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RODIRLEI SILVA ASSIS
COSMOPOLITISMO E LITERATURA EM FERREIRA DE
CASTRO: IMAGENS DO BRASIL E DE PORTUGAL NOS ROMANCES
DE UM PORTUGUÊS INCOMPREENDIDO
ASSIS
2008
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RODIRLEI SILVA ASSIS
COSMOPOLITISMO E LITERATURA EM FERREIRA DE
CASTRO: IMAGENS DO BRASIL E DE PORTUGAL NOS ROMANCES
DE UM PORTUGUÊS INCOMPREENDIDO
Tese apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis UNESP
Universidade Estadual Paulista para a
obtenção do título de Doutor em Letras
(Área de Conhecimento: Literatura e vida
social).
Orientador: Prof. Dr. Odil Jo de Oliveira
Filho.
ASSIS
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Assis, Rodirlei Silva
A848c Cosmopolitismo e literatura em Ferreira de Castro: imagens
do Brasil e de Portugal nos romances de um português incom-
preendido / Rodirlei Silva Assis. Assis, 2008
231 f.
Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Literatura comparada. 2. Literatura portuguesa. 3. Castro,
Ferreira de, 1898 – 1974. 4. Literatura brasileira. I. Título.
CDD 809
869.3
4
RODIRLEI SILVA ASSIS
COSMOPOLITISMO E LITERATURA EM FERREIRA DE
CASTRO: IMAGENS DO BRASIL E DE PORTUGAL NOS ROMANCES
DE UM PORTUGUÊS INCOMPREENDIDO
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis UNESP
Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área
de Conhecimento: Literatura e vida social)
COMISSÃO EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Dr. Odil José de Oliveira Filho (UNESP/ASSIS)
_________________________________________________
Prof. Dra. Doris Natia Cavallari (USP/SÃO PAULO)
_________________________________________________
Prof. Dra. Luzia Berlofa Tofollini (UEM/MARINGÁ)
_________________________________________________
Prof. Dra. Miriam Gilberti Pattaro Pallotta (UNESP/ASSIS)
_________________________________________________
Prof. Dra. Rosane Gazzola Alves Feitosa (UNESP/ASSIS)
Assis, 27 de Agosto de 2.008
5
Ao meu pai, Vitor, à minha mãe, Rosalina e ao meu irmão,
Rogério, pelo exemplo de hombridade.
À minha esposa Sidneia, pela incansável compreensão e pelo
amor abnegado.
À minha inesquecível filha Gabriela (in memoriam), cujo
inextinguível desejo de viver me fez persistir e aprender que a
preservação do homem na terra e a vida digna e igualitária
constituem nosso instinto supremo.
6
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Odil José de Oliveira Filho, toda minha admiração, gratidão e
apreço, pelas sugestões, discussões e ajudas, constantes, pacientes e
absolutamente fundamentais para a concretização deste trabalho.
Ao amigo Laisson Thomas Pestana de Souza, que com muito desvelo efetuou
a preparação de meu Abstract.
Aos funcionários da Pós-Graduação e da Biblioteca da Faculdade de Ciências
e Letras de Assis (UNESP), sempre mui prestativos, amistosos e dedicados, que
muito contribuíram na elucidação de questões que somente o desvelo, como
profissionais dedicados que são, poderia fornecer a quem caminha pelas sendas da
pesquisa acadêmica.
À CAPES, pela bolsa de estudos concedida.
7
“O maior pecado contra nossos semelhantes o é odiá-los, mas ser indiferente a
eles: esta é a essência da desumanidade”
George Bernard Shaw
“Isto se pode dizer do homem – quando as teorias mudam e desmoronam, quando as
escolas, filosofias, quando as estreitas vielas escuras de pensamento nacional, religioso,
econômico brotam e se desintegram, o homem segue, avançando aos tropeços,
dolorosamente, às vezes erroneamente. Depois de dar um passo à frente, pode escorregar
para trás, mas apenas meio passo, jamais o passo inteiro.
John Steinbeck
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“[...] existem no homem linhas mentais que se podem manter ou deteriorar, que se
podem manter através de tudo, se ele refreia as ambições desmesuradas, as vaidades fáceis,
os luzimentos obtidos por sucessivas e grosseiras transigências. também aquisições
preciosas, que embora imponderáveis, mais leves ainda do que as plumas desses
pequeninos colibris, que esvoaçavam, à maneira dos insectos, diante da minha janela no
seringal, pesam fortemente na balança de lucros e perdas de cada vida, mesmo que seja
muito humilde. Para mim, parece-me que a melhor foi compreender e amar o meu
semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus erros e nos seus
acertos e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas realizações e nos
heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, os limites inumeráveis, as
aspirações sempre adiadas impõem a tantos deles com implacável freqüência. Compreender
os problemas que afligem a maioria dos homens, que os afligem a milhares de anos,
enquanto esperam pela justiça que tem demorado tanto. Compreender e fraternizar com os
homens, sejam do Barroso ou da Serra da Estrela, da cidade em que vivo ou da aldeia em
que nasci, de todas as cidades e de todas as aldeias de todos os países da Terra, por cima de
todas as fronteiras e de todas as pátrias.”
Ferreira de Castro
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ASSIS, Rodirlei Silva. COSMOPOLITISMO E LITERATURA EM FERREIRA DE
CASTRO: IMAGENS DO BRASIL E DE PORTUGAL NOS ROMANCES DE UM
PORTUGUÊS INCOMPREENDIDO”. Assis: 2008. 231 f. Tese (Doutorado)
Faculdade de Ciências e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual
Paulista, Assis, 2008.
RESUMO
O presente trabalho tem por intuito proceder a uma análise imagológica da obra do
escritor português Ferreira de Castro (1998-1974) revelando a densidade literária de
uma produção que, por tempos, ficou esquecida no cânone literário português. Para
tanto, foram escolhidos cinco romances dentre a lavra do referido escritor, a saber,
Emigrantes (1928), A Selva (1930) e O Instinto Supremo (1968), que transfiguram
literariamente espaços brasileiros e Terra Fria (1934) e A Lã e a Neve (1947), cuja
ambientação ocorre em Portugal. A preferência dada aos romances neste trabalho
deve-se ao fato de que, dentre toda sua profícua e diversificada produção escrita,
estes são os que mantêm um labor literário mais facilmente detectável, além de
promoverem, indefectivelmente, um diálogo intercultural entre Brasil e Portugal, o
que faz de Ferreira de Castro autor altamente interessante aos estudos
imagológicos. Iniciando sua produção estética no limiar do século XX, Ferreira de
Castro o raro, é tido como escritor vinculado a movimentos e ideologias de cunho
sociológico e, por isso, não tem figurado em primeiro plano no cânone literário
português.Não porque negou participação em movimentos demarcados, mas,
porque julgamos que o labor literário de Ferreira de Castro encontra-se alicerçado
na mais alta preocupação estética, ultrapassando quaisquer barreiras ideológicas
vincadas e esquecidas com o tempo, buscamos estabelecer um diálogo imagológico
entre a autoimagem portuguesa e a heteroimagem brasileira nos romances
supracitados, pois, ao fim e ao cabo, desejamos salientar a relevância literária de um
escritor que soube, como poucos, ser humanista e estabelecer relações
interculturais sem usar de preconceitos. Ao contrário, almejava a comunhão entre os
povos de culturas diferentes, espoliados em suas difíceis relações de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Ferreira de Castro Imagologia Literatura Portuguesa
Literatura Comparada.
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ASSIS, Rodirlei Silva. “COSMOPOLITISM AND LITERATURE IN THE LITERARY
WORKS BY FERREIRA DE CASTRO: BRAZILIAN AND PORTUGUESE IMAGES
ON THE NOVELS BY AN UNDERSTOOD PORTUGUESE WRITER”. Assis: 2008.
231 pages. PhD DOCTORAL DISSERTATION. Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2008.
ABSTRACT
The present PhD Doctoral Dissertation deals with an imagological analysis on the
novels by the Portuguese writer Ferreira de Castro (1898 1974), in order to reveal
the stetical density of a literary production, which remained forgotten for a long time
in the Portuguese Literature’s canon. Among his novels, one decided to select five of
them: Emigrantes (1928), A Selva (1930), O Instinto Supremo (1968), which the
unique literary represented setting is the Brazilian one, Terra Fria (1934) and A Lã e
a Neve (1947), that bring the reader the Portuguese landscapes as main settings.
One choosed the mentioned Ferreira de Castro’s novels as corpus of this Doctoral
Disseration, because they manifest an effective literary labor in their internal
elaboration. Besides we can affirm that all of them promote an intercultural dialogue
between Brazil and Portugal,which makes Ferreira de Castro an exceptional writer
for the imagological studies. Ferreira de Castro initiates his career as writer at the
beginning of the 20
th
century.Particularly because of this. Castro is not rarely
vinculated with sociological and ideological struggles, facts that positions him on the
second step of the Portuguese Literature’s canon. Ferreira de Castro regrets many
times participations on vanguardist movements, which forces to turn one´s face also
to very highly literary struggles present among the studied novels. As a matter of fact,
one cannot consider Castro’s literary works as demarked ideological ones, that could
be forgotten with the time, because the stetical worries are more relevant and
important in his texts. In this dissertation, one establishes an imagological dialogue
between the Portuguese self-images and the Brazilian hetero-images existent in the
analysed novels. One aims in this research to prove the literary relevance of an
author, who knew like no one to be humanist writer and to establish intercultural
relationships without using prejudices. On the contrary, Castro desired the union
between people from different cultures, with enormous conflicts in complex work
relationships.
KEY-WORDS: Ferreira de Castro Imagology Portuguese Literature
Comparative Literature.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
CAPÍTULO 1:
Ferreira de Castro e a problemática do engajamento político: um escritor
português frente às desigualdades humanas no domínio de Salazar................25
1.1. Um escritor neo-realista?....................................................................................25
1.2. A estrutura do pensamento engajado falácia ideológica ou humanização
artística em Ferreira de Castro...................................................................................40
1.3. Ferreira de Castro e seus contemporâneos. A peculiaridade de uma produção
estética frente às obras de José Américo de Almeida e de Jorge
Amado........................................................................................................................49
1.4. Emigrantes e A Selva: os primeiros libelos de uma preocupação eminentemente
literária........................................................................................................................61
CAPÍTULO 2:
Contribuições imagológicas para a compreensão da práxis artística de Ferreira
de Castro na construção de heteroimagens literárias brasileiras.......................71
2.1. Ferreira de Castro: um português em busca de um Brasil desconhecido dos
brasileiros...................................................................................................................71
2.2. A Imagologia como contribuição analítica à produção estética de um autor
incompreendido..........................................................................................................73
2.3. Fase Imagotípica: Jean-Marie Carré e Marius François Guyard.........................74
2.4. René-Wellek: uma postura adversa....................................................................76
2.5. Hugo Dyserink e a Imagologia hoje.....................................................................77
2.6. O primeiro romance de cenário brasileiro: Emigrantes.......................................85
2.7. O romance de maior destaque na carreira literária de Ferreira de Castro: A
Selva.........................................................................................................................113
2.8. O retorno ao Brasil em O Instinto Supremo......................................................131
12
CAPÍTULO 3:
Ferreira de Castro de volta às origens: Um Portugal diante do espelho das
autoimagens literárias como retrato dos detratados..........................................133
3.1. Portugal e Brasil, países unidos pelas imagens representativas presentes nas
obras de Ferreira de Castro.....................................................................................133
3.2. Terra Fria: Ilusões perdidas nas terras frias do Barroso: autoimagens literárias
portuguesas..............................................................................................................136
3.3. A Lã e a Neve: imagens paralelas entre Brasil e Portugal na Covilhã..............165
CAPÍTULO 4:
O Instinto Supremo: síntese das preocupações de toda uma vida literária
voltada para o retrato dos detratados..................................................................188
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................216
REFERÊNCIAS........................................................................................................221
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................228
13
INTRODUÇÃO
O escritor português Ferreira de Castro (1898-1974) revela em seu estilo uma
preocupação constante com causas sociais, sendo possível, portanto, seu
enquadramento estético na fase de transição a que os críticos Saraiva e Lopes
(2000, p. 1025) denominam de “naturalismo humanitário” para o Neo-Realismo
português, vindo, pois, na esteira ideológica de escritores do porte de Eça de
Queiroz, Fialho de Almeida, Raul Brandão e Aquilino Ribeiro.
Esse interesse de Ferreira de Castro por causas sociais tem origem,
conforme manifestado pelo próprio escritor, nos anos em que viveu no Brasil (1911 a
1916) e trabalhou às margens do rio Madeira, no processo de extração do látex, na
Floresta Amazônica paraense. Em convivência com diferentes dramas humanos o
dos nordestinos, sobretudo, que abandonavam a zona da mata devido à
avassaladora seca de 1898 e aceitavam, então, as condições de um trabalho
desumano e mal–remunerado nos seringais amazônicos, entregando suas vidas a
uma luta inglória contra um meio (des)natural adverso e à ambição de
enriquecimento, promovida pelo capitalismo selvagem Ferreira de Castro,
comovido pelo que via, transforma estilisticamente este palimpsesto social e
emocional, principalmente nos romances A Selva (1930), a mais aclamada e
controversa de toda sua produção literária e O Instinto Supremo (1968), no qual
retorna ficcionalmente ao cenário amazônico brasileiro ao tratar de personagens
históricas como o etnólogo alemão Curt Unkel (1883-1945), denominado
Nimuendaju pelos índios Apapokuva Guarani do Araribá, de São Paulo, e do
marechal Cândido Rondon (1865–1958), em seu processo de pacificação das tribos
indígenas da Amazônia.
Visto que a Amazônia, nos primeiros decênios do século XX, era um local
conhecido mundialmente, uma vez que a maior quantidade de látex extraído no
planeta, à época, tinha origem nos seringais amazônicos, Ferreira de Castro intenta,
com A Selva, dirimir a recorrente visão da floresta amazônica como paraíso de
infinitas possibilidades, de exploração indiscriminada de produtos materiais e
minerais, como o era no apanágio ideológico europeu desde o século XVI, e, com
14
isso, trazer à tona a imagem de um lugar dimensional, onde o trabalho desumano e
mal remunerado de inúmeros indivíduos ficava escondido pela mata exuberante e
profusa.
Embora assuma caráter jornalístico, ao denunciar a realidade do universo
amazônico, no período de que trata A Selva, o romance não se retrai ao
anacronismo comum a obras que se valem do empenho social e/ou político em
detrimento do aparato literário que as deveria consubstanciar, pois, conforme
pretendemos demonstrar em nossa Dissertação de Mestrado, intitulada “Imagens da
Amazônia Brasileira em A Selva, de Ferreira de Castro”, é possível, à luz da
Imagologia, alcançar, no substrato textual do referido romance, imagens perenes e
reveladoras de um profundo embate do homem com o meio, que, dimensionado,
não se reduz ao cenário amazônico daquele momento focalizado por Ferreira de
Castro, mas que é universal. A Amazônia, uma das mais exuberantes e diversas
reservas naturais do globo, além de reduto de imagens folcricas, de mitos e lendas
largamente conhecidos, contribui, sobremaneira, para o adensamento do drama
humano percorrido em todo o romance, como, mais tarde, tamm serão exemplos
de idêntica preocupação, qual seja, a do embate homem versus meio, os romances
de Alves Redol, sobretudo em sua obra Gaibéus, publicada em 1939, aclamada
como iniciadora do movimento Neo-Realista em Portugal. A título de exemplificação,
pode-se ainda citar Graciliano Ramos, um dos maiores nomes da literatura
regionalista brasileira, consagrado, particularmente, por seu romance, Vidas Secas,
publicado em 1938, um ano anterior à edição de Gaibéus. No mesmo ano, o escritor
norte-americano John Steinbeck, conhecido pelos mesmos predicativos de escritor
preocupado com causas sociais, trazia a lume As Vinhas da Ira, compartilhando,
com Ferreira de Castro e Graciliano Ramos, sérias preocupações sociais e
humanistas. Nesse mesmo caminho, não se pode esquecer, também, de Secondo
Tranquilli, de pseudônimo, Ignazio Silone que, em 1933, havia publicado, no exílio
na Alemanha, um romance fundamental para o Neo-Realismo italiano, a saber
Fontamara, trazendo à tona a luta de pequenos produtores rurais contra o sistema
ologárquico da localidade obra fundamental, constitui-se em uma das mais
importantes narrativas antifascistas e um libelo contra as diferenças de toda ordem
impingidas contra os esquecidos sociais.
Se, em A Selva, Ferreira de Castro preocupa-se com o seringueiro e seu
drama dimensional, em O Instinto Supremo o foco direciona-se para o índio. Não
15
mais o índio tipificado do Romantismo, talhado à imagem e semelhança indeléveis
de um europeu habitante dos trópicos, mas do índio esquecido, como os
seringueiros de A Selva, no fundo da mata amazônica, a hostilizar-se contra o
invasor branco movido pela cobiça e pela fome insaciável das riquezas da terra,
convencido de que a selva, assim como seus habitantes nativos, podiam ser
desbravados e massacrados, um a machado; os outros, à bala. Porém, a figura
central do romance, Curt Nimuendaju, lidera outra leva de homens brancos que
põem em risco suas próprias vidas em prol da pacificação da tribo dos índios
Parintintins, afastando-os do contato direto com os brancos que lhes ofereciam
ameaças constantes. O lema de Rondon, tamm ostentado pelo etnólogo alemão,
“morrer se necessário for; matar nunca” se estabelece como brado de consciência,
que, também dimensionado, destaca um ponto alto da história do homem sobre a
face da Terra, qual seja, a necessária trajetória em busca da paz e do entendimento
entre povos de culturas distintas.
Não obstante a preocupação estético-social com o cenário brasileiro, a obra
de Ferreira de Castro não se limita ao território amazônico, já que, mesmo antes da
publicação de A Selva, trouxera a lume o romance Emigrantes, em 1928, que
retrata o enveredamento migratório dos europeus rumo às Américas, no início do
século XX. O protagonista da obra em tela, o português Manuel da Bouça, segue de
perto o arquétipo do europeu das Grandes Navegações européias dos culos XV e
XVI, que perambula pelos mares em busca de novas descobertas, conquistas e
enriquecimento, e que nos emergentes países da América, como os Estados
Unidos, A Argentina, o Uruguai e o Brasil, a possibilidade de concretização de seus
desejos e ambições, ou ainda, conforme estabelece Ferreira de Castro já no prefácio
à primeira edição da referida obra, mais tarde transcrito na edição de 1980, da
Editora Guimarães & Cia, que sempre acompanhou as publicações do escritor de
Ossela:
Biógrafos que somos das personagens que não têm lugar no mundo,
imprimimos neste livro despretensiosa história de homens que
transitam de uma banda a outra dos oceanos, na mira de poderem,
também, um dia, saborear os frutos de oiro que outros homens,
muitas vezes sem esforço maior, colhem às mãos cheias. (1928, p. 3
e 4).
16
Manuel da Bouça incumbe-se de alargar a imagem do Brasil lugar para
onde vem como imigrante no contexto americano, e resgata as imagens inerentes
ao pensamento europeu sobre a América, bem como as singulares imagens sobre o
Brasil.
A preocupação social que emana da obra de Ferreira de Castro não ficou
presa aos romances Emigrantes, A Selva e O Instinto Supremo, que tinham o
Brasil por cenário, mas encontra correspondentes estéticos-ideológicos em obras
que versaram sobre o cenário português, como os romances Terra Fria (1934) e A
Lã e a Neve (1947).
Como em 1934 havia visitado as terras do Barroso, Ferreira de Castro vê-se
movido a escrever o romance Terra Fria, que lhe valeu o prêmio Ricardo Malheiros,
da Academia de Ciências de Portugal. O estranhamento diante do novo cenário
visitado pelo escritor é evidente em suas palavras, contidas no Pórtico da edição de
1935 de Terra Fria (também reproduzido na edição de 1980 da Guimarães & Cia),
ao referir-se aos aspectos sociais do ambiente de que se compunha seu romance:
Era um outro mundo a descobrir, não por ser opulento de motivos,
que as almas se mostram simples, os costumes austeros e a vida
transcorria, como há muitos séculos, entre jogadas agrícolas e
pastoris, mas porque a existência se apresentava ali com facetas
que, de tão arcaicas, de tão remotas, dir-se-iam, de novo, inéditas
(1980, p. 16).
Em A e a Neve, uma de suas obras mais expressivas e traduzidas, a
exemplo das dezenas de traduções que foram feitas acerca de Emigrantes e,
sobretudo, de A Selva, Ferreira de Castro ambienta um enredo entre a comunidade
pastoril da Serra da Estrela e o proletariado da Covilhã, com personagens que vivem
o drama de serem mal pagas pelos empreendedores do cultivo da , promovendo,
assim, uma greve, em busca de melhores condições de existência e de redução das
diferenças sociais. Para alguns críticos literios, este romance estabelece íntimas
relações com o Neo-Realismo português.
O que sobressai nas obras de Ferreira de Castro, tanto nas que retratam
singularidades concernentes ao território brasileiro, quanto nas de preocupação
17
regional, voltadas, pois, para o território português, é a preocupação com o embate
homem versus meio. Tal preocupação contribui para a absorção, em todos estes
romances, do que os estudos empreendidos pela Imagologia denominam de
autoimagens e heteroimagens, ou seja, respectivamente, imagens construídas
literariamente acerca de regiões do próprio país de origem de Ferreira de Castro -
imagens de Portugal -, e imagens relativas a algumas regiões brasileiras, como o
caso do Estado de São Paulo em Emigrantes e da região amazônica, em A Selva e
Instinto Supremo, e cumprem com o objetivo de Ferreira de Castro de denunciar a
situação social de lugares tão díspares cultural e geograficamente, mas que se viam
igualmente assolados pela sede ambiciosa de dominação do homem pelo próprio
homem, legando muitos indivíduos à massificação alienatória e à dependência
econômica, a exemplo do que ocorrera em outros momentos da História da
Humanidade, como na Segunda Revolução Industrial, do século XIX, que ampliou,
em muitos lugares do globo, as diferenças sociais e a dependência econômica de
indivíduos e de países, em prol do enriquecimento a qualquer custo mesmo que
este custo fosse o da espoliação humana.
Eternidade, publicado em 1933 foi romance concebido diante do cenário da
Ilha da Madeira, onde Ferreira de Castro repousou após a morte da esposa, Diana
de Lis, em 1930, após convalescer, ele mesmo, de uma septicemia, que colocara
sua vida em risco. Nesse romance, narra-se a história da personagem Juvenal, que
vive uma preocupação ontológica, a qual o conduz à depressão, numa destacada
desintegração espiritual, após a morte da companheira. Por não privilegiar a questão
social, no embate do homem com o meio, nem revelar, substancialmente,
características próprias da autoimagem portuguesa em contraste com a brasileira,
não o utilizaremos no corpus analítico de nosso trabalho, o mesmo se procederá no
tocante ao romance intitulado A Curva da Estrada (1950), que, apesar de candente,
psicologicamente, tem por cenário a Espanha. Junto aos romances que compõem o
corpus analítico do trabalho, tais romances constituem o que melhor escreveu
Ferreira de Castro portanto, não se lhes nega a importância, apenas não são
observados à luz contrastiva da Imagologia no trabalho em tela.
Cabe ressaltar que a construção de todo este aparato sociológico e de
resgate histórico, patente nos romances de Ferreira de Castro, de que se fez
menção como corpus analítico deste trabalho, o se aparta de uma carga emotiva,
artisticamente imbuída, que contribui, sobremaneira, para que os mesmos o se
18
percam no anacronismo das propostas sociais irrealizáveis, produtos de mentes
visionárias muito mais do que humanisticamente empenhadas, ou mesmo na defesa
de um determinismo tardio, a porque pretendemos demonstrar que todo este
construto, histórico-social, trabalhado de modo artístico, torna ainda mais evidente
um drama universal na literatura, qual seja, o embate do homem contra paisagens
naturais e humanas adversas à sobrevivência e ao sentido ontológico do ser-estar
no mundo.
Assim, não raro, em Ferreira de Castro, enquanto o homem, feito
personagem, se desumaniza, o espaço vai, aos poucos se humanizando, ao
absorver do homem todas as características que o definem como humano. Com
isso, o próprio espaço se encarrega, mediante as relações sociais que o
homem/personagem ali desenvolve, de expor, lugubremente, seus instintos
animalescos mais profundos, criando, ao fim e ao cabo, uma atmosfera dual, de
inversão de valores entre o homem e o meio.
No continuum narrativo de seus romances mencionados, é possível detectar
personagens perdendo gradualmente a capacidade de articulação da linguagem, de
qualquer princípio ético que direcione as relações humanas, bem como a
capacidade de reflexão e escolha, já que o meio alienante suprime deste homo fictus
o poder de decisão coerente, a qual é plasmada pela assunção do instinto que se
encontrava latente. E isto ocorre em um grau de tal modo elevado que as descrições
do homem e de suas relações sociais se tornam, quando não completamente
inócuas, extremamente impregnadas de cor local, ao passo que, na ânsia narrativa
de ressaltar a imponderabilidade do meio adverso, este se mostra mais humano que
o próprio homem. Isto ocorre não somente porque os espaços, nos romances de
Ferreira de Castro, são descritos como portadores de características humanas,
possuidores de vontades próprias, mas porque o tecido narrativo é descrito no
sentido de denotar a fragilidade humana e isto poderia ser concretizado a partir
da construção de um espaço intratável.
Enfim, caberia aos homens se compreenderem. Essa seria a única via de
escape das imposições do meio contra o homem. Quanto mais do meio se conhece,
em suas determinantes sociais e/ou naturais, mais se abre o Eu à íntima
compreensão do Outro como sendo um igual, de maneira que a luta entre seres
semelhantes se configuraria como sinal da mais alta animalidade, da qual se deve
fugir, incondicionalmente.
19
Foi mediante a leitura atenta das obras de Ferreira de Castro, especialmente
as que aqui se definem como corpus, que nos foi possível vislumbrar a construção
de imagens tanto do Brasil quanto de Portugal, as quais estabelecem entre si uma
comunicação inexorável, quando contrastadas diante das balizas dos estudos
comparados, mormente diante das preocupações analíticas da interculturalidade
imagológica. A Imagologia é uma vertente da Comparatística voltada para a análise
e interpretação de imagens de países e povos, construídas na seara literária.
Assim, tendo em mente a preocupação de Ferreira de Castro com a situação
do homem diante do meio, o que o caracteriza como escritor de transição para o
Neo-Realismo português, tornando-o singular diante dos neo-realistas, a quem,
provavelmente influenciou, é o fato de primeiro ter direcionado seu olhar sobre uma
terra de certo modo estrangeira à sua, a saber, sobre o Brasil, muito embora tenha
vivido aqui boa parte de sua infância, para somente mais tarde focalizar Portugal.
Isso poderia ter oferecido uma espécie de queda de tom em sua narrativa, como se
todo o pendor de um estilo que, nos primeiros romances buscava ser forte e, muitas
vezes descritivo e visceral, fosse, gradualmente, arrefecendo e perdendo o impacto
que os romances tematizados em território brasileiro possuem.
Fundamentamos nossa hipótese no fato de que Ferreira de Castro, na
transposição estilística dos romances que retratam o Brasil, para os romances que
tematizam Portugal, ao contrário do que afirma o crítico Urbano Tavares Rodrigues,
não perde o tom analítico ao ponto de tornar-se mais condescendente com sua
pátria de origem, pois, em nosso prisma, seu pendor não era iminentemente político,
apesar de tematicamente poder ter influenciado os engajados neo-realistas de
primeira água, ávidos por temas de denúncia social, mas literário, de modo que as
auto e heteroimagens construídas nos cinco romances analisados se reafirmam no
fato de que, independentemente da pátria descrita, tais imagens são humanas, não
sendo cerceadas por limites geográficos diante da luta pela compreensão do Outro
pelo Eu, visto que estes acabam por serem reflexos do mesmo indivíduo diante do
espelho imutável da igualdade humana diante da espoliação do homem pelo
homem, que poderia ocorrer em qualquer parte do globo onde se ressumasse o
desejo de dominação.
Atento à sua produção artística e aos limites a que esta se encontra
enfeixada, Ferreira de Castro não seria um desconhecedor da realidade brasileira,
criador de um movimento pendular de imagens contrastantes entre Brasil e Portugal,
20
no sentido de depreciar o primeiro em prol do segundo, como também, de forma
incorreta, afirmava a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) no ano de 1935, no
tocante ao romance A Selva, tido como libelo corruptor da imagem do Brasil no
exterior.
Cumprindo um dos objetivos a que se dispõe a Imagologia, voltada,
mormente, para o imbricamento que emerge entre imagens do próprio país e
imagens de países estrangeiros, nosso trabalho pretende, além de trazer à baila
discussões acerca da obra de Ferreira de Castro, estabelecer uma leitura mais
vertical acerca da produção literária de um escritor que, pelo fato de ter sido julgado
como detrator do Brasil, teve, em nosso país, sua obra esquecida. Por sua vez,
pode-se afirmar que, em virtude de seu enfeixamento em correntes ideológicas
vincadas, arrefecidas com o tempo, tamm é pouco lido em Portugal. Esses fatos,
ademais, poderiam impedir o real entendimento das obras do escritor de Ossela e
dificultar, ao fim e ao cabo, as relações culturais entre Brasil e Portugal, ou mesmo
solidificar uma imagem do Brasil que o correspondesse aos objetivos pretendidos
por Ferreira de Castro. Nesse sentido, faz-se mister ressaltar que nosso trabalho
procura atentar para uma das inquietações axiais da Imagologia, preocupada entre
outras coisas, com o estabelecimento de diálogos que possam dirimir possíveis mal-
entendidos entre povos de culturas distintas, no terreno da ficção literária.
Assim, nossa pesquisa se justifica, pois, procura contribuir, indiscutivelmente,
com os estudos comparados e de recepção, ao mesmo tempo em que se dispõe a
reavivar discussões relativamente a um escritor que, injustamente, é legado ao
segundo plano nos recortes canônicos da Literatura Portuguesa.
A fim de cumprirmos com as determinações alcançadas na hipótese de nosso
trabalho, lançaremos mão das contribuições metodológicas advindas da teoria e
práxis imagológicas, que tiveram seu alvorecer moderno com os estudos do belga
Hugo Dyserink, da Universidade de Aachen, empreendidos durante a segunda
metade do culo XX, muito embora as imagens relativas a países e povos
perpetradas pela literatura sejam de preocupação analítica desde o Romantismo,
conforme afirmam Brunel, Pichois e Rousseau em sua obra Que é Literatura
Comparada (1995, p. 53)
Dyserink, por intermédio do texto “Zum Problem der ‘images’ und mirages’
und ihrer Unterschung im Rahmen Vergleichende Leteraturwissenchaft”, publicado
em 1996, mesmo ano em que o estudioso cunha o termo Imagologie”, traduzido em
21
português como “Imagologia”, deixa claras as bases dos estudos imagológicos, que
efetuava mesmo sem o uso deste nome, como esboçado, desde a década de 50
do século XX, momento em que Dyserink contesta a visão de René Wellek, para
quem nenhum estudo literário alcançaria o substrato textual se o fosse
completamente imanentista. E, para Wellek, os estudos imagológicos não
conseguiam ser imanentistas. De acordo com Dyserink (1996), em inúmeros casos,
a análise imanente das imagens é possível e necessária aos estudos imagológicos,
na medida em que, indissolúveis quanto ao conteúdo e à forma, as imagens
interagem com o todo da obra, tornando-se fundamentais para a compreensão cabal
de seu significado. O que ocorreria, por exemplo, nos momentos em que a
configuração do estrangeiro ou dos estrangeiros ocupa lugar de destaque dentro da
literatura.
Outrossim, a Imagologia tamm se preocupa com questões que, embora
não sejam legitimamente imanentes, também o deixam de pertencer ao domínio
literário, como acontece com a repercussão que as obras adquirem quando são
divulgadas. Cabe, pois à Imagologia, neste caso, proceder a uma análise do texto
literário, determinando se a carga ideológica contida nas imagens condiciona a
repercussão das obras que as transportam.
Ademais, é preocupação da Imagologia o fato de algumas obras serem
traduzidas em detrimento de outras, bem como o modo como algumas autoimagens
são traduzidas em língua estrangeira e assimiladas em outros países.
De acordo com Dyserink (1996), a interpretação de uma obra literária,
marcada por imagens de povos e culturas diversas, deve valer-se do conhecimento
teórico advindo de outras áreas de estudo que possam, de alguma forma, contribuir
para uma visão mais completa do todo da obra, como são os casos, por exemplo, da
Semiótica, da Estética da Recepção, da Tradutologia, da Psicologia, da Sociologia e
da Intertextualidade, como apregoa o próprio Dyserink:
Excetuando-se determinados casos, nos quais a pesquisa de
‘images’ e ‘mirages’ pode ser levada a termo, sem se desistir da
meta principal que é a interpretação da obra ficcional, há, ainda,
outras tarefas para esse ramo de investigação, pertencente à seara
mais ampla dos estudos literários, embora se encontrem, em virtude
de seu caráter essencialmente sociológico, distantes do campo
específico do ‘intrínsic study literature’. (1996, p. 107 tradução de
Rogério Silva Assis).
22
Os estudos imagológicos não possuem uma metodologia fechada de
investigação literária, visto que permitem que a análise das imagens seja feita em
amplo espectro, como, por exemplo, a partir do recorte das imagens, passando, por
conseguinte, para a análise das mesmas em relação à ideologia anexa a elas e a
relação que estabelecem com outras imagens no âmbito textual a que pertencem,
bem como com o momento histórico do qual a obra que as comporta faz parte,
sendo possível alcançar, em última instância, a formação de tipologias imagológicas.
Para a Imagologia, as imagens podem ser divididas em dois campos
dimensionais, a saber, as auto e as heteroimagens. As autoimagens são as imagens
formadas a partir da visão que um país ou um povo tem de si mesmo, enquanto as
heteroimagens são as imagens criadas pela perspectiva do olhar estrangeiro,
ambas, porém, detectadas e estudadas nas obras literárias.
Segundo a maior estudiosa da Imagologia no Brasil, Celeste Ribeiro de Sousa
(2004, p. 105), os conceitos de auto e heteroimagens não devem ser estudados fora
de conjunto, haja vista que a representação do Outro parte de uma ótica subjetiva,
culminando no reflexo do Eu que a representou.
No mais das vezes, essas imagens são criadas a partir de análises e juízos
simplistas, que terminam por tipificá-las e generalizá-las. Quando tais imagens se
cristalizam, emergem os estereótipos, os quais, no âmbito da Imagologia recebem o
nome de “imagotipos” (SOUZA, 2004, p. 149), que, neste campo de estudos,
trabalha-se com uma imagem literária. Dessa maneira, o imagotipo, desvela-se por
meio de formas e expressões mutáveis, plurais e diversificadas, uma vez que se
presentifica no terreno ficcional, diferentemente do estereótipo que carrega uma
estrutura e um significado inalteráveis.
Destarte, ao utilizarmos da teoria imagológica e da sugestão metodológica
acima identificada, pretendemos detectar tanto as autoimagens quanto as
heteroimagens contidas nas cinco obras que constituem o foco de nosso trabalho, a
saber, Emigrantes, A Selva, O Instinto Supremo, Terra Fria e A Lã e a Neve
1
e
1
A menos que seja mencionada outra edição, para cada uma das obras que compõem o corpus da
tese, serão utilizadas as versões de Emigrantes, A Lã e a Neve, Terra Fria da Editora Guimarães e
Cia., todas publicadas no ano de 1980, com a oferta da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa,
Portugal, e divulgação, no Brasil, da Fundação Cultural Brasil – Portugal, do Rio de Janeiro.
No caso de A Selva, será utilizada a edição promovida pela Editora Verbo, de São Paulo, do ano de
1972 e O Instinto Supremo, da Editora Civilização Brasileira, do ano de 1968.
23
proceder, a partir das mesmas, a uma detida análise das imagens e dos imagotipos
que podem estar nelas anexados, no intuito axial de alcançar o que se propõe e se
reafirma, a saber, que a construção das imagens do território brasileiro, nas obras de
Ferreira de Castro, não vem carregada de juízos de valor reducionista, como se
poderia prever a uma produção literária portuguesa que versasse sobre o Brasil, no
âmbito das relações históricas que aproximam estes dois países desde o século
XVI. Isto tornará possível, ademais, ainda dentro dos estudos interculturais, rechaçar
propostas imperialistas de que, não raramente, encontram-se impregnadas as obras
literárias ou científicas, produzidas na Europa desde o momento das Grandes
Navegações mercantilistas.
Embora tendo escrito obras literárias de amplo espectro, a saber, contos,
novelas e peças de teatro, a relevância dada aos romances ocorre devido à
preferência de público e crítica dada a esta forma narrativa, capaz de, em sua
complexidade, galvanizar os aspectos da realidade de modo cabal e contundente.
Além de que, esses cinco romances de Ferreira de Castro, mais que qualquer obra
do autor português, escrita em forma narrativa ou em outro gênero literário,
ganharam ampla divulgação mundial devido às inúmeras edições e traduções que
receberam, em dezenas de países ao redor do mundo.
Ainda que, no início de nossa pesquisa, a proposta fosse proceder a uma
análise imagológica partindo de uma recolha de obras que tematizavam o Brasil e
Portugal, a própria discriminação feita por Ferreira de Castro concernente aos
romances que aceitava de sua lavra, colaborou com a proposta inicial, haja vista que
são três os romances que tematizam o Brasil e três os que tematizam Portugal. o
obstante, Eternidade, como foi afirmado, não se prende ao retrato do português,
culturalmente caracterizado, mas ao estudo da alma de Juvenal, deprimido por ter
perdido a companheira de muitos anos.
As contribuições teóricas serão utilizadas a partir dos estudos relativos à
Imagologia, pertencentes ao belga introdutor do condutor analítico desde a cada
de 50 do século XX, Hugo Dyserink e dos empreendimentos teórico-analíticos de
Celeste Ribeiro de Souza.
Nesse âmbito, a tese encontra-se dividida em quatro capítulos. O primeiro,
denominado “Ferreira de Castro e a problemática do engajamento político: um
escritor português diante das desigualdades humanas no domínio de Salazar”
debate questões referentes à participação de Ferreira de Castro no movimento Neo-
24
Realista português, seja como influenciador ou um possível partidário do referido
movimento, discutindo, ademais, a preocupação literária de Ferreira de Castro e
como esta deve suplantar qualquer determinante política que poderia, ao invés de
realçar, apagar a obra do escritor português, que, não raro, é tido pelos manualistas
e compendiadores da Literatura Portuguesa como escritor anarquista ou marxista.
Para tanto, procede-se a uma comparação da práxis artística utilizada por Ferreira
de Castro em relação a seus contemporâneos brasileiros, preocupados em edificar
obras cujo retrato das desigualdades sociais se mostrasse sobressalente, como o
fundador da Literatura Regionalista no Brasil, no final da cada de 20 do século
passado, José Américo de Almeida, escritor de A Bagaceira, e Jorge Amado, amigo
de Ferreira de Castro e, durante muito tempo, membro ativo do PCB (Partido
Comunista Brasileiro), escritor do consagrado Terras do Sem Fim, e, seu
contemporâneo português Alves Redol, introdutor do movimento Neo-Realista em
Portugal com o romance Gaibéus.
O segundo capítulo, intitulado Contribuições imagológicas para a
compreensão da práxis artística de Ferreira de Castro na construção de
heteroimagens literárias brasileiras” busca uma análise imagológica de dois
romances que têm por cenário o Brasil. Feita cronologicamente, essa análise
procede a um histórico acerca do Brasil na vida e na obra de Ferreira de Castro para
salientar as imagens construídas pelo escritor em Emigrantes, A Selva. Como
reforçado, mediante o pensamento de Celeste Ribeiro de Souza (2004), as
heteroimagens não serão detectadas e analisadas de forma isolada, mas em
profundo diálogo com as autoimagens literárias portuguesas, visto acreditarmos ser
possível, desde os primeiros romances, notar a preocupação homogênea no intuito
do escritor Ferreira de Castro em não ser um detrator do Brasil, mas um cosmopolita
que pretendia enxergar nas relações interculturais, mormente entre brasileiros e
portugueses, a possibilidade de mútua compreensão.
Neste sentido, a menção do romance O Instinto Supremo, de 1968, neste
capítulo, faz-se necessária como enquadramento de um romance que tematiza o
Brasil, no entanto, não é levada a cabo, em toda sua complexidade, já que, em
nossa perspectiva, poderia ser considerado um romance sintetizador de toda
preocupação estética e social presente nas letras de Ferreira de Castro, tanto por
ser o último de sua lavra quanto pelo fato de as autoimagens e as heteroimagens
estarem em diálogo constante, especular. Por isso, este romance será retomado no
25
quarto e último capítulo desta tese, intitulado “O retorno ao Brasil em O Instinto
Supremo”.
Conforme aludimos anteriormente, intentamos estabelecer, tamm, uma
análise e uma interpretação das obras que tematizam cenários portugueses,
desenvolvidas no capítulo três, intitulado “Ferreira de Castro de volta às origens: Um
Portugal diante do espelho das autoimagens literárias como retrato dos detratados”,
no qual se procede à análise imagológica das autoimagens literárias portuguesas
em Terra Fria e A e a Neve, em constante diálogo com as heteroimagens
construídas em torno ao Brasil, analisadas no segundo capítulo.
Conclusivamente, pretendemos demonstrar como Ferreira de Castro,
malgrado o desinteresse de brasileiros e portugueses sobre sua obra, é um escritor
que deve sempre ser revisitado, como humanista que foi, verdadeiro homem das
letras, comprometido com a literatura que produzia, e também um cosmopolita, para
quem os limites territoriais e topográficos, não representavam barreiras humanas,
haja vista que sua luta não era, eminentemente de caráter marxista, anarquista ou
de qualquer outra denominação política e dogmática, mas cingida sob um viés
humano, em favor da compreensão mútua entre os diferentes povos que habitam o
planeta. Com isso, tencionamos trazer a lume a obra de um escritor atento às
ansiedades que extrapolam fronteiras determinadas, portador de preocupações
universalistas, ilimitadas, que soube, como poucos, utilizar a literatura como arte
“sinfrônica”
2
, atemporal e, sobretudo, humanizadora.
2
Esse termo foi utilizado pela primeira vez pelo crítico Raúl Castagnino (1968) para se referir à aproximação
que as obras de arte literária conseguem, ao unir, pela tonicidade universal que carregam, os homens de
diferentes épocas.
26
CAPÍTULO 1
Ferreira de Castro e a problemática do engajamento político: um
escritor português frente às desigualdades humanas no domínio de
Salazar.
1.1. Um escritor neo-realista?
A literatura neo-realista portuguesa, corrente normalmente circunscrita entre o
final da década de 1930 e os anos de 1940, optou pelo resgate de valores do
Realismo e no Naturalismo, com forte influência do Marxismo, da Literatura Norte-
Americana da cada 30, e da Literatura Regionalista Brasileira Moderna, com a
publicação, em 1928, de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. O Neo-
Realismo, profuso movimento, caminha em sentido verticalizante, ou seja, de um
engajamento panorâmico e pouco profundo de primeira água, para a apreensão de
elementos metafísicos e de teor menos partidário, como ocorre nas obras de
Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira e mesmo em uma espécie de “segunda fase” da
produção estética de Alves Redol, a exemplo do que ocorre com a publicação do
romance Fanga publicado em 1943.
Nos primeiros momentos do Neo-Realismo, alguns elementos da estética
naturalista portuguesa são, de certa forma, mantidos, como uma espécie de
27
determinismo social e psicológico, contra o qual, porém, as personagens deviam
lutar, e a busca pela objetividade e neutralidade, como formas de dar credibilidade à
narração, que, a exemplo do que também ocorria com a literatura de teor
regionalista no Brasil, dos anos de 1930, optara pela forma romanesca, apta a
retratar os drama do homem ocidental, envolto no caos sócio-econômico processado
após a queda da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.
Entretanto, se, no Naturalismo da geração de 1870, as mazelas da sociedade
eram expostas pelos romancistas com algum pessimismo, sem perspectiva aparente
de solução, os escritores Neo-Realistas, no início do movimento, são, sobretudo,
ativistas políticos, leitores de Karl Marx, da prosa revolucionária de rki e tomam
posição definida na chamada luta de classes, denunciando as desigualdades sociais
e os desmandos das elites. Cabe salientar que a industrialização, somente no século
XX, deixou escancarada a distância entre os donos dos meios de produção e os
trabalhadores. Enquanto que, internacionalmente, a crise de 1929 foi o estopim para
os romances de caráter denunciatório nos Estados Unidos, para a assunção do Neo-
Realismo italiano e, depois, para o Neo-Realismo português. No Brasil, a situação
precária dos nordestinos, vivendo em condições subumanas já havia sido retratada,
grandiosamente, em Os Sertões, de Euclides da Cunha, de 1909 e em A
Bagaceira, de José Américo de Almeida, editada em 1928. Portanto, será o Brasil
quem oferecerá as maiores contribuições para a formação do Neo-Realismo em
Portugal, de modo que figuras literárias como Jorge Amado terão contato direto com
escritores Neo-Realistas de Portugal.
Inegavelmente, como ocorrera no Brasil, com a literatura Regionalista de
1930, em Portugal, a ficção neo-realista sofre as influências do movimento
Modernista, instaurado no país desde a década de 1910, mormente no que se refere
à liberdade lingüística e ao intimismo com que as personagens, em muitos
escritores, são retratadas o que, em verdade, representava, mesmo para os Neo-
Realistas mais engajados, um avanço substancial em relação à literatura Naturalista
do Grupo de 70, sobretudo no que tange à liberdade lingüística.
A afirmação do movimento Neo-Realista em Portugal ocorreu no ano de 1939,
quando Alves Redol (1911-1969), publicou Gaibéus, título homônimo dado aos
camponeses que trabalhavam em regime semi- escravo na ceifa do arroz na região
do Ribatejo, em meados do século XX. Redol deixa entrever uma forte preocupação
social, muitas vezes subliminar, pelo fato de ser perseguido pelos salazaristas em
28
decorrência de seus posicionamentos de esquerda; o escritor foi até mesmo preso e
torturado por sua oposição à política da época e à sua ligação com o PCP (Partido
Comunista Português). Para Saraiva e Lopes, a prosa de Redol absorvera um estilo
que “apenas se pretendia documental e acusava a influência do Jorge Amado inicial;
mais tarde reconstitui, por forma demasiado didáctica, esquematicamente precisa,
os conflitos históricos da região duriense” (2000, p. 1036).
As perspectivas políticas iniciais de Redol apontavam para uma arte que
deveria servir a motivos ideológicos muito fortes, conforme apregoa em um prefácio
à quinta edição de Gaibéus, afirmando que seu romance não devia ter pretensão de
“ficar na literatura como obra de arte, mas, antes de tudo, como um documentário
humano fixado no Ribatejo”. Depois disso, seria o que outros entendessem. Mais
tarde, Redol encontra redenção a uma postura estética para a criação literária,
acima dos constituintes políticos, como afirma o crítico Alexandre Pinheiro Torres
(1977), e assevera que o labor estético seria fundamental a uma produção artística
que se pretenda perene e universal.
Saraiva e Lopes (2000, 1032), ao definirem o movimento Neo-Realista em
Portugal, reafirmam a prerrogativa política atinente ao movimento, além de
salientarem as influências exercidas tanto pela geração de 1870, como pela
Literatura Regionalista Brasileira da década de 1930, como motivo e inspiração para
a emersão de uma postura ideológica dogmática, inquestionável, absorvida,
também, dos inúmeros periódicos juvenis exponenciais, nos quais escritores de
posicionamentos políticos distintos podiam se manifestar. Para os críticos em tela, o
movimento sustenta uma nova focagem da realidade portuguesa, como ocorrera
durante a geração de 1870. Entretanto, de modo diverso a esta, notabilizou-se por
se afastar, conscientemente, do elitismo pedagógico, manifestado por Antero de
Quental, e afastando-se, igualmente, dos democratas, reunidos junto à revista Seara
Nova, publicada nos anos de 1920, visto ter em foco a “conscientização e
dinamização das classes sociais mais amplas” (SARAIVA/LOPES, 2000, p. 1032),
frente às exigências apregoadas pela utopia dos movimentos de esquerda,
desejosos da nivelação das classes sociais. Nivelação esta que, ao fim e ao cabo,
somente poderia ocorrer mediante a luta de classes.
Não é demais reafirmar que os mesmos Saraiva e Lopes (2000) inserem
Ferreira de Castro em uma vertente estética anterior ao Neo-Realismo português,
dono de uma espécie de produção literária de sustentação sindicalista e liberal.
29
Contudo, não negam tamm o fato de ser um autor de transição, que ofereceu
inúmeras contribuições a escritores, que, mais tarde, se mantiveram imbuídos de
ideologia marxista para confeccionar obras que, ipso facto, tenderiam a uma
perspectiva neo-realista. Isso ocorria na medida em que muitos desses, engajados
no Neo-Realismo, olhavam a obra “humanitarista” do escritor de Ossela como
exemplo a ser seguido, pois trazia para o cenário romanesco os pobres e
desumanizados. O que pode, portanto, determinar a diferença entre Ferreira de
Castro e os neo-realistas advém tanto da o- participação efetiva em movimentos
políticos determinados (marcas ideológicas que não são negadas ao movimento
Neo-Realista, nem mesmo por seus adeptos), bem como os construtos estéticos dos
quais sua obra se perfaz as obras, de certa forma, engajadas do Neo-Realismo
foram vencidas pela corrosão do tempo. Ferreira de Castro, anterior ao movimento,
continua tendo uma obra que suscita leituras atemporais, justamente porque o
manteve uma obra sintonizada apenas com o cenário português, durante a ditadura
salazarista, mas, voltada também para os dramas de outras nações.
Concebendo as personagens de seus romances como mensageiras de
autêntica humanidade, o autor o as constrói de modo a torná-las revolucionárias
natas, haja vista lhes faltarem conhecimentos político-partidários de base. Da
mesma forma, não se engajam em insurreições de modo consciente, haja vista sua
simplicidade: oriundas do campo, o raro, as personagens são, muitas vezes,
semi-analfabetas, e com uma trajetória de vida plena de sofrimento. Assim, o se
imbuem de um perfil ideológico de esquerda, o qual, de fato, não atinavam
compreender, quer fosse em parte, quer fosse em sua totalidade.
que se refutar, portanto, o didatismo de Massaud Moisés (2003), por
exemplo, o qual, analogamente a outros manualistas, divide, um tanto
arbitrariamente, a obra dos neo-realistas portugueses, valendo-se dos seguintes
argumentos:
Na ordenação dos adeptos do Neo-Realismo, é preciso ter em conta
o seguinte: 1) alguns foram conscientemente neo-realistas, de obra,
de ação, e, não raro, de pensamento político; 2) alguns outros foram
neo-realistas por coincidência, quer seguindo os ditames da
formação literária pessoal, quer recebendo os influxos do ambiente
neo-realista, em especial durante os anos da II Grande Guerra. Seja
entre os do primeiro grupo, seja entre os do segundo, houve
escritores que não aceitaram senão parcialmente a nova moda, e
evoluíram por trilhas próprias, tornaram-se autônomos e muitas
30
vezes contraditórios: também houve outros que foram atenuando, no
decurso de sua trajetória, a rigorosa ortodoxia do começo. Além de
Alves Redol, podemos agrupá-los, indistintamente: Soeiro Pereira
Gomes, Faure da Rosa, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca,
Romeu Correia, José Marmelo e Silva, Leão Penedo, Manuel do
Nascimento, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Rogério de Freitas,
Afonso Ribeiro, Aleixo Ribeiro, Assis Esperança, Alexandre Cabral,
Tomás Ribas, Garibaldino de Andrade e tantos outros. Ainda que
acrescentar a figura de Ferreira de Castro, cuja obra romanesca
pressagia claramente o movimento neo-realista. (MOISÉS, 2003, p.
273 – grifos nossos).
O interessante, neste ínterim, é que o compendiador Massaud Moisés (2003)
inicia, à página 270, a súmula do movimento neo-realista, para depois, à página 274,
inserir no seu texto sobre o Neo-Realismo, a figura de Ferreira de Castro, seguida,
tão logo, da de Alves Redol, este, representante “consciente” do movimento neo-
realista, como se, antes de Redol, não tivesse havido nenhuma espécie de literatura
de perfil realista em Portugal e, mais que isso, termina por enfeixar claramente
Ferreira de Castro no Neo-Realismo, sem nenhuma necessária explicação.
Ademais, acrescenta que a obra de Ferreira de Castro, por salientar a ‘luta das
classes inferiores dentro da moderna organização social’ está ligada inerentemente
à
[...] fidedignidade do retrato, o realismo que não se detém perante
qualquer situação, um pensamento de raiz preso às idéias
socialistas. Estas, implícitas nos romances da melhor fase (depois de
1928), surgem declaradamente nos posteriores, o que põe em risco o
seu rito. Tanto é assim que A Curva da Estrada, o mais
tendencioso deles, se mostra marcado dessa preocupação. Com
isso, o melhor de sua obra está em Emigrantes e A Selva e, dentre
os outros, Eternidade (em que pese à preocupação de jogar com o
problema do Socialismo), e A Lã e a Neve, pelo trágico que alcança
comunicar, próprio de vidas cinzentas lançadas contra as oligarquias
e a natureza inclemente. (MOISÉS, 2003, p. 274).
A esse didatismo do compendiador Massaud Moisés, cabe ainda somar o
pensamento de Urbano Tavares Rodrigues, pelo menos em texto lançado em 1981,
sob o tulo de Um Novo Olhar sobre o Neo-Realismo. Para o crítico, havia que se
observar que outras visões de transformação do real e da luta de classes podem
31
coexistir dentro do que se convencionou chamar e designar por “neo-realismo””
(TAVARES, 1981, p. 12) e, para ele, neste caso, enfeixar-se-ia a figura de Ferreira
de Castro, visto ser escritor que trouxe para suas obras os desvalidos, mediante
uma perspectiva humanitária, de inserção social das camadas detratadas.
Tão contraditório quanto o próprio pendor estilístico do Neo-Realismo, devido
à riqueza ideológica e estilística presa ao movimento, é o posicionamento de Urbano
Tavares Rodrigues, pois, em conferência efetuada junto às comemorações dos 70
anos de A Selva, em 2000, valendo-se de texto publicado no periódico O
Militante
3
, no ano anterior, afirmaria que Ferreira de Castro não apresentava a
mundivincia própria do movimento neo-realista, mas apenas ofereceu subsídios
de inspiração para muitos escritores que se enfeixaram no movimento anti-
presencista, haja vista que “sua obra é anunciação do neo-realismo humanista”.
Parecendo ser um singelo mea culpa do que escrevera em 1981, quando afirma que
Ferreira de Castro seria um neo-realista avant la lettre, e ainda sem se afastar do
que chama de neo-realismo humanista (que, tampouco define o que seja), dentro do
emaranhado teórico-ideológico ligado ao Neo-Realismo, seu discurso sobeja muito
mais como uma tentativa didática de necessariamente rotular o escritor de A Selva
do que, própria e verdadeiramente, tê-lo em conformidade com os ditames do Neo-
Realismo português. Ademais, complementa seu pensamento, no decorrer de suas
apologias ao amigo de Ossela, agora de modo latente, para não contrariar seu
discurso:
Não que Ferreira de Castro fosse um estilista como Aquilino Ribeiro,
criador de uma linguagem de excepcional beleza, mas foi um escritor
que, pouco a pouco, soube conquistar uma expressão de grande
sugestão, com verdadeiro poder comunicativo. Podemos aproximá-lo
de grandes figuras de humanistas do seu tempo, como Kmut
Hamsun, na Suécia, que escreveu O Pão, embora mais tarde se
tenha desviado para a direita, como aliás John Steinbeck nos
Estados Unidos, o autor de As Vinhas da Ira (o romance que melhor
representa o protesto do proletariado americano da Califórnia contra
as condões de vida no tempo da Depressão) e, que, mais tarde,
apoiou a Guerra do Vietnam. Isto nunca aconteceu com Ferreira de
Castro. Humanista, sim, é talvez a melhor palavra que lhe cabe: falou
em nome da humanidade e sobretudo em nome dos pobres.
(TAVARES, 1999, p. 2).
3
Texto publicado no periódico O Militante 238, de Janeiro / Fevereiro de 1999.
32
É certo que contribuições pessoais existem (e devem existir) no texto literário,
por serem obras artísticas e, portanto, galvanizadoras de elementos tipicamente
humanos. Não obstante, o discurso de Urbano Tavares eleva a importância de todo
escritor ser um ativista político. Seguindo o pensamento de Urbano Tavares, o fato
de Ferreira de Castro não se ter desviado de sua preocupação humanistarista (nas
entrelinhas do discurso do crítico em tela, pareceu ser atributo político
inquestionável), própria de escritores que mantém uma atitude peculiar frente à vida
política do seu tempo, teve muito mais mérito que escritores como Knut Hamsun
(que não era sueco como afirma Urbano Tavares, mas, norueguês; talvez ainda por
erro de gralha tipográfica tenha sido publicado Kmut e não Knut), que mais tarde
apoiou o nazismo e John Steinbeck
4
, que chegou a apoiar a Guerra do Vietnã,
contrariando seus posicionamentos ideológicos iniciais.
Para Massaud Moisés (2003), no entanto, Ferreira de Castro seria um escritor
legado ao esquecimento por justamente sustentar uma postura socialista. para a
viúva do escritor, a marginalização de Ferreira de Castro ocorrera pelo fato de o
se ter filiado a nenhuma perspectiva político-partidária, seja de esquerda ou de
direita, sob os influxos de um ranço que se entranha na crítica política de Urbano
Tavares, e tamm na de muitos outros críticos portugueses, que olham de viés
escritores que não se apegaram avidamente a denominações políticas vincadas,
num momento em que, aparentemente, seria necessário utilizar a literatura como
arma de combate contra um Estado repressor da liberdade, o Estado salazarista.
Isso explicaria o fato de Urbano Tavares deixar seu discurso em cima do muro” ao
tratar do amigo Ferreira de Castro.
Não apoiar a esquerda, num momento em que lutar contra a direita do
autoritarismo salazarista era a ordem do dia, seria sinônimo de apoio ao sistema.
Aqui casam-se os discursos de Massaud e de Tavares: ou se é isso ou não se é
nada, mesmo que a paga para tanto seja o banimento do cânone literário, como
4
Knut Hamsun, escritor de O Pão, nasceu em 1859 em Gudbrandsdalen, na região central da
Noruega e morreu em Nørholm, no dia 19 de fevereiro de 1952. Trata dos esfaimados da Noruega
numa época de repressão política. John Steinbeck, escritor de As Vinhas da Ira nasceu em Salinas,
Califórnia, Estados Unidos, no ano de 1902 e morreu em Nova Iorque em 20 de dezembro de 1968.
Recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1962, por abordar a luta em prol da sobrevivência após a
Grande Depressão estadunidense, em 1929, por ocasião da quebra da Bolsa de Valores de Nova
Iorque.
33
afirma o primeiro; ou se deixa de lado o traço estético, em prol da defesa de uma
visão de mundo calcada no âmbito político, conforme permite vislumbre ao discurso
do segundo, já que, para este, Ferreira de Castro não seria um grande estilista como
Aquilino Ribeiro, no entanto, um grande humanitarista, e por isso deveria ser
lembrado.
Nesse sentido, cabe agora salientar as marcas ideológicas com as quais se
procurou identificar o Neo-Realismo português, da década de 1940, a partir de um
diálogo entre a utopia de nivelamento social manifestado pelo referido movimento e
as preocupações humanitaristas de Ferreira de Castro, como escritor que, em
relação aos neo-realistas, antecede a descrição do campo e do homem simples que
nele habita e também a luta em prol da sobrevivência. Para tanto, lança-se mão das
contribuições elucidativas da obra O Neo-Realismo Literário Português, de
Alexandre Pinheiro Torres, O Discurso Ideológico do Neo-Realismo Português,
de Carlos Reis, e Textos Teóricos do Neo-Realismo português, cuja seleção,
notas e crítica, desta última, foram feitas pelo estudioso Carlos Reis.
Alexandre Pinheiro Torres (1977) nem mesmo chega a mencionar Ferreira de
Castro em seu referido estudo, a exemplo do que faz Carlos Reis (1981), em Textos
Teóricos do Neo-Realismo português. Porém, em O Discurso Ideológico do
Neo-Realismo português, na edição de que aqui se vale
5
, Reis (1983) menciona-o
em dois momentos, às páginas 169 e 371, com as seguintes palavras,
respectivamente:
a)
Com efeito, a literatura portuguesa, praticamente desde as suas
origens, incorporou no seu âmbito temas e motivos de proveniência
regionalista, os quais, do Renascimento ao Romantismo e às
revivescências neo-garretianas, decorrem de impulsos histórico-
culturais muito variados; relativamente próximos dos escritores neo-
realistas, nomes como os de Júlio Dinis, Trindade Coelho, Fialho de
Almeida, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro reuniam qualidades
para suscitarem relações de aproximação ou distanciamento que,
como veremos, não deixaram de ocorrer.
b)
[...] reconhece-se que narrativa e realismo coincidem num aspecto
muito importante: o pendor cognitivo de que ambos se reclamam e
que fa da literatura realista um precioso instrumento de análise
histórica e social, desde que se tenham presentes os complexos
5
REIS, Carlos. O Discurso Ideológico do Neo-Realismo Português. Coimbra, Livraria Almedina,
1983.
34
mecanismos de mediação entre real e ficção. Períodos literários
como o Realismo, o Naturalismo e o Neo-Realismo, escritores como
Balzac, Flaubert e Zola, Eça de Queiroz, Ferreira de Castro e Carlos
de Oliveira, Hemignway, Caldwell e John Steinbeck, entre muitos
outros, fizeram da narrativa (e em particular do romance) um eficaz
veículo de representação de cenários e movimentos sociais por
vezes muito amplos, servindo-se, para tal de uma opção discursiva
habilitada a cumprir projectos literários de intuitos primacialmente
cognitivos.
No primeiro trecho, Reis (1983) trata de Ferreira de Castro, dentre outros
escritores, como fundamental para a absorção do campo como cenário da literatura
portuguesa, caudatário que foi de alguns escritores da geração de 1870 e exemplo
para seus posteriores neo-realistas. No segundo trecho observa a relação existente
entre realismo e ficção, em que Ferreira de Castro, também junto a escritores de
tempos distintos, demonstra sua relação com esses elementos, em seus romances.
Completando, Reis menciona escritores preocupados com realismo e ficção, que
viam na forma romance um meio propício à simbiose de elementos da realidade e à
reelaboração estética de suas imagens. Portanto, em ambos os casos, Ferreira de
Castro é tido como autor cujo tema de suas obras se liga a cenários agrários, logo
após um momento em que Eça de Queiroz, mormente com A Cidade e as Serras,
publicado em 1875, havia recuperado a ligação com um Portugal campesino,
afastado da Revolução Industrial e, portanto, dependente da agricultura.
Ao mesmo tempo, e de modo implícito, transparece, no discurso de Carlos
Reis (1983), a noção de que Ferreira de Castro estaria embrionariamente ligado ao
movimento neo-realista, pela ciência que este possui do campo e dos homens
simples que ali vivem. Não obstante, quando afirma que, desde suas origens, a
Literatura Portuguesa apega-se ao campo, e, a partir dessa afirmativa, enumera
escritores dentre estes Ferreira de Castro - como co-partícipes ativos dessa
preocupação, Reis termina, dessa forma, por afastá-los dos autores neo-realistas.
Isso fica claro quando afirma que:
De um modo geral, verifica-se, portanto, que as dificuldades de
aceitação experimentadas pelo espaço que o Neo-Realismo
desejava privilegiar decorrem não tanto dessa opção em si, mas das
motivações ideológicas que presidem ao movimento e que obrigam a
35
repensar a problemática do regionalismo [grifo do autor] na criação
literária. (REIS, 1983, p. 371).
Reis procede a essa afirmação devido ao fato de que Charles David Ley, ao
analisar a obra de Fernando Namora, no n. 732 de Seara Nova aponta para a
falsidade da literatura neo-realista ao tratar do campo, porque, para Ley, o
camponês seria “muito menos consciente do seu suor” do que nos querem fazer
pensar certos intelectuais modernos” e, em termos duros, conclui, que em nome do
realismo [praticado por tais intelectuais modernos] criam uma mentira literária; esta
vez mais insidiosa” (Ley, 1941, p. 249).
Ao preocupar-se sistematicamente com o caráter contestador e engajado do
Neo-Realismo português, Alexandre Pinheiro Torres (1977), evidencia que:
Encontrávamo-nos em pleno consulado de Salazar e de seus
acólitos, depois da Constituição antidemocrática de 1933. Tinham
estes como programa redistribuir riquezas? Ou levar a cabo a
industrialização tão sica para o dinamismo da economia nacional?
Tanto o ditador como os seus sequazes nada mais pretendiam do
que beneficiar o alto capital, alguns monopólios, e manter a nação na
ignorância e na pobreza, à custa do terror e da opressão.
Os intelectuais que m na forja o Neo-Realismo recusam, por outro
lado, o prognóstico fatalista de Oliveira Martins [
6
] Quanto aos dos
Modernismos (1915 ou 1927), estes não encontram nem objectiva
nem subjectivamente interessados nos destinos do povo ou da
nação, embora muitos dos seus representantes fossem antifascistas
no plano mental, abstracto, mas mais adversos ainda à idéia de
qualquer acção militante do que os homens de 70, salvo as raras
excepções que levaram a algumas débeis “dissidências” que
haviam, aliás, de honrar os desertores. (1977, p. 14-15).
6
Joaquim Pedro de Oliveira Martins (Lisboa, 30 de Abril de 1845 – Lisboa, 24 de Agosto de 1894) foi
político e cientista social português. Influenciou diferentes escritores durante a famosa Geração de
70. Ademais, o comentário feito por Pinheiro Torres, acerca do “prognóstico fatalista” de Joaquim
Pedro de Oliveira, tem relação com o fato de ter acreditado que os povos formados a partir do negro
e do índio seriam incapazes do progresso, conforme esclarece, em comentário, Manuel Bonfim
(1993, p. 254), constante da obra A América Latina: males de origem. Para Pinheiro Torres,
pautando-se pela ideologia presente na filosofia materialista de Karl Marx, o proletariado,
independente de sua origem, seria capaz de progredir, mediante a luta de classes. Nesse ínterim, a
visão canhestra de Oliveira Martins se ressente de um determinismo doentio, constante na visão
positivista e darwinista que influenciou o pensamento de vários escritores que se enveredaram pelo
“Humanismo burguês”, dos anos de 1800, do qual os neo-realistas deviam, necessariamente, se
afastar, ainda de acordo com Alexandre Pinheiro Torres.
36
Pinheiro Torres (1977, p. 15), buscando alicerçar seus argumentos frente ao
pendor político do Neo-Realismo, retoma em seu discurso a necessidade de ligação
do referido movimento com a filosofia marxista, visto que a produção literária de tal
lavra apregoava a luta de classes, tanto como para dispensar o fatalismo darwinista
presente no pensamento de Oliveira Martins e nos escritores da Geração de 70, que
por ele foram influenciados, quanto para reafirmar a necessidade iminente da luta de
classes, quando os neo-realistas intentaram fazer da literatura uma arma penetrante,
contundente, na medida em que se tornava divulgadora de idéias anti-salazaristas e
sustentadora de aceitação por uma camada mais ampla da população. Além de, por
intermédio da ficção, lograr o uso da ambigüidade de sentido, característica do texto
literário e, por meio dela, fugir à censura do Estado salazarista e continuar a ecoar
seu grito de guerra contra o sistema:
Não deixa de ser interessante que, em 1944, tivesse aparecido
na revista Globo (Ano II, n.º 32) numa resposta da redação à
pergunta: “Ainda não vi perfeitamente definido o que seja o
Neo-Realismo (...). Poderia, em meia dúzia de palavras, dar-
me uma idéia precisa das características dessa escola?” o
primeiro depoimento verdadeiramente claro e bem explícito de
como o Novo Humanismo se opunha ao Humanismo burguês
de oitocentos e de como o Neo-Realismo nada mais era do
que a expressão artístico-literária do Novo Humanismo. Assim
verá o Leitor distraído de hoje que a própria palavra Neo-
Realismo era um remendo, uma improvisação, um termo que
não agradava mesmo àqueles que tiveram de lançar recurso
dele, na impossibilidade de usarem Realismo Socialista ou
outra denominação mais próxima da verdadeira natureza do
novo movimento ideológico. (PINHEIRO TORRES, p.16).
Neste ponto, quando lido sob a ótica de Alexandre Pinheiro Torres, o
aparente mea culpa de Urbano Tavares Rodrigues faz mais sentido. Assumir um
posicionamento de esquerda frente ao regime totalitário empreendido pela política
salazarista era algo perigoso, pois quem o fazia sofria sanções e perseguições, ao
passo em que se cobrava dos intelectuais do tempo um posicionamento político-
partidário, haja vista que, quem não o fazia, seria visto como dissidente (fascista,
não raro) ou “presencista”.
37
Como, então, debater a obra de Ferreira de Castro dentro desses
parâmetros? Para os engagées, como Urbano Tavares Rodrigues, o melhor seria
elocubrar sobre a denominação “neo-realista humanitarista” aplicável, segundo
ele, a Ferreira de Castro - dentro de um movimento que era, desde sua complexa
gênese, multifacetado, como afirma António José Saraiva (1955), que, por sua vez,
o via (e isso condiz com as assertivas de Pinheiro Torres) como um movimento
capaz de provocar polêmicas e debates, mormente no campo extra-literário, tanto
que Saraiva conseguia detectar apenas e tão somente três aspectos fundamentais
em todo o movimento, a saber, “uma visão mais completa e integrada dos homens,
a consciência do dinamismo da realidade e a identificação do escritor com as forças
transformadoras do mundo. Neste último caso, a luta de classes, fundamental à
essência marxista. Faltou, portanto, a Urbano Tavares, debruçar-se um pouco mais
diante das afirmações proferidas, pois certamente seriam enriquecedoras se o
surpreendessem Ferreira de Castro apenas e tão somente por um viés político-
partidário.
Em publicação de 1983, denominada O Movimento Neo-Realista Português
em Sua Primeira Fase, Alexandre Pinheiro Torres tamm se rende à aplicação do
termo “fase” para evidenciar as muitas transformações sofridas esteticamente por
obras de escritores que se auto-denominavam Neo-Realistas. Interessante é o fato
de que as obras de Ferreira de Castro escritas antes do início do Neo-Realismo, em
1939, com Gaibéus, nesse âmbito, possuíam não somente as marcas dos
primeiros eflúvios do Movimento como vislumbravam a própria evolução estética do
mesmo, para além do discurso engajado.
Significante é o pensamento de Francisca Amélia da Silveira (2001), que
sintoniza Ferreira de Castro com o humanitarismo de caráter liberal, próprio do
pensamento phroudoniano, utilizado, também, pelos escritores da geração de 1870,
com os quais Ferreira de Castro se identificaria:
Tem-se apontado Ferreira de Castro como escritor neo-realista. O
primeiro que, em Portugal, atacou o drama social e se lançou em
defesa das classes trabalhadoras, denunciando injustiças e
explorações de que eram vítimas. É inegável que toda sua obra, a
partir de Emigrantes (1928) a Instinto Supremo (1968), dinamiza-
se pelas questões sociais da época. Também é preciso anotar que o
espírito que as interpreta se identifica mais com o humanitarismo
socialista proudhoniano que serviu de base para o Realismo do
38
século XIX do que com o socialismo que está na base do Neo-
Realismo do século XX. (SILVEIRA, 2001, p. 51).
Essa assertiva alia-se diretamente com a concepção de Alexandre Pinheiro
Torres (1977) acerca do socialismo utópico”, próprio do “proudhonianismo”,
apontado em A Cidade e As Serras, de Eça de Queiróz, o mesmo que, na
concepção acima, expressa por Francisca Amélia da Silveira, estaria no cerne das
preocupações de Ferreira de Castro:
[...] o proudhonismo [...] nunca foi além de falsas soluções sociais
para o problema da injustiça; [...] que cada homem se abrisse para a
consciência de sentir cometida contra si a injustiça perpretada contra
os outros homens; e nascesse para a consciência de experimentar
na carne do seu próprio espírito as ofensas à dignidade do seu
semblante; e nele despertasse, em suma, a consciência de assumir,
como atentados aos seus próprios direitos de ser humano e cidadão,
os atentados afinal desferidos contra os direitos idênticos, autênticos,
de outros seres humanos e cidadãos mais desprotegidos da Fortuna.
(PINHEIRO TORRES, p. 100)
Pelo que consta, na crítica literária portuguesa, apenas o estudioso Mário
Dionísio viu, em 1947, a propósito de um ensaio publicado no periódico Vértice (vol.
IV n.º 49) que Ferreira de Castro o poderia, dentro de um ponto de vista ortodoxo,
ser considerado neo-realista, justamente porque a superação da realidade pelas
personagens, existente em sua obra, não era advogada de modo a privilegiar a luta
de classes, conscientemente organizada pelo proletariado e enquadrada no PCP.
Nem mesmo o homem Ferreira de Castro se filiara ao Partido Comunista Português.
Ferreira de Castro sempre fora um notório libertário e assim mesmo vinha a
público, identificando-se como ficcionista, e não político. Conforme salienta Álvaro
Cunhal:
A e a Neve, que tem como figura moral a personagem
central do velho anarquista Marreta, esperantista e
vegetariano, que apresenta o patrão, contra quem os operários
fazem greve, como uma figura inevitavelmente revestida de
humanidade e não como um simples arquétipo negativo e que
39
finalmente aponta a concretização de uma sociedade nova
para uma etapa posterior da vida colectiva, pouco definida,
mas conquistada não pela luta de classes que sempre
esteve presente nos romances de Castro -, como pela
alteração das mentalidades e da própria ontologia do ser
humano, eram naturalmente idéias passíveis de conflituar com
as que defendiam a conquista do poder pela vanguarda da
classe operária organizada em partido. (CUNHAL, 1999, p.
99).
Fica estabelecido por Álvaro Cunhal (1999), chefe do partido comunista
português de então, que nem mesmo o romance A Lã e a Neve, de cenário
português, produzido durante os eflúvios do Neo-Realismo e absorvente da
problemática da luta de classes, poderia, em sua totalidade, ser encarado como neo-
realista, até porque não apregoa conhecimentos da luta de classes, condizentes,
segundo Alexandre Pinheiro Torres (1977), com as propostas ideológicas do
movimento Neo-Realista; mas apela para a necessidade de sobrevivência diante
das adversidades. Daí, muito acertadamente, Urbano Tavares Rodrigues aproximar
a obra do escritor português da do norte-americano John Steinbeck. De o simples,
não na construção estética, mas, na interioridade ingênua do homem, as
personagens não conseguiam conceber a necessidade da luta de classes como
fundamental ao ideário do partido comunista, como uma luta direta contra o governo
de Salazar.
Personagens simples, mas grandiosamente trabalhadas, permeiam a
literatura, e tornam-se capazes de expressar uma sensibilidade que galvaniza
empatia por parte do leitor. Não como, por exemplo, não simpatizar com a
trajetória difícil do imigrante Manuel da Bouça, em Emigrantes; com a vida do
português Alberto e seus companheiros advindos do Nordeste brasileiro, enfurnados
na floresta amazônica, na extração do látex, em A Selva, ou com os sofrimentos dos
trabalhadores da Covilhã, em A e a Neve, justamente porque ressumam
humanidade e não apego a determinações politicamente partidárias, assim como
ocorre com Fabiano e sua família, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que, de
tão simples, apelam para várias vozes que contribuem com a sua percepção do ser-
estar no mundo, seja a voz do narrador, do dominador ou do próprio leitor, que se
sente, este último, na necessidade de contribuir com a percepção de mundo para
Fabiano e para os seus.
40
A luta de classes, quando aparece nos romances de Ferreira de Castro, vem
acompanhada do instinto de sobrevivência apegado às personagens, e da
necessidade de perseverar frente às atrocidades. Portanto, algo anterior à própria
perspectiva da necessidade” da luta de classes partidária, do domínio ideológico
anarquista, marxista ou outro. Alberto, em A Selva, luta em prol da sobrevivência,
por considerar-se co-participante do drama vivido por inúmeros nordestinos, que se
deslocavam da zona da mata para a Amazônia. Não se constata em Alberto, em
nenhum momento da narrativa, elementos que caracterizariam a propaganda
socialista – até porque a própria defesa dos enjeitados sociais vem acompanhada da
vivência no seringal Paraíso junto aos espoliados. Manuel da Bouça, em
Emigrantes, também o faz da mesma forma. No único momento em que participa
de um levante contra o governo republicano brasileiro, o faz sem conhecimento de
causa, era semi-analfabeto e lutava apenas porque outros também lutavam o que
ganha, ao fim e ao cabo (de sua trajetória no Brasil e não da Revolução) é a
compreensão do Outro como sendo um igual, na ânsia pela sobrevivência.
Se isso não bastasse, a obra de Ferreira de Castro é uma obra sem pátria
fixa. Os cenários são desde as paragens da Covilhã, na Serra da Estrela, em
Portugal, até a Amazônia Brasileira; o interior cafeeiro paulista ou a Espanha, em
Terra Fria. Entretanto, não apenas os romances de Castro, mas tamm seus
relatos de viagem trazem a baila uma preocupação análoga. Não remontam à luta
contra o salazarismo, nem mesmo constituem uma alegoria ao mesmo. Em outros
termos, não é uma obra produzida em um cenário geograficamente marcado pela
necessidade nacionalista de fazer frente às imposições do sistema. Onde houvesse
cenário em que estivesse impregnada a luta humana em prol da sobrevivência,
poderia incidir o olhar de Ferreira de Castro, como exímio analista das relações
humanas, sem pretender, como Redol, que sua obra ficasse como libelo da luta de
classes, apregoando, pois, o materialismo marxista. No entanto, Ferreira de Castro
almejava que sua obra permanecesse como uma visão acerca dos enjeitados no
mundo, do instinto de sobrevivência que se encontra nas bases de todo ser humano,
desde a sua gênese, seja esta preocupação apegada ao que Pinheiro Torres (1977)
denomina de proudhonianismo”, seja esta desvinculada de qualquer determinação
política ou social.
Não obstante, como analista das desigualdades humanas, mesmo sem
bandeira política hasteada, mas apoiado nas veleidades humanas, que arquitetavam
41
suas bases ideológicas libertárias, cosmopolitas, o como o ver Ferreira de
Castro como escritor contrário a essas práticas socialistas que desprezam o que
de mais próprio no ser humano – a sua humanidade.
Se, por outro lado, se encarasse Ferreira de Castro como um escritor neo -
realista, a partir do pensamento de Urbano Tavares Rodrigues, de que haveria nele
um neo-realismo humanitarista, certamente o Neo-Realismo ganharia muito, em
dimensão e abrangência estética. Sempre visto como uma vertente mais
politicamente preocupada do que literariamente empenhada, o Neo-Realismo
assumiria um escritor cosmopolita, que saberia dar voz aos necessitados,
independentemente do lugar em que estes estivessem. E, desta feita, a obra de
Ferreira de Castro e o Neo-Realismo, como movimento estético, deveriam ser
encarados com um interesse maior por parte da crítica, que a um delega um plano
secundário, em termos de importância, por se ter alijado da política em prol do
empenho literário, e ao outro o fatalismo do sumidouro do tempo, por conter obras
que se vincularam estreitamente a pensamentos que foram ultrapassados, diante de
obras que se perderam, juntamente com o regime contra o qual lutavam.
1.2. A estrutura do pensamento engajado falácia ideológica ou humanização
artística em Ferreira de Castro?
A investigação acerca dos marginalizados na literatura depara-se com uma
arena de interesse para os estudos culturais, frente às implicações que as relações
entre discurso e poder oferecem para tal esfera crítica. No que tange à obra do
escritor Ferreira de Castro, iniciada antes mesmo do estabelecimento das diretrizes
estéticas do Neo-Realismo português, esse interesse torna-se ainda mais candente,
visto ser particularmente difícil o enquadramento de sua produção literária em um
período esteticamente estabelecido. Seu primeiro grande romance, Emigrantes,
data de 1928 e o seu último, Instinto Supremo, data de 1968, separados, portanto,
por quarenta anos, durante os quais, várias mudanças, de ordem estética e
42
ideológica se processaram no cerne da Literatura Portuguesa, mediante o
aparecimento de movimentos distintos, sobretudo ligados à ideologia política de
esquerda, durante o período governamental de extrema direita que se impunha,
mediante o domínio salazarista, que sofre queda com a Revolução dos Cravos, em
1974, de modo que novas obras, de diferentes escritores, foram, nesse ínterim,
trazidas a lume e novas idéias, por intermédio delas, foram veiculadas.
Pode-se afirmar, de modo contundente, como se asseverará mais adiante,
que grande parte das obras produzidas nesse interregno, sobretudo aquelas em que
a difusão de ideais políticos candentes no momento ressoava mais alto do que os
artifícios literários, dos quais, como obras literárias, deveriam se compor, foram
superadas esteticamente por outras, menos engajadas.
Se a pragmática do naturalismo, definido e praticado por Émile Zola em seus
romances, no século XIX, sob a influência de Claude Bernard e Hypolite Taine,
havia sido superada no início do século XX, o ranço pragmático do Positivismo,
condicionador de sua existência, ainda mostrava estar bastante vivo na suposta
necessidade de se cultivar uma literatura prática, a serviço das idéias,
especialmente em um mundo que vivia sob as influências da Primeira Guerra
Mundial e na iminência de uma Segunda, atravessando mudanças políticas e
ideológicas de vária ordem. Nessa esteira, de turbulências políticas e sociais, frutos
de um mundo caótico, pensamentos combativos como o anarquismo e o marxismo
pareciam interessantes aos escritores que enxergavam, nesse tempo, a literatura
como meio de fácil veiculação de desejos revolucionários.
O que preocupa alguns dos críticos literários que se debruçam sobre a obra
de Ferreira de Castro é o seu possível engajamento ideológico nas diretrizes do
marxismo literário, ou a sua hipotética ligação com o anarquismo, o que, acredita-se,
tornaria a produção estética de Ferreira de Castro um atributo de segundo plano em
relação às contribuições político-panfletárias que a obra, porventura, poderia
manifestar. O que reforça ainda mais a associação de Ferreira de Castro a
posicionamentos político-ideológicos é o fato de o escritor ter colaborado com
periódicos anarquistas e marxistas, como O Diabo, A Batalha e Civilização.
Em nossa Dissertação de Mestrado (2003), intitulada Imagens da Amazônia
Brasileira em A Selva, de Ferreira de Castro, demonstramos como a ABI
(Associação Brasileira de Imprensa) procurou, em 1935, coibir a publicação de A
Selva no Brasil, devido à suposta imagem detratora da realidade brasileira que
43
porventura manifestaria. Muito provavelmente, isto constituía uma tentativa, por
parte da ABI, de extirpar hipotéticos discursos de ordem comunista contidos na obra,
visto que a mesma expunha um retrato das desumanidades praticadas dentro da
selvageria capitalista, em relação ao processo de extração da borracha no início do
século XX, na Amazônia brasileira. A desconfiança neurótica contra o marxismo era
clara à época e, se uma obra revelasse a realidade selvagem do capitalismo em
alguns países, deveria, pois, ostentar discurso marxista. Canhestra e incompleta,
essa visão não levava em conta o fato de que as injustiças sociais praticadas,
sempre foram alvo temático na literatura, como se pode perceber em obras
romanescas de todos os tempos, desde o início do romance moderno inglês, com
Daniel Defoe, a exemplo de Moll Flanders; Charles Dickens, com Um conto de
duas cidades e o romance moderno francês, com Victor Hugo e seu contundente
Os Miseráveis - três dentre as obras de grande impacto social, produzidas entre os
séculos XVIII e XIX, na Europa, antes mesmo da efervescência dos pensamentos
tainiano e marxista, mas que, ainda, revelam-se atuais libelos contra a
predominância da injustiça social como marca inerente à existência humana em
sociedade. Ademais, praticadas em espaços sociais de difícil subsistência, tais
obras mantêm-se por si mesmas, como muitas outras, dado o artifício utilizado em
sua confecção estética, que é, afinal, o grande responsável pela sua perenidade.
Para o crítico literário brasileiro Antonio Candido, em seu ensaio Literatura e
Subdesenvolvimento” (apud CESAR, 1987, p.15-36), muitas literaturas, de países
distintos, sobretudo daqueles em desenvolvimento, como é o caso dos países da
América Latina, tiveram seu componente estético indefectivelmente comprometido,
pelo fato de sustentarem, com maior impacto, ideais políticos que, com o tempo,
foram superados.
No início de nossos estudos acerca de Ferreira de Castro, tamm
acreditávamos que A Selva poderia constituir um retrato maledicente da Amazônia
brasileira e, por extensão, de todo o Brasil, visto que sempre se tratou de uma das
obras portuguesas mais traduzidas em todo o mundo, de modo que, tal interesse, no
exterior, por A Selva, julgávamos que poderia advir do exotismo que a floresta
amazônica brasileira poderia surtir em leitores medianos, afeitos à diversidade dos
cenários e aos marcantes estereótipos das terras tropicais. Ao fim de nossa referida
Dissertação, ajudados pelas contribuições teóricas dos estudos interculturais e pelas
contribuições metodológicas da teoria imagológica, constatamos que A Selva não
44
intentava uma crítica mordaz ao Brasil, como cenário específico, conforme reiterava
a ABI, mas o desvendamento de uma realidade sórdida e desumanizadora,
mediante a relação de necessidade de sobrevivência humana, submetendo uma
leva de homens à exploração, diante da profusa oferta de emprego barato na difícil
função de extrair látex no território pertencente à floresta amazônica do Brasil, que, à
época da primeira publicação de A Selva, em 1930, ainda tratava-se do maior país
exportador de borracha no mundo.
Contudo, não é difícil constatar que a denúncia feita por Ferreira de Castro
em A Selva poderia ter sido efetuada tendo como cenário qualquer parte do globo
em que as desumanidades geradas pelas relações de trabalho ocorressem, visto
que, mais tarde, com as obras Terra Fria (1934) e A e a neve (1947), cujos
cenários são portugueses, o mesmo espírito de denúncia social continua aceso nas
diretrizes literárias do escritor português – de modo mais evidente em A lã e a neve,
em que os trabalhadores da Covilhã, na Serra da Estrela, tamm têm de submeter-
se a um trabalho desumano e a um ganho irrisório, pela única oportunidade de
emprego que lhes é oferecida na região: a lide nos teares manuais utilizados para a
produção de lã em larga escala para ser exportada.
As conclusões por nós alcançadas em nossa Dissertação poderiam o
somente elucidar a questão da detração ou o do território brasileiro na lavra
literária de um escritor português, caracterizando Ferreira de Castro como um
autêntico anarquista ou marxista, ligado à denúncia de realidades sociais
materializadas pelas injustiças inerentes às relações capitalistas de trabalho, pelas
lutas de classe, vazadas em obras literárias mantenedoras destas preocupações,
mas isso não seria suficiente para observá-lo diante das diretrizes que
verdadeiramente definem uma produção literária como tal, capaz de permanecer no
tempo devido ao labor estético necessário que a enforma.
Conforme explica o crítico Raúl Castagnino, em sua obra Teoria da
Literatura (1978), encontram-se, dentre as diversas funções apresentadas pela
Literatura, duas extremamente importantes: a sua relação com a História e a sua
ânsia de imortalidade, em que uma o anula a outra, mas as mesmas caminham
conjuntamente e por contigüidade. A relação que o texto literário manifesta com a
realidade histórica torna-o, sob certos aspectos, produto do quotidiano dos homens,
das vivências por eles estabelecidas, dos seus desejos e volições. Se essa relação
se mantiver extremamente próxima de preocupações ideológicas passageiras,
45
efêmeras, superáveis pelas transformações ideológicas, o texto literário pode se
perder no halo do tempo, porque a ideologia ou pensamento político por ele
defendido superaram as diretrizes estéticas que deveriam constituir o centro de suas
preocupações, para que se tornassem profundamente humanas e atemporais,
capazes de imortalizarem-se como obra possuidora de alta densidade literária.
Dessa forma, de acordo com Castagnino (1978), o anseio pela imortalidade
deve superar, na Literatura, os engajamentos ideológicos e políticos, visto que a arte
funciona com mecanismos distintos dos mecanismos científicos e/ou políticos. Para
isso, devem prevalecer, ao fim e ao cabo, na arte literária, os elementos
inerentemente humanos, insuperáveis por quaisquer limites fixos. O homem tem de
ser o ponto inicial e final da arte literária, a qual deve, com efeito, lançar mão de
atributos artísticos e o apenas atributos ideológicos, frágeis e passíveis de
superação, em relação ao seu elemento primordial seus sentimentos, suas
emoções, suas vivências e demais atributos a ele inerentes, os quais independem
de pensamentos engajados, que podem, não obstante, facilmente ser superados
pelo transcorrer da História.
Ferreira de Castro tinha consciência da profunda importância que o labor
literário deve manifestar para que uma obra sobreviva, mesmo diante das
imposições temporais e espaciais, pois sua preocupação, independente de
posicionamentos políticos, era literária. No periódico Mensagem, publicado em 1949,
o escritor evidencia suas intenções, afirmando que:
vinte anos que os cidadãos, na sua maioria, vivem com
receio e isso dá-lhes uma permanente falta de segurança
individual. Eles vivem sob o silêncio que lhes é imposto e,
como conseqüência, sob o silêncio que eles impõe a si
próprios. Eles temem as suas próprias palavras, não vão ser
elas ouvidas ou mal interpretadas [...] Eles vêem em todo
compatriota que não conhecem um possível inimigo um
homem que lhes pode fazer mal. Eles desconfiam de tudo, a
dos mendigos, algumas vezes até dos parentes, até da sua
própria sombra. Eu não sou político, eu o quero nada,
absolutamente nada, da política. Eu não desejo ser senão
o modesto escritor que tenho sido mas desejo sê-lo
livremente. E se falo de mim não é porque me considere com
muita importância, mas apenas para dizer que sei, por mim
próprio, pelas limitações que tenho sofrido à minha vida
intelectual, quanto foi sacrificada a agora, por este regime
46
que nos oprime, a minha geração e as gerações vizinhas da
minha. [grifo nosso] (FERREIRA DE CASTRO, 1949, p.
14).
Dessa forma, reiterando, Ferreira de Castro, malgrado as inúmeras tentativas
de diversos críticos literários em enquadrá-lo sob diretrizes políticas fixas, com o
intuito claro de enfeixá-lo didaticamente em determinada era, preferia, desde 1949
(ou seja, do momento mais agudo da necessidade de engajamento), afirmar-se
como escritor, livre de quaisquer amarras que o pudessem definir ideologicamente.
Ao mesmo tempo, nega-se como político. Cabe aqui, pois, salientar que à existência
escassa de críticos que se debruçaram com uma peculiar investigação estética
sobre a obra do escritor português, as visões que dele temos advêm na maior parte
das vezes de compêndios literários, cuja preocupação historicista despreza a
individualidade dos escritores, em prol do seu enquadramento em uma linha estética
que os enfeixa em diversas tendências de difícil classificação, seja em uma linha
específica ou em uma escola literária peculiar, com objetivos em comum. Com isso,
vê-se, por exemplo, juntos, didaticamente, desde escritores presencistas e neo-
realistas até escritores brasileiros do início do século XX, como Coelho Neto e
Euclides da Cunha.
Desse modo, quando se trata de Ferreira de Castro, não raro o vemos em tais
compêndios como ‘pai do Neo-Realismo português’, sem nunca, portanto, ter
formalmente aceito tal denominação e, mesmo que o fizesse com todas as letras, a
confecção de sua obra nega a ardência política dos romances produzidos sob a
égide desta escola, principalmente em sua primeira fase, como nos elucida
Alexandre Pinheiro Torres (1983).
Diferente é, nesse sentido, a relação estética de Ferreira de Castro com os
espaços sociais que tratou em seus romances, quando comparado com um escritor
tipicamente neo-realista como Alves Redol, em sua primeira fase, à época da
publicação de Gaibéus. Enquanto este último buscava um retrato fidedigno,
antropológico dos trabalhadores na colheita de arroz, em sua obra mais candente,
Gaibéus: para isso foi até à região em que trabalhavam os gaibéus e de lá trouxe, à
tiracolo, as cores mais fortes dos espaços percorridos bem como de seus
habitantes, buscando, a todo custo, não se desviar do real enquanto sincronia
histórica marcada. Ferreira de Castro, ao contrário, inicia sua produção literária
47
anos depois de ter habitado na floresta amazônica e convivido com tipos humanos
distintos, como se sentisse liberdade e propriedade literárias para transformar
essa vivência em arte, após macerar esse material e enxergá-lo sem as fortes cores
locais, típicas do Neo-Realismo em Portugal, dos anos de 1940, e do Regionalismo
Literário brasileiro, cultivado em meados da década de 1930. Mesmo quando
convive junto aos barrosãos e escreve Terra Fria, não se utiliza das fortes marcas
geográficas ligadas ao lugar para construir crítica social, mas, ao contrário, apropria-
se, estilisticamente, das marcas do lugar para dimensionar a existência de um
mundo atávico, ligado ao homem em geral e não somente ao homem do Barroso.
Ademais, retomando, no momento em que Redol traz a lume Gaibéus, deixa claro
que não pretendia, em primeira instância, que seu romance fosse necessariamente
obra de arte. No prefácio de Terra Fria, Ferreira de Castro sente a necessidade de
afirmar sua obra como sendo literária certamente não precisaria, pois o construto
do referido romance muito naturalmente revela seu afastamento pitoresco e recria
um mundo atávico, atemporal.
Afirmar-se como escritor e negar-se como ideólogo ou político significaria
(interpretando as palavras de Ferreira de Castro transcritas acima, em Mensagem),
por intermédio de outros termos, possuir liberdade suficiente para que pudesse
construir textos cujo labor estético superasse as vicissitudes ideológicas e políticas
neles presentes, sem precisar aderir a pressupostos impostos ou negados pelo
“regime” sob o qual encontrava-se, ou seja, O Estado Novo português.
Por outro lado, como não assumir posturas diretamente engajadas, quando se
percebe que Ferreira de Castro foi o primeiro grande escritor português moderno a
trazer à tona a problemática da marginalização social e os problemas referentes à
imigração e às relações de trabalho? Conforme explica Zenir Campos Reis em “O
mundo do trabalho e seus avessos: a questão literária” (apud. BOSI, 1999, p. 42-57),
maculados anteriormente por regimes totalitários, como é o caso de Portugal
durante o Estado Novo, exigia-se de seus escritores uma postura engajada contra o
sistema em vigência. Isso, por um lado, explica o fato de Saraiva e Lopes, em sua
História da Literatura Portuguesa (2000), enquadrarem Ferreira de Castro como
escritor de transição entre o Naturalismo e o Neo-Realismo português e não o
tomarem como autêntico escritor Neo-Realista (malgrado ter adentrado esse
período, temporalmente, em sua lavra escreveu até 1968), visto que nunca
assumiu, de todo, uma postura anarquista ou marxista cristalizada, conforme foi
48
adotada pelos neo-realistas. Por outro lado, este não-panfletarismo pode constituir-
se o fator preponderante para tornar Ferreira de Castro um escritor esquecido, como
realmente foi, durante muito tempo, quando a ordem do dia era estabelecer críticas
mordazes ao Estado Novo, hasteando a bandeira comunista e filiando-se
diretamente ao partido.
Destarte, para um país como Portugal, esse engajamento era preponderante,
mas aniquilaria a abrangência da obra de Ferreira de Castro mundialmente, e isto,
felizmente não ocorreu, mesmo em países cujos leitores muitas vezes desconhecem
os anos de chumbo por que passou Portugal. Certamente isso explica a abrangência
mundial da obra de Ferreira de Castro e, ao mesmo tempo, a indiferença que os
leitores portugueses lhe legaram.
Em conformidade com Michel Ragon, em sua Histoire de la littérature
prolétarienne en France (1974), o futuro de uma literatura cuja preocupação com
os marginalizados não se filia a nenhum partido político, em um país cuja
necessidade de opor-se diametralmente ao sistema torna-se fundamental, é:
O de uma literatura desconhecida, de uma literatura esquecida tão
logo quanto surge, de uma literatura desprezada, de uma literatura
que em verdade nem mesmo é considerada literatura, de uma
literatura estranhamente condenada, tanto pelos sistemas
capitalistas quanto pelos sistemas socialistas, a permanecer uma
literatura marginal (tradução nossa). (RAGON, 1974, p. 32).
Revitalizando o que afirma Ragon, em 1974, e enquadrando tal perspectiva
acima mencionada na ótica do escritor português Ferreira de Castro, cujo conjunto
da obra manifesta a preocupação com os marginalizados, em 1985, Elena Muriel,
viúva do escritor português, em entrevista concedida ao Diário de Notícias sobre o
injusto e negligente esquecimento de Ferreira de Castro por parte da crítica a
aquele momento, em Portugal - muito embora o interesse por sua obra fosse
extremamente considerável em outras partes do mundo - afirmou que o fato de seu
marido jamais ter se filiado a nenhum partido político talvez fosse a resposta mais
correta ao silêncio diante dele como escritor. Muito acertadamente, acrescenta o
crítico Pedro Calheiros em “Relembrando Ferreira de Castro”
7
:
7
Documento on line, disponível em HTTP://www.centrodeestudosferreiradecastro.org.pt, acesso em
12 de fevereiro de 2005.
49
Ferreira de Castro também não abraçara nenhuma religião e a sua
mensagem de esperança foi sempre um constante pugnar pela
utopia universal, pela esperança e pela crença no futuro mais
humanizado, mas sem hinos euforizantes, uma utopia distópica se
me é permitido o neologismo e o aparente paradoxo – dada sua obra
ser um espelho constante do seu pessimismo radical, do seu niilismo
fundamental, de raiz, sonata melancólica do homem confrontado com
o absurdo da existência. (CALHEIROS, 1998, p. 1).
As palavras de Pedro Calheiros trazem à lembrança, em síntese, a expressão
“humanitarista” utilizada por Saraiva e Lopes (2000) para definir Ferreira de Castro
como escritor. A expressão de Saraiva e Lopes, ademais, resume concordemente a
afirmação de que, não obstante Ferreira de Castro não abraçasse nenhuma causa
política ou religião, seu maior interesse direcionava-se para “a sonata melancólica
do homem confrontado com o absurdo da existência.” Em outros termos, para se
construir uma literatura de qualidade, como Ferreira de Castro conseguiu, não havia
necessidade de filiação a nenhum partido político.
O mesmo Óscar Lopes (1960) acima citado, no artigo A epopéia popular na
obra de Ferreira de Castro” salienta que a obra do “humanitarista” escritor de A
Selva
[...] não reflete e ilumina a consciência efêmera e superficial de uma
corrente, uma academia, uma Arcádia, um botequim do século XIX,
um salão ou um café de hoje. A maturidade da obra de Ferreira de
Castro corresponde a uma maturidade iminente na consciência do
Povo Português. (apud. http://www.ceferreiradecastro.org, p. 1).
Necessário faz-se, portanto, uma abordagem crítica que dê atenção a Ferreira
de Castro como escritor que, diferentemente do que afirmava a ABI em 1935, não
detratava o Brasil por intermédio de sua obra A Selva, mas observava o homem
diante das agruras da existência, das relações humanas, independentemente dos
espaços sicos por ele deambulados, fosse a Amazônia ou qualquer parte do globo.
Essa trajetória humana Ferreira de Castro percorre desde Emigrantes (1928) até
Instinto Supremo (1968).
Críticos como Pedro Calheiros e Óscar Lopes, têm ressaltado o fato de que,
independente de Ferreira de Castro negar qualquer postura política, pensamentos
50
cristalizados como direita e esquerda não mais existem, de modo que as obras
literárias devem ser estudadas pelos atributos estéticos que as compõem e não
somente pelas preferências políticas adotadas por seus escritores e nelas vazadas.
Embora muitas vezes possam assumir certo caráter jornalístico, os romances
de Ferreira de Castro não se retraem ao anacronismo, comum às obras que
defendem categoricamente pressupostos político-sociais. Mediante o suporte
oferecido pelos estudos imagogicos é possível perceber atributos literários
utilizados de maneira lapidar pelo escritor.
No que tange a Portugal, nota-se, felizmente, um crescente interesse pela
obra de Ferreira de Castro, embora ainda pouco materializado em estudos críticos
que dêem conta de maneira justa de seu labor estético. Não obstante, este interesse
manifesto vislumbra-se mediante eventos, como a comemoração do Centenário de
Nascimento de Ferreira de Castro em 1998, as filmagens de A Selva, protagonizada
por atores brasileiros e portugueses, bem como o Congresso Internacional dos 75
anos de publicação de A Selva, ocorrido entre os dias 28 e 30 de Julho de 2005, em
Ossela e Oliveira de Azeméis, terra natal e sede de concelho de Ferreira de Castro.
Assevera-se aqui, novamente, que se faz necessária uma defesa mais
contundente das preocupações estéticas de Ferreira de Castro, visto que, como
acima se especificou, trata-se de um escritor que merece preocupações críticas mais
específicas no tocante à sua produção literária, e o debates hoje ultrapassados
sobre o engajamento político de um escritor que, em toda sua vida literária, ateve-se
em direcionar sua produção como manifesto artístico e manter acesa a chama da
literatura.
1.3. Ferreira de Castro e seus contemporâneos. A peculiaridade de uma
produção estética frente às obras de José Américo de Almeida e de Jorge
Amado.
Os críticos norte-americanos Richard Freadman e Seumas Miller, em seu Re-
Pensando a Teoria (UNESP, 2005), afirmam veementemente que o esforço crítico
de encarar obras literárias como autênticas prelibações políticas, desliza, na maior
51
parte das vezes, para o arrefecimento dos elementos verdadeiramente literários que
a obra pode sustentar, aos quais Candido, em diversos momentos, seguindo o
caminho de António Soares Amora (1973), chama de objectualidade.
O termo objectualidade, emprestado por António Soares Amora de Antonio
José Saraiva, por ser muito utilizado em seus textos, conforme Amora mesmo
atesta, evidencia, em seu bojo, o caráter estritamente peculiar que os textos
literários sustentam, tal o grau de trabalho lingüístico necessário para a sua
dimensional produção e para a intensidade da sua recepção o que,
evidentemente, torna esse texto específico e, como tal, carente de uma crítica que,
antes de mais nada, realce tal objectualidade. Se ela for suplantada pela cadência
política, certamente se perderá no halo sucessório dos acontecimentos, se não,
manter-se-á em pé, indiferente à transcorrência feroz e devoradora do tempo.
Quando se traz à tona o parâmetro da objectualidade, no intuito de reavivar
literariamente a obra de Ferreira de Castro, atinge-se sua primeira obra de grande
impacto literário, a saber, Emigrantes, publicada em 1928, ano em que, levando em
conta o critério cronológico, aqui no Brasil também se produziam duas obras de
grande relevo, quais sejam, Macunaíma, de Mário de Andrade e A Bagaceira, de
José Américo de Almeida. A primeira fechava com “chave de ouro” a fase heróica de
nosso Modernismo e a segunda abria caminho para nosso romance regionalista,
marco da fase madura das propostas realçadas na primeira, que deveria, pois,
ressumar as preocupações com o povo de modo universalizante, muito embora a
mácula advinda do elevado trato pitoresco com que o autor compunha suas
personagens, conforme atesta Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura
Brasileira (2003) ao referir-se ao escritor paraibano. Não obstante o incontestável
pendor político manifestado pela obra de José Américo de Almeida, reflexo de sua
intensa e controversa participação na vida política brasileira (chegando mesmo,
posteriormente, a apoiar o Golpe de Estado), em A Bagaceira
8
encontramos, no
preâmbulo do livro, algo que condiz com a visão de Ferreira de Castro, mas que foi
de difícil digestão estética pelo escritor paraibano, a saber, a quase máxima (dado o
efeito da conjunção vocabular e significativa) que afirmava ser o regionalismo o “o
pé–de-fogo da literatura”. (ALMEIDA, 2004, p.4)
8
A edição de A Bagaceira utilizada, a partir deste instante, será a 37ª (texto da edição crítica),
publicada pela José Olympio Editora, no ano de 2004.
52
A proposta de afirmação de universalidade em José Américo continua,
esboçada ainda no preâmbulo citado, na perspectiva de transformar o sofrimento do
homem regional em um sofrimento universal, que pudesse angariar reflexos em
outros indivíduos, em outros países, como quando afirma que
[...] a dor [do homem retratado em A Bagaceira, protótipo, requerido
por José Américo, do sertanejo] é universal, porque é uma expressão
de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os
temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará
por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos
despercebidos. (idem, p.4).
José Américo acreditava que a prosa brasileira era incipiente e não poderia
pretender grandes os de mudança social. Cabia a ela, tão somente, trazer à tona
os temas que a política trabalharia com mais eficácia, resolvendo o que à literatura
cabia apenas apontar.
Ferreira de Castro certamente acreditaria nas palavras do escritor de A
Bagaceira, sobretudo quando asseveram que a dor do homem regional era
universal por ser expressão de humanidade, mas, na prática, conseguiu lograr um
projeto estético que, para José Américo, malgrado a efusão de seu pensamento (ou
até mesmo devido a esse direcionamento), ficou apenas no papel. De fato, trilhando
essa seara, o escritor português construiu uma obra cujo sacrifício político erigiu
sustentáculos muito bem alicerçados da literatura, como autêntica expressão de
humanidade, a mais cara das determinantes objectuais da literatura.
Anunciada para “breve”, conforme estampara-se no periódico Dom Casmurro,
em 1922, em Recife, e publicada somente seis anos mais tarde, A Bagaceira, não
obstante seu pretenso universalismo, manifestado no intróito do romance, parece
mais inscrever-se no regionalismo das décadas precedentes - nos moldes de Inglês
de Souza muito mais propriamente do que de Aluísio Azevedo - do que iniciar a
fase madura do Modernismo brasileiro. Quando pouco, vai a uma grande distância
entre as proposições e a realização. Pregando a negativa contra os lugares comuns,
além da evidente antítese, não raro a narrativa contradiz tal programa, a ponto de
negar o postulado básico sobre que se assenta. As páginas iniciais servem como
intróito doutrinário do narrador/autor ao enredo em torno do trngulo amoroso
53
Dagoberto, Lúcio e Soledade. As sentenças de caráter realista pressuporiam um tipo
de romance participante, empenhado na revolução em favor dos humilhados e
ofendidos socialmente. Entretanto, o desenrolar da ação, não obstante a tentativa de
mantê-la na rota certa, indica um desvio de cento e oitenta graus. De acordo com a
Introdução citada, o romance traçaria o quadro da vida no engenho de açúcar,
porém, o que sucede é seu núcleo ser o trinômio vivido por Lúcio, seu pai,
Dagoberto, e Soledade.
O romance de José Américo, de acordo com M. de Cavalcanti Proença, na
37ª edição da José Olympio Editora, com texto da edição crítica, admite que em
muitos momentos da obra faz-se presente o “autor, justificando o tom polêmico, as
tintas fortes com que vem pintada a miséria dos cabras do eito. No fundo, é
retomada do tema de Euclides da Cunha, acrescido de um outro Brasil, o dos
brejeiros, um degrau abaixo dos “mestiços neurastênicos do litoral”” (2004, p. xxii).
A essa relação com Euclides da Cunha, Afrânio Coutinho, em A Literatura no
Brasil (2004), detecta uma das faltas graves da produção do escritor paraibano:
A negatividade da influência euclidiana não decorreu de causa
acidental. Ela tem a ver com a falha central do novelista, qual seja a
sua incapacidade de ultrapassar um realismo primário. Esta a razão
de que trouxesse de Euclides o que lhe era de mais imediato, de
mais impressionável e de menos definitivo. Não é outra, tampouco, a
razão de que os trechos d’A Bagaceira pareçam transpostos do seu
livro anterior, A Paraíba e seus problemas, tamanho é o seu caráter
de observação sociológica imediata que não chegou a ser depurada
para penetrar em uma realização ao nível do imaginário.
(COUTINHO, 2004, p.339).
Assim como José Amérido de Almeida, Ferreira de Castro acreditava na
literatura como veículo de humanidade, mas, diferente desse, o a via apenas
como um instrumento panfletário capaz de ir até onde a política poderia interferir,
mas como um verdadeiro galvanizador, não de nações específicas e nem de povos
específicos, mas da própria humanidade apátrida do ser humano.
Ainda na diretriz de Coutinho, a pouca elaboração estética da obra de José
Américo provoca um ‘constante desajuste, repetido página a página em seu
romance, entre a realidade visada e a linguagem com que se exprimem ora seu
autor, ora seus personagens’ (op. cit. p. 339), fazendo necessária a recorrência à
conformação histórica de que a obra se perfaz, sempre; qual seja, a insubmissão
54
contra os latifundiários à época, daí o fato de ter sido recebida com um entusiasmo
que se foi apagando com o passar do tempo, na medida em que se foram
processando mudanças estruturais na condição geopolítica nordestina:
Mas, se é necessário um esforço de reconstituição histórica, é que a
obra não é mais apta a despertar, por si mesma, o interesse do
crítico ou do leitor da época. A passagem dos anos sobre as obras
faz com que elas percam as vigas momentâneas que as
sustentavam, de modo que ou represam uma grandeza estética em
si ou passam a valer como simples documentos da evolução de um
gênero, de uma idéia ou de um tema. A Bagaceira situa-se no
segundo caso. O título responde por um livro, sem vida,
fundamental na história literária brasileira pela viragem com que ele
começa a se verificar no romance regionalista. (COUTINHO, 2004, p.
340).
A dificuldade de superar o tom ensaístico é visceral em José Américo,
provocando uma mistura de autor e narrador, que é, na verdade, sintoma de uma
crise, não intencional, na ficcionalidade, ou, em outras palavras, na objectualidade
artística.
Se isto não bastasse, os parcos resquícios de literariedade sobressalentes da
obra de José Américo estabelecem uma mescla de romantismo tardio e um grau de
pitoresco próprio dos debates de iias forjados em um tom político ainda muito
acadêmico, imaturo, forçando a uma visão mais contundente e ensaística da
situação dos retirantes percorrida por A Bagaceira, sem que se atinja a tonalidade
catártica própria das obras literárias. Neste sentido, o romance/ensaio é obra
marcada e esgota-se em si mesma. A vívida descrição dos retirantes corrobora este
tipo de construção. Malgrado longo, o trecho a seguir explicita o que se torna
contrastivo e devedor à estética da boa literatura quando visto sob a luz da
construção literária cara à obra de Ferreira de Castro:
Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios
antigos esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das
covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos
e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de
ser levado por elas.
55
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não
tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos
do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em
descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do sol e o sol os guiava nesse forçado nomadismo.
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os
levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos
abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos doentes da alimentação
tóxica – com os fardos das barrigas alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os
retirantes. Nada mais.
Meninotas, com as pregas da súbita velhice, careteavam, torcendo
as carinhas decrépitas de ex-voto. Os vaqueiros másculos, como
titãs alquebrados, em petição de miséria. Pequenos fazendeiros, no
arremesso igualitário, baralhavam-se nesse anônimo aniquilamento.
Mais mortos do que vivos. Vivos, vivíssimos no olhar. Pupilas do
sol da seca. Uns olhos espasmódicos de pânico, assombrados de si
próprios. Agônica concentração de vitalidade faiscante.
Fariscavam o cheiro enjoativo do melado que lhes axacerbava os
estômagos jejunos. E, em vez de comerem, eram comidos pela
própria fome numa autofagia erosiva. (p. 08).
Em José Américo, a descrição das personagens, marcada pela necessidade
fundamente pictórica e política e de exacerbação de idéias, incorre no pitoresco, no
exagero grandíloquo, pois a intenção literária é subsidiária à denuncia que promove,
como acima se nota no quadro vívido e marcado cronologicamente verdadeira
descrição de tela, desumana por excelência e desprovida de essência e de
possibilidade de empatia, tal o hiato que constrói frente ao leitor. Promove-se
necessariamente a descrição de tipos temporalmente vincados e não seres
humanos independentes de tempo e lugar, que pudessem evidenciar a detração
humana independentemente de correlações espacio–temporais e sem o grito de
guerra angustiante manifestado pelos desencontros narrativos emprestados do que
havia de mais arrevesado no estilo do mestre Euclides da Cunha.
O pitoresco declamatório e panfletário de José Américo de Almeida o é
marca característica da prosa de Ferreira de Castro, nem mesmo quando esta é
identificada, por alguns críticos, como de tendência marxista ou portadora de
determinantes políticas vazadas pela literatura. O carregar nas tintas para Ferreira
de Castro deslindaria as pretensões humanitárias (aqui se usa o termo como
invólucro extensivo da caracterização que Saraiva e Lopes (2000) fazem do escritor
português) de sua obra, de forma que as paisagens geográficas e humanas, bem
56
como as situações que se lhes impõem, no seu nomadismo de sobrevivência, o
trabalhados mediante metáforas sutis, cuja contundência é construída - e não
forçada - tijolo a tijolo, pouco a pouco, no alicerce de humanidade e subsídios
literários que a sua obra é capaz de traduzir.
Dentro da produção lingüisticamente estruturada das obras de Ferreira de
Castro, surge o homem e seus dramas não como apontamentos para uma panacéia
capaz de resolver os problemas que são inerentes à sua existência, dos quais ele
certamente o se afastará, mas como revelações de um problema que
provavelmente nenhum grito de guerra possa sobrelevar, pois aponta muito mais
para discussões estéticas e não políticas. Isso pode ser atestado pela intensa carga
de humanidade que desliza pela obra de Ferreira de Castro, pelos diferentes tipos
humanos, nos quais, a “dor” universal do existir ali se concretiza, quer o enredo que
as encobre se localize no Brasil, quer em Portugal ou em qualquer outro lugar de
onde as grandes diferenças sociais pudessem calar fundo na alma humana,
trazendo à tona a dor universal do ser-estar no mundo.
Como base contrastiva, que revela o despojo estético de Ferreira de Castro,
resultante da maceração estilística de suas vivências e leituras, em relação ao
pitoresco da obra de José Américo de Almeida, Emigrantes, também de 1928,
como revelado, externa grandes momentos de lavor estético e visão universal do
homem, como abaixo se pode notar na descrição de Manuel da Bouça, personagem
principal da referida obra, que imigra para o Brasil em busca de melhores condições
de vida. A descrição deixa entrever um misto de benesse da boa terra, simples,
porém sua, retratada poeticamente por um narrador humano, próximo de suas
personagens e dos cenários que descreve, atento à ciência que possui de construir
um típico texto literário, em nada pictórico - descrição de tela -, mas extremamente
humanizado, universalizante:
embaixo, no campanário, o relógio deu três horas. Resoluto,
Manuel da Bouça levantou-se e, pisa aqui, arrasta ali o dolorido,
atravessou o pinhal.
Quando, porém, o outeiro, em curva suave de ventre feminino, se
cosia ao sinuoso caminho que dava acesso à aldeia, deteve-se,
meditativo, a contemplar a sua casita, quase debruçada no Caima.
57
Automàticamente os seus dedos nodosos iam enrolando novo
cigarro, enquanto o ombro esquerdo procurava suporte no tronco
rugoso dum sobreiro.
A casa tinha, agora, um penacho de fumo, fumo da tarde, do jantar
algodão em rama que se desfazia, flutuante, translúcido, quase
azul.
Às quatro paredes brancas, seguiam-se a capoeira da criação e o
quintal, mui cultivado, muito verde as couves gordas, os feijoeiros
abraçados às estacas e as ervilhas cheias de garridice por terem
flores como violetas. As alfaces, viçosas e tenrinhas, dariam para
alimentar todos os grilos que, nas redondezas, formavam, em tardes
cálidas e noites consteladas de Verão, uma orquestra interminável e
monossónica.
Fazendo sentinela à terra pródiga, duas cerejeiras contrastavam,
pela sua frescura e opulência da folhagem, com a figueira árida
apesar de tudo muito mais feliz do que a bíblica, pois Judas fora
substituído por uma grande abóbora amarela, que pendia da primeira
forquilha.
[...]
Mas para lá do muro, os olhos de Manuel da Bouça não podiam ver,
com alegria, os campos que se estendiam, planos, bem regados, até
próximo da igreja velha. (FERREIRA DE CASTRO, 1980, p. 21-22).
Esta preocupação em construir um texto literário, lingüisticamente candente,
vislumbrada na obra do escritor português, é mais um golpe contundente na ABI,
quando da publicação de A Selva no Brasil, e nos diferentes posicionamentos
críticos que vêem nele um escritor marcado por tendências políticas reducionistas.
Pelo contrário, quando foi cobrado de Ferreira de Castro um direcionamento
político para suas idéias, na candidatura de Norton de Matos (general que, em 1948,
participou nas eleições presidenciais portuguesas, reivindicando a liberdade de
propaganda e uma melhor fiscalização dos votos, cujos ideais tinham sido
rechaçados pelo regime salazarista, mas, apoiados pela massa) o romancista
declinou, apelando para a liberdade de expressão e não para uma tendência política
em particular, conforme publicado no periódico Mensagem, de 1949, citado
anteriormente.
Essa afirmação do escritor português deve-se ao fato de não possuir a
perspectiva maniqueísta própria dos defensores de idéias que se valem da literatura
como forma de difusão de suas prelibações. Jorge Amado, amigo particular de
Ferreira de Castro, recebido inúmeras vezes por este em Portugal, em sua casa,
atravessou uma equivocada fase literária a alcançar uma literatura menos
proletária, menos engajada. Veio tamm na esteira diacrônica do mestre” José
58
Américo de Almeida, porta-bandeira do movimento regionalista pós-1930. Da
publicação dos primeiros romances como O País do Carnaval (1931), Cacau (1933)
e Suor (1934) e do ensaio Os Subterrâneos da Liberdade (1954), o melhor da
obra do escritor baiano como produto literário de alto labor localiza-se em Terras do
Sem Fim, de 1942, inserido ainda no que se poderia considerar o ciclo cacaueiro da
produção estética de Jorge Amado.
Em verdade, o fato de Jorge Amado constituir-se o escritor brasileiro mais lido
em todo o mundo e de ter esgotadas várias edições de suas obras no Brasil faz com
que possa ser visto sob um prisma comparativo com Ferreira de Castro, cuja
trajetória no Exterior assemelhou-se à do brasileiro, muito embora, como este, fosse
de difícil aceitação por parte da crítica.
Tal êxito advindo de Jorge Amado se deveria, antes de tudo, ao impulso
autóctone (que não pode ser visto de maneira candente em Ferreira de Castro),
mais propriamente baiano, que lhe serve de lastro. Não surpreende, por isso, que
chegasse a exercer, juntamente com os prosadores nordestinos da década de 1930,
decisiva influência na literatura portuguesa do tempo, assim colaborando com a
implantação do Neo-Realismo português (anos 40 e seguintes) e invertendo, pois,
uma secular tendência histórica.
Em Terras do Sem Fim
9
, Jorge Amado deixa entrever a qualidade de
romancista de grandeza épica, cujas amostras apenas estavam espicaçadas nos
romances anteriores e, infelizmente, em alguns posteriores. A combinação da luta
de Horácio, personagem principal do romance, com seu drama conjugal, de que
terá conhecimento depois da morte de Ester, associa, na obra, caráter épico e
dramático. Como salienta Coutinho (2004, p. 374) o romance fixa o momento de
expansão das fazendas cacaueiras. A narrativa tem início a bordo de um navio, no
qual se encontram vários tripulantes, rumo a Ilhéus. Entre estes estão desde
coronéis enriquecidos, como é o caso de Judá Badaró e de Maneca Dantas, até
simples lavradores, como é o caso de Antônio Vítor. Estes últimos tentarão sorte
menos desgraçada em Ilhéus, junto aos trapaceiros nas cartas. O mais da carga
consta de nordestinos, fascinados pelas promessas auríferas.
9
A edição de Terras do Sem Fim, de Jorge Amado, utilizada a partir deste instante, será a publicada
pela Editora Martins, s.d.
59
No decorrer da narrativa, surpreende-se, Horácio, às voltas com sua
sobrevivência, lutando contra a mata para alargar suas posses. A dialogação, viva e
ativadora da narrativa não se perde, malgrado a multiplicidade de personagens que
vão aos poucos surgindo e adensando a matéria romanesca. O trabalho estético é
de tal monta que a própria disposição dos capítulos provoca o crescimento da
tensão do romance. O trecho que descreve a mata, de capítulo homônimo, permite
uma relação maior com a descrição da região da Bouça em Emigrantes, de Ferreira
de Castro, ao mesmo tempo em que se afasta de modo visceral das fortes cores e
das duras pinceladas do romance de José Américo de Almeida:
A mata dormia o seu sono jamais interrompido. Sobre ela passavam
os dias e as noites, brilhava o sol de verão, caíam as chuvas do
inverno. Os troncos eram centenários, um eterno verde se sucedia
pelo monte afora, invadindo a planície, se perdendo no infinito. Era
como um mar nunca explorado, cerrado no seu mistério. A mata era
como uma virgem cuja carne nunca tivesse sentido a chama do
desejo. E como uma virgem era linda, radiosa e moça, apesar das
árvores centenárias. Misteriosa como a carne de mulher ainda não
possuída. E agora era desejada também.
Da mata vinham trinados de pássaros nas madrugadas de sol.
Voavam sobre as árvores as andorinhas de verão. E os bandos de
macacos corriam numa doida corrida de galho em galho, morro
abaixo, morro acima. Piavam os corujões para a lua amarela nas
noites calmas. E seus gritos não eram ainda anunciadores de
desgraças que os homens não haviam chegado na mata. Cobras
de inúmeras espécies deslizavam entre as folhas secas, sem fazer
ruído, onças miavam seu espantoso miado nas noites de cio.
A mata dormia. As grandes árvores seculares, os cipós que se
emaranhavam, a lama e os espinhos defendiam o seu sono.
Da mata, do seu mistério, vinha o medo para o coração dos homens.
(AMADO, s.d, p.28).
Essa imagem da floresta, talhada de metáforas e imagens de
antropomorfização, não soa de modo abrupto aos ouvidos do leitor afeito a imagens
literárias construídas artificiosamente. Destarte, o correm o risco do anonimato
histórico, pela maestria de construção, independente do tempo e do espaço as
imagens agradam por si mesmas e não pelo intento político que porventura esteja
por trás delas. Ao fim, tem-se a malevolência característica da mata tropical nas
noites “calmas” e agourentas, misteriosas em sua essência devido à sua
exuberância luxuriosa. Essa imagem contrasta-se com a vegetação da Bouça, que
60
apresenta-se, em Emigrantes, tranqüila, benfazeja, reveladora de uma harmonia
bucólica entre homem e natureza. Manuel da Bouça ressurge como um pastor em
meio às flores, às alfaces, às cerejeiras, uma bonomia própria das cidadezinhas
esquecidas no tempo e mantenedoras de tudo o que respeite à tradição de um povo
de formação agrária como era Portugal.
Paradoxalmente, as imagens que retumbam da paisagem geográfica e
humana, extraídas da obra de Jo Américo de Almeida, conforme acima se pôde
notar, não o além do descritivismo emprestado dos primeiros capítulos de Os
Sertões, de Euclides da Cunha, como da descrição técnica da terra ou do sertanejo
de compleição frágil, “Hércules-Quasímodo”; ou mesmo dos momentos canhestros
de Canaã, de Graça Aranha, como o banquete que os porcos selvagens fazem do
filho recém nascido da personagem Maria ou a surra do cavalo até à morte para que
seu sangue puro pudesse vicejar a terra, costume típico dos povos magiares,
húngaro–ciganos.
O ponto de encontro das três narrativas, apoiando-se, para isso, nos trechos
supracitados, dá-se pela representação do espaço natural em relação ao tema
humano problematizado. Não obstante, enquanto isso serve como motivo de
construção literária, imagética, em Emigrantes e Terras do Sem Fim, em A
Bagaceira é acento tônico típico de uma única época, marca ideológica indefectível.
Enfim, se se parte do pressuposto de que a linguagem determina a essência de todo
ser, deve-se, por conseguinte, entender a arte literária como um femeno, não
apenas do domínio da criação, mas também do domínio especulativo e racional,
pois trata-se de um femeno de epigênese humana e voltada para o humano.
