãos
6Q18 (6QHino) Composição Hínica
8Q5 Hino
11Q11 (11QApPs
a
) Salmos Apócrifos
11Q14 (11QBer) Bênçãos
Comentários (Pesharim)
1Q14 (1QpMiq) Pesher 1 de Miquéias
1Q15 (1QpSof) Pesher 1 de Sofonias
1Q16 (1QpSal) Pesher de Salmos
1QpHab Pesher de Habacuc
3Q4 (3QpIs) Pesher 2 de Isaías
4Q161-5 (4QpIsa
a-e
) Pesher 1 de Isaías
4Q166 (4QpHos
a
) Pesher de Oséias
4Q168 (4QpMic) Pesher 2 de Miquéias
4Q169 (4QpNah) Pesher de Naum
4Q170 (4QpSof) Pesher 2 de Sofonias
4Q171 (4QpSal
a
) Pesher 1 de Salmos
4Q173 (4QpPs
b
) Pesher do Salmo 127
4Q174 (4QFlor) Florilégio
4Q175 (4QTest) Testimonia
4Q177 4QCatena
a
Catena A (Cadeia Exegética
a
)
4Q182 4QCatena
b
Catena B (Cadeia Exegética
b
)
5Q10 (5QpMal) Pesher de Malaquias
Outros textos
1Q19 (1QNoah) Apócrifo de Noé
1Q20 (1QapGen ar) Gênesis Apócrifo
1Q22 (1QDM) Ditos de Moisés
1Q23 Livro dos Gigantes
1Q26 Sabedoria Apócrifa
1Q27 (1QMist) Livro dos Mistérios
1Q32 (1QJN ar) Nova Jerusalém
122
1QM Pergaminho da Guerra
2Q21 (2QapMoses) Apócrifo de Moisés
2Q22 (2QapDavid) Apócrifo de Davi
2Q23 (2QapProph) Profecia Apócrifa
3Q15 Rolo de Cobre
4Q156 (4QtgLev) Targum de Levítico
4Q169 (4QVisSam) Visões de Samuel
4Q176 (4QTanhumim) Consolações
4Q185 Texto Sapiencial
4Q186 Horóscopos
4Q246 Apocalipse Aramaico
4Q501 Lamentação
4Q502 Ritual do Matrimônio
4Q512 Ritual de Purificação
4Q521 Apocalipse Messiânico
4Q534 (4QMes ar) Eleito de Deus
4Q543 (1Q‘Amram
a
) Visões de Amram
4QPsDa Apocalipse do Pseudo-Daniel
5Q9 Topônimos
6Q10 Texto profético
6Q11 Alegoria da Vinha
6Q12 Profecia Apócrifa
6Q13 Profecia sacerdotal
6Q14 Texto Apocalíptico
6Q17 Documento Calendário
6Q9 Apócrifo de Samuel-Reis
7Q3-19 Fragmentos Gregos
11Q10 (11QtgJob) Targum de Jó
11Q13 (11QMelq) Melquisedec
11Q19 (11QT) Rolo do Templo
123
BREVE CRONOLOGIA DE ISRAEL E QUMRAN
332 a.C. Domínio de Alexandre, o Grande, sobre a Judéia.
323 a.C. Morte de Alexandre e divisão do Império Macedônio.
301 a.C. Domínio dos Ptolomeus sobre a Judéia.
198 a.C. A Judéia é transformada em província Selêucida.
175 a.C. Imposição da cultura helênica aos judeus.
169 a.C. Profanação e saque ao Templo de Jerusalém.
166 a.C. Levante dos Macabeus (asmoneus) sob a liderança de Judas
Macabeu.
164 a.C. Purificação do Templo.
152-142 a.C. Sacerdócio de Jônatas Macabeu.
152-142 a.C. (?) Nascimento da comunidade de Qumran sob a liderança do
Mestre da Justiça.
63 a.C. Ocupação de Jerusalém por Pompeu. A Judéia torna-se uma
província romana.
37 a.C. Fim da dinastia asmoneana. Domínio de Herodes, o Grande
sobre Jerusalém.
27 a.C. Otávio Augusto torna-se Imperador Romano.
6 a.C. (?) Nascimento de Jesus de Nazaré.
6 d.C. Governo romano direto por intermédio de governadores.
14 d.C. Tibério César, Imperador.
26-36 d.C. Pôncio Pilatos, governador da Judéia.
29 d.C. (?) Crucificação de Jesus de Nazaré.
66 d.C. Início da Revolta Judaica contra Roma.
68 d.C. Destruição do assentamento de Qumran pela X Legião Romana
a caminho de Jerusalém sob comando de Vespasiano.
70 d.C. Conquista de Jerusalém e destruição do Templo pelo general
Tito.
73 d.C. Queda de Massada.
132 d.C. Segunda Revolta contra Roma, comandada por Simão Bar
Kochba.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo