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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – PROGRAMA DE MESTRADO
Affonso Ghizzo Neto
Corrupção, Estado Democrático de Direito e Educação
Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em
Direito e aprovada em sua forma final pela coordenação do Curso de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área
Filosofia e Teoria do Direito.
Banca Examinadora:
__________________________________________________________________
Presidente: Professor Doutor Sérgio de Urquhart Cademartori (UFSC)
__________________________________________________________________
Membro: Professor Doutor Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)
__________________________________________________________________
Membro: Professor Doutor Alexandre Morais da Rosa (UNIVALI)
__________________________________________________________________
Coordenador: Professor Doutor Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)
Florianópolis, 21 de outubro de 2008.
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2
O ANALFABETO POLÍTICO
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo
de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do
sapato e do remédio; depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito
dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua
ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o
pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra,
corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.
(Bertold Brecht)
DEDICATÓRIA MUITO IMPORTANTE
Aos meus eternos amores Roberta, Luísa e Eduardo, sem mais palavras...
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3
CONSCIÊNCIA, EDUCAÇÃO E REFLEXÃO
A sociedade não pode mais esperar. É exatamente a consciência
individual que possibilita a igualdade e o respeito universal entre
os povos e as pessoas. Somente através de um agir consciente,
conquistado com a educação instrumental libertária e
responsável –, é que se poderá alcançar a reflexão necessária à
compreensão da gravidade das conseqüências do fenômeno da
corrupção.
AGRADECIMENTOS POSSÍVEIS
A Deus, caso ele exista, e deve existir mesmo...
Ao meu pai Herculano Martinho, em sua memória e pelo exemplo de ser querido.
À minha mãe Maria Helena, pela luta e pela coragem, e pelos princípios que ajudaram a
formatar uma trajetória de vida, muito identificada no presente trabalho.
Às minhas irmãs Alice a Maria de Lourdes, com saudades dos tempos antigos.
Aos meus sogros Mário e Cláudia pelo humanismo e apoio incondicional.
Ao Professor Doutor e amigo Sérgio Cademartori, pela orientação objetiva e determinante.
À Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC e a todos os todos os
professores e servidores envolvidos, meu sincero agradecimento.
Aos meus irmãos escolhidos em vida Andrey Cunha Amorim, Fabiano Henrique Garcia,
Alexandre Morais da Rosa, Fabrício José Cavalcanti, Aderson Flores Filho.
Aos amigos Polli, Jackson, Gercino, Rui, Leonardo, Gustavo, Fernando, Thais, Sérgio, Milani,
Geovani, Assis, Nazareno, Daniel, Lúcio, Benhur, Álvaro, Marcelo, Rafael, Francisco, Pedro,
Vinícius, Genivaldo, Rose, Pedro, Julio, Paulo, Celso, Ângela, Luis, Mário, Adriano, Eduardo,
Ricardo, Fabiano, Moacir, Fernando, Fabrício, Alfredo.
Um agradecimento especial pela ajuda e colaboração ao André, Eduardo, Dener, Rafael, Elisa,
Grasiela, Wanessa.
4
RESUMO
O trabalho analisa o fenômeno da corrupção e suas conseqüências nefastas para o Estado
Democrático de Direito. Para tanto, se orienta a partir da compreensão histórica da cultura
patrimonialista brasileira, entendida como espécie de dominação tradicional, sua origem e
desenvolvimento, culminando com a corrupção institucionalizada, visivelmente entranhada nas
mais profundas vísceras da índole do homem brasileiro. Identifica, na concepção garantista,
como o Estado de Direito pode representar um imprescindível e decisivo instrumento no
combate à corrupção e, conseqüentemente, na consolidação dos direitos reconhecidos como
fundamentais, a partir da operatividade do princípio constitucional da moralidade
administrativa, autêntico direito e garantia fundamental dos cidadãos, enquanto bússola
orientadora das atividades públicas. Reconhece na instituição do Ministério Público um
instrumento constitucional eficiente no combate à corrupção e na realização dos direitos
fundamentais, valendo-se dos mecanismos constitucionais para enfrentar efetivamente a macro-
criminalidade, identificando, investigando e buscando a efetiva punição de corruptos e de
corruptores comprovadamente responsáveis. Paralelamente, descobre, na atuação preventiva e
extrajudicial do Parquet, um instrumento prioritário e eficiente no combate à corrupção,
marcado pela construção de um processo educativo de formação de cidadãos a partir da
consciência crítica e da valoração dos direitos fundamentais. Além disso, demonstra a
importância de resgatar, a partir da educação, como instrumento de conscientização para a
democracia, valores éticos e morais universais. Constata, todavia, que o sucesso dessa missão
depende decisivamente da participação social e da formação de seres pensantes: críticos e
reflexivos. assim será possível estruturar as bases necessárias para a primeira conquista do
Estado Democrático de Direito, de viés garantista e constitucional, onde os direitos
fundamentais não sejam apenas supostas pretensões.
Palavras-chave: Corrupção; Estado Democrático de Direito; Estado Patrimonial; Garantismo
Jurídico; Ministério Público; Moralidade Administrativa; Educação.
5
ABSTRACT
This work analyses the corruption phenomenon and its bad consequences for Democratic State
Law. Taking it into account, it is first based on the historic comprehension of the patrimonial
Brazilian culture, understood as a kind of traditional domination , its origin and development,
ending with the institutional corruption, visibly inside in the deepest entrails of Brazilian people
nature. It identifies, in a secure conception how the Law State can represent an indispensable
and decisive tool in combat to corruption and, consequently in the consolidation of
acknowledged rights as fundamental, from the operation of constitutional principle of
administrative ethics, authentic law and fundamental guarantee of citizens, while a compass
guide of public activities. It recognizes in Public Ministry Institute a constitutional and efficient
tool for corruption combat and in the achievement of fundamental rights, considering the
constitutional mechanisms to face effectively the great criminality, identifying, investigating
and searching for effective punishment to corrupts and corrupters, really responsible. Similarly,
it discovers, in a preventive procedure and outside for the law of Parquet, a priority and efficient
tool to combat corruption, marked by the construction of an educational process of improvement
of citizens from critical consciousness and of the value of basic rights. Besides, it shows the
importance of rescue, from the education, as a tool of consciousness to democracy, ethic ,moral
and universal values. It confirms, however, that the success of this mission depends decisively
on social participation and improvement of thinking people: critics and reflexives. Just this way
it will be possible to structure the necessary basis for the first conquest of Democratic State of
Law, with a supporter and constitutional side, where the fundamental rights aren´t just supposed
pretensions.
Keywords: Corruption; Democratic State of Law; Patrimonial State; Juridical Guarantee; Public
Ministry; Administrative Morality; Education.
6
SUMÁRIO...................................................................................................................................06
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................09
CAPÍTULO I: CULTURA PATRIMONIALISTA E CORRUPÇÃO..................................13
1.1. Dominação tradicional e patrimonialismo..........................................................................13
1.1.1. A dominação de poder em Weber..................................................................................15
1.1.2. A dominação tradicional patrimonial............................................................................20
1.2. Origem e desenvolvimento da cultura política nacional.....................................................28
1.2.1. A formação do Estado patrimonial português...............................................................30
1.2.2. A invenção do Brasil: corruptos e corruptores..............................................................48
1.3. A corrupção institucionalizada............................................................................................99
1.3.1. Cultura brasileira da corrupção....................................................................................104
1.3.1.1. “Você sabe com quem está falando?” ...................................................................105
1.3.2. Estatísticas da corrupção no Brasil..............................................................................107
1.3.2.1. Pesquisa “Os Brasileiros e a Corrupção” (Vox Populi/UFMG) ............................107
1.3.2.2. Pesquisa Social Brasileira (PESB): o “jeitinho brasileiro” ...................................111
1.3.2.3. Pesquisa “Escolas corruptas, universidades corruptas: O que pode ser feito”
(UNESCO/IIPE) .................................................................................................................121
1.3.2.4. Obra “A Economia Política da Corrupção no Brasil” (Senac) ..............................127
1.3.2.5. Trabalho “Fraude e corrupção no Brasil: a perspectiva do setor privado” (Kroll)128
1.3.2.6. Pesquisa sobre a compra de votos (IBOPE/TB/UNACON)...................................129
1.3.2.7. Pesquisa sobre a corrupção nacional (IBOPE/TB/IPM)........................................130
1.3.2.8. Índice de Percepção de Corrupção (TI)..................................................................130
1.3.2.9. Relatório Anual de Governança do Banco Mundial (Bird)....................................131
CAPÍTULO II: O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DEFESA DA
MORALIDADE ADMINISTRATIVA...................................................................................137
2.1. O Estado de Direito e a perspectiva garantista..................................................................137
7
2.1.1. O Estado instrumental de Ferrajoli: O Ponto de Vista Externo...................................142
2.1.2. Estado garantista versus Estado patrimonial...............................................................149
2.1.2.1. Da Concepção de Estado........................................................................................149
2.1.2.2. Da Legitimidade do Estado....................................................................................150
2.1.2.3. Do Sistema Normativo...........................................................................................151
2.1.2.4. Da Soberania Estatal...............................................................................................151
2.1.2.5. Do Estado de Impunidade......................................................................................153
2.1.2.6. Estado Social e Estado Assistencialista..................................................................153
2.2. Inserção constitucional do princípio da moralidade administrativa..................................157
2.2.1. Interesse público na concepção garantista...................................................................160
2.2.2. Sobre os princípios.......................................................................................................165
2.2.3. Princípio da Moralidade Administrativa......................................................................170
2.2.3.1. Inserção constitucional...........................................................................................179
2.2.3.1.1. Significado........................................................................................................183
2.2.3.1.2. Conseqüências...................................................................................................185
2.3. A Moralidade Administrativa e a jurisprudência nacional...............................................190
2.3.1. O princípio da moralidade administrativa no STF.......................................................192
2.3.2. O princípio da moralidade administrativa no STJ.......................................................197
2.3.3. O princípio da moralidade administrativa no TJSC.....................................................200
2.3.4. O princípio da moralidade administrativa e o nepotismo............................................205
2.3.4.1. O nepotismo e suas raízes patrimoniais..................................................................207
2.3.4.2. O programa de combate ao nepotismo em Santa Catarina.....................................211
2.3.4.3. O nepotismo e a Súmula Vinculante nº 13 do STF................................................214
CAPÍTULO III: INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS NO COMBATE À
CORRUPÇÃO..........................................................................................................................220
3.1. Ministério Público e combate à corrupção........................................................................220
3.2.1. O Ministério Público e o Estado Democrático de Direito...........................................224
3.1.2. Órgão primordial de combate à corrupção..................................................................233
3.2. O combate repressivo aos atos de corrupção e à impunidade...........................................237
8
3.2.1. A impunidade como estímulo à corrupção..................................................................238
3.2.2. A investigação dos atos de corrupção..........................................................................242
3.2.3. Lei de Improbidade Administrativa: Lei n° 8.429/92..................................................247
3.2.4. O instrumento da Ação Civil Pública..........................................................................251
3.3. A atuação preventiva e a educação das novas gerações....................................................255
3.3.1. Os movimentos sociais................................................................................................260
3.3.2. O projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”..................................................263
3.3.3. A educação como instrumento de conscientização para a democracia.....................267
3.3.3.1. Uma consciência universal.....................................................................................270
3.3.3.2. O processo de educação: seres pensantes...............................................................271
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................278
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................283
9
INTRODUÇÃO
O fenômeno da corrupção no Brasil e suas conseqüências nefastas para o Estado
Democrático de Direito devem ser compreendidos a partir da própria sociedade brasileira.
Diversamente de sociedades politicamente organizadas, estruturadas pela racionalização da ação
política e administrativa com mecanismos de controle eficientes e capazes de impor punição
exemplar aos infratores –, no Brasil os mecanismos legais de fiscalização e de controle não se
prestam efetivamente aos objetivos oficiais a que se destinam, servindo como mera formalidade
para justificar práticas corruptas institucionalizadas.
O entendimento da realidade nacional passa necessariamente pela compreensão das
origens da formação da ética nacional, sendo indispensável a análise das raízes mais profundas
do fenômeno da corrupção, não para compreensão, como para a solução do próprio
problema.
Movimentos sociais, revoluções deflagradas, reformas administrativas e processos
eleitorais são levados a efeito, todos sem resultados efetivos no combate ao fenômeno da
corrupção nacional, restando sólida a mentalidade e os métodos de condução da coisa pública.
Ao que parece, cada vez mais um grande volume de valores morais negativos se apresentam
modernamente, seja no trato da coisa pública, ou no da propriedade privada, adquirindo a
corrupção formas mais sofisticadas e planejadas conforme as necessidades apresentadas a cada
tempo. Como destaca Zancanaro,
Grande número de novos dirigentes políticos e muitos de seus auxiliares alheios aos
princípios éticos propalados em discurso de campanha eleitoral têm-se portado, junto aos
órgãos diretivos e às funções públicas, como se estivessem administrando seus negócios
privados.
As eventuais medidas corretivas que têm sido postas em prática pelas autoridades
judiciárias, objetivando coibir abusos, têm atingido mormente administradores e agentes da
vida pública de menor peso e importância, acarretando, com o passar do tempo, um
significativo e crescente descrédito na qualidade moral dos homens públicos e no valor das
leis e das instituições políticas. Não se percebeu ainda por parte das lideranças políticas,
supostamente saudáveis e esclarecidas e da própria sociedade como um todo, um real
interesse em instaurar mecanismos eficientes de controle da ação político-administrativa,
10
com vistas à superação do estigma da corrupção. Tais constatações favorecem à conclusão
de que o problema da corrupção no Brasil possui um caráter estrutural e não conjuntural.
Como combater, pois, uma moléstia, se percebemos apenas difusamente os seus sintomas?
Parece óbvio que atacar os efeitos da corrupção, ignorando suas raízes mais profundas, seria
o mesmo que abandonar os recursos da medicina preventiva para dedicar-se à abertura de
nosocômios. Em breve, toda sociedade estará doente.
1
A o percepção social do avesso da realidade nacional, a hipocrisia generalizada e o
desconhecimento da história e das próprias origens a invenção e a colonização do Brasil –,
ausente uma reflexão consciente do sujeito pensante, não permitem a compreensão do fenômeno
da corrupção na sua integral composição.
O estudo dos fundamentos morais da corrupção brasileira, a partir do retorno à espinha
dorsal da cultura política tradicional lusitana, parte do pressuposto de que nela se encontram as
raízes dos valores negativos agregados à cultura nacional.
Os valores incorporados ao caráter dos aventureiros e colonizadores portugueses foram,
sem dúvida, transportados no Brasil, encontrando aqui um terreno fértil para reprodução de
hábitos individualistas, encarnados no rei e seus representantes, identificados, em resumo, com a
aversão ao trabalho sistemático, o gosto pela luxúria, o desejo intenso pelo desfrute dos bens, a
degradação dos costumes e a impunidade dos crimes. Tais valores acabaram por reproduzir o
caminho medular da tortuosa ética que tem se cristalizado até os tempos de hoje na atividade
pública brasileira.
A corrupção nacional é decorrência da moral predatória caracteristicamente dominante
no Estado patrimonial, que, conscientemente ou não, formatou um conjunto de padrões
sóciopolíticos de comportamento ético adverso às formas racionais mais modernas de trato da
res pública. Comportamentos, hábitos e costumes que restaram cristalizados na mentalidade do
homem português, orientada pelo pouco apego à lei, o uso pessoal do erário, a valorização da
ineficiência, a aversão ao trabalho produtivo, o gosto pela ociosidade, a falta de regramento e
disciplina, e a banalização da corrupção e da impunidade.
1
ZANCANARO, Antonio Frederico. A corrupção político-administrativa no brasil. São Paulo: Editora
Acadêmica, 1994, p.8.
11
Pode-se afirmar com acerto que o desenvolvimento da corrupção brasileira é decorrência
da moral predatória que se conformou nos tempos das aventuras ultramarinas, conseqüência
natural da reprodução no Brasil dos mesmos padrões morais que se verificavam na Metrópole,
aliado a outras circunstâncias potenciais, como a grandeza do território nacional,a difícil
situação geográfica, a lentidão das comunicações e a falta de controle político, financeiro e
jurídico por parte do Reino de Portugal. A situação conspirava para fixação e fermentação dos
valores negativos sociais constatados na cultura de nossos colonizadores.
Esse quadro, dramático e desolador, propiciou a edificação de novas artimanhas e
criativas técnicas destinadas a burlar o ordenamento legal em vigor. A arrecadação do erário, os
crimes, as fraudes, os privilégios, a utilização do público como privado, enfim, desvirtuamentos
diversos foram banalizados na prática cotidiana, no inconsciente coletivo e na formação da
sociedade brasileira.
Com a invenção do Brasil, de corruptos e de corruptores, os interesses individuais
dominantes sobrepuseram-se à ordem jurídica. O embrião da sociedade nacional, portanto, foi
impedido de conhecer o desenvolvimento de padrões sociais de comportamento ético,
estimulado a confundir o público com o privado, a reconhecer no ordenamento normativo um
instrumento de manipulação do poder, e a comprovar na banalização da impunidade o proveito
da corrupção, já institucionalizada.
Nesse contexto, cumpre verificar se a partir da Teoria Geral do Garantismo Jurídico, de
Ferrajoli
2
, será possível combater eficientemente o fenômeno da corrupção e,
conseqüentemente, consolidar os direitos consagrados como fundamentais. É preciso investigar
se o garantismo, como filosofia do direito e crítica da política, pode estabelecer a preservação
dos direitos sociais, a partir da exigência de uma administração pública proba e eficiente, dando
operatividade ao princípio constitucional da moralidade administrativa.
2
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora e Revista dos Tribunais,
2002. p. 683-766.
12
Verificaremos se o princípio da moralidade administrativa, inserido expressamente no
ordenamento jurídico-constitucional pátrio, pode ser considerado (ou não) um autêntico direito e
garantia fundamental dos cidadãos, ou, dito de outra forma, uma bússola orientadora às
atividades desenvolvidas junto à administração pública sempre no interesse social e coletivo.
No mesmo sentido, será objeto de consideração a instituição do Ministério Público,
cabendo constatar qual o papel constitucionalmente reservado ao Parquet no combate à
corrupção, considerando sua intervenção extrajudicial e judicial em setores áridos e
tradicionalmente alheios as suas funções originais. Antecipa-se, por pertinência, que na
concepção garantista o Ministério Público é instrumento de garantia dos direitos fundamentais.
Assim, além da atuação tradicional na área repressiva, é necessário reavaliar a
legitimidade do Ministério Público, para agir preventivamente em busca da observância do
conteúdo normativo-constitucional do princípio da moralidade administrativa, descobrindo,
também, que comando constitucional deve orientar sua relação com os Poderes constituídos e a
sociedade civil organizada.
Por fim, será analisado o papel instrumental da educação na formação de uma nova
consciência coletiva e universal, voltada contra qualquer espécie de governo déspota, arbitrário,
corrupto etc. Em resumo, o que se propõe no presente estudo muito mais do que determinar
teorias e fórmulas acabadas é instigar o espírito crítico do leitor, tendo como ponto de partida
a seguinte indagação: O que todos nós temos a ver com a corrupção?
13
CAPÍTULO I: CULTURA PATRIMONIALISTA E CORRUPÇÃO
1.1. Dominação tradicional e patrimonialismo
Os procedimentos e as rotinas burocráticas provenientes da dominação estatal
organizada são instrumentos utilizados pelo comando estamental para a continuidade e
ampliação do respectivo exercício de poder, representando o soberano, e seu quadro
administrativo, a parte identificável do aparato de dominação política do Estado patrimonial.
Conforme afirma Max Weber: O temor de perder o conjunto dessas vantagens é a razão
decisiva da solidariedade que liga o estado-maior administrativo aos detentores do poder.”
3
O Estado patrimonial português, de característica estamental, reproduziu e consolidou
nas entranhas da civilização lusitana uma gama de tendências e valores morais negativos, entre
os quais se ressalta a banalização da corrupção, seja na vida pública ou no cotidiano privado.
Na análise presente, a utilização da tipologia weberiana representa importante parâmetro
conceitual para compreensão da realidade política, econômica e social da sociedade luso-
brasileira no período colonial.
A compreensão da cultura patrimonialista e sua relação com a corrupção endêmica no
Brasil, passam pela análise da relação estável entre as forças tecnocráticas e patrimoniais. O
domínio do poder político é formado em torno dos interesses corporativos de um grupo
específico, organizado a partir de uma estrutura administrativa tradicional, patrimonialista por
natureza, responsável pelas escolhas dos sujeitos incluídos e excluídos do gozo dos privilégios
políticos, econômicos e sociais oriundos do poder.
A realidade histórica brasileira contribui para a compreensão dos motivos determinantes
da contínua e persistente debilidade institucional e as barreiras impostas ao efetivo exercício das
garantias sociais fundamentais, compatíveis com um Estado Democrático de Direito.
3
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. 4ª ed. São Paulo, Editora Cultrix, 1968. p. 59.
14
O poder político nacional patrimonial, por essência e tecnocrata por formalidade
comanda e governa as oportunidades e o próprio acesso às políticas públicas, conduzindo
grande parcela de brasileiros à exclusão, política, econômica e social, enfim, a diferentes formas
de escravidão, sendo contínua a manipulação dos instrumentos de poder, consubstanciados
através do assistencialismo, do clientelismo, do parasitismo etc.
É evidente que as relações políticas no Brasil herança do patrimonialismo português
tiveram predomínio clientelista, padronizado através de relações efetivas, pessoais, privilegiadas
e corporativistas, utilizando flexivelmente a forma jurídica como justificativa e argumentação
dos comandos de poder. Em que pese o desenvolvimento da modernidade em tempos de
globalização essa estrutura patrimonial estamental permanece intacta na sua essência,
adaptando-se continuamente conforme as exigências dos organismos internacionais e das
pressões internas.
As distribuições de privilégios positivos e negativos, conforme o padrão da clientela,
comprova a dimensão do Estado patrimonial brasileiro, que consolidou ao longo dos séculos (e
assim permanece) as relações políticas, econômicas e sociais, atingindo, evidentemente, as
políticas públicas nacionais. Os direitos sociais deixam de ser garantias constitucionais para se
transformarem em instrumentos de cooptação, de corrupção e da concessão irrestrita de
privilégios.
Essa dominação tradicional, de característica patrimonial, cria uma rede de dependência
na relação entre Estado e viventes, pautada pela subordinação de muitos e o domínio de poder
por parte de poucos, que governam e determinam o acesso às políticas públicas, o exercício de
direitos sociais, enfim, a existência do próprio cidadão. É nesse sentido que a abordagem do
domínio tradicional, ponto de análise neste item, merece a compreensão preliminar dos
elementos que estruturam a relação de poder no Estado patrimonial.
A dominação tradicional, de cunho histórico aristocrático, pode ser definida como aquela
baseada no poder do senhor soberano distante das noções provenientes das relações
15
contratuais estáveis –, determinada pela concentração de riquezas materiais, enfim, em última
análise, pelo exercício e monopólio do poder econômico, político e de autoridade. O poder
soberano exerce controle sobre todos viventes dominados através de uma sistemática
patrimonial ou patriarcal fortalecida por um pacto (in)formal de fidelidade e de intercâmbio
através de uma grande rede de cooperação privada destinada à obtenção de favores, estímulos,
privilégios e benefícios pessoais diversos.
Assim sendo, uma das reflexões que se pretende disseminar através deste ensaio gira em
torno de uma inquietante indagação: Como realizar efetivamente as garantias e os direitos
fundamentais numa estrutura de poder ainda contaminada pelo domínio tradicional
patrimonialista numa sociedade de massa exposta às influências emocionais e irracionais?
Embora desvinculada diretamente da linha de pensamento weberiana
4
, é oportuna a
compreensão inicial de alguns conceitos que muito contribuirão para a análise da cultura
patrimonialista e sua relação com o fenômeno da reprodução sistemática dos atos de corrupção
no Brasil, estes compreendidos no sentido mais amplo.
1.1.1. A dominação de poder em Weber
O conceito histórico concreto weberiano
5
, na concepção democrática a ser adotada na
presente pesquisa, embora diversa da original
6
, enriquece a compreensão das próprias garantias
4
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1, Trad. Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. Brasília, Editora UNB, 1994: Buscando compreender a sociedade moderna, sua evolução
histórica e as possibilidades de dominação política, Weber definiu padrões diversos: econômico, religioso, jurídico,
político, social, cultural. A compreensão destas estruturas de poder, por sua vez, determinou conceitos próprios
destinados à coletividade: classes, estamentos, grupos, partidos etc. (sociologia compreensiva) Weber sustenta a
tese da íntima vinculação entre capitalismo e a evolução do protestantismo religioso.
5
No entendimento de Max Weber a compreensão dos fenômenos históricos e sociais provém de uma análise
complexa (imperfeita), reflexiva e comparativa. A sociedade é resultado de diversas variáveis culturais. Segundo o
pensamento weberiano contrário ao materialismo histórico e ao dogma das relações entre as formas de produção
e de trabalho (estrutura) e as outras manifestações culturais da sociedade (superestrutura) as relações sociais
devem ser esclarecidas conforme suas configurações históricas evidentes e palpáveis.
6
A democracia na leitura weberiana é identificada através do simples exercício do sufrágio, sendo que os
vencedores das eleições, consagrados pela legitimidade soberana popular, passam a representar com autonomia
seus representados. Portanto, a vontade geral do povo e seu direito de auto-determinação eram desconsiderados no
conceito da democracia weberiana, resumindo a participação popular ao exercício do direito de voto. E isso é
desejável, segundo sustenta Max Weber, em virtude da atuação emocional e da irracionalidade das massas. A
16
inerentes ao Estado de Direito através da necessária busca da leitura comparativa da história das
sociedades, não somente porque a verdade pode ser perseguida, mas porque essa análise
confirma que os fatos sociais são uma questão de respeito à compreensão da própria história da
humanidade e, não, arbitrariamente, a simples aceitação de conceitos e de verdades absolutas
edificadas através de modelos teóricos padrões.
Na teoria weberiana, interessa-nos, particularmente, a classificação dos tipos de ações: a)
a racional, definida a partir da expectativa genérica avaliada e perseguida pelo sujeito, que pode
ser relativa aos fins (uso dos meios necessários e/ou adequados para o alcance do desiderato
inicialmente desejado) ou aos valores (orientada por princípios e convicções próprias); b) a
afetiva, determinada pela emoção imediata do vivente; c) a tradicional, baseada em hábitos,
costumes e crenças dos indivíduos. As duas últimas são caracterizadas por relações
intrapessoais, implicando obrigatoriamente a análise do convívio coletivo e comunitário, e,
portanto, da existência humana. Comunidade e sociedade coexistem e o comportamento
humano implica necessariamente uma ação com reflexo social, ou seja, conseqüências múltiplas
para todos os indívíduos relacionados em sociedade (relação social).
Conforme a metodologia weberiana, através do tipo ideal
7
ou tipo puro, pode-se
idenficar a dimensão pura e abstrata do objeto a ser analisado. A filosofia weberiana,
existencialista (neokantiana), distingue radicalmente entre fatos e valores, negando Durkheim ao
afirmar que nenhuma ciência poderá determinar a vivência humana ou a organização social e,
também, a Marx, ao sustentar que a ciência não é capaz de apontar o futuro da humanidade.
democracia weberiana contempla a utilidade das lideranças parlamentares e o comando nacional do líder
carismático soberano perante um sistema burocrático (democracia plebiscitária), o que bem demonstra sua
preocupação com a complexidade burocrática e a eventual usurpação de poder decorrente da (i)limitação desta.
7
WEBER, Max. Obra citada. 1994. p. 141: O tipo ideal (Idealtyp) é obtido através de um processo metodológico
que obtém de cada fenômeno concreto sua particularidade constante, ou seja, um “conceito histórico concreto”. A
pesquisa histórica é essencial para compreensão weberiana das sociedades, devendo ser respeitadas as
características e as especificidades de cada construção humana observada ao longo da história. Embora não
deixasse de considerar a fragilidade do conhecimento histórico, Weber propunha um método compreensivo através
da interpretação dos acontecimentos passados e seus reflexos nas sociedades contemporâneas.
17
Através da análise teórica e abstrata dos tipos ideais, edificados a partir dos casos
concretos, por meio da sistematização das diversas ações humanas exteriores é possível alcançar
um modelo padrão que possibilita a comparação das situações pelas características semelhantes
e diversas. O tipo ideal, portanto, não é um modelo ideal a ser alcançado, servindo, todavia, de
importante parâmetro para análise e comparação científica das formações sociais constatadas ao
longo da história da humanidade.
Nesse contexto, a partir da definição dos tipos ideais e dos conjuntos normativos
constituídos, o conceito de Estado, para Weber, pode ser determinado como o instrumento
legítimo de dominação humana, inclusive, mediante o uso da força e da violência física. A
autoridade do Estado deve ser respeitada a partir do reconhecimento de sua legitimidade e da
soberania do poder dominante sobre os demais viventes, a ele subordinados.
Segundo conceito weberiano, o Estado é uma comunidade humana que, dentro dos
limites de determinado território, reivindicava o monopólio do uso legítimo da violência
física.”
8
O uso da violência legalizada passa a ser determinante para sua essência política e
administrativa.
As ações políticas e administrativas se relacionam com os objetivos teóricos e práticos
da estrutura organizada de dominação do poder no sentido de continuidade e ampliação do seu
domínio. Weber distingue entre três tipos puros de dominação legítima: a dominação racional, a
dominação carismática e a dominação tradicional.
Conceitos diversos possíveis, a dominação pode ser identificada com a viabilidade da
submissão de terceiro(s) a uma espécie de comando
9
. Sua determinação, a exemplo da
classificação das ações segundo a metodologia weberiana, também é variada e complexa,
permitindo características diversas, mistas ou opostas: racionais ou emotivas, parciais ou
8
WEBER, Max. Obra citada. 1968. p. 56.
9
A disciplina weberiana é caracterizada pela constatação histórica habitual da probabilidade de obediência
automática a uma conduta socialmente determinada. A dominação surge justamente quando se constata a
necessidade de uma interferência determinante (pessoal, organizacional ou institucional) para obtenção da conduta
não realizada automática e habitualmente.
18
imparciais, subjetivas ou objetivas, instáveis ou estáveis etc. Neste contexto, a ação política teria
como finalidade a instituição e perpetuação do poder. A compreensão deste fenômeno, segundo
Max Weber, passa pela identificação, como se disse, de três espécies puras de dominação com
bases legítimas distintas.
A primeira delas, conceituada como dominação racional
10
, legal ou burocrática,
estatutária por natureza, é definida pela presença racional de regras previamente estipuladas
pelos contratantes. Portanto, sujeita o poder dominante, como os cidadãos dominados, à
observação das regras estatutárias, possibilitando o controle do poder dominante e a fiscalização
das eventuais decisões e práticas arbitrárias ou abusivas. Caracterizados pela estabilidade social,
os direitos e as obrigações podem (devem) ser, respectivamente, exercidos e cobrados,
inclusive, caso necessário, através da força física imposta por agentes do Estado. Tanto o dever
de obediência como o direito dos dominados à reclamação, são legitimados por normas
estatuídas, independente da identificação do indivíduo dominante e dos sujeitos dominados.
Aquele e estes obedecem e exercem exclusivamente às regras objetivas vigentes.
A segunda, identificada como dominação carismática
11
, revolucionária e autoritária por
característica, é estabelecida a partir da existência de um vínculo afetivo entre o líder
carismático e os demais sujeitos liderados. A submissão destes encontra sua legitimidade
precariamente no apelo do líder carismático através de uma relação pessoal de lealdade
(legitimidade utilitarista). A liderança carismática poderá ter origem na profecia, demagogia ou
10
WEBER, Max. Obra citada. 1994. p. 142: Sendo a burocracia espécie mais pura de dominação legal, a análise
weberiana entre o desenvolvimento do Estado Moderno e a evolução burocrática contemporânea, assim como a
relação do capitalismo moderno e a burocracia liberal econômica, traduz o elemento burocrático como primordial
ao exercício laboral cotidiano.
11
___. IDEM. p. 158: O dever de obediência proveniente do consentimento carismático, assim como a
subordinação imposta pela tradição, embora ainda presente nos dias de hoje, é exemplo incompatível com o Estado
de Direito e a democracia garantista.
19
idolatria
12
. A irracionalidade e a emoção são determinantes para composição do sistema de
administração carismático, inexistindo aplicação de normas estatutárias ou tradicionais.
13
Por fim, a terceira e foco importante da abordagem –, a chamada dominação
tradicional, fundamentada na crença de que o que explica a legitimidade é a tradição e os
costumes de um passado valoroso, demonstrando sua força no arbítrio pessoal do soberano. Os
súditos obedecem pelo costume e pela tradição porque sempre foi assim. A formação do quadro
administrativo respectivo ocorre através da escolha de servidores obedientes à vontade
soberana, não havendo qualquer comprometimento com normas objetivas e impessoais.
A forma de poder político oriunda da dominação tradicional tem seu fundamento na
autoridade proveniente da aceitação coletiva de determinadas tradições consagradas pelo tempo.
Weber a classifica em dois tipos principais: o exercício de poder feudal e o exercício de poder
patrimonial
14
, sendo subespécie desta o poder patriarcal.
15
O poder patrimonial tem sua formação estrutural influenciada diretamente por valores
morais e éticos historicamente reconhecidos pelas civilizações, sendo exercida em virtude da
dignidade do senhor soberano e consolidada através da tradição e da fidelidade. Pode ser
estruturada através da concessão de vantagens materiais (dominação patrimonial) ou, alternada
12
___. IDEM. p. 160: A profecia caracterizada pelo exercício de poderes sobrenaturais e de faculdades mágicas
divinas, assim como a idolatria, valorizam incondicionalmente o princípio da pessoalidade. Já a demagogia,
definida pela influência intelectual e pelo poder de comunicação, é resultado histórico da cidade-estado ocidental.
13
A dominação carismática é avessa ao conceito racional da competência, bem como à definição estamental dos
privilégios, possuindo características eminentemente pessoais e indefinidas.
14
___. IDEM. p. 155: A dominação tradicional patrimonial, ou dominação estamental, é definida por uma relativa
independência dos servidores em relação ao senhor soberano. Após a investidura na função administrativa, seja em
decorrência de articulações, por determinação do senhor soberano, ou pela obtenção de privilégios, os servidores
acabam adquirindo uma estabilidade funcional, não estando sujeitos aos arbítrios e as vontades do senhor soberano.
O exercício de suas funções ocorre com determinada parcela de autonomia, embora encontre limites dentro da
hierarquia do quadro administrativo. As relações sociais são orientadas pela tradição, pelo privilégio, pelas
relações de fidelidade patrimoniais, pelos desejos e arbítrios do senhor soberano, que divide convenientemente o
poder com esta parcela de privilegiados.
15
___. IDEM. p. 153: A dominação tradicional patriarcal é marcada por uma estrutura composta por servidores
absolutamente dependentes do senhor soberano. A legitimidade do soberano é proveniente da tradição e da
obediência histórica contínua, não existindo estatutos ou normas pré-determinadas, restando ausentes garantias e
direitos.
20
ou cumulativamente, na sua modalidade mais pura, por meios coercitivos e violentos
(dominação patriarcal).
O poder feudal
16
, por sua vez, é exercido tanto pelo soberano como pelos barões
proprietários de terras, representando estes um importante fator de delimitação e contenção das
vontades do príncipe. É assim que são definidas regras claras e objetivas, sendo a administração
pública orientada no sentido do dever e da lealdade institucionais. O direito e a justiça
fundamentam todos os procedimentos feudais, representando, do ponto de vista político, a
descentralização política, com o fortalecimento do poder local e o enfraquecimento do poder
soberano.
1.1.2. A dominação tradicional patrimonial
Tratando-se a dominação tradicional patrimonial de forma de dominação instável,
volúvel e pessoal, sem regras objetivas e determinadas, os dominados ficam sujeitos aos
desejos, simpatias e arbitrariedades do senhor soberano, devendo a este irrestrita obediência.
A estrutura administrativa tradicional é composta por dependentes, parentes, amigos e
agregados vinculados diretamente ao senhor soberano por laços pessoais e/ou de fidelidade.
Portanto, os deveres funcionais dos servidores não são definidos por regras ou competências
previamente estipuladas, mas sim pela relação pessoal dos servidores com o senhor soberano.
A análise da estrutura tradicional patrimonialista é o ponto de partida para compreensão
da formação do Estado brasileiro, uma simbiose entre o patrimonialismo português e o chamado
capitalismo moderno, adotado o último como aparência democrática superficial, continuando-se
a desenvolver práticas institucionalizadas compatíveis com o patrimonialismo e o domínio
tradicional.
16
O feudalismo despertou uma ética de dever, obediência e respeito à hierarquia social, exercendo uma importante
função educativa na estruturação sociopolítica das nações que experimentaram sua experiência.
21
O deleite e a convivência concomitante entre a estrutura patrimonial de poder e a
roupagem liberal-democrática podem ser constatados no contexto das atuais reformas
administrativas brasileiras, cujo conteúdo teoricamente atraente não obteve êxito em extinguir
práticas arcaicas, irracionais e impessoais na gestão da coisa pública.
A dominação patrimonial é o tipo de dominação tradicional na qual o príncipe estrutura
seu poder político de maneira similar ao seu poder doméstico. O modelo patriarcal de poder é o
tipo mais puro de dominação tradicional patrimonial, consistente na organização familiar, onde
o pai exerce sua autoridade sobre os membros da comunidade doméstica, presente em estreito e
forte laço de solidariedade humana entre seus componentes.
No modelo patriarcal, a autoridade é prerrogativa exclusiva do chefe do clã familiar,
determinado conforme os padrões hereditários. Sem um quadro administrativo funcional
influente na sua vontade, ou qualquer estrutura complementar, depende do respeito adquirido
pela família e da devoção filial, para exercer o poder em benefício de todos os membros da
comunidade familiar. Segundo assevera Reinhard Bendix, referido por Zancanaro:
Ao senhor patriarcal, como parece óbvio, interessa essencialmente manter esses limites
na maior imprecisão possível, mesmo na situação em que se obrigado a respeitá-los,
porque, uma vez adotada uma regulamentação formal, pode ver-se obrigado a acatar
suas regras, especialmente nas ocasiões em que mais precise da boa vontade dos seus
subordinados.
17
A dominação patrimonial, propriamente dita, se consolida em razão da força do
conformismo da imutabilidade dos acontecimentos: “Sempre foi assim, e sempre será!”. A
passividade, a impotência e a incapacidade de poder de reação, organização e mobilização
social, reforçam a crença do inevitável. O sistema patrimonial manipula o exercício do poder e
17
ZANCANARO, Antonio Frederico. A corrupção político-administrativa no brasil. São Paulo: Editora
Acadêmica, 1994, p.20. apud BENDIX, Reinhard. Max weber: um perfil intelectual. 4ª ed. Buenos Aires.
Amorrortu, 1960. p. 315.
22
delimita as possibilidades sociais porque tradicionalmente sempre ocorreu desta maneira. As
relações sociais são estabelecidas pela obediência ao Pai-Maior, consagradas pela vivência
pessoal, pelos laços de intimidade, pela dependência e pelo dever de fidelidade, enfim, pela
tradição.
O Estado patrimonial, portanto, pode ser definido como aquele tipo de dominação
política no qual se destacam os padrões domésticos de estruturação e de administração dos
negócios do Estado. Repisa-se no poder estatal a fórmula da política e da administração
familiar, ensejando, todavia, a implementação de um quadro administrativo considerável. Isso
ocorre em virtude das necessidades cada vez maiores da comunidade familiar do príncipe.
Para garantir a satisfação contínua de seus desejos, o soberano comandava seus
subordinados como se fossem servidores pessoais, exercendo sua autoridade como senhor
absoluto e proprietário de tudo e de todos, semelhante ao exercício de poder do domínio
patriarcal sobre o grupo familiar.
O Estado patrimonial, como transparece evidente, representa verdadeiro domínio
particular do soberano, uma continuidade da sua Coroa, de sua família e de seu patrimônio
pessoal. O controle sobre os grupos ou clãs regionais era levado a efeito através das seguintes
medidas: inspeção local, delegação de funções fiscais, jurídicas e administrativas, bem como
convocação dos funcionários para prestação de contas regulares. O Estado patrimonial funda-se,
portanto, numa administração doméstica de governo.
A dominação patrimonial é manipulada através de estratégias metodicamente
arquitetadas para perpetuação do poder, com distribuição de privilégios, favores, regalias e
benefícios diversos aos súditos mais merecedores. Definido pela concentração e continuidade do
exercício do poder soberano, o Estado patrimonial supervaloriza as estruturas administrativas
que melhor podem beneficiar à condução dos instrumentos de manutenção do poder.
Quando os métodos e as estruturas políticas do estilo de dominação patriarcal
ultrapassam os limites do grupo familiar, abarcando também outras organizações sociais, o
23
Estado patrimonial encontra sua plenitude, conservando seu caráter administrativo irracional,
seu exercício particularizado e toda sua pessoalidade, com apoio nos costumes e na tradição.
Transparece evidente o caráter absolutamente aleatório e casuístico da estruturação política do
Estado Patrimonial. Bendix, mencionado novamente por Zancanaro, acrescenta:
O soberano encara toda a administração política como um assunto próprio e,
analogamente, explora seu poder político como útil complemento de sua propriedade
privada. Confere poderes a seus funcionários, de caso a caso, escolhendo-os e
atribuindo-lhes tarefas específicas, de acordo com a confiança que pessoalmente lhe
merecem e sem estabelecer entre eles uma divisão orgânica de trabalho (...) E os
funcionários, por sua vez, encaram sua tarefa administrativa como um serviço pessoal
que prestam ao monarca por dever de obediência e respeito. Seus ‘direitos’ são, na
realidade, privilégios que o monarca outorga ou suspende ao seu talante e
inadvertidamente pode esboçar-se uma delimitação de funções administrativas, devida à
competência econômica e pessoal entre os funcionários.
18
A conceituação resumida de administração pública no sentido de oposição à
administração privada, com existência a partir do próprio Estado, não traduz o sentido mais
adequado de administração pública. O conceito mais atraente de administração pública para o
presente trabalho é aquele em que esta representa ou deveria representar uma série de
atividades burocráticas desempenhas e atribuídas ao Estado. Joseph La Palombara a conceitua
como sendo todas aquelas atividades diretivas centradas organizacionalmente e ligadas à
implementação das políticas públicas e/ou à consecução de metas públicas.”
19
O Estado
buscará realizar sua missão através do corpo administrativo, composto pelo sistema de órgãos,
departamentos e funcionários públicos.
18
ZANCANARO, Antonio Frederico. A corrupção político-administrativa no brasil. São Paulo: Editora
Acadêmica, 1994, p.25. apud BENDIX, Reinhard. Max weber: um perfil intelectual. 4ª ed. Buenos Aires.
Amorrortu, 1960. p. 326.
19
PALOMBARA, Joseph La. A política no interior das nações. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984, p.
368.
24
Assim, não fugindo da conceituação genérica acima abordada, pode-se afirmar
superficialmente que a administração pública patrimonial é implementada da mesma maneira
como em qualquer outro Estado. Todavia, com uma importante e decisiva singularidade. A
centralização, o controle e a própria existência da administração pública tem sua razão de ser no
soberano e naqueles que o circundam. A formação de uma complexa estrutura administrativa
objetiva, portanto, a satisfação material e o gozo de privilégios e favores ao príncipe e seu
séqüito. É o que Weber identifica como abastecimento litúrgico, ou seja, a criação de um
sistema de arrecadação de recursos para a sustentação da empresa real, para a manutenção da
estrutura militar da Coroa e dos privilégios individuais e pessoais do rei e seus puxa-sacos.
Como se vê, uma verdadeira profusão entre a coisa pública e a privada. Para Zancanaro,
(...) as funções destinadas à administração do patrimônio pessoal do soberano misturam-se
àquelas da atividade pública. A indistinção entre o patrimônio público (da sociedade) e o
privado (do soberano) induz à constituição de um etos administrativo de igual teor: dado a
confundir o público com o privado.
E continua o autor:
Aquele imenso rol de funcionários consegue, aos poucos, ‘estruturar-se’ numa verdadeira
corporação, com ‘espírito próprio’, apropriando-se de prerrogativas de mando, seguindo o
exemplo e os procedimentos do soberano. A dominação que se origina dessa apropriação de
prerrogativas de poder, Weber a denominou de ‘dominação estatal’.
(...)
Essa forma específica de organização reflete, segundo o autor, a apropriação
monopolizadora dos cargos e atribuições, marcada no Ocidente, por uma forte tendência do
grupo palaciano de forçar determinadas indicações, quer a nomeação exclusiva para o
cargo, quer a de parentes, amigos e apaniguados.
20
A formação do monopólio dos cargos públicos, ainda hoje tão evidente no Brasil,
determina desdobramentos incômodos, ineficientes e imorais, como criação de novas funções e
atividades públicas para satisfação e acomodação pessoal dos privilegiados, situação esta que
determina o esgotamento da estrutura administrativa.
20
ZANCANARO, Obra citada. p.27.
25
Como dono da coisa pública, de cargos, prerrogativas e funções, o soberano perpetua sua
estrutura de poder através da indicação de súditos fiéis, compondo a organização do Estado
patrimonial (e burocrático) de estamento, numa verdadeira simbiose entre as esferas pública e
privada. Os bens pessoais do príncipe se confundem com o patrimônio público, determinando a
utilização do poder político como uma prerrogativa pessoal e não funcional.
Sem a previsão de limites indicados, salvo algumas orientações consolidadas pela
tradição histórica, o soberano pode ser qualquer dificuldade manipular a distribuição e ocupação
dos cargos públicos. Conseqüência lógica, o desempenho das funções administrativas torna-se
instável, inseguro e incerto, mutável conforme o “humor” do servidor ocupante do respectivo
cargo. Carece a administração patrimonial de um estatuto objetivo que regulamente e estipule as
regras e atribuições públicas, como ocorre na administração burocrática racional.
Como pode ser observado, conseqüência natural desse processo ilimitado de
apropriação, a organização política patrimonial não adota critérios e conceitos modernos e
atraentes de “competência”, “legitimidade”, “autoridade” e “magistratura”. A simbiose entre as
atividades públicas e privadas, entre os bens públicos e privados, enfim, entre o governo e o
príncipe, ganha cores próprias, aparentando contraditoriamente uma unidade inconfundível.
O fundamental para o príncipe é a perpetuação de seu poder político, valendo-se, para
tanto, de todos os instrumentos necessários e possíveis, como o tráfico de influência na
manipulação da coisa pública em benefício próprio e a distribuição de cargos, benefícios,
isenções e mordomias diversas. Nesse sentido, a estrutura estamental forma uma casta
impermeável, fechada, isolada em volta de si mesma, com o único desiderato de manutenção no
poder, com vistas ou desfrute de privilégios e vantagens econômicas, financeiras e políticas.
O soberano passa a ser o exemplo a ser seguido e alcançado por todos os súditos, Seu
proceder ético contamina toda a nação. Suas manipulações e artimanhas para manutenção do
poder são reproduzidas quase que automaticamente pelo estamento burocrático através do
tráfico de influência e a defesa dos interesses comuns. Isso tudo tem conduzido o Estado
26
patrimonial estamental à formatação de uma ética política voltada às mais criativas e
surpreendentes formas de corrupção.
A ética do Estado patrimonial é direcionada à manutenção estável e conservadora da
estrutura privatista e centralizadora de poder, o que importa em resistência aos processos
modernizadores, sendo que eventuais renovações, quando possíveis, são lentas e adaptadas à
organização patrimonial, situação sem a qual são consideradas como atentados à tradição e aos
bons costumes, sujeitando, muitas vezes, seus líderes a perseguições políticas e punições
injustas.
O soberano, intencionalmente, desenvolve entre seus súditos a capacidade restrita de
obediência inquestionável aos comandos do rei, atrofiando o senso crítico e imaginário dos
indivíduos, atingindo diretamente o exercício político e o sentido das liberdades sociais. A
mobilização social, pois, é incompatível com a dominação tradicional patrimonial, dedicada
exclusivamente à preservação do poder através da submissão e do estímulo à fidelidade por
parte dos súditos. Naturalmente, o processo educativo para formação de indivíduos críticos e
conscientes não interessa ao Estado patrimonial, que reforça sua ética através da ignorância
popular ou, quando muito, através de uma educação direcionada unicamente ao serviço
burocrático. Isso tudo acaba por consolidar uma ética corporativista estamental baseada numa
educação negativa impregnada de vícios burocráticos e de pobres valores sociais.
O Estado patrimonial não utiliza em seus negócios regras objetivas e pré-determinadas,
desenvolvendo livremente uma manipulação pedagógica sobre a sociedade dominada. Mentes
humanas são conduzidas à limitação do egoísmo através de um estilo de vida decadente e
vicioso. Não por acaso, a corrupção é conseqüência íntima desse processo predatório, sendo um
dos seus resultados mais freqüentes. Estado patrimonial é sinônimo de governo corrupto. É
evidente que a corrupção pode se fazer presente em outras formas de dominação de poder,
todavia, nestas os mecanismos de prevenção, controle e identificação de atos de corrupção são
efetivamente postos a serviço da coletividade para a punição dos agentes ímprobos.
Diversamente, no Estado patrimonial, quando formalmente existente, todo instrumento de
controle e repressão à corrupção representa mera encenação teatral.
27
A origem da burocracia formal brasileira está no capitalismo burocrático português,
destituído do conceito de competência, razão e impessoalidade, restando fortalecidas as relações
do corpo administrativo na confiabilidade pessoal do servidor público, pouco ou nada
representando os deveres funcionais de disciplina, eficiência e moralidade administrativa.
Como referido alhures, a organização da máquina administrativa patrimonial se define a
partir de uma estrutura similar ao poder familiar ou doméstico tradicional, sendo o domínio e o
poder político exercido pelo Estado sobre os homens e as coisas. O poder do Estado patrimonial
depende da consideração da legitimidade de poder, do prestígio social do soberano e da eficácia
da estrutura de governo, estando vinculado às relações pessoais e ao dever de obediência.
O dever de fidelidade ao cargo, por parte do servidor público, não é objetivo perante
certas obrigações funcionais previamente definidas, mas, sim, uma fidelidade pessoal do
indivíduo para com o seu padrinho político, devendo obediência, respeito, agradecimento e
devoção. Dessa maneira, o cargo e o exercício da função pública estão relacionados aos
personagens do grande enredo: os servidores públicos escolhidos e os donos do poder.
Assim, os indivíduos que servem ao chefe de governo não são servidores públicos na sua
essência, mas sujeitos beneficiados, escolhidos entre os componentes do grupo de
relacionamento do donatário político. Não é difícil compreender o porquê da indefinição dos
limites entre o setor público e a atividade privada, não havendo diferenças relevantes entre os
desejos pessoais do administrador público e os interesses comuns destinados à sociedade, numa
verdadeira confusão entre a coisa pública e o patrimônio alheio.
Ressalte-se, portanto, que para a estruturação da administração patrimonial, as noções de
capacidade, competência, especialização e eficiência administrativa, são irrelevantes para
determinação dos servidores que comporão o quadro funcional. A confiança pessoal do chefe
acaba sendo o critério decisivo para a indicação dos servidores escolhidos.
28
Certo é que a organização política patrimonial não conhece os conceitos de magistratura
e de soberania popular, no sentido moderno dos signos. O patrimônio público não é de ninguém,
sendo facilmente confundido com os bens privados. A arbitrariedade é característica comum às
tomadas de decisões no Estado patrimonial. A observância indistinta (impessoal) e objetiva de
regras estatutárias, previamente estipuladas, é incompatível com o desenvolvimento da estrutura
patrimonial. Somente os requisitos pessoais são valorizados nas relações entre Estado e seus
cidadãos-súditos, não havendo terreno fértil para o desenvolvimento efetivo e material dos
princípios universais do Estado Democrático de Direito, sendo mera ficção a reserva
constitucional, os direitos sociais, as garantias fundamentais, ou a educação de sujeitos críticos
pensantes. A apropriação, o assalto, o descarne, não foi na coisa pública, mas na alma e na
auto-estima do valor e do orgulho de ser brasileiro.
Assim, como a cristalinidade da água que brota da rocha, o desenvolvimento da cultura
da corrupção no Brasil não é casual ou fenômeno moderno, passando pela compreensão do
Estado patrimonial brasileiro e suas origens históricas, especialmente pela consideração da
formação e evolução do Reino de Portugal. É o que será abordado a seguir.
1.2. Origem e desenvolvimento da cultura política nacional
A compreensão do fenômeno da corrupção endêmica no Brasil passa pelo entendimento
de suas origens, do patrimonialismo estamental e do ciclo vicioso instalado no comando estatal,
ou como diria Raymundo Faoro, na compreensão da “viagem redonda”.
21
Torna-se necessário,
portanto, a partir da linha de pensamento weberiana, aventurar-se numa pesquisa complexa,
ampla e contraditória da realidade histórica brasileira. A invenção do Brasil e suas
conseqüências históricas visíveis contemporaneamente demonstram a pertinência da análise das
raízes portuguesas na formação política nacional.
21
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. edição revisada. São
Paulo: Globo, 2001, p. 819.
29
Como reclama Sérgio Buarque de Holanda, tentar implantar a cultura européia no Brasil,
um país tão distinto, de tão vasto território é, nas origens da sociedade brasileira, um fato rico
em conseqüências, uma delas, que se destaca, é a de sermos “desterrados em nossa terra”.
22
Pode-se dizer que, uma das heranças que recebemos dessa colonização ibérica foi a
cumplicidade e indolência das instituições e costumes. Nas palavras de Holanda: À frouxidão
da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais
singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o Brasil”.
23
Heranças estruturais e morais que se frutificaram na vida dos brasileiros, como, por
exemplo, a moral fundada no desprezo ao trabalho. Portugueses e espanhóis preferiam uma
digna ociosidadeà luta pelo pão de cada dia
24
, assim como a solidariedade dos interesses,
que existe mais onde vinculação de sentimentos do que de interesses, características
reveladoras dos traços determinantes dos nossos colonizadores.
Decorridos mais de cinco séculos do descobrimento do Brasil, considerável parcela da
sociedade brasileira continua resistente ao cumprimento das leis, sempre atenta para o ganho
fácil e a vantagem milagrosa, o engodo, a fraude, a especulação, enfim, o “jeitinho” brasileiro,
instrumento maior para solução mágica – e imoral – de todos os problemas.
Como se pretende focalizar, as raízes mais profundas do “jeitinho” brasileiro encontram-
se amarradas ao proceder dos nossos inventores e colonizadores. Foi em Portugal que se
originaram as estruturas e os procedimentos basilares do proceder brasileiro dos nossos dias. O
País herdou da Metrópole o modelo de organização de Estado e, conseqüentemente, toda
decadência moral e ética do aventureiro e explorador português, marcado por um padrão social
tendencioso à corrupção. Uma ética constituída no seio do Estado patrimonial lusitano foi
transplantada para o Brasil por ocasião da invenção ultramarina.
22
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31.
23
___. IDEM. p. 32.
24
___. IDEM. p. 38.
30
1.2.1. A formação do Estado patrimonial português
Voltando os olhos para o passado, verifica-se que o reino de Portugal, por sua vez, teve
sua origem no império da guerra e na força da espada
25
. Na fonte da civilização portuguesa, um
rei, o comandante da guerra e soberano maior, lidera seu povo guerreiro em busca de conquistas
comuns. Essa singular história, como adverte Faoro, fixou o leito e a moldura das relações
políticas, das relações entre rei e os súditos
26
. O rei, soberano maior, exercia comando sobre
todo o reino, dispondo de seu patrimônio e, em especial, da terra, desejo maior de consumo,
num tempo onde a subsistência provinha essencialmente do solo. O imenso patrimônio rural e
as rendas que lhe eram provenientes, herança das conquistas do reino, era domínio próprio do
rei, havendo verdadeira confusão entre público e privado, ou seja, entre a destinação coletiva e a
pessoal do soberano. Do patrimônio do rei, maior do que o do clero ou do que o da nobreza,
provinham as rendas destinadas à manutenção de todo o reino, guerreiros, servos etc. Assim, do
comando da guerra e do domínio das terras, conjuntamente, características determinantes do
novo reino português, verifica-se a transformação do domínio na soberania. Raramente o rei
concedia terras a terceiros, ocasião em que a propriedade e o gozo da soberania era
excepcionalmente delegado. Ao rei cabia o comando; aos súditos a obediência.
Diversamente do restante da Europa, determinado o poder do indivíduo pela
concentração de riquezas patromoniais, o exercício de um cargo oficial estava diretamente
relacionado com o domínio da propriedade privilegiada. As funções públicas principais eram
exercidas pelos nobres, senhores proprietários de terras, conforme a conveniência régia, assim
como as funções judiciais e fiscais. A distribuição dos cargos, portanto, dependia diretamente da
25
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 17: Do longo predomínio da espada, marcado de cicatrizes gloriosas,
nasceu, em direção às praias do Atlântico, o reino de Portugal, filho da revolução da independência e da conquista.
‘O reino de Portugal’ dirá, com anacrônica arrogância, um escritor do século XVII ‘é tão guerreiro, que
nasceu com a espada na mão, armas lhe deram o primeiro berço, com as armas cresceu, delas vive, e vestido delas,
como o cavaleiro, há de ir para a cova no dia do juízo final.’.
26
___. IDEM. p. 18.
31
vontade real. Eram concedidos em forma de privilégios, através da distribuição de riquezas e de
poderes públicos.
Embora fosse a imunidade tributária concedida aos privilegiados escolhidos, o poder de
julgar era aplicado indistintamente a todos, considerando que, em última análise, era o poder
judicial o determinante da submissão humana. Não existindo jurisdição, não haveria como
submeter os súditos aos desejos do rei e, secundariamente, dos nobres, não havendo qualquer
dever de obediência, convertendo-se o poder soberano em pura ficção. Com a expansão da
atividade jurisdicional, o rei conquistava novos súditos, reafirmando seu domínio e soberania.
Reflexo da submissão jurisdicional real, os súditos procuravam se livrar das prerrogativas da
nobreza e do clero, num movimento convergente e de rivalidade. Receosa com a crescente
autonomia exercida pela nobreza e pelo clero – base tradicional de seu apoio –, a realeza
portuguesa recriou o instituto romano do município, deslocando seu apoio para as comunidades,
fortalecendo as existentes e instituindo novas comunas, buscando assim uma nova realidade
capaz de fortalecer seu poder político, fiscal e militar.
Nesse contexto, um pacto era reafirmado entre rei e súditos: a terra não teria outro
senhor senão o soberano. Com a nova criação e o fortalecimento de comunas (municípios) o rei,
oportunamente, impunha a necessidade de organização local de uma estrutura militar gratuita
para defesa da própria comunidade, incrementando, ainda, a arrecadação de rendas. Todavia, a
correlação entre contribuições e o tesouro régio determinou a diminuição do patrimônio móvel
do soberano. Como adverte Faoro: Por se canalizará o influxo, poderoso dentro de dois
séculos, de caráter patrimonial do Estado, indistinta a riqueza particular da pública
27
.
Presente uma nova realidade no sistema de cobrança e de arrecadação de rendas, exercido em
cada povoado, mediante pagamento de anuidade ao rei, o cargo de tabelião transformou a
economia natural em monetária. Com essa nova classe provinda da necessidade ocasional, o
soberano dividirá seus dividendos, numa disputa de pressões e influências recíprocas, aplicando
os recursos arrecadados, sem qualquer regulamentação prévia, nos gastos decorrentes da
27
___. IDEM. p. 22.
32
manutenção da realeza, assim como na execução das obras e dos serviços destinados à utilidade
genérica.
A parte fixa da arrecadação real provém, inicialmente, da propriedade fundiária através
de duas modalidades de exploração: a indireta, por meio do arrendamento temporário ou da
permanente concessão do domínio útil do solo, e a direta, por meio da prestação gratuita de
trabalho por parte dos súditos favorecidos. Como se vê, a monarquia portuguesa, nesse período,
era uma monarquia com característica predominantemente agrária, sendo o rei o grande lavrador
do país. Portanto, as rendas do soberano, em grande parte, advinham da exploração da terra.
Com a crescente cobiça real, logo o desejo do soberano se estendeu ao comércio
marítimo, representando a tutela do rei, a dependência de toda nação. Como ressalta Faoro:
São os fermentos do mercantilismo lançados em chão fértil. Dos privilégios concedidos – para
exportar e para importar não se esquecia o príncipe de arrecadar sua parte, numa
apropriação de renda que analogicamente se compara aos modernos tributos
28
. O
rompimento do privilégio da imunidade nas arrecadações não tardou a atingir também os nobres
e eclesiásticos. O quinto de guerra representava a arrecadação proveniente da taxa de 20%
(vinte por cento) sobre os bens adquiridos dos inimigos.
Representando uma verdadeira economia monetária, o rei extraía rendas da utilização de
seus bens, envolvia o patrimônio alheio, manipulava o comércio para prover a realeza,
garantindo a prevalência do poder soberano. A evolução do Estado patrimonial é conseqüência
implacável e irresistível da formação do reino português. Faoro adverte:
Um poderoso sócio, sócio e patrão, tosquia a melhor lã, submetendo o proprietário nominal
à obrigação de cuidar da ovelha. A nobreza, agarrada aos velhos privilégios, ainda se
manterá no nível de companheira do soberano. Um pouco mais e ela, cercada, com as
unhas embotadas, dividirá, domesticada depois de uma revolução, o segundo lugar com a
burguesia. A ideologia completará a obra, vencendo as consciências e roubando à
imaginação o estandarte da resistência. O Estado patrimonial, implacável nos seus passos,
não respeitará o peso dos séculos, nem os privilégios da linhagem antiga.
29
28
___. IDEM. p. 25.
29
___. IDEM. p. 26.
33
A partir da tradição portuguesa, o conteúdo do Estado patrimonial passa pelo ajuste
contínuo das relações entre soberano e súditos. A organização política e o conjunto de regras
jurídicas convenientes ao fortalecimento da soberania real, única ideologia coerente no processo
histórico, aproveita oportunamente o conjunto do resultado proveniente dos acontecimentos
sociais. Seja como for, roupagens ou justificativas diversas, os privilégios do rei e seus séqüitos,
haveriam de ser perpetuados. Um Estado consagrado pela supremacia do príncipe, a unidade do
Estado e a sujeição dos demais ao poder soberano, coordenador de todas as vontades. Com
alicerce no direito romano antigo, o Estado português, com o senhor eminente ou virtual sobre
todas as pessoas e bens, dissemina com sucesso a ideologia dominadora. A razão meramente
formal do direito, consubstanciada nos estatutos, serve para disciplinar a ação política com o
desiderato da estabilidade e da ordem social, sempre sob o comando e a orientação da Coroa.
A exemplo do restante do continente europeu, a Península Ibérica acaba por se render à
influência da Igreja, absorvendo as lições dos clérigos-juristas. A incorporação seletiva de
rituais e formas tradicionais visa revitalizar um corpo sem alma própria. A interpretação dos
estatutos deve ser conveniente aos fins desejados pelo soberano. Pactos e alianças convenientes,
a discórdia entre o clero e a Coroa não demora a aparecer. Às vésperas do absolutismo, com a
distinção entre o domínio, delegado à nobreza territorial, e o reinado exclusivo do soberano,
germina o embrião da doutrina da soberania portuguesa, onde o rei tudo possui e pode, legítimo
proprietário do reino.
Nesse jogo de interesses sociais, ao tempo em que buscava reprimir a crescente
interferência da nobreza territorial nos negócios do reino, a adoção de ordenações inspiradas no
direito romano, embora aparentasse não favorecer os interesses comerciais, intentava, na
realidade, disciplinar os servidores perante o Estado, expandindo o quadro de súditos
subordinados ao príncipe, sob a determinação de regras racionais. Uma racionalidade normativa,
registre-se, meramente formal, que não exclui da esfera soberana de poder o comando irracional
da tradição ou do capricho do príncipe, não deixando de prevalecer a pessoalidade nas decisões
34
judiciais, não raras vezes arbitrárias e convenientes. O processo é mero simulacro. Dom Pedro I
(1367) desvairadamente, sem igualdade e critérios regulares de tratamento, graduava as penas
de acordo com seu enlouquecido juízo, sem observância aos estatutos ou aos padrões
jurisprudenciais. A um adúltero mandou, em sua câmara, ‘cortar-lhe aqueles membros que os
homens em maior apreço têm’” .
30
Comuns são as decisões arbitrárias no reino, não gozavam as
instituições de autonomia ou liberdade, haja vista que subordinadas ao poder soberano, capaz de
determinar sobre a vida ou a morte, sobre a concessão de privilégios ou a imposição de castigos
e penas.
Com o renascimento do arcabouço jurídico proveniente do direito romano, reforço
importante e estratégico para consolidação do Estado patrimonial português, ganha ascensão a
gestão administrativa embrionária do futuro e substancioso quadro administrativo real, origem
do ministerialismo e da burocracia estamental. O corpo ministerial português, auxiliar dos
negócios do rei – representação antiga similar a organização administrativa moderna brasileira –
sem nítida determinação de competências, confundia o patrimônio régio com o da nação.
Verifica-se excepcionalmente um traço do feudalismo medieval, não do feudalismo com
instituição política, mas no que respeita a definição das relações sociais extremas, presente um
direito público de características visigóticas, resguardando as prerrogativas absolutas do
soberano.
Com a composição destes fundamentos sociais, políticos e religiosos aperfeiçoados a
partir da formação do reino português, o desenvolvimento do Estado patrimonial transparece
evidente. Ao tempo que uma nova ordem social ganha relevância em todo continente europeu,
conseqüência do desmoronamento do sistema feudal feudalismo este que a Península Ibérica,
como o Brasil, não experimentaram acompanhado de todas as suas características originais o
capitalismo comercial e monárquico, acompanhado de uma oligarquia governante de um estilo
peculiar e próprio, marcado pela audácia e pelo empreendedorismo, livre de vínculos e
preconceitos conservadores, projeta o Estado moderno, precedendo ao capitalismo industrial,
30
___. IDEM. p. 29-30.
35
sobre o ocidente. Foi assim que a sociedade capitalista no ocidente se gerou das ruínas da
sociedade feudal substituída pelo novo mundo capitalista.
O feudalismo, sistema político presente no ocidente europeu, caracterizou-se por um
movimento da divisão do trabalho e a respectiva projeção sobre a propriedade territorial. Tanto
a cidade, como o campo, dependentes da propriedade territorial e corporativa, se identificam,
respectivamente, com uma ordem patriarcal e hierárquica. É a propriedade dos meios de
produção que caracteriza primordialmente a economia da Idade Média. O sistema feudal é
caracterizado pela indústria do artesanato e, no campo, pela limitada agricultura de lavradores,
trabalhos destinados, via de regra, a subsistência individual. É exatamente deste modo de vida
laboral e da opressão da classe burguesa da cidade, que surge o capitalismo, confrontando
diretamente os interesses econômicos e políticos dos nobres. É certo, portanto, que a evolução
econômica do mundo asiático, antigo e feudal constitui-se de etapas desencadeadas progressiva
e, seqüencialmente, determinou o desenvolvimento da modernidade. Exceções definidas e
explicadas, a história segue um curso linear.
Todavia, a tentativa de compreensão e (re)construção da história a qualquer custo a
partir da tradição humana ordinária, pode determinar equívocos e incompreensões provenientes
da generalização (in)conveniente. Embora linear, o curso da história não segue um curso
matemático e idêntico, sujeitos os homens as conseqüências da ação humana. Antonio Carlos
Wolkmer esclarece que a ciência moderna evoluiu e se transformou, não sem a dificuldade de
encontrar ou manter um parâmetro padrão para determinação da certeza dos acontecimentos. As
verdades reconhecidas como absolutas não conseguem mais dar respostas satisfatórias à
realidade humana moderna. Novos paradigmas são necessários para a reconstrução analítica
válida da história, a partir da identificação dos fatores de mudanças, tensões e crises sociais.
31
A
31
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3ª ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2001,
p. 1-2: Na atualidade perpassa, nos diferentes campos das ciências humanas, uma certa dificuldade em encontrar-se
um novo parâmetro de verdade diante da crise de fundamento que vive a sociedade hodierna. As verdades
teológicas, metafísicas e racionais que sustentaram durante séculos as formas de saber e de racionalidade
dominantes não conseguem mais responder inteiramente às inquietações e ás necessidades do presente estágio de
desenvolvimento da modernidade humana. Os modelos culturais, normativos e instrumentais que fundamentaram o
mundo da vida, a organização social e os critérios de cientificidade tornaram-se insatisfatórios e limitados. A
crescente descrença em modelos filosóficos e científicos que não oferecem mais diretrizes e normas seguras abre
espaço para se repensarem padrões alternativos de fundamentação.
36
história contada pelos vencedores, não é a mesma contada pelos vencidos. Os lugares-comuns
não deveriam caber dentro da história. O próprio descobrimento do Brasil uma invenção
ultramarina portuguesa – é um bom exemplo disso.
Importante considerar e comprovar que efetivamente ocorreu um transplante dos
valores éticos lusitanos para o Brasil-Colônia. O Estado patrimonial português, por pressuposto,
era o mesmo Estado patrimonial da Colônia, disseminando suas práticas e procedimentos com
desenvoltura, sempre sedento por lucros especulativos e imediatos. Zancanaro não deixa
dúvidas ao afirmar que:
No estudo do fenômeno em questão, parte-se do fato de que, histórica e culturalmente, o
Brasil é filho legítimo de Portugal. Gerado em suas entranhas num momento caótico da
longa crise moral, econômica, política e social que se abatera sobre o Estado Patrimonial, o
Brasil não podia ter nascido com outros contornos culturais, senão aqueles que
determinaram o espírito da ordem nacional da Pátria-mãe. A túrbida herança política
repassada à sociedade brasileira em formação deixou marcas tão profundas que seus efeitos
se fazem sentir até os dias atuais.
32
Parte-se do pressuposto de que o fenômeno da corrupção nacional originou-se a partir do
descobrimento e da colonização do Brasil, quando foi absorvida pela sociedade nascente uma
série de valores culturais da Metrópole, ou melhor, anti-valores políticos e sociais caracterizados
por uma ética devastadora, com base no ócio, na exploração, na fraude, na repulsa ao trabalho
metódico ou sistemático, na desobediência legal, particularista, privatista, centralizadora,
hipócrita, com propensões ao luxo, ao fausto e à lassidão dos costumes.
Portugal foi cenário de uma experiência absolutista que perdurou oficialmente durante
longos séculos (710-1492). A nação sofreu influência relevante da administração centralizadora
herdada da civilização moura, praticamente ignorando o modelo descentralizador medieval que
tomava conta de quase toda a Europa, provenientes da tradição visigótica.
32
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 88.
37
De caráter absolutista, centralizador e privatista, com ideal voltado ao heroísmo, à guerra
e à pirataria, o Estado português foi laboratório perfeito para experiência do domínio tradicional
patrimonial. A fé, o território, os bens e a ganância, não necessariamente nesta ordem, serviram
de estímulo ao proceder ético de toda uma nação.
Conseqüência do impulso irracional frente à existência humana, o espírito aventureiro e
imprevidente português adoeceu toda uma sociedade, perdendo os indivíduos a noção de dever e
de responsabilidade referentes às regras essenciais para convivência harmônica coletiva.
O objetivo maior da nação passou a ser a busca desmedida pelo ganho fácil, pela
conquista de riquezas e pelo bem-estar sem esforço. Hábitos foram assim desenvolvidos,
afastando a sociedade lusitana do compromisso para com a racionalidade e o respeito pelo
coletivo. Subordinado ao Estado patrimonial, que tudo lhe limitava e concedia, os indivíduos
acomodaram-se na irreflexão, faltando-lhes ousadia para questionamentos, revoltas ou
imposições. Investir na liberdade do pensamento poderia lhe causar sofrimento desnecessário.
No século XV, a Europa seria, indubitavelmente, um universo feudal em ruínas, sob a
influência das manufaturas e das monarquias. E isso seria irrelevante à presente pesquisa se o
feudalismo não tivesse deixado, no curso de sua decadência, uma outra realidade paralela, o
persistente e poderoso legado português, ainda hoje determinante da realidade política, social e
econômica brasileira. No Estado patrimonial português (e não feudal) de relações sociais e
índole econômica diversas, soberano e súditos o aderem a vínculos contratuais, inexistindo
limites ao príncipe ou direito de resistência aos subordinados.
Dominante o patrimonialismo, uma ordem burocrática, com o soberano sobreposto ao
cidadão, na qualidade de chefe para funcionário, tomará relevo a expressão. Além disso, o
capitalismo dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa, ganhará substância,
anulando a esfera das liberdades públicas, fundadas sobre as liberdades econômicas, de livre
contrato, livre concorrência, livre profissão, opostas, todas, aos monopólios e concessões
reais.
33
33
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 35-6.
38
O feudalismo, entendido como um acidente na evolução histórica da formação das
nações politicamente organizadas, haja vista desconhecer a unidade do comando soberano,
guarda indiscutível incompatibilidade com a apropriação real de recursos militares e fiscais,
assim como com o incremento do comércio, que acelera o surgimento do sistema patrimonial
português. Assim, o indicado feudalismo lusitano e, conseqüentemente, o brasileiro, representa
uma leitura histórica equivocada em falsa analogia à realidade européia, cenário de outra
realidade e diversas tradições. Faoro, ao decretar a incompatibilidade do sistema feudal com o
mundo português, da independência à reconquista do reino, lembrando Alexandre Herculano,
sustenta, sem prejuízo de teses opostas: “Portugal não conheceu o feudalismo.”
34
Por mais
esforço que se faça na generalização da leitura histórica européia, impossível identificar no
reino português a existência de uma classe autônoma política de senhores feudais, salvo em
algumas ilhas de origem francesa.
Em Portugal, a terra era vinculada ao sistema patrimonial, doada sem obrigação de labor
ao soberano, sendo o serviço militar remunerado, prestado em favor do rei. O Estado
patrimonial português, com o destino pré-definido, aproveitando casuisticamente a
formalidade do direito romano, baseado na tradição e nas fontes eclesiásticas, com a renovação
dos juristas formados pela Escola de Bolonha, eleva o rei como o soberano máximo,
comandante dos súditos e soldados, senhor da riqueza territorial, dono do comércio e
empresário único do reino. O sistema patrimonial, adverso aos direitos, privilégios e obrigações
fixados pelo feudalismo, sustenta os súditos numa rede patriarcal interligada, restando
caracterizado um ciclo vicioso de dependências convenientes recíprocas, até hoje presentes na
realidade política, social e econômica brasileira. É assim, crescente o fluxo das trocas de
sistema, a economia e a administração servem de importantes alicerces para conservação desta
estrutura de poder, sempre vigilantes contra as forças “desagregadoras”, provenientes
convenientemente do ilícito, do contrário ou do próprio demônio. Originariamente, nutrido num
berço patrimonial, com fortes tendências ao exercício do comércio, o Estado português não foi
solo fértil para reprodução do feudalismo.
34
___. IDEM. p. 29-30.
39
A tímida e incipiente monarquia agrária portuguesa, abandonada pela imprevidência e
pela cobiça, não passou de ilusão. Com o início da aventura do comércio ultramarino, aberto os
portos de Lisboa para um oceano o tão promissor como visualizado, estava determinado o
destino de dois reinos, a história de duas nações: a portuguesa e a brasileira.
A atividade comercial marítima, com o crescente tráfico oceânico de mercadorias e de
escravos, além do fortalecimento do povoamento da costa e da exploração do mar e da pesca,
subsistindo também a economia da exploração da salinação e o escambo de produtos
comerciáveis da terra, determinou o aparecimento da burguesia desvinculada da terra. Por outro
lado, um órgão centralizador e condutor das operações executadas pelo Estado, industriais ou
comerciais, a tudo comanda e define, nada passando despercebido das diretrizes reais. O Estado
com suas bases no capitalismo politicamente orientado, verdadeira empresa do príncipe, que em
tudo intervém, utiliza o mercantilismo somente por empréstimo, restando consolidada uma
estrutura patrimonial com base numa economia estável, verdadeiro empecilho ao capitalismo
industrial, e tonificante vigoroso do tráfico e do comércio marítimo.
Não encontrará o capitalismo industrial terreno fértil no patrimonialismo português para
se desenvolver em condições propícias. A burguesia portuguesa, mera intermediária entre o
soberano e outras nações, assistirá a uma atividade industrial restrita e condicionada a estímulos,
favores e privilégios reais, diversamente dos países resolvidos pelo feudalismo, que
desenvolveram uma economia capitalista autônoma nos moldes industriais. A Península
Ibérica, com suas florações coloniais, os demais países desprovidos de raízes feudais, inclusive
os do mundo antigo, não conheceram as relações capitalistas, na sua expressão industrial,
íntegra.”
35
Guerra, futilidade, fuxico, ociosidade e a composição de uma estrutura
administrativa incompetente e fiel ao senhor soberano a confusão entre o público e o privado
– todos elementos sociais, econômicos e políticos formadores da mentalidade portuguesa,
enraizados numa estrutura permanente, sólida e persistente, ainda viva e vigorosa no Brasil dos
nossos dias.
35
___. IDEM. p. 41.
40
Centralizado o domínio do poder nas mãos do soberano, os servidores eram
determinados conforme os interesses e desejos do rei, sempre comprometidos com a submissão
obediente ao superior. A cobrança de impostos e a fiscalização dos súditos era uma atividade
importante desempenhada pelos servidores do reino, sem a qual não seria possível manter a
política patrimonial consubstanciada na concessão de benefícios e privilégios, o que obrigava o
Estado a arrecadar cada vez mais para manter a crescente demanda.
O rei, senhor soberano, era pai, patrão e governo, determinando arbitrariamente os
rumos da nação. O ordenamento jurídico português, a partir desse proceder, aperfeiçoou a
subjetividade e o casuísmo das normas, institucionalizando o arranjo legal conforme as
conveniências do rei. Sobre o modelo jurídico arbitrário e casuístico do reino, Zancanaro
observa: Criavam leis para atender a todas as esferas de necessidades humanas e sociais,
alteravam arbitrariamente os resultados de julgamentos, segundo as circunstâncias, interesses
e necessidades de cada caso e de cada momento histórico. O direito estava a serviço do Estado
Patrimonial.”
36
Por supostas razões de Estado, muitos crimes e atos de corrupção, deixavam de ser
efetivamente punidos. A manipulação da ordem jurídica foi, sem dúvida, um fator determinante
para ruína moral da sociedade portuguesa. Os monarcas, os burgueses, os servidores, enfim, a
sociedade passou a seguir os exemplos do soberano, que, através de seu proceder arbitrário e
deseducativo, disseminou o câncer da corrupção e comprometeu os alicerces éticos da Nação.
Não foi o acaso que consolidou os modos, as maneiras e os procederes do povo
português. A manipulação do capitalismo político português encontrou na revolução de Avis
(1385-1580) o levante de um novo mundo, e a formação de uma nova geração de pessoas e
costumes, assim como o fortalecimento da burguesia comercial a partir da abertura do comércio
marítimo. A Nobreza e o Clero, classes até então favorecidas exclusivamente com privilégios e
36
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 68.
41
concessões, se opõem à ascensão popular proveniente da valorização das comunas (municípios),
com quem passariam a dividir garantias e privilégios.
Foram diversas as causas determinantes da gloriosa revolução que completaria e
aperfeiçoaria o reino português. A grande peste de 1348 tratou de fermentar o quadro político,
social e econômico do reino. Com a escassez de trabalhadores, e o aumento do patrimônio de
servos favorecidos com as heranças inesperadas, resultado da morte de milhares de cidadãos, a
nobreza deparou-se com a falta de mão de obra servil, que buscava oportunamente equiparação
com a nobreza em ociosidade e privilégios.
Pressionado pela nobreza, o rei baixou circular oficial aos conselhos obrigando ao povo
miúdo (servos), sob pena de severas sanções, a execução dos trabalhos servis pelos mesmos
salários. Tal acontecimento, marcante o ressentimento da população barrada em sua ascensão
econômica e social, será decisivo para o futuro predomínio da burguesia comercial, sob o futuro
estandarte do Mestre de Avis.
Atendendo constantemente a reivindicações contrárias, conforme as pressões exercidas
pela burguesia ou pela nobreza, o Rei Fernando I (1367-83), no auge do seu enriquecimento
patrimonial, desempenhava as funções de banqueiro, sócio e condutor das exportações,
monopolizando o comércio em Lisboa, salvo o consumo individual e a aquisição de vinhos,
fruta e sal. Nesse contexto, o rei se via cercado por conselheiros de correntes opostas. A
predominante, que contava com a simpatia de um rei extravagante, apontava no caminho das
aventuras; a segunda, em sentido diverso, mais previdente, buscava introduzir leis favoráveis ao
comércio, reprimir a arbitrariedade dos poderosos e estimular a agricultura nacional.
O reino, na mais pura concepção do Estado patrimonial, é terra do rei. O outrora
opulento tesouro real, sujeito ao apetite insaciável da nobreza, suas terras serem repartidas
pelos gananciosos. Junto com o tesouro da terra, a jurisdição respectiva passou a ser transmitida,
reclamando a burguesia comercial do exercício indevido. Contraponto de interesses, a burguesia
logrou êxito com a edição da Lei das Sesmarias, deixando em desprestígio os interesses dos
proprietários agrícolas.
42
Independentemente das concessões ofertadas ao povo, aos olhos da burguesia comercial
e da população o Rei Fernando I era tido como aliado incondicional da nobreza. Assim, o
repúdio popular ao casamento de dona Leonor Teles tinha sua razão de ser na aproximação da
futura rainha à facção da nobreza inclinada à aliança espanhola, o que possibilitaria, mesmo que
remotamente, a entrega gratuita do reino à tutela espanhola. Não hesitaria a classe burguesa,
com crescentes poderes, em defender a autonomia do reino português contra os interesses
sociais e econômicos da aristocracia coligada.
A nobreza, aliada ao clero, dividindo interesses recíprocos, na herdeira do trono do
soberano português, Dona Beatriz, casada com o rei de Castela, a possibilidade da desejada
concentração de poder, a partir do nascimento do futuro príncipe varão que reuniria o comando
dos reinos Português e de Castela.
Grandes murmúrios, protestos e motins repeliram o fato consumado: reagiu Lisboa,
Santarém e Elvas. Agora se vende Portugal dado, que tantas cabeças e sangue custou a
ganhar, quando foi tomado aos mouros.’ A perturbação, a perplexidade, a indecisão
tomaram conta do reino, sobretudo dos núcleos urbanos e burgueses.
37
Na escolha entre a tradição da sucessão hereditária e a defesa da soberania do reino
português, prevaleceria a última. Não sendo possível passar o trono para o infante dom João,
irmão do Rei Fernando I, haja vista que detido e preso em Castela, a solução passou pela
genialidade de Álvaro Pais, homem letrado representante dos interesses da burguesia comercial,
que identifica e prepara o Mestre de Avis, filho ilegítimo de dom Pedro portanto, também
irmão do Rei Fernando I para preencher a inesperada oportunidade de exercício e domínio de
poder.
O plano político arquitetado para deflagrar a esperada revolução iniciaria pelo
assassinato do conde dom João Fernandes Andeiro que, além de dividir reservadamente o leito
íntimo com a rainha, representava os interesses da Coroa Castelhana. Devidamente orientado,
37
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 53.
43
bom aluno das lições repassadas por Álvaro Pais, o Mestre de Avis, sensível aos anseios do
movimento, após atrair com sucesso a adesão popular, consolida o golpe em 6 de dezembro de
1383, acompanhado os homens do campo – insatisfeitos com os trabalhos agrários forçados – os
ventos que sopravam de Lisboa. Época de ressentimento e de perseguições, o rótulo ou a
indicação do partido oposto, justo ou injusto, determinada a implacável sanção, quando não a
morte. A burguesia comercial, aliada à revolução que ajudou a articular, subordinada a vínculos
e privilégios comerciais, não sem hesitações, acabou por respaldar o movimento.
Transcorridos 2 (dois) anos de revolução, guerra e derramamento de sangue, dom João I
iniciava a nova dinastia de Avis seguindo à risca os ensinamentos de seu professor: ‘Senhor,
fazei por esta guisa: daí aquilo que vosso não é, prometei o que não tendes, e perdoai a quem
vos não errou, e ser-vos-á de mui grande ajuda para tal negócio em que sois posto’. (Crônica
de dom João I.)”.
38
O novo soberano exerce com apetite vantajoso o poder real. A doação de
terras, a concessão de privilégios à burguesia comercial e no novo destaque e consideração aos
letrados bacharéis. Os novos aliados do reino, erguido da revolução, se projetam no círculo
ministerial e nos conselhos do novo dirigente, edificando uma nova aristocracia. O reino
português, superada a relutância da nobreza, consolida uma nova dinastia nascida da revolta
burguesa, da espada improvisada e da argumentação conveniente dos juristas.
Das humilhações sofridas pelo Rei de Castela, inconformado com o sucesso da
revolução, nasce a glória e o futuro do novo soberano português. Uma agregação de interesses,
longamente estabelecidos, manipulava classes e grupos para fortalecer a monarquia. A
autoridade carismática, respaldada pelo prestígio popular, utiliza como maquiagem superficial à
formalidade e os argumentos racionais da lei. Logo, não foi difícil transformar a burguesia de
patrocinadora em servidora fiel, restando à nobreza responder pela insensata e persistente
tentativa de obter contínuos privilégios às custas do príncipe.
38
___. IDEM. p. 56.
44
A revolução de Avis consagrou importantes transformações sociais, políticas e
econômicas, passando a alcançar o principal imposto do reino a todos os súditos, superadas
antigas imunidades aristocráticas. Dividindo a tarefa de grupo de pressão ao lado da nobreza, a
burguesia não se limita mais a atuação nos conselhos municipais, passando a integrar a estrutura
política do Estado patrimonial português. Entretanto, dono de toda a riqueza territorial,
proprietário absoluto do comércio burguês, o príncipe, com os argumentos jurídicos sempre
justificáveis, projeta suas idéias, planos e ambições sobre todo reino, seja através da mão
protetora, seja do temor da sombra da forca.
O Estado patrimonial português fomentou um sistema administrativo com características
precocemente ministerial, com a escolha de um grupo de conselheiros e executores das
atividades auxiliares do reino, com a tomada de decisões, arrecadação de tributos,
transformando o Estado em agente econômico extremamente ativo, buscando na navegação
oceânica e nos respectivos tráficos comerciais, assim como em algumas midas e novas
atividades industriais, a arrecadação necessária à manutenção do reino, tendo em vista que a
exploração da terra e da agricultura nacional se encontravam cada vez mais precárias. Com o
objetivo de manter a estrutura e os privilégios do reino, o Estado se organiza, conforme as crises
e as necessidades momentâneas, com um operoso sistema político-administrativo, formalmente
arquitetado e prescrito pelos juristas. É justamente essa corporação organizada de poder,
estruturada no seio da sociedade portuguesa, que identifica o estamento. Faoro explica que
Para a compreensão do fenômeno, observe-se, desde logo, que a ordem social, ao se afirmar
nas classes, estamentos e castas, compreende uma distribuição de poder, em sentido amplo
a imposição de uma vontade sobre a conduta alheia. A estratificação social, embora
economicamente condicionada, não resulta na absorção do poder pela economia. O grupo
que comanda, no qual se instala o núcleo das decisões, não é, nas circunstâncias históricas
em exame, uma classe, da qual o Estado seria mero delegado, espécie de comitê executivo.
39
A classe, diversamente do estamento, tem sua formação edificada através da agregação
de interesses econômicos ditados pelas regras do mercado e, pois mais poderosos e influentes
que sejam os seus membros, não dispõe do poder político. A classe, embora possa se articular
para defesa dos interesses comuns de seus componentes, surge da simples união de um grupo
39
___. IDEM. p. 61.
45
disperso na comunidade. O estamento, por sua vez, de natureza mais complexa e diversa,
verdadeira camada ou espécie social, constitui uma comunidade política, um círculo qualificado
superior, destinado ao pleno exercício do poder, possuindo seus membros consciência de sua
formação e agrupamento. O indivíduo alcança os privilégios do grupo pelo prestígio social que
detém entre seus pares, assim como pelo conceito de sua honra social perante a comunidade. Os
membros do estamento acabam por exercer um modo ou estilo de vida próprios, através de
certas posturas de educação e no prestígio que projeta entre os componentes do grupo, não raras
vezes, transmitido hereditariamente.
A entrada no estamento depende da personalidade e das qualidades individuais do
indivíduo, não havendo exigência de padrão econômico, compondo um grupo de membros cuja
elevação se calca na desigualdade social. O estamento é estrutura comum presente nas
sociedades menos desenvolvidas onde o mercado ainda não dominou por completo a economia,
a exemplo das sociedades feudal e patrimonial. Identificada somente residualmente nas
sociedades capitalistas contemporâneas, o estamento pressupõe distanciamento e exclusividade
social, objetivando a realização de vantagens materiais e espirituais próprias, todas consagradas
pelas convenções tradicionais, alheias ao ordenamento legal. O encastelamento do estamento
acaba por determinar a apropriação das oportunidades econômicas, com os monopólios de
atividades lucrativas e o exercício dos principais cargos públicos.
O proceder estamental, pessoal e parcial, influencia diretamente o mercado, impedindo
sua livre e indistinta expansão. Favorecendo a estabilidade econômica a manutenção do poder
estamental, é ele avesso a instabilidades e modificações inesperadas. De natureza extremamente
conservadora, enquanto órgãos do próprio Estado patrimonial, o estamento exerce seu domínio
de cima para baixo, ditando as regras e os costumes desejados. Juntamente com o soberano,
livremente mapeada e escolhida, a comunidade estamental, manda, governa, dirige e orienta os
súditos, todos ovelhas dóceis conduzidas para o abate final. Sujeito às tradições e às
formalidades jurídicas oriundas do comando estamental, o mercado não governa livremente. A
nobreza territorial e o clero também sofrem com a aliança delineada entre soberano e sua mais
nova convivente no trato das coisas de governo.
46
Com a formatação dessa nova realidade com a consolidação do Estado patrimonial
estamental e um novo tipo de grupo dirigente, o príncipe passa a dividir o poder político e,
conseqüentemente, as decisões que determinaram o futuro de duas nações. Faoro conclui:
Há, com a emergência do fenômeno, um tipo de Estado que não se confunde com o Estado
absoluto, bem como com um tipo de comunidade dirigente do grupo de funcionários. As
duas realidades, absolutismo e funcionalismo, estão em germe no Estado patrimonial de
estamento, sem com elas se identificar.
40
E continua:
O estamento estado-maior da autoridade pública apressa, consolidando-a, a separação
entre a coisa pública e os bens do príncipe. O reino não é mais o domínio do rei: o soberano
é o domínio da nação. Os delegados do rei, com direitos próprios que o estamento prestigia,
não representam sua casa, senão o país. Quem delimita as fronteiras, que o Estado
patrimonial não logra firmar, são os juristas, agora com o primeiro lugar nos conselhos da
Coroa. A tradição, que o direito romano derrama, em resíduos sem coerência, ganha caráter
racional, consciente, concertado – graças à palavra, acatada, respeitada, dos juristas.
41
Fortemente articulados com o príncipe, o grupo estamental dá origem a uma nova
aristoracia que, diversamente da maneira e do estilo de relação do clero, nobreza e burguesia, se
amolda ao novo exercício de domínio soberano, com destaque aos letrados que justificariam,
através do direito escrito, as necessidades e privilégios do reino. Não por acaso, ganham os
letrados juristas, provenientes da universidade, os lugares de destaque nos conselhos superiores
e nos órgãos executivos do reino. O equilíbrio do comando e das determinantes do poder,
envolvidos e anestesiados pela supremacia carismática, militar e econômica do soberano,
conjugou-se com uma comunidade estamental encarregada de administrar, distribuir justiça e
definir – escolher – as leis mais convenientes e oportunas.
Aclamado o Mestre regedor e defensor do reino, dos sete conselheiros que escolheu para
com ele dividir a responsabilidade do governo, quase todos eram legistas, em cujo corpo
avultavam Álvaro Pais e João das Regras. Estava definitivamente estabelecida a
preponderância dos legistas. O que eles podiam valer a favor da nova dinastia mostrara-o
nas Cortes de 1385 a dialética de um dos mais notáveis, João das Regras, que, cingindo com
40
___. IDEM. p. 63.
41
___. IDEM.
47
audácia as pretensões dos que fundavam na hereditariedade o direito de ocupar o trono, se
propôs demonstrar a plena liberdade, que assitia então aos povos, de colocar a coroa no
Mestre de Avis. Eram, no entanto, as escolas estrangeiras principalmente que ministravam a
ciência aos novos compatriotas, porque, segundo se afirmava nas Cortes de Lisboa de 1372,
havia muitos portugueses que iam fora do país seguir os estudos, que a universidade (o
Estudo Geral) pelo seu estado decadente não estava no caso de lhes proporcionar.
42
Observa-se que a importância dos letrados juristas ou legistas crescente desde a
formação da nova dinastia, acaba por determinar a consolidação de uma espécie de comunidade
própria e privilegiada, na qual todas as suas parcialidades podiam ser representadas. O
estamento, paradoxalmente, zela pela supremacia do poder nacional dos cidadãos em
contraponto à nobreza e ao controle absoluto do mercado. Com a previsão legal do princípio da
inalienabilidade dos bens da Coroa seria certo que as eventuais doações de terras feitas pelo
soberano poderiam sofrer a reversão conforme os interesses do reino.
A nobreza acabou por ceder todos seus privilégios historicamente adquiridos,
conformando-se a burguesia com a função de agente do príncipe. Todavia, o próprio soberano
não ficou imune à diminuição de seu poder, prevalecendo o reino acima do rei. O
conglomerado de direitos e privilégios, enquistados no estamento, obriga o rei, depois de
suscitá-lo e de nele se amparar, a lhe sofrer o influxo: a ação real se fará por meio de pactos,
acordos, negociações.” Numa incessante busca pelo predomínio do poder, rivalidades, disputas,
alianças e pactos postos, a artimanha jurídica servirá para consolidação da pessoalidade e da
especificidade, buscando o intercâmbio de benefícios recíprocos, desiderato maior da atividade
pública do reinado.
Com o objetivo obstinado de ampliar suas bases de apoio no reino, o soberano não
poupou a estrutura administrativa, criando reiteradamente de novos cargos e funções públicas
para distribuição entre os escolhidos, desencadeando-se a partir de então a formatação de um
estilo de ser individualista e privativo em relação à condução da coisa pública, tratada como
moeda de troca, como privilégio e benefício.
42
___. IDEM.
48
Reproduzindo o modo de proceder real, servidores públicos acostumaram-se a burlar o
ordenamento legal, disseminando a mentalidade do ganho fácil, do suborno, do tráfico de
influências, enfim, da corrupção generalizada. A imoralidade administrativa era a regra,
presente um tratamento legal diferenciado aos homens ricos e influentes junto à Coroa.
Fazendo uso da máquina administrativa, asseguravam seus cargos, reforçando seu
prestígio e recebendo apoio através da distribuição de benefícios, favores e privilégios. Viviam
os portugueses de imprevidência especulativa. Poucos dados ao trabalho físico, praticavam as
mais variadas falcatruas, como a alteração do valor da moeda, a emissão de documentos falsos,
a promessa de ações impossíveis, dentre outras, impregnando o corpo social com a valorização
da esperteza, da trapaça, do jeitinho, da corrupção.
1.2.2. A invenção do Brasil: corruptos e corruptores
O que pode ser observado com relação ao fenômeno da corrupção no Brasil-Colônia é o
considerável agravamento do nível de degradação moral da ordem pública em virtude das
singularidades da vida nascente na terra descoberta.
O desenvolvimento dos hábitos e costumes lusitanos na Colônia, a atuação devastadora
do estamento burocrático nacional, formados pelos aventureiros e desclassificados de Portugal,
determinou a ampliação dos exemplos repassados pelo soberano. Não tardaria, explorada e
sucatada, e a nova terra cairia em desgraça. Nesse contexto, com a fragilidade da ordem jurídica
colonial; com o mau exemplo da Corte; com o apetite ganancioso dos poderosos; com o
empreguismo e a inflação da estrutura administrativa do Estado; repetiram-se com
potencialidade os acontecimentos da Metrópole. Do mais abastado, ao homem mais humilde, a
ganância era questão de oportunidade. “Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”, berrava o
caboclo.
Como se observou alhures, os maus exemplos do soberano e do estamento, degradavam
a ética da social. A empreitada comercial ultramarina cegou a Coroa, sempre sedenta por mais
lucros, situação esta que causou nefastas conseqüências à Nação. A desmoralização do poder
49
constituído, a reprodução de vícios e procedimentos enganosos, a pobreza causada pela falta de
previdência e pelo gasto pródigo de recursos públicos, enfim, a miséria do corpo e da alma,
foram conseqüências evidentes do processo de corrupção generalizada que tomou conta da
Corte.
Não foi outro o caminho percorrido pela nobreza e os demais súditos do Império.
Proveito imediato e lucro fácil. Em vez do trabalho operoso, tomar um copo de vinho deitado,
debaixo do sombreiro. Eis o que todos almejavam. A enfermidade da corrupção acabou por
contaminar a alma e a mente de todos. A impunidade estimulava a cobiça e a ousadia, nem mais
o quinto de ouro, devido à Coroa, sendo respeitado.
Longe do caráter moderno e do conceito atraente de Estado de Direito, afastados dos
princípios constitucionais e democráticos da impessoalidade, da legalidade, da publicidade, da
eficiência e da moralidade inaplicáveis quaisquer comandos provenientes da imparcialidade e
da generalidade burocrática e legal alimentada pelo desejo de poder e pela utilização do
tesouro do rei, representado por uma comunidade isolada e preocupada consigo própria, o
estamento – articulado numa rede integrada de corrupção – comanda, dirige, explora e saqueia o
esforço alheio e as riquezas da nação. Não é casual a realidade brasileira atual. Sua semeadura
foi calculadamente planejada em busca dos frutos proibidos. Retifica-se, proibidos somente à
grande maioria dos cidadãos, exclusivos e acessíveis somente a essa comunidade privilegiada da
sociedade.
Pois bem, reconhecida, admitida e percebida a concentração de poder numa comunidade
organizada, identificada como o estamento, é importante retomar o curso da história. A
localização geográfica do reino português teve primordial papel para os acontecimentos
relacionados à era das grandes navegações, do comércio de produtos e da pirataria e tráfico de
mercadorias e escravos. A unidade da nova atividade do reino, com o crescente e milagroso
comércio atlântico, teve como elemento determinante o Estado de origem patrimonial,
articulado e planejado pelo estamento.
50
Como referido alhures, Portugal, como o Brasil, não conheceram na sua integralidade o
predomínio da economia agrária proveniente do feudalismo, sistema capaz de conduzir a
nobreza territorial à soberania quase que independente do príncipe. O impulso orientador do
comércio marítimo e da exploração territorial portuguesa, desde sua origem, é dado pelo Estado
patrimonial, não havendo no reino um verdadeiro interesse na exploração agrícola em grande
escala, representando as rendas e os foros provenientes da propriedade, o sentido do patrimônio
da terra. O vínculo entre a economia monetária e o capitalismo orientado pelo Estado
patrimonial, é caracterizado pela domesticação e sujeição da burguesia e da nobreza territorial
ao senhor soberano.
Com o crescimento da exploração oceânica, o comércio, sob a tutela do rei, acaba por
exigir maiores lucros, e rendas mais vantajosas. Com a concentração em Portugal do centro das
transações mundiais do comércio, a partir da grande arrancada ultramarina, os comerciantes
estrangeiros, aliados do rei, também gozavam de alguns privilégios, caracterizadas as ações
comerciais em torno do transporte de mercadorias e operações financeiras provenientes da
cobrança de rendas públicas e adjudicação de contratos reais. Exportadores, importadores,
banqueiros, intermediários e piratas, vigiados pelos adversários nacionais, sob a orientação e
proteção do príncipe, dão o impulso esperado às navegações costeiras e, posteriormente, às
oceânicas. A história, uma vez aberta ao dinamismo, não contempla atos gratuitos e
inconseqüentes ela devora, segundo uma idéia que seria cara a Hegel, homens e
instituições.
43
A aristocracia portuguesa, carente de novas terras e sua utilidade imediata,
isolada do exercício mercantil, socorreu-se do exercício de cargos públicos rendosos dentro da
estrutura patrimonial estamental.
As grandes expedições marítimas, idealizadas pelo conselheiro real João Affonso
íntimo da burguesia marítima e maturadas e discutidas longamente com o Mestre de Avis,
determinam, através do filtro e da ponderação de todo estamento português, o plano vitorioso
que daria ao tesouro real as compensações financeiras de que necessitava. Uma guerra inicial
destinava-se à apropriação do comércio do Mediterrâneo perante os Ceutas, uma conquista que
43
___. IDEM. p. 71.
51
representaria a verdadeira caracterização da manifestação do capitalismo de Estado orientado. O
envolvimento de todos os portugueses na cobiçada empreitada não foi tarefa difícil. Submissos
ao príncipe e cedentes por honras e crimes, ávidos por lucros, missionários da palavra divina
(falaciosa maquiagem) atenderam com presteza ao chamado. O estamento, por sua vez,
escamoteado, imperceptível, invisível aos olhos dos súditos, representava os verdadeiros
objetivos da empreitada ilícita, quais sejam: crime, rapinagem, pirataria, comércio, lucro,
ampliação do reino e disseminação da fé. Todavia, finalizada a primeira conquista, era preciso
dar continuidade à milagrosa aventura, restando convertido o Estado patrimonial de estamento
numa grande e lucrativa empresa.
Por determinação direta do rei ou por delegado da Coroa, o comércio ultramarino
reconhecido e legitimado oficialmente pela Igreja como atividade ordinária do Estado
origem às novas descobertas, ou seriam invenções? As viagens ao Novo Mundo permitem que
particulares, estrangeiros ou nacionais, sob a tutela, patrocínio real e sujeitos às condições
impostas e aos riscos decorrentes de uma sociedade comercial que visava exclusivamente aos
lucros, se aventurassem à nova odisséia. Os venezianos, por exemplo, após a expulsão dos
judeus do reino português, foram os principais financiadores das expedições lançadas de
Portugal. O monopólio régio, entretanto, se caracterizava pelo simples exercício de uma
superintendência comercial, que repassava orientações sobre a circulação de mercadorias e a
arrecadação da Coroa. Estava pronta a configuração do capitalismo monárquico português
politicamente orientado. Faoro descreve:
A Coroa, ela e mais ninguém, dirige a empresa que é seu monopólio inalienável. As
terras descobertas, como se fossem conquistadas, pertenciam, de fato e de direito, à
monarquia. Senhora das terras e dos homens, é-o, também, das rotas e do tráfico. Do
exclusivo domínio sobre as descobertas e conquistas decorre, naturalmente, o monopólio do
comércio, que leva ao capitalismo monárquico, sistema experimental de exploração
econômica ultramarina.
Do novo patrimônio advém nova riqueza, geradora de força política e econômica. Os novos
homens e as novas terras, com as suas mercadorias altamente comerciáveis, amealhadas
pelo monarca, aumentam, consideravelmente, a padronádiga da Coroa. A soberania da
realeza não só é mantida mas largamente dilatada.
44
44
___. IDEM. p. 74-75.
52
A construção de fortalezas militares, a exemplo do que ocorre na origem da formação
nacional, destinava-se a garantir a posse das novas terras e assegurar o tráfico de mercadorias
em favor da realeza. Como contam os livros de história, com maior ou menor fixação, a
aventura ultramarina determinou o crescimento e o fortalecimento de reino português, que se
expandia pelo predomínio militar, pela exploração comercial e pelo arrebatamento de novas
almas cristãs. O Estado português, seja no reino ou em suas colônias, se incha de servidores
públicos, que engrossam o estamento dirigente. No país, os cargos são para os homens e não
os homens para os cargos.
45
Estrutura estamental que evoluiu sem o fim catastrófico
profetizado, enrijecendo-se num encastelamento permanente, congelado, quase que um apêndice
necessário à sobrevivência do corpo social da nação.
Os crimes, a pirataria, o tráfico de mercadoria e de gentes, o enriquecimento
enlouquecido, o egoísmo e a ganância desmedida dos portugueses, baseados na delirante
atividade mercantil, não alcançaram a estrutura moderna do capitalismo industrial, gerando a
atividade econômica em cima das importações, o suportando a baixa atividade agrícola do
interior, a demanda interna do reino, limitado, como se disse, ao frenético trânsito de
mercadorias. Com o empenho no desenvolvimento da grande empresa predatória, e com o
apetite voraz do tráfico e da fabulosa aventura ultramarina, o aumento da arrecadação de novos
recursos se faz como condição exigente para manutenção da máquina administrativa e de toda
estrutura real e do estamento que o complementa. Era preciso investir na vigilância militar, nas
devassas e correições, dos fiscais sobre os fiscais, afinal, só em grande escala é permitido matar,
corromper e enriquecer as custas da desgraça alheia. Como diria Eduardo Galeano
46
, o crime
compensa quando praticado em grande escala. A impunidade recompensa o delito, induz à sua
repetição e faz sua propaganda: estimula o delinqüente e torna contagioso seu exemplo.
Característica marcante e decisiva para a evolução da imoralidade administrativa
consolidada durante o Império português, foi a aceitação da impunidade dos delitos e atos de
45
___. IDEM. p. 75.
46
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999.
53
corrupção. A impunidade, intimamente relacionada com o ordenamento jurídico adotado,
advinha da omissão e da cumplicidade do estamento dominante e as camadas dirigidas. As
relações íntimas, os interesses comuns e as “razões de Estado” eram circunstâncias
determinantes para o aceite da transgressão do ordenamento, convertendo-se em estímulo à
reprodução contínua e crescente dos mais variados delitos.
A impunidade reinante é facilmente compreendida a partir das características do Estado
patrimonial português. Com a aplicação de critérios subjetivos para consecução das metas da
Coroa, sempre pautada por relações íntimas de amizade, parentesco e retribuições pessoais, a
ordem jurídica – instável e flexível – foi marcada pelo casuísmo e pela arbitrariedade do
soberano e seu séqüito.
Com a valorização suprema do patrimônio, dos bens e das riquezas materiais não
importando a forma e a maneira de aquisição uma ética perversa passou a ser consentida e
cultuada, privilegiando-se a esperteza, a hipocrisia, a bajulação, a manipulação, o tráfico de
influência, a fraude e a corrupção, tudo isso em prejuízo do proceder correto, eficiente, honesto
e meritório. O Estado se transformou numa “rifa de igreja”, numa verdadeira ação entre amigos.
Eventuais punições impostas visavam, via de regra, repreender e castigar a audácia e o
atrevimento dos inimigos que se impunham contra a estrutura de domínio imposta. A escolha
patrimonial não permitiu que uma ética voltada ao interesse público e coletivo germinasse na
nova terra. Eis o lema vigente: “Cada um por si, e o Estado por todos”. Era, ao menos, o que se
esperava, muitas vezes com decepções freqüentes.
Na Metrópole, na Colônia e na sociedade em geral a desgraça reinava soberana, com
hipocrisia e desonestidade corrente por todo o lado. Ninguém respeitava o ordenamento
jurídico, mais todos esperavam as benesses do grande patrão. Sem forças para reagir à
degradação moral, a corrupção contaminou a sociedade e várias gerações, tornando-se
conseqüência natural da cultura patrimonial e da impunidade prevalecente. Matar, subtrair,
fraudar, ludibriar, forjar, manipular, enfim, enriquecer a qualquer custo. Tudo era (é) permitido
no Império da corrupção!
54
Para os mais incrédulos da herança maldita recebida, vale aqui uma importante
consideração: Nenhuma sociedade humana altera seus costumes e hábitos da noite para dia,
sendo necessário investir (ou não) na educação. O padrão comportamental humano tende a
seguir uma continuidade permanente, reproduzindo a ética em vigor. Foi assim que o Brasil-
Colônia reproduziu os padrões legais e jurídicos vigentes na Metrópole. Estimulada pela
impunidade, princípio oficial da política do Estado, a burocracia estamental potencializava as
dificuldades na Colônia. Ao relacionar o avanço da corrupção à crescente impunidade dos
delitos, Zancanaro ressalta que:
Na cultura luso-brasileira, dificilmente o corrupto é chamado a prestar contas de seus atos.
E quando isto ocorre, são muitos os álibis que lhe permitem fugir às sanções da lei. O
próprio sistema patrimonial realimenta a impunidade, gerando uma extraordinária segurança
em quem manipula o poder a seu favor. As intrincadas amarras de caráter afetivo e
sentimental que impregnam o fenômeno conferem garantia de impunidade. Tal segurança
garante as condições de uso e abuso do poder cedido em benefício próprio e no de parentes
e amigos. A impunidade dos delitos tornou-se, portanto, uma superestrutura lógica do
sistema patrimonial de dominação.
47
O capitalismo politicamente orientado e condicionado a interesses determinados,
estruturado em razão do estamento, não encontra motivação ou razão atraente para se renovar,
para se formatar em busca de novas realidades ou à flexibilidade da livre concorrência. Sua
manutenção provém das cobranças de impostos das atividades comerciais e industriais privadas,
deixando de organizar sua gestão como uma verdadeira empresa mercantil, com a preocupação
voltada imediatamente para manutenção dos privilégios à base da especulação e do lucro fácil,
sem a previdência da poupança e do investimento planejados, características próprias do bom
administrador.
O estamento, cada vez mais de caráter burocrático, filho legítimo do Estado patrimonial,
ampara a atividade que lhe fornece os ingressos, com os quais alimenta sua nobreza e seu
ócio de ostentação, auxilia o sócio de suas empresas, estabilizando a economia, em favor do
direito de dirigi-la, de forma direta e íntima. O encadeamento das circunstâncias históricas,
que parte do patrimonialismo e alcança o estamento, fecha-se sobre si mesmo, com a tutela
do comércio de trânsito, fonte do tesouro régio, do patrimônio do rei, fonte das rendas da
nova aristocracia, erguida sobre a revolução do Mestre de Avis, engrandecida na pirataria e
na guerra que incendeiam os oceanos Índico e Atlântico. A jornada da primeira, sucessora
47
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 145.
55
da jornada do ouro e do escravo, percussora da jornada do pau-brasil, se dissolvia em
tenças, comendas e mercês, para fortuna da espada aventureira e dos administradores
suspeitos de pouca honra. Um soldado, que ‘nem receia mal pelo que disser nem espera
bens pelo que lisonjear’, definio lucro da aventura: ‘é dinheiro de encantamento, que se
converte em carvões’.
48
Precoce no comércio marítimo, na corrupção institucionalizada e nas promessas
falaciosas, o reino português, após se aliar à burguesia para domesticar a nobreza, aparentando
dar prestígio e poder político de decisão à primeira, através da sua possível emancipação, não
demora a insultar a burguesia comercial, que se recolhida novamente a dependência do rei,
presa a vínculos tradicionais, subjugada a função de órgão delegado do mercador principal, o
próprio soberano. A realidade desmentiu as promessas da história.
49
. Junto ao rei, um grupo
estabelecido de letrados juristas oriundos – a maioria rebentos de famílias burguesas da
educação universitária. A desvalorização do negócio e do trabalho servil é fruto dos novos
valores edificados pelos bacharéis juristas: projeção social, influência política e ociosidade
letrada. É o próprio estamento que se edifica, alheio a novas ideologias ou ideários, vigilante na
tarefa da manipulação do pensamento dos demais cidadãos.
Os interesses financeiros estão sujeitos à aceitação de Cristo, sob pena de queimar no
inferno e, o que é pior, numa fogueira real, não apenas simbólica ou espiritual. A moral
teológica influencia a política e a economia, representando a ganância de poucos, a vontade
divina, e a ganância e ambição dos demais, pecado ou heresia. A ética medial sobreviveu, assim
como as ameaças e as perseguições, nas justificativas e nos discursos dos letrados juristas, assim
como no pensamento da própria corte real, um verdadeiro paradoxo perante a grande aventura
ultramarina que se apresentava. Faoro descreve com perfeição a hipocrisia estabelecida no
reino:
O poder do dinheiro, sem articulação na ordem estatal, fundido com o estamento, não
merecia reconhecimento, visto por estranho, anormal, perturbador. Excluído do corpo da
nação, o judeu se alheava da solidariedade à nobreza política que vivia na corte e não a
que sobrevivia do domínio da terra –, criando fora dos eixos da máquina do Estado, uma
48
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 76-77.
49
___. IDEM. p. 78.
56
categoria burguesa independente, a única camada autônoma. Contra esse segmento se
voltaram, em conseqüência, os interesses dos beneficiários do comércio da Coroa os
nobres e os arrendatários ou concessionários nacionais. A aristocracia cortesã, com os
cargos militares e administrativos e com as sinecuras honoríficas, colhia o principal
benefício do negócio, turbado por um grupo que não colaborava, integrando-se à sua rede.
50
Através do capitalismo politicamente orientado e direcionado ao benefício do estamento,
as permissões de empréstimo, as especulações financeiras, as manobras de bastidores, visavam
unicamente à manutenção dos privilégios da nobreza, do clero e dos letrados irradiadores do
pensamento oficial do Estado patrimonial de estamento. As concepções dominantes em
Portugal, como no Brasil, foram: escolástica, aristotélica e tomista. Os poucos homens que se
insurgiram contra as aberrações ocorridas no Novo Mundo, distantes do Brasil, escreveram suas
idéias com pouca ou quase nenhuma ressonância. A visível diferença entre o discurso e a
prática, edifica a desconfiança de uma atitude hipócrita e contraditória por parte das camadas
dirigentes, com muitos pré-conceitos morais e com as mãos agarradas ao dinheiro. A ideologia
do mercantilismo tardiamente foi considerada nos escritos portugueses. Se as idéias foram
disfarçadas, sendo que o conteúdo prático da Coroa foi transmitido com vigor para o Brasil,
onde, apesar do deslumbramento com o pensamento liberal ocorrido nos três últimos séculos,
permanece ativo na política, na economia e na sociedade brasileira, quer no setor público, quer
no privado.
O paradoxal mercantilismo brasileiro, herança lusitana inesquecível, fixou-se com raízes
fortes e profundas, a partir de uma diretriz da tradição medieval, devidamente enriquecida pela
monarquia portuguesa: a função diretora, interventora e atuante do Estado na economia
nacional. O Estado patrimonial de estamento estrutura o comércio, manipula a indústria,
legitima a apropriação da terra, define preços, tributos e salários, tudo para o sucesso da
empresa nacional e os benefícios e privilégios da camada dirigente do País.
Ganha força o Estado, ganha vigor o estamento, destacando-se como ator principal das
regras do jogo, contrapondo-se, quando necessário, contra aqueles opositores inconvenientes.
Da sua alma, mediante entre estes princípios, nasce o absolutismo, consolidado na motivação de
50
___. IDEM. p. 79.
57
um Estado autopoiético, que encontra sua razão de ser, em si próprio, utilizando as normas
jurídicas como instrumentos formais para manutenção do poder soberano, subordinando todos
os súditos as suas vontades e determinações, a partir de um ponto de vista próprio. Sérgio
Cadermatori, lembrando Ferrajoli e Luhmann, esclarece o conceito “autopoiético”:
Enquanto para as doutrinas autopoiéticas o estado é um fim em si mesmo, a cuja
conservação e reforço haverão de ser instrumentalizados o direito e os direitos,
subordinando tanto os indivíduos como a sociedade, a partir de um ponto de vista interno,
para as doutrinas heteropoiéticas o estado é um meio que se legitima unicamente pela
finalidade de preservar e promover os direitos e garantias individuais. Aqui o ponto de vista
externo ao estado, partindo da sociedade e dos indivíduos que a compõem, os quais são
considerados os fins e valores que instituem o estado para sua defesa.
51
Num ciclo vicioso de apropriações devidas e indevidas, Estado e comércio estabelecem
um sistema mercantilista, destinado à expansão do aparelhamento administrativo e financeiro
para proveito do grupo estamental, o que justifica a política do transporte do tráfico de homens
escravos e a atividade mercantil desvinculada da agricultura e da indústria, esquecendo que as
riquezas e os capitais tinham endereço certo no exterior, embarcando nas naus para fora do País.
Sonhos de riquezas e de uma vida opulenta com base no ócio, que não demoram a desmoronar,
mostrando sua face mais obscura: a multiplicação contínua de indivíduos escravos não
pensantes.
A fórmula da especulação estava definida, garantindo alguns séculos de riquezas através
do temerário plano aventureiro do descobrimento e da exploração inconseqüente das índias no
Brasil, desqualificando-se, em contrapartida, o trabalho forçado, a poupança previdente e o
desenvolvimento industrial. O atraso científico e tecnológico, a rigidez e o formalismo do
sistema jurídico, características que ajudam compreender a atual realidade portuguesa e
brasileira, serviam aos objetivos pessoais e específicos do Estado patrimonial de estamento.
Portugal, cheio de conquistas e glórias, será, no campo do pensamento, o ‘reino
cadaveroso’, o ‘reino da estupidez’: dedicado à navegação, em nada contribuiu para ciência
náutica; voltado para as minas, não se conhece nenhuma contribuição na lavra e na
51
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1999, p. 162.
58
usinagem dos metais. Toda a vida intelectual, depois de fosforescência quinhentista, ficou
reduzida a comentários. Comentar os livros da antiguidade; comentar, subtilizar, comentar.
Era um jogo de subtilezas formais, um jogo verbal de ilusões aéreas. [...] Por toda parte, na
Europa, vemos o triunfo do moderno espírito, do espírito crítico e experimentalista. Por
toda parte? Não digo bem. Menos aqui, na península ibérica, menos aqui, em Portugal.
52
A ciência alcançava por empréstimo os letrados, não tendo a nação acesso a uma
educação voltada para evolução da modernidade. O fundamento jurídico das ordenações do
reino, como se constata, sempre serviu à organização política, articulando interesses solidários
do Estado patrimonial de estamento, verdadeiro significado de sua existência, doutrina e
ideologia. Com o aumento da autoridade do rei, maior o comando do estamento, materializado
através dos instrumentos normativos genéricos, racionais somente na sua forma,
preconceituosos e manipuladores no seu conteúdo. Os direitos perpétuos do estamento são
reconhecidos e legitimados pelas ordenações, consolidando cargos públicos estratégicos e
privilégios reais, tudo de acordo com a ordem política do reino. As Ordenações Afonsinas
(1446), por exemplo, fundamenta as atribuições dos cargos públicos, a qualificação dos bens
reais e os privilégios do clero, nobreza e aristocracia, a administração fiscal e a jurisdição, que
são especificamente detalhados no ordenamento português. Depois de articulada e definida a
estrutura política e administrativa para prevalência do estamento, indicavam-se os direitos civis,
processual e penal, situação esta determinante do enfraquecimento do direito e dos costumes
locais e o contínuo e progressivo desenvolvimento da soberania e autoridade do príncipe.
Posteriores reformas administrativas e financeiras (Ordenações Manuelinas 1521),
uma legislação específica sobre a fazenda real (Ordenações da Fazenda), os ajustes para
realidade ultramarina (Ordenações Filipinas 1640), conspiravam para intervenção do Estado
na economia, importações e exportações, enfim, nos negócios da nação, no comércio oceânico,
nas negociações internas, na determinação dos preços, tributos e salários. Com o poder
crescente do soberano e a estratégia de centralização política e administrativa do reino, os
conselhos regionais e a descentralização nos municípios, não eram mais necessários.
52
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 82.
59
O caminho da centralização e do poder absoluto do monarca foi consolidado por dom
João II (1481-95), exemplo perfeito do que representava a atitude esperada de um grande rei: ser
mestre da grande arte de reinar. Conforme as conveniências de cada tempo, desferindo o soco
para o acerto violento ou estendendo a mão para o cumprimento gentil, coube com maestria a
dom João II reconquistar os privilégios cedidos, restaurando o patrimônio reino e o carisma de
lealdade junto aos súditos. Sob o sereno comando do soberano, apenas sujeito ao estado-maior –
o estamento –, pelo próprio rei recrutado, a supremacia da monarquia precocemente capitalista,
de cunho patrimonial e estamental, é definitivamente determinada. O direito se dirigia ao
delegado real, ao agente do soberano, e daí se projetava ao indivíduo, instrumento de
desígnios superiores, vigiado de cima, do alto, sem autonomia moral e sem incolumidade
jurídica.
53
Seguindo o comando político das Ordenações portuguesas, a aplicação jurídica dos
dispositivos legais representava a maquiagem ao engodo, permitindo a legalização das mais
variadas formas de corrupção nos mais diversos setores da vida pública e privada do Império
português.
A proposital ambigüidade e falta de objetividade dos textos legais, subjetivos e
imprecisos, abriram caminho à manipulação do ordenamento jurídico através das distintas
formas de interpretação, tudo conforme o gosto da clientela.
Onde a autoridade e o comando do Estado não chegava, o novo direito nascia à revelia
do ordenamento oficial, sujeito às determinações dos chefes dos clãs e da ligeireza dos mais
espertos. Conforme anuncia Zancanaro:
A desobediência generalizada à lei, o arranjo fácil e privatístico, as apropriações indébitas, o
suborno e os demais desvios morais, caracterizados como corrupção, que se haviam tornado
praxe corriqueira em todos os níveis da sociedade metropolitana, difundiram-se por todos os
recantos da Colônia. Era o resultado mais visível da irracionalidade do sistema patrimonial
de dominação.
54
53
___. IDEM. p. 85.
54
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 109.
60
Gilberto Freyre salienta que a influência romana nos portugueses fez sentir-se no direito.
Entretanto, o direito canônico também gozou de muito prestígio, v. e., a expressão popular,
queixar-se ao bispo, haja vista o prestígio da Igreja e a respectiva autorização para a jurisdição
dos bispos em causas civis desde que o autor ou réu optasse pelo julgamento episcopal.”
55
Registre-se, por oportuno, que a influência israelita sobre o explorador português não se
deu somente no caráter do mercantilismo, atingindo também o misticismo jurídico, o legalismo
e o bacharelismo. Recorde-se o simbólico anel no dedo, com rubi ou esmeralda, influência judia
ainda presente nos nossos tempos. Freyre descreve: E a mania de sermos todos doutores em
Portugal e sobretudo no Brasil até os guarda-livros bacharéis em comércio, os agrônomos,
os engenheiros, os veterinários – não será outra reminiscência sefardínica?
56
Sedento por lucros e dividendos, a participação de um quinto do produto das minas em
favor do príncipe é um bom indicativo do desiderato maior do reino. O direito administrativo
prevalecia, sendo a tutela dos direitos e das garantias individuais um sonho democrático distante
e onírico, estando todos os súditos subordinados ao comando real, sob pena de perseguição,
prisão ou morte, submetidos arbitrariamente à ordem política vigente. As relações privadas,
insignificantes para o apetite do soberano e seu estamento, passavam despercebidas, entregues
aos usos e costumes de cada localidade.
O comércio era movido através dos privilégios determinados pelo soberano, definindo
também o “comércio de trânsito” e expandindo o “comércio de dinheiro”, atividades delegadas
a terceiros, nacionais ou estrangeiros, sem maiores garantias jurídicas estáveis. A lógica das
leis e das decisões estava longe da impessoalidade e da igualdade dos valores, senão que sofria
ao arbítrio do príncipe, que alterava o regime jurídico de acordo com sua conveniência, sem se
prender às resistências dos interessados. Arbítrio, porém, não significa capricho, vinculado que
55
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 50ª ed. rev. São Paulo: Global, 2005, p. 283.
56
___. IDEM. p. 307.
61
estava à comunidade dirigente.”
57
Advirta-se que codificação portuguesa objetivava a
consolidação do sistema político, não guardando relação direta com as necessidades do
exercício da atividade mercantil por parte da burguesia comercial. Aliás, a Inglaterra não se
obrigou a ordenar seu direito para conseguir realizar com sucesso a expansão de seu sistema
econômico capitalista clássico.
Como se reproduziam na Colônia os mesmos padrões políticos e sociais da Metrópole, a
ordem jurídica portuguesa, de caráter marcadamente casuístico decorrência da supremacia e
do arbítrio do soberano também se disseminou na nova terra. O rei, grande pai da nação,
socorria a todos que se sentissem lesados nos seus direitos, proferindo, justa ou injustamente, a
decisão final. O soberano alterava as decisões judiciais conforme o seu alvitre, valendo-se de
um estatuto subjetivo e flexível, para reafirmar os laços de dependência com seus súditos.
Não por acaso, subvertido o direito e desmoralizado o poder central, os clãs familiares
desenvolveram, com as mesmas características centralizadora e arbitrária, um direito paralelo ao
oficial.
Como era preciso “afrouxar” a lei, os colonizadores, aventureiros e exploradores
encontraram na nova terra a desejada liberdade pessoal, livres de qualquer amarra ou condições,
certos da impunidade e da valorização da especulação, do crime e da corrupção. Zancanaro bem
esclarece a relação bipolar entre Estado e indivíduos, com a incorporação social de um
sentimento de desprezo à ordem constituída e de inutilidade em relação à lei, assim afirmando:
O estado, ao invés de constituir-se em elo estável e suprapessoal de ligação entre
indivíduos, foi introjetado como o outro pólo da relação pessoal. Nasceu dessa situação uma
relação de caráter subjetivo entre os indivíduos e aquela instituição. Pelo que os
funcionários que o representavam passaram a ser considerados como parceiros e amigos, a
quem se podia pedir favores, aliciando, subornando e corrompendo, com vistas a aumentar
seu cabedal. Corruptos e corruptores moviam-se pelo mesmo etos. As estruturas
patrimoniais de dominação perpassavam as consciências, tornando impossível a realização
do imperativo legal. Prevalecia, isto sim, a amizade, o apadrinhamento, o favoritismo, o
privilégio. Fixou-se a idéia de que, ao chefe e a quem detém o poder, tudo é permitido.
57
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 86.
62
(...)
Ressalta-se o grande paradoxo presente nessa situação. Se de um lado, as populações
desassistidas se inclinavam à submissão a um guia e tutor; de outro, incorporavam um
profundo desprezo pela disciplina e pela norma. A lei não era vista como elemento
importante para a sobrevivência do grupo. Pelo contrário, foi tida como empecilho à
realização dos interesses e liberdades privadas.
58
Longe estará da ordenação portuguesa o direito racional, impessoal e contratual, que
estipula formas e resultados iguais, previsíveis e conseqüentes para todos. O Estado patrimonial
de estamento separa propositalmente a sociedade da organização de poder, manipulando desde o
berço os dóceis cidadãos, acostumados, conformados e agradecidos com as migalhas concedidas
pelo soberano maior. A liberdade de cada súdito não vai além do seu pensamento segregado.
Tal realidade política é incompatível com o exercício material do direito e o gozo das
garantias e liberdades fundamentais, adequadas ao Estado Democrático de Direito. Fora dessas
garantias fundamentais, não espaço se não para uma estrutura com o predomínio absoluto da
vontade determinante do rei, representando a realidade jurídica mero simulacro do direito,
instrumento de aparência para consolidação escamoteada do superior, incontestável, altaneiro,
orientador, ditador, dissimulado e intocável poder político.
Tudo isso em nome da glória e da cobiça de poucos. Valores sociais impostos pelo
estamento, corporificado no ócio, nos privilégios e no dinheiro, esquecendo a força do trabalho
e a importância do semear previdente. Talvez imaginassem que o esquecimento e a manipulação
do curso da história lhes absolvessem da responsabilidade destes acontecimentos. Faoro
arremata:
O capitalismo comercial, politicamente orientado, só ele compatível com a organização
política estamental, sempre gradativamente burocrática, ajusta a si o direito, limita a
ideologia econômica, expande-se em monopólios, privilégios e concessões. Os parceiros da
jornada da África, Ásia e América se entendem e se ajudam, estabilizando a economia, nela
intervindo íntima e diretamente, sob a tutela do soberano. O Brasil, de terra a explorar,
58
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 145.
63
converte-se, em três séculos de assimilação, no herdeiro de uma longa história, em cujo seio
pulsa a Revolução de Avis e a corte de dom Manuel.
59
Vivendo da exploração dos burgueses que desempenhavam a atividade comercial, do
trabalho escravo exercido por homens, da pirataria e do tráfico de mercadorias, o estamento,
camada dirigente de feição burocrática composta por escolhidos afortunados, forma uma nova
aristocracia dominante que, junto à corte, influencia diretamente as decisões do príncipe.
Os lucros crescentes do comércio oceânico são devorados insaciavelmente pelo
estamento, pouco preocupado com a poupança do reino ou a previdência da nação. As
discordâncias sociais de ambas as classes são superadas em nome da nova odisséia ultramarina e
suas facetas: o estímulo as grandes navegações e a obtenção comum de lucros e riquezas
provenientes do Novo Mundo.
Vigente o absolutismo, enfraquecidos os municípios, conformada a nobreza e comprados
os comerciantes, o reino se transformara numa gigantesca empresa de negócios, estabelecendo
suas ações conforme as conveniências de cada momento. As aventuras tinham um preço alto a
ser pago pela população, mas representavam a manutenção dos benefícios, mordomias e
privilégios para nova aristocracia estamental.
Todo o reino voltou-se para ilusão da descoberta ultramarina. Para saciar a voracidade
européia, as caravelas eram esperadas em Lisboa lotadas de especiarias, homens escravos,
açúcar, pimenta, ouro, pau-brasil, conduzidas por portugueses piratas e comerciantes. A falsa
justificativa da e da catequização não logrou se estabelecer. Sinceridade e boas intenções
facilmente questionadas, as ações dos aventureiros portugueses eram incompatíveis com a
solidariedade cristã.
O rei, soberano absoluto, fundamentava suas conquistas na doutrina jurídica que
legitimava a exploração dos novos continentes e a expulsão dos comerciantes adversários. A
tradição do Estado patrimonial, com a influência e os interesses próprios do estamento, passou a
59
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 87.
64
diferenciar a propriedade da regência, possuindo o soberano a jurisdição sobre todos os que
vivessem no seu principado, situação não aplicável às novas terras esbulhadas, das quais se
intitulava somente senhor.
Inspirado na tradição e na cobiça (e, segundo Faoro, também na fé), o reino consolidou
uma organização política voltada para manutenção do Estado patrimonial de estamento
composto por militares e funcionários públicos a partir da subordinação e da exploração do
comércio. Como retrata Faoro: Inaugurava-se um ciclo que somente a Revolução Industrial
alterará, sem atingir, todavia, o sistema português, que se agarrou, com angústia e obstinação,
ao comercialismo, com a política de trânsito de mercadorias, sem fixação interna de fontes de
produção exportável.
60
A consolidação da cultura patrimonial com o absolutismo monárquico e a
supremacia naval portuguesa orientavam as novas conquistas com os instrumentos necessários e
convenientes para o sucesso das empreitadas. No oriente, contra os mouros, solidamente
estabelecidos no comércio indiano, o ânimo cruzado de ódio ao infiel islâmico. No Brasil,
diversa a realidade, a palavra da fé, espírito catequizador só compatível com povos dóceis como
os índios brasileiros.
A mistura de qualidades heterogêneas conferiu à jornada ultramarina o aspecto, ao mesmo
tempo, de cinismo, disfarçando o comércio, e de crueldade, resto de um antigo e obstinado
ódio. Um juízo histórico carregado de dureza viu, na empresa ultramarina, apenas a
pirataria, que deixava grossos cabedais nas mãos untadas da administração do reino e das
conquistas.
61
As circunstâncias singulares da nova terra descoberta por Portugal, possibilitaram, com
uma maior “liberdade”, a frouxidão dos costumes existentes, haja vista o isolamento das
comunidades, todas distantes da Metrópole. Situação esta que determinou, inclusive, uma
reação contra o abandono e o esquecimento da Colônia, acrescida à insatisfação contra a
60
___. IDEM. p. 96.
61
___. IDEM. p. 97.
65
arbitrariedade e os desmandos dos servidores do reino no Brasil, dando origem a novas
concepções de valores a partir dos hábitos e costumes locais.
Ressalte-se que a população da época estava dispersa na enormidade do território
nacional, não constituindo de fato uma sociedade organizada, carecendo de uma consciência
cívica. Nômade, improvisada e disposta a aventuras inconseqüentes, os colonizados não
viveram a experiência de uma unidade própria construída em torno de objetivos sociais comuns
e solidários.
Em contra partida, a ordem oficial: econômica, política e social, era regida por legislação
unitária, aplicável indistintamente à Colônia e à Metrópole, constituindo uma unidade formal
em torno do Império português. Faltou à Colônia uma administração própria, dirigida às
condições peculiares que apresentava. Sujeitou-se, pois, diretamente ao modelo tradicional da
estrutura patrimonial lusitana.
Desenvolvidos os velhos hábitos na Colônia, abertas novas possibilidades para a fortuna
fácil, ignorada a lei, os mandos e desmandos na coisa pública visam à arrecadação de vantagens,
bens e privilégios. E, diante da enormidade do território colonial, tornava-se impossível aplicar
eventuais sanções aos possíveis culpados. Perante a tradição da impunidade, o crime
compensava e servia de exemplo para a reprodução deletéria do mundo delituoso.
De outro norte, se não como falar na existência de uma sociedade brasileira no
período colonial, não como negar a formação dos clãs familiares, que, embora revoltosos à
política da Metrópole, de caráter patrimonial, guardavam idêntica formação na estrutura de
domínio de poder, ou seja, centralizadora, individualista, anti-social, autoritária e privatista. Mas
afinal, o que de fato ocorreu no período do Brasil-Colônia? Zancanaro responde a indagação:
Houve um recrudecimento dos antigos comportamentos anti-sociais desenvolvidos no
Reino. Repetiam-se, embora sob outras formas, os mesmos padrões de comportamento,
introjetados ao longo de séculos de vivências contrárias à ordem pública e dados a arranjos
e a acomodações. A desordem institucional agravou-se no Brasil-Colônia, acobertada pela
tradição de impunidade e pela intransponível distância entre a Colônia e o Reino os
mecanismos oficiais de controle sobre a produção, o comércio, a administração pública e
66
demais setores funcionavam mal – o que imaginar em relação ao Brasil, de território
imenso, populações rarefeitas e distantes da Metrópole?
62
Conforme registra Freyre, as características gerais da colonização portuguesa foram
marcantes no Brasil. no ano de 1532, no início da organização da sociedade nacional, a base
da economia gerava em torno da agricultura, da estabilidade familiar sob o controle do patriarca,
da exploração da escravidão humana, com destaque relacional para a união do português com
a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor”.
63
Soma-se ainda a
influência da cultura africana nos hábitos sexuais, alimentares e religiosos.
O português se mostra, comparado aos demais europeus, um tipo dinâmico
indeterminado, que desde sempre simpatizou com a cultura africana. Sua adaptabilidade, por
exemplo, é traço fundamental para que se entenda a forma de processamento da colonização
brasileira. A mobilidade social foi uma das habilidades portuguesas importantes para o sucesso
da empreitada ultramarina, destacando-se a miscibilidade, pois assim que aportaram em terras
brasileiras, trataram os colonizadores de misturar-se às mulheres indígenas sem qualquer
constrangimento.
64
O clima também se mostrou favorável à colonização portuguesa. A similaridade do
clima português ao brasileiro facilitou a fixação dos imigrantes, o que não ocorreu, com os
europeus do norte, por exemplo. Antes de vitoriosa a colonização portuguesa no Brasil, não se
compreendia outro tipo de domínio europeu nas regiões tropicais que não fosse o da
exploração comercial através de feitorias ou da pura extração de riqueza mineral.”
65
Segundo Freyre, a colonização portuguesa no Brasil desenvolveu-se de forma
patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar, não em grupos a
62
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra Citada. p. 105.
63
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 50ª ed. rev. São Paulo: Global, 2005, p. 65.
64
___. IDEM. p. 70.
65
___. IDEM. p. 78.
67
esmos e instáveis; em casas-grandes de taipa de pedra e cal, não em palhoças de
aventureiros”.
66
Posteriormente, aproximadamente nos séculos XVI e XVII, com a chegada dos
jesuítas ao País e o início de um sistema uniforme de educação, os religiosos buscavam difundir
a moral católica na nova colônia tão mole, plástica, quase sem osso
67
, pois a colônia
encontrava-se exposta às aventuras e explorações dos estrangeiros.
68
A mistura étnica da população livre correspondeu ao poor white trash das colônias
inglesas na América. Brancos, índios e mestiços, a mistura de raças e de cores, depois, também,
negros e pardos. Os escravos negros gozaram sobre os caboclos e brancarões livres da vantagem
de condições de vida antes conservadoras do que discriminatória da sua eugenia: resistiram mais
às doenças, perpetuando suas características com saúde e vigor em seus descendentes. “Da ação
da sífilis não se poderá dizer o mesmo; que esta foi a doença por excelência das casas-
grandes e das senzalas. A que o filho do senhor de engenho contraíra quase brincando entre
negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente aos doze ou aos treze anos.”
69
Desse modo, como reitera Freyre, claro transparece que a formação da estrutura
política, econômica e social brasileira tem sido
(...) um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A
cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia
agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O
bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate.
O grande proprietário e o paria. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos
os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.
70
Em que pese a formação de um grupo dirigente fechado e inacessível, entre tantos
antagonismos flagrantes na cultura nacional, entre conflitos e harmonias, não se pode negar a
66
___. IDEM. p. 79.
67
___. IDEM. p. 90.
68
___. IDEM. p. 91.
69
___. IDEM. p. 109.
70
___. IDEM. p. 116.
68
existência mesmo que dirigida, condicionada e limitada de uma certa mobilidade social
peculiar à realidade brasileira: a miscigenação, a dispersão da herança, a fácil e freqüente
mudança de profissão e de residência, o fácil e freqüente acesso a cargos e a elevadas posições
políticas e sociais de mestiços e de filhos naturais, o cristianismo lírico à portuguesa, a
tolerância moral, a hospitalidade a estrangeiros, a intercomunicação entre as diferentes zonas
do país.”
71
Além da escravização de homens e de mulheres negras, não passe em branco a
preliminar exploração dos índios brasileiros. Num processo de degradação da cultura indígena,
os nativos nacionais que se encontravam num momento de evolução primária, diversamente
do que ocorrerá com outros povos indígenas do continente americano – foram presas fáceis para
o apetite voraz do depredador português. Como crianças grandes”, ingênuas, dóceis e
acessíveis, não ofereceram qualquer resistência ao ataque mortífero.
72
Ao confirmar que a colonização do Brasil se processou aristocraticamente, fazendo-se o
senhor português dono de grandes faixas de terras, proprietário do maior número de homens de
todo o continente
73
, Freyre recorda que a descoberta (a invenção) do Brasil, mesmo que casual e
inicialmente ignorada pela Coroa portuguesa, viria a representar um grande projeto ultramarino-
mercantil, inaugurado pela viagem acidental de Vasco da Gama
74
.
O dinamismo das ações criminosas do reino português, estruturado administrativamente,
com servidores civis e militares, buscava potencializar a devora da exploração ultramarina, que
finalizaria num egoísmo doentio, incapaz de agregar um sentimento nacional ou um povo.
A criação crescente de funções e cargos públicos delegados pelo rei, determinou a super-
expansão da estrutura administrativa. Ao tempo em que o Estado se comprometia, o estamento
71
___. IDEM. p. 117.
72
___. IDEM. p. 158.
73
___. IDEM. p. 266-7.
74
___. IDEM. p. 275.
69
enriquecia, desfrutando das benesses e privilégios oriundos da estrutura formal e burocrática
portuguesa. Insaciável por lucros crescentes, um soberano comerciante estruturava sua
administração pública e empresa de guerra a partir da exploração econômica, fazendo
verdadeira confusão política.
Além de grande empresa comercial, o Estado era o Grande-Pai, sendo responsável pela
solução de todos os problemas particulares e a resolução de todos os anseios pessoais dos
súditos. O recurso ao empreguismo situação, ainda hoje, bastante evidente no Brasil servia
de moeda de troca para satisfação dos súditos e a manutenção do poder nas mãos do soberano.
O cargo público passa a ser objeto de cobiça individual generalizada. Ávidos pelo ócio,
todos tiveram o interesse despertado pela possibilidade de aquisição de rendas, lícitas e ilícitas,
ambas decorrentes do exercício das respectivas prerrogativas públicas. A idéia de eficiência,
interesse coletivo e fins públicos era estranha à figura do servidor, que desfrutava do cargo
exclusivamente no seu interesse particular e próprio.
O Estado patrimonial lusitano se estrutura como uma fabulosa fábrica de cabide de
empregos. Tudo era possível. A acumulação ou a venda de cargos, por exemplo, eram práticas
rotineiras. O servidor público vira sinônimo de ociosidade, benefícios, privilégios, vida cil,
suborno ou corrupção.
Entranhado numa sociedade hipócrita com volumosa corrupção e luxúria, avessa ao
trabalho semeado, a miséria material e espiritual foi o legado herdado pela nação. O popular
“puxa-saco” do chefe também teve sua origem na administração pública do reino lusitano. O
conselho esperado, a fala mansa amiga, sempre no agrado do ministro, afirmando os améns a
todos os desejos do superior. “A linhagem vale pouco, menos ainda o merecimento: a conquista
ao emprego, ao posto, à dignidade se faz à custa da intriga bem tecida, da conversa doce.
75
75
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 99.
70
Em sociedades como a brasileira, de um capitalismo patrimonial orientado, com larga
valorização das virtudes senhoriais, as qualidades do espírito são substituídas por títulos
honoríficos, e emblemas de status de poder, como o anel de grau e a carta de bacharel, que
podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.
76
A inicial preferência pelo estilo de vida rural concorda bem com o espírito da
dominação portuguesa
77
, representando as fundações das cidades uma estratégia para
centralização do poder do soberano. Para os lusitanos a colônia é um simples local de
passagem, para o governo como para os súditos
78
, sendo que por muito tempo apenas povoou-
se as faixas de terras litorâneas. “Não se convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos
quando não produzissem imediatos benefícios.”
79
Motivados pela descoberta de ouro em Minas
Gerais, somente no terceiro século do domínio português no Brasil é que viria a ocorrer o
desbravamento do interior.
80
O tino comercial, o tráfico das especiarias, a maquiagem dos argumentos jurídicos dos
letrados, a avareza real escamoteada, a burocracia manipulada pelo soberano, o funcionalismo
desmedido, são peças importantes para compreensão do Estado patrimonial de estamento.
O servidor público está por todos os lados, inflacionando a administração pública do
reino. Dirige, controla e limita a economia conforme suas próprias conveniências. Realidades
política e social se entrelaçam, representando a função pública fidalguia e riqueza financeira. A
venalidade, assim como a hipocrisia, são características básicas do servidor, unicamente
preocupado com o seu próprio umbigo, vigilante na manutenção dos benefícios e privilégios
oriundos do seu cargo público. Não fosse trágica, seria cômica a descrição de Faoro qualquer
76
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Obra citada. p. 83.
77
___. IDEM. p. 95.
78
___. IDEM. p. 99.
79
___. IDEM. p. 107.
80
___. IDEM. p. 102.
71
semelhança com a realidade brasileira atual não é mera coincidência referente ao costume
oculto do servidor público da época:
A expressão completa desta comédia se revela numa arte, cultivada às escondidas: a arte de
furtar. A nota de crítica e de censura flui de duas direções, ao caracterizar o enriquecimento
no cargo como atividade ilícita: a ética medieval, adversa à cobiça, e a ética burguesa,
timidamente empenhada em entregar o comércio ao comerciante.
81
As compras de mercadorias pela Coroa geravam lucros generosos para muitos.
Comparável à atual e comum prática brasileira do pagamento escamoteado de “comissões”, os
ministros reais preferiam adquirir mercadorias por preços mais elevados do que os ofertados
pelos vendedores, prontos para receber mais do que o devido pelas transações realizadas.
Comércio e governo são sinônimos no reino português, seguindo a administração pública a
orientação da economia, estruturando-se para o proveito do rei e do estamento. “Desta confusão
de águas não resulta apenas a peita, a corrupção, senão a enxurrada de servidores e
pretendentes a servidores, de soldados e dependentes, de reivindicadores de pensões para a
velhice.”
82
Nesse contexto privatista e individualista, a indistinção entre os interesses públicos e os
privados foi uma constante nacional. A confusão entre o público e o privado, a promiscuidade
entre as ações da vida particular e as atividades oficiais da vida pública, uma simbiose das
relações pessoais e públicas demonstram visivelmente a unidade dos bens do reino e do rei. O
patrimônio do Império português era tido como a fazenda privada do príncipe, sua fonte de
riquezas da promissora fábrica de negócios.
Nesse sentido, o emprego público, não guardava características públicas, representando
prerrogativa no interesse pessoal do beneficiado. O cargo era utilizado como instrumento para
amealhar, lícita e ilicitamente, novas riquezas às custas do erário. Aqui a simbiose entre o
81
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 100.
82
___. IDEM. p. 101.
72
público e o privado alcançava sua forma mais evidente e avassaladora. A função pública era
utilizada exclusivamente com o desiderato da obtenção de vantagens e benefícios pessoais.
A burocracia estatal, a mentalidade do homem português e a força centralizadora do
latifúndio, parecem ter sido os fatores preponderantes para confusão entre o que era público e o
que era privado.
Com o implemento de uma ética patrimonial voltada essencialmente para construção de
valores individuais, sem experimentar a experiência das liberdades públicas e das garantias
sociais, não se criou um ambiente propício ao desenvolvimento de uma política nacional e uma
cultura de solidariedade e comunhão. Evidente, pois, o motivo da confusão entre o público e o
privado.
Com pondera Holanda, no contexto da família patriarcal brasileira, era muito difícil,
para um ocupante de cargo público, com certo grau de responsabilidade, distinguir entre o
público e o privado. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo
com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com suas
capacidades próprias”. Pode-se dizer que no Brasil poucas vezes a administração pública foi
conduzida por funcionários “puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses
interesses”. A regra quase que absoluta, sempre foi, e continua sendo, o predomínio constante
das vontades particulares.”
83
Como sugere o autor:“Todo afeto entre os homens funda-se
forçosamente em preferências”, mas de se entender que com a simples cordialidade não se
criam os bons princípios.”
84
A estrutura administrativa é sufocada pelo crescente e desnecessário preenchimento de
cargos públicos, e o conseqüente pagamento de gordos salários, que ocasionam a anemia
crônica nos cofres reais. À custa da arrecadação do reino, soberano e a camada privilegiada que
o cerca, alimenta vícios, privilégios e costumes fúteis, longe da manutenção comum necessária à
83
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Obra citada. p. 146.
84
___. IDEM. p. 185.
73
sobrevivência. A ruína do Estado patrimonial está justamente no aumento contínuo de cargos e
servidores públicos enclausurados na bolha mágica do ócio e da busca frenética por prazeres
questionáveis. O congelamento de dois mundos é assim determinado, enraizada a estrutura da
empresa patrimonial – falida, mas imortal –, ausente a base da produção doméstica ou da
indústria renovadora. O padre Antônio Vieira, referido por Faoro, assim aconselhou o soberano
sobre a necessidade da instituição de um ou dois cargos de capitães-mores no reino português:
Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultosos serão de achar dois
homens de bem que um [...] Tais são os dois capitães-mores em que se repartiu este
governo:Baltasar de Sousa não tem nada, Inácio do Rego não lhe basta nada; e eu não sei qual
é maior tentação, se a necessidade, se a cobiça.”
85
Pode-se indicar, sem receio de exagero, que a organização patrimonialista, encastelada
em si própria, reproduz uma burocracia pessoal e determinada, consistente unicamente no
interesse do aparelhamento através da distribuição de cargos públicos. Ocupação pública que
concede ao indivíduo certa parcela de poder e de privilégios cobiçados por quase todos. Faoro
resume bem a questão
O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o estamento,
de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como
aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo – o cargo carregado de poder próprio,
articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência. O Estado ainda
não é uma pirâmide autoritária, mas um feixe de cargos, reunidos por coordenação, com
respeito à aristocracia dos subordinados. A comercialização da economia, proporcionando
ingressos em dinheiro e assegurando o pagamento periódico das despesas, permitiu a
abertura do recrutamento, sem que ao funcionário incumbissem os gastos da burocracia,
financiando os seus dependentes. Todos cargos elevados que davam nobreza ou
qualificavam origem aristocrática –, como os cargos modestos, hauriam a vida e o calor do
tesouro, diretamente vinculado à vigilância do soberano.
86
O erário do reino é subsidiado através do controle e da exploração da atividade
comercial. o se deseja em Portugal um Robin Hood
87
conhecido pelos lusitanos como o
85
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 102.
86
___. IDEM. p. 102-3.
87
Herói mítico inglês: fora-da-lei que roubava dos ricos para dar aos pobres, aos tempos do Rei Ricardo Coração
de Leão (século XIII).
74
Robim dos Bosques –, nem um soberano imparcial, apegado ao texto da lei ou aos princípios
democráticos da igualdade e da impessoalidade. O príncipe deveria ser, mesmo que
teatralmente, íntimo do povo, preocupado com o bem-estar da nação, conferindo oportunidades
distintas e ofertando a divisão das rendas. Não demora a consolidação da relação doentia de
dependência, evocando a população a ajuda do Grande-Pai, disposto ao socorro de seus pobres
súditos.
Observa-se que o sistema de educação lusitano é orientado, coerentemente, para
formação dos elementos necessários para consolidação e perpetuação do sistema patrimonial.
Serão formados funcionários, letrados, juristas, militares, comerciantes e navegadores
apropriados ao alcance dos objetivos comuns da Coroa e do estamento: o lucro fácil, o ócio, o
prestígio e o gozo dos privilégios. O luxo, o gosto suntuário, a casa ostentatória são
necessários à aristocracia. O consumo improdutivo lhes transmite prestígio, prestígio como
instrumento de poder entre os pares e o príncipe, sobre as massas, sugerindo-lhes grandeza,
importância, força.”
88
A realidade do reino português, caracterizado pela irracionalidade e pela ilusão da
estabilidade economia monetária, é incompatível com o capitalismo industrial, seguindo a
orientação de um capitalismo direcionado nos interesses recíprocos do príncipe e seus parceiros
aristocráticos. As atividades industriais, agrárias, de produção e colonização serão previamente
definidas pelo rei em nome de toda a nação.
O governo é onipresente, tutelando, diretamente ou por delegação, os interesses
individuais e coletivos de toda sociedade nacional, eternamente incapaz de gerir a si própria
pelo mérito do esforço pessoal. O Estado é o grande empresário da nação. Especula e investe
ardilosamente em busca dos lucros necessários para o favorecimento da grande empresa real e
seus associados escolhidos. As idéias inovadoras, a indústria e tecnologia de ponta, não são
88
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 103.
75
bem-vindas pelo estamento, que retarda com as roupagens superficiais enganosas de
modernidade – o efetivo desenvolvimento do reino.
A árvore, submetida ao oxigênio viciado de estufa, não perece; produz sempre os mesmos
frutos, cada vez mais pecos, sem polpa, amarelos. Enquanto o mundo corre o seu destino, a
Península Ibérica, mesmo túrgida com as colônias americanas, para as quais transferirá sua
herança política e administrativa, esfria e se congela. A nobreza funcionará, pobre de
horizontes mais amplos, teimosamente empenhada em viver o seu estilo de vida, amortalha-
se nas roupas de conquista, mumifica-se com a própria carne. (...) impedindo o setor
particular de florescer, ele submete a fidalguia a uma perigosa dieta, entre a fome e a morte.
A crise, atingindo a nobreza, fere todo o reino, sobre o qual ela incrusta suas unhas
envenenadas. Nem o açúcar do Brasil, nem o escravo africano, nem o ouro de Minas Gerais
– nada salvará este mundo, condenado à mansa agonia de muitos séculos.
89
Uma doença aparentemente incurável toma conta da alma e do espírito português.
Haverá antibiótico capaz de curar grave moléstia? A corrupção endêmica do reino não mata,
mas paralisa o indivíduo na sua essência humana enquanto ser pensante, escravo de um sistema
cíclico, viciado, auto-reprodutivo e automaticamente burocrático.
90
O sentimento da
independência nacional deixa de ser importante ou socialmente valorizado. Os judeus
portugueses, únicos que poderiam com sucesso reagir à paralisia, revigorando a economia e a
promessa de modernidade haja vista que imunizados pela vacina de uma cultura foram
perseguidos pela fúria da Inquisição, humilhados, destruídos, execrados, expulsos do próprio
País.
Debates e teses acadêmicas diversas, entre causas, sintomas e efeitos dessa doença, a
incompatibilidade do lusitano com o espírito capitalista liberal determinou inquestionavelmente
o estrangulamento da nação por uma estrutura patrimonial, criada a partir de suas próprias
entranhas, determinante principal de seu apogeu e de sua decadência. Quando um brando de
pessimismo aponta a miséria do dia seguinte, é ainda ao Estado que se pede o remédio, o
Estado fonte de todos os milagres e pai de todas as desgraças.”
91
89
___. IDEM. p. 104.
90
Trata-se de uma burocracia pessoal dirigida ao preenchimento da estrutura administrativa portuguesa através da
distribuição de privilégios, cargos e funções públicas.
91
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 105.
76
A Colônia, ao longo de três séculos, não experimentou e nem dividiu experiências
coletivas de comportamento social, a partir de uma ética solidária e tolerante, edificada a partir
de interesses comuns públicos. Ao contrário, reproduziu uma prática de convivência em torno
da disputa, da cobiça e da ganância, sempre em busca de privilégios e benefícios pessoais,
sobrepondo os interesses individuais aos sociais.
A burocracia estatal reproduzida na Colônia e, paralelamente, a estrutura de comando
dos caudilhos, sacramentaram o desenvolvimento de um padrão de conduta ética, fundamentado
a partir de uma forte tendência ao autoritarismo, de uma preferência ao individualismo e de uma
visão privativa de domínio.
A experiência da mentalidade patrimonial pelo homem nacional foi tão influente que
permaneceu sólida e consistente até os dias de hoje. A Independência do Brasil, a Proclamação
da República, as revoltas populares, as revoluções conduzidas pelo estamento, o
constitucionalismo formal, as escolhas eleitorais, enfim, as promessas da modernidade não
conseguiram alterar o rumo dessa história, representada pelo individualismo e pela prevalência
dos interesses pessoais sobre os coletivos. A sociedade nacional, impregnada de valores
negativos, como não poderia ser diferente, sentiu em seu corpo, nos componentes que a formam,
servidores públicos, representantes políticos, empresários e trabalhadores, a força de um legado
ético, de uma cultura voltada à fraude, à rapinagem, ao crime, ao lucro e à corrupção.
O Brasil, contaminado desde a invenção portuguesa, acostumou-se a conviver com a
banalização da enfermidade. Internado em estado de coma na UTI (Unidade de Tratamento
Intensivo), escravo da ignorância, da miséria, da ganância, do crime e da corrupção
generalizada, o brasileiro – ainda dependente do Estado patrimonial de estamento – sonha com a
conquista de mais um tulo da Copa do Mundo de Futebol. O que somos afinal? Faoro traduz o
pensamento crítico para reflexão coletiva:
O que realmente fomos: nulos, graças à monarquia aristocrática! Essa monarquia,
acostumando o povo a servir, habituando-o à inércia de quem espera tudo de cima, obliterou
o sentimento instintivo de liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a
77
iniciativa; quando mais tarde lhe deram a liberdade, não a compreendeu; ainda hoje não a
compreende, nem sabe usar dela... Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem
desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego:
o que não podem, sem indignidade, é trabalhar!
92
Os portugueses, avessos ao trabalho, tipicamente aventureiros, buscavam o ganho fácil,
usurpando, saqueando e sugando os países colonizados até a anemia profunda. Holanda explica:
Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem e regulam
diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos: o
aventureiro e o trabalhador. nas sociedades rudimentares manifestam-se eles, segundo
sua predominância, na distinção fundamental entre os povos caçadores ou coletores e os
povos lavradores. Para uns, o objeto final, a mira de todo esforço, o ponto de chegada,
assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos,
todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore.
Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa
amplitude e, onde quer que se erija um obstáculo a seus próprios ambiciosos, sabe
transformar esse obstáculo em trampolim. Vive de espaços ilimitados, dos projetos vastos,
dos horizontes distantes.
O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o
triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede
todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem
sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior do que
o todo.
Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo
trabalhador atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo a praticar e,
inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia,
imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem tudo, enfim, quanto se
relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo.
93
As conquistas ultramarinas deixaram suas cicatrizes nos povos explorados: um rastro de
depredação, destruição, assalto, rapinagens, homicídios, estupros, tortura, escravidão, enfim,
crimes bárbaros e cruéis. A cruzada em nome da cristã serviu de pretexto à empreitada
delituosa, ocultando as verdadeiras intenções da colonização devastadora. Ao contrário do que
sustenta Faoro, a religião foi puro argumento falacioso para justificar o assalto e a exploração.
92
___. IDEM.
93
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Obra citada. p. 44.
78
O império do crime, associado à degradação moral, somaram-se a imprevidência e a
falta de bom-senso, não havendo qualquer projeto educativo para formação e planejamento das
novas gerações, crescente o estímulo para o ócio e a rapinagem. O trabalho metódico e
sistemático era repugnado, classificado com atividade vexatória digna somente de escravos.
A ética da jornada ultramarina portuguesa, se baseava, pois, numa estrutura medular
ímproba e corrupta. Eis os comandos da ética dominante: subornar, matar, extorquir, dilapidar,
estuprar, consumir, explorar, sugar, aproveitar, arrecadar, sempre à custa do esforço alheio e do
erário. O resultado de séculos de exploração impensada foi a diminuição da alma e da mente dos
indivíduos, que, desmoralizados e empobrecidos, consomem-se uns aos outros, assim como a si
próprios.
As características do homem padrão português, vivente da época dos descobrimentos,
podem ser resumidas na aversão ao trabalho, na mania nobiliárquica e na decadência moral dos
costumes e da família.
O desejo pela ociosidade se impregnou nas entranhas de toda sociedade lusitana, sendo a
servidão dos escravos uma prática comum, inclusive, aos homens honestos, que restaram
conformados àquilo que julgavam indevido. Zancanaro assevera que: Quem não estava
envolvido com as navegações ou com o comércio ultramarino passava a vida na ociosidade
completa, contribuindo para a degradação da ordem pública e dos costumes, pondo em risco o
futuro da Nação.”
94
O gosto pelo fausto, mordomias e privilégios, servia, não raras vezes, como mera
aparência teatral para sustentação de um status falacioso, buscando aparentar usufruir dos
mesmos costumes e procederes da nobreza. Salvo os nobres e os cortesões e, depois, ou
burgueses -, a maioria da população vivia na penúria, sem acesso, inclusive, aos bens essenciais.
94
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 85.
79
O fundamental era a aparência. Segundo o autor: “Poder vir a público precedido ou cercado por
um bom número de escravos, conferia grande honra e respeitabilidade social.”
95
Nesse quadro de degradação moral e material, outra conseqüência não poderia ocorrer
senão a decadência dos costumes e da família. O ócio, o ganho fácil, a prostituição e a orgia,
tudo fermentado num caldeirão avassalador. Conforme descreve Zancanaro: Aos jovens e ás
crianças nada se ensinava: nenhuma educação para o trabalho; nenhum estímulo ao senso ou
dever familiar e social; nenhuma orientação profissional, política ou de economia.”
96
Assim, a pouca disposição portuguesa para o trabalho sem compensações imediatas, a
ansiedade pela prosperidade gratuita, a busca por riquezas fáceis e títulos honoríficos, a
aventura ultramarina em busca do novo mundo, constituíram-se um grande estímulo ao
explorador lusitano.
97
Chegando ao País, os aventureiros se depararam com terras férteis no
Nordeste, favoráveis à exploração latifundiária e a monocultura. Todavia, considerando sua
aversão ao trabalho agrário, o tráfico da mão de obra africana escrava foi a solução lucrativa
determinada.
98
Os portugueses buscavam no Brasil a riqueza sem o esforço, sempre na
incessantemente e contínua tarefa de usurpar dividendos para manutenção da estrutura
administrativa patrimonial estamental. Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios
sem grandes sacrifícios”.
99
Os portugueses, impregnados do espírito aventureiro, tornaram-se uma potência
ultramarina e, como nenhum outro povo da Europa, armou-se tão bem para tal aventura. Mas,
apesar disso, a exploração “fez-se antes com desleixo e certo abandono”.
100
95
___. IDEM.
96
___. IDEM. p. 88.
97
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Obra citada. p. 46.
98
___. IDEM. p. 48.
99
___. IDEM. p. 52.
100
___. IDEM. p. 43.
80
A cultura da cana-de-açúcar foi introduzida pelos mouros aos portugueses, assim como o
moinho de água e supõe-se até o cultivo de oliveiras. A cana-de-açúcar importada da Ilha de
Madeira foi o que deu organização agrária e possibilidade de fixidez às colônias portuguesas na
América.
101
Colonizou o Brasil uma nação de homens mal-nutridos. Ao contrário da visão de bem
alimentado que se costuma atribuir aos portugueses, o colonizador primeiramente preteriu a
agricultura pelas aventuras marítimas e depois, ao incentivar a monocultura causou uma
situação de miséria da população em geral.
102
Sem qualquer situação similar ou análoga em outros povos, em Portugal tudo era
decadente. Avesso à reflexão consciente, o indivíduo lusitano procurava exercer atividades com
resultados fáceis e imediatos, demonstrando o pouco valor dado ao trabalho sistemático e
persistente. Após a euforia dos descobrimentos e da invenção do Brasil, a Metrópole voltaria
para a mesma situação em que sempre se encontrou, ou seja, para degradação moral e material,
fruto de uma ética devoradora.
Os sistemas democráticos, em toda parte do globo terrestre, valorizam o trabalho e o
merecimento, fruto do desenvolvimento e do aperfeiçoamento individual e coletivo de uma
comunidade, compatível com a convivência tolerante entre sujeitos diferentes. Para nós
lusitanos e brasileiros –, ao contrário, contaminados de histórico preconceito, o trabalho é
sinônimo de inferioridade, de subordinação e de incompetência. Herança da educação secular
tradicional portuguesa, caracterizada pela guerra, pelo patrimônio e pela soberania gananciosa
do rei, preferimos a pobreza ociosa e arrogante na aristocracia, do que a prosperidade do
trabalho na democracia. A história não vacila! Somos responsáveis por nossos atos, queiramos
ou não. As conseqüências de séculos de exploração, pirataria, tráfico e manipulação geraram
101
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 50ª ed. rev. São Paulo: Global, 2005, p. 289.
102
___. IDEM. p. 315.
81
seus frutos. Ainda sem ânimo para buscar outra perspectiva, adormecidos pela ilusão do canto
da sereia, continuamos aprisionados como no passado.
Com a utilização de diversas maquiagens e roupagens sempre renovadas, mentiras e
justificativas legais convenientes, facilmente o estamento manipula as massas, que não
distinguem o trabalho edificante e paciente, da aventura inconseqüente, assim como a empresa
planejada e eficiente, da especulação imediata. Em Portugal, como no Brasil dos nossos dias,
tudo acaba em crise: Crise do ouro, crise do açúcar, crise inflacionária, crise de instituições etc.
Histórias que se repetem aos longos dos séculos, sob o arcaísmo de uma estrutura social
consubstanciada no patrimonialismo e na sua criatura persistente: o estamento. O ciclo vicioso
se reproduz a cada dia, e a camada dirigente não permite o fim de seus privilégios,
permanecendo veladamente contrária ao desaparecimento de um fabuloso esquema de
corrupção generalizada, enfim, oposta à renovação política, ao desenvolvimento econômico, à
democracia social, à liberdade humana, à educação para formação do sujeito crítico, consciente
e pensante.
Que estrutura de poder e domínio é essa que manipula as massas conforme seus
interesses? A identificação do estamento é verdadeira ou pura ficção teórica? Persiste o
estamento vivo no Brasil dos tempos atuais? O que é, como se comporta e como se desenvolveu
esta estrutura autônoma, superior à sociedade? Que estamento é esse?
O estamento, composto por um quadro administrativo dominante, parte sólida do estado-
maior do soberano, é caracterizado pelo controle de uma minoria privilegiada, sob uma maioria
manipulada. Uma massa ignorante de indivíduos é manipulada através da imposição de padrões
de condutas e regras formais destinadas à consolidação do poder deste grupo dirigente. O
estamento não representa os interesses da maioria que controla. Legitima a soberania por si
próprio, encastelado e altaneiro, um governo centralizado nos seus privilégios, absolutamente
insensível à realidade da população, senão em épocas de revoltas, posto que sobrevive da
estabilidade do sistema político. Faoro confirma
82
A minoria exerce o governo em nome próprio, o se socorre da nação para justificar o
poder, ou para legitimá-lo jurídica e moralmente. Uma tradição, expressa algumas vezes em
doutrina, tranqüiliza a consciência dos governantes, formados na escola aristocrática. Os
poucos os quarenta ou cinqüenta do filósofo florentino governam e mandam porque
devem dirigir, porque deles é a supremacia política e social. O comitê executivo, agarrado
às rédeas, representa este de fato representa um segmento que se apropria do estado,
sem condescendência com a presumível vontade do povo. A nação só não deve se organizar
para se converter em inimiga, no limite do jugo tolerável. O contato entre governo e
governados, distante, frio, indiferente, ganha dramaticidade nesse limite extremo, no
limiar da conduta que despoja o povo de sua honra e do pão. Fora daí, pela violência ou pela
astúcia, com a mão suave ou com a mão severa, tudo se permite, contanto que não se quebre
a comunidade armada junto da Coroa.
103
Não realidade atual no Brasil, o estamento se formou a partir das entranhas do Estado
patrimonial português, berço adequado a sua gestação e crescimento autônomo. Em Portugal,
este grupo dirigente privilegiado, identificado com a aristocracia secular, compõe uma nobreza
burocrática que não se confunde com a elite governante. “A elite governamental, dentro da rede
social da aristocracia, da qual o estamento tece sua estrutura externa, obedece ao cunho do
estilo de vida, das normas de conduta da nobreza burocrática.”
104
É preciso, contudo, mesmo que aparentemente, adaptar-se aos acontecimentos
modernos, ficando atento contra os perigos que se avizinham. O estamento congela a nação,
mas não dorme. Com o contínuo aparecimento de novas teorias e tecnologias ao longo dos
séculos, foi preciso “dançar conforme a música”, nunca, entretanto, deixando de ser o dançarino
principal. Da preocupação com a desintegração da nobreza, ou com o florescimento do
socialismo como teoria da classe dirigente, ao combate da teoria democrática da soberania
popular. O governo da minoria, a pretexto de representar a população, a manipula, deforma e
sufoca. Cuida-se de uma estratégia secreta com roupagem na ordem democrática, formada na
modernidade, porém rigorosamente contrária aos princípios fundamentais do Estado
Democrático de Direito.
103
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 108.
104
___. IDEM.
83
Enquanto a doutrina da soberania popular de Rousseau é disseminada em quase toda
Europa Ocidental, convertida em verdadeiro dogma, o grupo dirigente a nega, em que pese a
demonstração histórica do sucesso dos sistemas representativos. A democracia, para o
estamento, deve ser reduzida e aplicável somente entre seus membros.
Sem a renovação das classes condutoras, a ordem social se convulsiona, sobrevivendo
do próprio veneno que produz. A excitação das forças dirigentes, que determinam de baixo para
cima, de fora para dentro, as exigências sociais, se mantém sólidas, através do processo de
revitalização e alternância das elites. A história não é senão um cemitério de elites, que
correm, ao longo do leito secular, como um rio: a classe dirigente de hoje não será a mesma de
ontem.
105
A classe composta por uma eleite, no Estado moderno, ganha consistência com o
desenvolvimento da burocracia e a eficiência dos sistemas econômicos, estrangulando a
convivência harmônica entre os indivíduos, e teorizando os propagados princípios de liberdade
e de igualdade. A classe dominante, portanto, diversamente do estamento, acaba por ser um
produto do seu próprio meio democrático, autoritário ou aristocrático –, com características
dependentes do sistema político que a originou.
A elite dirigente, pois, não se confunde com o estamento, vinculado desde sua origem à
aristocracia pré-burguesa, anteriormente a consolidação do princípio da soberania popular no
Estado moderno. se assemelha ao estamento, pela identificação do comando e exercício
minoritário de poder. Independentemente do sistema político de governo, com a prevalência ou
não do regime estamental, pode ocorrer a falta de uma elite capaz de dirigir os comandos,
objetivos e missões do Estado, cuja base é o próprio estamento.
No Brasil, como em Portugal, o poder político, social e econômico foi concentrado
exclusivamente numa camada minoritária institucionalizada, o que permitiu o desenvolvimento
de uma aristocracia peculiar, marcada por características próprias e bem delineadas, da qual
105
___. IDEM. p. 110.
84
depende, inclusive, a elite dirigente, classe política que se subordinada e a serviço de um
comando superior, qual seja, o Estado patrimonial estamental. Faoro assim se pronuncia:
Numa ordem de estamento, o vazio é rapidamente preenchido, por meio de chefes e líderes
designados do seio da camada de domínio, líderes e chefes de que ninguém conhecia o
nome. Esse preenchimento das funções institucionalizadas do poder se faz num sentido
conservador, num compasso provisório de espera, até que, da faixa dirigente, se decantem
os dirigentes. Há, nesse processo, o jogo de muitos artifícios e falsidades: as mudanças
estruturais provocam o alheamento da elite, em seu lugar opera a comunidade que a
sustenta, que provê a sociedade de liderança. Essa liderança, em deslocamentos dentro da
mesma faixa de origem, conquista a confiança popular e lhe infunde, de cima, a
representação arbitral de interesses comuns. Nesta dança, orquestrada pelo estamento, não
entra o povo: quem seleciona, remove, consolida as chefias é a comunidade de domínio,
num ensaio maquiavélico de captação do assentimento popular. A soberania popular
funciona às avessas, numa obscura e impenetrável maquinação de bastidores, sem o efetivo
concurso da maioria, reduzida a espectador que cala ou aplaude. Aqui está o ponto de
contato da classe dirigente com o estamento, força, este, aparentemente de reserva,
depositário, na realidade, das energias políticas. Por via desse circuito, torna-se claro que
elite e estamento são realidades diversas, articulada a primeira no serviço da segunda, que a
define, caracteriza e lhe infunde a energia.
106
A alternância do predomínio de grupos e classes na direção do poder não foi conhecida
em Portugal ou no Brasil. O estamento, modelo único, fechado e sedimentado, de caráter estável
e perpétuo, exerce o poder minoritário sem qualquer comprometimento com o efetivo exercício
da cidadania por parte da maioria, ficando alheio e indiferente aos conceitos de nação,
constituição e garantias fundamentais. Isolado, fechado em si próprio, esgotado nas energias de
sua criação, o estamento manipula as massas com sua concepção falaciosa do mundo,
universalizando tendências, idéias, informações, sentimentos e valores.
Com o objetivo contínuo, organizado e persistente de preservar sua unidade de
pensamento, utilizando como instrumento eficaz um sistema político de caráter abstrato
direcionado para as doutrinas universais (e hoje, modernamente, valendo-se também do
fenômeno da chamada globalização), o estamento anestesia a sociedade e, a si próprio,
sufocado no idealismo de fórmulas, procedimentos e padrões. O povo, massa ignorante de
manobra, sofre seduzido pelo “canto da sereia”, sufocado, num congelamento que não permite a
106
___. IDEM. p. 111-112.
85
respiração. A aparente modernização do Estado patrimonial de estamento é mera maquiagem
calculada e prevista – para a continuidade estável do seu retardo.
O estamento absorve as técnicas importadas, refreando a elite ocidentalizadora, para que as
novas idéias e ideologias não perturbem o domínio da sociedade, mesmo vestido de
palavras novas, tradicionalmente cunhado.
Somente a perspectiva histórica dará o traço que completará o quadro. O estamento como
categoria autônoma, superior à sociedade, emancipado do caudal triturador da história – este
o problema não solvido. Quatro séculos de hesitações e de ão, de avanços e recuos, de
grandeza e de vacilação serão a resposta de um passado teimosamente fixado na alma da
nação. Estado e nação, governo e povo, dissociados e em velado antagonismo, marcham em
trilhas próprias, num equívoco renovado todos os séculos, em contínua e ardente procura
recíproca.
107
A história pode ser interpretada conforme a conveniência de quem a descreve, todavia,
as evidências efetivamente comprovadas podem demonstrar os indicativos dos rumos dos fatos,
possibilitando, a partir do contexto histórico, considerações racionais sobre os acontecimentos
atuais da realidade brasileira.
Pela leitura instigante de séculos de história, uma estrutura político-social
consubstanciada pelo capitalismo orientado, moldou a realidade portuguesa e a brasileira.
Resistindo ao tempo, às transformações fundamentais ocorridas na humanidade, incorporado
aos acontecimentos modernos, o estamento continua a manipular, explorar e matar a sociedade.
Uma forma de poder legitimada na tradição, institucionalizada no domínio patrimonialista,
incutida na população o conformismo hipócrita e falacioso, resumido na idéia de que sempre foi
assim, e sempre será.
Através de uma atividade econômica primordialmente comercial, direcionada e limitada
pelo poder maior, o patrimonialismo estamental seguiu sua contínua expansão, adaptando-se
quando necessário, escolhendo a roupagem adequada para cada ocasião. Voltado para o lucro e
para a grande aventura do capital, o estamento incentiva o setor especulativo da economia sem
qualquer cerimônia ou constrangimento, sempre buscando satisfazer o apetite voraz e insaciável
107
___. IDEM.
86
de seu quadro administrativo. Eis a grande peculiaridade da ordem patrimonialista: estabelecer
sua integridade, haja o que houver, ocorra o que ocorrer.
Com o ideário controverso e marcante do capitalismo reconhecido como moderno e
padronizado universalmente hoje não mais no mundo ocidental –, sucessor da
racionalidade, da burocracia legal e da revolução industrial, compatível teoricamente com os
princípios constitucionais da liberdade, da igualdade, da imparcialidade, da transparência, da
legalidade e da moralidade, o indivíduo passa de súdito a cidadão. O Estado, por sua vez, de
senhor a servidor, defensor primeiro da soberania popular e das garantias fundamentais dos
cidadãos, podendo o homem livre dispor da propriedade, do comércio e da iniciativa política. A
lei passa ou passaria a ser a expressão da vontade geral institucionalizada, limitando a
interferência estatal e legitimando a relação entre povo e Estado. É a chamada legitimidade do
liberalismo capitalista, identificada com o chamado “Estado burguês de direito”, etapa
precedente do “Estado democrático de direito”.
Segundo o pensamento liberal, assim como paradoxalmente no ideário marxista, o
Estado de liberdade consagraria a perfeição almejada, enquanto o Estado patrimonial,
representaria o atraso, o passado, a imperfeição. Assim, o modelo do capitalismo liberal viria a
absorver, através de suas técnicas e substâncias, as formas ultrapassadas. Ou seja, os países
desenvolvidos pelo capitalismo industrial representariam o padrão ideal a ser alcançado pelas
nações ditas subdesenvolvidas.
Da pressão externa em busca da perfeição, das deficiências do desenvolvimento não
terminado, da interpretação histórica padronizada doutrinariamente, dos saltos da história,
herdamos os males que nos afligem nos tempos modernos. Ser, até quando, o País do futuro? A
eterna promessa para as gerações futuras, sempre à espera do momento certo, da oportunidade
derradeira, da intervenção divina, do salvador da pátria. Com a desigualdade do ritmo da
história, estaríamos todos condenados ao constrangimento de queimar etapas iguais ou
diversas das sucedidas em outros mundos, com realidades e acontecimentos diversos –, de
evoluir em saltos, diretamente para o ideal prometido?
87
Dessa consideração puramente teórica do atraso e do subdesenvolvimento, surge a teoria
do desenvolvimento combinado com a aproximação das etapas a serem percorridas em busca
da perfeição – que representaria a combinação de fases distintas, as vezes incompatíveis entre si.
Ocorre, entretanto, que tanto as considerações liberais, como as marxistas, partem do
pressuposto de que o Estado patrimonial caracterizado pelo capitalismo politicamente
orientado é um fenômeno transitório, quer como alternativa ineficaz ultrapassada, quer como
fase necessária a uma transição. A partir do tipo ideal o capitalismo moderno – interpretam-se
os sistemas políticos diversos, como desvios imperfeitos dos acontecimentos, numa concepção
linear da história, sem considerar que o passado tem seu próprio caminho, sua própria realização
humana. A unidade da história a partir do império do capitalismo ideal pode conduzir a graves
equívocos de interpretação e, conseqüentemente, a verdades parciais.
A realidade brasileira, a exemplo do reino de Portugal, comprovou a persistência
temporal do Estado patrimonial de estamento. Um grupo determinado a permanecer no
comando estatal permanente e perpetuamente, independente das estruturas sociais, dos sistemas
políticos, dos modelos econômicos ou das revoluções universais que se impuseram, ou que
virão a se determinar pelo curso da história. O estamento assumiu do capitalismo moderno a
técnica e os instrumentos, avesso, porém, à impessoalidade e ao cumprimento dos contratos
sociais.
Nações e estruturas de poder se modernizam, de uma forma ou de outra, posto que
sujeitas às interferências internas e externas do meio humano, universal e complexo,
especialmente em tempos de globalização. Em constante e contínua adaptação, considerando a
evolução própria de sua realidade específica, o estamento brasileiro seguiu seu rumo, mantendo
o poder superior no seu quadro administrativo aristocrático, progressivamente, em
transformação de acomodação às forças reagentes de seu tempo.
O domínio tradicional patrimonialista se apossa das oportunidades econômicas, sociais e
políticas, das concessões, dos privilégios, das funções públicas, enfim, de tudo que tem valor e
apreço material, numa verdadeira simbiose entre público e privado. Provém do comando
88
soberano exercido ao lado do grupo estamental, sem o qual o poder concentrado numa chefia
única, converte-se em patriarcal, identificável no poder do grande fazendeiro, no mando do
senhor do engenho, no arbítrio dos coronéis.
Com a burocratização do estamento, o patrimonialismo primário se transforma em
estatal, adotando o comércio como base de sua sustentação financeira através do capitalismo
politicamente orientado, o que demonstra o ajustamento do estamento às tendências do
capitalismo liberal moderno, fator importante para perfeita compreensão do fenômeno histórico
português-brasileiro ao longo da história e do tempo. Em sentido oposto, o sistema feudal, não
resiste ao impacto do capitalismo liberal moderno, destruindo-se internamente, haja vista que
petrificado e inflexível é rebelde e incompatível à nova feição política, econômica e social.
Faoro observa que
(...) o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente
estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de
intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de
atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai
da gestão direta à regulamentação material da economia.
Este curso histórico leva à admissão de um sistema de forças políticas, que sociólogos e
historiadores relutam em reconhecer, atemorizados pelo paradoxo, em nome de premissas
teóricas de vária índole. Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político
uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes
impera, rege e governa, em nome próprio, num rculo impermeável de comando. Esta
camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do
tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os
recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores.
108
Pode-se considerar que o desenvolvimento democrático e independente de um Estado
soberano está relacionado como ocorre nos países ditos adiantados ou desenvolvidos com a
ausência ou pouca influência dos estamentos. A persistência da estrutura estamental utiliza a
burocracia formal para perpetuação no poder independentemente do tipo social em vigor, daí
ao contrário do que sustenta parte da doutrina – sua característica não transitória, adaptando-se o
estamento às realidades diversas, num jogo de representação intelectual falacioso. A burocracia,
108
___. IDEM. p. 824.
89
como aparelhamento neutro de administração, é utilizada pelo estamento político como um
ajuste de representação teatral para manipulação popular. Valendo-se de técnicas democráticas
para consolidação de um governo que concentra o poder decisório no interesse único de um
grupo privilegiado que dirige a esfera econômica, política e financeira –, o estamento
determina sobre a conveniência das oportunidades de ascensão política.
A manutenção contínua e permanente dessa estrutura de poder, não se matem senão ao
custo de muitos conflitos e tensões. Não raras vezes, grupos e classes sociais tentam se livrar da
ordem superior imposta que os sufoca. Ocorre que o estamento – mesmo que em alguns
momentos estrategicamente recue desenvolve uma estratégia de relacionamento social
ludibriante, através de movimentos pendulares, aproximando-se do ponto de apoio social que
lhe for casualmente mais conveniente. As formações sociais são, para a estrutura patrimonial
estamental, pontos de apoio móveis, valorizados aqueles que mais a sustentam, sobretudo
capazes de fornecer-lhe os recursos financeiros para a expansão daí que, entre as classes, se
alie às de caráter especulativo, lucrativo e não proprietário.”
109
É assim que a manutenção do poder estamental, capaz de gerir e deformar a sociedade,
condiciona o funcionamento dos textos constitucionais, em regra, escritos formais e simbólicos
sem conseqüências na realidade fática do mundo real. À medida que a estrutura estamental se
burocratiza, aperfeiçoa-se a concentração do poder, com o retraimento dos colégios de poder.
No soberano máximo se concentra a esperança derradeira da nação. Espera-se que o Salvador da
Pátria faça justiça ao seu povo, pouco importando a observância de regras objetivas e
impessoais. O grande pai da nação, o bom príncipe orientador, deve oferecer a desejada política
social do bem-estar, assegurando a adesão e a conformação das massas. Faoro acrescenta que:
Na base da pirâmide, no outro extremo dos manipuladores olímpicos do poder, o povo
espera, pede e venera, formulando a sua política, expressão primária de anseios e clamores,
a política de salvação. Confundindo as súplicas religiosas com as políticas, o desvalido, o
negativamente privilegiado, identificado ao providencialismo do aparelhamento estatal, com
o entusiasmos orgiástico dos supersticiosos, confunde o político com o taumaturgo, que
transforme pedras em pães, o pobre no rico. Enquanto o estamento burocrático desenvolve a
109
___. IDEM. p. 826.
90
sua política, superior e autônoma, remediando as crises com as revoluções bonapartistas, de
cima para baixo, desenvolve-se a mística da revolução salvadora, esta oficial como as
outras, repita-se Joaquim Nabuco. Da ordem tumultuada, da anarquia fomentada, as massas,
embaidas por esperanças e alimentadas de entusiasmo, incensam o oculto deus ex-machina,
que remediará todos os males e mitigará todos os sofrimentos. As duas partes, a sociedade e
o estamento, desconhecidas e opostas, convivendo no mesmo país, navegam para portos
antípodas: uma espera o taumaturgo, que, quando a demagogia o encarna em algum
político, arranca de seus partidários mesmo o que não m; a outra permanece e dura, no
trapézio de seu equilíbrio estável.
110
O estamento nacional, consolidado a partir da realidade do Estado patrimonial
português, não se confunde com a elite política. Os poucos privilegiados, escolhidos ou
cooptados, conformam um estatuto particular condicionado de poder. Um governo estamental
autocrático caracterizado por um sistema político autoritário o, porém, totalitário –, onde
um grupo específico monopoliza o poder político, impossibilitando a efetiva participação dos
demais cidadãos na definição das estratégias e objetivos estatais. Esse sistema é compatível com
a divisão de funções estatais, executivo, legislativo ou judiciário, que compõem uma vestimenta
constitucional-jurídica meramente formal, um constitucionalismo semântico, no qual o
ordenamento jurídico somente legitima o exercício de poder dos condutores autoritários, muitas
vezes escamoteados do reconhecimento de sua condição perante a população ignorante, que
desconhece a face autoritária de seus governantes.
Como observado, seja através da atuação dos delegados do príncipe na Colônia, ou
através das lideranças locais dos caudilhos ambos com características patrimoniais –, nunca se
apresentou no Brasil uma oportunidade efetiva à construção de uma unidade nacional a partir da
própria coletividade.
Enquanto as experiências valorativas das liberdades individuais criaram raízes profundas
na cultura brasileira, as experiências sociais e coletivas foram insignificantes ou frustrantes.
Nunca sentimos o gosto do exercício das liberdades públicas, o exercício da cidadania coletiva
ou a experiência de um Estado Democrático de Direito, de viés garantista, necessário para o
respeito e à convivência harmônica da vida em sociedade. O Estado nunca foi um instrumento a
110
___. IDEM. p. 828.
91
serviço dos cidadãos, representando um fim em si próprio, uma energia que se esgota e se
satisfaz com o gozo do estamento dirigente do País.
Sufocado o afloramento de uma noção de autonomia política, de liberdades públicas e de
garantias sociais, convivemos até os dias presentes com uma ética individualista, direcionada ao
contentamento pessoal e privado de cada indivíduo.
Enfim, a soberania popular não existe, é uma farsa, um engodo, uma falácia, uma
construção teatral de aparência superficial democrática, formalizada através de um sistema
normativo constitucional meramente semântico, edificado mediante mecanismos de controle e
de manipulação da participação popular. Os grupos de elites, a serviço do estamento, acabam se
sujeitando aos ajustes decorrentes das pressões sociais, representando os círculos eleitorais ou
seriam circos eleitorais? um controle condicionado à escolha dos representantes políticos
disponíveis à população.
As elites se utilizam com maior freqüência da manipulação popular, lançando mão de
astúcia, habilidade e demagogia para influenciar a população, enquanto os estamentos priorizam
as decisões eficientes no alcance de seus objetivos, quer através da utilização da violência, ou da
argumentação jurídica arquitetada. A nata política do patrimonialismo é o grupo estamental,
estrato social com efetivo comando de poder político, social e econômico, guardando uma
estrutura de característica aristocrática.
A organização burocrática estamental atenta, complexa e (in)eficiente estipula
condutas de padrões típicas para adequação às pressões internas, exigentes por mudanças; e para
os ajustes decorrentes do fantástico (ou fantasioso?) processo de globalização
111
. O estamento,
111
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 18-19: Este mundo globalizado, visto como fábula, erige como verdade um certo número
de fantasias, cuja repetição, entretanto, acaba por se tornar uma base aparentemente sólida de sua interpretação
(Maria da Conceição Tavares, Destruição não criadora, 1999). A máquina ideológica que sustenta as ações
preponderantes da atualidade é feita de peças que se alimentam mutuamente e em em movimento os elementos
essenciais à continuidade do sistema. Damos aqui alguns exemplos. Fala-se, por exemplo, em aldeia global para
fazer crer que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do
encurtamento das distâncias para aqueles que realmente podem viajar também se difunde a noção de tempo e
espaço contraídos. É como se o mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão. Um mercado
92
embora arcaico nos seus fundamentos, moderniza-se através da utilização de técnicas modernas,
ajustando-se aos comandos da grande fábrica de perversidade, com a qual matem comuns
afinidades. Como desnuda Milton Santos:
De fato, para a grande maior parte da humanidade a globalização está se impondo como
uma fábrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta
e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e
o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se
instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A
mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A
educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males
espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção.
112
A globalização, processo moderno (in)evitável, ao tempo em que delimita e define a
área de atuação dos grupos de poder estruturados mundialmente, legitima o poder estamental
que, revigorado em sua estrutura administrativa, consome vorazmente às custas dos cidadãos-
súditos. Dos regimes ditos socialistas até as falsas democracias, os interesses econômicos falam
mais alto, pouco importando a fome, a miséria, a distribuição de renda, as injustiças sociais
ou o aquecimento descontrolado do Planeta. A supremacia do poder, não tem desconfiança.
Regra quase que absoluta é o mercantilismo desmedido, onde o poder político-econômico tudo
pode e a todos compra. Entre a farsa e a decepção, é preciso manipulação para construir a
verdade mais adequada.
O estamento não integra ou conduz a sociedade que parasita, comandando-a e
governando-a conforme suas estratégias para manutenção e manipulação do poder. O Estado
estamental finge-se de morto, sempre se fortalecendo com o desiderato de manter o poder
político e angariar recursos para manutenção financeira de sua pesada estrutura administrativa,
sempre em sintonia com os interesses internacionais, em evidente prejuízo aos direitos e
garantias fundamentais dos cidadãos privilegiados negativamente.
avassalador dito global é apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças
locais são aprofundadas. uma busca de uniformidade, ao serviço dos atores hegemônicos, mas o mundo se torna
menos unido, tornando mais distante o sonho de um cidadania verdadeiramente universal.
112
___. IDEM. p. 19-20.
93
O bom servidor é definido pela carreira administrativa privilegiadamente conquistada,
com especial consideração ao curriculum vitae imposto de cima para baixo, considerando como
medíocre e ingênuo aquele que busca sua ascensão social a custa do mérito e do próprio esforço
pessoal, características incompatíveis com as ambições destinadas às grandes glórias.
Convivem ainda no Brasil de nossos dias duas realidades conflitantes e opostas: De um
lado, um grupo dirigente letrado e disposto à perpetuação no exercício do poder; de outro, uma
massa ignorante, manipulada por promessas, crendices, místicas, deuses e novelas televisivas,
sem a procura a espera do grande Salvador da Pátria. E aquilo que não pode ser
condicionado ou dirigido pela manipulação, é imposto arbitrariamente à força. A população reza
é clama pela proteção estatal, parasitando em torno das migalhas do poder, enquanto que o
estamento mantém a ignorância do povo, estimulando um ciclo vicioso eficiente para
reprodução contínua e permanente de poder.
A legalidade teórica, consubstanciada na retórica demagógica da defesa dos interesses e
garantias sociais, edifica a constituição de direitos e obrigações sobre um terreno vazio,
antecipando, sedutoramente, a vida ideal, impondo atividades econômicas e realidades sociais
divorciadas da realidade nacional. Como remediar este desacerto? Quem sabe não seja
necessário promulgar uma “norma” que torne obrigatório o cumprimento dos mandamentos
legais e constitucionais. Faoro sintetiza com perfeição a realidade: É uma pura arte de
construção no vácuo. A base são teses, e não fatos; o material, idéias, e não homens; a
situação, o mundo e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais.”
113
Congelado em sua estrutura central, o estamento é dinâmico e ágil na determinação das
mudanças que se fizerem necessárias à manutenção do poder, incorporando continuamente as
contribuições da modernidade, sensível aos efeitos da globalização e aos anseios internos da
população, (re)programando novas atitudes para preservação da organização social e política de
governo que lhe privilegia. O comando de poder determina o elo de vinculação com o mundo
exterior, ditando regras, padrões e costumes, inibindo a criatividade e a reflexão, instrumentos
113
FAORO, Raymundo. Obra citada. p. 833.
94
essenciais e imprescindíveis ao amadurecimento social e democrático de um povo crítico,
pensante e consciente de sua realidade política, econômica e social.
O estamento burocrático representa unicamente sua ideologia, ajustando-se nos
momentos de vacilação perante a divisão ou eventual discórdia no comando superior. Com base
no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, assumiu o conteúdo aristocrático
da nobreza portuguesa, adaptando-se com facilidade às pressões externas impostas pela doutrina
liberal e democrática, permanecendo o comando político concentrado e inacessível à
participação da maioria. A consagrada leitura falaciosa da história nacional deve ser revista e
compreendida a partir da constatação óbvia da existência desta estrutura de poder permanente e
flexível. Não é mais possível admitir uma leitura resumida, imposta de cima para baixo,
buscando ajustar os acontecimentos dos fatos à comprovação de uma história teoricamente
viável e confortável aos padrões desejados. Com a herança lusitana recebida e cultivada,
transformamo-nos em uma civilização marcada pela veleidade, pelo conformismo, pela
hipocrisia e pela ficção. Finaliza Faoro:
O poder a soberania nominalmente popular tem donos, que não emanam da nação, da
sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios,
gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela
violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzindo, nos seus conflitos, a conquista
dos membros graduados de seu estado maior. E o povo, palavra e não realidade dos
contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas
sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos
senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais
e, como o bom príncipe, dispensários de justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o
interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele
não formulou.
A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça
administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Souza, reiterada na travessia de dom
João VI, ainda o regente de dona Maria I, a louca, dementada pelos espectros da Revolução
Francesa. A terra virgem e misteriosa, povoada de homens sem lei nem trono, não
conseguiu desarticular a armadura dos cavaleiros de El-Rei, heróis oficiais de uma grande
empresa, herdeiros da lealdade de Vasco da Gama herói burocrata. A máquina estatal
resistiu a todas as setas, a todas as investidas da voluptuosidade das índias, ao contato de um
desafio novo – manteve-se portuguesa, hipocritamente casta, duramente administrativa,
aristocraticamente superior. Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu um social
enormity, segundo o qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento
95
do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres
velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse.
114
A Península Ibérica e seus herdeiros, incluindo o Estado patrimonial brasileiro,
desenvolveram, ao longo dos séculos, uma rede de dominação vigorosa, patrimonial e
burocrática. É o que Simon Schwartzman
115
classifica como Estado neopatrimonial, uma
simbiose contínua entre patrimonialismo e burocracia, onde – considerando o contexto histórico
brasileiro, rico em anomalias práticas políticas e administrativas corruptas foram
institucionalizadas, devidamente legitimadas pela formalidade de uma democracia por
delegação induzida (eleições).
A formação do capitalismo politicamente orientado, com traços de modernidade e de
tradição, comprova a possibilidade fática do desenvolvimento mútuo entre capitalismo e
patrimonialismo, representando a história brasileira o laboratório perfeito para sustentação dos
argumentos expostos. Adaptando-se aos acontecimentos e às evoluções da modernidade, uma
estrutura política, econômica e financeira própria, foi edificada por um Estado mercantilista, que
governa, dirige e se amplia, superando crises, pressões ou deficiências momentâneas.
A estrutura estamental brasileira, como advertido alhures, incorporou novas gerações de
indivíduos necessários à continuidade de sua organização, reproduzindo entre os novos
membros cooptados, os pensamentos adequados a sua reprodução, caracterizada pela imposição
de costumes e valores tradicionais.
Sufocados pelos donos do poder, alheios ao conteúdo do ideário liberal-democrático, os
cidadãos-súditos deixam de ter acesso à educação e, conseqüentemente, à garantia dos direitos e
dos interesses fundamentais dos indivíduos. O patronato político, embora condicionalmente
renovado, permanece casto, intocável, estruturalmente isolado, inacessível aos cidadãos-súditos
brasileiros.
114
___. IDEM. p. 837.
115
SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Campos, 1988.
96
Assim, parece evidente que desde a origem patrimonial portuguesa, até os dias de hoje,
com a formulação de reiterados planos econômicos, financeiros, reformas administrativas etc; a
casta dirigente da administração pública brasileira dispõe livremente das propriedades, dos bens
e das riquezas nacionais. É que a construção da história nacional não determinou o
desenvolvimento do esperado “País do futuro”, permanecendo persistente o vigor da tradição do
passado, sempre reconstruído com novas roupagens, maquiagens e adereços, todos superficiais.
A história se repisa continuamente, recorrente e persistente, no sentido da reprodução sucessiva
e formal de representações teatrais, num processo histórico induzido e falacioso, construído
através da repetição de fórmulas pré-concebidas, destinadas unicamente ao recondicionamento
do passado.
A existência do Estado patrimonial brasileiro é comprovada pela compreensão da
história luso-brasileira, ainda soberano no País. Vigoroso e hipócrita, o organismo estamental
interpreta momentaneamente a ideologia que melhor lhe convém. Revoluções e crises
dissimuladas, a estrutura nacional de poder edifica o ordenamento jurídico conforme seus
interesses privados, sem nenhum comprometimento com o exercício dos direitos sociais e das
garantias fundamentais, todos compatíveis com o Estado Democrático de Direito.
O governo se apropria convenientemente de modelos importados para perpetuação da
estrutura política e econômica nacional. O mercantilismo, o capitalismo, o neoliberalismo e,
recentemente, o fenômeno da globalização, demonstram discursos puramente ideológicos, de
direita ou de esquerda, sempre divorciados da sociedade, da democracia e da constituição.
O Estado patrimonial se vale de normas somente como expediente técnico-jurídico de
estruturação formal para o exercício de poder, com a primazia dos privilégios destinado ao
grupo dirigente, sempre manipulando as relações políticas, econômicas e sociais. Assim, o
caráter conflituoso da realidade social e da arbitrariedade estamental, é incapaz por óbvio de
assegurar o exercício de direitos fundamentais comuns à humanidade.
O poder de imposição dos limites legais e constitucionais aos cidadãos-súditos, como
vestimenta formal, é concentrado nas mãos daqueles que exercem o domínio político, não
97
havendo como sustentar a efetividade de um sistema normativo de garantias jurídicas e
políticas. Inexiste identidade social, dignidade humana ou realização de direitos individuais ou
coletivos. Uma farsa, um engodo que – totalmente dissociado do Estado Democrático de Direito
– legitima o exercício abusivo e arbitrário de poder por parte dos governantes.
Atualmente, em tempos de modernidade e globalização, o Estado patrimonial continua
recrutando os escolhidos para compor sua estrutura administrativa, valendo-se de uma
racionalidade de tipo material, diversa da essencialmente burocrática, não existindo qualquer
identificação com os princípios constitucionais da igualdade, impessoalidade, transparência,
eficiência e moralidade administrativa. A racionalidade do sistema patrimonial é sua própria
ideologia. Um poder soberano que orienta e governa a política, a economia e a sociedade, haja
vista que incompatível com a igualdade jurídica e o exercício de direitos sociais e de garantias
fundamentais. Diversamente, de característica autocrática, o Estado patrimonial consagra a
autonomia do poder soberano.
Entre as características do Estado (neo)patrimonial brasileiro, também analisadas com
aprofundamento por Simon Schwartzman
116
que identifica peculiaridades no autoritarismo
nacional, desde a invenção portuguesa, até a chamada redemocratização do País –, destacam-se
uma sufocante estrutura burocrática administrativa e uma massa de indivíduos facilmente
manipulada, sem senso-crítico e poder de organização. Enfim, um governo eficiente para o
fim que se propõem e uma sociedade estéril, debilitada pela ausência de articulação política.
Como pondera Simon Schwartzman acerca do (neo)patrimonialismo, este
(...) não é simplesmente uma forma de sobrevivência de estruturas tradicionais em
sociedades contemporâneas, mas uma forma bastante atual de dominação política por ‘um
estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio’, ou seja pela
burocracia e a chamada ‘classe política’.
117
E continua:
116
___. IDEM.
117
___. IDEM. p. 59-60.
98
O jogo político que se desenvolve nessas condições consiste muito menos em um processo
de representação de setores da sociedade junto aos Estado do que em uma negociação
contínua entre o Estado neopatrimonial e todo tipo de setores sociais quanto à sua inclusão
ou exclusão nas vias de acesso aos benefícios e privilégios controlados pelo Estado. Não é
uma negociação entre iguais (...). A política é tanto mais importante quanto maior é o poder
do Estado, e por isto, na tradição brasileira, todas as questões (...) passam sempre pelo crivo
do poder público.
118
Holanda, ao destacar a grande falácia da democracia nacional, ressalta que no Brasil,
curiosamente, os movimentos reformadores tiveram suas origens no grupo dirigente, quase
sempre de cima para baixo. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido.
Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível,
aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo
da luta da burguesia contra os aristocratas.”
119
Excluídos pelo grupo dirigente sem conhecimento do que realmente se sucede os
cidadãos-súditos, ao tempo em que agradecem as esmolas recebidas, assistem conformados à
reprodução da violência cotidiana. A corrupção, banalizada de cima para baixo, de baixo para
cima, de dentro para fora, de fora para dentro, enfim, em todas as suas possibilidades, tornou-se
instituição nacional, impregnada em hábitos e costumes éticos no corpo social, seja nas
atividades privadas, seja na administração pública. A conjunção carnal entre a coisa pública e a
privada parece definitiva. Nesse contexto, como (re)pensar a efetividade do exercício de direitos
sociais e garantias fundamentais? Como constituir um Estado Democrático de Direito?
Longe de qualquer pessimismo conformado, atento, todavia, a incontestável realidade
brasileira seu desenvolvimento histórico e suas facetas modernas a conquista efetiva do
Estado Democrático de Direito, de viés garantista, constitucional e republicano, somente será
viável através de um processo educativo de formação de cidadãos críticos conscientes,
revigorando-se a participação popular, a mobilização da opinião pública e a articulação da
118
___. IDEM. p. 14-15.
119
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Obra citada. p. 160.
99
sociedade civil organizada, oxigenando-se, em contra partida, instituições e poderes
constituídos.
1.3. A corrupção institucionalizada
Não como negar o fato de que o passado histórico de um povo ou uma nação, suas
criações culturais, hábitos e costumes, enfim, seus acontecimentos experimentais, não se
originam do vácuo inexistente, da criação divina ou do mero acaso. Cada acontecimento cultural
tem sua existência determinada por outros acontecimentos culturais.
Assim sendo, é a partir de valores existentes que a humanidade recria a história,
impondo novos padrões éticos e posturas morais. A ética, como se disse, é relacional,
apresentando uma readequação social constante. Seu caráter instável e renovável possibilita a
evolução ou o retrocesso histórico. Somos o que vivemos, o que presenciamos cotidianamente,
edificando nossa ética a partir de nossas condutas e dos exemplos que nos rodeiam.
A história do indivíduo pode ser compreendida integralmente dentro do contexto
social da experiência coletiva e histórica. Para Pinharanda Gomes, cultura é a herança
tradicional e multiforme, constantemente atualizada, mediante a opção por sucedâneos e por
novas ou até ignoradas fórmulas de vida.”
120
Os valores morais e éticos, assim como a
cultura, podem ser realizados através da própria existência, ou seja, a partir das experiências
atuais e históricas da humanidade.
Nesse sentido, sendo o fenômeno da corrupção essencialmente cultural, que se
constar que os brasileiros herdaram da Pátria-Mãe, valores e anti-valores que, ao longo do
tempo, formataram o caráter, a índole e a identidade da nação brasileira. Zancanaro, ao ressaltar
a relevância da influência dos valores e anti-valores da cultura política lusitana na formação da
ética política nacional, afirma que
120
GOMES, Pinharanda. Fenomenologia da cultura portuguesa. Lisboa: Ultramar. 1970, p. 23.
100
A corrupção político-adminsitrativa desponta como um fenômeno detectado na cultura
política de Portugal por expoentes do pensamento e da cultura lusitana do quilate de um
Alexandre Herculano, Antero de Quental, Marcelo Caetano, Manoel Gonçalves Cerejeira,
Lúcio de Azevedo, Diogo de Couto, Padre Antônio Vieira, Coelho da Rocha, para citar
alguns. Os longos séculos de dominação privatista e centralizadora permitiram o surgimento
de um conjunto de tendências sócio-políticas dadas a difundir padrões anti-sociais de
comportamento. A corrupção político-adminsitrativa pertence a esse quadro de anti-valores
culturais. Transplantada para o Brasil-Colônia a partir do descobrimento, incorporou-se às
estruturas mentais de largas camadas da sociedade brasileira nascente.
121
Embora a cultura de um povo se apresente realizada, num menor ou maior grau de
evolução, não implica a evolução cultural necessariamente numa continuidade linear
obrigatória, intransponível ou imodificável. Felizmente, como não somos escravos de nossa
história, as novas gerações podem reaver os valores éticos e morais esquecidos ou relegados ao
longo do tempo. Somente através de um processo educativo de formação crítica e consciente do
sujeito, é que se poderá recuperar um pouco daquilo que o homem “matuto” se chamou de
honestidade.
A corrupção
122
, no seu sentido mais amplo, pode ser definida como a decomposição, o
apodrecimento do estado padrão normal ou esperado, o processo ou efeito de corromper e
alterar as características originais de uma coisa ou um procedimento. É a devassidão,
degradação, depravação, prostituição e perversão de hábitos e costumes. Enfim, o suborno, a
vantagem indevida, o engodo arquitetado, a peita, o processo ou efeito de corromper e alterar as
características originais de uma coisa ou um procedimento. Sob as mais variadas formas e
realces múltiplos, o fenômeno da corrupção campeia as diversas áreas da atividade humana,
tanto na esfera pública, como na privada.
A corrupção pode ser identificada com a disposição voluntária em certos grupos sociais
e indivíduos de desrespeitar ou manipular o ordenamento legal vigente, estando associada
inegavelmente, em regra, ao poder político e às atividades públicas. A referência não é absurda,
entretanto, o ideal de corrupção é muito mais elaborado, complexo e articulado do que se
121
ZANCANARO, Antonio Frederico. Oba citada. p. 40.
122
A expressão corrupção deriva do latim, corruptione, proveniente do verbo latino rumpere, que significa, romper,
fender, separar, quebrar, degradar, corromper.
101
apresenta superficialmente. Além de atingir diretamente políticos e servidores públicos, a
corrupção contamina grande parte da sociedade e dos indivíduos que a compõem com a
tendência de sua destruição total.
Como se sabe, a ética possui caráter relacional – e não característica normativa –,
estando associada à cultura humana e à vivência prática do dia-a-dia. A partir da fermentação
moral de valores individuais e coletivos, considerados num espaço aberto, a representação dos
atos humanos edificam exemplos educativos para reprodução positiva ou negativa das
experiências humanas.
Nesse contexto complexo e arenoso, pode parecer impossível a determinação de um
padrão de moralidade pública universal, aplicável indistintamente a todas as sociedades e
sujeitos de suas história. Ocorre que o fenômeno da corrupção se manifesta no cotidiano
humano nas mais variadas formas e estilos, marcando presença em todos os povos e nações,
sendo equivocado o entendimento de que se faria sentir somente nos países rotulados como
subdesenvolvidos ou, ainda, somente naqueles que implementaram uma organização de
dominação patrimonial.
A definição dos comportamentos políticos e administrativos como lícitos ou ilícitos,
regulares ou corruptos, pode ser indicada pela consideração do cumprimento oficial das
finalidades públicas a que se destinam originalmente. Será considerada deficiente, irregular ou
corrupta aquela ação política ou administrativa que não corresponder às expectativas ordinárias,
afastando-se dos objetivos específicos para qual foi executada. Assim, toda ão pública que
não se adequar à ordem racional legitimamente estabelecida, será considerada com atividade
irregular. Quando, por exemplo, manipula-se o exercício do poder político e das funções
públicas, para obtenção de outras finalidades alheias aos fins originais públicos, havendo
dissociação da finalidade pública, restará caracterizado o ato de corrupção ou de improbidade.
Não basta, portanto, a simples observância do ordenamento jurídico, sendo necessária a
prevalência dos interesses públicos e dos valores morais respectivos. O fenômeno da corrupção
102
se estabelece através da apropriação pessoal do poder cedido ou delegado. Para Gabriel Zaid,
mencionado por Zancanaro:
A corrupção envolve uma usurpação de mais poder do que aquele previsto e devidamente
conferido pela ordem vigente. Sob esse aspecto, nenhum Estado pode considerar-se
antecipadamente imune à corrupção. Esta pode fazer-se presente em qualquer nação,
independentemente do tipo de regime ou de poder que adote. O que varia é o grau de
incidência e os mecanismos de defesa da sociedade.
(...)
Ao passo que, a forte carga de arbítrio pessoal que pervade a ação político-administrativa
dos Estados patrimoniais pode conduzir impunemente os seus agentes à apropriação de
prerrogativas inerentes ao mando e aos atos deles decorrentes como se fossem propriedade
privada. A indefinição dos limites do mando pode levar às mais variadas formas de
corrupção.
O autor denomina de corrupção o exercício ilegítimo de um poder legitimamente conferido.
Agir de maneira corrupta significa, pois, servir-se de um cargo na atividade pública para
outros fins que não aqueles previstos pela própria natureza da função.
123
O que define o ato ímprobo, pois, é a utilização indevida da atividade política e/ou
administrativa com outros objetivos alheios àqueles definidos previamente como próprios. A
corrupção nem sempre envolve diretamente a percepção de dinheiro em espécie, podendo ser
incrementada através de benefícios múltiplos e inimagináveis. Existem situações de corrupção,
por exemplo, nos quais os desideratos questionados podem se referir ao processo de disputa
eleitoral, sem a manipulação direta de recursos financeiros imediatos.
Portanto, qualquer artimanha ou faceta que agrida a ordem constituída, reconhecida e
socialmente determinada, visando obter lucros, benefícios ou outros privilégios oriundos da
utilização indevida do poder concedido dentro da esfera pública, enquadra-se como ato de
improbidade ou corrupção. A ética retorcida pela corrupção se caracteriza por uma gama
enorme de instrumentos materiais e morais utilizados por políticos, servidores públicos ou
particulares para, com o amparo legal ou não, obter benefícios pessoais alheios à regularidade
da administração pública.
123
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 36 apud ZAID, Gabriel. México, ou a tragicomédia da
corrupção. Jornal da Tarde, 6/12/1986. p. 2 (Caderno de Programas e Leituras).
103
Pode-se afirmar que um ato ímprobo constitui violação das regras em sociedade com a
intenção deliberada de beneficiar interesses pessoais próprios alheios a finalidade pública. A
corrupção é determinada por atividades que causam necessariamente repercussão coletiva,
resultando forte impacto no meio social. Não obstante as divergências a respeito, estamos
convencidos, por tudo o que foi dito e abordado, que a corrupção representa um drama de
fundamento preponderantemente moral. Embora se relacione com a legislação em vigor (que é
desrespeitada), a corrupção tem caráter ético, portanto, relacional, e não objetivamente
normativo.
Desrespeitar ou descumprir, em proveito particular ou de terceiros, regras previamente
estabelecidas e socialmente recepcionadas qualifica o ato de corrupção. A corrupção político-
administrativa, independentemente da forma de governo ou domínio de poder constituído, resta
evidenciada quando da ocorrência do proceder faltoso, da burla, da omissão ou do desrespeito
ao estatuto legal vigente. O agente político, servidor público ou particular relacionado com
administração pública, desvia-se deliberadamente de seus deveres funcionais. Afrontando a lei e
o interesse coletivo, valendo-se de suas prerrogativas públicas, apropria-se indevidamente do
erário, usufruindo-o pessoalmente em evidente prejuízo de toda coletividade. Para Zancanaro, a
corrupção político-administrativa
(...) define-se por quatro aspectos claramente configurados: a existência de uma sociedade
politicamente organizada; a violação de normas socialmente aceitas e professadas; com o fim de
auferir benefícios pessoais; em oposição a interesses públicos. O pressuposto básico, portanto, é
a existência de uma ordem política, pouca importa se de caráter racional, carismático ou
patrimonial. O que importa é o fato de que, em qualquer desses casos, a boa ordem político-
administrativa implica uma carga de crenças e convicções implícita ou explicitamente
professadas pelos indivíduos. Mesmo que acriticamente, a sociedade aceita-a e tende a
conformar sua conduta moral pelos padrões e dispositivos que dela emanam.
124
Jean-François Revel ressalta que ser corrupto significa utilizar de alguma maneira,
direta ou indireta, o poder político e administrativo fora de seu campo legítimo, a fim de obter
124
___. IDEM. p. 38.
104
vantagens em dinheiro ou em espécie, e para distribuí-los entre amigos, servidores, parentes e
partidários.
125
A corrupção restará evidenciada, portanto, quando o servidor público violar os direitos e
responsabilidades inerentes de seu cargo, exercendo o poder que lhe foi conferido em benefício
próprio ou de terceiro. O ato ímprobo é definido pelo desejo impróprio de um bem ou valor
ilegítimo, ou seja, a corrupção equivale a um desvio da conduta eticamente esperada,
abandonando o servidor público a observância suprema do interesse público. A corrupção é,
enfim, a conduta contrária daquilo que se espera do proceder ético do servidor público.
1.3.1. Cultura brasileira da corrupção
Importante considerar que a compreensão histórica da cultura política brasileira, a partir
de seus objetos socioculturais, é de suma importância para obtenção de qualquer medida eficaz
para a necessária reordenação moral do câncer da corrupção que tomou conta da administração
pública brasileira.
Embora a identificação objetiva dos entraves administrativos, dados, números e
deficiências burocráticas sejam importantes para a resolução da problemática, não bastam em si
mesmas, haja vista a implicação cultural da questão. Tanto isso é verdade que se um mecanismo
de corrupção é descoberto e exemplarmente coibido, não demora muito e a criatividade do
corrupto descobre novas e sofisticadas maneiras de saquear o erário.
Portanto, é preciso compreender a cultura política nacional a partir das raízes de sua
formação no Estado patrimonial português, buscando entender a visível carência de padrões
éticos no comportamento e proceder do homem público brasileiro. Como suspeita Zancanaro, ao
considerar as origens da cultura da corrupção administrativa no Brasil:
Tudo leva a crer que a corrupção político-administrativa corrente no Brasil encontra sua
fonte originária na estrutura patrimonial de poder vigente em Portugal por ocasião dos
125
REVEL, Jean-François. Corrupção, ameaça à democracia. Jornal O Estado de São Paulo, 17/08/1986. p. 27.
105
descobrimentos, agravada, posteriormente, pela forma predatória de ocupação da terra, que
se implementou durante os três séculos da colonização e pela inoperância do Estado ao
pretender impor sobre as populações dispersas na vastidão territorial um modelo ineficaz de
dominação. De um lado, a imaginosa variedade de procedimentos atentatórios à boa ordem
político-administrativa no Reino; de outro, as novas tendências psicossociais das populações
coloniais, distantes e desassistidas: tudo isso manteve vivas antigas práticas e disposições
morais e incrementou novas. A corrupção político-administrativa é um fenômeno que
pertence a esse contexto.
126
O que ocorreu nos tempos da colonização brasileira, seja no proceder auto-beneficente
dos funcionários públicos, seja na autodeterminação dos caudilhos, foi o flagrante predomínio e
a disseminação da idéia da relevância dos interesses privados em comparação com os objetivos
comuns públicos. A lição lusitana foi bem absorvida pelos colonizados, que adotaram com
desenvoltura os padrões de dominação vigentes em Portugal.
A organização de dominação patrimonial vinha desenvolvida da Coroa, sendo
implementada na Colônia a partir de objetivos eticamente pessoais, individualistas, privativos e
casuísticos, todos fermentados pela institucionalização da impunidade, quadro dramático que
possibilitou o crescimento e a disseminação desenfreada de uma ética predatória e devoradora.
Portanto, impossível fechar os olhos para a realidade da problemática cultural da corrupção
nacional, entranhada nas mais profundas vísceras da índole do homem brasileiro.
1.3.1.1. “Você sabe com quem está falando?”
Vale destaque uma rápida abordagem específica à expressão Você sabe com quem está
falando?”, consagrada pelo antropólogo Roberto DaMatta
127
, como representação maior do
caráter hierárquico dos cidadãos brasileiros, em sentido oposto ao princípio da igualdade e
frontalmente inverso ao efetivo exercício da democracia e à preservação das garantias
fundamentais, ou, como assevera DaMatta: “(...) avesso à crítica honesta, ao estudo sério e à
126
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 123.
127
MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ª ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
106
impessoalidade das regras universais sempre distorcidas em nome de uma relação pessoal
importante.
128
O brasileiro, com sua cultura patrimonial, elitista, hierárquica e pessoal, adotou o uso da
expressão Você sabe com quem está falando?no seu cotidiano, indicando a aceitação social
de um comando universalmente estabelecido, não se cuidando de uma simples mania ou de um
modismo circunstancial.
129
Conforme a necessidade e as circunstâncias, com hipóteses variáveis, a expressão é
utilizada em determinadas situações em que o indivíduo procura um resguardo através da sua
“importante posição social”. É o que DaMatta chama de “consciência de posição social”. Aléxis
de Tocqueville, lembrado pelo autor, afirma que: Nas comunidades aristocráticas, onde um
pequeno número de pessoas dirige tudo, o convívio social entre os homens obedece a regras
convencionais estabelecidas. Todos conhecem ou pensam conhecer exatamente as marcas de
respeito ou atenção que devem demonstrar, e presume-se que ninguém ignore a ciência da
etiqueta.
130
Segundo DaMatta, algumas pessoas de determinados seguimentos sociais que estariam
incapacitadas teoricamente de fazer uso da expressão pertencentes a grupos inferiorizados,
dominados e/ou sem poder acabam utilizando essa espécie de identificação social vertical
mediatizando a utilização da expressão, mesmo na condição subalterna. O sujeito inferiorizado
se projeta na posição social de seu superior para exercer o domínio sobre terceiro, com ele
identificado na condição de inferioridade. É o caso hipotético do motorista de um Senador da
República, que ao ser detido numa blitz, assevera: “Você sabe com quem está falando? Eu sou o
motorista do Senador!”. Como se percebe, a utilização autoritária da expressão em questão, a
exemplo de tantos outros procederes culturais de características patrimoniais, está
verdadeiramente institucionalizada. Como observa o autor: O poder de tais usos e a nossa
128
___. IDEM. p. 201-202.
129
___. IDEM. p. 187.
130
___. IDEM. p. 188. in (1969: 257-58).
107
familiaridade com essa forma de identificação social revelam seu impacto e a sua freqüência no
cenário brasileiro.
131
Enfim, o que é importante aqui registrar e está a relevância da análise da expressão
Você sabe com quem está falando? para o nosso trabalho é que em sociedades como a
brasileira, de caráter patrimonial, hierárquico, autoritário e avesso à impessoalidade, se
apresentam as condições perfeitas à reprodução de um ciclo vicioso e persistente, legitimado por
todos os atores da cena: dominantes e dominados, rei e súditos.
1.3.2. Estatísticas da corrupção no Brasil
A corrupção nacional, como fenômeno essencialmente cultural e visivelmente presente
no cotidiano dos brasileiros, mereceu também, por parte de pesquisadores, uma abordagem
científica, de onde serão destacados alguns significativos índices e conclusões de relatórios e
pesquisas de organismos nacionais e internacionais, para análise e considerações, sempre com o
objetivo evidente de consolidar o posicionamento ora delineado, no sentido da
institucionalização da corrupção nacional.
1.3.2.1. Pesquisa “Os Brasileiros e a Corrupção” (Vox Populi/UFMG)
A Pesquisa “Os Brasileiros e a Corrupção”
132
, realizada entre os dias 10 e 16 de maio de
2008, encomendada pela Universidade Federal de Minas Gerais ao Instituto de Pesquisa Vox
Populi, organizada pelos professores Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Juarez Guimarães e
Heloísa Starling, representa o primeiro produto do Centro de Referência do Interesse Público da
UFMG, realizada a partir de 2.421 entrevistas pessoais em todo o Brasil.
131
___. IDEM. p. 190.
132
Pesquisa publicada no site Uol. Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/especiais/corrupcao/enquetes/ult6789u1.jhtm>. Acesso em 10/08/2008.
108
O trabalho, realizado num universo amplo e bem definido, e ouvidas 2.421 pessoas em
todo o Brasil, de norte a sul, com entrevistados em todas as capitais dos estados, busca
compreender como o fenômeno da corrupção persiste às mudanças institucionais implementadas
no Brasil desde a chamada redemocratização.
Note-se que os dados da pesquisa, em grande parte, corroboraram nosso entendimento
no sentido da necessidade da compreensão da corrupção a partir da análise da cultura política
nacional e suas raízes na formação do Estado patrimonial, o que ajuda a entender a visível
carência dos padrões éticos no comportamento dos brasileiros.
A pesquisa parte do pressuposto de que a indignação generalizada contra as denúncias
de casos de corrupção envolvendo agentes políticos e servidores públicos na administração
brasileira, bem como as respectivas abordagens casuísticas não ajudam a compreender as
origens e os efeitos da corrupção.
Concluiu-se que 77 % das pessoas ouvidas afirmaram induvidosamente que a corrupção
no país é muito grave, 20 % grave, 2 % pouco grave e 1 % não soube responder. A percepção
tende a aumentar se o entrevistado for do sexo masculino, morador de áreas urbanas das regiões
norte ou sudeste, com curso universitário ou superior e remuneração acima de dez salários
mínimos, superando os 90 %. Na mesma hipótese, o índice baixa para 69 % em relação aos
entrevistados que ganham até um salário mínimo.
Merece destaque, também, o aumento, nos últimos cinco anos, da percepção do
fenômeno da corrupção por parte de 73 % dos entrevistados, dos quais 54 % afirmaram que a
corrupção aumentou muito, sendo a grande maioria desses entrevistados de escolaridade e renda
médias, muito embora 75 % das pessoas ouvidas tenham admitido maior incidência na
apuração dos casos de corrupção outrora escamoteados.
Os entrevistados percebem a ocorrência de práticas corruptas com maior facilidade nas
Câmaras de Vereadores do que no Senado Federal, revelando como é mais fácil para o
indivíduo compreender a corrupção que se apresenta a sua volta. Todavia, a pesquisa comprova
109
o consentimento em relação a algumas práticas corruptas mais próximas do cotidiano dos
entrevistados.
Isso explica por que pagar uma “cervejinha” para o guarda de trânsito não é considerado
como algo tão ruim assim, em comparação, por exemplo, com o suborno de um empresário para
vencer uma licitação pública. Mais de 30 % dos entrevistados acham que dar dinheiro para um
guarda para escapar da multa não chega a ser um ato corrupto. Quase 30 % das pessoas ouvidas
admitem fazer um coisa um pouco corrupta para proteger a alguém da sua família. Os prejuízos
dos atos ímprobos são considerados mais graves ao interesse público quando se originam na
administração pública ou no meio empresarial.
Outra comprovação marcante da pesquisa é a falta de noção de responsabilidade coletiva
dos indivíduos, decorrente, ao que parece, da fragilidade do conceito de interesse público.
Segundo consta, 74 % dos entrevistados do Estado da Paraíba acham que interesse público é
algo de responsabilidade do Estado, passando o índice para 17 % no Estado de São Paulo. Tal
noção patrimonial do que seja interesse público, como sustentamos, torna inviável o combate à
corrupção. O público acaba por se confundir com o privado.
Quanto menos educada e informada é a sociedade, mais imperfeita é a noção de que
dispõe sobre o interesse público. O pensamento comum e consensual do homem médio
brasileiro gira em torno da seguinte mentalidade: Já que o governo não executa as respectivas
políticas públicas em favor da sociedade, ao menos, então, que reprima os crimes ocorridos,
com flagrante apelo à atuação arbitrária do Estado, característica esta compatível com a
dominação tradicional patrimonial.
A participação política ausente num cidadão pensante, crítico e responsável cede
espaço para cobrança por medidas destinadas à atuação arbitrária e repressiva do Estado, com a
cristalização da visão de uma política de interferência máxima através do direito penal.
Aproximadamente 82 % dos ouvidos concordam que está faltando novas leis, com penas
maiores e mais duras. A complacência com o autoritarismo é confirmada pelo questionamento a
respeito do enquadramento legal das instituições no combate à corrupção, constando o apoio de
110
86 % dos entrevistados às operações da Polícia Federal, apesar de 37 % das pessoas ouvidas
acreditarem que, às vezes, os policiais agem “ao arrepio” da lei. Chama a atenção, aliás, o índice
de 48 % referente àqueles que consideram que o Poder Judiciário, às vezes, também age fora da
lei.
Exorciza-se, assim, por meio de instituições que, com o apoio popular, margeiam a lei, a
indignação contra a prática diária de atos de corrupção dos próprios cidadãos que furam as filas
em estabelecimentos diversos, enganam as pessoas com propostas fraudulentas, lucram no
troco, enfim, aplicam a “Lei de Gérson” no dia-a-dia.
A valorização da atuação arbitrária do Estado, em contraposição à leniência com que se
aceita “o jeitinho brasileiro”, reforça o individualismo, a desconfiança social, a conformação
apática, o descrédito das instituições públicas e, em conseqüência, a desmobilização social e
política.
A desconfiança das pessoas é atenuada diante de pobres, velhos e mulheres. A pesquisa
constatou que os mais pobres são considerados mais honestos, seguidas dos idosos e das
mulheres. Mas a percepção brasileira sobre a honestidade das idosas carentes diz muito mais
sobre a cultura política nacional do que sobre os motivos da escolha de nossos representantes
políticos. Tanto o Estado, como a sociedade, desconsideram nossas velhas pobres no que
respeita a satisfação de suas necessidades básicas. E é sobre esse grupo representante da
honestidade nacional que se expia a culpa coletiva pela inexistência da responsabilidade no
cultivo do interesse público.
Os dados constantes da Pesquisa “Os Brasileiros e a Corrupção”, apresentam
importantes e recentes informações para compreensão moderna da mentalidade da população
brasileira, confirmando que, embora crescente a percepção da prática dos atos de corrupção no
País, o brasileiro continua com uma noção individual e particularista do interesse público,
consentido com a atuação arbitrária do Estado na repressão criminal e admitindo certos desvios
que julga não serem tão graves assim.
111
Como se vê, a mentalidade patrimonial ainda predomina no Brasil de nossos dias,
apresentando-se inconveniente à aplicação impessoal e indistinta da lei a todos os indivíduos. O
que acaba importando é o grau de intimidade, conhecimento, prestígio e poder, devendo o
ordenamento legal vigente atender parcialmente as situações concretas conforme a conveniência
e a relevância das pessoas envolvidas.
1.3.2.2. Pesquisa Social Brasileira (PESB): o “jeitinho brasileiro”
Já a Pesquisa Social Brasileira - PESB
133
, datada de 15 de setembro de 2002, organizada
por Alberto Carlos Almeida, Andréia Schroeder e Zairo Cheibub, considerado como um survey
nacional, foi realizada a partir de 2.364 entrevistas domiciliares em todo o Brasil, com
abordagens, dentre outras, sobre atitudes e valores relacionados ao "jeitinho brasileiro",
corrupção e cultura patrimonial.
A pesquisa, formulada dentro de um universo que abrange a população brasileira adulta
acima dos 18 anos de idade, colheu uma significante amostragem científica a partir da definição
de uma probabilística com três estágios de seleção bastante criteriosos
134
, entrevistando 2.363
pessoas, entre 18 de julho e 5 de outubro de 2002, atingindo cinco regiões, 26 estados e o
Distrito Federal, englobando 5.507 municípios brasileiros.
133
ALMEIDA, Alberto Carlos; SCHROEDER, Andréia; CHEIBUB, Zairo (orgs.). PESB: Pesquisa Social
Brasileira, 2002 (Banco de dados). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense (UFF). In: Consórcio de
Informações Sociais, 2004. Disponível em: <http://www.cis.org.br>. Acesso em 30/06/2008.
134
No primeiro estágio, 102 unidades primárias de amostragem (UPAs), ou municípios, foram selecionados
probabilisticamente e proporcionalmente ao tamanho. No segundo estágio, 280 unidades secundárias de
amostragem (USAs) - setores censitários - foram selecionadas probabilisticamente e proporcionalmente em cada
município. No terceiro estágio, os domicílios foram selecionados proporcionalmente ao tamanho de forma
sistemática. No final, um adulto era selecionado aleatoriamente dentro de cada domicílio para responder à pesquisa.
Cada unidade primária de amostragem constitui um município. Foram utilizados os dados da Contagem de 1996 do
IBGE e a divisão político-administrativa das 5 regiões, com 27 estados (26 estados mais o Distrito Federal) e 5507
municípios. Foram sorteados 102 municípios. Destes, 27 foram considerados como estrato certo (auto-
representativos) e 75 como não sendo auto-representativos. Os municípios auto-representativos são as capitais dos
estados. A amostra é representativa das 5 regiões (Centro-Oeste, Norte, Nordeste, Sul e Sudeste).
112
A presente pesquisa busca evidenciar e comprovar a partir dos hábitos e costumes dos
brasileiros a tese central do presente trabalho, qual seja, a corrupção, num menor ou maior grau,
está entranhada na cultura nacional. Uma ética patrimonial, hierárquica, individualista,
centralizadora, privatista, particularista, avessa à aplicação objetiva e impessoal das leis.
Os autores da pesquisa identificam no Brasil uma sociedade, patrimonial,
preconceituosa, hierárquica e dividida, evidenciando os acertos da teoria do antropólogo
Roberto DaMatta, especialmente no que se refere à relevância dada nas relações sociais à
posição, origem e status social que o indivíduo ocupa no espaço comunitário.
Herança da cultura patrimonial lusitana, os brasileiros lidam mal com a igualdade e o
tratamento impessoal e objetivo das normas. Como referido anteriormente, DaMatta consagrou
a expressão “você sabe com quem está falando?” como representação maior do caráter
centralizador, individualista e hierárquico dos brasileiros.
Nesse contexto, o chamado “jeitinho brasileiro” pode ser considerado um instrumento
utilizado ordinariamente pelos os indivíduos com o objetivo da busca do tratamento excepcional
em relação à regra geral. Não havendo como recorrer a uma relação de intimidade, de poder ou
de superioridade, com o desiderato de se esquivar da aplicação objetiva da norma, o indivíduo
busca apresentar uma justificativa para a violação da regra geral, utilizando-se muitas vezes do
apelo sentimental, do suposto infortúnio, da desgraça sofrida, da miséria presente. É preciso
“chorar a miséria”, reclamar da falta de sorte e reclamar da existência, enfim, persuadir através
do lamento em busca da impunidade.
Seja como for, o indivíduo não aceita um tratamento geral e impessoal, reclamando uma
atenção privilegiada quando da não observância às regras legais. As implicações dessa
mentalidade patrimonial, desse jeito individualista de ser, causam sérias implicações para o
exercício efetivo da democracia e as garantias dos direitos fundamentais.
Como se sustenta no presente ensaio, a qualidade democrática está diretamente
relacionada com o aumento da consciência crítica dos indivíduos envolvidos num processo de
113
conhecimento, informação e educação, a partir de uma concepção instrumental de Estado,
estruturado em normas hierárquicas que se sobreponham adequadamente por conteúdos de
limitação do domínio do poder político.
Aliás, o Estado Democrático de Direito, de viés garantista, pode ser atingido em sua
plenitude em sociedades com níveis elevados de educação. Somente uma sociedade educada,
crítica e consciente de seus direitos e de suas obrigações poderá alcançar mais
desenvolvimento político, social e econômico, um maior pluralismo de idéias e uma divisão
mais democrática do poder. Criam-se diversas fontes de poder e interesses, situação que, por si
só, dificulta o exercício do domínio patrimonial de poder. A educação tem indubitavelmente um
impacto decisivo no desenvolvimento de uma sociedade, e, como se infere, na formação de sua
estrutura do poder político.
Assim, como é importante a compreensão histórica da cultura patrimonialista portuguesa
para análise da cultura nacional, também o é, a verificação de suas conseqüências atuais para a
sociedade brasileira. Como se verá, a Pesquisa Social Brasileira PESB, demonstrará
claramente a predominância do “Brasil patrimonial” sobre o “Brasil moderno”, enfim, a
persistência de uma mentalidade arcaica e de um agir individualista inconseqüente, sem
prejuízo, todavia, da constatação de uma tímida brisa de transformação a partir do processo
educativo.
A pesquisa demonstra dados relevantes sobre o perfil do sistema educacional brasileiro
tendo como base a escolaridade da população brasileira, constatando a baixa escolaridade na
maior parte da população, sendo que 9 % dos entrevistados declararam-se analfabetos e apenas
12 % com formação universitária ou superior.
Nesse sentido, grande parte da população brasileira apóia a utilização do “jeitinho
brasileiro”, observando, ainda, as seguintes características comuns: hierárquica, patrimonialista,
fatalista, privatista, individualista, preconceituosa etc.
114
O estudo demonstra os dois extremos da mentalidade da população brasileira. Identifica
o padrão (e exceção) do indivíduo do “Brasil moderno” com as seguintes características:
homem, jovem, com alto grau de escolaridade, morador da região Sudeste ou Sul e de uma
capital de estado. Em sentido oposto, identifica o padrão (e regra) do indivíduo do “Brasil
patrimonial” com as seguintes características: mulher, idosa, analfabeta, moradora da região
Nordeste e de uma cidade que não é capital de estado.
Vejamos os resultados da pesquisa que mais importam ao presente estudo, com destaque
para as seguintes abordagens: a aceitação do “jeitinho brasileiro”, a conduta “nobiliárquica”,
pessoal e hierárquica do brasileiro, o caráter patrimonialista da cultura nacional e, por último, a
falta de espírito público.
A aceitação do “jeitinho brasileiro”, não fosse a confirmação da presente pesquisa, é
cotidianamente constatado no dia-a-dia dos brasileiros. O “jeitinho brasileiro” foi considerado
como atitude correta por 57 % dos analfabetos, 51 % daqueles com escolaridade até a 4 ª série,
58 % daqueles com escolaridade da 5 ª à 8 ª série, 48 % daqueles com ensino médio, e 33 %
daqueles com nível superior ou mais.
Lembrando a campanha o projeto que temos a satisfação de coordenar: O que você
tem a ver com a corrupção? A resposta, quase que imediata, é quase sempre a mesma: Nada! O
indivíduo, cínica ou sinceramente, consciente ou inconscientemente, não admite ser favorável a
corrupção. Todavia, caso indagado se alguma vez já se socorreu do popular “jeitinho brasileiro”,
a resposta também não demora tardar: Sim, um “jeitinho”, sim.
O “jeitinho brasileiro” é importantíssimo para compreensão da hipocrisia da sociedade
brasileira. A disseminação desinibida da utilização desse recurso, bem demonstra a dificuldade
de trabalhar a problemática da cultura da corrupção em nosso País, sendo de suma importância à
constatação do porquê que fenômeno da corrupção é tão enraizado entre nós brasileiros.
Como poderemos confirmar a partir dos dados da PESB, o “jeitinho brasileiro” é um
proceder socialmente admitido, contando com a ampla simpatia da população brasileira, que o
115
reconhece como tolerável e até eficiente. Não desconhece, porém, que sua instituição possibilita
a quebra de normas e a não viabilização dos princípios da igualdade e da impessoalidade.
Vale registrar, contrário ao uso dessa prática abusiva, que não existe diferença entre o
suborno de um agente político que recebe milhões de uma empreiteira, daquele pagamento de
uma “cervejinha” ao policial de trânsito. O conteúdo de corrupção é o mesmo em ambos os
casos, diferenciados somente em razão da quantidade e da oportunidade.
A pesquisa, ao indagar sobre a utilização do jeitinho no dia-a-dia, teve como resultado a
admissão por parte de 2/3 dos entrevistados, que, de alguma forma, já se utilizaram deste tipo de
estratégia. Ademais, possivelmente esse índice deve ser maior, haja vista que quanto menor o
grau de instrução do entrevistado menos ele sabe responder o que significa utilizar ou, o que é, o
“jeitinho brasileiro” (36 % para os analfabetos).
Os resultados também comprovam que o “jeitinho brasileiro” é uma conduta socialmente
aceita em todos os grupos e classes sociais, estando impregnado no modo de vida do homem
brasileiro.
Também foram utilizados métodos de pesquisa com o objetivo de verificar junto à
população brasileira o que se entende por “jeitinho brasileiro” e, complementando, o que pode
ser considerado um favor lícito e um ato de corrupção.
Foram descritas dezenove situações para que os entrevistados indicassem quais as que se
enquadrariam em favor lícito, em ato de corrupção ou num jeitinho. Quatro das situações foram
consideradas com um favor regular: a) emprestar dinheiro a um amigo, com um índice de 90 %;
b) um vizinho emprestar a outro vizinho uma panela ou fôrma que faltou para preparar a
refeição, com um índice de 89 %; c) na fila do supermercado, deixar passar na frente uma
pessoa que tem poucas compras, com um índice de 67 %; e d) guardar o lugar na fila para
alguém que vai resolver um problema, com um índice de 62 %.
116
Foram consideradas atos de corrupção sete das situações apresentadas: a) usar um cargo
no governo para enriquecer, com um índice de 90 %; b) pagar um funcionário de uma
companhia de energia para fazer o relógio marcar um consumo menor, com um índice de 85 %;
c) dar R$ 20,00 (vinte reais) para um guarda para ele não aplicar uma multa, com um índice de
84 %; d) uma pessoa conseguir uma maneira de pagar menos impostos sem que o governo
perceba, com um índice de 83 %; e) uma pessoa ter dois empregos, mas vai trabalhar em um
deles, com um índice de 78 %; f) fazer “gato”, ou seja, uma gambiarra de energia elétrica, com
um índice de 74 %; e g) uma pessoa ter uma bolsa de estudo e um emprego ao mesmo tempo, o
que é proibido, mas ela consegue esconder do governo, com um índice de 74 %.
Por fim, o “jeitinho brasileiro” foi apontado em seis hipóteses: a) uma pessoa que
costuma dar boas gorjetas ao garçom do restaurante para quando voltar não precisar esperar na
fila, com um índice de 59 %; b) uma pessoa que trabalha em um banco ajudar um conhecido
que tem pressa a passar na frente da fila, com um índice de 56 %; c) uma pessoa que conhece
um médico passar na frente da fila do posto de saúde, com um índice de 50 %; d) uma mãe que
conhece um funcionário da escola passar na frente da fila quando vai matricular seu filho, com
um índice de 50 %; e) alguém consegue um empréstimo do governo que demora muito a sair.
Consegue liberar o empréstimo mais rápido porque tem um parente no governo, com um índice
de 45 %; e f) pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar um
documento mais rápido do que o normal, com um índice de 43 %.
Duas das situações apresentadas ficaram divididas como “jeitinho brasileiro” e ato de
corrupção: a) um funcionário público receber um presente de Natal de uma empresa que ele
ajudou a ganhar um contrato do governo; e b) passar uma conversa em um guarda para ele não
aplicar uma multa.
Na classificação acima abordada chama a atenção as duas últimas situações,
consideradas pelos entrevistados como favores lícitos, ambas relacionadas com a vantagem
pessoal de furar filas, envolvendo a convivência social no espaço público. Ocorre que, como
foi salientado no presente estudo, a esfera particular se confunde com a pública, sendo
117
concebido com legítimo por grande parte da população brasileira dispor no espaço público
como se estivesse em sua própria residência particular.
Significativo também se apresenta o fato de que em cinco das situações indicadas como
atos de corrupção, as hipóteses questionadas não se apresentam acessíveis à maior parte da
população, que, considerando-as distantes do seu cotidiano, indicam sem constrangimento a
corrupção.
Os resultados da pesquisa demonstram que existe um amplo consenso na indicação do
que é favor lícito, diminuindo gradativamente o consenso quando se observam as hipóteses de
corrupção e diminuindo ainda mais com relação aos casos identificados com “jeitinho
brasileiro”.
O “jeitinho brasileiro” acaba sendo o subterfúgio para escamotear o ato de corrupção,
um meio-termo, uma meia-culpa, que bem demonstra a dificuldade da população brasileira em
observar regras universais de conduta. Um conflito proveniente da herança cultural lusitana, da
permissão convenientemente justificada a partir de um ponto de vista particular por se tratar de
uma situação diferenciada, ímpar e excepcional.
Merecem destaques também as seguintes constatações: a) quem mora nas capitais tende
a considerar as situações mais como corrupção do que quem mora fora das capitais; b) os jovens
tendem a considerar as situações mais como corrupção do que os mais velhos; c) as pessoas que
fazem parte da população economicamente ativa (PEA) tendem a considerar as situações mais
como corrupção do que as pessoas que não fazem parte da PEA; d) os habitantes do Nordeste
tendem a considerar as situações mais como favor do que as pessoas que moram nas demais
regiões do Brasil; e) as pessoas de escolaridade mais alta tendem a considerar as situações mais
como corrupção do que as de escolaridade mais baixa; f) o jeitinho é considerado certo para
metade da população brasileira, e errado para a outra meia parte; g) os jovens consideram o
jeitinho certo e os mais velhos o consideram errado; h) a maioria dos nordestinos considera o
jeitinho certo e a maioria dos habitantes do Sul e Sudeste o considera errado; e i) quanto mais
elevada a escolaridade menor a tolerância em relação ao jeitinho.
118
A PESB também comprova estatisticamente que a cultura patrimonial, do favorecimento
pessoal, do “jeitinho brasileiro”, está visivelmente disseminada e enraizada na sociedade
brasileira. Os níveis de corrupção no Brasil estão certamente relacionados com esta cultura “do
se dar bem a qualquer custo”, da institucionalização do “jeitinho brasileiro”, demonstrando os
resultados da pesquisa que ainda teremos uma longa trajetória a percorrer se pretendemos
enfrentar com eficiência a problemática da cultura da corrupção nacional.
A conduta nobiliárquica, autoritária e hierárquica do brasileiro é outra constatação de
destaque na PESB, restando comprovado que grande parte da população concorda com uma
visão de mundo patrimonial e hierárquica, visivelmente seletiva no seu modo de ser. Como
dizem os brocardos mais do que nunca populares entre os brasileiros: Cada macaco no seu
galho”; Um lugar para cada coisa”; “Cada coisa no seu lugar
135
; e “Uma coisa é uma coisa,
outra coisa é outra coisa completamente diferente da outra.” A utilização dessas expressões, ou
o uso de outras variantes equivalentes, como: “Quem você pensa que é?”; “Onde você pensa
que está?”; “Recolha-se à sua insignificância!”; “Mais amor e menos confiança”; “Vê se te
enxerga!”; “Você não conhece o seu lugar?”; “Mais respeito!”, objetivam no (in)consciente
coletivo da sociedade brasileira restabelecer a ordem ou a hierarquia perdida ou ameaçada.
136
Se
alguém manda, outrem deve obedecer!
Num Estado patrimonial de estamento, a concepção hierárquica é imposição
imprescindível para estruturação do domínio de poder. Enquanto alguns comandam, outros,
consciente ou inconscientemente, obedecem. Essa mentalidade patrimonial tem sua razão de ser
na busca pela preservação e ampliação de privilégios, vantagens e tratamentos diferenciados.
Em sentido oposto, a igualdade pactuada nos estados ditos democráticos é incompatível
com a nobreza ou a coroa, com a hierarquia permissiva, a ordem subjetiva e o comando
centralizado de poder.
135
MATTA, Roberto da. Obra citada. p. 188.
136
___. IDEM. p. 196.
119
Os reflexos modernos do legado ético e cultural lusitano, na estruturação social,
econômica e política brasileira, são incontestavelmente demonstrados pela PESB. A hierarquia,
uma das características preeminentes do Estado patrimonial, está diretamente relacionada com a
menor modernização da sociedade. À medida que a escolaridade média dos brasileiros aumentar
haverá a redução desse tipo de mentalidade nobiliárquica.
A pesquisa demonstra que ainda é bastante predominante a mentalidade hierárquica e
elitista em nosso País. Um total de 79 % dos entrevistados afirmaram que ter dinheiro ganhar
na mega sena – não basta para que um porteiro de prédio passe a morar na área nobre da cidade.
Com relação ao empregado que recebe autorização do patrão para tomar banho de piscina, 65 %
das pessoas ouvidas rejeitaram a hipótese de ambos utilizarem a piscina. Ainda 61 % dos
entrevistados acham que o empregado deve continuar chamando o patrão de “senhor”, mesmo
quando ele pede para ser tratado como “você”. Cerca de 56 % dos ouvidos sustentam a
necessidade da utilização do elevador de serviço por parte dos empregados, mesmo quando
facultado o uso do elevador social.
Os dados da PESB mostram que a ética patrimonial de caráter nobiliárquico,
hierárquico, autoritário e elitista impregnou a alma da população brasileira. Constata-se ainda
que a hierarquia está diretamente relacionada com o autoritarismo. Pode-se se dizer que quanto
mais propenso um indivíduo à hierarquia, mais autoritário será. Para manutenção dos
benefícios, privilégios e mordomias de poucos patrões, muitos deverão servir como escravos
modernos. Em vez do tronco e da chibata, o salário-mínimo e um frango defumado de “prêmio”
no Natal.
O caráter patrimonialista da política nacional resta diretamente evidenciado na conduta
de políticos brasileiros que se adonam da coisa pública como se fosse privada. A PESB
confirma que no Brasil, diversamente dos países democráticos, o espaço público não é
delimitado em relação ao espaço privado. A coisa pública acaba sendo administrada como
objeto particular do governante, repartida entre seus familiares, amigos, partidários e
simpatizantes.
120
Verifica-se pelas respostas da pesquisa que a grande maioria dos entrevistados não
possuem uma noção de público relacionada somente ao governo, ampliando a compreensão para
abranger tudo aquilo que não diz respeito ou não pertence exclusivamente ao vivente.
Observa-se que 74 % dos entrevistados afirma que cada um deve cuidar somente do que
é seu, e o governo cuida do que é público. Ou seja, ¾ dos indivíduos estão indiferentes aos
cuidados para com o espaço público. 60 % das pessoas ouvidas não concordam que ninguém
deva usar as ruas e calçadas para vender produtos. A cultura patrimonial é a cultura brasileira.
para se ter uma idéia, no caso mais extremo do uso indevido da coisa pública, no
questionamento referente à utilização de um cargo público como se fosse proprietário particular,
17 % dos entrevistados legitimaram a conduta.
Assim, considerando que o patrimonialismo está diretamente relacionado com os altos
índices de corrupção, sua prática e tolerância, a pesquisa demonstra a urgência de uma política
pública educacional para uma mudança ética e cultural a partir das novas gerações.
Ora, enquanto 74 % da população brasileira ignora a administração do espaço público,
como exigir e pressionar nossos representantes políticos para o bom desempenho de suas
funções? A corrupção, como se verifica, não é um fenômeno exclusivo do estamento ou das
elites, estando entranhada no modo de ser do povo brasileiro. O que esperar dos 17 % dos
brasileiros que concordam com o uso de um cargo público em benefício pessoal e particular?
Não surpreende, portanto, a banalização da corrupção no cotidiano nacional. Cabe aqui lembrar
o velho sucesso de Bezerra da Silva: “Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão (…)”.
Por fim, outra estatística que merece atenção. É a falta de espírito público dos
brasileiros. Do total de entrevistados, 56 % disseram que se deve colaborar com o governo
quando ele cuida do que é público. Na região Nordeste, esse índice sobe para 65 %. A
mentalidade equivocada trata o público como coisa alheia, distante, indiferente. Como o
governo não cuida da coisa pública, não é a população brasileira que deverá cuidar. Eis a cultura
da ignorância que ainda impera em grande parte dos lares brasileiros.
121
Os resultados da Pesquisa Social Brasileira (PESB) confirmam que convivemos num
País patrimonialista, hierárquico, familista, que aprova e utiliza cotidianamente o “jeitinho
brasileiro”, e, não raras vezes, referenda e legitima a prática institucionalizada da corrupção.
1.3.2.3. Pesquisa “Escolas corruptas, universidades corruptas: O que pode ser feito”
(UNESCO/IIPE)
Igualmente interessante, o Resumo “Escolas corruptas, universidades corruptas: O que
pode ser feito”
137
, elaborado por Dulce Borges, a partir de um relatório, resultado de diversos
anos de pesquisa realizadas pelo Instituto de Planejamento Educacional da UNESCO (IIPE),
que traduz importantes conclusões sobre a problemática do fenômeno da corrupção. O relatório,
lançado em junho de 2007, demonstra como práticas corruptas diversas comprometem
seriamente os sistemas educacionais ao redor do mundo, incluindo o Brasil, representando em
prejuízo de bilhões de dólares ao erário.
Embora direcionado para pesquisas de práticas corruptas nos sistemas educacionais,
abrangendo uma análise global, o resumo fornece conclusões interessantes que comprovam as
argumentações sustentadas no presente ensaio.
Para concretizarem o estudo, os autores Jacques Hallak e Muriel Poisson, do Instiituto
de Planejamento Educacional (IIEP), contaram com o apoio de diversas ONG´s, institutos
nacionais de pesquisas, docentes, universidades, e ministérios da educação para coletaram
experiências realizadas em mais de sessenta países visando desenvolver e aprimorar os sistemas
educacionais.
O primeiro aspecto destacado pelo relatório consiste no fato de que a corrupção não é
um fenômeno isolado e, nem está adstrito a determinados países ou prevalece em determinados
137 Resumo Executivo elaborado pela Drª Dulce Borges para o Seminário Internacional Ética e Responsabilidade
na Educação: compromisso e resultados, a partir da seguinte obra: HALLAK, Jacques. POISSON, Muriel. Corrupt
schools, corrupt universities: what can be done? Paris: UNESCO, 2007. In: UNESCO no Brasil, 2007. Disponível
em: <http://www.unesco.org.br>. Acesso em 23/07/2008.
122
sistemas de governo. Tanto países ricos como países em desenvolvimento experimentam atos de
corrupção nas suas mais diversas modalidades.
A esse respeito, constataram os autores que os EUA lideram os casos de fraudes
acadêmicas, com a compra de diplomas universitários através da internet. A Suécia, por sua vez,
tem um grande número de falsos doutores, sendo que a França e a Itália registram um número
considerável de casos de desvios em processos de construção e manutenção de estabelecimentos
de ensino.
O estudo também aponta que em quatro anos, entre os anos de 2000 e 2004, o número de
falsas universidades na internet aumentou quatro vezes, subindo de 200 (duzentos) para 800
(oitocentos) o número de sítios registrados por instituições de ensino fictícias.
Ainda, segundo o relatório a corrupção institucionalizada nos sistemas educacionais se
manifesta de diversas maneiras, variando desde a expedição de títulos acadêmicos inexistentes,
contratações irregulares de docentes, fraudes nas autorizações e credenciamento das instituições
de ensino, malversação dos recursos destinados às escolas, entre outros. Enquanto ações como o
suborno e a ingerência de terceiros na contratação de professores, e promoções indevidas de
educadores repercutem diretamente na redução da qualidade do ensino, atos como cobranças
ilegais de taxas de matrícula, e desvio de dinheiro destinado ao aparelhamento das escolas,
contribuem para o crescimento do abandono escolar e diminuição dos índices de escolarização.
Mas se países desenvolvidos sofrem com a corrupção, é nos países subdesenvolvidos,
privilegiados com a burocracia da administração pública e submetidos a uma fiscalização menos
intensa e eficiente que os atos de corrupção encontram um terreno fértil. O estudo apontou, por
exemplo, que em Papua Nova Guiné 15% dos fundos destinados à remuneração dos professores
é desviado para o pagamento de profissionais inexistentes. No Peru, as fraudes relativas ao
pagamento de professores inexistentes correspondem a 30% da folha de pagamento.
Outro estudo de caso citado pelos autores, e que transparece o alto nível de enraizamento
da corrupção no sistema educacional, se refere à experiência que tiveram na Ucrânia, ocasião
123
em que ao indagarem representantes de universidades privadas daquele país, estes admitiram
que o suborno de agentes públicos para obtenção dos credenciamentos e licenças necessários ao
funcionamento das instituições de ensino é uma prática recorrente e necessária.
O projeto do IIPE, além de identificar e analisar as estratégias para redução da corrupção
em educação, busca indicar alternativas para implementação de mudanças no combate à
corrupção. Como pudemos observar alhures, a adoção de medidas que visem neutralizar o
fenômeno da corrupção, especialmente em uma sociedade com fortes raízes patrimoniais,
sofrem resistências importantes por parte dos grupos dominantes, sempre atentos contra
mudanças indesejáveis.
Com o objetivo específico de gerir saudavelmente os recursos destinados à educação,
busca-se a implementação de atitudes eficientes para gestão transparente de recursos públicos e
ações urgentes no combate à corrupção. Ao avaliar as causas do desempenho fraco na década
dos anos 90, o Comitê de redação do Fórum Mundial de Educação, foi categórico ao consignar
que a corrupção é um fator preponderantemente negativo no uso dos recursos públicos
destinados à educação, devendo ser imediatamente combatida.
Assim, com o objetivo de combater a disseminação crescente do fenômeno da corrupção
nas gerências de recursos destinados à educação, o IIPE lançou o projeto Ética e Corrupção em
Educação com base nos seguintes pressupostos:
a) a corrupção é um fenômeno mundial. O trabalho conduzido por Transparência
Internacional (TI) nos anos 90 documenta este fato; b) o foco central do projeto não é
investigar indivíduos em tribunal. Como instituição de “desenvolvimento de capacidades”,
o IIPE está sim profundamente envolvido com os mecanismos, procedimentos e processos
gerenciais e organizacionais que reduzam as oportunidades de práticas de corrupção; c) a
corrupção é foco de preocupação em diferentes setores, mesmo se em dimensões diferentes.
A gestão e a administração dos impostos e das alfândegas ou a área da saúde têm, em alguns
países, sérios problemas de corrupção. Limitar a corrupção em educação implica a aplicação
de um amplo marco de referência que tome em consideração aspectos gerais que afetam
diferentes áreas do setor público (incluindo a gestão dos serviços públicos, a aquisição de
bens e serviços, desembolsos, transferência e uso de fundos públicos), mas também os
aspectos mais específicos do setor da educação (por exemplo, a fraude acadêmica).
138
138
___. IDEM. p. 9-10.
124
A Educação, como se sustenta na presente dissertação e no relatório do IIPE, é uma área
singular e decisiva na atuação preventiva de combate à corrupção. Somente leis rígidas e
instituições fortes não são suficientes para atuação preventiva aos atos de corrupção. É preciso
investir no sujeito crítico, pensante, consciente de sua responsabilidade social e de suas
garantias fundamentais. A mobilização social estruturada e planejada no combate à corrupção é
uma das prioridades na área da educação. É através de uma educação ética voltada para crianças
e adolescentes os futuros dirigentes deste País que poderemos quebrar o ciclo vicioso da
corrupção. Portanto, o estabelecimento de estratégias sólidas e eficientes, é medida necessária
para solução da problemática.
O relatório do IIPE define a corrupção como a utilização sistemática de serviços
públicos em proveito pessoal, com impacto significativo na oferta e qualidade de vida,
classificando-a em legislativa, administrativa e burocrática. A corrupção pode se apresentar de
várias maneiras, através do nepotismo, favoritismo, clientelismo, extorsão ou solicitação de
subornos e desvio de bens públicos (...)”, sendo que pode ser elaborada de acordo com regras
estabelecidas ou contra essas regras, podem ser grandes ou pequenos atos de corrupção,
embora não haja uma fronteira clara entre pequena e grande corrupção; antes um conjunto
contínuo entre as duas.
139
Como se sabe, a gravidade da corrupção é auferida superficialmente pela sua percepção.
Daí a importância do Índice de Percepção da Corrupção, publicado anualmente pela
Transparência Internacional, demonstrando a nível global a percepção da corrupção nos
principais países do mundo.
Conforme apontado no relatório do IIPE, a consciência da problemática da corrupção
aumentou nos últimos tempos, e, especial, nos países ocidentais, que se apresentaram mais
atentos às questões de integridade e ética na política. Segundo consta, a consciência da
corrupção resulta de um processo dual:
139
___. IDEM. p. 13.
125
“vertical”, por um lado, com a crescente busca de mais transparência e responsabilidade
na comunidade internacional. O sistema das Nações Unidas, instituições de ajuda, OCDE,
bancos de desenvolvimento e organizações da sociedade civil, como Transparência
Internacional, têm um papel crucial por uma variedade de razões, incluindo as razões
ideológicas e políticas (pressão dos contribuintes em países desenvolvidos), e
“horizontal”, por outro lado, com a crescente busca de mais transparência e
responsabilidade por parte de usuários de serviços de setores públicos, a começar pelas
alfândegas, bancos, finanças e saúde, estendendo-se para outros setores, incluindo
educação.
140
A adoção de convenções internacionais pelos países signatários, entre os quais o Brasil,
reforça o compromisso internacional de investimento efetivo no combate à corrupção, com
destaque especial para: a Convenção da OCDE contra Suborno de Funcionários Públicos
Estrangeiros em Transações de Negócios Internacionais (1999), à qual já aderiram 36 países; e a
Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), que constitui um marco contra a
corrupção, já adotada por 129 países.
Da mesma forma que o relatório indica as mazelas mais ocorrentes nos sistemas
educacionais, também faz referência às experiências positivas desenvolvidas. Um dos casos
mais interessantes analisados pelos autores diz respeito à situação vivenciada em Uganda.
Naquele país, no início da década de 90, apenas 13% dos valores destinados às escolas chegava,
efetivamente, até as instituições de ensino. Todo o restante era desviado por terceiros para
subsidiar interesses espúrios. Esse quadro sofreu uma reviravolta, ao ser deflagrada uma
campanha nacional intentando informar as comunidades locais sobre a malversação das verbas
públicas destinadas à educação, ocasião em que se logrou reverter para 85% a porcentagem de
verbas efetivamente recebida pelas escolas.
Outro caso positivo destacado no trabalho diz respeito às conquistas obtidas na América
Latina, que, tradicionalmente, sempre padeceu com a má qualidade na gestão da educação.
Brasil, Argentina, Chile e Colômbia desenvolveram experiências muito salutares no combate à
corrupção na rede educacional.
140
___. IDEM. p. 17.
126
No Brasil, destacou-se o programa “Dinheiro Direto na Escola”, realizado no Estado do
Rio Grande do Sul, que deu mais transparência à gestão das verbas públicas e aumentou a
autonomia das instituições de ensino. No Chile, o programa de alimentação aos estudantes foi
considerado um exemplo a ser seguido, sendo definido pelos autores como um modelo
centralizado, totalmente transparente e bem aplicado”. Já na Argentina, o relatório apontou a
ação conjunta entre editoras e o poder público para otimizar a distribuição de material didático
nas escolas; e na Colômbia destacou-se o trabalho desenvolvido pelo Ministério da Educação,
que através da aplicação de uma administração gerencial obteve êxito na redução de até 15%
dos gastos do Governo com a educação.
Não obstante se tratar a problemática da corrupção de um fenômeno universal, atingindo
das mais variadas formas e maneiras as culturas humanas no mundo, em países com o Brasil, de
característica arcaica e patrimonial, o combate à corrupção demanda maior atenção e união de
todos contra esse mal. Somente através da mudança comportamental, a partir de um processo
educativo sólido e planejado, a longo prazo, é que poderemos reduzir a corrupção nacional. O
relatório do IIPE aponta no mesmo sentido, indicando duas abordagens necessárias para
condução do problema, quais sejam, a educação anticorrupção e os movimentos anticorrupção:
Educação anticorrupção
Educação anticorrupção é particularmente importante em países onde não tradição de
transparência, onde despertar as consciências para tópicos de corrupção contribui para gerar
intolerância face à corrupção. Ela pode tomar várias formas e modalidades, e ser dirigida a
diferentes indivíduos ou entidades, púbicas ou privadas, institucionais ou de negócios; pode
ser prescritiva ou apoiar-se em situações práticas; pode ser oferecida por serviços públicos
ou instituições da sociedade civil. Em qualquer dos casos, ela difere da educação moral,
cívica ou ética, que não corrigem direta e aprofundadamente ações de corrupção. O objetivo
da educação anticorrupção “não é ensinar as pessoas a serem boas, mas fornecer-lhes as
habilidades que lhes permitam seguir certas normas de conduta” (Palicarsky, 2006). Deve
ser uma educação prática e concreta, fazendo a conexão entre desempenho e adesão às
normas de conduta, para que sejam capazes de reconhecer e resolver dilemas éticos, além de
combaterem, efetivamente, corrupção sempre que forem confrontados com suas práticas.
um reservatório de experiências na área de educação anticorrupção que não foram
analisadas e que ultrapassam o perfil de trabalho do IIPE atualmente. A ONG Transparência
Internacional contribuiu enormemente para promoção e difusão de experiências, em
particular em países em transição (da esfera da ex-União Soviética), apesar de precisarem
ser avaliados no que respeita a qualidade, relevância e impacto das medidas.
Movimentos anticorrupção
127
uma diversidade de iniciativas apoiadas, às vezes, por agências internacionais. O kit
contra a corrupção, editado pela Transparência Internacional, é um compêndio prático de
experiências anticorrupção que realça o potencial da sociedade civil para criar mecanismos
de monitoramento de instituições públicas. Existem ainda movimentos juvenis em muitos
países, movimentos esses que trazem esperança para o futuro, mesmo se alguns desses
movimentos são politizados. Todavia, se devidamente monitorados, podem
indubitavelmente contribuir para acelerar mudanças, mais democracia e um futuro
melhor.
141
O relatório chegou a uma conclusão incontestável. A corrupção nos sistemas
educacionais tem um custo muito alto para toda a sociedade, pois além de onerar o Estado na
sua dimensão financeira, também prejudica substancialmente a qualidade da prestação de um
dos serviços mais básicos e imprescindíveis de toda sociedade moderna, que é a Educação.
Ao final, Hallak e Poisson apontam a adoção de três medidas para o enfrentamento da
problemática da corrupção nos sistemas educacionais, quais sejam: a existência de uma
legislação clara em relação aos administradores do dinheiro público destinado à Educação, a
especialização e capacitação dos gestores, e a implementação de um sistema de fiscalização que
conte também com a participação da sociedade civil.
Pode ser afirmado, portanto, a partir dos dados colhidos no presente relatório
internacional, que a corrupção não é um fenômeno exclusivamente nacional, ou relativo aos
estados patrimoniais. Todavia, faz-se importante registrar que, considerando as constatações
sobre os mecanismos e os instrumentos utilizados para as práticas de atos de corrupção na área
da administração educacional, o Brasil é um terreno fértil para o desenvolvimento desse
fenômeno.
1.3.2.4. Obra “A Economia Política da Corrupção no Brasil” (Senac)
Outro trabalho que demonstra a forma como os atos de corrupção estão entranhados na
coisa pública, é a obra “A Economia Política da Corrupção no Brasil”
142
, escrita pelo Professor
141
___. IDEM. p. 53.
142
SILVA, Marcos Fernandes Gonçalves da. A economia política da corrupção no Brasil. Senac: São Paulo, 2002.
128
Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, coordenador da Escola de Economia de São Paulo da
Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo Fernandes, todo ano o Brasil perde cerca de R$ 9,68
bilhões às custas da corrupção. Tal valor corresponde a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB)
nacional.
Se os dados revelados na obra trazem à tona cifras que dão idéia da real dimensão do
problema da corrupção no país, ao buscar as raízes históricas do problema, Fernandes encontra a
dominação sócio-econômica amparada pela tradição patrimonialista e o clientelismo:
O argumento básico aqui, e o mais importante, deste livro, está calcado no ponto de vista
segundo o qual a corrupção, embora seja um fenômeno antediluviano, define-se
historicamente na medida em que algumas sociedades a circunscreveram no âmbito da
ilegalidade e do crime. Essa delimitação do fenômeno, que é acompanhada de sua
criminalização, é resultado de uma evolução das regras que regulamentam a ação dos
agentes públicos (políticos e burocratas estatais) e privados com relação a res pública.
Examinarei, portanto, quais são os fatores que caracterizam essa evolução na direção do
desenvolvimento institucional. Veremos que o cerne do problema está na transformação de
relações de dominação, social e econômicas, calcadas na tradição patrimonialista e
clientelista.
143
Também no âmbito circunscrito às instituições privadas, é possível vislumbrar as
diversas formas como o fenômeno da corrupção se apresenta. Aliás, no que tange ao setor
privado, pode-se perceber que a corrupção decorre, originalmente, da relação promíscua como
alguns agentes públicos tratam da coisa pública. A famosa e falada confusão entre o público e o
privado, como se verá no próximo subitem.
1.3.2.5. Trabalho “Fraude e corrupção no Brasil: a perspectiva do setor privado” (Kroll)
No ano de 2002, a Companhia de Consultoria de Riscos Kroll elaborou um trabalho
intitulado “Fraude e corrupção no Brasil: a perspectiva do setor privado”
144
, em que 84 (oitenta
e quatro) empresas responderam questionários sobre fraudes e 92 (noventa e duas) empresas
143
___. IDEM. p. 19-20.
144
Pesquisa publicada no site da Ong Transparência Brasil. Disponível em:
http://www.transparencia.org.br/docs/Kroll-final.pdf
129
foram indagadas sobre corrupção. Para se ter idéia dos índices obtidos nessa pesquisa, 70% das
empresas consultadas responderam que, de uma forma ou de outra, se sentiram compelidas a
contribuir para campanhas eleitorais. Desse percentual, 58% afirma ter havido menção explícita
indicando quais favores seriam prestados em troca da contribuição.
Ainda, dentre as empresas questionadas, 28% afirmou que participa de licitações
públicas. Desse total, 48% admite que foram solicitadas para pagarem propina aos agentes
públicos. Os 52% restantes, responderam que nunca foram solicitados a pagarem propinas.
Entretanto, talvez o dado que mais chame a atenção na pesquisa, seja a quase
unanimidade das empresas respondentes (87%), ao afirmarem que a iniciativa de trazer a
corrupção para os negócios privados parte, em regra, do próprio agente público.
1.3.2.6. Pesquisa sobre a compra de votos (IBOPE/TB/UNACON)
Segundo o Relatório de Pesquisa
145
feita pelo IBOPE Opinião para a Transparência
Brasil e a União Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle, em fevereiro de
2007, as ofertas de compra de votos alcançaram níveis preocupantes no último pleito eleitoral
de 2006. Cerca de 8,3 milhões de cidadãos receberam propostas para a venda de voto.
A avaliação dos atuais e antigos governadores é positiva. As expectativas com relação
aos futuros governantes também são otimistas. Todavia, um quarto dos eleitores entende que os
políticos anteriores se beneficiaram indevidamente do cargo público em proveito próprio, e um
quinto dos entrevistados que os novos titulares procederão da mesma forma.
O rouba, mas fazainda é defendido por uma pequena parcela do eleitorado brasileiro,
que, contraditoriamente, diz valorizar a honestidade no trato da coisa pública. Outro ponto
145
Pesquisa publicada no site da União Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle (UNACON).
Disponível em: http://www.unacon.org.br/unaconv8/arquivos/Pesquisa_Ibope_Compravotos2006.pdf/
130
notório é a afirmação, por parte de 4% dos eleitores, de que tiveram que pagar propina para
funcionários públicos estaduais durante o último mandato.
1.3.2.7. Pesquisa sobre a corrupção nacional (IBOPE/TB/IPM)
o resultado do Relatório de Pesquisa
146
realizado pelo Transparência Brasil, Instituto
Paulo Montenegro
147
e IBOPE, organizado por Bruno Wilhelm Speck, Cláudio Weber Abramo,
Fredrik Galtung e Johann Graf Lambsdorff, realizado entre 15 e 20 de março de 2001, com
abrangência em todo território nacional, em todas regiões, confirma a tendência patrimonial
brasileira e, conseqüentemente, os altos índices de corrupção.
Merecem destaques os seguintes índices: A percepção do uso da máquina administrativa
para fins ilícitos foi identificada por 9% dos entrevistados; A percepção de que a corrupção
aumentou na esfera federal foi indicada por 51% dos entrevistados, que registraram índices
menores nas esferas estadual (41%) e municipal (40%); Cerca de 68% dos entrevistados
consideram que o sistema educacional não se ocupa como deveria em relação ao fenômeno da
corrupção; Um percentual de 4% dos entrevistados afirmou que, nos últimos doze meses, tinha
sido objeto de pedidos de propina por parte de funcionários públicos no exercício de suas
funções.
Cabe registrar ainda que as pessoas que indicaram uma maior ocorrência das solicitações
de propina são indivíduos com grau de instrução superior incompleto ou maior (11%), e que
essa situação aumenta com o nível de renda familiar: quanto maior a renda, maior a
porcentagem (7% na faixa de mais de 10 salários mínimos). São justamente esses os indivíduos
que possuem encaminhamentos a serem despachados junto à administração pública.
1.3.2.8. Índice de Percepção de Corrupção (TI)
146
Pesquisa publicada no site da Ong Transparência Brasil. Disponível em: http://www.transparencia.org.br/
147
O Instituto Paulo Montenegro é uma organização sem fins lucrativos criada pelo Ibope para desenvolver
projetos na área de educação.
131
Outra estatística relevante, é o índice de Percepção de Corrupção 2007, divulgado pela
Transparência Internacional (TI)
148
, reafirmando o Brasil como um país muito corrupto, com
nota 3,5, numa classificação de zero a dez (quanto menor a nota, maior a corrupção), ocupando
a 72ª colocação entre 180 países. O Brasil ficou atrás de países como Chile, Barbados, Santa
Lúcia, Uruguai, Macau, Dominica, Cuba, Costa Rica, Cabo Verde, El Savador e Colômbia. Nas
três primeiras colocações, entre os países de cultura mais honesta do mundo, figuram
Dinamarca, Finlândia e Nova Zelândia, todos com nota 9,4. Nas duas últimas colocações,
respectivamente, entre os países mais corruptos do planeta, Mianmar e Somália, ambos com
nota 1,4.
A tímida queda na classificação geral, apesar de uma nota maior do que a do ano de
2006 (3,3), se deve pela inclusão na pesquisa de 17 novos países, dos quais quatro tiveram notas
superiores ao Brasil. Em 2001 e 2002 obtivemos a nota 4. Sendo que em 2003 e 2004 a nota 3,9.
E a nota 3,7 em 2005. Segundo o Banco Mundial, a corrupção mundial causa um prejuízo de 3
trilhões de dólares por ano numa economia de 30 trilhões.
1.3.2.9. Relatório Anual de Governança do Banco Mundial (Bird)
Segundo o Relatório Anual de Governança do Banco Mundial (Bird)
149
, divulgado em
24 de junho de 2008, com base numa pesquisa que estuda as diversas formas como a corrupção
permeia governos e governados do mundo inteiro desde o ano de 1996, o Brasil manteve
praticamente o mesmo índice do relatório do ano de 2007, quando atingiu o seu pior nível de
corrupção nos últimos dez anos.
Para o BIRD, o relatório divulgado todos os anos visa instrumentalizar através de dados
concretos a missão da instituição em erradicar a pobreza através da boa-governança e do
combate à corrupção, preservando-se assim a idoneidade das instituições sociais.
148
Dados publicados no site da Ong Transparency International (TI). Disponível em: http://
http://www.transparency.org/
149
Relatório publicado em inglês no site do World Bank Governance Matters 2008: Worldwide Governance
Indicators, 1996 - 2007. Disponível em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/index.asp
132
Segundo o economista Daniel Kaufman, diretor do programa de governança do Banco
Mundial e responsável pelo relatório, os índices globais relativos ao ano de 2008, mostram que
alguns países estão fazendo progressos na governabilidade
150
e no combate à corrupção.
Os dados revelados pelo Banco Mundial, apontam que países emergentes, como a
Eslovênia, Botsuana, Estônia, Uruguai, República Tcheca, Hungria, Letônia, Lituânia, Maurício
e Costa Rica, superaram países altamente industrializados com Grécia e Itália em alguns
requisitos essenciais de governabilidade.
Para mensurar os índices brasileiros, o Banco Mundial coordenou e supervisionou a
pesquisa que contou com o auxílio de outras dezessete
151
instituições na sua elaboração.
Conforme o nível de especialização e a área específica de atuação de cada instituição
colaboradora, o Banco Mundial atribuiu um peso maior ou menor para o valor dos dados
coletados.
O Banco Mundial faz anualmente o relatório objetivando avaliar o desempenho da
governabilidade de 212 países, a partir de seis critérios: a) grau de participação dos cidadãos; b)
estabilidade política; c) eficácia dos serviços públicos; d) qualidade normativa; e) regime de
direito; e f) controle de corrupção.
152
Os dados correspondem à avaliação do período de 2007,
150
Segundo o BIRD, a governança consiste nas tradições e instituições pelas quais a autoridade é exercida em cada
país. Inclui o processo através do qual o governo é escolhido,monitorado, e substituído; a capacidade do governo de
formular e implementar com eficácia políticas seguras; e o respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que
regem as interações econômicas e sociais entre eles.
151
As instituições que participaram da pesquisa brasileira foram: Bertelsmann Transformation Index, Business
Environment Risk Intelligence Business Risk Services, Business Environment Risk Intelligence Financial Ethics
Index, Economis Intelligence Unit, Galluo World Poll, Global Inight Business Conditions and Risk Indicators,
Global Insigth Global Risk Service, Global Integrty Index, IFAD Rural Sector Performance Assessment, Institute
for Management and Development World Competitiveness Yearbook, Institutional Profiles Database, Latin
American Public Opinion Project Americas Barometer, Latinobarometro, Merchant International Group Gray
Area Dynamics, Political Risk Services International Country Risk Guide, World Bank Control Policy and
Institutional Assessments, e World Economic Forum Global Competitiveness Report.
152
The Worldwide Governance Indicators (WGI) project: Reports aggregate and individual governance indicators
for 212 countries and territories over the period 1996–2007, for six dimensions of governance: Voice and
Accountability; Political Stability and Absence of Violence; Government Effectiveness; Regulatory Quality; Rule
of Law; Control of Corruption.
133
colhidos através de 35 pesquisas de opinião formuladas por instituições habilitadas nos países
pesquisados.
Os organizadores do relatório observam que as evoluções constatadas comprovam
mudanças nas quais líderes políticos, formuladores de políticas públicas, sociedade civil e setor
privado verificam uma boa governabilidade e um efetivo controle da corrupção como fatores
decisivos para o crescimento sustentado. Em que pese alguns bons resultados, a qualidade
média da governabilidade mundial não se aperfeiçoou da maneira esperada.
O Brasil não demonstrou alteração significativa em relação aos indicadores do relatório
divulgado em 2007, com um índice oficial de avaliação médio, numa escala de zero a cem, de
49,51 pontos, registrando ainda diminuição qualitativa em quatro dos critérios abordados: grau
de participação dos cidadãos, com um indicador de 59,1 pontos, controle da corrupção, com
52,2 pontos, regime de direito, com 43,3 pontos e estabilidade política, com 36.5 pontos,
indicando nos dois últimos os seus piores resultados.
no relatório de 2007 (ano referência 2006) o País apresentou uma deterioração em
várias dimensões de governança, com uma diminuta mobilização social; decisões judiciais
demoradas e contraditórias; certa instabilidade política; e impunidade relativa a reiterados e
renovados escândalos de corrupção na administração pública, caindo o índice oficial de
avaliação médio para 50,58 pontos, o pior índice até então registrado nos últimos dez anos.
Vejamos abaixo o quadro comparativo dos indicadores brasileiros nos anos de 2006 e 2007:
Brasil: Análise comparativa dos critérios governança – 2006/2007
153
Indicadores de Governança Ano
Ranking
Percentual
(0-100)
Pontos de
Governança
(-2.5 to +2.5)
Desvio
Padrão
Grau de Participação
2007
59.1 +0.41 0.13
153
Fonte: site do World Bank Governance Matters 2008: Worldwide Governance Indicators, 1996 - 2007.
Disponível em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/sc_chart.asp
134
2006
59.6 +0.43 0.13
2007
36.5 -0.22 0.20
Estabilidade Política
2006
40.4 -0.14 0.20
2007
52.6 -0.12 0.16 Eficácia dos Serviços
Públicos
2006
52.1 -0.10 0.15
2007
53.4 -0.04 0.17
Qualidade Normativa
2006
53.2 -0.04 0.17
2007
43.3 -0.44 0.12
Regime de Direito
2006
44.8 -0.45 0.12
2007
52.2 -0.24 0.12
Controle de Corrupção
2006
53.4 -0.20 0.13
Ao se confrontar os dados relacionados ao controle da corrupção no Brasil obtidos desde
a primeira pesquisa divulgada pelo Banco Mundial em 1996, pode-se dizer que, em linhas
gerais, o Brasil apresentou uma melhora insignificante. Dos 51,0 pontos obtidos na primeira
divulgação do relatório em 1996, o país progrediu para 52,2 pontos na última divulgação. O
melhor índice alcançado pelo Brasil foi 59,7 pontos no ano 2000, e o pior índice revelado no
relatório foram os 47,1 pontos em 2006.
Como é sabido, o controle de corrupção é definido pelo Banco Mundial (Bird) como a
medida da extensão com que o poder público é exercido para obtenção de vantagens privadas,
incluindo tanto os pequenos como os grandes atos de corrupção, assim como o domínio do
Estado pelas elites ou em favor de interesses alheios aos fins públicos.
No entanto, em que pese as constantes oscilações reveladas, Daniel Kaufman é
categórico ao afirmar que as mudanças na forma como uma sociedade se autogerencia não são
135
imediatas, mas consistem um processo em constante evolução. A esse respeito comenta Daniel
Kaufman:
Progresso significativo é possível. Isso aconteceu no Chile, em Botsuana e em países do
Leste Europeu. Eles estão ficando cada vez mais verdes. Não acontece da noite para o dia,
porque não se pode transformar uma Guiné Equatorial numa Finlândia rapidamente. Mas
também não é necessário esperar 30 ou 50 anos. Em um período entre seis e oito anos, um
país pode mudar. A longo prazo, o controle da corrupção é crucial para o crescimento e o
desenvolvimento. Um país com muita corrupção é mais vulnerável a crises econômicas.
154
Sempre no âmbito das ações preventivas, os trabalhos realizados com o intuito de
investigar e mensurar o índice de envolvimento da corrupção nas sociedades politicamente
organizadas mostra que os atos de corrupção, de fato, estão presentes em todos os países,
independentemente do grau de desenvolvimento. As origens desse problema geralmente são
históricas e estão relacionadas com diversos fatores, variando conforme as peculiaridades de
cada Estado, todavia, sociedades que não toleram a corrupção, como é o caso, em regra, dos
países desenvolvidos, implementam sistemas de controle mais eficazes, e por conseqüência,
ficam menos expostos ao problema. Já as sociedades submetidas a controles deficientes, como a
brasileira e por controle entenda-se a adoção de ações preventivas e repressivas –, padecem
mais gravemente de problemas aparentemente insanáveis causados pela mazela da corrupção,
restando impossibilitadas do efetivo exercício de direitos e garantias fundamentais, e,
conseqüentemente, do saudável desenvolvimento político, econômico e social.
O relatório internacional, mesmo que imperfeito e criticável sob alguns aspectos,
demonstra visivelmente o quanto ainda temos a caminhar se desejarmos enfrentar com
eficiência as práticas corruptas no Brasil. O Brasil, avesso aos padrões de modernidade, teve
diminuídos – ainda mais – os índices de participação política e de mobilização social. O
controle público e privado sobre as práticas corruptas também retrocedeu, demonstrando a forte
resistência a mudanças por parte do grupo nacional dirigente. A estabilidade política e o regime
de direito, que formam a base de qualquer Estado Democrático de Direito, tiveram nos seus
154
Entrevista concedida à Revista Época, Edição número 431, ano 2006. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75079-6009-431,00.html
136
piores indicadores nos últimos onze anos, a comprovação da falácia da democracia brasileira,
meramente formalista e engendrada. Há, pois, muito para garantir.
No próximo capítulo pretende-se, em primeiro lugar, demonstrar a afinidade íntima do
Estado garantista com a cruzada anticorrupção, destacando seu caráter essencial para
preservação dos direitos sociais. Em seguida, será destacado o princípio fundamental e universal
da moralidade administrativa.
137
CAPÍTULO II: O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DEFESA DA
MORALIDADE ADMINISTRATIVA
2.1. O Estado de Direito e a perspectiva garantista
O objetivo traçado neste item busca identificar, a partir das perspectivas garantistas,
como o Estado de Direito pode representar um imprescindível e decisivo instrumento no
combate aos atos de corrupção e, conseqüentemente, na consolidação dos direitos reconhecidos
como fundamentais. Nessa mesma perspectiva, verificaremos dois aspectos que nos parecem
relevantes: 1º) o que significava o “ponto de vista externo” sob a ótica garantista; e, 2º) o
confronto das características do Estado patrimonial e da teoria geral do garantismo.
A corrupção generalizada campeia as relações de poder privadas e públicas – do Brasil
dos nossos dias. Embora seja a corrupção um fenômeno global, os padrões prometidos pela
modernidade parecem não ter vigor e vez no País. A tentativa do Estado Democrático de
Direito, de viés garantista e constitucional, transformou-se em mera representação, uma grande
peça teatral sem hora marcada para terminar.
O que fazer diante de tanta corrupção? Como progredir e avançar em busca das
promessas da modernidade? Como superar o Estado patrimonial e assumir novos compromissos
com um Estado constitucional, onde efetivamente se possa realizar e garantir o domínio
impessoal da lei e o exercício de direitos e liberdades cívicas? Enfim, como transformar o
Estado brasileiro num instrumento racional de educação responsável?
Procuraremos responder essas indagações a partir da legitimidade do Estado garantista,
enquanto instrumento fundamental e decisivo para a defesa dos indivíduos frente ao domínio
(i)limitado de poder. O Estado Constitucional de Direito busca afirmar a primazia do pessoal e
social nas relações de poder: entre dominante e dominados. Objetiva, em outras palavras,
disponibilizar instrumentos eficientes à consolidação da paz social, a partir de um consenso
universal, assim como ocorre com os direitos fundamentais.
138
O termo “garantismo” sofre hoje, especialmente na justiça brasileira, uma rotulação
inadequada, fruto mesmo da ignorância e da incompreensão por parte de muitos dos operadores
jurídicos. Isso se deve, principalmente, pela origem da teoria na área penal, como resposta à
falácia normativa de um modelo criminal sem amparo no mundo real, criando democracias de
fachada, meros palcos teatrais para apresentação da trágica comédia. A incompreensão do termo
é tão grande que, para muitos, “garantismo” é sinônimo de frouxidão da lei, de benefícios aos
criminosos e, até mesmo, de impunidade.
Em verdade, o “garantismo” representa justamente o oposto daquilo que seus críticos
práticos desconhecedores da dimensão de sua teoria consideram. vai se solidificando a
constituição de uma teoria geral do garantismo transcendente à área penal, razão maior da
existência do próprio Estado de Direito.
No Estado Democrático de Direito, a norma fica obrigatoriamente vinculada a uma
instância jurídica constitucional superior, possibilitando a transformação do Estado de Direito
débil e ineficiente – em verdadeiro instrumento de garantias sociais, legitimada a atuação
daquele no ordenamento constitucional, sistematizado normativamente a partir da definição de
garantias jurídicas e políticas. Sérgio Cademartori explica: Consiste no sentimento que cada
pessoa possui de seus próprios direitos, de sua identidade e dignidade enquanto cidadão, de
onde deriva a sua disposição para a luta para a defesa e realização dos direitos vitais próprios
e alheios, individuais e coletivos.
155
O soberano, limitado em seu poder, também sujeito à impessoalidade e racionalidade da
lei, fica proibido de violar os conteúdos privilegiados, consensualmente universais: os direitos
fundamentais. Como adverte Cademartori, o “(...) ‘Estado Democrático de Direito’, que tem
como característica a constitucionalização de Direitos naturais estampados nas diversas
Declarações de Direitos e Garantias, cuja posse e exercício por parte dos cidadãos devem ser
assegurados como forma de evitar o abuso do poder por parte dos governantes.
156
155
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1999, p. 31.
156
___. IDEM. p. 32.
139
Esses direitos fundamentais, portanto, passam a ser considerados como a base sólida
para edificação das estruturas democráticas modernas, implicando implementação daqueles
direitos na própria razão de ser do Estado, ou seja, em sua legitimidade.
Portando, as características desses direitos fundamentais impõem limites e obrigações ao
poder-dever de agir do Estado, que, a partir de um acordo entre indivíduos livres e iguais,
solidificado em experiências historicamente universais, estabelece uma reserva de direitos
intocáveis, viabilizando, todavia, a compatibilidade entre direitos e garantias individuais e
direitos e garantias sociais. Um paradigma único com fundamento na teoria geral do garantismo.
A teoria geral do garantismo, com origem no garantismo penal, é baseada no conceito de
centralidade da pessoa, em torno da qual deve girar a constituição de poder e,
conseqüentemente, os comandos decisórios respectivos. O Estado garantista passa a ser um
instrumento para consecução das finalidades individuais comuns e dos interesses sociais e
difusos. Cademartori ressalta que: Esta concepção instrumental do Estado é rica em
conseqüências, tanto como teoria jurídica quanto visão política, dado que as mesmas vêem o
Estado de Direito como artifício criado pela sociedade, que é logicamente anterior e superior
ao poder político”.
157
A teoria garantista possibilita a readequação do Estado patrimonial e seu modelo de
dominação de poder, caracterizado pela centralização, pessoalidade e autoritarismo. A partir de
uma organização estrutural de normas previamente definidas e hierarquizadas, devidamente
conjugadas através de limitadores do exercício do poder político. Busca um modelo ideal de
gerência de poder que serve de parâmetro e de aval para atuação legítima do Estado. É o
objetivo a ser alcançado na prática pelos Estados compreendidos como de Direito, que devem
buscar sua razão no cumprimento de determinados valores universais, quais sejam, a dignidade
humana, a paz social, a plena liberdade e a igualdade substancial.
157
___. IDEM. p. 72.
140
O garantismo é uma teoria de inspiração juspositivista concebida pelo jusfilósofo
italiano Luigi Ferrajoli
158
, que designa um modelo normativo de direito, um sistema geral
garantista, através da estrita legalidade, propiciando o controle e a imposição de limites ao poder
do Estado, distinguindo o modelo constitucional e o efetivo funcionamento do sistema real,
propiciando a tutela das liberdades individuais e a satisfação dos direitos sociais.
Dito de outra forma, tendo-se em vista a supremacia constitucional dos direitos e
garantias positivados no corpo de Constituições rígidas, e do princípio da legalidade, a que
todos os poderes estão submetidos, faz-se necessária a efetiva instrumentalização desses direitos
a todos os indivíduos.
159
Sustenta Ferrajoli: Así, los derechos fundamentales se configuran
como otros tantos vínculos sustanciales impuestos a la democracia política: vínculos negativos,
generados por los derechos de libertad que ninguna mayoria puede violar; vínculos positivos,
generados por los derechos sociales que ninguna mayoría puede dejar de satisfacer.”
160
Representa o garantismo, ao mesmo tempo, o resgate e valorização da Constituição
como documento constituinte da sociedade. Esse resgate Constitucional decorre justamente da
necessidade da existência de um núcleo jurídico irredutível/fundamental capaz de estruturar a
sociedade, fixando a forma e a unidade política das tarefas estatais, os procedimentos para
resolução de conflitos emergentes, elencando os limites materiais do Estado, as garantias e
direitos fundamentais e, ainda, disciplinando o processo de formação político/jurídico do
158
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora e Revista dos Tribunais,
2002.
159
ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material. Florianópolis:
Habitus Editora. 2002.
160
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías la ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999, p. 23-24: Assim, os
direitos fundamentais se configuram como outros tantos vínculos substanciais impostos à democracia política:
vínculos negativos, gerados pelos direitos de liberdade que nenhuma maioria pode violar; vínculos positivos,
gerados pelos direitos sociais que nenhuma maioria pode deixar de satisfazer.
141
Estado. Segundo Luigi Ferrajoli, La historia del constitucionalismo es la historia de esta
progresiva ampliación de la esfera pública de los derechos.
161
A proteção jurídica é garantida pelo ordenamento legal. Tem como fundamento os
princípios fundamentais do Direito: toda norma jurídica deve ser lida e interpretada na
conformidade de seus princípios formadores e garantidores. Os direitos do homem consolidados
através dos princípios consagrados internacionalmente distribuem justiça mesmo contra a ordem
positiva estrita.
Com a crise moderna de governabilidade, verifica-se uma flagrante contradição entre o
ordenamento jurídico normativo, garantista por característica, e a prática real, que se revela
essencialmente o garantista, restando evidente uma clara divergência entre normatividade e
efetividade.
A separação entre direito e moral, entre o “ser” e o “dever ser”, é o pressuposto básico
da teoria garantista, que possui seu alicerce em características bem definidas e delimitadas, a
saber: a) a vinculação do domínio de poder político ao Estado de Direito; b) a divergência entre
validade e vigência; c) a diferenciação entre ponto de vista externo (ético-político) e o ponto de
vista interno (jurídico) e, por conseqüência, entre justiça e validade; d) o primado do ponto de
vista externo.
A teoria geral garantista se funda em três concepções: a) o garantismo, como modelo
normativo de Direito, através da formação do Estado de direito; b) o garantismo, como uma
teoria jurídica da validade, da efetividade e da vigência das normas, ao estabelecer uma
diferença entre “ser” e “dever ser” no Direito, podendo existir validade sem efetividade e
efetividade sem validade; e c) o garantismo, como filosofia do direito e crítica da política. É o
chamado “ponto de vista externo” (político), isto é, o Direito e o Estado devem justificar sua
legitimação, a partir da contradição entre o ser e dever ser do direito, através da análise das
doutrinas “autopoiéticas” e “heteropoiéticas”.
161
___. IDEM. p. 54: A história do constitucionalismo é a história desta progressiva ampliação da esfera pública
dos direitos.
142
No garantismo, sob o aspecto de modelo normativo de Direito, a legitimidade formal faz
referência à forma de governo, enquanto a legitimidade substancial à estrutura de poder. O
modelo garantista permite verificar contrariedades entre as normas inferiores e os princípios
constitucionais, além da incoerência entre prática-real e comando-normativo, concluindo-se
pelo maior ou menor grau de garantismo através da análise da efetividade da norma
constitucional.
O garantismo, como uma teoria jurídica, encontra-se inserido no positivismo jurídico
comum à modernidade. Assim, vigente (validade formal) será a norma posta pelo legislador
através da observância dos procedimentos ordinários, e válida (validade substancial) será a
norma que, além de vigente, estiver em conformidade com a racionalidade material do
ordenamento, através da observância dos direitos fundamentais. É assim que Cademartori
constitui quatro predicados distintos que se podem imputar às normas: justiça, vigência,
validade e eficácia (efetividade).
162
O garantismo, considerado como “filosofia política”, impõe ao Direito e ao Estado um
peso de justificação externa decorrente dos bens e interesses cuja proteção e garantia constituem
a razão de ser do Estado. Assim, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre
direito e moral, validade e justiça, permitindo a valoração do ordenamento a partir da distinção
entre “ser” e “dever ser” do Direito.
Interessa-nos especialmente para os objetivos pretendidos pelo presente ensaio, perceber
como o garantismo, enquanto filosofia do direito e crítica da política, poderá estabelecer a
preservação dos direitos sociais a partir de uma administração pública proba e eficiente, ou seja,
a partir do legítimo e regular funcionamento do aparato estatal enquanto instrumento de justiça e
de realizações individuais e sociais. É o chamado “ponto de vista externo”, que veremos com
mais vagar no subitem seguinte.
162
CADEMARTORI, Sérgio. Obra citada. p. 79.
143
2.1.1. O Estado Instrumental de Ferrajoli: O Ponto de Vista Externo
Neste subitem observaremos a construção teórica realizada por Ferrajoli no Capítulo 14,
in Direito e Razão
163
, onde o autor, com precisão clínica, apresenta a sua “análise metateórica
do ponto de vista externo”, onde, partindo da vinculação dos poderes com os direitos
fundamentais, elucida, esclarece e identifica a simetria existente nas relações entre cidadãos e
Estados, e todos os derivados e conseqüências que isso importa.
Como acima referido, a teoria garantista, enquanto “filosofia política”, determina ao
Direito e ao Estado uma obrigação de justificação externa proveniente dos bens e interesses cuja
proteção e garantia formam a motivação essencial do Estado, do Direito, enfim, da dominação
política. Nessa perspectiva, quando da valoração do ordenamento, o garantismo mantém a
separação entre direito e moral, validade e justiça, ponto de vista interno (jurídico) e externo,
“ser” e “dever ser”, adotando um “ponto de vista externo” para fins de legitimar o exercício de
poder do Estado.
O ponto de vista externo, ou “de baixo”, está relacionado com o ponto de vista das
pessoas, dos cidadãos. É o valor atribuído à pessoa, ao indivíduo, fundado no princípio da
igualdade jurídica, em que se incluem as diferenças pessoais (tolerância) e se excluem as
diferenças sociais (intolerância). Na concepção heteropoiética de Estado, este encontra limites
no cumprimento prioritário dos direitos e das garantias individuais e sociais. A sociedade passa
a legitimar a atuação política do Estado e do próprio Direito, num contexto de agregação social
e composição das diferentes forças atuantes. Essa concepção heteropoiética, ou instrumental de
poder, é fundamento de todas as doutrinas utilitaristas do Estado.
164
Segundo Ferrajoli, o princípio da igualdade jurídica, embora complexo, possui dois
sentidos diversos. Num primeiro aspecto, representa um valor associado indistintamente a todas
163
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada.p. 725.
164
Para Ferrajoli, o pensamento contratualista concebe a satisfação dos direitos fundamentais como fins e
justificações externas tanto do Direito como do Estado.
144
as pessoas, ou seja, uma igualdade formal ou política, onde se incluem as diferenças pessoais e
se excluem as diferenças sociais. Num segundo sentido, as diferenças se resolvem em
privilégios ou discriminações sociais que, segundo o autor, “(...) lhe deformam a identidade e
lhe determinam a desigualdade, lesando-lhe ao mesmo tempo o igual valor
165
, caracterizando
desigualdades substanciais ou sociais, via de regra, intoleráveis.
Nesse ponto, uma observação pontual se impõe no sentido de constatar, mesmo que
evidente, que a estruturação doméstica de domínio político característica do Estado patrimonial,
dentre outras formas de governo autoritárias, hierárquicas, centralizadoras etc; violenta
frontalmente o princípio da igualdade substancial ou social, posto que implementa privilégios,
benefícios e discriminações conforme a vontade soberana do poder dominador.
A igualdade jurídica, seja formal ou substancial, é definida como igualdade nos direitos
fundamentais, onde garantias do direito à liberdade (ou direitos de) equivalem à igualdade
formal ou política, enquanto as garantias dos direitos sociais (ou direitos a) asseguram a
igualdade substancial. Umas devem ser reconhecidas para serem respeitadas e garantidas, as
outras também, mas para serem removidas ou, ao menos, o mais possível compensadas”.
166
No
mesmo sentido, Cademartori observa que:
Com a normatização da igualdade formal, parte-se do pressuposto de que os homens devem
ser considerados como iguais (abstraindo suas diferenças pessoais, tais como, raça, sexo,
etc.) Com a afirmação da igualdade substancial, sustenta-se que as diferenças sociais devem
ser levadas em conta, mas os homens devem ser igualados na medida do possível. Então
chamará o autor de diferenças as diversidades do primeiro tipo e desigualdades as do
segundo.
167
Assim, Ferrajoli concebe o direito à igualdade como um metadireito, tanto no que diz
respeito à liberdade, relacionadas aos direitos de liberdade, quanto à fraternidade, objetivada
pelos direitos sociais. Ressalta que entre a “igualdade jurídica e direitos fundamentais existe um
165
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada.p. 726.
166
___. IDEM. p. 727.
167
CADEMARTORI, Sérgio. Obra citada. p. 166.
145
nexo biunívoco: não apenas a igualdade é tal enquanto for constitutiva dos direitos
fundamentais, mas, ainda, os direitos fundamentais são tais enquanto forem constitutivos de
igualdade.”
168
É através do ponto de vista externo (ético-político), portanto, que o Direito e o Estado
justificam a própria legitimação, que diz respeito à legitimação externa ou moral, cuja doutrina
política se funda na finalidade social, tendo suas instituições políticas e jurídicas justificadas
como mecanismo garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos. Ferrajoli é categórico ao
afirmar que a perda de um ponto de vista externo tem como resultado a negação da própria
legitimidade, dando lugar ao surgimento de uma doutrina de ausência de limites aos poderes do
Estado, a exemplo do que ocorre no Estado patrimonial.
O Estado garantista, na concepção filosófica-política, consiste na fundamentação
heteropoiética do Direito e do Estado, não reconhecendo qualquer valor intrínseco do Direito
apenas por ser vigente, sendo necessário um juízo complementar de validade. Retira, também,
qualquer valor intrínseco ao poder somente por ele ser efetivo. Enfim, concretiza o Direito e o
Estado, a partir de uma noção instrumental, quer dizer, da existência para cumprir (e garantir) a
efetiva realização dos direitos fundamentais.
As doutrinas heteropoiéticas têm características ex parte populi; nascem da sociedade
como orientação ao proceder do Estado. Este, enquanto criação humana, comanda as estratégias
em busca da proteção dos interesses fundamentais dos cidadãos, razão maior de sua existência.
Cademartori esquematiza, num quadro comparativo, as características das doutrinas
heteropoiéticas e autopoiéticas da seguinte forma:
TEORIAS AUTOPOIÉTICAS
TEORIAS HETEROPOIÉTICAS
169
Fundamentam os sistemas políticos sobre si
mesmos
Fundamentam os sistemas políticos sobre
finalidades sociais
168
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada.p. 728.
169
CADEMARTORI, Sérgio. Obra citada. p. 164.
146
Justificam o direito e o estado como bens ou
valores intrínsecos
Justificam Direito e Estado como males
necessários para satisfazer os interesses
vitais dos cidadãos
O estado é um fim em si mesmo O Estado é um meio que se legitima por
preservar e promover os direitos
Ponto de vista interno Ponto de vista externo
Princípios legitimadores ex parte principis
(stalinismo, fascismos)
Princípios legitimadores ex parte populi
(jusnaturalismo laico e racionalista)
Princípio da legalidade como princípio
axiológico externo
Fins externos (valores estampados nas
cartas de direitos e garantias)
Nesse sentido, os direitos fundamentais são redefinidos como direitos garantidores
necessários à satisfação dos valores dos indivíduos e da respectiva busca por igualdade.
Contrariamente do que ocorre com os direitos patrimoniais, os direitos fundamentais são
inegociáveis, invioláveis, indisponíveis e inalienáveis, estando acessíveis indistintamente a
todos, haja vista a identidade relacionada com cada indivíduo.
Em oposição às situações jurídicas de poder tão comuns ao Estado patrimonial –, os
direitos fundamentais são universais, pois além de dizerem respeito igualmente a todos, restam
sempre iguais a si mesmos por qualquer pessoa, posto que personalíssimos. O ponto de vista
ético-político ou externo acaba por prevalecer em relação àquele jurídico ou interno.
Os direitos fundamentais estão relacionados à igualdade e aos valores da pessoa,
englobando o direito à vida, o direito à liberdade pessoal, o direito à liberdade de pensamento,
os direitos políticos, enfim, todos os direitos subjetivos que correspondam universalmente a
todos os seres humanos enquanto indivíduos. A relação entre direitos e garantias resta
entrelaçada, constituindo-se os direitos fundamentais em expectativas negativas ou positivas, as
quais correspondem obrigações de prestação (direitos sociais) ou de proibição de lesão (direitos
de liberdade). Formam uma categoria aberta, correspondendo a valores e a carências vitais da
coletividade humana historicamente e culturalmente determinados. Estão a salvo das
deliberações da maioria ou da influência do mercado.
147
São absolutos, porque hierarquicamente supra-ordenados a todos os outros e não
limitados por nenhum outro fundamento, tampouco à tutela de outros direitos ou interesses
primordiais. Com o objetivo de viabilizar a reserva e a realização dos direitos fundamentais e,
em especial, dos direitos sociais, torna-se necessária a existência de garantias que os efetivem
no mundo real, transpondo as barreiras e as dificuldades do tradicionalismo jurídico formal.
As garantias, na doutrina garantista, são consideradas como técnicas de limitação da
atuação do estado no que respeita aos direitos fundamentais de liberdade e técnicas de
implementação daquela mesma ação no que diz respeito aos direitos sociais.
170
Com relação à natureza dessas garantias, torna-se importante observar a aplicabilidade
de dois princípios: Os princípios da legalidade (lei estabelece e vincula) e o da submissão à
jurisdição (para que as lesões sejam sancionadas ou removidas através da participação judiciária
dos cidadãos como autodefesa ou controle das atividades do poder público), dotados de um
alcance garantista de caráter geral, contribuem para a realização dessas garantias. Como é
sabido, a inexistência de garantias para efetivação dos direitos, em suma, leva a uma lacuna que
torna os direitos declarados inobservados ou irrealizáveis.
171
De outro norte, a separação de direito e moral e a necessidade de se recorrer a princípios
morais que justifiquem as decisões político-jurídicas, não implicam contradição do sistema
garantista. Na realidade, a relação dicotômica existente entre direito e moral quer dizer, num
sentido assertivo, que moral e direito não se confundem; e principalmente, que a moral não é
suficiente nem em sede judiciária, nem em sede executiva para justificar a intervenção judicial.
Daí a existência e o primado do ponto de vista externo.
172
170
___. IDEM. p. 86.
171
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada.p. 733.
172
___. IDEM. p. 740.
148
Vale salientar que, segundo a teoria garantista, o dever moral de obediência às leis reside
no direito e nos casos extremos de um dever moral de desobediência (condicionada) às leis que
entrem em conflito radical com valores universais e fundamentais resguardados
constitucionalmente. Essa obrigação, portanto, é restritamente jurídica.
173
Numa versão atraente
de Estado garantista, longe da obediência cega ao ordenamento legal pela simples validade
representando o Direito um instrumento de busca da paz, da harmonia e da plena igualdade
social –, o cumprimento legal passa a ser relativo e condicionado a efetiva idoneidade à
obtenção da ordem e à observância dos valores fundamentais.
174
Por fim, ao trabalhar uma solução para as mazelas do Estado criminoso, a partir da
existência de uma “soberania limitada” como característica do Estado de Direito, Ferrajoli
observa que o Estado, criado para limitar os homens naturais, enquanto lobos, acabou se
transformando num lobo artificial muito mais selvagem e perigoso que os homens naturais que
os criaram para afiançar sua tutela. O Estado delinqüente, inserido num sistema ineficiente,
viciado, inoperante, impotente e não efetivo, é pura expressão da delinqüência (não efetividade
do direito material) e da impunidade (não efetividade do direito processual) que lhe rodeia.
Qualquer semelhança com o Estado patrimonial não é pura conseqüência.
Nesse caso, segundo o autor, a solução passa pelo reconhecimento internacional do
caráter fundamental dos direitos vitais dos cidadãos, com a adoção de determinados e definidos
princípios de direito internacional. A soberania popular é mitigada perante a soberania dos
Estados no direito internacional. Assim como é necessário e legítimo limitar as atividades
individuais humanas, a soberania estatal também poderá sofrer restrições a partir da definição de
uma reserva intocável de direitos fundamentais universalizados.
A determinação de uma soberania limitada como característica do Estado de Direito é
requisito primordial do garantismo. Tal idéia, no entanto, está menos ligada a uma orientação
jurídica (uma vez que o conceito jurídico de soberania abarca seu caráter absoluto), estando
173
___. IDEM. p. 743-744.
174
___. IDEM. p. 738.
149
relacionada diretamente com a orientação política, isto é, orientada para o entendimento de uma
realidade ainda em construção, das mudanças realizadas e realizáveis no plano da autonomia
externa dos Estados nacionais.
Significa a própria incoerência do dogma da soberania absoluta, acendendo uma
interessante rivalidade entre garantismo e federalismo, a partir da suposta aceitação, por parte
dos de todos os países, de um direito internacional eficaz e garantista, com domínio político de
controle externo sobre os poderes internos desses mesmos. A utopia perseguida por Ferrajoli
representaria a fundação de um Estado de direito internacional, baseado na igualdade dos povos,
em busca da sonhada paz e da harmonia universal.
2.1.2. Estado garantista versus Estado patrimonial
Não se pretende no presente subitem esgotar com precisão todas as possibilidades e
variáveis de comparações entre o Estado Democrático de Direito, de viés garantista e
constitucional, e o Estado Patrimonial, de viés clientelista e arbitrário.
2.1.2.1. Da Concepção de Estado
Como já tivemos oportunidade de verificar, no item 1.1.2. do Capítulo I, o Estado
patrimonial pode ser definido como aquele tipo de dominação política no qual se destacam os
padrões domésticos de estruturação e de administração dos negócios do Estado. O poder estatal
utiliza-se da fórmula da política e da administração familiar, com o devido incremento
proveniente do respectivo quadro administrativo. Enquadra-se, portanto, nas características da
doutrina autopoiética.
Na concepção patrimonialista moderna, ou neopatrimonialista, o Estado de Direito é
mero simulacro de representação, sendo que a estrutura de poder continua à disponibilidade do
grupo dirigente, do qual verdadeiramente o Estado representa os interesses.
150
na concepção garantista de Estado de Direito, a estrutura de poder é disponibilizada à
serviço da sociedade, da qual se origina e legitima. Nesse sentido, não se refere somente a um
estado normativo, mas, sobretudo, a um modelo constitucional de poder de legitimidade
substancial (ou material). Apresenta, por sua vez, características da doutrina heteropoiética.
2.1.2.2. Da legitimidade do Estado
No Estado patrimonial, a legitimidade formal é instável, sempre se valendo de um
artifício casuístico e indefinido para viabilizar o comando concentrado de poder. A legitimidade
substancial é fundamentada na crença da tradição e dos costumes de um passado consagrado em
torno da força centralizadora e arbitrária. Os indivíduos obedecem pelo costume e pela tradição
porque sempre foi assim. A legitimidade formal é instável, sempre se valendo de um artifício
casuístico e indefinido.
No Estado garantista a legitimação formal é aquela assegurada pelo princípio da
legalidade e pela sujeição do juiz à lei. A legitimação substancial é aquela que provém da
função judiciária e da sua capacidade de tutela ou garantia dos direitos fundamentais do
cidadão”.
175
A lei deve fornecer um princípio regulador nimo sob pena da primeira
comprometer a segunda.
Neste caso, a crise moderna da lei se reflete na atividade judicial, minando-lhe a
legitimidade, na mesma medida em que parece lhe acrescer precariamente o poder
discricionário e a centralização, a exemplo do que também ocorre, todavia com mais evidência,
no Estado Patrimonial.
Não fosse a crise legal moderna, o que não dizer da ausência da legitimação substancial
num sistema patrimonial de dominação caracterizado por uma ordem jurídica fluida e casuística.
Antes da crise da lei e essa observação nos é muito relevante –, no atraso do berço esplêndido,
as demandas judiciais, ao arrepio da lei, continuam recebendo tratamento de caráter pessoal. A
175
___. IDEM. p. 735.
151
dificuldade de viabilizar teorias juspositivistas no Brasil, de viabilizar e garantir efetividade aos
direitos fundamentais, não decorre apenas da crise legislativa, mas principalmente da cultura
patrimonialista nacional.
O Estado Patrimonial, também adoecido, contaminado pela delinqüência disseminada,
está incluído num sistema ineficiente, viciado, inoperante e impotente, não existindo a
efetividade do direito material e do direito processual, causas preponderantes da impunidade e,
conseqüentemente, da corrupção.
2.1.2.3. Do Sistema Normativo
No Estado patrimonial, a norma legal é casuística e subjetiva, sendo aplicada,
concretamente, conforme os interesses pessoais em análise, reflexo da supremacia e do arbítrio
do soberano. O Estado, grande pai da nação, socorre aqueles lesados em seus direitos,
distribuindo justa ou injustamente a prestação jurisdicional. O Estado altera as decisões
judiciais conforme o seu alvitre, valendo-se de um estatuto subjetivo e flexível, para reafirmar
os laços de dependência dos cidadãos.
No Estado garantista, a norma legal é geral e abstrata, sendo aplicada impessoalmente a
todos os cidadãos. A lei decorre da vontade geral, evitando-se governos absolutistas ou
autoritários. O Estado também se vincula e se subordina ao direito e, no sentido forte indicado
por Ferrajoli, sofre limitações legais, tanto na forma como no conteúdo.
2.1.2.4. Da Soberania Estatal
O Estado patrimonial centraliza e controla o poder político ilimitadamente, tendo o
grupo dirigente soberania plena e irrestrita. O Estado é a ordem constituída, a lei, a justiça, o
direito etc. Representa a formação de uma complexa estrutura administrativa fundada com o
desiderato de satisfação material e o gozo de privilégios e favores ao príncipe e seu séqüito, uma
profusão entre a coisa pública e a privada.
152
Sem a previsão de limites indicados, salvo algumas orientações consolidadas pela
tradição histórica, o Estado patrimonial manipula e comanda o poder político conforme suas
conveniências. Conseqüência natural deste processo ilimitado de apropriação, a organização
política patrimonial não adota critérios e conceitos modernos de “competência”, “legitimidade”,
“autoridade” e “magistratura”.
no Estado garantista, a soberania é limitada, característica implícita do Estado de
Direito, sendo uma determinação necessária para consolidação de um Estado Mundial
Constitucional, primado no direito internacional, baseado na igualdade dos povos e na sua
finalidade de paz e geral segurança.
Conforme a teoria garantista, a soberania popular é mitigada perante a soberania dos
Estados no direito internacional, sendo legítima a limitação do exercício individual a partir das
garantias dos direitos fundamentais universalizados.
A determinação de uma soberania limitada como característica do Estado de Direito é
requisito primordial do garantismo. Essa idéia, no entanto, está menos ligada a uma orientação
jurídica (uma vez que o conceito jurídico de soberania abarca seu caráter absoluto), estando
relacionada diretamente com a orientação política, isto é, orientada para o entendimento de uma
realidade ainda em construção, das mudanças realizadas e realizáveis no plano da autonomia
externa dos Estados nacionais.
Significa a própria incoerência do dogma da soberania absoluta, acendendo uma
interessante rivalidade entre garantismo e federalismo, a partir da suposta aceitação, por parte
dos de todos os países, de um direito internacional eficaz e garantista, com domínio político de
controle externo sobre os poderes internos desses mesmos. A utopia perseguida por Ferrajoli
representaria a fundação de um Estado de direito internacional, baseado na igualdade dos povos,
em busca da tão sonha e almejada paz e harmonia universal.
176
176
___. IDEM. p. 749-750.
153
2.1.2.5. Do Estado de Impunidade
A impunidade é característica marcante da estrutura do Estado patrimonial, sendo
conseqüência lógica de sua dinâmica funcional. A impunidade, intimamente relacionada com o
ordenamento jurídico adotado, é proveniente da omissão e da cumplicidade do grupo dirigente
com as práticas delituosas. As relações íntimas, os interesses comuns e as “razões de Estado”
são circunstâncias determinantes para o aceite da transgressão do ordenamento, convertendo-se
em estímulo à reprodução contínua e crescente dos mais variados delitos.
A impunidade no Estado patrimonial pode ser compreendida, a partir da aplicação de
critérios subjetivos para consecução das metas de governo, sempre pautadas por relações
íntimas de amizade, parentesco e retribuições pessoais. A ordem jurídica – instável e flexível – é
delineada pelo casuísmo e pela arbitrariedade da soberania sem limites.
A corrupção é fenômeno comum ao Estado patrimonial, encontrando nele o terreno fértil
para sua reprodução em grande escala, sempre adaptando e criando novas técnicas e
mecanismos para continuidade delitiva e a perpetuação da impunidade.
no Estado garantista, a impunidade é decorrência justamente da falta de sua
efetividade prática. De um lado, a falácia política, consistente na idéia suficiente do uso da força
de um poder bem intencionado (sem limites) para satisfazer as tutelas almejadas. De outro, a
falácia garantista, segundo a qual bastaria um sistema avançado para realização dos direitos
fundamentais. Como adverte Ferrajoli, nenhuma garantia sobrevive pela simples inscrição de
normas, sendo necessária uma luta constante e diária, instante-a-instante, para consolidação das
garantias de direitos e, conseqüentemente, da própria democracia. Um sistema jurídico, mesmo
que teoricamente perfeito, não pode garantir coisa alguma por si só.
177
2.1.2.6. Estado social e Estado assistencialista
177
___. IDEM. p. 752.
154
Como ensina o Mestre garantista, a garantia política é decorrente da obrigação dos
poderes constituídos, enquanto a garantia social é proveniente da luta dos cidadãos em defesa da
efetividade das garantias fundamentais. Assim, as conquistas de direitos, quando sólidas e
verdadeiras, são fruto de conflitos de interesses e adaptações sociais. Ferrajoli considera:
(...) que como a identidade e o valor de um indivíduo como pessoa provêem dos seus
direitos fundamentais e da luta pela sua atuação, assim um povo ou um movimento
conquistam identidade e valor de sujeitos coletivos enquanto lutam para a afirmação de
direitos fundamentais; e que inversamente uma luta tem valor universal enquanto assinala e
reinvindica um direito fundamental insatisfeito, porque violado ou porque não
reconhecido.
178
Portanto, pode-se dizer que as lutas persistentes pelas conquistas de direitos são os
instrumentos motivadores da atividade humana em busca do reconhecimento de novos direitos,
bem como de novas garantias para o resguardo dos direitos adquiridos. A democracia é a
concepção de uma constante tensão entre poder político-representativo e poder social-direto,
ambas coexistindo e fundamentando-se reciprocamente.
179
A garantia dos direitos fundamentais sociais nos interessa em particular, pois
pretendemos no presente ensaio demonstrar que a violação do princípio fundamental da
moralidade administrativa definido como exigência de comportamentos determinados junto à
administração pública, todos no interesse público significa, além da grave ofensa de um
princípio/direito norteador dos Estados Democráticos de Direito, a própria violação dos direitos
sociais consagrados universalmente.
Para a teoria garantista, o Estado social (probo) e a prometida satisfação dos respectivos
direitos sociais, são condições necessárias para a efetividade de todos demais direitos
fundamentais. Fácil constatar, portanto, como a corrupção disseminada na estrutura do Estado
seja social, patrimonial, liberal etc. – impossibilitará ou dificultará as finalidades pretendidas, no
caso do Estado garantista, a plena satisfação dos direitos sociais e das respectivas políticas
públicas.
178
___. IDEM. p. 756.
179
___. IDEM. p. 757.
155
Pode-se afirmar, portanto, que a realização dos direitos sociais é pressuposto obrigatório
para existência e legitimidade do Estado garantista. Independentemente das justificações para
concepção social de Estado (pluralista ou marxista) ou do contexto histórico de sua origem,
cumpre observar que a conjugação entre os fatores, indivíduo indefeso e sociedade de risco,
determinaram para o Estado novas tarefas e deveres. É justamente essa nova função estatal que
vai readequar a formulação da teoria dos direitos fundamentais. Aliás, vai redesenhar a
legitimação do domínio político em razão da satisfação dos direitos sociais. Diversamente do
Estado patrimonial, onde o Estado se apresenta como obstáculo ao exercício dos direitos
fundamentais, no Estado social estes direitos são o próprio fundamento de sua existência.
Num importante comparativo para os fins da presente pesquisa, podemos considerar que
no Estado patrimonial, diante de um interesse moral, o poder constituído oferta a esmola aos
indivíduos privilegiados negativamente; enquanto que no Estado social, presente uma
responsabilidade jurídica, o poder constituído garante a oferta dos direitos fundamentais na
defesa dos cidadãos. Longe de uma política patrimonial assistencialista, os cidadãos são sujeitos
de direitos e obrigações.
E isso é importante, especialmente em países assistencialistas como o Brasil, porque
redimensiona o verdadeiro sentido do Estado, enquanto instrumento de realizações de direitos
sociais e de preservação de direitos individuais. Pode-se afirmar, portanto, que os direitos
sociais, além de vincularem o exercício do poder político, definem as prioridades e estratégias
públicas do Estado.
É certo que o garantismo não significa, para nós brasileiros, a reconquista de garantias e
de direitos fundamentais. Bem pelo contrário. Sendo o Estado social no Brasil um simulacro, o
garantismo servirá de instrumento essencial para conquista de condições e possibilidades
múltiplas para a primeira promessa da modernidade: a estruturação de uma sociedade entre
indivíduos com oportunidades iguais. O Estado brasileiro passará de soberano/protetor para
condição de um instrumento que possibilite a formação de cidadãos críticos, responsáveis e
conscientes da tutela de seus direitos fundamentais.
156
Com o objetivo de melhor resumir as comparações acima delineadas, segue abaixo
quadro esquemático com as características do Estado garantista e do Estado patrimonial:
ESTADO GARANTISTA ESTADO PATRIMONIAL
Características autopoiéticas: Estrutura de
poder disponibilizada à sociedade.
Características heteropoiéticas: Estrutura de
poder disponibilizada ao próprio Estado.
Legitimidade formal assegurada pela
legalidade e sujeição do juiz. Legitimidade
material oriunda da capacidade judicial de
tutela ou garantia dos direitos fundamentais.
Legitimidade formal instável e indefinida.
Legitimidade material proveniente da
crença tradicional consagrada através da
força centralizadora e arbitrária.
Sistema normativo geral e abstrato, aplicado
impessoal e indistintamente a todos os
cidadãos.
Sistema normativo casuístico e subjetivo,
aplicado conforme os interesses pessoais de
cidadãos específicos.
Soberania limitada, característica do Estado
de Direito, para consolidação de um Estado
Mundial Constitucional, primado no direito
internacional, baseado na igualdade humana
universal.
Soberania ilimitada, característica de um
poder político centralizador e arbitrário. O
Estado é a própria ordem constituída,
baseado em privilégios, benefícios e
conveniências do grupo dirigente.
Impunidade decorrente da falta de
efetividade prática. A falácia garantista
consiste na auto-suficiência da
contemplação teórica do sistema para
realização dos direitos fundamentais.
Impunidade decorrente da aplicação de
critérios subjetivos determinados por
relações pessoais. A falácia patrimonialista
consiste num ordenamento legal de fachada,
instável, flexível e casuístico.
Estado social: satisfação dos direitos sociais
como condição de efetividade dos direitos
fundamentais.
Estado assistencialista: obstáculo à
conquista dos direitos sociais, e, em
conseqüência, dos direitos fundamentais.
Sendo assim, verificaremos no próximo item a importância da inserção constitucional do
princípio da moralidade administrativa no constitucionalismo brasileiro, especialmente pelos
157
seus reflexos no controle da atividade estatal, e, conseqüentemente, nas garantias dos direitos
fundamentais.
2.2. Inserção constitucional do princípio da moralidade administrativa
A inserção constitucional do princípio da moralidade administrativa demandaria um
estudo próprio e exclusivo, tendo em vista sua complexidade e importância para o ordenamento
constitucional moderno. Entretanto, longe de esgotar a análise temática, a despeito das
discussões envolvendo seu surgimento e evolução, é fundamental para a abordagem que se
pretende no presente ensaio, compreendê-lo a partir de uma concepção garantista, acrescida da
possibilidade da defesa intransigente dos direitos sociais e, em especial, do próprio princípio da
moralidade administrativa.
A determinação do que se constitui princípio constitucional é tarefa complexa
180
, em
face da ausência de operacionalidade na prática forense. Os princípios constitucionais não são
efetivos, alcançando a realidade prática um distanciamento enorme da previsão formal. Joel de
Menezes Niebuhr aponta:
Os princípios são normas de elevada abstração e generalidade, não circunscritos em
pressupostos de fato, relacionados historicamente à moral e à justiça, o que a eles confere
superioridade normativa, bem como propicia a descoberta do sentido e da finalidade a ser
perseguida na solução de casos concretos, sistematizando e pemitindo a adequação da ordem
jurídica à dinâmica social, mediante ponderação justificada pelo razoável.
181
Como é reconhecido, os princípios constitucionais devem nortear a administração
pública em todas as suas atividades, impedindo a prevalência de normas infra-constitucionais
desprovidas de pertinência material em relação ao comando constitucional, conjugando-se os
instrumentos teórico-práticos disponibilizados pela teoria garantista. Cláudia Fernanda Rivera
Bohn, ao explicitar a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, sustenta:
180
Conferir: ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: RT, 1998, p. 95.
181
NIEBURH, Joel de Menezes. Princípio da isonomia na licitação pública. Florianópolis: Obra Jurídica, 2000, p.
44.
158
As normas de direito fundamental se dividem em regras e princípios. Tanto o princípio
como a regra são normas, pois ambos emitem um ‘dever ser’ e seus enunciados são
compostos pelas expressões deônticas sicas. Em outros termos, tanto as regras como os
princípios são razões para juízos concretos do dever ser. Apesar das semelhanças entre os
princípios e regras é importante estabelecer as duas diferenças, que para Alexy são de
caráter qualitativo. Uma diferença apontada pelo autor está no próprio conceito de cada uma
dessas normas, onde as regras são normas ‘que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla
és valida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto,
las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y juridicamente posible’. Os
princípios, por outro lado, compõem aquelas normas que ‘ordenan que algo sea realizado en
la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo
tanto, los princípios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de
que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimento no
sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas’.
182
A Constituição Federal de 1988 preconiza que a administração pública deve pautar sua
atuação atendendo aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência. A compleição atual da Constituição exige obediência aos cinco princípios
constitucionais de forma absoluta e obrigatória.
A legalidade se constitui na obrigação do administrador público de cumprir seu munus
de acordo e em face da Lei. Impessoalidade é exigência do Estado Democrático de Direito, sem
que a administração possa fazer concessões específicas/pessoais, salvo as discriminações
positivas definidas por Lei (negros, índios, mulheres, objetivando garantir a isonomia), devendo
tratar todos os indivíduos de geral. Publicidade é deixar os atos da administração à mostra do
público em geral, propiciando a difusão social dos atos realizados. Eficiência vincula-se a
questões de otimização da administração pública, com a reformulação de práticas e atos.
182
BOHN, Claudia Fernanda Rivera. A Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy in DOBROWOLSKI,
Silvio. A Constituição no mundo globalizado. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. p.139: (...) que podem ser
cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então se deverá fazer exatamente o que ela exige, nem mais
nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fático e juridicamente possível. (...)
ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes. Portanto, os princípios são mandatos de otimização, que estão caracterizados pelo feito de que
podem ser cumpridos em diferente grau e na medida certa de seu cumprimento não depende das
possibilidades reais senão também das jurídicas.
159
o princípio da moralidade fica jungido à maneira de se proceder no trato da coisa
pública, avivada nas práticas administrativas. Houriou, citado por Lúcia Valle Figueiredo, em
1927, já asseverava:
Quanto à moralidade administrativa, sua existência provém de tudo que possui uma conduta
prática, forçosamente da distinção do bem e do mal. Como a administração tem uma
conduta, ela pratica esta distinção ao mesmo tempo que aquela do justo e injusto, do lícito e
do ilícito, do honorável e do desonorável, do conveniente e do inconveniente. A moralidade
administrativa é freqüentemente mais exigente que a legalidade.
183
Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera que:
A partir do momento em que a Constituição Federal, no artigo 37, inseriu o princípio da
moralidade entre os de observância obrigatória pela Administração Pública e, no artigo 5
º
,
inciso LXXII, colocou a lesão à moralidade administrativa como um dos fundamentos da
ação popular, ela veio permitir duas conclusões: a primeira é a de que o ato administrativo
imoral é o inválido quanto o ato administrativo ilegal; a segunda é uma conseqüência da
primeira, ou seja, é a de que, sendo inválido, o ato administrativo imoral pode ser apreciado
pelo Poder Judiciário, para fins de decretação de sua invalidade”. Assim, “pode
perfeitamente ocorrer que a solução escolhida pela autoridade, embora permitida pela lei,
em sentido formal, contrarie valores éticos não protegidos diretamente pela regra jurídica,
mas passíveis de proteção por estarem subjacentes em determinada coletividade”. (...) “A
discricionariedade administrativa, da mesma forma que é limitada pelo Direito, também o é
pela Moral; dentre as várias soluções legais admissíveis, a Administração Pública tem que
optar por aquela que assegure o mínimo ético da instituição.
184
Assim, além da estrita legalidade, no atual estágio do Estado Democrático de Direito,
exige-se dos administradores a conformação material da validade de seus atos, despedindo-se,
como antes exposto, da mera pertinência formal, atentos, ainda, à moralidade jurídica de seus
atos.
Com efeito, a atuação do administrador público em todas as searas públicas, deve se
pautar pelo fiel cumprimento dos princípios constitucionais, concedendo especial atenção à
eficiência, transparência e moralidade, absolutamente necessárias para adequação do Estado
Contemporâneo à complexidade social.
183
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p.44.
184
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo:
Atlas, 1991, p. 116-117.
160
Portanto, a inserção constitucional do princípio da moralidade é questão essencial à
consolidação do Estado Democrático de Direito, especialmente numa cultura política nacional
patrimonialista e corrupta, institucionalizada nos atos mais comezinhos.
2.2.1. Interesse público na concepção garantista
O termo interesse público possibilita diferentes compreensões, conforme o momento
histórico e as circunstâncias que se apresentam, a exemplo do que sucede com outras expressões
do Direito Administrativo, como a própria expressão moralidade administrativa, haja vista que,
o que hoje é tido como interesse público e moralidade administrativa, no futuro poderá não se
enquadrar nas mesmas hipóteses.
Luiz Henrique Urquhart Cademartori, ao chamar a atenção para interpretação de cunho
utilitarista emprestada à expressão interesse público, ressalta que o uso indevido deste
significado, como justificativa do exercício ilimitado e arbitrário do poder discricionário pela
administração pública, pode afetar a prevalência dos direitos fundamentais. Como adverte o
autor
É necessário lembrar, também, que a Administração Pública não é nada além do que um
conglomerado humano e material, criado e organizado exclusivamente para servir à
comunidade.
Nessa perspectiva, o equacionamento ou ponderação entre o individual e o coletivo o
será, em caso algum, simplesmente numérico, mas dar-se-á atendendo, sobretudo, à
relevância dos direitos afetados.
Com efeito, muitos desses direitos, quais sejam, os fundamentais, devem prevalecer sobre
quaisquer interpretações de cunho utilitarista, hoje apresentados sob a roupagem de
interesse geral ou interesse público, utilizadas inúmeras vezes pela Administração na sua
atuação discricionária. Assim sendo, tais direitos passam a ser limitações instransponíveis
pelo Poder Judiciário na sua interação com os administrados.
185
185
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa: no estado constitucional de
direito. Curitiba: Juruá Editora, 2005, p. 175.
161
Embora o conceito de interesse público possua certa carga de subjetividade, estando
entre aquelas expressões envoltas em uma certa indeterminação conceitos jurídicos
indeterminados –, paira um certo consenso doutrinário no sentido de que aquele seja referente
ao desejo da maioria dos cidadãos, ou oriundo da vontade de grande parte de indivíduos
pertencentes a uma sociedade, adotado com verdadeiro princípio que coordena, orienta, controla
e limita as atividades administrativas junto à administração pública. Tais interesses sociais
estão, certamente, funcionalizados aos direitos fundamentais, pois, conforme abordado
anteriormente, esses direitos se encontram reservados constitucionalmente na esfera do não
decidível, subtraídos da vontade política e, conseqüentemente, do poder discricionário do
administrador público.
Alguns autores, conforme observa Peña Freire
186
, consideram que essa reserva
constitucional de direitos, ditos como fundamentais, seria incompatível com uma teoria
democrática política, ao impor limites constitucionais à capacidade de deliberação dos cidadãos
e, obviamente, ao poder de decisão das maiorias. Ocorre que a existência e atividade
operacional destes limites estão presentes nas principais democracias constitucionais modernas.
Todas tendem a resguardar, perante o poder de decisão das maiorias, um “coto vedado”, ou seja,
uma reserva intocável de direitos fundamentais. É a previsão de um limite que proíbe a
interferência do poder decisório das maiorias, resguardando-se os direitos básicos mediante a
186
PEÑA FREIRE, Antonio. Constitucionalismo garantista y democracia. (Artigo) In Crítica Jurídica 22, Jul-
Dic. 2003, p. 32: El punto de partida de este trabajo podría ser la siguiente cuestión: ¿es el constitucionalismo
antidemocrático? O bien, ¿son expresiones como “constitucionalismo democrático” o “democracia
constitucional” puras contradicciones en los términos por aunar conceptos que se oponen entre sí? (Holmes
1988:197). El origen del problema que se esconde tras preguntas de este tipo está en la dificultad para admitir
desde los parámetros de una teoría política democrática que se impongan límites constitucionales a la capacidad
de deliberación de los ciudadanos y al poder de decisión de las mayorías.La existencia y la operatividad de estos
límites son, sin embargo, constantes en s actuales democracias constitucionales. Los más frecuentes tienden a
garantizar, frente al poder de decisión de las mayorías, un coto vedado1 de derechos básicos mediante su
atrincheramiento, esto es, su exclusión de la agenda política para que queden fuera del poder de decisión del
legislador, incluso si es democrático.2 En cuanto a la justificación de esta operación, no todo está tan claro ni es
tan cil como parecen suponer algunos de sus partidarios.Un segundo factor a tener en cuenta es el siguiente: es
también frecuente que quien suscribe la tesis de que existen derechos morales básicos que han de quedar a
resguardo de cualquier poder público, también se adhiera a un diseño institucional específico denominado
constitucionalismo fuerte o Estado constitucional de derecho , que vendría caracterizado, grosso modo, por la
primacía de una constitución rígida y por la existencia de un mecanismo para el control de constitucionalidad de
las leyes.No obstante, y como veremos más adelante, son muchas las dificultades y paradojas que se esconden en
esa adhesión (Bayón 2000:66).
162
exclusão destes da agenda política de modo que fiquem fora do poder de decisão do legislador,
mesmo em regimes democráticos.
Na concepção garantista, nenhuma sociedade é democrática, nem as deliberações das
maiorias são legítimas, caso a sociedade e as decisões majoritárias não respeitem dos direitos
fundamentais de todos os cidadãos, ou, em outras palavras, a garantia dos direitos fundamentais
é pré-requisito básico da legitimidade da vontade da maioria e, conseqüentemente, da própria
democracia. Nesse sentido, Luiz Henrique Urquhart Cademartori conclui que
No tocante à concepção garantista de como deva ser a atuação da Administração Pública,
postula-se que esta deve conservar as suas prerrogativas especiais na seguinte medida: ao
agir como instrumento estatal, dentro das suas atribuições, deve preservar e implementar,
inclusive de forma impositiva, as garantias de direitos contra eventuais ameaças, oriundas
de maiorias ou minorias.
187
Respeitados, portanto, os direitos fundamentais universalizados historicamente pela
humanidade, o interesse público tem sua origem no poder de consentimento da maioria dos
cidadãos a partir de consensos determinados. O Estado garantista, heteropoiético,
instrumentaliza o consenso coletivo consistente na cobrança pelo bom desempenho das
atividades funcionais dos servidores públicos, na promoção do bem-estar e da paz social, dentro
da legalidade e dos limites de suas competências.
O Estado social busca implementar o interesse público no interesse comum, assegurando
a estabilidade (confiança) social, a segurança jurídica e a vinculação das atividades públicas à
norma e aos princípios universais de justiça. Conjugado com a estrita legalidade deverá
transparecer o bom senso, harmonizando, o direito à justiça, a lei inflexível à sensibilidade
humana, afinal, não é a norma, em si, um fim, mas sim, um meio, no alcance da paz e da
harmonia social. Afinal, os principais atributos do direito são seus fins sociais, restando
consagrado modernamente o conceito primordial da Doutrina de Geny
188
, de que nem todo
187
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Obra citada. p. 182.
188
Segundo a doutrina do jurista François Geny Escola da Livre Indagação a lei é uma importante fonte do
Direito, todavia, não é única no ordenamento jurídico.
163
direito está restrito à lei. A norma realmente não alcança todas as circunstâncias do mundo
fático, apresentadas cotidianamente nas suas mais variadas formas e diferenças. Acima das
regras estão os princípios.
Maria Goretti Dal Bosco, fazendo referência à noção formulada por Karl Larenz, ressalta
que:
(...) o Estado de Direito não pode ser apenas o que se dedique às tarefas mínimas para
assegurar a paz jurídica, mas que seja uma exigência de “direito justo”, ou aquele capaz de
dedicar-se, antes de tudo, à criação, desenvolvimento e execução do Direito, no sentido de
ordenamento dirigido ao ajustamento – e, com isso, a assegurar a paz jurídica, e, ainda, que
em toda a sua atividade mantenha-se vinculado ao seu próprio Direito e aos princípios do
Direito justo que estão em sua base.
189
Conforme a compreensão heteropoiética de Estado, a razão de ser da administração
pública é o próprio interesse público na satisfação do consenso comum dos cidadãos, enfim, no
cumprimento de suas finalidades sociais. Nesse sentido, Héctor Jorge Escola traduz o interesse
público como:
(...) el resultado de um conjunto de intereses individuales compartidos y coincidentes de um
grupo mayoritário de individuos, que se asigna a toda la comunidad como consecuencia de
esa mayoria, y que encuentra su origen em el querer axiológico de esos indivíduos,
apareciendo com um contenido concreto y determinable, actual, eventual o potencial,
personal y directo respecto de ellos, que pueden reconocer em él su próprio querer y su
propia valoración, prevaleciendo sobre los intereses individuales que se le opongan o lo
afecten, a los que desplaza o sustituye, sin aniquilarlos.
190
Assim, resguardados os direitos fundamentais, o interesse público decorre do consenso
da maioria dos cidadãos definido a partir de um conteúdo determinável e verificável,
189
BOSCO, Maria Goretti Dal. Responsabilidade do agente blico por ato de improbidade. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2004, p. 14-15.
190
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público: como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, p. 249-250: (...) o resultado de um conjunto de interesses individuais compartilhados e
coincidentes de um grupo majoritário de indivíduos, que se estende a toda a comunidade como conseqüência dessa
maioria e que encontra sua origem no querer axiológico desses indivíduos, aparecendo com um conteúdo concreto
e determinável, atual, eventual ou potencial, pessoal e direto a respeito dos indivíduos, que podem reconhecer nele
seu próprio querer e sua própria valoração, prevalecendo sobre os interesses individuais que se lhe oponham ou o
afetem, aos que desloca ou modifica, sem destruí-los.
164
identificado, por pressuposto, com os interesses individuais. Conforme assevera Dal Bosco: “Na
prestação de serviços, a Administração deve velar para que o interesse da maioria, de receber
atendimento de qualidade, dentro de padrões de razoabilidade e proporcionalidade, seja
respeitado.
191
Como observa a autora, o interesse público pode assumir uma conotação de bem
comum, representando o objeto a ser perseguido pelo Estado no interesse da sociedade, de
maneira que todos os indivíduos possam usufruir igualmente desse bem.
192
O interesse público, portanto, pode ser resumido à própria finalidade do Estado,
enquanto bem comum universal e, ao mesmo tempo, legitimador e limitador do exercício do
poder político, daí sua estreita afinidade com a teoria geral do garantismo e a reserva
constitucional de direitos fundamentais.
Esse interesse público geral consensual e universalmente consagrado é resultado da
prevalência da vontade coletiva perante os desejos individuais, ou, em outras palavras, o
princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Aliás, o princípio da
indisponibilidade do interesse público também decorre desse mesmo super interesse. A
concepção analítica ora adotada tem, no interesse público, um fundamento de viés garantista,
baseado na igualdade dos povos, na sua finalidade de paz social e no seu dever de segurança
geral.
Nesse sentido, o interesse público representa verdadeiro princípio basilar da
administração pública, sendo determinante nas escolhas das prioridades da agenda das políticas
públicas, a serem definidas a partir da própria sociedade. A relevância do interesse público,
portanto, é indiscutível, o que nos ajudará a melhor definir e compreender a amplitude e a
importância do princípio constitucional da moralidade administrativa, como veremos a seguir.
191
BOSCO, Maria Goretti Dal. Obra citada. p. 17.
192
___. IDEM. p. 18.
165
2.2.2. Sobre os princípios
A administração pública, orientada à consecução dos interesses definidos como públicos,
deve observar, além dos limites legais impostos, os deveres morais inerentes à função pública,
como a boa administração, a atuação proba e honesta, o exercício eficiente e bem intencionado
(boa-fé), na eqüidade e, enfim, no respeito aos fins públicos determinados, valendo-se,
principalmente, de seus princípios o sucesso de sua tarefa.
Os princípios da administração pública, portanto, não só compõem o ordenamento
jurídico como também se sobrepõem às normas ordinárias, haja vista a relevância dos
respectivos conteúdos materiais. Nesse sentido, Norberto Bobbio ressalta que se são normas
aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de
generalização sucessiva, não se por que não devam ser normas também eles: se abstraio da
espécie animal sempre animais, e não flores ou estrelas.
193
Emerson Garcia ressalta que os princípios, assim como as regras, concentram relevante
grau de imperatividade, impondo obrigatoriamente a conformação das ações, atos e condutas ao
respectivo comando normativo, característica que lhe é própria. Segundo sustenta o autor:
Sendo cogente a observância dos princípios, qualquer ato que deles destoe será inválido,
conseqüência esta que representa a sanção para a inobservância de um padrão normativo
cuja reverência é obrigatória.
Em razão de seu maior grau de generalidade, os princípios veiculam diretivas
comportamentais que devem ser aplicadas em conjunto com as regras sempre que for
identificada uma hipótese que o exija, o que, a um tempo, acarreta um dever positivo
para o agente – o qual deve ter seu atuar direcionado à consecução dos valores que integram
o princípio e um dever negativo, consistente na interdição da prática de qualquer ato que
se afaste de tais valores. Constatada a inexistência de regra específica, maior importância
assumirão os princípios, os quais servirão de norte à resolução do caso apreciado.
194
193
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Universidade de Brasília, 1990, p. 158-159.
194
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2002. p. 10-11.
166
Como se vê, a natureza normativa dos princípios da administração pública é orientação
moderna aceita pela doutrina. Luiz Henrique Urquhart Cademartori, ao analisar os princípios de
direito no contexto do ordenamento jurídico, observa que: Princípios de direito se constituem
em espécie do gênero norma jurídica, porém assumindo caráter fundamental ou generalíssimo,
dentro do ordenamento jurídico. Este, por seu turno, é o conjunto ou complexo de normas que,
dentro de um contexto de relações sociais, outorgam sentido a cada uma dessas prescrições que
o integram.
195
A relevância dos princípios da administração pública no constitucionalismo brasileiro é
destacada por Dal Bosco, considerando esses como suportes centrais de um complexo jurídico
que orientam o sentido. Segundo a autora: Dos princípios consagrados na Carta
Constitucional nascem direitos que podem ser reivindicados e devem ser assegurados pelo
Estado, como denota o texto do art. 5° e seus incisos.”
196
No Estado Democrático de Direito, portanto, de caráter garantista, a Constituição do país
ordena a estrutura de poder do Estado, definindo os limites do domínio de poder, resguardadas
as garantias dos direitos fundamentais universalmente consagrados. Nesse norte, a
administração pública, compreendida com instrumento realizador dos fins públicos almejados
pela coletividade, sujeita-se aos respectivos princípios constitucionais, alerta à consecução
prática das políticas públicas definidas como prioritárias.
O art. 37, caput, da Constituição da República, define como princípios fundamentais da
Administração Pública a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a
eficiência. Como poderá ser constatado, o princípio da moralidade administrativa está incluído
numa matriz de um ordenamento jurídico complexo, devendo ser conjugado, portanto, com
diversos outros princípios constitucionais explícitos e implícitos, os quais destacamos, entre os
195
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Obra citada. p. 80 – 81.
196
BOSCO, Maria Goretti Dal. Obra citada. p. 62.
167
últimos, os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da finalidade; e, dentre os
primeiros, os princípios da impessoalidade, da publicidade e da eficiência.
Esses princípios constitucionais orientadores da administração pública representam
verdadeira garantia em favor da sociedade e seus cidadãos, possibilitando o bom trato da coisa
pública no interesse coletivo e na sua defesa contra possíveis governos déspotas, arbitrários e/ou
corruptos. Como assevera Dal Bosco:
Estes princípios integram as garantias dos administrados contra o mau uso dos recursos
públicos, ou, como diz Marcelo Caetano, são meios criados pelo direito com a finalidade de
prevenir ou remediar as violações do direito objetivo vigente (garantias de legalidade) ou as
ofensas dos direitos subjetivos ou interesses legítimos dos particulares (garantias dos
administrados).
Isto significa dizer que o cidadão tem o direito subjetivo de ser governado por uma
administração legal, impessoal, moral e eficiente, cujos atos sejam tornados públicos para
que qualquer pessoa tenha a possibilidade de contestar aquilo que considera prejudicial ao
seu interesse, ou, ao interesse público. Para isso, existem as chamadas garantias
administrativas e judiciais, sendo, as primeiras, meios de defesa da legalidade e dos direitos
individuais proporcionados pela utilização de órgãos da administração pública, enquanto
que a segunda categoria representa a faculdade de defender, nos tribunais, a legalidade e os
direitos ofendidos ou ameaçados.
197
Como afirmado, a relação do princípio da moralidade administrativa com outros
princípios constitucionais, explícitos e implícitos, é marcante e decisiva para sua compreensão.
Os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da finalidade, da impessoalidade, da
publicidade e da eficiência acabam por formatar um arcabouço de princípios e garantias
orientadoras do sentido da moralidade administrativa.
O princípio da razoabilidade acaba por representar um ajuste dos meios adequados aos
fins objetivados pela administração pública, ou seja, no interesse de toda coletividade. o
princípio da proporcionalidade, ou proibição do excesso, busca a adequação dos conteúdos dos
atos administrativos para que não excedam os limites necessários para o efetivo cumprimento. O
princípio da impessoalidade, por sua vez, caracteriza-se pela valoração objetiva dos interesses
197
___. IDEM. p. 78.
168
públicos e privados relacionados ao ato administrativo. O princípio da publicidade exige o
conhecimento social e público dos atos administrativos, de forma transparente e compreensiva.
O princípio da finalidade representa uma bússola orientadora da atividade administrativa sempre
no interesse público. Por fim, o princípio da eficiência exige o dever de cumprimento das
funções específicas determinadas dentro da respectiva competência.
A relação entre princípios constitucionais não é novidade na doutrina moderna. Assim, e
considerando os chamados conceitos jurídicos indeterminados, torna-se possível e necessária a
integração de princípios como centro balizador e permanente para ponderação racional
orientadora de todas as atividades públicas.
O princípio constitucional da publicidade, por exemplo, tem estreita relação com os
princípios constitucionais da moralidade administrativa e da impessoalidade, pois é a partir do
conhecimento das atividades administrativas, que se poderá valorar os eventuais atos de
improbidade praticados, ou seja, verificar a conduta administrativa e o respeito aos fins públicos
legítimos, assim como a própria eficiência da boa administração. Aliás, na prática forense, como
tivemos oportunidade de constar diversas vezes
198
, não raras vezes, um único ato de
improbidade administrativa malfere todos (ou quase todos) os princípios constitucionais da
administração pública, explícitos e implícitos.
Em relação aos princípios da moralidade administrativa e da eficiência, como observa
Dal Bosco
199
, é necessária uma espécie de gradação a partir dos princípios da razoabilidade, da
finalidade e da proporcionalidade, com o desiderato de encontrar a dosagem justa e correta a ser
aplicada em cada caso concreto, aplicando as sanções cabíveis ao agente ímprobo. Existem atos
mais imorais que outros, o que demanda uma dosagem dos graus de gravidade em relação ao ato
de improbidade administrativa praticado. A autora afirma que a moralidade está presente, em
198
O autor é Promotor de Justiça e já atuou, por mais de dois anos consecutivos, exclusivamente na Curadoria da
Moralidade Administrativa na Comarca de Chapecó-SC.
199
BOSCO, Maria Goretti Dal. Obra citada. p. 111.
169
maior ou menor grau, conforme seja a razoabilidade do ato praticado e a sua proporção em
relação ao que se espera.”
200
Luiz Henrique Urquhart Cademartori acrescenta:
Em primeiro lugar, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, embora não
expressos de forma literal na Constituição, configuram-se, dentro do ordenamento jurídico,
como parâmetros necessários e permanentes de ponderação racional a orientar toda e
qualquer atividade estatal, seja ela legislativa, administrativa ou judiciária. Nessa medida,
devem ser entendidos, mais do que princípios, como máximas do Direito, embora no âmbito
jurídico brasileiro continuem a ser chamados de princípios.
201
Hoje, portanto, com a Constituição da República de 1988, o controle dos atos
administrativos, inclusive, os discricionários, determina a observância rigorosa dos conteúdos
valorativos dos princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade e da
moralidade, numa rede interligada de princípios reciprocamente compatíveis e complementares.
Luiz Henrique Urquhart Cademartori complementa:
Explica-se isso na medida em que categorias jurídicas, tais como a razoabilidade,
proporcionalidade ou moralidade, cuja inserção no âmbito jurídico denotam
fundamentalmente valores, atuam, tais normas, sempre em função da sua carga axiológica.
Desta maneira, estas resultam incompatíveis, como já foi dito, com um entendimento de
validade que expurgue da sua concepção toda e qualquer idéia de valoração.
Ao contrário desses entendimentos, a teoria garantista, vislumbra nesta idéia tradicional de
validade, uma outra categoria, qual seja, a vigência, de acordo com o que também foi
exposto.
202
Nesse contexto, cumpre observar que a Constituição da República estabeleceu princípios
e garantias valorativas incidentes na atividade administração e, conseqüentemente, no controle
(limites) do exercício do poder político, que, por sua vez, é instrumental, definido a partir da
relação constitucional com os direitos fundamentais. Luiz Henrique Urquhart Cademartori
afirma que a subordinação da Administração ao sentido político do ordenamento
200
___. IDEM.
201
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Obra citada. p. 130.
202
___. IDEM. p. 160.
170
constitucional encontra-se referida, precisamente, ao papel de centralidade desempenhado
pelas pessoas frente ao poder estatal.”
203
A administração pública, portanto, deve buscar as aspirações da coletividade, servindo-
se do complexo de princípios como meios disponíveis ao ordenamento jurídico com a finalidade
de prevenir ou remediar a violação de direitos, seja por parte de maiorias ou minorias.
Trata-se, pois, de princípios constitucionais fundamentais e garantidores da atuação
administrativa no interesse difuso e coletivo. Especialmente em virtude do poder discricionário
exercido regularmente junto à administração pública, evitando ou reduzindo a ocorrência de
práticas abusivas, arbitrárias e/ou corruptas. Assim, a operatividade do princípio da moralidade
administrativa ganha importante relevo no cenário constitucional brasileiro.
2.2.3.. Princípio da Moralidade Administrativa
Conforme salientado, a expressão moralidade administrativa consiste em um conceito
jurídico indeterminado, ganhando sentido mais palpável conforme a análise de seu conteúdo a
partir de cada hipótese concreta, todavia, sempre a partir da composição de valores
determinados por princípios e garantias constitucionais, perfeitamente conformados com a
prevalência dos direitos fundamentais.
O princípio da moralidade administrativa é relevante e complexo. Sua relevância é
decisiva para o controle efetivo e eficaz dos atos e das ações da administração pública,
objetivando a defesa das garantias e dos legítimos interesses da coletividade. Sua complexidade
é decorrência de questões jurídicas práticas que suscitam, quase sempre, difíceis resoluções.
Como é sabido, o princípio da moralidade administrativa teve sua origem nos
argumentos do publicista francês Maurice Haruriou, em decorrência do registro de acórdão no
203
___. IDEM. . p. 147.
171
Conselho de Estado da França (o caso Gommel, Sirey, 1917, III, 25), baseado na teoria do
desvio de poder ou desvio de finalidade, determinante de um controle moral alheio à legalidade.
Segundo o entendimento prevalecente na doutrina, referendado pela Constituição da
República (art. 37), o princípio da moralidade administrativa é autônomo em relação princípio
da legalidade, em que pese a estreita relação operacional entre ambos.
Conforme assevera Celso Antônio Bandeira de Mello:
Não é qualquer ofensa à moral social que se considerará idônea para dizer-se ofensiva ao
princípio jurídico da moralidade administrativa, entendemos que este será havido como
transgredido quando houver violação a uma norma de moral social que traga consigo
menosprezo a um bem juridicamente valorado. Significa, portanto, um reforço ao princípio
da legalidade, dando-lhe um âmbito mais compreensivo do que normalmente teria.
204
Juarez Freitas
205
defende que o princípio da moralidade administrativa possui autonomia
jurídica embora guarde afinidade com todos os demais princípios constitucionais, especialmente
em relação ao princípio da proporcionalidade que, por si só, poderia resultar nas exigências do
próprio princípio da moralidade, haja vista que semelhantes. Sustenta, entretanto, ser necessária
uma previsão expressa do princípio da moralidade em virtude da dificuldade de serem
enfrentados os costumeiros casos de corrupção no país.
Para Lúcia Valle Figueiredo
206
, não existem dúvidas em relação à autonomia jurídica do
princípio da moralidade administrativa. Tendo em vista a referência constitucional expressa, o
princípio é recepcionado, direta ou indiretamente, por várias normas ordinárias.
Divergências doutrinárias presentes, o princípio da moralidade administrativa se
consolidou como um princípio constitucional autônomo, dando ensejo a um policiamento moral
204
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
120.
205
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo: Malheiros,
1997, p. 67-70.
206
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 47-52.
172
a partir do reconhecimento e da exigência de condutas de boa administração, ou seja, um
conjunto de predicados objetivos inerentes à missão geral dos administradores públicos.
Importante registrar também que a moral pública, determinante do princípio da
moralidade administrativa, não se confunde com a moral ordinária relativa aos costumes e
hábitos comuns no dia-a-dia dos homens. A moral administrativa é restrita à exigência de uma
boa administração pública em razão dos interesses coletivos determinados a partir de princípios
e garantias constitucionais, não se relacionando indistintamente com os padrões éticos e morais
de cada civilização. Cláudio Ari Mello afirma ser possível dizer que a moralidade
administrativa é uma especialização da moralidade comum, submetendo-se a parâmetros
determinados pelas finalidades típicas da administração pública.”
207
A moralidade administrativa é, portanto, especializada em relação à moral comum,
diferenciando-se desta por possuir características determinantes com finalidades típicas,
específicas e objetivas em relação à administração pública. Uma moral administrativa imposta
constitucionalmente, condicionante do dever honesto da boa administração pública em relação a
todas as atividades administrativas, inclusive, àquelas decorrentes do poder discricionário.
Para Di Pietro, além da avaliação da finalidade do ato, a moral administrativa deve ser
identificada objetivamente pelo conteúdo daquele, ou seja, a partir dos efeitos jurídicos e
conseqüências fáticas imediatamente geradas:
O princípio da moralidade tem utilidade na medida em que diz respeito aos próprios meios
de ação escolhidos pela Administração Pública. Muito mais do que em qualquer outro
elemento do ato administrativo, a moral é identificável no seu objeto ou conteúdo, ou seja,
no efeito jurídico imediato que o ato produz e que, na realidade, expressa o meio de atuação
pelo qual opta a Administração para atingir cada uma de suas finalidades.
208
Para Juarez Freitas, o princípio da moralidade administrativa corresponde ao
207
MELLO, Cláudio Ari. Improbidade administrativa: considerações sobre a Lei 8.429/92. In Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política, v. 3, n. 11, p. 49-62, abr./jun. 1995, p. 51-52.
208
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada. p. 110.
173
“(...) dever de a Administração Pública observar, com pronunciado rigor e a maior
objetividade possível, os referenciais valorativos basilares vigentes, cumprindo, de maneira
precípua até, proteger e vivificar, exemplarmente, a lealdade e a boa-fé para com a
sociedade, bem como travar o combate contra toda e qualquer lesão moral provocada por
ações públicas destituídas de probidade e honradez.”
209
A amplitude e a importância do princípio da moralidade junto à administração pública
vão além do controle dos deveres funcionais dos agentes públicos, estando sujeitos à boa
condução no trato da coisa pública, devendo fidelidade aos fins públicos estabelecidos.
Conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal
210
, quando da análise ao
princípio constitucional da anterioridade também aplicável ao entendimento ao princípio da
moralidade –, por força do conteúdo normativo do art. 5°, § 2°, da CR
211
, os princípios
constitucionais representam autênticos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, restando
consagrado, portanto, a amplitude do catálogo dos direitos fundamentais constantes na
Constituição da República.
Pode-se afirmar, portanto, que o princípio constitucional da moralidade administrativa
também se enquadra no preceito constitucional contido no § 4°, inciso IV, do art. 60, da CR
212
,
sendo proibida a deliberação de proposta de emenda constitucional que vise abolir seu comando
normativo jurídico-constitucional.
209
FREITAS, Juarez. Obra citada. p. 68.
210
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade
de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. (...) Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a
Transmissão de Valores de Créditos e Direitos de Natureza Financeira I.P.M.F. Artigos 5°, § 2°, 60, § 4°, incisos
I e IV, 150, incisos III, “b”, e VI, “a”, “b”, “c” e “d”, da Constituição Federal. (...) 1° - o princípio da anterioridade,
que é garantia individual do contribuinte (art. 5°, § 2°, art. 60, § 4°, inciso IV, e art. 150, inciso III, “b” da
Constituição). ADIN 939-7, Rel. Min. SYDNEY SANCHES. Julgamento: 15/12/1993. Publicação: DJU de
18/03/1994.
211
§ 2°, do art. 5°, da Constituição da República Federativa do Brasil: § 2°Os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
212
§ 4°, inciso IV, do art. 60, da Constituição da República Federativa do Brasil: § 4° Não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias individuais.
174
Ademais, o fosse expressamente reconhecido como um princípio constitucional e,
portanto, por si só, autêntico direito e garantia fundamental dos cidadãos também representa a
moralidade administrativa um direito essencialmente difuso e coletivo. É, pois, bússola
orientadora às atividades desenvolvidas junto à administração pública no interesse da
coletividade.
O princípio da moralidade equivale à formação de um padrão de conduta exigido para o
regular exercício funcional junto à administração pública, representando um modo de ser e de
agir perante a coisa pública, sempre no interesse e na expectativa social.
Dal Bosco, lembrando Marcelo Caetano, ao considerar superada a teoria de Hauriou,
sustenta a exigência de uma moralidade normativa, ressaltando que:
(...) a visão de moralidade, oferecida pela doutrina de Maurice Hauriou, essuperada, e
lugar, modernamente, à idéia de que a moralidade se acha acautelada pela lei nos termos por
ela estabelecidos. No Direito Administrativo, como em qualquer outro ramo de Direito, a
Moral vale na medida em que, sendo recebida pela norma jurídica e como conteúdo
desta, passe a beneficiar da sanção peculiar da ordem jurídica, em lugar de ficar limitada às
suas sanções peculiares (reprovação das consciências).
213
No mesmo sentido, Di Pietro considera que:
O princípio da moralidade administrativa adquire conteúdo novo, inconfundível com aquele
idealizado por Hauriou, e que foi em grande parte absorvido pela teoria do desvio de
poder. Tal como hoje é visto, ele exige da Administração Pública comportamentos
compatíveis com o interesse público que lhe cumpre tutelar, voltados para os ideais
expressos, agora, de forma muito nítida, no preâmbulo da Constituição; a moralidade tem
que estar não na intenção do agente, mas também e principalmente no próprio objeto do
ato e na interpretação que da lei faça o Administrador para aplicá-la aos casos concretos.
Em muitos casos, confunde-se com o princípio da razoabilidade, pois a inobservância deste
configura, em geral, uma imoralidade administrativa, que não ofensa direta à letra da
lei.
214
213
BOSCO, Maria Goretti Dal. Obra citada. p. 98.
214
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada. p. 172.
175
Esse raciocínio não desconsidera a autonomia do princípio da moralidade em relação ao
princípio da legalidade. Ao contrário, segundo a ótica garantista, representa a própria
operatividade do princípio, a partir de sua composição com os princípios e as garantias
constitucionais que lhe dão significado e sentido efetivo, o que possibilita sua recepção em
diversos dispositivos legais.
Como observa Emerson Garcia, ao considerar a delimitação da amplitude do princípio
constitucional da moralidade administrativa:
(...) constata-se que os atos dissonantes do princípio da legalidade, regra geral, sempre
importarão em violação à moralidade administrativa, concebida como o regramento extraído
da disciplina interna da administração; a recíproca, no entanto, não é verdadeira. Justifica-
se, já que um ato poderá encontrar-se intrinsecamente em conformidade com a lei, mas
apresentar-se informado por caracteres externos em dissonância com a moralidade
administrativa, vale dizer, com os ditames de justiça, dignidade, honestidade, lealdade e
boa-fé que devem reger a atividade estatal.
Com ressaltar, ainda, que apesar de não guardar sinonímia com o princípio da legalidade, a
moralidade administrativa apresenta uma relação de continência com o princípio da
juridicidade, o qual abrange todas as regras e princípios norteadores da atividade estatal.
Violado o princípio da moralidade administrativa, maculado estará o princípio da
juridicidade, o que reforça a utilização deste como parâmetro para a identificação dos atos
de improbidade.
215
Para Luiz Henrique Urquhart Cademartori, o princípio da moralidade administrativa
passa a ser aceito “como critério de conduta a ser efetuado em total consonância com o
conteúdo axiológico dos direitos fundamentais. Com isto, observa-se uma forma logicamente
coerente de estabelecer a conexão entre as esferas do político, do moral e do jurídico.
216
Portanto, a concepção garantista do princípio da moralidade administrativa decorre da
idéia de normatividade e sua relação com os fundamentos axiológicos constitucionais, sendo
aquele identificado com a verificação dos valores que consagram os direitos fundamentais.
Nesse sentido, o autor afirma que:
215
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Obra citada. 2002. p. 43.
216
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Obra citada. p. 181.
176
No que diz respeito à esfera jurídica, tratando especificamente do entendimento garantista
da validade normativa, esta, ao assumir um caráter axiológico ligado aos direitos
fundamentais, coaduna-se perfeitamente, em termos de operatividade, com os princípios e
as garantias constitucionais cujos valores, por sua vez, preenchem o significado da
moralidade administrativa.
217
Essa concepção do princípio da moralidade administrativa permite e garante um efetivo
controle garantista da discricionariedade administrativa, não restrito, pois, ao âmbito da estrita
legalidade.
Assim, um ato formalmente legal pode ser rechaçado por violação exclusiva ao princípio
da moralidade administrativa; isto é aceitável, pelo significado e pela constituição de um
conteúdo valorativo a partir de regras, princípios e garantias constitucionais orientadores da
administração pública. Dal Bosco lembra que a lei pode ser cumprida moralmente ou
imoralmente, pois, quando a sua execução busca prejudicar alguém, ou favorecer a outrem, de
forma deliberada, o ato, embora formalmente legal estará materialmente comprometido com a
moralidade administrativa. A moralidade administrativa confunde-se com a probidade na
administração pública.”
218
Aliás, a alegada vinculação ou confusão entre os conceitos de moralidade e probidade
também tem sido objeto de análise doutrinária.
219
Para Toshio Mukai
220
, trata-se de expressões
idênticas. Fábio Medina Osório
221
e Marcelo Figueiredo
222
, em sentido oposto, entendem ser
evidente a diferenciação entre as expressões. Figueiredo afirma que:
217
___. IDEM. p. 181-182.
218
BOSCO, Maria Goretti Dal. Obra citada. p. 99.
219
A discussão doutrinária resulta, entre outras motivações, da questão interpretativa decorrente dos efeitos da Lei
de Improbidade Administrativa Lei Federal 8.429/92, o que, na concepção garantista de moralidade
administrativa, perde importância.
220
MUKAI, Toshio. Administração pública na constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 50.
221
OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade administrativa. 2. ed. Porto Alegre: Síntese, 1998. p. 157-169.
222
FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa: comentários à lei 8.429/92 e legislação complementar. 3.
ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 20-22.
177
(...) a improbidade está exclusivamente vinculada ao aspecto da conduta (do ilícito) do
administrador. Assim, em termos gerais, diríamos que viola a probidade o agente público
que em suas ordinárias tarefas e deveres (em seu agir) atrita os denominados ‘tipos’ legais.
A probidade, desse modo, seria o aspecto ‘pessoal-funcional’ da moralidade administrativa.
Nota-se de pronto substancial diferença. Dado agente pode violar a moralidade
administrativa e nem por isso violará necessariamente a probidade, se na análise de sua
conduta não houver a previsão legal tida por ato de improbidade.
223
Todavia, longe da indiferença ao debate teórico, parece-nos que, independentemente da
diferenciação, ou não, dos conceitos de probidade e de moralidade, os respectivos conteúdos
normativos encontram-se englobados no significado constitucional do princípio da moralidade
administrativa que, como exposto, opera, na concepção garantista, a partir dos princípios e
das garantias constitucionais, cujas essências contaminam sua valoração, que resulta
amplamente acrescida e fortalecida pela interação com os direitos fundamentais.
Di Pietro
224
ressalta alguns aspectos importantes relativos à operatividade do princípio
constitucional da moralidade administrativa. O primeiro deles, no mesmo sentido sustentado
acima, considera essencial o princípio da razoabilidade para a aferição do ato de imoralidade
(improbidade) administrativa.
O segundo aspecto se refere à necessidade de um maior controle da moralidade dos atos
administrativos efetuados sob competência discricionária, tendo em vista as possibilidades mais
largas de inobservância do respectivo princípio constitucional.
225
O terceiro ponto diz respeito ao amplo poder de apreciação judicial, decorrente do
comando constitucional, podendo ser decretada, inclusive, a invalidade de atos administrativos
223
___. IDEM. p. 20.
224
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada.
225
___. IDEM. p. 116: É principalmente no âmbito dos atos discricionários que se encontra campo mais fértil para
a prática de atos imorais, pois é neles que a Administração Pública tem liberdade de opção entre várias alternativas,
todas elas válidas perante o direito. Ora, pode perfeitamente ocorrer que a solução escolhida pela autoridade,
embora permitida pela lei, em sentido formal, contrarie valores éticos não protegidos diretamente pela regra
jurídica, mas passíveis de proteção por estarem subjacentes em determinada coletividade.
178
realizados em discordância com o princípio da moralidade, porquanto, esses são tão inválidos
quanto os atos ilegais.
O quarto aspecto considera que o princípio da moralidade administrativa se dirige e deve
ser observado tanto pelos administradores como pelos administrados que se relacionam com a
res pública. Nesse sentido, identificado o ato de improbidade (corrupção), devem ser punidos
tanto os corruptos como os corruptores.
Assim, a partir da aceitação de um princípio da moralidade administrativa valorativo,
com conseqüências múltiplas no controle da administração pública, ganha relevo a
identificação das infrações e das violações ao respectivo conteúdo normativo. Conceitos
negativos opostos ao princípio que violam, os atos de improbidade administrativa também
merecem nossas considerações.
A expressão improbidade deriva do latim improbitate, que significa desonestidade,
falsidade, desonradez, imoralidade, malandragem, deslealdade, corrupção etc.
A improbidade administrativa pode ser definida como o exercício funcional, sem a
observação dos padrões regulares para o bom andamento e o respeito da res pública. Assim,
todo ato que ofender e violar o princípio da moralidade administrativa será considerado como
um ato de improbidade administrativa. Segundo Dorival de Lacerda,
Malgrado estar o conceito de improbidade na consciência de todos, continua ele a ser um
dos capítulos mais controvertidos da matéria em estudo, ou seja, dos atos faltosos que
autorizam a rescisão justificada do contrato de trabalho. É que a improbidade foi sempre um
conceito moral, só se tornando figura jurídica na legislação brasileira do trabalho. Brasileira,
dissemos bem, porque não figura, com esse termo preciso, ao que se sabia, em qualquer
outra legislação estrangeira que, por certo, a tem adotado, servindo-se de outras expressões,
que visam a mesma finalidade, embora com limites e características não coincidentes
226
.
A sociedade moderna reclama a existência de controle judicial eficaz contra os atos de
improbidade administrativa praticados pelos agentes públicos desonestos e/ou despreparados.
226
LACERDA, Dorival de. A Falta Grave no Direito do Trabalho, São Paulo: Edições Trabalhistas, 1960, p. 103.
179
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, concluindo a respeito da corrupção brasileira, a partir de duas
realidades bem distintas, afirma:
No Brasil menos desenvolvido, a corrupção procede principalmente de uma confusão entre
o público e o privado, típica das sociedades pouco ou não-desenvolvidas. O chefe, ou
chefete político, entende que a coisa pública é sua, conseqüentemente que não distinção
entre o seu bolso e o erário. Ou, mais sutilmente, que o seu esforço pelo bem dos outros vale
uma remuneração. Trata-se de um modo de ver por que aliás a Europa na Idade Média
passou. No mais desenvolvido, um fator importante é o desejo de fazer a América. (...) Essa
ambição que legitimamente movia os imigrantes, permanece entre alguns de seus
descendentes, mas agravada pela ânsia de fazê-lo o mais rapidamente possível. Antes que
ela acabe (...)
227
.
Saliente-se, por fim, que o princípio da moralidade administrativa, enquanto postulado
normativo/valorativo constitucional, gera a obrigação de observância, com maior diligência e
objetividade, dos padrões referenciais administrativos que devem ser destinados aos fins
públicos almejados por toda a sociedade.
Aos operadores do direito a partir da plena compreensão do significado e das
conseqüências da inserção do princípio da moralidade administrativa no ordenamento
constitucional cabe a difícil missão de efetivar o respectivo conteúdo normativo/valorativo,
propiciando sua operatividade perante o comando constitucional que lhe define a relação com os
direitos fundamentais, a fim de garantir a implementação do Estado Democrático de Direito
(constitucional/garantista/instrumental).
2.2.3.2. Inserção constitucional
A Constituição da República de 1988 disciplinou as formas e os meios de controle da
administração pública, estabelecendo importantes garantias e princípios para limitação do poder
político estatal. Vários mecanismos foram criados para estabelecer o cumprimento dos deveres
da boa administração e respeito à legalidade, à publicidade, à impessoalidade, à eficiência e à
moralidade, dentre outros.
227
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Corrupção Como Fenômeno Social e Político. In Revista de Direito
Administrativo, n. 185, p. 1, Rio de Janeiro : Renovar, 1994.
180
Em seu art. 14, § 9°, a sanção de inelegibilidade, o comando normativo do inciso II do
art. 17 proíbe a captação de recursos financeiros de estrangeiros pelos partidos políticos
nacionais. A prestação de contas das greis partidárias junto à Justiça Eleitoral também é
exigência Constitucional (inciso III, art. 17).
o parágrafo único do art. 70 exige a prestação de contas da gestão pública por parte
de seus agentes. No inciso XXI de seu art. 37, determina-se a realização de licitações para
execução de obras, serviços e alienações públicas.
A perda do mandato parlamentar por falta de decoro (art. 55) e o impeachment
presidencial (art. 85) são sanções constitucionais, ganhando destaque a responsabilização
criminal do Presidente da República pela eventual prática de ato que atente contra a moralidade
– probidade – administrativa (inciso V, art. 85).
A Ação Popular também não foi esquecida, estabelecendo-se no art.5°, inciso LXXIII,
que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo
(...) à moralidade administrativa”. Entre as causas determinantes da suspensão dos direitos
políticos, previstas no art. 15, ao lado do cancelamento da naturalização por sentença transitada
em julgado, incapacidade civil absoluta, condenação criminal igualmente derradeira e recusa de
cumprir obrigação imposta a todos ou prestação alternativa, encontra-se a improbidade
administrativa.
O art. 37, caput, acabou por consagrar como princípios constitucionais fundamentais da
administração pública a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a eficiência e a publicidade.
A moralidade administrativa reconhecida agora como princípio autônomo e
independente do princípio da legalidade ganhou novo significado ao adquirir um comando
constitucional nunca antes imaginado, servindo como determinação obrigatória a todos os
agentes públicos, no sentido da observância dos valores que embasam os padrões referenciais
administrativos, sempre destinados à finalidade social, ao coletivo.
181
A Constituição da República, portanto, incrementou a operatividade do princípio da
moralidade administrativa, estabelecendo ainda severas conseqüências aos agentes públicos
faltosos, criando, em contra partida, grande expectativa social.
No intuito de melhor efetivar a moralidade administrativa como princípio constitucional
fundamental, o legislador constituinte determinou ainda que os atos de improbidade
administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda de função pública, a
indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em
lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
228
Atendendo ao comando constitucional, foi editada a Lei Federal 8.429, de 2 de junho
de 1992, Lei de Improbidade Administrativa ou Lei Anticorrupção, coincidência ou não,
sancionada por Fernando Collor de Mello, Presidente da República, que veio a ser cassado pelo
Congresso Nacional por práticas, dentre outras, de improbidade administrativa.
Em que pese importantes avanços, a Lei Federal 8.429/92, não sem razão, sofreu
severas críticas. Como assevera Dal Bosco:
A mais comum refere-se à multiplicidade de dispositivos com sentido pouco claro. O fato
de reunir normas de diversos ramos do direito (...) nem sempre redigidas de forma racional,
transformou o instituto numa “autêntica babel jurídica”, além de pecar pela falta de
sistematização, provocada pelo intuito de revogar as duas leis anteriores que tratavam do
assunto. Em conseqüência, matem-se lacunas de procedimento existentes nos institutos
antigos, deixa-se de oferecer procedimento cautelar específico e cria-se confusões derivadas
da transferência apressada de dispositivos da Lei Bilac Pinto.
229
A Lei de Improbidade Administrativa (LIA) prevê hipóteses de comportamentos,
definindo-os como atos de improbidade administrativa, cuja incidência determinará aos agentes
públicos faltosos, bem como aos terceiros participantes e/ou beneficiados, a imposição de
severas sanções.
228
§ 4° do art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil.
229
BOSCO, Maria Goretti Dal. Obra citada. p. 123.
182
Conforme a adequação normativa estipulada, os atos de improbidade administrativa,
segundo os efeitos resultantes, foram classificados em três categorias diversas. A chamada
trilogia dos atos de corrupção, assim definidos: a) os que importam enriquecimento ilícito do
agente público (LIA, art. 9
o
); b) os que causam prejuízo ao erário (LIA, art. 10); e c) os que
violam os princípios da administração pública (LIA, art. 11).
Na prática, entretanto, longe da definição técnica legal, os atos de improbidade
administrativa muitas vezes se confundem, possibilitando combinações ilimitadas de atos
desonestos e irregulares executados pelos agentes públicos.
As sanções previstas na legislação (LIA) são as seguintes: a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, o ressarcimento integral do dano, as perdas dos bens
obtidos irregularmente, a multa civil e a proibição de contratar com administração pública e
receber benefícios.
Registre-se, também, não obstante a “teimosia” de alguns posicionamentos doutrinários
e jurisprudenciais em sentido contrário, conforme dicção expressa do comando normativo do
inciso I, art. 21, LIA, que não é necessária a efetiva ocorrência do dano para caracterização da
violação ao princípio da moralidade. Nesse sentido, Ermerson Garcia afirma que “(...) a
aplicação das sanções previstas no art. 12 independe ‘da efetiva ocorrência de dano ao
patrimônio público’, logo, não sendo o dano o substrato legitimador da sanção, constata-se que
é elemento prescindível à configuração da improbidade.
230
Associando o princípio da moralidade ao princípio da probidade administrativa, Juarez
Freitas acrescenta:
Associado ao juridicamente autônomo princípio da moralidade positiva mais
especificação do que qualificação subsidiária daquele o princípio da probidade
administrativa consiste na proibição de atos desonestos ou desleais para com a
Administração Pública, praticados por agentes seus ou terceiros, com os mecanismos
230
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Obra citada. 2002. p. 211.
183
sancionatórios inscritos na Lei n. 8.429/92, que exigem aplicação cercada das devidas
cautelas para não transpor os limites finalísticos traçados pelo ordenamento. Sob a ótica da
Lei, ainda quando não se verifique o enriquecimento ilícito ou dano material, a violação do
princípio da moralidade pode e deve ser considerada, em si mesma, apta para caracterizar a
ofensa ao subprincípio da probidade administrativa, na senda correta de perceber que o
constituinte quis coibir a lesividade à moral positiva, em si mesma, inclusive naqueles casos
em que se não se vislumbram, incontrovertidos, os danos materiais
.
231
Como se vê, a inserção constitucional do princípio da moralidade administrativa teve
grande impacto no ordenamento jurídico nacional. Seu significado ganhou consistência
valorativa, determinando conseqüências múltiplas, como veremos a seguir.
2.2.3.2.1. Significado
Com relação ao novo significado emprestado pela Constituição da República ao
princípio da moralidade administrativa, conforme já salientado no item anterior, a partir do
reconhecimento de sua autonomia, o legislador constituinte deixou clara sua intenção de
estabelecer uma maior operatividade e abrangência ao princípio, o que pode ser visivelmente
constatado pelo conteúdo normativo do art. 37, caput, e § 4º; art. 5º, inciso LXXIII; e, art. 85,
inciso V, todos do Texto constitucional.
Assim, a partir da inserção constitucional do princípio da moralidade administrativa, os
atos administrativos ignorantes à valoração do conteúdo do princípio da moralidade, mesmo
quando observado o devido processo legal, são inválidos, cabendo à administração pública
revisá-los, seja de ofício ou após provocação por parte de terceiros, sem prejuízo da
determinação judicial. Esse novo significado valorativo, como observado, possibilita o
controle judicial da discricionariedade administrativa, não mais restrito somente ao princípio da
legalidade.
Como se percebe, o controle da atuação administrativa, inclusive em relação aos atos
discricionários, ganhou com a determinação constitucional uma obrigatoriedade insuperável de
231
FREITAS, Juarez. Do princípio da probidade administrativa e de sua máxima efetivação. In GENESIS –
Revista de Direito administrativo Aplicado. Curitiba: Genesis, 1996, p.44.
184
observância dos padrões ordinários esperados para o exercício das atividades inerentes à
administração pública.
Esse novo significado acrescenta muito ao ordenamento jurídico brasileiro porquanto
possibilita o enfrentamento de vícios que se encontram entranhados no agir público, condutas
corruptas e corruptoras enraizadas na cultura político-administrativa brasileira, pertences a um
quadro de anti-valores morais, ainda incorporados às estruturas mentais de largas camadas da
sociedade brasileira atual.
Assim, e considerando que a (re)construção do significado da moral administrativa é
proveniente da própria sociedade da qual se destina, a concepção garantista presente um agir
instrumental por parte da administração pública fortalece o entendimento da preservação e
implementação das garantias de direitos contra eventuais postulados e decisões provenientes de
maiorias ou minorias, como já tivemos oportunidade de argumentar.
Trata-se, pois, de uma moral padrão juridicizada que se encontra respaldada por uma
série de outras garantias e princípios constitucionais, perfeitamente interligada com os direitos
fundamentais, que objetiva dar concreção a esses padrões de comportamento universalmente
consagrados.
Certamente outros valores fundamentais serão agregados ao longo do tempo aos
parâmetros de conduta tidos como constitucionais, determinando uma alteração sempre
cumulativa, situação comum à dinâmica da sociedade. Contudo, esse juízo valorativo, racional e
razoável, sempre estará relacionado com os direitos fundamentais constitucionalmente
reservados.
Outro significado atual do princípio da mortalidade é sua amplitude em relação ao
controle estatal, atingindo as searas administrativa, legislativa e judiciária, não proibindo a
execução de atos e de condutas dissociadas dos interesses coletivos, como também exigindo o
respeito e a realização dos valores provenientes de princípios e garantias constitucionais. O
185
princípio da moralidade administrativa, portanto, é uma bússola constitucional orientadora da
atividade pública que possui como centro de gravidade os próprios direitos fundamentais.
Por essas razões e levando-se em consideração as transformações contemporâneas,
pode-se afirmar que o princípio da moralidade administrativa é, hoje, no Brasil, um comando
jurídico autônomo da maior relevância. Sua significação valorativa restou consagrada pelo art.
37, caput, e, art. 5º, inciso LXXIII, da CR, configurando-se como princípio constitucional
independente e obrigatório à observância dos valores e preceitos morais exigidos dos agentes
públicos no interesse coletivo.
Esse novo significado constitucional, não é figurativo ou simbólico, devendo determinar
conseqüências práticas decisivas, a partir de sua nova configuração no ordenamento jurídico
brasileiro, conforme verificado a seguir.
2.2.3.2.2. Conseqüências
Identificamos quatro importantes conseqüências da inserção constitucional do princípio
da moralidade administrativa no ordenamento pátrio, que julgamos relevantes e decisivas para a
presente análise, quais sejam: a) a obrigatoriedade de observância pela administração pública
dos postulados normativos e valorativos do princípio, a partir da verificação de padrões
referenciais administrativos que devem ser destinados aos fins públicos almejados por toda a
sociedade; b) a possibilidade da ampla análise por parte do Judiciário dos atos administrativos,
inclusive, discricionários, e além da estrita legalidade; c) o dever dos agentes públicos e de
terceiros que se relacionem com a administração pública, de bem resguardar e proteger os
interesses públicos; d) a imensa dificuldade de implementar e operacionalizar o princípio na
prática cotidiana.
Ora, a primeira conseqüência está relacionada a todas as demais, sendo óbvia a
obrigatoriedade dos comandos imperativos advindos da inserção constitucional do princípio da
moralidade administrativa, como já tivemos oportunidade de analisar em item anterior
(2.2.3.2.).
186
Com relação à segunda conseqüência enumerada, apesar das divergências doutrinárias e
as resistências políticas a respeito, é certo que cabe ao Poder Judiciário a análise dos atos
administrativos, sob a perspectiva da moralidade administrativa a partir das diretrizes
constitucionais correlatas.
O górdio da quaestio é verificar se os atos administrativos podem ser ponderados
pelo Judiciário a partir do princípio da moralidade sem que haja invasão na esfera de
competência dos outros Poderes, com a conseqüente violação do princípio republicano da
separação de Poderes (art. 2º, CR).
Com a inserção e o reconhecimento constitucional do princípio da moralidade, sem
dúvida o Poder Judiciário teve ampliada a sua esfera de interpretação e julgamento dos atos
administrativos, inclusive discricionários, sem que tenha incorrido em qualquer invasão de
competência ou interferência inconstitucional.
A moralidade administrativa, enquanto moral normativa e constitucional, possibilita a
verificação de sua operatividade em relação aos atos administrativos determinados, podendo
(devendo) o julgador analisá-los em relação ao conteúdo valorativo do princípio, o que realiza a
partir da considerando dos princípios e garantias constitucionais, na perspectiva garantista, qual
seja, de defesa e consolidação dos direitos fundamentais. Nesse sentido, Luiz Henrique
Urquhart Cademartori afirma que:
(...) o juiz está vinculado ao Direito e á lei, mas somente na configuração que estes termos
assumem na perspectiva garantista, que é a da proteção e implementação dos direitos
fundamentais na sua dimensão mais ampla: formal e substancial, ou seja, da vigência e da
validade sendo que ambas precisam estar em conformidade com o ordenamento jurídico.
232
Assim, aceita a concepção garantista, devendo ficar estabelecido que o problema da
possibilidade de julgamentos políticos invasão de competência resta resolvido pela
232
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Obra citada. p. 169.
187
delimitação constitucional, submetendo-se ao direito e à interpretação mais favorável aos
direitos fundamentais. O autor arremata:
Portanto, quanto ao espaço ao qual deve se limitar a atuação judicial, deve ficar claro que o
submetimento do julgador ao Direito, no Estado Constitucional, apresenta um caráter duplo:
ao Direito como tal e ao sentido constitucional do ordenamento que obriga a interpretação
do primeiro no sentido mais favorável aos direitos fundamentais dos cidadãos. Esta é a sua
única função institucional, sendo que qualquer outra será, a priori, desautorizada e
deslegitimada em grau intolerável pelo ordenamento estatal.
233
Nesse entender, quando o Poder Judiciário determina a invalidade de um ato
administrativo que entendeu contrariar o conteúdo normativo vigente, o que ocorre é a
adequação judicial do ato frente ao comando constitucional, a partir, na hipótese, da valoração
do princípio da moralidade administrativa.
Pode-se afirmar, portanto, que a tarefa judiciária de controle da atuação administrativa
não ficará restrita ao controle da legalidade, estando vinculada a uma integração e correção
jurídico-constitucional do ponto de vista substancial desta atividade. Isso ocorrerá,
independente desta atuação estar expressa em atos concretos ou normativos, administrativos ou
de governo.
234
A terceira conseqüência, que também se interliga à conseqüência anterior, diz respeito
ao dever dos agentes públicos e de terceiros que se relacionem com a administração pública, de
bem resguardar e proteger os interesses coletivos e, em especial, o bom trato da coisa de todos.
Aceitos os argumentos anteriores, torna-se razoável o entendimento de que o controle da
atuação administrativa, a partir do princípio da moralidade administrativa, é exigência
imperativa que se impõe a todos. A amplitude do controle constitucional, além da verificação
legal, possibilita, inclusive, a análise do conteúdo dos atos discricionários, a partir de uma
espécie de gradação, com o auxílio dos princípios da razoabilidade, da finalidade e da
233
___. IDEM. p. 171.
234
___. IDEM.
188
proporcionalidade, objetivando ajustar a dosagem adequada para consideração do ato
administrativo perante o princípio da moralidade. Como ressaltado no item 2.2.2., o controle dos
atos administrativos determina a observância rigorosa dos conteúdos valorativos dos princípios
constitucionais numa rede interligada de princípios reciprocamente compatíveis e
complementares.
Assim ajustado, parece certo que o princípio da moralidade deva ser aplicado
indistintamente a todos aqueles que se relacionem de alguma forma com a coisa pública,
representando mandamento garantidor, imperativo e imprescindível para o fortalecimento do
comando normativo da Constituição e, conseqüentemente, para fim da impunidade reinante em
nosso país.
A quarta e última conseqüência destacada, também relacionada com as demais, refere-se
à dificuldade de implementação prática do princípio constitucional da moralidade
administrativa.
Podemos afirmar, com base na experiência prática
235
, que a dificuldade de
implementação do princípio da moralidade administrativa possui três motivações que nos
parecem determinantes: a) as divergências doutrinárias; b) as resistências ao cumprimento
constitucional; c) a dificuldade em invalidar os atos administrativos reconhecidos judicialmente
como ímprobos.
Ora, como verificamos anteriormente (item 2.2.3.), considerando os posicionamentos
doutrinários diversos a respeito da concepção do princípio da moralidade administrativa, muitos
dos quais opostos e divergentes, parece aceitável o reflexo no ordenamento prático, o que
muitas vezes também determina atuações administrativas divergentes, bem como decisões
judiciais sobre assuntos similares com fundamentações diversas e, não raras vezes, conflitantes.
235
O autor é Promotor de Justiça e já atuou, por mais de dois anos consecutivos, exclusivamente na Curadoria da
Moralidade Administrativa na Comarca de Chapecó-SC.
189
A resistência à implementação do comando constitucional proveniente do princípio da
moralidade administrativa parece evidente. É reflexo – e objeto do presente trabalho da
cultura da corrupção nacional ou, em outras palavras, da eficiência do Estado patrimonial, ainda
vivo e operante. Legisladores, governantes, magistrados, servidores públicos etc; detonam, sem
constrangimento, práticas ilícitas e imorais em benefício próprio ou alheio.
A corrupção campeia livremente institucionalizada na administração pública brasileira,
restando evidenciada no cotidiano nacional. Nos noticiários jornalísticos, nas assembléias, nos
tribunais, nos governos, nas “rodas de bar”, nas ruas e praças, estádios de futebol, teatros e
escolas, por todo lado, a violação de princípios e de garantias constitucionais parece prática
aceita com normalidade no Brasil de nossos dias.
O “foro privilegiado”, a “Lei da Mordaça”, o nepotismo, o clientelismo, o “jeitinho
brasileiro”, o “você sabe com quem está falando?”, enfim, a utilização costumeira da “Lei do
Gérson”, todos indicam a aceitação social de procederes culturalmente estabelecidos. Num
menor ou maior grau conforme os interesses individuais atingidos as resistências à
implementação do princípio da moralidade são compreensíveis, porém inaceitáveis.
Por último, a dificuldade em invalidar os atos administrativos reconhecidos
administrativa ou judicialmente como ímprobos procede não da dissociação entre prática e
teoria, ou seja, entre o “ser” e o “dever ser” do direito, como também da desconexão dos Poderes
e dos órgãos públicos constituídos.
É o exemplo da decisão judicial transitada em julgado na Justiça Estadual Comum, que
acaba não sendo implementada em virtude de correlata decisão judicial na Justiça do Trabalho.
Melhor explicando a situação hipotética: O juiz de direito determina entre as sanções destinadas
ao agente público ímprobo, a invalidação de determinadas contratações para cargos
comissionados, enquanto o juiz do trabalho homologa um ajuste de conduta no sentido da
permanência provisória dos contratados durante um determinado período de tempo.
190
Como se vê, através da abordagem deste simples exemplo, sem considerar ainda as
infinitas possibilidades de incompatibilidade e de contradição fáticas e jurídicas, a invalidação
dos atos administrativos (mesmo depois de declarados administrativa ou judicialmente nulos)
nem sempre é implementada.
Eduardo Ritt ressalta que o caminho da democracia é longo e difícil, eis que é muito
diferente prevê-la formalmente do que aplicá-la de fato.”
236
No mesmo sentido, Hugo Nigro
Mazzili assevera que a existência de uma democracia legítima pressupõe longo caminho a ser
trilhado, um caminho de efetivo exercício da própria democracia.”
237
Emerson Garcia, por sua vez, afirma:
(...) com certa tristeza, que a ordem natural das coisas está a indicar que ainda temos um
longo e tortuoso caminho a percorrer. O combate à corrupção não haverá de ser fruto de
mera produção normativa, mas, sim, o resultado da aquisição de uma consciência
democrática e de uma lenta e paulatina participação popular, o que permitirá uma contínua
fiscalização das instituições públicas, reduzirá a conivência e, pouco a pouco, depurará as
idéias daqueles que pretendem ascender ao poder. Com isto, a corrupção poderá ser
atenuada, pois eliminada nunca será.
238
Ao que parece, a caminhada em busca do idealizado Estado Democrático de Direito é
longa, sendo relevante, além de um processo educativo mediato, uma postura garantidora por
parte do Poder Judiciário, no sentido de confirmação (efetiva) da inserção constitucional do
princípio da moralidade administrativa no ordenamento jurídico brasileiro. Interessa-nos, pois,
verificar os posicionamentos dos Tribunais a respeito da matéria, o que será abordado no
próximo item.
2.3. A moralidade administrativa e a jurisprudência nacional
236
RIITT, Eduardo. O ministério blico como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 161.
237
MAZZILLI, Hugo Nigro. O ministério público e a defesa do regime do regime democrático. São Paulo: Revista
dos Tribunais, v. 751, 1998, p. 78.
238
GARCIA, Emerson. A corrupção. Uma visão Jurídico-sociológica. In Revista da EMERJ. Rio de Janeiro, v. 7,
n. 26, 2004. p.206.
191
Objetivamos verificar os principais posicionamentos judiciais de destaque no cenário do
Poder Judiciário brasileiro a respeito da inserção constitucional (efetiva ou não) do princípio da
moralidade administrativa a partir da análise jurisprudencial das decisões oriundas do Supremo
Tribunal Federal STF, do Superior Tribunal de Justiça STJ e do Tribunal de Justiça do
Estado de Santa Catarina TJSC. Será possível confirmar, mesmo que timidamente, a evolução
decorrente do reconhecimento da autonomia jurídica do princípio da moralidade, dentre outras
questões correlatas, com destaque próprio à análise do fenômeno do nepotismo e o
posicionamento recente dos tribunais a respeito da controvertida matéria: um laboratório
“perfeito” para compreensão da corrupção político-administrativa ainda vigente no país.
Emerson Garcia apresenta detalhada e importante pesquisa sobre o posicionamento da
jurisprudência pátria, relacionando as principais incidências de violação ao princípio
constitucional da moralidade administrativa na atividade pública brasileira, sendo valiosa a
transcrição integral do estudo:
a) participação de Juiz integrante de TRT em eleição destinada a compor lista tríplice para
preenchimento de vaga de juiz togado quando um dos candidatos é filho do mesmo;
b) bacharel em direito que ocupa o cargo de assessor de desembargador e exerce a
advocacia;
c) ato de Presidente do TRT que, ante o afastamento do representante classista titular, deixa
de convocar o suplente que com ele fora nomeado, “pinçado”, à sua livre discrição, o
suplente que substituirá o titular;
d) fixação da remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e dos Vereadores para viger na
próxima legislatura em que fora estabelecida, o que também importa violação ao art. 29, VI,
da Constituição da República;
e) abertura de conta corrente em nome de particular para movimentar recursos públicos,
independentemente da demonstração de prejuízo material aos cofres públicos;
f) o custeio, pela municipalidade, das despesas de viagem ao exterior da esposa do Prefeito,
em companhia dele, o que não representa nenhum benefício para o Município, ainda que ela
dirigisse algum órgão público, sendo idêntica a conclusão em relação às despesas com
viagens do Prefeito não autorizadas pela Câmara Municipal;
g) remoção por permuta entre inexperiente escridistrital, que ocupa serventia de pouco
movimento, e titular de ofício do principal cartório de imóveis da Capital, respectivamente
filha e pai, às vésperas da aposentadoria deste; situação que não atende ao interesse da
justiça, visando, única e exclusivamente, à manutenção do “cartório da família”;
h) ato de Câmara Municipal que, sob o argumento de “oferecer exemplo à coletividade”,
reduz a remuneração dos edis para a legislatura seguinte, após a eleição em que a grande
maioria não foi reeleita;
192
i) omissão deliberada da administração pública, sob a alegação de discricionariedade,
deixando de convocar o estágio probatório que consubstancia condição indispensável ao
acesso dos terceiros sargentos do quadro complementar da Aeronáutica ao quadro regular,
tendo feito com que exercessem tarefas próprias dos postos mais elevados sem a
contrapartida salarial devida;
j) Empresa que participa do procedimento licitatório e possui, em seu quadro de pessoal,
servidor ou dirigente do órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação;
l) alienação de lotes de terrenos pertencentes à municipalidade, contíguos a outros de
propriedade do Prefeito, e posteriormente por ele adquiridos pelo valor da avaliação,
acarretando a valorização da área contígua quando agregada à primitiva;
m) concessão de aposentadoria especial a Vereadores, após o curto lapso de 8 (oito) anos de
contribuição, com desvio de verba pública para cobrir déficit técnico;
n) realização de gastos excessivos, a pretexto de outorga de títulos e honrarias, com bebidas,
comestíveis, peças de vestuário etc.;
o) resolução de Câmara de Vereadores que fixou os subsídios destes, em época de
congelamento de preços e salários instituído no plano federal, em quantia exorbitante.
p) pagamento de diárias a servidora que reside, por longa data, em sede diversa da sua
lotação, onde tem apartamento locado e na qual deveria realizar determinado serviço. Verba
que pressupõe o deslocamento temporário do servidor da sede onde está lotado e que tem a
finalidade de indenizar as despesas de alimentação e pousada, pressupostos ausentes na
hipótese;
q) candidato em concurso público, já vinculado à administração, que tem acesso a material
de preparação ao certame pelo menos um mês antes dos demais. Existindo apenas uma
vaga, que foi conquistada por aquele, restaram inferiorizados os demais candidatos, os quais
não tiveram igualdade de oportunidade;
r) lei municipal que concede benefícios concretos a pequenas empresas, em detrimento de
outras, no interesse de pessoas determinadas, ligadas aos responsáveis pelo ato causador do
dano ao erário; e
s) remuneração da gratificação natalina e das férias de agentes políticos em lei e em
resolução com efeitos retroativos.
239
Vejamos, a seguir, algumas orientações do STF a respeito da presente temática.
2.3.1. O princípio da moralidade administrativa no STF
Em meados do ano de 1963, o Supremo Tribunal Federal (STF) pioneiramente fazia
referência à expressão “moralidade administrativa”, reconhecendo que os atos administrativos
poderiam ser anulados (desfeitos) quando manifestamente ilegais ou contrários aos princípios
da moralidade administrativa.
240
239
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Obra citada. 2002. p. 50-52.
240
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. PROFESSORA. REMOÇÃO DESFEITA, EMBORA FOSSE
DECRETADA SEM MOTIVAÇÃO E PERMITINDO A LEI PUDESSE SER FEITA EM QUALQUER ÉPOCA
DO ANO. NÃO HOUVE RECLAMAÇÃO DE QUALQUER OUTRA PROFESSORA. O ATO
193
Contemporaneamente, o STF tem adotado posicionamentos no sentido de reconhecer
que as ofensas ao princípio da moralidade administrativa não podem ser simplesmente
presumíveis. No MS 26700, de Rondônia
241
, foi assentado que não é possível presumir a
existência de má-fé ou a ocorrência de irregularidades pelo simples fato de que duas das
candidatas aprovadas terem sido assessoras de desembargadores integrantes da banca
examinadora.” No mesmo sentido, a decisão no AI-AgR ° 635749, do Distrito Federal.