Dessa feita, não basta, na verdade, contar uma história; é necessário que esta
história aumente a substância do humano, de modo que se possa considerá-la
válida na própria história literária. É certo que livros que se tornam datados, pelo
fato de não acompanharem de perto, nem o tempo, nem o próprio processo
histórico, aspectos indissocveis de um humanismo que se recusa à estagnação. A
circunscrição de uma obra ao tempo em que foi gestada é, muitas vezes, um mal
necessário, sobretudo se essa obra possuir qualquer característica panfletária. Esse
foi um dos defeitos (senão o principal) da literatura circunscrita no perímetro do Neo-
Realismo português, principalmente em sua primeira fase. Devido a isso, quando se
tenta surpreender Ferreira de Castro como escritor neo-realista, a roupagem não lhe
cai nem um pouco confortável, dada sua concepção de literatura; sendo assim,
61
Ferreira de Castro pouco se ajusta à literatura regionalista brasileira, assim como
também o se enfeixa esteticamente, de modo confortável, ao Neo-Realismo
português.
Pode-se, certamente, reconhecer a perenidade de uma obra literária se nela é
encontrada uma substância humana que se reconhece, a priori, intemporal. Embora
a mudança seja uma característica do homem, aspectos da condição humana
que se repetem indefinidamente, como se todos os humanos obedecessem às
regras de um jogo previamente estabelecido e do qual não se pode fugir. Neste
perímetro, da abordagem de características especificamente humanas, conformadas
pela linguagem que tende ao cósmico e o ao individual, à marca de uma época, a
obra de Ferreira de Castro vê-se confortavelmente vestida. Em outras palavras, de
acordo com o crítico Adelino Vieira Neves no preâmbulo ao In Memoriam de
Ferreira de Castro (1976, p. 17), “o romance de Ferreira de Castro, centra-se, de
facto, numa questão de caráter existencial.”
Devido ao que foi acima exposto, José Fernando Tavares, diretor da revista
“Artes e Artes”
10
, assevera:
Existe uma diferença fundamental entre o movimento neo-realista e a
obra de Ferreira de Castro. Essa diferença reside no foco narrativo,
ou seja, na própria matéria novelística. Enquanto a generalidade das
obras produzidas pelo neo-realismo centrava a sua problemática
numa personagem colectiva, pois os romances neo-realistas pelo
neo-realismo tinham em vista um objectivo social, Ferreira de Castro
preocupa-se com a condição do indivíduo isolado, conferindo, desse
modo, às suas narrativas uma dimensão psicológica. É o que
acontece com Manuel da Bouça de Os Emigrantes ou com Aberto
de A Selva. Ambas as narrativas partem de um pressuposto
autobiográfico, aspecto legítimo na obra de um autor, visto que a
experiência vivida é uma característica indissociável de toda obra
literária [...] reside aqui um dos aspectos mais positivos da obra de
arte literária: quanto maior for o seu caráter universal, maior será
também a sua intemporalidade. (in. www.ceferreiradecastro.org, p.2).
O grande problema da crítica que procura vislumbrar nas obras de Ferreira de
Castro aspectos determinantes de uma postura política inexorável, reside, como
salienta Tavares (op. cit.), no paradoxo que condicionou parte do pensamento crítico
10
Documento on line, disponível em: www.ceferreiradecastro.org, acesso em 12 de janeiro de 2005.
62
durante todo o século XX e se estende até hoje, em pleno século XXI, qual seja, o
da coerência e da constância, como se a vida e o mundo fossem a conseqüência de
um percurso linear. Destarte, perdura uma tendência comum em se acreditar que a
vida humana pode ser medida em conformidade com uma postura ideológica,
como se ssemos apenas e o somente autômatos, forjados para servirmos,
incondicionalmente, a uma sociedade imutável e intangível, assim como há a crença
na objetividade do pensamento, como se este fosse o fruto de um fatal
determinismo.
1.4. Emigrantes e A Selva: os primeiros libelos de uma preocupação
eminentemente literária.
Os primeiros romances reconhecidos pelo próprio Ferreira de Castro como
obras bem acabadas estruturalmente foram Emigrantes (1928) e A Selva (1930),
cujo espaço representado, curiosamente (dos dois romances), é brasileiro. O
primeiro esboça o trajeto dos portugueses durante a primeira leva de imigrantes
vindos de Portugal para o Brasil no início do culo XX, tendo como protagonista
dessa missão o camponês Manuel da Bouça, que refaz a trajetória do povo
português em êxodo perene pelos mares, na busca de melhores condições de vida
em terra alheia. O segundo tem como tema o duro trabalho dos seringueiros em
plena floresta amazônica. O protagonista desse romance, Alberto, um advogado
fugido de Portugal por questões políticas, encontra, no Brasil, asilo para seus
posicionamentos ideológicos.
Esses romances iniciais encontravam estofo na preocupação estética que
marcou toda a vida literária de Ferreira de Castro, a saber, a motivação em retratar
com afinco os detratados socialmente, sem o anátema da denúncia fria e puramente
política, mas com intenções literárias, fazendo de suas personagens, e das
situações que atravessam, exemplos indefectíveis de universalização dos problemas
humanos, suscetíveis de ocorrer em qualquer parte do globo.
Respondida a questão quanto ao possível engajamento político de Ferreira de
Castro, apontado pelos críticos como marca característica de suas obras, mas que,
63
como nossa visão pôde salientar, pela análise minuciosa das obras, não encontra
respaldo quando são surpreendidas dentro dos parâmetros literários; resta, pois
saber, por que o escritor escolheu o Brasil como espaço primordial para o
desenvolvimento das questões apontadas em sua estética.
O fato de o escritor ter conhecido o Brasil durante as primeiras cadas do
século XX, quando, em ato heróico, chegou ao Pará com o intuito de vislumbrar a
Floresta Amazônica, durante seu auge de extração e exportação, aliciou a crítica a
enxergar no conjunto de sua obra um veio autobiográfico. Afirmar isso
categoricamente empobreceria o trabalho literário de Ferreira de Castro e marcaria
sua produção com uma tinta mais fortemente engajada do que talvez pretendesse o
autor. Porém, não há como negar que a participação efetiva na vida dos seringais
dos onze aos dezoito anos afetou indefectivelmente o trajeto que sua obra seguiria
desde Emigrantes, ou seja, o projeto da humanização.
Quando Ferreira de Castro constrói, em Emigrantes, a personagem de
Manuel da Bouça, exemplo dos muitos que saíram de Portugal no início do século
XX para fazer a vida em terras tropicais promissoras, não o faz
condescendentemente com seu patrício, mas com olhar humanizador, apaixonando-
se aos poucos pelos outros povos, pelas suas diferenças e necessidades humanas
mais inerentes. Trata o romance de uma massa humana carente de meios de
sobrevivência e que luta para conseguí-los, em uma procela em que o herói não é
aquele que arrebanha mais bens ou alcança um patamar mais elevado socialmente,
e, sim, aquele que, malgrado as diferenças culturais, étnicas e conceituais,
sobrevive em meio a um ambiente hostil, seja no Brasil, seja em Portugal.
O próprio escritor sabia diferenciar, em sua extensa produção literária, os
textos de juventude, marcados biograficamente e, mesmo para ele, pouco
interessantes do ponto de vista literário, dos textos mais bem elaborados, frutos de
experiência literária mais madura. Daí o fato de ter repudiado Criminoso por
Ambição (1916), Carne Faminta (1922), “O Escravo Redimido” (texto integrado no
volume de novelas Sendas de Lirismo e de Amor, de 1925), ou seja, textos
escritos antes de Emigrantes, datado de 1928 e considerado, pelo mesmo escritor
que repudiara as obras antigas de sua lavra, seu ponto de partida literário.
64
Criminoso por Ambição
11
traz à cena a história do português Simão, vindo
de Ossela (mesma aldeia em que nasceu Ferreira de Castro) para o Brasil, com o
fito de adquirir fortuna e tornar mais fácil a aproximação de sua amada, moça rica
que corresponde à sua paixão, mas que, ao mesmo tempo, é pretendida por um
homem rico e de mau caráter. Depois de atravessar aventuras, Simão vai trabalhar
em um seringal às margens do rio Purus, no alto Amazonas, porém não alcança,
neste labor, a fortuna que pretendia. Não obstante, enriquece com um bilhete de
loteria, deixando o Brasil e retornando à sua terra natal, no intuito de contrair núpcias
com sua amada. Como autêntica narrativa calcada na ação, as imagens do espaço
brasileiro está apenas brevemente marcado, tal como ocorre em Carne Faminta e
em “O Escravo Redimido”.
Essas duas narrativas o analisadas por Alexandre Cabral como
antecessoras da obra A Selva (Em Antecedentes de A Selva”, artigo editado em
Livro do Cinqüentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro: 1916-1966.
(1967, p. 43-56), devido às várias semelhanças de espaço e de enredo, que
encontram-se melhor desenvolvidas em A Selva. Carne Faminta é romance sobre
um incesto entre mãe e filho, num cenário marcado pela frustração sexual dos
homens, devido à escassez de mulheres, como também sucede em A Selva, em
que, pela falta de mulheres, muitos entregam-se a atitudes incomuns ou veladas, em
sociedade, como as cenas de zoofilia, praticadas pelos seringueiros e a constância
do adultério.
Em “O Escravo Redimido”, assim como em A Selva, aparece o ex-escravo
Tiago e em ambas as obras é conhecido pelo apelido de “Estica”, por ser aleijado de
uma perna. Tanto em O Escravo Redimido” quanto em A Selva Tiago incendeia o
barracão onde se encontrava o seringalista, causando a morte deste. Também nas
duas obras, o negro Tiago se solidariza com os outros seringueiros, durante o
episódio do incêndio, vítimas, todos, do sistema escravista em que são postos pelos
patrões. O ato de Tiago é provocado pela revolta dos seringueiros, instigada pelo
aumento do preço dos gêneros alimentícios, que lhes são vendidos a prazo e pelo
11
Obra redigida no seringal Paraíso, em que trabalhou Ferreira de Castro, quando tinha apenas 14
anos. No periódico O Diabo, O autor se referia a esse romance, em contrapartida à imprensa
portuguesa que nele via um retrato de Ossela, região onde nasceu, com as seguintes palavras: “digo
eu sobre o meu primeiro romance, que talvez de todos os meus trabalhos o de mais complicada
acção; tem imaginação a mais e literatura a menos e tudo com grande ingenuidade infantil..." Enfim!
Um romance por mim vendido de porta em porta mas que foi, talvez, a primeira luz de esperança para
a minha vida literária.” (periódico O Diabo, de 10 de Fevereiro de 1940).
65
quádruplo do valor, em contrapartida ao processo de desvalorização da borracha.
Em A Selva, o ato de Tiago é diretamente provocado pelo fato de o patrão ter
mandado prender em um tronco cinco fugitivos, com débitos em sua venda, para
que fossem açoitados mediante o uso de um peixe-boi algo típico à época, na
região, como forma de tortura.
O fato de o autor não abordar com grande ênfase as suas experiências na
Amazônia brasileira nestas obras de juventude parece dever-se à mistura de medo e
fascínio com que, durante muito tempo, considerara as recordações do local que
Olavo Bilac chamava de “inferno verde”, acerca das imagens da Amazônia
plasmadas no relato de À Margem da História, de Euclides da Cunha, publicado
em 1909. Pelas palavras do próprio Ferreira de Castro, em A Selva, nota-se isso:
Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de
revivê-la (a experiência no Amazonas) literariamente. Medo de
reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivaram,
com pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas
das seringueiras.
Esse velho terror dominou-me sempre que tentei aproximar-me da
selva nos meus primeiros livros; e das poucas vezes que o fiz, para
eles colhi apenas alguns ramos marginais, nunca indo além do
passante distraído que estende o braço e, sem parar, arranca do
arbusto erguido à beira do seu caminho. (FERREIRA DE CASTRO,
1972, p. 27).
Não obstante, esses mesmos sentimentos, que marcaram profundamente as
obras anteriores, contribuem para uma compreensão mais acabada do fato de
Ferreira de Castro ter preterido a tais em relação à lavra que se sucedeu após 1928,
com a publicação de Emigrantes. Enquanto não os depurasse, a ponto de serem
menos marcantes como ideologia em sua tez de estilista das letras, e se
transformassem em contributos para o aprimoramento lingüístico fundamental, não
os aceitou, não os quis como marcas indeléveis em suas obras, conforme afirma
inúmeras vezes Urbano Tavares Rodrigues, amigo direto do escritor e ciente de sua
preocupação estética acima de qualquer outra perspectiva.
A obra A Selva oferece muitos elementos de contato com a vida de Ferreira
de Castro. Esta ligação não prejudica o trabalho literário praticado em sua obra
máxima; ao contrário, parece oferecer subsídios para um arranque literário ligado à
66
vivência, pela elaboração de experiências passadas pelo autor e transfundidas
metaforicamente. Surge, pois, dessa transfiguração, não uma selva marcadamente
brasileira, mas um local metaforicamente plural, palco de injustiças e diferenças
realçadas pelo convívio de homens de culturas distintas, amalgamados pelo mesmo
desejo: sobreviver.
A vivência de Ferreira de Castro no Brasil certamente serviu de experiência
para a transmutação literária empreendida pelo autor, que, no prefácio de A
Selva, afirma ter se afastado da pena muitas vezes, com o temor inerente de tornar
as cenas vívidas em sua mente, meros instrumentos simplistas de abordagem
biografista, já que o trato com outros indivíduos nos seringais, convivendo e
coadunando-se com seus costumes e seu sofrimento, foram traumáticos ao escritor
e poderiam, desta feita, transfundir marcações ideológicas.
Ferreira de Castro empreende, pois, um trabalho de objectualidade literária, a
partir de sua própria vivência, ou seja, de sua sensibilidade humanística, para
denunciar, como artista e como homem, as violências perpetradas contra o próprio
homem.
Pode-se notar, ainda, que esse interesse, por ser diferente daquele de
escritores brasileiros como José Américo de Almeida e Jorge Amado, mostra, de
fato, o seu teor universal e ético – que é, afinal, o sentido mais nobre de sua postura
(aí, sim) política. Ou seja, nesse sentido, Ferreira de Castro é, sim, um escritor
“político”.
Assim como Alberto, a personagem principal de A Selva, Ferreira de Castro
também traslada-se para Belém, no Pará, recomendado a um conterrâneo, que,
descartando-se da responsabilidade de o sustentar, envia-lhe a um seringal, às
margens do rio Madeira, conhecido por seringal Paraíso”. Ferreira de Castro sai de
Portugal rumo ao Brasil com apenas doze anos, enquanto Alberto é um jovem de
vinte e seis anos, estudante do quarto ano de Direito, que se forçado,
inicialmente, a buscar asilo político na Espanha e depois no Brasil, para fugir de
perseguição, após a derrota dos monárquicos na batalha de Monsanto. Alberto é
recebido por um tio, em Belém do Pará, que o convence a dirigir-se ao seringal
como única forma de trabalho. Ferreira de Castro e Alberto partem para o Paraíso”,
a bordo do “Justo Chermont”, trajeto que traz à tona a imagem da barca de Caronte,
constante da mitologia grega, bem como os autos do dramaturgo português Gil
Vicente. Após quatro anos no seringal Paraíso, Ferreira de Castro retorna a Belém
67
no vapor “Sapucaia”, portanto, com dezesseis anos. No caso de Alberto, o desfecho
de A Selva também anuncia o regresso a Belém, em barco homônimo ao de
Ferreira de Castro.
Quando chega ao seringal, Alberto começa a trabalhar como seringueiro,
passando, após, para o armazém e para o escritório, pois malgrado produzir pouco
na coleta da borracha, possuía outras habilidades, ligadas à leitura, à escrita e à
matemática.
Ainda em base comparativa, Alberto e Ferreira de Castro possuíam outras
responsabilidades no “Paraíso”, como limpar o farol indicador à chegada de barcos.
Após alguns meses, Alberto estabelece o plano de retorno a Portugal, ao passo que
Ferreira de Castro ficaria ainda mais cinco anos em Belém, em longos períodos de
desemprego, completamente abandonado pelo conterrâneo que se incumbira de sua
proteção. A despeito dos momentos de extrema miséria, Ferreira de Castro publica
vários artigos que dariam ensejo a Criminoso por Ambição. Em 1918 visita
Manaus, sob os auspícios de uma associação de poveiros e em 1919 faz uma
viagem ao Sul e ao Sudeste do ps, chegando a conhecer São Paulo e Rio de
Janeiro. Nesta última viagem certamente angaria vastos conhecimentos sobre a
paisagem e as relações de trabalho que se verificavam no Estado de São Paulo, de
que dá mostras no romance Emigrantes.
As personagens individualizadas de Emigrantes e de A Selva,
respectivamente, Manuel da Bouça, camponês analfabeto que deixa a família em
Oliveira de Azeméis, em Portugal, para tentar fortuna no Brasil, no auge da corrente
imigratória européia do final do século XIX e início do XX, e Alberto, intelectual
engajado, acostumado à bonomia da vida nas cidades grandes, vêem-se levadas à
compreensão do Outro, ao serem colocadas em meios de difícil sobrevivência,
mesmo aos mais acostumados à trajetória ultramarina ou à lide nos seringais. Por
isso, são personagens representativas, que não se limitam à sua individualidade,
narrativamente construída, e, pois alcançam estatus dimensional.
O destino de ambas as personagens é semelhante: regressam a Portugal tão
ou mais pobres quanto partiram. Manuel da Bouça, depois de nove anos de trabalho
duro nas lavouras de ca do interior e na cidade de São Paulo, retorna à terra natal
ainda muito mais desvalido, pois perdera suas terras, hipotecadas para pagar a
viagem ao Brasil, e a mulher, que morrera. O trabalho no Brasil não permite, a
nenhuma delas, tampouco saldar a viagem de volta. Manuel da Bouça pudera
68
comprar a passagem devido ao fato de, durante uma revolução, ter apanhado os
anéis, a corrente e o relógio a um morto, e Alberto, após um longo sacrifício no
regime de quase escravidão no seringal “Paraíso” receber da mãe o dinheiro com o
qual pôde pagar a passagem de volta, quando os monárquicos exilados de Portugal
haviam recebido anistia em território natal.
No caso de A Selva, a vivência de Alberto em território brasileiro assume
importância capital, haja vista o fato de todas as macro-seqüências narrativas
encontrarem no Brasil seu ponto culminante. Desde a primeira, que se inicia em
Belém do Pará, com a chegada do protagonista, e a posterior descrição dos vários
dias em que passa a bordo do vapor “Justo Chermont” - momento de contato e
estranhamento de Alberto em relação à floresta e a novidade que esta trazia aos
seus olhos, a primeira macro-seqüência absorve os quatro primeiros capítulos do
romance. A segunda macro-seqüência encontra-se enfeixada entre os capítulos V e
VIII, nos quais se encontram episódios cruciais, que retratam a vida na floresta e o
trabalho dos seringueiros no cultivo, coleta e manejo do látex. Do capítulo IX ao XIV
evidenciam-se as relações de Alberto com os funcionários mais próximos ao patrão,
dado o trabalho que desenvolve no conjunto administrativo do seringal trata-se da
terceira macro-seqüência. Enquanto Alberto se encontra nas bases administrativas
do seringal, ocorre a fuga dos cinco seringueiros, por ele auxiliados, que, mais tarde,
na última macro-seqüência, a quarta, que abarca o capítulo XV, são recapturados e
açoitados. Neste ínterim, Tiago, em sinal de revolta, põe fogo no seringal e Alberto
prepara seu retorno a Portugal.
Emigrantes, compõe-se de um percurso transatlântico, organizado em três
macro-seqüências (Portugal Brasil Portugal), que envolvem a vida de Manuel da
Bouça em Oliveira de Azeméis, em Portugal e a preparação de sua partida para o
Brasil, na esperança de angariar riqueza, movido pelos relatos de conhecidos que
para vieram e fizeram fortuna. Esses fatos narrativos se enfeixam entre os
capítulos I e IX; a vida atribulada do referido protagonista em terras brasileiras, após
ter viajado vários dias a bordo do navio “Darro”, no qual, assim como acontece com
Alberto, no “Justo Chermont”, toma os primeiros contatos com as terras brasileiras,
como demonstram a entrada na Baía da Guanabara e o passeio pelas vilas do Rio
de Janeiro. A parte referente à vida no Brasil, devido à maior extensão, pode ser
subdividida em três seqüências menores. Na primeira (do capítulo X ao XI), Manuel
da Bouça conscientiza-se da dificuldade de encontrar emprego no Brasil, a despeito
69
dos relatos que ouvira em Portugal, culminando por trabalhar em um cafezal, no
interior do Estado de São Paulo. A segunda seqüência (do capítulo XII ao XV)
localiza-se na fazenda Santa Efigênia e retrata a vida difícil tanto de imigrantes
quanto de brasileiros. Na terceira seqüência, (do início da Segunda-Parte” até o
capítulo V) a protagonista vai à capital, São Paulo, trabalhar em um armazém, e lá
encontra a mesma desventura. Neste momento, trava contato com outro imigrante,
movido pela mesma ilusão de enriquecimento, e outras personagens de vida
atribulada, que intentam uma revolução, na sede de melhorar de vida. Alienado,
Manuel da Bouça pouco compreende da revolução que se esboça e, por isso, não
assume postura efetiva diante dos fatos. Embarcando em Santos, regressa a
Portugal. A terceira macro-seqüência (entre o capítulo VI da “Segunda Parte” e o
capítulo VIII) desenvolve ação em Portugal, e mostra que Manuel da Bouça, após ter
perdido tudo o que tinha, não possuía nem mesmo espaço em sua aldeia.
Envergonhado, mente, como se tivesse conquistado sucesso em sua trajetória rumo
ao Brasil, quando, em contraste irônico, o único que realmente havia enriquecido era
o Nunes, que lhe arrumara o passaporte e a vinda ao Brasil, enriquecido com o
dinheiro de uma leva de portugueses iludidos. Manuel da Bouça vai fazer vida em
Lisboa, agora muito mais humanizado e cosmopolita do que quando partira ao
Brasil.
Como apontado, apesar de Emigrantes e A Selva possuírem personagens
individualizadas, estas representam outras personagens e espaços dimensionais,
conforme atestam o título dos mesmos romances. No entorno de Alberto aparece a
grande personagem do romance, antropomorfizada, muitas vezes, a saber, a própria
floresta, da qual faz parte o grupo humano que dela depende, vivendo uma luta
inglória em prol da sobrevivência e em busca de riquezas. Em inúmeros momentos
da obra, a selva encontra-se animizada, dotada de um poder de agressão
comparado ao das feras que nela habitam, e, mesmo que antropomorfizada, como
uma força oculta que combate o avanço dos seringueiros:
Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e
tirânica! tirânica! [...] Ali não existia mesmo a árvore. Existia o
emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras
de fera esfomeada. Estava de sentinela, silencioso, encapotado, a
vedar-lhe todos os passos, a fechar-lhe todos os caminhos, a
70
subjugá-lo no cativeiro. Era a grande muralha verde e era a guarda
avançada dos arbustos que vinham crescer em redor da cacimba e,
degolados pelo terçado de Firmino, brotavam de novo, numa teima
absurda e alucinante. A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe
abrissem e descansaria quando a fechasse novamente,
transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinqüenta,
não importava quantos anos mas um dia! [...] A ameaça andava no
ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia,
porque ali somente a selva tinha vontade e imperava
despoticamente. Os homens eram títeres manejados por aquela
força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencida com a sua
atividade, o seu sacrifício e a sua ambição. (FERREIRA DE
CASTRO, 1972, p.158).
Enquanto A Selva constitui-se romance de espaço, conforme a classificação
de Wolfgang Kayser (1976, p. 339-406), cabendo a Alberto, devido à sua maior
percepção de mundo, reagir face ao mistério e à detração humana em um território
quase inóspito, Emigrantes traduz a trajetória ultramarina frente ao desconhecido,
no intento de revelar um Outro que se constitui arquétipo do próprio Eu que
imageticamente o constrói. Em ambos ocorre a percepção da dimensão humana,
pois tanto Alberto quanto Manuel da Bouça, embora não tenham monetariamente
enriquecido, ganham em compreensão humanística e em aceitação das diferenças
culturais e sociais existentes entre os povos.
Conforme aponta o estudioso Joel Serrão, entre 1880 e 1960, o Brasil
recebeu 75,7% da imigração portuguesa (SERRÃO, 1982, p. 46). Em outro quadro,
Serrão apresenta o número de repatriados em estado de indigência. Entre 1919 e
1930, do Brasil regressam 9.956 indigentes, num total de 10.496 que se
encontravam distribuídos no Brasil, nos Estados Unidos, na Espanha e na França.
Malgrado esses dados, o Brasil continuava a ser visto como um possível
Eldorado, paraíso de infinitas possibilidades, não por portugueses como por
diversos outros imigrantes, que tinham nas promessas de enriquecimento além-mar,
o sustentáculo de sonhos que o podiam ser concretizados na terra natal, num
momento em que a Europa vivia sob terrível crise econômica.
Se os países assolados pelas crises do capitalismo revelavam a dureza desse
sistema para com seus habitantes e poderiam, assim, tornarem-se exemplos típicos
de uma análise anti-capitalista, a obra de Ferreira de Castro, ao focalizar essas
mesmas regiões, debatendo-se com os mesmos problemas ali existentes, não
71
detecta duramente, com olhar científico, a situação, como categoria a ser analisada
por um crítica anti-capitalista, mas, mediante um direcionamento humanístico, de
interesse pelo homem, inserido nesta condição, construtor desse sistema e
destruído pelo mesmo sistema que constrói. O que soçobra, enfim, é o sentimento
humano diante de toda essa hecatombe, trasladado do amor para o ódio e do ódio
para a compreensão do outro, e não o retrato do capitalismo e de sua selvageria,
capaz de surpreender, em análise, o mais imediato dos atributos afetados, qual seja,
a desigualdade social. O que ultrapassa o limite analítico da desigualdade social é
de interesse, não mais da ciência, e, sim, da literatura, pois é matéria
eminentemente humana.
72
CAPÍTULO 2
Contribuições imagológicas para a compreensão da práxis artística
de Ferreira de Castro na construção de heteroimagens literárias
brasileiras.
2.1. Ferreira de Castro: um português em busca de um Brasil desconhecido
dos brasileiros.
Ferreira de Castro, nascido em Salgueiro (Ossela), município de Oliveira de
Azeméis, em Portugal, no dia 24 de maio de 1898, chegou ao Brasil, pela primeira
vez, em 7 de janeiro de 1911, portanto, quando tinha onze anos de idade.
Desembarcou no Pará, às margens do rio Madeira, após um ato heróico:
abandonara Portugal por conta de um amor o correspondido e pela pobreza da
família. Tomando um vapor, viajara rumo ao Brasil.
Para o jovem de onze anos, talvez o Brasil fosse um país inteiramente
desconhecido, a não ser, provavelmente, pelos relatos difusos que circulavam na
cultura portuguesa, devido à relação metrópole/colônia que se estabelecera entre os
dois países desde 1500 até 1822, quando o Brasil conquistara sua independência
em relação a Portugal.
73
A luta de Ferreira de Castro tomou duas vias. Por um lado contra os
preconceitos que se prenderam ao discurso histórico que irmanava Brasil e Portugal,
quase sempre em uma esfera de dualidade, mediante a qual o Brasil surgia como
uma mistura de Inferno e Paraíso. Acredita-se, pois, em nossa hipótese, que o
escritor, por intermédio de um trabalho estético evidente, ultrapassou as fronteiras
do discurso do preconceito para conceber um Brasil mais complexo, que não podia
se limitar à estreita visão de Inferno ou Paraíso terreal. A partir daí, por outro lado,
assume a defesa dos desvalidos, que à época chegavam à Amazônia, a maioria
advinda do Nordeste brasileiro em seca, mediante uma obra que, em sua totalidade,
liga-se diretamente aos detratados.
Ainda no Brasil, em 1916 escreve duas obras, Criminoso por Ambição e
Alma Lusitana que, por estarem demasiado vinculadas à sua biografia, retira-as,
mais tarde, do conjunto de suas Obras Completas. Em 1919 retorna a Portugal,
radicando-se em Lisboa, onde dedica-se ao jornalismo e à escrita de outras obras
que tamm retira de suas Obras Completas, bem como à preparação de
Emigrantes e A Selva. Afirmara, muitas vezes, que, para produzir A Selva,
necessitava de um distanciamento histórico de sua trajetória no Brasil a fim de que
pudesse retratar artisticamente a vida nos seringais, sem o perigo de cair no
biografismo. A concepção que tinha do que muitos denominam “naturalismo” em sua
produção estética, parece decorrer muito mais do afastamento de sua biografia em
prol da aproximação da vida coletiva na Amazônia brasileira, quando retrata o
substrato social dos trabalhadores mal–remunerados e desumanizados nos
seringais paraenses.
Em 1959, retorna ao Brasil, visitando, sobretudo, o Rio de Janeiro e São
Paulo, acompanhado do amigo brasileiro Jorge Amado. Em 1968 retoma o cenário
brasileiro na obra O Instinto Supremo. A última e breve visita que faz ao Brasil se
em 1971, três anos antes de falecer em Portugal, por conta de um acidente
vascular.
Interiormente, Ferreira de Castro se considerava também um brasileiro. Em
verdade, valendo-se do termo adotado por Vítor Martins, o escritor de Ossela seria
muito mais que um brasileiro ou um português, vinculado a uma pátria fixa, mas um
“apátrida universalista”, que, humanitariamente, intentava afastar-se dos
preconceitos para irmanar-se com outros povos.
74
2.2. A Imagologia como contribuição analítica à produção estética de um autor
incompreendido.
Os estudos relativos às imagens constituem uma orientação recente no
campo da Comparatística, muito embora Rousseau houvesse, durante o
Romantismo, tocado em questões referentes ao olhar do estrangeiro sobre outras
nações, ao relatar ao marechal de Luxemburgo as impressões que tivera da Suíça,
e, em especial de Neuchâtel, quando lá esteve presente.
Data, porém, de 1930 a primeira tese acerca dessa preocupação
metodológica. Trata-se de La Grande-Bretagne devant l’opinion française au XVII
siècle, de Georgees Ascoli. Não obstante, foi com Jean Marie-Carré que esses
estudos adquirem o impulso pretendido, até alcançar a feição que possuem hoje,
com as contribuições da Imagologia Comparada, propostas pelas investigações
imagológicas do belga Hugo Dyserink.
A imagem, enquanto objeto de estudo, é uma representação, individual ou
coletiva, à qual se anexam elementos de ordem variada, intelectuais e afetivos,
objetivos e subjetivos. De acordo com Brunel, Pichois e Rousseau em Que é
Literatura Comparada:
Nenhum estrangeiro jamais um país como os autóctones
gostariam que fosse visto. Isto quer dizer que os elementos afetivos
vencem os elementos objetivos. “Os erros se transmitem mais
depressa, e melhor, que as verdades”, assim, com raras exceções,
“a história comparada daquilo que se toma por idéias” não é “senão a
da marcha dos mitos” tiemble, L’Orient philosophique) Ora, “Não
se um país onde esteja encarnado um mito no qual se crê, tanto
quanto não se uma mulher que se ama” (Malraux, Le Noyers
d’Altemburg). Que se ama ou que se odeia.” (1995, p. 53).
Desse modo, as imagens correspondem a mitos e miragens. As miragens
significam a atração que temos diante das coisas ou situações que despertam em
cada indivíduo as mais diferentes atitudes. Essas atitudes independem do controle
75
da razão, haja vista que os atrativos são projeções oníricas ou desejos manifestos.
Um estudo direcionado para a constituição ideológica das imagens–mitos ou
imagens-miragens deve estar atento para a conformação ideológica aderida a elas,
acercando-se da sua origem e relevância no corpo do texto, não com o intuito de
divisar “verdades ou “mentiras”, visto que se trata de um estudo literário, mas,
facilitar a compreensão cabal do texto.
Até alcançar essas diretrizes, os estudos relativos às imagens que os países
constroem uns dos outros na literatura passaram por uma evolução característica,
edificando a face que possuem hoje, por intermédio dos estudos imagológicos. A
seguir, procederemos a esse panorama histórico dos estudos das imagens dos
povos, iniciando pelas contribuições teóricas de Jean Marie-Carré e Marius François
Guyard.
2.3. Fase Imagotípica: Jean-Marie Carré e Marius François Guyard.
Fischer (1981) dedica-se, com grande ênfase, a estabelecer os inícios
históricos da sedimentação dos estudos imagotípicos, a fim de compreender a
Imagologia como um conjunto de estudos delimitado temporalmente. Um dos
primeiros estudiosos das imagens de países e povos estrangeiros é o comparatista
francês Jean Marie Carré. Carré elevou os estudos imagológicos a uma categoria
autônoma, dentro dos estudos comparatísticos, destituindo-os de determinados
nexos com os estudos das influências. Ao prefaciar a obra de seu discípulo, Marius-
François Guyard (1956), Carré afirma que a preocupação dos estudos dedicados às
imagens de outros países e povos reside na necessidade de se buscar compreender
o modo como um povo vê o outro, facilitando, desse modo, não somente as relações
internacionais, mas, sobretudo, as relações humanas.
Carré, em suas obras dedicadas ao modo como os franceses viam e refletiam
sobre os estrangeiros e vice-versa, chega a algumas conclusões significativas no
tocante à discriminação dos tipos de escritores que se dedicam a explorar as
imagens de outras culturas. Em seu ensaio Voyageurs et écrivains français en
76
Égypte (1956), o comparatista francês postula que alguns escritores escrevem
sobre o que vivenciaram diretamente, outros sobre aquilo que ouviram de pessoas
que vivenciaram interinamente e, por fim, aqueles que escreveram sem a mediação
de vivências diretas ou indiretas, auxiliados tão somente pelo sabor de sua fantasia.
Carré, no entanto, incorre num grande equívoco, materializado na desvalorização
das descrições literárias pautadas pela criatividade e fantasia, uma vez que estas
não se encontram aderidas a dados que podem ser empiricamente comprovados.
Nesse sentido, a Carré importará, essencialmente, obras de cunho não–literário, tais
como relatos de viagens, guias turísticos, jornais, memórias, cartas e declarações
públicas.
Percebe-se, dessa forma, a preocupação do estudioso francês em elevar os
estudos comparatísticos a uma esfera marcada pela cientificidade. Nesse sentido,
bastante próxima aos estudos lingüísticos desenvolvidos pelos estruturalistas,
ávidos em buscar elementos capazes de inserir seus trabalhos no mesmo plano das
ciências exatas. Carré está ciente, porém, da relatividade das interpretações
conferidas aos países e povos, balizadas sempre pelo momento histórico-social e
cultural em que as obras são produzidas.
Em outros termos, parece-nos bastante clara a vinculação de Carré aos
estudos etnopsicológicos, isto é, estudos pautados pela detecção de um caráter
nacional unívoco, apto a determinar as diferenças psicológicas dos mais diferentes
povos. Para Carré, por exemplo, os Estados Unidos constituem um país imperialista,
em sua essência, marcado por um objetivo único: o ideal de crescimento e pujança
frente a outros povos, tal como corroborado pelo escritor norte-americano
Longfellow, em sua Excelsior (1973), na qual, após vivenciar inúmeros conflitos e
dissabores, o alpinista-alter-ego de todos os americanos chega ao topo de uma
grande montanha e exclama “Excelsior”. Por sua vez, em relação aos povos
germânicos, Carré acaba resvalando para um anti-hitlerismo e, posteriormente, para
um anti-germanismo, observando apenas características generalizadas de tais
povos, mormente consubstanciadas pelo caráter bélico e violento.
Marius-François-Guyard, discípulo de Carré, em sua obra Literatura
Comparada (1956) avança um pouco mais nos estudos comparatísticos, de origem
imagotípica, uma vez que sua atenção encontra-se voltada, sobremaneira, para o
estabelecimento das evoluções processadas nas interpretações de povos
estrangeiros, observados em sua manifestação literária. No entanto, a fim de atingir
77
seu objetivo axial, o comparatista deveria, segundo Guyard, nortear-se pelo exame
etnopsicológico dos povos, conforme já apregoado por Carré.
Finalmente, pode-se afirmar que tanto Car quanto Guyard notabilizaram-se
por renovar a literatura comparada, conferindo espaço aos estudos das imagens de
povos e países estrangeiros, contudo, ainda faltou-lhes uma preocupação maior com
aspectos teóricos próprios do contexto literário, uma vez que seus postulados
encontravam-se fortemente aderidos ao estudo da psicologia dos povos.
2.4. René-Wellek: uma postura adversa.
René-Wellek, maior representante do New Criticism, escola norte-americana
de literatura comparada, notabilizou-se pelo desprezo a todas as posturas contrárias
à análise imanente do texto. Em virtude da ampla preocupação com a análise
imanente das obras, os estudos preocupados em analisá-las em outros contextos
foram amplamente rechaçados pela Escola Norte-Americana de Literatura
Comparada. Deste modo, no II Congresso Internacional de Literatura Comparada,
realizado em 1958 na cidade de Chapel Hill, Wellek afirmou que as análises
literárias que se voltavam para as ‘images’ e mirages’ não se enquadravam no
campo da ciência literária, visto que não se atinham ao fato estético em si, mas a
aspectos eminentemente extra-literários.
Nesse sentido, Wellek (1971) desconsidera os empreendimentos teóricos
promovidos por Carré e Guyard, uma vez que, segundo ele, faltava-lhes uma
vinculação ao âmbito estético-literário. A finalidade de tais estudos encontra-se,
dessa maneira, presa ao contexto psico-social, devendo ser banida dos estudos de
cunho comparatístico.
78
2.5. Hugo Dyserink e a Imagologia hoje.
Em seu artigo “A questão da imagologia hoje”, Celeste H.M. Ribeiro de Sousa
(1996, p. 293) afirma que a Imagologia é uma área relativa à Literatura Comparada
que se presta ao estudo precípuo das imagens de países e povos que são criadas e
veiculadas pela literatura. Em outros termos, pode-se afirmar que a Imagologia é a
área de estudo das imagens de países e povos, por meio da qual torna-se possível o
exame da literatura.
O termo alemão “Imagologie”, traduzido em português como Imagologia, foi
utilizado pela primeira vez pelo comparatista Hugo Dyserink, em 1966, mesmo ano
em que o estudioso publicava o artigo “Zum Problem der ‘images’ und ‘mirages’ und
ihrer Untersuchung im Rahmen der Vergleichenden Literaturforschung (DYSERINK,
1996, p. 107-120). Neste artigo, Dyrink salienta a importância de um estudo voltado
para as imagens de países e povos de culturas diversas, em algumas obras
(RIBEIRO, 1996, p. 293).
Inicialmente, Dyserink considera, sob a perspectiva histórica, que os estudos
direcionados para uma pesquisa imagolológica tinham sido efetuados por vários
representantes da Escola Francesa de Literatura Comparada, logo após a Segunda
Guerra Mundial. Dessa forma, retomando Dyserink e os estudos imagológicos após
a Segunda Guerra Mundial, Rogério Silva Assis (2000), em sua Dissertação de
Mestrado acerca das imagens na dramaturgia alemã e em especial nas obras do
dramaturgo suíço Friedrich Dürrematt, intitulada Friedrich Dürrematt: Imagens da
Suíça, do estrangeiro e do Brasil, revela que:
[...] em um período no qual os contatos entre os povos se
caracterizavam por uma reavaliação profunda e inevitável, os
estudos que se preocupavam com o melhor entendimento mútuo
entre as diversas nações adquiriram um significado jamais visto
antes na história da literatura. (SILVA ASSIS, 2000, p. 08).
Aceitando o fato de que a Imagologia, como área de pesquisa, encontra-se
conseqüentemente inserida na Literatura Comparada, de acordo com Manfred
Fischer em Nationale Images als Gegenstand Vergleichender Literaturgeschite
79
(FISCHER, 1981, p. 17), torna-se possível o vislumbre de três momentos
processuais no que tange ao interesse analítico das imagens do estrangeiro
veiculadas na literatura. O primeiro momento estender-se-ia do Romantismo à
Segunda Guerra Mundial, fase em que os estudos imagológicos preocupam-se com
questões referentes à psicologia e à etnopsicologia dos povos, apresentando
resultados que se limitam, no caso da literatura, a retratos documentais do
estrangeiro, no que concerne aos seus tipos e ações. Procedendo a uma análise
estanque das imagens fora de seus contextos, esta fase acaba por criar uma série
de generalizações, na tentativa de evidenciar valores antropogicos e etnológicos
nas imagens encontradas, acreditando na existência de uma psicologia diferente
para cada povo, procurando provar esta tese por meio do texto literário.
No campo dos estudos comparados, empreendidos pela Imagologia, as
noções de auto e heteroimagens são valiosas, na proporção em que permitem,
respectivamente, a concepção do Eu sobre si mesmo e sobre o Outro, numa
espécie de relação especular. Assim, o Eu estaria necessariamente inserido no
Outro, de modo que o Outro poderia ser compreendido quando este tivesse em
conta as potencialidades do Eu. O Eu cria imagens sobre si mesmo
(autoimagens) na medida em que, explícita ou implicitamente, seu arquétipo seja o
Outro. Da mesma maneira, o Outro sempre é concebido pelo Eu a partir de
conceitos que se mostram arraigados em si, devido à amplitude das tradições que o
Eu carrega consigo.
Quando a noção que o Eu tem do Outro é incompleta, baseada em arquétipos
já ultrapassados, as heteroimagens tornam-se, na nomenclatura da imagológica,
imagotipos, construções discursivas presentes nos textos literários que se
concretizam em idéias carregadas de “pré-conceitos”, devido à cristalização
imagética que provocam.
O estudioso belga, Hugo Dyserink, ao escrever acerca do funcionamento das
imagens, no campo teórico-metodológico da Imagologia, após retomar a importância
desse assunto dentro dos limites dos estudos interculturais, em 1966, salienta que
[...] a Imagologia não faz parte de nenhum pensamento ideológico,
mas é, sim, uma contribuição à desideologização. Pretende-se, a
partir da análise das imagens, chegar ao modo como funcionam o
pensamento e as estruturas. Assim, ela participa da destruição dos
estereótipos/imagotipos, ao mesmo tempo em que ajuda a dar conta
80
da influência, do poder e da manipulação de correntes ideológicas e
políticas na formação de um país (DYSERINK, 1996, p. 43
tradução de Rogério Silva Assis).
A percepção que o Eu tem do Outro, não raro, é movediça e discursivamente
flutuante, dadas as mudanças de interesse, de ordem política, econômica e cultural,
presentes no cerne das inter-relações entre o Eu e o Outro. Não obstante, essa
percepção pode se revelar de modo cristalizado em manifestações lingüísticas
menos suscetíveis de mudanças quotidianas, como nos provérbios, nos sintagmas
fixos, nos epítetos, em termos dicionarizados, assim como em textos literários,
portadores do espírito ou da essência de uma época.
Acompanhando o pensamento de Tzvetan Todorov (1970), afirma ele que
alguns textos literários, com profundos vincos ideológicos, atingem grande sucesso
de público e ascendem ao estatuto de modelo estético, fato que implica na
multiplicação aritmética de um discurso que poderia, igualmente, dar seu
testemunho sobre o processo de autentificação, diante de um imaginário coletivo,
das imagens apresentadas nas páginas de ficção. Tal fato, na assertiva do referido
autor, implica na necessidade de desconstrução ideológica, no intuito de trazer à
baila as discussões sobre supostos imagotipos contidos nos textos disseminados:
Passar por um discurso para aceder ao mundo é, talvez, um
desvio de percurso; mas esse desvio também conduz ao
destino desejado [...] Os discursos são, também eles, evento,
são motores da história, e não apenas representações (...) As
idéias não fazem, sozinhas e por si só, a História, pois as
forças sociais e econômicas também atuam; mas, da mesma
forma, as idéias não são um puro efeito passivo. Inicialmente,
elas tornam os atos possíveis; em seguida, elas permitem
torná-los aceitáveis e aceites: eis aí, ao final das contas, atos
decisivos. (TODOROV, 1970, p. 13).
Brasil e Portugal sempre estiveram às voltas com um ideário (atos possíveis)
repleto de ideologias fundamente marcadas, muitas delas carregadas de
preconceitos, tornados imagotipos em textos literários, dado o processo de
colonização (atos decisivos, na compreensão de Todorov) que manteve, durante
81
mais de duzentos anos, uma relação de interdependência entre as duas nações,
fosse ela econômica, política ou mesmo artístico-literária.
A análise da obra literária de Ferreira de Castro torna-se exemplo fidedigno
de que a noção mais acertada do Outro pode produzir um estado de compreensão e
aceitação mútuas, quebrando preconceitos (imagotipos) que poderiam ter-se
arraigados na relação que Brasil e Portugal estabeleceram durante toda a trajetória
de colonização.
As produções artísticas de Ferreira de Castro, ao contrário de manter um
discurso rígido sobre o Outro, têm o intuito de expressar manifestações de
condolência para com os menos favorecidos dentro da sociedade,
independentemente de onde estes indivíduos (o Outro, em questão), se
localizassem. As sociedades vislumbradas pelo escritor português, neste sentido,
poderiam ser quaisquer umas, desde que oferecessem subsídios representativos
para a trajetória do homem sob a face do planeta. É uma produção literária que,
portanto, almeja a universalidade, em detrimento da assunção incondicional da
marca característica de um período delimitado da História.
O momento histórico, em Ferreira de Castro, funcionaria, pois, como pano de
fundo para que o Eu pudesse compreender o Outro, na medida em que,
especularmente, o próprio escritor, devido às suas experiências vividas no Brasil,
materializa-se discursivamente em seus romances, como alter-ego, embutido na
figura do português curioso e desbravador, ao passo que tamm se transforma no
Outro, visto que, humanamente, não haveria diferença entre ambos. As
heteroimagens, igualmente se transformariam, no decurso narrativo, em
autoimagens. É o que se no romance A Selva, em que a personagem do
português Alberto, inicialmente, bate de frente contra a cultura dos homens da
Amazônia, aos quais, mais tarde, i defender astutamente, por reconhecer-se igual
a eles. O mesmo vale para Manuel da Bouça, que, em Emigrantes, estando em
Portugal, vivendo a duras penas, enxerga no Brasil, imbuído dos relatos de amigos,
uma espécie de Eldorado”, capaz de sustentar a luta contra a imposição espiritual
de deixar a terra natal, a mulher e a filha e buscar melhores condições de vida, em
outra parte do Atlântico.
Ao contrário do que imaginava a personagem de Emigrantes, o Brasil não
era o Eldorado” e não ostentava igualdade social para brasileiros e imigrantes,
senão uma espécie de socialização da pobreza, latente nos relatos de muitos que
82
para vinham esperançosos. Ao retornar a Portugal, Manuel da Bouça encontra
um país em grande crise econômica, maior do que aquela que anos deixara,
quando, em um vapor, embarcou rumo ao Brasil.
Para o estudioso dos feitos sociais, o desvio sobre o qual fala Todorov, acima
referido, poderá transformar-se em atalho, pois, se considerarmos que transmutar
uma situação em discurso literário equivale a transformá-la em imagens, nota-se,
com Daniel-Henri Pageaux (1994), o célebre comparatista, que toda imagem
procede de uma tomada de consciência, por menor que seja, de um Eu em relação
a um Outro, de um Aqui em relação a um Alhures.
Portanto, não é difícil perceber como, nos momentos em que se defrontou
com o homem em seus instintos mais superlativos, Ferreira de Castro, como
construtor de romances portadores das relações interculturais entre Portugal e
Brasil, valeu-se de locais que pudessem, tamm, ampliar o sentido desse drama,
que, muito mais do que pontual, conforme já salientado, torna-se humano e
universal.
Além de manter-se afastado de construções ideológicas vincadas de
imagotipos, Ferreira de Castro demonstrou uma profunda compreensão das
diferenças sociais e da necessidade primordial de compreender o Outro tudo,
mediante um compromisso com a práxis literária e não com qualquer espécie de
discurso político, partidariamente vinculado. Isso o diferencia, literariamente, de seus
contemporâneos brasileiros, como José Américo de Almeida, cuja obra se sacraliza
como libelo político profuso (para não se afirmar confuso) e de pouca projeção
literária e Jorge Amado, que, não obstante a amizade direta com Ferreira de Castro
e o reconhecimento literário, de qualidade inexorável (cada vez mais lobrigado pela
crítica brasileira moderna), era um marxista apaixonado, tanto pelas idéias do
movimento que seguira durante muito tempo, quanto pelas paragens do nordeste
brasileiro, sobretudo ao dar ênfase, em seus romances, aos costumes mais
tendenciosamente identificadores dessa região do Brasil, ou, em outros termos,
imagotípicos. Nesta efervescência de paixões difusas e paradoxalmente
complementares, Jorge Amado deixou vazar, na filigrana da letra, a abrangência das
idéias que gestara em sua trajetória política engajada. Isso o põe de lado em relação
às ambições do amigo português.
Ferreira de Castro diferencia-se, também, de seu contemporâneo com quem
é mais diretamente identificado pelos manualistas da literatura portuguesa, Alves
83
Redol - visto, muitas vezes, como caudatário do escritor de A Selva - e precursor do
movimento liderado pelo autor de Gaibéus, o Neo-Realismo. Para Redol, a relação
direta com o que se tornaria produto de sua escrita era fundamental, de forma que,
não raro, conhecer os trabalhadores do eito e ter em vista diretamente a maneira
como exerciam sua jornada laboriosa, suas relações patronais, o cultivo e a colheita
que faziam, eram muito mais importantes para a fidelidade de sua obra do que
propriamente o labor literário que poderia dar forma artística ao que vira. Tal atitude
foi realmente tomada por Redol ao planear o libelo mais importante e conhecido de
sua produção, a saber, Gaibéus, a exemplo do que fizera o naturalista francês do
século XIX, Émile Zola, seu influenciador, que também visitou minas de carvão no
sul da França e conviveu com trabalhadores, a fim de obter estofo para compor
Germinal, em 1881.
A biografia de Ferreira de Castro revela que, quando esteve no Brasil,
manteve-se por imposição, e não por preocupação jornalística ou científica,
diferentemente de Redol e Zola, respectivamente, mas para sobreviver, trabalhando
verdadeiramente nos seringais paraenses, participando não dos irrisórios salários
recebidos, como tamm do quotidiano de seringueiros, de homens comuns era
como um deles e necessitava, para sobreviver, ser como um deles. Retomando o
processo de construção de Terra Fria, a visita do escritor ao Barroso forneceu
subsídios literários para sua trajetória estilística, o se deixando macular por uma
vertente naturalista desumanizadora, a partir do que pontualmente observava na
geografia da região e nas relações de trabalho.
Na esteira desta perspectiva acerca de Ferreira de Castro, nota-se que os
romances tidos comumente como de ‘cenário brasileiro’ o, em verdade, por um
prisma imagético, romances de personagem, tanto que, com freqüência, como em
Emigrantes, Manuel da Bouça vê-se inteira e intensamente envolvido pela troca de
espaços, o português e o brasileiro, e vice-versa, ambos dificultosos à conquista de
uma vida digna. Em A Selva, o espaço florestal, ao cercar o homem que por ali
tramita, com sua exuberância ameaçadora, transforma-se, aos poucos, em
personagem fulcral do romance, galvanizador de elementos humanos para sua
constituição e sobrevivência contra a devastação também ameaçadora das
empresas seringalistas. O mesmo volta a ocorrer em Instinto Supremo, no qual a
ânsia de penetração da floresta ameaçadora para catalogar os índios brasileiros, as
personagens históricas do Marechal ndido Rondon e Curt Niemuendaju
84
enfrentam as imeras artimanhas de um espaço carregado de elementos humanos,
o qual, malgrado a beleza e intensidade sempre revelada acerca dos mesmos, pelo
narrador, sobressaem como ameaçadores.
Cabe, pois, como escólio, um reporte a Donaldo Schüler (2000), no que
concerne à relação abrangente entre personagem e suas múltiplas facetas:
Personagem: papel representado na ficção por pessoas, fenômenos
da natureza, deuses, animais ou qualquer outro elemento capaz de
gerar ação ou de sofrê-la. Até a linguagem como acontece no
romance contemporâneo pode assumir caráter de personagem.
Geralmente identificadas por nomes próprios, as personagens
podem ser designadas por pronomes, referências vagas, símbolos,
iniciais. As personagens podem apresentar qualidades típicas e fixas
ou podem mostrar-se ambíguas e sofrer alterações profundas no
transcorrer da narrativa a ponto de fugir a toda tentativa de
caracterização. (SCHÜLER, 2000, p. 83).
Isso, de modo algum, reduz a importância do espaço como elemento narrativo
basilar, mas, ao contrário, confere-lhe características de importância vital, como
“elemento capaz de gerar ação ou de sofrê-la”, podendo, assim, ao fim e ao cabo,
como salienta Schüler, em torno das personagens, ser designado até mesmo por
mbolos, como ocorre, finalmente, nos romances de Ferreira de Castro de cenário
brasileiro. Porventura, tal abrangência simbólica, conferida ao espaço, tenha levado
à fácil identificação de sua produção literária como marca fundamental de
prelibações políticas, ainda mais quando, tal espaço simbólico, construído em seus
romances, tornado personagem, atingia mordazmente o homem em sua odisséia
pela sobrevivência no auge da luta ideológica entre capitalistas e marxistas. Esses
últimos, não raras vezes, viam o espaço de trabalho capitalista como agente
transformador da mentalidade humana, alienador, em sua essência, símbolo de
desumanização.
Para a crítica literária, a importância estética do espaço recai em
características mais profundas, além da base elementar da mera prelibação
ideologicamente marcada. Para o especialista na questão do espaço no romance,
Antonio Dimas, (1984), há, no mínimo, três maneiras distintas de vislumbrá-lo na
narrativa:
85
Entre as várias armadilhas virtuais de um texto, o espaço pode
alcançar estatuto tão importante quanto outros componentes da
narrativa, tais como foco narrativo, personagem, tempo, estrutura,
etc. É bem verdade que, reconheçamos logo, em certas narrações
esse componente pode estar severamente diluído e, por esse motivo,
sua importância torna-se secundária. Em outras, ao contrário, ele
poderá ser prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação,
quando não determinante. Uma terceira hipótese ainda, esta bem
mais fascinante! É a de ir-se descobrindo-lhe a funcionalidade e
organicidade gradativamente, uma vez que o escritor soube
dissimulá-lo tão bem a ponto de harmonizar-se com os demais
elementos narrativos [...]. (p. 05)
Essa visão dialoga diretamente com a de Donaldo Schüler, de modo que,
num trabalho esteticamente marcado, o espaço, independentemente de se humano
ou não, possui “funcionalidade” e “organicidade”, na medida em que pode
transformar e ir transformando a própria narrativa em organização estética.
Complementarmente, Roland Bourneuf (1976), assevera que essas características
vitais do espaço, quais sejam, de possuir poder imagético ou simbólico, como diz
Schüler, ou capacidade organizadora e funcional no romance, existem tanto em
romances cujos espaços são unificados, ou, em outros termos, em que a ação
ocorre em um único lugar, temporalmente marcado mediante o tripé clássico de
unidade de tempo, espaço e ação, quanto naqueles romances em que o espaço é
mais abrangente, seja pela imagética advinda da composição a que se sujeita, no
trabalho do narrador, seja em sua íntima relação com os deslocamentos de
personagens em espaços diversos:
Se procurarmos a freqüência, o ritmo, a ordem e sobretudo a razão
das mudanças de lugares num romance, descobrimos a que ponto
eles são importantes para assegurar à narrativa simultaneamente a
sua unidade e o seu movimento, e quanto o espaço é solidário dos
outros elementos constitutivos. (apud. SCHÜLER, 2000, p. 08).
Pode-se compreender as expressões de Beurneuf (apud. SCHÜLER, 2000, p.
08.) reputadas ao espaço, como fatores para assegurar a “funcionalidade” e a
“organicidade” narrativas, conforme asseveram as palavras de Antonio Dimas.
Atributo esquecido ou subsidiário às preocupações críticas no passado, em
literatura, o espaço passou a ser visto como elemento fundamental no transcurso de
86
sua evolução, ocorrida a partir do século XIX, mais propriamente com Balzac, na
medida em que era elemento trabalhado de diferentes formas; muitas vezes, não
mais obedecendo à baliza clássica de tempo, espaço e ação, mas se
desmembrando, diluindo-se, transformando-se, até que se consubstanciasse com os
demais elementos narrativos, confundindo-se com eles e desaguando em múltiplas
dimensões aspectuais, das geográficas às de perfis psicológicos, em grandes
autores, preocupados em recriar os meandros inerentes ao circuito fechado da
narrativa.
Nos romances contemporâneos, o espaço adquire uma importância capital,
pois os objetos o descritos em si, independentemente da referência a uma ação
ou a uma atitude da personagem. Para Robbe-Grillet, Jean Ricardou e Nathalie
Sarraute (1965), que têm no espaço um apoio substancial, a descrição do espaço
físico é fundamental, porque os objetos tornam-se os verdadeiros atores de seus
romances, e o criados e organizados pelo próprio movimento da descrição,
independentemente da ligação a uma personagem ou a um acontecimento, pois ao
leitor, conforme nos ensina a estética da recepção, cabe a concatenação dos
elementos dispersos na narrativa ficcional. O espaço, em sua essência, para Matoré
(1962), pode ser visto poeticamente como
[...] mais cil que o tempo às exigências racionais do espírito, é um
fator de inteligibilidade e um apelo ao conceito. É ele que impõe seu
molde às coisas e as realiza, que permite ultrapassar a zona do
sonho e a contemplação das virtualidades; é graças a ele que o
mundo acede à existência e à objetivação. Mais seguro e mais
eficaz, o espaço é suscetível de ser designado por palavras que
podem conjurar e reprimir os poderes misteriosos; enquanto o tempo
é promessa de morte, o espaço é meio vital onde se encarna nossa
atividade. (apud. SCHÜLER, 2000, p. 14)
2.6. O primeiro romance de cenário brasileiro: Emigrantes
12
12
Retomando, a edição de Emigrantes utilizada neste trabalho, salvo outra menção, se a da
Editora Guimarães e Cia., publicada no ano de 1980, com a oferta da Fundação Calouste Gulbenkian
de Lisboa, Portugal, e divulgação, no Brasil, da Fundação Cultural Brasil Portugal, do Rio de
Janeiro.
87
De posse destes elementos acerca do espaço, inerentes à composição
narrativa, pode-se afirmar que a obra Ferreira de Castro, representada pelos
romances transcorridos tanto em espaço brasileiro quanto em espaço português, a
partir de Emigrantes, demonstra a hipótese aventada, segundo a qual Ferreira de
Castro revela-se engajado esteticamente, malgrado as prelibações políticas que lhe
são impropriamente conferidas.
Se isso não bastasse, nas transformações sofridas pelo espaço no romance,
são perceptíveis, nas obras de Ferreira de Castro, tanto a configuração do espaço
como elemento primordial, independente do exotismo residido na tradição européia,
no que tange à visão acerca do espaço americano, quanto o diálogo estabelecido
entre Brasil e Portugal. Esse diálogo é fundamental para a Imagologia, como gestora
do conjunto de métodos que utilizaremos a fim de comprovarmos nossa hipótese,
pois, para os imagólogos, o espaço é elemento primordial na medida em que
encerra imagotipos, promove diálogos entre nações e revela atributos estéticos
fundamentais na obra de um determinado escritor.
Emigrantes é um romance cujo nexo histórico encontra respaldo no interesse
manifestado pelo Brasil, num momento de ascensão do cultivo do café, pelos
imigrantes, que afluíam de diversas partes do mundo.
Como São Paulo revelava-se interessado em efetuar a produção de café no
interior do Estado, proporcionava aos imigrantes seis dias de comida e permanência
em hospedaria, aonde iam os “engajadores”, que lhes ofereciam trabalho nas
fazendas. Muitos conseguiam apoio do governo estadual, iludidos com a promessa
de adquirem grandes lotes de terra que pudessem cultivar. Quando chegavam à
Hospedaria dos Imigrantes percebiam que as promessas douradas se limitavam a
um duro trabalho mal remunerado, angariado por um coronel proprietário que,
mediante um salário mal pago e gastos irrisórios, pretendia enriquecer às custas do
duro trabalho dos imigrantes. Não o alimento lhes era vendido sob crédito, como
também as próprias ferramentas que utilizariam no cultivo do café. Como tudo era
vendido ao dobro do valor, não conseguiam saldar nem mesmo a dívida que
contraíam junto ao patrão e tampouco economizar para a ascensão almejada.
Emigrantes é obra composta, como anteriormente informado, por um
percurso transatlântico, organizado em três macro-seqüências, determinadas pelos
88
espaços percorridos pela personagem protagonista, quais sejam, Portugal- Brasil-
Portugal. A parte introdutória, sintonizada entre o capítulo I e o capítulo IX,
apresenta as experiências na região de Oliveira de Azeméis, aonde Manuel da
Bouça vai tratar da documentação; segue-se a sua passagem por Lisboa e a viagem
na terceira classe do navio Darro”, bem como os primeiros contatos estabelecidos
com a paisagem brasileira, quando da entrada na baía da Guanabara e do passeio
por algumas ruas do Rio de Janeiro.
Nesta parte, localizam-se as expectativas de Manuel da Bouça de enriquecer
em terra promissora, ao se preparar para refazer a trajetória dos portugueses do
século XVI, rumo ao Brasil, a partir de 1530. Ademais, a nostalgia ou sofrimento por
deixar a pátria é imagem recorrente na Literatura Portuguesa, estando arraigada à
obra de escritores de renome, de épocas tão distantes, como Camões e Fernando
Pessoa, por exemplo. A preparação de Manuel da Bouça para a partida ao Brasil
retoma, certamente, a despedida dos portugueses da esquadra de Vasco da Gama
da praia do Restelo rumo a Calecute, como descreve o Canto V de Os Lusíadas e
se mostra, em Emigrantes, como profundamente necessária e arraigada ao espírito
do português:
Em todas as aldeias próximas, em todas as freguesias das
redondezas, havia o mesmo anseio de emigrar, de ir em busca de
riqueza a continentes longínquos. Era um sonho denso, uma
ambição profunda que cavava nas almas, desde a infância à velhice.
O oiro do Brasil fazia parte da tradição e tinha o prestígio duma lenda
entre os espíritos rudes e simples. Viam-no reflorir nas igrejas, nos
palacetes, nas escolas, nas pontes e nas estradas novas que os
homens enriquecidos na outra margem do Atlântico mandavam
executar. Viam-no erguer-se, refulgente, ofuscante, em moedas do
tamanho do sol ao fundir-se na linha do horizonte, precisamente para
os lados onde devia ficar o país maravilhoso. E nenhuma esperança
de grande prosperidade havia que não fosse cimentada com esse
oiro que longe brotava, ininterruptamente. (FERREIRA DE
CASTRO, 1980, p. 32).
Resultado da combinação de idéias herdadas da Grécia antiga, da tradição
judaica e de concepções européias pré-cristãs, integradas a uma concepção
providencialista da História, a noção do Brasil, para os europeus pelo menos para
os “espíritos rudes e simples” - sempre esteve ligada à da terra de inúmeras
89
possibilidades, ao Paraíso terreal, à existência de ouro para o lucro fácil. Justamente
ao fim do Feudalismo, quando a Europa atravessava crises alarmantes, como fome,
guerras e doenças, certamente era a única maneira viável para quem, afeito à
divina e crente nas concepções tradicionais emanadas pela igreja, poderia se
escorar.
Adentrar o mar, enfrentar seus perigos e alcançar as benesses de uma terra
promissora, seria refazer a nobre e corajosa trajetória do navegador português, no
êxtase providencialista da Expansão da Fé e do Império, como se nota em Os
Lusíadas, de Camões, sobretudo no Canto V da epopéia, nas estrofes de 4 a 9, que
remontam a partida dos navegantes da Torre de Belém, e em que o velho, da praia
do Restelo, alter-ego de um Camões descontente com o fim a que levariam as
Grandes Navegações, ressurge com altíssima voz, profetizando acerca do destino
torpe a que levariam os feitos marítimos portugueses. Cabe, pois, aqui, retomar
essas palavras, pois, debaixo das profecias do Velho, encontravam-se aspectos
relevantes sobre a noção que os portugueses possuíam, à época, sobre os outros
povos:
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente ?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Mas, ó tu, gèração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade de ouro , tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome "esfoo e valentia",
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
90
Temeu tanto perdê-la Quem a dá :
Não tens junto contigo o Ismaelita ,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a Lei maldita ,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não é ele por armas esfoado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia ,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho !
Dino da eterna pena do Profundo ,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
O Velho remonta a voz da alteridade, numa crítica à utópica idéia de correção
civilizatória a que se impunham os navegadores portugueses, quando alinham essa
diretriz à Expansão da e do Império. Corrigir povos desconhecidos, na ideologia
do tempo, seria algo necessário e imposto ao espírito superior europeu.
Para a estudiosa Sandra Maria Helena do Sacramento, impregnava-se no
português, pela sua formação judaico-cristã, “os atributos hegemônicos do
etnocentrismo (2005, p.3), de forma que terras que não haviam entrado em contato
e/ou aceitado o cristianismo, caso da África, da Ásia e também do Brasil, quando
recém-descoberto, necessitavam de correção.
Dado histórico de que esta visão infelizmente cristalizou-se no tempo é a
empreitada imperialista, que não foi menos colonialista do que As Grandes
Navegações, e que se estendeu até o fim da Guerra Fria, promovendo, ao invés do
cristianismo dos séculos XV e XVI, o american way of life.
91
Ferreira de Castro surpreende o discurso camoniano sob a égide do Velho da
praia do Restelo e refaz, discursivamente, a tradição portuguesa, ao apresentar o
Brasil, para aqueles de poucas posses, como o último esteio da recuperação dos
bens perdidos, tal como ocorrera com os navegadores do final da Idade Média:
Palavra mágica, o Brasil exercia ali um perene sortilégio e a sua
evocação era motivo de visões esplendorosas, de opulências
deslumbrantes e vidas liberadas. Sujeitos ao ganha-pão diário,
sofrendo existência mesquinha, os lugarejos sonhavam redimir-se,
desde as veigas em flor ao dorso das serranias, pelo oiro
conquistado no país distante. Aquela idéia residia dentro do peito de
cada homem e era gorgulho implacável até nos sentimentos dos
mais agarrados ao terrunho. Vinha dos bisavós, de mais longe
ainda; coisa que se herdava e legava, arrastando-se pela vida fora
como um peso inquietante. Todas as gerações nasciam já com áurea
aspiração, que se fazia incómoda, quando não se realizava.
Acocorava-se no canto da alma, como um talismã, usável em
momentos de desafio à sorte, ou como um bordão, para os instantes
de soluções desesparadas. (1980, p. 32).
Sobre a tradição visionária portuguesa acerca do Brasil, cabe aqui retomar
palavras de Sérgio Buarque de Holanda (1956), para quem, Camões, devido ao alto
tino que manifestava, também se revelava questionador da tradição, ao inserir seus
heróis da epopéia de Os Lusíadas em cenários que se distinguiam das perspectivas
dos mesmos, superando-as, desfigurando-as através do contato com o outro, na
medida em que o herói tamm, gradativamente, se desfigura:
Em Camões, a tinta épica de que se esmaltavam os altos feitos
lusitanos não corresponde tanto a uma aspiração generosa e
ascendente, como a uma retrospecção melancólica de glórias
extintas. Nesse sentido cabe dizer que o poeta contribuiu antes para
desfigurar do que para fixar eternamente a fisionomia moral dos
heróis da expansão ultramarina.
A tradão portuguesa, longe de manifestar-se no puro afã de
glórias e na exaltação grandíloqua das virtudes heróicas, parece
exprimir-se, ao contrário, no discreto uso das mesmas virtudes.
(BUARQUE DE HOLANDA, 1956, p. 159-160).
92
A heteroimagem do Brasil como paraíso terreal parte do itinerário psicológico
dos homens mais simples, de poucos haveres, de pouco conhecimento de mundo, e
vinha sempre acompanhada de superstições, pois ainda não haviam se afastado da
tradição que lhes legaram a religião e os primeiros navegadores - os quais, ao
encontrarem nas navegações uma saída estratégica para o caos que se instaurara
em Portugal, no século XIV, tinham de conviver mutuamente com a vontade de
vencer o incognoscível e com as imposições religiosas, tradicionais, advindas da
religiosidade medieval, povoada de monstros marinhos, naufrágios e outros perigos:
Mas, como todo o encantamento, amedrontava ao mesmo tempo que
atraía. Da época em que as naus levavam meses sem fio na
travessia, vinha ainda uma lufada de terror e superstição esfriar os
ânimos dos mais fortes. Nem eles sabiam bem porquê, mas a
hipótese de irem para o Brasil fazia-se sempre acompanhar dum
estremecimento de perigo. Febres? Naufrágios? Tudo isso e mais a
imaginação a labutar no desconhecido. A tradição sufocava-os, dava-
lhes calafrios, sempre que admitiam a idéia de partir. Era como se
fossem lutar com a morte, até um deles sair vencedor. (FERREIRA
DE CASTRO, 1980, p. 33).
Nos ensaios de Montaigne, encontram-se aspectos de evidente discussão
acerca do discurso hegemônico europeu, mantido durante muito tempo. Quando
desloca o logos fechado do discurso da tradição européia etnocêntrica para o âmbito
das incompletudes, Montaigne chama a atenção para o fato de que as idéias sobre o
Outro nunca são mais completas do que o Outro em si, dada a complexidade
advinda de sua individualidade e de sua vivência sócio-cultural.
Mui acertadamente, Sacramento (2005), salienta que havia, para o europeu
dominador, da era das Grandes Navegações, o imperativo da posse, porque ao real
descoberto, tido como sem-sentido, impunha-se a fantasia para materializá-lo e o
imaginário, para a legitimação da posse. Esse era o paradigma ideológico sobre o
qual se sustentava o logos do discurso mercantilista. Relembrando Eni Orlandi em
Discurso de Fundação (2003):
Todo percurso em busca do Eldorado é uma relação com a loucura,
com a conquista, com o sentido dos sem-sentido. Romper com o
Velho Mundo e instalar o “Novo” a partir “daquilo” que encontravam.
93
Nomes eram dados arbitrariamente, assim como eram arbitrários os
limites que impunham ao acaso para ter um “país” configurado: as
terras da margem esquerda pertencem ao país, as da margem
direita, não. Porque dar sentido é construir limites, é desenvolver
domínios, é descobrir sítios de significância, é tornar possíveis
gestos de interpretação. (ORLANDI, 2003, p. 15).
Se, pois, torna-se evidentemente possível, no início da leitura de Emigrantes,
o vislumbre da personagem Manuel da Bouça como mantenedor da tradição
portuguesa da busca de riquezas em outros espaços, o suposto naturalismo
embutido na práxis dessa obra não se materializa em um ideário científico ou
filosófico já ultrapassado, mas na releitura que tal obra empreende de outras obras
do cânone literário português, como no caso de Os Lusíadas, de Camões. É por
isso que Manuel da Bouça traça paralelo muito mais evidente com os arquetípicos
heróis camonianos, fadados a um destino infeliz, ao arrostarem-se com a luta por
melhores condições de vida, (As Grandes Navegações tamm contribuíram com a
tentativa de recuperação européia diante das “trevas” medievais) advinda da corrida
pelo ouro, do que com heróis malfadados do Naturalismo do século XIX, cuja
purgação tinha origem nas infrações cometidas contra a moral e os bons costumes
estipulados pelo Positivismo, vigente à época.
Os casos que Manuel da Bouça ouvira contar, de portugueses que fizeram a
trajetória ao Brasil e retornaram ricos a Portugal, eram inúmeros, e isso o alentava,
pois a gana de enriquecimento era ainda maior que os desafios a percorrer, ou
melhor, era mais forte que a tradição que carregava consigo:
O rompimento desse pânico ambiente exigia ânimo forte, que
recalcasse velhos temores e tudo quanto de mau se tinha ouvido.
Poucos, porém, deixavam de correr atrás da miragem por carência
de audácia. A ambição dominava-os, era couraça invulnerável a
todas as vicissitudes. E, como ela, o desejo de aventura, dissolvido
no sangue, como uma tara. (p. 33).
Da mesma forma, embora haja em Manuel da Bouça a preocupação em
deixar a mulher, a filha e a pequena fazenda que possui, o objetivo lhe parece
nobre, e a família encontra-se incluída nele:
94
Mas, para do muro, os olhos de Manuel da Bouça não podiam
ver, com alegria, os campos da igreja velha. Possuí-los, ser seu
dono, semear e colher o milho que aloirava aos primeiros calores
fortes e, no Inverno, a erva dos lameiros, que formava tapetes
sempre húmidos, era o seu único sonho, a grande aspiração da sua
vida. Disso dependiam todos os projectos que ele formara, desde o
Casamento de Deolinda, não com um valdevinos sem eira nem beira,
mas com um homem digno e de teres e haveres, até a velhice
tranqüila, numa casa grande, de telha francesa, em cima, nos
Salgueiros uma casa em cuja salgadeira metesse dois porcos
alentejanos.
Mas, sem sair dali, sem procurar fortuna noutras terras, jamais
conseguiria realizar a ambição. (p. 22).
Em outros termos, Ferreira de Castro recupera a tradição portuguesa em
Manuel da Bouça, tanto a histórica quanto a literária, e o constrói como imagotipo do
homem que, ao singrar os mares e entrar em contato com outros homens, tem de se
redimir de tradições e preconceitos, não para se imiscuir em um meio engolfante,
determinador de características, mas, para compreender o outro, ampliar a visão de
mundo e de si mesmo.
Esse pensamento coaduna-se com o de Sérgio Buarque de Holanda (1992),
em Visão do Paraíso, para quem, a relação com o Outro, no itinerário das viagens
portuguesas, seria uma questão retórica, de construção de sentidos frente ao sem-
sentido, pois o português partia de uma tradição que, elucidara Montaigne, no
século XVIII, de tão impregnada do que se poderia, frente aos estudos Imagológicos,
chamar de reducionista ou imagotípica, jamais alcançaria a pretensão de “re-
construir” o real, materializá-lo, em toda sua magnitude.
Numa abordagem estilística, as expressões utilizadas pelo narrador de
Emigrantes para estabelecer a perspectiva arraigada à tradição portuguesa (quiçá
européia), sobre o Brasil (metonímia da América), tais como encantamento”, “lufada
de terror e superstição”, estremecimento de perigo”, “a imaginação a labutar no
desconhecido”, recriam essa tradição com muita vivacidade, a ponto de se tornarem
imagens, não com o fito de reafirmar essa tradição, mas de exagerá-la, a ponto de
torná-la ou absurda ou puro estado de lenda, história falsa, embuste – algo que seria
próprio do português simples, tradicionalista, carente de conhecimento do Outro e
impregnado do desejo de materializar o sem-sentido.
Se essa técnica estilística, por um lado, corrobora a assertiva de Urbano
Tavares sobre ser a obra Emigrantes um romance de tonalidades naturalistas, por
95
outro lado, permite evidenciar a preocupação de Ferreira de Castro em criar
imagens esteticamente trabalhadas em sua primeira obra de expressão, pois,
como antes se havia proposto, não se trata de um naturalismo engajado em
doutrinas científicas, mas no trato natural, humano, com o que se pretende
conhecer.
O trato do português com o desconhecido desencadeia perspectivas eivadas
de estruturas preconcebidas acerca do Outro, além de não funcionarem cabalmente
para materializar o que acreditavam ser sem-sentido”. Por seu turno, tais
perspectivas preconcebidas no discurso português, abrem portas para
questionamentos, também literários, pois o Outro é muito mais complexo quando
posto diante das tradições ultrapassadas que o imigrante trazia em sua bagagem
conceitual.
Dessa maneira, o que se poderia chamar de efeito estético à absorção
imagética recriada em um texto construído com preocupações plausivelmente
literárias, antes mesmo de galvanizador de vinculações politicamente partidárias,
faz-se presente em momentos como este de Emigrantes. De fato, Ferreira de
Castro dispõe em tela o embate de tradições, joga com elas, mediante imagens
literariamente construídas, que chocam, ao mesmo tempo em que despertam no
leitor um senso crítico diante de práticas tradicionais de pouca ou nenhuma
plausibilidade, visto que são questionáveis. Tais imagens serão, posteriormente, no
transcorrer da narrativa, diluídas, superadas, mediante o trato da personagem que
transporta essas tradições para a realidade do espaço imaginado. Manuel da Bouça,
ao chegar ao Brasil, se defronta com algo diverso do que a tradição arraigada em
sua alma lhe ressoava.
O crítico português Álvaro Manuel Machado, da Universidade de Lisboa, em
seu texto “Repensando a literatura comparada: imagologia e estudos culturais”,
(2005, p.5)
13
, mui sabiamente afirma, sobre a literariedade das imagens que são
construídas em textos que se acercam da visão do estrangeiro, as seguintes
palavras:
A imagem literária, projectando-se do interior para o exterior (daí a
sua primordial ligação com a viagem a países mais ou menos
longínquos), implica um conjunto de idéias sobre o estrangeiro,
13
Documento on line, dispovel em: www.eventos.uevora.pt , acesso em 14 de outubro de 2005.
96
desencadeando um processo de literarização e de socialização, ou
seja : um processo de análise de duas ou mais culturas em
confronto. Note-se que se trata duma linguagem simbólica por
excelência, até na sua função frequentemente paródica e auto-
reflexiva, formulando uma representação do Outro que tem a ver
sobretudo com a história das idéias ou das mentalidades, ou mais
exactamente : com estereótipos colectivos cujo sentido se enraiza
em elementos de antropologia cultural. (MACHADO, 2005, p. 05 -
grifos do autor).
Agustina Bessa Luís, reconhecida escritora portuguesa, que, em muitos
momentos afirmara que “aprendera a escrever textos de qualidade literária a partir
da leitura de Ferreira de Castro, também revela-se conhecedora da importância da
ostentação dos atributos literários mediante as técnicas utilizadas pela Literatura
Comparada, primeiro, ao afirmar que considera “que a Literatura Comparada,
transpondo a sistematização teórica para o vasto plano da história das idéias e,
genericamente falando, da história da cultura universal, é o domínio de maior
liberdade e de maior variedade criadora na abordagem da obra literária” e, depois,
ao tratar do conceito de cultura, no panorama das obras de evocações interculturais,
reafirma a necessidade do ente criador, o autor da obra, ser conhecedor profundo da
cultura e mostrar-se imbuído tanto de “ética” quanto de estética”, fundamentais ao
diálogo profícuo entre culturas, como ocorre em Emigrantes. Cabe aqui, portanto,
reproduzir as palavras de Bessa Luís:
Pode escolher-se uma cultura? É preciso primeiro escolher uma
ética.
Na ética, que não exclui a estética, a nossa personalidade está
centralizada. Os nossos hábitos, que dependem duma herança e da
consciência dessa herança, determinam a escolha duma cultura. [...]
A cultura não é a emancipação do homem face à natureza; é
sobretudo uma escolha que começa e termina no homem (apud.
MACHADO, p.7).
O embate cultural, construído na obra Emigrantes, destrói a tradição e os
imagotipos nela impregnados, ao mesmo tempo em que clama pela reavaliação do
Eu (reduto de tradições) e do Outro (ente preconcebido pela necessidade de
representação), como seres passíveis de constante mutação e simbiose e, portanto,
97
que deveriam estar destinados à aceitação, ao respeito e à superação de idéias
cristalizadas. Nesse ínterim, em Emigrantes, a relação histórica entre Portugal e
Brasil é revivida num plano macro–analítico, túrgido de aspectos representativos,
que anelam a absorção de uma linguagem literária que o possa plasmar de modo
condizente.
Ao passo que deambula pelo Brasil na busca do sonhado “ouro”, Manuel da
Bouça seus sonhos destruídos e se permite o vislumbre da falácia da tradição
européia sobre o Brasil como terra de infinitas possibilidades, ao mesmo tempo em
que o narrador aproveita o ensejo para revelar um Brasil em revoluções políticas,
carente de emprego, submundo do capitalismo resultado, tamm, da colonização
imposta por Portugal, durante, aproximadamente, duzentos anos.
Um diálogo entre Manuel da Bouça e outro português, que se sucede a um
momento de silêncio do protagonista, ainda na primeira fazenda, a observar pessoas
de diferentes nacionalidades e obter suas primeiras impressões sobre elas, é
revelador dos conceitos e pré-conceitos que os imigrantes portugueses, mais afeitos
a correr mundo em busca de enriquecimento, carregavam consigo acerca de outros
imigrantes, de portugueses e de brasileiros. Certamente um momento avant la lettre
em relação ao desfecho do romance. Por isso, malgrado a extensão, torna-se
exemplificador de elementos de choque intercultural e, juntamente com intervenções
de ordem analítica, cabe reproduzi-lo, da página 148 a 152, da edição de que se
vale como corpus:
No parque, Manuel da Bouça reconheceu os italianos que viajaram
no “Darro” e o olhar amigo que com eles trocou fé-lo sentir-se menos
entre tantos desconhecidos. “Que pena que tivessem uma fala
dos diabos que ele não entendia!” (p. 148).
É mister levantar aspectos de construção literária neste instante. O narrador,
no intuito de o deixar misturar seu discurso, no início da sentença, com o do
protagonista, ao final, prefere valer-se do discurso direto, que, ao fim e ao cabo,
reafirma que toda responsabilidade discursiva acerca do que se concebe dos
italianos é do protagonista, Manuel da Bouça, o que impediria qualquer confusão da
espécie “narrador-autor”, no caso de leitores incautos à práxis narrativa. No âmbito
particular da análise discursiva, valendo-se, sobretudo, da recepção textual, a
98
preocupação do autor, neste ponto, em afixar pontuação delimitatória, evidencia a
abrangência do público que se espera para o texto. Desse modo, a pontuação
delimita os discursos e torna-os menos imbricados. O narrador, ora se aproxima de
Manuel da Bouça, como uma espécie de amigo, compartilhador de idéias,
verdadeiro alter-ego, espelho do protagonista, ora afasta-se dele, deixando-o
sozinho, com seus conceitos infundados ou ainda em formação, mas que, para o
referido narrador-autor, verificam-se superados. Em continuidade:
Era o idioma que unia agora uns aos outros [os italianos],
seleccionando os grupos, estabelecendo uma fraternidade que
eles não tinham dentro da mesma terra em que nasceram (p.
148).
Para o narrador, que, em continuidade, assume a responsabilidade
discursiva, os italianos, mais facilmente visíveis, pelo número em que ali no pátio se
mostravam agora, se detinham em afabilidade, que poderia ser promovida pelo
distanciamento em que se encontravam da terra natal. O choque cultural é denotado
como fator de proximidade entre indivíduos da mesma cultura. Ao observar o Outro,
o reflexo recai sobre si mesmo, numa auto-aceitação que, mais tarde, transforma-se
em aceitação do Outro, alargamento de horizontes, na dilatação da visão de mundo,
partindo sempre da visão que se tem sobre si mesmo:
Os italianos formavam o maior mero: em redor de dois bancos se
juntaram os que já ali estavam e os que acabavam de chegar e todos
falavam com alvoroço. Havia-os das mais distantes províncias da
Itália e alguns herdando do rincão nativo costumes e tradições que
os outros não possuíam; apesar disso, agora, que se encontravam
longe e sozinhos, achavam sempre na evocação um pormenor que a
todos interessava.
Aos italianos sucedia compacto magote de sérvios, croatas e
eslovenos, gente triste e reservada que se acomodava a um canto,
de tempo a tempo esfarrapando o seu silêncio com alguma vaga
frase de monólogo íntimo. Ruidentos e esbravejadores apenas os
espanhóis, que iam de uma extremidade a outra em palreira
altissonante, como se estivessem em terra familiar. E outros grupos
havia, disseminados no cercado: quatro bocas que dialogavam baixo,
um casal contemplativo e mais um vulto cismático, ao fim do parque,
a remexer abstractamente o solo com a ponta da bota. (p. 148-149)
99
Para Celeste Ribeiro, em Do e do (2004), o reporte a imagens
cristalizadas de indivíduos de outras nacionalidades, como atributo fundamental de
que todos os indivíduos possuem para conhecer o outro, nem sempre atinge esferas
de preconceito ruidoso e ferino, que, o conhecimento profundo do outro nunca é
possível. Lançar mão de determinados atributos para identificá-los, muitas vezes é
aceitável.
No trecho acima, por exemplo, não ocorre preocupação do narrador em
distanciar seu discurso da perspectiva de Manuel da Bouça, mas, pelo contrário,
permite que seu discurso se aproxime do vislumbre contemplativo do protagonista.
Isso ocorre porque o reporte às características dos italianos, do grupo dos sérvios,
croatas e eslovenos e dos espanhóis, não margeia imagotipos, que dos italianos
trata da nostalgia, tipicamente identificada com esse povo, pelo seu apego à terra
natal historicamente repleta de contrastes sociais entre, o norte e o sul o sul
italiano, menos favorecido, ofereceu o maior número de imigrantes para o Brasil -,
mas o apego às tradições de sua terra ainda hoje é visto como um construto
positivo; ao grupo dos sérvios, croatas e eslovenos, quase sempre expatriados como
os judeus, desde a formação social das Bálcãs por povos distintos que
reivindicavam sua supremacia, retoma a tristeza, marcada pelo monólogo e pela
introspecção, como características visíveis nestes povos, e, aos espanhóis, latinos e
palradores como os italianos, mas mais acostumados às viagens ultramarinas desde
o século XV. Esperançosos, portanto, como os portugueses, pela proximidade
geográfica e cultural, aos espanhóis lega-lhes a qualidade de exaltados e
gesticuladores:
Manuel da Bouça cirandava de ouvido à escuta de idioma
compreensível, em que ele pudesse comparticipar, eliminando o
peso que tinha sobre o coração.
Mas nada, nada! O raio daqueles fulanos falavam mais arrevesado
do que os ingleses das minas de Nogueira do Cravo, e nem a
ciganos, nem a homens de ursos e de macacos ele ouvira nunca
uma algaraviada assim, que nem parecia de gente. Começava a ficar
tristonho, chupando cigarros sobre cigarros, sentindo-se abandonado
e como prisioneiro (p. 149).
100
Neste ponto, o uso da interjeição em Mas nada, nada!”, reaproxima ainda
mais o discurso do narrador com o de Manuel da Bouça, provocando um choque
narrativo que, por sua vez, é provocado pelo choque cultural trata-se de um pré-
conceito acerca das nguas distintas de povos diferentes. O barulho provocado pela
fala de muitos, em tons distintos, aguçava a solidão de Manuel da Bouça em se
aproximar de alguém, em sentir-se parte integrante de um grupo cujo destino seria
familiar em terra desconhecida. Mais um momento especular, provável reminiscência
de Ferreira de Castro em sua primeira chegada ao Brasil portanto, surge como
resgate de um imagotipo que mais tarde será desconstruído, porque, no decorrer da
narrativa, todos se aproximam em seus destinos.
O estranhamento intercultural aqui, neste trecho, como em outros momentos,
existe para dar tônus ao romance, concretizar o conflito, centelha de que toda
narrativa deve se valer. Mais que isso, atendo-se ao âmbito da construção
romanesca, de transporte intercultural, como salienta Agustina Bessa Luís, as
culturas devem entrar em choque para melhor se compreender. Retorno e
superação de idéias são marcas narrativas fundamentais de que se vale Ferreira de
Castro para sabiamente apregoar idéias trabalhadas esteticamente. Características
estas que podem ser percebidas mesmo num romance inicial”, como Emigrantes,
tido por alguns como narrativa ingênua, mas que, pelo compromisso estético, como
em momentos como este, deixa entrever o porquê de seu autor -lo aceito como o
“primeiro” de sua produção, mesmo não o sendo.
Em Emigrantes, ademais, e em contrapartida às imagens construídas sobre
o Brasil, surpreende-se o cenário de um Portugal do início do século XX, em
convivência com ultrapassadas e indigestas estruturas pombalinas, bem como com
um ranço religioso túrgido de tradições, ambas as quais não se adaptavam às novas
exigências de um mundo em transformação, fazendo de um país de estruturas
agrárias ainda mais retrógrado, cujo homem simples, habitante do campo, mostrava-
se, a então, apegado às tradições ao revelar-se protótipo do desconhecedor das
novas estruturas mundiais. Daí, certamente, Manuel da Bouça configurar-se como
um indivíduo do campo, analfabeto, e em luta constante para trazer à família o
sustento necessário e a riqueza, se possível. Esses elementos são retomados no
diálogo de Manuel da Bouça com seu patrício, na continuidade do trecho que se
dispõe:
101
a hora do jantar, no amplo refeitório da Hospedaria, ele ouviu, do
lado de lá da mesa, alguém falar a sua língua.
_ Ontem eu fiquei acolá – dizia o outro imigrante para o criado.
_ Não faz mal; fica hoje aqui.
Atento à maneira como os outros comiam, para não parecer com
menos educação, Manuel da Bouça nunca mais deixou de observar
o patrício, que a sorte, ao cabo de uma tarde de isolamento, lhe
punha mesmo em frente dos olhos. Era o homem que ele vira a
cismar no fim do parque, enquanto a sua bota ia picando a terra.
Devia ser da sua idade, mas estava mais acabado, pois eram
muitas as gelhas que mostrava nos cantos dos lábios e das
pálpebras.
Após a refeição, Manuel da Bouça andou-lhe no encalço até o ter a
jeito de palavrear sem o acanhamento que lhe daria a presença de
estranhos.
_ Vossemecê também veio de Portugal?
_ Também, também. _ E reparando melhor em Manuel da Bouça: _
Não sabia que estava aqui outro português... . (p. 149-150).
O deslocamento do discurso advindo do narrador em relação a Manuel da
Bouça agora é saliente. Não concordando com as ingênuas meditações do novato
viajante, o narrador o coloca frente a frente com outro patrício simples, porém, um
pouco mais experiente, oriundo, tamm, de região agrária em Portugal, de
Barcelos:
_ Eu cheguei hoje.
_ E eu na sexta-feira passada. Como vim em dia aziago, nunca
encontrei aqui patrício com quem entreter. Estiveram uns espanhóis
e eu compreendo um bocado da língua deles, de quando trabalhei
em Buenos Aires mas foram-se ontem embora. E o senhor?
Desembarcou ontem mesmo?
_ Não; vim anteontem, mas estive em Santos. Também passei hoje
uma tarde muito amorrinhada, sem ter com quem falar.
_ É... Por aqui não se encontra vivalma de português. Não admira:
todos eles vêm para o comércio, mas agora, que já não fazem nada, é
que elas vão ser. por portugueses até dar com um pau e que
faziam muito melhor se deixassem a cidade e fossem tentar a sorte
com uma enxada. Que isto também é capaz de não dar nada. É a
primeira vez que o senhor vem ao Brasil? (p. 150-151).
Interessa neste ponto a reafirmação do processo de colonização dentro da
fala do patrício de Manuel da Bouça, contida nas autoimagens. Para o patrício, os
portugueses vinham para o Brasil sempre para o comércio, ou seja, um trabalho
considerado mais valioso” à época. Os colonizadores, ao efetivarem o processo de
102
colonização, tamm cumpriam objetivos comerciais, mercantilistas. Como o ouro
demorou para ser encontrado, partiram para o desbravamento da terra. Mas, nesses
novos tempos, isso era capaz de o dar em nada”. Trata-se do início do século
XX, momento em que os imigrantes foram trazidos para o trabalho no campo ou
para a mão-de-obra barata no processo de industrialização brasileira. O português
não vinha para trabalhar na lavoura, mas, sim, no comércio como, als, sempre
fizera. Como a curiosidade de Manuel da Bouça era evidente, o patrício requesta-lhe
se era a primeira vez que estava no Brasil. O protagonista assim responde:
_ É.
_ E qual é a sua terra?
_ Eu sou de perto de Oliveira de Azeméis.
_ Oliveira de Azeméis... não conheço. Eu sou de Barcelos, ao de
Braga. Agora, não sei se terei tempo de arribar de novo. Isto não
nada, mas um homem acostuma-se e, além disso, falta-lhe depois
a coragem de aparecer nas terras com a mão a abanar. estive
quinze dias; foi matar saudades e partir a toda brida, antes que
descobrissem que eu não tinha cheta.
_ Ah, vossemecê não conseguiu juntar seu pèzito de meia?
_ Qual! Estive seis anos no Rio de Janeiro e quase tantos outros na
Argentina. Também trabalhei uns meses em Montevidéu. Corri mundo.
Vi terras, isso vi! E eu gosto de andar. Mas a respeito de dinheiro...
Ao fim de tanto tempo fui a Portugal com dez réis no bolso, porque
não podia sossegar sem ver aquelas árvores onde eu trepava a cata
dos ninhos, quando era pequeno. E olhe que trabalhei sempre com a
idéia de voltar. Fiz tudo, que vaidade é coisa que eu não tenho. Fui
moço de armazém, fui carregador, labutei sempre como um negro e,
em Buenos Aires, até cheguei a limpar botas. Trabalhar, seja no que
for, não é desonra? Não lhe parece?
_ Pois claro! Pois claro! – concordou Manuel da Bouça.
_ Aprendi a ler para ver se conseguia alguma coisa. O que eu queria
era chegar a patrão... Se eu chegasse a patrão tinha enriquecido! Olá
se tinha! Mas o... No fim de contas, esfalfei-me de manhã à noite e
o que juntei? Uns centos de mil réis para poder ir a Portugal e estar
um par de dias. Mais nada. E quando eu vim para cá ainda o Brasil e a
Argentina estavam bons. Era o tempo das vacas gordas. Se eu me
estivesse estabelecido ganharia bom dinheiro. Mas onde tinha eu
capital? (p. 150-151).
Momento fundamental, o patrício de Manuel da Bouça relata sua trajetória,
sempre malfadada, ao redor da América. De um lado, temos europeus advindos de
uma triste situação econômica (italianos, eslavos, espanhóis, portugueses, dentre
outros), esperançosos de fazer vida na América. Do outro lado, uma América
103
exaurida, representada pelo Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevidéu as
cidades mais prósperas da América Latina no momento da narrativa.
A expressão do português em tela, “trabalhei como um negro”, provavelmente
não se apresente como um imagotipo, uma espécie de discurso preconceituoso,
mas, ao contrário, parece muito mais reativar a idéia de trabalho pesado, ou trabalho
manual, e inglório. Os escravos negros, no Brasil, trabalhavam à base de maus
tratos em troca de nada resgate historicamente marcado do mito de Sísifo. Neste
sentido, todos, europeus, americanos e africanos estariam diante da mesma
situação inglória, não havendo diferenças entre os mesmos. Para o patrício, nem a
leitura, que tivera de aprender, trouxera benefício algum, pois, de Portugal, viera
sem capital para prosseguir correndo mundo.
No discurso do patrício encontra-se a malevolência de quem percorre o
mundo, a necessidade de viajar, como na frase do general romano Pompeu (106-48
a. C), navigare necesse; vivere non est necesse, materializada no poema “Navegar
é preciso”, de Fernando Pessoa. Em Portugal também se vivia, mas a viagem
consubstancia a esperança, a perenidade do sonho e a possibilidade de sentir o
mundo e sentir-se membro da Humanidade. Em trocadilho, viver o é preciso se a
vida não for feita do conhecimento do Outro e da necessidade de empatia – o que só
poderia ser feito mediante as viagens, as experiências em loco. Ou ainda, na esteira
pessoana, criar na alma a necessidade de, mesmo sendo marcada pela formação
patriótica, “torná-la de toda a humanidade/ainda que para isso tenha de a perder
como minha.
Ferreira de Castro, por exemplo, sempre afirmava ter ‘perdido a alma como
sua’, desde que conheceu a vida dos brasileiros. Ferreira de Castro tamm era de
Oliveira de Azeméis, como Manuel da Bouça. O que era Oliveira de Azeméis? Esta
indagação está contida nas prelibações do patrício, ao revelar desconhecimento de
Oliveira de Azeméis, mas salientar que conhecia várias partes do mundo. Oliveira de
Azeméis tornara-se assim, nas autoimagens, apenas o local de nascimento de
Manuel da Bouça e de Ferreira de Castro, como Barcelos seria o local de
nascimento do patrício. Para chegar ao cerne da Humanidade, havia necessidade
de apartar-se da própria pátria, do apego natural, mas pouco revelador da
humanidade que o indivíduo deveria, como no poema de Pessoa, carregar no
“sangue”.
104
O discurso narrativo, neste momento, salta das aproximações e
distanciamentos com o discurso do protagonista para materializar-se no discurso do
patrício, o que dá tonalidade dramática ao construto romanesco. Isso fica ainda mais
apregoado na medida em que se percebe que o patrício não diz seu nome, visto não
poder ser identificado como um indivíduo, mas como o amálgama de todo indivíduo,
imbuído de humanidade, reconhecedor, também dos problemas existentes em sua
terra natal:
Encontravam-se os dois encostados na varanda e tão
descoroçoadoras eram as confissões daquele patcio, que Manuel
da Bouça, com o coração apertado como se estivesse entre duas
mós, perguntou-lhe porque ele, assim tão infeliz, tendo-se apanhado
em Portugal, voltara ao Brasil.
_ Porquê? Ora! A gente, quando anda por estas lonjuras, julga
que todos na terra estão sempre a pensar em nós. E vai daí, uns
dias arranjamos uns patacos e marchamos para lá. Tudo muito bem;
senhor fulano daqui, senhor fulano de acolá, mas o que eles querem
saber é se a gente leva muito dinheiro. Se não leva, são logo
murmurações e até nos olham por cima dos ombros. Não é desonra
nenhuma um homem ser pobre, mas, na terra, quem chega do
Brasil tem sempre vergonha de não ser rico (...) se não arranjar desta
feita alguma coisa que se veja, não volto. com meia dúzia de
vinténs é que eu não volto mais. Não vejo a minha terra? Paciência!
Em toda a parte se vive e eu prefiro rebentar por aí, a passar
vergonhas por não ter arranjado mundos e fundos. Isto de saudade
que um homem tem quando anda por cá e que até parece que estala
o coração, passa quando vamos e vemos que nem tudo o que
reluz é oiro. Depois, quando voltamos para cá, acostumamo-nos a
viver longe. (p. 151-152).
A visão de quem espera aquele viaja é a de trazer boas novas algo
arraigado ao espírito europeu. Para o patrício, estes tamm deveriam compreender
a necessidade de conhecer as dificuldades pelas quais o mundo passava. Mais
atento ao espírito de “humanidade”, não sendo, pois apegado a terra alguma, afirma,
após ser contratado para o trabalho braçal no dia seguinte: “de quem eu tenho medo
é desses fazendeiros que nos tratam por carcamandos, de boi e outras coisas
mais, como se uma pessoa, por nascer em Portugal, na Itália ou na Turquia, não
seja igual às outras (p. 152). O patrício de Manuel da Bouça, até então não
identificado, dá-lhe lição de necessidade de compreensão do Outro. Não havia
diferenças humanas para o patrício. Manuel da Bouça, porém, olhara desconfiado,
no dia anterior, para os outros imigrantes. Não sendo mais um indivíduo diferente
105
dos outros, agora o patrício poderia dizer seu nome o Eu se consubstanciou no
Outro, de modo especular. Então, permite a Manuel da Bouça que lhe chame de
Rufino Macieira, ao mesmo tempo em que Manuel da Bouça revela seu nome de
batismo, a saber, Joaquim Manuel dos Santos. Agora, Manuel da Bouça inicia o
processo de compreensão de sua trajetória. Apartar-se de toda a tradição seria
tarefa árdua, no decorrer da narrativa, pois, ao fim e ao cabo, deveria estar pronto a
ser partícipe da humanidade, não se identificar mais com a Bouça” ou mesmo com
Portugal, ou ainda, com seu lugar de nascimento, mas, deveria perfazer-se primeiro
no amálgama do português simples, comum, como tantos “Joaquins” e “Manuéis”
dos Santos, para depois perfazer-se no amálgama de humanidade, presente em
cada indivíduo, independente de seu local de nascimento.
A parte referente à vida no Brasil, mais extensa, pode subdividir-se em três
seqüências menores. Na primeira (do capítulo X até ao XI), desenvolve-se a
conscientização da dificuldade de encontrar trabalho em Santos e a contratação de
Manuel da Bouça para trabalhar num cafezal do interior de São Paulo. A segunda
seqüência (do capítulo XII ao XV) centra na fazenda Santa Efigênia as várias
experiências das personagens, migrantes brasileiros e estrangeiros.
Ali conhece o lamento choroso do povo brasileiro, absorvido pelas cantigas de
viola e se depara com a mesma realidade que vivia, juntamente com os imigrantes:
a)
Seguia-se casa do coronel Borba] a esplanada, onde outrora, em
tempos de senzalas, se consentia aos escravos, nos dias em que era
feliz a digestão dos amos, batuques e outros folguedos. Depois,
vinha a fila dos casinhotos, que denunciavam, pela sua exigüidade e
modéstia, a condição dos inquilinos. (132).
b)
Era de uma melancolia enorme, de uma resignação amarfanhante
esse lamento de amor, que a viola traduzia, sugerindo humildes
devoções lá na terra sertaneja, onde as almas se atormentavam com
virginal candura. (180).
106
Ou ainda, no relato da vida da mulata” Benvinda, cujo nome sugestivo, a
fazia, por obrigação do capataz, a se prostituir para cuidar da mãe entrevada. Assim,
Benvinda se dividia entre o trabalho braçal e as exigências do capataz. Quando se
recusou a agir de acordo com as imposições dele, foi expulsa do casebre em que
vivia. Envolvido pela “volúpia” da mulata, Manuel da Bouça ainda tentou ajudá-la,
mas, esta, desfaz o imagotipo da mulher brasileira lúbrica ao reafirmar que em
qualquer lugar trabalharia, porque a ela não faltava força nos braços:
Por fim, Benvinda ergueu-se, limpando a cara e tentando dominar-se.
E, em pé, encostada à parede, expôs a sua resolução. Ia-se
embora. Fazendas não faltavam e ela tinha saúde para trabalhar.
estivera noutras antes de vir para ali e não morrera de fome. Em
todas lhe pagavam mal, que a uma mulher nunca se tratava como a
um homem; e quando lhe faziam alguma coisa boa era sempre com
idéias ruins. Mas ela tinha coragem como qualquer matuto! Lá
porem-lhe o pé no cachaço para ela fazer o que não queria, isso não!
O pior era a mãe estar assim entrevada... (p. 192).
No discurso compreensivo do narrador encontra-se a voz de Benvinda,
sobretudo na exclamativa, de que ela não faria o que não queria; não se sujeitaria
aos caprichos do feitor de fazê-la prostituta, pois era tão digna que trabalharia como
um matuto”.
O enriquecimento era para poucos e mesmo os brasileiros sofriam dessa
angústia dorida. A terceira seqüência (desde o início da “Segunda Parte” até ao
capítulo V) localiza na capital uma nova experiência de trabalho de Manuel da
Bouça. Carregador num armazém, ele encontra nesta outra tentativa o mesmo
insucesso. Contata com outro imigrante, que vinha na mesma ilusão de
enriquecimento e com outras personagens pobres, tendo algumas delas esperanças
de construírem uma sociedade melhor, com uma revolução contra o governo.
Manuel da Bouça, na sua alienação, pouco compreende e pouco participa na
revolução e dela consegue um relógio de um morto, que vende para retornar a
Portugal. Após tantos anos no Brasil, Manuel da Bouça de seu, nada tem, a não ser
a vergonha de roubar para retornar à sua terra. Embarcando em Santos, regressa a
Portugal, não sem antes salientar a recorrência da imigração e, agora, a empatia
pelos miseráveis que vinham da Europa:
107
O cais estava lavado de sol enormes lençóis brancos cortados,
aqui e ali, pela sombra dos guindastes e dos navios. De um vapor,
atracado próximo do “Andes”, saía, vagarosa e tímida, grossa coluna
de emigrantes italianos, espanhóis, portugueses os de sempre. E
sempre o mesmo espetáculo. As mesmas mulheres de trajes
campesinos, as mesmas crianças ainda incomodadas pela travessia
do oceano e os mesmos homens de face atirada à vida dura – todos
exalando miséria e promiscuidade. Atravessavam a prancha com
passos hesitantes, conduzindo sacos e embrulhos (263).
O desejo, conjugado à necessidade de encontrar meios de sobrevivência em
outras plagas, é evidenciado, pelo narrador, na seqüência abaixo:
Haviam chegado outros, assim, na véspera; há já muitas dezenas de
anos que a cena se repetia um cortejo interminável de famintos,
que a Europa fabricava mas não alimentava, a o ser quando
carecia do corpo deles para alvo de canhões. E era sempre sombrio
o bando que descia; por mais garridas e policromas que fossem as
vestes das mulheres, o conjunto dava sempre uma triste sugestão de
negrume e de fome.
E iam, lá iam, um pouco trôpegos ao pisar terra depois de tantos
dias de mar; iam, atrás dum pressentimento, duma simples
hipótese, confiados nem eles sabiam em quê, vidas sem rumo,
avassaladas pela idéia do oiro e prontas a todas as vicissitudes,
porque o lugarejo nativo não lhes pertencia, nem lhes dava bastante
pão (263).
Visão do narrador acerca do conhecimento do mundo, da falta de experiência
de quem continuaria a conhecer a tragédia mundial, independentemente do lugar em
que o drama se desenrolasse. Agora, pronto para voltar a Portugal, Manuel da
Bouça compreende o que, no início, o patrício Rufino Macieira havia afirmado
(afirmação tamm presente no discurso do narrador) acerca de ser ‘cidadão do
mundo’, um humanista, capaz, portanto de conhecer o Outro como parte de si
mesmo, sem ideologias políticas a não ser aquela que coloca frente a frente o Eu e
o Outro, como as duas faces de uma mesma moeda, tornando-os passíveis de
conhecimento e mútua compreensão - a experiência humana.
Na terceira macro-seqüência (entre o capítulo VI da Segunda Parte e o
capítulo VIII), de ação sintonizada em Portugal, surpreende-se Manuel da Bouça em
sua aldeia, sentindo que não tem mais lugar nela e, envergonhado de nada ter
conseguido no Brasil, mente, como se tivera tido sucesso em sua empreitada
108
ultramarina. Dirige-se, pois para Lisboa, a esconder o fracasso, na busca de uma
outra vida que era ainda, para ele, um enigma.
Na aldeia, descobre que o Nunes, que lhe conseguira o passaporte para o
Brasil, era o único que conseguira enriquecer, à custa de inúmeros portugueses
iludidos em fazer fortuna em terras brasileiras:
Súbito, os seus olhos pousaram, em cima, no palacete novo
erguido à beira da estrada, no mesmo lugar onde ele sonhara erguer
um igual. “De quem seria? Devia ser de “brasileiro” rico, que os
“brasileiros” ricos tinham dinheiro para aquilo. Mas se era brasileiro”,
partira depois dele, que de outro que tivesse partido antes não sabia.
Como enriquecera?... Como enriquecera?...”
Começou a sentir hostilidade contra o ignorado dono do prédio o
desconhecido que realizara aquilo que ele não conseguira realizar,
que o suplantara, que o antecedera. “Quem seria? Com a moeda tão
por baixo, obra assim não custava menos dos seus duzentos
contos... E ele, nem que tivesse ficado toda a vida no Brasil, nunca
arranjaria tanto dinheiro...”
Retirou a vista do palacete e, humilhado, considerou sobre o trabalho
que lhe daria o quintal, para volvê-lo ao aspecto antigo, e as jornas
que teria de fazer para o pão de cada dia.
[...]
À hora do jantar, feitas as pazes com Deolinda, que o prazer de a ver
levara-o, logo que ela aparecera, a tudo lhe perdoar, Manuel da
Bouça não se conteve mais e perguntou-lhe:
_ Olha cá: de quem é aquela casa nova nos Salgueiros?
_ Do Nunes?
_ Sim, do Nunes da Agência. Do que vendeu a passagem e o
passaporte ao pai... (p. 277-278).
Observa-se, pois, que a trajetória de Manuel da Bouça cumpre um requisito,
levantado dentro de toda carga estética contida no cerne do texto, qual seja, a da
compreensão mútua entre o Eu e o Outro. Para tanto, ao final do romance, Manuel
da Bouça torna-se um expatriado dentro de sua própria pátria, pois convive com a
aceitação da vida que deveria, a partir daquele ponto, levar, após ter perdido a
mulher, as terras e ver que o único indivíduo que enriquecera com toda esta
situação fora o Nunes, que lhe vendera a passagem para o Brasil.
Manuel da Bouça torna-se arquétipo do viajante expatriado pela necessidade
financeira; e, a sonoridade do termo bouça” (bolsa) que carrega consigo, traz à tona
a carga das tradições que possuía. Quando retorna a Portugal, desprovido de toda
109
tradição, expurgada pelo contato direto com povos distintos, deixa de pertencer à
“Bouça” para tornar-se cidadão do mundo.
Em relação às autoimagens, apregoadas no momento em que o protagonista
retorna a Portugal, cabe estabelecer nexo com outro escritor cujo brilhantismo
literário e o apego aos princípios estéticos impediram-no, assim como Ferreira de
Castro, de se filiar a qualquer partido político, qual seja, John Steinbeck. Em seu
romance mais conhecido, As Vinhas da Ira, o escritor norte-americano surpreende
a trajetória da família Joad dentro de seu próprio país, deambulando de um lugar
para outro em prol da sobrevivência. Após vários percalços, a família aceita o fato de
que ninguém mais, a não ser os donos de fazendas, enriqueciam no meio agrário
norte-americano (autoimagens), sulcado pelo trabalho irrisório de uma multidão de
expatriados de sua própria região – saíam de Oklahoma rumo à Califórnia.
Assim como os velhos navegadores, dos quais Manuel da Bouça absorve a
tradição, a corrida para o Oeste serve de inspiração aos Joad, na esperança
infundada das terras verdejantes da Califórnia, com árvores túrgidas de frutos e uma
vida tranqüila, que jamais encontram. Essa imagem pode ser notada no discurso da
mãe dos Joad, em dialogo com o filho Tom. A mãe, uma espécie de Velho do
Restelo de Os Lusíadas e Rufino Macieira, de Emigrantes, a mãe possui discurso
que permite vislumbrar a voz do próprio narrador, prevendo um futuro em nada
auspicioso. Dessa forma, a mãe sente-se, antes da viagem, um tanto quanto
intranqüila quanto à propaganda que se fazia da vida na Califórnia:
_ Tom disse ela, afinal _, eu espero que as coisas na Califórnia
sejam boas.
Tom voltou-se e encarou-a.
_ Por que a senhora receia que não sejam? – inquiriu.
_ Bom, por nada. É que parece tudo bom demais. Eu vi no folheto.
tem muito trabalho e bons salários e tudo o mais. Li no jornal que
procuram gente para colher laranjas e ssegos. Isso seria um belo
trabalho, Tom, apanhar pêssegos. Mesmo que eles não deixem a
gente comer nenhum, sempre pra pegar um que esteja
machucado. E seria bom ficar debaixo das árvores, trabalhando na
sombra. Mas tudo isso é bonito demais Tom. Tenho medo. Não
tenho nisso. Acho que é muita sorte junta. (STEINBECK, 2004, p.
112-113)
14
.
14
A edição da qual se utiliza de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, neste trabalho, é a 6.a,
publicada pela editora Record, de São Paulo, em 2004.
110
Não é por nada que, no decorrer de todo o romance, a mãe revele-se como a
mais racionalmente preparada de todas as personagens confeccionadas pelo
narrador de As Vinhas da Ira. Apesar de nada estar bem ao seu entorno e os
desejos da família sempre caírem por terra, a exemplo da morte dos avós no
decorrer da viagem e, posteriormente, a morte do bebê da filha Rosasharn, a mãe
sente o desejo de continuar, de se tornar cada vez mais forte, como a personagem
Rufino Macieira, de Emigrantes, cujas viagens o transformaram em um indivíduo
mais apto, acostumado aos reveses da vida nota forte do mito do eterno retorno,
do ciclo da existência ou da mera necessidade de sobreviver, como também ocorre
em Graciliano Ramos, com Vidas Secas, em que a trajetória dos retirantes torna-se
cíclica, uma aparente trajetória non sense que ressuma a necessidade própria da
sobrevivência. Parar seria sinal de morte, descontinuidade de um enredo que
culmina na própria vida, por isso, transposicional. A título de nova exemplificação,
no tocante ao romance As Vinhas da Ira, um momento de diálogo da mãe com o
pai, para quem tudo estava já perdido:
[...] _ Não presto mais pra nada. Vivo pensando como era
antigamente. Vivo pensando nas coisas de casa, nas coisas que
nunca mais vou ver de novo.
_ Aqui é mais bonito e as terras são melhores – disse a mãe.
_Eu sei, mas nem reparo nas terras. vendo é os salgueiros
em casa perdendo as folhas. Às vezes fico imaginando que tenho
que endireitar aquele antigo buraco na cerca, aquele do lado do sul.
Engraçado! A mulher tomando conta da família. A mulher dizendo
para fazer isso e mais aquilo, e que a gente deve ir para e para
cá... Eu nem to ligando pra isso.
_ As mulheres se acostumam mais depressa que os homens disse
a mãe, pra consolá-lo. Uma mulher tem a vida toda nos braços, o
homem tem ela na cabeça. Não se preocupa. Quem sabe?... Pode
ser que para o ano a gente tenha a nossa casinha.
_ Mas por enquanto não temos nada disse o pai. E daqui até o
ano que vem, nem trabalho, nem colheita... Que é que a gente vai
fazer? Como é que a gente vai se arranjar para comer? E não
demora chega o dia de Rosasharn. To tão desgostoso que nem
posso mais pensar. Me afundo nos tempos antigos pra não pensar
no futuro. Acho que a nossa vida já se foi, é coisa passada.
_ Nada disso sorriu a mãe. Não é não, pai. E isso é mais uma das
coisas que uma mulher sabe com certeza. Já reparei nisso O homem
vive como que aos saltos... nasce uma criança e morre um homem, é
como se fosse um salto; ele arranja uma fazendinha e perde a
fazendinha, e é outro salto. Para a mulher tudo corre sem parar, que
nem um rio, cheio de redemoinhos e cascatas, mas correndo sem
111
parar. É assim que a mulher encara a vida. A gente não morre, a
gente continua... muda, talvez, um pouco, mas continua sempre firme
(p. 532).
A Manuel da Bouça, de Emigrantes, falta experiência, até porque o drama de
sua trajetória dimensiona-se por não se encontrar em sua própria terra. A terra
alheia, ademais, além de impor o encontro com o Outro e o embate cultural advindo
desse choque, é sempre um mistério a desvendar. A experiência de vida deságua,
pois, na humanização de Manuel da Bouça, que, ao fim e ao cabo, torna-se
arquétipo do viajante cosmopolita, compreensivo diante do drama do Outro.
Na paixão que demonstra por Benvinda há, tamm, laivos embrionários
desse processo de humanização. Manuel da Bouça oferece a ela seu pouco dinheiro
para não vê-la sofrer, com a mãe entrevada, em fazenda desconhecida. Ao passo
que o discurso que separa dominantes e dominados torna-se mais clarividente, pelo
fato de Benvinda lutar verbalmente contra as maquinações do feitor, os dominados
se unem, não para provocar revolução, mas para uma auto–ajuda, uma cooperação
mútua. Mesmo a voz de Benvinda contra o feitor é insatisfatória. Acaba tendo de
partir, por orgulho em o aceitar o dinheiro de Manuel da Bouça e também pela
necessidade de não ser mais objeto nas mãos do feitor.
A família Joad, de As Vinhas da Ira, em nenhum momento é vista sob uma
perspectiva insurrecta, mas, como humanos unidos em busca da sobrevivência,
após o sonho de enriquecimento ter-se dissipado. O pouco que possuíam era
repartido entre os demais. Não luta de classe. A compreensão de que a luta de
classe seria inglória, é factual. Para tanto, o romance faz-se polifônico, entremeado
de capítulos em que os bancos e as fazendas têm voz, representando os poderosos,
provocadores de uma revolução tecnológica cujos fins justificavam os meios. Não
havia como lutar contra os poderosos. O discurso dos mesmos tolhia qualquer
possibilidade de insurreição, de modo que as personagens se vêem de mãos
atadas. Em Emigrantes, a participação de Manuel da Bouça em uma revolução dá-
se por acaso, nem mesmo ele sabia as causas e os porquês que o conduziam a
lutar. Ironia da inglória luta é o resultado da revolução para o protagonista: a morte
de alguns amigos e o fatídico roubo de um relógio a um morto. Este trecho, além de
salientar a atitude perscrutatória da protagonista, no tocante ao resultado de sua
112
trajetória ultramarina, demonstra que não havia em si motivações revolucionárias,
mas, tão somente o desejo de conseguir meios para retornar a Portugal:
Curtos passos dera Manuel da Bouça quando topou um homem
morto, estendido sobre a folhagem pardacenta e jorrando sangue
pela boca. “De onde diabo conhecia aquele tipo? Dali... Seria dos
Grandes Armazéns Paulistas?
Baixou-se a examinar melhor. “Já o tinha visto antes da revolução,
isso é que tinha!”
Era um rosto trigueiro, longo e ossudo, de grandes narinas e pele
carimbada pelas bexigas. Os olhos, nublados, estavam abertos, fixos
na ramagem do arvoredo.
Manuel da Bouça afastou-se, mas, alguns metros além, retrocedeu,
por curiosidade. “Quem seria?” Demorou-se a contemplar o cadáver,
enquanto forçava a memória. Reparou, então que o morto possuía
jóias: dois anéis na mão esquerda, um quase oculto pelo sangue que
envolvia os dedos, e uma corrente sobre o colete. “Quem seria?” Eu
conheço esta cara de alguma parte...” E partiu a matutar, os pés
ruge-ruge sobre as folhas, a carabina atirada ao ombro, em atitude
de marcha. Próximo do muro, parou novamente. Idéias vagas,
hipóteses, farrapos de decisões andavam-lhe no cérebro, andavam
lentamente, como nuvens que ocultassem o sol, sem lhe apagar,
porém, o fulgor. E metendo-se entre tudo aquilo, agora
esmorecendo, logo avivando-se, a sua aldeia. Ela e os seus
panoramas, os seus campos, os seus habitantes, a sua fascinação.
Surgia e desaparecia entre aquelas nébulas, mas deixava o peso
enorme da saudade. “Quem seria? “Muito pobre o era, pois tinha
bons anéis e corrente...”. Olhou em seu redor, cauteloso. Ninguém!
Todos os revolucionários haviam saltado o muro e agora os tiros
soavam ao longe. O parque estava em silêncio, abandonando-se
lassamente ao lusco-fusco, como se nada se tivesse passado ali,
como se nada se tivesse passando.
Nos olhos do meditativo continuava a projectar-se, esbatida,
transparente, a terra distante, longe, num recanto ignoto de
Portugal. “E eram precisos dois anos para tornar!”.
Agora, evocava o armazém, o seu quarto, o chefe das expedições,
os sacos e os caixotes a vida de todos os dias. “E ao fim de dois
anos iria com as mãos a abanar, pois, do dinheiro que juntasse,
pouco havia de sobejar da passagem e do resto”.
A possibilidade de imediato regresso ia-se tornando mais nítida, cada
vez mais nítida e alvoroçante. E era já fogo interior, a subir, a abrasá-
lo. “Para que ficar mais tempo? Para quê? Para trabalhar sem
nenhum futuro? Se ele fizesse aquilo, quem o saberia?”
Volveu-se para o lado onde estava o cadáver. A sombra da noite
apossava-se dele, ampliando-lhe o vulto, desvanecendo o vermelho
do sangue que caíra da boca para os ombros.
Manuel da Bouça previvia a sua partida para Santos, o embarque, a
visita à aldeia, o corte da existência que levava. “Ao morto tanto se
lhe dá... Se outros hão-de ficar com elas...” E repetia, verrumando os
escrúpulos: “Ao morto tanto se lhe dá...”.
113
Hesitou ainda; venceu-se e largou de ali. Depois, voltou-se e, numa
súbita imposição, correu para o cadáver, ajoelhou-se, fechou os
olhos e agarrou-lhe as mãos, para logo as abandonar, ao sentir nas
suas o sangue que as encharcava. Refez-se e nervoso, apressado,
volveu à tarefa, tirando os anéis e puxando pela corrente, que trouxe,
dependurado, um relógio. Sem nada ver, guardou tudo no bolso e
ergue-se rapidamente.
[...] nenhum tiro próximo lembrava a revolução. E ele começou a
andar, estonteado, passeio em fora, a caminho de casa. Metia a
álea ao jardim, quando ouviu na vizinhança tropel de cavalaria. Com
o coração a trepidar-lhe fortemente, foi, em salto brusco, esconder-se
atrás de um banco público. Mas a tropa passava ao largo, sem se
deixar ver sequer. E pouco depois os cascos dos cavalos soavam a
distância (p. 248-250).
[...] O tiroteio ressurgira, à esquerda, para os lados de Higienópolis.
Mas no espírito dele não ecoava com alvoroço. Ele sofrera como
que uma metamorfose. Agora tinha apenas receio. (p. 250).
Ao fim, cabe salientar que resta incoercível o fato de que em qualquer parte
do globo onde as desumanidades ocorressem, tudo se passaria da mesma forma.
Uma transformação, como a que ocorre em Manuel da Bouça, quanto à
conscientização da falácia da reconquista ultramarina, aparece no romance
Emigrantes como vislumbre das diferenças de classe, mas, com maior nica, a
fundamental consciência de mundo para o indivíduo que se encontra no cerne das
transformações mundiais. Uma espécie de humanização em processo, que tem
como necessidade premente compreender o Outro no espaço de origem deste e
desintegrar o mito de superioridade geográfica e de formação humana.
Ferreira de Castro, em Emigrantes, reconstrói a trajetória ultramarina iniciada
no século XVI, junto ao Brasil, salientando as diferenças que deveriam ser
processadas em povos europeus acerca de suas antigas colônias. Ocorre, pois, uma
quebra com a tradição, ao mesmo tempo em que se forma um amplo cenário para
análises imagológicas, que contribuem para ostentar um trabalho de fino trato com
um tema adsconso como o da visão européia sobre suas antigas conias.
Nesse processo de conhecimento e compreensão do Outro, instaurado na
narrativa romanesca do autor de Emigrantes, cabe vislumbrar atentamente o
próximo romance da sua produção literária, com um olhar tamm imagológico, a
saber, A Selva, no intuito de perscrutar a trajetória ultramarina de outro imigrante
português, agora um intelectual, Alberto, que passa a residir e trabalhar num
seringal amazonense às margens do rio Purus, no Pará
114
2.7. O romance de maior destaque na carreira literária de Ferreira de Castro: A
Selva
15
.
Cenário de contínuas adversidades, a Amazônia atraía, desde o início do
processo de colonização do Brasil, inúmeros exploradores, ávidos de
enriquecimento, trabalhadores em busca de sobrevivência, sujeitos à indomesticável
floresta, estudiosos e escritores de todas as origens e nacionalidades, buscando,
incansavelmente, destituir a imponderabilidade da floresta e revelar ao mundo as
atrocidades praticadas ou sofridas pelo homem nesse meio adverso à sobrevivência
e à lucidez. Expressando-se nesse sentido, o antropólogo Roger Bastide, inicia o
capítulo que trata da Amazônia brasileira, em seu livro Brasil, Terra de Contrastes
(1980), sintetizando todos os embates que a maior floresta tropical do mundo pôde
gerar no pensamento de muitos que com ela se defrontaram, aqui no Brasil:
Inferno? Paraíso? Terra que Deus criou no sétimo dia da criação?
Região de sonhos e de miséria? Filósofos, sociólogos, geógrafos não
sabem como definir este labirinto de águas, de flores, de lianas. Rio
mar, ilhas que surgem para desaparecer, terras que desabam e se
refazem. Nem paraíso como queriam os primeiros exploradores,
entusiasmados com a descoberta de frutos desconhecidos, de
sabores novos, de mulheres nuas para saciar volúpias de marujos
glutões nem inferno, como queriam viajantes fatigados da
imensidão verde, picados por insetos, temendo perder-se, sumir
sentindo a inteligência dissolver-se lentamente, pensamento e corpo
transformando-se em água... Mas, talvez paraíso transformado em
inferno pelo homem, na sua ânsia de extrair riquezas de tudo,
comercializando a árvore e o capim, metamorfoseando em dinheiro o
suco das plantas, o veneno dos cipós, o colorido dos pássaros. E
neste desejo, escravizando o índio, deslocando populações, atirando
para o pântano o homem dos desertos secos, encadeando-o por
dívidas às cooperativas dos trustes capitalistas, à exploração
perpétua das árvores da borracha. (BASTIDE, 1980, p. 23)
É sob o signo desses contrastes, gerados ora pelo olhar direcionado à
impetuosidade da floresta, ora pela atitude de denúncia contra o capitalismo
extrativista que massificava os indivíduos para o trabalho árduo e tinha consigo a
15
Retomando, a edição de A Selva, utilizada neste trabalho, salvo outra menção, será a da Editora
Verbo, publicada em 1972.
115
dimensão da floresta como aliada do seu processo desumanizador, que, incontáveis
escritores ambientaram suas obras e carregaram nas tintas as cores do drama dos
homens, no seio da floresta fechada. Destaque a estes se dá a Ferreira de Castro, o
qual soubera, como poucos, dosar a cota de drama e realidade emergentes da
floresta em sua obra máxima, A Selva.
