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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ORDENAMENTO TERRITORIAL E AMBIENTAL
ELIAS LOPES DE LIMA
A REINVENÇÃO DA CORPOREIDADE:
o cotejo entre a tradição moderna e a tradição indígena
Niterói
2007
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ELIAS LOPES DE LIMA
A REINVENÇÃO DA CORPOREIDADE:
o cotejo entre a tradição moderna e a tradição indígena
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Geografia.
Área de concentração: Ordenamento Territorial
e Ambiental.
Orientador: Prof. Dr. RUY MOREIRA
Co-orientador: Prof. Dr. CARLOS ALBERTO FRANCO DA SILVA
Niterói
2007
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L732 Lima, Elias Lopes de.
A reinvenção da corporeidade: o cotejo entre a tradição
moderna e a tradição indígena / Elias Lopes de Lima. – Niterói:
[s.n.], 2007.
213 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal
Fluminense, 2007.
1.Corporeidade. 2.Espaço. 3.Sociedades indígenas. I.Título.
CDD 153.7
ELIAS LOPES DE LIMA
A REINVENÇÃO DA CORPOREIDADE:
o cotejo entre a tradição moderna e a tradição indígena
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Geografia. Área
de concentração: Ordenamento Territorial e
Ambiental.
Aprovado em Março de 2007
Comissão Examinadora
Prof. Dr. Ruy Moreira - Orientador
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Carlos Walter Porto Gonçalves
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Élvio Rodrigues Martins
Universidade de São Paulo
Niterói
2007
À memória de meu pai, Antonio Lopes de Lima, que
me ensinou a reinventar a vida.
AGRADECIMENTOS
Boa parte das questões abordadas nesta dissertação deriva de idéias e intuições
que de modo algum resultaram de um edifício individual. Se de uma parte a literatura
consultada foi um farto alimento para as reflexões que se seguiram, de outra, o apoio
institucional e o diálogo e discussões travados com alguns amigos e colegas não são menos
importantes. Sendo assim, sou especialmente grato:
À Universidade Federal Fluminense, em especial ao Programa de Pós-graduação
em Geografia, cujo ambiente estimulante favoreceu as condições necessárias para a
realização desse trabalho. Também à CAPES, pelo fornecimento de uma bolsa de pesquisa
sem a qual o resultado desta dissertação ficaria comprometido.
Ao professor Ruy Moreira, que me acolheu como orientando me concedendo a
autonomia necessária para a produção intelectual ao mesmo tempo que, com seu
brilhantismo, fornecera inestimáveis subsídios para a formulação das principais idéias aqui
expostas.
Ao professor Carlos Alberto Franco da Silva, que na qualidade de co-orientador me
guiou com seu profissionalismo e perspicaz senso crítico desde a fase inicial quando esse
estudo era ainda um possível plano de trabalho.
Ao professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, cujas sugestivas contribuições muitas
vezes me lançaram a tantas reflexões, de vez que grande parte das questões aqui
propostas derivam de suas provocações.
Ao professor Ivaldo Lima, pela valorosa participação na qualificação da dissertação,
inclusive pelo direcionamento que algumas discussões levantadas ganharam após sua
intervenção e que de certo contribuiu para a conclusão das mesmas.
Ao professor Rogério Haesbaert, pela disponibilidade para discutir algumas idéias
ainda embrionárias desse trabalho que depois ganharam corpo a partir de suas sugestões.
À professora Aparecida Vilaça, do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social da UFRJ, pelos esclarecimentos num terreno pouco preciso ao geógrafo e a quem
devo a maior parte da literatura antropológica consultada.
Às amigas Mariana Biteti e Fernanda da Silva Soares, que muito colaboraram em
todos os capítulos dessa pesquisa, suas intervensões foram decisivas no direcionamento de
algumas proposições.
Aos colegas da turma de mestrado/2005: Luciano Carneiro, Oraida Parreiras e José
de Souza Júnior, dentre alguns outros, pelas indicações de leituras bastante sugestivas.
Por fim, agradeço à minha família pela compreensão às minhas inevitáveis e (para
lançar mão de um jogo de palavras) freqüentes ausências.
RESUMO
Essa pesquisa tenciona precisar como a noção de corpo é tributária de uma
concepção de espaço de sorte a evidenciar a intrínseca relação entre essas duas categorias
do entendimento humano e contribuir para a reflexão do anacronismo que tomou conta do
pensamento geográfico a propósito do dualismo que contrastada uma perspectiva
organicista e uma visão inorgânica de mundo. Cotejamos assim o corpo segundo
racionalidades distintas e conflitantes que se referem à maneira como diversas culturas
apreendem noções de tempo e espaço; concepções que (se) divergem em muitos aspectos
no pensamento moderno. Confrontamos, portanto, acepções de corpo diferenciadas não
para anulá-las em presença uma da outra, mas principalmente para enriquecê-las mediante
um reconhecimento mútuo e, mais precisamente, para considerá-las como possibilidades de
reorientação de nosso estar no mundo em face de uma crise de paradigmas. Daí podermos
contrastá-las a fim de extrair uma síntese sempre provisória para reafirmar o corpo como
ponto de inflexão do estado de adestramento promovido pelos circuitos de poder
hegemônico. É nesse sentido que falamos em reinvenção da corporeidade.
ABSTRACT
The objective of this research aims to precise how the notion of body contributes to a
conception of space giving evidence to the intrinsic relation between these two categories of
the human understanding and contribute to the reflection of the anachronism that rules the
geographic thought concerning the dualism that contrasts an organic perspective and an
inorganic vision. We collate thus the body according to distinct and conflicting rationalities
that refers to the way diverse cultures apprehend notions of time and space; conceptions that
disagree with many aspects in modern thought. Contrasting, therefore, different body
conceptions that are not annulled by the presence of the other, but, principally, to enrich
them in face of mutual recognition and, more precisely, to concern them as possibilities of
reorientation of our presence in the world in face of a crisis of paradigms. From this point, we
are able to contrast them in order to extract an always provisory synthesis to reaffirm the
body as a point of inflection of the conditioned state promoted by the circuits of hegemonic
power. It is in this direction that we discuss the reinvention of body notion.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I
O ESPAÇO COMO EXPERIÊNCIA DO CORPO 10
1.1. A experiência corporal 12
1.2. A corporeidade dos corpos, sinônimo de espaço 38
1.3. Por uma teoria do sujeito em geografia 57
CAPÍTULO II
O CORPO NA (CON)TRADIÇÃO MODERNA 67
2.1 A trajetória do corpo no pensamento ocidental 69
2.2 O corpo individualizado e o espaço fragmentado 84
2.3 Espaço, corpo e poder 94
CAPÍTULO III
O CORPO NA (CON)TRADIÇÃO INDÍGENA 109
3.1. O corpo para além do significado simbólico 110
3.2. A corporeidade indígena: a produção do corpo como um complexo relacional 117
3.3. Fragmentação e corporeidade nas sociedades indígenas 133
CAPÍTULO IV
A REINVENÇÃO DA CORPOREIDADE 146
4.1. Corporeidades entre atos: o cotejo entre tradições 154
4.2. Corpo, um instrumento contingente 165
4.3. Para um novo ethos corporal 175
CONSIDERAÇÕES FINAIS 188
BIBLIOGRAFIA 197
1
INTRODUÇÃO
O corpo sempre exerceu grande fascínio sobre as mais variadas culturas. À
medida que descobria e se familiarizava com sua mordaz subjetividade, o homem se
tornava mais apto a empreender domínio sobre os mais diversificados espaços. O corpo
alimenta uma história lenta que é a história das idéias, das mentalidades, dos saberes, das
instituições, das técnicas, das economias (Le Goff e Truong, 2006, p. 173). Assim, as
subseqüentes percepções acerca do corpo atestam as respectivas mudanças sociais que se
delinearam no curso dos acontecimentos. Na trajetória histórica da civilização ocidental é
possível apontar sucessivos momentos de enaltecimento e de depreciação do corpo, cada
um desses momentos acarretando num determinado arranjo espacial: variam desde a
antiguidade, contexto em que o calor dos corpos (sinal de virtude) autoriza regras de
dominação e subordinação (Sennett, 1994, p. 30); passando pelo advento do cristianismo na
Idade Média, período em que o corpo é ao mesmo tempo glorificado e reprimido, exaltado e
rechaçado; até o hodierno momento histórico em que padrões de estética e beleza
induzidos pela indústria publicitária reafirmando os traços de uma cultura individualista e
competitiva, bem como uma preocupação na prevenção do bem-estar físico e clínico em
tempos de contumazes distúrbios sócio-ambientais, sustentam uma idealização de corpo
que contribui para uma negação dos corpos que não se alinham ao seu paradigma. Pode-se
dizer que parte do desvelo que cerca a problemática ambiental é, sobretudo, uma
preocupação com o corpo refletida no temor de uma exposição da humanidade a um perigo
catastrófico aliada a uma noção de finitude iminente.
Desde aproximadamente final dos anos 1960,
1
o corpo vem ganhando notoriedade
em variadas áreas do conhecimento dado coerente para uma sociedade de inclinações
individualistas o que tem lhe conferido, enquanto conceito, um estatuto transdisciplinar.
São tantos os campos imbricados no estudo do corpo: a teoria feminista, a literatura, as
artes plásticas e cênicas, a comunicação, a semiótica, a história, a religião, a filosofia, a
1
“No final dos anos 1960, a crise da legitimidade das modalidades físicas da relação do homem com os outros e
com o mundo amplia-se consideravelmente com o feminismo, a ‘revolução sexual’, a expressão corporal, o body-
art, a crítica do esporte, a emergência de novas terapias, proclamando bem alto a ambição de se associar
somente ao corpo, etc. Um novo imaginário do corpo, luxuriante, invade a sociedade, nenhuma região da prática
social sai ilesa das reivindicações que se desenvolvem na crítica da condição corporal dos atores” (Le Breton,
2006, p. 9).
2
sociologia, a antropologia, a psicologia, a psicanálise... Surpreende-nos, todavia, as
escassas incursões neste domínio de investigação no âmbito da geografia. Lamentável
carência, sobretudo pela atinente relação entre corpo e espaço. O corpo parece, nesse
sentido, um subentendido geralmente implícito nas análises espaciais. Falta-lhe uma
sistematização sob parâmetros geográficos que lhe proporcione um status conceitual
apropriado para esse campo de saber. Essa aparente negligência para com o corpo se
transparece igualmente na relativa ausência do sujeito no discurso geográfico. Há, por
assim dizer, um débito para com o sujeito – esse que talvez tenha permanecido tacitamente
oculto dos discursos epistêmicos em geografia e que algum tempo vem sendo
implicitamente representado pela ação no seu diálogo com os objetos, respondendo por sua
realização ao conceder-lhes vida. Porém, a ação não se realiza por si mesma, sem que haja
um sujeito que a vivifique pela interação com o objeto, sem um corpo que a acarrete pela
inerente imbricação com um espaço. Mas, qual o lugar do sujeito e do corpo no espaço
geográfico?
Reinventar a corporeidade, ou precisamente refletir sobre suas possibilidades,
consiste em fazer ecoar várias abordagens uma sobre as outras, cruzando-as de modo a
torná-las, no que se refere à sua emergência, uma evidência necessária. Essa tarefa não
poderia ser levada a efeito sem que algumas implicações viessem à tona. Identifiquemos
aqui as que dizem respeito propriamente aos desígnios desse estudo, mas que certamente
vão para além dele: 1) refletir sobre as antinomias da tradição moderna e seus efeitos para
as concepções de corpo e espaço, reavaliando sua dupla legalidade segundo uma
corporeidade física (inorgânica) para o qual vai incidir um espaço concreto e inerte, e uma
corporeidade humana (orgânica) para o qual vai convergir um espaço vivido; 2) alçar a
concepção de corpo positivo individualizado tanto quanto uma correlativa concepção de
espaço compartimentado para um sentido mais relacional, o que supõe considerar um
espaço como um campo de presença e relações marcadas por uma diversidade de
perspectivas, daí que a diferença ganha uma relevância fundamental na produção do
espaço; 3) reavaliar o papel do sujeito no discurso geográfico, posto a notoriedade com que
o objeto ganha por vezes certa ênfase em geografia, cabe aqui situar o sujeito tanto quanto
o objeto de maneira que eles venham a se entrelaçar, sem incorrer, pois, numa
bipolarização inconciliável, sem insistir num significado restrito e isolado de ambos, mas, de
outro modo, enfatizar sua pluralidade; 4) e, por fim, evidenciados os fundamentos do corpo e
sua inerência espacial, o retomaremos em meio a um conjunto de determinações histórico-
geográficas, representações simbólicas e relações de poder, mas, todavia, reafirmando-o
como um meio de inflexão de tais ordens, identificando dentre as emanações corporais
aquelas que reafirmam seu horizonte emancipatório a fim de elevá-las a um patamar mais
solidário de sociabilidade.
3
Caso pretendamos tomar o corpo como elemento norteador de práticas
socioespaciais alternativas de uma racionalidade utilitarista que é a marca do projeto
moderno de coisificação do homem, convertido em mero apêndice de uma
instrumentalidade técnico-científica, ao passo de um absoluto controle da natureza,
necessitamos minimamente de um conceito geográfico de espaço que contemple sua
imanência ao corpo para um empreendimento de investigação em geografia. Sendo assim,
se impõe uma preocupação basilar para essa pesquisa: a de saber como o corpo se
constitui como categoria de análise para uma teoria crítica do espaço. Poderíamos presumir,
pois, que o espaço conforma um prolongamento do corpo e, a despeito de visões
deterministas, conjeturar que o corpo é coextensivo ao espaço, constituindo, juntos, uma
unidade de sentidos e significados. Tomemos o corpo como o sujeito da ação, ou antes da
percepção, sem que, contudo, o restrinjamos de forma fatídica a este encargo ou tarefa
constituinte. Em seu enlace com outros corpos no espaço ele faz do mesmo modo as vezes
de objeto, porém não um objeto qualquer, mas todavia um objeto de qualidades sensíveis e
inteligíveis, isto é, uma coisa que não se oponha à idéia, mas que seja apreensível em meio
a essas dimensões existenciais. É nessa imbricação entre sujeito e objeto, entre significado
e sentido, entre idéia e coisa que o corpo se funde com o espaço sem, contudo, se confundir
de todo com ele.
Essa inerência corpórea-espacial requer que passemos a todo o momento da
escala do corpo às escalas mais gerais do espaço, em outras palavras, da disciplinarização
do corpo à regulamentação biopolítica da vida, diria Foucault (1999, p. 294). Não por acaso,
Harvey (2000, p. 30, 135) considera o corpo como uma escala indecomponível no amplo
espectro escalar do espaço, confrontada, no outro extremo, com a escala global evocando,
pois, os rebatimentos da globalização econômica a convergir ao mesmo tempo sobre os
processos de grande vulto na ordem planetária e sobre os corpos individualizados.
Os problemas que permeiam o corpo são a um tempo tributários e subjacentes
aos problemas do ser. Partimos do pressuposto que o ser consiste numa entidade
pluridimensional, ou seja, aquilo que algo é de fato o é sob variandas perspectivas
possíveis, sendo o corpo um nexo mediador de todos esses horizontes. O recurso à idéia de
horizonte ou dimensão se mostra oportuna e pertinente perpassando, pois, toda a nossa
análise. Ela permite justapor qualidades e características díspares do mesmo ser sem torná-
las necessariamente inconciliáveis, permite com isso atrelar, por exemplo, a consciência
com a coisa, a identidade com a alteridade, a necessidade com a liberdade e daí por diante.
A “idéia de horizonte”, concordamos com Maffesoli (1998, p. 117), “fica aberta e, por
conseguinte, permite compreender melhor o aspecto indefinido, complexo, das situações
humanas, de suas significações entrecruzadas que não se reduzem a uma simples
explicação causal”. O entrelaçamento das múltiplas emanações e facetas do ser mostra-se
4
interessante, vale notar, pela coerência com o pensamento merleau-pontiano (nossa
principal referência) que compreende os caracteres distintos como condição de
complementaridade e possibilidade de multiplicação de suas variáveis e não como anulação
das partes (ou antes, de suas possibilidades) que o isolamento encerra em face da
diferença. É essa mesma comunhão entre incompossíveis que nos autoriza a cruzar
métodos os mais diversificados, fazendo-os dialogar entre si.
Diferente de uma apologia à fragmentação das ciências com seus campos de
investigação específicos se colocando na fronteira entre as ciências (como é o caso da
geografia cultural ao se interpor entre a geografia e a antropologia) –, procuramos abrir o
diálogo com outros saberes ao invés de nos fecharmos em subdivisões e limitar a
abordagem. Para tanto, recorreremos à fenomenologia, ao existencialismo, ao materialismo
dialético, ao pós-estruturalismo, ao pós-colonialismo, à literatura, aos saberes tradicionais
indígenas, dentre tantas outras abordagens possíveis. Não teremos qualquer acanhamento
em confrontar um com os outros sem necessariamente ter que assumir a defesa de um à
revelia dos demais, como se escolhêssemos um time pelo qual torcer. Trabalhar o corpo
possibilita esse apanhado de leituras. Ele permite cruzar todos esses horizontes. Não
significa dizer com isso que não temos um método de análise do corpo, mas apenas que
tentaremos não ficar atados a laços ideológicos que muitas vezes limitar-lhe-ia o enfoque.
Nosso método, diga-se de passagem, consiste em interrogar as diferenças, cotejá-las não
para extrair-lhes nteses reducionistas, mas para alçá-las a campos de possibilidades que
se abrem ao mundo e que o devenir histórico poderá confirmá-las. Na medida que essas
diferentes abordagens nos ajudam a compreender o todo, por que não lhes lançar mão? E
se os seus cruzamentos propiciam maior rendimento, melhor! Que seja então... Assim
temas tão diferenciados como epistemologia, ontologia, poder, técnica, linguagem, música,
dentre alguns outros, perfilam essas linhas convergindo para o entendimento do corpo como
um ser simultaneamente espacial e temporal.
Esse estudo consiste num exercício de constante confrontação. Cotejamos
métodos os mais diversos entre si, comparamos o corpo segundo áreas de conhecimento
igualmente diferenciadas e confrontamos racionalidades e sobretudo concepções de corpo
distintas e conflitantes. Não para anulá-las perante o reconhecimento da outra, mas
principalmente para enriquecê-las mediante um reconhecimento mútuo e, mais importante,
considerá-las como possibilidades de resignificação de nossa relação com o outro. Adotar
uma cultura específica como estudo de caso significaria restringir o corpo a uns poucos
matizes do seu vasto campo de possibilidades. O que equivale dizer que tomar um espaço
correspondente a um conceito de corpo decorreria num estreitamento de sentido, de
modo que para evitar uma determinação unívoca tomaremos múltiplas concepções de
corpo, particularmente o que as sociedades modernas e indígenas entendem por corpo e,
5
implicitamente, por espaço. Se o exame do corpo propicia variadas abordagens
consecutivas e paralelas, como tantos conceitos e sentidos de corpo poderiam dialogar de
modo a complexificar e ampliar nossos horizontes de espaço e tempo? Presumimos que o
corpo é um ponto de partida para uma dialógica intercultural, ele é a base para as
concepções de espaço e tempo e outros conceitos advindos então a despeito das distinções
culturais, de classes e de toda e qualquer variável social. O corpo é a condição primordial da
condição humana, como vão interpretar as culturas indígenas.
Em face do mundo percebido, das formas e objetos em derredor, o corpo é o
instrumento primordial da compreensão de si mesmo, e é justamente por isso que ele
permite-nos confrontar diferenciadas concepções e leituras de si. À medida que estabelece
maior número de conexões ou relações o corpo complexifica sua relação com o mundo. Ou
seja, quanto mais contrastes lhe recaem, tanto mais questões e proposições convergem
para o corpo, mais pontos de interseções se lhe incidirão de maneira que as interações
entre as múltiplas possibilidades consubstanciem um magnífico referencial para se refletir
sobre o seu redimensionamento e de tudo o mais que lhe for patente, caso seja validada a
hipótese do corpo como eixo norteador de outras ordens categoriais (espaço, tempo,
natureza, cultura...). É no sentido de confrontação de racionalidades distintas e conflitantes
e no rendimento que daí pode advir que falamos em reinvenção da corporeidade. Reaver
uma nova relação de corpo é também afirmar a diferença como eixo norteador da
identidade.
Tais possibilidades mostram-se oportunas diante da atual crise de paradigmas que
atravessamos. Uma crise que alcança certa notoriedade pela indefinição que certos
conceitos demonstram em se firmar enquanto meta-teorias, como é o caso do espaço
geográfico, muito em função do legado cartesiano e kantiano, supomos, como também pelo
desencantamento das promessas da modernidade: a emancipação individual, o
desenvolvimento, o progresso, a qualidade de vida. Crise que se reflete, dentre outras
formas, num modelo de reprodução material que vive ao mesmo tempo um momento de
apogeu e crise. Um momento tal que marca, até onde se pode constatar, a fase mais
avançada da modernidade, em que o processo histórico confirmaria a primazia das forças
capitalistas não fosse a entropia que sua lógica predatória promove nos processos naturais
de transformação da matéria e energia, ocasionando junto um aumento das desigualdades
sociais e depreciação das solidariedades culturais e das relações interpessoais.
O corpo paira no centro dessas questões. Estamos inseridos numa ordem segundo
a qual o mundo conforma uma soma de fenômenos ligados por relações de causalidade,
muito embora o corpo em sua natureza contingente suscite a casualidade, daí o desenrolar
de geografias diferenciadas.
6
Do signo do corpo derivam metáforas para toda uma gama de objetivações e
instituições, sempre em alusão à sua condição ora individual, ora coletiva, como, por
exemplo, corpo social, corpo político, corpo da pátria, corpo médico, corpo jurídico, corpo
teórico, dizemos até mesmo que um texto, um problema ou solução ganha corpo quando se
mostram vultosos e complexos. Quando nos referimos a esses corpos institucionais ou
simbólicos é sempre em deferência ao sentido coletivo que os mesmos supõem, mas
quando nos voltamos para o corpo, tal como as culturas modernas o contemplam, ele está
restrito a um substrato individual.
O processo de individualização vai implicar em múltiplos outros processos no fluxo
do desenvolvimento da sociedade moderna: uma exponencial diferenciação das funções
sociais a ponto de evidenciar uma divisão técnica e social do trabalho; o controle cada vez
mais premente dos eventos naturais não-humanos; a passagem de um centro de integração
como clã ou tribo para a consolidação do Estado, momento em que o individuo firma um
contrato social cuja lei instituída se escreve sobre os corpos; o deslocamento de um núcleo
privado-familiar para um espaço público de mercado; a emergência da iniciativa privada e da
economia liberal como expressões econômicas burguesas que vão atomizar o indivíduo e
multiplicar as redes de trocas e consumo, para, enfim, infundir uma cultura em que a
competição se sagra como a mais notória relação interpessoal.
Mas, a realização do corpo numa perspectiva de experiência sensório-perceptiva
supõe um liame com tantos outros corpos, com a multiplicidade que se abre ante a sua
paradigmática realidade individual, ou antes, se entendida em sua inerência espacial do qual
não pode se desvencilhar, a não ser por meio de um ato puramente reflexivo, o que
consiste, paradoxalmente, numa abstração irrefletida. O centro de inflexão dessa ordem
logocêntrica é o corpo, cujo conceito ocidental moderno buscaremos cotejar com o conceito
de corpo das comunidades indígenas, presumindo que as acepções de corpo nessas
sociedades estão assentadas em outros quadros de referências, logo também suas
concepções de espaço e de tempo.
Para rediscutir essas questões e apontar as alternativas que se abrem num
momento de revalorização do saber, optamos em dividir o texto em quatro capítulos.
Advertimos que muitas das considerações acerca dos capítulos que tratam da corporeidade
moderna e da corporeidade indígena, em particular, citações e referências que caracterizem
um modo tipicamente moderno ou indígena de agir e pensar, não significam que
compactuemos necessariamente com tais posições. Interessa-nos, num primeiro momento,
explicitar como tais racionalidades estão dispostas à luz de seus respectivos paradigmas,
para que num momento oportuno possamos, mediante o mencionado cotejo, envidar um
esforço de crítica à guisa de tais posicionamentos. Nota-se que para esse propósito o
7
sumário foi dimensionado como um encadeiamento seqüencial que oriente a evolução da
leitura segundo o layout textual a seguir.
No primeiro capítulo empreendemos uma investigação a propósito dos fundamentos
fenomenológicos do corpo: através da comunhão entre experiência sensível e inteligível o
corpo nos conduz à percepção ensejando uma intencionalidade que mergulha o sujeito no
mundo funcional dos objetos método arguto que se antecipa a toda inferência solipsista e
na alegação de que a única realidade válida de fidedignidade é a de um sujeito cognoscente
e auto-suficiente, um eu pensante que transcende a toda experiência sensível.
Prosseguimos deslocando o corpo de sua matriz individualista e essencialista para
conformá-lo ao espaço, situando-o no escopo da ciência geográfica. Sugerimos, para tanto,
a noção de corporeidade dos corpos, um espaço que compreende corpos se inter-
relacionando numa promiscuidade que impossibilita a síntese de recortamentos espaciais
compartimentados e precisos, mas que, todavia, permite-nos contemplar imbricações entre
o orgânico e o inorgânico, a idéia e a coisa, o significado e o sentido, abrindo-se assim para
socialidades mais horizontalizadas e solidárias. Composições e possibilidades diferenciais
que nos permitirá, posteriormente, propor uma necessária discussão acerca do sujeito no
âmbito da ciência geográfica.
No segundo capítulo objetamos investigar o sentido de corpo na modernidade para
identificar o momento e o teor de uma separação da realidade em coisas vivas ou animadas
e de coisas inertes ou inanimadas: “carne e pedra” como alude o título do livro de Richard
Sennett (1994); o que significa, por conseguinte, examinar também suas implicações nas
concepções de espaço e de tempo e as repercussões daí advindas. Deste modo, o corpo
marca presença simultaneamente (1) na constituição do conhecimento ocidental o que
requer fazer exame de nossa perspectiva dualista de mundo em que os termos de uma
relação são sempre posicionados como extremos, antinomia que se inicia com a cisão entre
essência e aparência no pensamento helenístico clássico, avançando para uma separação
entre alma e corpo, seguida da independência entre sujeito e objeto e se desdobrando, em
última instância, em concepções inconciliáveis de espaço vivido e espaço físico; (2) na
constituição do homem enquanto indivíduo auto-referenciado e como esse paradigma vai
referendar uma noção de tempo interno e sucessivo confrontada com um espaço externo e
compartimentado; e (3) como as relações de poder se instituem no corpo para que, fora
dele, possa reduzi-lo a um mero geometral útil às atividades econômicas. Aqui nosso corte
de análise converge para a fase mais avançada do capitalismo, que entendemos ser a
desembocadura crucial da trajetória moderna.
No terceiro capítulo preocupamo-nos em problematizar o corpo sob três enfoques:
o primeiro é o que vai identificá-lo no seio da contradição natureza e cultura ou seus demais
correlatos antinômicos e a afirmação como validação ou superação dessa incoerência do
8
pensamento humano tal como ela se apresenta na tradição indígena; o segundo é o que
investiga a concepção de corpo indígena configurado e expandido ao nível de suas relações
confrontado com o sentido de corpo individual, o que remete a concepções de tempo e
espaço específicas; por fim, o terceiro foco é o que aponta a concepção de corpo indígena
como base para o redimensionamento da fragmentação dos seus costumes e modos de
vida. Verificaremos num plano mais geral como os povos indígenas concebem concepções
de espaço e tempo para as quais vai concorrer uma concepção de corpo cuja pluralidade de
perspectivas autoriza estratégias diversas de reafirmação da identidade. Levando-se em
conta que seus costumes e práticas não podem ser concebidos destacados das narrativas e
conceitos que as preside, a abordagem indígena se refere a experiências e intuições
indistintas do pensar e do falar sobre tais práticas, nos permitindo mesmo evocar um certo
antagonismo do pensamento ocidental. Daí podermos considerá-la o outro da cientificidade
moderna.
Por fim, no quarto capítulo, faremos o cotejo entre a experiência moderna e a
experiência indígena. Não se trata aqui de estabelecer uma dicotomia entre essas duas
tradições. Não significa afirmar a anulação de uma cultura em face da outra, ou de que suas
premissas constituem alternativas isoladas, numa alusão, por um lado, à proeminência de
uma sustentabilidade econômica dos recursos naturais e, por outro lado, a uma leitura
romântica dos saberes indígenas pelo encantamento que eles suscitam em tempos de
assaz degradação ambiental. Sugerimos, pois, reexaminar a tradição moderna no que lhe é
intrínseco e extrínseco, ou seja, nas concepções de corpo, tempo e espaço influentes o
suficiente para serem aceitos de modo acrítico como verdades, o que supõe fazer exame de
sua genealogia epistêmica e ontológica, e na perspectiva de saberes cosmológicos e
ancestrais que sempre foram relegados às margens da modernidade por não serem
decomponíveis às suas leis, embora não fossem, contudo, estranhos à sua constituição. O
rendimento do cruzamento de racionalidades conflitantes suscita o que estamos chamando
de transcorporeidade, um dialogo de saberes, como aludiu Leff (2002, p. 169), que permita
redimensionar experiências corpóreo-espaciais, tal como o fazem as sociedades indígenas
acentuando as relações de parentesco e comensalismo, deslocando consigo os efeitos da
entropia que lhes recaem em face de um modelo de acumulação de uma civilização que,
embora em crise, se avulta e se estende por sobre outras culturas.
Reavaliar a relação entre corpo e espaço consiste, em linhas gerais, numa
tentativa de reaver uma perspectiva de espaço que suscite alternativas, que inspire o
redimensionamento de práticas corporais como contrapartida a prescrições e determinações
históricas internalizadas no homem, determinações essas que o decompõe em unidade
abstrata e utilitarista matematicamente analisável e previsível; ordem objetiva que está
9
sendo posta em xeque no atual momento de transição paradigmática. Reinventar a
corporeidade é, nesse sentido, refletir sobre suas possibilidades.
10
CAPÍTULO I
O ESPAÇO COMO EXPERIÊNCIA DO CORPO
Na ordem do tempo, nenhum conhecimento
precede em nós a experiência e é com esta
que todo o conhecimento tem o seu início.
Kant
Quando nos estendemos sobre o espaço, seja por movimento de um gesto, seja
para localizar um objeto e mesmo para nos enveredarmos em toda sorte de relações que
ele nos suscita, o fazemos com a nítida impressão de que este espaço passa a nos
pertencer, que este espaço se torna tão familiar quanto nosso próprio corpo, passando a
perfilar seus horizontes como registro de nossas experiências. A relação do corpo com o
espaço é um dado seminal da realização social, ao passo que perfaz e permeia a trajetória
histórica e geográfica do homem tal como a conhecemos. Sendo assim, temos que cada
coisa é parte da biografia dos homens e a biografia dos homens empresta sua história a
cada coisa. Logo, o sentido do recíproco pertencimento se encontra na realidade em
derredor.
Não se trata, contudo, de evocar uma mera relação entre conteúdo e continente,
mas de uma relação em que a constituição perceptiva do corpo é a um tempo uma
percepção do espaço. É nesse sentido que Armando Corrêa da Silva (2000, p.7) destaca
que “o que é geográfico está diante de nossa percepção e possui um significado dado pela
particularidade e pela forma: aquilo que se apresenta como um momento de existência de
uma configuração do espaço e pelo movimento diferenciado e múltiplo neste”. Ele nos
participa que a particularidade é um dado seminal para a diferença e a multiplicidade, e a
forma figura como fundo espacial da existência. Compete-nos, pois, precisar como a
percepção do corpo é igualmente uma percepção do espaço explicitando a intrínseca
relação entre essas duas categorias, em outras palavras, como sua particularidade nutre
toda diferença.
Esta empreitada requer um considerável esforço conceitual na retomada dos
fundamentos do corpo. Se pretendemos reaver os princípios emancipatórios do corpo
devemos nos enveredar em seus segredos. O corpo possui tantos horizontes, tantos modos
11
de ser definido, que tomá-lo apenas por um de seus matizes é como se o mutilássemos. Ele
não é um ente isolado tal qual uma designação ôntica enquanto pura substância material e
inerte nos faz crer para que se possa definir por uma única leitura de si. Dado o seu caráter
contingente o corpo autoriza uma inevitável pluralidade de interpretações. A dificuldade em
se ater a um dado particular sobre o corpo é por ele consistir numa interface entre o social e
o individual, entre a natureza e a cultura, entre o fisiológico e o simbólico, vai dizer Le Breton
(2006, p. 92). Por estar atravessado por rias dimensões da vida, o que se verifica pelas
inúmeras metáforas que se lhe atribui, o corpo assume difusas e intricadas concepções.
Aparentemente objetivo, o corpo nos reserva muitos traços subjetivos quando posto em
causa.
A despeito da variedade de meandros que poderíamos percorrer acerca do corpo,
preferimos nos esquivar de algumas abordagens. Não nos limitaremos, portanto, ao seu
sentido biológico ou fisiológico, como uma conjunção de órgãos descritos pela anatomia,
acepção que se convencionou como corpo físico, objetivo ou real. Não o privilegiaremos
como esse objeto tal qual pôs a nu a medicina. Não nos interessa restringi-lo a um punhado
de massa material e sem vida. Também, não é a abordagem psicológica, psicoanalítica ou
comportamental que nos interessa,
2
a não ser para rápidos apontamentos. Assim como, não
daremos vazão a um projeto antropocêntrico ou atomístico-individualista (Porto-Gonçalves,
1998, p. 45), embora a individualização do corpo seja um traço flagrante na civilização
ocidental, para a qual converge uma de nossas principais reservas quanto ao corpo
moderno.
Estamos mais inclinados a examiná-lo como corpo fenomênico, isto é, a partir de
uma série de experiências perceptivas a encadear sensoriamentos de tempo e espaço.
Tentaremos centrar nossa argumentação nos caracteres perceptivos sem, contudo, invalidar
de todo outras dimensões corporais, que serão aqui tangenciadas como aspectos
complementares. Nesse sentido, parece-nos oportuno destacar a obra de Maurice Merleau-
Ponty por permitir resgatar o corpo através de uma descrição fenomenológica em seus
aspectos perceptivos mais elementares para enfim relacioná-lo ao outro.
3
Este autor se
debruça na retomada dos fundamentos instituintes do fenômeno da percepção,
2
Em A Estrutura do Comportamento, Meleau-Ponty (2006) se esforça para mostrar a insuficiência das propostas
da psicologia para o problema do comportamento. Crítica que iria aprofundar na Fenomenologia da Percepção
(1999) e dirigir para a psicologia intelectualista dos grandes racionalistas clássicos, de Descartes, passando por
Espinosa, Leibniz, Lachelier, Lagneau e Alain, porém tendo como fio condutor não mais o comportamento, mas a
percepção.
3
Revisando a obra de Merleau-Ponty, Marilena Chauí (2002, p. 49) vai destacar como autores tão distintos entre
si como Lefort, Deleuze e Foucault, com abordagens sobre o corpo tão díspares quanto, devem a Merleau-Ponty
a “descoberta do corpo como impossibilidade de reflexão completa, como diferenciação que jamais se tornará
coincidência, proximidade tecida na distância e no afastamento”. Marilena Chauí será enfática em precisar a obra
de Merleau-Ponty como caminho para empreender a redução fenomenológica: “Em nosso entender, a primeira
tematização dos limites intransponíveis para a redução perfeita e a constituição plena chama-se, precisamente,
fenomenologia da percepção” (ibid., p. 75).
12
antecipando-se à objetivação e abstração das experiências separadas entre si a fim de
torná-las única, atribuindo ao sujeito perceptivo, e não ao sujeito intelectual ou ao objeto
absoluto, a unidade aberta e indefinida do esquema espaço-corporal. Merleau-Ponty (1999,
p. 205) admite que o corpo não somente está no espaço, o corpo “é no espaço”, ou seja, o
espaço é ao mesmo tempo continente e conteúdo. Além de estar no espaço, o corpo é foco
de significações para o espaço entrelaçando-se com ele. Este autor tenta romper com a
idéia de um espaço único e absoluto de base euclidiana, propondo um espaço apreendido
por meio da experiência perceptível a fim de solucionar o impasse entre sujeito e objeto. Ele
visa, dentre outras preocupações, superar a dimensão espacial geométrica expressa na
existência de um fora materializado na forma de um espaço como substância extensa,
presumindo, para tanto, um “espaço topológico” como imagem do ser, um espaço
existencial para o qual a “existência é espacial” (Merleau-Ponty, 2005, p. 196).
Evidenciados sob quais parâmetros o corpo se realiza, cumpre-nos identificar sob
quais circunstâncias e condições ele se expressa no seio da ciência geográfica, como ele se
insere em meio a relação sujeito-objeto e como ele pode alcançar patamares mais amplos
de inteligibilidade e socialidade por meio de sua inerência espacial e a partir daí com todas
as outras dimensões espaciais (paisagem, região, território, lugar). Vale ressaltar que o
corpo é um dado espacial independente de qualquer inferência analítica, mesmo geográfica.
Não é a partir de uma leitura geográfica que o corpo torna-se-ia espacial, mas porque ele o
é enquanto tal por sua realização existencial. Le Breton (2006, p. 7) é categórico em afirmar
que “antes de qualquer coisa, a existência é corporal”. O corpo não é, portanto, uma
instância do espaço ou uma dimensão geográfica deste, mas partilha com este a vez de
condição e reflexo sem os quais não haveria corpo e mesmo espaço tomados isoladamente.
1.1. A Experiência Corporal
A realização do corpo por meio da experiência perceptiva se verifica como
fundamento de perspectivas diversas de mundo, antecedendo-se a toda inferência
simbólica, a todo significado ou idéia, antevendo assim as condições em que a
representação se aplica a cada cultura. O corpo não se restringe nem tanto a uma
experiência sensível absoluta e tampouco como uma experiência inteligível por si só, mas
se realiza como uma experiência que contemple ambos os horizontes por meio da
percepção. O corpo, para efeito de nossa investigação, é expressão fenomênica da
percepção. Ele é concebido no ato perceptivo, no momento que apreende um espaço,
realizando-o no mesmo ato constitutivo por meio de relações diversificadas, facultado a
interagir com tantos outros corpos da fecundação ao nascimento e doravante; muito embora
Merleau-Ponty (1999, p. 6) ressalte que a percepção não consista propriamente num ato,
13
numa tomada de posição deliberada: “ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam
e ela é pressuposta por eles”. O corpo, todavia, não pode ser concebido sem uma
manifestação perceptiva e o enraizamento espacial que ela inspira.
Ter um corpo supõe se enveredar e constituir um mundo, de modo que a visão,
dentre outros sentidos, consista em presença imediata no mundo; é estar suscetível a
uma série de estímulos constantes do meio banal que o circunda; é habitar um mundo
histórico se entrelaçando com seus horizontes geográficos. O corpo sente o mundo ao
sentir-se”, não se cansa de reconhecer sob diferentes pontos de vista Merleau-Ponty (2005,
p. 116). assumimos a consciência que somos (pois não basta simplesmente possuir) um
corpo, se tomarmos partido de um mundo, não de maneira isolada e auto-suficiente, mas
em coexistência, enquanto corporeidade. Assim partilhamos um meio intersensorial. Ser um
corpo é, por fim, esposar a ação ou ainda sofrê-la, a despeito de efeitos causais, podendo
ou não a partir de certas circunstâncias criar e estar suscetível a possibilidades. Desse
modo, além de ato, o corpo é potência aberta e indefinida de significar como fato derradeiro
pelo qual o indivíduo se transcende ao encontro a um novo comportamento ou em direção
ao outro. Por isso é possível reencontrar o corpo sob formas dinâmicas e contingentes de
existir no mundo.
Quando nos referimos ao corpo a impressão que se tem é que ele parece algo à
parte do homem (no sentido genérico do termo que inclui todos os seres humanos). “O
homem é a fantasia desse discurso, o sujeito suposto”, escreve Le Breton (2006, p. 10). Por
isso esse autor vai considerar o corpo uma “falsa evidência” (ibid., p. 26), embora o
interprete como uma elaboração social e cultural. Ou, como sustentam Le Goff e Truong
(2006, p. 9) ao constatarem a negligência com o corpo como uma das grandes lacunas da
história, “é como se a vida dos homens se situasse fora do tempo e do espaço, reclusa na
imobilidade presumida da espécie”. De outro modo, o corpo de que estamos tratando é o
corpo do indivíduo-social humano e não o corpo como pura substância ou matéria absoluta.
4
Interessa-nos abordar o corpo como instrumento vivo de nossas ações, sem que isso
signifique necessariamente encerrá-lo num invólucro físico de um espírito transcendente.
Um corpo que em sua orientação ôntica de ente contemple o homem como horizonte
ontológico do ser. Por sua irredutibilidade enquanto ser, ou seja, aquilo que ele
propriamente é, o corpo constitui a base material do desenvolvimento da ação política na
existência. Ele, o corpo, é a grandeza irredutível do processo de objetivação do homem. A
irredutibilidade consiste na impossibilidade de anular cada componente da relação em
presença dos demais garantindo a afirmação da indentidade ou de dissociar as
4
No paradigma ontológico contemporâneo o ser perde o caráter de substância que lhe atribuíam os filósofos
clássicos desde Platão à Husserl. “Ele perde”, dirá Lévinas (2005, p. 79), “a univocidade que tirava de sua
orientação, na analogia do ser, para o termo de substância”.
14
complementações diferenciais advindas da relação. Indiviso, o corpo não é uma positividade
essencializada, mas sim constante diferença a entrecruzar o sensível, o inteligível, a
linguagem, a sexualidade, a motricidade, dentre outras emanações do ser, como dimensões
simultâneas e indissociáveis entre si.
Nos trabalhos que antecederam sua repentina morte, Merleau-Ponty cunhou uma
noção que precisa a inerência entre o corpo e o mundo: a carne é a imanência das coisas
no corpo, o emblema concreto geral que os interligam ao mundo, o modo como estão
inspiradas nele e inversamente.
A carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso, para designá-la, o
velho termo ‘elemento’, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da
terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre um indivíduo
espaço-temporal e a idéia, espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em
todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Neste sentido, a carne é um ‘elemento’
do ser (Merleau-Ponty, 2005, p. 136).
A carne é o quiasma que reúne as dimensões objetivas e fenomênicas do corpo
numa mesma superfície de contato, estendendo ramificações entre o corpo e o mundo. “O
quiasma liga como avesso e direito conjuntos antecipadamente unificados em vias de
diferenciação” (Merleau-Ponty, ibid., p. 236). Isto quer dizer que os mesmos princípios que
ordenam e que emanam do corpo comparecem do mesmo modo ao mundo, não como leis
causais e mecânicas, mas como leis reversíveis que possibilitam encadeamentos e
transgressões. Sartre (1997, p. 402) considera que dizer que um mundo ou que se tem
um corpo é uma e a mesma coisa. Daí ser possível encontrar no corpo metáforas para
uma série de manifestações tanto sociais quanto naturais como corpo celeste, fecundidade
da terra, corpo teórico, anatomia política, corporação, dentre muitas outras. À medida que as
metáforas do corpo são construídas, vai perceber Greiner (2005, p. 55), abrem-se a um
tempo possibilidades de novos modos de organização do ambiente ao seu redor que podem
se transformar em metáforas do mundo. Mas se o que se propõe são metáforas, adverte
Merleau-Ponty (2005, p. 134), “seria melhor dizer que o corpo sentido e o corpo que sente
são como o direito e o avesso, ou ainda, como dois segmentos de um único percurso
circular que, do alto, vai da esquerda para a direita e, de baixo, da direita para a esquerda,
constituindo, todavia, um único movimento em suas duas fases”. Veremos adiante como
essa troca é pertinente à idéia de reversibilidade, uma emanação do ser que o associa às
coisas e ao outro. Importa saber como o corpo real passa ao espaço, entrelaça-se com ele
embaralhando seus limites, torna-se carne.
15
O que para Merleau-Ponty é o mundo
5
interpretaremos daqui por diante como
espaço total, o que significa entendê-lo como élan de nossa existência ou ainda como um
fundo de possibilidades para o qual a ordem dos sentidos e as representações ainda não
estão prontamente determinadas. Tomamos o mundo como o espaço geral de nossos
significados, mas que sob certas circunstâncias nos comparece como o espaço objetivo de
nossos sentidos de onde a carne compõe o seu preenchimento. Pode-se dizer ao da
letra que o espaço se sabe a si mesmo através do meu corpo” (Merleau-Ponty, 1975c, p.
437). Mesmo Descartes (1984, p. 66) que sobrevalorizou nossos traços subjetivos
reconheceu que tudo o que existe em nós deve ser atribuído ao corpo.
corpo
espaço
figura 1: corpo e espaço, segmentos
reversíveis de um único percurso.
Impõem-se aqui a relação entre o corpo e a exterioridade que o cerca que, a
despeito dos postulados cartesianos e positivistas, não está posta em termos de dentro e
fora. Vejamos, por exemplo, o caso dos bosquímanos do deserto de Calaari cuja estrutura
físico-corpórea está em conformidade com um espaço que lhe é circunspecto a lhe conferir
um porte esguio e ágil para suas incontinências, espaço esse estruturado segundo suas
demandas e afecções; ou ainda os altos índices de obesidade mórbida da população norte-
americana, reflexo de uma visceral cultura de consumo cujo espaço produzido lhe é
cúmplice. Dois extremos civilizatórios mas que, contudo, têm no corpo um nexo comum em
sua inerência ao espaço.
A sensação ou sensibilidade supõe um ato, a saber: a ação que intermedia o
sujeito senciente em face do objeto sensível. Ela é produto do encontro entre um objeto e a
representação que se tem dele. A sensação é, portanto, potência que se realiza como ato
no encontro entre senciente e sensível. Mas tais qualidades não existem por si mesmas,
são possíveis na entrosagem de um para com o outro, isto é, mediante o despertar da
sensação. Portanto, a sensibilidade está para um plano de relação com o sujeito
(perceptivo) que vai em direção a um objeto potencialmente sensível, suscitando assim uma
reciprocidade de estímulos em que ambos se resignificam. O sensível não se limita ao
sensível puro ou ao empírico restrito a um ente físico, material e inerte, partes extra partes
(para lançar mão de uma expressão recorrentemente utilizada por Merleau-Ponty) reguladas
por uma causalidade mecânica como se convencionou no empirismo. O sensível não
5
O mundo para Merleau-Ponty (1999, p. 576) é a “unidade primordial de todas as nossas experiências no
horizonte de nossa vida e termo único de todos os nossos projetos”.
16
consiste apenas nas coisas, mas “tudo o que nelas se desenha, mesmo no vazio dos
intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que nelas figura, mesmo a título de desvio
e como uma certa ausência” (Merleau-Ponty, 1975c, p. 442).
Por seu turno, o reflexível ou inteligível consiste numa qualidade subjetiva que
relaciona o eu para com o objeto pensado e não um atributo do sujeito absoluto ou
transcendental que se destaca do mundo sensível afirmando sua preeminência sobre o todo
como professam os postulados racionalista e idealista. “Trata-se de uma reflexão que se
pressupõe nas coisas e que não vive distanciada de si mesma” (ibid., p. 434). Nesse caso, a
idéia de uma reflexão absoluta é quimérica, a reflexão é sempre incompleta. Numa
perspectiva perceptiva, o pensamento que era potência do pensado se realiza como ato
na confrontação entre sujeito e objeto, logo, esses não existem isoladamente. Ora, nesses
termos, sensível e inteligível, uma vez que ambos possuem qualidades afins, são
dimensões que constituem a percepção na diferença, são horizontes da percepção que se
realizam mutuamente. “A sensibilidade, como consciência própria do vivente, não é um
pensamento confuso: ela não é pensamento em absoluto”, dirá Lévinas (2005, p. 35); a
sensação, para este autor, “não é sensação de algo sentido” (ibid., p. 35). Poderíamos dizer
de nossa parte que a sensibilidade ou sensação é incompleta e insuficiente sem o
pensamento e inversamente. Sem que sejam opostos entre si, a sensação é o outro da
reflexão como o é de tal modo entre si a linguagem, o algoritmo, o cálculo, a nota musical:
diferentes e não antagônicos, mas todavia complementares.
A percepção é a faculdade de perceber, distinguir, entender por meio das
propriedades sensíveis e inteligíveis (juntas, nunca separadas) de sorte a permitir nos
relacionarmos com e no espaço, de maneira que o ato perceptível não se encerre em si,
mas que estabeleça um ciclo em que os estímulos em jogo vão realimentando mutuamente
os sujeitos e os objetos da relação, no sentido que um empresta significado ao outro, de
modo que a sua separação elimina qualquer possibilidade de mantê-los enquanto tal. Por
meio da percepção passamos da coisa ao sentido ou significado da coisa,
6
isto é, a
objetificamos, entrementes tornamo-nos sujeitos. É a percepção que revela um espaço ao
mesmo tempo sensível e inteligível, é ela que ratifica nossa pertença ao espaço. Ela é o
modo como a consciência se relaciona com as coisas enquanto realidades qualitativas
expressas por meio de forma, cor, luz, bela, feia, agradável (Peixoto, 2003, p. 24, 25).
Contudo, tanto a percepção quanto a consciência não pertencem propriamente ao corpo e
6
Para Moles (1981, p. 12), as coisas advêm dos sistemas naturais, confrontadas, num outro extremo, com os
objetos enquanto produtos do homem. A coisa, no nosso entender, é algo do qual ainda não se atribuiu sentido,
não podendo, portanto, ser uma criação humana, o que não quer dizer que seja estritamente um elemento
natural, ou melhor, da natureza. Por não deter um sentido ou significado que lhe impute valor, pois do contrário
seria um objeto, a coisa é a rigor uma virtualidade. Chamamos algo de coisa quando esse algo está em
suspenso a tudo o mais: ela assume um momento ou posição preliminar ao objeto e, portanto, ao sujeito. Nota-
se que a proposição de Moles está embebecida da contradição moderna que separa natureza de cultura.
17
tampouco ao espaço. Elas se constituem na mediação desses termos, no jogo entre as
partes e o todo. A percepção que nos apresenta e nos insere ao espaço é um horizonte do
nosso ser de corpo, como o é de tal modo a consciência que interroga as coisas
objetificando-as e as afecções como a fome que debilita o ânimo, a dor que desconforta, a
cólera que incita à agressão, o medo que põe a fugir e a ousadia que nos convence que
sempre mais dignidade na defesa do que na fuga. Temos o espaço como uma miríade de
estímulos que desnorteiam a percepção. Mas não tendemos a perceber as coisas
embaralhadas, como um caos do qual não se pode discernir tons, texturas, formas, atos e
idéias; também não as percebemos como partes extra partes, como entes positivos que não
se intercambiam: elas nos comparecem como nódulos complementares entre si e conosco.
O ato de perceber as coisas não advém da sublimação de um ego interior cognitivo
ou de relações do tipo ação e reação. Provém da relação sensível-inteligível com o espaço,
uma relação mediada pelo sistema sensorial, isto é, pelas faculdades visuais, auditivas,
olfativas, gustativas, táteis cinestésicas e pela intuição, mas também e conjuntamente a
partir do pensamento, da imaginação, do raciocínio, da idéia, do juízo e da lembrança. Não
sentimos primeiramente o espaço para depois pensá-lo, como também não o pensamos
para logo após senti-lo, o fazemos por igual. Para discernir a mais simples figura não basta
somente visualizá-la, é necessário igualmente reapreendê-la a partir de um conjunto de
valorações hipotéticas para os quais concorrem nossas representações. É nesse sentido
que as sensações não podem se destacar das idéias e juízos. É o corpo quem experiencia o
espaço através das faculdades sensoriais e reflexivas, nunca separadas, sempre juntas,
reunindo essas dimensões num único ato constitutivo. Se evocarmos um espaço distante
por meio de nossas capacidades inteligíveis, como a cidade de Nova York, Paris ou
qualquer outra que não esteja ao alcance de nossas faculdades sensíveis e mesmo que não
o conheçamos pessoalmente, ainda assim não se pode descartar a participação sensível na
introjeção dessa informação pela memória. Face ao mundo, há um momento tal de incitação
dos aparelhos sensório-intelectivos que confia aos mecanismos da percepção a decifração
de seus códigos originais. Invadido por uma multiplicidade de estímulos
7
o corpo nos revela,
através dos sentidos e da intelecção, a percepção, convocando a consciência a mediar por
meio da intencionalidade o entrelaçamento entre a idéia e a coisa, entre o significado e o
sentido, entre sujeito e objeto, convocando assim a experiência a debutar as representações
de tempo e espaço, de cultura e natureza, do imaginário individual e coletivo.
Se os estímulos derivassem exclusivamente do objeto todos os corpos
perceberiam o espaço de um mesmo modo e se, por outro lado, fossem propriedades do
7
Há, de acordo com Gaiarsa (2002, p. 51, 52), cerca de sete milhões de pontos sensíveis no corpo respondendo
por modalidades distintas de estímulos, e dentre os quais em torno de dez mil pontos sensíveis para cada
milímetro cúbico de nosso corpo.
18
sujeito jamais os corpos chegariam a consenso algum. Os estímulos nascem, pois, da
relação entre sujeitos sencientes e propriedades sensíveis dos objetos e da relação entre
reflexão e propriedades refletidas ou, se entrecruzarmos esses horizontes, da inter-relação
entre sensível e inteligível, isto é, da percepção do corpo. Os estímulos nos convidam a
raciocinar e a sentir, estabelecer relações e associações: o texto que acabamos de ler nos
inspira a escrever essas linhas. Assim nenhuma experiência decorre impunemente sem que
sobrevenha um sentido e um significado. A cor, o ruído, a textura, o odor, o gosto são
qualidades sensíveis na medida que nos relacionamos e damos sentido aos objetos;
analogamente, o comprimento, a altura, o volume, a densidade são qualidades abstratas
advindas da reflexão à proporção que interrogamos o significado dos objetos. Em ambos os
casos os objetos restituirão um sentido que resignifica o sujeito, mas todavia conformam um
mesmo ato, discerníveis apenas por pertencerem a dimensões corporais distintas, porém
indissociáveis.
O significado consiste numa síntese intelectual, ele é o conceito em termos estritos;
enquanto o sentido se refere à apreensão sensível imediata de mundo, ele instaura a
realização do corpo como tal e como espaço. O significado de um sentido é a sua redução a
uma síntese intelectual. Mas, para que o sentido se torne um significado ou conceito
mediante uma síntese intelectual é preciso a reincidência de uma série de experiências
regulares e retroativas de modo a permitir um conjunto de representações que validao
significado. Portanto, não uma prevalência do significado sobre o sentido e o mesmo é
válido se invertermos a ordem dos termos. Se por outro lado é possível alçá-los a resultados
mais complexos de seus rebatimentos, essa possibilidade se daria não por uma síntese que
os limitariam a uma idéia ou conceito, mas sim pela pluralização que suas diferenças
autorizam, uma linguagem empírica e simbólica empregada no ato da relação com os
objetos e que a nós (sujeitos) retorna realimentando nosso ser de corpo, o modo como ele
se realiza em ato. O enlace que unifica sensibilidade e pensamento, parte do mesmo
princípio da união entre corpo e alma e subentende uma indissociabilidade entre corpo e
espaço.
A percepção não se esvazia em rememoração pura e simplesmente: “perceber não
é recordar-se” (Merleau-Ponty, 1999, p. 48). Ela se apresenta a cada instante como uma
retomada ou uma reconstituição do espaço. A experiência perceptiva, todavia, associa a
experiência imediata a lembranças de experiências passadas, evocando recorrentes
imagens precedentes, isto é, nossas representações. Ao ouvirmos uma música pela
primeira vez não a reconhecemos dentre tantas outras canções que conhecemos; tornando
a ouvi-la seguidas vezes passamos mesmo a antecipar seus versos, de onde se depreende
que a experiência não somente relaciona passado e presente, mas também deduz um
possível porvir. Especulamos um futuro com base em um estímulo presente. A idéia de
19
sucessão autoriza tal procedimento. O objeto da experiência imediata detém imanências tal
que o qualifica e o revela diante de nós a partir de um conjunto de dados que lhe atribuem
sentido e sem o qual a representação permaneceria vazia. A experiência perceptiva une o
presente e o passado, sem que, contudo, haja propriamente uma consciência do presente e
uma do passado: o passado que adere ao presente. Nesse sentido, o passado
rememorado é o presente refletido no âmbito do vivido. Os objetos reais que não fazem
parte de nosso campo sensível podem ser concebidos pela reconstituição de
experiências precedentes, através de imagens, por meio de nossas lembranças ou por
conjeturações acionadas por nossa capacidade intelectiva, e é por isso que eles são
possibilidades permanentes de nossas sensações, dirá Merleau-Ponty (ibid., p. 51). Porém,
todas essas ilações são em conluio com o ato sensível copartícipes da percepção, ela
abarca todos os horizontes expressivos do corpo, entrecruza o sentido advindo da
experiência sensível com o significado absorto da experiência reflexiva, o existente com a
idéia do existente.
A experiência supõe um campo perceptivo e intencional segundo o qual a
consciência se dirige ao objeto realimentando o sujeito e pela rememoração une o ato
presencial com experiências remotas no tempo construindo relações que vivificam o espaço.
“A palavra ‘experiência’ provém da mesma raiz latina (per) de ‘experimento’, ‘experto’ e
‘perigoso’. Para experienciar no sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e
experimentar o ilusório e o incerto” (Tuan, 1983, p. 10). Para Lévinas (2005, p. 167) a
experiência consiste no próprio vivido convertendo lições percebidas em unidades do saber
expressas em suas mais variadas dimensões e modalidades: contemplação, vontade,
afetividade, sensibilidade e entendimento, percepção externa, consciência de si e reflexão
sobre si, tematização objetivante e familiaridade daquilo que não se propõe, qualidades
primárias ou secundárias e sensações cinestésicas.
A experiência convoca seus horizontes diferenciais a vivenciar um quadro instante;
diferença que nunca é posta por ela mesma, mas que nasce do encontro de termos
reversíveis que atribuem sentidos uns aos outros. A experiência decorre de um acúmulo de
experimentações resultantes de uma série contínua de acontecimentos, nos permitindo
relacioná-los entre si de modo a estabelecer um certo parâmetro de reconhecimento para
uma retomada da experiência presente segundo a interpretação de eventos
experimentados: estamos falando de nossas representações. Suponhamos esta
rememoração com o olhar fixado no presente como uma espiral e não mais como uma seta
do tempo a perfilar sua continuidade ininterrupta, um tempo espiralado que permita
recombinar e reinterpretar neste exato momento as experiências e acontecimentos. É nesse
sentido que a percepção presente, que nos permite apreender as formas, remete à
representação de experiências passadas, assim como permite conjeturar ou imaginar
20
situações prospectivas como um presente que nos escapa por não consistir num imediato
corpóreo. A cada momento, a experiência pode ser ordenada ao instante precedente e ao
instante subseqüente. O cruzamento da experiência imediata com a experiência
rememorada é que vai determinar a escolha seguinte, o próximo passo por assim dizer,
como criação indeterminada ou como possibilidade. É possível, portanto, incorrer numa
indissociação entre tempo e espaço no próprio corpo: recorremos a um tempo interno, uma
forma presente em nossas lembranças, para dar correspondência a uma forma presente em
nossas ações, externamente localizada.
As representações são imagens corticais ou um registro imagético de nossas
capacidades intelectuais sem as quais não poderíamos dar significado às nossas
experiências. Conforme supõe Hissa (2006, p. 151), “não pode haver um olhar físico que
não seja contaminado por um pensar prenhe de imaginação (imagens) que, mesmo antes
da observação tomada como objetiva, adianta significado à forma e nomeia o objeto que se
insinua à visão”. Entretanto, as representações não são inatas ou abstensas do mundo, elas
derivam da experiência sensível ao passo que lhes emprestam significado, constituindo
juntas a percepção. A visão de um objeto aciona uma miríade de estímulos convocando a
representação a estabelecer um nexo entre presente e passado e tomar parte da percepção
para a qual sucede a ação.
A experiência, portanto, se precipita às representações conceituais, pois estas,
isoladas dos sentidos, são estereotipias e, logo, dependentes da percepção que nos
participa um espaço. A percepção se atém a apresentação da coisa e não à sua
representação. Esta é fundamentalmente nominal, daí podermos relacioná-la ao signo das
coisas; aquela é precisamente intencional, o que nos autoriza tratá-la em termos de
experiência vivida. A percepção nos põe a par de um meio percebido que antevê o número,
a narrativa, a medida, a extensão, a causalidade e tudo que sobrevém ao objeto para se
instaurar após um acréscimo refletido como significado e despojá-lo de seu sentido
ordinário. as representações, impregnadas que estão de valorações variadas tal qual os
contextos em que se apresentam, nos conduzem a uma certeza ilusória que distorce a
nossa interpretação do real: a de um mundo prenhe de significações advindas tanto de uma
matriz intelectualista de pensamento quanto de uma matriz positivista, ambas se
sedimentando como verdades indeléveis. Não podemos confiar à representação as relações
objetivas que, antecedendo-a, não se constituem em seu plano, tendo em vista que a
percepção nos apresenta ao espaço, embora não se restrinja a um desencadear de uma
série de sucessões.
Mas, a percepção antecede o sistema de representações no campo
fenomenológico, isto é, mediante uma suspensão dos fatos tal como nos comparecem
capturando a situação ontológica inicial antes de qualquer mediação para que possamos
21
melhor avaliá-la. No âmbito dos fatos históricos e geográficos tais horizontes do ser se
realizam de modo a se relacionarem mutuamente. As experiências sempre reorganizam
nossas representações e essas, por sua vez, sempre servirão de parâmetro para nossas
avaliações. Às vezes tais interações e modificações são tênues e imperceptíveis e outras
são radicais. Separar as experiências das representações, tomá-las como processos
independentes, é como distanciar o corpo da alma. Da integridade desta associação
depende o modo como lidamos com novos contextos e situações. Para culturas em que
corpo e alma, sentido e significado, experiência e representação não estão dispostos em
termos antagônicos, a possibilidade de ajustar o corpo (e com isso o seu sistema de
representações) a condições involuntárias e adversas é um tanto quanto maior, o que
permite uma relativa sobrevida de seus traços culturais. Enquanto culturas que detêm tais
diferenciações bem marcadas, isolando-as como essências inalcançáveis, por ocasião de
uma repentina mudança de paradigmas entram em colapso retomaremos essa discussão
nos capítulos que se seguem. Nossa preocupação por ora é a de saber como a percepção
permite a integração desses desencontros num campo intersubjetivo.
Evocar a percepção como base estesiológica das relações espaço-temporais não
significa negligenciar a razão como tributária do conhecimento do real. Todavia, um ímpeto
racionalista se impôs de modo tal no processo de construção do conhecimento moderno que
não reconhecemos mais a que racionalidade concerne a razão, pois já não provém da
experiência que a entrecruza com a sensibilidade, mas do interior de um indivíduo
epistemológico se afirmando como verdade irrefutável, o que suscita paradoxalmente um
pensamento irrefletido. No plano contemplativo não se considera a experiência do outro, de
onde se depreende conceitos de corpo, espaço e tempo como construtos exclusivamente
reflexivos, como se o emprego razão) dos sentidos fosse desprovido de importância na
apreensão do mundo. É nesse sentido que Tuan (1983, p. 223) nota “que as experiências
são negligenciadas ou ignoradas porque faltam os meios de articulá-las ou destacá-las”. No
que nos compete, não se trata de querer desqualificar de todo o ato reflexivo, mas de tentar
deslocá-lo do significado capcioso e irrefletido que lhe facultou o cartesianismo e o criticismo
e retomá-lo como textura da experiência, como horizonte de um campo perceptivo.
Tanto a análise reflexiva como a análise objetiva evocam, cada qual, qualidades
autônomas que nada mais são que um envoltório do sujeito ou do objeto alijados da
experiência perceptiva, consistem num sobrevôo (outro termo bastante usado por Merleau-
Ponty) sobre as coisas e os fatos, uma caricatura de um mundo sublimado do real que priva
a experiência da relevância do acaso. Compreender a experiência para o intelectualismo
consiste em se destacar dela, empreender o que Merleau-Ponty (1975b, p. 298) chamou de
“fissão do ser”, para que fora dela possa-se pensá-la e explicá-la, ou seja, passa-se do ver
ao pensamento do ver, do sentir ao pensamento do sentir, do pensar ao pensamento do
22
pensar. Do concurso das experiências intelectuais puras não conciliação possível para a
apreensão do espaço como experiência do corpo. No limite, apreendemos uma noção
frívola e quimérica deste. Daí a alegação de que toda reflexão é incompleta, e ela vem à
tona pela margem de irrefletido que permite inseri-la num campo de presença, isto é, em
meio a um conjunto de sentidos que a torne factível. Ou, como prefere dizer Maffesoli (1998,
p. 170), o pensamento ultrapassa a pessoa que pensa ou, ainda, que cada qual é mais
pensado do que propriamente pensa”, assertiva segundo a qual advém a idéia de
inconsciente. São essas aporias que nos permitem partilhar pensamentos, o que não
significa pensar igualmente segundo o outro.
Uma das propostas centrais da fenomenologia é a da intencionalidade, segundo a
qual toda consciência é consciência de alguma coisa; ou se existe alguma coisa, temos
consciência desta coisa como objeto pelo simples fato de sua existência e assim tomamos
consciência de nós mesmos como sujeitos. A intencionalidade evoca sempre o seu caráter
relacional interligando seus termos por meio da consciência. Por isso ter consciência de algo
é se posicionar no domínio das intencionalidades. É convocar a unidade dos sentidos
confundindo a relação pela indefinição da condição de sujeito em face de um objeto, embora
tais qualidades sejam marcadas por uma reciprocidade entre propriedades diferenciais que
designam a cada qual seu papel. A intencionalidade resultante dessas trocas, ou antes, a
intencionalidade que as aciona, é que designa essas emanações do corpo. No entanto, a
intencionalidade (assim como a consciência, a percepção, a sensação, a reflexão) não
consiste numa qualidade particular do sujeito ou do objeto; mas nada mais é que a
resultante da troca conjunta de sentidos e significados. Sujeito e objeto são emanações do
corpo que afloram no confronto com a diferença. Mas a intencionalidade poderia ser
antecipada antes de interagirmos com um objeto? Não sem evocarmos experiências
remotas que dele possuímos, isto é, nossas representações. Tal procedimento requer, pois,
uma experiência prévia com o objeto, mas em todo caso é a experiência atual, ainda que
margeada de significações pela experiência anterior, que incidirá sobre o corpo
retrabalhando todos os seus aparelhos sensíveis, motor e intelectual, denotando assim uma
certa especificidade e ratificando a intencionalidade.
Para Husserl (1989, p. 48) a intencionalidade é consciência de alguma coisa. “A
palavra intencionalidade significa apenas que essa particularidade intrínseca e geral que a
consciência tem de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, em sua qualidade de
cogito, seu cogitatum em si próprio” (ibid., p. 48). A intencionalidade precede qualquer
predicação, requerendo uma suspensão do juízo, ou seja, um pré-juízo; “ou, mais
exatamente: o ato de julgar [em si] constitui uma ‘intenção’” (ibid., p. 21). A fenomenologia
husserliana supõe uma averiguação prévia de toda pré-concepção de pensamento ou de
realidade, uma epochê, isto é, um retorno à própria coisa, o que este autor vai designar de
23
redução ou descrição eidética, segundo a qual cada acontecimento, cada dado particular,
remete sua significação à situação ontológica inicial, passando da atitude natural à atitude
transcendental.
É apenas no quadro da fenomenologia e relacionando as diferença do ser dos objetos que
se constituem com as relações essenciais das multiplicidades constituintes que lhe
correspondem, que tais diferenças podem ser mantidas fora de todo embaralhamento
(unverwirrt) numa separação que oferece uma certeza absoluta (in absolut sicherer
Sonderung) liberadas de todos os mal-entendidos que têm suas fontes em suas mudanças
de atitudes involuntárias e que, falta de reflexão pura, permanecem despercebidas de nós.
Somente retornando à consciência absoluta e à totalidade das relações de essência que
podemos seguir nela, que nós poderemos enfim compreender segundo o seu sentido as
relações de dependência dos objetos que correspondem a uma e à outras atitudes, e suas
recíprocas relações e essências (Husserl,
8
apud. Merleau-Ponty, 1975c, p. 448).
A intencionalidade em Husserl está fundamentada, pois, numa suspensão
momentânea de nossa relação com o mundo que por se tornar óbvia e evidente passa
despercebida, daí a necessidade de se abster para melhor compreendê-la. Mas Husserl
pauta-se numa metafísica que tem a essência
9
como uma natureza única constituindo o
serne do ser, o que vai restringir tanto a descrição eidética como a consciência às raias do
idealismo transcendental.
10
Atrelado à separação entre noema e noesis,
11
o ser resplandece
isolado como correlato dessa consciência transcendental. Husserl ignora o problema da
alteridade, da intersubjetividade e as contradições que elas impõe à consciência, de vez que
a consciência transcendental não pode constituir outra consciência, pois ela parte do
pressuposto lógico que toda realidade concebível subsiste apenas numa experiência
externa indubitável subentendida por um sujeito cognoscente.
Por outro lado, a intencionalidade que vem à tona e atravessa o corpo subverte a
idéia de uma consciência puramente transcendental, como vai tomar nota Josgrilberg (2003,
p. 91): “enquanto constituição fundamental de intencionalidades que se sedimenta em
camadas de habitualidades, memória, imagens e objetos a ele relacionados, o corpo se
constitui no contraponto constitutivo da consciência transcendental”.
8
HUSSERL, Edmund. Ideem II, p. 180
9
“As essências são este sentido intrínseco, estas necessidades de princípio, seja qual for a realidade em que se
misturam e se confundem (sem que, aliás, suas implicações deixem de fazer-se valer), único ser legítimo ou
autêntico que tem a pretensão e direito a ser, e que é afirmativo por si próprio, já que é o sistema de tudo o que é
possível para o olhar de um espectador puro, traçado ou desenhado daquilo que, em todos os níveis, é alguma
coisa alguma coisa em geral, ou alguma coisa material, ou alguma coisa espiritual, ou alguma coisa viva”
(Merleau-Ponty, 2005, p. 107, 108).
10
“É o que Husserl punha francamente a nu quando dizia que toda redução transcendental é também redução
eidética, isto é, todo esforço para compreender de dentro e a partir das fontes o espetáculo do mundo exige que
nos separemos do desenrolar efetivo de nossas percepções e de nossa percepção do mundo, que nos
contentemos com sua essência, que nos deixemos de confundir com o fluxo concreto de nossa vida para
retraçarmos o andamento de conjunto e as articulações principais do mundo sobre o qual ela se abre” (Merleau-
Ponty, 2005, p. 53).
11
Respectivamente, o aspecto objetivo e subjetivo da vivência, ou seja, de um lado o percebido, o imaginado e o
pensado e de outro a percepção, a imaginação e o pensamento.
24
Em Merleau-Ponty a noção de intencionalidade funda um novo modo de interpretar
o corpo, embora os últimos trabalhos deixem transparecer o abandono da consciência e da
intencionalidade em suas análises, quando muito estariam associados ao criticismo
transcendental (Merleau-Ponty, 2005, p. 212, 218). Não obstante, ele se inspiraria na
epochê husserliana para por fim ultrapassá-la, e embora Husserl tenha considerado a
fenomenologia uma continuidade dos clássicos (Descartes, Espinosa, Leibniz, Kant),
Merleau-Ponty encontra na “sombra de Husserl”
12
a maneira de superá-los. Interessando-se
mais pela gênese do sentido do último Husserl, o que considera o “impensado de Husserl”,
13
Merleau-Ponty (1999, p. 10) avalia que “o maior ensinamento da redução eidética é a
impossibilidade de uma redução completa”. Ele adota as teses husserlianas como ponto de
partida para situar a realização perceptiva do corpo como princípio estruturante do espaço a
fim de superar a antinomia entre a sensação enquanto estado de consciência e a sensação
enquanto consciência de um estado, entre a consciência em-si como posição e a
consciência para-si como negação, restaurando-as como textura da experiência. Atrelando a
consciência ao corpo Merleau-Ponty vai sugerir uma consciência perceptiva, assim a
consciência deixa de lado o campo transcendental e se torna o campo da experiência. A
percepção revela a impossibilidade de uma redução completa e, portanto, de uma
consciência plena, o que permite um liame entre a experiência e a representação. A
reflexão, também incompleta, é deslocada da consciência para o corpo, assumindo assim
uma corporeidade reflexionante. Em lugar de uma consciência estanque do mundo, a priori
de toda experiência, a consciência está enraizada pela experiência.
A descrição eidética de qual Merleau-Ponty lançaria mão não cimenta a essência
como princípio elementar, mas, todavia, prescreve a percepção como abertura primeira de
mundo, como horizonte inaugural da existência. A redução de uma experiência à essência é
quimérica, pois requer um sobrevôo contemplativo sem nenhum apoio de um solo sensível.
Nesse sentido, a essência é factualmente inacessível. É por isso que Merleau-Ponty (2005,
p. 112, 117, 120) vai pretender redefinir a essência, não como um “retorno ao imediato, uma
fusão efetiva com o existente ou como um segredo perdido a reencontrar”, mas como
“aderência e reversibilidade de um ao outro”, como superfície da experiência. Ante a
primazia de uma ontologia das essências, ele propõe um recomeço: “rejeitar os
instrumentos adotados pela reflexão e pela intuição, instalar-se num local onde essas ainda
não se distinguem, em experiências que ainda não foram ‘trabalhadas’, que nos ofereçam
12
Em um conhecido artigo, O Filósofo e sua Sombra, Merleau-Ponty (1975c, p. 430, 431) precisa as análises
que levaram Husserl ao impasse da constituição transcendental.
13
“Quando Husserl termina sua vida, há um impensado de Husserl, que é muito seu e que, no entanto, abre para
uma outra coisa” (Merleau-Ponty, 1975c, p. 431). “Essas análises do Husserl tardio [...] explicitam a tese do
mundo’ antes de toda tese e de toda teoria, aquém das objetivações do conhecimento, tese de que Husserl
sempre falou e que, para ele, tornou-se nosso recurso para o impasse produzido no saber ocidental por aquelas
objetivações” (ibid., p. 450).
25
concomitante e confusamente o ‘sujeito’ e o ‘objeto’, a existência e a essência, e lhe dão
portanto os meios de defini-los” (ibid., p. 127). A partir da superação heideggeriana da
metafísica a essência perde o seu caráter de substância suprasensível e passa a significar
origem, procedência de onde algo nasce ou provém; enquanto a existência ultrapassa o seu
caráter de substância sensível, singular, para significar superfície de possibilidade do ser
(Michelazzo, 2003, p. 117). Abandonando as teses husserlianas, Merleau-Ponty se
enveredaria pelo existencialismo de Heidegger a fim de apreender o corpo como solo
originário da experiência, como enraizamento na existência.
Ao deslocar a reflexão da consciência para o corpo Merleau-Ponty supõe superar o
estrabismo cartesiano que inaugura a dicotomia sujeito-objeto, consciência-coisa, res
cogitans-res extensa. O racionalismo cartesiano e o criticismo kantiano persuadiram-nos a
pensar o objeto com um fim em si mesmo e a consciência como algo dado. Com a
consciência perceptiva, todavia, nós não pensamos o objeto puro e simplesmente: nós
interagimos com esse corpo que nos revela um espaço. Ou seja, se estivesse voltado
exclusivamente para consigo, o corpo não poderia ter consciência nem mesmo de si, mas,
voltando-se para o espaço, como um ser-no-mundo, isto é, em termos de existência,
14
ele
expande seus horizontes agregando múltiplas experiências. Desse modo, o corpo adquire
consciência de si mesmo mediante a percepção do espaço.
O reconhecimento das coisas não se funda no reconhecimento de alguma lei ou
categoria absoluta, mas na experiência de uma presença corporal. Realizamo-nos nas
coisas e elas em nós. “O corpo é nada mais, nada menos, a condição de possibilidade da
coisa” (Merleau-Ponty, 1975c, p. 444). Neste sentido, as posições do corpo e da coisa são
invertidas: esta é descrita como algo vivo, animado (um corpo), aquele como algo que ocupa
lugar no espaço (uma coisa). Essa implicação mútua entre um corpo-coisa e uma coisa-
corpo constitui uma unidade sui generis: o corpo reflexionante, carne, inserindo ambos no
mesmo tecido intencional (ibid., 436). “É como se o espaço se tocasse a si mesmo através
do homem”, vai acrescentar Lévinas (2005, p. 153). Desse modo, não é o sujeito reflexivo
que efetua a síntese de um plano escalar do espaço, mas é o corpo que agrupa a sua
pluralidade de horizontes se expandindo para além de sua dimensão biológica e fisiológica.
A consciência perceptiva supõe sempre um objeto identificável, demandando
sempre um elo entre sujeito e objeto, entre corpo e espaço. Ela nos põe a par de um
conjunto de relações relativamente transparentes, de um espaço ao qual nos engajamos, de
nossa história, dos objetos percebidos em suas particularidades e generalidades. Não se
14
Waelhens (2006, p. XI) supõe que autores como Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty se esforçaram para
igualar existência e ser-no-mundo. Mas é Lévinas (2005, p. 256) quem melhor clarifica essa noção: “Ser-no-
mundo significa, assim, estar junto às coisas, tendo um sentido, e cuja significância coerente a partir de
preocupação em ser constitui precisamente o mundo. E ser-no-mundo é assim, [...] imediatamente ser com os
outros”.
26
trata, contudo, de pura relação entre sujeito e objeto, porquanto que um intervém no outro.
Quando interagimos com um objeto, emprestando-lhe um significado, ele automaticamente
nos restitui um sentido. Os objetos são como espelhos refletindo imagens de nós mesmos,
no sentido de que “ver implica a possibilidade de se ver” (Merleau-Ponty, 2000, p. 439). O
objeto restitui o sujeito através de sensações como uma dor, um sabor, imagens que podem
incitar o medo, a cólera, a concupiscência, ou seja, por impressões que demandam
intencionalidades, afecções e atitudes. Uma dada forma de experiência ou experimentação
do espaço implica reciprocamente uma certa consciência do corpo. Daí o porquê do corpo
nos conferir uma consciência do espaço numa operação instantaneamente recíproca em
que o espaço igualmente nos confere uma consciência do corpo.
A realização do corpo implica o agenciamento das qualidades perceptivas da
consciência, o que pressupõe a indissociabilidade entre faculdades sensíveis e intelectuais.
Admitir a experiência intelectual fora do corpo seria incorrer no mesmo equívoco cartesiano.
Privilegiar a experiência sensível às expensas do pensamento seria como ratificar o
empirismo como um axioma. Tais faculdades não estão dissociadas do sistema corporal. A
consciência perceptiva evoca num ato unívoco sensibilidade e reflexão. O percebido e o
reflexivo configuram um mesmo gesto, de modo que são emanações sempre inacabadas
que se entrelaçam entre si por meio das qualidades reversíveis que lhes são inerentes. Por
isso o corpo é um instrumento cognoscente, um corpo reflexionante. Deslocada do domínio
da consciência pura, a reflexão é posta no sensível instaurando uma consciência perceptiva,
invalidando assim toda reflexão completa e irrestrita. “O corpo reflexionante não vem
desalojar o ‘logocentrismo ocidental’, mas vem modificar radicalmente a própria idéia de
reflexão” (Chauí, 2002, p. 141). Assim, toda evidência perceptiva (sensível e intelectual) se
instaura num horizonte espaço-temporal, partilhando com este um jogo de evidências
mútuas.
Quando nos voltamos para nossas próprias capacidades sensíveis e intelectivas,
isto é, tentando sentir a nós mesmos tal como sentimos o espaço para então dotarmo-nos
de um significado, resta-nos um rastro de uma consciência que nos escapa, pois ela é,
todavia, consciência de alguma coisa e não consciência de si. Seu reconhecimento pela re-
efetuação dessa percepção supõe pensá-la, tomá-la por objeto. E todo pensamento e
percepção de um objeto é ao mesmo tempo consciência de si, de que somos um corpo no
espaço e de que pensamos um espaço como fundo de todas as nossas ações. Por isso não
nos reduzimos à consciência que temos de nós como sujeitos, como o objeto não se reduz
ao significado pelo o qual o exprimimos. Mesmo porque podemos passar de sujeito a objeto
e deste àquele indefinidamente. “Estaremos sempre diante de um ‘olhar olhante’ e de um
‘olhar olhado’, podendo tal situação se revezar ao infinito”, esclarece Trogo (1991, p. 19).
Quando nos tocamos com a própria mão, a mão tocada é, com efeito, um objeto
27
apreensível, de modo que a mão que toca é para nós um emblema de sujeito; conquanto
que as respectivas funções se invertam, a mão que toca se torna a tocada pela restituição
de um sentido complexificando toda a relação. “Assim, porque eu me toco tocando, meu
corpo realiza ‘uma espécie de reflexão’” (Merleau-Ponty, 1975c, p. 437). O quadro de
Maurits Cornelis Escher é ilustrativo: ele representa duas mãos cada qual tentando
desenhar simultaneamente a outra. Não mais sujeito de um lado e objeto de outro, mas
uma consciência operante que compreende horizontes possíveis entre si na qualidade de
um sujeito perceptivo e de um objeto sensível, um domínio intencional que se faz emergir
em meio à alteridade.
figura 2: “A mão que desenha a mão”, de Maurits Cornelis Escher.
O ato de ver nosso corpo como objeto ou como sujeito, vai dizer Sartre (1997, p.
448), é um dado absolutamente contingente. Essa possibilidade é admissível se nos
posicionarmos do ponto de vista do outro, ou seja, se tomarmos as partes de nosso corpo
como um objeto tal como o é para o outro. Negar a si mesmo como sujeito para
reapreender-se como objeto requer fazê-lo do ponto de vista do outro, aceitando-lhe como
sujeito e se alienando enquanto tal. É nesse sentido que Sartre (ibid., p. 441, 451) vai
elencar três dimensões ontológicas do corpo: o corpo como “ser-para-si” é o corpo se
realizando como sujeito em face do outro (objeto), trata-se de um ser que responde a si
mesmo (“eu existo”, meu corpo”), ele pertence “às estruturas da consciência não-tética de
si mesmo” (ibid., p. 445), dentro dessa ótica o corpo é sempre transcendido; o corpo como
“ser-para-outro” supõe que o outro se revela como sujeito tomando consciência deste corpo
como objeto; e o corpo como “ser-em-si em presença do outro” é o corpo tomando
consciência de si pelo ponto de vista do outro e, portanto, alienando-se como sujeito ao se
28
reconhecer objeto, é nesse sentido que esse autor vai dizer “eu existo para mim como
conhecido pelo outro em forma de corpo” (ibid., p. 451).
A consciência não é, pois, uma propriedade do sujeito, ela não é um dado interior e
subjetivo como supõe o cogito cartesiano, mas sim um estado (de consciência) que
compreende percepções sensoriais, intelectuais e emotivas instituídas numa relação entre o
eu e o objeto. Não está encerrada no cerne da alma ou da razão humana, validando por
dentro o que percebe de fora pelas faculdades sensíveis e intelectuais. A consciência não
depende, portanto, de uma operação mental independente do espaço. Ela nos escapa ao se
lançar em direção aos objetos, sem, todavia, se confundir com eles. Sem o objeto, a
consciência não passaria de mera abstração. “Uma consciência que fosse consciência de
nada seria um nada absoluto”, escreve Sartre (ibid., p. 758). Mas, a consciência também
não reside nos objetos, como se lhes fossem patentes funcionalidades intrínsecas à espera
dos sujeitos. Não é o objeto a causa determinante do ato intencional. Aliás, se nos
prendêssemos a relações causais não chegaríamos a consenso algum. Em termos
sartrianos, a consciência não está determinada pelos sujeitos e tampouco pelos objetos,
senão por ela mesma: uma mesa não está na consciência nem a tulo de representação.
Uma mesa está no espaço, junto à janela, etc.” (ibid., p. 22).
Sartre (ibid., p. 33) vai dizer que a consciência nadifica tudo com o que se
relaciona, pois ela se lança sobre os objetos sem se objetificar, sem trazê-los para dentro de
si, sem assumi-los por causa ou direito e, portanto, sem se prender à sua essência,
recusando-a, ainda que afirmando a sua existência, fazendo-se existir no mesmo ato de
recusa de um ser que não é ela mesma (a consciência). Remetendo ao pensamento
sartriano, Coêlho (2003, p. 88) vai depor: a consciência existe, é pura existência, ao passo
que as coisas são, possuem essência. Há, pois, uma oposição radical, uma oposição entre
o ser e o existir, o em-si e o para-si, o modo de ser das coisas e o modo de existir da
consciência”. Para Sartre o ser é o em-si, substância, resistente, opaco e viscoso,
objetividade nua e bruta; a consciência é o para-si, insubstancial, não é alma, psique ou
substância imaterial, mas pura atividade e espontaneidade, subjetividade plena (Chauí,
2002, p. 272). “Ser é possuir essência, ser determinado, realidade plena, acabada, ao passo
que existir é não ser determinado, não possuir essência, ser nada, pura possibilidade,
liberdade” (Coêlho, 2003, p. 88). Separada de tudo que pudesse determiná-la, de todo tipo
de causalidade, posto que o nada se torna um pressuposto da existência, a consciência é
pura indeterminação, é consciência de si como liberdade. “Pura existência (sem essência),
indeterminação radical, projeto, a consciência é liberdade que não consegue determinar-se”
(ibid., p. 90).
Entretanto, Merleau-Ponty (2005, p. 233) acusa o nada sartriano de dar
prosseguimento ao projeto intelectualista iniciado por Descartes e desdobrado por Kant,
29
Hegel e Husserl,
15
qualificando-o como uma “filosofia da ‘práxis individual’”. “A idéia de um
nada absoluto é contraditória. Não existe vazio no mundo, todo pensamento do vazio é
pensamento de uma certa plenitude” (Merleau-Ponty, 2000, p. 109). O ponto de chegada de
Sartre, a união do ser pela sua negatividade, é o ponto de partida de Merleau-Ponty
segundo o próprio (Merleau-Ponty, 2005, p. 216), ou seja, ele não vai atrelar a existência à
negação do ser e da essência, mas identificá-los como pregnantes da existência por meio
da experiência. Nesses termos, ser e essência exprimem-se no terreno da experiência,
porquanto que a experiência seja expressão da existência, logo, “a essência sendo essência
‘de alguma coisa’, pode ter certeza de seu conteúdo e de sua adequação ou verdade
supondo a existência daquilo que é essência” (Chauí, 2002, p. 93). A existência disponibiliza
um campo de possibilidades para que a experiência espose uma escolha dentre muitas
possíveis. Experimentamos as coisas pela reversibilidade que a relação nos impõe, de
modo que o inteligível se reverta no sensível de direito sem o sê-lo de fato, reunindo assim o
sujeito e o objeto, a cultura e a natureza, a liberdade e a necessidade e assim por diante,
cada qual se realizando no outro sem, contudo, se anularem ou se sobreporem.
As dimensões do visível e do invisível são particularmente fecundas para a
discussão em tela: através delas se pode afirmar a identidade sob a pluralidade de
perspectivas a que está submetida. O visível não é necessariamente o sensível, assim como
o pensamento não expressa de todo o invisível. Merleau-Ponty (2005, p. 232) adverte que o
invisível não é um não-visível: “não sendo o visível um positivo objetivo, o invisível não pode
ser uma negação no sentido lógico”. O invisível não significa estritamente uma ausência,
mas é antes diferença e como tal não consiste em mera oposição. É também possibilidade,
ou melhor, o possivelmente visível. O visível pode ser qualquer coisa: uma sensação, uma
idéia, um ato voluntário ou involuntário, um desejo; desde que o invisível marque a variável
diferencial que implique em interações e efeitos recíprocos que resultem na validação de um
campo de presença que estimule a promiscuidade entre ser e mundo. O invisível é, pois,
presença diferencial, é complementaridade, não é negação por exclusão, mas sim por
pertença da posição. Essa dimensão do ser, portanto, não se afirma pela ausência do par
aparentemente antinômico, mas pelo entrelaçamento recíproco sem que, no entanto, se
confundam, sem que se convertam uns nos outros e sem sobreposição, o que permite que o
visível compreenda um odor, um paladar, um pensar ou experimentar múltiplos horizontes
do invisível sem que se perca o seu emblema de visível e vice-versa. Desse modo as coisas
15
O Nada sartriano é a nova versão da consciência de si reflexiva de Descartes depois de reformulada por Kant,
Hegel e Husserl, portanto, soberana, fundadora, constituidora do sentido do ser (Chauí, 2002, p. 273). “É graças
a essa intuição do ser como plenitude absoluta e absoluta positividade, graças a uma visão do nada purificado
de tudo o que nele metemos de ser que Sartre pensa explicar o nosso acesso primordial às coisas, sempre
subentendido nas filosofias reflexionantes e sempre compreendido no realismo como uma ação impensável das
coisas sobre nós. A partir do momento que me concebo como negatividade e o mundo como positividade, não há
mais interação, caminho eu próprio diante de um mundo maciço; entre ele e eu não encontro nem ficção,
porquanto ele é o ser e eu nada sou” (Merleau-Ponty, 2005, p. 59).
30
não são objetos externos que se converteriam em puras essências, tão pouco os sujeitos o
são de modo tal em relação à consciência. Mas a consciência também não consiste num
nada, e sim em mais uma emanação do ser que advém do encontro com a alteridade. É a
diferença entre os incompossíveis que os convertem em compossíveis permitindo se
retroalimentarem, se reconhecerem como unidade na multiplicidade.
Não podemos deduzir dentre todos os sentidos e modalidades intelectivas
(pensamento, idéia, imaginação) aquele que isoladamente nos participa o espaço. O
perfume da rosa, por si só, não daria conta de expressar a sua plenitude, observa Michel
Serres (2001, p. 314). Não se pode isolar uma experiência tátil de uma experiência visual ou
qualquer que seja a faculdade sensível, de vez que a experiência é integral, sinérgica, de
modo que é pouco provável que possamos dosar as diferentes contribuições sensoriais.
Caso à parte para algumas situações patológicas, como a do norte-americano Ian
Waterman que contraiu o que os neurologistas classificaram de polineurite viral. Perdendo
as sensações hápticas, Waterman ficou incapacitado de sentir o peso dos braços e dos
ombros, os objetos que tocava, os movimentos que executava e em que posição se
encontrava em determinado momento (Roll e Roll, 2005, p. 71), muito embora, é óbvio, os
sentidos da visão, audição e oufato lhe conferisse algum expediente perceptivo. Sob
condições ideais de nossa capacidade perceptiva, e mesmo para aqueles que não dispõe
de uma ou outra faculdade sensível, como é o caso dos cegos e dos deficientes auditivos,
dentre outros, uma faculdade sensível destacada das demais, diferente de ser coextensiva à
percepção, é, em termos analíticos, a resultante particular de uma observação mais detida,
meramente contemplativa, decorrente quando nos desprendemos do mundo e nos
concentramos em um dado observável.
Fitando o céu ou a imensidão azul do mar as pupilas se dilatam e por um momento
nos perdemos em sua infinitude tentando ignorar o movimento em derredor. Ensaiamos um
devaneio alheio ao quadro instante, relegando ao inconsciente um espaço como fundo. Mas
tudo o mais continua a se consumar. De certo apreendemos um espaço, mas não com a
devida plenitude sob a qual nos alienamos através de uma estéril decomposição dos
sentidos. Empobrecemos-nos enquanto corpo senciente, até que a experiência visual nos
traia por um gesto banal que nos desloca a atenção. É a percepção reclamando o que lhe é
mais peculiar: a totalidade do corpo. Sob esta incoerência sensória os movimentos e os
estímulos externos nos reconduzem à retomada da experiência plena, nos descentrando da
percepção visual isolada e nos recompondo por inteiro. Assim reapreendemos um espaço
que nunca esteve ausente, mas que continua em sua missão ininterrupta a nos confidenciar
os seus enigmas e nos ensinar sobre nós mesmos.
Se destacada das demais, uma faculdade sensível torna incognoscível uma
experiência no espaço, posto que não podemos isolar uma sensação em ato de seus termos
31
constituintes, senão como exercício de abstração o que altera radicalmente a percepção que
se tem de um espaço. Somente pelo comedimento dos impulsos corporais e o autocontrole
individual, marcas de uma matriz de racionalidade que separa razão e sensibilidade,
poderíamos conceber a disjunção das qualidades sensíveis. Foi assim que Étienne de
Condillac (1993, p. 74), um pensador enraizado nas querelas empiristas do século XVIII,
imaginou uma estátua de mármore que contrairia pouco a pouco certos hábitos à medida
que as sensações se manifestassem uma após a outra conforme a incidência de estímulos
externos. A convicção de uma substância extensa que estimularia pouco a pouco a
constituição das idéias e juízos faz Condillac vacilar ao limitar as relações entre corpo e
espaço a interações meramente mecânicas, das quais o sentido do tato seria um fator
determinante (ibid., p. 128).
A nossa existência indivisa requer a unidade dos sentidos, ela reclama a
integração das partes. De acordo com Serres (2001, p. 314),
a mente vê, a linguagem vê, o corpo visita. Ele sempre excede seu sítio e sai de seu papel
ou de sua palavra, ou seja: nenhum corpo jamais cheirou e somente cheirou o odor único
de uma rosa. O entendimento, talvez, a ngua, certamente, realizam essa performance de
isolamento ou seleção. O corpo cheira uma rosa e mil odores em torno e ao mesmo tempo
toca a lã,uma paisagem múltipla e estremece com as ondas do som, ao mesmo tempo,
recusa todo esse borrão sensível para imaginar ao seu bel-prazer, recolhecer-se
abstratamente ou cair em êxtase, trabalhar ativamente ou interpretar seu estado de dez
maneiras sem deixar de experimentá-lo.
Não obtemos um sentido isolado dos outros, ele requer uma aderência, uma
simultaneidade que confere significado uns aos outros. Para essa inseparabilidade vai
concorrer uma experiência da diferenciação em que as faculdades sensíveis trocam de
papéis sem que anulem sua condição originária, elas se tornam pois reversíveis. Assim, as
sensações hápticas das mãos e da pele estão ligadas às percepções visuais, assim como a
impressão dos outros segmentos do corpo, contribuindo para uma certa configuração
unívoca dos sentidos, conformando assim um mesmo gesto sensível e inteligível. Nesse
caso, ao visualizarmos uma paisagem a acariciamos de mesma sorte, interagimos em seu
espetáculo sem que ela se encerre como estrado, a saboreamos pelo aroma que ela exala e
vocifera, a ouvimos tanto pelas recordações que nos invade como pelo estardalhaço de
suas cicatrizes históricas, dotamo-la de um significado deduzido do sentido que ela nos
devolve e envolve. Ela nos abriga em suas chagas, o modo como se deteriora e nos torna
cambiantes, nos contamina com um pavor que não é propriamente seu, mas o refletido de
nossa opulência.
É nesses termos que Merleau-Ponty (2005, p. 138, 139) fala de reversibilidade e
transitividade, características do ser que autorizam a sua realização num campo de
presença, de sorte que não apenas os sentidos se impliquem entre si, mas que todavia
32
atuem de modo ainda mais contundente no entrelaçamento dos corpos. A reversibilidade é a
complementação de cada capacidade sensível por interdependência diferencial, isto é, na
relação com outrem, aliás, pode-se dizer que ela inspira a própria relação. Daí sua
possibilidade de reversão, de reconversão de uma linguagem, “possibilidade de reportar e
de revirar segundo a qual o pequeno mundo privado de cada um não se justapõe àquele de
todos os outros mas é por ele envolvido, colhido dele, constituindo, todos juntos, um
Sentiente em geral, diante de um Sensível em geral” (ibid., p. 138). A reversibilidade
consiste numa circularidade de atos e de ações que nos afetam e ao outro reciprocamente,
articulando-os. Recordemos a metáfora do percurso circular entre corpo e espaço que é
propriamente o que Merleau-Ponty chama de quiasma. Assim uma reversibilidade
daquele que vê e daquilo ou daquele que é visto, e a intersecção de suas metamorfoses é a
percepção (ibid., p. 148). A transitividade é a propagação dessas trocas para todos os
corpos que lateralmente fazem os sentidos de cada um deles entrarem em comunicação.
Essas trocas se dão no encontro com a diferença, com a alteridade, de modo que se
assegure uma identidade no contraste com o outro, ou ao menos assegure um campo de
presença isento de incompossibilidades sem, todavia, anular as contradições.
Essas emanações podem ser extensivas à relação sujeito-objeto e a todos os
horizontes do ser, de vez que seus pares contrastantes só se realizam um em face do outro.
Essa indissociabilidade perceptiva engloba os conteúdos lingüísticos, a sexualidade, a
motricidade do corpo e muitas outras dimensões do mesmo ser. Todas as emanações,
afecções, expressões e manifestações do ser têm um solo comum no corpo. As habilidades
do corpo estão mutuamente combinadas e coordenadas. Elas não estão reunidas uma a
uma e tampouco se realizam por acumulação. Constituem o próprio corpo e coabitam uma
unidade que não está subsumida a uma lei, mas são decorrentes, principalmente, de uma
equivalência intersensorial. “Com a reversibilidade do visível e do tangível abre-se, pois, se
não ainda o incorporal, ao menos um ser intercorporal” (ibid. p. 138). Assim demarcamos
dimensões de sentidos sem que cada dimensão seja redutível ou sobreposta às demais,
seguem entrelaçando a motricidade com a mobilidade das coisas e essa com a visibilidade
que por sua vez se associa à linguagem e esta à idéia que aflora a sexualidade e daí por
diante, todas essas emanações como horizontes de um mesmo ser de corpo.
O movimento do corpo é um dos seus modos de ser no tempo e no espaço, por
isso o corpo é no espaço e no tempo. É nesse sentido que Sartre (1997, p. 437) vai dizer
que “o movimento é uma doença do ser”. O movimento é por definição particular, embora
plural e diferenciado, perfazendo o jogo do uno e do múltiplo ao promover a distribuição dos
corpos no espaço. Mais que isso, ele articula os corpos pelo cruzamento motor, convocando
o espaço para protagonizar a cena e não somente para se prestar de palco. Tudo está
fadado ao movimento; mesmo o aparentemente estático tende a avançar no tempo e no
33
espaço. As células envelhecem, os objetos se deterioram e o planeta gira sob a ação de
uma força gravitacional ininterrupta. O princípio desse movimento constante é universal
como prescrevem as leis da física; elas próprias compondo as partes de um todo. O
movimento conduz à medida do tempo, mas não é ele propriamente o tempo, assim como a
medida quântica do espaço é a extensão sem que aquele se reduza a esta. Mas a distância
é também medida do tempo assim como o movimento pode aferir o espaço, denotando
congruência entre essas categorias (tempo e espaço).
Entretanto, movimento, distância e imobilidade nada significariam se o corpo não
fosse a sua mediatriz. É nesse sentido que Merleau-Ponty (2005, p. 212) vai dizer que em
princípio toda percepção é movimento. Dois objetos não podem determinar a distância entre
si, ainda que se faça valer o movimento (ação), senão pela intervenção de um medidor (o
corpo). Assim, um passo pode ser a unidade corporal de tempo e espaço a designar as
distâncias e infringir a pausa e a tensão ao promover o movimento (Tuan, 1983, p. 132).
Michel de Certeau (2003, p. 177) acrescenta que o ato de caminhar tem uma tríplice função
enunciativa: “é um processo de apropriação topográfica pelo pedestre; é uma realização
espacial do lugar; enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, ‘contratos’
pragmáticos sob a forma de movimentos”. O caminhar aponta para uma manifestação
motora dos corpos, em outras palavras, seu movimento produz espaço instaurando relações
por um ato enunciativo como manifestação de uma linguagem.
Através das capacidades proprioceptivas dos músculos, dos tendões, o corpo
informa sobre o movimento e a posição. O movimento do corpo é como um ato de
intencionalidade em direção aos objetos, mobilizando outros corpos sobre os quais se
projeta; não se limita, portanto, à antípoda repouso e movimento tal qual prescreve a física.
A inércia, em função de sua inabilidade, consiste na anulação da contingência. Como então
poderíamos reclamar o corpo como possibilidade? O movimento não pode se dar pela
polarização das experiências objetivas de um lado e intelectuais de outro, mas de uma
unidade de experiência que ora encontramos no corpo.
A sexualidade penetra o corpo inserindo-o numa trama de relações, ocupando um
papel central na reprodução dos corpos, inovando-o através do gozo e do prazer. O sexo faz
proliferar os corpos. É através do sexo que o corpo se articula a uma série de variadas e
sutis alianças das quais se destaca como fato derradeiro a sua própria reprodução,
prolongando o grupo, a família, a aldeia... “A atividade sexual é percebida como natural
(natural e indispensável) posto que é por meio dela que os seres vivos podem se reproduzir,
que a espécie em seu conjunto escapa à morte e que as cidades, as famílias, os nomes e
os cultos podem se prolongar muito além dos indivíduos destinados a desaparecer”
(Foucault, 2003, p. 46).
34
O sexo nasce de um instinto elementar de prazer e sobrevivência e depois ganha
dessas expressões mais definidas de corporeidade valorações no incesto, no anonismo, no
hetero e no homosexualismo, na luxúria, na libidinagem, na devassidão, no exibicionismo e
ademais. A concupiscência, por exemplo, promulga o desejo intenso de bens e gozos
materiais, uma falta constante que incita o indivíduo a desejar sempre cada vez mais, sem
que nunca se satisfaça por inteiro. É o que Freud chama de um desejo pulsional provocado
por uma renúncia de atos sexuais considerados socialmente anômalos (Santaella, 2004, p.
137, 138), levando o indivíduo a consentir naturalmente um sistema de interdições, embora,
por outro lado, tal abstinência se ancore numa compulsão incontrolável por tentar suprir o
hiato que se instaura sobre si, o que se reflete muitas vezes numa pulsão consumista em
uns, numa inclinação altruística e filantrópica noutros, ou ainda na prática de “esportes
radicais” algures ou no engajamento político alhures, e assim por diante.
Foucault (2005, p. 57) vai dizer que “na arte erótica, a verdade é extraída do
próprio prazer, encarado como prática e recolhimento da experiência”. A experiência marca,
pois, um saber do corpo, um saber contido na sexualidade. Torna o corpo a arena de jogos
de prazer que acenam experiências que inspiram sedução às relações cotidianas. O termo
sexualidade se institui ao largo de uma série de usos sociais, práticas que permitem ao
indivíduo moderno fazer uso de si próprio enquanto sujeito de uma sexualidade (Foucault,
2003, p. 11). A inteligibilidade de si passa pela sexualidade pois produz um sentido, embora
permaneça oculto e íntimo. Assim como a totalidade do corpo resplandece no sexo como
parte que simbolicamente constitui o todo. O prazer do sexo vai deixar reverberações, dirá
Foucault (ibid., p. 57), no corpo e na alma. “Nada impede que a sexualidade seja
coextensiva à vida ainda mais que a visão ou a mão” (Merleau-Ponty, 2000, p. 444). Embora
implique no uso individual do próprio corpo, a sexualidade se abre para a corporeidade, ela
é um campo, uma dimensão do sistema corpo-mundo (ibid., p. 445, 446). Merleau-Ponty
argumenta que a libido assume um polimorfismo (ibid., p. 445) e nada resta fora de seu
horizonte, porquanto que a sexualidade entrecruze outros horizontes do ser como a
percepção, a motricidade, a linguagem, dentre outros.
A linguagem detém um papel seminal no entendimento do corpo. Pela nominação
dos objetos, o dotamos de um sentido ou de evidências próprias que é a resultante da
intencionalidade. “A linguagem tem um papel fundamental na vida do homem por ser a
forma pela qual se identifica e reconhece a objetividade em seu derredor, através dos
nomes dados” (Santos, 2002, p. 67). O espaço o é enquanto tal se existirmos num
corpo e se o dotamos de sentido, se nos comunicamos constantemente com e por ele. A
fala secreta um sentido, ela é a maneira como esse sentido se apresenta a nós. É a palavra
em seu sentido seminal que ordena um mundo cognoscível, mas é em seu sentido literal
que nos anuncia um mundo de representações. A palavra é a metáfora primordial, pois
35
realiza a condução de um objeto percebido à imagem (palavra) formada mentalmente. A
linguagem, na medida que consiste em signos, corpo ao pensamento fazendo a
mediação com os objetos e com outrem. A propósito da linguagem em termos merleau-
pontianos, Chauí (2002, p. 17) vai discorrer:
Quando alguém fala, põe em movimento todo o sistema de diferenças que constituem a
língua e das quais depende o sentido proferido; alude a significações passadas e vindouras
numa constelação significativa essencial para o sentido presente; relaciona-se com outrem,
de cuja escuta e resposta dependem seu próprio investimento como sujeito falante;
corporifica seu pensamento à medida que vai dizendo.
Engendramos um conjunto de signos que além da linguagem falada compreende a
linguagem gestual como meios elementares de comunicação com o outro. Por isso nós não
aprendemos propriamente a falar a linguagem, aprendemos a gestualidade da qual a
palavra é possível. “Um órgão móvel dos sentidos (o olho, a mão) já é uma linguagem
porque é uma interrogação (movimento) e uma resposta (percepção como Erfüllung
16
de um
projeto), [assim como] falar e compreender” (Merleau-Ponty, 2000, p. 341). O sistema de
signos e as formas de linguagens decorrem do processo de experienciação do mundo. Algo
que se expressa visivelmente na linguagem do gestuário do corpo, nos jogos de sedução,
nos rituais de saudação ou despedida, nos sinais de consentimento ou negação, dentre
muitas outras expressões. “Existiriam então unidades gestuais (‘gestemas’, segundo a
terminologia de determinados autores) comparáveis aos fonemas” (Gil, 1988, p. 149).
Operamos assim uma ordenação da vida social a partir de uma linguagem corporal que
irremediavelmente se desdobra em uma linguagem no tempo e no espaço. Isso explica o
modo peculiar com que as pessoas se expressam num dado lugar ou época.
A linguagem é o meio pelo qual operamos o liame entre os corpos. Ela é o sistema
de representações e relações simbólicas que nós produzimos como ntese da pluralidade
de nossas experiências, dotando assim o corpo de um complexo de fenômenos expressivos.
É por meio da linguagem que compreendemos o outro, que experimentamos um estado de
co-presença. A cadeia lingüística se constrói na fala por palavras diferenciais. A fala
permite-nos vivenciar um campo de presença comum, pensar segundo o outro,
compartilhar. “O falar consistiria para cada interlecutor em entrar no pensamento do outro,
em manter-se” (Lévinas, 2005, p. 209). Mas, não compreendemos o outro por um ato de
interpretação intelectual prévio, pois o pensamento e a palavra se constituem
simultaneamente. Não é equivocada a expressão “estou pensando alto”. Mesmo quando
pensamos em silêncio, pensamos por meio de palavras. “O ato fundador é dar um nome e,
por isso, é a partir do nome que produzimos o pensamento e não o contrário” (Santos, 2002,
p. 67). A palavra é a idéia encarnada.
16
Realização.
36
A linguagem pode ser considerada uma das expressões mais fidedignas da
liberdade; diferente do corpo segundo o qual a liberdade está condicionada por uma série de
preâmbulos (necessidade, essências, afecções) como se buscasse um permanente
equilíbrio entre essas legalidades. “Com minha linguagem posso fazer tudo: até mesmo e
sobretudo não dizer nada. Posso fazer tudo com minha linguagem, mas não com meu
corpo. O que escondo com minha linguagem, meu corpo diz” (Barthes, 2003, p. 155). Ao
tentar clarificar a indeterminação da linguagem em relação ao corpo, Barthes (ibid., p. 155)
ainda vai dizer: “meu corpo é uma criança teimosa, minha linguagem é um adulto
perfeitamente civilizado...”. Mas, para afirmar a linguagem enquanto liberdade talvez ele
devesse inverter os termos dessa associação. Não obstante, não se pode dissociar corpo e
linguagem, ela enuncia signos que transparecem no corpo através de manifestações orais,
sexuais, móbeis, dentre outras emanações do ser.
Por seu caráter pré-predicativo, ou seja, precedendo toda inferência reflexiva, mas,
no entanto, sem dispensar a reflexão de todo, é que o corpo se caracteriza por sua
irredutibilidade, realizando assim a comunhão entre o objeto extenso e o sujeito do
conhecimento, redefinindo-os como sujeito perceptivo e objeto sensível. Dualidade que a
modernidade tentou equacionar equivocadamente, ao longo de sua trajetória histórica,
erigindo uma racionalidade físico-matemática calcada na superação e controle sistemático
da esfera da necessidade, isto é, a ordem da legalidade prática do homem diante da
natureza, pela esfera da liberdade, ou seja, a ordem da legalidade ética diante da sociedade
e da história.
Encontramos inscrito no corpo tanto um horizonte liberdade, quanto um horizonte
necessidade, na medida que sua dimensão existencial e sua realidade histórica impõem
limites tanto às determinações práticas quanto a uma liberdade irrestrita.
17
Em termos
marxianos o corpo intermedia, por meio do trabalho, a esfera da necessidade e a da
liberdade. Ambas legalidades convergem para a contingência do corpo. A ambigüidade do
corpo se traduz na inseparabilidade, nele próprio, da legalidade da natureza e da legalidade
do homem. Com o propósito de se desvencilhar de uma natureza como representação,
Merleau-Ponty (2006, p. 286; 2000, p. 192) tenta estabelecer um nexo entre natureza,
organismo e psiquismo para além da exterioridade mecanicista e de um subjetivismo
transcendental. De certo modo, estamos tentando estabelecer a mesma relação entre
espaço, corpo e tempo.
17
“Tudo é necessidade no homem [assim como] tudo é contingência no homem. [...] O homem é uma idéia
histórica e não uma espécie natural. Em outros termos, não na existência humana nenhuma posse
incondicionada e, todavia, nenhum atributo fortuito. A existência humana nos obrigará a rever nossa noção usual
da necessidade e da contingência, porque ela é a mudança da contingência em necessidade pelo ato da
retomada. Tudo aquilo que somos, nós o somos sobre a base de uma situação de fato que fazemos nossa, e
que transformamos sem cessar por uma espécie de regulagem que nunca é uma liberdade incondicionada”
(Merleau-Ponty, 1999, p. 235, 236).
37
A necessidade consiste basicamente na relação de sobrevivência do homem em
presença da natureza. A superação da relação de dependência do homem para com a
natureza suscita a liberdade. A necessidade impõe, portanto, a própria liberdade como
necessidade, dialética sem a qual não restaria sentido entre os termos. Assim, além de
transformar a natureza, o homem liberta a si mesmo de sua determinação histórica.
Pintando a natureza Cézanne perseguia a liberdade. Essa disposição emancipatória é
tributária de uma radical antinomia. A liberdade manifesta nossas vontades e paixões como
qualidades subjetivas capazes de modificar situações objetivas. Por isso a liberdade supõe
a transcendência do próprio corpo, redefinindo-o a cada ato ou evento. Daí o porquê de
Merleau-Ponty (1999, p. 609) afirmar que “a liberdade é sempre um encontro do exterior
com o interior [...], e ela se degrada sem nunca tornar-se nula à medida que diminui a
tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida”.
Ser livre é poder escolher dentre vários projetos aqueles que nos aprazem, aqueles
que nos permitem transcender a necessidade por atos voluntários e passionais. Não
significa ter sucesso na escolha, mas tão somente escolher incondicionalmente. A escolha
subverte a idéia de essência por engendrar a existência da possibilidade como liberdade. A
noção de essência nos compele à busca por um ideal de estabilidade, de harmonia, de
precisão, de obra concluída. A não constatação desses valores, porque quiméricos, nos
conduz a uma frustração existencial. O homem é livre porque não é para depois existir. Ele
não consiste numa entidade plena e acabada. Mas é a partir das fissuras do que não é (ou
seja, a dimensão invisível do ser) que buscamos realizar e transformar o que existe. Se a
existência supõe o nada, dirá Sartre (1997, p. 68), ele primeiro existe para depois reclamar
uma essência e não o contrário. A liberdade humana precede a essência do homem e
torna-a possível: a essência do ser humano está em suspenso em sua liberdade” (ibid., p.
68).
O corpo se constitui numa simbiose no momento em que se realiza enquanto tal,
ou seja, convergindo sua significação histórica e social (seu horizonte ato), sua dimensão de
sujeito perceptivo com sua condição de objeto sensível (seu horizonte potência) e seus
códigos e valores implícitos, sua face cultural com sua superfície natural, sua essência com
sua aparência, seu apetite por liberdade com a satisfação das necessidades; tudo isso
convergindo para seu caráter existencial, dimensões do ser que abrigam um mesmo corpo.
Essas simbioses se realizam através da experiência perceptiva, inaugurando assim sua
realização no e com um espaço. “A estrutura do espaço assim reconstituída clarifica o
conteúdo e por fim o entrelaçamento dos níveis metabólicos segundo os quais se realiza a
dialética dos reinos da necessidade e da liberdade” (Moreira, 2002a, p. 22).
As experiências do corpo açambarcadas pelas faculdades perceptíveis em sua
motricidade, sexualidade, comunicabilidade, estão todas elas difusamente implicadas e
38
fundidas na mesma trama entre as esferas da necessidade e da liberdade, como facetas
indeléveis e interdependentes retroagindo com todos os outros corpos com qualidades
igualmente dinâmicas a demarcar um recorte no tempo e no espaço como um todo. Daí a
nossa insistência em um corpo contingente ao invés de um corpo partido e subsumido a leis
gerais. Compete-nos, portanto, constatar como o corpo transcende a si mesmo ao se
relacionar com tantos outros corpos, em outras palavras, como experiência espacial, como
corporeidade dos corpos.
1.2. A corporeidade dos corpos, sinônimo de espaço
Toda a nossa inquietação quanto às concepções de corpo, tempo e espaço
adotadas pela modernidade se deve às suas mútuas incompatibilidades, como se tais
categorias não fossem covalentes e constitutivas entre si; bem como à incomensurável
polarização que repousa no interior de cada uma dessas categorias, fragmentadas em
dimensões de si mesmas, que não dialogam entre si a não ser para alargar ainda mais o
fosso que as separam a cada vez que tentamos reconciliá-las. Todos os caminhos traçados
pela modernidade (ou ao menos aqueles que lograram algum beneplácito) levaram à
segmentação, à sistematização, à estandardização, à individualização, seja pela via do
racionalismo e do idealismo que endossam a preeminência de um ego pensante e de uma
razão a priori de toda experiência; seja pela via do empirismo, do positivismo e do
estruturalismo, dentre tantas outras vertentes, que privilegiam a experiência sensível à
revelia do pensamento.
Mesmo a fenomenologia não consegue escapar desses paradigmas, pois esse
campo filosófico se estabeleceu como uma dos mais influentes vertentes do logocentrismo
moderno, ratificando o mito fundador dessas antinomias: uma matriz ontológica que
distingue a essência da aparência, o ser do ente ou a idéia da coisa. Se a fenomenologia
eidética husserliana procura superar o dualismo racionalista se antecedendo às
representações e convenções históricas e sociais, por outro lado, ela se reverte de uma
contradição, pois todo o discurso da consciência transcendental vai convergir para o
indivíduo, que não é outra coisa, tal como apresentado pela razão moderna, que um
desdobramento de um eu cognoscível cartesiano. Desse modo, a experiência parece
limitada à experiência do indivíduo compreendido como uma unidade auto-suficiente, e não
a experiência passada de geração para geração ou a que agrega o coletivo dos corpos. É
como se a cumplicidade entre os indivíduos consistisse numa contaminação social ou
coletiva, o que a torna impossibilitada de sofrer uma suspensão fenomenológica, pois esse
método negligencia que uma das condições mais elementares da existência humana é o
39
inter-relacionamento simultâneo e a interdependência dos seres humanos, daí porque
Merleau-Ponty ao lhe lançar mão fará algumas objeções.
O corpo parece, pois, sucumbido à propensão moderna ao se individualizar como
um ente de qualidades próprias, como corpo isolado a perceber com os sentidos os
fenômenos físicos, reduzido a um ato de percepção que ocorre aqui e agora, negligenciando
assim os corpos em corporeidade, o que contribui, de certo modo, para um relativismo
extremado e uma concepção essencialista e fragmentária do espaço. Teríamos, pois, como
resultado dessa incoerência de ordem ontológica conceitos de espaço que se situam como
extremos opostos: de um lado, o espaço universal, transcendente à toda experiência e por
isso inalcançável à sensibilidade, produto de um sujeito do entendimento que o ordena
segundo leis físico-matemáticas axiomáticas; de outro lado, um espaço relativo,
individualizado, auto-referenciado igualmente num ego transcendental cuja fragmentação
abstrata impede que se vincule a outros recortamentos espaciais, o que impossibilita a
retomada do processo de totalização que mediaria as partes com o todo. Ambos os casos
vão desembocar num individualismo sem precedentes.
Nesse sentido, uma concepção de espaço que contemple o entrelaçamento de
variados corpos numa perspectiva de experiência perceptiva de mundo reclama a
superação de uma contradição cujos termos são: em primeiro lugar o espaço absoluto,
universal ou único; confrontado, em segundo plano, com um espaço relativo, expressão de
um espaço corporal ou percebido que não é outra coisa que propriamente o campo sensível
do corpo próprio;
18
e como terceiro e resoluto termo da contradição, temos, forçando um
pouco os termos da linguagem, a corporeidade dos corpos, que consiste, em linhas gerais,
num meio relacional que aglutina variados corpos entrecruzando suas percepções,
intencionalidades, afecções, atos, enfim, suas diferenças. A fim de recolocar a questão entre
homem e natureza, Merleau-Ponty (2006, p. 286) vai recorrer a uma dialética entre uma
ordem física e uma ordem vital (orgânica), destacando como síntese uma ordem humana,
para as quais vai intervir, respectivamente, um sistema de leis, de normas e de valores.
Para recolocar a inerência entre corpo e espaço, estamos, de certa maneira, partindo do
mesmo quadro de referências, confrontando um espaço absoluto e universal com um
espaço relativo e individual para extrair desse imbróglio um espaço de possibilidades que
estamos designando por corporeidade dos corpos. Todavia, vale ressaltar, a superação
dessa contradição consiste numa ntese que em sua imbricação com a totalidade se abre
para o múltiplo, pois sensibilidade e idéia, percepção e consciência, não são termos
opostos, mas todavia horizontes de um mesmo ser que se interrogam sem se anularem.
18
“‘Corpo próprio’ é uma expressão que possui várias conotações. Inicialmente podemos entendê-la como o que
me é dado em um modo de pertença imediata (âmbito próprio) e como aquilo que eu posso dizer como sendo o
mais propriamente ‘meu’” (Josgrilberg, 2003, p. 93).
40
O espaço absoluto consiste num todo que não podemos apreender efetivamente,
se não concebê-lo por ilações intelectuais, por meio de intuições apriorísticas ou através da
objetivação de suas frações. Essa concepção de espaço é correspondente ao espaço
universal (a priori) em Kant, para o qual convergem muitas de nossas representações
externas, mas, todavia, um espaço totalidade em progressiva e retroativa totalização. Ele é
ainda um fundo a espera de um sentido ou de limites mais precisos e sobre o qual a figura
se realiza como forma através do movimento que os unem num segmento deste espaço
absoluto ou fundo de mundo total.
três maneiras de se conceber o espaço total, duas das quais concernentes às
proposições de Kant para quem tais concepções se diferenciam por meio de procedimentos
ou modos de classificação. A primeira delas é através de conjeturações hipotéticas, isto é,
mediante uma classificação a partir de conceitos, o que nos conduziria a um sistema lógico,
o espaço seria então um objeto do pensamento ou ainda teoria do conhecimento. O
segundo procedimento seria através de intuições a priori do espaço (e, também, do tempo),
seriamos determinados por sua transcendência e teríamos, segundo Kant, uma descrição
de natureza geográfica. O terceiro modo é por meio da percepção do movimento qualitativo
do espaço universal, das contradições e complementações que o preside a que seriamos
capturados por sua imanência. É nesse sentido que Merleau-Ponty (2000, p. 21) vai ratificar:
“quando pensamos o espaço, pensamos uma unidade espiritual; quando o vemos,
encontramos-nos diante de partes justapostas. O modo de ação, nessa extensão real
pode ser o movimento”. Só mesmo a partir dessas prerrogativas poderiamos falar em
plenitude do espaço e no terceiro caso da sua objetividade.
19
As partes do todo espacial são recortes espaciais, ou seja, espaços relativos ou
objetivos: regiões, paisagens, territórios, redes, lugares e, em última instância, corpos ou,
mais apropriadamente, espaços corporais. Essas cesuras espaciais são o que Santos
(2002, p. 126) designou de formas-conteúdo: a matéria casada com a forma consiste no
cruzamento entre potência e ato; a matéria, sendo potência, ao se transfigurar em forma se
torna ato (conteúdo), denotando o movimento da totalidade. Porém, não basta considerar as
partes sem que as mesmas interajam entre si, como procede ao positivismo ao isolá-las em
especialidades auto-suficientes. Kant estava correto em afirmar que o todo está entre as
partes sem que elas cada qual isoladamente o constitua. É preciso articulá-las, perceber
seus movimentos por segmentações tão complexas quanto compete ao todo. A totalização
(movimento que relaciona o uno ao múltiplo) em termos espaciais se pela realização dos
corpos em coabitação e demais recortes espaciais (dependendo da relação que se
19
“O espaço único é a condição sem a qual não se pode pensar a plenitude da objetividade, e é verdade que, se
tentamos tematizar vários espaços, eles se reduzem à unidade, cada um deles encontrando-se em uma certa
relação de posição com os outros e, portanto, sendo uma e a mesma coisa que eles(Merleau-Ponty, 1999, p.
297).
41
estabelece). Embora o corpo esteja localmente circunscrito a circunstâncias particulares em
decorrência da inserção material pura e simples, seu alcance é o todo por meio da
coexistência de tantos outros corpos.
Nossa dificuldade em identificar tais possibilidades e mesmo em destacar os limites
entre os variados espaços relativos e desses para com o espaço absoluto, ou antes, da
superfície diferencial que os recortam e os põem em movimento, derivam do peso do
positivismo no pensamento moderno. As frações positivas do espaço as tornam opacas à
compreensão. Embora o apreendamos através da percepção que nos participa e nos coopta
ao seu espetáculo, não conseguimos estabelecer o vínculo mental que talvez nos
aproximaria o mais factualmente possível de uma plenitude. O legado positivista de
fragmentação e especialização dos entes nos impossibilita a retomada do movimento de
totalização daí a abstração que acomete essa concepção de espaço total. Tornando o corpo
uma massa material e o isolando de um espaço que se convenciona como exterioridade de
si, o positivismo permite que, no limite, o espaço como totalidade seja restrito à soma das
partes a partir de um conjunto de leis axiomáticas (físico-matemáticas) que se
complementam mutuamente de modo que se legitimem como verdade. Assim, o sujeito se
sublima para contemplar em si mesmo suas representações e o todo se assenta como idéia.
O espaço absoluto aqui é o espaço em idéia e suas partes, tal como se convencionou na
modernidade, são os seus correlatos materiais positivos ordenados segundo uma
instrumentalidade técnico-científica.
O espaço absoluto em termos intuitivos (a priori) carrega uma certa indefinição de
significados, embora determine o sentido de toda e qualquer fração do espaço, ele é uma
representação geral sobre o qual nos fala Kant e do qual derivam (segundo esse autor)
todas as outras representações parcelares de nossas percepções particulares. Se a
percepção nos põe a par dos aspectos seccionais e do movimento que os governam, é o
espaço único, todavia, quem balisa a dimensão mais geral e conduz ao significado (ou
entendimento, como prefere Kant). É nesse sentido que Kant alega que o espaço é,
sobretudo, uma intuição a priori que permite dar forma e ordem às coisas e não
propriamente um conceito empírico derivado da experiência. Por não ser material o espaço
a priori não pode ser apreendido pela experiência. Para Kant, os recortes espaciais seriam
tributários do todo não por contiguidade e movimento, mas por lhe estarem determinados e
por servirem de acréscimos para o conhecimento. Neste sentido, “o espaço absoluto é
condição a priori necessária para que possamos verificar pela experiência (e, portanto, a
posteriori) o espaço relativo” (Martins, 2003, p. 57).
O espaço relativo em Kant é dado conforme o movimento, variando em grandeza a
cada ato, a cada detalhe, o que supõe gradientes espaciais que compreendem uns aos
outros. A mobilidade é característica da matéria, própria da experiência empírica; o espaço
42
absoluto, ao contrário, é imóvel porque indeterminável (Kant
20
apud. ibid., p. 56). O espaço
relativo assim nos comparece conforme o movimento de um corpo em relação à
materialidade que o envolve ou da apreensão do movimento deste espaço sensível por um
corpo senciente imóvel. Ambas situações em nada interferem para o espaço absoluto, pois
é este em sua natureza pregressa que os determina, sendo indiferente ao espaço absoluto
se o movimento é dado pelo corpo num espaço inerte ou por um espaço em movimento em
relação a um corpo em repouso. Nota-se aqui o quanto a causalidade mecânica newtoniana
fundamenta e restringe tal noção de espaço, o que nos autoriza compreendê-lo como
extensão geométrica. Ou seja, o espaço relativo em Kant supõe um ordenamento
geométrico que intermedia a intuição a priori (explicitaremos melhor essa mediação no
capítulo dois). apreendemos um espaço a posteriori, revelado à experiência sensível e,
portanto, segmentado, porque possuímos aprioristicamente, segundo Kant, um espaço
como forma e intuições puras independentes da experiência que condiciona e engloba os
diversos espaços relativos e cada qual englobando o outro conforme suas grandezas
escalares (ibid., p. 58). Contudo, eles são relativos ao espaço absoluto e não entre si, de
modo que não consistem em partes constitutivas do espaço absoluto. Daí porque as partes
são inócuas e restritivas a acréscimos para o conhecimento
O preâmbulo de uma intuição pura que antecede toda e qualquer experiência é,
todavia, atinente a uma concepção de tempo não reincidente, um tempo transcendental
correlativo do espaço universal (porém, sem que se intercambie com ele) que demanda e
isola o a priori do a posteriori, tornando-os horizontes inconciliáveis num fluxo de tempo
irreversível. Considerar espaço como totalidade supõe, portanto, enquadrar o tempo no
mesmo quadro de referências, de vez que todo recorte espacial tem o seu correlato num
recorte de permanências ou presenças temporais materializadas nas formas do espaço.
Malgrado o postulado criticista, o tempo consiste numa intuição a priori a ordenar nossas
pulsões e volições, a inspirar nossa subjetividade, mas sem que suas frações de momentos
dêem significado ao todo. Enquanto que para o pensamento positivista, o tempo universal é
a resultante do somatório das multiplas grandezas temporais. O tempo como totalidade
positiva é um tempo linear de simultaneidades sucessivas e justapostas, um curso contínuo
e ininterrupto segmentado em momentos isolados do tipo passado, presente e futuro que
sucedem uns aos outros sem nunca coincidirem, um tempo despótico que repele para o
passado toda a série precedente não permitindo a sua reincidência. Em nenhum dos casos
o espaço em sua ubiqüidade interpela o tempo. Para o positivismo e o criticismo tempo e
espaço tanto em termos absolutos como em termos relativos são inconciliáveis. A primazia
de uma consciência transcendental no pensamento moderno vai erigir uma concepção de
20
KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza. Lisboa: Edições 70, 1990.
43
tempo interno confrontada com a de um espaço externo e inerte. Como distinguiu Serres
(2001, p. 291), “o espaço torna-se a ordem das coexistências, a ordem das simultaneidades,
ou a ordem dos não-contraditórios [...]. Inversamente, o tempo torna-se a ordem das coisas
não simultâneas, que podem portanto ser contraditórias”. Urge reconhecermos os horizontes
contraditórios do espaço e os horizontes de coexistências temporais, ou seja, prolongarmos
a inseparabilidade entre tempo e espaço a partir de complementaridades diferenciais.
A abordagem do tempo em termos de experiência sensível requer apreendermos
as formas e fenômenos referenciados no presente, a partir da empiricização do tempo na
forma presente, conformando-o assim ao espaço, como sugere Santos (2002, p. 54). Não
obstante buscar referências no passado, a experiência perceptível se refere sempre a um
dado momento presente e localizado. Nestes termos, o presente, enquanto ponto de vista
neste exato instante, torna-se um fragmento imediato do tempo universal; e o corpo, um
recorte do espaço absoluto. Sartre (1997, p. 412) diz que o corpo transcendido é o passado.
É nesse sentido que o corpo se reanima a cada série de experiências, sempre que confronta
sujeito e objeto. Essa operação se faz sempre pela percepção. Antes de qualquer subsídio
da memória, aquilo que é sentido de imediato deve nos fornecer condições para que
possamos reconhecê-lo em nossas experiências anteriores e mesmo possibilitar
conjeturações ulteriores. Um passado e um porvir nascem quando presentemente nos
estendemos em direção a eles. É o presente que explica o passado e fornece condições
para especular um devir que se apresenta como incógnita, expectativa ou esperança, o que
equivale dizer em comum acordo com Merleau-Ponty (1999, p. 568) que “o presente (no
sentido amplo, com seus horizontes de passado e de porvir originários) tem privilégio porque
ele é a zona onde o ser e a consciência coincidem”.
O corpo secreta a dupla acepção (temporal e espacial) da noção de presente, por
isso ele é/está presente. O olhar, o ouvir, o tocar, o cheirar ou degustar, aqui e agora,
procura se reconhecer num quadro de referências de seqüências de qualquer espécie, não
exatamente de proporções ou semelhanças fidedignamente harmônicas, mas de indicativos
aproximados de formas, sons, texturas, odores ou sabores aproximados que autorizem
distinguir isto daquilo. A experiência reapreendida compreende a série aberta de todas as
experiências prévias convergindo para a experiência atual, permitindo antever (ou ao menos
presumir) um futuro. A experiência nos convoca a buscar uma certa invariabilidade das
aparências e semelhanças num rol de diferentes possibilidades. É assim que percepção,
memória e imaginação nos remetem respectivamente ao presente, passado e futuro, nos
permitindo falar no reconhecimento de um tempo subjetivo, interior ao homem, e num
espaço externo e objetivo. Mas, Sartre (1997, p. 397) também nos fala de um espaço
44
internalizado
21
imanente ao espaço externo; enquanto Santos (2002, p. 54) e Moles (1981,
p. 99) vão destacar um tempo externo que ganha concretude, respectivamente, nas formas
e objetos espaciais.
Entretanto, não existe a título de experiência perceptiva um tempo interno e um
tempo externo como se constituissem dois matizes temporais independentes. Tampouco um
tempo dissociável do espaço, aquele dentro e este fora; a não ser como resultado da
síntese derivada da experiência intelectual como intuições puras e a priori. Somente na
experiência reflexiva encontramos sucessões de instantes seqüenciais do tipo passado,
presente e futuro. Para os eventos de ordem natural, vai escrever Elias (1998, p. 63, 66),
esses conceitos são desprovidos de qualquer significação. Se optamos por assim parecer
crer, foi para objetivar um mero efeito de análise. O tempo do corpo, podemos agora sim
afirmar com convicção, é aquele do ritmo de suas pulsões e afecções do qual nos relata
Mário de Andrade (2003, p. 17) a propósito da música, no sentido que os ritmos do corpo
demarcam um tempo no andar, no respirar, em suas incontinências fisiológicas. A
associação dos acontecimentos aos intervalos dos fenômenos naturais e às pulsões do
corpo dá ao homem a medida do tempo.
Na mais tenra idade do homem, quando o mesmo não dispunha de meios e
técnicas sofisticadas de aferição do tempo como o relógio e o calendário (que apesar de ter
surgido na antiguidade não se pode invalidar sua sofisticação), e nem mesmo havia uma
concepção sistemática de tempo contínuo e sucessivo para tais medições, a avaliação da
duração dos acontecimentos para a realização de alguma atividade, vai descrever Elias
(1998, p. 40), era referenciada na observação das seqüências temporais de caráter social
e/ou físico mediante a síntese de um longo processo de experimentação e acúmulo de
experiências pautadas no estabelecimento de relações entre os acontecimentos e suas
regularidades, tais como o ritmo de pulsões biológicas ou naturais como a fome e a
sonolência, o batimento do próprio pulso, o intervalo entre as colheitas, os hábitos
corriqueiros de certos animais, as cheias e vazantes das marés, o ciclo das estações, o
nascer e o pôr-do-sol ou as fases da lua. Aqui a ritmicidade do corpo é também a do
espaço; o tempo paira como o liame que os une. É nesse sentido que Tuan (1983, p. 132)
vai associar tempo ao desenrolar diacrônico entre tensão e calma introduzindo o movimento
inerente à experiência espaço-corporal como superação desta contradição. Essa concepção
de tempo derivativa de afecções corporais é pregnante de um campo sensório que é o
espaço do corpo próprio para o qual vai concorrer uma concepção relativizada de espaço
como composição de partes extra partes de uma exterioridade corpórea.
21
“Uma vez que as relações que almejo estabelecer entre o órgão sensível e a sensação devem ser universais,
decido que a consciência assim concebida deve ser também minha consciência, não para o outro, mas em-si.
Desse modo, determinei uma espécie de espaço interno no qual certas figuras denominadas sensações são
formadas por ocasião de estímulos exteriores” (Sartre, 1997, p. 397).
45
O espaço corporal é o campo sensório de um corpo cujos limites vivificados por
essa experiência responde pela propriedade material imediata suscitada por excitações
sensíveis. Logo, para um indivíduo não haveria espaço se ele próprio não fosse um corpo
no mundo. “A espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a maneira
pela qual ele se realiza como corpo” (Merleau-Ponty, 1999, p. 206); o que decorre,
insistimos, por meio da experiência perceptiva que relaciona o corpo às coisas em derredor.
O ordenamento de nossas percepções supõe uma relação de reciprocidade em que corpo e
espaço se implicam mutuamente. Nesse sentido, toda experiência corporal é por definição e
princípio uma experiência espacial.
O espaço demarcado pelo corpo próprio, o espaço percebido, é a extensão
abarcada pela sensibilidade, o meio de nossa experienciação sensório-motora, não
possuindo, portanto, delimitações rígidas. Empregamos conjuntamente nossa capacidade
motora e sensível no reconhecimento de distância, localização, perspectiva, o tempo a ser
percorrido. Entretanto, espaço e tempo não se limitam a propriedades métricas, eles
redimensionam nosso sistema corporal para além dessas quantificações nos inserindo em
toda sorte de relações, normas e valores que nos permitam qualificar espaços diferenciais
através da experiência vivida. Desse modo, “perto e longe nascem da nossa pressa, fadiga
ou esperança; aberto e fechado exprime nossa ousadia ou pavor” (Chauí, 2002, p. 69).
O espaço corporal é, pois, tanto o ambiente em que o som ressoa por todos os
recônditos, como simultaneamente um dado relance do extenso impregnado por um odor
que lhe empresta sentido. Assim como uma forma que nos convence (ou nos convida a
outro termo) por ser apalpável, ao largo de uma paisagem avistada a se fundir em cores e
texturas na linha do horizonte por continuar a estimular nossas sensações. Ou ainda, e ao
mesmo tempo, aquela parcela do espaço delimitada por ser intuída talvez, se tivéssemos
maior domínio sobre nossa capacidade intuitiva pudéssemos ter uma experiência corporal-
espacial mais plena em qualidade e extensão. Podemos deduzir uma forma por uma cor, um
gesto, um som, um odor, um sabor; ou ainda uma lembrança ou idéia por um odor ou sabor,
sendo igualmente válida qualquer aleatoriedade de combinação dos termos. E é no
entrelaçamento dessas sensações que nos tornamos co-participes de um espaço que não é
nem a redução da forma ao conteúdo, nem a subordinação do conteúdo a uma forma
determinante, mas um espaço pronto a nos ensinar sobre o mundo e sobre nós mesmos
quando conciliamos essas nuanças.
Merleau-Ponty (1999, p. 147) nos ensina que em se tratando de espacialidade o
corpo próprio é o terceiro termo da estrutura figura e fundo. A figura é a expressão do limite
exterior das coisas, ou seja, a aparência que elas tomam tal como se revelam a nós e sob a
qual nos fixamos ou interagimos direta e intermitentemente, posto que a consciência não é
contínua. O fundo é um campo perceptivo total, um meio pronto a estabelecer relações, o
46
espaço absoluto ou o próprio mundo como meio geral de nossas experiências de vida,
independente de fixarmos um ou outro objeto no curso dos acontecimentos. Sendo a
relação figura-fundo constitutiva de toda forma, como depõe Chauí (2002, p. 119), podemos
depreender que a forma é o próprio corpo se realizando pela experiência, dando-lhe
conteúdo, produzindo um fundo com tantas outras formas, um recorte do espaço na esteira
constitutiva da totalidade. Com Kant a forma é concernente aos elementos apriorísticos do
entendimento e independente de toda e qualquer experiência (Martins, 2003, p. 45, 48).
Para o positivismo o sentido de um corpo como estrato fisiológico é a forma positiva
compondo uma unidade cujo valor sensorial é determinado por uma função no interior de
um todo. Todavia, para Merleau-Ponty (2006, p. 224) a forma deriva da experiência
perceptiva: “a forma é pois não uma realidade física, mas um objeto da percepção”. E é por
isso que Merleau-Ponty (1999, p. 147, 148) vai dizer que o conteúdo corporal em relação à
forma é algo de opaco, de acidental e de ininteligível e não tão evidente como advogam a
física, a biologia e a psicologia. Maffesoli (1998, p. 87, 88) considera que “a forma exprime a
intensidade de uma existência e, ao mesmo tempo, admite a inexistência da potência, isto é,
daquilo que poderá, algum dia, advir à existência”. Da subjunção da figura e do fundo advêm
formas distribuídas em acontecimentos locais que se determinam mutuamente ou não. Essa
imbricação entre figura, fundo e forma compõe o embasamento necessário para o
estabelecimento do espaço percebido. O espaço corporal requer, portanto, um fundo
indiferenciado em que a relação entre o corpo próprio e as formas (outros corpos ou objetos
sensíveis) que o compõe consiste numa necessidade que aliada à liberdade de nossas
escolhas nos remeteriam à contingência dos sentidos.
O espaço corporal supõe uma perspectiva individualizada do espaço; havendo
tantas perspectivas espaciais quantas forem em quantidade os corpos de uma série de
experiências, pois não haveria o todo se não houvesse partes individualizadas. Cada corpo,
nesse sentido, apreende e concebe um dado espaço de acordo com o repertório de
experiências acumuladas, sendo essas experiências passadas diferenciadas em quantidade
e qualidade entre os corpos. O espaço percebido é o espaço relativo por excelência, o que
poderíamos designar como um espaço einsteiniano
22
ou ainda um espaço leibniziano,
segundo o qual compreenderia um agregado de mônadas expressas unitariamente em cada
fração espacial. É também a menor escala espacial no limite máximo de redutibilidade do
espaço absoluto (excetuando, é claro, qualquer inferência ao nível molecular ou mesmo
subatômico, escalas essas não propriamente geográficas), sendo a um tempo
contraparte e vetor de seu movimento pela sua realização na experiência.
22
A física da relatividade relaciona a noção de corpo enquanto massa (da física clássica) à noção de campo,
segundo a qual cada corpo detém uma percepção sensível do espaço em termos de contigüidade.
47
Da contradição entre espaço absoluto e espaço relativo derivam duas concepções
de espaço completamente discordantes entre si: um espaço físico ou concreto e um espaço
vivido. Se antes havia uma tênue relação entre o todo e as partes, ainda que por meio de
uma quimérica associação (a determinação apriorística e a soma das partes positivas), com
o espaço físico e o espaço vivido a contradição se acentua radicalmente. Entretanto, vale
ressaltar, que tais construções conceituais não se deve cada qual à influência restrita de
apenas um dos conceitos matriciais do espaço, ou seja, tão somente uma associação direta
do espaço absoluto para com a concepção de espaço vivido, como se poderia pensar,
assim como também do espaço relativo para com o espaço físico. Mas todavia, ambos os
conceitos advêm do cruzamento dessas matrizes espaciais, como que constituíssem uma
síntese transcendental de uma parte (no caso do espaço vivido) e uma síntese formal
23
de
outra (no caso do espaço físico), elevando assim suas diferenças ao paroxismo da
fragmentação que os assiste. Não por acaso, encontramos vestígios tanto de um campo de
apreensão sensível como de uma consciência transcendental a priori a dotar o espaço de
forma e ordem para os quais vão concorrer o criticismo kantiano e a fenomenologia
husserliana, no que se refere ao espaço vivido; como também se verificam traços tanto da
apreensão a posteriori (e não a priori) positiva dos objetos dos sentidos tornados realidades
extensas e inertes como de um ego que se abstem da factualidade que os preside se
reservando a ordená-los segundo leis instrumentais e axiomáticas e para os quais vão
concorrer o pensamento cartesiano e positivista, no que se refere ao espaço físico. Ambos
os quadros refletem tanto influências de um espaço em idéia fruto de um ego reflexivo e
transcendental, um espaço universal; como também de um espaço sensível, segmentado,
essencializado, individualizado, um espaço relativo. Porém, deduzidos desses
prolegômenos, espaço vivido e espaço físico tornam-se extremos inconciliáveis, sem que,
contudo, pela via perceptiva os apreendessemos como tais. Cumpre-nos, pois, restaurá-los,
restabelecer a inerência que lhes são patentes pelo ato perceptivo.
O espaço físico é a extensão inorgânica e inerte, um espaço externo à
subjetividade humana que serve de palco para o pensar e para um sujeito transcendental o
moldar de acordo com uma lógica físico-matemática ordenadora de sua multicausalidade,
ou ainda como um palimpsesto para o qual um eu cognoscível escreveria suas leis
axiomáticas dando significado às suas formas ao rigor da geometria. Um espaço cujos
processos de transformação de suas variáveis assumem um caráter preditivo, permitindo
assim pela instrumentalidade que o impulsiona a um controle sistemático de suas cadeias
constitutivas (sobretudo a natureza, considerada como um conjunto de acontecimentos
interligados por leis que a torna única, um mero recurso). Tal sistemática se estenderia,
23
No sentido de pura forma que se estabelece em detrimento do conteúdo.
48
portanto, além dos elos causais, às partes integrantes do todo, aos recortes espaciais, aos
corpos individualizados enquanto grandeza escalar mais trivial. É para esse espaço
concreto, que Soja (1993, p. 100) chamou de “espaço per se”, que converge e se valida um
conjunto de leis complementares entre si e por isso mesmo tidas como verdades universais.
Assim, a teoria da gravidade, a termodinâmica, a ótica, a conservação das massas, o
eletromagnetismo, dentre algumas outras leis que erigiram a física para o panteão das
ciências, se implicam por efeitos causais numa cadeia ininterrupta de ação e reação que
ordenaria nossa concepção de mundo. Nesse sentido, o termo ‘espacial’ evoca,
tipicamente, uma imagem física ou geométrica, algo externo ao contexto social e à ação
social, uma parte do ‘meio ambiente’, parte do cenário da sociedade [...] e não uma estrutura
formada criada pela sociedade” (ibid., p. 101). O espaço, sob essa ótica, se restringe a uma
base sobre a qual a sociedade se desenvolve, um palco sobre o qual se desencadeiam os
acontecimentos históricos.
Tal como o espaço físico ou concreto é derivativo do espaço absoluto e do espaço
relativo, assim também será para o que a geografia cultural vem chamando de espaço
vivido, orientando assim a sensibilidade corporal para um sentido de afetividade que cada
indivíduo desenvolve por um dado espaço imediato, uma “topofilia” nos termos de Tuan
(1980). Esta concepção de espaço é limitada à percepção individual atinente a um ego
transcendental que se antecede às representações sociais e se abstém de todo devenir
histórico, tornando opaca a diferença e a diversidade que possibilitam a identidade sem as
quais não haveria sequer indivíduo. O que em outras palavras significa se ater às
experiências separadas e elencadas por cada ator sintagmático, cada corpo, ou ainda
privilegiar as essências das coisas isoladas em si a despeito da existência pregnante do
acontecer; tomar cada ato em sua auto-suficiência como seqüência de um encadeamento
progressivo ao invés de implicá-lo a um campo de forças retroativas. Lévinas (2005, p. 69)
considera que “a afetividade por si mesma só abraça estados interiores”, de onde se
depreende a inclinação individualista da noção de espaço vivido. O espaço vivido se refere à
percepção afetiva que cada indivíduo desenvolve por um lugar, se consolidando, pois, como
arquétipo (no sentido junguiano do termo) da experiência humana. E embora seja uma
evidência a importância da perspectiva afetiva na realidade do corpo, como reconheceu
Merleau-Ponty (2006, p. 331), talvez os signatários da noção de espaço vivido não tenham
avançado o suficiente em sua concepção de modo a não ficarem restritos a uma
circunspeção individual.
Um espaço idiossincrático tal como o espaço relativo do corpo próprio ou o espaço
vivido tornar-se-ia inconcebível se o tomássemos pelo seu isolamento a todos os outros
corpos e recortes espaço-temporais. O espaço corporal é o espaço percebido por um corpo,
mas se a noção de corpo (fenomênico), a despeito do corpo físico e orgânico, pode ser
49
concebido na coabitação com outros tantos corpos, a idéia de um espaço isolado como o do
corpo próprio seria um devaneio metafísico. A experiência imediata individual posta ao
isolamento não é capaz de dar conta da multicausalidade de fenômenos gerais da vida
como a sociedade e o espaço, por exemplo. Não poderia um espaço de limitada grandeza
existir de fato (senão por ilações contemplativas) se o mesmo não partilhasse uma co-
presença, um meio interperceptivo.
É nesses termos que a corporeidade dos corpos vai agregar um conjunto de
corpos ao seu campo relacional como um rizoma a se expandir conforme o cruzamento de
experiências próprias e alheias a um corpo, tornando-se irremediavelmente um espaço que
não é em si mesmo um espaço relativo e tampouco um espaço universal, mas, de outro
modo, uma combinatória desses gradientes que preenchem uma complexa rede de
diferenciações a partir de encontros e de co-presenças. Essa noção evoca a concretude de
um espaço habitado, onde uns estão com os outros e para os outros. Essa aglutinação de
corpos digere a essencialização de partes elementares positivas, auto-referenciadas ou
figuras separáveis, assim como a essencialização de um todo espiritual, transcendente e
apriorístico ou fundo de mundo único, propondo um campo de presença composto de
diferenças e relações reversíveis e não uma soma de indivíduos. Assim, podemos entender
a corporeidade dos corpos como superação da contradição entre o espaço corporal
(relativo) marcado por uma flagrante empiricização e o espaço absoluto notadamente
reflexível ou apriorístico.
Embora tenhamos deduzido essa concepção de espaço segundo um difuso
agregado de corpos de uma contradição entre um espaço absoluto e um espaço relativo, ou
se preferir, entre um espaço físico e um espaço vivido, advertimos que o liame que inspira o
entrelaçamento dos corpos produzindo o espaço da corporeidade dos corpos não é produto
de uma síntese entre esquemas corporais e espaciais, mas resultante de um princípio de
diferenciação que permite a reprodução do mesmo a partir da alteridade. Esse é o princípio
de um sentido de identidade e de espaço que se constrói a partir da diferença.
Lévinas (2005, p. 26) assevera que a relação com o outro “consiste certamente em
querer compreendê-lo, mas esta relação [de alteridade] excede a compreensão”, pois “na
nossa relação com outrem, este não nos afeta a partir de um conceito [a compreensão
absoluta]. Ele é ente e conta como tal”. Tratar a diferença requer reconsiderar a condição
existencial do ser e do ente, supõe alçá-los para além da narrativa ontológica essencialista
que os encerraram como corpos fechados e definidos. Cabe aqui ressaltar a desaglutinação
do termo difer(+)entes enquanto entes que diferem entre si (Porto-Gonçalves, 2005, p. 20),
não para que se anulem mas para que se complementem mutuamente. Atrelar o ser
(enquanto ato do acontecer) ao existir (enquanto élan dos acontecimentos) supõe
considerar os entes deslocados do para-si ao para-outro. Não se trata de evocar um ente
50
fechado e isolado do mundo, mas um ente que em sua orientação identitária seja correlativo
ao outro. Reatar o ente e o ser significa em outras palavras reconciliar indivíduo e
sociedade, corpo e espaço. Reinventar o corpo, neste sentido, é restabelecer o nexo entre o
ontológico e o ôntico
24
ao invés de insistir em sua ruptura, conquanto que se amplie o
sentido de ente como um ser (acontecimento de fato) permutável, franqueado ao outro. Urge
compreendê-los juntos na existência. Porém, alertaria Lévinas (2005, p. 23) em sua crítica
ao Dasein heideggeriano, submeter o ser à plenitude da existência seria restringir a
ontologia às raias do existencialismo. Não entraremos no mérito da questão, estamos mais
preocupados, por ora, em sinalizar a diferença como um dado seminal do espaço e do
corpo.
Na corporeidade dos corpos a transitividade dos corpos consubstancia não
somente um complementário de experiências, uma relação de reciprocidade, mas em todo
caso introduz os indivíduos num conflituoso embate pela diferença. Além da relação de
espacialidade do eu para com o outro, está em jogo, também, a relação para com um
terceiro, que é o outro (do outro) para quem ele próprio é um eu igualmente permutável a
outrem e assim por diante. “Um corpo é um contínuo formado pela contigüidade de outros
corpos; e, em geral, um contínuo é formado pela contigüidade de outros contínuos”
(Condillac, 1993, p. 43). Impõe-se além da presença conjunta entre corpos e coisas a
responsabilidade para com o outro, que repercute na própria percepção de outrem como um
indelével atributo do ser. Responsabilidade que lhe incubiria imediatamente na própria
percepção de outrem, mas como se nesta representação, nesta presença, ela já precedesse
esta percepção, como se ela já estivesse aí, mais velha que o presente, e, por isso,
responsabilidade indeclinável, duma ordem estranha ao saber” (Lévinas, 2005, p. 291).
Assim, a síntese que constitui um espaço como uma promiscuidade de corpos pela
confrontação de espaços inconciliáveis em contraste com a multiplicidade que lhe é patente
pelo entrecruzamento de experiências corporais diversas consiste, em última análise, no
jogo do uno e do múltiplo que em sua entrosagem são tributários da totalidade.
Na corporeidade dos corpos cada experiência, cada gesto, movimento, palavra ou
(num sentido mais geral) ação implica num certo efeito sobre as demais consciências
perceptivas interferindo, portanto, em todas as outras potenciais ações. É no sentido
expresso da ação que essa conjunção de corpos pode ser entendida como um campo
relacional ou de possibilidades. O conjunto dessas experiências, até mesmo a primeira,
recai sobre uma espacialidade constituída que é expressão da corporeidade dos corpos, daí
24
“À tese fundamental segundo a qual toda relação com um ente particular supõe a intimidade ou o
esquecimento do ser, não pode preferir uma relação com o ente como condição da ontologia. Aí somos forçados,
ao que parece, desde que nos engajamos na reflexão, e precisamente pelas mesmas razões que, desde Platão,
submetem a sensação do particular ao conhecimento universal, a submeter as relações entre os entes às
estruturas do ser, a metafísica à ontologia, o existencial ao existenciário” (Lévinas, 2005, p. 26).
51
o porquê do seu conteúdo consistir na medida qualitativa das experiências de todos os
corpos que a compõe. É a transitividade e a reversibilidade dos corpos, esse caráter
(in)constante de possibilidades em que as variáveis de uma relação podem assumir
direcionamentos imprevisíveis entre consensos e dissensos, que contribui para esse
afloramento indefinido e intercambiável entre os corpos. “A relação com outrem na
irradiação ou propagação da reversibilidade de nossos corpos como ser intercorporal
pode ocorrer se for experiência de sinergia no mesmo mundo” (Chauí, 2002, p. 108).
Tomaremos a expressão campo relacional ou campo de presença (ou ainda
genericamente campo) no sentido equivalente ao que propôs Bourdieu (1998, p. 190)
acerca de campo social (campo intelectual, campo político, campo do poder), ou seja, “como
uma posição em um sistema de relações entre posições que conferem sua particularidade a
cada posição e às tomadas de posição implicadas”. Todavia, no campo relacional da
corporeidade dos corpos, a posição do corpo não designa uma posição determinada por
coordenadas exteriores atravessadas por um cálculo, mas informa, sobretudo, a situação do
corpo em face de suas relações com todos os outros corpos, invocando o cruzamento de
múltiplas consciências, experiências e tempos. Cada qual disposto segundo um
agenciamento perceptivo e instrumental de modo a intercambiarem um conjunto de
relações. Desta forma, o espaço como um aglomerado de corpos escapa de uma cartografia
de referências geométricas reiterando uma cartografia cujo referente é a localização e
distribuição dinâmica dos corpos em meio a um complexo relacional. A corporeidade dos
corpos é opaca à inteligência causal, pois não é nem coisa nem consciência. Ela não se
encerra em delimitações precisas e discerníveis, seus limites são circunstanciais e casuais.
Vai de uma relação relativamente simples entre dois corpos, como uma conversa ou
manuseio de alguns objetos, até uma relação de amplitude inumerável, como o conjunto de
corpos inter-relacionados por símbolos que o caracterize como grupo, como é o caso de
uma língua que diferencia uma sociedade de outra, por exemplo.
Dissemos a propósito do espaço percebido do corpo próprio que tantas
perspectivas espaciais quantas forem em número as experiências perceptivas distintas,
contudo, acrescentamos a propósito de um espaço enquanto comunhão de corpos que tais
diferenciações ocorrem sem que encerremos cada consciência inerente (a cada
experiência) à sua vida privada, pois o conjunto de suas relações conclama situações que
são irredutíveis a um corpo isolado. podemos falar de espaço em termos de corpo se
este estiver articulado a outros corpos. A corporeidade dos corpos, portanto, se abre a todo
um sistema intersensorial, um meio de existências mútuas. A existência nunca é pura
existência, ela é necessariamente coexistência. Não uma etapa preliminar em que o
corpo é para depois se dirigir ao outro tal como num traçado evolutivo; ele é em presença do
outro. Considerar nosso corpo em presença do outro supõe uma renúncia individual, pois
52
requer captar o outro como aquele para quem somos objetos; mas ao mesmo tempo requer
uma afirmação individual, pois a identidade, nesses termos, se constrói pela diferença. O
outro, reciprocamente, nos acolhe e a si próprio como sujeito-objetos. “O meu esquema
corporal é um meio normal de conhecer os outros corpos e de estes reconhecerem o meu
corpo” (Merleau-Ponty, 2000, p. 352). Assim, o outro comparece por extensão de uma
intercorporeidade.
A corporeidade dos corpos é o campo de nossas experiências conjuntas, isto é, a
união de cada experiência individual com a experiência alheia ou a coesão de uma vida
intersubjetiva. Ela permite ramificações do corpo com o mundo, permite estar fora de si sem
sair de si, pois em suas situações complementares e reversíveis compreende o corpo entre
a multiplicidade de corpos. Ela convoca os horizontes subjetivos e objetivos para perfilarem
os horizontes do tempo e do espaço, tal como recorremos ao passado para interpretarmos
um instante presente tomando nossa subjetividade para nos lançarmos em direção ao
espaço e assim nos enveredarmos nas relações que o vivificam. O espetáculo da
corporeidade anuncia a cada momento um novo horizonte de tempo que seguidamente
anunciará outro após outro. Eis porque a experiência consiste num presente suprindo um
passado e reclamando um futuro. Embora nascer seja um acontecimento inédito para um
indivíduo, assim como a morte encerra todas as suas possibilidades, no plano da
corporeidade dos corpos nascimento e morte colaboram como acréscimos da continuidade
na reprodução da vida.
O entrelaçamento dos múltiplos horizontes do corpo (percepção, sensibilidade,
raciocínio, consciência, intencionalidade, linguagem, sexualidade, motricidade, necessidade,
liberdade e outros) permite uma experiência espacial plena em amplo sentido, isto é,
contempla a abertura com experiências alheias que complementam sua insuficiência
estabelecendo relações laterais e parentescos, acordos e contradições, entrelaçando as
várias dimensões particulares com tantas outras alheias justamente por não ser plena em
sentido estrito, ou seja, encerrada em si, completa e independente. A plenitude é quimérica,
pois o é enquanto tal no ato reflexivo puro. Não fosse assim, como integraríamos os
sentidos e significados das coisas e como passaríamos do em-si ao outro? Seriamos auto-
suficientes, ou seja, insuficientes. O que a geografia tem feito é dotar a paisagem de
significados estritos, extraindo-lhe sínteses para torná-la inteligível, porém opaca a uma
intersubjetividade, desdobrando-a assim em outras dimensões positivas do espaço.
A corporeidade dos corpos é um dado sempre presente da experiência humana.
Mas outros horizontes do espaço também são, cada qual, à sua respectiva maneira. É o tipo
de relação que vai diferenciar um território de uma região, uma paisagem de um lugar. Uma
sinergia entre os mais variados corpos, como é o caso da corporeidade dos corpos, não
está subjacente a uma relação que a caracterize, ela é a própria relação materializada num
53
espaço de formas e contornos imprecisos. Ou antes, ela é uma rede de relações articulando
os corpos os mais variados, tal como os nós de um sistema aberto. Esse comércio entre
corpos vai assumir um arranjo em rede embrionário antes mesmo do advento das técnicas
de circulação. Uma rede de afetos e intenções se formando num entrelaçamento incessante
de necessidades covalentes, numa alternância de dar e receber, interligando cada corpo ao
outro como se fossem pontos nodais sobre os quais incidem a ação de forças externas,
investimentos de poder, verticalidades e horizontalidades, inserindo-os, assim, numa rede
mais ampla e complexa. Suas linhas seguem sendo a linguagem e a intencionalidade, e sua
informação as múltiplas impressões e perspectivas diferenciadas. É o espaço como
realização dos corpos em contigüidade, apontando em última análise para uma dimensão de
vida como um complexo de trocas covalentes.
De acordo com a relação estabelecida, sob determinados contextos e
circunstâncias, pode-se caracterizar um recorte apropriado do espaço classificação
fragmentária meramente alusiva para um esforço de análise, pois seus termos relacionais
não se excluem e são mesmo dinâmicas e difusas as permutas entre si. Os recortamentos
espaciais se entrecruzam validando uns aos outros. Suas respectivas relações não se
anulam entre si, como também são irredutíveis entre si as cesuras espaciais que lhe dão
forma, compondo elas próprias o conteúdo. Sobrepõem-se funções e atribuições, relações
que sobre um determinado ponto de vista faz transparecer um território, mas que sobre
certas variáveis remete a uma paisagem, uma região ou um lugar. Levada a efeito como
num acontecer progressivo, se é que se pode tratar nesses termos, a experiência espacial
fundante decorre de uma relação que nos suscita o recorte da paisagem, de sorte que essa
relação acata a chancela de uma experiência perceptível. O discurso da geografia como
relação homem-meio, transfigurada na relação sociedade-espaço, é mediada pela paisagem
em suas variadas nuanças (relação metabólica entre homem e natureza, valor de uso e
valor de troca, experiência sensível). Moreira (2002a, p. 22) destaca que “a paisagem é o
plano da percepção sensível pelo qual se inicia e se fecha todo processo analítico em
geografia”; ela seria assim, continuando seu raciocínio, “o nível do aparecimento fenomênico
das relações de domínio do território nascidas dos recortes do espaço” (ibid., p. 22).
À medida que as relações forem se anastomoseando em relações políticas,
simbólicas, ambientais, econômicas, dentre outros tipos de relações, os respectivos
compartimentos espaciais subjacentes a tais relações se delineariam, portanto, na forma do
território, do lugar, da região e daí por diante conforme o caráter da relação constituída. É
nesse sentido que Tuan (1983, p. 6) vai dizer que o que começa como espaço
indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de
valor”. De fato, mas onde Moreira coloca paisagem e Tuan lugar, acrescentaríamos como
relação espacial instituinte a experiência do corpo (o espaço corporal), desdobrada de
54
imediato no espaço da corporeidade dos corpos. Assim como a percepção faz a mediação
entre o noumeno e o fenômeno e deste para o seu entendimento,
25
a corporeidade dos
corpos, ora como algo de impreciso, antecede as frações mais definidas do espaço já
impregnadas de um significado, ou seja, o território, a região, o lugar, e mesmo a paisagem,
esposando ela própria a coisa em si e o acontecimento.
Quando as experiências que transpassam o conjunto dos corpos enveredam
relações regulares e permanentes, assumindo uma verossimilhança de comum acordo com
as representações, o conjunto dessas relações se delineia constituindo uma unidade de
síntese dos diversos fenômenos físicos e humanos que a compunha, conformando assim
identidades; daí podermos falar do seu desdobramento numa região. Do reconhecimento de
si próprio como corpo ambientalizado decorre o domínio da localização e distribuição do
objeto da paisagem, e, por conseguinte uma territorialização (Moreira, 1997, p. 6). E quando
um espaço fugidio, difuso e diversificado se adensa, convergindo suas múltiplas variáveis
para um espaço cada vez mais uno e singular, convocando um sentido de familiaridade e
pertencimento ou mesmo de repulsa e desdém, teríamos, findo esse processo, o recorte do
lugar. A corporeidade dos corpos é, pois, o correlato existencialista dos recortes espaciais
de concepções essencialistas. Assim, todas essas categorias espaciais (região, paisagem,
território, lugar) seriam correspondentes a expressões mais acabadas e definidas da
corporeidade dos corpos, seriam o seu significado para os quais ela é um sentido. Não
significa dizer que lhes estariam todos subjacentes, mas que seriam, sobretudo,
manifestações ímpares da série de horizontes possíveis do espaço. Na prática estas
transformações conformam um momento único, embora diferenciado em horizontes
simultâneos e reversíveis entre si.
A passagem de uma corporeidade dos corpos para um espaço estriado (seja um
território, um lugar, uma região, seja uma paisagem) não constitui um ato unidirecional e
irreversível. As relações desarraigadas que fogem ao conteúdo característico desses
espaços objetivos podem invocar a corporeidade dos corpos. Ela não se encerra em um ato
constitutivo; ela não é uma etapa que após vencida passa a habitar um passado
inalcançável. Embora inaugure um sentido de espaço, não significa que esteja relegada a
um momento instituinte e se esgote nele. A corporeidade dos corpos é uma realidade
constante, sempre presente, pois se refere ao conjunto dos corpos; e sequer haveria espaço
ou corpo não fosse esse duplo de integração e contradição ou, como quer Merleau-Ponty,
transitividade e reversibilidade dos corpos.
Compreender a corporeidade dos corpos como espaço requer entendê-la como um
sistema aberto, em contínua realização, mas, todavia, apto a estabelecer referências
25
“A importância da percepção, embora seja a orientadora do comportamento humano, reside em seu papel
intermediário – em geografia – entre o fenômeno e seu entendimento teórico” (Silva, 2000, p. 20).
55
geográficas mais precisas. É receber cada acontecer como inauguração de um novo
conteúdo do espaço, entretanto, suscetível de marcá-lo como experiência capaz de
sedimentar um domínio comum a todos os corpos inseridos num meio relacional, um signo
referencial compondo a enteléquia de um segmento espacial. “Se pensamos no espaço
como algo que permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna
possível que localização se transforme em lugar” (Tuan, 1983, p. 6). O mesmo raciocínio,
podemos objetar, seria válido para os outros segmentos espaciais. É nesse sentido que a
corporeidade dos corpos pode ser comparada ao espaço liso
26
em Deleuze e Guattari (1997,
p. 182, 184, 185), ou seja, em função do seu caráter não mensurável, informe,
descentralizado, de contínua variação, de corte irregular, porém, estando sempre aberto a
possibilidades de estriamento, isto é, suscetível a delimitações mais definidas e acabadas. É
no entrecruzamento entre espaço liso e espaço estriado que a corporeidade dos corpos
pode ser associada aos intervalos entre pausa e movimento, este como presságio daquele.
A corporeidade dos corpos torna-se patente em presença de circunstâncias que
remetem à novidade, a um acontecer inédito, a um novo componente que não se enquadre
em quaisquer das convenções sociais estabelecidas de um espaço estriado. As sociedades
indígenas recorrem amiúde à corporeidade dos corpos por meio de circunstâncias mágicas
e rituais em face de uma crise (como veremos no terceiro capítulo). Essa conjunção de
corpos consiste, pois, na convergência de uma série de fatores que não necessariamente
são exclusivos ou característicos de uma unidade espacial dada. Pode ser entendida como
“linhas de fuga”. Se, como afirmara Tuan (1983, p. 3), o lugar é segurança (necessidade),
pausa ou ainda “essencialmente um conceito estático” (ibid., p. 198, grifos nossos), o
espaço ou a corporeidade dos corpos é movimento e liberdade. Liberdade implica espaço;
significa ter poder e espaço suficiente para atuar. [...] O fundamental é a capacidade para
transcender a condição presente, e a forma mais simples que esta transcendência se
manifesta é o poder básico de locomover-se” (ibid., p. 59).
Mas, no que concerne ao concurso da experiência perceptível na conformação de
um segmento do espaço, o que diferencia uma paisagem de um espaço corporal? Não
obrigatoriamente haveríamos que distinguí-los como termos excludentes. Paisagem e
espaço corporal possuem uma semelhança flagrante no que diz respeito ao aspecto comum
da participação sensível em seus processos constitutivos. Porém, um componente
diferenciador. Não somente a paisagem como igualmente o lugar, a região e o território,
26
“O espaço liso [...] mostra bastante bem que ‘liso’ o quer dizer homogêneo; ao contrário, é um espaço
amorfo, informal, e que prefigura a op’art. [...] O liso é a variação contínua, é o desenvolvimento contínuo da
forma. [...] O espaço liso é ocupado por acontecimentos e hecceidades. [...] Enquanto no espaço estriado as
formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas. É um espaço
intensivo mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas. Spatium intenso em vez de Extensio. Corpo
sem órgão, em vez de organismo e de organização. Nele a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do
que medidas e propriedades(Deleuze e Guattari, 1997, p. 182, 184, 185).
56
dentre outros recortamentos, têm pontos de contato com o espaço corporal, de vez que a
experiência corporal atravessa todo tipo de relação, pois não haveria relação (ou antes,
ação) se não houvesse a intervenção de um sujeito para partilhá-la com os objetos. E é
exatamente o papel do sujeito (e do objeto, por analogia) o fator mais substancial da
distinção entre paisagem e espaço percebido. São mesmo múltiplas as maneiras como os
sujeitos que compõem uma paisagem podem comparecer a ela. Contudo, o espectador não
é necessariamente um elemento da paisagem, ele está fora. E a paisagem não é a
mesma para os demais sujeitos que a compõe e para o sujeito-observador (que qualificaria
os primeiros como meros objetos). O espaço corporal, por seu turno, consiste no próprio
sujeito se engajando e vivenciando um fragmento do espaço, entrelaçando-se com ele.
Sujeito que se porta de forma irremediável como termo integrante do espaço, não se
limitando, pois, a um mero espectador, um cogitatum. Ele não contempla a paisagem como
um fundo, mas vivencia a paisagem de seu interior, se perde em seus gradientes num
pulular de experiências.
Todavia, tanto a paisagem como o espaço percebido aparecem encerrados pela
atividade individual, como perspectivas de mundo isoladas e independentes do outro, o que
significa em outras palavras ou por outros caminhos retomar o princípio cartesiano, para o
qual colabora um flagrante porém naturalizado contraste entre as coisas vivas ou animadas
e as coisas tidas por inertes e aparentemente desprovidas de vida. Daí porque convém
apelarmos, caso não desejemos reproduzi-lo indefinidamente, para a corporeidade dos
corpos.
A paisagem supõe, portanto, um momento em que as variáveis estão mais
definidas, o que se comprova pelo posicionamento passivo do sujeito. É como se o sujeito
não intervisse na paisagem a não ser por meio da faculdade perceptiva que a apreende. O
problema é compreender relações singulares que se tecem entre as partes da paisagem ou
entre a paisagem e mim enquanto sujeito encarnado, e pelas quais um objeto percebido
pode concentrar em si toda uma cena, ou tornar-se a imago de todo um segmento de vida”
(Merleau-Ponty, 1999, p. 84). Todavia, no que se refere à corporeidade dos corpos o agente
se fundiu com a paisagem, redimensionando-a e a desdobrando em múltiplas outras
paisagens a cada série de experiências, coexistindo com todas as outras paisagens que se
estendem para além de seu campo perceptivo, ou seja, pela paisagem apreendida pelo
conjunto de corpos, conforme a variedade de perspectivas cujo horizonte temporal mescla
presente, passado e futuro num único enlace de tempo, entrecruzando sentido e significado,
caracterizando aquilo que Santos (2002, p. 159) qualificou como eixos das sucessões e das
coexistências. É nesse sentido que Merleau-Ponty (1975a, p. 309), em alusão à arte de
Cézanne, vai dizer “a paisagem se pensa em mim e sou sua consciência”. Aqui a paisagem
impõe a necessidade que incorporada pelos sujeitos se recodifica como liberdade; ambas
57
(necessidade e liberdade) interagem a legalidade que o ver pode ou não diferenciar por seu
desmedido teor de contingência: “A paisagem possui uma legalidade como dado, que o ‘ver’
diferencia ou não” (Silva, 2000, p. 16).
Estando claras tais evidências e para apaziguar nosso desconforto diante de
algumas (propositais) redundâncias, no que se refere ao concurso da experiência
perceptível na constituição de um recorte espacial, abramos um parêntesis para que
deixemos claro um dado: paisagem e espaço corporal ou percebido são uma e a mesma
coisa, contanto que o sujeito seja co-partícipe de seu movimento e produção. Aqui não nos
interessa invalidar quaisquer categorias de análise, muito menos pretensão em alçar
noções como as de espaço corporal e de corporeidade dos corpos ao mesmo patamar de
conceitos muito estabelecidos no escopo da ciência geográfica. Entretanto, algumas
abordagens geográficas se encontram tão contaminadas pelas tradições cartesiana,
criticista e positivista que se faz necessário deslocar-lhes o foco para que possamos
integrar-lhes os termos. A noção de espaço corporal e de corporeidade dos corpos é tão
somente pertinente, por ora, aos desígnios de um esforço teórico a propósito da relação
perceptiva entre corpo e espaço, posto que conceitos como paisagem, tal como
convencionalmente o entendemos, não conta de expressar a pluralidade de relações
atravessadas no corpo. Destacar o lugar do sujeito no espaço geográfico, tanto quanto tem
sido recorrentemente tratado o objeto, supõe tomá-los juntos como unidade na ação e não
insistir em sua contradição. Assim, categoricamente se temos um corpo somos espaço.
1.3. Por uma teoria do sujeito em geografia
O homem no discurso geográfico foi por muito tempo limitado e relegado aos
estudos demográficos, contabilizado e tabulado pelas estatísticas dos estudos de
população, como chamou a atenção Moreira (2004, p. 8). Esse malogro nos remete às
palavras de Paul Vidal de La Blache (1982, p. 47), para quem “a geografia é uma ciência
dos lugares e não dos homens”.
27
Em muitos trabalhos geográficos o espaço assume
equivocadamente o papel de agente, restringindo as pessoas a meros espectadores, como
se vivessem enclausuradas e estáticas nos lugares, imóveis nos encraves territoriais, inertes
na paisagem tal como em uma fotografia tais recortes espaciais assumindo a
protagonização das ações. Dizemos que o espaço se reproduz, assim como os anos
passam, quando são mais propriamente os seres humanos que agem no espaço e no tempo
dando-lhes significados que se revertem àqueles como relações.
28
27
Contudo, não devemos deixar de saudá-lo, pois é este mesmo autor quem vai nos blindar com um magnífico
referencial teórico integrador do sujeito ao espaço geográfico: a noção de “gênero de vida”.
28
Elias (1998, p. 57) observa que “num universo sócio-simbólico como o nosso [...] é freqüente a linguagem
corrente reificar os símbolos mais abstratos e lhes conferir vida própria”.
58
No afã de se desvincular de um espaço inerte e inanimado o geógrafo dotou os
objetos de vida própria, perdendo assim de vista o sujeito, como se o espaço prescindisse
de sua intervenção. Reproduzimos assim o preceito cartesiano de um sujeito isolado do
extenso e o princípio kantiano de um espaço a priori independente da sensibilidade e do
entendimento. Curioso como mesmo o corpo parece destacado do sujeito ou mesmo daquilo
que designamos por homem (o ser humano em geral). que se destacar o papel do
sujeito nas análises geográficas, e não deixá-lo subentendido entre objetos e ações,
porquanto que se tome o devido cuidado de não restringir corpo e espaço a puras
representações de nossas relações,
29
ou, por outro lado, limitar o espaço a um “palco onde
se desenrola a atividade do homem, sem refletir que o mesmo palco tem vida” (
ibid.
, 29). À
necessidade em se ater ao objeto da ciência geográfica deve aliar-se à necessidade de
integrar de modo interdependente o sujeito no mesmo processo constitutivo, sem que
reiteremos, pois, uma inconciliável bipolarização.
A geografia vem trabalhando com o sujeito, mas não de modo a dotar-lhe de
propriedades suficientemente epistêmicas, pecando por não criar possibilidades teóricas
para tal edifício. Um esforço significativo no sentido de problematizar um sujeito em bases
propriamente geográficas foi notadamente feito por Tuan (1980, 1983, p. 39) ao retomar a
perspectiva da sensibilidade na produção do espaço mais propriamente o lugar. Contudo,
ele não se preocupa em destacar a diferença e a diversidade inerente ao espaço, mas, de
outro modo, concentra todo o discurso da afetividade e pertencimento do indivíduo em sua
relação com um espaço vivido como arquétipo da experiência humana, o que supõe a
convergência dessas experiências para um sentido de identidade individual que elimina as
diferenças, incapacitando-nos de visualizar o espaço como uma corporeidade dos corpos.
“O homem como resultado de sua experiência íntima com seu corpo e com outras pessoas,
organiza o espaço a fim de conformá-lo a suas necessidades biológicas e relações sociais”
(ibid., p. 39). Não se trata aqui de conjeturar isoladamente experiências íntimas e
individuais, mas de outro modo, entrecruzar as múltiplas experiências próprias e alheias, ou
seja, abraçar a alteridade. A diferença é o princípio estruturador que tramita da identidade
individual à definição dos recortes regionais, ao inspirar relações abre-se a outras frações do
espaço.
A identificação dos sujeitos e objetos numa relação de corporeidade vai depender
do posicionamento dos termos da relação num jogo de dessimetrias, ou seja, como seus
termos se posicionam favorável ou desfavoravelmente num campo de forças. Essas
29
Em sua compulsão por desmaterizar as coisas, imbuindo-as de simbologias sociais e culturais, como se essas
fossem independentes daquelas, muitos sociólogos, filósofos e outros pensadores contemplam o corpo assim
como o espaço como puras representações, tal é o caso de Le Breton (2006, p. 24): “O próprio corpo não estaria
envolvido no véu das representações? O corpo não é uma natureza. Ele nem sequer existe. Nunca se viu um
corpo: o que se o homens e mulheres. Não se corpos” (sic). de se supor, segundo esse raciocínio,
que também não se vê espaço.
59
posições se alternam indefinidamente. Encerrar o corpo como sujeito ou como objeto é
limitá-lo a uma condição fatídica. Privilegiar o sujeito em detrimento do objeto na análise
espacial é ratificar o que o postulado cartesiano tem prometido para a emancipação
humana. Por outro lado, anular o sujeito em favor do objeto nos parece apenas inverter os
termos para manter em vão a contradição. Há, pois, um momento difuso dessas condições
que envolvem outras variáveis geralmente negligenciadas quando se põe as mesmas à
prova. Se o sujeito confere sentido aos objetos é somente mediante um refluxo de sentido
que este retribui àquele, complexificando assim toda a relação. O rendimento dessas trocas
simbólicas e empíricas é que vai designar as dimensões de sujeito e objeto nos corpos.
O valor funcional dos objetos depende da composição efetiva de um campo, isto é,
da relação que estabelece com o sujeito e com algumas outras variáveis espaciais, e não de
propriedades pré-estabelecidas. Reside aqui o fundamento da ação que interliga sujeitos e
objetos. A ação é, de fato, portadora de uma intencionalidade que é muitas vezes alheia ao
sujeito que a partilha com os objetos. São mesmo limitadas as tomadas de decisões do
homem, como observou Santos (2002, p. 80). Por isso a intencionalidade impregnada na
ação se deve em muitos casos a uma escala de origem que não necessariamente a sua
escala de impacto (ibid., p. 152). Ainda assim, ela depende de um agente. Mas aí
estaríamos em outro momento intencional. É na atualidade da ação, ou seja, no ato
propriamente dito, que são definidas as intencionalidades e funcionalidades. Uma caixa
pode se prestar de recipiente para guardar algo, servir de assento para descansar ou ainda
como apoio para alcançar uma lâmpada. Nos três casos não somente o objeto, mas
igualmente o sujeito e a ação são transformados de modo a se recombinarem entre si,
porquanto que as relações sejam diferenciadas em cada caso. Assim, a ação implica esse
jogo de retro-efeitos entre sujeitos e objetos, entre a capacidade de sentir, de pensar e de
agir e os seus reflexos em si mesmo. E a resultante dessa troca não consiste em outra coisa
que não na experiência corpórea, o que significa dizer em outras palavras da realização
conjunta do corpo e do espaço. O corpo se ordena em meio aos objetos, impulsionado por
um termo único de seu movimento que é correlativo à sua intencionalidade.
A percepção e a ação são termos indissociáveis. Mas é, todavia, a ação que nos
permite transcender o percebido. “A percepção se transcende naturalmente rumo à ação, ou
melhor, só pode desvelar-se em e por projetos de ação” (Sartre, 1997, p. 407). É a ação que
preenche as lacunas existenciais do ser, sua incompletude por assim dizer. É ela que
impulsiona a liberdade e materializa nossas escolhas por ser precisamente intencional. Não
é o sujeito tomado isoladamente que preside a ação, ele nem mesmo é viável como
entidade isolada. Tão pouco é o objeto em sua inclinação de ente sensível que a detém.
Toda ação decorre do encontro entre sujeitos e objetos, do reconhecimento mútuo que os
inauguram enquanto tais e da troca de sentidos e significados que o ato intencional veicula e
60
que remete a outra ação e essa a outras, num entrecruzamento difuso que não teria sentido
não fosse o intercâmbio de outros tantos sujeitos e objetos. Portanto, não é a ação em si
mesma o reverso instituinte do objeto, o seu par antinômico; esse atributo cabe ao sujeito.
Mas é ela que promove, todavia, a superação de uma contradição posta entre sujeito e
objeto.
Nossa percepção dos objetos remete a uma espacialidade em que a experiência
do corpo nos ensina a enraizar o espaço na existência. Em termos espaciais a consciência
permite, grosso modo, a localização e distribuição das coisas à medida que posiciona a nós
mesmos no espaço. Fitamos um objeto e o tomamos como um corpo no espaço ao mesmo
tempo em que nos identificamos como um corpo neste espaço. Um som que ressoa fora do
corpo é o mesmo que, tornado objeto, se funde no mesmo ato com o sujeito restaurando
todo o corpo. Quando tocamos um objeto e o impregnamos de um significado, nos
contaminamos igualmente com a restituição de um sentido. Operamos concomitantemente
um duplo horizonte: o objetificamos por nos reconhecermos sujeitos, embora por vezes nos
rendamos à sua facticidade; o individualizamos para distingui-lo dos demais, mas somos
atraídos por sua capacidade sensível; o nominamos a fim de diferenciá-lo de tantos entes
nominados, inclusive nós mesmos; o localizamos para distribuí-lo admitindo sua
funcionalidade como engrenagem de um mundo do qual fazemos parte. Deduzimos, pois, o
corpo de uma relação entre objetos para situá-lo como sujeito da percepção, logo, sujeito da
ação.
O corpo compactua um sistema de objetos, que passa a ser seu elo interativo com
outros corpos. Sartre (1997, p. 410) vai dizer que fazemos parte do mundo pela utensilidade
do corpo, isto é, a capacidade instrumental que o integra aos objetos e esses a outros
tantos. Temos, pois, uma intencionalidade instrumental sobre os objetos. Sempre com vistas
a atingir um fim, dotamo-lo de uma funcionalidade. “A função é a significação do objeto: é
ela que lhe vida” (Moles, 1981, p. 170). Impõe-se aqui e alhures o problema do
posicionamento das técnicas em relação ao corpo ou como ela potencializa a experiência
humana. Assim, nosso corpo se estende sobre todos os objetos que nos cercam,
confirmando sua disposição no espaço pelas indicações laterais dos “objetos-utensílios”.
Podemos, pois, reiterar o olhar sobre todos os demais objetos que o circunda e o identifica
sob múltiplas perspectivas, de sorte que o objeto não está isolado no espaço, mas
partilhando um conjunto de sistemas de objetos associado a um complexo de sistemas de
ações (Santos, 2002, p. 62, 63). Logo, a instrumentalidade do corpo assume um papel
decisivo em meio a essa co-presença: os objetos indicam, por meio de suas disposições
laterais, a perspectiva e a disposição de todos os outros corpos, todos conectados por um
princípio complementar de transitividade que não exclui a contradição.
61
Um dado espaço é um meio de experiência instituído pelas sensações em
coexistência com os objetos sensíveis, ou seja, uma forma de existência agenciada
mutuamente pelo sujeito senciente e pelos corpos sensíveis. Não dotamos o espaço de
sentido por uma operação unidirecional constituinte; ele não é um mero objeto no qual
poderíamos manipular sem que ao mesmo tempo sofrêssemos seus rebatimentos. Não se
trata de ter um corpo de um lado e o espaço do outro, como duas entidades autônomas,
trata-se, todavia, de um acontecimento sinérgico. Entender o espaço como um complexo de
corpos requer compreender o corpo não somente como sujeito perceptivo, mas, todavia,
supõe tomar o objeto sensível também como corpo. Mas o corpo não é apenas um objeto
dentre tantos outros objetos. Ele é um objeto sensível a todos os outros, suscetível
indefinidamente a retomar seu horizonte sujeito. O que está em jogo é uma questão
ontológica, ou seja, o problema da relação sujeito e objeto expressa na relação entre o
corpo e o espaço enraizada na existência. Quando encontramos um sentido nas coisas, que
por conseguinte nos fazem ter acesso a elas, é por uma coextensão entre corpo e espaço,
entre o sujeito e o objeto, ou para mais além, entre os horizontes diversos do sensível e do
inteligível. Corpo e espaço, sujeito e objeto, sensível e inteligível não são entidades avulsas
que, dadas suas respectivas qualidades estanques uma da outra, se intervêm mutuamente.
Eles se validam num mesmo ato constitutivo; dramatizam um mesmo espetáculo, quais
sejam a consciência perceptiva, a intencionalidade, a ação, a percepção; horizontes
compossíveis do corpo que dependem da composição efetiva de um campo na ordem dos
fatos para se distinguirem entre si e se validarem.
Admitir a posição absoluta do objeto ou a transcendência do sujeito é invalidar toda
consciência perceptiva e por analogia aniquilar toda experiência vivida. Não significa dizer
com isso que não existam sujeito e objeto ou que eles se esvaneceriam em presença
mútua. Não nenhuma razão para se recusar o valor objetivo já que ele tem a sua função
na definição dos sistemas físicos, assim como não se pode invalidar o valor subjetivo na
(re)significação do mundo. A rigor, o que não procede é essa dissociação inconciliável
difundida pelo intelectualismo e pelo positivismo (tanto quanto suas correntes derivativas)
entre um sujeito tornado universal como imagem de uma consciência como pura
transparência de si consigo e um objeto como pura exterioridade espaço-temporal dada.
Também não significa alegar que sujeito e objeto se confundiriam anulando assim a
antinomia, essa conclusão é simplória e precipitada demais. Igualar sujeito e objeto seria
como aniquilar toda diferença, e se não existe diferença entre sujeito e objeto não existe
diferença alguma e, como sabemos, a diferença é pregnante da existência. Aliás, ela, a
diferença, é que os tornam (sujeito e objeto) irredutíveis entre si, porém complementares.
Sujeito e objeto são dimensões ou manifestações do ser (dos entes) que se
distinguem entre si compondo suas identidades no confronto com a diferença, na alteridade,
62
se nutrindo reciprocamente: não se fundindo ou confundindo, tampouco se superpondo, mas
se entrecruzando, se entrelaçando. Tal concepção consiste em não anular cada um deles
em causa do outro como equivocadamente supõe Greiner (2005, p. 78) ao afirmar que
“quando eliminamos os objetos de cena, o que se vê é justamente o processo”: muito pelo
contrário, eliminando os objetos não se mais coisa alguma, nem mesmo o sujeito ou o
corpo, o que se dirá de processos! Não se pode dissociar os processos das formas. Urge
considerar a reversibilidade mútua entre eles para que um preencha a lacuna diferencial do
outro, de modo que cada qual empreste sentido ao outro, tornando-os desta feita dimensões
que se compossibilitam na diferença, para que ao falarmos em sujeito perceptivo (e não em
sujeito transcendental) estejamos levando em conta o seu horizonte objeto e ao tratarmos
de objeto sensível (e não de objeto puro ou empírico) estejamos considerando seu horizonte
sujeito.
podemos descrever um objeto tal como o percebemos e isso nos limita a
apenas algumas de suas propriedades, enquanto muitas outras são latências à espera de
serem acionadas. Porém, não tomamos o objeto como um mero geometral, mas como um
objeto de qualidades sensíveis recíprocas. Fixar o olhar em um objeto é como lançar uma
luz sobre ele, na medida que as partes sombreadas se assemelham às partes escondidas
(latências) fora do raio de visão; mas que sabemos são do plano do espaço, interagindo
com todos os demais objetos em derredor, suscitando suas localizações e distribuições
assim como a extensão que os intercalam. “Qualquer visão de um objeto por mim reitera-se
instantaneamente entre todos os objetos do mundo que são apreendidos como
coexistentes, porque cada um deles é tudo aquilo que os outros ‘vêem’ dele” (Merleau-
Ponty, 1999, p. 105). Isolar um objeto de seu contexto requereria extremo exercício de
abstração, pois não podemos vivenciar as experiências em separado, o que nos
incapacitaria de retomar o fenômeno da percepção de vez que ela não se realiza sem
interação entre os corpos no e com o espaço.
Da experiência da visualização do cubo aludida por Merleau-Ponty (2005, p. 190,
191; 2006, p. 290), interessa-nos apenas o quanto ela pode elucidar um campo de co-
presença. Um sujeito pode ver apenas três das seis faces de um cubo ao mesmo tempo.
Temos, pois, uma dada perspectiva do objeto, dentre outras possíveis que são latências de
nossas capacidades reflexivas e representacionais, como é o caso do significado
geométrico das seis partes idênticas de um cubo. Mas, se por acaso pudéssemos
considerar outras percepções, isto é, se dois ou mais sujeitos se postam diante de um cubo,
ainda que cada um por si continue visualizando apenas três lados, não são todavia os
mesmos lados que são sentidos por eles. Tais perspectivas preenchem umas às outras a
percepção lacunar que recai sobre cada indivíduo desde que partilhem entre si a
experiência, desde que a distribuição do outro no espaço referencie a localização de cada
63
um deles, apresentando-se assim ao espectador como uma multiplicidade de perfis, como
um meio intersubjetivo, de modo que até mesmo suas especulações e representações
geométricas sobre as faces escondidas do cubo se tornem perfis autorizando permutar
significados e reificar sentidos, pois, o que para um espectador é sentido evidente posto que
apreendido pelo campo retiniano, para o outro é significado suposto, uma vez que lançado à
aleatoriedade da hipótese. A imbricação com o outro se através de um sistema de
perspectivas diferenciadas reversíveis; em todo caso o outro e a coisa compartilham suas
diferenças.
Quando essas múltiplas perspectivas se entrecruzam, o sentido de um sujeito para
com um objeto atrelado ao significado do outro para com o mesmo objeto e tantos outros
mais que por seus caracteres reversíveis se nutrem de sentidos e significados alheios,
somos arrastados para uma coexistência que funda o fenômeno da corporeidade dos
corpos. São os objetos, vai escrever Moles (1981, p. 14), “que servem de mediadores entre
as situações e os atos assumindo uma função”. O objeto é o mediador social (ibid., p. 16).
Condillac (1993, p. 107) já o havia notado como tal cerca de 250 anos: “vemos os
mesmos objetos; mas, por não termos os mesmos interesses em observá-los, cada um de
nós tem idéias muito diferentes a respeito deles”. O objeto interliga, assim, o indivíduo ao
outro e comprova como o espaço é pregnante do corpo. Claro, levando em consideração
que outro corpo, via de regra, é também objeto para quem em si é sujeito. Essa ubiqüidade
do sujeito e do objeto no corpo, sua intermitente e indefinida troca de papéis, é que permite
afirmá-lo como espaço, de modo que não haveria espaço se não houvesse corpos e vice-
versa. Pelo fato das percepções serem extensivas umas às outras é que o corpo tem por
princípio ser extensivo (via objetos) a todos os outros corpos, mas o corpo não mais se
limitaria como extenso no sentido que o logocentrismo moderno lhe imputou, mas todavia
como espaço.
Assim como a percepção visual que temos do objeto é uma sobreposição de duas
imagens capturadas por nosso aparelho retiniano e todavia a imagem que se nos apresenta
é una, ou assim como é maior a certeza de possuir esse objeto tateando-o com as duas
mãos ao invés de fazê-lo com apenas uma, assim é também a dedução que dele temos ao
cruzar o seu sentido com o significado que conjeturamos a partir de nossas representações,
que como já vimos não são qualidades implícitas do sujeito, mas todavia valores que
eclodem do encontro com o objeto. Um esboço ainda incipiente do espaço supõe comparar
as limitações perceptivas individuais que se têm desse objeto com as também limitadas
percepções que o outro possui deste mesmo objeto, que variam conforme a experiência
individual de cada um. dissemos antes que o pensamento ultrapassa a pessoa que
pensa. Partilhamos sensibilidades e pensamentos porque eles são incompletos e se
materializam nas ações e nos objetivos e não porque podemos sentir e pensar o
64
pensamento do outro tal como ele mesmo pensa e sente. Cruzamos assim nossas
representações, nossa consciência perceptiva e nossas intencionalidades através de
objetivos comuns e mesmo discordantes com o outro. A tessitura carnal do corpo com as
coisas se atualiza quando o outro presentifica sua configuração perceptiva com a nossa
fazendo da corporeidade uma prova do ser (Merleau-Ponty, 1975c, p. 440). Ampliemos,
pois, essa evidência elementar para uma escala em que um campo intersubjetivo
compreenda uma considerável variedade de corpos e coisas. Teríamos um protótipo
estrutural que acrescentado do devir histórico e de toda sorte de relações sociais nos
suscitaria a corporeidade dos corpos.
Eis a descrição eidética do qual Merleau-Ponty se ocupou em suas obras iniciais,
todavia, ela é sempre incompleta, tal constituição obviamente não ocorre por etapas e
tampouco por efeitos causais, e se o fazemos é por mero efeito de análise. Seja como for, é
também a insuficiência e a incompletude da reflexão, dos sentidos, das experiências, dos
atos, dos objetivos e das próprias coisas que possibilitam uma simultaneidade em que os
corpos se encaixam e se realizam como espaço.
Estamos agora em posição de compreender porque Merleau-Ponty alega que o
corpo é o aspecto perspectivo da consciência
30
e como esse dado contribui para a
totalização. A percepção tem a dupla particularidade de exprimir fluxos de eventos
individuais dando à experiência vivida uma aparência imediata e de aceder às limitações
perspectivas (sentido e significado) articulando outras perspectivas num campo de presença
intersubjetivo. Assumimos assim uma atitude intencional em face de múltiplas perspectivas.
Mas não se trata aqui de justificar um perspectivismo de base euclidiana mera e
simplesmente. Esse comércio entre corpos seria a forma mais banal de corporeidade, ele
envolve outras variáveis muito mais difusas. Cézanne se opunha ao cubismo porque já
sabia o que essa escola artística repetiria: “que a forma externa o envoltório – é segunda,
é derivada, que ela não é aquilo que faz com que uma coisa tome forma” (Merleau-Ponty,
1975b, p. 293). Ele procurava em todas as formas do espaço a profundidade como
deflagração do ser: “a profundidade é mais propriamente a experiência da reversibilidade
das dimensões, de uma ‘localidade’ global onde tudo está a um tempo, cuja altura,
largura e distância são abstratas, de uma voluminosidade que se exprime com uma palavra
dizendo que uma coisa está” (ibid., p. 293). A profundidade do corpo e do espaço se
compara a um sulco ou lacuna de nossas experiências particulares sempre a ser preenchida
por outrem por ser algo de incompleta. A incompletude do ser o insere num meio de
coexistência, é a condição para interligá-lo ao outro. É esta dinâmica relacional, a um
tempo complementária e contraditória, que nos autoriza falar em totalidade, de modo que a
30
“Todas as consciências que conhecemos se apresentam assim através de um corpo que é o seu aspecto
perspectivo” (Merleau-Ponty, 2006, p. 335).
65
ausência do outro e da diferença subverteria absolutamente a idéia de totalidade, pois
anularia toda a variedade perspectiva.
Descartes (1984, p. 88) dizia que as paixões nos homens incitam a alma a querer
cada vez mais; Freud, por sua vez, fala de uma renúncia pulsional que jamais trará
satisfação ao corpo pois seu fundamento supõe um desejo sempre inalcançável (Santaella,
2004, p. 140, 146, 148); enquanto Merleau-Ponty vai preferir falar do caráter invisível do
visível, ambos suplementando o ser. Para todos os efeitos, o ser é aquilo que não é
completamente. Por isso Lévinas (2005, p. 18, 252, 268) vai compreendê-lo segundo o
sentido verbal do termo ser, que o designa como um advir do ser ou acontecimento do ser
ou ainda como aventura do ser: aventura notável!”, arremataria ele. Se o ser é, tal como
assevera Lévinas, o ato de acontecer, não poderia ser ele pleno, completo, acabado; mas
sim algo que se redefine indefinidamente. Entede-se porque Foucault (2002, p. 154) buscou
identificar na sexualidade essa incompletude e os investimentos empreendidos para superá-
la através de desejos que incitam uma conjunção não somente moral e ética, mas também
existencial. Esse lapso do ser (as nossas limitações, a sensação de insaciabilidade, a
angústia por um tempo fugidio ou ainda as perspectivas e percepções diferenciadas) nos
impulsiona a tentar buscar no outro um acréscimo que sentido às coisas ou um certo
alento de nossas contingências: é assim com respeito à nossa compulsória perseguição
pela felicidade; com a voluptuosa entrega a uma paixão; com a propensão ao consumo,
como se fosse possível se realizar pela simples posse de bens materiais; com a disposição
política que nos impele ao engajamento em processo coletivos de democratização; com a
renovação de projetos individuais que nos conduz a perseguir outros objetivos à medida que
os antigos vão sendo superados; com o quadro pintado a partir de uma inspiração individual,
passando alhures a incitar impressões alheias e desencontradas; com a obra dos grandes
gênios que por mais geniais que sejam não estão isentas de avarias e contradições. Sob
esses aspectos a contradição é necessária por mobilizar a vida.
Assim, as percepções (lacunares) privadas se articulam entre si; justapostas por
relações laterais e reversíveis, cada uma delas comparecendo ao seu titular como variante
de um mundo comum e cada ser como variante do outro e vice-versa. “É necessário e
suficiente que o corpo do outro que vejo, sua palavra que ouço, ambos dados a mim como
imediatamente presentes em meu campo, me presentifiquem à sua maneira aquilo a que
nunca estarei presente (Merleau-Ponty, 2005, p. 85, grifos do autor). A considerar essa
variável ontológica, isto é, a dimensão do invisível como um dado da existência, teríamos o
tempo como contigüidade do qual sobrevém a lacuna temporal preenchida e encadeada por
momentos subseqüentes e consecutivos e mesmo, em certos casos, reversíveis a alimentar
a história. A idéia de ausência nos fornece a medida do movimento; ela impulsiona o tempo
a um devir que não se pode predizer, pois a diferença é o seu combustível. Poderíamos,
66
pois, falar de um espaço lacunar, um meio interseccional do plano do extenso em que suas
partes se intercalam e se sobrepõem umas às outras. Nessa lógica de preenchimentos
mútuos, espaço físico e espaço vivido se implicam de tal modo a não autorizar uma
independência de um em relação ao outro: consubstanciam um espaço geográfico que
consta como tal.
Deste modo, cada paisagem está suscetível de muitas outras sensações além da
de um observador localizado num momento e local dado, e como tal passível de múltiplos
sentidos e significações. Diante desta evidência sensório-intelectiva tornamo-nos uma
referência necessária em presença de um sistema de objetos (que inclui o outro), mas
sempre incompleta, sempre a reclamar a liberdade ao transcender nossas carapaças
individuais em direção ao outro pela reversibilidade que essa dialética possibilita,
perfazendo assim o jogo da identidade e da alteridade, da localização e da distribuição, do
uno e do múltiplo. Desta feita subvertemos todo solipsismo.
Vimos até aqui como o corpo se realiza como espaço e inversamente. Numa
perspectiva de experiência perceptiva ele pode ser concebido ileso de representações
conceituais para por fim emergir em intersubjetividade ou como corporeidade dos corpos.
Resta-nos examinar como o corpo investido de sentidos e/ou significados eclode no curso
de experiências ulteriores. Evidência histórico-geográfica que não poderíamos nos furtar de
problematizar sob o risco de perder de vista um dos objetivos centrais desta pesquisa:
afirmar o corpo como um meio de inflexão a toda ordem de determinações políticas,
econômicas e morais próprias de todo aparelho de poder. Tratar corpo e espaço sem levar
em consideração seus devires seria como relegá-los a uma condição meramente estrutural,
pois o plano da percepção se realiza simultaneamente a outras esferas de relações, ou
antes, constituem um mesmo campo diferencial. Esse mosaico não é constituído por etapas
sobre a qual incidiria a percepção como iniciação de mundo seguida sucessivamente de
outras emanações corporais; mas, precisamente se realiza de maneira concomitante,
complementando-se mutuamente na diferença conforme o teor das experiências. Se o corpo
é por um lado condição sem a qual não restaria sentido ao espaço, por outro lado ele é
condicionado por um devenir histórico que lhe imputa um significado cultural, logo, ele é
reflexo igualmente de um espaço que não pode se desatar do tempo. É nesses termos que
Merleau-Ponty (2005, p. 87) vai dizer que o mundo sensível e o mundo histórico são sempre
intermundos. Importa, pois, saber em meio ao emaranhado que tais possibilidades inspiram
e tais contingências estão expressas no modo como diferentes culturas (sejam ocidentais
ou sejam indígenas) contemplam o corpo que tipo de relações, que projetos, que
caminhos propiciam chegar a um ou outro fim e, principalmente, quais constituem
experiências que apontem para a superação de tantas outras relações predominantes.
67
CAPÍTULO II
O CORPO NA (CON)TRADIÇÃO MODERNA
mais razão no teu corpo do que na tua
melhor sabedoria.
Nietzsche
A concepção moderna de corpo, assim como as noções de espaço e tempo que
lhe são inerentes, são resultantes de um longo processo de síntese dos variados eventos
por que passou a civilização ocidental no decorrer de sua história. Foucault (1977, p. 138)
assinala que o corpo é constituído no curso dos acontecimentos: “o corpo é a superfície
inscrita dos eventos, traçada pela linguagem e dissolvida pelas idéias, o lócus de um eu
dissociado, adotando a ilusão de uma unidade substancial”. O corpo individualizado, como
organismo biológico circunscrito às feições fisiológicas que consensualmente reconhecemos
hoje – o chamado “corpo físico” –, é, portanto, fruto de uma lenta e laboriosa construção que
perpassa uma débil, porém, manifesta contradição entre essência e aparência na
antiguidade derivando posteriormente para uma separação entre corpo e alma, concepção
dualista que vai persistir sob outras variáveis ao longo dessa trajetória e se acentuar
inexoravelmente com o alvorecer da modernidade, multiplicando os paradoxos e lançando o
conhecimento em crises contínuas.
Assim, a contradição entre corpo e alma, que é derivativa da separação entre o
ente e o ser em Platão e Sócrates, iria se desdobrar na separação entre corpo e espírito,
corpo e mente, sensibilidade e razão, coisa e idéia, fato e consciência, sujeito e objeto,
cultura e natureza, necessidade e liberdade, empírico e abstrato, dentre algumas outras. O
corpo é o serne crucial de uma tensão que atravessa toda a trajetória ocidental. Desse
modo, quando estivermos fazendo menção a qualquer um desses pares antinômicos
estaremos, a despeito das adjetivações particulares que cada qual suscita, remetendo à
separação entre corpo e alma, ou seja, entendendo-os como correlatos.
O corpo passaria ao longo de sua trajetória histórica por momentos de execração e
depreciação, cuja tradição mais representativa é a platônica, a agostiniana e a cartesiana; e
por momentos de relativa valorização que se refletiria igualmente na valorização de um
68
estrato material a lhe conferir evidência inequívoca na experiência sensível, representados,
sobretudo, pela tradição aristotélica e tomista, e mais recentemente pelo empirismo, pelo
marxismo, pelo positivismo e pela fenomenologia que conceberia o corpo como unidade
dos termos exclusivos inerentes a si na experiência de sua existência.
Por modernidade, vai definir Giddens (1990, p. 11) de modo simples, entende-se o
“estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século
XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. Giddens,
contudo, deixa escapar toda a alteridade não-européia que também a constituiu, pois a
modernidade é produto, sobretudo, das culturas que sempre foram relegadas às suas
margens, logo, consideradas como residuais – retomaremos esta discussão no quarto
capítulo.
Bruno Latour (1994, p 61) vai ser mais fecundo ao conceber a modernidade em
meio a uma controvérsia por combinar um duplo discurso: a “purificação” ou polarização
entre o sujeito de um lado e o objeto de outro, ou entre a sociedade em contraste com a
natureza, o que lhe confere o estatuto de moderno; e a “hibridação” dessas antípodas e de
tantos outros correlatos, cruzando e multiplicando as mediações possíveis a fim de superar
as dualidades instauradas, o que lhe confere paradoxalmente a negação da modernidade.
Tal controvércia repercute em acentuar cada vez mais as contradições que se avolumam
progressivamente, derivando de uma “distinção” a partir de Hobbes e Boyle e seus
contemporâneos para uma “separação” em Kant, uma contradição” em Hegel e Marx, uma
“tensão insuperável” na fenomenologia, uma “incomensurabilidade” em Habermas, e, por
fim, uma “hiper-incomensurabilidade” na pós-modernidade (ibid. 58).
No que concerne à idéia de modernidade, deteremo-nos aqui a um domínio
implícito e prático das noções de corpo, espaço e tempo arraigadas no agir, nos hábitos e
nos costumes sociais típicos deste momento e que por força de sua continuada repetição se
consolidaram como verdadeiros arquétipos, sem que, contudo, almejemos a soma de
processos históricos. Noções usuais e recorrentes que se desenvolveram no fluxo dos
acontecimentos históricos da civilização ocidental e que, portanto, se tornaram tão aptas a
influenciar os corações e mentes quanto as abordagens teóricas, embora não podemos
olvidar que tais influências remetam aos fundamentos da tradição moderna, cuja
proeminência científica valida uma dada ordem de mundo
31
. Referimo-nos a algumas
certezas irrecusáveis do mundo moderno, muitas vezes irrefletidas, uma opinião silenciosa
que não requer explicação pormenorizada e que se expressa mediante perguntas como
“onde estou?” ou “que horas são?”, para as quais sempre advêm respostas imediatas, pois
31
“Quando surge a geometria nas primeiras sociedades agrícolas como necessidade de racionalizar a produção
da terra por meio de um sistema de medições, desenvolve-se o conhecimento matemático de suas relações
abstratas. Desde então, um objeto de trabalho transforma-se também em objeto de um saber empírico e de um
conhecimento conceitual” (Leff, 2002, p. 21).
69
se referem a um conceito de espaço e tempo que se explica por si mesmo (Chauí, 2002, p.
198). Trata-se, pois, de um continuum entre o corpus teórico e experiências corpóreas
propriamente ditas, de vez que o exercício teórico, numa perspectiva de corpo não
divorciado da alma, consiste também numa experiência somato-sensória.
2.1. A trajetória do corpo no pensamento ocidental
A matriz do pensamento ocidental está assentada na antiguidade greco-romana,
mais precisamente no período conhecido como helenístico. Momento de grande profusão
intelectual cujo legado filosófico se reflete ainda hoje em muitas categorias e conceitos
usuais. Um desses conceitos, pode-se arriscar, é a noção de corpo hodierna. Silva (2004, p.
26) vai dizer que a concepção moderna de corpo (físico) é uma derivação precária, bastante
limitada, da noção de physis do pensamento grego clássico. A idéia de physis na
antiguidade está relacionada a tudo que existe. Segundo essa concepção, cada ser contém
uma physis, isto é, um princípio que reside em si mesmo, uma natureza, uma essência que
lhe confere uma identidade por uma interligação com todos os outros seres. Todo o
universo, nesse sentido, é ao mesmo tempo uno e múltiplo. Tudo o que pertence à natureza
possui em princípio um corpo, inclusive a alma em si mesma caracterizada pela
racionalidade, pelo pensamento, pela consciência, segundo os quais ela é espírito. Assim, a
psychê (alma) é também considerada um fato natural, compondo as coisas naturais à
mudança ou ao devir” (Chauí, 1995, p. 42). O homem consiste, portanto, numa unidade
substancial integradora da alma e do corpo, em que a primeira cumpre as atribuições de
forma (hile) em relação à matéria (eidos), que é constituída pelo segundo.
A mais antiga definição de corpo no pensamento ocidental é dada por Aristóteles:
“corpo é o que tem extensão em toda direção” e que “em toda direção é divisível”
(Abbagnano, 1970, p. 195). Por direção Aristóteles entende a altura, a largura e a
profundidade, sendo perfeito o corpo que possui essas três ordens de grandeza. O corpo é,
portanto, reconhecido pelos aristotélicos como uma extensão limitada por uma forma, ele
detém uma superfície que é seu próprio espaço, é continente de uma substância subjacente
ao mundo do real sensível e é por isso extensiva a toda direção. Mas o corpo não é em si
exclusividade da matéria ou pura potência, ele está, de algum modo, “informado”, no sentido
de que não estaria “penetrado” por uma forma constituinte, estaria pois “in-formado”
(Ferrater Mora, 1996, p. 134).
Aristóteles propunha um progressivo e cumulativo entendimento de mundo iniciado
indispensavelmente pelos sentidos que, pela sua insuficiente instantaneidade, tenderia dar
vazão à memória, esta capaz de reter os dados sensoriais que subsidiam a experiência,
considerada a primeira etapa do conhecimento, embora baseada na repetição, logo
70
evoluindo para a arte ou técnica (téchne), suficiente para a determinação de regras e
relações causais, mas condicionada a fins específicos, e, por fim, o saber teórico ou ciência,
a etapa mais elevada do processo de conhecimento do real em seu sentido mais
contemplativo e genérico e, portanto, sem finalidades específicas (Marcondes, 2004, p. 81).
Mas, antes mesmo de Aristóteles o jônico Heráclito considerou o movimento e a pluralidade
do real como partes da percepção sensorial.
Antecedendo-se também ao pensamento aristotélico, porém numa perspectiva
diversamente oposta, o monista Parmênides consideraria ilusórias e imprecisas as
experiências concretas e imediatas, sustentando ser a razão da mesma natureza do real por
permitir ao homem pensar o ser (ibid., p. 80). Sócrates estabeleceria distinções entre o
essencial e o aparente, o verdadeiro e o falso, o inteligível e o sensível, deslocando um
suposto bem ideal para um plano suprasensível. Mas é Platão quem melhor representa a
sobre-determinação da razão. Ele acentua o abandono do mundo sensível (mese) e a
superação do senso comum, evocando a busca do mundo das idéias (métese) pela
universalidade da razão. A essência, valorizada, responde como substância suprasensível e
a aparência e o ente são ignorados por se prestarem como substância sensível. A
formulação de conceitos pela abstração da dialética platônica admite uma provisória
contradição para a contemplação do entendimento do real por meio de princípios gerais
acessíveis pela atividade teórica. É preciso escapar da caverna em direção à luz. Dissociar
a essência da aparência, o ser do ente, foi o precedente metafísico primordial de uma matriz
de pensamento que mais tarde dissociaria o sujeito do objeto. Parmênides, Sócrates e
Platão são os precursores de uma linhagem de pensamento cujo herdeiro mais prolixo seria
o racionalismo cartesiano.
O rompimento com a tragédia grega, vai indicar Nietzsche (1987, 11, 13, 14),
marca uma mudança paradigmática no pensamento ocidental clássico. Uma degeneração
que se inicia, segundo Nietzsche, com Sócrates que interpretou a arte trágica como uma
manifestação irracional, como uma arte aduladora que representa o agradável e não o útil,
qualificando-a como uma desviante da verdade (ibid., p. 12). A poiesis (arte) provém do
sentimento, virtude dionisíaca que engloba a ética e até mesmo a completa ausência de
legalidades. A partir de Sócrates a razão passaria a suplantar a sensibilidade. Ignorando
todo tipo de mito, ela estabelece verdades científicas universais, instaurando assim
legalidades contrastantes (necessidade e liberdade). Para refutar o primado da razão (e não
a racionalidade do mundo) Nietzsche vai evocar a necessidade humana de se ancorar em
mitos, resgatando nas máscaras utilizadas na arte trágica o sentimento de angústia do
homem mediante a consciência da finitude. Mas, na própria arte trágica já sobressaem
elementos que remetem à cisão entre sensibilidade e razão: o estratagema de Ulisses
convocando a razão a assumir a auto-suficiência; assim como o oráculo Tirésias, a figura de
71
Édipo perfurando os próprios olhos em busca de discernimento e a tradição de Homero
cego ilustram que o saber é supostamente um atributo independente dos sentidos.
Mais próximo de Aristóteles, os estóicos privilegiam a matéria por acrescentar
solidez ao corpo. Para os estóicos, “a alma é uma tabula rasa, sobre a qual as sensações
imprimem as imagens” (Sciacca, 1966, p. 09). Zenão se fundamenta na idéia de que apenas
os corpos podem agir e sofrer ação, afirmando assim o predomínio da matéria sobre a alma,
de modo que até mesmo Deus teria um princípio na matéria, não existindo fora dela (Silva,
2004, p. 34, 35). O panteísmo estóico identifica Deus com a natureza, diluindo assim o
sentido de physis para o do plano físico-material. Epicuro vai acrescentar ao corpo
aristotélico a impenetrabilidade, atribuindo-lhe a função de preparar a alma e a razão para
serem as causas das sensações: “a sensação testemunha em todos os casos que os corpos
existem e, conformando-nos com ela, devemos argumentar com o raciocínio sobre aquilo
que não é evidente aos sentidos” (Epicuro, 1980, 15). Tanto para os estóicos como para os
epicuristas tudo o que existe é corpóreo.
O sentido de corpo como instrumento da alma foi bastante difundido na
antiguidade. Aristóteles comparava a instrumentalidade do corpo perante a alma com a
propriedade de um machado para cortar. Nesses termos, diversamente de Platão, o corpo
humano não é um obstáculo para a alma, mas o instrumento da alma racional que confere
forma ao corpo. Essa concepção instrumental do corpo alcança a Idade Média tendo por
fundamento a “queda do homem” no jardim do Éden. Após o pecado original, restara ao
homem o livre arbítrio, sua liberdade, condição essa adquirida com o trabalho, com o “suor
de seu rosto” – trabalho manual ou trabalho de parto, sempre acompanhados de sofrimentos
físicos, o veículo de sua redenção espiritual. Essa perspectiva predominaria na escolástica
medieval como atenuante da separação entre corpo e alma, sendo reproduzida igualmente
por São Tomás de Aquino, para quem “a matéria existe em vista da forma e os instrumentos
existem em vista das ações do agente” (Abbagnano, 1970, p. 196). Para esse aristotélico
não existem conhecimentos independentes da experiência sensível; a verdade reside na
correspondência entre a espécie inteligível e a coisa que ela afirma verdadeira (Sciacca,
1966, p. 249).
O corpo é, pois, o instrumento primevo do homem. Ressaltando o modo de nadar,
dançar, correr e cavar a terra, Marcel Mauss (1974, p. 217) argumenta que o corpo é ao
mesmo tempo a ferramenta original com que os seres humanos davam forma a seu mundo
e a substância original de que o mundo humano é dado como forma. “Antes das técnicas
com instrumentos, o conjunto de técnicas corporais. [...] O corpo é o primeiro e o mais
natural instrumento do homem, [...] o primeiro e mais natural objeto técnico, e ao mesmo
tempo o meio técnico do homem é seu corpo” (ibid. p. 209). Merleau-Ponty (1975b, p. 282)
vai ratificar as idéias de Mauss dizendo que “toda técnica é ‘técnica do corpo’”. O sentido de
72
instrumentalidade do corpo sugere o corpo como artifício técnico conferindo ao homem uma
integração com a natureza e com todos os outros corpos no plano do suprimento de suas
necessidade; a técnica demarcando e mediando a distinção entre corpo e alma. Os
instrumentos técnicos são extensões do próprio corpo e a energia provêm da força
muscular. Os objetivos práticos para os quais as ações estão orientadas mantêm uma
íntima proximidade com o sentido da relação sensível corpórea. Nesse contexto, a natureza
das coisas em si é única (essencial), conformando uma estrutura de interdependências.
Homem e natureza se combinando, interagindo-se num processo de co-desenvolvimento.
32
A concepção de um corpo divorciado da alma no período medieval, e todo o
conjunto de atitudes e comportamentos advindos então, aparece, de início, restrita às
ordens clericais e aos estratos aristocráticos que perseguiam e buscavam instaurar entre
si hábitos de refinamento –, sendo depois difundida paulatinamente por toda a sociedade a
partir da Reforma e da Idade das Luzes. Muitos dos nossos comportamentos foram
concebidos a partir de então e isto é válido também para as atitudes em relação ao corpo,
sendo a cristandade, fundada nessa época por Constantino e Teodósio, o Grande, um dos
traços mais marcantes da identidade coletiva moderna, como atestam Le Goff e Truong
(2006, p. 29). Esse período da história ocidental nos reservou um vasto e rico repertório de
costumes e modos de vida expressos por uma diversidade de manifestações e referências
culturais. Com o declínio do império romano as hordas bárbaras (como então eram
qualificados pelos romanos os povos eslavos, hunos, francos, álanos, suevos, bretões, entre
tantos outros) avançaram por sobre o antigo território romano (outrora seu próprio território)
amalgamando uma série de costumes e tradições marcados por conhecimentos
cosmológicos
33
e ao mesmo tempo por uma sensibilidade pragmática associada à vida
cotidiana, denotando todos os tons e cores de uma riquíssima cultura popular (Rodrigues,
1999, p. 37, 41, 43).
Muito do que hoje recai numa inexorável contradição de valores se apresentava
para o homem medievo como relações de teor equivalente constituindo, pois, uma
verossimilhança de sentidos. Assim, na sociedade feudal “o pequeno expressa o grande. A
parte contém o todo. O indivíduo exprime a sociedade. A mão revela o destino. O rosto
32
“Há uma identidade ambiental recíproca do homem e dos componentes da natureza, o homem se
reconhecendo na história do entorno e a história do entorno na sua. O móvel que tem na sua sala, por exemplo,
veio de uma árvore que viu crescer (quando não a plantou) e ele mesmo extraiu e transportou da floresta à
oficina onde a transformou na madeira e no móvel que tem à frente com o trabalho de suas mãos. Isto leva-o a
constituir uma visão de mundo criado à imagem e semelhança sua. Contatado com a natureza viva, vendo que o
que sucede com as plantas, os animais e o homem em tudo se assemelha, plantas e animais igualmente
nascem, crescem, morrem e renascem como ele, numa continuidade ininterrupta da vida, o homem forma um
conceito de natureza como coisa viva. Homem e natureza formando um mundo, diferenciado mas sem
dicotomias” (Moreira, 2003, p. 8, 9).
33
“Quase qualquer um era explicitamente consciente de fenômenos como posição dos astros e das
constelações, fases da lua, localização do sol nas diversas estações do ano; também conhecia os riachos, as
montanhas, os caminhos, os atalhos...” (Rodrigues, 1999, p. 43).
73
estampa o caráter” (ibid., p. 41). Espírito e matéria não se opunham de todo. O sofrimento
que pesava ao corpo infligia de mesma sorte a alma, redimindo-a dos pecados. “A
inseparabilidade entre corpo e alma se traduzia de modo vivo na sensibilidade medieval
relativa à dor” (ibid., p. 57).
A Idade Média, que “não é negra nem dourada”, ressalvam Le Goff e Truong
(2006, p. 30), elevou e glorificou o corpo em torno da martirização de Cristo, criando heróis e
santos como verdadeiros mártires em seus próprios corpos; mas também o perseguiu e o
renunciou a partir do século XIII com a Inquisição, que fez da tortura uma prática legítima
aplicada a todos os suspeitos de heresia. “De um lado, o desejo de negar o corpo para
melhor voltar-se para Deus e, portanto, assimilar o ‘espiritual’ ao imaterial; de outro, a
necessidade de imaginar o visível, portanto, de situá-lo no espaço e no tempo, de conceber
lugares, formas, volumes e corpos de onde eles deveriam ter sido excluídos” (Schmitt
34
apud. ibid., p. 130). Com a reforma monástica se acentuaria a repressão ao prazer,
sobretudo do prazer sexual e do alimentar (associado à gula), que se tornam o ápice da
depreciação corporal. O pecado original, responsável pela expulsão de Adão e Eva do
paraíso, é transformado em pecado sexual, embora o Gênesis bíblico o relate como ato de
curiosidade e orgulho.
Um cristianismo laico e burlesco compatível com o sagrado e o profano, o divino e
o satírico manifesto nos alaridos, nas bebedeiras e nas desmedidas explosões de alegria
dos folguedos populares em conformidade com a violência das pilhagens e vendetas de
uma orgulhosa e beligerante sociedade cavaleiresca sobre seus vassalos e inimigos (Elias,
1993, p. 196, 198) vai sendo aos poucos minado pelos ensinamentos de um crescente
racionalismo cristão. Doravante distinguir-se-ia a alma do corpo, o bem e o mal, e passariam
a fazer parte do imaginário humano algumas imagens sacras confrontadas a outras
demoníacas, como as retratadas na Divina Comédia de Dante Alighieri.
A cisão entre corpo e alma é correlativa de variados dualismos que se sucederam
em variadas esferas da vida: natureza e cultura, signo e coisa, liberdade e necessidade,
sujeito e objeto. No âmbito da música não seria diferente. Referenciado numa genealogia da
música, Mário de Andrade vai associar a separação entre corpo e alma à separação entre
ritmo e som, ambos elementos tão antigos quanto o próprio homem esse ser musical por
excelência. “Este os possui por si mesmo, porque os movimentos do coração, o ato de
respirar são elementos rítmicos, o passo já organiza um ritmo, as mãos percutindo já
podem determinar todos os elementos do ritmo. E a voz produz o som” (Andrade, 2003, p.
13). E continua:
34
SCHMITT, Jean-Claude. “Corps et âme”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dictionnaire
Raisonné de l’Occident Médiéval. Paris: Fayard, 1999.
74
Da mesma forma o próprio ritmo é pura expansão impulsiva dos acidentes verbais de dicção
e suas exigências fisiológicas da respiração, da movimentação coreográfica do corpo, e do
primeiro ‘arsis’ e ‘thesis’, movimento e repouso, não acentuação e acentuação. E, pois, essa
expansividade impulsiva e instintiva do movimento sonoro, tanto melódico como rítmico e
mesmo harmônico, é de determinação intrinsecamente inconsciente, derivada apenas das
exigências e leis fisiológicas, modificadas apenas pela variabilidade antropogeográfica das
raças, e condicionada apenas pelos ciclos culturais das tribos. É o corpo que se bota a
cantar e se expande em voz (ibid., p. 20).
Menos ativa fisiologicamente a sutileza melódica da monódica cristã se desvincula
do ritmo, “deixa espaço maior para que se desenvolvam com independência os afetos
individuais do ser” (ibid., p. 34). De modo gradativo, a música deixa de ser associativa para
se tornar divagativa, concernente à liberdade individual do eu. De sensação tornar-se-ia
sentimental e intelectiva. A necessidade eclesiástica de dotar a música de compreensão
intelectual resultou numa prática sistematicamente vocal. O canto gregoriano foi introduzido
no culto cristão como elemento útil de purificação e de elevação espiritual, descartando
assim o ritmo, e por analogia o corpo, como elementos constituintes da música. “A dança
jamais será digna aos olhos da Igreja, que condena as deformações do corpo, as
contorções e outros rebolados corporais” (Le Goff e Truong, 2006, p. 146). Essa sistemática
musical fundamentalmente anticorporal repercutiria na tradição neoplatônica com a
discriminação do ser de tudo que fosse do plano material. Santo Agostinho admite um
mundo sensível imperfeito e irrelevante, reconhecendo o corpo em sua forma ou substância
independente como o sepulcro da alma, não possuindo, em princípio, uma forma ideal. Se a
alma é substância, dirá Plotino (Abbagnano, 1970, p. 196), ela será uma forma separada do
corpo. A distinção proposta por Plotino entre o sensível e o inteligível se aplica a todas as
esferas da realidade, exceto ao puramente inteligível e, por conseguinte, ao corpo (Ferrater
Mora, 1996, p. 134).
A dimensão inteligível ou espiritual do corpo é acentuada pelo cristianismo que
concebe o corpo como “templo do espírito” (I Coríntios, 6:19). O corpo espiritual, objeto de
especulação de muitos teólogos cristãos, não estaria submetido às constrições da matéria.
A dicotomia corpo versus alma se expressa na experiência intelectual como correlativo do
divino e do transcendental, e na experiência sensível como elemento corpóreo profano e
imanente. Para unir-se a Deus é preferível sacrificar o corpo à alma. “Orígenes pregava que
o triunfo da alma seria completo quando os sentidos nada sentissem” (Sennett, 1994, p.
122). O divino expressa assim o mundo das formas perfeitas. A contenção do desejo e do
prazer levou os primeiros cristãos a tentar transcendê-los através da dor. “O modelo
humano da sociedade da alta Idade Média, o monge, mortifica seu corpo” (Le Goff e Truong,
2006, p. 11). No contemptus mundos (o desprezo pelas coisas materiais) o corpo é o centro
doloroso do cerne do mal e do desejo sexual sancionado pela culpa e invólucro de doenças
e moléstias. “Sair do corpo dava acesso à luz” (Sennett, 1994, p. 117), assim como escapar
75
da caverna da alegoria platônica. Logo, a abdicação das sensações exigia lugares onde as
pessoas pudessem permanecer fora de seus corpos, contemplar a luz. O homem se
recolheria em sua inexpressiva presença ante as monumentais basílicas e catedrais
ornamentadas com suntuoso apelo artístico: as formas espaciais se expressando numa
concepção de corpo.
Apenas um século depois de Cristo, o arquiteto Vitrúvio, estudando as formas
harmônicas do corpo, considerara que a estrutura corporal correspondia a dimensões
simetricamente equivalentes de formas geométricas: “a natureza desenhou o homem de
modo que os membros são apropriadamente proporcionais à estrutura como um todo”
(Vitrúvio
35
apud. Sennett, 1994, p. 95). Essas presumíveis congruências seriam traduzidas
na forma arquitetônica do Pantheon, construído por Vitrúvio em Roma.
36
Mas embora as
simetrias e os padrões geométricos do Pantheon estivessem dimensionados segundo a
fisiologia corporal, não deixariam de aludir em sua dantesca monumentalidade à
insignificância do homem em presença do sagrado. O Pantheon inspiraria, mais tarde na
Renascença, Leonardo da Vinci a compor o “homem vitruviano”, tracejando um corpo nu
simetricamente encaixado num círculo concêntrico aos vértices de um quadrado, ambos
igualmente perfeitos; corpo perficiente cujo modelo ideal é a forma física simbolizando a
passagem de um modelo em que as verdades estão fundamentalmente baseadas na fé, no
senso-comum e nas superstições para um modelo de verdades científicas baseadas em leis
universais e imutáveis.
O dualismo corpo e alma se aprofunda radicalmente em conseqüência do
desenvolvimento da ciência moderna, sobretudo no que se refere à física. Tais
transformações passam a compor uma nova concepção de mundo ordenado segundo leis
físico-matemáticas, simbólica geral de todo objeto passível de mensuração. A realidade da
física consiste numa realidade em si mesma, na qual a percepção aparece como segunda
realidade. A nova física se assenta em conceitos e não na experiência perceptível,
submetendo o corpo (da ordem do empírico) à gravidade (da ordem do abstrato), facultando
assim um novo conceito de natureza, de espaço e de tempo. A elaboração do conceito de
corpo enquanto massa, tal como a física newtoniana prescreve, vai orientar a capacidade
corporal de agir e de sofrer uma ação acatando a efeitos mecânicos causais. Assim, o corpo
passa a ser tratado como um geometral, contendo em si mesmo o princípio do movimento
35
VITRÚVIO. The Ten Books of Architecture. Nova York: Dover Publications, 1960.
36
“Estudando os textos de Vitrúvio, artistas da Renascença, como Albert Dürer, ficaram perplexos diante das
possibilidades de multiplicar estruturas reticulares no quadrado inscrito num círculo, de forma que as partes do
corpo poderiam ser desenhadas a partir desse método geométrico. O chão do Pantheon segue o mesmo
modelo: trata-se de um tabuleiro de quadrados de mármore, pórfiro e granito, alinhados na direção norte-sul,
conforme todo o prédio. Círculos de pedra estão inseridos em quadrados alternados. Projetistas imperiais do
tempo de Vitrúvio planejaram cidades inteiras fazendo uso do mesmo sistema, criando tabuleiros de ruas em
torno das áreas ilhadas no seu interior” (Sennett, 1994, p. 95).
76
tal como prescreve a física, atuando como artifício metodológico de prescrição para as
investigações científicas voltadas para o plano do extenso.
figura 3: O homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, traduz
um paradigma de corpo cuja beleza equivale à simetria das
formas perfeitas.
Estabeleceria-se assim um pacto entre a Igreja e a ciência: a realidade humana
tornar-se-ia objeto de especulações metafísicas, enquanto os processos de ordem física
ficariam a cargo da ciência, por demais limitados a relações precisas de causa-efeito.
Passa-se da dissociação entre ser e ente na metafísica helenística para a dissociação entre
alma e corpo na metafísica cristã e desta para a dissociação entre sujeito e objeto na
filosofia e na ciência moderna. Enquanto a filosofia se encarrega de neutralizar o sujeito
através de um ego trascendental, a ciência se incumbe de neutralizar o objeto por meio de
relações de causalidades. A physis é assim esvaziada na física e a natureza se torna mero
objeto externo. Como o corpo está para natureza tal como alma está para cultura, e como o
espírito prevalece como fundamento do homem sendo o corpo restrito a um mero
receptáculo –, este tende a se distanciar cada vez mais da natureza. O homem é assim
deslocado de sua relação metabólica com a natureza: contemplar maravilhado o por do sol,
por exemplo, evidencia a alienação do homem em presença da natureza. O que hoje se
materializa segundo esse quadro começa, de acordo com Moreira (2002b, p. 42), com a
empirização das categorias de valor universal da velha metafísica.
37
37
“Aquilo que cada lugar é, é o que a filosofia chama de nosso mundo sensível. Mundo que nossa percepção
apreende através da visão, do olfato, de todas as formas de captação sensível. Assim, cada lugar é um lugar
diferente. Este mundo múltiplo do sensível, com o tempo sofre uma rearrumação geral, tendo por trás e por
77
As revoluções burguesas elegeriam alguns de seus referenciais dentre as variadas
vertentes de pensamento da ascendente modernidade. Conhecer, tanto para o empirismo
quanto para o racionalismo e o idealismo, é conhecer por meio do entendimento,
independente ou não do mundo sensível. O empirismo postula uma realidade objetiva em
que o corpo é apenas um objeto dentre outros a despeito de qualquer participação ativa da
consciência, respondendo aos estímulos sensoriais externos que se reúnem
mecanicamente para formar a percepção numa passividade receptiva; enquanto que a
abordagem racionalista e a idealista rompem com o mundo sensível, instaurando,
respectivamente, um sujeito pensante isolado de tudo e de todos e uma consciência
transcendental constituinte de um mundo ideal, objetivando o conteúdo sensível e
concebendo a idéia de um ser absolutamente determinado.
A filosofia empirista, representada principalmente por Bacon, Hobbes, Locke, e
Hume, rejeita as idéias a priori e independentes da experiência concreta se contrapondo à
teoria especulativa e valorizando a atividade individual. De acordo com Locke, o
conhecimento não é inato tal como procede ao racionalismo, mas advém da maneira por
que a sensibilidade apreende e elabora os dados de uma experiência. A mente seria como
uma folha em branco, uma tabula rasa sobre a qual a experiência sensível deixaria suas
marcas. O pensamento empirista descentra o homem de sua relação com o mundo
enfatizando suas presumíveis limitações diante da natureza. A nova concepção de natureza
(tida como recurso) por força da emergência de uma sociedade material, cujas referências
se encontram no empirismo inglês, demanda uma nova ordem social, surgindo assim uma
nova economia política (com uma nova concepção de riqueza). O sensível se transmuta na
razão enquanto idéias simples não-inatas se revelando através de suas formas. Com o
deslocamento de referências o corpo é reduzido à condição de um objeto, uma carcaça
inerte e manipulável como tantos outros objetos. O objeto, em sua factualidade, é por
definição invariável; o corpo tornado previsível é por determinação da realidade objetual,
também, invariável. Logo, para o pensamento empirista o corpo fica redutível a um objeto.
Resgatando o platonismo para a afirmação da razão como plano ordenador do real
e proclamando a absoluta ruptura com a realidade objetiva transformando-a naquilo que
Kosic (1963, p. 87) caracterizou como realidade abjetual, a realidade dos objetos
inanimados –, o racionalismo rebate o tomismo-aristotélico (restringindo-o ao plano das
sensibilidades) operando a passagem de um modo de pensar predominantemente
autoritário para um modo de pensar mais autônomo e individualisado. Rompe-se por
dentro o conjunto dos conceitos, como a idéia de espaço-tempo métrico, que não é um dado do mundo sensível,
que vai ganhando corpo e valor de extensão geográficos planetários. De modo que o que era sensivelmente
diverso, vai se enquadrando na racionalidade conceitualmente uniforme da verdade em sua escala geográfica,
até que, por fim, os mundos viram um só. Então, o que se entendia por bem, ordem, natureza, tempo e espaço
num lugar, torna-se o mesmo para todos os lugares. O desejo metafísico dos filósofos torna-se realidade
empírica” (Moreira, 2002b, p. 42).
78
completo com o conceito da instrumentalidade do corpo com o racionalismo, levando a
independência do corpo em relação à alma às últimas conseqüências. O racionalismo
cartesiano é propriamente derivado de uma metafísica que distingue a essência do fato,
adequando-a para uma distinção entre sujeito e objeto. O conhecimento se desloca da
concepção divina para a concepção dos homens, ou seja, da subjetividade. O subjetivo
advém do eu pensante, o sujeito da razão, e vai se expressar na forma da ciência. Assim, a
ciência se torna um ato de reflexão de um eu interior a prescrever observações metódicas
de uma realidade externa.
Para o pensamento cartesiano o corpo é uma substância extensa concernente a
res extensa, o plano do mundo sensível que detém em sua materialidade as propriedades
geométricas da extensão em oposição à substância pensante, a res cogitans. Nesses
termos, um corpo vivo difere tanto de um corpo morto como um relógio ou qualquer outro
autômato (Descartes, 1984, p. 67). Para Descartes
38
(apud. Abbagnano, 1970, p. 195), a
natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste em ser dura ou pesada ou colorida
ou qualquer outra coisa que afete os nossos sentidos, mas somente em ser uma substância
extensa em comprimento, largura e profundidade”. Este autor negligencia sua própria
existência fisiológica e orgânica como fato real tanto quanto a todos os outros objetos que
apreendemos através da experiência sensível em favor de um espírito pensante. Ele ignora
que a visão e o tato são funções corporais, muito embora admita o pensamento de ver e de
tocar.
Em um ensaio entitulado Paixões da Alma, Descartes (1984, p. 67) reduz vários
aspectos da experiência humana a interações mecânicas e causais do corpo. Distinguindo
percepção de alma ele associa esta às ações e aquela às paixões, embora reconheça
alguns tipos de percepções que têm como causa a alma: é o caso de nossas volições, a
imaginação e outros pensamentos que dela dependem. Assim, Descartes atribui algumas
percepções aos objetos que excitam os sentidos (todas as coisas que existem fora de nós),
outras ao próprio corpo (a fome, a sede, a dor, o calor e outras afecções que sentimos como
que nos nossos membros) e outras ainda à alma (a alegria, a cólera, o medo e outros
sentimentos análogos) (ibid., p. 78, 79). Ele admite que as percepções acessam a alma a
partir da glândula pineal; mas sendo o corpo uma coisa extensa, acaso não seria um órgão,
enquanto propriedade do corpo, algo diverso de uma alma que se abstém do mundo
material, tal como ele próprio propunha? Descartes não nos fornece a resposta, limitando-se
a dizer que tais impressões advindas da percepção excitada por objetos externos podem
nos enganar a respeito dos fatos (ibid., p. 80).
38
DESCARTES, R. Princípios Philosóficos II, s/d.
79
O único fenômeno merecedor da insígnia do indubitável em Descartes é um eu
supostamente atemporal e aespacial refletindo sobre as coisas, os atos e volições como
num sobrevôo de mundo. A máxima cartesiana “cogito, ergo sum” (“penso, logo existo”)
evoca o pensamento puro e o isolamento do eu em relação ao mundo exterior, inclusive o
próprio corpo que passa a ser também um componente do plano do extenso. Nesses
termos, a qualidade do eu é o espírito, enquanto a qualidade do mundo externo é a matéria
interpretada por um conjunto de leis físico-matemáticas. Impõe-se assim a distinção entre
sujeito e objeto, uma idéia como sobrevôo de mundo e a coisa como externalidade inerte,
uma consciência individual confrontada com um espaço físico ou concreto.
Com o dualismo cartesiano o problema da relação corpo e alma emerge em toda
sua crueza. Se antes, até a Idade Média, essa diferença era abrandada pela noção de corpo
como instrumento da alma, correlativa a de alma como forma e razão de ser do corpo,
conservando assim uma tênue intersecção, embora essa concepção expressasse termos
exteriores de um para com o outro, com Descartes corpo e alma se tornam entidades
inconciliáveis. Deriva daí um problema do qual se ocuparia grande parte dos pensadores
modernos: a de saber como duas substâncias independentes se combinam para formar o
homem, esse duplo empírico-transcendental; exatamente essas mediações que Latour
(1994, p. 61) vai caracterizar como um conteúdo controverso da modernidade ao designá-
las por híbridos.
Em Espinosa o corpo, expresso matematicamente sob certo modo de extensão
existente em ato, e sua contraparte espiritual ou pensante são duas formas de uma mesma
substância caracterizando um monismo. “O homem consiste numa mente e num corpo, o
qual existe como experimentamos” (Ferrater Mora, 1996, p. 135). É na ação que corpo e
alma consistem numa unidade singular. Entretanto, para Espinosa a alma é o que concebe
conceitos ou idéias, enquanto o corpo é o objeto da idéia, ou seja, “a ordem e a conexão
das idéias são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas” (Marcondes, 2004, p. 191).
Espinosa identifica o pensamento e a extensão como manifestações dos dois atributos
fundamentais de uma única substância, diferindo, pois, da tese cartesiana. “A idéia do corpo
e o corpo, ou seja, a mente e o corpo formam um só e mesmo indivíduo que se concebe ora
sob o atributo do pensamento, ora sob o atributo da extensão” (Abbagnano, 1970, p. 198).
Em seu pensamento, a substancia matemática que regula o mundo transcende a esfera do
divino, conformando uma substância única. A substância única, essencialmente metafísica,
se expressaria basicamente na forma do pensamento e na forma da extensão, se
desdobrando em múltiplas outras formas.
Mas a multiplicidade é mais atinente ao pensamento de Leibniz. Ele defende que
os traços físicos do corpo, quaisquer que sejam seus atributos metafísicos, consistem num
agregado de substâncias (mônadas), não sendo ele próprio, o corpo, uma substância. A
80
essência do corpo não é a extensão, mas sim o movimento, algo que para Leibniz é
inextenso (Sciacca, 1966, p. 144). O homem estaria assim implicado numa pluralidade de
mônadas e não limitado a apenas duas substâncias inconciliáveis. Divergindo de Descartes,
o corpo não está restrito a termos meramente geométricos sobre os quais lhe pesam
qualidades estáticas. Ele também possui propriedades dinâmicas justamente por estar
subjacente a uma multiplicidade de fatores concernentes ao movimento. Leibniz tenta
desenvolver uma geometria sem figuras baseada em pontos para os quais concorreria um
sistema determinado de sítios em que um ponto está situado mediante sua relação com
outro, o que permitiria deduzir a distância entre os sítios e sua congruência por
sobreposição, o que compromete e invalida a noção de extensão (Martins, 2003, p. 44).
Assim, Leibniz distingue o corpo matemático (associado à tridimensionalidade do extenso)
do corpo físico que, além da extensão, contém como princípio “a resistência, a densidade, a
capacidade de encher o espaço e a impenetrabilidade: esta última consiste em que um
corpo é forçado, por outro corpo que sobrevém, a ceder ou a deter-se” (Abbagnano, 1970, p.
195). Os esforços de Leibniz em tentar pluralizar através da noção de mônada as oposições
binárias que o conhecimento assumiu constituem num caso impar no pensamento moderno.
Qualificando o empirismo e o racionalismo como modelos dogmáticos (daí a
designação crítico”), Kant vai tentar relacionar metafísica e ciência, porém vai conseguir
distanciar ainda mais sujeito e objeto, pois partira ele de um princípio de determinação
apriorístico da experiência. No idealismo kantiano a inteligibilidade do real advém das
categorias sensibilidade e entendimento: a sensibilidade concerne à maneira como se
apreende os objetos determinados espaço-temporalmente, enquanto o entendimento
permite dar forma ou ordenar por meio de uma regularidade físico-matemática (o conceito) o
que foi intuído pela sensibilidade.
39
Num caso o sujeito está submetido a um plano a
posteriori, noutro ele o submete pois lhe é inato um juízo a priori. Assim, a razão se
sobrepõe como verdade em relação aos aspectos objetivos. Kant julga que o conhecimento
não advém da relação que os objetos do sentido mantêm entre si, mas, de outro modo, são
determinados por conceitos gerais qualificados como princípios transcendentais; advém de
uma síntese (transcendental) entre a apreenção material pela experiência (os juízos
sintéticos a posteriori) e uma percepção que contém os princípios necessários e universais
da razão (os juízos analíticos a priori).
40
Kant vai considerar que os “juízos sintéticos a posteriori”, embora forneçam novos
dados ao conhecimento pela adesão de predicados novos ao conceito, são insuficientes
39
“Pela sensibilidade nos o dados objetos e apenas ela nos fornece intuições; pelo entendimento, em vez, os
objetos são pensados e dele se originam conceitos. Todo pensamento, contudo, quer diretamente, quer por
rodeios, através de certas caracterísitcas, finalmente tem de referir-se a intuições, por conseguinte em nós à
sensibilidade, pois de outro modo nenhum objeto pode ser-nos dado” (Kant, 2000, p. 71).
40
Que mais tarde derivaria para uma consciência transcendental em Husserl.
81
para constitui-lo; enquanto que os “juízos analíticos a priori”, embora necessários e
universais, são estéreis, pois tornam explícito aquilo que está implícito no sujeito, nada
acrescentando, portanto, ao conhecimento. Para superar esse impasse ele busca atrelar os
acréscimos de experiências particulares e contingentes ao conhecimento de caráter
universal e transcendente deduzindo a partir daí os juízos sintéticos a priori”, deslocando
assim o discurso analítico-sintético da lógica formal para uma narrativa da lógica
transcendental e evocando a adequação de conceitos puros do entendimento para a
realidade empírica da sensibilidade (Sciacca, 1966, p. 154).
Carregado pela crise da metafísica em contraste com o desenvolvimento das
ciências, a matemática e a física em Kant figuram como juízos sintéticos a priori por
excelência, nutrindo-se, pois, dos dados extensivos, particulares e contingentes apreendidos
pela experiência para alçá-los ao plano dos universais, explicativos e necessários do
entendimento, fornecendo assim acréscimos sem os quais o conhecimento não pode evoluir
a partir dos elementos sensíveis sintéticos. “Trata-se, portanto, de transpor para a metafísica
os rigores científicos da física e da matemática. Ou seja, dever-se-ia dispor a metafísica de
juízos necessários e universais, decorrentes da ampliação dos conhecimentos a partir de
preposições sintéticas a priori” (Martins, 2003, p. 47).
Desta feita, Kant propõe uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a
priori a qual designa de Estética Transcendental, assim como em relação ao pensamento
sugere uma Lógica Transcendental que se subdividirá algures em Analítica Transcendental
e Dialética Transcendental (que não trataremos aqui por escapar aos nossos fins). No
primeiro caso (e esse nos interessa mais), Kant almeja a única coisa que a sensibilidade
pode fornecer a priori deduzida de toda e qualquer influência do entendimento e da
sensação a fim de que reste a intuição pura e a forma dos elementos, explicitando assim
duas formas puras de intuição sensível como princípios a priori, a saber: o espaço e o tempo
(Kant, 2000, p. 72, 73), sem os quais não restaria qualquer tipo de representação. Espaço
que fundamenta todas as experiências e representações externas, atribuindo forma ou
ordem aos sentidos externos; e o tempo “uma representação necessária e subjacente a
todas as intuições” (ibid., p. 77), estabelecendo a forma ou ordem dos sentidos internos do
sujeito. Assim, as representações originárias de espaço e de tempo em Kant são intuições a
priori e não propriamente conceitos ou tampouco produtos da experiência sensível.
No que diz respeito às suas considerações sobre o corpo, Kant parte da
incongruência possível entre os objetos. Através das informações captadas pelos sentidos
poder-se-ia no limite apreender uma região (recorte) do espaço segundo três planos
perpendiculares interseccionais ao corpo, para a qual concorre um plano horizontal
perpendicular ao nosso comprimento que nos informa as regiões “alta” e “baixa” e dois
outros planos que nos participam as regiões “esquerda” e “direita” e “à frente” e “atrás”
82
(Martins, 2003, p. 43). Assim, os nossos juízos mais banais acerca de uma fração do espaço
estariam subordinados à lateralidade do corpo ou das coisas em si mesmas, porém não da
relação de suas partes ou coisas entre si ou da posição que elas ocupam em relação às
outras posições, pois as partes tomadas isoladamente são atribuídas aos aspectos a
posteriori, isto é, à empiria e à materialidade, enquanto o entendimento deriva da
associação a categorias gerais, isto é, da relação dessas situações como um subentendido
de uma concepção de espaço e tempo como princípios a priori, como atributos eternos e
inalteráveis, precedentes e independentes de qualquer experiência. “Visto que o espaço
absoluto não é objeto de uma sensação exterior, mas um conceito fundamental que, antes
de mais, lhe condiciona a possibilidade, não nos podemos apetecer do que, na forma do
corpo, diz somente respeito à sua relação com o espaço puro, a não ser através de sua
oposição simétrica com outros corpos” (Kant
41
apud. ibid., p. 44). O anacronismo kantiano
de tempo e espaço vai implicar num tempo internalizado e num espaço externalizado,
categorias doravante inconciliáveis entre si. A separação entre tempo e espaço significa a
recombinação dessas categorias em bases geométricas quantificáveis de modo a
permitirem o zoneamento tempo-espacial preciso da vida, vai acrescentar Giddens (1990, p.
25).
Com o advento das ciências nomotéticas e das ciências idiográficas como
resultado da aplicação do método científico na investigação do próprio ser humano cindido
em sua dimensão biológica e social, ressaltando-se a cultura como resultado da ação
humana sobre os processos naturais, natureza e cultura teriam acentuadas suas diferenças
tornando-se realidades incompatíveis. Seus domínios se subdividem consolidando esferas
específicas de saber e cada sub-especialização vai atomizar (e autonomizar) conhecimentos
até então correlatos entre si. É nesse contexto que o positivismo emerge reivindicando o
valor das ciências particulares contra as construções metafísicas da filosofia racionalista e o
valor da experiência contra o idealismo transcendental. O positivismo postula a plenitude do
ser não lhe deixando brechas para que se vincule ao outro: o ser é aqui pura essência. O
sentido positivo das coisas, isoladas em si mesmas e dotadas de significações próprias,
talvez seja um dos mais nefastos ingredientes do logocentrismo moderno, pois além de
separá-las (dos males o menor, pois assim se realçam as diferenças) o positivismo as
encerram como entidades terminantemente inconciliáveis. O homem do paradigma
fragmentário moderno positivista não consegue se ver como constituinte da natureza, a não
ser para igualar seus pares (outros homens, outras culturas) a um sentido de natureza
selvagem para legitimar sua dominação. A natureza é assim limitada pela significação social
que as ciências da natureza lhe conferem e que as ciências humanas referendam ao
41
KANT, Immanuel. Textos Pré-críticos. Porto: Rés Editorial, 1983.
83
construir um arcabouço conceitual que não dialoga com aquelas. Assim, estabelecida a
contradição, as ciências ditas sociais e naturais tratam de detalhar o que é da ordem da
natureza e o que é da ordem da cultura. Particularmente, a geografia definiria bem essa
polarização cujos desdobramentos ainda testemunhamos.
Toda a discussão que cerca o corpo a propósito do lugar que o pensamento e a
sensibilidade ocupam (o homem), associados ao criticismo transcendental, segundo o qual
os conceitos são independentes da experiência, desembocariam na fenomenologia de
Husserl, para quem a redução ou descrição fenomenológica, ou seja, a enucleação da
essência contida num dado, é de tal ordem que se antecipa às representações, capturando
a presença imediata das essências antes de quaisquer mediações. No entanto, a
negligência de tantas impressões fugidias em prol das certezas fundamentais da
consciência resulta num completo isolamento do ser. Não obstante, a eidética husserliana
marca uma tênue derivação no pensamento moderno. Se toda a tradição filosófica converge
para Kant e a partir dele derivam os contornos que o pensamento moderno iria trilhar e cujos
reflexos testemunhamos hoje através de um anacronismo entre tempo e espaço aliado à
sua independência de toda experiência sensível, é, porém, com Husserl, ou mais
propriamento a partir do que Merleau-Ponty (1975c, p. 431) chamou de o “impensado de
Husserl”, que a racionalidade moderna ganha novos encaminhamentos. Referenciado na
descrição eidética de Husserl, Merleau-Ponty vai evocar a experiência corporal como
fundamento da existência a fim de redefinir todo o legado cartesiano e criticista. Retornamos
assim ao ponto de onde havíamos partido; não para tornar nulo o que até aqui foi posto,
mas por percorrer todo esse trajeto para sublinhar os impasses e preocupações com os
quais Merleau-Ponty se ocupou e pontuar todo o legado filosófico que a modernidade
herdara à guisa de uma compreensão ocidental de corpo.
O logocentrismo moderno nos reservou muitas outras contribuições pertinentes
acerca do corpo e do dualismo que o marcou durante toda a sua trajetória, como é o caso
das obras de importantes autores como Fichte, que vai deduzir da contradição entre um eu
e um não-eu (mundo) um “eu puro” como princípio formal e material do conhecimento (ibid.,
p. 57); Schelling, que visa garantir a realidade objetiva da natureza contemplando-a a partir
de gradações iniciadas com a sensação até sua resolução pela intuição intelectual na forma
de um “eu absoluto” (ibid., p. 58); Hegel, cujo entendimento da história do espírito humano
com a elevação da consciência e do conceito ao saber absoluto enquanto síntese a priori
dialética restringe o corpo a uma exterioridade da alma. (ibid., p. 58); Marx, que,
subvertendo os termos hegelianos, enfatiza as relações objetivas e materiais como
pressuposto da existência, assim o homem como um ser corpóreo supõe a exteriorização da
própria existência a partir de objetos reais sensíveis (Marx, 2004, 182); Schopenhauer, que
vai relacionar corpo e vontade contrapondo-os com a representação (Sciacca, 1966, p. 95);
84
Bergson, que retoma a antiga tese da instrumentalidade sustentando o corpo como
instrumento da ação, o que significa segundo ele “a desforra da consciência contra a razão”
(ibid., p. 241); e muitos outros. Entretanto, não poderíamos pormenorizar tais obras e
contribuições aqui sem ao mesmo tempo empobrecer e mesmo correr o risco de vulgarizar o
ponto de vista de seus autores por não podermos aprofundar suas análises.
Poderíamos, portanto, nos alongar em muitas outras considerações igualmente
importantes sobre o corpo e a contradição que lhe é patente na modernidade. Todavia,
interessa-nos mais centrar nossa atenção no cogito cartesiano e no criticismo kantiano,
posto parecer-nos as contribuições mais influentes de todo o pensamento moderno
(presumimos), o seu ponto nevrálgico, com rebatimentos notórios nas concepções
hodiernas de corpo, espaço, tempo e tudo o mais que lhes são correlativos. Muitos dos
pensadores que aqui citamos herdaram de Descartes ou de Kant um legado que estes por
sua vez herdaram de uma longa tradição que perpassa a filosofia helenística, a estóica, a
escolástica e outras escolas não menos influentes. Mas poderia se alegar também que tais
domínios do pensamento moderno não foram aqui explorados o suficiente tendo em
consideração o não aprofundamento das idéias cartesianas e kantianas, e talvez pudesse
se afirmar o mesmo com relação à filosofia escolástica, ao pensamento estóico e mesmo
quanto aos ensinamentos de Platão e Aristóteles. Porém, num caso ou no outro
preocupamo-nos mais em pontuar suas respectivas concepções de corpo, as que teriam
reflexos importantes para a concepção de corpo na contemporaneidade ou que poderiam
ser vinculados a certos acontecimentos. Particularmente a propósito do racionalismo
cartesiano e do idealismo kantiano, considerando os seus alcances e suas reverberações no
modo de agir e pensar moderno, deixemos que tais postulados falem por si mesmos através
dos hábitos e costumes das sociedades modernas refletidos na maneira como o corpo, a
partir de sua contradição histórica, se investiu de um caráter individual sobrevalorizado;
como tal ardil facultou ao corpo normas de compostura e decoro condicionando-o a um
mero utilitário para as atividades econômicas; como cada forma no espaço e cada lapso de
tempo adquiriram o sentido de deter características particulares e dissociáveis entre si, cada
qual constituindo um corpo essencializado e compartimentado, dotado de uma lógica
própria, fragmentando-se assim em múltiplos recortes espaciais e temporais.
2.2. O corpo individualizado e o espaço fragmentado
Utilizando a metáfora do deus Dionísio despedaçado, Nietzsche (1987, p. 10) vai
considerar “o estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo o
sofrimento, como algo repudiável em si mesmo”. Diante do paroxismo que o indivíduo
assume na cultura moderna, torna-se necessário empreender-lhe a crítica; contudo, não
85
convém negativizá-lo de todo. Um estudo do corpo que se pretende um exame crítico de um
dualismo irrestrito do qual parte toda referência do conhecimento hodierno não pode se ater
a polaridades radicais e no entusiasmo da crítica incorrer no erro transversalmente similar.
O coletivo, o comunitário, a raça, a classe, a nação e a sociedade são dados
inextricáveis da realidade histórica e geográfica do homem, e não seriam enquanto tais não
fossem suas respectivas correspondências com o indivíduo. “Somente por conviverem com
outras”, argumenta Elias (1994, p. 160, 161), “é que as pessoas podem perceber-se como
indivíduos diferentes dos demais. E essa percepção de si como pessoa distinta das outras é
inseparável da consciência de também se ser percebido pelos outros, [...] como diferente de
todos os demais”. Podemos mesmo presumir que indivíduo e sociedade são tão
indissociáveis quanto o são de maneira analogamente sinérgica corpo e espaço. O
problema, portanto, não é para com o indivíduo em si, mas para com o isolamento que se
lhe apossou, pois ele, o indivíduo, é a condição para que o consenso coletivo não seja uma
virtualidade. Coletivo que se desenvolve para além do indivíduo, mas que dele não pode
prescindir. O coletivo, neste sentido, deve ser compreendido como uma multiplicidade muito
mais de afetos do que de conjuntos bem circunscritos, como ressalvou Guattari (1992, p.
20).
Na antiguidade o homem consistia num ser mais propriamente coletivo do que
individual, suas manifestações sendo, portanto, muito mais sociais e naturais que
narcísisticas. Seu quadro de referências para se reconhecer enquanto indivíduo dependia
do nculo com outrem e com o meio. Nesse particular, o ritmo na música, mais apto a
aguçar as faculdades do corpo”, reconhece Mário de Andrade (2003, p. 17), vai “produzir a
absorção do indivíduo pela coletividade, socializando-o, lhe determinando o movimento
coletivo”. A pólis grega compunha um ambiente em que o homem se reconhecia muito mais
como ser social do que individual, o que evidentemente não eliminava as desigualdades. De
modo geral, vai esclarecer Foucault (2002, p. 47) antes de precisar o que chamou de uma
cultura de si,
42
“as sociedades antigas permaneceram sociedades de promiscuidade onde a
existência era levada ‘em público’, sociedades também onde cada um se situava em fortes
sistemas de relações locais, de vínculos familiares, de dependências econômicas, de
relações de clientela e amizade”.
Com o declínio da pólis grega o homem perde seu quadro de referências políticas,
perdendo com isso também as virtudes éticas e cívicas que lhe eram inerentes. O
42
“Por essa expressão é preciso entender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o
preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre
numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar,
impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e receitas que eram refletidas,
desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele consistiu assim uma prática social, dando lugar a relações
interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de
conhecimento e a elaboração de um saber” (Foucault, 2002, p. 50).
86
cancelamento da liberdade política impulsiona o homem à busca de novas subjetividades
com as quais pudesse preencher o vazio que se instaura em sua existência. Nesse
intermezzo, ele descobre-se indivíduo para o qual, a despeito de todos os outros, responde
somente a si mesmo sobre o seu próprio destino.
O declínio das cidades-Estado enquanto entidades autônomas, a partir do século III a.C., é
um fato conhecido. Freqüentemente considera-se isso como o motivo de um recuo geral da
vida política onde as atividades cívicas tinham constituído, para os cidadãos, um
verdadeiro ofício; reconhece-se nesse fato a razão de uma decadência das classes
tradicionalmente dominantes; e procura-se suas conseqüências num movimento de
retraimento para si através do qual os representantes desses grupos privilegiados teriam
transformado essa perda efetiva de autoridade em retiro voluntário, atribuindo desse modo
cada vez mais valor à existência pessoal e à vida privada (ibid., p. 88).
Foucault identificou nos dois primeiros séculos de nossa era um conjunto de
práticas sociais orientadas para condutas pessoais e ao cuidado de si “que confereria cada
vez mais espaço aos aspectos ‘privados’ da existência, aos valores da conduta pessoal, e
ao interesse que se tem por si próprio” (ibid., p. 47). Fazendo exame de si o indivíduo passa
a se auto-referenciar e não mais a se referenciar no outro. A ética ocidental antes alicerçada
na política e na coletividade passa a se refletir na moral do indivíduo considerado em sua
plenitude como entidade singular em contraste a todos os outros seres. O cidadão daria
lugar ao vassalo, esvaziando o conteúdo ético-político das ações que cederá a vez a um
conteúdo moral-ascético. Um discurso confessionário sucederá uma narrativa política. A
prática da confissão significou o reconhecimento da própria culpa, um exame de consciência
do indivíduo consigo mesmo. “A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos
procedimentos de individualização pelo poder” (Foucault, 2005, p. 58).
Não se pode negar que a noção ocidental de indivíduo deriva, sobretudo, do
cristianismo religião que viria fundar em sua trajetória o ser moral. O Ocidente herdara da
cultura judaico-cristã um arquétipo cujo signo do pastorado consubstancia um conjunto de
valores voltados para a abstenção e o comedimento que iria convergir para o
individualização.
43
O cristianismo impôs ao indivíduo a sensação de culpa em relação a si
mesmo e substituiu, por assim dizer, a consciência política anterior, por uma consciência
autônoma e narcisística. Os antigos deuses foram reunidos em Um, e o homem foi
construído à Sua imagem e semelhança, logo o homem também se tornara único e
individualizado. A passagem do panteísmo para o monoteísmo desvendou o grande drama
43
O signo do pastor consiste num arquétipo no Ocidente legado pela cultura judaico-cristã que remete a um
conjunto de símbolos voltados para a individualização. Nesse paradigma, o outro é a ovelha pertencente a um
rebanho, em que vigora a domesticação, o controle, a vigilância e a administração como categorias principais.
“Um certo número de traços marca esse tema: o poder do pastor [...] tem o papel de dar ao rebanho a sua
subsistência, de cuidar cotidianamente dele e de assegurar a sua salvação; enfim, trata-se de um poder que
individualiza, concedendo, por um paradoxo essencial, um valor tão grande a uma só de suas ovelhas quanto ao
rebanho inteiro. É esse tipo de poder que foi introduzido no Ocidente pelo cristianismo e que tomou uma forma
institucional no pastorado eclesiástico: o governo das almas se constitui na Igreja cristã como uma atividade
central e douta, indispensável à salvação de todos e de cada um” (Foucault, 1997, p. 82).
87
do corpo, do lugar e do tempo. [...] A crença em um único deus enfatiza mudanças internas
à custa da continuidade urbana e, ao mesmo tempo, valorizava mais a história pessoal do
que entidades cívicas” (Sennett, 1994, p. 84). Assim, uma religião civil e localizada se
distinguiria de uma religião individual e espiritual, por isso mesmo universal. Em relação a
Deus o homem é uma obra acabada (de natureza única, essencializado) e sua salvação é
individual. Com a Reforma, o protestantismo acentuaria ainda mais um agir individual, pois
em seus quadros o indivíduo passa a se comunicar diretamente com Deus sem a
intermediação da Igreja.
A principal referência do pregnante individualismo hodierno, entretanto, data do
alvorecer da modernidade. O Renascimento permitiu ao indivíduo se reconhecer como
sujeito e perceber o mundo independente de si, separado de tudo por um colossal abismo.
“Dualismos sem saída como as oposições entre o sensível e o inteligível, o pensamento e
a extensão, o real e o imaginário induzirão o recurso a instâncias transcencentes,
onipotentes e homogenéticas, como Deus, o ser, o Espírito Absoluto, o Significante”
(Guattari, 1992, p. 132). Um desequilíbrio é levado a efeito com o primado do eu às
expensas do nós. Abrira-se um hiato entre o indivíduo e as demais pessoas, de modo que o
primeiro passa a se confrontar com a sociedade, como se essa última fosse um objeto,
como vai ressaltar Elias (1994, p. 53). O indivíduo distancia a si mesmo ao observar o outro,
se equivocando ao se conceber como entidade isolada de tudo, até mesmo do próprio
corpo. Assim prevalece a idéia de que o indiduo fundado no seu eu interior, está isolado
não somente do mundo e dos outros, mas também do próprio corpo. “O simples emprego da
expressão ‘meu corpo’ faz parecer que sou uma pessoa existente fora do meu corpo e que
agora adquiriu um corpo, mais ou menos da forma como adquiri uma roupa” (ibid., p. 155).
O distanciamento do sujeito pensante em face de seus objetos, vai pautar Elias (1993, p.
245), não pareceu aos pensadores renascentistas como um ato de distanciamento, mas
como uma distância eterna e imutável de fato.
O homem tornar-se-ia uma realidade única ao ser considerado o resultante da
combinação de duas substâncias independentes e excludentes (a res extensa e a res
cogitans) às custas da redução da substância corpórea à substância espiritual, como
impetraria todo o pensamento moderno com moderadas variações. A modificação nos
estilos de vida social impôs uma crescente restrição aos sentimentos, uma necessidade
maior de observar e pensar antes de agir, tanto com respeito aos objetos físicos quanto em
relação aos seres humanos. Isso deu maior ênfase à consciência de si mesmo como um
indivíduo desligado de todas as outras pessoas e coisas” (ibid., p. 91). A noção de indivíduo,
tal como se consolidou no pensamento moderno, é manifestação de um ego cogito, ela
expressa a idéia de que todo ser humano deve consistir uma entidade única, singular,
autônoma e, em certos aspectos, diferente de todos os demais. Como qualificaria Elias
88
(1994, p. 54, 55), “o que chamamos de ‘individualidade’ de uma pessoa é, antes de mais
nada, uma peculiaridade de suas funções psíquicas, uma qualidade estrutural de suas auto-
regulação em relação a outras pessoas e coisas” existindo “da mesma forma independente,
isolada de todas as relações, pela qual se intui que o corpo existe no espaço”.
A individualidade, enquanto relação que distingue uma pessoa de outra, é
pervertida num individualismo narcisístico, a pessoa converte-se num auto-referente
existencial. O indivíduo fecha-se em si mesmo ignorando o mundo à sua volta e passa a
relacionar-se consigo próprio. O indivíduo inclina-se numa relação de si para consigo.
Instaura-se assim um torpor sem equivalentes em outras culturas: a individualização inibe
todo tipo de relação com outrem e a semelhança torna-se a tônica de toda relação,
porquanto que a diferença favoreça a individualidade e a total falta de identidade, de modo a
inibir qualquer tipo de relação. A identidade se torna, assim, uma relação entre
semelhanças. Enquanto que em outras sociedades, como é o caso das comunidades
indígenas, a diferença é o que possibilita todo tipo de relação. A indiferença com que
lidamos com várias manifestações de nossa existência comum é em grande medida
resultante da dificuldade de nos atermos às diferenças do outro. Na contemporaneidade as
pessoas se diferenciam para competir. De forma inadvertida ou mesmo consciente, o
indivíduo é amiúde inserido num meio competitivo onde busca por meio de variados feitos
ou posses se distinguir das pessoas ao seu redor. Ele busca fixar sua identidade ao tempo
que persegue um status, através de bens que o manifeste de modo visível, “procura-se
adequar-se tanto quanto possível ao próprio status por meio de um conjunto de signos e de
marcas que dizem respeito à atitude corporal, ao vestuário e ao habitat, aos gestos de
generosidade e de magnificência, às condutas de despesa etc” (Foucault, 2002, p. 92).
Apreendemos, pois, como fundamento dessa razão individualista noções
quiméricas do real. Os fenômenos de ordem natural são interpretados por operações
matematicamente concebidas a preencher, ou quem sabe contabilizar, nossa insensibilidade
diante do real. Habitar um mundo físico consiste em se engajar numa existência impessoal,
pertencer a um plano geral. É ser condicionado pelo meio circundante. Tornar-se um objeto
entre tantos outros. Nos confundimos com um mundo de objetos passando a tomá-los
figurativamente como corpos. “Se se procura um fundamento na analogia das formas
corporais, ser-se-á conduzido a fazer do corpo e das suas formas o paradigma de qualquer
outra forma natural” (Gil, 1988, p. 122). É nesse sentido que a noção individualizada de
corpo sugere que os objetos são constituídos corporalmente, segundo múltiplas
perspectivas, embora cada objeto detenha características próprias e auto-suficientes.
É para a concepção de corpo como um ente referenciador da individualização que
Gil (ibid., p. 40) vai chamar a atenção: o “‘indivíduo’ refere-se à singularidade de um corpo.
Não é por acaso que freqüentemente os impasses reais, sociais e políticos, expressos
89
nessa antinomia, conduzem a soluções que tomam o ‘corpo’ como modelo ‘metafórico’”.
Nesses termos, cada objeto consiste metaforicamente num corpo nominado de qualidades
próprias, detendo, portanto, atributos particulares. Um cavalo consiste num corpo com
características bem peculiares, discerníveis de todos os outros corpos, assim como uma
cadeira carrega em seu nome um sentido que a diferencia de todos os outros objetos, como
se fosse nulo todo o trabalho vivo que a constituiu e que continua a transformá-la. “De fato,
o corpo quando encarna o homem é a marca do indivíduo, a fronteira, o limite que, de
alguma forma, o distingue dos outros” (Le Breton, 2006, p. 10).
O corpo individualizado é a base para uma leitura fragmentária de mundo. É nesse
sentido que Robert Hertz (1980, p. 108, 109) associa o pensamento dualista que marca toda
a modernidade à metáfora da polarização de partes do corpo, como a contraposição entre
as mãos direita e esquerda e seus significados simbólicos. Admitindo o dualismo como regra
geral de entedimento de mundo, Hertz reconhece o corpo como metáfora do pensamento
humano. A assimetria que governa o mundo em Hertz converge e se confunde no corpo.
Assim, todas as coisas estariam suscetíveis a uma certa encorporação
44
(num sentido
inverso de incorporação), ou ainda, uma corporalização, no sentido de uma objetivação das
coisas à imagem do corpo tal como o concebemos de forma individualizada. O corpo é
tratado assim como equivalente a todas as coisas passíveis de objetivação. O objeto
reapreendido pela consciência teria suas possibilidades limitadas mediante uma
representação nominal, uma individualização e a definição de limites precisos e restritos que
lhe confere uma auto-suficiência.
Não podemos, contudo, atribuir ao objeto qualidades autônomas, embora disponha
de propriedades sensíveis e de funcionalidades. Operamos a alienação do objeto ao o
coisificarmos, ou seja, ao nos restringirmos ao papel de sujeitos. Realizando a composição
do corpo objetificamos a coisa emprestando-lhe um significado e dotando a nós mesmo de
um sentido que se reflete como ser de coisa no objeto, corporificando-o, isto é, coisificando-
o por aliená-lo de todo o processo precedente, toda a relação que o constituiu. Assim
alienamos a nós mesmos de um trabalho vivo. O significado do objeto será expresso
mediante a intencionalidade evocada num jogo dialógico de mútua implicação com o sujeito.
As maneiras de perceber, lidar, cuidar e disciplinar o corpo estão expressas de
todo nas formas que assume o espaço, reservando alguns vestígios nos interstícios de um
dado arranjo espacial. A civilização ocidental reproduziria, pois, um ordenamento espacial
adequado às premissas circunstanciais de corpo: se o corpo é coletivizado o espaço seria
dimensionado para atender as necessidades cívicas e coletivas, como dão testemunho
através do tempo as ruínas dos pórticos e espaços públicos construídos na Grécia antiga;
44
Lançamos mão de um neologismo – encorporação – apenas para designar o sentido reverso ao termo
incorporação, ou seja, ao invés de uma introjeção do mundo, teríamos uma exteriorização do corpo nas coisas.
90
se, por outro lado, o corpo é individualizado assim também se ordenaria um espaço
correspondente. Sennett (1994, p. 30, 31, 32) recorda que a nudez referenciada na idéia de
calor dos corpos se refletia na política e nas formas arquitetônicas da cidade ateniense. A
exposição do corpo na Atenas antiga exprime o orgulho da nudez indicadora de refinamento
e de uma suposta superioridade sobre os povos bárbaros e estrangeiros. O calor dos
corpos, de acordo com Nunes (2000, p. 30), refletiria uma boa saúde se alcançasse o
equilíbrio entre os quatro elementos básicos: fogo, ar, terra e água. Que podemos presumir
estarem associados aos quatros humores (sangue, fleuma, bile amarela e bile escura) do
esquema corporal sugerido por Hipócrates, que viveu entre 460 e 377 a.C. (Le Goff e
Truong, 2006, p. 109). Os corpos frios (mulheres e escravos) não alcançavam esse
equilíbrio e, portanto, estavam suscetíveis à subserviência. A estes estava reservada a vida
doméstica e não a vida pública, o que vai se expressar nas formas das casas atenienses do
século V e IV a. C., com altas paredes e poucas janelas. A exposição dos corpos
masculinos se refletia nos pórticos gregos, abrigando espaços cobertos e expostos,
continente de calor ou frio, dispondo simetricamente uma série de colunas que se abriam
para a Ágora. Os atenienses construíram edificações e espaços para a perfeita impostação
da voz, destinados ao calor da política e aos discursos inflamados como manifestação
coletiva do exercício cívico. Mais tarde, a voz persuasiva dos sofistas transpareceria a
desagregação do espaço ateniense.
Uma sociedade beligerante como a romana, por sua vez, se empenharia na
difusão de seu peculiar estilo de vida, principalmente por meio de construções de uma forma
urbana romana característica, na medida que ampliava seus domínios territoriais. As formas
geométricas romanas buscavam um sentido de longevidade e essência de modo a se
resguardarem das rupturas históricas. De acordo com Sennett (ibid., p. 82), “a obsessão
romana por representações plásticas de pessoas ou objetos valia-se de um arranjo
geométrico, fundamentado em princípios tranqüilizadores que o próprio corpo podia
perceber”. Os romanos se utilizavam freqüentemente de pantomimas, dando força às
palavras por meio de expressões corporais ou fisionômicas, tal era o gesto de condenação
dos moribundos lançados à arena com o polegar em riste virado para baixo, ou a figura de
Poncio Pilatos “lavando as mãos” ao se isentar de culpa na condenação de Cristo.
No que tange às sociedades modernas, se difundiria um arranjo espacial adrede à
condição individual, um espaço instrumentalizado a potencializar a limitação orgânica, em
muitos casos favorecendo em suas formas muito mais os meios instrumentais que
compelem ao corpo a um papel secundário, expressando desse modo a limitação de sentido
que se lhe apossou, restrito e encerrado num suposto plano externo e inerte e, como tal,
relegado a um domínio continente, acepção que repercutiria sobre qualquer domínio
espacial. Nos comportamentos mais banais de nossa experiência diária encontram-se
91
significativas manifestações de individualidade. Que desconforto nos acomete o menor risco
de contato físico ao caminharmos pelas movimentadas ruas dos congestionados centros
urbanos, como se tal fato consistisse uma verdadeira agressão aos nossos corpos
individualizados. E como evitamos fitar as pessoas pelo incomodo de possíveis
interpelações do outro a violar nossa privacidade, tão somente pela inusitada saudação por
um estranho. Sennett (1994, p. 277) recorda que na Londres de Hogarth (artista plástico do
século XVIII) as pessoas saiam às ruas na expectativa de abordar e serem abordadas.
Escolhemos os assentos vazios nos restaurantes e ao dirigir nos orientamos por símbolos
indicativos de procedimentos no trânsito (placas, sinais, cores, faixas) e não mais nas
pessoas, no outro. O automóvel torna-se assim um verdadeiro receptáculo da
individualidade. Ao transeunte não é permitido violar os domínios dos automóveis, ele é
constantemente constrangido pelas formas que lhe escapam a finalidade, erigidas para o
automóvel (calçadas estreitas, longos trajetos com poucas esquinas, estacionamentos ao
invés de moradias) e não mais para o corpo. Os projetos urbanos modernos têm primado
pelo afastamento dos corpos, estimulando mais a circulação e o cerceamento táctil.
Contrastando com a casa medieval, a casa burguesa é tipicamente um espaço de
individualidade. A casa medieval comportava uma quantidade variável de pessoas
convivendo com animais, abrigando sob o mesmo teto e cômodo, além das funções
domiciliares e profissionais, uma multiplicidade de coisas empilhadas e misturadas utilizadas
no dia-a-dia (Rodrigues, 1999, p. 43). Na casa moderna burguesa as funções domiciliares
estão distribuídas por seus compartimentos disciplinares, seus cômodos destinados cada
qual a uma atividade. Cada um desses espaços requerendo um comportamento apropriado
à vida doméstica. Há, assim, o lugar do encontro e da troca de opiniões, o lugar do trabalho,
o lugar para comer, o lugar do prazer e do sexo e o lugar para saciar as necessidades
fisiológicas de higiene corporal. Cada casa uma família, cada quarto uma pessoa e uma
função, uma divisão de tarefas na ordem de uma segmentação produtiva e de produção de
indivíduos.
A experiência é fundamentalmente seletiva, de sorte que desempenha um papel
decisivo na individualização dos corpos (Elias, 1994, p. 154). Quanto mais diferenciadas as
experiências alocadas na memória das pessoas, maior a margem de individualização. Por
isso cada corpo experiencia e percebe o espaço de maneira única. O espaço corporal é
tanto mais notório quanto mais evidente é o indivíduo numa sociedade. O indivíduo passa a
ser a unidade referencial da sociedade, se percebendo à parte desta, quando antes (na
antiguidade) a referência era o corpo coletivo. É como se a sociedade fosse alheia à sua
constituição ou estivesse fora de sua presença como uma esfera da realidade totalmente
diversa. A concepção corrente de um indivíduo completamente independente e autônomo
“impede a compreensão de processos a longo prazo por que passam as pessoas nos
92
planos individual e social” (Elias, 1993, p. 236). Isso as conduz a uma letargia, um
imediatismo que as incapacitam de vislumbrar a convergência sobre si de eventos gerados
em outras escalas (mais amplas) ou mesmo a viabilização de projetos de longa duração.
“Converter-se a si é afastar-se das preocupações com o exterior, dos cuidados com a
ambição, do temor diante do futuro, pode-se, então, voltar-se para o próprio passado,
compilá-lo, passá-lo em revista e estabelecer com ele uma relação que nada pertubará”
(Foucault, 2002, p. 70). A atomização por que passam os processos sociais dificultam a
retomada coletiva da ação. Nesse sentido, o significado e propósito das coisas só assumem
sentido real se voltados para a conveniência de interesses privados e imediatos. Um
pronunciado egocentrismo não permite que o indivíduo se vincule à sociedade; ele
contempla a si próprio como um ente isolado, independente de tudo e de todos. Esse
equivocado princípio concorre para uma flagrante concepção fragmentária de mundo.
Assim como indivíduo e sociedade são considerados, no pensamento moderno,
como entidades autônomas, também todos os elementos que sabemos (por uma
observação pormenorizada) serem constitutivos da sociedade deterão esse caráter de auto-
suficiência. Sociedade e espaço assentam-se, pois, como duas realidades independentes,
como se a reprodução e realização da sociedade não mantivessem relações com as formas
espaciais e como se estas analogamente não derivasse daquela. Essa contradição ecoa em
outras consecutivas fragmentações, reduzindo as já avulsivas entidades e instituições do
mundo moderno à sua mais ínfima parcela. Desse modo, a sociedade se fragmenta em
múltiplos indivíduos, embora estes a tenham como uma realidade totalmente diversa de sua
constituição, assim como o espaço estilhaça-se em disjuntivos compartimentos isolados e
independentes do todo, só o contemplando por um débil somatório de suas partes.
A tradição cartesiana nos legou espaço como extensão, como tábula rasa.
Tomamos o espaço como um objeto pleno de qualidades autônomas; cada segmento
comportando uma essência do todo de modo a dotar-lhes de identidades. O indivíduo em
sua constituição autônoma se facultado a classificar e distinguir segundo leis físico-
matemáticas o animado do inanimado, o vivo do inerte e assim por diante. A natureza
restringira-se assim a uma paisagem captada sensivelmente por um observador externo,
sem que o mesmo tomasse parte de seu espetáculo, pois o sensível tornara-se uma
qualidade da mesma ordem do extenso.
Apreendemos o corpo como um ente estanque da alma e do pensamento,
individualizado e essencializado em sua circunscrição fisiológica comportando em si a
autonomia de sua constituição reduzida aos ciclos biológicos de sua existência. A
ambigüidade do corpo deriva tanto da concepção de corpo como uma unidade biológica
organizada e complexa, quanto da acepção do corpo como uma matéria inanimada e, até
certo ponto, desorganizada. A uma corporeidade orgânica opõe-se uma corporeidade
93
inorgânica e a partir daí impõe-se todo uma concepção da realidade centrada numa matriz
cartesiana de pensamento, cujo desdobramento para o que se pode chamar de percepção
espacial se tornou muito cara para o entendimento moderno de mundo: a incompatibilidade
entre um espaço físico e um espaço vivido para o qual vai contribuir o desenvolvimento
desigual e inconciliável das ciências naturais e das ciências humanas.
Espaço e tempo são analogamente entes objetificados e compartimentados em
sucessivas frações de tempo (dias, horas, minutos e segundos) e distributivas
especializações do espaço (lugares, regiões, territórios). Ambos inserem-se também no
escopo de uma visão dicotômica de mundo: um tempo internalizado, confrontado com um
espaço externalizado, para os quais vão concorrer as categorias apriorísticas do criticismo
kantiano. O indiduo se isolado e independente de tudo o mais, como se as coisas lhe
fossem aprioristicamente concebidas. O homem moderno se reconhece em sua
imanência no tempo confrontada com a transcendência que o espaço sugere. Esse
anacronismo não é casual. Ele reflete um conjunto de práticas e relações aprofundadas a
partir de um dado momento histórico em que vão intervir intencionalidades acionadas para
além da escala do indivíduo.
Esse conjunto de idéias esboçadas aqui sobre o corpo individualizado, e
tacitamente sobre espaço e tempo, constitui um legado da tradição moderna a subsidiar
hodiernamente a nossa concepção de mundo. Tais concepções são resultantes de um longo
e laborioso processo de experimentação dos eventos naturais e sociais por que passou a
civilização ocidental; eventos que por sua periodicidade permitiram o levantamento de suas
seqüências e conexões causais de modo a viabilizar uma elaborada síntese desses
processos. Síntese essa que se afigura como um conjunto de leis universais e imutáveis sob
a rubrica físico-matemática a dominar intelectualmente os objetos, construindo-os
inteiramente para inseri-los em relações pragmáticas e imediatistas por meio do domínio
instrumental dos construtos. A nossa existência pessoal, margeada em certa medida pela
experiência impessoal de uma concepção fragmentária de mundo, decorre do habitar um
mundo físico de um lado e de um mundo histórico do outro.
Impõem-se aqui duas ordens espaciais caras à concepção moderna de mundo que
evocam o permanente cotejo entre necessidade e liberdade. Como as descreveu Silva
(2000, p. 18), “há o espaço do corpo e seus prolongamentos. também o espaço da
mente. Como o tempo e o movimento, o espaço é fundante do existir, e, portanto, do
pensar. Sendo assim, ele é algo físico, uma ‘coisa’, e é algo social, algo criado pelo trabalho.
O primeiro precede a existência humana; o segundo, nasce da valorização natural como
fonte da vida”. Eis o legado da separação entre corpo e alma. Como se livrar dessa
insistente antinomia? A despeito do encargo à resposta, importa entender essa pronunciada
ambigüidade em termos de um corpo que implique um espaço e as relações que derivam e
94
convergem para essa cisão. Não olvidamos, portanto, a interferência das representações
simbólicas, das normas e convenções sociais, da política, da realidade técnica, das relações
de poder, das determinações históricas e geográficas, bem como os rompentes e
resistências de toda ordem, enfim dos valores que conferem sentido ao espaço.
2.3. Espaço, corpo e poder
Dissemos no primeiro capítulo que o corpo ao se realizar enquanto tal o faz
mediante um espaço que é o seu campo perceptivo, constituindo assim uma perspectiva
espacial própria, e à medida que ele estabelece um liame de experiências perceptivas com
outros corpos, permite-nos falar num campo relacional que achamos oportuno designar por
corporeidade dos corpos. Tomemos agora um fator que nos convoca às vicissitudes dos
processos históricos e geográficos de produção do espaço: as relações de poder.
Corpo e poder são termos que se entrecruzam no movimento de produção do
espaço, eles atravessam de ponta a ponta seus interstícios alimentando seu conteúdo. A
constituição perceptiva do corpo, como já o vimos, precede toda representação e convenção
social. O poder, por seu turno, é o agenciador das normas, da regulação, da disciplina, da
política, de saberes e, portanto, de representações e convenções sociais todas se
correalizando no espaço. Não obstante esse aparente distanciamento, a reprodução do
espaço supõe a interação entre corpo e poder. Podemos mesmo dizer que eles estão
imbricados numa mesma genealogia ou num mesmo ato constitutivo. Quando o corpo, a um
tempo, toma consciência de si e do mundo instaura-se uma relação de poder entre o
sujeito perceptivo e o objeto apreensível. “Não é o objeto de poder apreensível na
experiência?”, se indagaria Gil (1988, p. 15). Seria, pois, o poder mais um horizonte do ser
de corpo? É patente que ele o seja de sua existência. Antecedendo-se às reverberações e
apropriações sociais podemos dotar o poder de um caráter fenomenológico. Não tratemos,
pois, o poder como uma força externa, um algo dado e a priori, pois ele nasce de um ato
intencional. Foucault (2005, p. 90) dizia que as relações de poder são ao mesmo tempo
intencionais e objetivas. Toda relação é morada de relações de poder. A intencionalidade é
assim esse poder imanente que insere o corpo em meio a um campo de forças.
Mas, o que seria propriamente o poder? É Foucault (ibid., p. 88, 89) quem nos
responde: O poder deve ser compreendido como
a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e
constitutivas de sua organização; o jogo que, através das lutas e afrontamentos incessantes
as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais relações de forças encontram uma nas
outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que a
isolam entre si; enfim as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas
hegemonias sociais.
95
Foucault descreve de modo notável a exposição dos corpos pelos dispositivos de
poder, investimentos que até meados do século XX foram rígidos, densos, meticulosos
como de certa forma ainda são os regimes disciplinares nas famílias, nas escolas, nas
universidades, nos hospitais, nas empresas, nas instituições filantrópicas...; doravante os
efeitos do poder sobre os corpos se tornariam mais tênues e dissimulados, mas nem por
isso menos eficazes (Foucault, 2001b, p. 148). Entendida como uma espécie de anátomo-
política cujo fito consiste no adestramento dos corpos individualizados, a disciplina tenta
expropriar o corpo de um poder que lhe é inerente, anulando um poder do qual o corpo se
investe no ato de sua realização enquanto termo relacional, construindo, para tanto, um
conjunto de saberes a fim de torná-lo útil: um saber fisiológico, um saber orgânico, um saber
comportamental, um saber moral, um saber jurídico-individual, um saber econômico, um
saber geográfico.
um duplo investimento disciplinar sobre o corpo que o desnorteia e o amortece
por subtrair-lhe um poder que é a expressão de sua intencionalidade. De uma parte, as
forças corporais são potencializadas, incrementadas para fins de uso produtivo e utilitarista.
O corpo então é adestrado, otimizado em sua performance para se obter um aumento da
relação custo-benefício. De outra parte, o corpo sofre de inanição, isto é, as forças corporais
são atenuadas e enfraquecidas com o fito de tornar o corpo um componente dócil, previsível
e manipulável, arrefecendo e desencorajando assim possibilidades de reação. Aqui, o corpo
é igualmente adestrado, porém, suprimido e cerceado a fim de que seja subjugado em
termos políticos. A disciplina “dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’,
uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência
que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita” (Foucault, 1977, p.
127, grifos nossos). O princípio desses estados de letargia é tornar o corpo um corpo
individualizado, isolado de todo tipo de relação, pois se toda relação, qualquer que seja,
abriga em seu bojo relações de poder, aquilo que supostamente não envolve relações, por
conseguinte, tornar-se-ia elemento passivo ante as esferas hegemônicas do poder.
A perda individual do poder decorre, segundo Elias (1994, p. 138), por ocasião da
passagem de um centro de integração comunitário ao nível tribal para um contrato social ao
nível do Estado. Ele vai argumentar que “no correr desses processos de integração o
indivíduo perdia [...] as oportunidades de poder em relação à sociedade” (ibid., p. 137). O
individuo firma então um contrato social cuja lei instituída se escreve sobre os corpos,
facultando-o a acatar normas e regras cujo regrado escapava às suas pulsões
individualistas. “Não direito que não se escreva sobre os corpos. Ele domina o corpo. A
própria idéia de um indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade, sentida
pela justiça penal, [...] de corpos que devem marcar com um preço nas transações entre
96
coletividades” (Certeau, 2003, p. 231). O advento da sociedade disciplinar se tornara
possível mediante a constituição de corpos individualizados, de modo que se pudesse
classificar, justapor, separar conforme um quadro de referências, distribuir segundo uma
ordem previsível e inequívoca. “Por ‘disciplina’ entende-se uma forma de governo sobre os
indivíduos ou dos indivíduos de maneira singular e repetitiva” (Negri, 2003, p. 104). Os
indivíduos são diferenciados em função de sua natureza e de suas virtualidades, são, enfim,
classificados e alocados, e por isso são, mais uma vez, individualizados.
O estabelecimento de uma sociedade disciplinar implica num ordenamento
espacial; requer, pois, a transformação de um espaço liso num espaço estriado (Deleuze e
Guattari, 1997, p. 182, 184, 185), o redimensionamento da corporeidade dos corpos num
recortamento do espaço mais definido e pormenorizado, promovendo assim a distribuição
hierárquica e funcional dos elementos que o constitui. Para tanto, concorrem instituições
disciplinares demarcando zonas de eficácia do poder disciplinar. Assim o espaço é
esquadrinhado por instituições que outorgam identidades e atribuições ao indivíduo
conforme o local em que se encontra e o momento de sua vida: para cada casa uma família;
cada cômodo um filho ou um casal. Para cada fábrica um conjunto de trabalhadores; cada
máquina um operador, um técnico... Em um dado contexto um indivíduo tal qual a função
que lhe cabe no espaço e no tempo.
45
O poder disciplinar permite assegurar o adestramento
e a utilidade dos indivíduos por meio da distribuição espacial dos seus corpos: sua
separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância.
A estandartização do tempo para fins disciplinares orientados para as atividades
produtivas atingiria tanta eficácia quanto a disciplinarização do espaço, como não poderia
ser diferente dada as suas inerências mútuas, mesmo a despeito do anacronismo moderno
segundo um tempo interno regulador de nossas contingências e um espaço externo
ordenador de nossas necessidades. Thompsom (1998, p. 289) vai chamar a atenção para a
sistematização do tempo médio de trabalho medido pela sincronização das rotinas
experienciadas na sociedade capitalista industrial nascente. O tempo do trabalho
disciplinado que é a disciplinarização do tempo de trabalho de cada trabalhador; logo, a
disciplinarização do próprio trabalhador ou, se preferir, do corpo como mercadoria força de
trabalho (Harvey, 2000, p. 142) corresponde à jornada obrigatória de trabalho, medindo
em quantidades de mercadorias produzidas as horas, os dias, os meses e os anos. O
advento do relógio modificaria doravante nossa percepção de tempo. O relógio encerra o
45
“Certamente na sociedade disciplinar cada indivíduo tinha várias identidades, mas a certo ponto as
diferentes identidades eram definidas por diferentes lugares e diferentes épocas da vida: pai ou mãe em casa,
operário na fábrica, estudante na escola, detento na prisão, e paciente mental no asilo” (Hardt e Negri, 2001, p.
353). “O indivíduo o cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a
família, depois a escola (‘você não está mais na família’), depois a caserna (‘você não está mais na escola’),
depois a fábrica, de vez em quando um hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por
excelência” (Deleuze, 1992, p. 219).
97
tempo em durações precisas e mensuráveis, implicando uma subordinação do corpo a
horários pré-estabelecidos de comportamentos: não mais se comeria quando reclamasse a
fome e não mais se descansaria quando pesasse a fadiga, teríamos um momento preciso
para tais incontinências.
A disciplinarização do tempo vai implicar numa nova concepção de espaço: o
espaço ordenado pela disposição dos corpos, cada qual objetivamente situado, subsumido a
uma lei geométrica físico-matemática. Giddens (1990, p. 26) vai argumentar que a
“coordenação através do tempo é a base de controle do espaço”. A separação do tempo e
do espaço e sua recombinação segundo uma ordem abstrata quantificável permite um
zoneamento preciso da vida social (ibid., p. 25). Entre as localizações, uma distância
supondo um tempo para superá-la, um deslocamento. Daí uma nova concepção de espaço
e tempo tornados previsíveis e quantificáveis. Um espaço-tempo disciplinar estandardizado
e racionalizado se espraia por toda a sociedade, passando a arregimentar os corpos como
peças sobressalentes das linhas de produção. Aos corpos dos homens é imposto o ritmo
das máquinas, todos em uníssono a um padrão de organização manufatureiro (Moreira,
2004, p. 51). O corpo tornar-se-ia um apêndice das máquinas.
Os novos ritmos impostos pelo desenvolvimento capitalista requerem novas
concepções de tempo e espaço, uma nova cultura do trabalho. O tempo orientado pelos
ritmos dos impulsos fisiológicos e pelas pulsões naturais é impreciso demais para a
atividade manufatureira. O artesanato do período pré-manufatureiro era tipicamente um
modo de produção camponês ou, mais apropriadamente, um modo mercantil simples cuja
escala de abrangência era demarcada pelos limites da aldeia. Não havendo, então, uma
divisão social do trabalho tão instrumentalizada quanto nos dias atuais, o artesão era ao
mesmo tempo o camponês no escopo de uma unidade familiar de produção. O tempo do
artesão estava assincronicamente contrastado ao tempo da nova ordem econômica e social:
o tempo do relógio e não mais o biológico. A ordem manufatureira impõe um novo tempo ao
artesão. A crescente aglomeração urbana formaria um modesto porém dinâmico mercado,
marcando a extinção da dependência incorporada no contrato de trabalho feudal e se
contrapondo aos compromissos comunitários religiosos para instaurar o direito de
propriedade e a liberdade individual.
A sistematização do tempo consagra a internalização das restrições e convenções
sociais instauradas pela emergente sociedade industrial, impondo normas precisas de
regulação de condutas, pulsões e sentimentos, demarcando uma reorientação
paradigmática da qual somos cúmplices desde a mais tenra infância quando começamos a
desenvolver uma potencial autodisciplina (Elias, 1998, p. 23, 30). A nova concepção de
tempo, sob bases abstratas o suficiente para desabonar a experiência como um de seus
98
preceitos fundamentais, adquire uma vida autônoma e independente das pulsões humanas.
Daí a preeminência da noção kantiana de um tempo (e um espaço) a priori.
A produção da subjetividade, portanto, corresponde à internalização da disciplina,
que é correspondente igualmente a um tempo tornado interno contrastante com um espaço
tornado externo. Para tanto, concorrem tecnologias disciplinares de vigilância como o
panoptismo (Foucault, 1977, p. 177, 178) que demarcam os limites dos impulsos corporais e
suas similitudes no espaço, recalcando-os para um domínio interno, uma temporalidade
supostamente interior. A vigilância instaurada com o panoptismo é de tal envergadura que o
indivíduo a internaliza de modo a ele próprio fazer exame de si. “Quem está submetido a um
campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las
funcionar espontaneamente sobre si mesmo; [...] torna-se o princípio de sua própria
sujeição” (ibid., p. 179). Assim, as instituições disciplinares (as escolas, as fábricas, os
hospitais, as prisões) ampliam seu raio de ação para além do plano estrutural, combinando-
se para a reprodução das subjetividades.
Um lento e laborioso processo de condicionamento dos comportamentos e
costumes tem início expressando as implicações de um mundo interno contrastado com um
mundo externo, ou se preferir, da independência de um sujeito cognitivo para com seu
objeto. Atitudes que hoje avaliamos como perfeitamente naturais: regras de comedimento,
discrição e higiene inscritas no corpo e no espaço moderno, normas que incidem sobre os
corpos como mecanismos de controle e restrição social revestindo-os de relações e de
cargas emocionais diferenciadas dos modos costumeiros com que na Antiguidade e na
Idade Média se portavam os homens.
46
A compostura à mesa incide sobre uma série de
normas de etiqueta que se aplicam ao uso individual de pratos, copos e taças, o manuseio
de talheres e o modo apropriado de mastigar o alimento, como vai salientar Elias (1993, p.
113, 114, 115). O recato no modo de vestir demarca novas formas de relações com o outro,
de maneira a interferir muito mais numa auto-aceitação do que propriamente numa
aceitação social do indivíduo. A postura ereta, sinal de beleza e elegância, imposta ao uso
de espartilhos e mais tarde pela difusão da ginástica, “servia como testemunho do controle
das paixões” (Sant’anna, 2005, p. 123, 126). A repugnância e o nojo causados pelas
incontinências fisiológicas como flatulências e escarros levou a privar do público costumes
que mais tarde seriam associados a procedimentos de saúde e higiene.
47
O estímulo ao
decoro na supressão do prazer e do gozo reserva a noite como o momento apropriado para
46
Em tudo contrastando com a maneira exasperada com que essas formalidades eram dispensadas nos hábitos
coletivos de comer, no modo andrajoso de vestir, no pouco ou nenhum cuidado de asseio corporal como
comportamentos típicos da Idade Média. Cabe destacar igualmente o contraste entre as práticas indígenas de
comensalismo e essas condutas e convenções modernas.
47
“O impulso para a limpeza regular e limpeza corporal constante, para começar, não deriva de uma noção
claramente definida de higiene, de uma compreensão clara ou, como dizemos habitualmente, ‘racional’ do perigo
da sujeira para a saúde” (Elias, 1993, p. 266).
99
a nudez, momento em que a sombra oculta as imagens pouco convenientes” (Foucault,
2003, p. 56), instigando emoções negativamente carregadas de embaraço e culpa que
tornam o corpo uma zona de vergonha e de pecado, infundindo um valor patogênico às
práticas sexuais consideradas anômalas.
De tão recorrentes esses hábitos de reserva e autocontrole se tornariam
corriqueiros e banais o suficiente para impedir que percebamos o quanto estamos
condicionados a ponto de tomá-los por axiomáticos, nos permitir assim especular como os
procedimentos disciplinares panópticos se reproduzem reiteradamente de modo a se
naturalizarem. Tais regras de discrição concorrem para o afastamento do corpo da cena
ública, tornando-o um objeto fundamentalmente privado. Sua difusão não surpreende o
outro que reconhece essas atitudes refletidas em si mesmo. É óbvio que esses
comportamentos não foram assimilados de modo repentino, foi preciso um longo período de
experimentação e a convergência de fatores históricos para o refreamento dos instintos
corporais mais elementares. Elias (1993, p. 143) recorda que os comportamentos e hábitos
criados por uma sociedade aristocrática e depois amalgamados pela burguesia, pela classe
operária e pelo campesinato, se naturalizam com o aumento da interdependência entre
as classes por conseqüência da elevação da divisão do trabalho na sociedade industrial.
Mas Foucault (1998, p. 119) vai mais longe ao perceber que a transmissão de valores para
as classes mais pobres não se deu sem conflitos reverberados no espaço, tensões essas
que vão acionar todo um aparato de vigilância e controle.
O condicionamento e a contenção dos impulsos abstrai do corpo um poder
encarnado desde a mais tenra manifestação de vida, impedindo assim que toquemos
espontaneamente naquilo que desejamos, facultando-nos sentimentos como embaraço e
constrangimento e a instauração do comedimento e discrição necessários para evitá-los.
Censuras que também serão estendidas aos demais órgãos dos sentidos. Os olhos estão
restritos à mediação da satisfação indireta do desejo, aqueles interditados às funções
hápticas, de vez que o prazer está circunscrito por uma indevassável barreira. Do modo
contido e polido no falar e no aprimoramento da inteligibilidade da música (Andrade, 2003, p.
34) decorreriam imputações às faculdades auditivas. Assim como não é de bom tom o uso
do olfato para cheirar os alimentos antes de ingeri-los (Elias, 1993, p. 105); a quebra desse
preceito iguala os homens aos animais. O homem moderno abomina todos os seus
impulsos e instintos comuns aos instintos animais, distinguindo através da racionalidade o
que seria da ordem do humano e o que seria da ordem do reino animal
48
(leia-se, da
natureza).
48
Curiosamente, nas sociedades indígenas as afecções corporais comuns entre homens e animais os colocam
no mesmo patamar de igualdade: seriam ambos humanos. Retomaremos essa discussão no próximo capítulo.
100
Além de induzir-nos a práticas desconexas aos impulsos do corpo, atenuando um
poder cujo exercício lhe é patente, a disciplina se instala no âmago de nossas
subjetividades, sondando nossas crenças, desejos e volições, ou seja, ela produz a
subjetividade que arrefece o poder latente atravessado no corpo. Por isso as decisões do
homem são, na maior parte dos casos, decisões alheias às suas próprias vontades. Essa
intencionalidade incoerente com os desígnios do indivíduo, acionada em outra escala de
atuação, pode ser considerada a expressão mais fidedigna do poder, de modo que não nos
comparece como uma forma definida que o denuncie, mas se infiltra em nossas vidas como
se de fato constituísse um projeto voluntário. Esse poder que autoriza a produção de nossa
subjetividade como uma da mais sublimes virtudes pode ser assim entendido em amplo
espectro. Ele enfatiza e faz transparecer a relação que a razão moderna fez reconhecer
paradoxalmente como não-relação: a individualidade. Para tanto, vão intervir mecanismos
que articulam o subjetivo com o objetivo, como o panoptismo no plano da disciplinarização,
ou ainda a noção de habitus, no plano das práticas sociais como um todo.
Na teoria praxiológica de Pierre Bourdieu (1983, p. 60) a noção de habitus reflete a
interiorização das estruturas e contextos sociais num jogo dialético com a exteriorização de
valores adquiridos através das práticas, dotando os indivíduos de um “capital físico”, ou seja,
um conjunto de valores sociais simbólicos absorvidos indeliberadamente conforme seus
campos sociais ou classes a que pertencem. Acrescentaríamos, de acordo com o espaço
que lhes conferem corpo e historicidade. Nesses termos, o indivíduo incorpora um conjunto
de representações a partir de disposições estruturais ao passo que sua prática é pautada
segundo os códigos e valores assimilados. O conceito de habitus “está no princípio do
encadeamento das ações [...] com efeito, exprime em primeiro lugar, o resultado de uma
ação organizadora, [...] uma maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e,
em particular, uma predisposição, uma tendência, uma propensão ou uma inclinação” (ibid.,
p. 61, grifos do autor). O habitus acumula um duplo encargo: em relação ao mundo, ele é o
princípio gerador das práticas; em relação ao repertório total de práticas sociais, ele é o
princípio unificador (Csordas, 1994, p. 12).
O corpo, por meio das técnicas corporais as mais elementares (como o modo de
comer, de vestir, de praticar sexo) é reproduzido através do habitus, como havia notado,
antes de Bourdieu, Mauss (1974, p. 214).
49
O corpo está sempre imbricado num duplo
horizonte: a exteriorização de sua subjetividade, ou seja, sua espacialização e a
interiorização do espaço em todas as suas fortuitas expressões. Por isso o corpo é
considerado por Bourdieu uma entidade inacabada, em constante construção (Shilling,
1993, p. 127). É nesse encontro com o mundo, quando a consciência toma para si um
49
Essa expressão (habitus) não é recente: mesmo antes de Pierre Bourdieu e de Marcel Mauss, São Tomás de
Aquino já a havia designado por uma “disposição habitual” (Le Goff e Truong, 2006, p. 18).
101
mundo que não é um mero incidente do acaso, mas um mundo histórico e geográfico, que
somos invadidos por uma multiplicidade de valores, de normas, de convenções sociais, de
representações simbólicas, de investimentos de poder. Daí porque Certeau (2003, p. 126)
vai dizer que na teoria da prática, as estruturas são dinâmicas e podem significar um
princípio de mobilidade social, enquanto a aquisição (a interiorização) não goza
propriamente de um movimento autônomo, se não por efeito da exterioridade.
O legado da tradição cartesiana faculta-nos a entender as práticas sociais e,
portanto, a produção do espaço em termos de subjetividades e objetividades, perfazendo o
jogo do interno e do externo. Desse modo, incorremos a todo o momento numa
corporeidade orgânica confrontada com uma corporeidade inorgânica, como se fossem
realidades independentes entre si. Se o habitus é um princípio integrador entre o dentro e o
fora como indicou Csordas (1994, p. 12), ele, contudo, realimenta e ratifica suas diferenças
reproduzindo-as e aceitando-as como tais ao invés de tentar conciliá-las superando sua
contradição. A dificuldade em sobrepujar essas dissimetrias de modo a apreender seus
termos de forma integrada repercute em preservar o corpo como um terreno fértil para as
investidas do poder, cujo mais atroz ardil foi justamente fazer com que essa antinomia e os
hábitos de comedimento e discrição dela derivados se apresentassem para a civilização
moderna como verdades irrefutáveis.
Quando a subjetividade começa a ser produzida pelas instituições disciplinares,
uma assimetria começa a operar no corpo. A balança que equilibra as necessidades e os
anseios por liberdade, cuja contingência do corpo consiste na síntese expressando o
equilíbrio, começa a pender mais para um lado. O pólo liberdade torna-se defasado em
relação ao pólo necessidade. Os aparatos de poder trabalham o hiato que habita o ser no
plano da produção da subjetividade (a percepção lacunar de que comentávamos no primeiro
capítulo), apresentando como alternativa de preenchimento desse vazio pseudo-soluções
com promessas de realização plena, mas não fazem mais que alimentar desejos efêmeros
que se dissipam assim que novas necessidades passam a ser estimuladas por esse mesmo
aparelho de poder: é o caso da fetichização da mercadoria difundida pelas campanhas
publicitárias e midiáticas no âmbito do modo de reprodução capitalista. Alimentando nossa
carência subjetiva, os mecanismos de repressão e interdito implantam o desejo, o prazer, a
necessidade no íntimo do ser. Quando a percepção acionar a experiência rememorada,
buscando uma referência espaço-temporal, serão esses valores induzidos que estarão à
espreita. Como a subjetividade é o alimento da contingência, como nos fez crer o discurso
moderno, intervir na subjetividade é criar cada vez mais necessidades, e tão mais eficaz é
esse ardil quando ele vem sob a insígnia da liberdade, influenciando nossas escolhas. E,
convenhamos, uma escolha induzida não é propriamente uma escolha. No momento em
102
que a subjetividade passa a ser permeada por necessidades metamorfoseadas em
liberdade inicia-se um desequilíbrio radical.
Externalizamos, assim, qualidades internas induzidas como reflexo de um habitus
disciplinar. O recatamento nos hábitos alimentares, a compostura no modo de vestir, as
condutas de asseio com o corpo, o pudor no sexo, dentre outras expressões de contenção
dos instintos humanos são os limites invisíveis dos procedimentos panópticos que
introjetamos como meios de auto-preservação e auto-controle. Quando comemos, nos
vestimos ou praticamos sexo, o fazemos sem a certeza de uma autonomia deliberada. A
sexualidade, a estética, a diversão, a solidariedade, a fé, o trabalho e a própria liberdade, ou
ao menos a forma como esses valores, dentre tantos outros, comparecem ao nosso
discernimento, estariam comprometidos; foram todos retrabalhados de modo a reorientar os
símbolos e as representações, todos convergindo para o reino da necessidade, expressa na
forma atual do consumo e do valor de troca. Não por acaso, dilui-se a cidadania no acesso
ao consumo, o ser com o fato de ter. A vida passa a ser pautada pelo contínuo
recalcamento das pulsões e necessidades acompanhadas de sua momentânea satisfação
via aquisição de bens materiais. Tentamos preencher o hiato de nossas vidas com produtos
e mercadorias efêmeras, acreditando encontrar neles a felicidade talvez aqui mais uma
subjetividade induzida.
Em meio a uma natureza desumanizada o homem é cercado por necessidades
cada vez mais prementes, acarretando uma apropriação e uma limitação do sentido de
liberdade, posto que deslocada para a esfera do consumo vejamos o caso da cidadania,
essa expressão burguesa de liberdade: numa sociedade de consumo, como a que
vivenciamos, cidadão é aquele que detém poder de compra, a liberdade recalcada se
restringe à satisfação de necessidades efêmeras alimentadas pelo consumo. A necessidade
passa a ser cada vez mais produzida ou programada, e deixa de ter uma inerência
ontológica por seu desmedido grau de abstração, deslocando analogamente a liberdade do
seu sentido ontológico, ou antes, temos o deslocamento do sentido ontológico para um
sentido figurativo da necessidade e da liberdade em face de pseudo-legalidades. Se
podemos falar numa segunda natureza, permita-nos insinuar uma segunda necessidade (a
das mercadorias) que, em seu nculo dialético com a liberdade, vai provocar um radical
descompasso no corpo. Mesmo o trabalho, considerado a mais elementar relação do
homem com a natureza e consigo mesmo, fora apropriado pelos círculos do poder na forma
do capital.
50
O trabalho, enquanto relação concreta do homem com o mundo, transforma-se
50
O capital não é o poder em si mesmo, embora ele seja a manifestação mais expressiva de poder em toda a
história. Mas, enquanto modo de produção burguês moderno, ele é um dado conjuntural da realidade do poder,
como o foram em outros momentos os modos de produções antigo, asiático, eslavo, germânico, escravista e
feudal (Marx, 1975, p. 74, 75), e que em certos contextos ainda o são como é o caso de algumas comunidades
indígenas e outros povos tradicionais, para os quais as relações de poder estão postas sob outros parâmetros.
103
em trabalho abstrato. Ele é deslocado do âmbito privado-familiar para a esfera do público de
mercado (para o domínio do biopoder, como veremos adiante) transcendendo assim a
escala laboral do indivíduo. O trabalho enquanto valor subjetivo é igualmente apropriado: o
trabalho enobrece”, lembra o dito popular que o enuncia como uma das mais sublimes
manifestações do homem. Porém, com o trabalho abstrato perde-se a dimensão do
recíproco pertencimento com as coisas em derredor e do próprio trabalho como instrumento
da liberdade no âmbito da legalidade ética. O trabalho sem dúvida é um valor, mas, cada
vez mais um valor de troca.
Não foi por obra do acaso que o conjunto de saberes erigidos na modernidade
convergiram para os interesses do sistema capitalista. O mito fundador do capital recai no
ardil do corpo como propriedade de si e da iniciativa privada expressos na individualidade
que cada qual comporta. Com a expropriação dos meios de produção, o corpo se torna o
próprio bem de produção, o único bem restante ao trabalhador circunspecto em sua força de
trabalho, uma ferramenta fundamental empregada ao mesmo tempo no suprimento de suas
necessidades e no desenvolvimento capitalista. O aliciamento do corpo como bem de
acumulação remete à concepção marxiana de capital variável (Harvey, 2000, p. 142),
concernente ao consumo e ao uso (venda e compra) da força de trabalho extraída na forma
da mercadoria corpo-trabalhador. O desenvolvimento capitalista vem experimentando os
limites do corpo humano em sua capacidade de produzir trabalho. O corpo se torna um
instrumento meramente produtor/reprodutor/procriador (Daniel e Miccolis, 1983, p. 48).
Tornado uma coisa útil, “o corpo-utilitário, múltiplo em formas (homem, trabalhador, herói,
mulher, criança, velho, santa, sábio, puta, negro, deficiente...) surge como coleção de
‘diferenças’ fixas e determinadas ‘naturalmente’” (ibid., p. 48). O corpo vem sendo submetido
à alienação do valor resultante de sua força de trabalho, à regularidade das atividades, à
condição de mero apêndice das máquinas, à separação das competências mentais e
manuais, à vertigem e à efemeridade da fluidez e da flexibilidade, dentre outras formas de
condicionamentos. Tais procedimentos não surtiriam efeito sem o concurso de uma
reorientação massiva dos investimentos de poder que pudesse alçá-lo a um plano mais
geral de reprodução da vida.
Os mecanismos do poder passam a se ocupar da vida como um todo através de
sua vertente biopolítica: o biopoder. A fim de proporcionar um crescimento ordenado da
sociedade, o biopoder volta-se para processos mais gerais, de longa duração, que são
próprios do domínio da vida como o nascimento, a morte, a produção, as doenças, o meio
habitado. Ele vai intervir na reprodução da população, no que diz respeito à higiene, controle
de endemias, sanitarismo, alimentação, sexualidade, natalidade, seguridade social,
demografia (Progrebinschi, 2004, p. 196). Daí porque a disciplina será convertida em
regulamentação no âmbito do biopoder (Foucault, 1999, p. 294). Se a disciplina centrava-se
104
no corpo do indivíduo, a regulamentação vai incidir sobre a espécie humana (ibid., p. 289).
Do controle dos corpos dos indivíduos passamos para o controle como dispositivo do poder
orientado às massas. Do espaço privado estendemo-nos para o espaço público. A disciplina
está para o corpo como o biopoder está para a corporeidade dos corpos. Mas, de forma
alguma o advento da sociedade de controle pautada no ordenamento populacional significou
o fim da sociedade disciplinar. De modo algum essas tecnologias do poder são excludentes
entre si. “As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em
torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida” (Foucault, 2005, p.
131).
A passagem da disciplinarização dos corpos para a biopolítica das massas (que vai
caracterizar as sociedades de controle) exigiu uma padronização dos modos individual e
coletivo de vida, uma uniformização dos comportamentos; papel que coube ao poder
disciplinar realizar paulatinamente. “A disciplina é o modo de individualização das
multiplicidades e não algo que, a partir dos indivíduos trabalhados primeiro a título individual,
construiria em seguida” (Foucault, 2004, p. 14). O concurso do biopoder requereu o
engendramento de um meio, um campo de intervenções em que se pudesse exercer
domínio através de técnicas e saberes específicos. Um ambiente que permite a aplicação de
técnicas de poder a toda uma população ou a uma espécie, em vez de se limitar ao
adestramento de performances individuais. Engendrar-se-ia um meio de intervenções
coletivas que é, todavia, o fundo de todas os horizontes individuais, daí porque o biopoder
vai agir sobre a uniformização de um campo de relações múltiplas (tal como a corporeidade
dos corpos) convertendo-o em um ambiente controlado, de significações identitárias mais
fluídas e de ampla circulação, ou seja, num espaço estriado por excelência. “A transição
para a sociedade de controle envolve uma produção de subjetividade que não está fixada
em identidade, mas é híbrida e modulada. [...] É operário fora da fábrica, estudante fora da
escola, detento fora da prisão, insano fora do asilo tudo ao mesmo tempo” (Hardt e Negri,
2001, p. 353).
Isto não implica exatamente em estabelecer delimitações precisas e incisivas num
espaço, mas principalmente de garantir a circulação, intervir em seus pontos e fluxos de
maneira a anular os perigos e assegurar a regularidade. Com os enclousers e o
conseqüente deslocamento da população do campo para a cidade, e a ineficácia do
intercâmbio comercial ao longo dos séculos XVII e XVIII, a cidade é rearranjada como um
espaço de circulação, não somente dimensionada para as pessoas e mercadorias, mas
igualmente em termos jurídicos, administrativos e militares, assim como no que se refere às
idéias, vontades e ordens. O planejamento do Regent’s Park em Londres, a construção de
Washington D.C. pelo arquiteto L’Enfant, a reforma Haussmann em Paris e a construção de
Brasília pelo arquiteto Oscar Niemeyer são exemplos paradigmáticos de dupla finalidade
105
sobre os corpos: enquanto buscam facilitar a livre circulação das multidões, visam
desmobilizar e incapacitar os movimentos de grupos organizados. Os arruamentos com
esquinas distanciadas entre si obstacularizaram as aglomerações, e os cafés e pubs
invenções inglesas do século XVIII estrategicamente situados, suscitam muito mais a
passividade e a individualidade do que disposições políticas e revolucionárias. A liberdade
individual passa a pressupor a negação coletiva. “Juntos, individualismo e velocidade,
amortecem o corpo moderno; não permitem que ele se vincule” (Sennett, 1994, p. 265).
As questões de saúde passariam a ser vistas, cada vez mais, como
responsabilidade individual, embora remetessem ao conjunto da população. A preocupação
com o fisiológico na medicina vai depositar valorações sobre o indivíduo, evocando uma
física dos corpos que vai prescrever o funcionamento orgânico e consubstanciar um
conjunto de novos comportamentos: o doente é responsabilizado pelo acometimento da
doença e pela própria cura. Mais que isso, porém, o asseio com o corpo com a revolução
médica e sanitária se refletiria em projetos de limpeza urbana e no calçamento de ruas de
modo a evitar o acúmulo de excrementos. As ruas foram redesenhadas de maneira a tornar
eficiente a circulação. Daí as metáforas mecanicistas e organicistas a propósito do corpo,
atribuídas à organização do espaço, tal como o termo “circulação das vias” em deferência à
descoberta da circulação sanguínea por William Harvey. Sua descoberta em meados do
século XVII vai significar não somente novas perspectivas para a saúde pública, mas
também o redimensionamento do próprio ordenamento urbanístico. O sistema de válvulas
venosas tornara-se um modelo metafórico para o tráfego e a circulação.
Se a linguagem potencializa o encontro dos corpos, nada mais conveniente que
uma sistemática do poder intervenha sobre esse que é o principal meio de articulação e
comunicação interpessoal. “O domínio da linguagem garante e isola um novo poder,
‘burguês’, o poder de fazer a história fabricando as linguagens” (Certeau, 2003, p. 230).
Uniformizando sobremaneira a língua, tanto a filologia, como a literatura e a pedagogia
confirmariam a sua eficácia biopolítica. É nesse contexto que a centralização estatal,
seguida da constituição de uma língua nacional, vai se impor sobre uma multiplicidade de
culturas permitindo o controle mais eficiente das massas. Linguagem que tem por referência
a língua das elites, das classes mais abastadas, não por acaso os detentores do poder
estatal. Elias (1993, p. 117) constatou que muito do que no século XVII e XVIII “era a forma
característica da sociedade de corte tornou-se gradualmente a língua nacional francesa”.
Os dispositivos de poder vão engendrar não somente uma ngua padrão nacional,
mas vão infundir principalmente um discurso que se investe de um tom persuasivo. Produz-
se um vocabulário para dissuadir e regular ao invés de reprimir e proibir, porquanto que sua
eficácia o autorize. Não que a censura se imponha ao falar para que se expresse o menos
possível, mas que reproduza uma narrativa suficientemente prolixa a fim de silenciar os
106
discursos desviantes da normalidade. Daí porque Foucault (2005, p. 35) vai advertir sobre a
produção de um discurso sobre o sexo, fazer dele falar o quanto mais para alimentar uma
retórica de poder e saber, e não propriamente lançar mão da censura e do interdito. A
linguagem como ato de um discurso enuncia um estado de direito, uma moral que é a moral
das classes dominantes. O que no plano das idéias acata a uma lógica físico-matemática de
ordenamento do mundo, no plano discursivo segue uma retórica que enuncia a
regularidade, a ordem, o progresso, o desenvolvimento, a prosperidade, a promessa de
felicidade, a emancipação humana (às expensas da natureza): valores disseminados como
qualidades universais e irrevogáveis em garantia da eficácia econômica e de um
conservadorismo político. E como não se pensa sem que sobrevenha a palavra, o vimos,
o agir responderá aos apelos enunciativos de um eu pensante individual, redefinindo o
mundo conforme a sua imagem e semelhança, ou antes, segundo a sua narrativa.
A loquaz promessa de um mundo perfeito, um paraíso em vida correlativo ao
paraíso bíblico, isento de conflitos e contradições, destituído da imprevisibilidade e de
quaisquer valores desviantes e ameaçadores, repousa nos corações e mentes dos homens
e mulheres modernos com um diferencial: não seria preciso se conter em vida para alcançá-
lo num outro plano existencial, a ciência moderna se encarregaria de consumá-lo. Na
impossibilidade de torná-la factível de todo, pois a existência tem por princípio a contradição
na diferença, sendo o espaço em sua realidade fundamentalmente conflituoso, o indivíduo
(peça fundamental desse impasse) se contenta com pequenas ilhas, lugares inócuos
hermeticamente controlados e vigiados para inibir todo perigo à normalidade, todo evento
perturbador da ordem, como se tais iniciativas e sua presença em si não constituíssem
contradições. Assim, difundem-se os condomínios residenciais da pequena burguesia
(paraísos da indiferença e da auto-segregação espacial); as reservas ecológicas (paraísos
de uma débil representação de natureza, uma natureza confinada e controlada); e os
shoppings centers (paraísos do consumo e da efemeridade da mercadoria), estes rivalizam
com os tradicionais templos ascéticos consagrando-se como santuários simbólicos sobre os
quais os fiéis consumidores depositam tributos esperando como dádiva uma vida plena de
gozo. Vida que, a despeito da pretensa plenitude, se recalca por fugazes necessidades se
limitando a satisfazê-las pela via do consumo, se encerrando por barreiras indevassáveis
supostamente livres dos conflitos externos como feudos isolando a comuna de vassalos das
hordas bárbaras dos idos medievais.
A preocupação com a organização da vida vai ser levada às últimas conseqüências
com a extrapolação das tecnologias de regulamentação por meio da manipulação biológica
e da micro-tecnologia. O corpo passa a ser submetido a uma intensa exposição a rus
incontroláveis, incidência de doenças degenerativas, produtos transgênicos, agrotóxicos,
esteróides, anabolizantes, nanotecnologias, xenotransplantes, tecnoimplantes, “clonagens”,
107
experiências genéticas, narcóticos, psicotrópicos, armas químicas e biológicas, cibernética...
A dor, a energia, a força, a ansiedade e até o apetite sexual tornam-se manipuláveis pelas
drogas. Concorre para tanto um sistema tecnológico orientado para as partes subcutâneas,
voltado para a “intra-estrutura” ou para uma “endocolonização”,
51
como alardeou Virilio
(1996, p. 91, 100, 101). Os investimentos do poder se voltam para as partes mais ínfimas do
corpo, isso, contudo, não exclui seus reflexos numa escala mais ampla que se verificam na
saúde alimentar, na medicina, nos processos produtivos, nas guerras, no controle
tecnológico e ideológico. A dinâmica do poder varia, portanto, da micropolítica à biopolítica.
Mas o corpo não se esgota em passividade e fatalismos. Cada série de investidas
dos mecanismos de poder sobre os corpos corresponde a um conjunto de novos gestos e
comportamentos como que em sinal de recusa dessas determinações seguido de novas
ofensivas do poder a fim de adestrá-los para se obter um rendimento ótimo. A preservação
da integridade e da plenitude do corpo no processo de circulação do capital variável (o
emprego do corpo como força de trabalho) é o domínio em que se acionam as contestações
e os levantes subversivos. A externalização de um conjunto de subjetividades, isto é, sua
contingência interna materializada nas práticas corporais, é a contrapartida para resgatar as
rédeas dos processos de produção do eu e tudo o mais que lhe é extensivo, de modo a
amalgamá-los em suas variáveis num mesmo momento de realização. Neste sentido, o
corpo é extensivo ao outro, coaduna com eles um espaço comum, uma corporeidade dos
corpos. “A opacidade do corpo em movimento, gesticulando, andando, gozando, é que
organiza indefinidamente um aqui em relação a um alhures, uma ‘familiaridade’ em
confronto com uma ‘estranheza’” (Certeau, 2003, p. 217). A corporeidade enquanto relação
de alteridade é, por conseguinte, aberta a possibilidades criadoras de consciência e de ação
política. Sua capacidade criativa evoca o germe da novidade e da resistência.
Porém, antes que continuemos a especular sobre as possibilidades de resistência
no escopo de um estudo geográfico sobre o corpo, exatamente esse o ponto para o qual
converge a nossa inquietação, outra questão sem a qual toda essa discussão não avançaria
se impõe: a de saber como outras culturas (sobretudo indígenas) lidam com circunstâncias
geradas por uma desmedida esfera de poder. A averiguação sobre as possibilidades e
alternativas de resistência não se mostrará patente, portanto, sem que ousemos um breve
exame de como outras culturas entendem o corpo e alguns conceitos que dele derivam.
Interessante é a impressão de um hiato avassalador que se apresenta sempre que um
exame sobre a cultura moderna não leva em consideração o que ela excluiu de seu
51
“Depois da superestrutura, e da infra-estrutura ontem, pode-se prever a partir de então um terceiro termo, a
intra-estrutura, que a recente miniaturização nano-tecnológica favorece agora a intrusão fisiológica, ou mesmo
a inseminação do ser vivo das biotecnologias. [...] A nova perspectiva é que o corpo pode ser colonizado pelos
organismos sintéticos miniaturizados. [...] o se trata de enviar as tecnologias para outros planetas, mas de
fazê-las aterrissar no nosso corpo!” (Virilio, 1996, p. 91, 100, 101).
108
discurso, o que ela deixou de interrogar ou imaginou haver respondido, por residir
justamente aí elementos que permitem melhor analisá-la.
109
CAPÍTULO III
O CORPO NA (CON)TRADIÇÃO INDÍGENA
Não são as semelhanças, mas sim
as diferenças, que se assemelham.
Lévi-Strauss
O antropólogo Anthony Seeger (1980, p. 13, 14) inicia seu livro, Os Índios e Nós:
estudos sobre sociedades tribais brasileiras, recorrendo à metáfora de um espelho refletindo
simetrias distorcidas do corpo, desafiando-nos a ponderar diferentes possibilidades do
corpo, supondo pois que outras culturas detêm categorias próprias para o entendimento do
seu próprio arranjo corporal. Cumpre-nos apreendermos de um estudo comparativo entre
culturas diversas que outras sociedades não são melhores ou piores que as sociedades
modernas, pois toda cultura comporta contradições intrínsecas à sua realidade, e um
exemplo disso é que muitas delas admitem diferentemente a oposição cultura e natureza,
mas principalmente que teríamos algo a aprender com outras matrizes de racionalidades,
principalmente no que se refere ao modo como a resignificação do corpo orienta novas
atitudes e comportamentos em face de crises e situações adversas. Assim, o corpo, seus
limites e possibilidades, se enriquecem com o reconhecimento de outras concepções de
corpo além da que o cientificismo moderno lhes outorgou. Nesse sentido, o paradigma
ocidental deixa de ser a acepção universal e se torna apenas mais uma dentre tantas outras
perspectivas de mundo.
Confrontadas com as sociedades modernas, as sociedades indígenas nos passam
a idéia de consistirem num mosaico de culturas heterogêneas em presença de uma única e
homogênea cultura a lhes envolver. Por isso mesmo algumas de nossas considerações
teriam um rebatimento específico para cada caso, o que mostra como seria impraticável
qualquer tentativa de elencar situações particulares, motivo pelo qual preferimos fixar
aspectos genéricos que se aplicam a traços étnicos-culturais peculiares cuja resposta
dependerá de fatores contingentes que não se pode predizer, pois dependem de um corpo
de valores e representações próprios de cada grupo. Tomaremos aqui aspectos de ordem
mítica, histórica, geográfica e tecnológica que dizem respeito ao modo como uma
110
determinada etnia se reproduz, mas que em todo caso podem servir de parâmetros para
interpretar outra sem querer com isso dizer que se encerraria como tal de modo irrestrito.
Para as culturas indígenas o saber contido num fazer não supõe necessariamente
falar sobre esse fazer (Certeau, 2003, p. 124). Dificilmente poder-se-ia encontrar dentre os
conhecimentos míticos indígenas qualquer menção conceitual sobre o corpo. Em outras
palavras, se esses povos não privilegiam a experiência intelectual em prejuízo da
experiência empírica-sensível, logo, não constroem conceitos isolados de suas práticas.
Seus saberes estão impregnados em suas práticas e rituais cotidianos, não requerendo,
portanto, um discurso para legitimá-los, mas tão somente pô-los em prática. Esses saberes
“são mais propriamente perceptos do que conceitos, sendo o xamã o mediador a tornar
sensíveis os conceitos ou inteligíveis as intuições” (Viveiros de Castro, 2002, p. 351). Assim,
o ato de fazer implica um saber que não necessariamente seja suscetível de uma explicação
à parte, pois já está subentendido no próprio ato. Vejamos o que Lévi-Strauss (1997, p. 249)
tem a nos dizer a respeito:
O pensamento selvagem não distingue o momento da observação e o da interpretação,
assim como não registramos logo, ao observá-los, os sinais emitidos por um interlocutor
para em seguida procurar compreendê-los: ele fala, e a emissão sensível traz com ela sua
significação. É que a linguagem articulada se decompõe em elementos dos quais cada um
não é um signo mas o meio de um signo: unidade distintiva que não poderia ser substituída
por uma outra sem que mudasse a significação, e que pode ser ela mesma desprovida dos
atributos dessa significação, a qual ela exprime unindo-se ou se opondo a outras unidades.
Portanto, quando nos referimos ao corpo, ao espaço e ao tempo das sociedades
nativas não queremos dizer que sejam reconhecidos por esses povos de modo
constitutivamente teórico. O corpo indígena é transpassado por relações tão complexas
quanto as que os recortes epistêmicos demarcam. De outro modo, na maior parte dos casos
relatados pelas etnografias, esses conceitos estão implícitos em suas práticas cotidianas e
rituais. É nesse sentido que Lévi-Strauss (ibid., p. 30) assevera que os mitos e os ritos das
sociedades indígenas não são menos importantes que qualquer saber científico, ou antes,
são tão genuínos quanto. Também Clastres (1978, p. 16) atesta que “os povos sem escrita
não são então menos adultos que as sociedades letradas. Sua história é tão profunda
quanto a nossa e, a não ser por racismo, não por que julgá-los incapaz de refletirem a
sua própria experiência e de dar a seus problemas as soluções apropriadas”.
A propósito, vale destacar que não temos qualquer pretensão de criar conceitos e
categorias para os povos indígenas. Esse empreendimento ainda está por ser realizado
pelos próprios. Ou talvez esses povos prescindam tal edifício. Suas interpretações de
mundo cujas contradições entre o fazer e o pensar, entre corpo e alma, natureza e cultura
estão complexamente dispostos. Não à maneira de uma incomensurável bifurcação, mas
111
imbricados entre si, inconciliável, portanto, com a formulação de conceitos abstratos
isolados do fazer.
Diferente do corpo ocidental, o corpo indígena não perpassa um tempo
historicizado, uma cronológica que o compusesse de qualidades e disjunções gradativas e
inexoráveis. A maneira de concebê-lo é, de outro modo, a mesma dos antepassados. Não
registros de um processo constitutivo do corpo como ocorrera de modo progressivo com
a civilização ocidental. Não se verifica um saber circunscrito localmente, um aparato
institucional que o valide ou um momento determinado para tal. Daí o porquê das
sociedades indígenas serem chamadas de “sociedades sem história” em diversas fontes
literárias. Mas, talvez fosse mais apropriado designá-las por sociedades sem historicidade,
como quer Gil (1988, p. 78). A história indígena está despojada de qualquer preceito moral
de um tempo como progresso, no sentido mais recorrente que nos remete essa palavra
segundo a qual cada etapa estaria associada a um novo e atual ideal de desenvolvimento. A
manutenção de uma regularidade social, de costumes e modos de vida por incontáveis
gerações vai indicar a reincidência de um tempo e de um espaço. O irônico é que essa
presumível regularidade se mantém às custas de eventuais transgressões com a ordem
social predominante.
3.1. O corpo para além do significado simbólico
Em grande parte das sociedades indígenas o corpo ocupa um lugar de destaque no
que se refere à organização social e esse dado não é acidental. A fabricação, decoração,
transformação e destruição dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a
vida cerimonial, a organização social e as concepções de natureza, cultura, tempo e espaço.
Uma ordenação da vida social a partir de uma linguagem do corpo que muitas vezes se
desdobra em uma linguagem de tempo e espaço aciona o corpo segundo manifestações
bastante recorrentes como os resguardos por doença ou morte, as reclusões e o luto.
Essa centralidade no corpo não supõe uma depreciação de outras dimensões da
existência ou que elas seriam menos importantes que a evidência corpórea, mas insinuam
que mesmo tais relações estariam imbricadas no corpo. As sociedades Jê, Xinguanas e
Tukano são muito diferentes entre si; diferenças verificadas na organização social, na
relação com a natureza e nas distinções cosmológicas. A concepção de corpo, em cada
uma delas é, por isso mesmo, distinta. Considerar acepções de corpo contrastantes supõe,
analogamente, ter em conta concepções de tempo e espaço diferenciadas. Todavia, o corpo
é o lócus das transformações sobre as quais recaem mudanças de hábitos alimentares,
pinturas, ornamentos corporais. A produção do corpo dos adolescentes na reclusão
pubertária, por exemplo, rito comum entre muitos grupos indígenas, envolve um elaborado
112
aproveitamento do corpo com componentes eméticos, escarificações, restrições sexuais e
alimentares. Assim, os meninos que estariam prestes a se transformarem em homens
(serem aceitos socialmente como tal) devem ter os lábios e orelhas perfurados. Quando tal
trabalho se completa o jovem está apto a sintetizar os ideais comunitários reforçando a
coletividade e a complementaridade com ela.
Nos rituais de passagem o corpo compreende, de acordo com Clastres (1990, p.
125), uma superfície de escrita” anunciando um novo status do índio escarificado por meio
do seu sofrimento. Clastres explica que o corpo é o ponto de encontro do ethos tribal porque
“o corpo mediatiza a aquisição de um saber, e esse saber é inscrito no corpo” (ibid. p. 126).
Assim o corpo escarificado constitui uma memória viva, uma “lei inscrita sobre o corpo” (ibid.
p. 131). Os ritos de reclusão são sempre acompanhados por mudanças substantivas do
corpo (Viveiros de Castro, 1987, p. 35). São três os momentos sociais do ciclo vital indígena
elencados por Viveiros de Castro (ibid., p. 33), todos marcados por ritos característicos: a
concepção da vida, com a construção do corpo da criança no ventre da mãe e a couvade
pelo homem; a capacidade de reproduzí-la, com a maturidade sexual advinda da reclusão
pubertária; e o fim da vida, com os cerimoniais de reclusão mediante a iminência da morte.
“O corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende
sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da
natureza do ser humano” (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979, p. 4).
Nos anos 1970, a abordagem etnológica acerca dos significados do corpo nas
sociedades indígenas detinha-se principalmente sobre os aspectos da ornamentação
corporal, de rituais diversos e de seus significados simbólicos: ornamentos labiais e objetos
de decoração de vários tipos e tamanhos inseridos nos lombos das orelhas ou no nariz,
ornamentos penianos de vários tipos e dimensões, escarificações, pinturas e tatuagens. O
corpo consiste então numa “matriz de símbolos e um objeto de pensamento” discorreria
Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979, p. 11), dentre tantos outros etnólogos que se
enveredaram nesse debate. A ênfase do corpo por meio das ornamentações é sem dúvida
um importante indicativo simbólico para a compreensão de valores sociais significativos para
a comparação entre culturas distintas. Os rituais indígenas são, de mesma sorte, signos que
intervêm notadamente sobre suas representações de mundo. Nesse sentido, o corpo é
entrecortado por um duplo horizonte: ao passo em que é tomado como matriz de
significados sociais, é também objeto de significações sociais. Para Mary Douglas (1970, p.
65) um constante diálogo entre o corpo social e o corpo físico. Há uma troca contínua de
significados entre os dois tipos de experiências corporais de modo que cada um reforce as
categorias do outro. Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo um suporte para as
estruturas sociais e um reflexo da sociedade. O momento ritual é, de acordo com Douglas
(ibid. p. 70), o momento de valorização do corpo, um momento espontâneo que marca a
113
relação entre sociedade e indivíduo: a consciência coletiva do corpo social definindo as
possibilidades do corpo pessoal. O corpo e seus signos são, portanto, referentes
fundamentais para as culturas indígenas e este dado pode nos fornecer algumas pistas de
certas configurações simbólicas. Ou, mais propriamente, ele é a expressão objetiva do
social. O plano social de fato produz o corpo, e não simplesmente deposita seus efeitos
sobre ele. Mas, o corpo não é tido por simples suporte de identidades e papéis sociais, mas
sim como instrumento que articula significações simbólicas, sociais e cosmológicas ao
passo que é reflexo dessas construções.
Hoje, contudo, essa discussão avançou e não é mais a representação simbólica do
corpo por meio do adornamento a sua tônica, embora ela seja parte significativa para um
difuso sentido de corpo. As ornamentações corporais não apenas simbolizam capacidades
sensíveis, mas constituem a própria faculdade sensível. “As mudanças corporais não podem
ser consideradas nem como índices, nem como símbolos, das mudanças de identidade
social. Para os Yawalapíti [no Alto-Xingu], transformações do corpo e da posição social são
uma e a mesma coisa” (Viveiros de Castro, 1987, p. 32). Esse corpo de que estamos
falando não é um simples referente simbólico para o entendimento do mundo. Ele é o
próprio mundo, se entrelaça e se confunde com seus devires, na medida que transcende
suas limitações fisiológicas alçado para um campo de relações; pois em todo caso o corpo é
(no) espaço. O corpo é múltiplo por não estar restrito a uma lei geral (física), a uma única
percepção de natureza. Assim, tudo o mais que lhe é coextensivo é igualmente plural: a
natureza, o espaço, o tempo...
O corpo em si não constitui uma unidade como se não houvesse contradições nas
sociedades indígenas, pelo contrário, ele é fragmentado com uma simbólica que atribui
valores sociais a certas partes ou órgãos do corpo. Daí as relações estarem agrupadas
segundo um duplo aspecto: uma coerência que lhe é interna e uma capacidade de
extensão, externa ao corpo. Uma febre, por exemplo, pode ser considerada mais grave que
um corte superficial na pele. A primeira é atribuída à feitiçaria ou à influência dos espíritos e
dos mortos, ambos repercutindo em desestruturação da regularidade social, provocando,
portanto, grande comoção na comunidade e familiares, de sorte que a cura ou a morte do
doente implique em restabelecimento da vida costumeira; o segundo remete a relações de
menor gravidade, pois não perpassa um fundamento mítico-religioso, se tratando muito mais
de um evento de ordem individual, sendo, portanto, aceito com mais naturalidade, de onde
se depreende traços distintivos entre o individual e o social. Pollock (1996, p. 333) vai dizer
que a doença é uma experiência social e não um fato restrito ao indivíduo. Uma doença é
para o saber indígena a evidência de precárias condições de vida, assim como uma pessoa
saudável reflete boas condições e prosperidade. O corpo é o lócus privilegiado pelas
sociedades indígenas, como arena ou ponto de convergência destas oposições. Ele é o
114
elemento pelo qual se pode criar uma zona de escape capaz de totalizar uma visão
abrangente de mundo sob condições histórico-geográficas específicas em que se possa
valorizar a dimensão humana.
Michael Lambek (1998, p. 103) destaca que os etnógrafos que tematizam o
dualismo corpo e alma têm se equivocado ao promoverem uma simples inversão de
sentidos confrontando o anacronismo característico do pensamento moderno com saberes
cosmológicos de outras culturas, assumindo previamente, sem uma investigação mais
detida, que no pensamento indígena não haveria tais ambigüidades. Convém, contudo,
sermos prudentes para com as contradições nativas. Há, de fato, entre as sociedades
indígenas distinções flagrantes entre corpo e alma, bem como entre natureza e cultura, mas
tais ambiguidades não resultam numa antinomia tão incisiva quanto no pensamento
moderno. O que difere o dualismo indígena do dualismo moderno é que no primeiro caso
tais fragmentos são sempre intercambiáveis entre si. Na prática cotidiana essas dissensões
são superadas. Justamente por se diferenciarem é que se complementam. Elas se
complexificam por seus termos estarem em constante metamoforse e por sofrerem
implicações mútuas entre si. Assim, embora natureza e cultura, corpo e alma, se distinguam
num mesmo plano de relações, elas todavia se confundem entre si por complementaridade
diferenciais.
No pensamento melanésio, ressalta Michel Panoff (1998, p. 41), a alma não se
encerra numa substância humana interna, assim como o corpo não consiste num
componente material por excelência. É por demais estranho para o nativo melanésio admitir
uma alma em oposição ao corpo. Nas sociedades ameríndias, sobretudo amazônicas, o
espírito testemunha uma constante fabricação do corpo no curso de uma vida. Este possue,
pois, sua medida de espírito e aquele sua porção corpórea. Nesse sentido, a alma do corpo
consiste numa pessoa dentro da pessoa, o que levou Pollock (1996, p. 320) a preferir o
emprego da noção de pessoa entendendo que ela compreende tanto o corpo quanto a alma,
impedindo assim privilegiar um enfoque às expensas do outro. Atento a essas diferenças,
muito embora não estivesse se referindo ao caso indígena em específico, Maffesoli (1998, p.
107) vai distinguir indivíduo de pessoa: o primeiro “possui uma identidade precisa, faz sua
própria história e participa, pelo contato com outros indivíduos, da história geral”; enquanto o
segundo “tem identificações múltiplas no âmbito de uma teatralidade global”.
Em determinadas culturas, sobretudo indígenas, as faculdades sensíveis estão
intrinsecamente associadas às capacidades intelectuais, de modo que as distinções entre
essas duas emanações perceptivas são dificilmente identificadas. Em muitos casos, sequer
esses grupos os dispõem como componentes do seu universo de significados. Diferente das
sociedades modernas, o sentir não está completamente dissociado do pensar. Decorre,
pois, um sentido de experiência sensível que ao mesmo tempo compreende uma
115
experiência intelectual. Para Leenhardt (1979, p. 66, 67), o entendimento de mundo
indígena não parte de uma representação do pensamento, mas de características e práticas
próprias do corpo.
Alguns grupos setentrionais como os Suyá, os Timbira orientais, os Apinayé e
os Kayapó do norte, atribuem a capacidade de construir saberes à audição e à fala. O termo
Ku-mba, na língua Jê, designa não somente ouvir, mas igualmente compreender e saber
(Seeger, 1980, p. 46). Esses grupos consideram a audição e a fala faculdades
eminentemente sociais definidoras dos homens, mulheres e crianças. Daí inserirem nos
lombos das orelhas e nos lábios inferiores discos ornamentais, acreditando assim
acentuarem suas capacidades auditivas. A alteração dos lábios pode estar associada à
importância do pronunciamento da fala. Predominantemente vocal, a música Suyá tem
como instrumentos vários tipos de chocalhos e algumas flautas (adotadas por ocasião dos
recentes contatos com outros índios do Alto-Xingu). “Os homens cantam as suas canções
individuais diferentes ao mesmo tempo e em ritmo uníssono marcado pela batida do e
pelo chocalho” (ibid., p. 48). Aqui a música é manifestação do corpo, pressupõe expressões
corporais. Seu ritmo é marcado pelo gestuário do corpo. Enquanto a música sinfônica e a
monódica cristã, representantes na música erudita ocidental da cisão corpo/mente, é um
convite ao devaneio e à transcendência do corpo.
Erich Scheurmann (1997, p. 87, 88) recolheu um curioso relato de um chefe
indígena chamado Tuiávii da tribo Tiavéa, nas ilhas polinésias, que faz menção à sua
percepção do homem branco europeu (Papalagui, na língua Tiavéa). O chefe Tuiávii refuta
as “idéias separadas do corpo” do estrangeiro branco qualificando-as como “a grave doença
que é pensar”, ao passo que identifica um saber inscrito no corpo de seus pares samoanos,
admitindo mesmo um ato inteligente reconhecer cada traço do corpo, cada gesto, como um
modo próprio de saber. E continua:
O Papalagui pensa tanto que para ele pensar se tornou costume, necessidade, até
obrigação, coação. [...] É difícil para ele não pensar, é difícil viver com todas as partes do
corpo ao mesmo tempo. É comum ele viver com a cabeça enquanto todos os outros
sentidos dormem profundamente. [...] uma espécie de embriaguez nos seus próprios
pensamentos. [...] O Papalagui quase sempre vive um combate perpétuo entre seus
sentimentos e seu espírito; ele é um homem dividido em dois pedaços. [...] O Papalagui, por
sua maneira de viver, nos prova que pensar sem parar é doença grave que muito diminui o
valor do homem (ibid., p. 87, 88, 92).
Entre os índios Kaxinauá, na Amazônia, vai tratar McCallum (1996, p. 357), o
conhecimento é fixado no corpo através da ingestão de substâncias como alimentos e
líquidos. Tal prática é tão importante para a produção corporal quanto as tatuagens e
escarificações que eles costumam usar. Os Kaxinauá também atribuem o conhecimento a
várias partes do corpo: manusear um arco supõe uma sagacidade nos braços e mãos,
116
enxergar uma caça requer uma capacidade intelectual dos olhos, e assim por diante. Para
as comunidades indígenas da Amazônia a inteligência está sempre associada à capacidade
de caçar.
Para os Wari’ (grupo de língua txapakura na Amazônia Meridional) “o aprendizado
vem da experiência ligada ao corpo” (Vilaça, 2000, p. 68) por meio, principalmente, do
comensalismo (partilhar alimentos, comer junto) e da troca de fluídos corporais (sêmen,
suor, sangue, carne humana). A circulação do sangue está associada à performance das
pessoas, ao passo que aumenta a inteligência, sendo, pois, o coração a fonte de todo o
conhecimento. Toda medicina Wari’ está baseada na circulação sanguínea estimulada
através de massagens e ingestão de bebidas.
A habilidade manual expressa nas ornamentações evocam um sentido de
conhecimento e reflexão entre o povo Piro, habitantes do rio Bajo Urubamba, na Amazônia
peruana. Conforme salienta Gow (1999, p. 307), “devido a seu nshinikanchi [inteligência], as
mulheres idosas conquistam o gimatkalchi, o ‘conhecimento’ a respeito dos padrões, que
lhes permitem produzir a beleza. A beleza é o produto da boa arte manual, que é produto de
conhecimento, que é produto da reflexão, que é a definição Piro de sua condição de
humanidade”. A construção de conhecimentos a partir do universo de significações Piro,
derivado do seu sentido de natureza e da sua condição humana, se verifica pela reprodução
de padrões de pele de uma jaguatirica ou de uma cobra, do mosqueado de um peixe ou das
marcas na superfície de uma folha na decoração de cerâmicas, tecidos e do próprio corpo.
Um jogo dialético entre superfícies decoradas com o conteúdo oculto do objeto recoberto.
Na pintura corporal, a superfície recoberta de padrões temáticos de peles de animais ou
texturas vegetais é a pele dos Piro em momentos ritualísticos, enfatizando a pele como
continente de um conteúdo. Aqui o ser humano é afirmado entre a superfície do continente e
seu conteúdo oculto desde a sua separação da placenta no nascimento (ibid., p. 309, 311).
A contradição indígena que diferencia corpo e alma, natureza e cultura, continente
e conteúdo, termos que ora são indistinguíveis entre si, ora estão explicitados como entes
conflitantes, estão confusamente convergindo para o corpo, porém, um sentido de corpo que
não pode ser compreendido fora de um campo relacional. Esses termos são, todavia,
indissociáveis. Se eles se diferenciam são para relacionarem-se e não para se anularem
entre si, como ocorre de maneira incomensurável na contradição moderna. É nesse sentido
que podemos dizer que, no pensamento indígena, a identidade se funda na diferença. Não
queremos dizer com isso que na civilização ocidental a diferença não seja tributária da
identidade, mas sim que a concepção de identidade moderna foi erigida com base num ego
cartesiano e numa consciência transcendental, embora as evidências práticas a invalidasse
como tal. E como na tradição indígena não há por assim dizer uma separação irrestrita entre
o fazer e o pensar, entre a prática e o conceito, a identidade não ficara em suspenso em
117
presença da alteridade. A diferença é, pois, o fundamento para a construção de uma
complexa concepção de corpo, um corpo que transcende o plano do indivíduo rumo a um
sentido de humanidade sem paralelo no pensamento ocidental.
3.2. A corporeidade indígena: a produção do corpo como um complexo relacional
Na tradição indígena o corpo transpassa múltiplos horizontes da vida tribal não se
encerrando, pois, como um mero receptáculo individual e fisiológico para o qual a sociedade
poderia incidir com o peso de suas normas e convenções. O indivíduo indígena está
atravessado e envolto por uma série de relações que o torna antes um nexo entre tantas
variáveis do que um ente isolado e auto-suficiente. As palavras, as imagens, as instituições,
os comportamentos, os grupos e identidades cerimoniais, as teorias sobre a alma, a relação
com a natureza se associam na construção do corpo tal como este é entendido
diferentemente pelas diferentes culturas indígenas. O corpo é assim tomado como
constituinte de uma relação complementar com a realidade, de modo que se pode associar
os casos de doença não propriamente ao doente, mas também a todos os outros objetos do
qual o doente tenha se utilizado. Daí a inconsistência da noção de indivíduo entre esses
povos tal como as sociedades modernas a concebem.
Maurice Leenhardt (1979, p. 164) relata uma conversa entre ele e um velho
indígena Canaque, na Melanésia, a propósito do impacto que a civilização européia infligira
à sua cultura. Leenhardt então sugeria ao ancião que os europeus teriam introduzido a
noção de "espírito" à maneira canaque de pensar. Seu interlocutor contradizendo-o afirmara
que “sempre agiram de acordo com o espírito. O que você nos trouxe é o corpo” (ibid., 164).
Não que inexistisse uma representação de corpo, conclui Leenhardt, mas o que não havia
para os Canaque era o sentido de corpo individualizado dissociado de outros elementos; e
nem mesmo um termo específico para distinguí-lo de outros objetos com os quais eles
mantinham relações. A noção de pessoa individualizada entre as comunidades indígenas,
se pudermos tomar o exemplo Canaque, é diluída entre outras pessoas e coisas formando
um domínio sócio-mítico unitário. O corpo, nos termos Canaque, é atribuído a tudo que
agencia a vida. A intervenção européia, contudo, promovera a discriminação entre uma
circunscrição do corpo e o mundo mítico.
Não significa com isso admitir uma radical ausência de indiduos nas sociedades
indígenas, mas sim que o indivíduo não perdera seu vínculo comunitário, pois está ligado a
todos os outros membros por uma difusa rede de relações e funções sempre em deferência
ao grupo, de onde se impõem os grupos de parentesco
52
a que sobrevém uma unidade de
52
“Parentesco é a palavra que damos na nossa tradição para a relacionalidade fundamental, digamos assim, a
base fundamental da relacionalidade humana. É do parentesco que saem todas as nossas metáforas da relação:
118
sobrevivência primordial e indispensável. Se ele subsiste no nível mais elementar, em que
se depreende o sentido de humanidade, não estaria ele, contudo, distanciado de sua
sociedade. Aliás, é no plano cultural, o plano que atribui a todos os seres um caráter
humano, que todos os indivíduos estariam reunidos.
Na América Andina, por ocasião das invasões espanholas, os nativos confundiam
os atacantes espanhóis com suas montarias identificando-os como um único ser. Quão
perplexo ficavam quando abatiam o cavalo e o cavaleiro permanecia ainda combativo. Os
europeus, por sua vez, se deparariam com novas formas de emprego do corpo na guerra ou
no culto aos deuses, por parte dos nativos. Tratar-se-ia de uma concepção de corpo que
extrapola um corpo subsumido às leis físicas delimitadoras de um corpo ao substrato
fisiológico típico da concepção moderna. Lévi-Strauss (1988b, p. 381) descreve que
nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis
enviavam comissões de investigação para indagar se os índios possuam ou não alma,
estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificarem através
de uma vigilância prolongada se o cadáver daqueles estava ou não sujeito a putrefação.
Para os europeus o corpo era uma evidência, restava descobrir se os índios de fato
possuíam uma alma; para os nativos a alma é que era evidente, importava descobrir que
tipo de corpo tinham os espanhóis (Viveiros de Castro, 2002, p. 381).
Certas sociedades indígenas não detêm uma representação determinada das
coisas, de maneira objetivada e nominada. Os Tapirapé, por exemplo, não possuem
nomenclatura para as cores, não distinguem a coisa do signo. Mesmo as pessoas recebem
nominações momentâneas e circunstanciais no curso de suas vidas. São, pois,
historicamente diferenciadas no decorrer das relações, longe de um nome que as
individualize e encerre suas qualidades. O nome não suscita a auto-referência e a auto-
suficiência, ele não é pronunciado por seu portador: “nomear é externalizar, separar (d)o
sujeito” (Viveiros de Castro, 2002, p. 372). É nesses termos que Mauss (1974, p. 219, 220)
detalha o processo de nomeação adotado entre os índios Kwakiutl no noroeste norte-
americano conforme o curso de suas vidas:
é notável que, entre os Kwakiutl (bem como entre seus parentes mais próximos, os Heiltsuk,
os Bellacoola, etc.), cada momento da vida dos indivíduos seja nomeado, seja personificado
com um novo nome, um novo título, para o menor, para o adolescente, para o adulto (macho
ou mea), que possui um nome como guerreiro (exceto, é claro, a mulher), como príncipe
ou princesa, como chefe (homem ou mulher) oferecem e para o cerimonial particular
correspondente, um nome para a sua idade de recolhimento (nome da sociedade de focas –
sociedade dos que, recolhidos, não têm êxtases, nem possessões, nem
responsabilidades, nem proveitos, a não ser lembranças do passado); são ainda nomeadas:
sua “sociedade secreta”, em que eles são protagonistas (ursos freqüentemente as
a paternidade, a fraternidade, a terra-mãe, o rei-pai, o patrão, o padrinho, o padroeiro, Adão, o genoma” (Viveiros
de Castro, 1987, p. 7).
119
mulheres, que são representadas por seus maridos ou filhos –, lobos, Hamatsé (canibais),
etc.). E são nomeadas, finalmente, a casa do chefe (com seu teto, seus postes, suas portas,
sua decoração, suas traves, aberturas, serpente com dupla cabeça e dupla face), a canoa
para as cerimônias e os cães. Acrescente-se nesta lista (Ethnology of the Kwakiutl) que os
pratos, os talheres, os cobres tudo apresenta o brasão, tudo é animado e faz parte da
pessoa do proprietário e da família, da res do clã.
O corpo no pensamento indígena é por princípio instável e variável, ele está em
constante transformação. O termo kamo para os Canaque designa, segundo Leenhardt
(1979, p. 24), o eu vivente. Ele indica a vida. Os animais, vegetais e coisas viventes podem
ser identificados como kamo se as circunstâncias assim permitirem. O kamo é submetido a
uma série de incessantes metamorfoses em sua forma. Assim o corpo torna-se acrescido de
uma multiplicidade de enxertos e acréscimos advindos das experiências no curso de uma
vida. Entretanto, aquele que subverte determinadas condutas morais e éticas não pode ser
considerado kamo. Portanto, tudo depende do tipo de relação estabelecida.
Para o pensamento Canaque, acrescenta Leenhardt (ibid., p. 16), as substâncias
que circulam pelo corpo não lhe são exclusivas ou privativas, pois são de certo modo
análogas ao metabolismo vegetal. Os órgãos recebem nomes de árvores, flores, frutas e
raízes. A correspondência com processos orgânicos, fisiológicos, reprodutivos e
instrumentais conferem às plantas, animais e artefatos uma analogia com o corpo. Mas,
trata-se, sobretudo, de uma analogia por participação recíproca com tudo o mais que
estabelecem trocas. Daí ser compreensível (levando-se em conta a aludida centralidade
do corpo entre as diversas culturas indígenas) o porquê de muitos grupos na Amazônia
queimarem todos os pertences de uma pessoa por ocasião de sua morte. Os caminhos por
onde ela costumava passar, os troncos em que sentava na mata, sua casa... tudo é
queimado. As casas dos parentes são removidas para outro local ou modificam-se suas
entradas, todos os procedimentos são tomados para que não reste lembranças capazes de
orientar o retorno dos mortos, pois reside o risco de impactar a ordem social. Estariam,
assim, se desfazendo de tudo que está associado ao morto, ou antes, do corpo relacionado
a tudo que lhe é coextensivo. Temos aqui um interessante quadro que reflete a inerência
entre corpo e espaço, ou seja, como a concepção de corpo influi na organização do espaço
nas comunidades indígenas.
Nas sociedades indígenas o corpo consiste num objeto efêmero. O corpo é
constantemente submetido a processos intencionais e objetivos de transformações. A
fabricação do corpo está associada à sua metamorfose, ou seja, a sua capacidade de
transformação. “A metamorfose reintroduz o excesso e a imprevisibilidade na ordem
humana; transforma os homens em animais ou espíritos. Ela é concebida como uma
modificação de essência, que se manifesta desde o vel da gestualidade até, no limite, o
nível da mudança de forma corporal” (Viveiros de Castro, 1987, p. 32). A produção dos
120
corpos é fundamentalmente relacional. Ela está sempre atravessada por relações,
sobretudo identitárias. A relação é, pois, um horizonte dinâmico da realidade indígena. Se
ela muda o corpo inadvertidamente também se modifica.
O corpo é assim perpassado por eventos imbricados em sua incessante
transformação. A cada série de experiências ele pode assumir uma nova configuração.
Taylor (1996, p. 210, 211) acentua que duas formas de transformação do corpo nas
sociedades ameríndias. A primeira é por meio do aparentamento com animais,
experimentando-se como animal por meio de uma possessão; nesse sentido, o índio
acredita-se mesmo em momentos rituais ou mediante uma doença poder se transformar
num animal que eventualmente tenha se confrontado: aqui, a concepção de humano nas
comunidades ameríndias da Amazônia requer experimentar o não-humano. A segunda é se
definir por contraste à primeira lógica, isto é, afirmando-se como humano por meio do realce
da identidade, do parentesco e das práticas de comensalismo diante da ameaça de
possessão animal. Aqui, a fabricação do corpo e a afirmação de humanidade consiste numa
negação da possibilidade de um corpo não-humano. A contínua atualização dos corpos por
meio da variação das relações permite, no plano individual, prevenir que a alma esvaeça do
corpo e, no plano coletivo, que se mantenha uma dada regularidade social. A mudança é,
com efeito, necessária para que o corpo não se transforme em algo indesejável ou ainda
que perca seu caráter humano.
Esse processo de transformação do corpo é o que Gil (1988, p. 162) vai chamar de
“devir-animal”. Ele vai elencar uma série de metamorfoses do corpo a partir de rituais
xamânicos de cura:
em Java, os dukuns (xamãs) ‘transformam’ os pacientes em javalis, em macacos que
fazem saltar de ramo em ramo, em castores que obrigam a entrar no rio e a apanhar
peixes. No Haiti ou nos Etíopes de Gondar, a possessão é interpretada como sendo a
encarnação de um espírito (de um loa nos indígenas do Haiti; de um zâr na Etiópia) num
homem que assim se torna um ‘cavalo’ (ibid., p. 135).
Tais metamorfoses não são levadas a efeito de maneira dirigida e conveniente,
elas ocorrem muitas vezes de maneira indeliberada. Se um índio for atacado por uma onça,
por exemplo, aquele pode passar a manter um laço afetivo com este ou mesmo
ocasionalmente se transformar em tal animal. Conforme o tipo de relação que se configurou,
o animal poderá ser considerado pelo índio um parente, um antepassado, uma propriedade.
Daí a importância, na reprodução de variadas perspectivas do corpo, dos adornamentos
corporais como forma de encarnar animais e das narrativas míticas em que os atributos
humanos e animais são indistinguíveis.
A concepção de corpo como resultado de um feixe de relações estabelecidas
implica na identificação, por uma mesma pessoa, de corpos diferenciados para cada campo
121
de relação: os Wari’ acreditam poder se transformar em animais como queixada ou onça,
passando a estabelecer com eles relações de parentesco e comensalismo, por exemplo. É
nesse sentido que o corpo permite uma perspectiva particular de mundo. O corpo Wari’
compreende múltiplos horizontes corporais, conforme o tipo de relação instituída: ele terá
um corpo tal enquanto Wari’, outro como branco e ainda um terceiro como onça ou outro
animal que porventura tenha se defrontado e assim por diante. Logo, não estão bem
definidos os limites entre o animal e o humano, entre o empírico e o subjetivo, entre o corpo
e o espírito. O índio situa-se assim no limiar entre o humano e o não-humano.
O processo de construção do corpo através dos rituais de despossessão envolve
complexos mecanismos relacionais. Quando o possesso começa a conversar com um
animal corre o risco de se transformar num animal similar, o que significa a sua iminente
morte ou, na melhor das circunstâncias, ele sobrevive e torna-se um xamã (Vilaça, 2000, p.
63). Também sempre a possibilidade de ser atraído para outros planos existenciais, de
morrer e passar a habitar com os espíritos, com antepassados, com animais. Interromper
esse processo requer uma disputa ritual empreendida pelos parentes e pela comunidade a
fim de chamá-lo de volta. Para que o doente não perca por completo seus vínculos com a
família e com a comunidade ela é submetida à intensificação das relações rituais de
parentesco e de comensalismo com os mesmos. É preciso que a família do possesso
empreenda uma disputa por subjetividades a fim de provocar uma mudança de perspectiva,
isto é, uma variação do corpo através de cânticos e de rituais alimentares comunitários para
a manutenção da pessoa e de sua alma, ou antes, de sua identidade. Partilhar o alimento
consiste um ato de identificação mútua. Se uma pessoa na iminência de se transformar num
animal não for bem alimentada por seus parentes sua alma e a sua humanidade poderão
ser transferidas para o animal, perdendo assim sua memória de parentesco. É essa
penetração da sociedade no corpo que gera as condições para a constante transformação
do corpo indígena e a reafirmação da identidade. Assim, a instabilidade do corpo, sua
contínua e indeliberada transformação, é regulada pela ênfase dada às relações sociais.
Ao final do ritual de despossessão se espera a reconstituição da ordem social
perturbada pela ameaça de irreversibilidade, pela possibilidade da transformação de homem
em animal acarretar o risco de abrir fissuras irreparáveis no tecido social, uma vez que estão
em jogo componentes de ordem mágica e sobrenatural. Victor Turner
53
(apud. Gil, 1988, p.
85) afirma que se trata de “reparar as brechas surgidas na estrutura social, por meio de um
desvelamento das animosidades ocultas, [a fim de] conduzir a uma renovação dos laços
sociais no decurso de um longo ritual penetrado de simbolismo”. Assim, mesmo que ao final
do ritual suceda a morte do doente, aguarda-se a manutenção da cotidianidade, o resgate
53
TURNER, Victor. Les Tambours d’Affliction. Paris: Gallimard, 1972.
122
de sua ordem inicial, pois a morte não significa um fim em si mesma, de vez que há sempre
a possibilidade de conciliar o tempo dos mortos com o dos vivos, o que condiz com uma
concepção de tempo sempre reincidente.
54
Essas transformações corporais não se encerram num sentido figurativo das
relações dos índios com o seu entorno. Se para os ocidentais tais transformações parecem
mais uma simulação ou disfarce em face de ornamentações do corpo, para algumas
tradições indígenas significam, com efeito, um conjunto de relações com conseqüências
reais na vida. Se os Yawalapíti dizem que a reclusão é ‘para’ se mudar o corpo, esta
afirmativa não pode ser tomada como ‘metáfora’; ela deve ser ouvida ao da letra, desde
que se entenda que o ‘corpo’, para os Yawalapíti, é algo diverso do que assim chamamos”
(Viveiros de Castro, 1988, p. 37). Pouco importa se acreditamos se homem e animal podem
constituir uma mesma entidade. Importa saber o rendimento destas perspectivas de mundo,
demasiadamente diferenciada da nossa, e as contribuições então decorrentes para um
alargamento de nossos horizontes. A concepção de humano no pensamento indígena
subverte as representações físicas de homem das sociedades modernas. Os diversos
grupamentos indígenas se reconhecem de fato como um complexo unívoco e identitário
com tudo que interagem, constituindo uma unidade com o seu campo de relações. Tais
transformações não são, portanto, fantasias, são encarnações autênticas, muito embora
certas sociedades não recorram às ornamentações para expressarem as mudanças do
corpo. A nossa concepção ocidental moderna de mundo nos faz hesitar diante de tais
premissas, mas para outras matrizes de racionalidade, como a indígena, ela é perfeitamente
cabível.
A condição humana no pensamento indígena supõe sempre uma relação de
contato e de reciprocidade e não uma polarização pré-definida entre sujeito e objeto. O
signo do caçador é, com efeito, o que define os limites entre o humano e o não-humano (ou
seja, o que é presa), complexificando a relação entre sujeito e objeto. Esse paradigma
requer se colocar no ponto de vista do outro (do animal, do branco, do grupo inimigo). Do
embate entre predador e presa se define a relação sujeito-objeto, o humano e o não-
humano, não importando que sejam animais.
55
“Tipicamente, os humanos, em condições
54
“Um tempo recorrente não pode deixar triunfar a irreversibilidade. Pelo contrário, esta essubordinada a
determinações que a impedem de se desordenar’ (em particular graças ao fato de que o espaço, pensado
simbolicamente, capta o tempo nas suas malhas). Umas dessas determinações é a crença na sobrevivência
depois da morte. Se a morte fosse o fim absoluto da vida, se nada viesse atenuar esse corte brutal com o mundo
dos vivos, o tempo seria compreendido como irreversível. Se, em contrapartida, a crença na sobrevivência para
da morte (com todo o conjunto de crenças e práticas mágico-religiosas que a ela está ligado) assegura um
modo de perenidade ao ser defunto, o mundo dos mortos já não aparece como um passado (dimensão de um
tempo que comporia, em si, duas outras, presente e futuro, mas precisamente como um mundo (presente),
totalidade onde o tempo não mais se escoa. Esse mundo dos mortos constitui assim a barreira essencial à
recuperação do tempo, à sua irreversibilidade” (Gil, 1988, p. 93).
55
Entretanto, tal diferenciação não se aplica a todos os animais, somente os grandes predadores e carniceiros
(como a onça, o jaguar, o condor, a cobra etc), bem como as presas mais picas do homem (como o veado, a
anta, o macaco, porco selvagem etc) estariam suscetíveis a esse arquétipo da condição humana amazônica.
123
normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais. [...] Os animais
predadores e os espíritos, entretanto, vêem os humanos como animais de presa, ao passo
que os animais de presa vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores”
(Viveiros de Castro, 2002, p. 350). Assim, uma onça prevalece como humano sobre sua
presa. O signo do caçador consiste, pois, num arquétipo das sociedades indígenas, tal como
na civilização ocidental o signo do pastor, uma herança da cultura judaico-cristã, também o
é à sua maneira. A relação vai definir a forma e o redimensionamento do corpo, os papéis
de sujeito e objeto. É a relação entre predador e presa que define uma maneira de
constituição do sujeito. Neste caso, o sujeito a si próprio e à sua espécie como humano,
não se tratando, portanto, de um sujeito isolado de tudo e de todos.
Neste sentido, uma espécie animal reconhece outros da mesma espécie como
seres humanos, com todo um conjunto de condutas e costumes (alimentar, comunicativo,
sexual, intuitivo) que se assemelhariam ao modo próprio de reprodução e instituições
humanas (aldeias, lideranças, festas, ritos, guerras). Entretanto, tal espécie não
reconheceria outra como humana, mas a qualificaria como não-humana ou como um
espírito. “Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que animais e espíritos se vêem
como humanos” (ibid., p. 350). A forma manifesta de cada espécie no pensamento indígena
é considerada um envoltório ocultando o conteúdo humano, uma essência espiritual
correlativa à consciência humana, cuja intencionalidade se materializa numa forma corporal
contingente, isto é, numa espécie de roupa descartável.
56
Os xamãs, por serem
considerados seres multinaturais
57
por excelência, detêm plenos poderes para identificar
uma essência humana numa indumentária animal, assim como reconhecem numa pessoa
sua faceta animal. Assim o animal passaria de uma forma à outra, transformando seu corpo
indefinidamente a fim de manter sua humanidade. No pensamento indígena os termos da
relação homem/animal se invertem: os animais são subjacentes à espécie humana,
contrastando com a concepção ocidental de espécie humana como parte integrante do
mundo animal.
58
56
Um mito indígena ilustra bem essa noção de roupa. “Um sogro-jaguar oferece a seu genro humano roupas de
onça. Diz o mito: O jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupa. Roupa para pegar anta, roupa para pegar
queixada [...] roupa para pegar cutia. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras”
(Viveiros de Castro, 2002, 394).
57
“O xamã, o feiticeiro ou o mago são precisamente aqueles que se encarregam muito especialmente, na
sociedade primitiva, de fazer passar o indivíduo e o grupo de um código a outro, de um estado a outro ou, mais
exatamente, de fazer atravessar os corpos dos indivíduos e dos grupos por múltiplos códigos: desse modo fazem
traduzir um conjunto de signos por (e no interior de) um outro, pondo em relação os astros e o alimento, os
animais e as plantas” (Gil, 1988, p. 128).
58
A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. [...] Assim, se
nossa antropologia popular a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela
cultura tendo outrora sido ‘completamente’ animais, permanecemos, no fundo’, animais –, o pensamento
indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos
continuaram a ser humanos, mesmo que de modo não evidente” (Viveiros de Castro, 2002, 355, 356, grifos do
autor).
124
Entre os índios Wari’, o termo wari’, designa o sentido de humano, e karawa
significa o que não é humano, sinônimo de presa, em que sobressai uma derivação para o
sentido de inimigo. O humano é diferenciado do que é abatido como presa e do que é
passível de ser comido. “O fundo experencial básico da cultura indígena é a intuição da
cadeia alimentar e a experiência da necessidade de que possui todo organismo, e
dramaticamente o animal, de ingerir, incorporar, de comer para viver” (Viveiros de Castro,
2005, p. 5).
Na tradição antropofágica de certas comunidades nativas as vítimas não eram
qualificadas como humanas, pois enquanto presas consistiam meros mantimentos. O
comensalismo e o canibalismo são duas matrizes ontológicas do pensamento indígena.
Comer com outro é tornar-se parente, criar vínculos identitários; comer o outro é diferenciar-
se dele, é, por outros caminhos, reforçar a identidade. A identidade é assim construída no
confronto com a diferença. Quando se come a carne do outro seu espírito, seu sangue, suas
capacidades são incorporados. Comer um humano é se colocar na posição de não-humano.
É se colocar num outro ponto de vista. É se situar como outro para reconhecer sua
perspectiva, transformar o próprio corpo e apaziguar os conflitos. Por outro lado, comer um
parente morto consiste numa atitude mais humana e solidária, segundo esse raciocínio, do
que deixar que animais carniceiros ou que os vermes o façam, pois o morto passaria a
habitar outro corpo se não houver rastros de sua existência anterior.
Viveiros de Castro (ibid., p. 4, 5), ressalta que o sentido de humanidade no
pensamento indígena consiste num dado geral, pois supõe um tipo de relação que todo ser
tem consigo mesmo. Assim, a relação, também tornada um dado universal, é a afirmação de
humanidade inerente a outros seres, pois estes também partilham afecções corporais e
certas instituições culturais, ou seja, partilham uma representação do humano. A cultura,
portanto, seria um dado geral da realidade indígena. Vai-se do todo às partes. Não um todo
objetivo, mas um todo cultural e subjetivo. Ou ainda, “a parte pode simbolizar o todo e ter
toda a sua potência. Os limites do cosmos dos Pueblo [no sudoeste norte-americano] são as
montanhas distantes, mas também as paredes do kiva
59
e das casas individuais” (Tuan,
1983, p. 112).
Por outro lado, o sentido de natureza é particularizado, notadamente resultante das
variadas séries de corpos específicos, gerando, assim, múltiplas perspectivas de mundo. A
natureza dos corpos muda conforme a relação em que eles estão inseridos. Nesses termos,
a representação está para a cultura ou para o espírito humano como a experiência
perspectiva está para a natureza ou para o corpo. Ter um corpo é deter uma perspectiva
59
Kiva é o termo hopi dos índios Pueblo que designa, nas suas moradias, um cômodo grande para fins religiosos
e outros propósitos.
125
dentre múltiplas outras possíveis, é ter um ponto de vista diante das muitas naturezas; mas
é também ter uma representação indivisa do espírito e partilhar uma ontologia humana.
Porém, a humanidade não é uma condição dada a priori da realidade indígena, ela
tem que ser construída. Um bebê, por exemplo, não é considerado humano quando nasce.
O momento de concepção do feto significa uma separação entre a gestante e o bebê. Ele
não é portador de direitos como nas sociedades modernas, pois ainda não estabeleceu um
núcleo relacional, não sofreu transformações. Daí os casos de infanticídio em que alguns
bebês são mortos por estarem desprovidos de perspectivas de socialização em algumas
culturas. Para que a criança comece a se relacionar terá que se desfazer de sua contraparte
animal. Ela terá que ser submetida a uma série de restrições para que venha a se relacionar
a fim de que sua alma não se esvaeça e impacte a ordem social. A amamentação consta,
nesse sentido, como um indício de sua inclinação humana. Os Kayapó, por exemplo,
inserem enfeites nos lombos das orelhas dos bebês. E quando começa a falar a criança
inicia sua socialização, pois demonstra afecções familiares e comunitárias.
um aspecto antropomórfico flagrante no pensamento indígena, porém
diferenciado do antropocentrismo ocidental, vai chamar atenção Viveiros de Castro (2002, p.
375). Os animais não se constituem sujeitos por serem potenciais humanos, mas, em todo
caso, se constituem humanos por serem potenciais sujeitos. Se tantos seres não-humanos
são humanos (embora contemplem sua humanidade de modo particular), então os homens
não são tão exclusivos quanto se presume no pensamento moderno. Ser sujeito na
concepção ameríndia significa deter um ponto de vista particular da natureza, contribuir para
a sua pluralidade, alçar à condição de predador. É ir ao encontro do inusitado e se fundir
com o outro, mas sem perder de vista a identidade. A ausência, por tanto tempo, de um
Deus único e absoluto tem por efeito uma natureza que não é una e racionalizada; ela é
múltipla e diferenciada tal como o politeísmo ameríndio.
Admitindo uma diversidade de corpos confrontada com a unicidade do espírito,
Viveiros de Castro (2002, p. 348) vai sugerir o termo multinaturalismo para assinalar o
contraste do pensamento ameríndio em relação ao multiculturalismo moderno.
Enquanto essas se apóiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e
multiplicidade das culturas – a primeira garantida pela universidade objetiva dos corpos e da
substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e do significado –,
a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidades
dos corpos. A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou o objeto,
a forma do particular (ibid., 349).
O Ocidente propõe uma única natureza externa derivada de um elaborado nível de
síntese, considerada pela imutabilidade das leis (físicas) de transformação da matéria que
as governam como a própria encarnação da ordem, contrastando e infligindo a necessidade
126
de múltiplas contingências e subjetividades pela aleatoriedade das relações humanas. Já os
ameríndios propõem a unidade de uma intencionalidade primordial (a cultura) convocando a
contingência da diversidade objetiva necessária à vida (a natureza). “A fabricação [do corpo]
subordina a Natureza informe ao desígnio da Cultura: produz seres humanos” (Viveiros de
Castro, 1987, p. 32). Mas, discordando um pouco deste autor, talvez o sujeito seja mais
concernente à natureza, que é múltipla; e não tanto à cultura, que é una (o sentido de
humano). Contudo, cumpre destacar, esses dois processos não se limitam a simetrias
puramente inversas, mas comportam, cada qual, sua própria dialética.
A relação natureza/cultura atrelada às constantes transformações do corpo não
pode ser confundida com as teorias de totemismo. O totem é um mecanismo de
representação simbólica de clãs ou linhagens, emblemas que distinguem um grupo dos
demais (dentro ou fora de uma tribo) associando-o a um animal, vegetal ou objeto
inanimado, o que se verifica por manifestações como certas restrições alimentares,
aspectos sobrenaturais, assuntos religiosos e rituais, emprego de ornamentos, normas
matrimoniais, dentre muitos outros motivos; expressões totêmicas que podem assumir,
dependendo da comunidade indígena, as mais inusitadas representações,
60
sem que,
contudo, venham a se constituir como regra, isto é, um totem não precisa necessariamente
ter um valor sagrado ou ritual.
O totemismo, segundo Viveiros de Castro (2002, p. 364), consiste antes num
fenômeno classificatório de correlações lógicas e diferenciais do que propriamente num
sistema de relações entre natureza e cultura. Opinião partilhada por Lévi-Strauss (1980a, p.
102), para quem “o pretenso totemismo depende do entendimento, e as exigências às quais
responde, a maneira pela qual procura satisfazê-las, são, em primeiro lugar, de ordem
intelectual” (ibid., p. 178). São os procedimentos classificatórios e metódicos próprios do
pensamento, clarifica Lévi-Strauss (ibid., p. 104) a propósito do totemismo, que conduzirão a
uma relação entre cultura e natureza, entre o mundo dos homens e o mundo animal ou
vegetal. Em outro trecho esclarece que “seu valor aparente provém de uma infeliz divisão da
realidade” (ibid., p. 109), pois o totemismo instaura dualismos e polarizações. O totemismo
está voltado não para a sensibilidade ou para as afecções corpóreas, como de se supor
em um princípio relacional entre natureza e cultura, mas para o intelecto, como vai advertir
mais uma vez Lévi-Strauss (ibid., p. 151). “Compreendemos enfim que as espécies naturais
não são escolhidas por serem ‘boas para comer’ [em alusão à concepção de Radcliffe-
Brown acerca do totemismo] mas por serem ‘boas para pensar’” (ibid., p. 165, 166).
60
Variam desde animais e vegetais como felinos, pássaros, marsupiais, peixes, tartarugas, caranguejos, ostras e
outros moluscos, moscas, sanguessugas, grama alta, inhame, coco, fruta-pão, até fenômenos atmosféricos e
biológicos como trovoadas, maré alta, diversas doenças, o riso, o vômito e até cadáveres (Lévi-Strauss, 1980, p.
145).
127
As metamorfoses corporais, e com elas o liame que intermedia natureza e cultura,
está mais para o que em antropologia se convencionou chamar de animismo do que para o
totemismo. Enquanto o totemismo consiste num sistema classificatório nominativo de grupos
sociais (clãs, metades, linhagens, confrarias religiosas), o animismo refere-se à realidade
empírica de um indivíduo em face de suas transformações corporais, muito embora tais
mudanças repercutam no conjunto social. Viveiros de Castro (2002, p. 364) vai distinguir o
animismo e o naturalismo como duas vertentes correspondentes cada qual a uma matriz
ontológica de pensar a relação sociedade/natureza:
O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula o caráter social das relações
entre as ries humanas e não-humanas: o intervalo entre natureza e sociedade é ele
próprio social. O naturalismo está fundado no axioma inverso: as relações entre sociedade
e natureza são elas próprias naturais. Com efeito, se no modo anímico a distinção
natureza/cultura é interna ao mundo social, pois humanos e animais acham-se imersos no
mesmo meio socio-cósmico (e neste sentido a natureza é parte de uma sociedade
englobante), na ontologia naturalista a mesma distinção é interna à natureza (e neste
sentido a sociedade humana é um fenômeno natural entre outros).
A construção do corpo indígena se estabelece ao largo de uma estreita relação com
a natureza na qual ambos coevoluíram se intervindo mutuamente. A natureza impondo seus
ritmos sazonais sobre os hábitos tribais, e o índio intervindo timidamente por meio de
práticas costumeiras de domesticação de plantas e animais, ao passo que adequava seu
corpo às contingências naturais, desenvolvendo assim conhecimentos passados de geração
para geração ao longo de incontáveis períodos de experimentação. São “populações que se
desenvolveram numa relação com e não contra a natureza”, vai argumentar Porto-
Gonçalves (2002, p. 52). Culturas indígenas que coevoluiram em conformidade com os
ecossistemas que tradicionalmente as abrigam ao longo de lentas e laboriosas
experimentações, permitindo acumular um cabedal de conhecimentos sobre o manejo dos
solos, as variações climáticas, a anatomia e os hábitos alimentares dos animais, o período
de amadurecimento das frutas e plantas, enfim, conhecem com afinidade os ciclos
ecológicos do ambiente natural do qual são parte constituinte. Anderson e Posey (1987, p.
44-50), observaram o papel ativo dos índios Kayapó do sul do Pará na formação de ilhas de
vegetação no cerrado, para o qual desenvolveram técnicas de cultivo apropriadas às
condições ecológicas deste bioma, designando até mesmo uma classificação própria para
suas variantes: campos limpos são designados como kapôt Kein e cerradões como kapôt
Kumernx.
A concepção indígena de natureza não se encerra numa débil oposição com a
cultura realizada longe do corpo, mas de uma dialética onde os elementos naturais são
domesticados e o conjunto de hábitos, costumes e regras são naturalizados e o corpo é a
base onde este acordo (antes um não-desacordo) é possível. Para sociedades como os
128
Tukano, por exemplo, o domínio de um plano sobrenatural estabelece uma mediação
possível entre natureza e cultura que praticamente chega a dissolver essa antinomia
(Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979, p. 13). Em face dessa sinergia as pulsões e
os impulsos naturais equivalem às afecções e instintos corporais dos homens e vice-versa,
o que nos permite considerá-los como um acontecer unívoco e interdependente. O que
poderia ser mais “da natureza”, indaga-se Gow (1999., p. 314), do que toda a preocupação
dos índios Piro com os padrões presentes nas peles dos animais e superfícies das plantas
associando às transformações do ciclo de vida humano? Tanto homens quanto animais
nascem, crescem, caçam, constituem famílias, constroem aldeias, empreendem a guerra; as
árvores modificam sua textura e aparência a cada foliação, sua seiva é comparável aos
fluidos corporais; assim como os rios correm arrebentando suas margens delineando novos
contornos e o céu redesenha o espaço da aldeia tal como o homem transforma seu corpo a
cada ciclo de vida ou a cada crise instaurada pela quebra da regularidade tribal. É na
transformação continuada do corpo que reside a idéia de estar integrado a tudo mais.
Não é a diversidade de representações de um mesmo mundo que caracteriza o
pensamento indígena, pois todos os seres, dada a intrínseca realidade humana, o vêem da
mesma maneira; todavia é o mundo que é diverso por estender para cada corpo um
conjunto de relações diferenciadas. “O que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que
para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca pubando; o que vemos
como um barreiro lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial...” (Viveiros de
Castro, 2002, p. 379). Cada membro de um determinado grupo indígena, por estar inserido
num mesmo complexo de relações, da mesma forma coisas diferentes por possuir, cada
qual, um corpo distinto. E como os sujeitos e objetos são produtos das relações em que
estão inseridos, eles se redefinem, se reconstroem se reproduzem ou se anulam na medida
que as relações que os constituem mudam (Viveiros de Castro, 2005, p. 5). Assim
produzido, o corpo é igualmente específico. Se os índios não vêem os animais como
humanos, assim como esses também não vêem os índios enquanto tal, é porque seus
respectivos corpos são diferentes. Não somente em termos fisiológicos ou anatômicos, mas
sobretudo por suas afecções: os diferentes seres, humanos e não-humanos, comem, se
movem, se acasalam, se comunicam de modo bem peculiar, constroem assim suas
identidades.
Aqui o absoluto se desvanece, mas sem, contudo, se limitar a um relativismo puro.
Assim, apesar do corpo se tornar diferente para cada pessoa e não um aspecto comum a
todas as outras, ele se diferencia mediante um contrastante campo relacional. O termo
kwere, que designa corpo em txapakura, é sempre seguido de um sufixo indicador de posse,
definindo a pessoa, animal, planta e tudo o mais que exista para os Wari’ (Vilaça, 2000, p.
59). “Os Wari’ costumam dizer: ‘Je kwere’ (‘meu corpo é assim’), que significa: ‘esse é meu
129
jeito’, ‘eu sou assim mesmo’” (ibid., p. 59). A identidade é então reafirmada em meio à
diferença. Cada corpo atado a um meio relacional singularizando uma perspectiva de
mundo. O corpo é desse modo expandido a um conjunto de relações.
Para transcender essa barreira, ou seja, o campo de relações que define o corpo,
os Wari’ têm que considerar um outro fora do corpo, o que significa considerar elementos
fora de sua realidade empírica, como, por exemplo, a idéia de uma divindade. Deus, para os
Wari’, pode ver tudo justamente por não ter um corpo. O corpo supõe uma precipitação de
um determinado número de relações. Ter um corpo implica estar atado a um conjunto de
relações que o define como pessoa, como ser humano, como animal, todos compenetrados
num enlace singular de tempo e espaço. O espírito é, entretanto, universal. Ele é a condição
para que todo ser vivo seja considerado humano, ainda que assuma corpos não-humanos.
O corpo é definido, sobretudo, por um ponto de vista externo, de vez que, para si
mesmo, cada indivíduo consiste unicamente na forma genérica e espiritual do humano.
Assim, o corpo é considerado a materialização de um espírito pelo ponto de vista do outro.
Ele subsiste em meio a um universo do qual está sendo diferenciado. Suas afecções são
dadas no seio de um meio comunitário. Portanto, é o outro que vai designar as qualidades
do corpo alheio. Marilyn Strathern (1992, p. 74) vai chamar a atenção para a transformação
do corpo através de substancias passadas na pele. A decoração do corpo faz o jogo do
interno e do externo, denotando o corpo como expressão das relações. É a prática de
internalizar e externalizar situações, de modo a mobilizar o conjunto comunitário. Assim
revela-se não a subjetividade, mas uma pessoa visível expressando sua humanidade, ou
seja, a capacidade de explicitar uma relação comunitária elementar para a renovação de
relações corporais e sociais. A decoração corporal para os índios Hagen, acrescenta
Strathern (1979, p. 246), serve para chamar a atenção do outro, ou seja, para destacar uma
capacidade interna que não está expressa na pele nem no indivíduo, ela não consiste num
self ou numa subjetividade, mas está manifesta num meio coletivo explicitada na dança
ritual. O ritual é, pois, um momento-espaço de mobilização social.
Todos os elementos de uma relação estão ligados por laços de simultaneidade,
utensilidade, conflitualidade, dentre outros tipos de sociabilidades. Os termos não existem
fora da relação, ou antes, eles não existem de fato. Nas culturas modernas os termos detêm
um sentido independente da relação e pode-se mesmo dizer que a rigor a antecede, no
sentido de que para se entender o conjunto deve-se compreender primeiramente as partes.
Todavia, na cultura indígena a relação não é redutível aos termos. As partes (se for possível
indagá-las) tem o mesmo significado da relação. Não há, portanto, entidades nominadas e
auto-suficientes. Ser predador é certamente estar em relação de predação com uma presa,
assim como a maternidade consiste numa relação entre mãe e filho, mas esses termos em
separado não se explicam por si mesmos, eles não constituem a relação, eles são a própria
130
relação. Apreender um dado objeto, não significa tomá-lo por sua concretude e
autenticidade, mas referenciá-lo a uma série de significados subjetivos e relacionais. Assim
os corpos, as árvores, as canoas não se limitam a substâncias individuais, objetificadas em
si mesmas, mas são, de outro modo, entidades coextensivas umas às outras, todos
interligados por atos de implicações mútuas: o significado das coisas é revelado dentro
de um contexto relacional, o que subverte por completo o sentido de individualidade. Assim,
os objetos são dotados de um princípio de intersubjetividade num jogo de correlações. Os
núcleos de tais relações são corpos intercambiáveis a espera de um mundo de
possibilidades. Corpos que não estão limitados a um estrato fisiológico, mas que são
compreendidos dentro de um complexo de relações.
As afecções corporais dizem respeito tanto a um conjunto de incontinências e aos
propósitos, inclinações, desígnios e situação numa relação, como também se referem à sua
localização e distribuição no espaço e no tempo. Os corpos, contudo, não estão estanques
entre si no tempo e no espaço. É o campo de relações que vai reunir uma série de corpos,
cada um identificado pelo olhar de outrem. A apreensão das coisas é fruto da relação entre
pessoas e coisas, cada qual, portanto, construindo um significado próprio de mundo,
intercambiável com o reconhecimento das experiências alheias por meio do engendramento
de percepções que se completam entre si, segundo a identificação de signos bem
característicos. É nesse sentido que Andrew Strathern (1999, p. 203) fala de uma co-
presença e de pontos de conexões entre as pessoas. Participar do mesmo campo de
relações permite aos indígenas interpretarem as perspectivas e representações de seus
pares, pois estas constituem um mesmo fundo cultural. É a dimensão humana intrínseca a
diversos seres viventes que confere uma permuta entre os corpos.
Ter um corpo como um agregado de relações implica em concepções de espaço e
de tempo diferenciadas de uma concepção fragmentária de espaço e tempo. O espaço
indígena é um espaço de co-presença em que todos os termos estão intrinsecamente
interligados, ou antes, constituem um único termo da relação. Mas ao mesmo tempo ele é
múltiplo, pois é a diferença o vetor da identidade e da relação. Assim como há uma
pluralidade de perspectivas de natureza, tantas quantas forem em qualidade os corpos, ou
seja, em sua dinâmica performativa e em suas afecções, no sentido das alterações das
faculdades receptivas que revelam o modo próprio de receber e transformar impressões,
também assim será a dinâmica do espaço. A produção do espaço indígena provém do vigor
em transformar o corpo acionando-se um campo ritual autorizado a práticas contingentes. O
tempo não é entrecortado por intervalos sucessivos cuja ininterrupta progressão viria a
reclamar um tempo sempre contínuo. Mas, todavia, um tempo marcado no presente porque
as relações são presentemente constituintes da identidade da pessoa. Um eventual
encontro com um animal na mata pode significar um nculo identitário que reincide por toda
131
a vida. “Aqui não existe qualquer antinomia porque não existe qualquer inovação
condicionando a própria marcha do tempo como nas sociedades modernas, aqui o tempo é
recorrente, de uma certa forma ‘repetitivo’” (Gil, 1988, p. 19). Não há, por assim dizer, uma
preocupação desenfreada com o futuro, mas sim com a manutenção da ordem existente.
Não significa dizer com isso que as sociedades indígenas estão em estado de
repouso, mas que tão somente não partilham o mesmo destino desenvolvimentista das
sociedades ocidentais. E por não se alinharem à idéia de desenvolvimento ou de progresso
ocidental são (des)qualificadas como a-históricas, como se a história comportasse uma
via única. Seu tempo é um tempo vivido centrado no acontecer das necessidades e pulsões
presentes, e não um tempo de acúmulos, compartimentado em momentos que se sucedem
uns aos outros a determinar momentos ideais para certas atividades. “Seu vetor de futuro
está virado em relação ao passado em direção aos mortos, aos antepassados têm
história (‘histórias’) sem historicidade” (ibid., p. 78). Tal concepção não consiste numa
completa negligência do tempo na vida tribal. Eventos naturais como as fases da lua, o ritmo
das marés e o próprio ciclo de crescimento humano marcam uma imprecisa notação de
fases temporais delimitando os intervalos mais ou menos regulares que autorizam efetuar
cortes ou mudanças no interior da vida social.
Os momentos e eventos imprevisíveis e aleatórios ameaçadores do curso da vida
tribal (uma doença, uma possessão, um devir-animal, escassez de caça, um litígio com
outra sociedade) são tratados por uma suspensão do tempo cíclico. Empreende-se um
investimento ritual sobre o corpo operante num espaço-tempo analogamente ritual de modo
a aplacar as angústias e incertezas de um perigo iminente a fim de manter a inalterabilidade
do modelo social. Por isso muitas sociedades indígenas atravessaram séculos sem que
maiores transformações ocorressem em suas vidas, mantendo-se quase a mesma estrutura
básica de relações e práticas de seus antepassados. Não significa admitir com isso,
repetimos, que as sociedades indígenas estão num estado de equilíbrio imutável, mas que
apenas se mantém em relativa invariabilidade mediante oportunas intervenções rituais.
Deste modo, recorre-se a transformações (a diferença) para se assegurar o mesmo (a
identidade). Essas intervenções devem implicar deslocamentos de sentido em múltiplos
domínios da vida nativa, de sorte que o ritual se torne o evento capaz de garantir a
reversibilidade do tempo social e da experiência cotidiana.
A construção do corpo, tanto quanto do espaço tribal, consiste em arrefecer as
descontinuidades e dissensões de que ele está suscetível em face de uma crise. Tomemos
um espaço tribal organizado segundo costumes passados de geração para geração,
mantendo-se relativamente estável, sem maiores transformações para o que nos padrões
modernos chamamos de desenvolvimento ou progresso; um espaço tal que compreende um
132
determinado equilíbrio social. A explicação de Hissa (2006, p. 50) contribui para o
entendimento desse estado de regularidade tribal:
O homem primitivo [sic], posta a situação de fragilidade do indivíduo e do grupo no mundo
natural, perante um universo ameaçador e desconhecido, elabora o mito associado ao
desejo de estabilidade cultural. Essa ansiedade pela estabilidade, em última instância, pode
ser exemplificada através de expectativas: de manutenção da fertilidade dos solos, de
disponibilidade de caça, pesca e frutos, de segurança estratégico-militar, de saúde dos
vivos e paz espiritual dos mortos. Em conseqüência desses desejos, os rituais são
estabelecidos através da ação coletiva.
Diante de uma crise (um desequilíbrio, um litígio, um perigo) empreende-se uma
suspensão da regularidade a fim de acionar uma nova perspectiva, ou seja, decodificar e
apreender novos campos relacionais. Aciona-se um campo autorizado a práticas
contingentes. O conflito é aplacado pela formalização e ritualização de contato com espíritos
e rituais de possessão (o devir-animal) ou despossessão, conforme chamou atenção Taylor
(1996, p. 210, 211) para as duas formas de transformação do corpo; em ambos os casos o
corpo é tornado um outro corpo. “Tudo se passa como se o espaço objetivo fosse de início
circunscrito unicamente para servir de suporte à espacialização do espaço que vai operar
uma mutação do corpo” (Gil, 1988, p. 170). O corpo possesso tramita por um espaço mítico
atravessando e confundindo-se com múltiplos espaços heterogêneos, indo de uma
dimensão espacial a outra de modo a reuni-las como correlato de múltiplas naturezas. Tanto
o ritual de possessão como o de despossessão são, cada qual ao seu modo, espaços de
transformação, marcados por um tempo de similar magnitude, e cujo objetivo é
metamorfosear o corpo (mudando assim a perspectiva de natureza) para que, se
transformando, ele continue paradoxalmente o mesmo, ou antes, mantenha indeléveis os
traços culturais. Assim, mantêm-se analogamente os mesmos tempo e espaço, bem como
um relativo equilíbrio social.
Podemos comparar essa presumível irreversibilidade do tempo como um dado
cultural que autoriza passar de espaços estriados mais definidos para espaços lisos do
qual não se detém controle. O espaço ritual corresponde à corporeidade dos corpos, um
espaço relacional amiúde compelido à transformação em espaços mais contidos e precisos
regulados segundo uma ordem social quase inalterável. Assim como o lugar, o território, a
região são inadivertidamente surpreendidos pelo caráter contigencial da corporeidade dos
corpos (dos seus atores, mais precisamente) pela diferença que nos desnorteia. A
suspensão da regularidade social em vias de um espaço ritual vai assim reiterar a
corporeidade dos corpos. O espaço está, portanto, em constante transformação, tal como o
corpo. Se mudar o corpo é transformar o campo de relações, o espaço analogamente se
redimensiona. Mas ele muda para se manter mais ou menos o mesmo espaço, ou melhor,
para manter sua identidade de espaço tribal. As sociedades indígenas é que melhor
133
expressam a idéia de corporeidade dos corpos, em termos de configurações relacionais e
perspectivas móveis, mas ao mesmo tempo regulares.
3.3. Fragmentação e corporeidade nas sociedades indígenas
O corpo indígena se viu submetido a todo tipo de restrições e privações ao longo de
sua experiência de contato com a cultura ocidental, o que requereu algumas
reconfigurações e adaptações aos padrões tidos por ideais pelo modelo moderno de
desenvolvimento. Mudanças essas de ordem sensório-perceptivas que, a despeito dos
efeitos deletérios impostos pelo avanço das sociedades modernas, de modo algum são
alheias às transformações corporais intrínsecas aos costumes ancestrais indígenas. Elas
correspondem tanto a uma afirmação da etnicidade indígena, como ao aproveitamento de
representações de um ideário moderno acerca da corporeidade indígena. Estratégias que
consistem na resignificação do corpo de modo que, ao apreender e incorporar os valores e
forças que lhe assaltam, possa-se redirecionar seus fins em proveito da manutenção de
alguns aspectos culturais.
Inumeráveis são os casos de perseguições, explorações, extermínios e expulsões
de territórios tradicionais relatados em várias fontes literárias. Causou-nos espécie a
truculência e a maneira violenta com que variados representantes de nações indígenas
aproveitando os festejos pelos 500 anos do descobrimento do Brasil para reivindicar
melhores condições de vida foram tratados pela polícia em Santa Cruz de Cabrália, na
Bahia. Também, assistimos atônitos em 2004 um fatídico episódio que resultou na morte de
27 garimpeiros que disputavam com os índios Cinta-Larga o controle pela exploração de
diamantes nas terras indígenas Roosevelt, Serra Morena e Parque Indígena Aripuanã, no
estado de Rondônia. Essa tragédia reflete o desdobramento de uma longa trajetória de
assaltos e massacres, que na maior parte dos casos tem resultado em prejuízo para as
populações indígenas; saldo de hostilidades e desafetos mútuos, vinganças e desagravos
inconclusos muito arraigados. Não faz muito tempo, em 1963, toda uma aldeia deste
mesmo grupo foi vítima de uma atroz carnificina ordenada por um seringalista do Mato
Grosso que almejava despojá-los de suas terras, episódio este retratado no filme “Avaeté,
semente da vingança”, do diretor Zelito Viana.
Ainda é possível encontrar, em diferentes pontos do território brasileiro, populações
indígenas recuando para o interior do país em busca de refúgio contra o avanço da
sociedade moderna, como é o caso dos índios Xavante: egressos dos campos de Goiás e
da Bahia, estão atualmente ilhados entre grandes fazendas às margens do rio das Mortes
no Mato Grosso; ou ainda, os índios Tapirapé que se encontram no norte do Mato Grosso
após percorrerem um longo trajeto desde o litoral nordestino (Martins, 1998, p. 660). Esses
134
grupos e muitos outros tiveram que reelaborar sua relação com a natureza ao se depararem
com um ecossistema totalmente diverso do ambiente de origem como também é o caso
de um destacado grupo de índios Terena que migrara para o norte do Mato Grosso em
busca de melhores condições de subsistência em função do esgotamento do espaço da
reserva pelo crescente populacional no Mato Grosso do Sul (Lima, 2004, p. 70).
Passados cinco séculos que os índios tiveram seus primeiros contatos com o
conquistador ibérico pouco mudou em sua relação com as sociedades ocidentais. Eles
continuam sendo explorados e privados de suas terras, sendo desqualificados e ignorados
em seus costumes e vilipendiados em seus conhecimentos ancestrais. Muitas das plantas
de que se alimenta a humanidade foram domesticadas pelos ameríndios (Porto-Gonçalves,
2006, p. 406), o que tem tornado seu conhecimento ancestral um objeto de exploração por
parte das grandes indústrias fármaco-químicas. As comunidades indígenas empregam
certas propriedades de elementos da floresta para a preparação de remédios, anestésicos,
venenos, corantes, tintas, fragrâncias e uma inumerável quantidade de porções de cura e
aromáticos. Atentas a esse desmesurado conhecimento acumulado ao largo de complexos
processos de experimentações, algumas empresas do ramo fármaco-químico empenham-se
na corrida por obtenção das patentes de recursos genéticos isolando o princípio ativo das
substâncias contidas nas plantas, nos musgos, nos insetos e em outros elementos das
florestas para convertê-los em lucros extraordinários, explorando, para tanto, o
conhecimento sobre biodiversidade de povos cujas raízes culturais se confundem com a
própria fecundidade dos ecossistemas que habitam. Aqui a alardeada biopirataria seria
melhor caracterizada como etnobiopirataria (ibid., p. 411), posto que sua ação não se limita
à simples apropriação de uma recurso natural, mas também a parte considerável de uma
herança cultural.
O regime de propriedade intelectual pauta-se na idéia de que as informações
genéticas adquirem maior valor fora dos organismos de que provém. Tais práticas assumem
o paroxismo quando o próprio corpo do índio torna-se objeto de especulação para fins de
experiências genéticas, nos dificultando identificar os limites da insanidade de alguns
pesquisadores insensíveis ao modo como sociedades indígenas inteiras foram violentadas
em prol do desenvolvimento científico. Patrick Tierney (2002, p. 86, 92) denunciou como
antropólogos e geneticistas (particularmente, o antropólogo Napoleon Chagnon e o
geneticista James Neel) levaram nos anos 1960 agonia e morte a milhares de índios
Yanomâmi ao longo do rio Orinoco, na Amazônia. Com o propósito de mensurar a diferença
de imunidade entre os povos indígenas e ocidentais, eles tentavam comprovar as teorias de
seleção natural e adaptação seletiva inoculando nos Yanomâmi o vírus do sarampo através
de vacinas (Edmonston B) condenadas à época pela Organização Mundial de Saúde.
135
Comunidades indígenas inteiras foram abatidas por doenças infecciosas como a
varíola, a sífilis e o sarampo, transferidas propositalmente pelos que queriam lhes expropriar
a terra e os recursos que estas abrigam, como fora o caso de um grupo Timbira atraído para
uma vila do sertão da Bahia acometida por uma epidemia de bexiga no final do século XIX
(Ribeiro, 1979, p. 61). Os índios que conseguiram escapar desse ardil espalharam a
epidemia pelos sertões, levando extrema agonia àqueles que pela primeira vez
experimentavam tal flagelo. Nesse mesmo quartel de século, após serem subjugados e
escravizados pelas bandeiras paulistas, os Bororo, que chegaram a ocupar uma extensa
faixa de terra no estado do Mato Grosso do Sul, foram descritos como “uma decaída e
miserável comunhão; não puderam suportar uma civilização por meio da sífilis e da
cachaça” (Steinen
61
apud. ibid., p. 77).
A expansão da sociedade moderna e capitalista empurrara os índios cada vez mais
para o interior, obrigando-os a se refugiarem nas serras e fundos de vales mais ermos do
Planalto Central e da Amazônia. Mal se estabeleciam num novo habitat ao se refugiarem
das frentes de expansão, os índios se viam aos sobressaltos em fuga dos constantes
ataques que sofriam, recuando cada vez mais e assistindo seus territórios serem reduzidos
a ínfimas glebas de terras cercadas pelas fazendas e pastagens de gado que cresciam à
proporção com que suas terras eram esbulhadas (Ribeiro, 1979, p. 85).
Assolados pela violência das frentes de expansões os índios encontravam algum
alento nas missões missionárias, sequiosas por catequizá-los a fim de garantir mão-de-obra
pacífica e voluntária. Isso, porém, não evitou que numerosas vidas fossem ceifadas por
doenças como varíola, gripe e sarampo nas reduções religiosas. Com a intervenção
missionária muitos índios passaram a morar em pequenas choças dispostas em quadras e
arruamentos, verdadeiras células conjugais que comprometem os laços de parentesco que
representa a tradicional moradia seja na maloca, seja noutro tipo de habitação nativa,
redimensionando, assim, o arranjo espacial originário da aldeia e seu fundamento
comunitário. Foi o caso do aldeamento D. Pedro II ou, como era mais comumente chamado
no início do século XIX, Carretão, em Goiás (ibid., p. 65), onde muitos índios perderam a
língua e os costumes a ponto de não saberem mais de que tribo provinham, embora
continuassem se auto-identificando como índios.
No início do século XX, a partir das pressões de entidades internacionais, o Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) tentara mitigar a perda dos territórios indígenas instituindo as
reservas indígenas: verdadeiros campos de confinamento cuja delimitação se verifica
demasiadamente menor que os territórios originais. As reservas indígenas consistem numa
instituição tipicamente biopolítica. O principal objetivo do SPI consistiu em pacificar os índios
61
STEINEN, Karl Von den. Entre os Aborígenes do Brasil Central. São Paulo: Departamento de Cultura, 1940.
136
e integrá-los à comunhão nacional (eufemismo para a alienação cultural indígena). De
acordo com os princípios do SPI, a condição de índio consiste num estágio em vias de
progressiva evolução cujo destino é a sociedade moderna (sic). A demarcação de algumas
áreas possibilitou, apesar de tudo, uma débil reestruturação da vida comunitária indígena,
embora constassem de pequenos núcleos familiares cercados por grandes propriedades,
insuficientes, portanto, para a auto-sustentação das comunidades. As reservas passariam a
concentrar muitas famílias que se encontravam dispersas, vivendo como peões nas
fazendas ou grupos indígenas que se expunham ao enfrentamento em defesa de seus
territórios cobiçados por fazendeiros de gado e empresas colonizadoras.
Por força das expulsões generalizadas, muitas vezes um determinado grupo
indígena ocupava o território de outro grupo com costumes e cultura totalmente
diferenciados, acarretando em acirrados confrontos pelo direito de ocupação e uso da terra.
Os índios Asuriní, do Xingu, além de serem constantemente ameaçados pelos brancos,
foram atacados e expulsos de suas terras pelos Araweté, que por sua vez sofriam com o
avanço dos Kayapó-Xikrin e dos Parakanan (Arnaud, 1989, p. 353). Em muitos casos, os
colonizadores se defrontavam com devastadores conflitos envolvendo diferentes tribos,
como relata Hebert Baldus (1970, p. 49) uma aproximação da frente de expansão sobre o
território Tapirapé, grupo que então se confrontava com os índios Kayapó que avançavam
em direção ao Araguaia sobre as terras dos Tapirapé e sobre os vilarejos sertanejos das
redondezas. Em outros casos, alguns grupos eram cooptados pelos colonizadores para que
se empregassem na caça de outros índios a fim de reconduzi-los como escravos nos
canaviais, nos garimpos e na derrubada de matas. Muitos grupos indígenas, de início,
consideravam os brancos uma desconhecida e agressiva tribo, sujeitos, pois, a serem
tratados como inimigos ou aliados, dependendo da experiência de contato e da
conveniência.
Hoje, porém, espoliados de grande parte de seus territórios, tornados insuficientes
para o provimento da caça, da pesca, da coleta e da agricultura supletiva, os remanescentes
de vários grupos indígenas colocaram suas diferenças de lado e mobilizaram alianças com
demais povos que igualmente reivindicam seus direitos territoriais e culturais. Deste modo,
os movimentos indígenas têm conseguido algum êxito na recuperação de antigos territórios
tribais, como é o caso dos Xavante, que asseguraram algumas terras onde estão situados
os antigos cemitérios. As antigas aldeias onde estão enterrados os antepassados, por se
tratarem de locais sagrados, demarcam o sítio dos territórios indígenas. Fruto de variadas
representações para os índios, os túmulos delimitam seus domínios, acompanhando os
movimentos da aldeia ao longo do tempo (Ramos, 1988, p. 20).
Se afirmar como índio consiste numa estratégia política de articulação dos variados
povos indígenas que séculos vêm partilhando as compulsões infligidas pelas sociedades
137
ocidentais a partir da progressiva expulsão de seus territórios tradicionais. A auto-
identificação étnica incide, nesse sentido, numa tática de reivindicação e afirmação de
direito aos territórios expropriados e mesmo uma estratégia de sobrevivência contra as
privações e agressões sofridas no encontro entre temporalidades conflitantes. Mesmo
alguns remanescentes indígenas no sertão nordestino como os Fulniô, os Pankararú, os
Wakoná e os Tuxá cujos fenótipos se assemelham aos dos sertanejos, engajados que
estão na economia regional como peões e lavradores sem-terra, ilhados entre fazendas e
sem mais lembranças da língua nativa lhes restaram a obstinada consciência de que são
índios, retirando da hostilidade e humilhações a que são submetidos a força de
permanecerem como tais (Ribeiro, 1979, p. 56).
Muito embora, é preciso destacar, o conceito de índio tenha sido criado pelos
conquistadores europeus quando então chegaram na América imaginando estarem
aportando nas Índias. Assim, rotularam populações diversas, diferentes tanto no aspecto
físico como nas tradições culturais, todas incluídas numa mesma insígnia identitária: índios
(Melatti, 1989, p. 20). São de fato populações aborígenes com costumes singulares, ritmos
próprios e em quase tudo distintas entre si, mesmo quando ocupam zonas ecológicas
semelhantes. São, antes qualquer generalização, povos Guarani, Xavante, Wari’, Tukano e
assim por diante. Entretanto, tal designação processualmente se transfigurou em categoria
étnica e se naturalizou no ideário popular, tornando-se consenso mesmo entre os grupos
indígenas mais politizados que afirmam sua etnicidade como estratégia de sobrevivência.
Assim, a auto-identificação como índio reclama uma identidade não apenas étnica e
localizada, mas, sobretudo, “étnico-político-globalizada” (Ribeiro, 1991, p. 172).
Não podemos objetar, de mesma sorte, uma noção suficientemente potente para o
que se designa por “branco”. Se a noção de índio recai numa controvérsia denunciada pelo
desenrolar histórico, a noção de branco é ainda mais emblemática. Alguns autores preferem
o termo “civilizado” associando-o ao homem branco, cristão e moderno, como se fosse esse
o destino evolutivo de todas as etnias indígenas. Outros ainda, pensando estarem
desadjetivando qualquer impressão que o termo branco ou civilizado possa carregar,
preferem o termo não-índio”. Entretanto, branco, civilizado, não-índio ou qualquer outra
derivação que vise contrapor uma cultura propriamente moderna de uma cultura indígena só
se mostra pertinaz em face do ocultamento de todas as variáveis da cultura moderna
confrontada com o análogo desaparecimento de tantas diferenças indígenas, ambos, pois,
subsumidos sob a insígnia do branco e do índio.
Assim, o Guarani, dentre tantos outros povos indígenas, quando passa a se
defrontar com o branco, ainda que seja ele negro, amarelo e mesmo branco, rico ou pobre,
não importa, o inclui num único quadro de referência, constrói desse modo o seu outro,
assim como a ele próprio enquanto índio, uniformizando todas as diferenças que por ventura
138
sobrevenham a ambos. No confronto com o outro, desloca sua identidade nativa e se
constitui índio em conformidade com tantas outras etnias indígenas; muito embora não abra
mão de sua herança Guarani: ele nunca deixará de sê-lo, apenas reorientou seus horizontes
identitários. A identidade Guarani não implica a existência do branco, embora reclame uma
peculiaridade em meio a tantas outras etnias; de outro modo, a identidade indígena tem
sentido se oposta ao que se convecionou chamar de branco. O moderno, branco ou não-
índio, por sua vez, à revelia de toda a diferença de raça, cor ou classe social e de todas as
vicissitudes que lhes são inerentes, inclui todas as culturas indígenas sob um único signo
realçando uma diferença étnica sobre tantas outras diferenças que parecem então
irrelevantes.
Os povos indígenas vêm recriando suas condições de subsistência segundo seus
referenciais culturais tradicionais no curso de sua subordinação e expropriação territorial
pelos circuitos de poder desde o descobrimento do Novo Mundo. Os colonizadores
portugueses e espanhóis tentaram submetê-los a práticas e representações (religião,
trabalho, leis) alheias aos seus modos costumeiros de vida e, no entanto, os índios as
subvertiam atribuindo-lhes outras finalidades que não aquelas que os conquistadores
procuravam atingir. Não que os indígenas as rejeitassem diretamente, pois se as acatavam
pela força, em muitos casos as consentiam pela dissuasão, porém não sem antes a
modificarem, adotando-as para um uso cujos fins escapavam às finalidades de um aparelho
de poder do qual eles próprios não podiam escapar. Suas práticas rituais e seu sistema de
valores, cujas transformações corporais referenciam todo tipo de relação, permitem-lhes a
retomada de outros pontos de vista. Do mesmo modo, a habilidade em reorientar valores
pela diferença se mantém com os hábitos de consumo e o emprego da mão-de-obra no
mercado de trabalho.
O emprego da mão-de-obra indígena nas fazendas e na empresa extrativista aliado
ao consumo nutrido pelo concurso da mercadoria e do comércio no modo de reprodução
tribal (muitas vezes por meio do regime de barracão
62
) são alternativas precárias à redução
dos territórios indígenas e à escassez de seus recursos. Se para o imaginário moderno essa
realidade recai numa aparente negação da condição étnica, para o índio, os
desdobramentos dessas vicissitudes (quais sejam, a individualização, a competição, a
acumulação de bens materiais) estão sendo resignificados, como que consubstanciando um
efeito adverso (como o pertencimento, a cooperação, o parentesco), permitindo ao índio
explorado recompor um mundo que a lógica capitalista tenta lhe furtar a todo o momento.
Assim, alguns grupos indígenas vêm conseguindo relativa autonomia, como é o caso dos
62
Mecanismo de coação do trabalhador pela administração de dívidas adquiridas pelo consumo compulsório de
alimentos, ferramentas, bebidas alcoólicas e pequenos utensílhos que facultam a sua submissão e o seu
confinamento, garantindo assim mão-de-obra sempre disponível e barata ao empregador.
139
índios Parkatêjê (Gaviões) que, após serem removidos para a Reserva Mãe Maria, no sul do
Pará, e convertidos em coletores de castanha pela instituição governamental que os tutela,
a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), passaram a gerir além do seu próprio território a
produção e comercialização da castanha-do-pará, atividade que lhes propiciou um meio de
subsistência não somente material, mas igualmente simbólico, pois permitira a reprodução
das instituições e práticas rituais arrefecidas pela sua integração na economia regional
(Martins, 1986, p. 38).
Similar obstinação quanto à relativa integração de um grupo indígena pela
sociedade moderna sem que se desagregasse de todo o modo de vida tribal foi notada por
Oliveira (1996, p. 77, 96) a propósito do emprego dos índios Tükúna nos seringais da
Amazônia. Embora incorporados à economia regional, submetidos que estavam a um
sistema servil caracterizado pelo “regime do barracão” nas fainas seringueiras no alto
Solimões, os Tükúna mantiveram vivas instituições como o parentesco, o matrimônio entre
metades exogâmicas ou clânicas e os cerimoniais de iniciação das mulheres ainda jovens,
fundamentos culturais que norteiam suas principais condutas e atitudes. “Os Tükúna,
embora relativamente acomodados à nova situação, nem por isso se tornaram verdadeiros
seringueiros. Os hábitos tribais faziam uma espécie de triagem sobre os modos de vida
alienígenas que lhes desejavam impor” (ibid., p. 76).
O aliciamento da mão-de-obra indígena faculta ao índio passar de uma consciência
étnica ao que poderíamos chamar, por falta de um termo mais apropriado, de uma
consciência de classe, ou ao menos acessar os rebatimentos de suas diferenciações por
partilhar com trabalhadores assalariados os rigores de uma pronunciada exploração do
trabalho. Sempre depreciado, mesmo entre os estratos mais subalternizados dessa
estrutura de classes, ele não revoga sua condição étnica, embora assimile o novo perfil. Ou
antes, ele não se aliena de todo por incorporar valores modernos, de outro modo, ele
mantém sua integridade étnica reforçando sua identidade indígena por incorporar a
diferença como fundamento de sua matriz corpórea. Se o outro é o branco, independente de
raça, credo ou classe, embora ele (índio) tenha provado da sua perspectiva, é esse novo
horizonte reversível a todos os outros que vai orientar a sua permanência. O que se verifica
pelo fato da produção indígena, a partir da intervenção dos regatões (como variante do
barracão junto ao igarapé), passar a ser comercializada, sofrendo com isso uma ligeira
derivação para uma economia de trocas;
63
muito embora, isso jamais tenha chegado “a
modificar substancialmente a organização tradicional do trabalho indígena”, afirma Oliveira
(ibid., p. 111) remetendo ao caso Tükúna.
63
Oliveira (1996, p. 111) notaria que “a mandioca e o peixe deixaram de ser produzidos na quantidade suficiente
para o consumo doméstico (ou mesmo tribal), passando essa produção a ser incrementada, estimulada pela
perspectiva de troca pelas mercadorias do homem branco”.
140
Em outro trabalho, Oliveira (1968, p. 57) admite que os índios Terena um dos
mais destacados grupos tribais do Brasil, com ampla inserção no mercado de trabalho
circunspecto às reservas em que habitam no Mato Grosso do Sul, de vez que sua mão-de-
obra é bastante requisitada regionalmente
64
estariam passíveis de assimilição a partir da
terceira geração de indivíduos que por ventura integrassem a economia regional, assim
como em casos de emigração das aldeias para áreas urbanas ou ainda por ocasião dos
matrimônios interétnicos. Basta olharmos ao nosso redor (refrimo-nos à realidade brasileira)
para percebermos algumas pessoas de notada ascendência indígena que perderam a
referência genealógica da qual descendem, talvez em função de um desses processos ou
de possivelmente alguns outros ignorados por Oliveira. Queremos dizer com isso que não é
algo incomum que indivíduos indígenas percam traços culturais em favor de outro sistema
de valores. Não obstante a veleidade de tais conclusões, os índios Terena que se
mantiveram em coesão tribal, e esse dado pudemos testemunhar alhures (Lima, 2004, p.
20), reiteram com obstinada convicção sua etnicidade, o que se verifica pela manutenção de
costumes como a festa do bate-pau, um cerimonial que resgata pela tradição oral as
façanhas e atos heróicos de seus antepassados.
O censo demográfico do IBGE
65
(2005, p. 19) contabilizou no ano de 2000 o
quantitativo de 734.127 indivíduos indígenas no Brasil contra 294.131 segundo o censo de
1991, sugerindo um expressivo aumento da população indígena no intervalo entre as duas
pesquisas. Embora considere o crescimento vegetativo indígena e a imigração originária dos
países limítrofes, o IBGE reconhece que tal acréscimo se deve antes à auto-identificação
étnica do que propriamente a um efeito de crescimento demográfico, tendo em conta que
sequer havia uma categoria “indígena” como opção para os campos raça e cor nas
pesquisas anteriores, o que levara então os entrevistados a se declararem em outras
categorias (ibid., p. 35). Desse total, mais da metade (383.298 indivíduos) residem em áreas
urbanas, segundo o censo de 2000, o que dispõe modos diferenciados de reprodução e de
relações sociais aos dos padrões costumeiros empregados na vida tribal, curiosamente
enquadrados na pesquisa do IBGE como situação de domicílio “rural específico”
66
(ibid., p.
35). Não obstante, ainda que integrado a um ambiente urbano e a um mercado de trabalho
alheio ao modo característico de reprodução indígena que põe em causa todos os traços
64
De acordo com Oliveira (1968, p. 57), das 121 famílias que constituíam a reserva Cachoeirinha em 1957,
apenas 19 famílias Terena (17%) viviam exclusivamente da agricultura interna e do artesanato, enquanto que
46% dos grupos domésticos viviam exclusivamente do trabalho externo, e outros 37% das famílias conciliavam o
trabalho em suas roças com o trabalho estacional externo à reserva. Este autor conclui que mais de 80% dos
Terena da reserva dependiam do trabalho externo.
65
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
66
A expressão “rural específico” demonstra como a política estatal voltada para a problemática indígena ainda
guarda resquícios do antigo SPI, negando a condição étnica a esses povos em favor de uma progressiva
integração à sociedade moderna, mesmo que isso signifique adequá-los a um modo de vida tipicamente “rural”
ou camponês e embora o IBGE não seja o órgão estatal indigenista oficial, isso não torna a questão menos
emblemática.
141
culturais nativos, o índio continua se auto-identificando enquanto tal como atestam os dados
do censo de 2000, embora não se possa precisar as pessoas que se declararam indígenas
com filiação étnica a povos específicos.
Vale notar que a região Sudeste desponta como a terceira região de maior
incremento populacional indígena com 17,5% do total de indivíduos indígenas no país (ibid.,
p. 63), antecedida pela região Norte (29,3%) e Nordeste (28,5%), dados que contribuem
para especularmos, no primeiro caso sobretudo, dado o caráter urbano mais pronunciado, a
participação das populações indígenas na economia regional. Tais números respondem pelo
fato da região Sudeste receber a maior parte dos imigrantes indígenas do país (cerca de
30%), enquanto o Nordeste detém o maior número de emigrantes, refletindo o mesmo
quadro migratório para o conjunto da população do país, em que Nordeste e Sudeste se
apresentam, respectivamente, como os principais pólos emissores e receptores de
população, o que supõe que os indígenas parecem experimentar os mesmos fatores de
expulsão e atração verificados para os migrantes brasileiros nas duas regiões, ou seja, por
um lado a depreciação das condições de vida pela escassez dos recursos materiais (leia-se:
são expropriados de suas terras) e, por outro, a busca por melhores meios de subsistência.
É também no Nordeste e Sudeste onde se verificam o menor número de terras indígenas
homologadas, o que nos convida a presumir que os entrevistados nessas regiões, face ao
elevado quantitativo de indivíduos, não devam residir em sua totalidade em aldeamentos ou
comunidades, muito embora nessas regiões se registre a maior ocorrência de auto
declaração de indígenas em áreas urbanas (ibid., p. 69).
A reprodução de valores alheios aos valores nativos, resultante do confronto com
culturas contrastantes como as sociedades urbanas modernas, não decorre de uma
incorporação por inteiro de uma estrutura social por outra, como se a assimetria da relação
de poder provocasse o total esvaziamento do pólo desfavorecido, mas insinua, todavia,
outros rebatimentos, outras leituras possíveis do mundo. Embora as sociedades indígenas o
tenham feito sob condições de atroz subalternização, elas mobilizam meios de
restabelecerem uma relativa integridade fundamentada em preceitos míticos e rituais.
Sabem a modernidade”, vai dizer Porto-Gonçalves (2005, p. 29), “por tê-la saboreado pelo
seu lado amargo, mas o fazem a partir de recursos epistêmicos próprios, resignificados e
atualizados”.
As sociedades indígenas foram tragicamente violentadas e saqueadas, o que se
verifica pelo esfacelamento de muitos de seus costumes e tradições, bem como pela
retração de seus territórios. Não são poucos os casos em que essas comunidades
confrontaram abertamente essas forças, e muitas delas foram severamente punidas. Ribeiro
(1979, p. 225) observou que as atitudes belicosas, bem como as rigidamente conservadoras
de alguns grupos, retardavam os efeitos deletérios da experiência de contato com as
142
sociedades circundantes, mas essa sobrevida apenas adiava um destino trágico. Enquanto
que a receptividade e a predisposição à mudança conduzia quase que prontamente ao
extermínio do grupo pelo colapso gerado. Muitas comunidades foram assim assoladas e
aniquiladas e as que resistiram a essa experiência de contato passaram a viver submetidas
a anomia e sob condições extremamentes frágeis.
Os grupos que conseguiram sobreviver ainda que precariamente a esses cercos
são precisamente aqueles que desenvolveram alterações estratégicas na reconfiguração de
suas identidades. Renunciando ou não os valores impostos, foram bastante hábeis em
redimensionar seus efeitos, em redirecionar o uso e finalidades de práticas, objetos e
valores cujas intencionalidades lhes são alheias. A essa restruturação do modo de vida tribal
com fins de garantir a identidade Ribeiro (ibid., p. 226) vai chamar de “transfiguração étnica”:
O próprio imperativo de construir essas novas configurações com elementos tomados das
antigas e segundo valores e critérios delas provenientes, permite às etnias tribais guardar
certa continuidade ao longo de sua transfiguração. Preserva-se, desse modo, a identidade
tribal, senão como um todo de conteúdos uniformes, ao menos como uma sucessão
particular de alterações, através das quais se mantém a singularidade de cada etnia, apesar
de sua crescente homogeneização. Para essa preservação contribui ponderavelmente a
predisposição inerente às etnias de desenvolver mecanismos de intensificação da
solidariedade grupal e de autodignificação em face dos estranhos, seja mediante a
restauração de velhos mitos, seja pela criação de novas representações de mundo.
A despeito da incorporação de valores alheios aos seus costumes e tradições, as
sociedades indígenas, quando submetidas ao jugo dos circuitos de poder mundial sob a
égide do capital, têm redimensionado seus efeitos, atribuindo-lhes outros significados com
base nos traços indeléveis de suas respectivas culturas que envolvem elaborações do corpo
particularmente difusas. Martins (1986, p. 28) observa que “essa lógica perversa do capital
atenua o impacto da mercadoria e do mercado nos grupos tribais, ao mesmo tempo que os
obrigam a recriarem suas condições de subsistência segundo suas próprias tradições, ainda
que adaptadas”. Assim algumas comunidades indígenas têm conseguido sobreviver às
imputações a que são submetidas, enquanto muitas outras, por não serem tão hábeis em
mobilizar outros usos e finalidades para as práticas e valores impostos, foram dispersadas
ou exterminadas. Taylor (1996, p. 211) argumenta que uma zona limítrofe da cultura
indígena que tende a se esvanecer num contexto de aculturação, tornando as tradições e
costumes vulneráveis, entretanto há também, sustenta a autora, elementos centrais na
cultura indígena que permitem a conservação dos traços culturais e identitários, como, por
exemplo, a manutenção das relações de parentesco e de comensalismo, os cerimoniais de
passagem e as trocas clânicas, ritos que respondem pela permanência de alguns costumes,
mantendo-os mesmo com a pressão das sociedades modernas.
Tais estratégias não são empreendidas de forma deliberada e voluntária, e sim de
maneira inadivertida, pois consubstanciam um fundamento cultural de reprodução sem que
143
necessariamente se de forma consciente. Elas vêm desde muito reorganizando a
identidade tribal, mesmo antes dos grupamentos indigenas sofrerem as reduções infligidas
pelos colonizadores e pelas missões cristãs, quando se abatiam com outros grupos nativos,
gerando novas concepções de tempo, de espaço e de corpo à medida que suas culturas
iam se integrando pela incorporação dos capturados como soldo dos espólios de guerra. Os
rituais de transformação do corpo que autorizam outras perspectivas de mundo para
consolidar identidades são legados culturais que subsidiam essas estratégias silenciosas.
Muitos grupamentos indígenas atribuem o que chamamos de alienação a uma
nova variação do corpo, tal como encarnam em seus rituais tipos animais para garantir uma
subjetiva equivalência humana. Vestir roupa de branco significa transformar-se em branco,
mudar o corpo. Transformar o corpo possibilita habitar um novo contexto, atuar outras
relações. Os Wari’ se assumem como branco por comerem arroz, macarrão, usarem sabão,
vestirem roupas manufaturadas, ou seja, por praticarem, enquanto brancos, hábitos
relacionados às afecções humanas e à idéia de comensalismo (e não propriamente hábitos
como religiosidade, assistir tv e acumular bens), assim como um xamã se reconhece como
onça ou outro animal qualquer quando nota o aparecimento de pêlos em seu corpo, come
outros animais crus ou conversa com a espécie que se identifica (Vilaça, 2000, p. 67). Isso
não os impedem de circunstancialmente abdicar de todas essas práticas e afirmarem sua
identidade Wari’, de modo que todas as crenças e valores atinentes à cultura Wari’ são
reconhecidas em face de um corpo enquanto tal. A negação da existência de tais crenças é
facilmente admissível mediante a eventual transformação em branco.
Essa intermitente troca de papéis, contudo, não se limita a transformações
superficiais. Suas relações mudam em face de um novo corpo. Tais transformações são tão
necessárias quanto qualquer afecção somática como se alimentar, descansar e fazer sexo.
Desse modo, o índio redescobre um novo envoltório, uma nova maneira de expressar sua
face humana, sem, contudo, deixar de afirmá-la como valor indispensável de sua realidade.
Embora em muitos casos seus traços físicos evoquem uma total descaracterização étnica,
no íntimo de seu ser ele continua se auto-identificando segundo sua etnia.
Utilizar roupas ocidentais foi por muito tempo uma estratégia de sobrevivência,
uma maneira de se resguardar ante as imputações da sociedade envolvente (Vilaça, 2000,
p. 57). Se até os anos 1960 muitas etnias procuravam certa discrição com o uso de vestes
brancas (como calças, camisas e sapatos) é porque predominava um discurso político-
ideológico no imaginário moderno que desqualificava a condição étnica do índio,
classificando-o como atrasado e indolente. Discurso que muitas vezes repercutia em assaz
prejuízo para os povos indígenas, acometidos por todo tipo de barbaridades. Marcos
144
Terena
67
(apud., ibid., p. 57) clarifica bem essa precaução: “A sociedade envolvente, seus
costumes, seriam apenas uma capa. Por uma questão de sobrevivência, o índio usaria essa
capa, assim como você usa uma capa para se proteger da chuva”. Hoje, contudo, prevalece
uma estratégia um tanto quanto diferente.
Com a emergência da problemática ambiental e a associação das sociedades
indígenas a uma natureza idealizada, por vezes romantizada, a pintura corporal ganha
relevância por atender a uma representação igualmente idealizada das sociedades
modernas, sobretudo alguns estratos progressistas da classe média. Assim, certos grupos
indígenas têm conseguido negociar algumas de suas demandas. Eles se valem de um
imaginário étnico concebido por uma retórica ambientalista a qual perpassa por um conjunto
de símbolos estereotipados que inclui a ornamentação do corpo através, principalmente, de
pinturas, escarificações, uso de plumagens e outros adornos.
A natureza da eco-política contemporânea especialmente a dependência em relação à
mídia global e organizações não governamentais – intensifica a pressão para que os
ativistas indígenas se adequem a determinadas imagens. [...] O simbolismo visual está no
centro dessa história porque a política da aliança indígeno-ambientalista é primeiramente
uma política de símbolos (Conklin, 1997, p. 712).
Para alcançar maior visibilidade alguns grupos indígenas tentam corresponder a
uma determinada representação identitária construída no imaginário das sociedades
modernas, invariavelmente a que os identificam como uma unidade cultural independente
das diferenças inerentes a cada grupo étnico, visando, assim, obter maior respaldo dessas
sociedades que os reconhecem, enquanto índios, mediante uma caracterização tornada
aceitável por meio de adornamentos corporais, embora muitas vezes tais ornamentações
sequer guardem qualquer correspondência com seus costumes.
Ao adornar o corpo certos grupos indígenas representam um papel, comportam-se
como as sociedades modernas esperam para serem legitimados como tais, assim como
suas lutas e reivindicações. Ao fazê-lo, entretanto, poderão estar negando a si mesmos por
não assumir sua identidade. Sendo assim, esse ideário simbólico da etnicidade indígena
concorre para uma dupla alienação: a alienação de segmentos da classe média burguesa
que pensam valorizar a cultura indígena com base em signos estereotipados; e a alienação
do indígena que busca afirmar uma autenticidade, porém em outras bases que não
propriamente as suas, pois, embora o façam redefinindo seus fins, tal manipulação muitas
vezes não é feita de forma deliberada. Nesses termos, poder-se-ia dizer que muitos índios
(sem incorrer em generalizações) são mais autênticos quando mantêm o vestuário
ocidental, considerando que sua incorporação, além de constituir parte de um processo
67
TERENA, Marcos. A Sociedade Branca é uma Capa que o Índio usa para Sobreviver. Folha de São Paulo.
São Paulo, 3 de maio 1981, Folhetim, p. 5.
145
histórico de construção de identidade, está de acordo com a disposição corporal orientada
para constantes transformações. Ou, por outro lado, estariam uma vez mais redefinindo
essas identidades através de uma nova reorientação do corpo com base nas expectativas
de um segmento da sociedade moderna suscetível a uma representação de natureza
romantizada, reproduzindo seus meios para realocar seus fins em causa própria.
Não obstante, tanto a aculturação como a manipulação de uma representação
étnica pelos índios (se for o caso), parecem restritas muito mais a uma apropriação de
ordem corporal do que propriamente a uma assimilação espiritual, ou seja, de uma anulação
da essência humana (fundamento ontológico do pensamento indígena, como sustentam os
etnólogos), embora os efeitos no corpo fatalmente impliquem em rebatimentos no espírito.
Realocando as contingências que lhes recaem os indígenas passam do Araweté ao Kayapó,
do Wari’ ao animal, do Fulniô ao branco, sem, no entanto, se encerrarem numa condição
constituída e irrevogável. Verificam-se mudanças de ordem prática como a alimentação, o
modo de vestir, a linguagem falada, o sexo interétnico e o arranjo do espaço tribal.
Transformações que remetem a uma transcendência explicita e contingente do corpo, mas
que, no entanto, associam-se a uma imanência implícita e necessária da alma, do
significado de humanidade enquanto relação de pertencimento com um todo.
Aqui os termos da legalidade natural e cultural, bem como da identidade e da
diferença, se invertem e se confundem, combinando indistintamente por intermédio das
mesmas relações as dimensões econômica, política, social e religiosa. Relendo a escrita de
seus preceptores ao tempo da inscrição de uma lei, de um saber, de um poder as
sociedades indígenas reescrevem no próprio corpo o destino de suas vidas. É desse modo
que as sociedades indígenas têm conseguido sobreviver às pressões que a sociedade
capitalista exerce sobre os seus costumeiros modos de vida. É assim que a tradição
indígena vem reinventando sua corporeidade. A questão que cabe ressaltar, afinal, é a de
saber como as sociedades modernas vêm reinventando a sua corporeidade em face da
crise de paradigmas que se anuncia, diante de um presente que não mais se satisfaz com
as certezas estabelecidas.
146
CAPÍTULO IV
A REINVENÇÃO DA CORPOREIDADE
Vasculho o corpo do outro, como se quisesse ver o que
dentro, como se a causa mecânica de meu desejo
estivesse no corpo adverso.
Proust
Cada revolução, cada crise de paradigma, cada ruptura epistemológica anuncia
uma nova arquitetura de tempo e espaço, enunciando consigo uma renovação de
conhecimentos, novas relações de poder, uma nova postura em face da natureza e, como
não poderia deixar de ser, uma redefinição do sentido de corpo. Elas impõem distinções,
classificações, nominações, evocando, enfim, a conceituação das novas relações
estabelecidas. A descoberta científica, a nova teoria e a inovação técnica e tecnológica
promulgam o redimensionamento da correlação de forças instaurada. Foi assim com o
sistema heliocêntrico em Copérnico, com a conservação da massa em Lavoisier, com a
circulação sanguínea em William Harvey, com a física de Newton e a de Einstein, com a
hereditariedade em Mendel, com a evolução das espécies em Darwin, com a microbiologia
em Pasteur, com o materialismo histórico em Marx, com a produção seriada em Ford, com o
inconsciente em Freud e com as notas de Beethoven. Todos e muitos outros mais
contribuíram para a pluralização de um novo olhar sobre a realidade, compuseram, cada
qual a seu termo, a mediação de extremidades desconexas que, a despeito de seus
esforços, continuaram a não se encontrar no final das contas. Embora alterassem os meios,
os fins permaneceram os mesmos.
Podamos os galhos sem nos atermos ao caule dos problemas que se avolumaram
espalhando suas folhas pelos ventos da história. Mantivemos a propensão moderna em
buscar soluções para as crises: imprimindo resultados para atingir um equilíbrio, evocando
revoluções e rupturas para romper com o passado, reproduzimos a compulsão de manter a
regularidade, de alcançar a emancipação humana, de separar as coisas dos signos,
objetificando-os para ironicamente nos sujeitarmos, distribuindo-os em entes para em
seguida reagrupá-los e novamente tornar a cindi-los.
147
Assim a enxada, a tração animal, o moinho, a combustão fóssil, o motor a
explosão, a luta de classes, a pneumática, os micróbios, os átomos, a eletricidade, os
condutores de silício, a fissão e a fusão nuclear, os autômatos, as viagens espaciais e o
DNA se apresentaram como meios de superação de necessidades que a liberdade humana
alimenta descoberta após descoberta. Tais inovações testemunham a ruptura com velhas
relações inaugurando elas mesmas outras novas, reivindicando para si a autoria do
deslocamento de sentido que inspiram como marco de uma nova faceta da aventura
humana.
Atravessamos uma nova crise de paradigmas, talvez pela inépcia que todas as
propostas e pretensas soluções que se apresentaram mostraram em romper ou superar as
antigas crises da modernidade. Crise que consiste precisamente, como ressaltou Hissa
(2006, p. 86), na crise da ciência moderna e das instituições que lhe dão suporte. Deduzida
a totalização do conhecimento e a insustentabilidade das ciências, esta perde sua
capacidade preditiva de prescrever certezas, dissipando, assim, o sonho moderno de
construir uma sociedade homogênea e centralizada com base numa racionalização dos
processos sociais e naturais. Considerando a modernidade por concluída e superada,
evoca-se o “fim da história”, saudando-se a sobrevivência do capitalismo às suas
alternativas e mesmo à suposta derrocada da modernidade. Ao largo de outras alternativas
que se apresentaram no curso dos acontecimentos como a idéia da complexidade dos
processos de sintetização da matéria associados aos processos de ordem biológica e
cultural, a sustentabilidade ambiental como contrapartida econômica de resignificação da
natureza, a reorientação de um paradigma da vida calcado nas substâncias para um
paradigma da vida como possibilidade e, para a nossa surpresa, o retorno ao senso-comum
(de onde curiosamente parte todo cientificismo).