242
O Supremo vem entendendo que o princípio constitucional da moralidade administrativa
serve de norte interpretativo para evitar a colisão de normas constitucionais, de modo que ambas
possam ser compatibilizadas de acordo com o ordenamento constitucional.
243
consolidou que
ADMINISTRATIVO DE QUE RESULTE VANTAGEM PARA O PARTICULAR PODE SER DESFEITO,
QUANDO MANIFESTAMENTE ILEGAL OU EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADES
ADMINISTRATIVA. Recurso de mandado de segurança n. RMS-9774. Relator: Ministro Gonçalves de Oliveira.
Julgamento: 02/05/1963. Diário da Justiça da República Federativa do Brasil, Brasília, n. 83, p. 01181. Publicação:
06/05/1963.
241
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA. ANULAÇÃO DO XVIII CONCURSO PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA DO ESTADO DE
RONDÔNIA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. INOCORRÊNCIA.
CONCESSÃO DA SEGURANÇA. I - O exame dos documentos que instruem os PCAs 371, 382 e 397 não
autoriza a conclusão de que teria ocorrido afronta aos princípios da moralidade e da impessoalidade na realização
do XVIII concurso para ingresso na carreira inicial da magistratura do Estado de Rondônia. II - o é possível
presumir a existência de má-fé ou a ocorrência de irregularidades pelo simples fato de que duas das candidatas
aprovadas terem sido assessoras de desembargadores integrantes da banca examinadora. III - Segurança concedida.
MS 26700 / RO – RONDÔNIA. MANDADO DE SEGURANÇA. Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI.
Julgamento: 21/05/2008.
242
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Recurso que não
demonstra o desacerto da decisão agravada. 3. Servidor ativo. Enquadramento. Princípio da isonomia.
Impossibilidade. Precedente. 4. Princípio da legalidade. Súmula 636 do STF. Princípio da moralidade
administrativa. Não ofensa. 5. Violação aos princípios da ampla defesa, do devido processo legal e do
contraditório. Ofensa reflexa. Precedente. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. AI-AgR 635749 / DF -
DISTRITO FEDERAL. AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator(a): Min. GILMAR MENDES.
Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgamento: 01/04/2008.
243
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Bacharel em Direito que exerce o cargo de assessor de desembargador:
incompatibilidade para o exercício da advocacia. Lei 4.215, de 1963, artigos 83 e 84. Lei 8.906/94, art. 28, IV.
Inocorrência de ofensa ao art. 5º, XIII, que deve ser interpretado em consonância com o art. 22, XVI, da
Constituição Federal, e com o princípio da moralidade administrativa imposto à Administração Pública (CF, art.
37, caput). RE 199.088, Rel. Min. CARLOS VELLOSO. Julgamento: 1º/10/96. Publicação: DJ de 16/04/1999.
194
o princípio da moralidade norteia a conduta do administrador público
244
e que cumpre ao
administrador velar pela moralidade administrativa, esta definida como patrimônio moral da
sociedade, sob pena de nulidade ou anulabilidade dos atos administrativos.
245
Para o STF, se a conduta apurada em inquérito civil viola o princípio constitucional da
moralidade administrativa e, se existe figura típica correspondente no respectivo diploma legal
penal, está autorizada também a persecução na esfera criminal.
246
O Supremo Tribunal Federal, reconhecendo expressamente a violação ao princípio da
moralidade administrativa, ao lado de outros princípios constitucionais, consolidou que lei
estadual não pode criar subsídio vitalício para ex-governador, sob pena da respectiva declaração
de inconstitucionalidade, pois afronta o equilíbrio federativo e os princípios da igualdade, da
impessoalidade, da moralidade pública e da responsabilidade dos gastos públicos (arts. 1º, 5º,
caput, 25, § 1º, 37, caput e inc. XIII, 169, § 1º, inc. I e II, e 195, § 5º, da Constituição da
República).
247
244
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A Administração Pública é norteada por princípios conducentes à
segurança jurídica da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A variação
de enfoques, seja qual for a justificativa, não se coaduna com os citados princípios, sob pena de grassar a
insegurança. MS 24.872, voto do Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 30/06/2005. Publicação: DJ de
30/09/2005.
245
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Fixando os Vereadores a sua própria remuneração, vale dizer, fixando essa
remuneração para viger na própria legislatura, pratica ato inconstitucional lesivo não ao patrimônio material do
Poder Público, como à moralidade administrativa, que constitui patrimônio moral da sociedade. CF, art. 5º,
LXXIII. RE 206.889, Rel. Min. CARLOS VELLOSO. Julgamento: 25/03/1997. Publicação: DJ de 13/06/1997.
246
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Alegada nulidade da ação penal, que teria origem em procedimento
investigatório do Ministério Público e incompatibilidade do tipo penal em causa com a Constituição Federal. Caso
em que os fatos que basearam a inicial acusatória emergiram durante o inquérito civil, não caracterizando
investigação criminal, como quer sustentar a impetração. A validade da denúncia nesses casos, proveniente de
elementos colhidos em inquérito civil, se impõe, até porque jamais se discutiu a competência investigativa do
Ministério Público diante da cristalina previsão constitucional (art. 129, II, da CF). Na espécie, não está em debate
a inviolabilidade da vida privada e da intimidade de qualquer pessoa. A questão apresentada é outra. Consiste na
obediência aos princípios regentes da Administração Pública, especialmente a igualdade, a moralidade, a
publicidade e a eficiência, que estariam sendo afrontados se de fato ocorrentes as irregularidades apontadas no
inquérito civil. HC 84.367, Rel. Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 09/11/2004. Publicação: DJ de 18/02/2005.
247
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda constitucional n. 35, de 20
de dezembro de 2006, da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul. Acréscimo do art. 29-A, caput e §§, 2º
e , do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição sul-mato-grossense. Instituição
de subsídio mensal e vitalício aos ex-Governadores daquele Estado, de natureza idêntica ao percebido pelo atual
chefe do Poder Executivo estadual. Garantia de pensão ao cônjuge supérstite, na metade do valor percebido em
195
Segundo o Supremo, o princípio da moralidade deve estar necessariamente atrelado ao
âmbito de uma “ética da legalidade”, ou dito de outra forma: valores morais ou religiosos da
sociedade não podem criar condutas juridicamente imorais. Aliás, como tivemos oportunidade
de observar, no item 2.2.3. deste trabalho, a moralidade administrativa é especializada em
relação à moral comum, diferenciando-se desta por possuir características determinantes com
finalidades típicas, específicas e objetivas em relação à administração pública. A moral
juridicizada, portanto, difere da moral comum. Assim, a ética do sistema jurídico, que é a ética
da legalidade na qual o princípio da moralidade está adstrito, informa que a moralidade jurídica
não se confunde com a moralidade social.
248
Como também referido no item 2.2.3, esse
posicionamento não contraria a autonomia do princípio da moralidade em relação ao princípio
da legalidade, representando, pois, na concepção garantista, a operatividade do princípio a partir
de sua composição com os princípios e as garantias constitucionais que lhe dão significado e
sentido efetivo, que resulta, em última análise, na sua revitalização constitucional.
vida pelo titular. Segundo a nova redação acrescentada ao Ato das Disposições Constitucionais Gerais e
Transitórias da Constituição de Mato Grosso do Sul, introduzida pela Emenda Constitucional n. 35/2006, os ex-
Governadores sul-mato-grossenses que exerceram mandato integral, em 'caráter permanente', receberiam subsídio
mensal e vitalício, igual ao percebido pelo Governador do Estado. Previsão de que esse benefício seria transferido
ao cônjuge supérstite, reduzido à metade do valor devido ao titular. No vigente ordenamento republicano e
democrático brasileiro, os cargos políticos de chefia do Poder Executivo não são exercidos nem ocupados 'em
caráter permanente', por serem os mandatos temporários e seus ocupantes, transitórios. Conquanto a norma faça
menção ao termo 'benefício', não se tem configurado esse instituto de direito administrativo e previdenciário, que
requer atual e presente desempenho de cargo público. Afronta o equilíbrio federativo e os princípios da igualdade,
da impessoalidade, da moralidade pública e da responsabilidade dos gastos públicos (arts. 1º, 5º, caput, 25, § 1º, 37,
caput e inc. XIII, 169, § 1º, inc. I e II, e 195, § , da Constituição da República). Precedentes. Ação direta de
inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 29-A e seus parágrafos do
Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul. ADI
3.853, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 12/09/2007. Publicação: DJ de 26/10/2007.
248
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento
do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução
do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. ADI 3.026, Rel. Min. EROS GRAU. Julgamento:
08/06/2006. Publicação: DJ de 29/09/2006.
196
O STF também entendeu restar violado o princípio constitucional da moralidade
administrativa em decorrência de considerar incompatível o exercício da advocacia por agente
público que exerce o cargo de diretor-geral em tribunal superior (TRE).
249
Por fim, como teremos oportunidade de abordar com maior vagar no item 2.3.4. O
princípio da moralidade administrativa e o nepotismo –, após sustentar que as práticas
relacionadas ao nepotismo afrontam o princípio constitucional da moralidade administrativa,
como na hipótese da servidora pública estadual nomeada para o exercício de cargo em comissão
em Tribunal Superior, à época em que o vice-presidente do Tribunal era seu parente
250
; e
reconhecer o caráter normativo primário da Resolução nº 07/05, editada pelo CNJ com o
objetivo da vedação do nepotismo a partir dos próprios conteúdos lógicos dos princípios
constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado,
especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade
251
, o
249
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diretor-geral de Tribunal Regional Eleitoral. Exercício da advocacia.
Incompatibilidade. Nulidade dos atos praticados. Violação aos princípios da moralidade e do devido processo legal
(fair trial). Acórdão recorrido cassado. Retorno dos autos para novo julgamento. RE 464.963, Rel. Min. GILMAR
MENDES. Julgamento: 14/02/2006. Publicação: DJ de 30/06/2006.
250
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Servidora pública da Secretaria de Educação nomeada para cargo em
comissão no Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região à época em que o vice-presidente do Tribunal era
parente seu. Impossibilidade. A proibição do preenchimento de cargos em comissão por njuges e parentes de
servidores públicos é medida que homenageia e concretiza o princípio da moralidade administrativa, o qual deve
nortear toda a Administração Pública, em qualquer esfera do poder. MS 23.780, Rel. Min. Joaquim Barbosa.
Julgamento: 28/09/2005. Publicação: DJ de 03/03/2006.
251
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (...) Ação declaratória que não merece conhecimento quanto ao art. da
resolução, porquanto, em 06/12/05, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 09/05, alterando
substancialmente a de 07/2005. A Resolução 07/05 do CNJ reveste-se dos atributos da generalidade (os
dispositivos dela constantes veiculam normas proibitivas de ações administrativas de logo padronizadas),
impessoalidade (ausência de indicação nominal ou patronímica de quem quer que seja) e abstratividade (trata-se de
um modelo normativo com âmbito temporal de vigência em aberto, pois claramente vocacionado para renovar de
forma contínua o liame que prende suas hipóteses de incidência aos respectivos mandamentos). A Resolução
07/05 se dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § do art. 103-B da Carta-
cidadã e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada
regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da
igualdade e o da moralidade. O ato normativo que se faz de objeto desta ação declaratória densifica
apropriadamente os quatro citados princípios do art. 37 da Constituição Federal, razão por que não há antinomia de
conteúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos normativos: o constitucional e o
infraconstitucional. Logo, o Conselho Nacional de Justiça fez adequado uso da competência que lhe conferiu a
Carta de Outubro, após a Emenda 45/04. Noutro giro, os condicionamentos impostos pela Resolução em foco não
atentam contra a liberdade de nomeação e exoneração dos cargos em comissão e funções de confiança (incisos II e
V do art. 37). Isto porque a interpretação dos mencionados incisos não pode se desapegar dos princípios que se
veiculam pelo caput do mesmo art. 37. Donde o juízo de que as restrições constantes do ato normativo do CNJ são,
197
Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento sobre a prática imoral do nepotismo,
proibindo-o nos três poderes da União, conforme conteúdo normativo da recente Súmula
Vinculante nº 13.
252
Passemos às considerações dos posicionamentos oriundos do Tribunal Superior de
Justiça.
2.3.2. O princípio da moralidade administrativa no STJ
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), mesmo que “a passos lentos de tartaruga”, vem
consolidando, progressivamente, o princípio constitucional da moralidade administrativa como
princípio jurídico autônomo e norteador da atuação da atividade pública. O STJ assentou que
a prática de qualquer ato administrativo, quer da administração direta, quer da administração
no rigor dos termos, as mesmas restrições impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos
princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. É dizer: o que já era constitucionalmente
proibido permanece com essa tipificação, porém, agora, mais expletivamente positivado. Não se trata, então, de
discriminar o Poder Judiciário perante os outros dois Poderes Orgânicos do Estado, sob a equivocada proposição de
que o Poder Executivo e o Poder Legislativo estariam inteiramente libertos de peias jurídicas para prover seus
cargos em comissão e funções de confiança, naquelas situações em que os respectivos ocupantes não hajam
ingressado na atividade estatal por meio de concurso público. O modelo normativo em exame não é suscetível de
ofender a pureza do princípio da separação dos Poderes e até mesmo do princípio federativo. Primeiro, pela
consideração de que o CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder
à autoridade de nenhum dos outros dois; segundo, porque ele, Poder Judiciário, tem uma singular compostura de
âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125
da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse
mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta Maior, neles incluídos
os constantes do art. 37, cabeça. Medida liminar deferida para, com efeito vinculante: a) emprestar interpretação
conforme para incluir o termo “chefia” nos inciso II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco b)
suspender, até o exame de mérito desta ADC, o julgamento dos processos que tenham por objeto questionar a
constitucionalidade da Resolução 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça; c) obstar que juízes e Tribunais
venham a proferir decisões que impeçam ou afastem a aplicabilidade da mesma Resolução 07/2005, do CNJ e d)
suspender, com eficácia ex tunc, os efeitos daquelas decisões que, proferidas, determinaram o afastamento da
sobredita aplicação. ADC 12-MC / DF. Tribunal Pleno Medida Cautelar em Ação Declaratória de
Constitucionalidade 12-6. Distrito Federal. Relator : Ministro CARLOS BRITTO. Julgamento: 16/02/2006.
Publicação: DJ de 01/09/2006.
252
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A nomeação de njuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica
investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança
ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a
Constituição Federal. Súmula Vinculante n° 13. Diário da Justiça Eletrônico (DJE) nº 162/2008. Publicação:
29/08/2008.
198
indireta, não terá apoio do ordenamento jurídico se não se apresentar rigorosamente vinculado
ao princípio da moralidade. (...) A defesa da moralidade administrativa pode ser efetuada via
qualquer forma legislativa ou até mesmo sem norma expressa. É dever do administrador.”
253
O Superior Tribunal de Justiça também reconheceu a atuação preponderante do
Ministério Público na defesa do princípio constitucional da moralidade administrativa,
suprimindo as eventuais omissões partes interessadas, sempre no zelo e no resguardo da coisa
pública.
254
No item 3.1. do último Capítulo, numa concepção garantista, será abordada a
importância da instituição do Ministério Público brasileiro como fundamental instrumento na
tentativa da consolidação do Estado Democrático de Direito, a partir da defesa incondicional
dos direitos fundamentais.
Segundo entendimento prevalecente do STJ, o princípio constitucional da moralidade
administrativa foi erigido ao status de “princípio proeminente”, de forma que todo ato ou
253
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO.
1. O acórdão deve expressar, de forma explícita, as razões pelas quais determinou a conclusão assumida, para que a
parte possa analisar o conteúdo de sua fundamentação e preparar o recurso cabível. 2. A prática de qualquer ato
administrativo, quer da administração direta, quer da administração indireta, não terá apoio do ordenamento
jurídico se não se apresentar rigorosamente vinculado ao princípio da moralidade. 3. A defesa da moralidade
administrativa pode ser efetuada via qualquer forma legislativa ou até mesmo sem norma expressa. É dever do
administrador. 4. Não ofensa ao princípio da legalidade e ao ato jurídico perfeito quando o Tribunal de Contas,
em decisão colegiada, impede que sociedade de economia mista assuma encargos financeiros de pessoa jurídica de
direito privado que rege interesses particulares. 5. Não é lícito que o Banco de Brasília pague as despesas
administrativas de pessoal da empresa Regius S/C de Previdência Privada. 6. Embargos de declaração acolhidos.
Embargos de declaração no recurso em mandado de segurança n. EDROMS 6234/DF (95/0048389-0). Regius S/C
de Previdência Privada e Banco de Brasília S/A BRB. Relator: Ministro JO DELGADO. Julgamento:
19/05/1998. Diário da Justiça da República Federativa do Brasil, Brasília, n. 156-E, p. 00022. Publicação:
17/08/1998.
254
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE "AD CAUSAM".
SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES. BANERJ. O MP
TEM LEGITIMIDADE PARA INTERVIR COMO "CUSTOS LEGIS" NA AÇÃO DE RESPONSABILIDADE
DE ADMINISTRADORES DE ENTIDADE DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA, QUE TERIA SIDO VÍTIMA DE
GERENCIAMENTO LESIVO, COM OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
(ART. 37 DA CF/1988), CAUSANDO UM PASSIVO QUE VEIO A SER ASSUMIDO PELO ESTADO.
INTERVENÇÃO QUE MAIS SE JUSTIFICA PELO QUE SE VERIFICA DOS AUTOS, COM A OMISSÃO
DAQUELES QUE DEVERIAM ZELAR PELO INTERESSE PUBLICO. SENDO CASO DE INTERVENÇÃO,
PODIA RECORRER (SUM. 99). RECURSO NÃO CONHECIDO. RECURSO ESPECIAL n. RESP 94844/RJ
(96/0027562-9). Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR. Julgamento: 07/10/1997. Diário da Justiça da
República Federativa do Brasil, Brasília, p. 00101. Publicação: 18/05/1998.
199
atividade administrativa nele deve se orientar. Assim, com o objetivo de preservar a necessária
moral condutora da atividade pública, é imperioso expurgar os vícios que o afrontem.
255
Para o Superior Tribunal de Justiça, a defesa do princípio constitucional da moralidade
administrativa admite a adoção de medidas de caráter excepcional, como o afastamento do
cargo de Prefeito denunciado em ação penal que se apura o mau uso de verbas públicas.
256
Todavia, na contramão dos princípios democráticos, o STJ vem entendendo que
condutas meramente irregulares, passíveis de correção na via administrativa, não violam o
princípio constitucional da moralidade administrativa se for demonstrada a ausência de má-fé do
administrador.
257
Como defendemos, numa interpretação interativa de princípios
constitucionais aplicáveis a cada situação concreta (moralidade, razoabilidade,
proporcionalidade, eficiência etc.), o fato de ato administrativo irregular ser passível de correção
255
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Constitucional. Administrativo. Concurso Público com procedimento
eivado de irregularidades. Declaração de nulidade de alguns atos do concurso. Possibilidade. O principio da
moralidade foi alçado, pelo Constituinte, a categoria de Princípio Proeminente, regedor de toda a atividade na
administração pública. É lícito à Administração, tendo em vista a conveniência e o interesse publico, alterar, a
qualquer tempo, unilateralmente, as regras estabelecidas para uma das fases do concurso publico, sem qualquer
ofensa ao direito (adquirido) dos candidatos. A irregularidade na publicidade de atos de concurso publico, a ponto
de prejudicar, tendo em vista a exigüidade de prazo estabelecido para realização de uma das provas, a grande
número de candidatos inscritos, justifica a anulação de uma das fases do certame, visando a manter o primado da
moralidade nas atividades dos órgãos da administração. Recurso a que se nega provimento. Decisão unânime.
Recurso Ordinário em Mandado Segurança n. 1.128, PR - 1ª Turma, rel. Ministro DEMÓCRITO RAMOS
REINALDO. DJU, pág. 5.217. Publicação: 29/03/1993.
256
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO
ESPECIAL INTERPOSTO. ADMISSÃO EM RARA EXCEPCIONALIDADE. PREFEITO. DENÚNCIA.
IMPROBIDADE. AFASTAMENTO DO CARGO. PROVIDÊNCIA QUE SE IMPÕE EM BENEFÍCIO DO
ERÁRIO E DA MORALIDADE PÚBLICA. - Constituindo os fatos irrogados ao Prefeito, crime em tese, e
havendo possibilidade de, no exercício do cargo, manipular documentos, pressionar testemunhas, dificultando a
apuração dos fatos, e mais, com vistas a repetição da conduta reprovável, impõe-se decretar o afastamento
temporário do Prefeito até o término da instrução criminal e julgamento do mérito, motivadamente (art. 2°, II, de
Decreto-lei 201/67). Turma. AGRMC 1411/PA. Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA. Julgamento:
22/09/1998.
257
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. DISPENSA DE LICITAÇÃO. COMPRA E
VENDA E DOAÇÃO DE IMÓVEIS REALIZADOS PELO MUNICÍPIO. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ DO AGENTE
PÚBLICO. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. NÃO COMPROVADOS.
DANO EFETIVO. AUSÊNCIA. REEXAME DE MATÉRIA TICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 07/STJ.
VIOLAÇÃO DO ART. 535, I e II, DO CPC. NÃO CONFIGURADA. Resp. 797671 / MG Recurso Especial
2005/0179387-0. Rel. Min. LUIZ FUX. Julgamento: 05/06/2008.
200
na via administrativa, não implica necessariamente a descaracterização do possível ato de
improbidade administrativa, independentemente da ocorrência ou não de dano material,
inteligência do art. 37, e § 4º, da CR; e art. 21 da Lei de Improbidade Administrativa.
No que concerne às práticas relacionadas ao nepotismo, o Superior Tribunal de Justiça
reconheceu a constitucionalidade de lei estadual que proibia a contratação de parentes de
magistrados para cargos do Judiciário, em defesa dos princípios da moralidade e republicano, no
combate ao nepotismo e no reforço à idéia de isonomia.
258
Em seguida, veremos as orientações do Tribunal de Justiça catarinense a respeito da
matéria.
2.3.3. O princípio da moralidade administrativa no TJSC
O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, de maneira muito tímida, e às vezes
contraditória, vem reconhecendo em seus acórdãos que o princípio constitucional da moralidade
administrativa é de observância imprescindível aos atos e às atividades administrativas.
O TJSC assentou que a administração pública, a pretexto de agir para o bem comum,
não pode atuar de maneira alheatória em relação ao conteúdo normativo do princípio
constitucional da moralidade administrativa, devendo responder por erro, culpa, dolo ou
258
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CONSTITUCIONAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMA ESTADUAL QUE VEDA A CONTRATAÇÃO
DE PARENTES DOS MAGISTRADOS PARA CARGOS DO JUDICIARIO PAULISTA. IMPROVIMENTO. I
- O PRINCIPIO ATACADO NÃO E INCONSTITUCIONAL. AO CONTRARIO, VISA DEFENDER OS
PRINCIPIOS DA MORALIDADE NO SERVIÇO PUBLICO E OS DO ESTADO REPUBLICANO,
COMBATENDO O NEPOTISMO E REFORÇANDO, MESMO, A IDEIA DE ISONOMIA, JA QUE PARA
PROVIMENTO DE TAIS CARGOS NÃO HA CONCURSO PUBLICO. E O PROPRIO ARTIGO 37, INC. I,
DA C.F. DIZ QUE O ACESSO DE BRASILEIROS AOS CARGOS PUBLICOS DEVE OBEDECER AOS
REQUISITOS ESTABELECIDOS EM LEI. II - RECURSO IMPROVIDO. RMS 2284/SP. Recurso Ordinário em
Mandado de Segurança n. 1992/0028519-8. Sexta Turma. Ministro PEDRO ACIOLI. Julgamento: 25/04/1994.
Publicação: DJ de 16/05/1994.
201
interesses escusos de seus agentes, obrigando-se a invalidar, espontaneamente ou mediante
provocação o ato administrativo imoral.
259
Na ADI n. 97.002547-5 de Laguna, com voto do saudoso, competente e honrado
Desembargador Eder Graf, o Tribunal de Justiça catarinense considerou que a norma municipal
que aumenta a remuneração de Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores para o mesmo exercício,
afronta o princípio constitucional da moralidade administrativa, na medida em que o
reajustamento disfarça mera elevação, em patamar muito superior à erosão inflacionária da
moeda”.
260
decidiu o TJSC que “é nula de pleno direito, cláusula inserida em contrato celebrado
com o Município, prevendo o ajuste de preço em descompasso com o edital e a proposta
vencedora, por constituir infração aos princípios da moralidade e legalidade administrativa, ao
conceder vantagens ao particular contratado, além das originariamente previstas.”
261
259
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA -
SERVIDOR ADMITIDO SEM PRESTAR CONCURSO PÚBLICO - INOBSERVÂNCIA DA FORMA
PRESCRITA EM LEI - ANULAÇÃO PELO PODER PÚBLICO - APELO SOB O PÁLIO DA ESTABILIDADE
SINDICAL - INACOLHIMENTO - SENTENÇA MONOCRÁTICA MANTIDA. 1. A Administração Pública,
como instituição destinada a realizar o Direito e a propiciar o bem comum, não pode agir fora das normas jurídicas
e da moral administrativa, nem relegar os fins sociais a que sua ação se dirige. Se, por erro, culpa, dolo ou
interesses escusos de seus agentes, a atividade do Poder Público desgarra-se da lei, divorcia-se da moral ou desvia-
se do bem comum, é dever da Administração invalidar, espontaneamente ou mediante provocação, o próprio ato,
contrário à sua finalidade, por inoportuno, inconveniente, imoral ou ilegal (Hely Lopes Meirelles). 2. A
Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se
originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e
ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (Súmula 473, STF). (...). Apelação Cível em mandado de
segurança n. 97.004668-5. Jussara Bittencourt Faust e Município de Imaruí. Relator: Desembargador ORLI
RODRIGUES. Julgamento: 14/10/1997. Diário da Justiça do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, n. 9.859, p.
23. Publicação: 24/11/1997.
260
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. ADIN - RESOLUÇÃO Nº 03/97 E ATO Nº 04/97, DA
CÂMARA DE VEREADORES DO MUNICÍPIO DE LAGUNA - REAJUSTE DA REMUNERAÇÃO DO
PREFEITO, VICE-PREFEITO E VEREADORES NA MESMA DATA E NO MESMO PERCENTUAL FIXADO
PARA OS SERVIDORES DA EDILIDADE. Colide com o art. 111 da Constituição Estadual, simétrico com o art.
29, V, da Constituição Federal, norma municipal que aumenta a remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e
Vereadores para a mesma legislatura, afrontando o princípio da moralidade - art. 16 da Constituição Estadual, em
simetria com o art. 37 da Constituição Federal - na medida em que o reajustamento disfarça mera elevação, em
patamar muito superior à erosão inflacionária da moeda. Ação direta de inconstitucionalidade n. 97.002547-5. João
Gualberto Pereira e Câmara Municipal de Laguna. Relator: Desembargador EDER GRAF. Julgado: 17/06/1998.
Diário da Justiça do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, n. 10.014, p. 06. Publicação: 20/07/1998.
261
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO RESOLUTÓRIA C/C
COBRANÇA AFORADA POR EMPREITEIRA VENCEDORA DE PLEITO LICITATÓRIO PARA
202
Para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em havendo ofensa ao princípio
constitucional da moralidade administrativa, é possível a imediata anulação do concurso público
viciado.
262
O TJSC assentou que a efetiva lesão ao erário implica a caracterização de ato de
improbidade administrativa por ofensa ao princípio constitucional da moralidade administrativa,
que é considerado princípio de natureza absoluta.
263
Adotando um posicionamento bastante controvertido, em grau de recurso de ação
popular, na qual o cidadão buscava pleitear a anulação de atos lesivos ao patrimônio público, o
CONSTRUÇÃO DE TERMINAL RODOVIÁRIO MUNICIPAL - EXECUÇÃO PARCIAL DO PROJETO -
PRETENSÃO FORMULADA NA PEÇA BASILAR, ACOLHIDA EM PARTE NA INSTÂNCIA INICIAL -
INCONFORMISMO DOS CONTENDORES: AUTORA, POSTULANDO A REFORMA DA SENTENÇA PARA
QUE O VENCIDO PAGUE AS PERDAS E DANOS PEDIDOS NA EXORDIAL E QUE SUPORTE SOZINHO
AS CUSTAS DO PROCESSO E OS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS; REQUERIDO, PLEITEANDO A
REFORMA DO JULGADO MONOCRÁTICO, ANTE O RECONHECIMENTO DA NULIDADE DO
CONTRATO ELABORADO EM DESCOMPASSO COM O EDITAL DE LICITAÇÃO, COM INVERSÃO DOS
ENCARGOS SUCUMBENCIAIS - DESPROVIMENTO DO RECURSO DA PRETENSORA E PROVIMENTO
PARCIAL DO APELO INTERPOSTO PELO MUNICÍPIO. 1. É nula de pleno direito, cláusula inserida em
contrato celebrado com o Município, prevendo o ajuste de preço em descompasso com o edital e a proposta
vencedora, por constituir infração aos princípios da moralidade e legalidade administrativa, ao conceder vantagens
ao particular contratado, além das originariamente previstas. 2. “(...) mesmo no caso de contrato nulo, pode tornar-
se devido o pagamento dos trabalhos realizados ou dos fornecimentos feitos à Administração, uma vez que tal
pagamento não se funda na obrigação contratual, e sim no dever moral de indenizar toda obra, serviço ou material
recebido e auferido pelo Poder Público, ainda que sem contrato ou com contrato nulo, porque o Estado não pode
tirar proveito da atividade do particular sem a correspondente indenização(Hely Lopes Meirelles, in Licitação e
Contrato Administrativo, pág. 224). (...). Apelação cível n. 96.012481-0. Deboni Engenharia e Construções Ltda. e
Município de São Joaquim. Relator: Des. ORLI RODRIGUES. Julgamento: 31/03/1998. Diário da Justiça do
Estado de Santa Catarina, Florianópolis, n. 10.009, p. 11. Publicação: 13/07/1998.
262
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL - CONCURSO -
SERVIDOR DA JUSTIÇA DE PRIMEIRO GRAU - ANULAÇÃO DE PROVA PELA COMISSÃO
PERMANENTE - COMPETÊNCIA - POSSIBILIDADE - MORALIDADE ADMINISTRATIVA PRESERVADA
- MANDADO DE SEGURANÇA - DIREITO LÍQUIDO E CERTO INEXISTENTE - PEDIDO DENEGADO -
SENTENÇA CONFIRMADA. Apelação cível em mandado de segurança n. 96.009183-1, da Capital. Relator: Des.
NILTON MACEDO MACHADO. Julgamento: 27/05/1998.
263
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. AÇÃO POPULAR. ATO DITO ILEGAL E LESIVO AO
ERÁRIO PÚBLICO SOBEJADAMENTE COMPROVADO NOS AUTOS, TENDO SIDO ADMITIDO, ATÉ
MESMO, PELO PRÓPRIO AUTOR, O QUAL, TODAVIA, BUSCA DEMONSTRAR A SUA LICITUDE COM
LASTRO EM LEI MUNICIPAL. ARGUMENTAÇÃO ESTÉRIL. NECESSIDADE DA DEVOLUÇÃO DO
ACRÉSCIMO PATRIMONIAL INDEVIDAMENTE OBTIDO. Apelação Cível n. 2005.000471-1, de São
Joaquim. Relator: Des. VANDERLEI ROMER. Julgamento: 30/03/2006.
203
TJSC manteve a decisão de primeiro grau no sentido da extinção do processo pelo
indeferimento da inicial, haja vista a ausência de demonstração de lesão ao princípio da
moralidade administrativa, não havendo justa causa para o prosseguimento da demanda.
264
Conforme salientado no item 2.2.3.2 deste ensaio, não é necessária a efetiva ocorrência do
dano para caracterização da violação ao princípio da moralidade (art. 21, inciso I, LIA), ou seja,
o dano não é imprescindível a sua configuração. Nesse sentido, doutrina Emerson Garcia:
265
Com relação ao nepotismo, o TJSC interpretou dispositivos de lei anti-nepotismo como
constitucionais.
266
Considerou, para caracterização de prática do nepotismo, as causas e os
requisitos de ocupação do cargo, a compatibilidade da remuneração e o cumprimento do dever
264
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. AÇÃO POPULAR. EXTINÇÃO. INICIAL INDEFERIDA DE
PLANO. VIABILIDADE DO CONTROLE PRÉVIO DO MERITUM CAUSAE. AUSÊNCIA DOS
PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA DEMANDA VISTOS INITIO LITIS. SOLUÇÃO QUE ATENTE AO
INTERESSE DAS PARTES E AO IDEAL DE JUSTIÇA. RECURSO E REMESSA (ART. 19 DA LEI DA AÇÃO
POPULAR) IMPROVIDOS. Apelação Cível n. 2004.009543-0, da Capital. Relator: Des. CESAR ABREU.
Julgamento: 31/08/2004.
265
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Obra citada. 2002. p. 211: (...) a aplicação das sanções previstas
no art. 12 independe “da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público”, logo, não sendo o dano o substrato
legitimador da sanção, constata-se que é elemento prescindível à configuração da improbidade.
266
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. APLICAÇÃO. MATRIZES DO ESTADO DE DIREITO. NORTE PARA
TODA A LEGISLAÇÃO. O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever
inderrogável do Poder Público, tanto que “as normas que se contraponham aos núcleos de erradiação normativa
assentados nos princípios constitucionais, perderão sua validade (no caso da eficácia diretiva) e/ou sua vigência (na
hipótese de eficácia derrogatória), em face de contraste normativo com normas de estalão constitucional”.
(Espíndola, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 67).
APLICAÇÃO DO ART. 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO
LÓGICO-SISTEMÁTICO. CAPÍTULO VII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA. DISPOSIÇÕES GERAIS. ART. 37 DA CF. PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E DA
MORALIDADE. PRECEITOS DE INCIDÊNCIA SOBRE OS DEMAIS ARTIGOS, PRINCIPALMENTE NO
INC. II, AO DISPOR ACERCA DOS CARGOS COMISSIONADOS DE LIVRE NOMEAÇÃO E
EXONERAÇÃO. OBSERVÂNCIA INAFASTÁVEL. O método de interpretação lógico-sistemático recai sobre a
norma jurídica considerando o lugar no qual está inserta, unida aos demais preceitos para formar a homogeneidade
do sistema. Estabelecidos como princípios norteadores da administração pública a impessoalidade e a moralidade
no art. 37, caput, da Constituição Federal, tais preceitos irradiam normatividade para todo o capítulo e incidem
principalmente sobre o inciso II, parte final, que institui a livre nomeação e exoneração para os cargos em comissão
a serem providos pelo Chefe do Poder Executivo. (...) Diante dessas premissas, interpretar os dispositivos
constitucionais tidos por violados pelo objeto desta ação – lei anti-nepotismo - de forma diversa, é transgredir sim a
divisão de poderes, concentrando-o indevidamente nas mãos do Executivo. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
2007.014117-0, de São José, Relator: Des. CARLOS PRUDÊNCIO. Julgamento: 08/10/2007.
204
de eficiência.
267
Também registrou entendimento no sentido de que a inexistência de lei sobre o
nepotismo não autoriza o provimento de cargos comissionados em favor de parentes, sob pena
de violação dos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência.
268
Consolidou, ainda, que
os laços de consangüinidade, ou de parentesco por afinidade, não autorizam, por si só, o
preenchimento de cargos comissionados, devendo se ponderar, através dos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, sobre a necessidade e/ou urgência da contratação.
269
267
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. AÇÃO CIVIL PÚBLICA - IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA - NOMEAÇÃO PARA CARGO COMISSIONADO - ASSESSOR PARLAMENTAR
MUNICIPAL ESPOSA DO PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES - ATO DE NEPOTISMO -
PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - AUSÊNCIA DE LEI VEDANDO A CONTRATAÇÃO
DE PARENTES - DESCARACTERIZAÇÃO DE ATO QUE IMPORTE EM IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. Enquadrar o nepotismo como uma infração à Lei
de Improbidade Administrativa, é um trabalho bastante tortuoso, uma vez que a própria lei não traça diretrizes para
que se possa delimitar seu alcance em referência aos atos praticados pelos administradores para enquadrar, em
específico, a imoralidade administrativa. Ocorrendo a prática do nepotismo, devem-se levar em consideração as
causas, o preenchimento dos requisitos do cargo, a remuneração compatível recebida por quem foi nomeado e o
cumprimento do dever por possuir o nomeado aptidão para a profissão que desempenha. “A partir da aferição
desses elementos, será possível identificar a possível inadequação do ato aos princípios da legalidade e da
moralidade, bem como a presença do desvio de finalidade, o que será indício veemente da consubstanciação de
ato de improbidade” (Emerson Garcia). Apelação Cível n. 2003.025558-3, de Correia Pinto. Relator: Des.
NICANOR DA SILVEIRA. Julgamento: 24/11/2005.
268
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CONCESSÃO DE LIMINAR -
AGRAVO DE INSTRUMENTO - NEPOTISMO AUSÊNCIA DE LEI MUNICIPAL ACERCA DO TEMA
DESNECESSIDADE EXEGESE DO ART. 37 CAPUT DA CRFB. A inexistência de lei que regulamente o
nepotismo no âmbito municipal não pode servir de lio para que o Administrador provimento aos cargos
comissionados da maneira que lhe aprouver. É a Carta Magna que fornece os lindes da temática, quando erige os
princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência à condição de preceitos norteadores da atividade estatal.
CARGOS DE PROVIMENTO EM COMISSÃO NEPOTISMO GRAU DE PARENTESCO CONFIGURADO
VEDAÇÃO EXTENSÍVEL AOS PODERES EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO - FUMUS BONI
JURIS E PERICULUM IN MORA CARACTERIZADOS. As restrições dedutíveis dos princípios do art. 37, caput
se destinam a todos os Poderes da República, os quais estão indistintamente adstritos às amarras impostas pelo
Constituinte. Assim, observado o grau de parentesco havido entre o agente político e ocupantes de cargos de
provimento em comissão, impende exonerá-los, a bem da transparência no trato da coisa pública. Agravo de
Instrumento n. 2007.022754-2, de Ponte Serrada, Relator: Des. VOLNEI CARLIN. Julgamento: 08/11/2007.
269
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
CONCESSÃO DE LIMINAR. PRAZO DE 30 DIAS PARA A EXONERAÇÃO DOS OCUPANTES DE
CARGOS COMISSIONADOS E TEMPORÁRIOS. DETERMINAÇÃO PARA QUE SERVIDORES EFETIVOS,
COM FUNÇÃO GRATIFICADA, RETORNEM À OCUPAÇÃO ORIGINAL. PRÁTICA DE NEPOTISMO.
INEXISTÊNCIA DE LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. IRRELEVÂNCIA, EIS QUE AFRONTA OS PRINCÍPIOS
INERENTES A QUALQUER ATO ADMINISTRATIVO. VEDAÇÃO QUE DECORRE DO ARTIGO 37 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO DESPROVIDO. Ainda que inexista legislação municipal, limitando a
contratação de parentes pelo Poder Público, tal vedação decorre da própria Constituição Federal. Assim, em que
pese a expressão "livre nomeação" constante do inciso II do artigo 37 da Constituição federal, não é demasiado
inferir, tendo em vista a interpretação sistemática do próprio dispositivo em questão, que também no provimento de
cargo em comissão, e nas contratações por tempo determinado, o administrador público está condicionado à
observância dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (caput
do art. 37). Por óbvio, os laços de consangüinidade, ou de parentesco por afinidade, por si só, não devem servir de
205
No último item deste Capítulo veremos um bom exemplo dos reflexos da inserção do
princípio da moralidade administrativa no constitucionalismo brasileiro, especialmente no que
se refere à prática do chamado nepotismo.
2.3.4. O princípio da moralidade administrativa e o nepotismo
Objetivamos no presente item, a partir da compreensão das origens do nepotismo na
sociedade patrimonial portuguesa e, conseqüentemente, na brasileira, analisar a relação do
fenômeno, ainda atual, com o princípio constitucional da moralidade administrativa,
considerando, para tanto, o entendimento doutrinário a respeito da matéria, a atual tese do
Ministério Público catarinense adotada por meio do Programa de Combate ao Nepotismo
Público do Estado de Santa Catarina, a orientação posterior do Judiciário catarinense, bem como
o recentíssimo posicionamento sumular proveniente do Supremo Tribunal Federal, no sentido
da proibição da prática do nepotismo nos três poderes da União.
270
Pode-se afirmar que o nepotismo, estando diretamente relacionado com a cultura
paternalista, é uma das práticas decorrentes do fenômeno da corrupção, ainda tão atual e
consistente no Brasil. O nepotismo (do latim nepos, que significa neto ou descendente) é uma
espécie de favorecimento determinado para parentes em prejuízo de outras pessoas mais
qualificadas para ocupação de cargos ou funções públicas. O termo é original da estrutura de
poder da Igreja Católica, representando a autoridade que os sobrinhos e outros parentes do Papa
exerciam na administração eclesiástica, sendo utilizado atualmente como sinônimo da
concessão de privilégios ou cargos a parentes no funcionalismo público. Napoleão Bonaparte é
considerado por alguns antropólogos como um dos maiores nepotistas da história da
arrimo ao preenchimento de cargos comissionados. que se ponderar, diante dos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade, atentando-se sempre, além das minúcias do caso concreto, à necessidade e/ou urgência, à
capacidade e à especialização da mão-de-obra envolvida, a fim de atender o interesse público. Assim, apenas em
casos excepcionais, possível a mitigação de tal regra. Agravo de Instrumento n. 2007.031714-0, de Capivari de
Baixo, Relator: Des. Ricardo Roesler. Julgamento: 27/03/2008.
270
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n° 13 do STF, publicada no Diário da Justiça
Eletrônico (DJE) nº 162/2008, em 29/08/2008.
206
humanidade, tendo nomeado três de seus irmãos como reis de países conquistados pelo Império
francês.
O fenômeno do nepotismo é universalmente criticado na política mundial
contemporânea, estando diretamente relacionado à corrupção, contrapondo-se às concepções
modernas de governância, representando empecilho ao desenvolvimento social ou, em outras
palavras, ao Estado Democrático de Direito.
A Constituição da República de 1988, no caput do seu art. 37, definiu como princípios
fundamentais da administração pública a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a
publicidade e a eficiência. Esses princípios constitucionais orientadores da administração
pública representam verdadeira garantia em favor da sociedade e seus cidadãos, possibilitando o
bom trato da coisa pública no interesse coletivo e na sua defesa contra possíveis governos
déspotas, arbitrários e/ou corruptos, devendo, pois, também serem observados na contratação de
funcionários no serviço público.
Como tivemos oportunidade de observar no item 2.2.3, o princípio da moralidade
administrativa é autônomo em relação ao princípio da legalidade, não obstante a estreita relação
operacional entre ambos, estando aquele relacionado à necessidade de imposição de limites aos
agentes públicos na realização das atividades administrativas, inclusive as discricionárias,
evitando o desvio de poder, de finalidade ou de regramento moral.
Nesse contexto, o nepotismo afronta os princípios constitucionais da igualdade, da
moralidade e da impessoalidade, haja vista que a nomeação de cônjuges, companheiros ou
parentes, consangüíneos (em linha reta ou colateral, até o terceiro grau) ou por afinidade (em
linha reta até o terceiro grau, ou em linha colateral ao segundo grau) dos agentes públicos
para cargos comissionados ou de contratação temporária, quando esta não for precedida de
processo seletivo), se contrapõe à conduta moral esperada do homem público, assim como à
impessoalidade natural às relações públicas.
207
As mesmas violações ocorrem quando da prática do transnepotismo ou, do chamado
nepotismo cruzado, caracterizado pela reciprocidade, pela troca de favores entre os órgãos e
Poderes na contratação de parentes dos agentes públicos, como ocorre na hipótese de um agente
político contratar um parente de um amigo, companheiro ou partidário para a ocupação de cargo
comissionado em seu gabinete e vice-versa.
No Brasil, o fenômeno do nepotismo é identificado com a contratação de parentes de
agentes públicos para aqueles cargos em cujo provimento a Constituição da República,
excepcionalmente, dispensa a realização de concurso público, utilizando-se do provimento de
cargos em comissão, funções de confiança e empregos sujeitos à contratação temporária para
privilegiar os parentes mais próximos.
Portanto, a compreensão histórica do nepotismo no Brasil também merece algumas
considerações. Vejamos, a seguir, os aspectos mais importantes a serem ressaltados.
2.3.4.1. O nepotismo e suas raízes patrimoniais
Já verificamos também, quando da abordagem do item 1.2.2. deste trabalho, que o
Estado patrimonial, sendo responsável pela solução de todos os problemas particulares e
resolução de todos os anseios pessoais dos indivíduos, se valeu do recurso ao empreguismo com
o objetivo da manutenção e perpetuação no poder.
O cargo público passou a ser objeto de cobiça individual generalizada. Ávidos pelo ócio,
os indivíduos passaram a ter seus interesses voltados à ocupação de funções públicas. Nesse
contexto, a ocupação dos melhores e superiores cargos públicos por cônjuges, companheiros ou
parentes das autoridades passou a ser prática corriqueira e socialmente aceita em Portugal como
no Brasil. A aquisição de rendas, lícitas e ilícitas, ambas decorrentes do exercício das
respectivas prerrogativas públicas, também era um dos motivos da cobiça. A idéia de eficiência,
interesse coletivo e fins públicos era estranha ao serviço público, que representava, nesses casos,
uma aparente sucessão hereditária.
208
O Estado patrimonial se conforma como uma fabulosa fábrica de cabide de empregos,
disponibilizando os melhores cargos e funções públicas aos parentes mais próximos do poder da
autoridade. Tudo era possível, inclusive, a acumulação ou a venda de cargos. O servidor público
vira sinônimo de ociosidade, benefícios, privilégios, vida fácil, suborno e corrupção.
Aliás, estudos recentes sobre o fenômeno da corrupção no Brasil, têm constatado no uso
comum das relações pessoais, amizades e parentescos, como instrumentos potenciais da
apropriação da coisa pública
271
. O nepotismo, portanto, é mais um dos produtos do Estado
patrimonial que ainda prevalece no Brasil de nossos dias.
O nepotismo, o clientelismo, o patronato, enfim, práticas diversas resultantes desta
cultura de favorecimentos pessoais, todas opostas à objetividade, à eficiência e à
impessoalidade, demonstram que historicamente os acessos aos cargos públicos no Brasil
decorrem de relações íntimas e concessões de favores particulares. Nesse sentido, Manos
Guedes Veneu observa que:
(...) procedimentos impessoais, racionalmente orientados e sistematizados, da capacitação
técnica e do mérito como condições formais de emprego, da separação estrita entre o cargo
e seu ocupante, encontramos a predominância das relações pessoais e das decisões
arbitrárias, e influência dos políticos nas designações, os “cabides de emprego”. Os
informantes foram unânimes em afirmar a importância, em maior ou menor grau, do
apadrinhamento por “pistolões”, para ocupação de cargos de chefia e a ascensão na
carreira.
272
A partir dessa realidade patrimonialista, familiar e quase que hereditária, a indistinção
entre os interesses públicos e os interesses privados foi uma constante nacional. A confusão
entre o público e o privado, a promiscuidade entre as ações da vida particular e as atividades
oficiais da vida pública, uma simbiose das relações pessoais e públicas demonstram
visivelmente que o nepotismo era (é) somente mais uma prática das destinadas ao
fortalecimento de uma rede de benefícios pessoais entre familiares.
271
BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre o poder público e relações sobre o poder blico e
relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ANPOSC, 1995. p. 50-52.
272
VENEU, Manos Guedes. Representações do funcionário público. in Revista de Administração Pública. Rio de
Janeiro, V. 24 º 01, nov. 1989 – jan. 1990. p. 10.
209
Ocorre que, ainda hoje, as contratações para a ocupação de cargos comissionados ou de
contratação temporária, via de regra, não guardam relação com a eficiência dos serviços
públicos, representando prerrogativas no interesse pessoal de parentes, amigos e partidários. Os
cargos públicos acabam sendo utilizados como instrumentos particulares, alcançando no
nepotismo uma fórmula avassaladora: os principais cargos e funções públicas são destinados,
muitas vezes, a cônjuges, filhos, irmãos, tios, primos, etc.
Dito de outra forma, o implemento de uma ética patrimonial voltada essencialmente para
construção de valores individuais, sem a experiência das liberdades públicas e das garantias
sociais, criou um ambiente propício ao desenvolvimento do nepotismo e sua cultura de
favorecimento familiar.
Assim, sendo regra no ordenamento constitucional a contratação através de concurso
público, fraudadas ou burladas as exceções constitucionais previstas, respectivamente, no inciso
II, parte final, e inciso IX, ambos do art. 37 da Constituição da República, restará configurada a
violação aos princípios constitucionais da moralidade administrativa e da impessoalidade,
evidenciado também o respectivo ato de improbidade administrativa (inciso V, art. 11, LIA).
Tanto as contratações temporárias, cabíveis exclusivamente nas hipóteses excepcionais,
como as nomeações para cargos comissionados, destinados às atribuições de direção, chefia e
assessoramento, deverão observar o comando constitucional oriundo do princípio da moralidade
administrativa, não mais se admitindo a utilização de cargos públicos como instrumentos
particulares, em flagrante afronta à regra constitucional da seleção pública, pautada pela
impessoalidade e pela escolha dos indivíduos mais eficientes e habilitados.
Não raras vezes, as contratações temporárias são reeditadas para consolidação contínua
das fraudes arquitetadas. De outro lado, os cargos em comissão ocupados por parentes, amigos e
partidários, em muitos casos, não guardam as características constitucionais, destinando-se para
o desempenho de atividades ordinárias, cotidianas, características do desempenho de cargos de
210
provimento efetivo, o que poderá incidir em grave violação ao princípio constitucional da
moralidade administrativa.
Como se vê, o fenômeno do nepotismo também encontra sua origem nas “raízes
patrimonialistas”, representando o cargo público, para muitos, legítima propriedade particular.
Para os parentes mais próximos e correligionários importantes, é necessário destinar os
melhores cargos de chefia e de comissão; para os mais modestos amigos e fiéis eleitores,
basta a promessa de um cargo público temporário, não importando a gratificação.
O nepotismo também possui uma característica relacional importante. Essa relação
pessoal é assimétrica e tem significado simbólico preponderante, onde o “grande chefe”,
detentor do poder e do prestígio, favorece aos seus parentes, cônjuge, filhos, irmãos, tios,
primos etc; como forma de retribuição e de proteção aos seus queridos, concedendo-lhes uma
garantia para percepção de recursos públicos e manutenção da própria sobrevivência.
Essa realidade, portanto, se contrapõe aos comandos constitucionais, violando os
princípios da impessoalidade e da moralidade, não sendo aceitável o discurso hipócrita e
dissimulado no sentido da descriminação da restrição à nomeação de parentes, com base no
princípio da igualdade. Aliás, aos meritórios e competentes parentes de autoridades e de
detentores do poder político, o concurso público será o livre acesso à condição escolhida,
respeitados os ditames constitucionais e resguardos os interesses públicos de transparência, de
eficiência e de seleção, evitando-se, ainda, a suspeição daqueles em relação ao favorecimento
indevido ou às eventuais práticas obscuras de corrupção.
É a partir da penetração da influência familiar no processo de ingresso do parente
favorecido na atividade pública que se constata a quebra da impessoalidade e da moralidade
administrativa, que se imiscuem as searas privada e pública, que se atenta contra a isonomia dos
administrados, ignorando-se os critérios de eficiência, competência e produtividade.
Assim, o enfrentamento das práticas relacionadas ao nepotismo se faz necessário e
urgente, especialmente pelo fato de se transmutarem com o passar do tempo em outras formas e
211
variações, criando novas relações pessoais e de dependência. Foi com esse objetivo que o
Ministério Público catarinense editou o Programa de Combate ao Nepotismo Público no Estado
de Santa Catarina, como veremos no próximo item.
2.3.4.2. O programa de combate ao nepotismo em Santa Catarina
O Ministério Público do Estado de Santa Catarina, ainda no ano de 2006, por intermédio
do Centro de Apoio Operacional da Moralidade Administrativa, lançou o Programa de Combate
ao Nepotismo no Serviço Público no Estado de Santa Catarina, verificando, após levantamento
das informações, que a prática do nepotismo era comum em mais de 80% dos municípios
catarinenses.
O programa não se originou exclusivamente do entendiemnto institucional, encontrando
amparo em decisões do próprio Poder Judiário brasileiro, que de forma responsável, por todas as
suas instâncias, já vem combatendo a prática nepótica.
Verificaram-se, sobretudo em flagrante abuso, as exceções constitucionais previstas
respectivamente no inciso II, parte final, e inciso IX, ambos do art. 37 da Constituição da
República, que o preenchimento dos cargos de confiança e de contratação por tempo
determinado têm servido, em muitos casos, para aumentar a renda familiar e perpetuar o poder
dentro do seguimento familiar daqueles que detêm o poder de nomear.
Assim, e considerando ainda os seguintes argumentos: a) a necessidade de firmar
obediência aos princípios constitucionais estabelecidos no art. 37 da Constituição República; b)
que a prática do nepotismo no serviço público importa ofensa direta aos princípios da isonomia,
da impessoalidade e da moralidade; c) que o teor da Resolução 7, de 18 de outubro de 2005,
do Conselho Nacional de Justiça, e da Resolução 1, de 7 de novembro de 2005, do Conselho
Nacional do Ministério Público, e de seus respectivos enunciados, proíbem a prática do
nepotismo, todas referendadas pelo Supremo Tribunal Federal (Ação Declaratória de
Constitucionalidade 12, em 16 de fevereiro de 2006); d) que, de acordo com a jurisprudência
atual do Supremo Tribunal Federal, os fundamentos de decisões tomadas em sede de controle
212
concentrado de constitucionalidade são tão vinculantes quanto seus dispositivos, e deles
inseparáveis, como se pode aferir da decisão do mesmo Pretório na Reclamação 2986/SE; e
e) que a referida decisão proferida na ADC n.º 12, têm eficácia geral e “efeito vinculante
relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta,
nas esferas federal, estadual e municipal” (CR, art.102, §2º), o Ministério Público, através dos
seus respectivos representantes, propôs os correlatos termos de ajustamento de conduta (TAC),
objetivando, no âmbito dos Poderes Executivos e Legislativos municipais, regularizar as
hipóteses de nepotismo e nepotismo cruzado constatadas no Estado de Santa Catarina, sem
prejuízo, em caso de recusa da proposta, da interposição das ações civis públicas cabíveis.
Nesse contexto, os Promotores de Justiça catarinenses logram êxito em firmar termos de
ajustamento de conduta com 100 (cem) Prefeituras e 88 (oitenta e oito) Câmaras de Vereadores
para acabar com a prática de nepotismo nos municípios catarinenses, interpondo judicialmente
ações civis públicas contra 35 (trinta e cinco) Prefeituras e 17 (dezessete) Câmaras de
Vereadores. Dados estes parciais e relativos até o dia 29 de agosto de 2008.
273
Posteriormente, considerando especialmente a edição da Súmula Vinculante 13 do
STF
274
, o Ministério Público catarinense resolveu expedir uma importante
“Recomendação/Orientação” Nota Técnica n. 001/2008 PGJ/CMA/SC, com o objetivo de
recomendar e prestar orientações aos agentes públicos e dirigentes de entidades, órgãos públicos
e Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para que promovam a exoneração de todos os
ocupantes de cargos em comissão, de confiança ou funções gratificadas que sejam cônjuges,
companheiros ou que detenham relação de parentesco consangüíneo, em linha reta ou colateral,
ou por afinidade, até o terceiro grau, com a respectiva autoridade nomeante, detentor de
mandato eletivo ou servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou
assessoramento, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, da seguinte forma:
273
Fonte: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br>. Acesso em
29/08/2008.
274
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n° 13 do STF, publicada no Diário da Justiça
Eletrônico (DJE) nº 162/2008, em 29/08/2008.
213
QUANTO AOS CARGOS EM COMISSÃO EXERCIDOS POR AQUELES QUE
NÃO TENHAM SIDO APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO, SENDO
ESTRANHOS AOS QUADROS FUNCIONAIS DO PODER OU DA INSTITUIÇÃO
Qualquer pessoa que esteja no exercício de cargo em comissão não integrante do quadro
efetivo do poder ou da instituição o pode ser nomeada ou continuar a exercer o cargo,
caso seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o
terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante, de detentor de mandato eletivo ou de
membro de referido poder ou instituição, e ainda de servidor da mesma pessoa jurídica,
ocupante de cargo de direção, chefia ou assessoramento, de acordo com a Súmula
Vinculante n. 13.
No Executivo: do Governador, do Vice-Governador; de Secretário de Estado; do
Procurador-Geral do Estado; do Prefeito, Vice-Prefeito, Presidente; Vice-Presidente de
autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista, no âmbito da
Administração Direta, indireta ou fundacional do respectivo Poder Executivo e também de
servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou
assessoramento;
No Legislativo: do Presidente, do Deputado, do Vereador e também de servidor deste Poder
investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento (exemplo: não pode nomear pessoa
irmão do Diretor-Geral da Câmara);
No Tribunal de Justiça: do Presidente, do Desembargador, do Juiz de Direito e também de
servidor deste Poder investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento;
No Ministério Público: do Procurador-Geral, do Procurador de Justiça, do Promotor de
Justiça e também de servidor desta Instituição investido em cargo de direção, chefia ou
assessoramento; e
No Tribunal de Contas: do Presidente, do Conselheiro, e também de servidor desta
Instituição investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento.
QUANTO AOS CARGOS COMISSIONADOS OCUPADOS POR PESSOAS
CONCURSADAS DO PODER OU DA INSTITUIÇÃO E AS FUNÇÕES DE
CONFIANÇA
Nesses casos, quando a pessoa exerce cargo em comissão e também é ocupante de cargo
efetivo do respectivo poder ou da instituição ou exerce função de confiança (ocupado
exclusivamente por servidores efetivos art. 37, V, da CF), fica vedada a designação, caso
haja subordinação hierárquica com a autoridade nomeante, com detentor de mandato eletivo
ou membro do respectivo poder ou instituição, ou se subordinado ainda a parente seu
ocupante de cargo de direção, chefia ou assessoramento. Concluindo, a nomeação não pode
se efetivar quando a pessoa designada possuir relação de parentesco com o agente público
determinante da incompatibilidade.
QUANTO ÀS CONTRATAÇÕES TEMPORÁRIAS
214
Sendo casos regulares de contratação temporária, ou seja, para atender à necessidade de
excepcional interesse público e devidamente previsto em lei, não se configura nepotismo
quando a contratação de parente houver sido precedida de regular processo seletivo.
QUANTO À TERCERIZAÇÃO
Embora não haja previsão expressa na Súmula Vinculante n. 13, do STF, também se
configura nepotismo e afronta aos princípios constitucionais da moralidade e
impessoalidade a contratação por meio de empresa terceirizada, de cônjuge, companheiro
ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau de autoridade,
membro ou detentor de mandato eletivo do poder ou instituição.
QUANTO AO NEPOTISMO CRUZADO
A Súmula Vinculante incluiu, ainda, a vedação em relação ao nepotismo cruzado, o qual se
estabelece quando a contratação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta,
colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de outra autoridade, configurarem
ajustes mediante designações recíprocas para cargo em comissão de qualquer órgão da
Administração Pública, direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios.
275
A relevância e o sucesso do programa merecem destaque, não só pelo eficiente e
imediato combate à prática do nepotismo, mas, principalmente, pela atuação preventiva, social e
política da Instituição que objetivou regularizar voluntariamente as situações antes de expô-las
ao Poder Judiciário.Vejamos, agora, como o Supremo Tribunal Federal se posicionou a respeito
das práticas de nepotismo junto à administração pública.
2.3.4.3. O nepotismo e a Súmula Vinculante nº 13, do STF
Antes de analisarmos o significado da revolucionária Súmula Vinculante 13 do STF,
que consolidou o entendimento sobre a prática imoral do nepotismo, proibindo-o nos três
poderes da União, cumpre verificar seu histórico antecedente.
Inicialmente, convém reconhecer que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em
18 de outubro de 2005, no âmbito do Poder Judiciário, a Resolução 07
276
, disciplinando o
275
Fonte: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br>. Acesso em
17/09/2008.
276
BRASIL. CNJ. Resolução 7, de 18 de Outubro de 2005 (Atualizada com a Redação da Resolução
09/2005 e 21/2006). Segunda, 27 de Novembro de 2006. Disciplina o exercício de cargos, empregos e funções
215
por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e
assessoramento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário e dá outras providências.
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições,
CONSIDERANDO que, nos termos do disposto no art. 103-B, § 4
°
, II, da Constituição Federal, compete ao
Conselho zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de oficio ou mediante provocação, a legalidade dos atos
administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar
prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei;
CONSIDERANDO que a Administração Pública encontra-se submetida aos princípios da moralidade e da
impessoalidade consagrados no art. 37, caput, da Constituição;
RESOLVE:
Art. É vedada a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário, sendo nulos os atos
assim caracterizados.
Art. 2° Constituem práticas de nepotismo, dentre outras:
I - o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada
Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro
grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;
II - o exercício, em Tribunais ou Juízos diversos, de cargos de provimento em comissão, ou de funções gratificadas,
por cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de
dois ou mais magistrados, ou de servidores investidos em cargos de direção ou de assessoramento, em
circunstâncias que caracterizem ajuste para burlar a regra do inciso anterior mediante reciprocidade nas nomeações
ou designações;
III - o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada
Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro
grau, inclusive, de qualquer servidor investido em cargo de direção ou de assessoramento;
IV - a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público,
de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos
respectivos membros ou juízes vinculados, bem como de qualquer servidor investido em cargo de direção ou de
assessoramento; V - a contratação, em casos excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, de pessoa
jurídica da qual sejam sócios cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral até o terceiro grau,
inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, ou servidor investido em cargo de direção e de
assessoramento.
§ Ficam excepcionadas, nas hipóteses dos incisos I, II e III deste artigo, as nomeações ou designações de
servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo das carreiras judiciárias, admitidos por concurso público,
observada a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem, a qualificação profissional do servidor e a
complexidade inerente ao cargo em comissão a ser exercido, vedada, em qualquer caso a nomeação ou designação
para servir subordinado ao magistrado ou servidor determinante da incompatibilidade. (Redação dada pela
Resolução nº 21/2006)
§1º Ficam excepcionadas, nas hipóteses dos incisos I, II e III deste artigo, as nomeações ou designações de
servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo das carreiras judiciárias, admitidos por concurso público,
observada a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem, ou a compatibilidade da atividade que lhe
seja afeta e a complexidade inerente ao cargo em comissão a ser exercido, além da qualificação profissional do
servidor, vedada, em qualquer caso, a nomeação ou designação para servir subordinado ao magistrado ou servidor
determinante da incompatibilidade.
§ A vedação constante do inciso IV deste artigo não se aplica quando a contratação por tempo determinado para
atender a necessidade temporária de excepcional interesse público houver sido precedida de regular processo
seletivo, em cumprimento de preceito legal.
Art. 3º São vedadas a contratação e a manutenção de contrato de prestação de serviço com empresa que tenha entre
seus empregados cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, ao terceiro grau,
inclusive de ocupantes de cargos de direção e de assessoramento, de membros ou juízes vinculados ao respectivo
Tribunal Contratante. (Redação dada pela Resolução nº 09/2005)
Art. É vedada a manutenção, aditamento ou prorrogação de contrato de prestação de serviços com empresa que
venha a contratar empregados que sejam cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por
afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de ocupantes de cargos de direção e de assessoramento, de membros ou
216
exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados
e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, vedando expressamente a
prática do nepotismo. No mesmo sentido, a Resolução nº 01
277
, do Conselho Nacional do
juízes vinculados ao respectivo Tribunal contratante, devendo tal condição constar expressamente dos editais de
licitação.
Art. O nomeado ou designado, antes da posse, declarará por escrito não ter relação familiar ou de parentesco
que importe prática vedada na forma do artigo 2°
Art. 5
°
Os Presidentes dos Tribunais, dentro do prazo de noventa dias, contado da publicação deste ato,
promoverão a exoneração dos atuais ocupantes de cargos de provimento em comissão e de funções gratificadas, nas
situações previstas no art. 2°, comunicando a este Conselho.
Parágrafo único Os atos de exoneração produzirão efeitos a contar de suas respectivas publicações.
Art. O Conselho Nacional de Justiça, em cento e oitenta dias, com base nas informações colhidas pela Comissão
de Estatística, analisará a relação entre cargos de provimento efetivo e cargos de provimento em comissão, em
todos os Tribunais, visando à elaboração de políticas que privilegiem mecanismos de acesso ao serviço público
baseados em processos objetivos de aferição de mérito.
Art. 7° Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Ministro NELSON JOBIM. Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=101&Itemid=160>. Acesso em
10/09/2008.