Conforme Jorge Amado, Ferreira de Castro, com A Selva, legou ao mundo
mais do que sua experncia vivida, deixou, pois um relato documental da realidade
amazônica, pois, como afirma no Prefácio da edição de 1972 do romance,
Aprendeu no Brasil muito do essencial de sua personalidade de
humanista, na selva o menino se fez homem e grande homem. Em
troca, tomou da vida brasileira, do mistério amazônico, e levou seu
conhecimento aos quatro cantos do mundo, na emoção da obra
criada com o barro das barrancas do grande rio e sangue dos
nordestinos na luta dos seringais. (AMADO, J. In. FERREIRA DE
CASTRO, J.M. A SELVA. o Paulo: Civilização Brasileira 1972, p.
17-20)
Para o crítico literário Manuel Anselmo, Ferreira de Castro dá voz às camadas
discriminadas da sociedade amazônica, ao trazer consigo “o depoimento humano
que haveria de imortalizar suas personagens mais importantes” (ANSELMO, 1943,
p. 224-231)
O próprio Ferreira de Castro, no artigo “Pequena História de A Selva”,
publicado na edição comemorativa dos vinte e cinco anos do romance, em 1955,
reafirma a dimensão que a floresta adquirira em seu olhar, no momento de sua
escritura. Uma espécie de metalinguagem, ao tocar na maneira como escreveu seu
grande romance:
As selvas,fechassem elas o seu mistério nas vastidões sul–
americanas ou verdejassem, mais permeáveis à luz solar, na Ásia,
na África, na Oceania, representavam, desde muito, um assunto
maculado literariamente. Maculado por milhentos romances de
aventuras, onde a imaginação de seus autores, para lisonjear os
leitores fáceis, se permitira todas as inverossimilhanças, todas as
incongruências.
Eu pretendera fugir à regra. Pretendera realizar um livro de
argumento muito mais simples, tão possível, tão natural, que não se
sentisse mesmo o argumento. Um livro monótono porventura, se não
pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o próprio
cenário, em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos
116
induzisse ao exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse
uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória, ao mesmo
tempo admirável e temível, como são as de carne, sangue e osso. A
selva, os homens que nela viviam, o seu drama independente, uma
plena autenticidade e nenhum efeito fácil era essa a minha
ambição. (FERREIRA DE CASTRO, 1955, p. 21-25)
Para debater contra um cenário que apresentava tanto a degradação humana
quanto a espoliação, em plena floresta amazônica, no icio da cada de 1920,
Ferreira de Castro, em A Selva, constrói a personagem Alberto, um português,
dotado de uma cultura rígida quanto aos padrões morais edificados pela cultura
judaico-cristã, em Portugal. É por intermédio de Alberto que os imagotipos surgem
na obra, visto que, no continuum narrativo, esta personagem revela-se
preconceituosa em relação às pessoas que viviam e trabalhavam no Seringal
Paraíso. Como o narrador se posiciona rente à perspectiva de Alberto, a visão que
comumente se constrói sobre Ferreira de Castro em relação a A Selva, é a de um
antibrasileiro, detrator da imagem do Brasil. Isso ocorre também pela imediata
identificação de Alberto com Ferreira de Castro, quando se percebem traços
autobiográficos no romance, haja vista que a personagem principal de A Selva fizera
trajetória semelhante à do escritor, quando este, em sua adolescência, abandonou
Portugal e veio para o Brasil, a trabalhar em um seringal amazônico às margens do
rio Madeira. Conforme salientam Saraiva e Lopes (2000, p. 1025), o fato de Ferreira
de Castro constituir-se em um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos
deve-se a que os dois romances ambientados na Amazônia Brasileira: A Selva e
Instinto Supremo, traduzirem a experiência, a então mal conhecida, de imigração
em um seringal da floresta amazônica brasileira, vivida, na prática, pelo escritor de A
Selva.
Não obstante, a confusão entre personagens e autor deve ser afastada, dado
o distanciamento de perspectiva que, mediante os recursos teóricos dos quais a
Imagologia lança mão, se percebe entre o discurso do narrador e o discurso de
Alberto. Fato que deve ser reiterado é o da escritura do romance. Ferreira de Castro
manteve-se, dos dezesseis aos trinta e dois anos, afastado do tema, para que
pudesse repudiar marcas biográficas que não estivessem em consonância com a
imagem que, na maturidade, possuía acerca da Amazônia brasileira. Ademais, como
se nota, indelevelmente, Alberto se transforma, na medida em que vai, aos poucos,
117
galvanizando um conhecimento do mundo amazônico que deveria contemplar os
detratados e ascender o sentimento de pertença ao grupo dos desvalidos e
engolfados pelo sistema extrativista e pela floresta desumanizadora.
Em uma das edições mais correntes de A Selva, trazida a lume pela Editora
José Olympio, há, logo na capa, um bico-de-pena do reconhecido gravurista Poty,
retratando uma mistura de homem e árvore, um homem abraçado, dolorosamente,
por uma seringueira, a ponto de ser estrangulado por ela. A ligação desigual entre
estas figuras, homem e árvore, reforça o embate que a obra edifica com lapidar
propriedade, qual seja, a luta entre o homem e o meio adverso, na gana de ambos
pela conquista de sobrevivência e supremacia.
Em A Selva, cabe muito mais à floresta tropical sugar a seiva vital do homem
do que, propriamente, o homem valer-se da floresta como atributo de exploração. A
primeira é mais forte e aparece, no construto literário, a partir do prisma de que se
vale Alberto, envolta em um halo de paradoxos que, ora a transformam em paraíso
terreal de imeras possibilidades, ora em inferno, rcere imponderável, inimigo e
reflexo da perda da esperança de enriquecimento fácil. Ao homem, frágil diante da
supremacia vegetal, reservam-se as lamúrias, advindas da sua própria condição de
ser encarcerado. Perdido dentro das grades de trepadeiras, samambaias e igarapés
paludiais; cercado pelas águas dos imensos rios amazônicos e iludido pela ambição
de riquezas, o homem, ínfimo, é engolfado pelo meio, nas brenhas da imensidão
verde, e, o que poderia ser apenas mais um drama literariamente construído acerca
da espoliação capitalista, adquire uma dimensão mítica e simbólica que foge aos
limites do aparente relato social e recria, no cerne da tradição européia dos relatos
de viagem, a trajetória de uma personagem como protótipo do conquistador
português dos tempos das grandes navegações, que se vê, aos poucos, combalido
pela necessidade de ser humanamente compreensivo num mundo de desvalidos e
espoliados.
Por essa esteira, seria plausível uma relação autobiográfica entre Ferreira de
Castro e Alberto. O primeiro, quando desembarcou no Pará, certamente veio
imbuído de conceitos pré-formados sobre o Brasil, calcados, a exemplo do que
ocorrera com o protagonista que constrói em A Selva, em sua formação judaico-
cristã. Mas, esses conceitos, aos poucos, foram sendo superados, por conta da
experiência com inúmeros indivíduos, reunidos sob a aura dos mesmos conflitos
enfrentados na mata fechada. Com isso, o drama presente em A Selva, deixa de ser
118
pontual para ganhar marcas de universalidade, pois traz à tona não a relação
conflituosa entre os nordestinos brasileiros e os seringalistas, ambientada na floresta
amazônica brasileira, porém o drama perene entre o homem e o meio natural. Nesse
caso, um meio natural que de tão prolífico e dual escondia dentro em si outro drama,
o social, na luta contra as desigualdades.
E assim se configuram o homem e a floresta em A Selva: a glória e o
desespero, o bem e o mal, na esfera de um único círculo significativo, o da
dominação; u e seu carrasco convivem juntos, num mesmo corpo, que não se
sabe humano e também não se sabe vegetal.
Embrenhado no meio da mata virgem a marcar roçados de seringais para
serem cortados, o homem se perde diante da copiosidade do meio e, engolido pelo
silêncio, sente o desejo de ouvir a própria voz e saber se ainda é humano, se ainda
fala, se ainda não se misturou à mata sibilina, assim como o homem retratado nas
estilizações de Poty, abraçado impetuosamente por uma seringueira. Então grita, um
grito que é, pois, ao mesmo tempo, símbolo da transformação do homem mediante a
zoomorfização - no ato de gritar estaria arraigado um gesto instintivo, animalesco, de
marcar território - quanto verdadeiramente humano, do desespero que emana da
fragilidade do ser, defrontado com um meio geográfico impetuoso e desigual, como
ocorre com o quadro “O Grito”, do norueguês Edward Münch.
A trajetória narrativa de A Selva assemelha-se a de Emigrantes.
Surpreende-se, numa primeira fase, a chegada de Alberto, um português, exilado
devido ao fato de contrariar os interesses dos republicanos, que, então, no início do
século passado, ascendiam em Portugal. Logo quando desembarca, seus gestos de
repulsa frente a um meio estranho, com o qual é confrontado, evidenciam que
diferencia-se dos brabos”, dos nordestinos, atraídos pelas promessas de
enriquecimento com a borracha. Isso se devido à formação cultural rígida que
pudera ter em Portugal, em contraste com indivíduos simples, de modos ingênuos e
pouco afeitos às “virtudes” européias.
Esse período, da chegada de Alberto rumo a Belém, no Pará, e dali para o
seringal paraense, ironicamente denominado Paraíso, bem como o período de sua
inicial transformação, diante de uma camada de sofredores, representaria a primeira
fase do romance.
A segunda fase é seguida da mudança de comportamento de Alberto, não no
sentido das transformações presentes nas personagens dos romances realistas da
119
década de 1870, em Portugal, sob influências de Zola e do determinismo de Taine,
que enxergava os indivíduos como autômatos sociais, mas uma mudança
sumariamente humana, empática, de aceitação da diversidade do Outro e da
sensação de ser igual ao Outro. Sob os auspícios dessa mudança, Alberto, com o
dinheiro que a mãe constantemente lhe enviava de Portugal, embarca de volta para
Belém, levando consigo, na bagagem composta pelo palimpsesto da convivência
diante da diversidade, a lembrança dos inúmeros amigos que fizera no seringal
Paraíso, além, sobretudo, das duras lembranças dos maus tratos desferidos pelos
seringalistas aos seringueiros, desde o pagamento irrisório até as surras desferidas
contra os negros, que, pouco haviam adquirido a liberdade com a lei Áurea e
deviam se adensar à imensa massa de proletários.
Tanto Alberto como Manuel da Bouça retornam a Portugal. Um retorno que
não carrega consigo, em nenhum dos dois casos, o desprezo pelo Brasil, mas a
concepção de um mundo mais amplo, que poucos davam-se conta de enxergar. Um
mundo que não se prendia a um espaço geográfico circunscrito, mas o ultrapassava,
como se à compreensão humana não pudessem ser edificadas cercas.
Essa última parte do romance termina quando Tiago, possuído por toda
revolta, coloca fogo no seringal Paraíso. É o paraíso transformado em inferno,
mbolo da perda de toda esperança diante dos enganos da propaganda do
enriquecimento fácil. Alberto retorna a Belém na esperança de um dia retornar a
Portugal e tornar blica as desumanidades praticadas em meios absconsos, como
era a floresta amazônica, à época da extração do látex.
Em um plano comparativo, tanto Emigrantes quanto A Selva têm seu
substrato narrativo findado com a esperança futura de suas personagens principais.
Manuel da Bouça congratula-se com a expectativa de um futuro melhor e Alberto,
numa antevisão, fruto de um sonho, vê-se em um julgamento, defendendo o ato de
Tiago ao colocar fogo no seringal.
A construção narrativa de Alberto, um português em constante embate com
espaços físicos e humanos, revelando, no início da narrativa, aspectos da tradição
européia como superiores aos valores que encontra no Brasil, salientados pelos
juízos de valor reducionistas impregnados em seu discurso sobre os nordestinos, é
uma das grandes questões que se coloca acerca de Ferreira de Castro e seus
posicionamentos diante do Brasil. Tal como Alberto, Ferreira de Castro tamm viera
ao Brasil e trabalhara em seringais.
120
Para o leitor mediano, a íntima relação entre o discurso do narrador e o
discurso delegado pelo narrador à personagem de Alberto seria suficiente para
confundir os dois, como se fossem a mesma entidade narrativa, de forma que quem
narra seria, num jogo de espelhos, o mesmo ente que vive o fato narrado. Ao
identificar Ferreira de Castro com o narrador e, por conseguinte, com as
características de um Alberto inicial, antes da compreensão maior do mundo, o leitor
mediano tem atribuído ao autor de A Selva adjetivos que põem em dúvida o real
interesse social e estético que manteve, ao produzir uma obra que traz consigo
imagens que, em nenhum momento intentam uma visão científica e indissolúvel das
singularidades da floresta amazônica brasileira, seu povo e sua cultura, mas, ao
contrário, buscam instaurar o drama universal que seu romance percorre.
Cabe, então, salientar, que a obra A Selva é de interesse fulcral para os
estudos imagológicos devido a vários motivos, como: a) o fato de Brasil e Portugal
estabelecerem relações de proximidade e distanciamento desde o descobrimento do
Brasil, em 1500, com as imposições mercantilistas e a literatura de promissão
produzida por portugueses sobre o Brasil; b) o desvelo da Imagologia pelo interesse
que é atribuído pelo público a determinada obra, ou seja, os fatores que levam à
circulação de uma obra de arte literária, mantenedora de relações interculturais,
como é o caso de A Selva, traduzida para dezenas de línguas, como o alemão, o
espanhol, o francês, o neerlandês, o búlgaro, o esloveno, o inglês, o holandês, o
húngaro, o italiano, o servo-croata, o norueguês, o polonês, o romeno, o russo e o
sueco; c) no cerne das relações interculturais, a preocupação imagogica em
deslindar elementos de trabalho peculiarmente literário, como a construção de
personagens e de narradores, e o papel do autor diante de todo o construto literário
por ele praticado. Dessa forma, romances como A Selva, em que se observa um
autor português construindo imagens sobre o Brasil, numa obra literária cuja
personagem principal tamm é um português, de trajetória ficcional próxima da
trajetória biográfica do autor que o construiu; d) finalmente, por intermédio do
interesse da Estética da Recepção, que contribui teoricamente com a Imagologia,
vislumbrar o leitor como fator primordial na construção de sentidos em uma obra,
sobretudo no que tange às inferências sobre as aberturas que toda obra de arte
literária possui, devido ao alto grau polissêmico que mantém.
Com isso, não se despreza, no todo analítico, nem o fator social que mobiliza
a produção de A Selva, como romance fundamental do conjunto das obras de
121
Ferreira de Castro, com o qual se alia, não raro, seu nome, nem os atributos
estéticos que fazem dela uma obra atemporal. Ao contrário, visa-se, mediante a
Imagologia, a uma análise que contemple o trabalho social e o estético, como
fatores em intensa simbiose, capazes de gerar efeitos múltiplos: alguns acertados,
outros preconceituosos, outros ainda duvidosos, e todos, enfim, passíveis de um
diálogo contrastivo, questionador, à luz imagológica.
Como, no início do romance, a visão de Alberto é parcial, não pode
contemplar o todo em sua amplitude sígnica. Porém, os arquétipos que carrega,
calcados na cultura européia, o impelem para tal, de modo que recria, a partir do
cenário amazônico, distinto das paragens européias, um mundo fantástico,
imaginário.
Levando a cabo os posicionamentos de Hugo Dyserink (1999) a respeito da
recriação que o “Eu” pode fazer do “Outro”, a própria universalização, quando
efetuada a partir de valores arquetípicos fixos, impregnados à tradição, constitui-se
reducionismo de visão, pois foge do particular para o macrocosmo, de forma que
nem todas as leis que regem e determinam o “todo são suficientes para abarcar as
singularidades da “parte”.
Para o leitor mediano, que se importa somente com a verossimilhança do que
é narrado, gerada pela trama, não fica patente a visão de reducionismo presente no
vislumbre de Alberto, o que o faz aceitar a trama sem atentar para a carga
ideológica insuflada por detrás da linguagem e dos códigos que decodifica de modo
simplista e monofocal, isto porque, como, aliás, apresenta Candido (1972) a
propósito de Fogo Morto, de José Lins do Rego, e que tamm pode ser utilizado
para observar A Selva:
A concentração, limitação e obsessão dos traços que caracterizam
as personagens se ordenam convenientemente neste universo, e são
aceitos pelo leitor por corresponderem a uma atmosfera mais ampla,
que o envolve desde o início do livro (CANDIDO, 1972, p. 7-36).
Traços dessa referida universalização do meio amazônico a partir de uma
gica arquetípica européia ocorrem em vários trechos, como, por exemplo, quando
Alberto se depara com a floresta pela primeira vez e sente-se impelido a definí-la e
122
sintonizá-la para si, buscando modelos melhor adaptáveis a tudo aquilo que
vislumbra:
Evocado dali, Portugal era uma quimera, não existia talvez. Pequeno
e longe, os que o levavam na memória não estavam certos se
viviam em realidade ou se sonhavam com as narrações dos que
tinham voltado das descobertas. Vendo os contrastes que se
agigantavam de dia para dia, a própria personalidade deles entrava
em dúvida e todo o passado se esfumava momentaneamente, tudo
lhes parecia. Eles seriam, porventura, uma alucinação sobrevivente
de alguém que morrera pensando em fábulas bíblicas, em mundos
pré-históricos, e, quando menos o suspeitassem, desvanecer-se-iam
totalmente, como espectros de pesadelo. o perigo, mais temido
do que em outra parte, por usar scaras desconhecidas, os
reconduzia à realidade, humanizando-os ante eles próprios (p. 87).
O fato de se relacionar a floresta e as cidades com o mundo fabuloso do
itinerário mitológico torna a perplexidade da floresta inteligível, porém, a comparação
com o mundo europeu a distingue no âmbito de uma perspectiva negativa. Agora, o
que antes para o protagonista era infernal (ou seja, o Portugal repressor cujos duros
princípios estatais o fizeram vir para o Brasil, exilado) surge como paradisíaco, porto
seguro, para onde o retorno do mundo infernal seria imprescindível. Logo após
chegar ao seringal, ressurge Alberto em suas perspectivas:
A partida do “Justo Chermont” abrira na alma de Alberto uma nova
amargura, um súbito e contraditório amor ao navio, não pela sua
terceira, mas por algo de imponderável, de indefinível que ele
representava, quando acostado ao porto. Parecia-lhe que ficava
agora mais só, mais isolado do Mundo. E quedou-se a segui-lo com
a vista, a seguir duas chaminés que iam fumegando rio acima, mas
que em breve e sem ele fumegariam também rio abaixo, para
Manaus e Belém sobretudo para Belém, que ficava apenas a
quinze dias de Portugal... (p. 97).
Há, amiúde, uma alteração de perspectiva, donde a imagem pendular é
particularmente intransponível. O que antes era inferno, agora é paraíso e o paraíso
agora é inferno, tornando evidente, não uma comparação justa, mas a limitação do
olhar diante do Outro, reduzindo-o a uma única e simples significação.
123
No trecho subscrito ocorre, até mesmo, o questionamento da denominação de
“cidade” às cidades amazônicas, sugerindo, pois, que o nome derivado de polis, do
grego, remete-se ao mundo civilizado, ou, em outros termos, ao mundo europeu,
arquetípico. Porém, num mundo fabuloso, não poderiam ser chamadas de cidades.
Isto deixa entrever que, ao redefinir as cidades amazônicas, o intento do
protagonista busca fugir dessa denominação, por julgar o mundo da floresta um
mundo inculto, preso ao domínio sacralizado do universo mítico, do qual, no
momento das cidades–estado gregas, os próprios helenos se tinham afastado e
encaravam o mito como alegoria. Isso destaca a condição de atraso da Amazônia
em relação ao mundo que Alberto concebe como civilizado, o mundo europeu, onde
qualquer vila” seria superior a uma dessas cidades que passam por seus olhos, a
bordo do Justo Chermont:
Alberto surpreendia-se ante a prodigalidade com que os homens do
mando distribuíam categorias: qualquer daquelas cidades, embora
simpáticas na sua modéstia, não igualava sequer a uma vila da
Europa. As ruas estavam forradas de capim, e não era difícil contar,
por maioria, as casas cobertas de folhas de palmeira. “Cidade, por
quê? Erro grosseiro dos colonizadores portugueses ou simples
valorização tributária, feita por políticos brasileiros? Chamando-se
cidade àquilo, o que se devia chamar ao Rio de Janeiro”? De súbito,
ele visionava, por imperiosidade do próprio espírito, imensas urbes
rompendo do mundo fabuloso, nessas margens onde agora
existem humildes povoados ou apenas selva, fechada em sombra e
mistério. (p. 70).
Se em trechos iniciais do romance o narrador compara Manaus à cidade
sagrada de Constantinopla, quando ocorre a dessacralização do mito, surge a
realidade observada pelo prisma da personagem Alberto, de modo que a atenção
desloca-se dos centros seringalistas para a periferia das cidades menores, cujo
destino seria ceder lugar à impetuosidade da luxúria florestal:
A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e
descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca
em tapera, dali a dez, a vinte, a cinqüenta, não importava a quantos
anos mas um dia! Seria pelo esgotamento das seringueiras, seria
124
pela intervenção dos selvagens, chacinando os desbravadores, seria
por outro motivo – mas seria! (p. 167).
Nesse sentido, o espaço da floresta amazônica ressurge como um solo
escondido, exigindo de Alberto duas reações que se intercalam no decorrer de todo
a narrativa de A Selva: ou entrega-se em devaneios perante esse espaço que lhe é
estranho e adverso ou lança-se a uma luta desmesurada contra a mata, com o
objetivo de adquirir a posse da terra. A fim de alcançar esse último propósito, deve
adaptar-se ao meio, que, para ele, como português, era adverso:
Alberto tinha a sensação de se encontrar num cárcere, sem pena
fixada, sem dia marcado para a abertura da porta. Eram as cifras seu
tormento, elos da corrente que ali o prendia ao tempo e o levava a
íntimas inquirições: “Um conto, setecentos e quarenta mil réis... Dois
anos? Cinco anos? Ou toda a vida?”
Essa falta de prazo tornava-se obsessiva. Não se adaptava. Sentia-
se sempre provisório, desejoso de partir e desesperava-se ao
verificar que ainda pouco chegara. Era outro o meio, outra a terra
e outros os seres. (p. 170).
Desse modo, para Alberto, as impressões e sensações que possui acerca da
terra correspondem ao olhar europeu, um olhar da tradição ocidental, acostumado a
observar a floresta das terras conquistadas como possuidora, dona do solo que lhe
pertence. A mata imensa parece-lhe não ter fim, é desmesurada e ocupa todo o
horizonte que se constitui diante de seus olhos. consegue enxergar a vegetação
e, como afirma o narrador, “metamorfoseando”-a, de modo “luxuriante”, à sua frente.
A dificuldade em aceitar e compreender a grande extensão da floresta
predispõe Alberto a diversos devaneios, ao longo da narrativa, de sorte que, nesse
momento, cabe lançar mão dos estudos de Gaston Bachelard sobre o espaço e os
devaneios. Em Poética do Espaço, o estudioso afirma que a contemplação da
grandeza determina uma atitude o especial, um estado de alma tão particular, que
o devaneio põe o sonhador fora do mundo mais próximo, diante de um mundo que
traz a marca do infinito” (1990, p. 475). É lícito afirmarmos, portanto, que Alberto
transcende as barreiras do factual e atinge a esfera do sonho presentificado no
125
estado de vigília, a fim de ordenar em sua mente o suposto caos observado à sua
volta. Conforme assevera Bachelard, “a imensidão está em nós. Está presa a uma
espécie de expansão do ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que
volta de novo na solidão” (op. cit. p. 475). Nesse sentido, a floresta sobretudo, com
o mistério de seu espaço indefinidamente prolongado além da cortina de seus
troncos e de suas folhas, espaço encoberto para os olhos, mas transparente para a
ação, é um verdadeiro transcendente psicológico” (idem, p. 476); por isso a
personagem também se torna “imensa” quando em contato direto com a natureza, e
se eleva aos elementos oníricos:
a)
A princípio, ainda os olhos fixavam o revestimento deste ou daquele
tronco e de outro, mas depois abandonavam-se ao conjunto, porque
não havia memória nem pupila que pudesse recolher tão grande
variedade. (p. 104).
b)
O silêncio tinha, enfim, uma síncope. A selva começava a falar no
olvido da noite. Surgiam por toda a parte rumores estranhos e
imprecisos um rala-rala sem nexo a encher os ouvidos de Alberto.
(p. 107).
c)
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde
dificilmente um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A
selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em
força e categoria, tudo abandonado a um plano secundário. E o
homem, simples transeunte, no flanco do enigma, via-se obrigado a
entregar o seu destino àquele despotismo [...] A árvore solitária, que
borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a
sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante,
impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os
monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos
os lados. Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo,
onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o
seu segredo, com o seu mistério flutuante e suas eternas sombras,
que davam às pernas nervoso anseio de fuga. (p. 115).
Em dado momento, o narrador chega a utilizar o termo “embruxado” para
referir-se aos vislumbres de Alberto em relação à floresta, de forma que novamente
ela aparece numa aura mítica:
126
Fiapos e limos secos pareciam agora tranças de ouro, que sílfides
fugidias tivessem deixado presas ao arvoredo. Dir-se-ia que o gênio
da noite, de onanística visão, se comprazia em criar imensa gruta
transparente, ímpar e assombrosa, onde se fabricava medo e
sugeria, ao mesmo tempo, a idéia da morte como uma volúpia.
Embruxado pelo ambiente, Alberto viu, pouco a pouco, as escamas
de prata alongaram-se e, com elas, mãos invisíveis irem modelando
um corpo feminino, esbelto e nu. E agora os olhos dele
transportavam adormecida mulher, que uma nesga de lua envolvia,
como um véu diáfano. (p. 143).
Dessa forma, o espaço amazônico abriria, ao homem que o enfrenta, duas
possibilidades: ou se submete a ele e passa a viver passivamente, em meio a um
paraíso natural, aceitando os atavios e enigmas da mata, ou aceita-se a tarefa de
dominá-lo e subjugá-lo. Quando percebe que a floresta se posiciona fortemente
contra seus desígnios, desiste do intento e passa a se adaptar lentamente ao meio.
Porém, o silêncio por ele sentido na floresta, quando se a carpir roçados e
abrir estradas para a exploração da borracha, é opressor. Desta perspectiva,
portanto, a floresta Amazônica se caracteriza pela imensidão o penetrada e pelo
silêncio que predispõe Alberto à reflexão.
Por outro lado, é a atmosfera imensa das florestas tropicais que apequenam o
homem e criam a sensação e o ambiente de poder e de força, perante o qual,
Alberto, recorrentemente, se entrega aos eflúvios meditativos, e se recolhe a si
mesmo, questionando-se depois, no que concerne à viabilidade de estar presente
neste mundo que lhe é distinto ao conhecimento. A floresta, neste sentido, pode ser
interpretada como um elemento de desencanto da consciência da personagem
acerca das relações que estabelece com o mundo que a cerca e, ao passo em que
Alberto a tenta conhecer, mais enredado a ela se encontra, e se perde, e se prende.
Embora a floresta seja formada por um solo fértil e uma natureza abundante,
oferece obstáculos à conquista humana. Esta “teimosia” natural, apresentada tanto
pelas terras tropicais quanto pelas equatoriais do Brasil, em relação à coexistência
harmoniosa com o homem, exige dele perseverança, e, sobretudo, um trabalho
árduo, pois se o solo conquistado à floresta não for continuamente cuidado e
“domado”, a vegetação o cobrirá por inteiro, levando de vencido todo o território
127
conquistado pelo homem. Desse modo, o trabalho humano envolve um esforço
hercúleo, para não se deixar levar e ser engolido pelo meio agreste e copulativo da
floresta, que mais cresce quanto mais se apara. Como manifestação contrária às
atitudes humanas é que a floresta de modo metafórico se fixa, ao oferecer barreiras
a essa sua humanização; daí, certamente, o nome “selva” dado ao romance, ou
seja, enquanto as florestas tropicais de outras regiões do Brasil se deixavam
dominar pela ação do homem como um dos principais agentes modificadores do
espaço geográfico, a floresta amazônica, em A Selva, é realmente selvagem às
vistas de Alberto, e se sobrepõe ferozmente contra a dominação humana, engolindo
tudo o que lhe surge à frente. Levado de vencido, o homem se sujeita a ela e cede-
lhe o que ainda possui de humano em si. Com o tempo, perde o desejo do diálogo,
se internaliza ao meio e, movido por esta adaptação a um lugar adverso, cujo
ambiente vê-se marcado pelo horror, força-se a cometer as mais bárbaras atitudes,
como a zoofilia, o assassinato e a exploração de outros homens. Desse modo, a
influência do espaço sobre as personagens revela-se, neste caso, a partir de seu
modus vivendi.
No transcorrer narrativo de A Selva, o percurso empreendido através da mata
atávica também se presentifica na sensação de imensidão inexplorada, que o
narrador, ao se posicionar rente ao prisma de Alberto, percebe, perplexo, ante a
nova experiência do protagonista. De modo tal que não mais logra traduzir, mediante
um discurso lógico, suas exposições.
Em um âmbito macro–analítico, as imagens utilizadas por Ferreira de Castro
na configuração do espaço brasileiro, em A Selva, traduzem o litígio interior de suas
personagens, que devem transpor a barreira natural do espaço edênico para se
desalienar do processo social entorpecedor.
Nota-se, ademais, que a “selva” é substantivos feminino. Vista como virgem e
demoníaca ao mesmo tempo, ou virgem demoníaca (para criar um efeito que
congregasse a proposta maniqueísta presente na personagem Alberto), pode ser
interpretada como força da libido dos homens que ocupavam aquele local, vivendo,
como descreve o narrador, em constante estado de promiscuidade. A dominação
sobre a selva é, também, uma dominação sexual. Trata-se de uma selva luxuriante,
libidinosa, que se estende às atitudes dos homens que a habitam:
128
Continuava a importuná-lo a promiscuidade em que a vida se
realizava ali, a igualdade em que todos se fundiam, como se cada
um não tivesse o seu temperamento, as suas predileções, a
autonomia que ele desejava para si [...]. (p. 59).
Mais tarde, quando se inicia seu processo de adaptação, Alberto também
começa a demonstrar espasmos libidinosos, influenciados pelo meio:
Estendeu o braço e apanhou a flor. Quanto valeria aquilo em
Portugal! E a mata estava cheinha delas! Eram orquídeas preciosas,
de recorte singular e cores surpreendentes, cataleas de talas
tersas de lírio, que tinham algo de sexo virgem e fascinavam com a
ilusão.
Abaixou-se rapidamente e, passada a ramaria, que fechava o
caminho, os seus olhos volveram-se, ainda um momento, para a
catalea. Atirou-a finalmente à água. Ela quedou-se a flutuar, as
pétalas abertas, a haste mergulhada uma estrela acendida na
superfície negra.
Mas, para diante, existiam mais, muitas mais. Era um jardim
suspenso, cores de aquarela no verde imperante – surpresa com que
a floresta aligeirava a sua densa monotonia. Faziam-no pensar em
lábios carnudos de mulher, teimavam em sugerir-lhe órgãos secretos
femininos, ele arrancava ao sonho pares excitados, que as colheriam
voluptuosamente. (p. 180-181).
Para Alberto, o meio estava envolto em constante luxúria. As próprias flores,
que inicialmente fariam perceber a beleza natural com que o meio se formava,
constituíam imagens outras, que, ora dessacralizada, a flor tornava-se algo de valor
monetário, d a interjeição, advinda do discurso indireto livre: “Quanto valeria aquilo
em Portugal!”, ora a metáfora utilizada para a palavra flor que Alberto apanha lhe
sugere o órgão sexual feminino. Diante do fascínio demonstrado, pois arrancava ao
sonho pares excitados, que as colheriam voluptuosamente”, Alberto sente-se
incomodado e atira-a nas águas, como se aquela flor o pudesse corromper.
Atitude ainda mais forte do protagonista ocorre em outro momento, anterior a
este, quando presencia uma cena de zoofilia. Veja-se:
Entraram, por fim, na barraca, e tendo Firmino abatido uma cotia,
entregaram-se à estirpação. Pouco depois Alberto enxergou, atrás do
129
canavial, algo de muito estranho, que o deixou estupefato. A égua
fora levada para ali e junto dela estava Agostinho, trepado num
caixote, com a roupa descomposta.
Não quis acreditar. Abriu muito os olhos, fixou melhor. Não, não era
ilusão.
_ Firmino! Firmino... Olhe... – murmurou no seu espanto.
O mulato riu em catadupa e gritou Agostinho:
_ Aí, seu cabra escovado!
Alberto quedou-se a contemplá-lo, sombria e severamente.
Vendo aquela expressão reprovadora, Firmino inclinou a cabeça e
disse com voz sumida:
_ Não há mulher... Que vai um homem fazer aqui?
_ É horrível! É horrível!
_ Também seu Alberto irá, um dia, laçar vaca ou égua...
_ Eu? Não diga isso! Proíbo-lhe que me diga isso, ouviu?
_ Você verá seu moço, você verá... Deixe chegar o dia...
As suas mãos pararam na limpeza da cotia, como se repentinamente
se alheassem do que faziam.
Alberto abandonou a alpendrada, vencendo o impulso de esbofetear
o companheiro. dentro, deixou-se cair na rede, a lutar com o asco
que lhe incendiava os nervos. “Não havia mulher. Porcos!
Miseráveis! Como a bordo, sentiu-se novamente diferente e de todo
separado daqueles homens pelo nojo que lhe provocava. Não poder
fugir dali, fugir de tudo aquilo, libertando-se do pesadelo! (p. 131-
132).
O espaço, de acordo com Bachelard (1990) instaura, nas personagens, a
perspectiva fenomenológica do “entorno”. De acordo com isso, tudo o que se liga
direta ou indiretamente com o espaço primordial, no caso, a floresta, manifesta as
mesmas características por ela apresentadas. As mais fortes, certamente, m
íntima relação com a exploração humana e com o sensualismo. Alberto demonstra
as atitudes dos europeus conquistadores, quando exterminavam culturas diferentes,
pela atitude que manifesta acerca da idéia de um mundo em constante
promiscuidade. Apesar de a luxúria de um mundo ideal em que todo tipo de
manifestação sexual não significava necessariamente pecado, porque estava ligado
diretamente aos elementos distintivos do mundo americano, para o europeu que
fundamentara seu ideário particular no ideário cosmogônico da cultura cristã,
qualquer espécie de manifestação sexual que não correspondesse à procriação,
significaria pecado. O que explica a atitude de Alberto frente à cena de zoofilia,
acima transcrita, e ao fato de ter jogado no rio a flor que lhe trazia a idéia de órgão
genital feminino.
130
Essa construção da personagem Alberto é que certamente conduziu à
assertiva de alguns críticos e leitores, como sendo um escritor antibrasileiro, como o
fez a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) à época da publicação da edição
brasileira de A Selva, em 1935. O que Ferreira de Castro faz magistralmente é jogar
com os imagotipos. Seu real objetivo era literário e, tamm, social, e o o de
mostrar a Amazônia, e o Brasil, por extensão, como um inferno em si, mas a vida de
homens explorados na selva. De modo que a selva, na obra do escritor português,
não é a mesma do escritor norte-americano Jack London, ou a de Kippling, não é a
selva do exotismo, mas o lugar onde se passa um drama de exploração social.
A atitude tomada por Alberto no momento da cena de zoofilia corresponde às
atitudes de um português católico, baseado no lastro de sua cultura, vivendo em um
local que, para ele, não era evoluído. Com o tempo, forçosamente Alberto vai se
adaptando ao meio, pois a floresta é superior às imposições humanas e o mundo
“luxuriante” o domina.
O final do romance ressalta a intenção social do narrador, no momento em
que o escravo alforriado Tiago põe fogo no seringal Paraíso. Trata-se de um
momento decisivo em A Selva, em que o “Paraíso” se transforma em inferno,
consumido pelas chamas e desvelando definitivamente a conformação social que
envolve todo o romance:
Acordou num estremunhamento. Era sonho? Pesadelo? Quedou-se
um momento a escutar. Os gritos repetiam-se, arrastavam-se
móveis, havia gente correndo na varanda e agora, por detrás da
porta, a voz de Tiago chamava:
_ Seu Alberto! Seu Alberto!
_ An? Que é?
_ Se levante, seu moço! O barracão está a arder. Ouviu?
_ O quê? O barracão está a arder?
_ Está, está. Olhe esse judeu. Que se levante também. Não se
demorem!
Pela janela entreaberta vinha um fulgor estranho, que terminava em
ângulo, embaixo, no soalho. Dir-se-ia ouro embaciado, tornando-
se pouco a pouco rubescente (p. 299).
O ouro se transformara em uma chama “rubescente”. A imagem do ouro é
recobrada para a extinção do desejo de enriquecimento fácil, num local de detração
131
social. Um negro alforriado faz justiça e cria, ironicamente, a própria libertação das
imposições sociais requeridas pelo sistema extrativista.
O romance finda, porém, como uma lição de vida para Alberto, bem como a
dispersão dos valores europeus diante da exploração do homem pelo homem, que
conhecera na Amazônia, pois percebe que, diante de tudo o que pudera presenciar,
tornara-se impossibilitado de julgar os homens, ainda mais um homem que, em sua
loucura, simbolicamente destruíra toda desumanidade praticada nos seringais
amazonenses do início do século passado. Em seu pensamento, Alberto se compraz
de um humanitarismo que adquire ao presenciar toda exploração humana. Num
assalto onírico, consegue definir Tiago, assim como, por extensão, todo homem
explorado, que a floresta esconde, com uma única expressão, “miserável”:
“Senhor juiz! Senhores jurados! Esse miserável que aí vedes tinha
um único amigo... Era... Era... Esse miserável... Senhor juiz!
Senhores jurados! Esse miserável... Esse miserável...
Não. Não acusaria jamais. A ninguém! A ninguém! Depois do que
vira, em si e nos outros, quando o instinto pode mais e acorda mil
reações ignoradas, mil imposições que tiranizam os próprios lúcidos
e os desvariam, e os amarrotam, e os igualam aos que trazem alma
primitiva, só havia a acusar a origem remota, que não fora perfeita na
sua criação. Mas também ela era irresponsável e perdia-se na lenda
ou na hipótese, longínqua e obscuramente.
Não. A sua voz não poderia abrir-se em grandes tropos acusadores,
sem que a sua consciência e as suas dúvidas se elevassem mais
alto e sufocassem e a emudecessem, irremediavelmente. Dedicar-
se-ia ao cível, à carreira consular ou à defesa, se a necessidade o
obrigasse a debruçar-se sobre o pego insondável dos delitos
humanos (p. 307).
Com isso, revela-se o jogo, citado, do narrador com os imagotipos. O
embate entre a visão européia de dominação e imposição de valores, e a realidade
de um mundo onde os homens são previamente julgados e condenados, por
conviverem, diariamente, com o paraíso e com o inferno da selva, na qual buscam a
riqueza e a sobrevivência, mostra ser uma constante.
Embora o fosse brasileiro, Ferreira de Castro, como afirmado, viveu no
Brasil e trabalhou na Amazônia. Assim, escreve A Selva, como conhecedor das
duas realidades, a européia, de sua origem, e a brasileira, com a qual teve contato.
Alberto sofre modificações características no decorrer do romance e, ao final, depois
132
de participar dos dois extremos, o do moralismo europeu e o da adaptação ao meio,
percebe que, diferentemente do que ocorre no início, o lhe é lícito julgar ninguém
pelos seus atos, mas compreender a razão das atitudes do Outro.
Até alcançar este ponto, Ferreira de Castro trabalha magistralmente a
linguagem de seu romance, de modo que, até hoje, malgrado a incompreensão e
posterior esquecimento de sua obra no Brasil, continua sendo lido na Europa, de
forma que constitui um dos escritores portugueses mais conhecidos no mundo.
2.8. O retorno ao Brasil em O Instinto Supremo.
Em 1968, Ferreira de Castro retoma a transfiguração estética da Amazônia
brasileira, por meio de um romance histórico, denominado O Instinto Supremo.
Devido ao fato de ter vindo a lume após a década de 1940, não é raro que os
intuitos críticos o enfeixem junto aos romances neo-realistas. Se assim for, reforça-
se a tese de que Ferreira de Castro promoveu o alargamento do conceito crítico
acerca do Neo-Realismo em Portugal, pois com O Instinto Supremo ambienta a
narração em território não português, além de não plasmar concepções ideológicas
e/ou filosóficas partidariamente demarcadas.
O trajeto histórico do Marechal ndido Rondon é retomado no romance.
Rondon se notabilizou por ser militar brasileiro, ativista republicano e defensor
incondicional dos silvícolas, que adentrou destemidamente as florestas brasileiras,
desde o Mato Grosso, terra em que nasceu, a a Amazônia, buscando pacificar as
tribos indígenas e oferecer-lhes condições fundamentais para não se extinguirem
pelo contato inglório com homens brancos despreocupados com as causas
indígenas, que transmitiam-lhes as mais perniciosas doenças.
Rondon não participa ativamente do entrecho narrativo do romance, mas seu
lema humanitário, “morrer se necessário for, matar nunca” é utilizado como mola
propulsora dos intentos humanitaristas que sobejam de toda a produção romanesca
de Ferreira de Castro. Homens destemidos, de peito e mente abertos adentram a
floresta em busca da pacificação da tribo dos Parintintins, sob o lema do Marechal
Cândido Rondon.
133
Por reunir homens de diversas formações: personagens históricas como o
etnólogo alemão Curt Nimuendaju, um intelectual muito importante, entre as
décadas de 1920 e 1940 (momento da ambientação do romance), que contribuiu
com seus conhecimentos para catalogar diferentes tribos indígenas brasileiras;
membros do Serviço de Proteção aos índios e, sobretudo, voluntários (seringueiros
e outros trabalhadores da floresta amazônica), enfim, homens simples, que doavam
suas próprias vidas em prol da compreensão do Outro; por instaurar o drama
coletivo da compreensão do Outro, os esforços desmesurados de homens de
diferentes culturas e formações, reunidos no interior da mata, em torno de um
propósito humanitário; por manter a linha mestra da obra de Ferreira de Castro, ao
reconstruir literariamente, por intermédio de imagens densas, carregadas de sentido
metafórico e promover o diálogo entre povos distintos, compreendendo-se
mutuamente; por ser a última produção romanesca de um escritor português
cosmopolita, um verdadeiro “apátrida universalista”, que não privilegiou nenhum
espaço no globo, mas, deu ênfase ao drama da existência e da sobrevivência do
homem sobre a terra enfim, por tais motivos, julga-se que O Instinto Supremo
representaria a síntese de toda preocupação humanitária e estética de Ferreira de
Castro e, devido a isso, reserva-se capítulo especial para tal obra, o Capítulo 4, no
qual, mediante a Imagologia, será analisado, a fim de se perscrutar não somente o
diálogo imagético entre Brasil e Portugal, como nações que historicamente possuem
relações de vária ordem, como tamm uma aura intercultural, que envolveria o
homem como ser universal.
Antes disso torna-se necessário observar como Ferreira de Castro constrói
imagens acerca de seu próprio país, Portugal, a partir dos romances Terra Fria e A
Lã e a Neve.
134
CAPÍTULO 3
Ferreira de Castro de volta às origens: Um Portugal diante do
espelho das autoimagens literárias como retrato dos detratados.
3.1 Portugal e Brasil, países unidos pelas imagens representativas presentes
nas obras de Ferreira de Castro.
As autoimagens construídas por Ferreira de Castro em seus romances podem
ser analisadas paralelamente em relação às heteroimagens, visto que um
movimento especular que permite não apenas aproximá-las como tamm encontrá-
las amalgamadas. Este capítulo intenta demonstrar que, ao observar as imagens
portuguesas, o Brasil também pode ser reconhecido, partindo da proposição
hipotética de que, na obra do escritor português, não haveria barreiras culturais que
afastassem as personagens, mas uma linha mestra que as conduziria para
situações semelhantes, independentemente da cultura e dos valores que
cultivassem.
135
Desse modo, Ferreira de Castro, ao inserir personagens portuguesas em
romances de cenário brasileiro, em nenhum momento deixa transparecer como a
provável inserção de um elemento humano superior sobre elementos humanos
inferiores, que necessitassem ser colonizados. O caminho literário seguido por
Ferreira de Castro é inversamente oposto à trajetória tomada pelos navegadores
portugueses no século XVI. As personagens surgem no Brasil sem nenhuma posse,
conforme pode ser observado no capítulo anterior e retornam a Portugal sem nada
de valor pecuniário, o obstante com a dignidade humana reforçada, por se terem
afastado dos convencionalismos europeus e se aproximado de trajetórias humanas
carentes de vida e de existência. Nesse ínterim, o espírito de solidariedade humana
sobrepõe-se às preocupações pecuniárias, das quais, a priori, as personagens
portuguesas poderiam ter sido investidas.
Não desprezando a proximidade com os escritores da geração de 1870,
influenciados por Zola, Ferreira de Castro contribui com a construção de romances
de formação. Não se vale, contudo, de perspectivas deterministas, mas movido
apenas pela fulcral necessidade de humanização das personagens, que, não raro,
convivem com dramas sociais capazes de irmaná-las, independentemente dos
cenários topográficos em que tais dramas se desenrolam. Na medida em que essas
personagens interagem com personagens de outra cultura, percebem que algo
além das diferenças culturais e vão, aos poucos, se despojando de seus
preconceitos e de suas vicissitudes para adquirirem uma compreensão integral que
somente o convívio humano, acima de tudo, é capaz de gerar. Acerca das
comemorações dos 70 anos de A Selva, em 2005, o estudioso Pedro Calheiros, de
Aveiro, Portugal, interessado na obra de Ferreira de Castro, toca na relação entre o
escritor de Ossela, o escritor francês Émile Zola, o Realismo da geração de 1870, o
Regionalismo Brasileiro dos escritores da década de 1930 e o Neo-Realismo
Português, em “Ponte entre o Naturalismo e o Neo-Realismo”, ao afirmar que,
Como Zola, antes dele, descendo às minas de Anzin, e como Redol,
depois, que foi trabalhar na região do Douro e que embarcou com os
pescadores de Nazaré, ou como Jorge Amado peregrinando pelas
terras do Cacau, Ferreira de Castro conviveu de perto com os
transmontanos de Terra Fria, ou com os operários e pastores de A
e a Neve , ou com as bordadeiras de Eternidade, utilizando um
similar método de investigação e um parecido estilo narrativo com
a diferença de não ter dogmas de suporte estruturando a ficção (no
naturalismo a hereditariedade e o marxismo no neo-realismo, que
136
dão um movimento mecanicista às obras); além disso, o autor de
Emigrantes e A Selva, também soube artisticamente transpor
experiências vividas pessoalmente num registro que quase raia a
autobiografia, sem apoucar o valor literário das obras onde espelhou
essas vivências. (p. 04)
16
.
Na publicação de 1953 da revista Vértice, Ferreira de Castro faz conhecer a
admiração que mantinha por Émile Zola, tido por ele como uma forte torrente”
marítima, ao passo que Flaubert é visto como um rio “calmo e comedido”. Nesse
sentido, para o escritor de A Selva, Zola seria uma espécie de defensor da
liberdade. Ele também o era, porém, sem as marcas dogmáticas carregadas pelo
naturalista francês. Continua ainda sua louvação ao escritor de Rougon-Macquart:
“Durante cinqüenta anos, a França não teve, no estrangeiro, vozes
mais altas, mais escutadas, do que a dele e a de Victor Hugo”. (p.
21).
Ferreira de Castro, o se distanciando também dos escritores neo-realistas,
que deixaram seu profuso lastro a partir da década de 1940, contribui com um facho
de universalidade para o movimento, a exemplo de outros escritores, cujas obras
não se permitiram enlevar por momentâneo fôlego político fadado ao arrefecimento.
Partícipe ou o de movimentos demarcados, Ferreira de Castro conduz sua
narrativa pelas sendas da comoção de seu leitor. As narrativas tornam-se tão mais
angustiantes quanto mais características novelescas apresentam, pelos enlaces das
tramas interdependentes, mas que, no caudal de plausibilidades, atingem as raias
do romance, tanto mais que, afastadas no tempo, apresentam-se cada vez mais
hodiernas. Assim, em Ferreira de Castro, o mesmo homem que abandona suas
courelas em Portugal e, atravessando o oceano, percorre as plantações de café do
interior do estado de São Paulo, chega às densas matas da floresta amazônica e
convive com os extratores de látex, ao passo que retoma o oceano e volve os
passos para Portugal, palmilha as terras frias da região do Barroso, em meio aos
aldeões que dependem das pequenas propriedades de terra, da venda de peles de
16
Documento on line, disponível em: HTTP://www.centrodeestudosferreiradecastro.org.pt., acesso em
21 de julho de 2006.
137
animais e do contrabando na Espanha. Em outros termos, está-se diante do mesmo
homem que sobe a Serra da Estrela e vive como pastor de ovelhas na Manteiga ou
operário das fábricas de tecido do Estoril. Personagens diferentes em cada espaço,
mas que, ao fim das contas, traduzem a expressão do mesmo homem preso ao
instinto supremo da sobrevivência.
3.2. Terra Fria
17
: Ilusões perdidas nas terras frias do Barroso: autoimagens
literárias portuguesas.
Terra Fria, publicado em 1934, é romance pico da desilusão do indivíduo
frente ao espaço geográfico que habita e as conseqüências trazidas por seus atos,
mesmo que fundamentados na luta pela sobrevivência. Ambientado nas terras da
região do Barroso, tem como personagem principal Leonardo, um aldeão que não
encontra em seu trabalho um meio suficiente de subsistência, tanto sua como de
sua esposa. Forçado por tal adversidade, sente-se compelido a traficar peles de
animais e tecido, da Espanha para Portugal, e a mulher, empregada da casa de uma
senhora cujo filho retornara da América do Norte, onde fora fazer fortuna, -se
fascinada pela riqueza e atraída fisicamente pelo “americano” fatos que a levam a
entregar-se a ele e conceber-lhe um filho, a quem Leonardo, nas malhas da
narrativa, crê ser seu.
A idéia de que o homem do Barroso seria um retrato polifônico
18
do homem
no planeta aparece desde o Pórtico da obra, escrito pelo próprio autor, quando da
17
Retomando, a edição de Terra Fria, utilizada neste trabalho, salvo outra menção, será a da Editora
Guimarães e Cia., publicada no ano de 1980, com a oferta da Fundação Calouste Gulbenkian de
Lisboa, Portugal, e divulgação, no Brasil, da Fundação Cultural Brasil – Portugal, do Rio de Janeiro.
18
O sentido do termo polifonia indica, aqui, rias vozes, numa espécie de amálgama idiomático mediante o
qual os indivíduos, apesar de origens diferentes e das diferenças lingüísticas que os constituem, se unissem num
mesmo tipo de discurso em prol da sobrevivência, de modo que o clamor por sobrevivência do homem
amazônico, do homem barrosão, do imigrante e do trabalhador dos teares laníferos da Serra da Estrela não se
diferenciassem no que tange à necessidade de sobrevincia frente às adversidades sociais e econômicas, típicas
de cada uma das regiões onde os mesmos se encontram. Desse modo, sem a utilização teórica, nesse ponto, de
Mikail Backtin, o sentido de polifonia, de certo modo se aproxima da visão crítica do teórico russo.
138
revelação do porquê escolhera fixar naquela região de Portugal um romance,
atestando, assim, determinados elementos de autoimagem de sua terra natal:
Às vezes, parece-me surpreender, nessa demorada metamorfose,
algo da personalidade remota de todos nós, como se antiqüíssima
reminiscência faiscasse, de súbito, em sombrio recanto de nosso
espírito. Dir-se-á que encontramos, nesses homens, farrapos de
nossa vida de outrora, farrapos que foram abandonados ao longo da
intérmina jornada, de geração para geração, de século para século,
porque todos nós, um dia, teríamos sido assim. E surge, então, como
que um sentimento de pretérita fraternidade, que se projecta no
presente, abrindo-se em compreensão e amor (p. 3)
O homem do Barroso, tal como os imigrantes do navio em que tamm
vinham Manuel da Bouça e outros estrangeiros, os brasileiros trabalhadores nas
lavouras de café do interior de São Paulo ou os nordestinos que se mantinham
apegados à extração do látex na Amazônia, careciam de proximidade humana, visto
que a fraternidade poderia e deveria estender-se a todos. Assim, apelando para a
polifonia do homem a quem retrata e cobrando do seu leitor um posicionamento
humano, continua Ferreira de Castro no Pórtico:
Para além do seu entrecho, o romance procura dar, a quem tenha
pela vida humana interesse igual ao nosso, alguns esboços de
história natural. Para além do drama imaginário a vida, sem
grandes lances, do homem que vegetava, tantos séculos,
incrustado nas montanhas, mas que, pelo seu próprio modo de
existência, dir-se-ia nascido há pouco. A civilização, lá longe, parecia
ter sido criada apenas para uma minoria, enquanto a miséria
fustigava e fustiga ainda este triste e negro cortejo (p. 02).
Deixando entrever a característica elementar de um espírito direcionado para
as letras, com poucas palavras alcança o autor os elementos que entranham sua
obra, a saber, o interesse pela “vida humana” frente a uma perspectiva que caminha
por uma seara próxima não da de Zola, mas da de muitos escritores niilistas do
final do culo XIX e início do XX, a saber, a fatalidade da miséria. Em Ferreira de
Castro, o desejo de tornar pública a miséria humana, que se arrastava como um
cortejo fúnebre por entre a civilização encontra nexo não em teorias científicas, mas
no apelo humanista em prol da fraternidade entre os povos. Não obstante, o retrato
139
do homem barrosão sulcado pela miséria funcionaria como “esboços de vida
natural”, que o escritor não esperava que seu romance fosse um estudo
etnográfico ou antropológico, visto haver nele o que chama de drama imaginário”,
ou seja, ficção.
Permitir que seu romance fosse conhecido apenas pelos elementos
etnográficos e antropogicos, que poderiam estar ali contidos, implicaria em duas
situações negativas contíguas que estrangulariam seus desejos como romancista,
quais sejam: a primeira situação, entender o leitor de Terra Fria que o texto
estivesse circunscrito ao “esboço” de um regionalismo franqueado a questões
científicas e a segunda que o mesmo leitor não fosse levado a ver tal texto como
impregnado de elementos literários. Destarte, as assertivas contidas no Pórtico,
além de evidenciarem as preocupações estéticas de Ferreira de Castro, tornam
clara a idéia de que o texto de Terra Fria deveria expandir-se para além das terras
do Barroso, devido à abrangência imagética que possui.
No intuito de divisar as imagens mais recorrentes de Terra Fria e proceder a
uma análise mais completa das mesmas a partir das proposições imagológicas que
vinculariam numa mesma esfera significativa Brasil e Portugal, optou-se pela
prerrogativa das paisagens geográficas e das paisagens humanas, que, se por um
lado corroboram o “drama imaginário” do homem barrosão, por outro se abrem para
o macrocosmo apontado por Ferreira de Castro como sendo o negro cortejo” pelo
qual tramita a maior parte da humanidade o lado escuro da miséria e dependência
econômicas. Em termos mais simples, o Barroso seria um microcosmo de Portugal,
que, por seu turno, seria um microcosmo do mundo e, se esse “mundo” fosse o
mundo que reuniria os indivíduos repudiados pelo sistema econômico vigente, o
Brasil das obras de Ferreira de Castro também estaria ali presente.
A escolha por uma análise imagológica que preconize elementos espaciais e
humanos firma-se diante do pressuposto de que toda percepção e representação
humanas são, antes de qualquer coisa, tornadas possíveis e condicionadas pela
intuição a priori subjetiva do espaço. A captação dos dados sensíveis sob a forma ou
intuição pura do espaço é a primeira operação do processo de conhecimento
humano e este não pode em caso algum dispensar ou ultrapassar essa condição.
Toda a concepção humana é, por conseguinte, originariamente espacializada.
Exprime-se o apreendido e o representado recorrendo às metáforas espaciais. Estes
enunciados, extraídos do texto designam, descrevem ou qualificam atividades do
140
espírito que invocam claramente, como sua condição de possibilidade e de
enunciabilidade, uma hipótese espacial.
A expressão do espaço serve, desde sempre, e de forma aparentemente
universal, de pólo catalisador, de domínio por excelência das transferências
simbólicas. Parece, pois, incontestável afirmar que a experiência do espaço constitui
um dos fundamentos básicos a partir do qual o homem organiza conceitualmente
outros domínios abstratos.
Quanto à geografia do Barroso, cabe a leitura de um trecho inicial do romance
Terra Fria. Nem mesmo uma aparente simples descrição escapa ao olhar literário
do autor quanto às suas pretensões, não faltando, pois juízos de valor que
evidenciassem suas motivações
a)
Cortando a povoação, o cavalo voltava ao seu passo lento de fadiga.
As patas entravam fundo na lama das ruelas, refocilada por quantos
porcos se criavam ali e constituíam riqueza de quem havia de passar
o ano a comer a sua carne, pão e batatas, que outro manjar, pondo
de lado a fêvera de bacalhau, no Verão, não se cozinhava nas
aldeias do Barroso. Terra Fria onde não medrava árvore de fruto nem
se colhia vinho, tirante o centeio, a batata, os nabais e duas
couvezitas no quinchoso, o resto era uma pobreza. (p. 24. Grifo
nosso).
b)
Padornelos, de sorte igual à de outras aldeolas barrosas, parecia, no
Inverno, uma grande pocilga.Tudo se apresentava negrusco, sujo,
enlameado. Nem telha a sorrir, nem pincelada de cal, nem planta ou
janela florida. Terra para raiz só mais abaixo, nas margens do rio. Ali,
os casinhotos, sem quintal, prantavam-se uns junto dos outros,
esburacados, velhos de séculos, contendo renovação na palha
que os cobria. Eram formados por lascas de xisto e de granito,
escurecidas pelos anos e arrancadas, outrora, à montanha. Por
vezes, via-se que o construtor remoto, não querendo ir mais além do
seu esforço, aproveitara corte natural no fraguedo, encostara-lhe três
paredes e, assim abrigado pela rocha fria, ressumando humidade,
abria o ciclo familiar. Haviam passado sucessivas gerações e,
decorrido tanto tempo, sofria-se ainda a sensação de vida
cavernária, de Humanidade que ficara lá muito longe, muito longe, na
pré-história. (p. 24 e 25, grifo nosso).
Os primeiros retratos do Barroso ligam-se fenomenologicamente ao elemento
terra, que, por conseguinte, atém-se ao termo barro”, presente tanto na palavra
141
“Barroso” quanto na imagem da formação do homem, dentro da cultura judaico-
cristã: o Adão edênico foi formado por Iaveh a partir do barro.
Mas, esse aparente paraíso aos poucos se transforma em terra fria, estéril e
distante da civilização. Cabe salientar que em A Selva, o seringal Paraíso,
ironicamente deixa de ser paradisíaco para se tornar infernal, o que corrobora as
conexões entre as imagens do Brasil e de Portugal, construídas por Ferreira de
Castro. Na continuidade das descrições do Barroso, sabe-se que árvore de fruto ali
“não medrava” imagem sobrepujante que am de retratar a pobreza do lugar, o
distancia do paraíso terreal, coberto de árvores frutíferas, como significativo da
mesma fecundidade com a qual a primeira mulher, Eva, fora agraciada. Por
alimento, somente a colheita do centeio, da batata e dos nabais, ou de alguma
“couvezita”. Trata-se da convivência do homem em um mundo atávico, recôndito e
inóspito. A prevalência dos animais e a sua importância estão diretamente
relacionadas a um mundo anterior à própria existência humana, apartado da
civilização e do desenvolvimento.
As imagens do Barroso revelam-no um lugar esquecido, em que a terra
deveria ser fecundada pelo estrume de suínos para que o homem pudesse ter
parcos recursos à sobrevivência. Verme rastejante surge o homem da grande
“pocilga” formada pelos porcos, o barro, os excrementos e a promiscuidade.
Apinhados como animais, pela falta de espaço condizente a todos, os membros de
uma mesma família dormiam no mesmo quadrilongo fosco”. Tanto é assim que as
descrições dos lugares trazem consigo a presença de animais antes mesmo da
presença humana:
As casuchas possuíam dois pisos: em baixo, para vacas, suínos,
cabras e ovelhas; em cima, para os homens, as mulheres e a
filharada. Não se sabia onde acabava o curral e onde começava a
habitação da gente. As crianças cresciam entre os porcos, nas
vielas, nos pátios, por toda a parte, e, muitas vezes, o choro manso
de um recém-nascido era abafado pelo mugir lamentoso de vaca a
quem tinham vendido a cria. Havia casebres em que pais, filhos e
netos viviam em total promiscuidade, oito, dez, doze corpos de sexos
e idades diferentes dormindo no mesmo quadrilongo fosco, as camas
procurando a vizinhança do borralho, hoje como cem anos,
quinhentos, há mil. (p. 25).
142
A descrição dos seres carrega em si o necessário instinto supremo da
sobrevivência: as casas de pau-a-pique onde embaixo viviam os porcos, as cabras e
as ovelhas refocilando a terra para fecundá-la, e acima deles, os homens,
aproveitando-se instintivamente desta comunhão com os animais, ao mesmo tempo
em que as “camas procuravam a vizinhança do borralho”, ou seja, do braseiro de
cinzas, para promoverem o necessário aquecimento aos corpos em profusão que
nela se deitavam. Alimentação, aquecimento e procriação deveriam ser as únicas
preocupações praticáveis pelos seres (homens e animais), de uma região quase
esquecida. Tudo semelhava velhice, pois a prática era instintiva e atávica, revivida
ad eternum desde cem anos, há quinhentos, mil”, conforme ainda atesta a
continuidade da descrição do lugarejo:
Limitar aos porcos seu campo de vida, nem pensar nisso, que eles
eram a hipótese de não haver fome quando veigas e serras se
vestiam de branco e as carvalheiras e os vidoeiros, únicas árvores
que medravam por aqueles pendores e baixios, perdiam a folhagem.
Assim, na lama, marcavam-se, a todas as horas, pegadas humanas,
de adultos e de crianças, por entre pegadas de porcos e de vacas. O
hábito passava de pais para filhos e se não houvesse geada que
matasse o pouco que a terra dava, tivesse o gado erva para comer e
fosse possível sustentar a pocilga, a vida fluía normalmente sob a
égide de Deus, que todos temiam, adorando-o, e do caráter
resignado da maioria dos habitantes. (p. 28).