As perplexidades que pairam sobre as questões de ordem ontológica e epistêmica
têm o seu correlato na degradação dos processos naturais, ou seja, na deterioração dos
processos de transformação da matéria e de energia pela intervensão econômica irrefletida
nos procedimentos bioquímicos das cadeias tróficas, no processamento de resíduos e na
regulação climática e atmosférica. A degradação ambiental é, portanto, o indício mais
flagrante dos limites da racionalidade científica e instrumental, mas não podemos olvidar a
não menos importante degenerescência do tecido das solidariedades sociais. As aspirações
a uma totalização homogeneizadora de todo devenir cultural e natural como meios de
garantir as promessas modernas de prosperidade e emancipação humana a partir do
controle preditivo e sistemático dos processos naturais, para o qual vai convergir um
fracionamento do conhecimento e uma vertente ontológica essencialista que distingue o ser
dos entes, cai por terra diante de um anacronismo cuja expressão mais notória evidencia-se
pela entropia sócio-ambiental instaurada.
148
Eleva-se uma aura de inquietações que vem se espraiando por todos os campos
do conhecimento, referendando todo o discurso daquilo que estão qualificando como pós-
modernidade, para o qual os sincretismos filosóficos dão testemunho; embora essa
inclinação para rupturas seja propriamente uma compulsão moderna. simulacros por
todos os lados. A física quântica defende corpos tão diminutos que não acatam a lei alguma,
inclusive a lei da gravidade da física clássica. De leis causais passa-se a dados acausais.
Anuncia-se a morte do sujeito, que perde seu fundamento ontológico (baseado nas
essências), o que significa por outros meios destituir o objeto de seu caráter continente, ele
igualmente se dilui. O espaço se desvanece em face de uma compressão tempo-espaço
(Harvey, 1989, p. 219), diante de um “tempo-real” cuja velocidade e instantaneidade
controversamente o torna inapreensível.
No corpo essas novas possibilidades são emblemáticas e despertam mais temores
do que promessas. Na atual “sociedade da informação” o corpo em sua organicidade teria
se tornado obsoleto. Para suprir essa defasagem junto a um meio digitalizado estaria ele
suscetível a certos upgrades (Sibília, 2002, p. 13). “Assim, entregue às novas cadências da
tecnociência, o corpo humano parece ter perdido a sua definição clássica e a sua solidez
analógica: inserido na esteira digital, ele se torna permeável, projetável, programável” (ibid.,
p. 19). Uma série de investimentos de poder recai sobre o corpo que, sem abrir mão da
individualidade, almeja transcender sua limitação fisiológica por meio de enxertos
nanotecnológicos, xenotransplantes, tecnoimplantes, manipulação genética e apetrechos de
realidade virtual, potencializando assim suas capacidades proprioceptivas a fim de se
integrar ou se conectar, como diz a linguagem corrente, a um meio tecnocientífico.
Se o corpo moderno em sua inclinação dualística vai romper com todas as coisas,
isolando-as para objetificá-las, analisando-as para sintetizá-las e novamente separá-las,
incorrendo numa incomensurável independência do meio que o circunda, o corpo do atual
momento de crise que se avulta parece querer se reintegrar a um meio, porém não mais o
meio concreto técnico-natural do qual havia se destacado, mas, todavia, um meio volátil e
efêmero, um meio tecnocientífico marcado por um intenso conteúdo informacional que se
tornara a nova natureza (codificada geneticamente). Meu corpo permanece pelas mãos da
Criação, mas desta vez reorganizado na direção do indeterminado” (Almeida, 2006, p. 151).
Recalcado por seu isolamento na modernidade o corpo tenta por ora se religar a um meio.
Para atingir esse fito ele reclama uma essência informativa, comprometendo ao mesmo
tempo a singularidade e a multiplicidade que caracteriza a espécie (Segurado, 2005, p. 109).
O genoma humano, o principal vetor dessa transformação, consiste num código a ser
decifrado, uma informação genética contendo instruções da estrutura da molécula de DNA
que pode revelar uma doença latente, traços de subjetividade ou o segredo da vida.
“Quando o corpo e todos os seres vivos tornam-se informação codificada, o que permite a
149
manipulação e replicação da própria vida, é a transformação ontológica do humano que está
em jogo” (Santaella, 2004, p. 31).
Novamente o corpo vai referenciar e se inspirar num espaço. Se ele se desvanece
em face de um tempo-virtual (e não “real” como se alega), se interligando a um meio
informacional, o espaço analogamente tende a se esvanecer pela velocidade que nos
desorienta e desnorteia. Se não mais o apreendemos, dado o desvario de uma velocidade
despótica, não poderia ele se prestar de extenso. Nos vemos às voltas com um
neocartesianismo high-tech; mais uma vez um plano material parece negligenciado. Se
antes o corpo era impuro e pecaminoso, qualidades contra as quais se deduziria um espírito
puro e são, bem como a punição necessária para não corrompê-lo, ele agora parece
obsoleto e defasado, qualidades para as quais vão incidir enxertos e implantes neurais e
cibernéticos para suprir suas supostas deficiências fisiológicas. “O ator volta-se então, com
ressentimento, contra o corpo marcado pelo pecado original de não ser um puro objeto de
criação tecno-científica” (Le Breton, 2006, p. 89). Novamente o corpo se torna a mediação
entre realidades desconexas, desta vez entre um meio presencial e outro virtual. Agudiza-se
a tensão entre subjetividade e estrutura, colocando em causa a corporeidade.
Não nos interessa por ora alimentar uma discussão a propósito de que estaríamos
ingressando ou não num novo estágio da trajetória histórica ocidental ou de que estariamos
em presença de uma ruptura epistemológica, até porque essas alegações reservam uma
contradição que reside numa propensão moderna evolutiva de rescindir com o passado.
Sendo assim, qualquer apologia de superação da modernidade traz consigo,
paradoxalmente, um preceito moderno. Michel Maffesoli (1998, p. 71), dentre alguns outros
pensadores que se entusiasmam com alguns prognósticos pós-modernos como Lyotard,
Jameson e Baudrillard, celebra e opõe uma razão sensível a uma razão racionalista
preconizando reiteradamente a combinação dos contrários (ibid., p. 30, 58, 163, 184), sem
se dar conta que continua procedendo sob os auspícios da modernidade, sem mencionar
que basta a diferença para qualquer tipo de interação e não necessariamente da disposição
de antípodas. É nesse sentido que a pós-modernidade consiste mais num neomodernismo
reorientando seus princípios e fundamentos para o enfrentamento da crise do que uma
superação de fato. Esse “pós-modernismo celebratório”, como o classifica Santos (2006, p.
27), “aponta demasiado para a descrição que a modernidade ocidental fez de si mesma e
nessa medida pode ocultar a descrição que dela fizeram os que sofreram a violência com
que ela lhes foi imposta”.
O relevante a se destacar, em todo caso, é o fato de que o corpo, bem como suas
derivativas concepções de tempo e espaço, atravessam um momento de redefinição pelas
promessas e incertezas que se apresentam em face da transição paradigmática que se
prenuncia, cujo vetor é justamente a crise de um modelo de acumulação, expressa de forma
150
mais inusitada pela degradação de uma natureza tida por transcendente, mas que agora
agoniza reclamando sua imanência, o que pode se verificar pelos impactos que esse próprio
modelo sofre pela entropia gerada no meio ambiente. “Meu corpo está vivenciando o limite
das experimentações, ou o momento em que todas as formas de expressão são
permissíveis”, anuncia Almeida (2006, p. 151).
Talvez fosse mais prudente aguardar um quantitativo suficiente de experiências e
reflexões sobre as possibilidades que se abrem, cujo devir histórico deverá, espontânea ou
deliberadamente pelos atores que o vivificam, delinear seus contornos e caminhos; todavia
não se pode negar o quão oportuna é a chance de especular sobre as probabilidades do
corpo, pois nele reside, o dissemos, a referência para a construção dos conceitos de
espaço, tempo, natureza, cultura e outros, sendo lícita a reciprocidade dos termos
envolvidos. Franqueado a enxertos, adaptações e transformações o corpo ocidental se
diante de circunstâncias favoráveis à redefinição da condição restrita e capciosa que lhe
legou até aqui o postulado moderno, ou seja, a condição de substrato fisiológico alheio às
paixões da alma, como diria Descartes. Abra-se um leque de opções, sobretudo se
levarmos em consideração o que outras culturas teriam para oferecer de subsídios no que
diz respeito às suas relações corporais. A crítica à modernidade que parte de seu próprio
âmago e que se apresenta com maior ênfase no postulado pós-moderno ganha outros ares
(maior vigor, talvez) se a deslocarmos para a crítica oriunda dos saberes que sempre
estiveram à margem da ciência moderna. Deslocamos, assim, nossa análise não para um
momento subseqüente, mas para um conjunto de conhecimentos que, embora
negligenciado, sempre estivera presente. Saberes outros ao nível do senso comum que
sempre foram tidos como suspeitos, estigmatizados pelo saber especializado no curso dos
últimos três séculos.
É no sentido de um diálogo de saberes, como sugere Leff (2002, p.169), uma
hibridação de conhecimentos contrastantes e conflitantes, que se propõe pensar o corpo a
partir de um novo olhar: “[...] a hibridização de identidades e o diálogo de saberes implica a
internalização do outro no uno, num jogo de mesmices que introjetam outridades sem
renunciar a seu ser individual e coletivo” (ibid., p. 217). Um encontro, portanto, entre
identidades, tecnologias, conhecimentos científicos, saberes populares e indígenas;
conhecimentos estes que sempre foram subjugados pelo cientificismo como não-
conhecimento, mas que, desta feita dialógica, possam se confrontar sem, contudo, se
sobreporem uns aos outros. Saberes que não são redutíveis uns aos outros e que por isso
não se esvaziam em face de um pólo conflitante justamente por serem vistos como pólos
é que se depauperam. Mas que, de outro modo, é no conflito e na tensão com outros
saberes que ganham novo alento para se redefinirem e se adequarem a novas
circunstâncias.
151
A noção de diálogo intercultural e de hermenêutica diatópica proposta por Santos
(2006, p. 447) também são particularmente pertinentes para a abordagem em tela. Em um
diálogo intercultural “a troca ocorre entre diferentes saberes que refletem diferentes culturas,
ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis”. A
hermenêutica diatópica sugere que todas as culturas são incompletas, sendo essa
incompletude a tessitura que permite a comunhão entre tantas outras incompletudes que
sustentam a diversidade cultural, social e epistemológica do mundo.
Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à
totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não
é, porém, atingir a completude um objetivo inatingível mas, pelo contrário, ampliar ao
máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por
assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o caráter dia-tópico (ibid.,
p. 448).
Podemos presumir que essa incompletude que é a mola mestra da idéia de
hermenêutica diatópica converge e coaduna, ao que tudo indica, para a incompletude do ser
de que tratávamos no primeiro capítulo.
Walter Mignolo (2003, p. 33), por sua vez, prefere falar de “gnose liminar” ou
“pensamento liminar”, referindo-se aos saberes que se constituíram na tensão e na
interseção com os conhecimentos eurocêntricos, nas margens do sistema colonial-moderno.
“A gnose liminar, enquanto conhecimento em uma perspectiva subalterna, é o conhecimento
concebido das margens externas do sistema mundial colonial/moderno. [...] A gnose liminar
constrói-se em diálogo com a epistemologia a partir de saberes que foram subalternizados
nos processos imperiais coloniais” (ibid. p. 33, 34). Portanto, talvez não devêssemos deduzir
modernidade de colonialidade aqui, de certa forma, outra maneira de cindir e medir o
tempo –, mas considerar a modernidade como produto das margens do sistema colonial-
moderno, embora não interesse por ora nos atermos a tais distinções ou similitudes, mas
antever o rendimento que sua tensão produz.
Não procuramos romper com a modernidade de todo, mas sim, como ressaltou
Mignolo (ibid., p. 129), com a hegemonia moderna enquanto perspectiva epistemológica.
Não significa com isso alijá-la por não acatá-la, mas compatibilizá-la aos saberes
subalternos liminares. Não é, no entanto, como preferiu Mignolo, a produção de
conhecimento de intelectuais (no sentido estrito do termo) da periferia ocidental que
estamos buscando destacar. Mesmo este autor que tenta se desvencilhar do corolário
moderno sugerindo uma gnose liminar não consegue se lhe escapar por lhe fazer
contraponto em toda a sua análise. Não se trata, pois, de ruptura, mas de redefinição. Não
tomemos todo o conhecimento moderno produzido até aqui como um conjunto de essências
de modo que pudéssemos abandoná-lo de vez por constituir um todo fechado e isolado,
152
sem que suas ramificações convidassem à retomada de alguns de seus preceitos básicos.
Nossa meta consiste em identificar sob que quadro de referências se assenta o
logocentrismo moderno para enfim redefini-lo mediante uma confrontação com saberes que
subsistem à sua margem. Estamos mais preocupados em confrontar o pensamento
moderno com conhecimentos sensíveis/intelectuais que não necessariamente se validem
por enunciados e que, portanto, não se apresentam sob a insígnia da episteme, mas como
práticas das quais não se pode desvincular saberes, dispensando assim a preeminência de
especialistas e de conceitos puros. Não significa, portanto, abandonar tudo o que nos fora
reservado, assim como também não consiste numa resignificação gratuita, mas todavia
consiste numa reorientação de sentidos e significados pela confrontação com a alteridade,
com conhecimentos que sempre foram qualificados como residuais, embora fossem, de um
modo ou de outro, copartícipes do sistema moderno.
Propõe-se, portanto, uma dialógica que permita entrecruzar conhecimentos que, de
uma parte, construíram uma elaborada síntese no curso dos acontecimentos expressa numa
razão instrumental e utilitarista que tem almejado equacionar a totalidade dos processos
naturais e sociais; e, de outra parte, saberes que coevoluíram com os sistemas ecológicos
que os abrigam, conhecimentos independentes das especulações científicas e por isso
mesmo desqualificados como resíduos irracionais por um projeto de dominação
tecnocientífico,
68
mas que, todavia, consubstanciam um excelente referencial para se refletir
sobre a renovação do saber, visando, em última análise, a reapropriação subjetiva da
realidade, sobretudo, no que diz respeito ao corpo e tudo o mais que lhe é extensivo. O que
em todo caso supõe uma revalorização das identidades culturais e da produção de saberes
tradicionais modernos (populares) e indígenas, para que possamos redimencionar, ou ao
menos, refletir sobre a concepção de corpo e espaço na contemporaneidade. Os saberes
indígenas e muitos outros conhecimentos populares são o outro da ciência moderna, são o
seu invisível no sentido merleau-pontiano, que não se lhe pode ocultar a diferença sem o
risco do isolamento e de incorrer em essencialismos.
Chamaremos de transcorporeidade essa hibridação de temporalidades, de
saberes, de natureza(s), de culturas e de técnicas. Um processo de renovação do
conhecimento e de complexificação de identidades que se atém à alteridade e que, portanto,
além do enlaçamento de tempos e saberes comportam e digerem dissensos e contradições.
Não consiste num distanciamento ou numa ruptura dos conhecimentos que a precede, mas
68
“Os mitos e os ritos ofereçem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de
observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipos
determinados: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo
sensível em termos de sensível. Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada a outros resultados
além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela o foi menos científica, e seus resultados não
foram menos reais. Assegurados dez mil anos antes dos outros, são sempre o substrato de nossa civilização”
(Lévi-Strauss, 1997, p. 31).
153
sim na convergência de experiências tendo por experiência uma noção muito mais ampla
que a de conceitos puros, pois envolve os saberes implícitos nas práticas que prescindem
de narrativas. Além dos consensos e complementações, envolve também dissensos e
conflitos; a transcorporeidade se faz patente no campo de tensão entre corporeidades
solidárias e conflitantes. Sua dimensão espacial é propriamente a corporeidade dos corpos.
Seu fundamento reside na troca de experiências corporais e, portanto, espaço-temporais,
sobretudo, no que se refere às experiências sensíveis (inteligíveis) indígenas, posto que sua
lógica assegura um redimencionamento constante do corpo e de tudo que lhe é correlativo
mediante a confrontação com a outridade, ou seja, não apenas com manifestações
integradoras de seu ethos (padrão cultural) corporal, mas igualmente com todo tipo de
contratempo e perturbações que lhe recaia. Não se restringe, pois, a um débil sincretismo
de idéias ou a uma miscigenação de corpos orgânicos, mas, de outro modo, supõe a
superação das limitações culturais e de legados epistêmicos.
Na transcorporeidade os saberes nutrem-se mutuamente. Os saberes que estão
em posição de subalternidade empreendem o que Mignolo (ibid., p. 221) vai chamar de
fagocitose,
69
absorvendo o conhecimento subalternizador mesmo que este não os
reconheçam enquanto pares diferenciais, logo complementares, afirmando-se, assim, como
saber sem inoperar o outro. Os históricos de dominação e subordinação estão inscritos no
corpo e, portanto, no espaço; abrigam saberes e conhecimentos que foram descartados
enquanto tais pela razão moderna. Mas, embora a referência à transcorporeidade seja,
como presumimos, o modo próprio de pensar e, portanto, de agir indígena (pois essas
emanações são indistinguíveis entre si), não se pode olvidar a importância da tradição
moderna, que faz aqui a vez da alteridade. Não do modo como está posta, evidentemente,
pois arriscaríamos a reproduzir sua lógica reducionista. Por certo poderíamos nos abster de
evocá-la e passar adiante, mas seria como incorrer mais uma vez à sua própria lógica
homogeneizadora.
Advertimos, contudo, que a superação dos malogros que a modernidade nos
reservou, no que se refere à degeneração dos processos naturais, não passa pela
economização da natureza e da cultura, expressa pela conversão dos organismos e dos
saberes indígenas em sustentabilidade econômica como meio de resignificação da (nossa
relação com a) natureza. De outro modo, aproveitamos esse momento de crise, logo
também de revalorização do saber, para convocar à reflexão levando em conta os saberes
indígenas e o modo como incorporam outros valores redimensionando seus efeitos, o que
significa, portanto, não incorrer num “romantismo selvagem” ou exotismo ou ainda tomá-los
por mero objeto, mas restaurá-los segundo alguns de seus referenciais mais elementares
69
“Fagocitose é precisamente aquele momento no qual a razão do senhor é absorvida pelo escravo, e como (...)
a razão subalterna pratica a fagocitose em relação à outra razão” (Mignolo, 2003, p. 221).
154
com acréscimos de tantos outros mais, amalgamando-os, reinventando-os como algo
diferenciado tanto da própria matriz indígena que o inspira quanto da matriz científica
moderna.
4.1. Corporeidades entre atos: o cotejo entre tradições
Consolidou-se uma idéia bastante pertinaz no curso da história ocidental de que as
sociedades tidas então por mais desenvolvidas teriam a eterna missão designada por Deus,
pelas condições naturais, pela superioridade técnica ou seja qual for a argumentação
evocada, de levar às sociedades supostamente menos desenvolvidas (bárbaras, indolentes,
depravadas e outras adjetivações sempre acompanhadas de conotações depreciativas) a
salvação, o progresso, o desenvolvimento, a democracia ou, aqui também, o discurso que
for mais conveniente para um projeto de dominação.
A idéia de desenvolvimento ou de progresso, enquanto expressão moderna de
uma concepção de tempo, recai num anacronismo que pode ser constatado pelas crises e
contradições de toda ordem que se generalizam nos autorizando a falar de uma crise de
paradigmas. Os problemas ambientais se avultam na esteira dos avanços tecnológicos e do
consumo; as guerras são tão mais eficazes em produzir a morte quanto mais sofisticadas
são as armas empregadas em seu nocivo espetáculo; a difusão de epidemias e vírus letais
é, não raro, derivada de experimentos cujo único fito é a insaciável busca pelo aumento da
produtividade, testemunhamos o retorno de algumas moléstias após serem tidas por
erradicadas no passado. Esses são apenas alguns exemplos suficientemente potentes para
colocarmos em xeque a alardeada e paradoxal noção de progresso ou desenvolvimento.
A noção de tempo tal como as sociedades modernas a concebem é a de um tempo
progressivo, como uma flecha irreversível que encerra todo passado num momento
inalcançável buscando a continuidade e a totalidade. Tempo fugidio que nos escapa
compulsivamente demarcando os acontecimentos em zonas momentâneas e polarizadas do
tipo passado e futuro, tendo o presente um papel mediador dessa polarização. Quebra-se a
temporalidade imanente dos acontecimentos, submetendo-os assim a um tratamento
analítico, para por fim se tentar reuni-los por meio de uma síntese intelectual. O tempo
moderno consiste, pois, numa síntese dos acontecimentos. É o modo de aferir e
sistematizar a experiência humana. Um tempo que rompe com as experiências e estilos de
vida por meio de uma série de revoluções e rupturas radicais, qual seja o caso da revolução
copernicana, das revoluções industriais, dos cortes epistemológicos, da emergência do
Estado, da decodificação do DNA, da invenção dos chips de silício... Também, um tempo
enclausurado, controlado e previsível com vistas a garantir uma normalidade não somente
do tempo em si, mas sobretudo a evitar quaisquer tipos de surpresas subjacentes ao próprio
155
tempo, aquelas que poderiam suscitar o inesperado e a ameaça à regularidade, como a
imprevisibilidade humana, por exemplo.
O Ocidente inventou o tempo para abreviar os acontecimentos, mas logo descobriu
que não poderia contê-lo. A utilidade e a produtividade impressas nas práticas seriam
evocadas a fim de mensurá-lo: se ocupar é não perder tempo (time is money). Mas ele é
fugaz e nos escapa indefinidamente. Não seria, pois, o corpo fundamentalmente temporal
(porque espacial)? Não encontrar-se-ia aqui, portanto, o seu caráter contigencial? Não seria
ele a ordem natural da desordem? A ciência moderna gerou um sistema de leis e normas
complementares e causais entre si (a teoria da gravidade, a termodinâmica, a ótica, o
eletromagnetismo, a conservação de massas) tomadas então por verdades universais e
axiomáticas para que, não somente o tempo, mas todas as demais categorias e dimensões
da realidade humana (espaço, sociedade, natureza etc.), se enquadrassem num padrão
ideal de regularidade, tendo o mito do progresso e do desenvolvimento como retóricas
maquiladoras de um processo histórico que não consubstancia mais do que a manutenção
do status quo.
Os modernos se auto-intitulam como tal qualificando todos os demais povos como
pré-modernos, povos sem-história, sociedades arcaicas, culturas tradicionais sempre em
alusão a um tempo linear e passado, sempre em tom depreciativo, quando muito com algum
saudosismo nostálgico, o que não o torna menos emblemático. A noção de tradição sempre
foi adjetivada pejorativamente pela racionalidade ocidental moderna. Se o corpo, tal como a
natureza, é um dado geral, fadado a uma concepção única e irrevogável na cultura
moderna, assim também será a concepção de tradição, ou seja, algo como que estática,
engessada no tempo e no espaço. O tradicional, nesse sentido, é considerado a
racionalidade que está aquém do moderno no transcurso de um historicismo linear e
despótico. Os modernos pensam que diferem radicalmente de todas as outras culturas e
não se dão conta que abrigam em seu próprio seio uma cultura que não é única e restrita e
que apesar de todos os esforços em tentar dissimulá-las também guardam tradições que
lhes são patentes e que respondem em grande medida pelo pensamento dominante
hodierno, consistindo, sobretudo, no seu embrião. ‘Tradição’ não significa aqui algo
‘anterior’ à modernidade, mas a persistência da memória. A este respeito, não há diferenças
entre as ‘tradições’ africanas e européias” (Mignolo, 2003, p. 98). Talvez devêssemos falar,
portanto, em modernidade indígena, ou algo do gênero, apenas para assinalar que a
tradição não é antagônica ao moderno. Daí porque insistimos na expressão tradição
moderna.
Sendo involuntariamente qualificadas de pré-modernas ou como sociedades
ahistóricas, por contrastar com o tempo moderno, as sociedades indígenas também
mobilizam esforços para manter uma dada ordem social pautada numa noção de tempo,
156
contudo, o fazem de modo diverso das sociedades modernas. Se estas acionam um tempo
preciso, taxinômico e transitório, evocando as semelhanças para manter a identidade,
aquelas vão recorrer a um tempo recorrente e reincidente, sempre ancorado no presente,
vão acionar um espaço ritual a fim de provocar uma suspensão da regularidade do espaço
tribal, evocam a diferença para garantir a identidade. Pluralizam assim o olhar sobre a
natureza ampliando as possibilidades de pertencimento social. Lévi-Strauss (1980b, p. 81,
83) vai perceber que ao invés de um tempo estacionário haveria entre as sociedades
indígenas um tempo marcado por séries cumulativas que derivam das experiências de
contato entre culturas permitindo-as se combinarem voluntária ou indeliberadamente por
meio de migrações, empréstimos, matrimônios, trocas comerciais, guerras. É o “desvio
diferencial” a maior contribuição que cada cultura tem para oferecer à outra (ibid., p. 83).
Assim, uma cultura indígena se mantém por assimilar outras perspectivas de mundo,
assumindo um novo corpo, redimensionando o espaço, conferindo-lhe usos e fins
adequados a um modus vivendi peculiar.
A transcorporeidade convoca o entrecruzamento de tempos, ou antes, de
temporalidades. A um tempo que privilegia a irreversibilidade dos processos vai advir um
tempo cujo acontecer é sempre ressurgente, cujo vetor de porvir se estende em direção ao
passado, e para os quais vai concorrer um tempo presente referenciado no acontecer das
pulsões naturais, por isso mesmo também corporais. Mas a sinergia de tempos também vai
acionar escalas mais gerais das trocas, ampliando o campo relacional das temporalidades
tradicionais, complexificando-o cada vez mais. É por isso que a auto-identificação étnica das
populações indígenas assume hoje dimensões globais, sua manifestação é a expressão
mais dilatada de uma relativa incorporação de valores, pois assume uma identidade
supostamente essencializada, mas cujo fundamento está de acordo com o preceito de
transformação corporal. Mas, assim como as sociedades indígenas incorporam ritmos e
cadências alheias ao seu próprio sistema temporal, ainda que incorram numa reorientação
de seus fins, as sociedades ocidentais também empreendem rituais de suspensão do tempo
histórico a fim de contornar crises e conflitos que ameaçam a regularidade social. Desde a
Idade Média pelo menos, os rituais de confissão (voluntária ou forçada pela tortura)
consistem num dos mais importantes mecanismos de regulamentação e produção de
verdades (Foucault, 2005, p. 58, 59). Porém, tais ritos passaram a ser considerados
rudimentares e supersticiosos com a preeminência da cientificidade moderna.
Na tradição moderna a idéia de natureza é a de uma entidade transcendente
inteiramente exterior ao homem: ideal que vai autorizar o projeto de dominação dos
processos naturais. O mais curioso é que os limites sobre o que sabemos sobre a sociedade
é definido justamente pelo que presumimos conhecer sobre a natureza e vice-versa. Daí as
reverberações da crise ambiental na esfera social. Tomada como puro objeto, não somente
157
natureza e cultura, mas igualmente as concepções de espaço e tempo são inconciliáveis
entre si; fruto de um longo e lento processo de experimentação de um grande número de
variáveis das recorrentes séries de experiências humanas, resultando num elaborado vel
de síntese desses processos a reduzir o seu conteúdo imaginário e mítico, provocando
assim o seu controle sistemático, sobretudo no que diz respeito à natureza.
A tradição indígena não comporta o isolamento entre a natureza de um lado e
cultura de outro, não distingue a coisa do signo, a afecção do conhecimento, o fazer do
saber como usualmente ocorre com a razão tecnocientífica moderna. Parece-nos
equivocado sustentar para as sociedades indígenas contradições do tipo cultura e natureza,
tempo e espaço, razão e sensibilidade no mesmo patamar da matriz moderna de
racionalidade. Se as culturas indígenas detêm suas próprias contradições é outro caso: não
podemos olvidar essa inerência humana. No entanto, o sentido de humano aqui se pauta
em outros termos, já o vimos. O que no pensamento moderno resultou numa elaborada
síntese pelo apanhado das incontáveis experiências no curso dos eventos sociais e
naturais, cujo fundamento provém dessa própria separação, no pensamento indígena vai
surtir um efeito diverso. Na tradição indígena a experiência humana vai agregar a
multiplicidade de eventos, dos quais não se pode distinguir entre sociais e naturais,
assumindo uma condição cultural transcendente para a qual vai convergir uma hibridação
entre corpo, espaço, tempo, natureza, cultura, aldeia..., todos eles imanentes entre si, de
maneira que não estão bem claros os limites e as diferenças entre um e outro.
Na tradição indígena a natureza é a própria relação de corporeidade: corpo,
natureza, espaço e tempo são uma e a mesma coisa, discerníveis todavia pela alteridade
que os unem. Todo o universo, inclusive o que chamamos de natureza, converge e
confunde-se no corpo. São indistinguíveis sem o outro. Disso resulta a dificuldade em se
definir natureza no pensamento indígena sem incorrer correlativamente nas definições de
corpo, de tempo e de espaço. A transformação do corpo é o espaço e tempo em movimento,
é a natureza se redefinindo em uma pluralidade de possibilidades. O céu para algumas
comunidades indígenas, por exemplo, não é somente um elemento da paisagem da aldeia,
mas constitui o próprio arranjo do espaço da aldeia, como uma abóbada imanente,
diferenciando-a de toda e qualquer aldeia à parte, modificando-se ao sabor das brisas e das
variáveis corporais. Não por acaso, haveria tantas perspectivas de natureza quantas forem
as representações de corpos. Se não são evidentes as diferenças que identificam cada um
desses elementos é porque passa pela própria diferença os meios de construção da
identidade.
Na tradição moderna, as ciências naturais sancionaram leis rígidas, inalienáveis,
únicas e universais, tal qual a natureza que lhe comprazia como objeto, tornada igualmente
única, homogênea, com todos os seus fenômenos acatando a uma dinâmica padronizada.
158
Por outro lado, as ciências humanas se diversificaram, fragmentadas em especialidades que
não interagem entre si, assim como são múltiplas as culturas as quais buscam examinar, tal
como a constituição de identidades que também não dialogam entre si. Os saberes
indígenas, por sua vez, comportam inumeráveis concepções de natureza que estão
implícitas nas práticas, pois não apresentam a forma retórica do conceito cujo fundamento é
a enucleação das essências e são tão quantificáveis quanto as variantes corporais, já que o
redimencionamento do corpo desloca a perspectiva e amplia os horizontes de mundo, o que
se reflete na concepção de natureza, de espaço e de tempo. A multiplicidade aqui não é
fragmentada por especialidades, porquanto que a identidade se construa a partir da
diferença, o que elimina qualquer possibilidade de formulação de conceitos voltados
exclusivamente para natureza e para a cultura. O que se evidencia quando confrontamos
essas leituras da realidade são os limites da racionalidade moderna.
Essa postura que desloca o relativismo cultural, típico da modernidade, para um
relativismo natural – ou um multinaturalismo, como prefere Viveiros de Castro (2002, p. 348)
próprio das culturas indígenas e de todas as outras culturas não-modernas, permite, de
acordo com Latour (1994, p. 104), um reencontro com o senso-comum. Retomar o senso-
comum não significa incorrer numa delirante alusão à preeminência de saberes populares
abrindo mão de todo cientificismo como se empreendêssemos uma revanche contra a
ciência moderna pelo alijamento que ela lhe impôs. Significa, antes, o cotejo dos saberes
em jogo, identificando os pontos de contato e as interseções de suas experiências,
extraindo-lhes sínteses para superar suas limitações, conquanto que tais sínteses
repercutam na replicação de suas possibilidades. Aqui também a transcorporeidade
convoca o consenso (ou dissenso) de experiências para perfilar os horizontes de
possibilidades que se abrem. A uma natureza única e distante das culturas modernas
sobrevêm várias naturezas inseparáveis de uma matriz cultural franqueada não somente
aos indígenas mais a vários outros seres viventes conforme o teor das relações instituídas.
Que magníficas probabilidades nos reservaria uma natureza cultural
70
associada a uma
cultura natural imperceptíveis entre si em suas distensões e superfícies de interações.
Reconhecemos hoje que toda identidade está pautada na diferença, na
confrontação com outrem. Na tradição indígena os rituais de transformação do corpo
autorizam a reafirmação da identidade cujo fundamento, em última instância, repousa na
idéia da transcendência da condição humana tornada única e na imanência de uma
natureza heterogênea, porém sem que tal distinção repercuta numa atroz
incomensurabilidade, pois, em todo caso, essas diferenças se alimentam mutuamente. Essa
natureza tornada múltipla derivada da diversidade de experiências corporais é que permite
70
Obviamente, toda concepção de natureza é cultural e carregada de adjetivações. O uso do termo aqui se
coloca como recurso retórico.
159
reafirmar uma identidade cultural, um sentido de humanidade latente em muitos seres. Os
indígenas redimensionam, assim, o corpo em presença do outro, para que se transformando
ele continue o mesmo. A intuição prévia de que o outro é humano, conquanto que
encarnado num corpo variável, desumaniza involuntariamente o eu, assemelhando-o a um
tipo animal, à condição de presa. Essa idéia guarda uma certa correspondência com o que
Sartre (1997, p. 444, 445) vai chamar de “ser em presença do outro”, ou seja, o indivíduo
é compreendido em face das observações e do reconhecimento de outrem, o que supõe
considerar-se como objeto diante do outro como sujeito. Mas no pensamento indígena,
todavia, a construção da identidade segundo uma concepção de humanidade
transcendente, indissociável da concepção de corpo e esse, por sua vez, de um campo
relacional que conforma um espaço, não comporta uma independência entre sujeito e
objeto, entre cultura e natureza, o que consiste, portanto, numa matriz de racionalidade sem
paralelo no pensamento moderno.
A identidade na tradição moderna está pautada na semelhança, na relação entre
iguais. Não exatamente o modo como ela se processa em ato, referimo-nos à sua
concepção em tese. Ela se baseia na afirmação de um eu em face do outro e do
antagonismo que a diferença lhe inspira ou, no limite, pela tolerância a todos os demais. O
moderno não suporta a diferença pelo perigo que ela significa para a regularidade. E
embora a alteridade cerque o indivíduo por todos os lados ele se isolado de tudo e de
todos. Recalcado, ele busca por identidade no que lhe parece mais correspondente a si
mesmo, isto é, no que de comum nos entes essencializados que ordenam sua ótica de
mundo. A identidade moderna se encerra assim numa tradição, numa fé comum, em
interesses afins, numa referência étnica ou de classe. Lévinas (2005, p. 38) acrescenta que
“a individualidade do eu se distingue de toda individualidade dada pelo fato de sua
identidade não ser feita do que a distingue dos outros, mas sua referência a si. A identidade
moderna está calcada, assim, no corpo-para-si, no cuidade de si, no indivíduo e, em última
análise, na transcendência de uma natureza tornada homogênea confrontada e inconciliável
com a imanência de uma condição humana diversa e que por isso estabelece nichos de
identidade.
Nas sociedades indígenas as relações assentam-se em outras bases.
Diversamente da cultura ocidental moderna, que preconiza a semelhança como fator e
fundamento da identidade, é a diferença que possibilita a identidade (sem generalizar, é
claro). Para o Ocidente relacionar-se é identificar-se, para os melanésios, por exemplo,
relacionar-se é diferenciar-se (Strathern, 1992, p. 73, 74). Uma coisa é pensar os termos
dispostos antecedendo as relações, tal como preconiza a modernidade e mesmo a pós-
modernidade, outra é colocar os termos como constituídos pela relação. No pensamento
indígena as relações concorrem para a identificação dos termos e não para sua
160
combinação. A relação supõe, portanto, a diferença. É ela o ponto de partida para a
constituição da identidade. A alteridade vai permitir a relação para afirmação da identidade,
e não para anulá-la. Por serem diferentes, os corpos estão sempre em relação. O corpo é
assim um complexo de identidades. Ele não pertence propriamente às pessoas, mas sim às
relações em que as pessoas estão inseridas (ibid., p. 76).
A transcorporeidade ou o diálogo de saberes deve, aqui, estabelecer-se entre
identidades e diferenças. Deve estar liberada de todo tipo de essencialismo e da paridade
entre os entes para incorporá-los no acontecimento do ser em existência. Não se atendo
pois a permanências, mas, todavia, a co-presenças. Supõe a coabitação com outrem, sem
que esse encontro repercuta em anulação de uma das partes por aculturação, mas que, de
outro modo, amplie seus horizontes culturais e espaço-temporais. Essa co-presença “implica
convivência com o outro, que não é internalizável (neutralizável) num mesmo indivíduo
(Leff, 2002, p. 220). Ao passo que reafirmam sua identidade, recuperando sua história,
memória e práticas tradicionais, as populações indígenas também se inserem, pela
transformação do corpo e do deslocamento de perspectiva, numa rede globalizada quando
se defrontam com a lógica de mercado.
O espaço para a tradição indígena é um meio de relações, e não um espaço
absoluto como nos legou a tradição newtoniana e kantiana, tampouco um espaço
compartimentado e auto-suficiente como prescreve o positivismo e o relativismo, ou ainda,
se preferir, um espaço físico confrontado com um espaço vivido. Se podemos inferir um
espaço dado para diferentes culturas, e portanto um espaço tal como cada perspectiva de
mundo, esse espaço é aquele que repercute as diferentes concepções de corpo. O corpo é
assim um dado comum a todas as culturas no que diz respeito às suas concepções de
espaço. Pelas marcas inscritas nele é possível fazer uma leitura comparativa do espaço. Se
temos um corpo inserido num complexo relacional do qual não se desvincula nem mesmo
como termo constituinte ou analítico, assim também será o espaço correspondente: uma
visão integral e sinérgica em que pelo menos um eixo transversal valida a unidade, a idéia
de humanidade, de onde se depreende a importância do sujeito na análise espacial; mas
nem por isso, contudo, estariam isentos de contradições. Se, por outro lado, temos um
corpo fragmentado em disjuntivas partes e contrapartes, como é o caso da noção de corpo
das sociedades modernas, assim também será sua concepção de espaço: uma perspectiva
fragmentada de mundo em que não se encontra um solo comum; não queremos dizer com
isso que não se possa reclamar relações, até porque se assim o fosse não teríamos sequer
espaço, mas as mesmas, tais como se configuram nas sociedades modernas, pressupõem
compartimentos, indivíduos, corpos especializados e auto-suficientes.
Quando nosso corpo sofre uma alteração inadvertida por força de relações as mais
inusitadas, o espaço também se modifica, de modo que quanto maior a demora em nos
161
recompormos a fim de assimilarmos a nova situação, maior a vertigem de um espaço
inapreensível. A incapacidade em lidar com a imprevisibilidade e com as diferenças é
patente na cultura moderna. De onde se deduz que a inabilidade em aceitar modificações no
corpo (em função de uma doença, pela perda de um membro ou de uma faculdade sensível)
é tão notória quanto. Foi assim que Gregor Samsa, o nauseabundo personagem de Franz
Kafka em A Metamorfose, vitimado por uma terrível transformação,
71
mal conseguia se
firmar e adotar uma postura, e embora seu quarto lhe parecesse familiar, mal conseguia se
erguer e se deslocar.
72
A inépcia em aceitar sua tragédia, tanto quanto a de seus familiares,
faz de suas agonizantes atitudes e comportamentos um alegórico exame de como a
civilização moderna lida com os desviantes sociais cujos corpos não compactuam um
estabelecido padrão estético e asséptico, contrastando assim com a noção de corpo em
outras culturas.
A aversão a tudo que suscita asco, todo tipo de sobras que causam o nojo, se
atribui ao temor de nossos corpos se poluírem e se contaminarem; eles devem ser
resguardados, portanto, de todo tipo de sujeira. Eis aqui um comportamento que reflete e
resume a ideologia de uma civilização. A angústia diante dos dejetos e detritos é por eles
comportarem um risco à sensibilidade corporal, por sê-lo insalubre e principalmente por
subverter toda o ideal moderno de harmonia e equilíbrio social. Os restos são
acondicionados em locais apropriados, importa contê-los afastados dos sentidos que se
condicionaram a hábitos de comedimento e polidez dos comportamentos. Para o quarto de
Gregor Samsa era destinado tudo o que não tinha valor, tudo que era pútrido, fétido e
descartável como ele próprio se tornara. Insuportável para seus familiares, um infortúnio no
contratempo de suas vidas individualizadas.
Para uma cultura individualista, a desgraça de Samsa pertencia-lhe somente e a
mais ninguém. Se ele próprio não se enquadrava mais nos padrões consensuais de
estética, de tempo e de espaço, o que os demais teriam com isso? Importava que sua
moléstia não interferisse na ordem social. Gregor Samsa se transformou na antítese do
ideário moderno. Uma verdadeira ameaça à regularidade social e um perigo às atividades
produtivas: seu patrão não suportou aquela horrenda figura disforme e agonizante diante de
si, não mais poderia Gregor cumprir seu ofício de caixeiro viajante. Deveria, portanto, se
isolar em seu quarto para que sua família não partilhasse de sua tragédia. O seu
isolamento, por conseguinte, pouparia a todos de maiores transtornos, de sorte que se
mantivesse a normalidade, a garantia da renda familiar e o mesmo padrão de vida. Quão
71
“Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de um sono intranqüilo, achou-se em sua cama
convertido em um monstruoso inseto” (Kafka, 2001, p. 9).
72
“Para erguer-se poderia ajudar-se com os braços e mãos; mas em lugar deles tinha agora inúmeras patas em
constante agitação e era-lhe impossível fazer-se senhor delas. E o fato é que ele queria levantar-se. Esticava-se;
conseguia por fim dominar uma de suas patas; mas enquanto isso as outras prosseguiam sua livre e dolorosa
movimentação” (ibid., p. 15).
162
inapto deve ter se sentido Gregor Samsa em sua agonia, ele mesmo impossibilitado de se
aceitar, ou mais apropriadamente, aceitar sua transformação: um corpo disforme
incompatível com os padrões anatômicos valorizados em sua cultura. Cultura que
culpabiliza o indivíduo pela doença e pelo fracasso. A mesma que segrega os desviantes
(doentes, idosos, obesos, dependentes químicos, loucos e delinqüentes) em manicômios,
hospitais, prisões e instituições especializadas para que sejam separados dos sãos e
mantidos sob olhares vigilantes.
A supervalorização de um ideal físico e estético sempre inalcansável nas
sociedades modernas contribui para uma certa fetichização do corpo, bem como para uma
economia da boa forma, garantindo assim uma receita constante para as indústrias de
cosméticos, academias de ginásticas e clínicas de estética e beleza, relegando todos os que
não se ajustam ao mesmo ideal estético ao ostracismo, refletindo assim como a identidade é
equivocadamente concebida nas culturas modernas. O culto ao corpo estimula os incautos a
uma busca frenética pela forma física, manifestação de uma valoração narcisística. Seus
praticantes procuram se afirmar segundo padrões efêmeros de beleza estabelecidos pelas
campanhas publicitárias, daí que o consumo de todo tipo de plásticas corporais,
transplantes e implantes será particularmente patente, enquanto tais pessoas empobrecem
em seu ser. Anulam a si próprios, pois seus corpos carregam o fardo da anonimidade em
sua carne. Metamorfoseiam-se assim em fenocópias descartáveis massificadas pelas
campanhas midiáticas ao ritmo da efemeridade das mercadorias; rostos túrgidos de botox,
seios e nádegas turbinados, corpos esculpidos combalidos em sonhos vãos. Não encontram
na unicidade de seu ser em conformidade com as possibilidades existenciais abertas a
razão de serem autênticos e contribuírem para a pluralidade do mundo. Quantas frustrações
lhes recaem, não propriamente pela decadência dos ídolos-mercadorias em que se
espelham, mas pela anulação de uma vida autêntica.
Nas sociedades modernas todos os desviantes de uma vida pródiga condizente
com os ideais de um esteticismo efêmero, sujeitos a causarem qualquer tipo de ameaça à
razão da produção e do consumo, estão suscetíveis ao abandono e ao interdito. São
lançados fora da sociedade, retirados do alcance de olhares hipócritas que os repelem como
quem se desfaz de lixos e detritos: os doentes e idosos relegados aos hospitais e asilos
(verdadeiras ante-salas de cemitérios) são individualmente culpabilizados por sua doença e
invalidez; os “deficientes físicos”, embora sejam tidos por “portadores de necessidades
especiais”, são freqüentemente constrangidos por sequer lhes reservarem condições
especiais nos espaços públicos; os loucos, cuja subjetividade incompatibiliza com o ideário
social, são trancafiados em instituições manicomiais que lhes renunciam qualquer tipo de
reabilitação; os mendigos são recolhidos para instituições que em nada contribuem para que
superem a condição de indigência, para que não fiquem à vista disputando sua subsistência
163
com ratos e baratas nas lixeiras e lembrar-nos de nossos instintos animais arrefecidos; os
pobres e miseráveis, estigmatizados como potenciais marginais, acusados de
periculosidade pelas elites, que assim se reconfortam da culpa pelo nojo e repulsa que
sentem deles, são segregados em favelas, guetos e zonas de obsolescências, espaços
considerados como à parte das cidades por uma visão moderna que tenta a todo custo
dissimular as contradições. “Nesses atores o corpo não passa despercebido como manda a
norma de discrição; e quando esses limites de identificação somáticos com o outro não mais
ocorrem, o desconforto se instala” (Le Breton, 2006, p. 50).
O desconforto que o nauseabundo miserável, o doloso delinqüente, o insensato
louco infligem ao austero cidadão de bem” (ou de bens) – pagador de seus tributos e ávido
consumidor, por isso mesmo investido de direitos e deveres que não por acaso ajustam-se
ao seu incorrigível egocentrismo, seus ideais de qualidade de vida na ausência dos conflitos
e contradições diárias compele à expulsão ou reclusão desses desviantes sociais como
quem repele os perigos para uma vida arredia de acumulação. Uma sociedade que tenta a
todo custo fazer com que as pulsões e afecções corporais passem desapercebidas não
consegue tolerar aqueles cuja aparência física suscita o horror e o espanto de um corpo
disforme, envelhecido, sujo e faminto. A revolução médica, além de sua preocupação
sanitária expressa na circulação do ar e da água, interviu do mesmo modo na circulação de
pessoas indesejáveis à ordem do trabalho: confinando os indigentes, miseráveis, doentes e
loucos em lugares específicos, classificando-os tal como às suas doenças e condições de
posses, separando-os em séries de classes, alocando-os em instituições especializadas,
incluindo-os como objetos das investigações científicas, individualizando-os como entidades
autônomas, gerando reservas de mão-de-obra e consumo.
Gregor Samsa morrera pela madrugada. Doía-lhe mais o abandono pela família,
que optou se privar da sua condição deletéria, que propriamente o infortúnio de sua
transformação. Quando morto foi ainda empurrado com um escovão pela empregada, como
quem recolhe o lixo espalhado pelo chão. Não somente a vida, mas mesmo a morte
sucumbiu ao individualismo (ao menos para os que não a experienciaram). Le Goff e Truong
(2006, p. 11) recordam que a morte se individualiza entre o final do século XII e o início do
século XIII, por ocasião do concílio de Latrão IV, quando a prática da confissão colabora
para a introspecção e o exame de consciência. “As sepulturas materializam uma história de
mais de mil anos, durante a qual a noção de indivíduo veio gradativamente sendo
elaborada, por meio de sucessivas separações de corpos, corpos que cada vez mais
representavam seres humanos individuais” (Rodrigues, 1999, p. 122). Na modernidade a
morte é cada vez mais um evento individualizado, fundado na salvação individual, sendo o
moribundo confinado em locais apropriados. A última homenagem àqueles que nos deixam
em vida é prestada diante de um túmulo individual. Quanta espécie nos causa o enterro de
164
vários cadáveres numa única e grande cova, não somente pelo horror que isso nos traz,
mas também pelo desconforto que parece suscitar a perda da individualidade. Mesmo na
morte expressamos nossa individualidade e nossas diferenças. Não por acaso, corpo é o
nome que também se aos despojos dos mortos, recordam Miccolis e Daniel (1983, p.
48). Quando os cadáveres decompostos parecem perder seus últimos traços de
individualidade, as formas expressando a hierarquia nos jazigos teimam em vão ostentar
diferenciações. Emprestamos nossos valores para esse mistério da vida.
Nas sociedades indígenas a morte é um acontecimento público. Sua iminência
provoca a comoção de toda a comunidade, envolvendo a casa, os amigos, os parentes, os
vizinhos, os animais. Pela mobilização que provoca na sociedade, o ritual de despossessão
é também, pode-se dizer, uma cerimônia de despedida. O devir-animal” mobiliza toda a
sociedade a empreender práticas ritualísticas marcadas pelo parentesco e pelo
comensalismo com vistas a superar a crise que se instaurou, e não o de isolar o seu ponto
culminante, como se o indivíduo fosse culpado pela crise e responsável por superá-la. Aqui
a transformação do corpo é, portanto, aceita com mais naturalidade. Guimarães Rosa (2001,
p. 207, 208) narra, em seu conto “Meu tio o Iauaretê”, o drama de um índio, exímio caçador
de onças, contratado por fazendeiros para "desonçar o mundo". O personagem de
Guimarães Rosa aos poucos vai se identificando com esses animais e criando um nculo
afetivo com eles, principalmente a sua preferida, a onça Maria-Maria, com quem mantém um
tenro diálogo.
73
Acreditara metamorfosear-se em onça. O índio Mancuncoso não teve
qualquer dificuldade em aceitar sua transformação corporal. Sua mudança despertou-lhe
sentimentos de cumplicidade e pertencimento, de maneira que, de algoz passara a protetor
desses animais. Tais transformações comportam um duplo horizonte de aproveitamento do
corpo: se por um lado, inspiram sentimentos de pertencimento com animais e outros
devires, por outro, provocam a aproximação da comunidade acentuando as relações de
parentesco e comensalismo, inspirando desta vez sentimentos de pertencimento e
identidade com o grupo.
As sociedades indígenas quando assumem um corpo animal ou mesmo ocidental o
fazem de modo a tomar partido de uma nova ótica de mundo, como parte de um
pressuposto histórico e cultural de redimensionamento de um ethos tribal mediante a
iminência de uma crise que ameace a regularidade social. Reordenam, deste modo, um
espaço e tempo tribal, pondo-os em suspensão, de posse de um espaço-tempo ritualístico,
reavaliando assim as atitudes e comportamentos dos indivíduos e do grupo de modo a
73
“Abri os olhos, encarei. Falei baixinho: ‘Ei, Maria-Maria... Carece de caçar juízo, Maria-Maria...’ Eh, ela
rosnou e gostou, tornou a se esfregar em mim, mião-miã. Eh, ela falava comigo, jaguanhenhém, jaguanhém... Já
tava de rabo duro, sacudindo, sacê-sacemo, rabo de onça sossega quage nunca: ã, ã. (...) Quando eu parava de
falar, ela miava piado jaguanhenhém... Tava de barriga cheia, lambia as patas, lambia o pescoço. Testa
pintadinha, tiquira de aruvalhinho em redor das ventas... Então deitou encostada em mim, o rabo batia bonzinho
na minha cara... Dormiu perto” (Guimarães Rosa, 2001, p. 208).
165
marcar suas manifestações culturais; não de forma a mantê-los sempre reféns da recém
incorporada perspectiva, mas, de outro modo, redimensionando seus fins e propósitos para
melhor adequá-los ao modo de vida costumeiro, um modo de vida que traz no corpo as
impressões de tempo e espaço como elementos indissociáveis entre si. Submeter-se a uma
transformação corporal para a tradição indígena não resulta numa anulação de si mesmo,
supõe antes o posicionamento de um ator sintagmático que mesmo acolhendo os padrões e
valores impostos por um aparelho de poder, o faz de modo a reproduzir seus meios para
realocar seus fins e assim reafirmar sua identidade.
Aproximamo-nos da questão que buscamos perseguir desde o início, que é a de
saber como tais estratégias de redimencionamento do corpo a partir das experiências
indígenas podem contribuir para uma reflexão acerca da condição do corpo moderno num
momento de revalorização do conhecimento. O que significa, em outras palavras, inquirir
como o corpo submetido a uma esfera de poder que lhe arrefece e lhe priva a autonomia
encontra em si mesmo os instrumentos de superação do estado de inanição que está
mergulhado.
4.2. Corpo, um instrumento contingente
O corpo na concepção moderna é a base do restabelecimento do espaço como
extensão inapreensível por vias sensíveis e do tempo como momento irreversível e,
portanto, do poder como um dado emblemático de sua realidade. Michel de Certeau (2003,
p. 123) vai denominar de “uma economia do lugar próprio” a difusão de dois fenômenos
distintos, porém, complementares: de uma parte, a reprodução do capital (manifestação
hodierna mais expressiva de poder); e de outra parte, a reprodução do corpo, a quem
atribuirá a geração de tempo (“duração”) e de espaço (“movimento”). O corpo, portanto, está
no centro do debate sobre o poder. Ele nasce a par de um poder latente por meio de um ato
intencional e se transforma, no outro extremo, no veículo para o qual incidem os meios de
atenuá-lo; não de extinguí-lo, mas de contê-lo num estado desalento até que mais uma
vez se insurja furtivamente de modo que não o percebamos. Todo o investimento na
produção do corpo indígena converge para essa premissa. Quando o corpo do índio é
atravessado por forças livres e estranhas, cooptando-o a situações das quais não detém
controle e das quais não pode escapar, podendo ser tanto uma possessão animal quanto o
seu aliciamento a um modo de vida instrumental típico da sociedade capitalista, ele reinjeta
uma outra força; uma força ritualística, mítica, sobrenatural, herdada de um conhecimento
ancestral, transformando seu corpo para melhor conter os efeitos que iniciaram a entropia
sobre o seu modo costumeiro de vida.
166
José Gil (1988, p. 78) atribui as dessimetrias das relações de poder à
historicidade,
74
ou seja, a “um pensamento que não pode pensar o poder senão no (e graças
ao) tempo não recorrente da história”; historicidade que é tão somente concernente às
instituições modernas, como vai advertir Giddens (1990, p. 55), pois demarca um tempo
linear e quantificável em sucessões precisas. Vimos como a concepção de corpo foi
gradativamente ganhando corpo no curso da história ocidental: um corpo partido desde a
aurora helenística e cristã até o inexorável e tórpido individualismo cartesiano e positivista
que assume hoje. Contrastando assim com o corpo indígena, desde tempos imemoriais um
corpo integrado com tudo que lhe é expansível, e cujo tempo admite fluxos recorrentes, “o
que lhes interdiz qualquer idéia antinômica de poder” (Gil, 1988, p. 78). Se o tempo regressa
indefinidamente, o poder igualmente insere-se num ciclo e torna-se o mesmo, porquanto
que seja continuamente mutável a cada geração desde a origem dos tempos, como nos
revelam os mitos. Assim, os chefes indígenas ganham prestígio por sua posição de
liderança, mas são obrigados a compensá-lo com serviços prestados à comunidade
(Clastres, 1990, p. 24), invertendo a assimetria da relação de poder conforme se
convencionou entender entre os modernos.
Nas sociedades modernas o corpo vem sofrendo reiteradamente uma atenuação
do seu precípuo exercício de poder. Não um poder incomensurável que potencializa a seu
bel prazer (ou melhor, segundo os interesses dos agentes que o preside) as relações por
que atravessam os seres humanos; mas um poder que lhe é patente pela intencionalidade
que o insere no mundo: este último cooptado pelo primeiro. Nas sociedades indígenas o
poder permanece atravessando o corpo, este não foi destituído de sua compleição. Douglas
(1970, p. 65) vai salientar que nas sociedades mais estruturadas do ponto de vista técnico,
com categorias sociais bem definidas, o controle sobre os corpos é mais acentuado que nas
sociedades menos estruturadas. Nestas o corpo detém um saber na mesma ordem que
assegura um poder, suas práticas prescindem de um discurso; naquelas o corpo está
destituído tanto de saber como de poder, o primeiro foi isolado por uma narrativa das
competências manuais, para o qual vai intervir o segundo marcando a sua atenuação no
corpo como estratégia de um investimento incisivo da escalada do poder.
É como se o corpo moderno, facultado por uma insidiosa cisão entre um plano
externo e um plano interno, para os quais vão concorrer respectivamente uma
superestrutura técnica e uma intra-estrutura cognoscível ou individual, fosse destituído de
74
“Sociedades sem ‘historicidade’ as sociedades primitivas resistindo à inovação, reabsorvendo-a sempre
em esquemas tradicionais, criaram dispositivos particulares a fim de alcançar, precisamente, o máximo de poder
possível, fabricando redes de captação de potência flutuante, deixando-a flutuar para melhor a integrar. Nestas
sociedades existe apenas uma única perspectiva sobre os objetos de poder: aquela que foi ‘legada pelos
antepassados’ e que diz respeito aos modelos da instituição política, aos ritos mágicos, à terapia, à organização
do parentesco, à forma de educar as crianças, à maneira de cozinhar, às técnicas de caça e de pesca” (Gil,
1988, p.19).
167
poder por ter sido, de certo modo, incapacitado de suas competências instrumentais. É por
isso que o arranjo espacial moderno vai privilegiar formas erigidas não mais para o corpo,
mas para os seus apêndices técnicos (como o automóvel, por exemplo), invertendo assim
os termos da relação instrumental, afinal, teria o corpo no atual momento histórico se
convertido em prolongamento dos instrumentos técnicos? Atualmente esse dado atinge o
paroxismo por se pretender independente do corpo, ou melhor, das faculdades sensíveis
dispensadas no uso de objetos técnicos sofisticados.
A difusão dos sistemas técnicos atuais é de tal envergadura, que mesmo as
espacialidades mais tradicionais, como as sociedades indígenas, incluídas potencialmente
como reservas (de mão-de-obra, de consumo, de recursos) numa ordem hegemônica
global, são seduzidas por sua factualidade, precisão e velocidade e, sendo assim, acabam
por se submeterem à sua razão instrumental e utilitarista. Verifica-se aqui, em última
instância, o tramite de um processo global de desenvolvimento geográfico desigual.
Dissemos anteriormente que a experiência perceptível requer buscar referências em
experiências precedentes. Teríamos assim um emblemático quadro no desenrolar da
facticidade dos objetos técnicos atuais sobre as sociedades indígenas. Sua
incondicionalidade é submetida ao clivo das experiências passadas, que por seu aspecto de
particularidade (em função do sentido cultural próprio e costumeiro) supõe o
redimencionamento de seus resultados ou, do contrário, uma absoluta perda dos
referenciais tradicionais, resultando na completa subordinação dessas sociedades como
de se presumir.
Os corpos indígenas, no entanto, não sofreram uma amputação das competências
instrumentais. Em relação à natureza, o corpo indígena constitui um instrumento técnico por
excelência por confundir os processos de transformação da natureza aos processos de
transformação do corpo, do espaço e do tempo. Não há, por assim dizer, natureza de um
lado e cultura de outro, mas, em todo caso, uma dialética onde os ciclos naturais são
incorporados como ciclos do próprio corpo. E como a natureza para o pensamento indígena
é imanente (e não transcendente) e diversificada, o corpo indígena é igualmente múltiplo por
se transformar indefinidamente ao rigor das vicissitudes que acometem a si e a comunidade,
pois o risco não é individualizado.
Os povos indígenas são portadores de técnicas tão eficazes quanto muitas das
mais sofisticadas técnicas modernas. Obviamente não detêm a mesma facticidade e
precisão típicas dos instrumentos técnicos modernos. Mas, coloquemos em suspensão o
sentido de sofisticação. Talvez seja mais sofisticado quem menos mobiliza recursos para
atingir um dado fim ou quem melhor mobiliza os meios de produção técnica sem que isso se
reflita em assaz entropia. Nesse sentido, esses povos comparativamente tiram melhor
proveito de seus recursos técnicos. Os povos que vivem em contato mais direto com os
168
elementos atmosféricos (como os esquimós, por exemplo), desenvolvem mesmo uma
lingüística empírica do ambiente de entorno (as gradações de tons da neve, por exemplo)
cuja riqueza é profundamente fecunda. Experiência que constitui principalmente um saber
acumulado por incontáveis gerações por meio da observação e experimentação de hábitos
e comportamentos de animais e vegetais, variações do clima e seus efeitos no ambiente.
Estes saberes se encontram mesmo muito distante de uma tipologia climática como a de
Köppen, por exemplo, mas nem por isso são considerados piores ou melhores. Eles são
adequados a uma condição técnica própria do corpo.
A técnica potencializa as sensibilidades do corpo, ou antes, o corpo consiste
potencialmente num instrumento técnico. Marcel Mauss (1974, p. 209) chama a atenção
para o fato de que o corpo foi o primeiro instrumento técnico. Nos albores da história os
objetos técnicos consistem em verdadeiras extensões do corpo. Os objetivos para qual as
ações estão orientadas mantém uma íntima proximidade com a capacidade sensível
corpórea. Com a evolução dos sistemas técnicos, procedendo, no atual momento histórico,
a constituição de um meio técnico-científico informacional (Santos, 2002, p. 238),
caracterizado por objetos de concretudes e objetividades extremas e ações de similar teor
pragmático, impõe-se à quase totalidade dos lugares uma razão instrumental que dispensa
a espontaneidade criativa da experiência sensível e, portanto, de formas mais espontâneas
e simples de realização da vida. Destacada das qualidades sensíveis corporais, a técnica foi
reduzida à sua superfície instrumental. Nesse sentido, o corpo, ao imprimir uma ação
mediada por instrumentos técnicos informacionais aparece distanciado das finalidades
objetivas que deseja atingir, no que se refere à parcela de participação sensível
desencadeada na ação, aqui bastante atenuada.
Quando a informação torna-se o principal vetor dos sistemas técnico-científicos os
corpos são liberados, no sentido de que os meios que mobiliza não acarretaria no
movimento dos corpos, pelo menos secundariamente e marginalmente como assinala
Bauman (1999, p. 21), para quem os objetos sobre os quais a informação informa são
“meios que libertaram os ‘significantes’ dos ‘significados’”. Podemos deduzir daí que a
alegada superação das restrições espaciais pela velocidade da informação e dos
transportes ou daquilo que Harvey (1989, p. 219) denominou de compressão tempo-espaço
equivale a uma dessensibilização do corpo, de vez que a velocidade o torna menos atento e
sensível à paisagem a sua volta. Da capacidade de se posicionar sobre as pernas legada
por nossos ancestrais mais remotos à vertigem da velocidade e instantaneidade das
inovações tecnológicas, o corpo projetou as técnicas no mundo, mas, distanciado-as de
suas faculdades sensíveis as ampliou de tal maneira que não mais as reconhece como suas
(Serres, 2004, p. 113). A velocidade nos torna menos suscetíveis à apreensão sensível, na
medida que a percepção perde em acuidade a captação de detalhes quando em movimento
169
acelerado. “Hoje, como o desejo de locomoção triunfou sobre os clamores do espaço
através do qual o corpo se move, o indivíduo moderno sofre uma espécie de crise táctil:
deslocar-se ajuda a dessensibilizar o corpo” (Sennett, 1994, p. 214).
Mas o repouso, de certo modo, também contribui para uma restrição da
sensibilidade na realização de um determinado objetivo. O corpo, cada vez mais isolado,
passa a estabelecer uma relação mais passiva com o ambiente em termos de engajamento
somato-motor. Uma gama variada de soluções tecnológicas volta-se para o conforto visando
aliviar a fadiga e a carga do trabalho. Deveríamos nos perguntar como tais inovações nos
tornaram mais passivos: como o advento da automação amortece o corpo das atividades
braçais; ou como o controle remoto nos priva do esforço doméstico; ou ainda como os
elevadores, evitando o esforço aeróbico despendido nas subidas e descidas das escadas,
possibilitou edificações cada vez mais distanciadas do burburinho das ruas.
A instrumentalidade do corpo o insere em meio a um campo de poder. Como a
técnica intermedia nossa relação com as coisas, conformando objetos para os quais
emprestamos sentido mediante a restituição de um significado (pela sua utensilidade ou
funcionalidade) de modo a complexificar a relação sujeito-objeto, é ela, a técnica imanente
ao corpo, que imprime uma intencionalidade instauradora de um poder, cuja transcendência
extravasa o corpo. Mas, o nosso envolvimento na realização de um ato é catalisado por uma
programação orientada para fins específicos que é a marca da intencionalidade dos objetos
técnicos atuais, intencionalidade esta que não raro está alheia a nossos projetos voluntários.
Mudando-se os meios intencionais altera-se a relação de poder instituída no ato de
realização do corpo, aciona-se analogamente um relativo distanciamento entre corpo e
poder.
Cabe enfatizar, todavia, que não ocorre uma completa ruptura da técnica com o
corpo. A relação do corpo com a técnica se mantém, afinal, as técnicas permitem a
realização de fins práticos. Do contrário, como poderia o corpo se abster das relações
objetivas sem se esvaecer analogamente enquanto sujeito? A alienação resultante do uso
de técnicas novas não é a do corpo com a técnica em si mesma, nem tampouco se trata de
uma absoluta ruptura. Seria um completo delírio admitir tal equívoco. Mas sim a de um
relativo amortecimento da parcela sensível corpórea despendida por ocasião de realização
de um dado objetivo. É para os fins práticos, mesmo se alcançados e o será dada a
perfectibilidade dos objetos atuais –, que convergem a supressão das funções sensíveis do
corpo.
Caso à parte, talvez, para as nanotecnologias e biotecnologias que se inserem nas
partes subcutâneas do corpo, aprofundando e complexificando sua inerência técnica,
reorientando toda a nossa relação instrumental de mundo. Deslocado e isolado de tudo, o
corpo se conecta a um meio tecnocientífico cujo principal vetor é a informação. Estaríamos
170
experimentando, quem sabe, um retorno da técnica ao corpo, muito embora sob o espectro
de um investimento de poder que se volta para a “intra-estrutura” do corpo, “a última figura
política de uma domesticação”, vai supor Virilio (1996, p. 91), que repercute em cooptar o
corpo ainda mais para os circuitos hegemônicos de poder. Seu ardil é justamente
incrementar as funções proprioceptivas que potencializam as qualidades produtivas do
corpo. As técnicas de controle voltam-se então para as capacidades sensíveis corporais,
porém desta feita não mais as incapacitando, mas, de outro modo, as potencializando para
adestrá-las a fim de extrair-lhe um rendimento proveitoso para o desenvolvimento das
atividades econômicas. O replicante do célebre filme de ficção científica Blade Runner, o
caçador de andróides”, de Ridley Scott, poderia ser considerado o projeto síntese da
tecnociência para o homem: desprovido de quaisquer sensações e emoções, um perfeito
produto da engenharia genética totalmente preditivo e produtivo empregando sua força de
trabalho na colonização de novas fronteiras capitalistas (outros planetas) num futuro fictício
pós-moderno. Atingindo o clímax de sua anulação em face de um conjunto de
determinações e interditos, o replicante Roy e seus companheiros passam a subverter sua
programação abjeta, nos convocando a refletir sobre o caráter contingencial do corpo.
A proeminência da instrumentalidade técnica no espaço não supõe analogamente
considerá-lo distanciado do corpo. Assim como não ocorre o afastamento entre corpo e
técnica também não decorre um distanciamento entre corpo e espaço, por mais que
insistam em afirmá-la em desvairadas conclusões alguns entusiastas da pós-modernidade.
Observamos que a objetividade exigida nas relações (im)pessoais no período atual, marca
da realidade técnico-científica informacional do espaço, vem se acentuando em decorrência
de uma débil requalificação da participação sensível nessas relações, acarretando a
indefinição de formas mais espontâneas e solidárias de convívio social marcadas pela
individualidade e pela competitividade. Entretanto, como diria Santos (1994, p. 81), “a força
dos fracos
75
é o seu tempo lento”. Essa assertiva nos convida a ponderar a sutileza com que
alguns atores sociais, por não estarem cooptados pelo desatino de uma velocidade
despótica, percebem e vivenciam o espaço de maneira mais próxima e íntima
desenvolvendo relações horizontais de cumplicidade e pertencimento pouco provável para
uma temporalidade fugaz de relações verticalizadas, o que se coloca como um verdadeiro
trunfo para os primeiros. “A lentidão dos corpos contrastaria então com a celebridade dos
espíritos?” (ibid., p. 84), eis uma indagação que vale a pena nos determos.
A atenuação das competências instrumentais do corpo é apenas uma das
dimensões de subtração do poder do próprio corpo. lançamos mão de outras maneiras
de incorrê-la: com Descartes e a separação entre um plano externo e um interno; com Kant
75
“Se velocidade é força, o pobre, quase imóvel na grande cidade, seria o fraco, enquanto os ricos
empanturrados e as gordas classes médias seriam os fortes” (Santos, 1994, p. 84).
171
e a distinção entre concepções apriorísticas de tempo e espaço independentes da
experiência; com Mário de Andrade e a separação entre ritmo e melodia no corpo; com
Nobert Elias e os hábitos de comedimento, de contenção dos impulsos e a individuação;
com Thompsom e a conversão de um tempo marcado pelas pulsões naturais em uma
sistemática de tempo progressiva; com Foulcault e a produção de corpos dóceis e
produtivos. Esses processos não ocorreram em separado ou cada qual de forma isolada,
mas se entrecruzaram e se alimentaram mutuamente no devir histórico da civilização
ocidental. Mas as competências instrumentais, assim como a intencionalidade que interliga
os extremos cartesianos, a experiência perceptível que reúne os horizontes espaço-
temporais, o ritmo musical e as pulsões e incontinências orgânicas são expressões de um
poder-saber que é inerente e indissociável do próprio corpo. Embora arrefecidos, estão
latentemente contidos nele à espera de serem acionados, pois são todos fenômenos
existenciais. Vejamos, portanto, como essas reviravoltas de forças se apresentam sob a
rubrica de outras dimensões corporais.
A sexualidade expressa o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos, nas relações sociais, por políticas complexas (Foulcault, 2005, p. 120). A
centralidade do sexo na reprodução do corpo, tanto no que diz respeito à prolificidade da
espécie como a toda gama de valores que ele emana, vai torná-lo peça fundamental dos
artifícios de poder, como vai advertir Foulcault (ibid., p. 107). Toda a energia despendida no
ato sexual deve ser recanalizada para a exploração do trabalho e não desperdiçada em
despesas inúteis. Porém, a sexualidade inspira uma linguagem própria do corpo, uma
simbologia que emana do ser e de suas condições de existência, uma linguagem gestual,
sedutora e renovadora através do prazer e do gozo fazendo proliferar não somente os
corpos, mas sobretudo os rompentes e resistências. A uma erotização objetiva e
subserviente opõe-se uma reerotização irrefletida, porém, libertadora.
Nas relações que envolvem sexualidade as retroalimentações entre as forças que
simbolizam poder e resistência tornam-se notória. O controle sobre a masturbação em
meados do século XVIII, por exemplo, facultou às famílias uma vigilância sobre o corpo das
crianças. Mas, a revolta do corpo foi a contra-ofensiva de um conjunto de restrições sobre
as práticas sexuais que lhe atribuíram sensações de culpa, embaraço e um caráter
patogênico. A sexualidade, tornada assim “um objeto de preocupação e de análise, como
alvo de vigilância e de controle, produzia ao mesmo tempo a intensificação dos desejos de
cada um por seu próprio corpo” (Foucault, 2001b, p. 147). Todavia, as táticas de poder
assumem feições dissimuladas; se antes a relação era coercitiva, poderá alhures ser
persuasiva ou mesmo estimulante ao que lhe subvertia, contanto que seus agentes
garantam o primado da correlação de forças. “Através de uma explosão econômica (e talvez
ideológica) da erotização, desde os produtos para bronzear até os filmes pornográficos, [...]
172
encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas
de controle estimulação: ‘fique nu, mas seja magro, bonito, bronzeado!’” (ibid., p. 148).
Superado o paradigma do calor dos corpos masculinos com o advento do
Iluminismo (Sennett, 1994, p. 30; Nunes, 2000, p. 30), as mulheres passariam a reivindicar
igualdade de direitos, a vida pública e o acesso ao saber, pois a razão, nos moldes
iluministas, não distinguiria diferenças de gênero. Nunes (ibid., p. 36) ressalta que a
reinterpretação do corpo foi a maneira encontrada por Rousseau, Michelet e outros
pensadores iluministas, bem como médicos e pedagogos, para reestabelecer a hierarquia
entre homens e mulheres afetada pelos ideais de igualdade e autonomia ascendentes à
época. As formas anatômicas da mulher eram descritas por psiquiatras como fator de
contínuo desregramento sexual. A mulher passa a ser pensada como um ser frágil,
dependente e passivo, devendo ser restrita, portanto, às tarefas domésticas e maternas
(ibid., p. 83). Todavia, a histeria feminina, como ressalta Nunes (ibid., p. 148, 149), “foi uma
forma ativa, e sobretudo barulhenta, através da qual as mulheres reagiram às exigências
que lhes eram impostas”. Foi igualmente reinterpretando o corpo que as mulheres reagiram
à subordinação masculina, como dariam testemunho mais tarde no século XX os
movimentos feministas.