A ironia estende-se para o âmbito da sobrevivência de modo que o espaço
configura-se ao homem, como uma prisão, que, incrustado na região, sem a
possibilidade de afastar-se dela, via nos porcos e na pocilga que pisava
necessariamente, a possibilidade de manter-se vivo. Salta aos olhos a perda de
identidade humana no Barroso. O mesmo barro que os homens, as mulheres e as
crianças pisavam, deixando as marcas da rotina diária, era pisado também pelos
porcos e pelas vacas. Trata-se de um homem dimensionado, ao encontro das
características dos animais e o diferente destes, conforme ainda testifica a
descrição das atividades de trabalho dos homens da região e a sua fatal mistura
característica com os porcos, na mesma faina de sobrevivência:
A pecuária era o único recurso de quem habitava a região estéril e
inóspita. E o homem entregava-se ao seu culto, confundindo-se com
os outros animais, na forçada sobriedade que a miséria e o hábito
143
impunham, não merecendo mais cuidado a sua pele do que a da sua
vaca e a do seu porco. (p. 25).
Animalizar o homem pelo apelo dogmático movido por tendências filosóficas
não seria o mesmo que o vislumbre da animalização que o espaço sico poderia
oferecer ao homem. Esse último não é recurso dogmático, mas assunto para a
modulação estética que a voz narrativa impõe sobre suas personagens. E é sob a
égide desse recurso que o narrador constrói seu discurso acerca do homem
barrosão. Para o narrador, nos meandros de um estilo que percorre o jornalístico e
desemboca na mais aplainada seara literária, a descrição dos espaços físicos
estende-se à descrição do próprio homem – a transformação da identidade humana
ocorre de fora para dentro e não de dentro para fora. Nenhuma tendência
geneticamente vincada posicionaria o homem junto aos animais irracionais a não ser
a impossibilidade de encontrar melhor situação de vida dentro de um espaço
fechado. Homem e Minotauro convivem num mesmo ambiente, de forma que
misturam-se; essa necessidade o faz o homem constituir-se ser dependente da
pocilga e dos estrumes ao mesmo tempo em que, panoramicamente, posiciona-se
junto aos animais que tamm, como ele, vivem do barro.
O emprego de tal recurso assume tom de dencia desde o momento em que
a situação é real, ou seja, ocorre em determinado espaço marcado. É o que ocorre
em Terra Fria. O Barroso é região existente e a vida que as personagens levam no
cerne narrativo oferece reverberação para que um olhar defensivo paire sobre o
homem que ali habita ipso facto, à medida que se percebe sua dificuldade em
deslindar-se do encanto da miséria que o persegue.
Somente as palhas que cobriam as casas careciam de renovação, depois de
crestadas no Verão, pois, durante o inverno, serviam de combustível para a refeição
e o aquecimento do lugar. Em troca, palhas novas eram colocadas, recobrindo os
telhados e dando certo ar de renovo ao lar.
A seguir tem-se a descrição da casa da personagem principal, Leonardo. A
gradação da escuridão da casa, advinda da falta de iluminação contribui com a
construção de uma atmosfera fenomenológica, atávica, a ponto de fazer parecer que
a personagem habita em uma caverna pré-histórica:
Chegado ao seu casebre, Leonardo saltou do cavalo. Era a morada
tão miserável como as outras. A parede negra, de pedra solta, subia
144
do charco, negro também, até o primeiro andar, onde vinha fechar-se
o colmo. Resvés a lama, cortava-se um portal. Leonardo empurrou-o
e fez entrar a cavalgadura. A obscuridade interior deixava aperceber
uma vaca sobre palha apodrecida e de ácidas emanações. (p. 26
grifos nossos).
A escuridão do lugar empapado pelo lamaçal barrosão não se constitui
apenas em antevisão atávica das personagens. Como são representativas de seres
da realidade, as personagens imiscuem-se no barro e na escuridão como se
mantivessem-se escondidas dos olhares alheios. Ao mesmo tempo em que isso
contribui para atitudes que fogem do dogmatismo católico ao qual a região rural
portuguesa encontrava-se ligada (como mais tarde se verá, mediante o adultério, a
busca de um tesouro escondido, partindo das informações contidas no livro de São
Cipriano”, e o contrabando de peles de animais) favorece a desolação social destes
seres que, quanto mais entranhados na terra do Barroso, menos absorvidos pela
federação portuguesa.
É notável como as imagens de obscuridade continuam a se presentificar na
descrição da casa de Leonardo:
fora, junto mesmo do portal, cinco lajes serviam de degraus para
o pardieiro em que ele vivia. Subiu-as. O lar apresentava-se pouco
mais iluminado do que a cortelha que lhe ficava por baixo. Apenas
dois janelicos se exibiam nas quatro paredes enegrecidas de fuligem
e de velhice. (p. 27).
Ou ainda,
O sol nascia para vales e montes e não para estar em casa. Não fora
a rubra claridade da lareira, mal se enxergaria trastes e soalho,
porque o único janelim aberto ficava no fundo e era tão pequeno
que mais parecia respiradoiro de mina do que entrada para luz.
Também ali como nas outras casas, os olhos não tinham muito que
ver. (p. 27).
E continua, com mais ênfase:
145
a lareira possuía vida; o resto dir-se-ia morto [...]. Tudo se
mostrava negro, desde as tábuas em que se pisava às que serviam
de forro e acamação ao colmado abrigador. O fogo dava, junto à
parrogueira, uma nódoa vermelha e malga em que se mexia riscava
de branco a obscuridade. (p. 27).
A escuridão do lugar, conferindo uma cor negra constante, pinta de luto toda a
trajetória das personagens. A tristeza da casa ia do assoalho ao teto, ao mesmo
tempo em que enlutava as personagens dos pés à cabeça, condenando-as a um
fado triste. Diante de tal cenário, as personagens não poderiam apresentar dinâmica
distinta daquela descrita.
Essa identificação da casa com o ser que a habita encontra ressonância nos
textos budistas e taoístas que a remetem à interioridade do ser. Gaston Bachelard
(1990) e sua reconhecida obra, A Poética do Espaço, vale-se da perspectiva
fenomenológica que envolve a terra, a água, o ar e o fogo para explicar que cada
parte da casa corresponde a uma característica do indivíduo que ali se encontra, de
modo que os degraus, o quarto, o sótão e a cave representariam os vários estados
da alma. Em Terra Fria, como se nota, a identificação da casa de Leonardo anterior
à descrição do próprio estado de alma dele é significativa desse processo
representativo, de modo que o leitor é preparado de antemão para receber
narrativamente personagens que apresentam essa obscuridade tamm no íntimo.
Não é por menos que a introdução em cena da personagem Ermelinda constitua
uma espécie de extensão actancial quando da percepção desse efeito imagético
pelo leitor. Ermelinda o materializa num simples “então?”:
Pela queda das peles que Leonardo arremessara para um canto,
Ermelinda, que tratava ao lume da panela, adivinhou o ânimo do seu
homem.
_ Então?
Ele rouquejou, de mau humor:
_Nada! de cabrito, e ainda assim!... Isto não pode continuar!
Vinha agora mesmo a pensar que isto não é vida. (p. 27).
A fala de Leonardo o apresenta não como um indivíduo resignado, mas
consciente e ativo quanto à tentativa de mudança de condição social. Essa
característica é fundamental para as perspectivas de Ferreira de Castro, contidas
146
em seus romances. Apresentar personagens resignadas diante de sua situação
econômica seria apresentá-las antes do desfecho narrativo como lutadores de uma
luta perdida. A luta inglória que se constitui no decorrer dos romances deve
inicialmente ser apresentada com personagens descontentes, porém como ânimo de
luta, pois somente desse modo assumem uma compleição tridimensional próxima da
do ser humano. Ademais, o aspecto da derrota que virá torna-se ainda mais
contundente após terem feito de tudo para mudar sua situação. Tratam-se, tais
romances, de verdadeiras epopéias narrativas que não contém heróis invencíveis,
surpreendentes, mas heróis alquebrados, empunhando uma arma, a esperança,
a qual, mesmo sendo a única, também será estilhaçada pelo sistema social ao qual
as personagens encontram-se circunscritas.
Ademais, a caracterização funerária da cena estende-se até mesmo para a
própria comida preparada por Ermelinda, que, como observado acima, aguardava a
chegada do marido. Uma caracterização que embora esteja sintonizada num
aparente non sense, contribui com a confecção de uma metáfora carregada de
sentidos:
Ermelinda, que, de gadanho em punho, ia tirando da panela, a
espuma mais negra, voltou-se, surpreendida, para ele. O fogo
enrubescia-lhe o rosto ovalado e branco, de beleza campestre,
descuidada, e touca de espessos cabelos, que tesoura não se usava
ainda ali em cabeça de mulher. (p. 28).
Ao retirar da panela a “espuma mais negra”, Ermelinda como que retira o véu
negro, funerário, que se estica diante de Leonardo, desde o momento em que
começa a adentrar à casa. Num âmbito mais próximo do entrecho narrativo, a
metáfora aqui construída parece tocar na relação empregatícia e comercial que
Leonardo está prestes a reatar com o amigo Igsias, um espanhol a quem
Ermelinda não tem em boa conta devido ao fato de se ter afastado do marido no
momento em que este mais precisava, de modo que a retirada da espuma negra
presume o abrir de olhos de Leonardo diante da traição do amigo. Significativa, na
medida em que se expande, a figura de linguagem, além de pretender a atenção de
Leonardo frente a Iglésias, antecipa elementos narrativos tais como a necessidade
de Leonardo “abrir os olhos” até mesmo para o que se passa com Ermelinda que o
147
trai. Ademais, contribui, sobremaneira, para a caracterização de Leonardo como
sendo um indivíduo simples e ingênuo.
A retirada dessa espuma parece, também, por outro lado, antecipar a boa
sorte na vida da personagem ou, em outros termos, uma suposta mudança de
condição social como uma carga de esperança, a posteriori. Não obstante, as
personagens dos romances de Ferreira de Castro, como pode ser visto em A Selva
e em Emigrantes, subjugadas por um sistema econômico que as torna
completamente dependentes e, aos poucos as desumaniza, não oferece perspectiva
de mudança para melhor.
Ainda mais, retirar a “espuma mais negra”, como a vislumbrar a vida de
Leonardo afastada do u que a circunda, preconiza a insatisfação perante uma
situação econômica que o se poderia aceitar e, ao final, não se poderia mudar,
daí também travar relação com a perda da inocência diante do caos instaurado pela
condição social de Leonardo e Ermelinda, que aos poucos vêem a harmonia social
sendo desfeita pela ambição e pelo desejo.
Se tudo se escurecia pelo tom que se impunha sobre os seres, parece
incoerente que, ao examinar o relógio, Leonardo torna-se ciente de que “faltavam
vinte e cinco minutos para as seis e ele devia ir ao lameiro cortar a água antes que
anoitecesse.” (p. 30). O mecanicismo alienante das ações no trabalho impede,
ainda, a personagem de olhar além do que fazia, que a neve do Larouco, ao
crepúsculo “brilhava”, afastando o negror absorvido pelos espaços. Contraditório, se
ao escurecer a serra “brilhava” pela neve no cume do Larouco, Leonardo apressava-
se antes do anoitecer para desligar a água. Quase imperceptível diante da narração
do trajeto de Leonardo para desligar a água era a importância dessa mesma água,
ou seja, produzir barro, o mesmo barro onde os porcos pisariam e fecundariam a
terra com seu estrume. Portanto, o homem, ironicamente, se vê na dependência dos
porcos para se manter vivo. Por outro lado, tem-se a impressão da vida acontecendo
num dia constante, infinito, ao passo que o homem entrava na casa escura para
afastar-se desse fatídico dia interminável.
Duas cores se apresentam e se misturam, o negro das cinzas gerado pelo
carvão queimado a fim de produzir calor aos habitantes da terra fria e o branco,
enregeledor, do cume do Larouco, antecipando a sensação de dias de inverno
tenebrosos.
148
A mistura dessas cores e a significação contextual que elas adquirem nas
descrições de Ferreira de Castro favorece uma ostentação impressionista dos
mecanicismos dos quais o autor lança mão para concretizar um amálgama simbólico
do qual seu texto se perfaz. Desse modo, o narrador se sensibiliza frente às cores
que o cenário lhe apresenta, e vai, paulatinamente, tingindo as descrições espaciais
de expressões e imagens túrgidas de significado, para expressar as impressões que
tem do lugar. Tal familiaridade com as cores do Barroso, ao descrever as serras e o
cair da noite, muito certamente trava relações com as recordações de Ferreira de
Castro, no momento em que convive com os barrosãos no ano de 1933.
Também caracterizam uma construção situacional (espaço-temporal),
cronotópica, que circunda as personagens e as envolve numa aura cromática
opressiva. Ao passo em que a natureza se constrói majestosamente a partir desse
cromatismo, o homem torna-se ínfimo, impotente diante de tanto mistério cromático.
O tom acobreado das encostas e das serras vai, aos poucos, pintando um inferno
diante do homem, num aparente experimento de cores diante da mudança temporal,
tal como Monet que pintou a catedral de Rouen mais de trinta vezes, recebendo, em
cada momento do dia, a impressão de que se tratava se uma catedral diferente.
Como, pelo viés narrativo, a natureza do Barroso transmuta-se constantemente,
pouco a pouco, tendo a noite ou o dia infindável como aliados, sobra ao homem que
ali habita apenas a inércia da impotência diante do meio, visto que cabe a ele
apenas o deslumbramento frente à grandiosidade espacial que, como uma cortina
de cores opressivas e infernais, se estende diante de seus olhos:
Era uma obsessão visual aquele acobreado que se estendia, em
longos panejamentos, na maior parte da terra montanhosa, avivando-
se onde o grupo de carvalheiras mostravam a folhagem ressequida e
morrendo quando tojos e urzes davam verdor escuro às
ingremidades. (p.30).
E ainda, no cair da noite, a cor parda, sufocadora, se espalhava pelas coisas.
Lugar em que o próprio vento entoava uma cantiga fúnebre.
As sombras da noite cresciam, do chão para o ar, e os píncaros
recortavam-se, adustos, numa claridade parda sufocante. Um e outro
melro traçava o espaço, apressado em recolher o poiso, e , ao longe,
no pescoço de vacas que iam demandando o estábulo, telintavam
melancólicas campainhas. Pouco a pouco, a face cóbrea das
149
encostas derretia-se na negridão que avançava lentamente. A neve
do Larouco brilhava cada vez menos e a sua brancura, cada vez
mais vaga, parecia suspensa na noite nascente. Das ravinas subia,
nítida, forte, a lúgubre cantilena do vento. (p. 31).
Em meio a isso, o trabalho aparece como uma solução de melhora. O reatar
de relações de trabalho com Iglésias e a espera de que Ermelinda começasse a
trabalhar na casa do americano” são indícios dessa expectativa. A perspectiva de
melhora de situação afigura-se na expressão de Leonardo, direcionada a Ermelinda:
“_ Ainda havemos de ser muito felizes, vais ver...” (p. 31).
A lide de Leonardo passa a ser o contrabando de peles da Espanha para
Portugal. o passava pela fiscalização, que impunha altos impostos, mas encontra
outros caminhos por onde atravessar as peles. Com a ajuda de Iglésias passa a ser
um clandestino dentro de sua própria terra, a fugir da fiscalização toda vez que devia
atravessar a fronteira entre Portugal e Espanha, carregado das peles que dariam
lucro a Iglésias, e sustento a ele e a Ermelinda:
Sobre a montanha, subindo, devagar, a trilha pedregosa, Leonardo
esmoía íntimas irritações. Não podia ser! Os galegos estragavam
tudo, quer pagando quantos direitos os guardas fiscais lhes exigiam,
quer andando, na calada da noite, a fazer contrabando de peles.
Ainda se aparecessem muitas de texugo e de tourão, em que os
ganhos pingavam mais, sempre se poderia ir vivendo. Mas não. O
gardunho tornara-se bicho raro e também não se matava todos os
dias um texugo. E que se matasse! se sabia que os galegos
pagavam mais e pele esticada e seca ficava guardadinha para
eles. Se nem as de raposa escapavam! Levavam tudo!
Desdenhadas, só as de cabrito e de vitela, tão baratuchas que um
homem fartava-se de carregar com elas para poder ganhar uns
tristes vinténs... . (p. 21).
A espera da chegada do “americano” gera expectativa de mudança aos seres
inertes do Barroso. Santiago é a representação da autoimagem do português que
deambula por outras terras em busca de riqueza. Uma espécie de retomada da
figura de Manuel da Bouça em Emigrantes; porém, com a verve de um ser que se
deu bem na vida e a quem seus conterrâneos esperam, para tamm desfrutar das
benesses trazidas por ele, na bagagem. Com dinheiro e possibilidades, a mãe de
Santiago contrata Ermelinda para que trabalhe em sua casa, cuidando das
necessidades prementes do filho, que chegara da Califórnia:
150
Nunca ali se tratara ser humano com tanta consideração e, assim, foi
sob a inveja de muitos, que a Custódia, viúva, entrou como substituta
da que largara para Lisboa. Mas os cinqüenta e três achacados da
nova criada não davam conta de tudo quanto havia para fazer.
Então, a senhora Rita pousara os olhos em Ermelinda. Não tinha
filhos, era nova, asseada e, embora não indicasse grande fortaleza,
ninguém lhe conhecia doenças. [...] havia que limpar o pó, todos os
dias, que ele não sabia viver em porcaria, como viviam os outros.
Aqui, ficava o seu quarto; tinha de fazer-lhe limpeza logo de manhã,
porque ela estava velha para isso. A cozinha e o gado competiam
à Custódia, mas não supusesse que isso a aliviava muito. Uma casa
como aquela sempre dava trabalho. (p. 42).
A autoimagem do português barrosão simples, homem do campo, parece
corromper-se diante com a imagem do “americano”. Diferente daqueles que viviam
do barro e dos porcos, Santiago “não sabia viver em porcaria como viviam os outros”
(p. 42). Fora para a Califórnia, em busca do sonho dourado e livrara-se da
dependência telúrica do barro e dos porcos do Barroso, dando-se ao luxo de ter
quem o servisse e que o livrasse da imponência do lamaçal do qual os habitantes do
lugar precisavam. Suas migalhas eram espalhadas nas ruas, quando jogava moedas
às crianças, sedentas muito mais da atenção do americano” do que das moedas
por ele arremessadas. Aquele mundo farto da casa limpa, da independência das
relações telúricas impressionava Ermelinda e logo percebe as diferenças na
ostentação das frutas multicores que germinavam na América:
Nas paredes, luziam dois quadros: o primeiro, com grande melancia
talhada; o outro, com frutas que deviam ser da América, porque ela
não as conhecia. Havia, ainda perto da janela, uma cadeira de lona,
de fechar e armar.
_Ele gosta muito de se estender aqui, depois de comer. Eu nunca me
sento, porque tenho medo de cair. São coisas que os homens usam
lá nos navios [...] (p. 43).
Significativa construção narrativa essa acima transcrita. A melancia, fruto que
se desenvolve na terra, no barro, era conhecida de Ermelinda; até muito
estranhamente, porque não é das frutas típicas de nenhuma região portuguesa.
Novamente, aqui, a representação atávica do íntimo do homem, apegado ao êxtase
telúrico da terra, que as outras frutas o eram do conhecimento de Ermelinda, e
nem mesmo a cadeira de espaldar, própria dos marujos. Uma voz quase que
151
impossível de precisar, fosse de Dona Rita ou da própria consciência de Ermelinda
confirma também não pertencer a esse contexto espacial, que quem usava tal
cadeira eram os homens nos navios. O mar estava, também, distante da terra, à
qual pertenciam os barrosãos. Um afastamento fenomenológico, terra e água, que
se distanciam na medida em que tamm traduzem a trajetória inconseqüente de
quem se aventura ao mar em busca de melhores condições. Novamente, de modo
implícito, pode-se retomar a imagem do português que se aventura no mar e cai
diante de seus próprios sonhos, imagem essa que se materializa, dentro da obra de
Ferreira de Castro, na figura de Manuel da Bouça.
A autoimagem que o português morador do Barroso possuía do português
que voltara da América, ou “americano”, sofre um movimento de transformação
vetorial, na medida em que a autoimagem transforma-se numa espécie de
heteroimagem. Do português que vem de longe e deve ser admirado por sua
riqueza, gera-se a imagem do português que, dotado do poder monetário, adquirido
em terras estrangeiras, dava-se a si mesmo o direito de desprezar suas origens
barrosãs. Por isso, não era raro que muitos desferissem expressões de desprezo no
tocante ao americano, de modo que tornam-se senso comum, presentes até mesmo
na mente de Ermelinda, que cuida em dissipá-las pouco a pouco, como fumaça no
vento:
a)
Afinal, o diabo não era tão feio quanto pintavam! Diziam que mais
depressa o Larouco se tornaria terra chã do que o “americano” abriria
a boca para dizer o que não fosse preciso e ele, no fim de contas,
pusera-se para ali a parolar como outro homem qualquer. (p.45).
b)
Ela saiu, exultante. Sim, o “americano” não era nada do que diziam.
Se até lhe agradecia. (p. 46).
c)
Entregue ainda à alvoroçante recordação da forma como a tratara a
senhora Rita, tão bem, tão bem, que mais do que a criada parecia
dirigir-se à amiga, e dos gestos delicados do “americano”, esqueceu-
se da vaca e do cevado e ficou, à lareira, a gozar a volúpia. (p. 46).
Assim como a imagem da lareira no momento em que Leonardo entrara em
casa diante do véu negro que se estabelecia como uma aura em torno da sua
pessoa, ressoavam as cores acobreadas, infernais na mesma lareira, agora
152
retratada no momento em que Ermelinda recobre-se de volúpia diante do
“americano” que, com seus “gestos delicados” diferenciava-se de Leonardo,
carcomido pela lide na terra barrosa.
Entediado com a vida simples dos homens do Barroso, Santiago põe-se a
refletir acerca das diferenças de Portugal e dos Estados Unidos. Atitude como essa,
de rememoração, encontra-se em outro “americano” feito personagem nas obras de
Ferreira de Castro. Trata-se de Alberto, de A Selva, que em muitos momentos,
pensava acerca das diferenças entre um Portugal citadino e uma selva amazônica
brasileira, densa e intratável, portanto, diversamente proporcional à forma como
Santiago refletia. São momentos em que os vetores que determinam auto e
heteroimagens sofrem grande alteração. Antes de se aclimatar à situação
amazônica e conviver como os nordestinos, Alberto acreditava que Portugal daria
vida mais digna aos homens do que a floresta, aos seres que nela viviam, portanto,
sendo intratáveis para ele, eram também menos humanizados do que os
portugueses. Conforme se procurou demonstrar, mediante a análise de A Selva,
Alberto passa por um processo de humanização e torna-se defensor das causas dos
desvalidos. Para Santiago, Portugal era menos país do que os Estados Unidos, de
forma que destila uma espécie de desprezo pela própria pátria e pelos seus
conterrâneos do Barroso, aos quais tinha apenas por desejosos do dinheiro alheio.
Achava-se diferente, e, ao contrário do que ocorre com Alberto, nada propenso a
mudar de visão:
Para ser igual a eles não teria saído dali, nem passado o que
passara. Sim, porque só ele sabia o que sofrera quando andava feito
moço pelas granjas da Califórnia! Além disso, se se pusesse a dar à
língua, nunca mais deixariam em paz os seus haveres. um,
mesmo sem ter confiança alguma, lhe pedira dinheiro emprestado.
Que sucederia amanhã, se lhe perdessem o respeito? O mal é que
não havia com que matar o tempo. Na Califórnia, também não vivia
na cidade, era certo, mas a “farm” estava mesmo à beirinha da
estrada, uma estrada como ele não vira nenhuma em Portugal.
Bastava meter-se num automóvel; meia hora depois estava em São
Francisco. Então, era o que quisesse: cinemas, teatros, mulheres,
tudo quanto um homem precisasse. Ali, não. Nem sequer havia
estrada para ir a Montalegre. E em Montalegre o que se via? Quando
Lisboa, que era Lisboa, não chegava aos pés de São Francisco, que
ia haver em Montalegre? Se continuasse muito tempo ali, ficaria tão
bruto como o padre, que sabia latim mas não sabia mais nada. Em
lhe tirando a bisca, tornava-se mesmo um pachocho; não
conversava com os corços que tinha morto, as suas vacas e os seus
porcos. Não. A aborrecer-se assim, acabaria por deitar até o porto ou
153
mesmo a Lisboa e se estabeleceria. Não resolvera ainda com
quê, mas negócios não faltavam; a questão era ter dinheiro. (p. 52).
Para o Alberto inicial, em A Selva:
Aquela longa viagem, duplicando a distância que a ali o separava
de Portugal, a interrupção dos seus estudos, a derrota de suas
doutrinas e os ásperos baldões sofridos, tudo agora muito nítido
[...].
A sua epiderme contraía-se sob a força do asco que o convés
imundo lhe causava. Sentia-se inadaptado, estranho ali, quase
inimigo das vidas que o acercavam, aparentemente alheias a tudo
quanto não fossem imposições do corpo e aderindo, resignadas, a
todas as contingências.
Magoava-o a facilidade com que outros recrutados dormiam
tranqüilamente um sono que era, para o egoísmo dele, quase uma
afronta.
E sorria, depreciativamente, ao pensar no apostolado da democracia,
nos defensores da igualdade humana, que ele combatera e o haviam
atirado para o exílio. “Retóricos, retóricos perniciosos! Queria vê-los
ali, a seu lado, para lhes perguntar se era com aquela humanidade
primária que pretendiam restaurar o Mundo. Via-se o que tinham
feito! Tudo na mesma, sempre a mesma violência, a demagogia a
[...] Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que
atravancavam o Mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida
coletiva a beleza e a elevação que ela podia ter? Se a possuíssem,
se tivessem sensibilidade, não estariam adaptados, como estavam
àquele curral flutuante. (FERREIRA DE CASTRO, 1972, p. 55).
Na terra em que nascera, ocorre a fatal rejeição das origens. O passatempo
de Santiago era, por esporte, destruir aquilo de que dependiam os seus
conterrâneos: caçar vacas, cervos e porcos. Simbólico do que posteriormente ocorre
com a vida de Leonardo e, sobretudo, Ermelinda, a quem Santiago engravida e
despreza, destruindo um lar. Importante ressaltar que o discurso do narrador, por
mais próximo que esteja do pensamento da personagem em tela não comunga com
ela dos mesmos juízos de valor reducionistas empreendidos por Santiago. Pode-se
afirmar que em A Selva os imagotipos são criados com o intuito de serem
destruídos posteriormente pela própria personagem que deles se utiliza, como é o
caso de Alberto e mesmo de Manuel da Bouça, em Emigrantes, quando da sua
chegada no Brasil, ou mesmo durante a viagem de Portugal para cá, em que
empreende uma análise fatalista e reducionista dos inúmeros imigrantes que ali se
encontram: espanhóis, alemães, italianos e outros e, no entanto, mais tarde, no
decorrer da narrativa, vai absorvendo-se pela empatia em relação aos espoliados.
154
Tanto Alberto quanto Manuel da Bouça (este último ressurge em A Lã e a
Neve) retornam a Portugal diferentes, não porque encontrassem em terras da
América do Sul um Paraíso de inúmeras possibilidades, mas porque travaram
contato com uma massa humana desvalida, deambulando os espaços em torno do
mundo e aniquilando-se com a miséria que em toda a parte lhes era imposta. Nesse
contexto, a figura de Jacinto, personagem do conto Civilização e do romance A
Cidade e as Serras, é representativa, que, como Alberto e Manuel da Bouça,
reencontrara repouso no campo, em um Portugal agrário, original, muito embora
inicialmente revelasse as benesses de Paris para o Jacinto inicial, o exemplo
perfeito de cidade repleta de todo conforto condizente com os desejos da civilização,
ao passo que Portugal era tido como um país em atraso.
Alberto e Manuel da Bouça tornam-se mais compreensivos e isso ocorre,
narrativamente, na medida em que os imagotipos e os juízos de valor reducionistas
empreendidos por ambos, vão sendo esgotados frente ao contato com a realidade
quotidiana dos outros indivíduos, a quem, de início, julgavam diferentes. Santiago
retorna a Portugal com a empáfia de quem esteve muito próximo do ouro da
Califórnia e, muito embora não o tivesse conseguido, angariara recursos suficientes
trabalhando sazonalmente nas farm. E se para ele, nos Estados Unidos, aquilo que
recebera era pouco, em terras portuguesas seria o suficiente para sair pelas ruas
arremessando moedas às crianças ou emprestando dinheiro aos conterrâneos sem
esperar recebê-lo de volta.
Na arquitetura do romance Terra Fria, o fato de Santiago ser chamado de
“americano” é significativo do olhar tanto dos barrosãos em relação a ele, tendo-o
por diferente, desprovido de empatia e recluso, quanto para a própria personagem
que carrega a alcunha, já que ele mesmo, Santiago, pelo suposto poder que o
dinheiro lhe legara, acreditava ocupar um posto superior ao dos seus conterrâneos,
não devendo misturar-se com eles para que o saíssem a pedir-lhe dinheiro
emprestado.
Santiago vai paulatinamente mostrando-se personagem dominada pelos
instintos do sonho monetário; um indivíduo para quem tudo poderia ser convertido
em objeto, assim como as próprias mulheres a quem usava as engravidava e
repudiava, como a um objeto desprezível. Com isso, refaz o trajeto do português
auferido pelo Velho do Restelo em Os Lusíadas, completamente dominado pelo
desejo de mandar e pela cobiça. A simbologia inserida no contexto da descrição
155
de Santiago chama a atenção para seu instinto de caçador, notável na expressão
“para Santiago, o pior tempo era o do defeso. A atitude predatória da personagem
soma-se ao conjunto de elementos que o aproximam do europeu dominador,
partícipe do programa mercantilista do século XVI, ou seja, da dominação a todo
custo.
Para os seus olhos (de Santiago), Ermelinda seria como que uma nova presa
a ser caçada. Assim como o caçador escolhe o animal mais forte e adaptado ao
meio, o fato de Ermelinda ser casada, bem apessoada e acostumada à vida bruta
dos seres na lide das terras frias do Barroso, constituía-se chamariz aos instintos de
predador de Santiago. A força de Ermelinda é retratada logo no início do romance:
Rapariga jeitosa, flor da aldeia, que era pobre em belezas femininas,
podia ter escolhido marido com corte bem povoada e bons campos
para centeio e batata. Mas não. Preferira-o a ele, contrariando até os
pais, e, agora, em vez de carpir a sorte, atirava-se à vida com
coragem de homem. (p. 33).
Novamente desenvolve-se uma retroflexão especular no que concerne às
autoimagens. Dotado de preconceitos contra a própria terra em que nascera,
Santiago almeja Ermelinda como a um animal de caça. Portanto, a imagem de
Ermelinda em relação à imagem de Santiago é distorcida, por não mais pertencerem
ao mesmo campo conceitual. Santiago, após viajar, não se sente mais português e
muito menos barrosão, ao passo que, para ele, Ermelinda, dotada de atributos,
ganha uma dimensão de interesse predatório para um homem acostumado a caçar
animais. Conquistá-la e desfrutar voluptuosamente dela era como abater um animal
arredio. Muito embora de mesma origem, as personagens se distanciam
caracteristicamente, e Santiago cresce humanamente na medida em que Ermelinda
se animaliza cada vez mais aos olhos de seu predador e embora estivesse ciente de
sua posição enquanto presa, repelia-a, com grande esforço de pensamento:
Ao chegar à porta de Santiago, ainda vacilava. Um instante se
deteve, perplexa, mas logo se decidiu. Ia-se ver! Nem ele era lobo,
nem ela era ovelha. Se teimasse, era pior! Que as coisas, então, não
ficariam como da primeira vez! (p. 68).
156
Como a perseguir uma presa com destreza de caçador, Santiago vai, pouco a
pouco conquistando a atenção de Ermelinda com seu perfume e seu modo
“adocicado” de falar-lhe. Na mente da personagem feminina gera-se um paradoxo,
um contraste que contribui sobremaneira para que, com o passar do tempo, sinta
asco de Leonardo, com seu cheiro de suor ao chegar da lide com as peles de
animais:
Agora, porém, Leonardo parecia-lhe outro. Sem querer, como se
também dentro dela houvesse outra mulher, reparou-lhe na barba
crescida, que ele rapava ao domingo, nos dentes sujos de tabaco
e de comida e na camisa encardida como o soalho coisas de que
não dava outrora. E, ainda por cima, aquele cheiro de peles mal
curtidas, que deitava sempre da roupa e do corpo, mesmo quando
estava a dormir. (p. 65).
Ou ainda, nas ligeiras comparações de Leonardo com os porcos:
a)
A noite fora de uma indecisão pegada, junto de Leonardo que dormia
tranquilamente, num sono de chumbo. Duas vezes estivera para o
acordar e narrar-lhe tudo, desejando que ele se irritasse também e
não dormisse assim que nem porco, depois de esvaziada a gamela.
(p. 67).
b)
[...] algumas noites, marcadas as nove, ela não tinha pressa de se
ir embora, molestando-a, então, o dever de tratar do seu casebre e
do seu homem. Ia, dava conta da obrigação, escutava a falaceira de
Leonardo, monótono que nem azenha moedora de ambições nunca
desfeitas e quer ao ouvi-lo, quer ao vê-lo, quer ao deitar-se a seu
lado, agravava-se a situação de que também eles já eram diferentes.
[...]. E, mal o dia acendia a pupila, o seu desejo era sair; preparar,
num instante, a malga de leite para Leonardo, galactófago como
todos os barrosãos, os pensos da vaca e a lavadura do porco – e sair
[...]. (p. 79).
Após muita recusa e resignação, desejo de comentar com Leonardo o que
ouvira de Santiago, não resiste às armadilhas do predador e entrega-se a ele:
Ela, então, reparou que lençóis e cobertores estavam puxados de
banda, embora os houvesse distendido poucas horas antes, como de
costume. Dobrou-se a alisar o enrodilhado e a sentir uma intenção
mal definida, que pairava em todo o quarto. Ele continuava a transitar
de um extremo a outro, em silêncio. De repente, estacou. E quando
157
ela, sentindo-o junto de si, ia voltar-se, ele estendeu um dos braços
e, bruscamente, levantou-lhe o rosto pelo queixo. Logo, os seus
olhos baixaram, em análise rápida, sobre os olhos que o
contemplavam, espantados, quase transidos. E antes que a
perturbada pendesse a cabeça, numa vergonha que a amolecia, os
lábios dele, grossos, túmidos de desejo, colaram-se aos dela com
violência. (p. 80).
Ao fim e ao cabo, Santiago rejeita sua autoimagem, ao sacrificar seu
passado, caçando os porcos e as vacas, pois se sentia diferente dos outros
barrosãos por ter conhecido outras terras e de lá trazido um pouco de dinheiro. Sua
autoimagem é corrompida pela heteroimagem que adquirira nos Estados Unidos, de
forma que ocorre em Santiago a fusão entre sua auto e seu heteroimagem. Isso
pode ser percebido no tocante à sua trajetória Portugal/Estados Unidos, em que
retoma a linha percorrida pelos portugueses ávidos por enriquecimento durante o
processo de expansão mercantilista dos séculos XV e XVI e, depois, ao refazer a
viagem Estados Unidos/Portugal, quando tem sua autoimagem portuguesa
corrompida pela sede do ouro, quando retoma, em São Francisco, Califórnia, a
Corrida do Ouro dos norte-americanos no século XVIII. Por serem semelhantes no
propósito final, qual seja, o enriquecimento a todo custo, essas imagens se
misturam. Se o pode permanecer nos Estados Unidos devido ao fato que o
dinheiro que adquirira não seria suficiente para manter seus desejos, o retorno a
Portugal, malgrado possibilitar-lhe o desfrute das benesses herdadas nos Estados
Unidos, projetava-o para o seu passado, ao qual queria destruir a todo custo,
quando buscava viver a projeção de sua heteroimagem em outros termos,
desejava reconstruir, imageticamente, os Estados Unidos em Portugal. Na origem do
próprio nome de Santiago encontra-se o aspecto da peregrinação. Paradoxalmente,
não peregrina em busca do enriquecimento espiritual, como ocorre com aqueles que
percorrem o caminho de Santiago de Compostela, mas, no caminho do
enriquecimento, que, no auge do Mercantilismo, nos séculos XV e XVI, tamm se
ligava a um suposto propósito religioso, da expansão da Fé e do Império.
O propósito de Leonardo tamm era o de enriquecer, porém, vive sob o
auspício místico da busca do tesouro escondido. Significativo é o momento em que,
158
juntamente com Iglésias toma o “Livro de São Cipriano”
19
e busca um tesouro
escondido nas terras barrosãs:
Leonardo pousou o cesto e tirou do bolso o “Livro de S. Cipriano”.
_ Veja lá...
Iglésias tomou o livro ensebado e, a meio tom, foi lendo:
“Na cumeada do Leiranco, debaixo da pedra que está sozinha e tem
ao lado uma cruz natural, encontra-se, a três homens de fundo, uma
caixa de tilão com seis mil dobras de oiro. Também enterramos os
escarpins de maior valor que havia em Ouega e um emborque de
prata lavrada, que vale duas mil dobras. (p. 96).
A mistura entre a crença e a desconfiança, juntamente com a religiosidade
cristã e o misticismo reatam o liame do passado português e do presente da
narrativa. A busca do tesouro é representação máxima da busca do “Eldorado” ou
do Ouro de Cólquida”, tal como ocorre em A Selva, com aqueles que se
deslocavam de suas regiões e de seus países em prol da riqueza da borracha na
floresta amazônica. Ali o tesouro tamm estava escondido e tamm pairava nas
mentes dos aventureiros como uma possibilidade; aspectos de um dos motores que
movem as personagens de Ferreira de Castro a agir, a esperança.
Com isso, não mais podendo crer nas possibilidades emergidas do
trabalho, as personagens recorrem aos instintos atávicos em busca do
19
A lenda de São Cipriano, “O Feiticeiro”, confunde-se com um outro célebre Cipriano imortalizado na
Igreja Católica, conhecido como “Papa Africano”. Apesar do abismo geográfico que os afasta, as
lendas combinam-se e os Ciprianos, muitas vezes, tornam-se um na cultura popular. É comum
encontrarmos fatos e características pessoais atribuídas equivocadamente. Além dos mesmos
nomes, os mártires coexistiram, mas em regiões distintas. Cipriano – O Feiticeiro - é celebrado no dia
2 de Outubro. Foi um homem que dedicou boa parte de sua vida ao estudo das ciências ocultas.
Após deparar-se com a jovem (Santa) Justina, converteu-se ao Catolicismo. Martirizado e
canonizado, sua popularidade excedeu a fé cristã devido ao famoso “Livro de São Cipriano”, um
compilado de rituais de magia. A fantástica trajetória do Feiticeiro e Santo da Antioquia representa o
elo entre Deus e o Diabo, entre o puro e o pecaminoso, entre a soberba e a humildade. São Cipriano
é mais que um personagem da Igreja Católica ou um livro de magia; é um símbolo da dualidade da fé
humana.O famoso “Livro de São Cipriano” foi redigido antes de sua conversão, mas o mistério que
envolve a vida do Santo interfere também em seu livro. Uma parte dos manuscritos foi queimada por
ele mesmo. A questão é que não se sabe quando, e por quem os registros foram reunidos e
traduzidos do hebraico para o latim, e posteriormente levados para diversas partes do mundo. No
decorrer dos anos, o conteúdo sofreu alterações significativas. Houve uma adaptação de acordo com
as necessidades e possibilidades contemporâneas; além da adequação necessária na tradução para
os vários idiomas. Esses fatores colocam em vida a fidelidade das versões recentes, se
comparadas às mais antigas. Atualmente, não é possível falar do “Livro”, mas sim dos “Livros de São
Cipriano”. As edições capa preta e capa de aço; ou aquelas intituladas como o autêntico, o
verdadeiro, ou o único, enfatizam um mesmo acervo mágico central, e ainda exaltam o cristianismo e
a vitória do bem sobre o mal. Porém, existem grandes diferenças no conteúdo. Enquanto alguns
exemplares apresentam histórias e rituais inofensivos, outros apelam para campos negativistas e
destrutivos da magia.
159
enriquecimento a qualquer custo, e, desta feita, demonstram a mesma ambição que
já se mostrava presente em São Cipriano e em seu místico livro aspecto
superlativo da dualidade do homem dividido entre o céu e o inferno.
A recorrência ao misticismo como modo de recuperar o que a realidade
concreta não dispõe com tanta facilidade, é, portanto, diferente da ambição presente
na transfiguração projetada de Santiago, cuja autoimagem é embaciada pela
heteroimagem, recuperada pela evocação da ambiciosa corrida pelo ouro. Para
Leonardo, um português, e Iglésias, um espanhol, reportar-se ao misticismo
consente com algo que se liga inerentemente ao instinto humano: o desejo de
enriquecimento e de sobrevivência, tal como aparece em diversas obras da
Literatura Ocidental, sobretudo naquelas pertencentes a escritores voltados para
causas sociais, como é o caso de Os Miseráveis, de Victor Hugo, Gérminal, de
Émile Zola e mesmo em Os Sertões, de Euclides da Cunha, em que os indivíduos
feitos personagens de tais narrativas, não raro tamm se apegam ao misticismo em
busca de melhores condições de vida.
Por outro lado, essa batalha no encalço do tesouro escondido transforma-se
em ironia ao sistema que rejeitava o indivíduo e o obrigava a viver coletivamente, em
um mundo esquecido, sujeito aos mais perniciosos acontecimentos e dependente
das lendas e do mistério. Desse modo, no itinerário conceitual português, o Barroso
é configurado como terra mística, afastada da realidade portuguesa das grandes
cidades; mundo atávico em que o mito impera sobre a própria realidade e o
misticismo caminha de mãos dadas com a . Dentro de um livro místico como o de
São Cipriano, diviso entre Yaveh e Satan, a cruz nas pedras passa a ser o marco do
encontro com um tesouro místico. Nos momentos em que o mito e as tradições
cristãs se chocam, o indivíduo torna-se cético e obriga-se a dispensar o sonho e a
viver a dura realidade. Isso é reforçado pela imagem de Iglésias tentando, a todo
custo, comprovar o que via com o que lera. A leitura seguia uma seara, ao passo
que a realidade, outra, bem diferente:
O galego mirou e remirou, considerando o que via e o que lera. As
suas pupilas iam do bloco do centro para as duas lascas sobrepostas
e destas para o livro tudo com vagar de quem queria certificar-se
bem e não corria atrás de foguetes. Leonardo, que seguia,
ansiosamente, o seu olhar, não se conteve:
_ Então?
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Iglésias não respondeu logo. Aproximou-se ainda mais das pedras,
examinou-as novamente e só depois declarou:
_ Isto tanto pode ser uma cruz, como coisa nenhuma. Pedras assim,
umas em riba das outras, há-as por aí por toda parte...
O pressentimento, nascido pouco, de que eram passos baldados
os que vinha gastando tornou-se mais forte no espírito de Leonardo.
“Também aquele não acreditava...”. (p. 96-97).
Outro momento místico presente na obra é a imagem da Ponte da Misarela,
de origem medieval e rodeada por lendas. Localizada em Sidrós, onde os rios
Cávado e Rabagão se unem, é local em que a hoje muitas mulheres
tradicionalmente vão, quando não conseguem levar uma gravidez até ao fim.
Sabendo-se grávida de Santiago e da infertilidade de Leonardo, coisa que esse
mesmo desconhecia, Ermelinda segue o conselho entranhado no costume místico
das mulheres da região e leva Leonardo a lá para que fizessem um pedido para
que engravidasse. Pacato como leão manso, o que destoa do próprio significado do
nome Leonardo, o barrosão acompanha a esposa até a Ponte e dá-lhe assistência
durante toda a gravidez:
Aproximava-se a meia noite quando eles chegaram, derreados, à
Misarela. A ponte lançava o seu vulto, quase desvanecido pela treva,
sobre o Rabagão, que não se via, mas se ouvia marulhar.
Leonardo parou, a orientar-se. Por fim, deu uns passos mais,
levando Ermelinda pela mão. Daquele momento em diante não
deviam soltar palavra, até que outra vida humana o acaso trouxesse
por ali.
Gentes que viviam ainda sob remotas tradições, muitos habitantes de
Barroso acreditavam no poder incontestável da ponte de Misarela
sobre os ventres infecundos ou que não sustinham o fruto, desde
que as mulheres implorantes se submetessem às práticas que os
antigos aconselhavam. Essa crença estendera-se a muitas léguas de
distancia e até de Cabeceiras de Basto e de Braga acorriam ali
candidatas a mães, na esperança de que a semente do homem
germinasse. Se, apesar de tudo, útero estéril, estéril continuava, à
ponte não se atribuía a culpa e sim a quem a ela viera e não soubera
manter as usanças necessárias para que a fecundação prosperasse.
Teria sido por isto, teria sido por aquilo, os logrados a si próprios
responsabilizavam pela derrota do seu intento. (p. 116).
Para que o “feitiço” da Ponte da Misarela tivesse efeito, havia necessidade de
que alguém passasse por ali, durante a vigília noturna dos espíritos e a permanência
161
dos fâmulos, para que então o filho tivesse um padrinho, antes mesmo de o ventre
da futura mãe ser fecundado:
de madrugada, enquanto ele admitia que se a ponte fazia aqueles
milagres era porque andava ali alma do outro mundo, Ermelinda
começara a impacientar-se. “E se não passasse ninguém? E se não
passasse ninguém? Seria tempo perdido e, talvez, Leonardo não
quisesse vir noutro dia. há dois dias que não ia pelas peles e...”
Afligiu-se mais: “Ela não podia perder tempo; era preciso arrumar
aquilo, porque a criança devia ter mais de um mês...”
ao quebrar da negrura, antemanhã, soaram vozes na solidão da
terra, ao longe [...]
Dois homens surgiram, por fim, no extremo da ponte, metidos no seu
capote e de cajado na mão. Ermelinda avançou para um deles um
qualquer, não importava qual, porque o milagre estava feito... E,
abrindo a boca, após a longa mudez, convidou-o para padrinho do
filho que viesse a ter. (p. 118).
Ermelinda ancorava-se no fato de que Leonardo ostentava a autoimagem do
típico português barrosão, ao passo que a sua própria autoimagem havia sido
corrompida pelo desejo de alcançar a heteroimagem, contida na figura do amante,
Santiago. Para tanto, Leonardo prefigurava aquele que tinha total confiança mística,
já que buscava um tesouro escondido nas planícies do Larouco e vivia do mesmo
trabalho típico dos homens da região.
Aos poucos Leonardo vai deixando de lado o contrabando de peles e, com a
ajuda de Santiago, sem ainda saber do fato deste ser pai do filho que Ermelinda
esperava, monta uma venda, a exemplo do que ocorrera com Iglésias na Espanha.
Aparentemente, os dois já haviam se esquecido do tesouro, e a dura realidade do
trabalho revelava-se muito mais concreta do que os eflúvios místicos que
impulsionavam suas naturezas fleumáticas.
Não obstante, as descrições do ambiente agrário em que os barrosãos vivem
são cada vez mais candentes no romance. Momento simbólico, túrgido de
significado, é o da chega” dos touros de Padroso e Padornelos, em frente à venda
de Leonardo. Os touros, em aparente momento de cordialidades, iniciam o gládio.
Representação característica e antecipatória do possível embate entre Leonardo e
Santiago (um embate que jamais ocorre). A beleza representativa contida na
construção estilisticamente trabalhada da luta dos touros chama a atenção para o
empenho literário de Ferreira de Castro:
162
Dir-se-ia que os dois touros não estavam dispostos a engalfinhar-se
em benefício de Leonardo e para Gaudio de quem, ao domingo, não
trabalhava e queria divertir-se à custa deles. Mas não. Homens e
mulheres, acostumados a “verem” as “chegas”, que substituíam, em
terras de Barroso, as touradas do resto da Ibéria, sabiam que
aqueles manejos eram simples cortesias de adversários. Tanto que,
segundos depois, os dois rabos começaram a agitar-se, primeiro em
ritmo de pêndula, logo nervosamente, indo acima e abaixo, que nem
enxame de moscardos famintos os levaria a tão irritado movimento
[...] O touro de Padornelos, ao sentir a sua cauda tocada pela do
inimigo, deu, com as patas dianteiras, duas escavadelas na terra,
arfou e voltou-se num urro de ódio.
[...] Os chifres ora se soltavam, recuando e buscando espaço para
novo impulso, ora, de marrada feita, baixavam, subitamente, para
a barbela do outro touro. Às vezes chocavam-se com tal fragor, que
quem fosse profano teria a impressão de que iam depedaçar-se.
[...]
Repentinamente, porém, os dois contendores abriram pausa no
combate. Puseram de permeio um metro de terra livre e, de bocarra
espumando, o olhar mais amortecido em brilho, ficaram quietos um
defronte do outro. a cauda continuava a agitar-se numa cólera
que não se esgotara ainda. (pp. 143-145).
Mulher forte que fazia as vezes do pacato marido, ao saber que Santiago
se engraçava de outra mulher, na manutenção de sua instintiva atitude predatória,
Ermelinda o mata. O momento que antecede ao assassinato de Santiago é
significativo e resgata a narração da “chega” dos touros em fúria. Novamente, a cor
negra do cenário aparece e vai dando tom funerário à situação, numa espécie de
féretro antecipatório:
Apontadas as quatro e meia, Ermelinda enfiou a “capucha”, agarrou
na sacola e saiu. Tarde fusca, ventosa, com neve nos pendores e
cabeços das serranias, o sol o conseguira, durante o dia,
traspassar o grande manto plúmbeo que forrava todo o céu,
uniformemente. O burgo, no seu granito sujo e colmo pardacento, dir-
se-ia mais negro e estava de novo cheio de lama refocilada pelos
porcos [...]
Esfriara tanto a terra fria que, mesmo dentro da venda, Leonardo
tinha de envergar o pesado capote [...] deu pelo tempo quando o
Gervazinho começou, em cima, a choramingar. Eram quase seis
horas e Ermelinda não tinha voltado ainda.[...]
Mal-humorado, começava a desfiar hipóteses quando Ermelinda
entrou. De sacola na mão, atravessou a loja, rapidamente, à
pequena escada. [...] a voz dela chamou, rouca, aflita:
_ Leonardo! Leonardo!
[...]
_ Mateio-o, a ele... Ao Santiago... (p. 163)
163
O nome de seu filho, Gervásio (“aquele que faz justiça com a espada”), é
aspectual da própria vingança de Ermelinda, mulher forte e impetuosa que mata seu
duplo, Santiago, por ter-lhe roubado não só a honra como tamm a própria imagem
de mulher barrosã. A perda da identidade de Ermelinda e de Santiago é significativa
dessa transmutação entre auto e heteroimagem dentro do romance, ao passo que
Leonardo mantinha a sua resignação como homem barrosão e, mesmo convivendo
com a própria mentira da mulher, que afirmara ter sacrificado Santiago para manter-
se inconspurcável diante da falta de respeito do “americano”, luta em prol da honra
da esposa e foge para a Espanha, dando a entender que era ele quem tinha matado
a Santiago. Leonardo passa a viver na casa de Iglésias e de novo, começa a
trabalhar para este, sempre esquivando-se da polícia. Tudo para salvaguardar
Ermelinda que deveria, pois, cuidar de Gervasinho, e, ao fim e ao cabo, manter a
autoimagem portuguesa, a qual prezava tanto.
A mãe de Ermelinda descobre a verdade acerca da morte de Santiago e,
mesmo não exprimindo simpatia com Leonardo homem trabalhador, mas sem
posses, defende a esse que, a partir da morte do americano”, vivia fugindo, lutando
contra o frio e contra os guardas para, às escondidas, ver o suposto filho,
Gervasinho. Não obstante, a “tia” Domingas Picheleira, uma personagem conhecida
por todos devido às suas fofocas, vai até à casa de Iglésias e conta toda a verdade a
Leonardo:
O doutor Freitas está mesmo feito alquitete da velha [mãe de
Santiago] e em aquela gente se metendo na vida dos pobres... [...]. O
doutor perguntou-lhe há quanto tempo ela [Ermelinda] andava metida
com o outro e ela respondeu que nunca tinha andado metida com
ele. Mas a Custódia, que estava ao pé, pôs logo tudo em pratos
limpos. Que aquilo durava a muito, que ele até lhe tinha aumentado a
soldada para cem mil réis e que o filho era dele...
Deteve-se, subitamente, ante a expressão da “tia” Domingas. Um
instante, e outro, e outro, consultou-se, num turbilhão de sensações
díspares, de deduções e perguntas formuladas a si próprio. Logo,
estendeu os braços, agarrou a velha pelos ombros e sacudiu-a
violentamente.
[...]
“Tia” Domingas murmurejou:
_ Toda a gente pensa que tu sabes... Mas, então, tu não sabias?
_ Eu?!...
E no silêncio do armazém inteiro:
_ Então o pequeno e tudo?
[...]
164
_ Quando vocês foram à Misarela, ela o trazia na barriga. Aquilo
foi para que tu não desconfiasses. Não viste que nasceu com oito
meses?... E a ponte nunca deu filhos; serve para não se ter
desmanchos [...]. (p. 206)
A “tia” Domingas apresenta-se como uma espécie de ponto de retorno, para o
qual Leonardo devia se transportar, frente aos inúmeros meios pelos quais se
enganava continuamente: fossem as mentiras, contadas constantemente por
Ermelinda, que o fizeram fugir como a um bandido, fossem as lendas, que
amenizavam o sofrimento diante do trabalho rude em uma terra fria e infértil.
Mesmo a racionalidade presente no espírito de “tia” Domingas não impedira
Leonardo de se ter como homem simples, do campo, e ainda resignar-se à própria
prisão para ver mantida a honra da mulher perante a sociedade. Somente a
confissão da esposa, diante do delegado, Doutor Moreira, dissipou os frágeis
indícios de que deveria ser Leonardo o autor do crime.
Como ocorre em A Selva, a justiça alcança os desvalidos, mais cedo ou mais
tarde. Nunca a resolver de vez a situação dos mesmos, mas a dar um alento
momentâneo, diante da revelação das agruras de um sistema injusto e avassalador.
Enquanto a morte de Santiago é significativa quanto à eliminação do elemento que
traz a confusão, ou conforme expressa o estudioso Ettore Finnazzi Agrò (1998, p.
13), trata-se da representação do duplo, do “dia-bolos”, daquele que provoca o caos
e modifica a ordem natural das coisas. Foi com a chegada de Santiago, trazendo na
bagagem os eflúvios da heteroimagem que a autoimagem de Ermelinda, mulher de
respeito, de um homem, é corrompida. Instaura-se o caos dentro de uma terra
que, por sua natureza atávica, traduzia a crença nas lendas e no duplo
profanizado na figura do Livro de São Cipriano”, no misticismo coligado à Ponte da
Misarela tudo isso em contraste com a formação judaico-cristã das terras agrárias
portuguesas.
Ao fim, Leonardo é a personagem cujo instinto supremo da compreensão do
outro o faz conviver pacificamente com portugueses e espanhóis, sem preconceitos
e sem que, com ele, o narrador expresse imagotipos de qualquer ordem. Casa-se
com Rosália, filha de Iglesias, e continua a ter uma vida pacata, tomando conta da
venda do sogro.
A chegada do amigo Artur Lopes, vindo do Brasil, é preponderante no que
toca à situação de todos aqueles que imigram para outras localidades e voltam sem
165
dinheiro, diferente do que ocorre com Santiago, que volta com dinheiro. O ganho de
Artur Lopes é a dignidade humana, ou seja, a mesma compreensão da qual se
perfaz Manuel da Bouça em Emigrantes:
_ E tu? Conta lá! Ainda não me disseste se foste feliz...
Artur Lopes vacilou, um momento. Depois, com monossílabos e
reticências confessou. Não, não tinha arranjado coisa que se visse.
Trabucara quanto pudera, mas não arranjara nada de jeito. Hoje,
estava mau por toda a parte. Trouxera uma notas, muito poucas,
mas não davam para nada. (p. 247).
À negativa do amigo, Leonardo oferece-lhe a busca do tesouro nas matas do
Larouco. Artur Lopes, no final do romance, aceita o convite de Leonardo para
entrarem na mata em busca do tesouro, dentro das contrações místicas que os
compeliam, na esperança do “Eldorado”.
O final do entrecho narrativo é altamente significativo, pois, encontram-se
Leonardo e Artur Lopes junto aos galegos”, sem diferenças que os impedissem de
estarem juntos, em comunhão, evidenciando a preocupação de Ferreira de Castro
em fazer de seu romance espelho do próprio mundo:
Na tarde morna, declinando entre bravias montanhas, ali, na terra
ignorada do Mundo, na terra sem história, que principiava na Galiza e
vinha terminar, alheia a fronteiras e a idiomas, dentro de Portugal, a
vida do povo obscuro tinha as mesmas expressões fundamentais, o
mesmo instinto de perpetuidade, a mesma ânsia de alegria e o
mesmo céu comum a toda espécie, como se os lugarejos que os
lobos, de noite, espreitavam, se encontrassem situados no centro do
planeta. (p. 251).
Dessa forma, em Terra Fria, embora poucas menções sejam feitas ao Brasil,
a não ser no momento da chegada de Artur Lopes de terras brasileiras, Portugal
proporciona uma visão especular do Brasil, já que a detração social de terras
esquecidas aparece tanto em Terra Fria quanto em A Selva, por exemplo, de modo
que a condição atávica de tais localidades, cujos indivíduos possuem uma relação
telúrica extremada pela necessidade de sobrevivência, é candente nos dois
romances. Auto e heteroimagens se mesclam de forma que a um dado momento,
contrastando os dois romances, torna-se difícil identificar em um o Brasil e no outro,
Portugal. Isso, pois, apesar da peculiaridade inerente a cada região retratada,
166
ambas se espelham, ao passo que espelham o próprio mundo, cujo sistema
econômico delega determinadas regiões e povos a uma condição pré-civilizatória,
evidente no atraso que manifestam.
3.3. A Lã e a Neve
20
: imagens paralelas entre Brasil e Portugal na Covilhã.
Permeando a saga e próximo das tragédias, A e a neve é o romance do
homem proletário. Não porque necessariamente contenha ideais de defesa da
esquerda proletária, mas porque a trajetória de Horácio, personagem principal do
entrecho, caminha do cenário do campo para a vida nas fábricas laníferas da cidade.
O romance encontra-se dividido em três partes: a primeira intitula-se “Os Rebanhos”,
a segunda, “Lã e Neve”, significativa quanto ao título do próprio romance e a
terceira, “A Casa”.
Nesta obra assiste-se a três fases distintas da vida de Horácio: a do serviço
militar momento em que conhece um mundo diferente daquele em que vivia na
Serra da Estrela, e que contribui para melhorar sua rudimentar formação escolar; a
fase intermediária, que enfeixa grande parte do tônus narrativo do romance,
envolvendo a transformação de Horácio, de um simples pastor que convive com
ovelhas em um cenário bucólico, despojado de pensamentos sindicalistas e de
consciência de luta de classe, para um operário fabril, em meio a indivíduos cuja
vida é sugada por um trabalho intratável e desumano, forçando alguns a se imbuíam
de perspectiva de luta de classe, embora devido à simplicidade em que se
conformavam, não conseguiam levar a cabo os ideais que mantinham. O momento
da cidade é aquele em que Horácio busca angariar fundos para que possa contrair
núpcias com Idalina, pelo que se sujeita a uma existência sem descanso. Essa
segunda fase conduz à terceira e última, muito significativa e paralela à segunda: a
20
Retomando, a edição de A e a Neve, utilizada neste trabalho, salvo outra menção, será a da
Editora Guimarães e Cia., publicada no ano de 1980, com a oferta da Fundação Calouste Gulbenkian
de Lisboa, Portugal, e divulgação, no Brasil, da Fundação Cultural Brasil Portugal, do Rio de
Janeiro.
167
fase da elementar conscientização política de Horácio, mediante o exemplo do velho
operário Marreta.
A primeira fase contribui para que Horácio tenha conhecimento do Estoril e de
Lisboa, da diferença abismal que separa a vida urbana abastada da vida dos seus,
no campo, dos outros pastores da Serra da Estrela e tamm dos operários
covilhanenses, explorados e sofrendo todo tipo de privação. Trata-se de um rigor
espacial narrativo que retoma o estilo de Eça de Queiróz, na oposição cidade-serra.
Desde as primeiras páginas do romance m-se as histórias contadas por Horácio a
Idalina a respeito de sua vida na cidade, dos encantos que contemplara,
embevecido tanto no Estoril quanto em Lisboa. Até mesmo chegou a querer
permanecer na cidade, mas a falta de emprego o impedira de realizar tal feito. A
saída do exército traz consigo a responsabilidade de encontrar situação melhor, para
que possa, assim, casar-se com Idalina e dar-lhe uma vida digna. Decide-se,
portanto, frente à falta de melhor condição financeira, a adiar o casamento e lutar em
prol da casa em que moraria e criaria seus filhos no sonho, próxima do conforto
das casas do Estoril e de Lisboa.
Neste ponto A e a Neve difere de A Cidade e as Serras, de Eça de
Queiróz. Enquanto Jacinto, do romance eciano, decepciona-se com a cidade e
deslumbra-se com o contato com o campo, Horácio almeja a vida dos citadinos e o
conforto em que esses viviam.
A mudança espacial liga-se, indefectivelmente, à mudança temporal, que
parece estar entranhada no próprio nome de Horácio na mitologia, Horácio era
filho da deusa Horas. No final das contas, Horácio deambula pelos espaços em
busca de situação adequada aos seus almejos, mas, ao final, conforma-se em ver
na vida bucólica existência melhor à daqueles que não têm o direito de possuir as
ofertas do conforto citadino. Em suma, nessa fatídica trajetória vislumbra-se, no
início da narrativa, um Horácio pastor de ovelhas da Serra da Estrela, que acabara
de retornar do serviço militar e esperava ser chamado para o trabalho nas fábricas
de tecido do Estoril, julgando o ofício de pastor nada rentável e mesmo insuficiente
para que contraísse pcias com Idalina, sua noiva de muito, mesmo diante da
pressão oferecida pelos pais dela para que ele se ajeitasse na vida e oferecesse
uma vida digna à filha.
Abnegado, Horácio deixa o labor no campo, junto à paz bucólica, para
enfrentar a vida de ajudante em uma brica de tecido no Estoril, após um convite
168
conseguido por um amigo. Ganhando pouco e tendo de pagar moradia a outro
operário com família numerosa, Horácio toma contato com as infindáveis
dificuldades enfrentadas pelos ajudantes e operários da fábrica para garantirem o
ganha-pão e o suficiente para a sobrevivência, esbatendo-se contra um sistema que
pagava pouco a quem estava empregado e propagandeava o emprego mal
remunerado a uma massa de miseráveis desempregados.
Na medida em que aprendia o ofício de ajudante, no manejo dos teares
mecânicos, conhecidos como “self actings” (termo que, no contexto do romance, soa
completamente irônico e representativo da subtração do homem pela máquina),
Horácio almeja alcançar o posto de operário, para ganhar mais, mesmo que para
isso necessitasse trabalhar mais, descansar menos, conviver pouco tempo com a
mulher com quem se casou e o filho que tiveram.
Os sonhos de Horácio vão sendo desfeitos um a um, e ele, acostumando-se a
viver com pouco. Como a evidenciar a circularidade da miséria humana frente à
dependência econômica, Horácio, no cerne da narrativa, encontra-se com Manuel
da Bouça (que é personagem tamm de A e a Neve), que havia rodado mundo
como um pícaro, vindo para o Brasil e protagonizado o drama daqueles que buscam
riquezas e reconhecimento em outras terras, em Emigrantes, e que retornam a
Portugal, após nada ter adquirido em terras brasileiras. Manuel da Bouça obriga-se a
conviver com a falta da mulher, que aguardara durante anos seu retorno e morrera
sem que o tivesse visto de novo, e o desagrado da filha, que assistira sozinha à
morte da mãe e a derrocada do pai, que, enquanto deambulava pelo Brasil, em
Portugal perdia até mesmo as courelas conquistadas ao custo de muito esforço,
penhoradas para quitar a viagem que não pode pagar. Deslocado do convívio
familiar, Manuel da Bouça vê-se impingido a trafegar por Portugal, comungando sua
miséria com a de centenas de outros desgraçados, homens e mulheres comuns,
como Horácio e Idalina.
Horácio ainda vivencia outros paradoxos, como a discrepância entre o que os
funcionários da fábrica recebiam e os gêneros de subsistência; o frio que os
operários passavam à noite, sem possuírem cobertores suficientes, malgrado terem
doado boa parte de suas vidas ao feitio de cobertores de lã; o desprezo delegado
pelos chefes e donos das bricas aos velhos tecelões que, ao atingirem
determinada idade, eram sumariamente demitidos, ao passo que as self actings”
jamais paravam de trabalhar.
169
Individualizado no início da narrativa pelos sonhos que mantinha e a sede de
juventude, Horácio mistura-se e se confunde com a massa de desiludidos, tal qual
Manuel da Bouça, tendo, pois, até mesmo, de resignar-se a permanecer numa casa
distante da de seu sonho, em um vilarejo onde os dejetos eram arremessados a céu
aberto e os lares infestados de percevejos. Via no filho, amarelo, magro e picado de
percevejos, o gérmen de sua trajetória inglória.
Ao compor A Lã e a Neve, Ferreira de Castro valeu-se do mesmo método
utilizado por Émile Zola em Gérminal, descendo até o fundo das minas de Montsou,
em Anzin, para sentir as mesmas dificuldades que sentiam os mineiros e ver com
seus próprios olhos a miséria em que viviam ou ainda, viajando nos vagões do
comboio Paris-Le Havre, para preparar a narrativa de La Bête Humanine. Isso, para
o escritor de Ossela, havia ocorrido também em 1933 quando vai ao Barroso
encontrar motivos para a composição de Terra Fria. O caminho, pois ficaria aberto
para Alves Redol, sobretudo no Ciclo Port-Wine, escrito entre os anos de 1949 e
1953, desde o primeiro romance, Horizonte Cerrado até o terceiro da rie,
Vindima de Sangue, em que o escritor de Gaibéus se pôs, como Ferreira de
Castro, ao lado dos humilhados socialmente, num processo de solidariedade
concreta, compartilhando com eles o dia-a-dia, ou na denúncia das injustiças e
violências que sofriam os homens a quem até mesmo a dignidade era recusada.
A primeira edição de A e a Neve, vinda a lume em 1947, trazia na capa,
estilizada pelo famoso gravurista português Jorge Barradas, um atento pastor
guardando um rebanho, frente a uma negra muralha rochosa, espelhada, por todos
os lados, pela neve que a encobre. Uma das mais fortes denúncias emplacadas pelo
romance tem relação com o frio da região e o retrato dos pobres operários e os
idosos, todos sem recursos, morrendo de frio e de doenças, sem ter o mínimo com
que se curarem em meio à terrível condição climática da Covilhã durante o Inverno.
A capa da primeira edição brasileira, publicada em 1954, com estilizações de Perey
Deane, mostra uma paisagem coberta de neve, montes e casas ao fundo, numa
serra distante, e, em primeiro plano, o telhado sem neve e a enorme, negra e letal
chaminé de uma fábrica, manchando, com sua fumaça, o céu azul a fumaça
escura contrasta com a brancura da neve. Antegosto da crítica à condição de
trabalho na Serra da Estrela, Ferreira de Castro traz ao publico em 1945, em
também publicação da revista Vértice, um texto sob o título “A pele sem lã”, que
mais tarde enfeixará no romance A Lã e a Neve.
170
Muito embora não seja a tônica de nossa pesquisa, os números acerca das
traduções e a divulgação do referido romance em outras partes do mundo
certamente põem um anátema insolúvel ao leitor hodierno quanto ao desinteresse
frente à obra de Ferreira de Castro. para se notar, desde quando veio a lume
pela primeira vez, o romance A e a Neve obteve grande sucesso junto ao
público, dentro e fora de Portugal. Dois anos depois de sua primeira publicação, o
romance já estava na quinta edição, e em 1951, atingiu 21.000 exemplares com a
publicação da sexta edição; passados outros quatro anos da sexta edição,
justamente no ano de 1955, a tiragem atingia a cifra de 25.000 exemplares, com a
sétima edição da obra. Em 1979 o romance havia atingido a tiragem de 50.000
exemplares, em sua décima terceira edição. Em 1990, a editora Guimarães, que
sempre acompanhou Ferreira de Castro em todas as suas publicações, dá à
estampa a décima quinta edição de A Lã e a Neve, cuja tiragem atingia os 57.000
exemplares.
Em sua trajetória, Ferreira de Castro foi admirado tanto por brasileiros como
Jorge Amado, amigo pessoal, e Lygia Fagundes Telles, que afirmara, assim como
Agustina Bessa Luís, que conquistara o gosto de escrever a partir da leitura dos
romances de Ferreira de Castro, a quem teve oportunidade de agradecer
pessoalmente, em uma viagem que realizara a Portugal, quanto por portugueses,
como José Rodrigues Miguéis, Fernando Namora e Vitorino Nemésio, grandes
escritores que, não raras vezes, valeram-se do espaço privilegiado na revista
Vértice, perdico Neo-Realista por excelência, para tecer comentários
encomsticos a respeito da obra daquele a quem tinham como precursor de um
movimento amplo como o Neo-Realismo. Para estes, portugueses e brasileiros, A
e a Neve se constituiria num marco fundamental da obra de Ferreira de Castro,
dado o grau de representatividade absorvido pelo romance.
Ao ler A e a Neve, a exemplo do que ocorre com todas as obras de
Ferreira de Castro tratadas neste trabalho, nota-se um acuro de linguagem e um
trato estilístico tão candente que faz atestar quão importante é observar
analiticamente a composição literária, artística, nos meandros do texto do autor
português.
Há, em A Lã e a Neve, um sem número de enunciados metafóricos que
retomam, por exemplo, a humanização da natureza, imagem que ocorre com grande
freqüência, como em A Selva. Nesse sentido, o estudo da metáfora no texto A Lã e
171
a Neve, Isabel Roboredo Seara (2002), busca compreender a transposição do
sentimento telúrico que envolvia as características mais profundamente vincadas no
estilo de Ferreira de Castro, reforçando a tese de que o escritor não se deixou
embevecer por diretrizes ideológicas panfletrárias mas plasmou seu construto
literário num todo textual marcadamente imagético e significativo. De acordo com
Roboredo:
A identificação do enunciado metafórico não é um processo simples.
A própria detecção do enunciado é um acto interpretativo que
pressupõe decisões do leitor no processamento da material textual.
Identificar determinados traços micos, integrá-los num contexto
textual, são as duas faces de um mecanismo cuja complexidade é
diretamente proporcional ao grau de imprevisibilidade e ineditismo da
figura.
Na obra A e a Neve, de Ferreira de Castro, os enunciados
metafóricos proporcionam-nos um fio condutor que levou a descobrir
analogias, pertinência e sentido, harmonia e coerência. Se nos fosse
aqui permitida uma comparação, diríamos que tal como Leibiniz
conseguia ler a arquitetura do universo numa simples gota de
orvalho, assim a interpretação de uma obra literária deveria ser
capaz de reconhecer o universo total de uma obra naquilo que, à
primeira vista, parece simples pormenor acidental ou acessório.
(2002, p. 13).
Embora à primeira vista possa parecer simples o argumento de Roboredo,
não o é na medida em que um olhar como tal, cerce à obra de um escritor esquecido
como Ferreira de Castro, seria tão inédito quanto a qualidade sígnica que o autor
consegue por intermédio das metáforas que utiliza, não somente em A e a Neve
como em toda sua vasta produção literária. Com isso, dando azo a um argumento
simples como o do levantamento metafórico em Ferreira de Castro, caminhamos
pela mesma seara, ao levantarmos imagens da obra do escritor de Ossela,
interligando “mensagens” contidas nas expressões túrgidas de significado, as quais,
ao fim e ao cabo, buscam a descrição do homem e dos lugares com uma
generosidade significativa que ultrapassa qualquer pendor partidário que poderia
aparecer em suas narrativas.
Para o escritor Ferreira de Castro, os espaços exerciam-lhe, como muitas
vezes afirmara nos pórticos de seus romances, um grande fascínio. O fato, por
exemplo, de se ter retornado ao cenário amazônico por meio de O Instinto
172
Supremo foi, para ele, algo inesperado, haja vista que tentara sublimar todo
sofrimento pessoal e alheio (sempre atentou para o fato de que o drama dos
nordestinos brasileiros foi sua grande motivação para compor toda sua obra),
mediante o grande romance que publicara em 1930, A Selva. Ficara ainda
impressionado com o projeto do Marechal Cândido Rondon em pacificar os índios;
então, volta à Amazônia, já que pouco tratara da figura do homem indígena em A
Selva.
Essa diferença ótica entre campo e cidade, em Ferreira de Castro, é algo que
coloca em paradoxo dois espaços distintos, mas que exercem o mesmo choque
identitário no homem que neles habita. Portanto, a diferença é geográfica, que o
sofrimento humano é o mesmo, independente do lugar onde este se processe. A
cidade parece apresentar maiores condições de existência, facilidades econômicas,
saneamento básico e oportunidades de emprego. O campo é algo atávico, legado
aos mitos e às lendas, um lugar infernal, malgrado a fachada pacata que deixa
latente o sofrimento de quem depende dele para existir.
Como em Terra Fria, em que o cenário regelado do Barroso impunha certa
opressão natural ao homem, diante da imponderabilidade do meio adverso, capaz
de sobreviver apenas e tão somente quanto mais adaptados estivesse a esse meio,
em A Lã e a Neve o campo exerce um fascínio nostálgico ao homem, além de
colocá-lo em contato direto com sua autoimagem cambiante. Tarefa difícil, quando
não completamente impossível, visto que os mecanismos que encontra na cidade
são diametralmente opostos aos mecanismos bucólicos do campo. O fascínio
urbano se contrapõe à simplicidade campestre. O homem que apascenta as ovelhas
nas Serras abertas tem de observar o trabalho incansável das máquinas nas
fábricas de tecido. Tal diferença é apontada pelo autor no Pórtico da obra,
A indústria sofria, porém, constantes oscilações. Ora fabricava com
descanso, ora, por escassez de matéria-prima ou parco consumo,
diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à
haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria
mais descarnada ainda do que a normal. Com seu fabrico reduzido, a
Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas
para o meretrício de Lisboa.
A sujeição ao destino comum criara, todavia, alguns vínculos entre
os descendentes dos primeiros tecelões. No século XX, mais do que
sons de flautas pastoris descendo do alto da serra para os vales,
subiam dos vales para o alto da serra queixumes, protestos, rumores
173
dos homens que, às vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais
de pão. (p. 16).
Trata-se, pois da corrupção humana dentro da cidade. Não por uma imposição
genética que conduzia os seres ao mesmo trágico destino, mas, o trágico destino,
de que trata o autor, condiz com a situação econômica imposta às personagens que
cria, a exemplo do que ocorre nos outros romances: um conjunto de indivíduos a
vagar de um lado para outro do planeta em busca de melhores condições de vida,
na mesma prática incansável de garantir o pão.
Portugal, nesse momento da narração, na primeira metade do século XX,
possuía uma industrialização incipiente, de modo que o campo ainda se apresentava
como salvaguarda ou, em outras palavras, espaço de refúgio. Não é sem motivo que
Horácio, aos domingos, após uma jornada semanal exasperante na fábrica,
retornava ao campo, à casa dos pais, e para os braços da noiva.
A ligação de Ferreira de Castro com suas influências realistas, advindas dos
escritores da geração de 1870 é evidente, tamm nessa obra. Não obstante,
que se atentar para os posicionamentos esclarecedores de gia Chiappini no que
tange ao estudo direcionado para uma literatura de caráter regionalista, apegada ao
cunho realista:
Regionalismo na literatura, como tema de estudo, constitui um
desafio teórico, na medida em que defronta o estudioso com
questões das mais candentes da teoria, da crítica e da história
literárias, tais como os problemas do valor; da relação entre arte e
sociedade; da relação da literatura com as ciências humanas; das
literatura canônicas e não canônicas e das fronteiras movediças
entre clãs. Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar seu
caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e
à centralização do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à
chamada globalização. Se, para um pensamento não dialético, a
chamada aldeia global” suplantou definitivamente a “aldeia” e tudo o
que dela fale e por ela se interesse, a dialética nos faz considerar
que a questão regional e a defesa das particularidades locais hoje se
repõem com força, quanto mais não seja como reação aos riscos de
homogeneidade cultural, à destruição da natureza e às dificuldades
de trabalho no “paraíso neoliberal”. (Chiappini, 1995, pp. 153-159).
174
Todo o trabalho em tela, seja estudando Emigrantes, A Selva, Terra Fria ou
A Lã e a Neve defronta-se com as questões acima apontadas por Lígia Chiappini,
sobretudo no que concerne ao valor de uma literatura que, embora bem quista no
exterior, sempre foi delegada a um plano secundário em Portugal, e, no Brasil, à
exceção de intelectuais como Jorge Amado, nem sempre foi tida como
representativa de uma produção estética que privilegiava, com certo tom de
condolência, os mais frágeis da sociedade, os detratados e os subjugados pelo
sistema econômico.
Não obstante, o que cabe ao estudioso que se debruça sobre tais questões
de influência, expostas em uma literatura que se atém ao espaço como entorno
fundamental onde ocorrem dramas humanos, é privilegiar analiticamente não o
pitoresco que, em maior ou menor grau, sempre aparece em tais obras, mas, atentar
para o grau de abrangência significativa, representativa, que o recurso ao
regionalismo ou mesmo aos expedientes realistas e naturalistas, contidos em tais
obras, podem e devem abrir espaço para uma plausível universalização dos dramas
percorridos pelo autor-narrador, durante seu processo de construção. Seria o caso,
pois, para o escritor literário, como afirma Chiappini, de fazer da sua aldeia” a
“aldeia global”. Não é sem motivo que hoje a literatura de teor regionalista ainda
aparece nas letras de todo o mundo, inclusive para discutir questões de ordem
identitária.
Sem mesmo mencionar a “Imagologia”, a estudiosa atenta para tal tendência
dos estudos literários, ao apontar no campo, como recurso narrativo específico, uma
espécie de idílio para a busca identitária. Na defesa dessa literatura, Chiappini ainda
informa que
Com a modernização das técnicas agrícolas, o êxodo rural, o
desenvolvimento das cidades e de uma literatura urbana, o
regionalismo tem sido visto como ultrapassado, retrógrado, localismo
estreito e reacionário tanto do ponto de vista estético quanto do
ideológico. Essa crítica esquece, no entanto, que ele é um fenômeno
eminentemente moderno e universal, contraponto necessário da
urbanização e da modernização do campo e da cidade sob o
capitalismo. Por isso, continua a existir e dar frutos como uma
corrente temátio-formal contraditória onde têm lugar os reacionários
e os progressistas; os nostálgicos, os xenófobos mas também os
inconformados com a divisão injusta entre ricos e pobres. Uma
corrente que deu origem a grandes obras, como as de Faulkner,
175
Verga, Rulfo, Carpentier, Arguedas e Guimarães Rosa. (Chiappini,
1995, pp. 153-159).
Ademais, Chiappini aponta para a coexistência de diversos escritores
interessados na seara temático-formal do regionalismo, para ainda privilegiar, além
da literatura, questões históricas e/ou folclóricas, como é o caso, no Brasil, de João
Simões Lopes Neto e de Euclides da Cunha. No entanto, mesmo em tais escritores,
em que o pitoresco aparece de modo bastante forte, a preocupação com questões
identitárias é possível e plausível de se constatar em estudos que se direcionam
para tais mecanismos. Não é sem razão que a estudiosa busque uma distinção
entre o que identifica como “regionalismo como movimento político, cultural e,
mesmo, literário” do regionalismo que decorre destas formas mencionadas, “direta
ou indiretamente”, ou o que chama, em Literatura, de regionalismo como “tendência
mutável”:
O regionalismo lido como uma tendência mutável onde se
enquadram aqueles escritores e obras que se esforçam por fazer
falar o homem pobre das áreas rurais, expressando uma região para
além da geografia, é uma tendência que tem suas dificuldades
específicas, a maior das quais é tornar verossímil a fala do outro de
classe e de cultura para um público citadino e preconceituoso que,
somente por meio da arte, poderá entender o diferente como
eminentemente outro e, ao mesmo tempo, respeitá-lo como um
mesmo: “homem humano”. (Chiappini, 1995, pp. 153-159).
É sob esse prisma que a obra de Ferreira de Castro pode ser melhor
compreendida, desde as comparações, que a personagem de Alberto esboça, entre
as grandes cidades portuguesas ou mesmo Manaus, no Brasil, com seu teatro
suntuoso, e a floresta amazônica densa e terrífica, em A Selva; a distância
descomunal do campo barroso e frio em Terra Fria e as cidades portuguesas ou
São Francisco na Califórnia, para onde a personagem Santiago havia ido, ou mesmo
o drama de Manuel da Bouça, em Emigrantes, entre deixar o idílico campo
português em que vivia, cuidando de suas courelas, e partir para as cidades
brasileiras, no auge do cultivo do café, na esperança de uma vida melhor. Com
ainda mais apego, a diferença entre o campo e a cidade, num paralelo
176
representativo concomitante, em A e a Neve e no afastamento da cidade como
perigo de extinção das tribos indígenas no Auto-Purus novamente, no seio da
Amazônia de O Instinto Supremo.
Ao se valer das proposições de Lígia Chiappini, no que tange à noção de
campo para a literatura regionalista, pretende-se dar mais sentido ao drama vivido
pelas personagens de A Lã e a Neve, ao terem, na cidade, o sentido de crescimento
financeiro e no campo, o sinônimo de atraso. Como afirma a estudiosa, essas
imagens são cambiantes ou inter-cambiantes, por isso, o mencionado retorno de
Horácio ao campo como refúgio, aos domingos, após uma jornada de trabalho
excruciante durante a semana. Para Horácio, a cidade vai se tornando,
paulatinamente, o lugar do esfacelamento dos sonhos. A primeira imagem de
contraste que se tem entre o campo e a cidade, ocorre logo no início do romance A
e a Neve, em que o cão pegureiro de Horácio aparece, antes de qualquer
personagem, identificado como “Piloto”, termo relativo à aviação, às cidades, ao
sonho de libertação impregnado no espírito de seu dono e inserido em seu
companheiro, o cão guardador de ovelhas. Momento que oferece tanto essa
percepção mais profunda, inerente ao espírito de Horácio, que voltava do serviço
militar na cidade de Lisboa, quanto o conceito do que Celeste Ribeiro de Souza
(1996, p. 72), chama de locus ille locorum ao topos idilicamente descrito:
Logo que as cabras e as ovelhas entestaram à corte, o “Piloto” deu
por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe
aproveitava os serviços, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da
vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste,
cismático, como perro vadio de estrada, descoroçoado da vida.
Subitamente, porém, sorveu no ar algo que lhe era conhecido. A
cauda ergue-se num ápice, formando volta que nem cabo de guarda-
chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os olhitos até aí
amortecidos. “Piloto” estugou o passo. O caminho estava cheio de
tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os cães
que passaram ali desde que Manteigas existia, desde muitos
séculos. Forçado a deter-se, ele regava, à esquerda e à direita, rudes
pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o
alegremente e com o visível modo de quem leva a pressa. Em
seguida, voltava a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia
mais perto e cada vez era maior o seu alvoroço. (p. 17-18).
177
O “locus amoenus” é uma forma de representar a natureza que, de acordo
com o pensamento de Curtius (1996), possui paragens idílicas, onde há um regato,
um vento fresco e árvores para se descansar. “Piloto” surge como a representação
da acolhida do campo. O nome do cão, “Piloto”, aos poucos vai assumindo
proposições díspares, pois não representa somente a materialização do sonho de
Horácio em afastar-se do campo e enveredar-se pela vida nas cidades, mas é
mecanismo do qual o narrador se vale para percorrer, com ‘rapidez de piloto de
aeronave’, os topos que fazem cenário geográfico e social em A Lã e a Neve, ao
passo em que, apesar de todos os chamarizes que poderiam prender a atenção de
qualquer um, sua visão pára na figura de Horácio, o que significa, portanto, que,
malgrado a existência incontestável do “locus amoenus”, tudo deve concentrar-se na
figura humana. O espaço do campo (topos rural) torna-se um entorno ‘atuante’ e ora
favorece ora impele os homens na busca do topos urbano. É, certamente, o que
acontece com Horácio, ao retornar da cidade com o desejo de fazer vida ali. Devido
aos sonhos edificados na cidade, dos quais sua mente ufanava-se, nem conta
dos festejos oferecidos por “Piloto”:
Vendo-o assim, “Piloto” hesitou um instante, enquanto agitava mais a
cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu.
E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu
costume quando este o chamava, à hora da comida, nos dias em que
os dois andavam pastoreando o gado, nos picarotos da serra. (p.
18).
Os enlevos de Horácio frente às cidades e às suas estruturas, o faziam
esquecer-se de Piloto”, que neste instante é a representação do campo. Não
obstante, certa nostalgia já se apresenta em seu espírito, notadamente quando,
depois do êxtase inicial, dá-se conta de Piloto e expressa: “_ Olha o Piloto”! O
meu “Piloto”!.” Porém, na tentativa de cativar Idalina para as benesses da cidade,
implicitamente despreza o campo, da mesma forma como desprezara, inicialmente,
a sua representação, impregnada na figura do cão pegureiro:
_ Como eu ia a dizer, o quartel de artilharia anti-aérea prantava-se
mesmo à beira do mar. Viam-se passar os navios, que iam para
Lisboa. Às vezes, era cada um, tão grandalhão, que dentro dele
178
ninguém podia ter medo de afundar-se. Ali perto ficava o Estoril. Tu
ouviste falar do Estoril? Aquilo é que é uma terra bonita! É como
um jardim a perder de vista. te digo que lá até os pinheiros
parecem árvores mansas! Nalguns as roseiras trepam por eles arriba
até chegar mesmo aos galhos. E todas as estradas são mais
limpinhas do que o chão de igreja! Nas horas de dispensa, eu nunca
me fartava de ver aquilo. automóveis por toda a parte e
pessoas que falam o raio de umas línguas que a gente não percebe
nada... (p. 18).
Horácio identificava Idalina, assim como fazia com “Piloto”, com o campo.
Portanto, ao explicar o porquê de tanta loquacidade na fala, explica que era devido à
casa que pretendia adquirir para que, ao casarem-se, pudessem morar com todo
conforto. Conforto esse que, assim como o Jacinto inicial de Civilização e de A
Cidade e as Serras, acreditava encontrar nas cidades e não no campo. Para
contentar Idalina, a quem, como se afirmou, Horácio identificava com o campo,
descreve a casa envolta em uma aura bucólica:
_ Eu estava a falar disto só por mor das casas...
Tu não podes imaginar! As dos industriais daqui nada são
comparadas com as que se vêem! as de todos os feitios e
lindas a valer! Todas estão no meio de jardins e, mesmo no pino do
Inverno, têm flores. (p. 19).
Caminhando para a casa, Horácio atravessa as encostas, as ruas simples e
os caminhos. Ao chegar, a comparação com as casas do Estoril é inegável, de modo
que, ao não se expressar, o narrador o faz pela ótica da personagem principal:
Voltou a olhar a quadra, toda negra e suja, com uma cama de ferro lá
ao fundo, onde dormiam os pais, uma arca rústica, a Cantareira com
pratos e tigelas, sobre a lareira o caniço para as castanhas e, em
frente, a porta do seu quarto. Ao lado da porta, os safões, o alforje, o
capote e o seu chapéu de pastor, como se ele, durante a sua
ausência, tivesse ficado, sem corpo, dependurado naquele prego [...]
a casa era também mais acanhada do que a maioria das outras:
contava apenas a loja e aquele pisito por cima, onde eles
cozinhavam e dormiam, onde se instalara a vida deles. Havia
electricidade na vila, mas nenhuma casa pobre a tinha; a luz, à noite,
dava-a um candeeiro de petróleo ou trêmula candeia de azeite [...] A
idéia de se casar e de viver num casebre assim atafegado e sombrio,
179
parecia-lhe, agora, ainda menos aceitável do que quando, momentos
antes, a repelira junto de Idalina. (p. 31).
A obsessão por ter uma casa na cidade impunha a Horácio a fatal
comparação com outras casas do vilarejo. Mesmo a casa do padre, que, naquelas
paragens, deveria ser das melhores jamais vistas, é tida por ele com certo desprezo,
típico de quem se corrompera com as ilusões que a vida urbana lhe havia suscitado:
A casa do padre Barradas, toda de granito bem cortado, nua de cal
como parede de bastião, mas aligeirada na severidade por dois
vasos de sardinheiras em cada janela, parecia adormecida na rua
sossegada. Uma lâmpada de iluminação pública, que existia em
frente, lavava-lhe toda a fachada e não deixava perceber, por frincha
de porta ou de ventana, se dentro havia também luz ou se
estavam todos deitados. (p. 37).
Quando desceu em sua aldeia, saindo da caminhoneta que o conduzia, a
roupa militar, representação de um outro Horácio, o Horácio homem das cidades o
fez, necessariamente, estabelecer comparação com a vida que levava no campo.
Nesse instante, Horácio faz emergir o Horácio homem do campo, levando a vida
simples que sempre levava, usando as mesmas roupas apertadas dos pastores de
ovelhas:
Quando desceu da camioneta, na Covilhã, voltou a olhar o seu fato.
Durante o serviço militar, como andava de farda, poupara-o; apesar
disso, estava lustroso e ficava-lhe, agora, apertado. As calças
especialmente, despraziam-lhe. Formavam joelheiras e mostravam-
se mais estreitas em baixo do que as usadas nas cidades. “Era pena
que ele não pudesse ir bem posto, pois quem sabia se o padrinho
não lhe arranjaria um emprego no comércio?” Abotoou o casaco e
ajeitou o chapéu. Não obstante o descontentamento que o fato lhe
produzia, sentia-se muito mais senhor de si do que das duas outras
vezes que viera à Covilhã. A cidadezita serrana, de ruas tortuosas e
íngremes, não lhe impunha, agora, aquele acanhamento de homem
do mato que ele tinha, perante ela, antes de conhecer Lisboa e o
Estoril. A Covilhã parecia-lhe desta feita, muito mais pequena do que
antigamente. (p. 43).
180
A transformação de Horácio é evidente. A maneira como olhava as
cidadezinhas e as casas da Covilhã era bem diferente de antes. Não se sentia mais
membro das aldeias da região. Esse afastamento, nas obras de Ferreira de Castro,
serve para que se perceba as reais intenções das personagens diante dos dramas
que atravessavam. No caso de Alberto e Manuel da Bouça, o afastamento contribuiu
para a humanização diante do sofrimento humano. Não se tornaram mais
condescendentes com as atitudes dos outros como também aprenderam a ter
empatia frente a situações muito próximas das deles mesmos. Tanto Alberto quanto
Manuel da Bouça e Horácio revelam-se propensos às mudanças e aos
entendimentos mútuos. Os três se diferenciam de Santiago, de Terra Fria, que
criara uma espécie de ojeriza pelos seus semelhantes do Barroso.
Novamente, tem-se uma altoimagem cambiante do português que se divide
entre o campo e a cidade. Na medida em que destaca a preferência exercida por um
desses espaços, deixa entrever que o drama social se estabelecia naquele que
rejeitava. De modo fatídico, ao travar contato direto com o espaço que privilegia,
observa que o drama social tem continuidade ou expande-se ainda mais.
Para uma compreensão mais acertada dos posicionamentos de Horácio, cabe
um esboço panorâmico acerca da implantação das primeiras indústrias em Portugal
e a sua ligação com as primeiras indústrias têxteis no Estoril.
Situada numa órbita periférica no contexto da economia internacional e
envolvida numa relação de subordinação face à Inglaterra, a economia portuguesa
conservou uma matriz tradicional, assentada numa agricultura arcaica, até o século
XIX, não obstante as políticas de fomento industrial do Conde da Ericeira (século
XVII) e do Marquês de Pombal (século XVIII), verdadeiros referenciais para o culo
XIX.
Inicialmente, a produção têxtil era uma atividade artesanal própria do meio
rural em que participavam pequenos grupos de artesãos hábeis. Com o
desenvolvimento tecnológico nasceram as grandes empresas têxteis, cuja influência
econômica se fez sentir com especial destaque no Reino Unido nos países da
Europa ocidental.
Os grandes progressos tecnológicos que tiveram um lugar de destaque no
séc. XVIII não impulsionaram a indústria têxtil moderna, como tamm foram
responsáveis pelo início do sistema fabril e das alterações profundas na vida familiar
181
e social, que determinariam uma fase histórica muito importante denominada de
Revolução Industrial. Esta teve um impacto significativo no seio das famílias
portuguesas, alterando as relações familiares e os papéis ocupados pelos seus
respectivos elementos. Até ao século XVII, considerava-se que a família, por
oposição ao indivíduo, era a unidade essencial da organização social.
No século XVIII, as mulheres e as crianças em geral constituíam uma força de
trabalho oculta na indústria artesanal; o seu labor (das mulheres e das crianças) era
freqüentemente realizado em casa e, em muitos casos, especialmente na indústria
do vestuário, desempenhado entre os elementos da mesma família, no seio de uma
pequena unidade industrial familiar. Deste modo, na indústria artesanal,
freqüentemente representada pelo tecelão rural, o trabalho subsidiado era
desempenhado pelos membros da família, que não recebiam um ordenado
separado. A posição do pai, como o principal “ganha-pão”, estava dependente do
trabalho suplementar pelo que normalmente não recebia uma remuneração
separada. O que existia, era de fato, um ordenado familiar.
No caso da tecelagem, antes do aparecimento da fábrica, o tecelão
encontrava-se no topo de uma unidade familiar integrada de reprodução, produção e
consumo. A mulher dividia o seu tempo entre a assistência ao marido e aos filhos e
a lide da casa. Os filhos ingressavam no mundo do trabalho, contribuindo para a
economia familiar, através do desempenho de tarefas adequadas à sua idade, as
quais eram determinadas pelos seus pais.
A industrialização veio, assim, interferir com as condições de trabalho dos
jovens que trabalhavam em casa e este processo foi intensificado com o aumento da
competitividade dos teares das fábricas, a partir da década de 1820. Foi a partir das
décadas de 1770 e 80 que a utilização de meios de produção em massa, numa fase
inicial nas técnicas de fiar e posteriormente nas de tecer, começou a alterar as
práticas utilizadas no emprego na indústria têxtil. Por volta de 1833, o processo de
mudança da indústria artesanal para o sistema fabril, já completo no que diz respeito
ao algodão, avançava rapidamente em toda a indústria têxtil. Em muitos distritos, a
indústria artesanal persistia em simultâneo com o sistema fabril. Enfim, o
desenvolvimento industrial em Portugal foi fruto de um longo processo que durou
até, aproximadamente, o final da década de 1950.
Hoje em dia restam apenas relatos dos surtos do êxodo rural na Serra da
Estrela em busca de melhores condições de vida junto às indústrias das cidades.
182
Não obstante, no tempo em que é ambientado o romance, na década de 1930, o
surto industrial na Covilhã constituía uma espécie de esperança em se abandonar o
idílio do campo para uma vida de abastança e repleta de novidades na cidade.
Como se nota, era essa a mesma idéia que fazia a cabeça de Horácio, para
abandonar a vida de pastor de ovelhas e conseguir melhores condições de vida para
a família nas cidades industrializadas. que se notar o contentamento da
personagem ao receber a notícia do amigo Chico da Levada de que Manuel Peixoto
havia conseguido lugar para ele nas indústrias da cidade:
O Chico da Levada mal respirava:
_ A tua mãe manda dizer-te que o Manuel Peixoto te arranjou um
lugar na fábrica e que tu deves voltar já para casa. Ela quis escrever-
te, mas como não tens aqui direcção, teve medo de não receberes a
carta e mandou-me a mim. O recado do Peixoto foi já há três dias...
Com uma expressão alvar, Horácio pousou na terra a ovelha que
trazia às costas. Depois, bruscamente, atirou fora o seu cajado de
pastor, deu um salto, abriu os braços e abraçou o Chico da Levada.
(p. 126).
A perseguir o sonho da casa, a segunda parte, denominada “Lã e Neve”
inicia-se justamente com o pouso de Horácio junto à casa do fabril Ricardo Soares.
O mesmo olhar perscrutador é notado pelo narrador, nas perspectivas de Horácio,
quanto ao seu desejo inalienável, obter a casa de seus sonhos:
Com o seu baú, as suas saudades de Idalina e nutrida confiança no
futuro, Horácio acomodou-se em casa de um fiandeiro o Ricardo
Soares. Nela não havia maior espaço, nem menor número de
crianças no que da dos outros operários a quem Manuel Peixoto em
vão falara para lhe darem albergue; mas Ricardo e a mulher,
considerando que podiam colher daquilo algum provento, decidiram
aceitá-lo como hóspede [...] a porta exterior do casebre ligava com a
escada do sobrado uma divisão com pequena janela aberta no
granito. Ali dormia Antero, o filho mais velho de Ricardo, que também
andava nas fábricas como aparador; e foi ao lado da cama que
armaram outra para Horácio [...] junto do nascimento dos degraus,
havia uma porta interior, e por ela, se passava para os dois térreos
compartimentos. O primeiro, era a cozinha e o quarto do casal e de
seus filhos menores; o segundo, um cubículo escuro, ocupava-o a
mãe de Ricardo, octogenária de todo surda e quase cega. Quem
estava em baixo ouvia os passos de quem andava em cima e quem
183
estava em cima apreendia todos os ruídos que se produziam em
baixo. (p. 129).
A primeira imagem das casas dos operários laníferos não era nada boa para
Horácio. A casa não era a mesma que retivera em seus sonhos, ao mesmo tempo
em que possuía como concreta a noção de que não conseguiria algo melhor do que
aquilo. Logo no início da segunda fase, portanto, a quebra da esperança de Horácio
é mais forte e dá margem ao início do processo da decomposição fio a fio do desejo
de participar das benesses citadinas, além de r, em aberto, a autoimagem
cambiante que sustentara até então.
A imagem que ele tem das fábricas tamm não condiz com o que se poderia
esperar dali:
[...] olhando para os pegadores de fio, que corriam ao seu lado, para
os próprios garotos que se riam ao seu lado, para os próprios garotos
que se haviam sorrido, ironicamente, quando ele entrara de manhã,
viu que também eles tinham, agora, a mesma expressão dos outros
uma serenidade precoce e cansada. Foi, então, que Horácio,
apreendeu que na brica, havia mais alguma coisa do que ele
enxergava, havia um ambiente dominador que lhe causava o mesmo
desagrado sofrido nos seus primeiros dias de quartel, quando os
oficiais se encontravam presentes. Ali, porém, a vontade que
produzia esse ar carregado de obediência parecia estar ausente,
porque, mesmo quando o Mateus se encafuava no seu gabinete
envidraçado, ao fim da fábrica, operários e operárias continuavam de
fisionomia parada, como se o trabalho fosse o único acto profundo da
sua vida, a obrigação que não admitia um sorriso. Alguns deles via-
se-lhes nos olhos, estavam de espírito distante, mas, pela força do
hábito, a abstração quebrava-se logo que a máquina lhes exigia uma
intervenção. (142).
Não demora muito para que Horácio perceba o clima que pairava sobre o dia-
a-dia na fábrica. O descontentamento dos funcionários, trabalhando horas a fio,
configurava um outro cenário, diferente tanto do que vira nas cidades, quando
servira o exército, quanto da própria Serra da Estrela, a apascentar as ovelhas do
amigo Valadares. Horácio percorre os dois espaços, o do campo e o da cidade e,
consigo, carrega todos os imagotipos que vão sendo destruídos, pouco a pouco, até
gerar a confusão das imagens cambiantes em sua mente. Uma espécie de conflito
identitário do qual não se livra facilmente, pois, as ofertas de trabalho e o inalienável
184
desejo de ascensão social caminham junto com a carestia dos gêneros elementares
de subsistência nas cidades.
Horácio percebe, então, os primeiros levantes contra a situação econômica
que prendia os operários na sebe das fábricas, em meio a um trabalho mecânico,
horas a fio, sem descanso, pois, as suas concorrentes, as máquinas, não paravam
nunca:
a)
As máquinas voltaram a trabalhar. Nas “self-actings”, as carruagens
iam e vinham,vinham e iam, como se nem elas, nem os pegadores
de fios que atrás delas corriam, houvessem jamais parado. (p. 140-
141).
b)
Então, parecera-lhe absurdo que o Peixoto preferisse andar sujo por
montes e vales, dormindo ao relento, apanhando, no Verão, o
estrume do gado, passando dias e dias longe da mulher e dos filhos,
em vez de ter um horário certo numa fábrica e de se lavar e vestir de
limpo ao domingo. Mas, agora, a ele próprio, a sua antiga vida de
pastor, com liberdade de se sentar, de se levantar, de fumar quando
quisesse, de assobiar, de cantar ou de gritar para que a sua voz
ecoasse pelos esbarrondadeiros, de falar sozinho ou com o “Piloto”
quando não tinha ninguém com quem falar, lhe aparecia com mais
atractivos do que dias antes. (p.143).
A dúvida no tocante à validade da vida nas cidades começava a ser semeada
na mente de Horácio, de forma que a caracterização cambiante de sua imagem,
entre o campo e a cidade, se deixa transparecer com cores cada vez mais vivas. E,
na figura do operário Marreta, enxergava a possibilidade de contestar o sistema em
que vivia, ali na brica, quando a situação ia tornando-se cada vez mais difícil e
tumultuada. Fosse pela dificuldade de permanecer na casa de Ricardo, onde sua
mulher impunha a cobrança de um soldo cada vez maior pela sua permanência ali,
visto não haver cobertores suficientes para toda a família, na medida em que o
inverno chegava e, pelo fato de que Ricardo sofria de reumatismo, não poderia mais,
de nenhuma forma, ter esperanças de crescer financeiramente na fábrica.
As críticas empreendidas pelo operário vegetariano Marreta (nome
significativo, retratando quem não se contentava com o que ocorria) não se
limitavam à situação da fábrica em si, ou seja, direcionadas para a ssima
185
condição empregatícia de quem ali trabalhava, como um escravo, vigiado a todo
momento por um pau-mandado como o funcionário Mateus. O descontentamento de
Marreta dirigia-se também para o Sindicato dos trabalhadores fabris e para a
situação daqueles que, ao ficarem velhos, deveriam ser substituídos por
trabalhadores jovens, com mais força para o trabalho, até que estes mesmos
tivessem todas as suas forças chupadas pelo sem-descanso da fábrica de tecidos:
Além disso, se as doutrinas vegetarianas não os seduziam e se lhes
produzia antecipada preguiça a idéia de estudar esperanto, eram
fascinados por outras aspirações que Marreta juntava àquelas, numa
catequese que ele exercia a muito tempo já. Muitas vezes Horácio
ouvia-o referir-se a um mundo que viria, um dia, um mundo onde não
existiriam nem pobres, nem ricos, nem grandes, nem pequenos e
onde todos teriam tudo quanto carecessem para viver sem
apoquentações [...] admirava-se de que, parecendo Marreta tão
inteligente, acreditasse naquilo, quando ele, que sabia muito menos,
não podia crer, pois ricos e pobres houvera-os sempre e se alguém
fosse tirar aos ricos o que lhes pertencia, logo viria a guarda
republicana e a polícia e poriam tudo como dantes [...] Alguns dos
operários traziam jornais e liam coisas passadas em terras
estrangeiras, notícias da guerra, que os outros estudavam em
silêncio, enquanto o fulgor do lume lhes enrubescia as caras atentas.
Depois, um e outro afirmavam que o dia podia chegar mais depressa
do que muitos esperavam. (p. 159)
A convivência num ambiente sem nenhum nexo a não ser o do ganho a
qualquer custo por parte dos donos das fábricas, provoca alguns questionamentos,
engendrados nas mentes daqueles simples operários, a exemplo dos ecos de
greves e da insatisfação daqueles que, como Ricardo, foram presos em Lisboa por
manifestarem oposição contra o sistema de trabalho vigente ali nas fábricas. As
máquinas, porém, não questionavam nada e precisavam de poucos homens para
fazê-las funcionar incansavelmente. Portanto, o trabalho nas cidades surge como a
única forma de sobrevivência possível num mundo competitivo como aquele. Em
sua dimensão épica, a vida de Horácio nas fábricas retoma a vida de Alberto na
floresta amazônica, o qual tamm convivia com homens que se iludiam com
perspectivas de greves e de mudança, mas que, ao contrário do que creditavam
suas pretensões, jamais conseguiam lutar contra o sistema, em prol da redução das
diferenças entre ricos e pobres:
186
Durante o Inverno, como o sol desaparecia logo no começo do
trabalho, essas horas nocturnas tornavam-se infindáveis. O rumor
das máquinas volvia-se mais nítido e, também, mais monótono,
propício a um sono que não podia consumar-se. Mesmo onde a luz
era forte, havia algo fúnebre, uma claridade de vigília, de atmosfera
doente. Dir-se-ia que as máquinas produziam porque tinham de
produzir; que a mecha corria porque tinha de correr; que as canelas
se enchiam porque tinham de encher-se; que tudo trabalhava como
sob uma fatalidade inexorável, alheia ao próprio objectivo da
produção. Mais do que noutras horas, os homens pareciam
autômatos, simples peças das máquinas, movimentando-se sob
aquela mesma vontade fria que movimentava a fábrica. (p. 169).
O descontentamento continuava, sob o discurso de Marreta, que ia fazendo
prosélitos sob os seus desejos de igualdade humana, como quando afirmava que
antigamente tínhamos nascido para trabalhar para eles e que ainda era um grande
favor eles darem-nos trabalho. Mas, um dia, nós vimos que também éramos
homens, e, pouco a pouco, fomos adquirindo a nossa dignidade”. (p. 202).
Finalmente, na obra em tela, a dignidade não se posiciona rente à luta de
classes, mas, à consciência de se sentir humano, de se diferenciar das máquinas
que com eles se emparelhavam. Os homens, diferentes das máquinas, sabiam ser
questionadores; tinham consciência, antes de tudo, de serem humanos e de não
poderem aceitar tudo quanto se colocasse à sua volta. Não se tratava, pois da
consciência de classe, mas, da consciência humana. Para Horácio, a utopia de
Marreta não parecia facilmente concretizável, para os outros trabalhadores, a vida
redundava num fatalismo inexorável, como fica bem exposto na fala do operário
Tramagal:
_ O que falta à maioria dos nossos é uma consciência de classe
disse, depois. Se todos a tivessem, não encontraríamos estas
dificuldades. (p. 247).
A greve empreendida pelos operários dura pouco, o tempo necessário para
ser debelada pela polícia. Então, num mecanismo próximo da estética Neo-Realista
inicial, o narrador vale-se da voz coletiva para traduzir o desejo do próprio povo:
De repente, desembocaram ali soldados do exército e da Guarda
Republicana, luzindo metralhadoras. A praça fora cercada. A
187
multidão deu conta do acontecido, hesitou uns segundos e continuou
a avançar para a cadeia.
_ Quero meu filho! Quero o meu homem! Quero os nossos presos!
_ Queremos pão! _ E a voz isolada logo se multiplicou e se
repercutiu por toda a praça: Pão! Pão! Pão! (p. 282).
A partir daí, a força do trabalho revela-se como uma verdadeira imposição. O
governo não aumentava os salários porque isso encareceria os gêneros
elementares à vida, tamm não despedia os trabalhadores, pela necessidade da
mesma força de trabalho nas fábricas que o podiam parar nunca. Nesse
momento, vê-se a luta de Horácio para subir de cargo na fábrica, uma espécie de
Odisséia do pastor de ovelhas que vai para a cidade com uma esperança, a de
conseguir uma casa para contrair núpcias com a noiva Idalina.
Na medida em que subia de cargo e se tornava operário, Horácio tinha de
conviver com a triste noção de que o dinheiro ganho jamais seria sufiente para
concretizar seus sonhos. Casa-se com Idalina e vai viver em uma casa de aluguel,
próxima do barro e dos estrumes de animais, como ocorre com os moradores do
Barroso, em Terra Fria. O dinheiro que deixava para Idalina comprar os gêneros de
necessidade sica mal dava para a semana. Idalina começa a trabalhar tamm,
mas, mesmo assim, o soldo pouco para o pão diário. Horácio, então, participa de
um programa do governo para quem queria a casa própria e, no sorteio, sempre
esperado, nada consegue, tendo de permanecer na casa de aluguel, infestada de
percevejos.
Como a reunir na mesma mesa da desesperança os miseráveis, que haviam
usado todas as armas para lutar contra o sistema, Horácio reencontra Manuel da
Bouça, de quem, no início, o gostava muito, embora o viajante de Emigrantes
granjeasse a simpatia de Idalina. Manuel da Bouça o era bem quisto por Horácio
justamente por ser a representação mais bem acabada da detração do homem, da
desilusão e do arrefecimento dos sonhos mais profundos, enfim, do homem vencido
pelo desamparo da Humanidade. Mas, mesmo assim, a certeza da dignidade
humana revelava-se importante para Horácio e via, na perspectiva de unir força com
os desvalidos socialmente, continuar a ser dignamente humano. Assim termina o
romance:
Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando
viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros
188
ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova
esperança. (p. 402).
Interessante é a maneira como Ferreira de Castro trabalha a autoimagem de
Horácio, constituindo-o como personagem sempre a espera de algo acontecer, de
uma mudança para melhor.
Não obstante os sonhos estilhaçados diante da realidade da vida cheia de
atavios e de promessas o concretizáveis, Horácio recebe a dura lição da
aceitação de si mesmo e do outro. Primeiramente por aceitar sua autoimagem,
mesmo que cambiante, depois, ao aceitar o Outro, como sendo seu semelhante,
possuidor tamm dos mesmos desejos, das mesmas ambições e dos mesmos
sofrimentos. As perspectivas de Horácio culminam com a aproximação de sua vida
da vida de Manuel da Bouça, o qual, por seu turno, tamm havia aprendido, de seu
conterrâneo Joaquim Manuel dos Santos, personagem de Emigrantes, que ao
homem, em geral, carece um pouco mais do instinto supremo de humanidade.
Pela força do retrato do trabalho nas indústrias, em contraste com a vida no
campo, A Lã e a Neve é um dos romances de Ferreira de Castro cuja recepção em
outros países foi mais bem generosa.
189
CAPÍTULO 4
O Instinto Supremo
21
: síntese das preocupações de toda uma vida
literária voltada para o retrato dos detratados
O Instinto Supremo
22
representa a última proposta de Ferreira de Castro em
privilegiar, literariamente e por meio de um romance denso, os enjeitados sociais.
Cabe, portanto, estabelecer uma breve sintonia entre O Instinto Supremo, A
Selva e Emigrantes, por mostrarem, de modo narrativo e imagético, os espaços
brasileiros, percorridos por personagens européias. Em Emigrantes tem-se a figura
do português do campo, Manuel da Bouça, personagem galvanizadora de imagens
apregoadas à inter-relação pendular que, durante séculos, Portugal e Brasil
estabeleceram, por intermédio do contato ultramarino. Em A Selva, encontra-se
Alberto, uma personagem que, no auge da extração da borracha na Amazônia
brasileira, vê-se imbuído, aos poucos, pela transformação que sofre no decorrer do
romance, caracterizado pelo dever humano de se aproximar dos detratados
socialmente, os quais, com ele, vivenciaram os mesmos dramas, encarcerados pela
floresta desumanizadora e pela relação hostil de um trabalho que beirava a
escravidão.
22
Retomando, a edição de O Instinto Supremo, utilizada neste trabalho, salvo outra menção, será a
da Editora Civilização Brasileira, do ano de 1968.
190
O desígnio dos homens dentro da floresta faz paralelo com as conquistas do
século XVI, sobretudo no que tange aos primeiros contatos com os índios, quando,
então, os portugueses serviam-lhes mimos no intuito de atrair sua atenção,
conforme comprovam alguns trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha, transcritos
por Luiz Roncari (1995):
a)
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrissem suas
vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos
rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pude deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o
mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma
carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um
deles deu um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma
copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de
papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas,
miúdas , que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o
capitão manda a Vossa Alteza [...]. ( p. 30).
b)
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, farteis, mel e
figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se
alguma coisa provaram, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes água
em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que
lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas
dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois
tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para
as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro
por aquilo.
Isto tomávamos s assim por assim o desejarmos. Mas se ele
queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o
queríamos s entender, porque não o havíamos de dar. E depois
tomou as contas a quem lhas dera. (p. 31).
Em O Instinto Supremo os homens derrubavam os terçados de árvores para
montar acampamento e, bem na direção do Sol, depositavam presentes para atrair
os índios:
Amaro deixou cair os machados, pousou a serapilheira e, reentrando
no cerrado, dele volveu com dois arbustos, que rapidamente
desfolhou. Espetou-os na terra e neles foi dependurando, cuidadoso,
quase carinhoso, `a maneira dos ourives repondo as jóias preciosas
nos seus estojos, os colares e os braceletes que trouxera, sobre os
quais a luz perpassava, sugerindo uma borboleta elástica e fazendo
rebrilhar as contas multicolores. (p.3).
191
Apropriado paralelo estabelecido pelo entrecho narrativo do romance em
relação à Carta de Caminha. Os portugueses, na descrição certeira do cronista, não
queriam deixar nada de valor que possuíssem com os índios, mesmo que esses se
mostrassem interessados nas jóias carregadas por eles. No entanto, aquilo que
conseguiram, “amigavelmente” pilhar dos índios, seria enviado ao rei Dom Manuel.
Contraponto do que ocorre em O Instinto Supremo, no momento em que Amaro,
chefe dos homens que montavam acampamento, vai, zelosamente, espalhando os
presentes para os índios, com o cuidado dos “ourives repondo as jóias preciosas
nos seus estojos”. Essa passagem deixa entrever uma crítica ao processo
colonizador português no culo XVI pois, valendo-se da ironia, o narrador discursa
sobre ‘repor as jóias preciosas nos seus estojos’ os estojos, aqui, pertenciam aos
próprios índios, e repor tais jóias seria devolvê-las a quem eram de direito. Os
mimos, destarte, eram dispostos nos terçados por um indivíduo que respondia pelo
nome de Amaro (amargo, do latim) o qual, se representasse em suas atitudes o
significado do nome que possuía deveria ser rude; ao contrário, demonstrava o mais
profundo instinto supremo, ao colocar sua vida em risco dentro da mata fechada,
com os perigos sempre à espreita, no propósito de civilizar os índios.
Para Celeste Ribeiro de Souza (1996), as imagens que literariamente são
construídas acerca dos índios o comparam ao homem adâmico, nas duas maneiras
por ela constatadas como atributos contidos nas obras de escritores estrangeiros,
utilizadas na tentativa de descrevê-los sob um olhar maculado por tradições:
No entanto, este modelo de homem primeiro é apresentado de duas
perspectivas: uma, focaliza-o como ser primitivo, exótico, estranho, e
nesse distanciamento entre ele e o europeu reside a ligação que o
prende ao homem dos tempos dourados. A outra perspectiva enfoca
o índio de um modo diferente, qual seja, o de observar e enfatizar em
seu comportamento qualidades como a simplicidade, a hospitalidade,
a beleza, a inocência, a pureza que, por sua vez, também
estabelecem associações com o homem adâmico. A criação desta
imagem do índio remonta à época dos Descobrimentos, durante a
qual o homem europeu recorre ao mito para tentar identificar a nova
realidade, de forma a poder assimilá-la. (SOUZA, 1996, p. 151).
Ferreira de Castro, com O Instinto Supremo, constrói uma narrativa que
nada contra a corrente dessa visão eurocêntrica acerca do índio. Vai, aos poucos,
despojando-o dessa nuvem mítica que o recobriu desde o tempo dos
192
Descobrimentos, e busca observá-lo diante de uma perspectiva mais humananizada
enfim, não intenta distingui-lo dos outros seres humanos, mas aproximá-lo, cada
vez mais. Essa mesma crítica instaurada contra os malogros humanitários do
processo colonizador português no século XVI havia sido esboçada em A Selva,
por meio da figura de Alberto, português fugido de Portugal após a Batalha de
Monsanto, que chega ao Brasil industriado por um tio, esperando encontrar o
“Eldorado” em terras onde homens alquebrados por um sistema econômico
alienador, os detinha, como prisioneiros, condenados a uma pena perpétua.
O simples Manuel da Bouça, antes disso, em Emigrantes, havia notado
que a riqueza era para poucos e que seria impossível refazer o trajeto de seus
patrícios durante as Grandes Navegações e obter os mesmos prêmios venais
obtidos por eles. Ao contrário, convive com a pobreza, tanto no Brasil quanto em
Portugal.
Essa breve sintonia entre os três romances referidos deve-se ao fato de que,
malgrado O Instinto Supremo apresentar a figura central do etnólogo alemão Curt
Unkel
23
, percorrendo a Amazônia brasileira, no intento promovido pelo Marechal
Cândido Rondon
24
de pacificar as tribos indígenas brasileiras, não se constitui como
23
O alemão Curt Unkel foi etnólogo e o mais importante antropólogo e lingüista indígena do Brasil.
nascido em Jena, em 14 de Abril de 1883, dedicou sua vida ao estudo das comunidades indígenas no
Brasil, recebendo dos índios o nome de Nimuendaju, que significa “homem que abriu seu próprio
caminho”. Chegou ao Brasil como imigrante, em São Paulo (1903) onde se definiu pela pesquisa
sobre os povos indígenas (1905). Entrando pelos sertões foi adotado como filho pelo cacique dos
apapocuvas-guaranis do Araribá. Depois de estudar os povos guarani e caingangue, mudou-se para
Belém, PA (1913) vindo a publicar um estudo sobre os índios brasileiros, no Zeitschrift für Ethnologie,
de Berlim, onde assinou Curt Nimuendaju-Unkel. Mais tarde, passou a utilizar apenas o nome de
adoção, com o qual se tornaria conhecido internacionalmente. Naturalizado brasileiro em 1922, teve
como suas maiores preocupações as conseqüências do contato dos índios, não apenas com o
homem civilizado, mas também com outros grupos tribais. Suas viagens de estudos trouxeram
importantes materiais para os acervos de museus da Alemanha, da Suécia e do Brasil, em especial
do Museu Goeldi, de Belém, e do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Morreu em no igarapé de Santa
Rita, entre os índios tucunas, no norte do Amazonas em 10 de dezembro de 1945.
24
O Marechal Cândido Rondon, batizado Cândido Mariano da Silva nasceu em 5 de maio de 1865
na cidade de Mimoso, no Mato Grosso. Não chegou a conhecer o pai e perdeu a mãe aos dois anos
de idade. O avô lhe ensinou as primeiras letras e depois ficou aos cuidados de seu tio Manuel
Rodrigues da Silva Rondon, que acrescentou ao seu nome de batismo o sobrenome Rondon.
Após mudar-se para Cuiabá realiza desde os primeiros estudos até a sua formação universitária em
Ciências Naturais. Após fazer carreira no Exército inicia a longa trajetória pelo Brasil, ao implantar
linhas telegráficas por todo o território nacional. Em tais viagens, Rondon encontrou várias tribos
indígenas com as quais, aos poucos, foi aprendendo a travar contato, sem usar armas. Logo se
tornou o maior entendedor de como entrar em contato com tribos indígenas, muitas ainda não
catalogadas. Assim, no ano de 1910 criou o Serviço de Proteção aos Índios e foi seu primeiro diretor.
Sua reputação correu mundo, chegando a acompanhar e orientar o ex-presidente americano
Theodore Roosevelt na sua expedição ao Amazonas. Em 1914 recebeu o Prêmio Livingstone,
concedido pela Sociedade de Geografia de Nova Iorque. Foi considerado por essa sociedade como
193
romance de uma trajetória narrativamente individualizada, que pudesse, ao fim e ao
cabo, dimensionar os dramas íntimos da figura central da narrativa. Os dramas são
coletivizados desde o início, dentro das relações diferenciadas entre brancos e
índios, na mata fechada. Em suma, a interação entre os povos dependia, apenas e
unicamente, de um “instinto supremo”, inerente ao homem, capaz de ascendê-lo ao
posto de humanidade pela compreensão do Outro como sendo espelho de si
mesmo, como ocorre ao final da narrativa, em que os “civilizados” se
consubstanciam aos “silvícolas” e com eles se confundem, sem que se sobressaísse
nenhuma diferença humana entre eles:
Os homens ardiam. Afogueavam-se os que bailavam, encontravam-
se em fogo os que assistiam, muito quietos e sisudos. Contemplando
as formas desveladas, nos seus volteios desenfreados, nas
ondulações luxuriosas das pernas, ancas, torsos e braços, os olhos
famélicos habituavam-se ràpidamente à confusão pagã dos corpos
nus e os únicos que lhes pareciam ilógicos eram justamente os
deles, que estavam vestidos. No inebriamento que a nudez lhes
insuflava, nenhum sabia se eram os selvagens que ascendiam a
civilizados, se os civilizados que se integravam prestamente na
selvageria; e, tomados por novos euforismos, quase todos abjurariam
nesse momento, se tal fosse o preço, da civilização que ali tinham
vindo propagar com risco das suas próprias vidas. (p. 257).
Esse fato leva a crer que O Instinto Supremo constitui a obra síntese da
produção estilística de Ferreira de Castro notável concretização de uma
maturidade literária percorrida desde os primeiros textos escritos no Brasil e
excluídos, por ele mesmo, de sua lavra, devido à intrínseca proximidade entre sua
vida e seus primeiros escritos. Como em nossa hipótese, aqui reforçada, Ferreira de
Castro foi muito mais um estilista do que um ativista político o romance O Instinto
“o maior explorador de terras tropicais” e pelo Conselho Nacional de Geografia (CNG) como o
“Civilizador do Sertão”.Rondon permaneceu no cargo de diretor do Serviço de Proteção aos Índios
até 1930, quando a implantação da ditadura Vargas o levou a pedir demissão com medo de que
Getúlio, que não o via com bons olhos, prejudicasse o Serviço. Em 1952, propôs a criação do Parque
Indígena do Xingu e no ano seguinte inaugurou o Museu Nacional do Índio. Em 1955 o Congresso o
promove a marechal e o nome de Rondônia ao então território do Guaporé. A sua ação
humanística e apaziguadora em relação aos silvícolas fez com que seu nome fosse indicado para
receber o “Pmio Nobel da Paz”, em 1957, pelo Explorer's Club de Nova York. No ano seguinte,
Rondon morre. Ele próprio ditou sua biografia à jornalista Ester de Viveiros, o que resultou no livro
Rondon conta sua vida. O antropólogo Darcy Ribeiro também explorou a vida do Marechal na obra
intitulada O indigenista Rondon.Consagrado mundialmente como protetor dos índios, Rondon é
considerado, pelo seu civismo e dedicação à nação, um dos heróis do Brasil.
194
Supremo pode ser encarado como romance síntese tanto por reforçar a relação
especular entre auto e heteroimagens, quanto para não estabelecer barreiras de
contraste duvidoso entre Brasil e Portugal, visto nosso intuito ser o de não
vislumbrar preferências emotivamente privilegiadas na obra do escritor português,
mas, tornar patente obra de um cosmopolita que ainda é pouco compreendido, em
sua verdadeira missão literária.
Uma mula narrativa faz perceber que O Instinto Supremo, escrito em
1968, é obra de grande vulto imagético, por novamente privilegiar o cenário
amazônico, agora com a temática dos índios, que seriam pacificados pelo Marechal
Cândido Rondon e por seus discípulos, em sua empreitada construída sob o lema
“morrer se necessário for, matar nunca.” Assim, Ferreira de Castro conclui sua
carreira literária com um romance histórico, trazendo à tona uma face importante da
vivência dos índios no Brasil, durante a década de 1920, além de promover um
instigante diálogo com a História, no que concerne à visão de um autor português
afastado de todo preconceito imagético acerca do trato com os índios, presente na
cultura lusitana do tempo das Grandes Navegações do século XVI, época em que o
Brasil foi descoberto e ocorreram os primeiros contatos, historicamente datados, de
portugueses e índios brasileiros. Essa visão pré-concebida, imagotípica, ainda se
mostrava presente durante o século XIX, em Portugal, no pensamento influenciador
da geração de 1870, promovido por Oliveira Martins.
Ferreira de Castro apresenta, ao final do romance, uma Bibliografia, no
intento de ressaltar a íntima ligação que seu romance estabelecia com a causa dos
índios brasileiros, promovendo a assunção de personagens históricas, que ganham
trato ficcional no cenário geográfico em que se apresentam.