Não somente o decoro para a nudez e o sexo, mas também o comedimento para
com os costumes alimentares, o recato no trato e no modo de vestir, a repugnância para
todo tipo de dejetos e excreções e tantas outras restrições para com o corpo consistem
regras de compostura que denotam a supressão e a abstenção de instintos e impulsos
corporais. Hábitos que passaram a duras penas da aristocracia para a burguesia e desta
para as camadas menos abastadas, mas não sem antes sofrerem diversos rearranjos,
adequando-se ao modo peculiar de cada qual dos estratos sociais segundo seus contextos
e circunstâncias e como ainda hoje continuam sendo resignificados. Costumes de auto-
restrição que não surtiriam maiores efeitos não fosse a separação da realidade em duas
matrizes lógicas: de um lado o plano do sensível e empírico, e do outro o plano do inteligível
e abstrato, ou ainda, uma concepção de tempo interno confrontada com uma concepção de
espaço externo, como se fossem realidades independentes; tudo isso tendo como dado
ordenador uma racionalidade físico-matemática fazendo a mediação de suas variáveis.
Entretanto, subvertemos a todo o momento a primazia de uma reflexão pura sobre as
sensações, assim como não se verifica de todo o primado das sensações às expensas do
raciocínio. O que vem reforçar ainda mais a tese do corpo em permanente integração com o
tempo e o espaço, pois nos parece mesmo delirante a sustentação desse dualismo, por
vezes privilegiando o plano reflexivo numa completa alusão à sua preeminência.
A propensão humana de explicar os eventos e fenômenos vai adicionar a palavra à
música, essa primitiva e despretensiosa manifestação do homem que o encanta e que se
173
faz compreender ritmicamente de imediato pelo corpo mesmo antes das palavras
assumirem valores intelectuais. Não bastaria, porém, para o homem ocidental o puro deleite
proporcionado pela música, seria preciso torná-la inteligível. Com a preponderância da
virtuosidade vocal, manifesta nas monódicas clericais marcando a transcendência da alma e
do pensamento em relação ao corpo, como aludiu Mário de Andrade (2003, p. 34, 35), o
povo, em sinal de recusa, se fez acompanhar de instrumentos os mais variados para
sustentar o ritmo e o som cantarolado, qual era o caso dos “cantadores” populares com suas
violas, rabecas e tamboretes distribuindo lascivos solfejos nos folguedos e folias. Todavia, a
polifonia instrumental das grandes orquestras clássicas vai arrefecer de certo modo as
manifestações musicais populares
76
(arrefecendo igualmente os ânimos), denotando ao
instrumento um caráter meramente erudito e contemplativo.
A cisão entre ritmo e melodia na música, descreve Mário de Andrade (ibid., p. 217),
colabora para a derivação das qualidades espaciais em proveito das qualidades temporais,
marcando a disjunção entre espaço e tempo no pensamento moderno. Esse anacronismo
entre tempo e espaço deriva, segundo o autor, da passagem de um princípio de
expansividade, ou seja, a música polifônica orientada horizontalmente evidenciando uma
forma nas diferenciadas alturas sonoras, para um princípio de intensidade, isto é, a música
fundamentalmente harmônica, orientada verticalmente, pautada em momentos sucessivos e
uniformes do timbre. “A música se tornou mais essencialmente temporal. Ao passo que
dantes a parte decisória da forma na criação implicava no conceito e na sensação de
música um sentimento essencial e primordial de espacialidade” (ibid., p. 222). Não obstante,
a música se manifesta no corpo em cada sopro de vida, na alternância do inspirar e expirar,
na sincronia dos passos ao caminhar, em cada timbre da voz. A reversibilidade dos
estímulos e dos sentidos dá vida à sistemática das notas musicais criam a linguagem
melódica que consiste no ritmo do corpo criando expansividade, entrelaçando tempo e
espaço. A transitividade dos ritmos gera movimentos que emanam afecções expressivas
como linguagem e sexualidade. O repique natural do corpo suscita um tempo que é a sua
ritmicidade musical, carrega um princípio de expansividade que delimita um espaço corporal
e principia uma corporeidade do corpo, revela um poder (expresso no ritmo e na sonoridade)
que extravasa o corpo e que por mais que sofra contenções se redefine incorporando novos
elementos e segue alimentando a arte, recriando novos gêneros musicais.
Acostumamo-nos a contemplar o tempo como parcelas sucessivas e lineares dos
acontecimentos, numa sistemática taxonômica que permitiu aferir e controlar as
imprevisibilidades e contingências humanas, de modo a tornar o corpo um artefato útil e
76
“Apesar de todas as maneiras com que a música artística profana pretendia satisfazer as necessidades
musicais do povo, nós vimos que ela, originada do canto popular, sempre se retemperando na fonte popular, fora
gradativamente se aristocratizando, se divorciando do espírito do povo. Chegara assim a se transformar em
manifestação orgulhosamente aristocrática, com a música pura, dos clássicos” (Andrade, 2003, p. 133).
174
suficientemente produtivo para o desenvolvimento capitalista. Este tempo despótico que
separa e classifica a experiência humana vai contribuir para um amortecimento do poder no
corpo. Contudo, a despeito dessa síntese abstrata, o tempo do corpo segue sendo o do
ritmo de suas pulsões demarcado no andar, no respirar, no batimento dos pulsos, em suas
incontinências fisiológicas de fome e sonolência e, para que não sejamos acusados de
antropocentrismo, também o tempo das sazonalidades naturais (sem que, contudo, sejam
vistos à parte, como se fossem tempos diferentes; são em todo caso o mesmo tempo,
embora marcados por impressões e cadências diferenciadas) demarcado pelas cheias e
vazantes das marés, pelo nascer e o pôr-do-sol, pelas estações climáticas, pelas fases da
lua. Um tempo que reúne homem e natureza, corpo e espaço, pois as suas ritmicidades são
uma e a mesma coisa. Esse tempo que atravessa e arremata corpo e espaço como
entidades indissociáveis é que garante ao corpo um poder que não pode lhe ser subtraído,
ao passo de uma resistência que lhe é tributária como signo indissoluto.
A instrumentalidade, a sexualidade, a musicalidade, a temporalidade, a
expansividade são afecções corporais natas, embora atenuadas, não podem ser removidas
do corpo. Em suas dinâmicas performativas não comportam um corpo individualizado
destacado de um espaço que se realiza por si mesmo, um tempo interno e cognoscível
contra um espaço externo e meramente empírico, uma corporeidade orgânica contrastada
com uma corporeidade inorgânica e inerte, um espaço vivido distintivo de um espaço
concreto, uma cultura confrontada com uma natureza, uma geografia humana e social
discordante de uma geografia física. A rigor, tais disjunções existem no ideário moderno
de consecutiva purificação e mediação das coisas. A despeito dessas polarizações, a
realidade em si é una, porém múltipla em seu movimento de totalização. A
instrumentalidade do corpo confunde sujeito e objeto num único processo constitutivo sem
que, no entanto, dilua suas posições; a sexualidade emana e desperta os instintos e
sentidos mais elementares devolvendo ao corpo o laço que igualmente funde cultura e
natureza; a musicalidade própria do corpo demanda um ritmo que também une
temporalidade e espacialidade criando um princípio de expansividade que é o campo
perceptivo do corpo cujo fundamento agrega tantos outros corpos com as mesmas
qualidades quanto as circunstâncias sociais exigem.
As relações instrumentais do corpo, a sexualidade, a inclinação rítmica-musical
própria do corpo, os instintos e impulsos corporais delineadores de um tempo e de um
espaço e muitas outras manifestações somáticas inscrevem no plano das intencionalidades
um poder em sua precípua imanência ao corpo. O poder está inscrito no corpo por
caracteres que designam relações sociais, pois imprimem um gesto intencional que é a sua
manifestação constitucional, embora num plano mais geral, como é notório, são as relações
sociais que confabulam as relações de poder. Um poder que é a um só tempo resistência se
175
confrontado com as determinações de uma escala externa alheia ao modo peculiar de
reprodução do corpo. Poder e resistência aqui se confundem sem que seja preciso se
alternarem como pólos conflitantes. Constituem um termo relacional como o são
analogamente razão e sensibilidade, tempo e espaço, ser e existência. Cabe mobilizarmos
os meios de acionar os horizontes emancipatórios do corpo, ou talvez simplesmente deixá-
los que se acionem por si mesmo.
4.3. Para um novo ethos corporal
Um exame sobre os horizontes emancipatórios do corpo requer minimamente que
identifiquemos sob que condições o corpo culmina em procedimentos de rebatimentos aos
investimentos do poder. Longe de ser estável, a emancipação é, pelo contrário, bastante
conflituosa. A aspiração à emancipação é em si mesma um ideal moderno, pois não pode
ser concebida sem a dominação enquanto termo antinômico da relação. A carga que esse
termo carrega parece atrelada a interesses liberais e positivistas. A emancipação em termos
modernos “é concebida como o processo histórico da crescente racionalização da vida
social, das instituições, da política e da cultura e do conhecimento com um sentido e uma
direção unilineares precisos, condensados no conceito de progresso” (Santos, 2006, p. 31).
Mas um projeto ideal de emancipação deveria prescindir da referência a uma rede de poder,
do contrário, correria o risco de nunca atingir tais finalidades, pois se desvaneceria em face
das contradições em jogo. As aspirações emancipatórias, portanto, não devem se ater ao
historicismo moderno, mas todavia devem se pautar numa exigência ética e política. “Não
emancipação”, escreve Santos (ibid., p. 44), “há emancipações e o que as define como
tal não é uma lógica histórica, são antes critérios éticos e políticos”. É nesses termos que
este autor propõe uma reinvenção da emancipação social (ibid., p. 29). Seja como for,
presumimos que essa contrapartida reside no corpo, pois ele está no centro das questões
relativas ao tempo, espaço e poder. Reinventar a emancipação social supõe, portanto,
reinventar a corporeidade.
Foucault (2005, p. 91) assevera que a resistência é um dado imanente das
relações de poder. Sob a sua ótica, não é o poder enquanto um sistema de forças
impessoais que se impõe indiferentemente aos corpos, mas sim a maneira como eles o
vivenciam se lançando entre as forças que produzem seus efeitos. Embora esteja envolto
por completo em convenções abstratas (aritméticas, geométricas, fragmentárias,
individualistas), o corpo tende a subvertê-las em função de seu caráter contingente a
despeito das vicissitudes que lhe recaem. Em outras palavras, embora condicionado por
suas necessidades o corpo tenta escapar ao imperativo de uma condição subalterna,
redimensionando novas estratégias de realização da vida. A Revolta do Pão na Paris de
176
1789 teve como causa imediata o majoramento do preço do pão diante do estado de
escassez e miséria que vivia o povo parisiense, mas, em última análise, pode ser atribuída à
contrastante adversidade em que vivia a população mais pobre junto aos espaços de
suntuosa riqueza de alguns poucos afortunados, exasperando assim os sentidos e os
ânimos dos primeiros. A reação a todo estado de privação tem início no corpo. Importa
compreender estas relações nos termos de um corpo que seja inerentemente plural,
existindo entre outros corpos.
A produção de corpos dóceis submetidos às forças da disciplina e da biopolítica
encontra no próprio corpo uma instância irredutível do esquema de condicionamentos
sociais. Ainda que tenha a sua fisiologia explorada ao nível subatômico ou ainda que
reduzido em sua plenitude a alguns aspectos de sua existência, seu ser de corpo, contudo,
é indecomponível. Se o corpo é a grandeza indivisível do processo de objetivação do
homem, embora se encontre mergulhado num mar de sujeições até que atinja o limite
intolerável de privações e subordinações, logo lhe restará algum expediente que permita
reagir à depreciativa condição que lhe foi imposta, de maneira a permitir ampliar suas
potencialidades, antes restritas a atribuições específicas. Ele recanaliza todo o investimento
que incide sobre si e cujos propósitos lhe são alheios aos seus projetos voluntários, não
simplesmente os negando, mas realocando seus fins.
A resistência constitui uma experiência necessária e fundamental para o corpo que
se faz transparecer ao se deparar com dificuldades e se colocar a superá-las. É diante
das dificuldades, sanções e interditos tornados partes de sua experiência vivida que a
resistência, que é a contingência expressando um poder que lhe é imanente, se revela
procurando estabelecer um equilíbrio. De acordo com Freud
77
(apud. Sennett, 1994, p. 302),
“freqüentemente os objetivos e demandas dos instintos individuais [...] tornam-se
incompatíveis com desejos remanescentes. Desconfortavelmente desperto, o corpo entra
em guerra consigo mesmo e enfrenta uma desarmonia que não pode ser resolvida ou posta
de lado”. O “mal-estar” freudiano decorre das vicissitudes produzidas pelas renúncias que o
indivíduo é induzido a acatar em proveito das normas e regras sociais, mas sua natureza
pulsional o compele a rebelar-se. Os escravos do Brasil colonial foram reduzidos à mais
ínfima condição humana, ao ponto de lhes privarem a individualidade e a condição de
pessoa. Mas o corpo foi o veículo de sua resistência. Não por acaso, a cultura afro é tão
marcada no corpo: no candomblé, na capoeira, na dança, nos ritmos de percussão, na
ginga, na malemolência do andar como enfatiza Fonseca (2005, p. 72); todos como
manifestações corporais que evocam a resistência. O corpo é, portanto, ele próprio, o ponto
de inflexão a deliberar reações ao estado de regularidade e inação a que está submetido.
77
FREUD, Sigmund. Beyond the Pleasure Principle. Nova York: W. W. Norton, 1961.
177
Não são essas forças (poder e sua dimensão resistência) em si mesmas que se
confrontam, até porque constituem um fenômeno indiferenciado, mas sim seus agentes que
buscam constantemente uma posição favorável numa correlação de forças. A dissimetria
desse campo de forças é dinâmica e variável. Indiferentes à imanência entre poder e
resistência, esses atores estão difusamente engajados na troca do exercício do poder e de
seu horizonte resistência. Esta é a dialética entre sujeito e objeto de que falávamos no
primeiro capítulo. Sujeitos e objetos assumem posições confusamente distinguíveis e
intercambiáveis por linguagens empíricas, e não algo evidente como uma consecutiva
inversão de polaridades. Não propriamente um sujeito ou grupo que presida o poder,
diria Foucault (2005, p. 90), melhor seria falar de múltiplos e pequenos campos de força
entrelaçados em rede, numa “microfísica do poder”
78
que envolve posições de exercício do
poder em si mesmo ou do poder sob o signo da resistência, incluindo a apatia dos que
dessa contradição se alienam, comprovando pois a eficácia dos mecanismos de poder em
reduzi-los a corpos dóceis e produtivos; mas tal como subjazem de modo indiferente aos
interditos do poder, também partilham de modo involuntário de seu horizonte resistência.
O poder é algo de difuso e impreciso: mesmo essas linhas que o acusam tornar-se-
iam um componente de sua lógica acaso ganhasse alguma relevância. As forças movidas
para superar o poder são as mesmas que o reerguem, ou nunca lhe foram à parte e,
portanto, talvez não haja sequer superação por completo. A resistência de outrora estaria
desde o seu florescer, alega Foucault, reinvestida de um poder, tornando-o ininteligível
enquanto tal. Por não deter uma forma definida, o poder se instala nos meios em que é
menos provável que subsista. Com suas qualidades proteiformes, o poder é então algo de
sutil que alimenta nossas paixões e nos convence de sua aparente inação. É então que ele
se mostra mais eficaz e sob uma nova roupagem se infiltra mais uma vez nas profundezas
de nossas vidas, até que, reconhecendo-o e sofrendo seus efeitos, mobilizamos novos
esforços para subvertê-lo. O capitalismo, por exemplo, possui uma perspicaz capacidade de
converter em mercadoria todo tipo de força opositiva à sua lógica.
Inadivertidamente percebemos o poder através de suas formas terminais: a
dominação, a punição, a repressão, o interdito, a censura, a violência, a coação, a
persuação são recursos do poder e não o poder em si mesmo; são o que poderíamos
designar de símbolos do poder. Correlativamente também apreendemos a resistência sob
formas espúrias: a subversão, a insubordinação, a revolta, a indisciplina, a desobediência, a
recusa são expressões terminais da resistência, são signos da resistência como ela própria
o é, de certa forma, em relação ao poder. As formas como a resistência comparece numa
78
A microfísica marca a diferença de natureza entre um campo e outro. “Com a condição de não entendermos
‘microcomo uma simples miniaturização das formas visíveis ou enunciáveis, mas como um outro domínio, um
novo tipo de relações, uma dimensão de pensamento irredutível ao saber: ligações móveis e não-localizáveis”
(Deleuze, 1988, p. 82).
178
correlação de forças não são de fácil interpretação, pois sob os símbolos que a preside
repousa o poder sem o qual não restaria sentido em si mesma.
Tratar poder e resistência como dois extremos de uma relação seria por demais
empobrecê-los. Essa é somente a configuração semântica com que eles nos comparecem,
ou ainda, a maneira como nossas representações, viciadas que estão de um corpo e de um
espaço partido e dicotomizado os identificam. A resistência reside nos interstícios dos
circuitos de poder, utilizando-se de seus próprios canais e recursos; mas embora evoque
representações que a diferencie do poder, não consiste em nada mais que o próprio poder
sob um signo dissoluto que mudou aparentemente de forma. Quando grupos organizados
como os Zapatistas, a Al Qaeda, as Farcs e os movimentos anti-globalizaçãolançam mão
de técnicas biopolíticas, como a internet, por exemplo, acionam as possibilidades de
resistência implícitas nas contradições da sociedade de controle. Não obstante, essa
concepção de resistência corre sempre o risco de recair num fatalismo. Daí porque Santos
(2006, p. 38) vai advertir que “o pós-estruturalismo
79
levado ao extremo pode tornar
invisíveis ou trivializar as formas dominantes de poder e nessa medida neutralizar a
construção da resistência contra elas”.
Foucault não tematizou de modo mais detido a resistência por entendê-la em sua
inseparabilidade à realidade do poder, “esta [a resistência] nunca se encontra em posição
de exterioridade em relação ao poder” (Foucault, 2005, p. 91). Subentende-se daí que de
modo implícito ela sempre esteve presente em suas análises. Façamos um exercício que
toma a direção oposta: tematizar a resistência levando-se em conta sua imanência ao
poder. O fundamento da resistência é a mesma do poder. Ela é o próprio poder, porém num
momento diverso. Ou antes, ela é um tipo de poder polarizado por signos antagônicos e
confusos, perfilando com ele um duplo horizonte de um campo de forças. A resistência
nascente de um ato de intencionalidade é ela mesma um artifício do poder, pois embora
imbuída de um signo emancipatório, aciona entre sujeito e objeto uma relação, e toda
relação é inerente ao poder e vice-versa. Nesse sentido, se o corpo se investe de poder em
sua realização existencial, ou seja, no ato de tomada de consciência de um mundo, ele não
poderia deixar de se revestir de seu correlato resistência.
Se a resistência é uma versão dissoluta do poder, percorrendo com ele os mesmos
caminhos e circuitos, a mesma lógica imanente, o corpo oprimido deve então tirar partido
das forças que lhe assaltam e que lhe são alheias, arrefecendo assim a fatalidade da ordem
imposta. Ele o consegue, dirá Certeau (2003, p. 47), “em momentos oportunos onde
combina elementos heterogêneos, [...] mas a sua síntese intelectual tem por forma não um
discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’”. Sua espontânea
79
Sem querer entrar no mérito de que os estudos de Foucault são pós-estruturalistas ou não, entendemos que o
autor (Santos) estava se remetendo a eles.
179
renúncia à ordem dominante está assentada em astuciosas experiências cotidianas, em
estratégias sutis e banais, no ato de experienciar a vida. Assim o transeunte prefere o atalho
à faixa de pedestres, esse débil interdito da vida urbana; também as filas dos
estabelecimentos bancários e comerciais não são seguidas à risca conforme delimitam
novamente as marcas pintadas no chão (que tem o mesmo significado das faixas de
pedestres: separar, conter, controlar o fluxo). Essas contrapartidas constituem minúsculas
práticas diárias e comportamentos banais que se multiplicam ao infinito subvertendo num
plano mais amplo o postulado moderno que distancia as “paixões da alma” (para tomar de
empréstimo uma expressão de Descartes) das qualidades sensíveis. Por muito tempo a
idéia de um plano simbólico e intelectual confrontado e inconciliável com um plano empírico
e sensível, impediu que vislumbrássemos tais possibilidades, embora elas sempre
estivessem presentes.
Comparemos o que está posto ao ato de lermos um livro. O livro impõe seu
significado por sua escrita, códigos e linguagem próprios que expressam o pensamento
característico de um autor; ele é invariável e permanente enquanto não for lido. A sua leitura
introduz-lhe novas possibilidades evocadas por outros referenciais que ampliam seus
horizontes enriquecendo o seu conteúdo originário, incorpora-se às linhas do texto situações
que não se apresentaram ao autor. Deduções por vezes acrescentadas às margens do livro
que comparadas com o corpo do texto redefinirá a idéia originária, replicando e alimentando
o pensamento, subsidiando o agir. As margens, seja em textos literários, seja em
(con)textos culturais representam a superfície instável condicionadora da mudança. São o
correlato da percepção lacunar e do invisível merleau-pontiano que se nutrem da diferença,
o fator decisivo e simultâneo da realização do corpo, do devenir histórico e da produção do
espaço. A escrita é necessidade, a leitura (ou antes, sua interpretação) é liberdade. Assim
também o indivíduo, com suas paixões, suas volições, sua sensibilidade e suas
experiências, , como quem um livro, os códigos grafados no corpo e no espaço pelos
autores hegemônicos. Porém, mais do que uma ntese intelectual derivada da leitura e da
experiência, ele sente no próprio corpo todos os fortuitos reflexos dessa escrita,
expressando-a em seu modo interpretativo por atos e ações deliberados ou espontâneos.
Teríamos então, segundo esse quadro, resistência e poder como entes purificados e a
contingência, ou o seu correlato num campo de forças, como a mediação da contradição.
Cumpre-nos, pois, empreendermos uma disjunção das implicações e
conseqüências da facticidade do poder. A resistência possui um caráter reversível em
relação ao poder e como tal, por mais que sua representação antinômica aparente o
contrário, não pode escapar da alusão ao poder. Referenciada a uma esfera de poder, a
resistência assume contornos fatalistas. Por não ser aleatória, mas reversível a um plano de
poder, é que a resistência não pode se lhe desvincular. Porém, são exatamente os seus
180
signos que permeiam nossos horizontes, dando forma e sentido ao modo como ela nos
comparece. Tais representações estão atravessadas e imbuídas por essências, a pedra
angular de todo o ideário moderno. Buscar alternativas, no entanto, é precisamente tentar
escapar de qualquer tipo de determinação, ou seja, não tomá-las por referência. E buscar
alternativas não seria uma forma de premir resistência? Precisamos, pois, reaver o poder
(resistência) antes que as representações sociais o valide como um dado irrevogável a
transcender as relações humanas.
É no plano em que as representações sobressaem de valores históricos e
geográficos e toda sorte de relações instituídas (o qual Merleau-Ponty buscou se anteceder
em suas análises) que Foucault afirma que o poder não pode ser apropriado, mas sim
exercido. Ele se refere, presumimos, à propriedade burguesa, inerente, pois, à realidade de
um indivíduo restrito e isolado de todo tipo de relação de acordo com um paradigma
moderno que tem as substâncias e as essências como princípios enucleadores de todas as
coisas. O logocentrismo moderno instituiu paradoxalmente a individualidade como não-
relação. Nesse sentido, o poder (e, portanto, a resistência) enquanto dado relacional se
subtrai do corpo, anulado por investimentos que tramitam das micro-estratégias de
dominação individual (a disciplina) às macro-políticas concernentes à vida (o biopoder);
limitado por uma forma de conhecimento que insiste em apreender os entes a partir de suas
essências, transformando-os em objetos, ele próprio (o corpo) um objeto que não mais se
atém à multicausalidade dos processos que o constituiu. O corpo é então inserido em meio
a um turbilhão de privações e determinações que arrefecem sua natureza contingente,
facultando-lhe uma vida restrita cercada de comedimentos e abstenções com o fito de torná-
lo útil, produtivo, previsível e manipulável. Se por um lado, o corpo tem suas qualidades
produtivas estimuladas ao se potencializar uma insígnia de poder que lhe é franqueado por
um ato de intencionalidade, um poder cuja representação nos transparece como um poder
de fato, mas que nada mais é que um signo dissoluto deste; por outro lado, um horizonte
desse mesmo poder inerente ao corpo, um poder cuja representação se faz transparecer
como resistência, e que, portanto, é indissociável daquele, embora tenha seu signo
deslocado, será suprimido de modo a conter suas qualidades contingenciais e políticas.
Contudo, o corpo é indecomponível enquanto ser. Se no plano analítico-descritivo
simbólico ele é um ente isolado, um objeto passivo reflexo de uma consciência
transcendental e de um sujeito do conhecimento, no plano ontológico-prático ele continua se
realizando como ente relacional, a despeito de quaisquer circunstâncias que o prive ou
censure de atos e ações deliberadas. É nesses termos que o sentido de liberdade em Sartre
(1997, p. 545-549) ganha relevância: liberdade que supõe uma intencionalidade nadificante
como forma de resistência. “As resistências que a liberdade desvela no existente, longe de
serem um perigo para a liberdade, nada mais fazem do que permitir-lhe surgir como
181
liberdade. pode haver para-si livre enquanto comprometido em um mundo resistente”
(ibid., p. 595). Uma consciência que não se confunde com a essência dos entes, mas
renuncia-os para afirmar a existência do ser; existência que não é determinada por
representações e objetivações e que, portanto, não se atém e se limita às essências que a
constitua. A liberdade nada é senão a existência de nossa vontade ou de nossas paixões,
na medida em que tal existência é nadificação da faticidade” (ibid., p. 549). Assim, as
certezas do ser se amalgamam às indefinições da existência, ou antes, o ser supõe uma
escolha em face das inumeráveis possibilidades da existência e não uma determinação
essencializada. Afinal, não seria a liberdade, dentre outras coisas, uma escolha? Se
referimo-nos à liberdade em deferência a um obstáculo, referenciado a um plano de poder,
como é o caso do capitalismo, ela será sempre condicionada, pois do contrário não haveria
motivos de sê-la (liberdade) enquanto tal. “Não podemos escapar de um cárcere no qual
não fomos enclausurados” (ibid., p. 598). Entretanto, se referenciada na existência, o que
supõe uma consciência nadificante emancipada de quaisquer representações, como quer
este mesmo autor (ibid., p. 33, 34), de fato, a liberdade não poderá ser limitada ou
dependente de qualquer essência.
vimos que Merleau-Ponty, diferindo de Sartre, não se atém à negação para
afirmar a existência do ser, de outro modo, ele prefere a pluralidade que a relação dos
incompossíveis permite. O vazio inerente ao ser, sua “insustentável leveza”, permite que ele
não se encerre em si mesmo, que não seja um auto-referente. É como se houvesse uma
lacuna sempre a ser preenchida motivando as trocas, as interações, o movimento; uma
força que o impulsiona a novos projetos, ao encontro com o outro, alimentando as
necessidades pela liberdade que a inspira. É nesses termos que se pode dizer que o sentido
e o significado das coisas ou do outro não são dirigidos ou determinados senão pela
espontaneidade e pela casualidade. Essa dimensão do ser permite se afirmar
identitariamente pela diferença em meio a situações discordantes e reversíveis. A relação
não é mais concebida em termos de antinomias, mas de compossibilidades: “os dois
pedaços de madeira que as crianças vêm ajustar-se por si próprios irresistivelmente porque
cada um é o possível do outro” (Merleau-Ponty, 2005, p. 210). Assim, ser e existir não são
manifestações exclusivas entre si. Não se afirma a existência pela negação do ser, eles
consistem antes em superfícies possíveis um do outro.
Nesses termos, poderíamos descrever uma relação de poder em que seu horizonte
resistência não fosse atenuado por um fatalismo que afirma a preeminência de seu outro.
Poder e resistência são diferenciações de um mesmo ser que atuam na reversibilidade,
horizontes compossíveis que longe de se anularem multiplicam as possibilidades que se
abrem quando se põe à prova sua imanência ou transcendência. A resistência (tal como o
poder) nasce de um ato de intencionalidade que atribui ao corpo existência. A propósito,
182
reside aqui o fundamento de sua condição contingencial e talvez, portanto, não devêssemos
insistir em resistências, mas de outro modo em contingências, pois essas não determinam a
liberdade, embora a invoque como possibilidade (sempre latente), tanto quanto a
necessidade. A liberdade em Merleau-Ponty consiste na superação das condições factuais
por uma significação que lhes atribui um novo sentido e indica como a obra explica a
necessidade desta vida determinada, e não o contrário (Chauí, 2002, p. 284). Temos aqui
um processo ininterrupto e indefinido de reversibilidade entre necessidade e liberdade que
desemboca na contingência do corpo, o modo como ele se resignifica a cada situação
adstrita, porém sem consistir precisamente numa liberdade incondicionada.
Um corpo só se realiza noutro corpo. Sua individualização segundo preceitos
cartesianos e positivistas é uma agressão à sua natureza compartilhadora. Daí ele ser
capaz de deliberar reações contra os interditos de sua capacidade de se ligar a outros
corpos. Sendo a rigor um ente relacional, o corpo convoca mais uma vez (e depois outra
após outra...) um poder sob o signo da resistência a perfilar seus horizontes existenciais e
contingentes. Uma resistência que é a liberdade sartreana desapegada de qualquer
referencial essencialista que a associe a um poder fatalista e inexpugnável, ou ainda uma
das dimensões da polissemia corporal merleau-pontiana aberta a uma pluralidade de
possibilidades; mas que, todavia, continua sendo tão somente uma resistência (ou poder,
tanto faz) como expressão de liberdade cujo motivo suficiente de sê-la enquanto tal é o fato
de simplesmente existir. Tais possibilidades não se encontram no sujeito e tão pouco no
objeto considerados isoladamente, não reside num espaço vivido de um indivíduo ou num
espaço concreto tomados de forma independente, mas sim no encontro, na união dos
corpos, na corporeidade dos corpos, em meio a uma transcorporeidade.
Redimencionar nossa relação conjunta de corpo, como temos insistido até aqui,
não significa abrir mão de todas as condições estruturais e operacionais em jogo, mas
supõe, todavia, redimencionar seus meios para atingir finalidades voluntárias. Convém antes
desessencializá-las para melhor redirecionar seus fins, pois tais condições são pregnantes
da existência. Interessante notar que Husserl buscou justamente por em suspensão a
essência dos fenômenos com sua redução eidética, o que conferia ao observador uma
consciência transcendental das coisas. Não diríamos, contudo, que perseguimos um sentido
reverso ao empregado por Husserl, mas tão somente que é a diferença que passa a nortear
a síntese da complexidade do mundo e não propriamente as antípodas. É desse modo que
uma cultura artesanal indígena, por exemplo, pode se reproduzir sem necessariamente
consistir numa resistência aos processos capitalistas, ainda que sob certo aspecto comporte
uma certa representação de resistência, pois sua reprodução não significa em si o acúmulo
de bens materiais geradores de riqueza; embora o capital tente aliciá-la em seu
desenvolvimento desigual e combinado a fim de transformá-la de valor de uso a valor de
183
troca, atenuando o poder (resistência) inscrito nos corpos nativos. Porém, o poder
contingencial que lhe é patente permite-lhe redimencionar as forças envolvidas a fim de
deslocar as finalidades em proveito próprio. Os movimentos indígenas na América Latina de
língua hispânica estão envidando esforços nesse sentido, seus membros estão
resignificando seu ethos corporal a fim de deslocar a condição subalterna que por muito
tempo lhes foram imposta.
Deslocando o discurso das essências para o da existência, Kusch
80
(apud.
Mignolo, 2003, p. 218) vai contemplar a cultura indígena com base num ser localizado:
Indubitavelmente, a cultura indígena constitui uma enteléquia perfeitamente estruturada
como diria Spengler em intensidade muito maior que a de sua antagonista. E a solidez
dessa cultura, sua coesão e persistênsia, baseia-se no que costumava denominar-se ser
(localizado), que não tem uma referência transcedente a um mundo de essências e que
existe no plano da mera existência dentro do reino da espécie, que desenrola sua grande
história firmemente comprometida com seu “aqui e agora” ou, como afirmamos, naquela
margem onde termina o humano e começa a divina fúria dos elementos.
É no plano da experiência perceptível, antecedendo-se às representações e
convenções sociais (momento de regulação), que se inicia a démarche do corpo, o modo
como se realiza enquanto ser; e, por fim, é no plano da experiência vivida (variante da
primeira com acréscimos de toda sorte de relações) que a resistência se manifesta
realizando o corpo na existência. No entanto, não são momentos consecutivos, mas sim
superfícies ou horizontes simultâneos se afirmando por uma implicação mútua na alteridade.
Levando em conta todo o investimento do poder sobre a vida, Negri (2003, p. 106)
se indaga se ela própria não teria se tornado um poder, ou antes, um antipoder. A biopolítica
mobiliza dispositivos de controle que potencializam a esfera da necessidade (nos corpos, na
linguagem, na sexualidade, no trabalho, nos desejos) permitindo, assim, gerenciar a própria
vida. Se a vida foi investida de poder, é ela própria que se reveste de um contra-poder.
“Quando o poder se torna biopoder, a resistência se torna poder da vida, poder-vital que vai
além das espécies, dos meios e dos caminhos...” (Holoway, 2003, p. 99). É nesse sentido
que a vida se manifesta como possibilidade na existência e não mais como substância em
essência. Enquanto o biopoder tenta, paradoxalmente, por meio de um de seus artifícios
afirmar a vida pela negação (ou afirmação) das diferenças, transformando-as em estigma
como é o caso de uma das mais insidiosas de suas vertentes, o racismo –, a sua variante
emancipatória deve, ao contrário, assegurar toda a diferença. Estamos diante de um mundo
segundo o qual a alteridade convoca-nos a manifestações mais difusas de convívio, seja em
termos de consenso e integração, seja para toda sorte de dissenso e contradição. Seja
como for, é ela, a alteridade, que condiciona a identidade e não a semelhança. Daí o
80
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. Buenos Aires: Hachette, 1963.
184
indíviduo ter um papel salutar na pluralização da vida. conhecemos a nós mesmos na
coexistência com o outro. Construímos nossa prática política mediante a diferença. É a
diferença que pretendemos destacar como elemento significativo da corporeidade dos
corpos.
A corporeidade dos corpos é o espaço pelo qual somos todos atraídos para fora de
nossas carapaças individuais para coabitarmos um mundo comum, um campo de presença.
Ela é algo de impreciso, indefinido e indelineável; não comporta especialidades e
essencialismos, seu fundamento é a existência, ou antes, a coexistência; sua
heterogeneidade demarca os horizontes de nossas vidas conjuntas. Daí a diferença ser um
aspecto notadamente relevante na constituição da corporeidade dos corpos. Tal como um
campo de forças irrefreáveis, seus elementos se complementam, se neutralizam e/ou se
contrapõem uns aos outros. A diversidade comparece para a vertigem de nossas
percepções, mas é ela, todavia, o alimento da identidade e da multiplicidade. A identidade, a
diferença e a mulltiplicidade se apresentam ao teatro da vida como termos indissociáveis,
mas a corporeidade dos corpos (o espaço) não se encerra como palco, ela interage, tal
como os atores, na cena, vivificando-a.
Tais premissas estão em consonância com uma necessária reorientação de
valores éticos e morais. A relação ética é precisamente, atesta Lévinas (2005, p. 158), a
relação de responsabilidade com outrem. Este autor considera que situar a ética como
filosofia primeira sobre a relação absoluta da alteridade consiste em se desarraigar das
amarras da ontologia moderna para libertar o homem (ibid., p. 13). “De modo diferente que
ser! É esta ruptura da indiferença – indiferença que pode ser estatisticamente dominante – a
possibilidade do um-para-o-outro, um para o outro, que é o acontecimento ético” (ibid., p. 18,
19). Reiventar a corporeidade incide em assumir responsabilidades e compromissos éticos –
muito obliterados por um contrato social em sua ênfase à liberdade individual como
princípio da moralidade burguesa a se confundir hoje, enraizada que está em nossas
mentalidades, com a ética – seja lá quão inumeráveis relações daí poderia advir (exploração
da natureza, usos familiares, reprodução econômica, costumes locais, produção científica,
dentre muitas outras). A moral é, nas palavras de Foucault (2003, p. 26), “um conjunto de
valores e regras de ação proposta aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos
prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as igrejas etc”.
Ela implica nos códigos de comportamento e nas formas de subjetivação (ibid., p. 29). É
porque a moral repercute na ética e essa naquela que o individual pressupõe o social, o
corpo ao espaço e assim por diante. É claro, não uma correlação rígida e irrevogável
entre esses termos. O corpo reiventado consistiria, portanto, no ultrapassamento do
substancial, do orgânico ou fisiológico em direção à socialidade, no sentido que lhe advém
de estar-junto; na superação da moral burguesa (estritamente individualista) em direção à
185
responsabilidade com outrem, isto é, à ética. É nesses termos que Guattari (1992, p. 148)
fala de um corpo concebido como “interseção dos componentes autopoiéticos parciais, de
configurações múltiplas e cambiantes, trabalhando em conjunto assim como separadamente
mesmo”. O corpo se auto-reproduz reproduzindo o outro, de onde se deduz entender o
corpo como uma entidade relacional potencialmente vinculada a tudo e a todos que o cerca.
Responsabilidade ética supõe, portanto, assumir a cumplicidade entre o eu e o
outro de sorte a equilibrá-los segundo um nós: corpos amalgamados tramitando do sublime
ao singelo, agenciando o pensar e o sentir. Consiste em considerar indivíduo e sociedade, a
moral e a ética, como um duplo horizonte de síntese do mesmo processo histórico
constitutivo. É necessário contemplar o corpo não como o lugar de exclusão, mas o da
inclusão, como sugere Le Breton (2006, p. 11), que o corpo “não seja mais o que
interrompe, distinguindo o indivíduo e separando-o dos outros, mas o conector que o une
aos outros”. Ao invés de isolarmos o conteúdo histórico de cada cultura devemos saldar a
diversidade que os seus encontros propiciam. Engendrar uma mudança de paradigma na
ordem da crise de um modelo de acumulação pautado num projeto de dominação da
natureza para o qual vai concorrer uma razão instrumental a promover a globalização
econômica do mundo, o que supõe uma reavaliação do modo como nos relacionamos com
a natureza, reconhecê-la em sua imanência com a sociedade e não em sua transcendência
isolada, o que decorre em não restringi-la a um mero objeto ou recurso. Enveredar pelo
orgânico e o inanimado de modo a não simplesmente confrontá-los, mas de outro modo
consolidá-los como termo único, mas uma unidade que em sua orientação dialética de
conformação identitária se abra para o múltiplo.
Importa-nos, pois, enfocar a resistência no âmbito da corporeidade dos corpos, isto
é, no mesmo patamar da biopolítica; o que supõe transcender o próprio corpo em direção a
um sentido mais amplo de liberdade, ou seja, retomá-la como um dos mais dignos atributos
da vida. Transcender a liberdade do corpo significa elevar seu campo contingencial ao nível
da corporeidade dos corpos o que supõe resgatar a imanência dos corpos posto que os
mecanismos de dominação não mais se limitam ao corpo individualizado, eles se deslocam
da escala molecular à esfera da vida; da disciplinarização à regulação. Do mesmo modo, a
resistência vem de baixo, dos afrontamentos infinitesimais até atingir as escalas mais gerais.
É nesse sentido que Deleuze (1988, p. 99) evoca o super-homem de Nietzsche afirmando
uma resistência que extravasa o próprio homem quando o poder se investe da vida.
Para Nietzsche (1987, p. XII) o homem está fadado à multiplicidade. O
conhecimento racional puro, esse fator onírico que impõe limites à nossa subjetividade, não
tarda, segundo o filósofo, em encontrar seus limites: “esta sublime ilusão metafísica de um
pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e a conduz
incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte” (ibid., p. XII). A arte supõe
186
a liberdade, isto é, a capacidade humana para superar a facticidade de uma situação dada.
Urge celebrarmos a arte num sentido amplo de cumplicidade entre os corpos, onde a
estética filia-se à ética, isto é, onde está sempre franqueada a outrem, permitindo-se
experimentar coletivamente – pois não há arte que não seja partilhada, sob o risco de, não o
sendo, se encerrar como um feito mesquinho fadado ao esquecimento. Precisamos fixar o
que há de mais criativo em nossa subjetividade e alçá-lo a um plano mais amplo de
intersubjetividade: o da corporeidade dos corpos. Um campo de subjetividade que não se
atenha a dualismos, mas que implique em “agenciamentos coletivos de enunciação”
(Guattari, 1992, p. 162), ou seja, relações que envolvam tanto as multiplicidades humanas
quanto os devires animais, vegetais, maquínicos, incorporais e infrapessoais (ibid., p. 162).
Não são mais as oposições binárias que estão em pauta, trata-se agora de multiplicidades e
de possibilidades. Eis o paradigma que se avulta, quão demasiado se sustentará até que
revelado seus malogros seja posto em xeque?
Um dos exemplos mais significativos desta escalada de ação no mundo moderno
talvez seja o modo como historicamente a cultura popular se atualiza, reinvestindo-se dos
mesmos elementos que os circuitos de poder difundem; foi assim antes da modernidade,
com o colossal poder da Igreja durante os séculos em que manteve sua primazia sobre os
corações e mentes, o que não impediu que os estratos mais populares da sociedade,
sempre tidos por suspeitos pelas elites, reorientassem seus signos, modificando assim os
impactos sobre si, adequando-os aos seus estilos burlescos de vida expressos nos
folguedos e trocadilhos, confundindo o sagrado e o profano; e, de certo modo, é assim com
a releitura que a cultura popular promove na informação disseminada pela mass media (por
vezes satirizando-a), geradora de uma linguagem e de valores próprios de um modelo de
acumulação da envergadura do capitalismo. Nos grandes centros urbanos os artistas
populares (atores circenses, mamulengueiros, catireiros, repentistas, dentre muitos outros)
vêm ganhando cada vez mais espaço, não sem antes, contudo, lançar mão do mesmo
quadro de referência que os aviltam, redimensionando seus usos e finalidades. A exemplo
da suspensão de um tempo-espaço regular por um tempo-espaço mítico como fazem as
sociedades indígenas, os brincantes e foliões promovem a suspensão de todo tipo de
regularidade, de qualquer manifestação de poder que os vilipendiam, reorientando o próprio
arsenal que lhes infligem restrições e privações em favor da atualização da cultura popular.
81
Precisamos identificar as intencionalidades alheias à nossa vontade e mesmo as
vontades subsumidas a uma noção arquétipica restrita do ser respectivamente, aquelas
forjadas num plano externo à sua escala de impacto e a idéia de essência, harmonia e
plenitude tomá-las de arremedo sem que a tornemos indispensável e redimensioná-las
81
Para maiores esclarecimentos ver como Da Matta (1993) relaciona os festejos de carnaval e outros folguedos
a uma suspensão da ordem social vigente.
187
como trunfo, fixando e elevando para a esfera da corporeidade dos corpos aquelas que
consubstanciam verdadeiras alternativas à ordem dominante. Reaver esse complexo de
possibilidades, que é o campo de nossas experiências conjuntas, e direcioná-lo, para fins
emancipatórios, ao reconhecimento de projetos coletivos e de interesse comum. É preciso
ter em causa as necessidades inoculadas às nossas vontades, aquelas que são produzidas
por razões alheias às nossas e que intervem em nossas tomadas de decisões, ocupando o
sulco das percepções lacunares que nos mobiliza a novos projetos e nos insere num campo
de co-presença. Não se deixar fazer refém de tais necessidades ou, se não for possível (tal
é o seu poder de dissuasão e sedução), que ao menos possamos realocar seus fins. Reunir
nossas faculdades sensíveis e inteligíveis sem que as polarizemos, colocando-as a serviço
do desenvolvimento de projetos criativos a qualquer termo, desvencilhado-nos das
intencionalidades externas ao homem comum, ou antes, partir de seus desígnios para
redefini-las em seus usos e propósitos, como historicamente vêm fazendo as comunidades
indígenas e a cultura popular. É preciso mobilizar condições de acessibilidade às relações
de maior relevância em termos de socialidade.
Evidentemente tais possibilidades mobilizam forças, forjam novas ideologias,
outros saberes que inspiram novas ações, reconfiguram as relações de poder em jogo
redirecionando seus meios e artifícios, adequando-os às novas circunstâncias para
dissimular seus efeitos de modo a garantir o imperativo da nova correlação de forças.
Mas, é tão difícil quanto necessário reconhecer em meio à multidão de
experiências deste meio contingente da corporeidade dos corpos as relações que, alçadas
para o plano da vida de modo a constituir um fundo de mundo comum, se destacam como
projetos de afirmação da vida pela diferença, permitindo a transparência de processos éticos
e políticos, e não uma vida restrita ao consumo e ao acúmulo de bens refletindo a
reprodução do capital. O que supõe, pois, a emergência de uma nova biopolítica assentada
sobre bases que permitam o exercício constante de uma transcorporeidade, um diálogo de
saberes, para que possamos reconstruir uma sociedade mais democrática e solidária. Mas é
preciso insistir mais uma vez que não se trata de redefinir o modo de ser, mas sim o modo
de pensar moderno, ou antes, de seu quinhão epistêmico, de maneira a transformar o
conhecimento em arte, encarar a vida como ela de fato é, e não como deveria ser ou como
gostaríamos que fosse. Precisamos, portanto, resignificar nossa concepção de corpo, ou se
preferir, reinventarmos a corporeidade; superando o sentido de corpo individualizado e
maniqueísta que se apossou da civilização ocidental moderna e burguesa, para retomá-lo
num sentido mais relacional, fazendo da diferença um vetor que oriente nossa prática e
relação com o outro, para que, tal como sugere o pensamento indígena, nos transformando,
mantenhamo-nos os mesmos.
188
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não pretendemos simplesmente dar por encerrada toda discussão que se seguiu à
guisa de um capítulo conclusivo, mas, de modo diferente, preferimos deixá-la em aberto
para possíveis e necessários aprofundamentos e sobreinterpretações. Esse é um dos
papéis da ciência: não esgotar as possibilidades de um objeto, mas alçá-lo a patamares
mais amplos de inteligibilidade, o que supõe não instaurar verdades, ou ao menos que
essas o sejam de modo provisório, pois não verdade garantida, mas acréscimos que
nascem da diferença.
O corpo, ao longo da trajetória histórica ocidental, foi reinventado por diversas
vezes, sendo submetido a uma série de enxertos e privações. Dois desses momentos de
reorientação do corpo se sagraram de modo paradigmático em nossa mentalidade: o
bifurcamento como duas substâncias inconciliáveis segundo um plano subjetivo e reflexivo
confrontado com um plano objetivo e sensível; e a sua individualização como um ente
autônomo e auto-suficiente. A concepção essencialista de espaço tal como um objeto puro,
do qual estamos tão familiarizados, é tão somente derivativa de uma concepção de corpo
partido em duas dimensões inconciliáveis.
Tais premissas vão contribuir de modo incisivo para uma divisão no que se refere
às concepções de espaço na modernidade: de uma parte, um espaço físico também
correlativo a uma natureza inerte, cujo fundamento repousa num sentido de corporeidade
inorgânica respaldado em objetos extensos e absolutos, variantes de um espaço único e
absoluto newtoniano totalmente preditivo e ordenado segundo leis físicas e geométricas, o
que vai permitir o seu controle sistemático de ponta a ponta a partir de uma racionalidade
instrumental que se impõe por todos os horizontes que o compõe; de outra parte, um
espaço vivido derivativo de um espaço relativo para o qual vão concorrer as concepções de
espaço de campos como a sociologia, a antropologia e até mesmo da chamada geografia
cultural, concepções que insistem na proeminência de um sujeito empírico, mas todavia
referenciadas num ego transcendental à maneira husserliana. Devem essa incoerência a um
sentido estrito de corporeidade que privilegia mais a afetividade decorrente de uma
experiência íntima com um espaço imediato do que propriamente o cruzamento de
experiências corpóreas, o que os conduz a uma sobrevalorização do indiduo.
189
Julgamos de início que as séries antinômicas que se sucedem na trajetória
histórica da civilização ocidental (ente e essência, corpo e alma, fato e consciência, coisa e
idéia, sentido e significado, necessidade e liberdade, espaço e tempo, dentre outras) fossem
pelos simples fato de estarem conceitualmente destacadas um despropósito resultante de
um refletido irrefletido em si mesmo; e de fato consistem, de algum modo, num
despropósito, porém não por estarem destacadas, mas por serem inconciliáveis entre si e
como tais tornadas independentes. Mas a fusão desses pares antinômicos de modo a
sublimar-lhes suas respectivas contradições, não se mostrou um caminho coerente. Como
poderíamos então, caso a segunda proposição se validasse, afirmar a identidade? Sobre
que bases ela se manifestaria se não pelas possibilidades que a diferença autoriza? De
onde se deduz que a individualidade é condição necessária para se transcender a si
mesmo, assim como é o caso do corpo em relação ao espaço, da essência em relação à
existência, do ente em relação ao ser, da coisa e da consciência em relação à ontológica do
sujeito e do objeto e tudo o mais. O rendimento dessa dialética consiste num espaço plural
que contempla experiências que se renovam por relações reversíveis e conflitantes.
Esse imbróglio nos impulsiona a propor uma noção que nem tanto se encerra por
um horizonte empírico e sensível de mundo e tampouco subjaz a uma dimensão reflexiva e
contemplativa, assim como também não os anulam ao (con)fundi-los como advogam os
postulados pós-modernos. A corporeidade dos corpos supõe antes a imbricação das
diferenças por um princípio de reversibilidade e transitividade. Assim o sensível e o
inteligível dramatizam um mesmo espetáculo. Esse espaço compreende um campo de
presença em que se entrelaçam tantas quanto possíveis as experiências sensíveis e
inteligíveis de modo a empreenderem sínteses para se diferenciarem. A alteridade, nesse
sentido, é um dado patente da corporeidade dos corpos, é o alimento sem o qual não
poderia se sustentar, permitindo-nos inclusive falar numa transcorporeidade entre
experiências divergentes e conflitantes. Tais premissas vão subsidiar o redimensionamento
de relações que recaem sobre os corpos, incapacitando-os e atenuando suas propriedades
instrumentais, temporais, espaciais de maneira a arrefecer o poder (e, portanto, a
resistência) que lhe é patente no ato de sua constituição perceptiva.
A reinvenção da corporeidade supõe uma redefinição do sentido relacional dos
corpos. Significa, em outras palavras, uma reflexão necessária sobre as possibilidades de
reorientação no modo de reprodução da vida no curso das crises civilizatórias. Cabe atentar,
todavia, para o(s) sujeito(s) que podem protagonizar essa redefinição de sentidos, pois se
se de resignificar algo não será por simples obra do acaso ou pelo rearranjo acidental
dos processos estruturais, mas porque se poderia envidar um conjunto de esforços a
convergir para os interesses e demandas dos agentes que vivenciam o momento de
transição paradigmática. Há, pois, o sujeito da reinvenção; sujeito que para se reconstituir
190
como tal reinvindica novas posturas na relação com o outro. Urge reconsiderarmos a
imbricação entre o espaço e os atores que o produz, que lhe dão vida. Reconhecer apenas
o objeto de um determinado campo de saber ou de uma configuração espacial dada não é
suficiente para expressar a complexidade que se abre em face do novo paradigma que se
pronuncia. Devemos atrelar a este árduo edifício os sujeitos corporificados sem que,
contudo, sucumbamos à emblemática e controvertida cisão cartesiana, o que supõe,
portanto, sempre levar em conta os seus horizontes espaciais. Através de uma investigação
geográfica acerca do corpo, que, redundâncias à parte, é propriamente uma investigação
geográfica do espaço (ênfase necessária a fim de marcar a inerência mútua entre esses
termos), pode-se, se não definir, ao menos propor elementos para introduzir um debate para
uma teoria crítica do sujeito em geografia.
Situamos o pensamento de Foucault em sua notável alusão à constituição das
subjetividades à luz das relações de poder no âmbito de uma racionalidade tipicamente
moderna, tendo Merleau-Ponty como ponto de partida por anteceder-se ao sistema de
representações sociais e, portanto, às próprias relações de poder, para confrontá-los,
posteriormente, com os saberes indígenas e, por fim, evidenciar o que Mignolo chamou de
pensamento liminar, Leff de diálogo de saberes e Santos de hermenêutica diatópica, o que
preferimos designar, para melhor situar dentro de nossa proposta, de transcorporeidade.
A ciência moderna tem se limitado a fazer o papel de mediação das contradições
que ela mesma polarizou num paradoxo que justifica através de idéias a incompletude das
próprias idéias. E cada vez que empreende essa mediação dilata ainda mais o hiato entre
os opostos. A suposta solução do antagonismo anterior reabre outro ainda mais
avassalador. Mas o que garantiria que noções como corporeidade dos corpos e
transcorporeidade não seriam mais um desses paradoxos? Sem que ousemos responder, a
reinvenção da corporeidade não conduz a uma ruptura, supõe antes uma resignificação de
fins e propósitos de intencionalidades alheias à escala corporal do homem, aquelas forjadas
para um tempo-espaço econômico e que vai capturar os corpos para ressaltar suas
utilidades. Requer antes uma mistura de temporalidades ou um diálogo de saberes.
Redimensionar a corporeidade supõe, correlativamente, reinventar nossa concepção de
mundo. Mas, em todo caso redobramos: não há verdade garantida...
Empreendendo a crítica à modernidade, no que tange seus ideais de corpo,
espaço, tempo, natureza e cultura, verificou-se uma controvérsia posta pelos próprios limites
que a modernidade impõe. A abordagem fenomenológica está inserida no seio dessa
contradição. Embora tente se anteceder às concepções essencialistas e representações
pelos fatos, ela é, de certo modo, produto de preocupações e imbróglios em face dos quais
propõe certas mediações; como é o caso igualmente do positivismo, do marxismo e até
mesmo do pós-modernismo. Daí a pertinência em se recorrer a saberes que sempre
191
estiveram à margem do sistema moderno, conhecimentos considerados como resíduos
irracionais e irrefletidos (como se o cientificismo não o fosse sob determinado ponto de
vista), mas que todavia sempre lhes foram constitutivos. Ora, sendo assim tais saberes
também não seriam frutos de uma contradição? Estando tal indagação coerente com o que
discutimos até aqui, vale ressaltar que o conhecimento liminar que a tradição indígena
inspira se constrói no conflito com a modernidade, assente em suas margens, precisamente
na contradição e na diferença, combinando os valores alheios aos seus costumes com
experiências míticas e ancestrais para enfim redirecionar seus propósitos.
A descrição fenomenológica da qual tentamos lançar mão supõe anteceder tanto
as proposições positivistas e liberais quanto as marxistas e estruturalistas. Contudo, com a
descrição eidética tal qual posta em Husserl, a intencionalidade fica comprometida porque
os pressupostos fenomenológicos perdem em fidedignidade pois assentam-se nas
essências das coisas, como percebera o próprio Merleau-Ponty. Nesse sentido, nos parece
que no afã de se livrar de pretensões metafísicas, esse autor passa ao mesmo tempo a se
utilizar da dialética (Merleau-Ponty, 1999, p. 236 e 633; 2005, p. 91 a 96; 2006, p. 232, 286),
embora não a assumisse de todo pela via do materialismo histórico,
82
a influência hegeliana
se mostrara mais patente;
83
o que provoca um rendimento particularmente fecundo, pois
contrastando com uma teoria da negação adviria uma outra que se abre à multiplicidade,
permitindo assim entrecruzar abordagens até então discordantes. A resultante desse
entrelaçamento de métodos é que na prática a percepção, tal como ela se expressa,
conforma um momento único e ao mesmo tempo plural de objetivação do mundo e de
autoconsciência, de incorporação de um habitus, de engajamento no mundo, acatando ou
reagindo às suas determinações. Daí a pertinência de uma noção como a de corporeidade
dos corpos que se nutre da abordagem fenomenológica (da percepção e da
intencionalidade) para alçá-la ao nível de socialidades tensas e conflitantes como num
campo de forças de fato. Esse casamento nos permitiu lançar mão de uma dialética que se
abre para a diferença, discussão que vai subsidiar, de certo modo, a superação da
abordagem essencialista pela existencialista como experiência do corpo, de modo que
pudéssemos estendê-la não somente para os impasses entre corpo e espaço, mas
sobretudo para as relações de poder que lhe dão vida, rediscutindo em patamares
existencialistas sua inerência com a resistência.
82
Pode-se constatar as interpretações de Merleau-Ponty sobre o marxismo em Humanismo e Terror (Paris:
Gallimard, 1947) e Sentido e Não-sentido (Paris: Nagel, 1948).
83
“É verdade que nesses últimos trabalhos a influência hegeliana se faz mais visível. Mas, não cansamos de
observar, não nenhuma contradição entre esse existencialismo e a inspiração profunda que animava Hegel,
principalmente o Hegel da Fenomenologia do Espírito. Os protestos anti-hegelianos de um Kierkegaard e de um
Jaspers, certa atitude de desprezo de um Husserl relativamente a toda filosofia dialética alimentaram demasiado
tempo graves equívocos sobre esse ponto” (Waelhens, 2006, p. XX).
192
A fenomenologia merleau-pontiana não propõe a significação ou análise das coisas
por meio de conceitos pré-concebidos. Quando o acompanhamos [a Merleau-Ponty],
vemos que a experiência não é um ‘conceito’, mas uma maneira de ver, ler, escrever,
pensar que orienta seu interesse para direções abandonadas pelo filistinismo” (Chauí, 2002,
p. 42). Pensamento, percepção, linguagem, consciência, intencionalidade, dentre outros,
também não são conceitos, são emanações do ser. É no plano ontológico que habitam as
questões elementares acerca do corpo e do espaço, e não propriamente no plano
epistemológico enquanto relação de reconhecimento do indiduo em sua singularidade de
sujeito pensante. A fenomenologia parece perseguir um fundamento ontológico do corpo e
do espaço propondo uma descrição dos fatos tais como eles nos comparecem, porquanto
que isentos das especulações e representações que distorcem seu real sentido, se é que
podemos tratar nesses termos. A redução eidética ou pré-predicativa, segundo a qual
Husserl recorre para descrever a consciência e que depois Merleau-Ponty faz exame para
descrever os princípios instituintes do corpo, a despeito de antecipar-se das axiomáticas
racionalistas e empiristas, conforma um recurso de método meramente didático a fim de
evitar que as representações (objetivas ou reflexivas) possam influenciar na retomada do
corpo como um ser-no-mundo. A descrição merleau-pontiana consiste num oportuno
recurso de método para não cairmos num solipsismo. Sua proposta é superar o dualismo
corpo e alma no próprio corpo, não de modo a fundi-los e confundi-los, mas de maneira a
evidenciá-los como horizontes conciliáveis e imanentes ao seu próprio ser, aquilo que de
fato ele é. Nesse sentido, começar pelo corpo é retomar o que o conhecimento moderno
sempre negou.
A considerar o ser a partir da incompletude do que o julgamos ser, identifica-se um
dado seminal no modo como as sociedades modernas se reproduzem. Negligenciamos uma
aglutinação espontânea dos fenômenos e acontecimentos que é própria da superfície
existencial do ser, por outro lado, enfatizamos o preenchimento do vazio que se incrusta
como seixos polidos sem falhas nem arestas, em outras palavras, almejamos as essências,
isto é, nossas aspirações, nossos projetos, nossas necessidades demandam respectivos
resultados ou respostas que correspondam aos nossos anseios margeados por ideais de
harmonia e regularidade, porém sem nunca contemplá-los de todo. O equívoco está em
pensar (todavia, um pensar irrefletido) que podemos alçá-los à plenitude por meio de
enteléquias que se materializam pela obtenção de bens materiais que corrompem de tal
modo as imissões emocionais depositadas nesses bens que nos deparamos desnudos, em
perigo e desespero quando eles por algum motivo nos são privados. O mesmo poder-se-ia
dizer quando a investida para suplantar a vazio do ser decorre em professar uma fé, ainda
assim restaria um vestígio de ceticismo. E inúmeras outras atitudes adotadas e ainda assim
restará algo a nos angustiar.
193
A questão que se coloca, afinal, e a qual não temos condições por ora de obter
respostas (o que se coloca como um dos limites desse estudo), é a de saber se a análise
existencialista, tal qual posta por Merleau-Ponty e autores como Sartre e Heidegger,
subsidia um ser e um saber propriamente indígena. Presumimos, ao menos, que as culturas
indígenas preservam sua própria ontologia, seja na qualidade de um “ser (localizado)” como
propõe Kusch (apud. Mignolo, 2003, p. 218), seja num sentido de humanidade que perpassa
vários seres viventes conforme uma relação de caça, tal como supõem os antropólogos. A
propósito, vejamos a opinião de Mignolo (ibid., p. 442, 443): “uma cosmologia não-
ontológica, como ilustram as cosmologias ameríndias do século 16 ao fim do século 20, é
uma alternativa à cosmologia ontológica ocidental enquanto fundamento da totalidade (seja
a fé cristã ou a razão secular)”.
Vale registrar, à guisa de um cotejo entre racionalidades conflitantes, que Merleau-
Ponty, a despeito de se ver envolto de questões metafísicas, reconheceu o pensamento
mítico como a melhor expressão de Ineinander
84
: “o fato é que o pensamento mítico é o que
melhor indica a relação humanidade-animalidade que temos em vista, que melhor se
estabelece na dimensão da arquitetônica, em que existe aderência, estranho parentesco
homem-animais” (Merleau-Ponty, 2000, p. 347). Ele afirma, ainda, a união da humanidade e
da animalidade à maneira da indissociabilidade entre corpo e alma, tomando por subsídio
uma extensa citação de Evelyne Lot-Falck
85
(apud. Merleau-Ponty, 2000, p. 347), que
remete, por sua vez, aos ritos de máscaras dos esquimós Inua. Lot-Falck conclui que é
“extraordinária representação do animal como variante da humanidade e da humanidade
como variante da animalidade, é preciso uma fundação vital do homem e do espírito”.
Porém, se Merleau-Ponty admite esse estranho parentesco” entre homens e animais a
ponto de tratá-los como homônimos (ibid., p. 432), ele o faz com base na teoria
evolucionista (ibid., p. 430), muito distante e contrastante, portanto, da racionalidade
indígena.
O anacronismo moderno, o desconforto que seus inconciliáveis termos e
propósitos nos trazem, faculta-nos a interpretar outras sociedades como se fossem
contrapontos reais, posicionados em lados diametralmente opostos, com seus costumes e
posturas totalmente contrastantes, o que nos dificulta o entendimento das contradições
inerentes a outras sociedades. A concepção de corpo indígena é subsidiada no âmbito
dessa pesquisa por numerosas referências etnográficas que dizem respeito à maneira como
o ameríndio constrói e apreende o sentido de humano, como contempla os animais e
plantas e outras subjetividades do seu universo cosmológico. A antropologia vem
84
Termo que designa “a inerência de si ao mundo ou do mundo a si, de si ao outro e do outro a si” (Merleau-
Ponty, 2000, p. 335).
85
LOT-FALCK, Evelyne. “Les masques Eskimo”, catálogo de exposição Le Masque, Museu Guimet, Paris,
dezembro de 1959-maio de 1960.
194
confrontando natureza e cultura, transportando o dualismo presente no pensamento
moderno e experimentando-o no pensar indígena, enfatizando assim suas diferenças de
maneira a destacar um contraste entre as duas racionalidades. Seriam natureza e cultura,
neste sentido, realidades realmente inconciliáveis?
O corpo parece ser uma das zonas de contato entre as múltiplas culturas, um foco
para o qual convergem variadas significações de mundo. Essa foi uma de nossas primeiras
argumentações, cuja importância comporta um risco: invalidada, comprometeria toda a
discussão subseqüente. Mas não olvidemos que as semelhanças entre as sociedades
melanésias e amazônicas, a despeito da centralidade do corpo, devem-se, em grande
medida, às referências teóricas etnográficas que derivam de uma mesma matriz
logocêntrica de pensamento. A abordagem etnológica moderna não consiste numa
perspectiva indígena fidedigna, ela não está preocupada, presumimos, em dar voz ao seu
objeto de estudo. Importa aos trabalhos etnográficos destacar os contrastes entre culturas a
fim de torná-las explicitas e inteligíveis o suficiente para um auto-reconhecimento das
sociedades modernas. As acepções de corpo indígenas que aludimos nesse estudo são
oriundas de investigações etnográficas e não precisamente extraídas de forma direta da
oralidade indígena ou da prática indígena, para sermos mais coerentes com um fazer que
não requer narrativas o que decorre no risco de recorrermos a interpretações distorcidas
do real. Por outro lado, de que valeria toda a produção científica se não pudéssemos lançar-
lhe mão, mesmo que com o incessante renascimento da dúvida?
Se optamos em confrontar aspectos da modernidade com outros das comunidades
indígenas foi, a exemplo dos etnólogos, para realçarmos os contrastes advindos então,
tornando-os evidentes para melhor precisar as possibilidades que se abrem em face da
crise que se anuncia, e não por considerarmos as culturas indígenas como modelos ideais a
serem seguidos num tom poético que encontra paralelo em muitos discursos ambientalistas.
Se as sociedades indígenas, seus modos de reprodução, suas concepções de corpo, tempo
e espaço, parecem distanciados e utópicas demais para as sociedades modernas, não é
somente porque poderia se temer um retrocesso segundo os padrões modernos de
desenvolvimento, mas também porque as culturas indígenas e os saberes que comportam
sempre foram qualificados como residuais, como se a modernidade não se constituísse e se
alimentasse historicamente no contraponto a tais culturas.
Redimencionar nossa relação corpórea não supõe a adoção de uma dada cultura
às expensas de outra, fazer juízo de valor sobre o nível de desenvolvimento das sociedades
ou tornar as sociedades indígenas modelos para a civilização ocidental. O cotejo entre
tradições diferenciadas e por vezes conflitantes não requer o anulamento ou sobreposição
de uma cultura perante o reconhecimento de outra, mas significa, principalmente, enriquecê-
las mediante o reconhecimento mútuo de suas contradições e, mais importante, considerá-
195
las como possibilidades de reorientação de nossa presença no mundo. Todavia, para fins
heurísticos – e não ideológicos vale refletir sobre os modos de vida das sociedades
indígenas, sua flagrante capacidade de manutenção da reprodutividade humana, bem como
de inovações, sem que as mesmas se desdobrem em entropias, ainda que seja diante de
situações adversas. É nesse sentido de confrontação de racionalidades que falamos em
reinvenção da corporeidade.
Não devemos concluir que o corpo na cultura indígena é necessariamente pré-
objetivo quando o corpo na cultura moderna for objetivo ou vice-versa. A objetivação é
produto do conhecimento reflexivo, quer seja no contexto do cristianismo, da ciência
moderna ou da cultura de consumo hodierna. Nossas vidas não são determinadas ou
orientadas em função de corpos objetivados, pois nossos corpos não estão restritos a
continentes de um sujeito pensante. São necessariamente os processos perceptivos que
desencadeiam as objetivações a posteriori, sendo o jogo entre pré-objetivo e objetivação
dos corpos dentro de nossa própria cultura precisamente o que está no centro de muitas das
críticas contemporâneas. Desse modo, a reorientação de práticas corporais em face de
intencionalidades alheias aos modos costumeiros de vida concebidas numa escala externa
à sua escala de impacto não requer abolir tais objetos como se buscássemos um nostálgico
retorno ao passado. De modo diferente, tais práticas permitem dotar os objetos de novas
funcionalidades de forma a atender os fins vinculados às demandas sensíveis do corpo,
mas, todavia, uma reavaliação do objeto que permita relacionalmente nos resignificarmos
enquanto sujeitos. Assim, evitaríamos uma ruptura entre sujeito e objeto.
Toda cultura reserva contradições internas que apontam para alternativas e
possibilidades. No interior das culturas indígenas é possível flagrar uma série de dualismos,
embora não tão incomensuráveis como os das culturas modernas. Traços antinômicos
verificam-se no modo como as culturas indígenas lidam com o corpo, atribuindo-lhe um
horizonte cultural como dado geral estendido a variados seres vivos e um horizonte natural
que lhes permitem uma multiplicidade de perspectivas e relações. Não obstante, evocar um
cotejo entre culturas modernas e culturas indígenas, não significa aceitar que o mesmo
edifício não pudesse ser empreendido junto às realidades intrínsecas à modernidade que
assinalam essas contradições. Poderíamos, por exemplo, recorrer no plano empírico à
cultura popular e às suas mais diversificadas manifestações artísticas, como optamos em
destacar em um parágrafo no quarto capítulo; ou mesmo às medicinas paralelas
(acupuntura, homeopatia, quiropraxia...) ou à medicina popular dos curandeiros e
rezadeiras; ou ainda ao mundo da primeira infância, da loucura, da paixão amorosa, da
criação artística e uma longa lista de opções. Poderíamos ainda recorrer, no plano mais
propriamente teórico e contemplativo, a correntes de pensamento e autores que
representam verdadeiras alternativas: entre uma tradição liberal e uma tradição marxista
196
sobressai-se a primeira no plano da reprodução econômica, embora a segunda povoe boa
parte das produções intelectuais mais de um século; e mesmo em meio ao pensamento
liberal houvera acolhimento por determinada corrente, entre um liberalismo de direita em
Hobbes e Locke e um liberalismo de esquerda em Rousseau e Smith, optou-se pelo
primeiro; e por que o sistema de pensamento cartesiano ao montaigniano? Tenhamos em
mente que a racionalidade moderna burguesa é, sobretudo, a vertente de sociabilidade
eleita dentre algumas outras possíveis. Cabe ressaltar, portanto, que as alternativas
repousam no próprio seio da modernidade sem que, contudo, negligenciemos com esse
dado as culturas marginais que sempre lhe foram constitutivas.
Reiteramos, portanto, que a reinvenção da corporeidade não supõe revoluções,
não requer um rompimento contra tudo que a modernidade representa. Admiti-lo seria como
reproduzir sua lógica temporal segundo um historicismo que se atém a passados
inalcançáveis pelas rupturas arrematadas por uma flecha do tempo. “Após quinhentos
anos”, justifica Santos (2006, p. 36), “a imposição global da modernidade ocidental torna-se
difícil conceber o que é exterior para além do que lhe resiste e o que lhe resiste, se o faz a
partir do exterior, está logicamente em trânsito entre o exterior e o interior”. Portanto,
resignificar nossa concepção de corpo não requer qualquer alusão a um pós-modernismo,
pois o termo “pós” por si mesmo conota o encerramento de qualquer possibilidade de
ressurgência, de retomada de referenciais, por se inclinar à preeminência de um tempo
progressivo cujas etapas são irreversíveis. Invocamos uma nova etapa, um pós-momento,
mas nos mantemos aos sobressaltos com um tempo despótico que negligencia e refuta tudo
que passa.
Enquanto não nos voltarmos para a alteridade e compreendermos que a partir dela
é que mais próximo pode-se chegar de nossas realizações, que o conteúdo para reunir o
todo às partes preenchendo os vazios é plural (não causal, mas casual), não
restabeleceremos a unidade do ser, que como uma peça de porcelana passada de mãos em
mãos trincou com Sócrates e Platão, fissurou com os estóicos e com a escolástica e se
estilhaçou em multiplos pedaços com as tensões da modernidade, desperdiçando e nos
privando de saborear o nectar que continha (tantas possibilidades). Cabe-nos, pois, juntar
os cacos do conhecimento, mas tal edifício supõe que tais realizações nunca se encerrem,
que nas suas margens residam as condições de retomada de nossos projetos, do
movimento que alimenta o devenir histórico-geográfico e dos horizontes diferenciais e
reversíveis da vida.
197
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