Quem encabeça o entrecho do romance, conforme se explicou, é o etnólogo
alemão Curt Unkel, autodenominado Curt Nimuendaju, devido ao apelido que
recebera dos índios Apapokuva Guarani do Araribá, de São Paulo. A ação do
romance é linear, notando-se, pois, uma primeira macro–seqüência, do capítulo I ao
capítulo VI, em que ocorrem a derrubada da mata para a formação do acampamento
dos discípulos de Rondon, que enfrentariam as matas para pacificar a última tribo
até então constatada, a dos Parintintins. Neste momento, chega Nimuendaju, que
efetua o recrutamento dos expedicionários, para adentrarem a floresta. A segunda
macro–seqüência tem início no capítulo VII, em que a construção do acampamento
finalmente se completa e, no terceiro dia, ocorre o contato hostil com os índios. Esta
195
segunda macro–seqüência é preenchida por inúmeros confrontos entre os
expedicionários, liderados por Nimuendaju e os índios. Neste momento é que os
índios Parintintins são pacificados. Um intérprete colabora com a efetiva
comunicação com os silvícolas. O romance termina com um telegrama enviado a
Rondon, em que se pedem roupas e um professor primário para atuar junto aos
Parintintins.
As relações com A Selva encontram-se tamm na descrição da floresta,
imagética, poderosa, a exemplo do trecho em que Amaro corta as árvores para abrir
clareiras:
A passo insonoro de fantasma renteou alguns dos homens que
cortavam as árvores e logo penetrou mais na brenha, até a linde da
área onde se efetuava a derrubada. Parecia que o seu pequeno jato
de luz, vagueando de um lado a outro, buscava um sítio idealizado e
que finalmente o encontrara. Chão limpo de plantas, habitado apenas
por troncos gigantescos, que recusavam a qualquer outro vegetal a
possibilidade de viver ‘a sombra fatídica das suas comas, objeto que
nele se depositasse enxergar-se-ia facilmente de longe, desde que
possuísse algum relevo. (p. 03).
Em A Selva a natureza revelava-se também imponderável, intratável, e o
homem, num esforço de Sísifo, tentava derrubar a mata que crescia tão logo era
lançada ao chão, sempre com mais ímpeto e com maior força:
A Selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em
força e categoria, tudo abandonado a um plano secundário. E o
homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a
entregar o seu destino àquele despotismo. (p. 115).
Na visão apaixonada de Jacinto do Prado Coelho (1976):
O Instinto Supremo é muito menos uma novela histórica que uma
epopéia: se o episódio narrado tem raízes na história recente do
Brasil, amplia-se no espírito do leitor pelo seu vasto significado, como
expressão da luta vitoriosa do Homem contra a Natureza essa luta
que dá sentido à vida e um motivo para o Homem se orgulhar da sua
dignidade. (COELHO, 1976, p.49).
196
Seguindo a trilha de Jacinto do Prado Coelho (1976), O Instinto Supremo
traria à tona a súmula de humanidade percorrida por personagens históricas, de
carne e osso, que se revelaram entendedoras da cultura do Outro e lutaram contra
as desigualdades sociais e culturais. O projeto de Rondon, historicamente, foi
grandioso. Além de implantar linhas telegráficas pelo Brasil, promovia a pacificação
dos índios, no propósito de levar-lhes conforto e impedir que fossem massacrados
ou escravizados por parte dos homens brancos.
Continuando a tratar do trabalho de Amaro, o tom assumido pelo romance faz
lembrar a preparação de um campo de batalha às avessas, no qual as armas
(machados e foices de cortar terçados) ao invés de ficarem nas mãos de guerreiros
enfurecidos eram plantadas no solo, como símbolo da paz. Imagem interessante
esta construída por Ferreira de Castro para ensejar os propósitos pacifistas de
Rondon:
Plantou os machados pelos cabos,que assim ficaram verticais como
num campo heráldico, de gume voltado para a banda onde as
árvores iam tombando; e aos terçados deu-lhes o jeito de sabres
rompendo de sepulturas de guerreiros, para que se algum raio de sol
conseguisse, apesar de tudo, traspassar o grande dossel, eles
faiscassem e atraíssem olhos que transitassem distantes. Foi-se
ainda por um cipó, estendeu-o de um tronco a outro, nele deixando a
própria serapilheira, dependurada e aberta como uma capa de burel
a secar. E finalmente afastou-se dali, com sua luzita incerta,
entregando à escuridade todos os presentes trazidos, que
lembravam ex-votos de um eremita aos deuses da floresta
imensurável. (p. 04)
Essa era a maneira de entender-se com os índios e de mostrar-lhes que
necessitavam ser civilizados, para que não morressem à mingua na floresta. Cria-se
pois, uma espécie de “campo heráldico” de batalha perdida, pedindo trégua uma
trégua após cerca de quatrocentos anos em que, durante este período, o homem
branco invadira a mata com o fito de arrancar dos índios aquilo que lhes pertencia
desde tempos imemoriais, ou, conforme a descrição de tonalidades míticas, desde
um momento em que os ‘sabres rompiam as sepulturas dos guerreiros’. O vetor ótico
do processo mercantilista tamm havia sido invertido, mediante o discurso
pacificador de Rondon.
197
Colocar frente aos índios os machados, as foices e outros materiais de metal
a luzir no sol deixava evidente a intenção do Marechal Cândido Rondon: trazer os
índios, que viviam no neolítico, para a era do aço forjado, do uso do fogo e do metal,
enfim, para as vantagens da civilização.
Quando desligou-se da Escola Militar onde lecionava Astronomia, Mecânica
Racional e Matemática Superior, para cumprir a missão de Benjamin Constant de
instalar linhas telegráficas por todo o Brasil, o contato direto que Rondon teve com
os índios o fez adotar proceder pacificador para com eles. Mais tarde, reuniu
homens dispostos como ele a lutar sem armas com vistas ao propósito pacificador
dentro das florestas, estabelecendo laços de amizade para a preservação das tribos
indígenas brasileiras, catalogadas e não catalogadas. Muitos dos amigos de Rondon
haviam aprendido dele o respeito aos índios, bem como a tratá-los como seres
humanos que não se poderiam afastar das benesses da civilização. Para
representar esses companheiros de Rondon, tem-se, no romance O Instinto
Supremo, a personagem de Manuel Lôbo, cuja descrição se nota a seguir:
O dever que o impelia, modelara-o ele próprio, graças a mil
contribuições externas e a mil solicitações interiores, fora de todos os
regulamentos. Aquilo vinha de longe, da sua tendência, talvez,
sobretudo da sua convivência com Rondon, quando faziam avançar
os postes telegráficos através dos bravios sertões, aparentemente
desertos, mas que eles sabiam ocupados por outras presenças
humanas, invisíveis, primárias e terríveis. Dia a dia, hoje uma
palavra, uma frase amanhã, duas ou três depois, como os frutos
maduros que não caem todos ao mesmo tempo, fora recolhendo as
doutrinas do mestre; e não tardara a parecer-lhe que ele mesmo
as havia formulado também, obscuramente, num dia indefinido, tanto
aquilo se fundia com o seu próprio temperamento. (p. 42).
Nesse ínterim, não mais os homens brancos seriam vistos como seres
divinizados pelos silvícolas, mas, estes últimos é que mereciam o respeito de
“deuses da floresta imensurável”. Sobre aquelas paragens, o homem branco não
estabelecia domínio. Ampliando essa asserção, na obra de Ferreira de Castro, o
homem que julga dominar os espaços sempre se dominado por ele, o que
asseveram as descrições do Barroso, em Terra Fria, da Covilhã, em A Lã e a Neve,
da Amazônia, em A Selva, assim como no romance em tela, O Instinto Supremo.
A conscientização de que os índios deveriam ser civilizados poderia
emergir ao homem branco no momento em que se conscientizasse de que o índio
198
não era um ser irracional, conforme atestavam muitos colonizadores, inclusive
muitos dos que estiveram no Brasil, que os desprezavam como se fossem animais
de caça ou gente desprovida de alma. Com isso, o propósito de Rondon havia
adquirido grande significado para todos aqueles que viam os índios como seus
semelhantes. Para isso, Ferreira de Castro convoca no palco de O Instinto
Supremo homens de todas as formações e raças, para que, ao fim e ao cabo
representem a conquista consciente de que os índios eram seres humanos e
necessitavam de atenção. Para tanto, havia-se criado no Brasil na década de 1920 o
Serviço de Proteção ao Índio, encabeçado pelo próprio Marechal a o início da era
Vargas, quando Rondon se demitiu, julgando que o então presidente não
comungava de suas idéias positivistas frente aos autóctones.
Os homens industriados por Rondon em sua missão surgem em O Instinto
Supremo como um exército ladeando uma bandeira que expunha seus desejos
mais intrínsecos. O mesmo propósito que, no fundo, movia Ferreira de Castro a
compor romances nos quais as diferenças culturais o superadas por personagens
dispostas a sofrer mudanças de perspectivas, ao repudiarem suas tradições em prol
da compreensão entre os povos:
Eram altos, magros e descascados, um ao lado do outro, os dois
mastros. Unia-os, ao meio, uma tira de pano branco, com grandes
letras negras, onde se lia: “Morrer se necessário for; matar, nunca”.
Glocindo, que a amarrara, deslizava agora por um deles, sustendo-
se apenas com o braço esquerdo, enquanto os olhos procuravam na
mão direita, arqueada na sua frente, a farpa que se introduzira; e
fazia-o como se mirasse num espelho, indiferente a quem o visse. (p.
09).
Forte é a sucessão de imagens que se esboçam à frente do leitor no
momento em que a bandeira escapa dos mastros que a uniam e esvoaça com toda
a força, como a libertar-se das amarras daquele espaço individualizado e ganhasse
o mundo, juntamente com os propósitos humanitários de Rondon:
Subitamente, a tira de pano branco, que de começo ondulava
apenas, muito de leve e silenciosa, como se amealhasse forças,
desatara a estralejar entre os mastros, com fúria cada vez maior.
Esbravejava, dir-se-ia empenhada em romper as algemas de corda,
dessoldar-se dos braços de seus captores e voar por ali fora, a as
copas das florestas, unidas e compactas que nem um teto, onde,
199
enfim, pousaria como um fragmento de nuvem descida do céu. Era
um alarido seco, nervoso, de multíplices tons, ora parecendo bater
palmas, a aplaudir a sua própria cólera, ora a encarreirar para o
desespero, com finos e cortantes gemidos. (p. 10).
Rondon não veio, como esperado, mas, a sua ausência deixou-lhes a idéia de
lutar a qualquer custo. A notícia foi dada pelo próprio Nimuendaju, que então deveria
conduzir os homens mata adentro:
_ Vocês esperavam o Rondon, é? À última hora o pôde vir. O
governo encarregou-o duma missão urgente no Rio Grande do Sul.
(p. 12).
A própria não participação de Rondon na pacificação dos últimos índios ainda
sem contato com a civilização na floresta amazônica, os Parintintins, tamm
mostra-se significativa, no sentido de que, sem ele liderando a comitiva de
pacificadores, constituir-se-ia verdadeira prova de fogo para aqueles homens
simples, entrarem na floresta, com as mãos entrelaçadas às costas, sem armas que
os protegessem das flechas poderosas dos Parintintins. Homens que agora se
reuniam sob o mesmo propósito que a Carta, não a de Pero Vaz de Caminha, mas a
de Rondon sobre os índios trazia-lhes à vista:
Os homens que vinham escutar a leitura da carta de Rondon se
apinhavam à entrada da sala. Variados na tez como na estatura,
brancos e pretos, brônzeos e mulatos, uns baixos, outros espigados,
uma dezena de corpos entre os trinta e os cinqüenta anos, quase
todos se retraíam, sussurrando apenas as palavras, por se
encontrarem nos aposentos do senhor daquelas terras imensas, que
dir-se-iam mesmo sem dono, o misteriosas e tão pouco habitadas
eram. (p. 17).
A Carta do Marechal Cândido Rondon, lida por Curt Nimuendaju é histórica, e
fôra enviada a várias missões em que o grande marechal pacifista não pudera estar
presente. Reveladora do instinto supremo da compreensão do Outro, os homens, de
várias formações, se sentavam à roda para desfrutar uma a uma das palavras nela
contidas, as quais deveriam levar a cabo, quando “enfrentassem” a fúria do “senhor
daquelas terras”, os temíveis Parintintins. Conforme fazia questão de lembrar
200
Manuel Lôbo, um dos mais destemidos expedicionários da missão de
Nimuendaju,os Parintintins eram índios destemidos e temidos por todos, devido à
sua imponderasbilidade. Assim se pronunciava Rondon, na voz do etnólogo alemão:
“Estou em espírito com vocês e ninguém pode imaginar como
lamento não estar em corpo também. Conto com a vossa coragem e
o vosso amor à terra em que nascemos. Os índios são nossos
irmãos, são mesmo os mais brasileiros dos brasileiros. O nosso
sangue veio da Europa e da Ásia, e começamos por ser
estrangeiros, ao passo que o deles aqui se gerou e desenvolveu.
Quando os portugueses chegaram, já esta pátria que parece sem
fim, tão grande é, pertencia aos índios, desde tempos tão remotos
que ainda hoje não lhes podemos atribuir uma data certa.” (p. 17).
E a Carta prossegue, em contrapartida aos propósitos dos portugueses,
evidentes na famosa “Carta de Achamento”, de Pero Vaz de Caminha:
“Tomamos-lhes as terras, algumas vezes mesmo os brancos
destruíram-lhes as malocas, por essas clareiras a fora, nos recessos
das selvas, onde criavam os filhos e confiavam ao sol uma vida
isenta de ambições; e quando reagiam aos invasores, com suas
flechas primitivas, gentes sem compreensão respondiam-lhes com
balas e rifles. Chegou agora o momento de concluirmos a tarefa
pacificadora, que iniciamos há tempos, de acordo com o profundo
sentido humano do nosso povo. Devemos concluí-la sem sangue,
antes com paciência e fraternidade, para que os índios possam
evoluir e se beneficiar da civilização que existe agora no Mundo.” (p.
18).
Somente uma iia muito alicerçada na mente daqueles homens os impelia a
lutar sem armas dentro da floresta. Uma idéia que fosse abrangente pelo seu
sentido nato de humanidade. Conclui Rondon, aos olhos de Niumuendajú,
contemplando com condenação reprimida aos murmúrios de Jarbas, que discutia o
sentido da palavra civilização, utilizada por Rondon em sua missiva:
“Entre o algoz e a vítima é sempre a vítima que adquire autoridade
moral. Eu conheço, por mim próprio, a dificuldade que temos em
subjugar o instinto de conservação, que é o instinto supremo do
homem, sobretudo quando risco de morte. O movimento de
legítima defesa pode ser dominado pela força de uma idéia, que
será tanto mais poderosa quanto mais nobre for. Se algum, de entre
vós, não se julgar capaz de vencer as suas reações instintivas, deve
declara-lo antes de partir, sem se sentir vexado, nem se sentir
cobarde, pois isso é perfeitamente compreensível e humano, mesmo
201
nos mais valentes. Aos que estiverem duspostos a irem para morrer
se necessário for e nunca para matar, eu direi que eles honram a
nossa terra e toda a Humanidade.” (p. 18).
Assim termina Nimuendaju a leitura da carta do amigo indigenista e passa à
convocação de todos aqueles que estariam dispostos a dar sua própria vida em prol
de seu semelhante. Este princípio manifestado por Rondon, que serviu de motivo
exemplar para que Ferreira de Castro erigisse a narrativa de O Instinto Supremo,
não é privilégio de nenhuma corrente política partidariamente marcada, fosse o
anarquismo, o marxismo ou uma outra corrente libertária. Ao mesmo tempo em que
o instinto de preservação entranha-se no íntimo de todo homem, conforme apregoa
o mitólogo romeno Mircea Eliade (1996), sendo, pois, algo atávico, desligado de
qualquer denominação religiosa ou política, assim também, preservar o Outro, como
se preservasse a si mesmo seria uma luta para preservar a Humanidade. Desse
conceito comunga a obra toda de Ferreira de Castro.
Muito embora julgasse O Instinto Supremo uma obra excessivamente
elaborada, haja vista que, com isso manifesta sua preferência pessoal por romances
menos apegados à sua forma original, José Saramago em Seara Nova reconhece a
grandiosidade da obra e não nega-lhe a existência metafórica que se consubstancia
dentro de seu tema, o qual julga primoroso:
[...] o tema não se discute: aplaude-se. Formalmente, contudo, o livro
apresenta-se excessivamente “elaborado”, excessivamente “tecido”,
como se Ferreira de Castro se comprazesse menos no “nervo” e no
rigor implacável que sua história estava exigindo (a nosso ver), do
que nas oportunidades que ela lhe dava de aproveitamento “literário”
e de cor local. (p. 56).
Não fosse das melhores obras de Ferreira de Castro, não atingindo o grau de
complexidade imagética alcançado em A Selva, em Terra Fria ou em A Lã e a
Neve, não se compraz apenas em ser um romance simples, apegado ao tema,
como sugere Saramago, em sua leitura particular. O “nervo” da narrativa encontra-se
posicionado justamente onde a muitos escritores faltou estrutura, a saber, o índio
como personagem desvinculado de uma visão encantatória, ser fabuloso e
202
enigmático, como queriam os primeiros colonizadores da terra e toda a literatura
romântica brasileira que se apegou determinadamente a esta diretriz européia.
E é justamente por intermédio desse diálogo que Ferreira de Castro instaura
com o passado, mediante O Instinto Supremo, que as imagens, os símbolos e as
metáforas, vão, mesmo que ligeiramente, aparecendo e ganhando tônus.
Certamente, Saramago estava coberto de razões ao afirmar que o tema deveria ser
aplaudido, devido ao seu grau de amplitude e nobreza, mas tamm porque,
mediante a Imagologia, pode-se perceber a atemporalidade do romance ao trazer ao
mesmo parlatório o passado e o presente, no intuito ainda mais nobre de utilizar-se
de imagens literárias bem construídas para aclarar uma idéia expansiva: os direitos
de todos os homens, independentemente de raça, cor ou nacionalidade.
O diálogo entre o passado e o presente torna-se ainda mais evidente na
figura de Tarsília, esposa do médico da comitiva de Nimuendaju, filha de uma
amazônica e de um português, que carregava em si o lastro da autoimagem
portuguesa, advindo do pai. Interessante a expansiva imagem criada pelo narrador
do romance ao realçar a fragilidade de Tarsília, sutilmente comparando-a com a
personagem histórica portuguesa, Inês de Castro:
Conhecendo o caráter de Tarsília, sensível e sempre mimalha,
principiou a afagar-lhe a cabeça, a mão muito lenta, como que
dirigida pelo leve movimento do próprio sorriso dele, terno e
melancólico. Filha única de uma amazônica e dum português,
emigrado muito jovem para Manaus, onde, laborioso e sovina,
conseguira transformar num sólido cofre de negociante o frágil baú
de folha com que desembarcara, ela recebera da mãe a gracilidade
da figura e era mais fiel ao sentimentalismo choramingoso da terra
paterna do que as águas do Mondego o são aos choupos fadistas de
Coimbra. (p. 20).
O narrador tece paralelo entre a autoimagem portuguesa e a heteroimagem
brasileira, inserida na figura da mãe de Tarsília, personagem esta que carrega um
sentimento muito forte pelo seu amado, Bonifácio (do latim, aquele que faz o bem”)
e que a torna corajosa para enfrentar as próprias adversidades em prol desse amor;
como o significado teutônico que seu nome possui, qual seja “corajosa”. Tarsília
enfrentaria os perigos da mata no glorioso intento pacificador dos índios. Não
obstante, Bonifácio, precavido, pede que ela fique em segurança. Ao mencionar as
águas do Mondego, rio que nasce na Serra da Estrela, Ferreira de Castro retoma o
203
Episódio de Inês de Castro, em Os Lusíadas, inserido no Canto III e estrofes de 118
a 135 mais especificamente a estrofe 135 que recupera a imagem do Mondego
como rio que ainda chora a morte de Inês de Castro e contribui para a absorção
auto-imagética do português lamurioso e corajoso ao mesmo tempo. Cabe relembrar
a estrofe 135 de Os Lusíadas, como elo deste diálogo entre passado e presente,
que unem Brasil e Portugal:
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.
Quando Camões trata do nome “Amores”, no final da estrofe, refere-se à
Quinta das Águas, ou à Fonte dos Amores de Inês, lugar onde ela se encontrava
com D. Pedro e logo, este partia em despedida (como Bonifácio em sua trajetória
pela mata). A imagem de que as ninfas do Mondego ainda choram a morte de Inês,
além de bela, tornou-se característica de uma faceta da autoimagem do português
como sensível, tendo nas águas que banham Portugal, como as do Mondego, o
reflexo dessas lágrimas, que tamm, em imagem contígua trazem à tona a
nostalgia da terra natal.
É sintomática esta recuperação imagética, contida em Os Lusíadas, haja
vista que é obra que trata da Expansão da Fé do Império Portugueses e erige um
diálogo inalienável com as obras que recuperam as imagens do português
colonizador e do português que fica a chorar pelo retorno daquele que parte, bem
como da saudade da pátria àquele que partiu. O contato com povos distintos gerava,
nos navegadores, certa expectativa, adensada de temor e curiosidade ao mesmo
tempo – elementos que os homens reunidos sob o discurso humanizador de Rondon
também possuem, com a notável diferença de que os objetivos são distintos dos
navegadores e distintos tamm dos objetivos do pai de Tarsília, “laborioso e
sovina”, que veio ao Brasil para fazer riqueza, ao “transformar num sólido cofre de
negociante o frágil barril de folha com que desembarcara”. (p. 20)
A abrangência da imagem, ao relacionar-se com Os Lusíadas continua,
trazendo a verve portuguesa de Ferreira de Castro que constrói um narrador que se
204
imbui de um sentimento nostálgico, que parece entranhado em si mesmo, desde a
construção da narrativa de A Selva. Tentando consolar a esposa, Bonifácio lembra-
a de que as mulheres dos outros contendores pela paz tamm haviam ficado
distantes de seus maridos. A compreensão dessas mulheres, ao entenderem o
trabalho de seus maridos e a nobreza da causa pela qual eles lutavam ficam
implícitas no discurso de Bonifácio, com isso, ele recupera a crítica de Saramago,
que afirmara que o tema não se discute:
_ Quase todos esses homens que viste na sala são também
casados. A mulher do Curt ficou em Belém, muito mais longe do que
tu. Doze, quinze dias de vapor, conforme a carga nos portos. E nem
preciso falar de Rondon, que era doido pela mulher e pelos filhos e
passou anos e anos separado deles. Se estava em Mato Grosso e ia
vê-los no Rio de Janeiro, onde viviam, tinha de dar uma volta pelo
Paraguai e pela Argentina, mais de um mês de viagem [...] disse-me
que sentia que estava a cumprir o seu dever quando se
encontrava torturado por viver longe da mulher. (p. 22).
Após as explicações do marido, a metáfora que traz à tona a figura de Inês de
Castro e seu sacrifício se presentifica na menção ao Mondego, na memória de
Tarsília. Mesmo para uma mulher corajosa como ela, o intento pacificador do marido
e dos outros associados parecia demais à coragem que ela carregava em seu nome:
Novamente o Mondego paterno subia nos sentimentos de Tarsília,
como sucedia em Coimbra, quando os choupos estão despidos,
negros e espectrais, na tristeza úmida do inverno: novamente o céu
acastanhado dos olhos dela se nublava e se tornava pluvioso. (p.
23).
Nessa bela imagem, os olhos de Tarsília, metaforicamente, como que
transmutam-se nas próprias águas do Mondego, como que a refletir e amalgamar o
caudal de tristezas contido naquelas águas. Destarte, Trasília representa a comoção
da mulher portuguesa em relação ao homem que a abandona em prol de alguma
causa, que vai para o mar em busca de algo de grande valor. Trata-se, pois do
contraste do amor eros com o amor fraterno. Bonifácio sentia os dois amores, mas
sabia que naquele momento, a causa pela qual lutava impunha-lhe a ciência de que
o amor fraterno deveria superar o amor eros.
205
Em meio à coletividade, formada por personagens que seguiam os mesmos
desígnios, uma se destaca, a saber, Jarbas, um simples seringueiro que possuía
idéias avançadas para o tempo, questionando a validade da civilização dos índios,
para que travassem um convívio pacífico com os homens brancos na floresta. Cabe
transcrever os questionamentos de Jarbas, os quais, dizia ele, havia ouvido de certo
homem, nas paragens por onde andava. Tais idéias, inicialmente, provocam uma
certa repulsa em Nimuendaju:
_ O homem me disse: Se os civilizarmos agora, que temos depois de
dar a eles? Cortar seringa? Já se sabe o que é ser um seringueiro.
Vender sorvete em Manaus? Levá-los para as fábricas, lá na cidade,
a trabalhar o dia inteiro e mete-los no xadrez se andam com
protestos durante as greves? Nas malocas, com a caça e a pesca,
sustentam os filhos. E na cidade? Às vezes, alguns que lá vivem, não
têm sequer uma colher de farinha para os curumins. Na Ásia é o
mesmo. Na Oceania o mesmo [...] Tito Boludo, que ia da outra
banda, justamente atrás de Aristeu, tossiu e perguntou com voz
desfrutante:
_ Então o tal homem não queria mesmo que os índios fossem
civilizados?
_Queria... Mas quando houvesse farinha e feijão para todos. Aqui
e no Mundo inteiro. Dizia ele que devia ser quando a civilização
estivesse também civilizada. Você está compreendendo? (p. 44).
Os pensamentos de Jarbas contribuem para a configuração de uma espécie
de alter-ego de Ferreira de Castro. A questão era mais profunda do que justamente
civilizar os índios, a questão caminhava para um processo de conscientização dos
povos de que deveriam lutar em prol de um mundo melhor. A questão levantada por
Jarbas era como civilizar os índios se nem mesmo eles, pobres seringueiros e
lavradores, muitas vezes, não tinham nem mesmo pão para comer. Contudo, o
propósito de Rondon não poderia ser deixado de lado, dado a nobreza que o
circundava; era por isso que Jarbas seguia as diretrizes de Nimuendaju e não queria
apresentar-se como um reacionário:
_ Mas, se pensava desse modo, por que veio? [indagação de
Nimuendaju]
_ Vim, porque se civilizarmos os índios agora, eles irão ficando
preparados para desejar um dia melhor. Mas seria mais bonito, não
dúvida, que quando tirássemos eles das malocas lhes
pudéssemos dar tudo aquilo que os homens precisam ter e até a
muitos nos falta. O senhor nunca pensou nisto? Vendo bem as
206
coisas, quase todos nós, que os vamos civilizar, somos ainda mais
pobres do que eles. (p. 63).
E então, o seu pensamento atinge a linha mestra do romance, que perseguiu
o labor literário de Ferreira de Castro desde Emigrantes: a injustiça no mundo,
provocada por homens que julgavam serem superiores aos seus iguais:
Vim também porque a idéia de não matar eles, mesmo que estejam
para matar a nós, me parece interessante. O senhor não tome isso
por falta de consideração por ele. É até por ser general e conseguir
pensar assim que eu o respeito. Não quero discutir não, mas já tenho
lido várias vezes que os principais responsáveis de certas violências
dos povos são os que mantém as injustiças no Mundo. Não deixam
outro recurso e depois castigam, alguns até mandam condenar à
morte, aqueles que lutam pela justiça. (p. 64).
Retornando às questões relativas à autoimagem histórica portuguesa, ligada
aos propósitos mercantilistas das Grandes Navegações, o pensamento de Jarbas
constitui-se um traçado histórico a essas questões, e toca no espírito de
Nimuendaju, um alemão que havia deixado sua terra natal para tornar-se
apadrinhado dos índios no Brasil. Para que a trajetória imaginada por Rondon fosse
completa, de acordo com o pensamento de Jarbas, os propósitos deveriam
necessariamente ser diferentes dos portugueses navegadores do século XVI. Afinal,
pelo pensamento liberalista de Rousseau, o índio era um “bom selvagem a quem a
sociedade de massa jamais deveria corromper. Os colonizadores, ao contrário,
fizeram de muitos deles escravos, retirando-os de sua vida pacata. O Brasil, na
época de Rondon, crescia, sendo que as linhas telegráficas estavam cortando
praticamente dois terços de todo o Território Nacional. Isso significava civilização, da
qual os índios tamm não poderiam se apartar, de acordo com Jarbas, desde que
condições adequadas ao desfrute das benesses dessa vida social coletiva lhes
fossem garantidas.
Ferreira de Castro trabalha com personagens históricas que, de certa forma,
estão acima de qualquer perspectiva terrena mais profunda. O trabalho incansável
de Rondon e Nimuendaju era humanitário e por isso, não nega, Ferreira de Castro,
que os tenha admirado a ponto de construir um romance em que muitos brasileiros e
207
estrangeiros constituem exemplos dignos de homens que lutam em prol do bem
comum e das quebras das diferenças humanas.
O pensamento de Jarbas consagra-se como a admiração contida em Ferreira
de Castro por homens que, sem armas na floresta, enfrentam todos os perigos em
prol de um bem comum, bem como com a amplitude significativa de tal pensamento:
seria interessante que os homens fossem considerados iguais e que recebessem os
mesmos direitos, independente se índios, como os Parintintins, seringueiros, como o
próprio Jarbas, exilados como Alberto de A Selva, viajantes esperançosos como
Manuel da Bouça, em Emigrantes, pastores de ovelhas e operários das fábricas da
Covilhã, como Horácio, de A Lã e a Neve ou ainda, homens que viviam em um
Portugal distante, atávico, num cenário esquecido e pré-histórico como o do Barroso,
em Terra Fria. Restava a Nimuendaju, após o discurso de Jarbas, ampliar a sua
visão acerca da civilização dos índios:
No espírito de Nimuendaju, o espectro baixava os braços e desfazia-
se; a terra escurecida voltava a iluminar-se e ele, liberto da primeira
opressão, sentiu-se contente por se ter desgarrado também da
segunda. Entre o que Jarbas acabava de lhe dizer e o que dissera no
batelão a Aristeu, a Honório e a Tito Boludo e ele ouvira, rabiavam,
sem dúvida, algumas contradições, mas não valia a pena meter-se,
naquele momento, às contingências do labirinto [...] dir-se-ia que a
as expressões de Jarbas se metamorfoseavam: em vez da repulsa
anterior, fabricavam agora crescentes simpatias. Era como se a pele
se habituasse à temperatura do banho e a sentisse mesmo
agradável depois de ter reagido á água demasiado quente. (p. 64).
Compreendendo a mudança na fisionomia de Nimuendaju homem áspero e
intratável, as palavras de Jarbas provocam um retorno imagético a um outro espaço,
que, embora não seja privilegiado em nosso estudo, ou seja, a Alemanha, do
etnólogo, não poderia ser deixada de lado, a porque come-se parte da Europa,
tal como Portugal. As recordações trazem à sua mente os movimentos proletários
em busca de melhores condições de vida, muitos deles partindo de gente simples,
que tamm não possuía consciência da luta de classes:
Nimuendaju amordaçou a dúvida e não insistiu. Silêncios e palavras,
com todas as sugestões vindas de Jarbas, com todos esses atalhos
no fundo das ravinas pressentidas, recompunham no seu espírito o
velho ambiente de Iena, a sua infância de órfão, a adolescência na
fábrica Zeiss, uma vida penosa, intrincada de descontentamentos e
ambições, sem outro conforto além do fervor pelo estudo, que
208
nesses dias o obcecava . E, quando aos vinte anos, conseguira
emigrar para o Brasil, após todo aquele sacrifício que o simples
dinheiro da passagem exigira dele e da irmã, fora encontrar entre os
trabalhadores de S. Paulo a mesma ansiedade reivindicativa, a
mesma quente esperança que assinalava os movimentos proletários
da Alemanha, já então a avolumarem-se grandemente. (p. 66).
Trata-se, pois de imaginar como cidades do porte de Iena, pertencente à
Alemanha e terceira maior cidade da região da Turíngia e São Paulo, que se
transformava numa grande metrópole, ainda conviviam com inúmeras diferenças
sociais. O olhar humanitarista do escritor português vai além da densidade da
floresta, ultrapassando os limites das terras quase ignotas e escondidas da vista do
homem, para olhar rente às cidades grandes. A maneira como o faz é que é
interessante: vale-se de uma personagem histórica, como Curt Nimuendaju, um
cosmopolita, para quem a pátria era o próprio mundo, que havia tido contato com
cidades grandes na Alemanha, em toda Europa e tamm no Brasil e insere nas
suas caracterizações a capacidade de estabelecer contrastes e chegar à idéia de
que havia injustiça social em todas as partes do globo.
Como, então, almejar que povos que ainda viviam no neolítico, como os
índios Parintintins alcançassem o posto civilizatório? Era algo que provocava
inúmeras dúvidas em Nimuendaju. Sendo assim, seus intentos, como os de Rondon,
cairiam na mesma sandice da colonização exploratória ocorrida durante o
Mercantilismo europeu? Homens, como os índios, que viviam da terra amazônica,
desde tempos imemoriais, também deveriam ter o direito às benesses civilizatórias,
para não verem seu futuro se desgastando dentro da floresta densa. Ou, como
ocorria em A Selva, com os nordestinos, que, saídos da zona da mata devido à seca
avassaladora, ao invés de encontrarem um trabalho digno na extração do tex,
tinham de olhar para o seu futuro, estilizado a canivete, em cada cruz que
encontravam pelo caminho.
O alter-ego do autor, Jarbas, percebe essas alterações no espírito de
Nimuendaju e, por meio de uma metáfora trazida das árvores da floresta, estabelece
uma comparação com o que agora ocorria com o etnólogo:
Vendo Nimuendaju tão calado, os olhos mornos tão parados, o rosto
ligeiramente contraído, parecendo até que tomado de melancolia,
Jarbas pensava, comparando as primeiras frases deles com as
últimas que pronunciara em voz cooperante e branda: “É como as
209
sumaumeiras, sempre cobertas de verrugas espinhosas nos troncos
e nos ramos; e macias, mais suaves do que penas de galinha, na
sumaúma que produzem, uma vez em cada ano.” (p. 66).
As remetências de Nimuendaju a São Paulo e a Iena continuam, como uma
espécie de perseguição imagética das cidades grandes sobre ele. Algo parecido
ocorre com Alberto de A Selva, quando compara a mata do seringal Paraíso com
Manaus e seu grande teatro; também com Manuel da Bouça, em Emigrantes
quando contrasta suas courelas na Bouça com a cidade de São Paulo; com
Santiago, de Terra Fria, quando destila seu veneno contra as cidades de Portugal,
ao compará-las com as grandes cidades norte-americanas e, sobretudo, com
Horácio, personagem de cujo romance, A Lã e a Neve, estrutura-se sobre as
diferenças entre o campo e as cidades grandes.
Como todos eles, à exceção de Santiago, o etnólogo alemão alcança uma
noção mais ampla acerca do homem e faz pensar além a obra de Ferreira de
Castro, como havendo nela uma certa linha mestra, em que determinados espaços
vão, aos poucos, sendo completados. Desse modo, homens de diferentes
formações vão tendo a noção de que a humanidade é complexa e vive sob a mesma
égide da detração, do domínio do homem pelo homem, da desigualdade social e
que justamente por isso devem empreender uma luta em prol da igualdade social,
sem bandeira alguma que evidenciasse partido ou idéia fundada em determinado
pensamento filosófico demarcado. Metáfora disso é a bandeira que estenderam para
a espera de Rondon, sob a inscrição do lema: “Morrer se necessário for, matar
nunca”, que escapa dos mastros que a sustentavam e esvoaça, sem limites, mata
adentro.
Com isso, o etnólogo percebe que mesmo em homens simples como aqueles
que compunham a sua comitiva, cheios de sofrimento, havia o instinto supremo da
irmanação de homens diferentes e da força que utilizavam para que o propósito em
tela fosse levado a cabo. Mais uma evocação de São Paulo reforça essa iia em
Nimuendaju, a de que os homens são mais complexos do que os estereótipos
podem identificar, que as suas autoimagens sempre são cambiantes, pois são seres,
como ele, capazes de mudar, de sofrer alterações, de aprender com a vida, com os
livros ou com os sofrimentos:
210
Uma satisfação alicerçada sobre a atividade dos homens que haviam
ido mais além de tudo quanto ele tinha previsto e continuavam a
laborar com essa expressão desenfadada que o surpreendera no
povo brasileiro desde a sua chegada a S. Paulo, povo otimista à
superfície, no cerne como que nostálgico duma ventura interrompida
e sempre tendendo, talvez por essa dualidade, ao sorriso e ao chiste.
(p. 107).
Em um momento de evidente amálgama do pensamento de Jarbas com o
discurso empreendido pelo narrador, fica evidente a extensão do pensamento de
Curt, que deveria atingir outros homens e independeria de nacionalidade. A despeito
do português pai de Tarsília, esposa de Bonifácio, vêm à tona a imagem de Manuel
Galego, um português humilde que sofrera dentro da floresta para ganhar o próprio
sustento:
O marçano de seu Manuel Galego também viera de Portugal, com a
mesma idade dele [falavam do deputado Miranda], com a mesma
idade dele e ainda mais humilde. Quando as compras tinham grande
peso, saco de feijão, saco de batata, outros comestíveis, ia levar-lhas
a casa, empurrando um carrinho pelas ladeiras acima, aquelas
ladeiras muito inclinadas das quais havia tantas em São Luís e lhe
faziam o suor pingar da testa. Ele, às vezes, auxiliava-o e o Zeca
falava de coisas tristes, sofridas antes de sair de Portugal, e dos
pontapés, cascudos e bofetadas que o patrão lhe dava, depois de
estar na mercearia. Ouvindo-o, parecia que as vidas dos dois eram
semelhantes, ambos com os pais muito pobres, ambos a servir os
outros, porque a ele também a cozinheira e o filho mais velho de seu
Dr. Miranda o esbofeteavam de quando em quando. (p. 142).
Assim como a Curt, a compreensão mais completa da situação do mundo
veio ao aprendiz de caixeiro, Manuel Galego, mais tarde, quando já adulto, pois, os
castigos que via desferirem contra os índios e contra os negros causaram-lhe certa
revolta. Essa compreensão holística só pode ser bem alicerçada com a evocação da
figura do padre António Vieira:
Compreendera então que não podia responsabilizar os homens do
presente pelo que haviam feito os do passado, que em todas as
épocas haviam existido homens que pensavam diversamente e
soubera que ali mesmo, em S. Luís, na Igreja do Carmo, um
pregador português, um tal Vieira, tão justo e inteligente que até a
Santa Inquisição o prendera, condenara, falando do púlpito, aqueles
que maltratavam os índios; condenara-os como se ele, batina de
211
Portugal, fosse também índio um dos sacrificados de quem o avô
falava. (p. 142).
A luta sem armas prossegue a o encontro com os Parintintins, e alguns
fogem à regra estipulada por Curt Nimuendaju e desferem tiros contra os índios,
mas, todos aqueles que ficam, convocados por serem suficientemente corajosos a
ponto de enfrentarem as adversidades de peito aberto e, ao final, poderem se
confraternizar com os índios, na busca da compreensão cabal do Outro, recai a
recompensa de irmanarem-se com os índios, de os respeitarem como povos que
tinham o direito de conhecerem a civilização. O narrador retoma o pensamento de
Jarbas, num longo trecho, composto por pensamentos conflitantes que adensavam-
se, ao fim e ao cabo numa só idéia: a luta em prol não somente dos Parintintins, mas
em prol de todos os que sofriam, em qualquer parte do globo, as agruras de um
mundo injusto. Esse transcorrer de tempo bergsoniano, relembrando o tempo da
permanência proustiano, em Em busca do Tempo Perdido, ocorre justamente
quando os Parintintins estão a destruir as cercas e flechar os homens que os
querem pacificar, do outro lado. Esse pensamento evocatório vai sintetizando as
pretensões literárias de Ferreira de Castro diante de toda sua obra, que culmina,
justamente com O Instinto Supremo:
[...] Jarbas podia facilmente avaliar, pelos orifícios da chapa que lhe
ficava à direita, o perigo que crescia, de momento a momento, ao fim
da terra fria, perto dele [...] a coragem desenvolveu-se no movimento,
como a espuma nos líquidos agitados; a dificuldade era ser corajoso
na imobilidade, pois que na ação todos o podem ser.
Ali, porém, era a passividade, vencendo as regras normais, que tinha
força, que tinha coragem e tinha peso. E Jarbas, observando essa
ação esfíngicamente parada em frente do movimento dos índios,
essa imobilidade tão contrária ao seu passado, aderia-lhe
calmamente, parecia-lhe mesmo ter-lhe aderido muito [...] Pensou
que gostaria de viver aquele dia tão sonhado, em que se abrissem ao
sol todas as portas e se anulassem todas as velhas servidões,
aquele dia que tanta luta lhe havia exigido, uma luta que o obrigara
até a pedir à floresta que o encobrisse por algum tempo. Se tivesse a
certeza de que alvoreceria enquanto ele vivesse, talvez lhe custasse
arriscar ali a alegria de assistir ao seu amanhecer, tanto mais que
podiam deixar para depois as relações com os Parintintins, esse
depois onde a justiça e as conquistas da civilização seriam,
finalmente, para todos [...] Ele sabia, porém, desde que entrara nas
reivindicações proletárias, que essa manhã de sol justo se inscrevia
ainda em datas tão incertas como a da chegada das antigas
caravelas que andavam por vastos oceanos, longínquos,
encrespados, por vezes tempestuosos mesmo. Tanto podia demorar
212
menos do que muitos julgavam, como demorar bastante mais; e era
justamente para que tardasse menos que ele e milhões de outros
homens lutavam em todos os continentes, não raro até a morte. Mas
dessa própria falta duma data fixa lhe vinha a serenidade com que
aceitava o risco e seguia os esforços dos índios contra a barreira
farpada, na sua frente, muito próximo dele. (p. 175).
Após muita paciência e alguns presentes, deixados por Manga Verde e outros
expedicionários, os Parintintins começam a se entender com os homens brancos e
perceber que embora alguns deles tivessem morrido pelas suas flechas, não havia
nos olhos dos homens brancos corajosos o desejo de sacrificar nem um membro de
sua tribo. Oportuna cena que remonta essa imagem a do encontro de Amaro com o
velho índio Parintintim:
Abriram-se finalmente as cancelas, diante dos íncolas indiferentes, e
Amaro acenou ao velho, convidando-o a entrar e a receber os
brindes [...] Mas o velho não se moveu [...] Então levaram-lhe os
brindes.
O velho olhou-os de novo, parecendo que os contava; e,
pausadamente, entregou dezessete acanitaras, como se naquele
singular comércio o valor dum terçado ou dum machado fosse o
mesmo duma caixa de fósforos. Amaro via, como uma nova emoção,
as mãos anciãs, engelhadas, um pouco trêmulas, irem e voltar na
permuta, emoção por encontrar-se a quatro palmos somente, quase
em boa paz [...] E o velho parecia-lhe agora, mais do que nunca, um
homem igual a ele; olhou os jovens e os jovens pareceram-lhe
também iguais a ele quando era moço e se punha nu para mudar de
roupa ou então banhar-se. E sentiu o desejo de faceciar
amigavelmente, de lhes bater de leve nos ombros, de lhes dizer:
“Não sejam bestalhões, vamos acabar com isto, vamos ser amigos”
[...] (p.223).
Após isso, Nimuendaju, já transformado pelos pensamentos de Jarbas,
solicita, em Carta ao Serviço de Proteção ao Índio, um professor primário e roupas
para os parintintins. A questão já não era apenas civilizá-los, mas, oferecer-lhes
condições para que pudessem viver em paz sem que nada lhes faltasse.
Nos romances de cenário português, Terra Fria (1934) e A e a Neve
(1947) nota-se a mesma preocupação com os detratados, com vistas a dimensionar
dramas que, malgrado estarem ligados a espaços geográficos específicos, impõem-
se ao “instinto supremo” do próprio homem – personagem, motivo e maior inspiração
de toda obra de arte literária que se pretenda universal e “sinfrônica”.
213
Conforme ressalta o estudioso Temístocles Linhares (1968) todo escritor não
se deve afastar dos problemas que ocorrem à sua volta, mas, deve observá-los com
a verve de quem consegue transpor os limites entre forma e conteúdo para compor
uma obra que ao mesmo tempo seja exemplo da mais fina literatura e reflita o
mundo sem os vincos temporais que a restrinjam a um tempo e a um espaço fixos:
Se o conteúdo se exprime na forma e se a forma é o caminho para o
seu descobrimento, também um momento em que se torna
possível transcender esse problema. É quando se assiste ao diálogo
entre o escritor e a realidade, a viva experiência da criação, quando,
afinal, o autor diz o que sente. E di-lo muitas vezes para externar um
protesto, pulverizando muita coisa de nocivo que o mundo encerra: a
riqueza mal adquirida, a corrupção, a fome, a mentira, o trabalho
medíocre e feito sem ilusões, a amizade hipócrita e interesseira, o
sentimento de frustração, as formas de exploração organizadas
contra o homem, o poder assente na força e no combate ao
conhecimento e à inteligência, a vida nas suas inibições e
complexos, os aspectos negativos das relações e tantas outras
coisas mais a que o homem está indissoluvelmente ligado.
(LINHARES, 1968, p. 6).
Essa necessidade “indissolúvel” de externar o que havia de mais profundo
nas relações humanas serve de motor à produção estética de Ferreira de Castro.
Numa espécie de espelho, as palavras de Linhares continuam a refletir a imagem do
escritor português Ferreira de Castro:
Afinal de contas, o escritor, por mais preso que esteja à sua arte, não
pode ignorar o que se passa à sua volta, sem deixar de traduzi-lo ou
refleti-lo dentro de seu tema pessoal e no fundo de sua meditação ou
de sua imaginação criadora, mormente quando é um ficcionista. Essa
é uma maneira de contribuir para a reconstrução do mundo. Ao lado
disso, é evidente, está a sua emoção, a sua ternura, a sua vertente
pessoal, o seu virtuosismo, a sua concepção de liberdade, da
pessoa, do inconsciente [...] Apegado fortemente ao seu torrão, o
escritor português interroga os problemas que mais o afligem, a
contradição social em que vivem as suas populações, a tristeza
inata, mas também o sonho que transforma o homem e o faz
dominar as forças da natureza, que faculta o progresso, mas também
degrada o homem, reduzindo-o a lobo de si mesmo. O sonho é o
bem e o mal, a única realidade talvez. Realizado, é ele que configura
tudo que nos cerca e foi transformado pelo homem, mas, irrealizado,
é ele também que nos devora as entranhas. (op. Cit. 1998, p. 6-7)
214
No número 21 da Revista Colóquio Letras, do ano de 1974, o estudioso
Fernando Cristóvão comunga das mesmas idéias acerca de A Selva e de O Instinto
Supremo, como sendo romances em que, diferentemente de escritores como
Euclides da Cunha, Inglês de Souza e Gastão Cruls (que tamm versaram sobre a
Amazônia), Ferreira de Castro não se permitiu deslumbrar com a floresta a ponto de
perder a linha literária que deveria consubstanciar suas produções:
O seu autor não se deixou deslumbrar pelo exotismo da floresta, mas
soube aproveitá-lo, não funcionalmente como elemento da intriga
mas também como factor de embelezamento. Ferreira de Castro,
melhor que Inglês de Souza, lançou as bases do autêntico romance
amazônico de coordenadas humanas. É que o autor de O
Missionário estava demasiado preso às receitas positivistas de
Taine para poder atingir o real humano, ao passo que o romancista
português, isento de leis e preconceitos de escola e rico duma
experiência profunda de comunhão com a floresta e os homens que
ela devorava, conseguiu construir uma narrativa palpitante
(CRISTÓVÃO, 1974, p. 21).
Fernando Cristóvão não deixa de estabelecer um elo entre o que via em A
Selva e em O Instinto Supremo em relação às outras obras de Ferreira de Castro,
ao dizer que:
E não deixa de ser oportuno lembrar que o romance de Ferreira de
Castro, social e de características populares, é anterior, em data, à
explosão do romance nordestino, que embora historicamente iniciado
em 1928 com a publicação de A Bagaceira de Jo Américo de
Almeida, na década de 30 se desenvolverá de maneira
significativa, e precede as obras de José Lins do Rego, Graciliano
Ramos e Jorge Amado. (CRISTÓVÃO, 1974, p. 21).
E que o intento de Ferreira de Castro foi alcançado, ou seja, juntar, por meio
de suas obras, portugueses e brasileiros, isolados pelo mar e pelo processo de
Colonização, que de uns fez colonizadores e de outros colonizados. Ferreira de
Castro afasta as diferenças impregnadas nas concepções míticas e tradicionais,
carregadas por ambos os povos em tela e mostra, em suas obras, que são
humanos. Por isso, o ensaísta de Colóquio Letras acreditava que eram justas as
comemorações tanto no Brasil quanto em Portugal acerca da obra de Ferreira de
Castro, justamente à data de sua morte, em 1974:
215
O autor de A e a Neve e A Selva repartiu-se por temas
portugueses e brasileiros, e com a vasta audiência de leitores que
obteve aproximou mais os Brasileiros da realidade portuguesa, e os
Portugueses da realidade brasileira: ao lado das obras de assunto
português, Emigrantes, A Selva e Instinto Supremo têm por
cenário o Brasil e integram-se na temática brasileira. São justíssimas,
portanto, as homenagens que por ocasião de sua morte lhe foram
prestadas em ambos os lados do Atlântico pelas duas literaturas de
língua comum, e o mesmo sentido de unidade teve em 1968,
certamente, a proposição de seu nome, unido ao de Jorge Amado,
para o Prêmio Nobel de Literatura. (idem, p. 20).
Com justas palavras Fernando Cristóvão conclui seu ensaio relativamente a
Ferreira de Castro, tratando, até mesmo do mérito de um escritor que ficou
esquecido pelo fato de jamais se ter aderido a uma escola literária ou a um
pensamento político determinado:
Este escritor, que sempre se recusou a pertencer a academias, tem
um dos maiores méritos em saber auscultar sentimentos, aspirações,
problemas, pequenos e grandes dramas do povo. A sua obra é uma
contínua comunhão com o povo simples e humilde do campo ou da
fábrica, que ele soube movimentar comovidamente como
personagem e de quem sempre se fez entender. (ibidem, p. 22)
Hernâni Cidade, no mesmo mero da revista Colóquio sob o ensaio “Uma
Lição de Fraternidade”, dizia se surpreender com a capacidade de Ferreira de
Castro em manter acesa a chama da fraternidade entre os povos em tempos difíceis
de se pensar em tal feito mormente porque esse pensamento manteve-se vivo em
Ferreira de Castro a seu último romance, O Instinto Supremo, e ultrapassou
limites das conseqüências da Primeira Guerra Mundial, da ditadura salazarista e da
Segunda Guerra Mundial, momentos em que seria complexo imaginar a fraternidade
entre os povos:
Isso numa terra em que tão facilmente, contra o inimigo de credo
político ou religioso, se formula a hipótese mais infamante, e tão
facilmente ela congela de hipótese tímida em duríssima tese de que
só ingênuos lorpas têm dúvidas.
Acrescentarei como surpreende o ser fácil de encontrar quem,
como Ferreira de Castro, tenha sido capaz de manter, sobre base
humana de tão fraterna e compreensiva tolerância, ideologia assim
tão severa em sua intrínseca e rígida coerência.
Daí a simpatia unânime que o rodeava! (CIDADE, 1974, p. 21).
216
Essa simpatia, infelizmente, não foi suficiente para que as determinantes
canônicas da Literatura Portuguesa tivessem em conta obra de tão considerável
constituição literária. Por isso, ainda encontra-se Ferreira de Castro, o cosmopolita
sonhador com a união entre os povos, que soube literariamente retratar o drama dos
homens no mundo, à espera de um reconhecimento que o dignifique junto aos
escritores de grande porte de toda Literatura de Língua Portuguesa e, quiçá,
mundial.
217
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais lícito que, aos estudos literários, seja o propósito de defender a
literariedade de um escritor quase esquecido pela crítica, cingido a um tempo
específico ou confundido em incontáveis movimentos literários, sem ao menos,
perfeitamente, caber confortavelmente em nenhum deles, não é tarefa fácil, mas,
visto ser benfazeja, é recompensadora.
Em um tempo em que cada vez mais se assiste a um palco repleto de
funâmbulos da literatura, que buscam se adaptar ao gosto da crítica ou do público
pelo instinto da sobrevivência monetária a qualquer custo, a obra de Ferreira de
Castro traz à tona um escritor para quem a existência a qualquer custo do homem
na face da terra foi pedra basilar da estrutura de toda sua trajetória literária não se
trata da sua própria sobrevivência, mas a daqueles a quem seguiu de perto, vendo
os seus rostos sulcados pelo tempo, as suas mãos calejadas pelo trabalho, as suas
esperanças perdidas, lutando para permanecer.
Por outro lado, quando se pensa a narrativa do escritor português de Ossela,
mediante sua práxis artística, se poderia dizer que se tratava de sua própria
sobrevivência. Foi escritor para quem esse tema foi o caro que jamais conseguiu
se afastar dele. Com efeito, mesmo tendo uma vida repleta de aventuras,
abandonando Portugal ainda muito jovem para se tornar seringueiro no Brasil, não
se valeu dela para fazer literatura, pois julgava que era mais relevante construir um
palco com aqueles cuja própria existência os transformou em seres animalizados,
utópicos da esperança de igualdade social, espoliados pelas relações de trabalho
escravizadoras. Criou a literatura dos preservadores do instinto supremo da
sobrevivência, a qual conduz o homem a um nada insignificante para o mundo
daqueles para quem o dinheiro e a posição social constituem as regras da própria
existência. Criou uma literatura de gente simples, ou seja, daqueles para quem o
instinto supremo era a própria razão da dicotomia ser/estar no mundo.
Produzir uma literatura sobre os pobres é uma coisa. Erigir uma literatura em
que os pobres revelam a sua força de manterem-se firmes no propósito de sua
218
preservação, da tomada de consciência frente ao que se lhes impõe, da necessária
presciência de se unir, driblando as armadilhas de um sistema que os massifica e os
transforma a todo o momento, é outra coisa. É uma literatura em que se mede força
contra o tempo, contra o mundo, contra a dilaceração do homem pelo homem. Sim,
é uma literatura de combate. Não porque ostente a bandeira dos contendores
políticos de carteirinha assinada. Não porque põe na testa de quem lê a marca do
posicionamento engajado, de uma idéia que se perde no halo dos entraves
ideológicos eloqüentes. quase noventa anos, a obra de Ferreira de Castro busca
estar viva, seja porque alguém, em alguma parte do globo, valendo-se de uma das
inúmeras traduções de A Selva, de Emigrantes, de Instinto Supremo, de
Eternidade, de A e a Neve ou Terra Fria, assim como s, manifesta simpatia
com o homem feito personagem, elemento narrativo, que, de o vivo e
tridimensional, se assemelha ao nosso próprio reflexo, no espelho mais nítido que
temos em casa. Seja porque a obra do escritor português vive em cada um de nós,
na nossa necessidade de preservação, de nos irmanar com nosso próximo algo
em si instintivo, mas que os sistemas econômicos em que vivemos, ao redor do
globo, nos querem transformar em peças de engrenagem.
Poucos conseguiram traduzir vivamente a existência do homem no mundo
sem se utilizar de um atavio pitoresco, para não dizer desumanizado ou falto de
humanidade. Poder-se-ia dizer que Ferreira de Castro constrói romances de
formação ao revés. A mudança que empreendem as personagens o se trata de
perceberem que devem crescer financeiramente, lutando contra tudo e contra todos.
Ao contrário, no mesmo tempo em que se narra a derrocada fatal dos pobres no
mundo, revela-se o quão poderosos vão se tornando na sua inata capacidade de
manifestar empatia pelo outro: como Alberto com os nordestinos em A Selva, como
Manuel da Bouça com os viajores do mundo, em Emigrantes, ou mesmo em A e
a Neve, em que se mostra condescendente com a família de Horácio; como
Leonardo, defendendo a mulher que o havia traído e criando um filho que não era
seu, numa terra imprópria à sobrevivência do homem, em Terra Fria; como Curt
Nimuendaju, o marechal Cândido Rondon e seus acólitos, defendendo os índios dos
predadores brancos em O Instinto Supremo.
Todos homens simples, feitos personagens representativas daqueles que
deambulam de espaço em espaço, sobrevivendo, impondo-se sem armas contra um
219
sistema opressivo; lutando para não se tornarem peças de engrenagem das
máquinas dos sistemas econômicos ávidos por dinheiro e mais dinheiro.
Abrir um romance de Ferreira de Castro é abrir o palco do mundo, do mundo
dos desvalidos, dos detratados e tamm dos detratores, do homem algoz do
próprio homem, dos espaços sufocantes, impondo-nos que sobrevivamos. Abrir um
romance de Ferreira de Castro é ter a noção de que a terra e seus poderes telúricos
são tão mais antigos do que o homem e conservam, nos milênios de existência que
carrega consigo, muito mais força e muitos mais mistérios intransponíveis.
Aos poucos se tem a certeza de que este mundo, ali esboçado nos romances
de Ferreira de Castro, malgrado parecer o distante da nossa escrivaninha, como
certa vez afirmou Mário de Andrade, está à nossa volta, nos cerca e nos consome,
constituindo-se em nosso entorno, espaço imponderável por onde caminhamos e
nos relacionamos a terra é a mesma, a cor e a estrutura das edificações pode
diferir, no mais é o mesmo mundo, são os mesmos homens que deambulam de um
lugar para o outro, também presos a um sistema avassalador, do qual tentam fugir
incansavelmente, num esforço de Sísifo.
Compreender o outro e ter a necessária certeza de que são nossos
semelhantes, nossos irmãos, malgrado utilizem-se de uma língua distinta da nossa,
venham de um lugar distante do nosso, tenham a cor da pele diferente da nossa e
cultivem costumes diferentes dos nossos, foi tarefa de Ferreira de Castro, como
escritor de obras literárias de teor universal.
O escritor e amigo, Urbano Tavares Rodrigues, o chamou, certa vez, de o
apátrida universalista. O tom seco da expressão semelha ofensa, mas, no
significado mais aparente, mais rente, mais telúrico, expressam os mais coerentes
predicativos que se poderiam aderir ao espírito grandioso de Ferreira de Castro, cuja
obra é a tradução inalienável do poder de significação da literatura em alcançar
substratos tão recônditos da alma humana, como a capacidade de irmanar-se com
outros homens. Sem ostentar a carteira de um partido político, ostentou a idéia de
uma causa, de uma causa humana, intrínseca, independente de formação escolar,
lingüística ou cultural.
Antes de qualquer coisa, foi Ferreira de Castro um escritor humano
humanista por necessidade de causa e atrida pelo desapego espacial, não
privilegiando país nenhum, fosse Portugal, fosse Brasil, Espanha, ou outros topoi.
Os espaços, por mais misteriosos que se apresentassem (e não se esqueceu de
220
demonstrar isso em sua obra), traduzidos nas páginas de seus romances com o
mais denso realismo humanitário e com o mais acentuado tom de humanidade, são
os mesmos que nos conformam, dos quais nos valemos para viver e contra os quais
lutamos a cada dia para que não sejamos engolfados e nos tornemos párias. Com
isso, foi universalista, irmão de todas as almas que enfrentam o mundo e dele
necessitam para sobreviver apenas com as armas da compreensão mútua, da
consciência de que não existem seres humanos diferentes, mas de que todos nós
somos iguais perante o mundo caótico que nos engloba. Efetuou uma obra do
aperto de mãos candente, do olhar para o outro e se enxergar, a si mesmo, no
vislumbre refletido do espelho de nossas consciências. Efetuou a obra da mais
grandiosa saga de todos os tempos, presente nos textos dos mais afamados
literatos: a sobrevivência do homem no planeta.
Foi à luz da Imagologia que pudemos perceber a importância da obra de
Ferreira de Castro. A despeito dos biógrafos que, não raras vezes, intentam
aproximá-lo de um partidarismo político, foi autor para quem o trabalho literário com
o tema das causas sociais que perseguiu, como humanista, ultrapassou os limites
ideológicos, para conferir importância aos atributos literários que utiliza de modo
lapidar.
A Imagologia nos fez ir ao fundo dos construtos literários de Ferreira de
Castro, nos fez atentar para a construção de um aparato humano do qual se valeu
sempre em sua práxis, nos fez perceber as metáforas, os mbolos e as inúmeras
imagens, de brasileiros, de portugueses e de outros estrangeiros, de costumes
diferentes e de almas semelhantes. A Imagologia nos fez compreender, ainda, o que
Ferreira de Castro compreendia, mais de oitenta anos, e que muitos, que
destronam sua obra, ainda não tiveram bem alicerçado em seus conceitos: a
indiscutível importância da igualdade entre os homens.
Representar essa grandiosidade telúrica e essa gana de permanecer vivo
diante dos destroços de um mundo caótico permitiu ao sensitivo escritor de Ossela
criar imagens que traduzissem, de fato, suas pretensões.
Não foi mais condescendente com sua terra do que com o Brasil, visto que
não buscava diferenciá-los como nações, mas, bem ao contrário, aproximá-los da
mesma conjuntura representativa as duas faces de uma mesma moeda, espaços
constituídos por ricos e por pobres, espoliadores e espoliados. Nesse esto, foi
Ferreira de Castro um apátrida, um apaixonado pelo mundo e pelo homem. Valendo-
221
se da literatura e da sua capacidade de representar o outro e a si mesmo para
aclarar aos outros aquilo que tinha para si como água de fonte, a importância da
coligação dos indivíduos, independente de sua riqueza ou de sua pobreza.
É nesses termos que a obra de Ferreira de Castro, como a de John
Steinbeck, de Ignazio Silone, de Alves Redol, de Graciliano Ramos, de José Lins do
Rego e de tantos outros, nos cativam quando nos revelamos preparados para nos
conhecermos como humanos. Como Ferreira de Castro, esses escritores nos fazem
ter em mente a mais característica das preocupações literárias, a de que a literatura
é produto humano e é com humanos que ela se constrói e permanece, quebrando
as barreiras do próprio tempo.
“Ás vezes parece-nos surpreender, nessa demorada
metamorfose, algo da personalidade remota de todos nós,
como se antiqüíssima reminiscência faiscasse, de bito,
em sombrio recanto do nosso espírito. Dir-se-á que
encontramos, nesses homens, farrapos da nossa vida de
outrora, farrapos que foram abandonados ao longo da
intérmina jornada, de geração para geração, de século para
século, porque todos nós, um dia, teríamos sido assim. E
surge, então, como que um sentimento de pretérita
fraternidade, que se projeta no presente, abrindo-se em
compreensão e amor.
FERREIRA DE CASTRO
222
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