277
BRASIL. CNMP. RESOLUÇÃO N.º 1, de 7 de novembro de 2005
Disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de membros do
Ministério Público e dá outras providências.
O Conselho Nacional do Ministério Público, no exercício da competência fixada no art. 130-A, § 2.º, inciso II, da
Constituição da República e com arrimo no art. 19 do seu Regimento Interno, conforme decisão plenária tomada
em sessão realizada nesta data;
CONSIDERANDO a existência de parentes de membros do Ministério Público
ocupando cargos de provimento em comissão da estrutura de órgãos do Ministério
Público da União e dos Estados;
CONSIDERANDO os princípios constitucionais da isonomia e, especialmente, da moralidade e da impessoalidade;
CONSIDERANDO que tais princípios impossibilitam o exercício da competência administrativa para obter
proveito pessoal ou qualquer espécie de favoritismo, assim como impõem a necessária obediência aos preceitos
éticos, principalmente os relacionados à indisponibilidade do interesse público;
CONSIDERANDO que nepotismo é conduta nefasta que viola flagrantemente os princípios maiores da
Administração Pública e, portanto, é inconstitucional, independentemente da superveniente previsão legal, uma vez
que os referidos princípios são auto-aplicáveis e não precisam de lei para ter plena eficácia.
RESOLVE:
Art. . É vedada a nomeação ou designação, para os cargos em comissão e para as funções comissionadas, no
âmbito de qualquer órgão do Ministério Público da União e dos Estados, de cônjuge, companheiro ou parente até o
terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros.
Art. 2º. A proibição não alcança o servidor ocupante de cargo de provimento efetivo dos quadros do Ministério
Público, caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação para servir junto ao membro determinante da
incompatibilidade.
Art. . Não serão admitidas nomeações no âmbito dos órgãos do Ministério Público que configurem reciprocidade
por nomeações das pessoas indicadas no art. para cargo em comissão de qualquer órgão da Administração
Pública, direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Art. . Os órgãos do Ministério Público não poderão contratar empresas prestadoras de serviços que tenham como
sócios, gerentes ou diretores as pessoas referidas no art. 1º.
Parágrafo único. As pessoas referidas no art. que, eventualmente, sejam empregadas das prestadoras de serviços
não poderão ser lotadas nos órgãos do Ministério Público.
Art. 5º. Os atuais ocupantes de cargos comissionados e funções gratificadas em
217
Ministério Público (CNMP), que disciplinou o exercício de cargos, empregos e funções por
parentes, cônjuges e companheiros de membros do Ministério Público brasileiro.
Após a edição da primeira resolução, a Associação Brasileira de Magistrados (AMB),
ajuizou uma ação declaratória de constitucionalidade em favor da Resolução 7 do CNJ. Em
julgamento relevante, datado de 18 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal concedeu
a medida cautelar para fazer valer o respectivo conteúdo normativo, considerando que o
nepotismo deve ser abolido não no âmbito do Poder Judiciário, mas em todos os níveis de
todos os Poderes.
A decisão do STF sustenta que os princípios da impessoalidade, da igualdade, da
moralidade e da eficiência administrativa exercem uma função de limite material ao poder
discricionário do agente público de escolher e nomear seus assessores. Ou seja, o agente público
pode e deve escolher livremente seus assessores, todavia dentro dos limites constitucionais
adequados, não sendo admissível a indicação de cônjuge, companheiro, filhos, irmãos, enfim,
parentes, uma vez que a escolha, nesses casos, é viciada na origem, haja vista o relacionamento
afetivo e pessoal existente.
Como é de conhecimento, com a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de
2004, passou a vigorar no Brasil o instituto da Súmula Vinculante, com o objetivo de vincular as
decisões relevantes do STF em relação aos demais órgãos de todos Poderes e esferas. Foi assim
que foi aprovada e publicada a Súmula Vinculante n° 13 do STF, verbis:
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade,
até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa
jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo
em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública
desacordo com o disposto no artigo 1.º serão exonerados no prazo de 60 dias.
Art. 6º. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Belo Horizonte, 7 de novembro de 2005.
ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA
PRESIDENTE. Fonte: Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Disponível em:
<http://www.cnmp.gov.br/conselhos/cnmp/legislacao/resolucoes/pdfs-de-Resolucoes/res_cnmp_01_2005_11_07>.
Acesso em 10/09/2008.
218
direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição
Federal.
278
Servindo de referência normativa máxima contra o fim do fenômeno do nepotismo no
Brasil, a revolucionária Súmula Vinculante nº 13 consolida seu fundamento constitucional
justamente na inserção constitucional do princípio da moralidade administrativa, com destaque
idêntico ao princípio da impessoalidade.
A súmula estendeu seus efeitos a todos os órgãos da administração pública brasileira,
que, a partir do dia 29 de agosto de 2008, passaram a ter a obrigação de prover os respectivos
cargos em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada, devendo também serem
incluídas as contratações temporárias, de acordo com o comando constitucional, sendo vedada
expressamente a contratação de parentes.
A proibição alcança os parentes por afinidade até o grau, inclusive, nos casos de
nepotismo cruzado ou transnepotismo, com nomeações mediante designações recíprocas. Não
se refere, porém, à ocupação de cargos de provimento efetivos, limitando-se às exceções
constitucionais de investidura às cargos públicos (inciso II, parte final, e inciso IX, art. 37, CR)
em comissão, de comissão, de função gratificada ou por tempo determinado.
Ante todo o exposto, e considerando a evolução da jurisprudência pátria no sentido da
proibição de práticas relacionadas ao nepotismo junto às atividades públicas, a partir da inserção
e da operatividade constitucional do princípio da moralidade administrativa no ordenamento
jurídico pátrio, a Súmula Vinculante 13 do STF representa um marco histórico e talvez
determinante, no caminho do fortalecimento do Estado Democrático de Direito e,
conseqüentemente, da democracia e dos direitos fundamentais.
No próximo Capítulo, serão verificados os instrumentos constitucionais disponibilizados
para o enfrentamento da problemática da corrupção nacional, destacando-se o papel primordial
278
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n° 13 do STF, publicada no Diário da Justiça
Eletrônico (DJE) nº 162/2008, em 29/08/2008.
219
do Ministério Público como órgão garantidor dos direitos fundamentais. Será também abordada
a necessidade da repressão efetiva aos atos de corrupção, sob pena da reinante impunidade e,
por fim, a importância das ações preventivas e da educação das gerações novas para mudança
paulatina do processo cultural brasileiro.
220
CAPÍTULO III: INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS NO COMBATE À
CORRUPÇÃO
3.1. Ministério Público e combate à corrupção
Cumpre identificar neste Capítulo, a importância do Ministério Público no efetivo
combate aos atos de corrupção ou atos de improbidade administrativa, a partir da realização dos
direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Considera-se, para tanto,
a intervenção extrajudicial e judicial do Ministério Público em setores áridos e tradicionalmente
alheios as suas funções originais, anteriores ao atual texto constitucional, que tem na
operatividade do princípio da moralidade administrativa uma das suas mais desafiadoras tarefas.
Com o desenvolvimento da cultura da corrupção nacional, com origem no Estado
patrimonial português, acrescido ao fenômeno da chamada globalização, com interferência
direta na estruturação mundial do poder econômico e do poder de informação, e com o aumento
da exclusão social de grande parte da população brasileira, resta demonstrada a urgência e a
relevância da garantia do órgão do Ministério Público como principal instrumento de combate à
corrupção.
É bom recordar que o Estado patrimonial se estrutura a partir de estratégias
metodicamente arquitetadas para perpetuação do poder, com a distribuição de privilégios,
favores, regalias e benefícios diversos, razão de seu profundo desprezo pelo direito, que o
limita. Hoje, com o Neoconstitucionalismo, as constituições possuem um papel fundamental,
que estabelece obrigatoriamente limites aos poderes de Estado, independente das deliberações
da minoria dominante, da maioria manipulada ou do interesse do mercado globalizado.
Como ensina Mário Soares
279
, a intervenção do Ministério Público num Estado
Constitucional de Direito Democrático não se legitima unicamente na observância da vontade
279
CLUNY, António. Pensar o ministério público hoje. Lisboa: Edições Cosmos, 1997, p. 16. apud SOARES,
Mário. Discurso de abertura do ano judicial em Portugal, 18 de janeiro de 1995. In Revista do Ministério Público
67: As democracias modernas, as sociedades mediatizadas do nosso tempo, não se baseiam na
221
da maioria, mas também no respeito ao conteúdo do texto constitucional, importante espaço de
debate e de consenso entre maiorias e minorias.
Mais do que a constatação do comando constitucional no sentido da atuação social e
política do Ministério Público, verificam-se, hoje, a urgência e a necessidade de sua
participação, haja vista o caos e a atual crise de nossas instituições. A relevância dessa
interferência, verdadeira garantia para efetividade ao combate à corrupção e ao crime
organizado, vem causando forte resistência à atuação independente do Ministério Público
brasileiro. Longe de se admitir uma espécie de populismo do Ministério Público e
considerando a flagrante omissão intencional do Estado patrimonial –, a materialização dos
direitos fundamentais deve ser observada através da consolidação dos direitos sociais difusos e
coletivos, inseridos no texto constitucional, com especial destaque para a operatividade do
princípio constitucional da moralidade administrativa no efetivo combate à corrupção.
Os ataques e as resistências à atuação do Ministério Público são decorrentes do saldo
positivo de sua interferência eficiente no combate à corrupção institucionalizada. Os ataques no
sentido do excesso ou abuso de poder e da exibição pessoal por parte de determinados membros
da Instituição casos excepcionais fazem parte da estratégia para a inibição e
enfraquecimento do Parquet. Com bem pondera Maria Teresa Sadek
280
: Os prefeitos hoje em
dia temem de tal forma o Ministério Público que a probidade administrativa aumentou. Por
quê? Eles sabem que, se cometerem desvios, poderão ser denunciados. um integrante do
Ministério Público em cada município.
281
representatividade dos parlamentos e dos outros órgãos de soberania, eleitos por sufrágio universal, e nos órgãos de
poder derivado, legitimados na eleição indireta, na transitoriedade de funções e no controle político democrático.
Baseiam-se também, significativamente, na importância decisiva do Direito, postulando a subordinação de todo o
poder político à Constituição, encarada não apenas como quadro referencial da organização e das relações dos
diversos poderes do estado, mas também, como verdadeira garantia, com força normativa, dos direitos e liberdades
do cidadão.
280
Mestre, doutora em Ciência Política e professora do Programa de Ciência Política da Universidade de São
Paulo (USP).
281
Entrevista concedida à Revista Época em 15/03/2008, Edição nº 513. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EDG82364-9556,00.html
222
A atuação do Ministério Público, judicial ou extrajudicialmente, verifica-se como uma
das formas talvez a mais eficiente de interagir os atores políticos, ampliando o debate
democrático e o conteúdo dos princípios e dos direitos fundamentais previstos na Constituição.
Como bem proclama Eduardo Appio: A Constituição é, justamente, o espaço das diferenças,
da tolerância necessária à convivência dos diversos segmentos da população”.
282
A interferência do Ministério Público no rigoroso combate à corrupção e ao crime
organizado e, em conseqüência, na defesa da ordem jurídica constitucional e no resgate do
regime democrático, é instrumento constitucional necessário e valioso para punição de corruptos
e de corruptores, assim como para a inauguração de um novo processo educativo de consciência
cidadã e participação popular determinante.
Entre suas funções institucionais encontra-se a promoção do inquérito civil
(investigação) e da ação civil pública para defesa e garantia do patrimônio público e social, do
meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, entre os quais pode ser enquadrado o
princípio constitucional (direito e garantia) da moralidade administrativa. Isso por que o órgão
do Ministério Público, a par da amplitude de seu conceito e área de atuação estabelecida no art.
127 da Constituição da República, tem, dentre outras funções institucionais outorgadas por esta,
àquelas contidas no inciso III do art. 129, CR.
Como se vê, como a cristalinidade da água que brota da rocha, é a própria Constituição
da República, em seu inciso III, art. 129, que determina ao Ministério Público o dever de zelar
pelo patrimônio público e social, pelo meio ambiente e por outros interesses difusos e coletivos,
promovendo, para tanto, o inquérito civil e a ação civil pública.
Irrefratável a legitimidade do Ministério Público para promover as medidas judiciais e
extrajudiciais cabíveis, para o cumprimento das promessas sociais, difusas e coletivas previstas
na Constituição e, em especial, no combate efetivo contra a corrupção institucionalizada. A
282
APPIO, Eduardo. Obra citada. p. 21.
223
razão dessa legitimação encontra-se edificada no interesse público primário, servindo como
importante garantia para efetivação dos próprios direitos fundamentais.
No paradigma garantista, o Ministério Público assume posição diversa da tradicional,
passando a tutelar não somente a formalidade, mas, essencialmente, a efetivação do conteúdo do
texto constitucional, através do necessário combate à corrupção e do urgente enfrentamento ao
crime organizado.
É a partir dessa nova compreensão de Ministério Público instrumental do Estado
Democrático de Direito e, por assim dizer, do reconhecimento de suas atribuições
constitucionais de garantidor do princípio constitucional (direito e garantia) da moralidade
administrativa, que é preciso operacionalizar o combate à corrupção, investigando e punindo
efetivamente corruptos e corruptores, ajudando a construir uma nova consciência cultural da
probidade e da moralidade a partir dos próprios cidadãos brasileiros.
Com efeito, essa oxigenação constitucional pressupõe a compreensão hermenêutica da
própria Constituição, principalmente em face da Constituição da República de 1988, que
estipulou diversas garantias e direitos no âmbito social e coletivo anteriormente relegados ao
esquecimento ou à inexistência, como ocorre com a educação, saúde, trabalho, moradia, lazer,
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos
desamparados, dentre outros direitos fundamentais; redundando, pois, na supressão e na
relativização de liberdades, de garantias e mesmo de direitos tradicionalmente intocáveis.
283
283
Lembre-se que a Constituição Federal foi editada em 1988 e a Saúde e Educação são simulacros de realidade;
promessas mitigadas por uma hermenêutica excludente. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m)
Crise..., p.219, é claro: Cometendo infidelidades dogmáticas, que se ter claro, por exemplo, que, no campo da
aplicabilidade das normas constitucionais, não um dispositivo que seja, em si mesmo, programático ou de
eficácia contida ou limitada, como quer o discurso jurídico dominante. Ora, um dispositivo terá ou não determinada
eficácia a partir do processo de produção de sentido que exsurgirá do processo hermenêutico e que dependerá do
jogo de forças de produção de sentido que se travará no respectivo campo jurídico. Esse processo de produção do
sentido agrega o processo de circulação e do consumo desse mesmo sentido no interior da comunidade jurídica.
224
O modelo garantista de legitimidade compreende o direito, o Estado e, por
conseqüência, o Ministério Público, como instrumentos de consecução, com o objetivo de
alcançar os fins primordiais vinculados aos interesses dos cidadãos. uma evidente ligação
entre a força normativa da Constituição e os direitos fundamentais, não se limitando a atuação
do Ministério Público ao plano normativo, alcançando, pois, a luta social (fática e política), para
defender, garantir, assegurar e implementar efetivamente os direitos fundamentais prometidos
constitucionalmente pelo Estado Democrático de Direito.
3.1.1. O Ministério Público e o Estado Democrático de Direito
O Ministério Público brasileiro, com a nova ordem constitucional instalada a partir de
1988, foi elevado a órgão constitucional de soberania estatal, assumindo um papel determinante
no controle e na fiscalização da administração pública e do regime democrático, erigindo-se em
instrumento constitucional protetor e garantidor dos direitos fundamentais, assim como da
própria operatividade do princípio da moralidade administrativa.
O art. 127, caput, da Constituição da República, de clareza nítida e marcante, determina
que “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis.
284
Como se constata, o Ministério Público brasileiro, enquanto instrumento de garantia e de
equilíbrio à ordem jurídica e ao regime democrático, alcançou uma posição jurídico-
constitucional de importância medular para a sociedade nacional.
Abandonados os velhos dogmas positivistas e a condição “cega” de órgão acusador, uma
nova concepção se apresenta para formação do novo Estado Democrático de Direito. O
Ministério Público não é órgão judicial, muito embora exerça parcela relevante de suas funções
perante o Poder Judiciário. Independente do Executivo e do Legislativo, o Ministério Público
284
Art. 127, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.
225
adquiriu uma nova gama constitucional de atribuições, dentre as quais, a de guardião maior da
operatividade do princípio da moralidade administrativa.
Assim, é dever constitucional do Ministério Público, na concepção garantista, renunciar
à função tradicional de boca repetidora da lei ou, na concepção autopoiética, de mero
instrumento de viabilização da repressão intolerante político-ideológico do aparato Estatal.
O Ministério Público constitucional, diferente do modelo positivista tradicional, não
possui uma relação apenas formal com o texto constitucional sujeitando-se à manipulação das
classes dominantes, que dele se valem como mero instrumento de consolidação de poder. Possui
um dever ético-político de agir em nome da democracia, em busca da consolidação dos direitos
sociais, difusos e coletivos, mesmo contra a vontade da maioria ou contra os regulamentos do
mercado. Não basta, portanto, que cumpra as normas simplesmente porque existem, têm
vigência (aspecto meramente formal), ou sejam respaldadas pela maioria e pelo mercado. É
insuficiente a simples verificação do ordenamento infraconstitucional por vezes contrário à
própria Constituição. Seu poder-dever, como “defensor do povo”, é o de fazer valer o conteúdo
substancial da Constituição.
O Ministério Público vem contribuindo para a judicialização e efetivo implemento dos
direitos fundamentias. Como observa Eduardo Appio:
(...) A emergência ao poder, no país, de um partido de esquerda que declara, publicamente,
não deter condições políticas que permitam colocar em prática seus postulados de justiça
social é, também, um elemento adicional nesta nova sociedade. O crescimento do Ministério
Público após a promulgação da Constituição brasileira de 1988 representa, por fim, um
relevante fator de juricialização de muitas questões políticas.
285
Assim, e considerando a imbricação evidente entre a ordem jurídica, o regime
democrático e os direitos fundamentais, o Ministério Público se transforma em instrumento
imprescindível de garantias constitucionais e, em última análise, de resguardo e efetivação dos
direitos fundamentais. Como indica Eduardo Ritt, lembrando Sérgio Cademartori, “(...) os
285
APPIO, Eduardo. Obra citada. p. 18.
226
direitos fundamentais, positivados na ordem jurídica, são o conteúdo material da democracia e
de uma ordem materialmente justa. Sem um ou outro não haveria, em realidade, um Estado
Democrático de Direito.
286
Na perspectiva garantista, portanto, o Ministério Público pode ser considerado com
instrumento decisivo de garantias, ou mais, uma própria garantia em defesa da ordem jurídica
constitucional/fundamental extensiva a todos os Poderes e instituições. Por esse motivo, como
explica Joaquim Gomes Canotilho, a lei constitucional não é apenas como sugeria a teoria
tradicional do estado de direito uma simples lei incluída no sistema ou no complexo
normativo-estadual. Trata-se de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de
supremacia.
287
Ao Ministério Público, enquanto guardião constitucional da ordem jurídica, fica
autorizada irrestritamente a atuação para garantir efetivamente o império e a vontade da
Constituição da República, seja judicial ou extrajudicialmente. Eduardo Ritt arremata:
O Ministério Público, pois, é guardião da Lei Maior, e, por óbvio, dos princípios
democráticos que nela estão positivados, bem como dos direitos fundamentais nela
garantidos, inclusive na fiscalização do sistema de freios e contrapesos das funções estatais,
nas suas duas dimensões, ou seja, a negativa, no sentido de evitar os abusos de poder contra
os direitos fundamentais e os princípios democráticos (e contra a própria Lei Fundamental),
e a positiva, para possibilitar que o Estado, através de suas várias funções, concretize a
democracia e os mesmos direitos fundamentais.
288
Enfim, o Ministério Público aparece no sistema constitucional brasileiro como
verdadeiro garantidor da ordem jurídica, ou seja, garantidor da própria ordem constitucional,
tendo toda sua atuação orientada para prevalência do conteúdo constitucional e para que o
ordenamento jurídico num contexto geral não seja violado ou desrespeitado, por desvios ilícitos,
286
RITT, Eduardo. Obra citada. p. 154.
287
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina,
1999, p. 241.
288
RITT, Eduardo. Obra citada. p. 156.
227
abusos e desvios de poder, inclusive, pela inobservância do comando constitucional contido no
princípio da moralidade administrativa.
Está incumbido também da defesa do regime democrático, dito de outra forma, da
proteção da própria democracia substancial, buscando efetivamente na prática a consolidação
dos direitos sociais, coletivos e difusos, enfim, dos direitos fundamentais.
A obstinada tarefa da defesa do regime democrático implica consolidação dos próprios
direitos fundamentais, pressupondo condições efetivas do exercício de cidadania por partes de
todos, ou como releva Canotilho:
(...) o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjectivos de participação e
associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os
direitos fundamentais como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal
contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio
democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de
organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário,
publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjectivos e prestações sociais,
econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o
preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos.
289
Isso por que os direitos fundamentais se apresentam inseridos substancialmente no
próprio conceito de democracia, representando a defesa do regime democrático o resguardo do
próprio conteúdo normativo constitucional, ou seja, dos direitos fundamentais.
Assim, esses direitos fundamentais, finalidade precípua da democracia e da ordem
constitucional, embora previstos e reservados constitucionalmente, poderão ser efetivados a
partir da criação de garantias constitucionais, jurídicas e institucionais, que removam as
barreiras e as dificuldades do tradicionalismo jurídico formal e da prática corrupta nacional.
Conforme lembra Sérgio Cademartori, as garantias, na concepção garantista, são
consideradas como técnicas de limitação da atuação do estado no que respeita aos direitos
289
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Obra citada. p. 286.
228
fundamentais de liberdade e técnicas de implementação daquela mesma ação no que diz
respeito aos direitos sociais.
290
Visto dessa forma, o Ministério Público é, portanto, verdadeira garantia constitucional
da sociedade brasileira, haja vista que constitucionalmente determinado à defesa,
implementação e consolidação da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos
fundamentais. Nesse sentido, Eduardo Ritt observa:
Não dúvida que para garantir os direitos fundamentais, fim último da democracia e da
ordem constitucional, obriga-se o Estado a criar garantias jurídicas e institucionais,
instituídas contra os poderes e contra as maiorias, justamente o papel do Parquet nacional.
Trata-se de órgão de fiscalização e controle, em benefício da ordem jurídica, da democracia
e dos direitos fundamentais. É, pois, garantia constitucional do cidadão.
291
Note-se a grandeza e a dificuldade da tarefa constitucional do Ministério Público,
enquanto instrumento e garantia maior de todo sistema constitucional pátrio. Com a corrupção
generalizada e os padrões éticos comprometidos, o Estado Democrático de Direito ainda não
teve vez. O caminho a percorrer em busca desse ideário é longo e tortuoso. Combater a chaga da
corrupção, muito mais do que as reiteradas edições de normas repressivas, depende
inevitavelmente de um processo de conscientização social, sendo preponderante nessa
construção a atuação garantidora do Ministério Público, no sentido da efetivação prática e
urgente dos princípios e garantias constitucionais.
Ocorre que a Constituição da República, ao estabelecer princípios e garantias valorativas
incidentes na atividade estatal e, conseqüentemente, no controle (limites) do exercício do poder
político, necessita de um aparato instrumental eficiente para fazer vale o comando máximo do
ordenamento jurídico, qual seja, o ordenamento jurídico constitucional, definido a partir da
relação de seus conteúdos com os direitos fundamentais.
290
CADEMARTORI, Sérgio. Obra citada. p. 86.
291
RITT, Eduardo. Obra citada. p. 156.
229
Portanto, não por acaso, o constituinte identificou o Ministério Público como órgão
essencial à função jurisdicional do Estado, defensor maior da ordem jurídica constitucional e do
regime democrático de direito, garantidor primeiro, pois, dos direitos fundamentais.
292
O Ministério Público adquiriu status constitucional de guardião do coto vedado
293
; fiscal,
controlador e garantidor dos direitos fundamentais constitucionalmente reservados
(inegociáveis, invioláveis, indisponíveis e inalienáveis) e, ao mesmo tempo, acessíveis a todos
os cidadãos, em razão da sua identificação universal. É, por essência constitucional, garantia e
instrumento de defesa ou de realização dos direitos fundamentais.
Outra não é a missão do Ministério Público senão a de dar efetividade ao comando
constitucional e, em especial, aos direitos fundamentais sociais, coletivos ou difusos. Deve
garantir aos indivíduos e à sociedade a fruição de todas as suas garantias e direitos
constitucionais.
O desafio, como se disse, é gigantesco. Passa pela garantia de direitos individuais, como
a liberdade; cresce consideravelmente com os direitos sociais, como a educação, a saúde, o
trabalho, o lazer e a segurança, ganhado relevo incontável com os direitos difusos como o meio
ambiente, o consumidor, o patrimônio artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico e o
mercado. Além disso, generaliza-se com os princípios e garantias constitucionais como a
igualdade, a impessoalidade, a moralidade administrativa, etc.
Com relação especificamente à moralidade administrativa, conforme salientado no
item 2.2.3., não fosse expressamente reconhecida como um princípio constitucional e,
portanto, por si só, autêntico direito e garantia fundamental dos cidadãos
294
– também representa
292
Art. 127, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil: O Ministério Público é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
293
Expressão utilizada por Antônio Peña Freire para designar uma reserva constitucional de direitos fundamentais
garantidos e intocáveis, inclusive frente ao poder de decisão das maiorias.
294
Nesse sentido, decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na ADI n° 939-7, publicada no DJU de
18/03/1994, tendo como relator o Ministro Sydney Sanches, onde se reconheceu o princípio constitucional da
230
um direito difuso no interesse da sociedade, pois, como princípio constitucional orientador da
administração pública, representa verdadeira garantia em favor da sociedade e seus cidadãos.
Assim, possibilita o bom trato da coisa pública no interesse coletivo e na sua defesa contra
possíveis governos déspotas, arbitrários e/ou corruptos.
Não bastassem essas considerações, o desrespeito ao cumprimento do conteúdo
constitucional do princípio da moralidade administrativa tem sido no país, sem sombra de
dúvida, uma das maiores causas da deficiência e da ausência da efetividade dos próprios direitos
fundamentais, com destaques negativos para os direitos sociais e difusos.
O fenômeno da corrupção, como se comprovou no item 1.3.2. do Capítulo primeiro,
adoece o corpo e alma de milhares de brasileiros, excluídos, sobreviventes do egoísmo. Segundo
o BIRD, a corrupção mundial causa um prejuízo de 3 (três) trilhões de dólares por ano numa
economia de 30 (trinta) milhões de dólares. No Brasil, um dos maiores responsáveis por grande
parte desse desvio criminoso, a situação ganha conotações dramáticas. Uma estrutura de
dominação patrimonial, ainda viva e sólida, privilegia a si própria, resultando na riqueza de
poucos e na desgraça de muitos. Escolas desestruturadas, hospitais abandonados, trabalhos
escravos, prisões domiciliares decretadas pelo medo e pela insegurança, enfim, a corrupção gera
o caos social, a desestabilidade econômica e a insegurança política.
Torna-se imperioso, portanto, que o Ministério Público efetive com urgência o princípio
(direito e garantia) fundamental da moralidade administrativa. É justamente aí, no nosso
entender, que reside a importância maior da atuação instrumental do Ministério Público, qual
seja, garantir operatividade ao princípio constitucional da moralidade administrativa,
investigando e buscando a punição de corruptos e de corruptores, permitindo e estimulando,
também, o acesso ao exercício consciente de cidadania.
anterioridade, por força do art. 5°, § 2°, da CR, como autêntico direito e garantia fundamental do cidadão-
contribuinte, consagrando a amplitude do catálogo dos direitos fundamentais na Constituição da República.
231
Numa sociedade de massa manipulada e conformada, a superação das barreiras impostas
aos longos dos anos, através da consolidação de uma estrutura patrimonial, arcaica,
preconceituosa, hierárquica e arbitrária, parece ser uma missão impossível. Problemas múltiplos
e diversos atingem uma sociedade em grande parte adoecida pelo egoísmo e pela ganância.
Nesse contexto, não bastam somente as edições de inúmeras legislações, quase que
diariamente impostas como as soluções mágicas para todos os problemas cotidianos nacionais.
É preciso dar vida ao texto constitucional, efetivando, extrajudicial ou judicialmente, a
conquista derradeira dos direitos fundamentais, solucionando com agilidade os conflitos,
reparando com firmeza as arrestas, resolvendo com altivez os problemas e edificando com
criatividade novas soluções, enfim, tijolo a tijolo, minuto a minuto, é necessário edificar o
prometido – e ainda não alcançado – Estado Democrático de Direito.
Assim, o efetivo acesso aos direitos e garantias fundamentais representa o requisito
primeiro de um sistema normativo constitucional que pretenda conceder a igualdade substancial
a todos cidadãos brasileiros, longe do discurso tecnocrata ineficiente ou do discurso demagógico
oportunista.
No que concerne à operatividade do princípio constitucional (direito e garantia
fundamental) da moralidade administrativa, o Ministério Público certamente encontrará muitas
dificuldades para garantir efetivamente aos cidadãos uma administração pública responsável e
comprometida com os interesses coletivos e a implementação prática dos direitos fundamentais.
É recomendado um novo proceder por parte dos membros do Ministério Público,
libertando-se das velhas concepções dogmáticas e formais do Estado de Direito, não mais
compatíveis com a democracia e com o constitucionalismo moderno. Como destaca Eduardo
Ritt:
No Brasil, foi a figura do Ministério Público justamente que recebeu a tarefa constitucional
de defender os interesses difusos, e, para tanto, recebeu total independência e autonomia,
como nenhum outro Ministério Público alienígena. Impôs o artigo 129, inciso II, da
Constituição Federal, ao Ministério Público o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes
232
Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição
brasileira, com a obrigação de promover as medidas necessárias a sua garantia. Assumiu,
assim, a Instituição a figura mesma do chamado “defensor do povo” ou “ombudsman”,
como existe nos países escandinavos, ainda que desta expressão não se tenha valido a Lei
Maior, com poderes ainda maiores do que o seu similar, eis que não se limita apenas ao
atendimento ao público, mas possui em suas mãos instrumentos poderosos (...).
295
Longe de se ter alcançado a instrumentalidade necessária para o desempenho
satisfatório de suas primordiais missões constitucionais, o Ministério Público brasileiro vem
desempenhando um importante e renovador papel na tentativa de defesa e de implementação
dos direitos fundamentais. Como afirma Rodolfo de Camargo Mancuso:
As estatísticas demonstram a absoluta superioridade do número de ações civis públicas
propostas pelo Ministério Público (v. apêndice), em face daquelas propostas pelos outros co-
legitimados. Isso, sem falar dos Simpósios, Congressos, criação de órgãos específicos
relacionados à tutela dos interesses difusos, tudo a indicar que o Parquet vem atuando nessa
área de forma exemplar.
296
Modernamente, a atuação do Ministério Público na área dos interesses difusos e
coletivos vem sendo marcante e significativa. A criação de promotorias de justiça
especializadas, de promotorias temáticas, de curadorias específicas para defesa de direitos
sociais e difusos, aliada à utilização constitucional do instrumento da ação civil pública (inciso
III, art. 129, CR) e com resultados já visíveis, demonstra o certo da opção constitucional
brasileira e a importância prática que a Instituição adquiriu em todos os rincões do país.
É bem verdade que as resistências ao cumprimento de suas continentais tarefas
constitucionais ainda lhe impõem grande dificuldade à efetivação do postulado constitucional,
seja pela crise de paradigma doutrinária e judicial, seja pela constante oposição dos donos do
poder, sempre contrários à proteção dos direitos fundamentais em favor de toda coletividade,
posto que unicamente preocupados com a aquisição de benefícios, favores e privilégios
295
RITT, Eduardo. Obra citada. p. 168.
296
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, patrimônio cultural e dos
consumidores: lei 7.347/85 e legislação complementar. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 67.
233
pessoais. Em vez da igualdade constitucional, a riqueza nacional é usufruída por poucos
escolhidos.
A enfermidade da corrupção contaminou a alma e a mente de muitos brasileiros; outros
tantos, desiludidos e desanimados com a impunidade institucionalizada, não acreditam em mais
nada: nem na sociedade, nem na Justiça, e muito menos nos Poderes constituídos. Diante de
tanto sofrimento, injustiça e criminalidade esperam em silêncio a hora da partida final. Quem
sabe, somente assim seus direitos fundamentais poderão ser efetivados (...) no céu ou no
inferno, não se sabe!
É nesse quadro instável e melancólico que o Ministério Público, enquanto defensor da
ordem jurídico-constitucional, da democracia e dos direitos fundamentais, posto que órgão
constitucional de soberania do Estado, deve garantir o efetivo cumprimento das promessas
constitucionais, com prioridade máxima, como se viu, ao combate efetivo à corrupção, à
impunidade e ao crime organizado.
3.1.2. Órgão primordial de combate à corrupção
Conforme determina a Constituição da República (art. 127, caput, e art. 129, inciso III),
o Ministério Público é órgão primordial para o efetivo combate ao fenômeno da corrupção.
Engana-se, todavia, quem julga ser fácil a missão de dar operatividade ao princípio
constitucional da moralidade administrativa, e, por conseqüência, combater efetivamente a
corrupção. Em sentido oposto, será uma jornada infrutífera e sem validade se permanecer
orientada por discursos demagógicos e por ações tecnocratas ineficientes, sendo determinante,
portanto, a revitalização das funções institucionais do Ministério Público a partir do
estabelecimento planejado de estratégias de prevenção e de controle repressivo à prática nefasta
e constante dos atos de corrupção; estratégias estas que deverão sempre ser orientadas pelo
comando constitucional e pela relação inabalável com a reserva dos direitos fundamentais.
Constatou-se nos itens anteriores a relevância constitucional do Ministério Público
brasileiro, como órgão defensor da ordem jurídico-constitucional, da democracia e dos direitos
234
fundamentais, com especial destaque para a operatividade do princípio constitucional da
moralidade administrativa ou, dito de outra maneira, no efetivo combate ao fenômeno da
corrupção.
A defesa, a garantia e a implementação do princípio fundamental da moralidade
administrativa, a partir de sua valoração no ordenamento jurídico-constitucional, elevado à
condição de princípio, direito e garantia, tem no Ministério Público enquanto instituição
responsável pelo respeito e equilíbrio entre os Poderes constituídos, defensor da democracia,
garantidor da ordem jurídica e protetor dos interesses individuais indisponíveis, sociais, difusos
e coletivos – o seu maior instrumento de efetividade.
Por certo, a atuação instrumental do Ministério Público como protagonista principal no
combate à corrupção, não foi conferida constitucionalmente por acaso ou em desprezo ou
desconsideração aos Poderes constituídos, todos eles, dentro das suas competências
constitucionais, necessários e indispensáveis ao processo de afirmação dos direitos
fundamentais.
É que ao Ministério Público foi incumbida a missão constitucional de evitar qualquer
agressão ao ordenamento jurídico-constitucional, devendo combater os abusos de poder, as
ilicitudes administrativas e os atos de corrupção, atuando como verdadeiro sistema de freios e
contrapesos. Como informa Eduardo Ritt, o Ministério Público “(...) foi erigido a um órgão
constitucional de soberania, em posição similar aos chamados ‘Poderes de Estado’. Na
realidade, o Ministério Público brasileiro foi alçado à posição de fiscal e controlador dos
demais órgãos do Estado, em especial no chamado sistema de freios e contrapesos.”
297
Enquanto ao Poder Judiciário compete a tarefa constitucional fundamental de garantir
judicialmente a prevalência dos direitos, princípios e garantias constitucionais, enfim, dos
direitos fundamentais, cabe ao Ministério Público a obrigação de tutelá-los, resguardando-os ou
implementando-os extrajudicialmente, ou, havendo resistências, de submeter a pretensa violação
297
RITT, Eduardo. Obra citada. p. 173.
235
ou omissão ao Poder Judiciário. O Ministério Público, enquanto guardião ativo da Constituição,
está obrigado a resguardar a cidadania, defender a ordem jurídica, o regime democrático e os
direitos fundamentais. Nesse contexto, devendo tomar as iniciativas necessárias para fazer valer
o comando constitucional, o Ministério Público obriga-se a efetivar (dar operatividade) o
princípio constitucional da moralidade administrativa.
Assim, no estrito cumprimento de sua tarefa constitucional de combater efetivamente o
fenômeno da corrupção, o Ministério Público dever estabelecer estratégias de atuação
preventivas e repressivas, agindo extrajudicial e judicialmente, buscando relacionar os
acontecimentos sociais com a pouca efetividade dos direitos fundamentais no cotidiano prático
dos brasileiros. É que, inegavelmente, num ciclo vicioso de ignorância, assistencialismo e
corrupção, com causas e efeitos interligados, práticas ilícitas diversas passam a ser
institucionalizadas no público e no privado.
Cabe ao Ministério Público, portanto, empreender todos os esforços necessários para
compreensão e penetração na comunidade em que atua, objetivando, a partir do conhecimento
da realidade prática dos cidadãos, assim como da confiança adquirida enquanto advogado ativo,
operante e relacionado com o povo, estabelecer estratégias práticas e efetivas para resolução dos
problemas sociais e, conseqüentemente, para o verdadeiro enfrentamento do crime organizado e
da corrupção institucionalizada. Deve atuar não na área repressiva, investigando e interpondo
judicialmente as ações cabíveis, como também preventivamente buscando a diminuição das
práticas corruptas e a valorização social do princípio da moralidade administrativa. Como
afirma Sergio Ferreira, é dever do Ministério Público:
(...) a da efetivação da justiça jurídico-social. Especificamente, pormenoriza-se no velamento
da constitucionalidade, de leis e atos normativos; dos interesses das crianças, dos
adolescentes, dos interditos, dos idosos, dos carentes, dos deficientes, dos desamparados, dos
indígenas, dos consumidores, de todos os socialmente inferiorizados; da família; da
sociedade; dos abusos de poder e de direito, dos excessos dos meios de comunicação social,
e das várias manifestações de ilicitude, com atuação preventiva e repressiva e a
responsabilização dos infratores; da preservação do patrimônio público, do meio ambiente;
do cumprimento, por parte dos administradores das fundações, dos fins da entidade; dos
236
valores sociais, como a moralidade, a razoabilidade, na formulação, execução e aplicação do
Direito, da segurança jurídica e social.
298
Todavia, o que visivelmente se constata na prática diária é que a atuação repressiva do
Ministério Público acaba ganhando maior relevância, alcançando alguns resultados positivos
embora longe do ideal no combate aos atos de corrupção. Aliás, a atuação repressiva e judicial
do Ministério Público está diretamente relacionada à cultura institucional ainda prevalecente,
definida a partir de uma concepção direcionada “cegamente” à repressão criminal/punitiva.
Ocorre que, como pudemos observar nos itens anteriores, o Ministério Público assumiu
uma posição constitucional renovadora, diversa da tradicional, passando a servir como
instrumento fundamental para a consecução dos interesses dos cidadãos, devendo defender,
garantir, assegurar e implementar efetivamente os direitos fundamentais.
A relevância da atuação do Parquet ganha aditivo constitucional em razão da
hipossuficiência da sociedade brasileira, que se sente impotente e incapaz de defender a coisa
pública contra os reiterados atos de corrupção. Cabe, portanto, ao Ministério Público exigir da
administração pública que assegure os princípios, garantias e direitos previstos na Constituição
da República, devendo interferir com eficiência e decisão na dinâmica entre os Poderes
constituídos, reduzindo as desigualdades sociais e ampliando a consciência e o exercício da
cidadania.
Esse novo enquadramento constitucional, preconizado pela constituinte de 1988,
determinou um necessário redimensionamento das atribuições do Ministério Público,
especialmente com relação aquelas decorrentes da defesa de princípios, direitos e garantias
sociais, difusas e coletivas, como ocorre na hipótese da operatividade do princípio
constitucional da moralidade administrativa, sendo de suma importância para o efetivo controle
das atividades e dos atos da administração pública.
298
FERREIRA, Sérgio de Andréa. Princípios Institucionais do Ministério Público. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Coletânea de Legislação Brasil – Organização Judiciária, 1996, p. 26.
237
De outro norte, cumpre recordar que esse controle das atividades e dos atos
administrativos, inclusive, os discricionários, destina-se à fiscalização, orientação e eventual
correção das omissões, irregularidades e ilicitudes identificadas. Diógenes Gasparini
[14]
assevera que esse controle:
É a atribuição de vigilância, orientação e correção de certo órgão ou agente público sobre a
atuação de outro ou de sua própria atuação, visando confirmá-la ou desfazê-la, conforme
seja ou não legal, conveniente, oportuna e eficiente. No primeiro caso tem-se heterocontrole;
no segundo, autocontrole, ou, respectivamente, controle externo e controle interno.
299
A administração pública se sujeita, pois, às várias formas de controle, seja interno ou
externo. Esse controle é realizado dentro do próprio órgão, instituição ou Poder (autotutela ou
controle administrativo), via de regra através de mecanismos disponíveis para ratificar, suprimir
ou modificar os atos administrativos praticados em desacordo com os princípios constitucionais
aplicáveis. Pode ser exercido também por instituição ou Poder alheio à administração
fiscalizada, seja político, financeiro ou jurisdicional, de maneira prévia, concomitante ou
posterior.
Assim, especialmente no que respeita ao combate ao fenômeno da corrupção, torna-se
imperioso questionar a eficiência dos controles existentes, destacando-se a relevância da missão
constitucional outorgada ao Ministério Público, que deve zelar pelo efetivo respeito dos
Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia
300
, como veremos a seguir.
3.2. O combate repressivo aos atos de corrupção e à impunidade
Inicialmente,cumpre estabelecer a total compatibilidade entre o aparato repressivo
estatal e a concepção garantista de Estado, especialmente quando necessária a observância de
princípios, direitos e garantias constitucionais. Como adverte Ferrajoli, nenhuma garantia
299
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 887.
300
Inciso II, art. 129, da Constituição da República Federativa do Brasil.
238
sobrevive pela simples inscrição de normas, sendo necessária uma luta constante para sua
efetivação prática no mundo real. Um sistema jurídico, mesmo que teoricamente perfeito, não
pode, por si só, garantir coisa alguma.
301
Além da prioritária e importante intervenção preventiva do Ministério Público – como se
verá mais à frente –, sua atuação repressiva no combate aos atos de corrupção se faz urgente e
necessária. Como é sabido, as práticas reiteradas de grandes empreitadas corruptas e criminosas
estimulam com vigor à multiplicação de novos atos de corrupção.
Ocorre que a repressão destina-se à macro-criminalidade, alcançando agentes políticos,
autoridades, servidores e empresários detentores do poder político, de autoridade ou econômico,
interligados numa teia de relacionamentos pessoais e “profissionais” articuladas em todos os
Poderes e instituições do Estado, o que dificulta em demasia a efetivação das medidas
necessárias à identificação e punição desses criminosos.
Nesse ponto, cabe ao Ministério Público, respeitados os princípios e garantias
constitucionais (ampla defesa, contraditório, devido processo legal etc.), buscar a efetiva
punição de corruptos e de corruptores comprovadamente responsáveis pela prática ímproba.
Para tanto, pode e deve se valer da oportuna investigação (cível ou criminal) dos atos de
corrupção, com o desiderato constitucional de dar operatividade ao princípio da moralidade
administrativa.
A legislação infra-constitucional também encaminha e fortalece a atuação constitucional
do Ministério Público no combate à corrupção, seja como titular privativo da ação penal
pública, seja como legitimado à ão civil pública para responsabilização dos atos de
improbidade administrativa.
3.2.1. A impunidade como estímulo à corrupção
301
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada. p. 752.
239
Como tivemos oportunidade de verificar nos itens 1.2.2. e 2.1.2.5. deste ensaio, a
aceitação da impunidade dos delitos e dos atos de corrupção, é um aditivo histórico, marcante e
decisivo para reprodução contínua de novas práticas ímprobas. Num ciclo vicioso, a impunidade
estimula a corrupção, banalizando-a no meio social através de um processo contínuo de
desencantamento e conformação. no Brasil Colônia, a impunidade, intimamente relacionada
com o ordenamento jurídico adotado, advinha da omissão e da cumplicidade do estamento
dominante e as camadas dirigidas. As relações íntimas, os interesses comuns e as “razões de
Estado” continuam sendo, ainda hoje, circunstâncias determinantes para o aceite da transgressão
do ordenamento, convertendo-se em estímulo à reprodução desenfreada e crescente dos mais
variados delitos.
A impunidade é característica marcante da estrutura do Estado patrimonial, sendo
conseqüência lógica de sua dinâmica funcional. Na concepção garantista, a impunidade provém
da falta da efetividade prática dos direitos fundamentais.
A impunidade é facilmente compreendida a partir das características do Estado
patrimonial brasileiro. Com a aplicação de critérios subjetivos para consecução das metas do
Governo, sempre pautado por relações íntimas de amizade, parentesco e retribuições pessoais, a
ordem jurídica instável e flexível é marcada pelo casuísmo e pela arbitrariedade, mesmo que
escamoteada, dos dirigentes do poder.
Com a valorização suprema do patrimônio, dos bens e das riquezas, uma ética perversa
passou a ser consentida e cultuada, privilegiando-se a esperteza, a hipocrisia, a bajulação, a
manipulação, o tráfico de influência, a fraude e a corrupção, tudo isso em prejuízo do proceder
correto, eficiente, honesto e meritório. O Estado se transformou em propriedade particular ou,
quando conveniente, em terra de ninguém. Eventuais punições impostas não conseguem efetivar
os seus efeitos integrais, haja vista a manipulação e os recursos processuais sempre disponíveis
aos poderosos.
No Brasil, a escolha patrimonial não permitiu que uma ética voltada ao interesse público
e coletivo germinasse na nova terra. Eis o lema vigente: “Cada um por si, e o Estado por todos”.
240
Sem forças para reagir à degradação moral, a corrupção contaminou a sociedade e várias
gerações, tornando-se conseqüência natural da cultura patrimonial e da impunidade
prevalecente. Matar, subtrair, fraudar, ludibriar, forjar, manipular, enfim, enriquecer a qualquer
custo. Ao relacionar o avanço da corrupção à crescente impunidade dos delitos, Zancanaro
ressalta que:
Na cultura luso-brasileira dificilmente o corrupto é chamado a prestar contas de seus atos. E
quando isto ocorre, são muitos os álibis que lhe permitem fugir às sanções da lei. O próprio
sistema patrimonial realimenta a impunidade, gerando uma extraordinária segurança em
quem manipula o poder a seu favor. As intrincadas amarras de caráter afetivo e sentimental
que impregnam o fenômeno conferem garantia de impunidade. Tal segurança garante as
condições de uso e abuso do poder cedido em benefício próprio e no de parentes e amigos. A
impunidade dos delitos tornou-se, portanto, uma superestrutura lógica do sistema
patrimonial de dominação.
302
Lembrando Eduardo Galeano, a história real é marcada pela desigualdade perante a lei.
Os exterminadores de índios, os traficantes de escravos, os ladrões de terras, os corruptos
saqueadores dos cofres públicos, todos permanecem impunes, presente uma justiça parcial
destinada somente à exclusão de pobres e miseráveis. Uma amnésia obrigatória envolve os
grandes crimes e atos de corrupção. As leis da impunidade, baseadas no engodo, na fraude e no
medo, por razões de Estado, em nome da estabilidade democrática e da reconciliação nacional,
ignoram convenientemente a macro-criminalidade. Esse autor adverte:
Aviso aos delinqüentes que se iniciam na profissão: não se recomenda assassinar com
timidez. O crime compensa, mas só compensa quando praticado em grande escala, como nos
negócios. Não estão presos por homicídio os altos chefes militares que deram a ordem de
matar tanta gente na América Latina, embora suas folhas de serviço deixem rubro de
vergonha qualquer bandido e vesgo de assombro qualquer criminologista.
Somos todos iguais perante a lei. Perante que lei? Perante a lei divina? Perante a lei terrena,
a igualdade se desiguala o tempo todo e em todas as partes, porque o poder tem o costume
de sentar-se num dos pratos da balança da justiça.
303
Para Maria Teresa Sadek a justiça no Brasil não é cega para todos. A autora observa que
a corrupção alimenta e a impunidade facilita a atuação do crime organizado, sendo visível e
302
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 145.
303
GALEANO, Eduardo. Obra citada. p. 207.
241
relevante a participação de funcionários públicos nas quadrilhas criminosas, o que comprova
que o crime organizado está infiltrado no aparelhamento estatal. Segundo relata:
O levantamento de ÉPOCA, feito com base nas operações da Polícia Federal, mostra que a
participação de funcionários públicos nas quadrilhas é muito alta (dos 3.726 presos pela PF
em casos de corrupção, 1.098 eram funcionários públicos, quase 30%). Isso a dimensão
de como o crime organizado precisa da participação de agentes do Estado. Ainda mais
quando envolve bens públicos. No caso dos crimes de desvio de dinheiro público, tem de
haver participação do servidor. Para fraudar impostos, é preciso haver alguém na Receita
Federal que facilite isso. Sonegação fiscal é a mesma coisa. Na Previdência, então, não
outra forma sem ser por meio de funcionário público.
304
Além disso, a autora sustenta que a “rivalidade” e as disputas entre Ministério Público,
Poder Judiciário, policiais e advogados, contribuem decisivamente para instituição da
impunidade. Conforme assevera:
O sistema de justiça no Brasil tem várias instituições que nem sempre trabalham de maneira
cooperativa, apesar de trabalharem dentro da lei. No mundo real, instituições como polícia,
Ministério Público, Poder Judiciário e advogados competem entre si. Os interesses de cada
um são diferentes, competitivos do ponto de vista profissional. A polícia briga com o
Ministério Público, o Ministério Público vive brigando com os juízes. Isso contribui para a
impunidade.
305
Nesse contexto, promíscuo e ineficiente, a impunidade fortalece a prática corrupta,
estimulando o ganho fácil, a esperteza e a reprodução criminosa. Corriqueiramente, agentes
políticos e servidores públicos transformam o exercício funcional em benefícios pessoais. Uma
fabulosa rede de corrupção transforma práticas ocultas e ilícitas em condutas
institucionalizadas; sonegação de impostos, falsidade ideológica, abuso do poder econômico,
fraude eleitoral, notas frias, caixa-dois, dentre outros delitos, nos bastidores da máfia pública,
quem pode mais chora menos. Eventuais condenações transitadas em julgado – criminais ou por
atos de improbidade administrativa não chegam a incomodar; basta manipular as leis,
contratar um bom advogado e, quando preciso, comprar a pessoa certa.
304
Entrevista concedida à Revista Época em 15/03/2008, Edição 513. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EDG82364-9556,00.html
305
___. IDEM.
242
A impunidade é nefasta não apenas por comprovar a ineficiência do sistema judicial
brasileiro. Ela é uma causa determinante para o estímulo de novas práticas corruptas. Como
efeito colateral nocivo à democracia, a impunidade gera o desencantamento e a conformação
popular, a desilusão que fere a alma e a esperança de ver uma justiça indistintamente aplicável e
acessível a todos; pobres ou ricos, negros ou brancos, servidores ou superiores, empregados ou
empresários etc. Boa parcela da opinião pública não acredita em mais nada, generalizando a
corrupção a tudo e a todos, com um efeito negativo devastador ao combate à corrupção. Afinal,
quando todos são criminosos, os verdadeiros corruptos (e corruptores) não podem ser
identificados, processados e efetivamente punidos.
A Convenção Interamericana contra a Corrupção ressalta a importância da
responsabilidade dos Estados em relação à definitiva erradicação da impunidade, como medida
imprescindível e eficiente no combate à corrupção.
306
Torna-se imperioso, portanto, modelar uma nova estrutura de combate à corrupção e ao
crime organizado, fortalecendo a atuação integrada e conjunta dos atores jurídicos; investindo
também no aprimoramento profissional e em novas técnicas de investigação aos mecanismos de
corrupção, buscando dar operatividade ao princípio constitucional da moralidade administrativa
e, conseqüentemente, aos direitos fundamentais.
3.2.2. A investigação dos atos de corrupção
A instrumentalização investigativa, seja criminal, seja cível, assim como a atuação
repressiva, vem sendo banalizada nos meios policiais e no próprio Ministério Público,
determinando, em alguns casos, o desrespeito a princípios, direitos e garantias constitucionais,
presente uma manifestação policialesca, expondo abusivamente suspeitos em flagrante violação
ao princípio constitucional da presunção de inocência.
306
Convenção Interamericana contra a Corrupção. Disponível em:
<http://www.cgu.gov.br/oea/convencao/arquivos/convencao.pdf >. Acesso em 18/09/2008.
243
De outro lado, como tivemos oportunidade de comprovar à saciedade, o crime
organizado campeia livremente na estrutura estatal, com interferência relevante nos Poderes
Judiciário, Legislativo e Executivo, impondo uma resistência significante às apurações
decorrentes das investigações do crime organizado e de grandes esquemas de corrupção.
Muitos são os discursos, a favor e contra, às operações investigativas nas estruturas
criminosas instaladas no poder. As polêmicas sobre a espetacularização das prisões de
suspeitos; sobre o excesso e descontrole da concessão judicial de escutas telefônicas (grampos)
que para alguns representa verdadeiro resquício do autoritarismo e sobre a subordinação e
dependência das polícias ao Poder Executivo, bem demonstram a complexidade e as
dificuldades do uso dos instrumentos investigativos no Estado Democrático de Direito.
Mesmo que apresentada uma realidade dramática da disseminação e desenvolvimento da
corrupção no Estado brasileiro, de viés patrimonialista, não se pode admitir, em nome da
probidade e do combate à corrupção, em hipótese alguma, a institucionalização da violência
investigativa estatal. Por outro lado, também não se pode compactuar com a omissão e com o
discurso falacioso generalizado dos excessos investigativos.
Percebe-se, como se vê, a extrema dificuldade de conciliar teoria e prática,
especialmente numa rede de articulação de poder escamoteada entre escândalos e atentados
contra o Estado Democrático de Direito, de viés constitucional e garantista. Seja como for,
parece inegável, incontestável e urgente a necessidade da investigação constitucional dos atos
de corrupção e do crime organizado instalado no Estado brasileiro.
Aliás, não por acaso, o debate judicial sobre o monopólio da investigação criminal
encontra-se estagnado no Supremo Tribunal Federal. Embora não pretenda aqui se aprofundar
na legitimidade da investigação criminal por parte do Ministério Público, parece certo que o
texto constitucional não prevê a investigação exclusiva por parte da polícia. E não poderia
deixar de ser diferente, até porque o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro fortalece a
idéia do amplo controle das atividades e atos administrativos.
244
Longe da polêmica, com a corrupção disseminada na estrutura de poder estatal, a
arrecadação probatória por parte do Ministério Público, titular privativo da ação penal pública
(inciso I, art. 129, CR) e titular da ação civil pública para proteção do patrimônio público e
outros interesses difusos e coletivos (inciso III, art. 129, CR), torna-se imprescindível para
efetiva punição de corruptos e corruptores.
Ora, sem delongas, sendo o inquérito policial presidido pela autoridade policial
prescindível ao oferecimento da ação penal pública, parece óbvio que o Ministério Público
possa complementar ou arrecadar originalmente qualquer material probatório para formação da
opinio delicti.
307
Reconhecer um Ministério Público sem poder de investigação significa anular
a própria instrumentalidade constitucional que lhe dá eficácia. Ou, dito de outra maneira,
significa negar a existência aos comandos normativos dos arts. 127 e 129, incisos I, II e III,
ambos da CR, e, conseqüentemente, negar operatividade ao princípio constitucional da
moralidade administrativa. Nesse sentido, Clèmerson Merlin Clève, advogado e professor titular
das Faculdades de Direito da UniBrasil e dos cursos de Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre
e doutor em Direito, pós-graduado pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), com
precisão científica e clareza matemática, esclarece que:
A atividade de investigação tem clara natureza preparatória para o juízo de pertinência da
ação penal, de modo que, sendo o Ministério Público o titular da ação penal pública, por ele
é providenciada a fim de formar sua convicção de acordo com os elementos colhidos (29).
Sendo a investigação conduzida através de inquérito policial ou por outro meio, a finalidade
é a mesma, porém, o deslinde não, que a qualidade da investigação é determinante para a
formação do juízo do titular da ação penal. Diante disso, parece lógico que, dispondo de
meios apropriados e recursos adequados, a atuação do membro do Ministério Público não
deve ser, em todos os casos e circunstâncias, limitada pela atuação da polícia judiciária. É
que o limite, em última instância, pode significar o seqüestro da possibilidade de propositura
da ação penal. E nem se afirme que o controle externo da atividade policial seria suficiente
para remediar a possibilidade. Necessário e acertadamente externo, o controle possui
fronteiras. Pode implicar possibilidade de emergência de censura à eventual desídia, mas
nunca solução ao específico caso que, diante da dificuldade de encaminhamento do
inquérito, produziu reduzida chance de êxito na propositura da ação penal. Em semelhante
hipótese, sequer a possibilidade de requisitar a instauração de inquérito ou de diligências
investigatórias, no limite, pode se apresentar como solução para o impasse, eis que o órgão
ministerial, titular da ação penal, sem poder interferir diretamente na ação policial, não
307
Opinio ou informatio delicti: tem por finalidade formar o convencimento sobre o crime e a respectiva autoria,
seja para o oferecimento seguro da denúncia, seja para a formulação do pedido de arquivamento do inquérito
policial ou outra peça informativa.
245
dispõe de instrumentos, a não ser reflexos (controle externo), para garantir a qualidade das
diligências providenciadas em virtude de requisição. A autoridade policial tem, com o
inquérito policial, meios para auxiliar o Parquet na promoção da ação penal, mas se, em
virtude de hermenêutica menos elaborada, lhe for atribuída a exclusividade da investigação
preliminar criminal, terá também, e certamente, um meio para limitar sua função, o que
importa em risco (sendo, na sociedade de risco, ainda mais grave e incompreensível) para o
Estado Democrático de Direito.
308
Reconhecendo o poder investigatório do Ministério Público, Aury Lopes Júnior destaca
que:
Analisando os diversos incisos do art. 129 da CB, em conjunto com as Leis 75/93 e
8.625/93, especialmente o disposto nos arts. 7º e 8º da primeira e 26 da segunda, constatasse
que no plano teórico está perfeitamente prevista a atividade de investigação do promotor na
fase pré-processual. Não dispôs a Constituição que a polícia judiciária tenha competência
exclusiva para investigar (...). Não existe exclusividade desta tarefa, inclusive porque quando
pretendeu estabelecer a exclusividade de competência o legislador o fez de forma expressa e
inequívoca. Tampouco a natureza da atividade ou dos órgãos em discussão permite ou exige
uma interpretação restritiva; ao contrário, trata-se de buscar a melhor forma de administrar
justiça. (...) Não o inquérito policial é dispensável, senão que também é dispensável a
atuação policial, ou, em outras palavras, o MP pode prescindir da própria polícia judiciária.
O art. 129, III, da CB trata do inquérito civil como atividade preparatória da ação civil
pública; logo, quando no inciso VI o legislador afirma o poder do MP de instruir os
procedimentos administrativos de sua competência, está claramente referindo-se a outros
procedimentos. Aqui es a outorga constitucional para que o MP realize a instrução
preliminar, considerada como um procedimento administrativo pré-processual, preparatório
ao exercício da ação penal. Neste sentido, complementam a norma constitucional as Leis
75/93 e 8.625/93, que autorizam a instauração de procedimentos administrativos com
caráter investigatório. (...) Destarte, entendemos que o Ministério Público, ademais de
participar no inquérito policial, poderá ser protagonista, instaurando e instruindo seu próprio
procedimento administrativo pré-processual. Entendemos que o MP pode instaurar e realizar
uma verdadeira investigação preliminar, destinada a investigar o fato delituoso (natureza
pública), com o fim de preparar o exercício da ação penal. Aqui se materializa a figura do
promotor investigador.
309
Ademais, não fossem as interferências e ingerências políticas, não parece lógico que a
polícia judiciária investigue sem estar em sintonia com o destinatário primeiro da investigação.
É inegável que melhor se pode fazer justiça quem por si mesmo realiza, conduz ou comanda as
investigações. Como imaginar uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
308
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Investigação criminal e Ministério Público (Artigo). Jus Navigandi. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5760
309
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2003. p. 154-155.
246
guardiã da ordem jurídica e defensora da sociedade e dos direitos fundamentais, destituída de
instrumentos sólidos e efetivos de controle, fiscalização, investigação e acompanhamento das
atividades relacionadas direta e indiretamente com a coisa pública?
Como é de conhecimento, os Tribunais Estaduais, assim como o Superior Tribunal de
Justiça, vêm reconhecendo a legitimidade do Ministério Público para condução da investigação
criminal, cabendo ao Supremo Tribunal Federal, de uma vez por todas, superadas as pressões
políticas e coorporativas, referendar o comando integrado dos dispositivos constitucionais,
repudiando qualquer tentativa de limitação do poder investigatório do Ministério Público, ou de
qualquer outra medida tendente a enfraquecer o combate à corrupção e a busca pelo propagado
Estado Democrático de Direito.
O respeito ao comando constitucional intenta fortalecer o Ministério Público em razão da
difícil e fundamental tarefa de dar eficiência à estratégia de combate à corrupção e, por
conseqüência, de permitir a efetivação dos direitos fundamentais e a operatividade do princípio,
direito e garantia da moralidade administrativa.
Importante destacar também, sem prejuízo da investigação criminal, que a Constituição
da República (inciso III, art. 129) coloca à disposição do Ministério Público o inquérito civil
310
como importante instrumento de investigação e de combate aos atos de corrupção. Constitui-se
o inquérito civil, certamente, numas das circunstâncias que determinaram a eficiência das ações
civis pública de responsabilização de atos de improbidade administrativa.
Observe-se que, embora o princípio do contraditório não esteja obrigatoriamente
presente, tendo em vista se tratar de peça meramente informativa, é recomendado que o
inquérito civil, presidido pelo representante do Ministério Público, observe as orientações do
ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, evitando os vícios tão comuns da investigação
criminal presidida pela autoridade policial. Como afirma Emerson Garcia, o inquérito civil é:
310
Art. 129 e inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 129. São funções institucionais do
Ministério Público: (...) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. (grifo nosso).
247
Procedimento administrativo no qual o incide o contraditório, por não veicular qualquer
tipo de acusação nem buscar a composição de conflitos de interesse, foi tal instrumento
concebido no seio do Parquet paulista, inspirado, desde o primeiro momento, pelo
congênere investigatório da área criminal, o inquérito policial, que escoimado das
mazelas que vêm, ao longo de décadas, reduzindo a eficácia deste último, uma vez que o
procedimento investigatório civil é presidido pelo próprio Ministério Público, ao contrário
do que se verifica na esfera penal.
311
Conforme disciplina constitucional, o inquérito civil apresenta-se como ferramenta
eficiente à função instrumental do Ministério Público na investigação e combate aos atos de
corrupção, tendo como finalidade a coleta de elementos seguros da ocorrência (ou não) do ato
de improbidade administrativa, assim como da respectiva autoria. Assim, sem prejuízo do
disposto no art. 14 da Lei de Improbidade Administrativa
312
, ao Ministério Público é facultado
presidir diretamente a investigação destinada à apuração de eventual prática corrupta.
Uma investigação criminal ou cível, quando bem conduzida e orientada, poderá
determinar decisivamente o sucesso da repressão à prática disseminada dos atos de improbidade
administrativa, efetivando, a partir da Lei nº 8.429/92 e do instrumento da Ação Civil Pública, a
operatividade do princípio constitucional da moralidade administrativa.
3.2.3. Lei de Improbidade Administrativa: Lei n° 8.429/92
O legislador ordinário, em observância ao comando constitucional contido no § 4º, do
art. 37, CR
313
, disponibilizou um importante instrumento ao Ministério Público no combate
repressivo à corrupção, através da edição da Lei de Improbidade Administrativa, Lei Federal
8.429, de 2 de junho de 1992.
311
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Obra citada. 2002, p. 441.
312
Art. 14 da Lei Federal n° 8.429, de 2 de junho de 1992: Art. 14. Qualquer pessoa pode representar à
autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de
improbidade.
313
§ do art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil: § 4º. Os atos de improbidade administrativa
importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda de função pública, a indisponibilidade dos bens e o
ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
248
Como antecipado no item 2.2.3.2., apesar dos importantes avanços, a Lei Federal
8.429/92, apresenta técnica de redação deficiente, gerando dúvidas e controvérsias em relação
ao conteúdo normativo de alguns de seus dispositivos. Entretanto, o impasse é resolvido sem
maiores traumas a partir da imprescindível interpretação a partir do texto constitucional.
Marcelo Caetano afirma que a probidade administrativa consiste no dever de o
funcionário servir a administração com honestidade, procedendo no exercício das funções, sem
aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito próprio pessoal ou de
outrem a quem queria favorecer.
314
A Lei de Improbidade Administrativa dispõe justamente sobre as sanções aplicáveis aos
agentes públicos não cumpridores deste dever de honestidade e do dever de eficiência. Busca-se
a ampla responsabilização do agente ímprobo (ou terceiros) como medida fundamental para
prevenir, reparar e condenar a prática corrupta junto à administração pública. A prevenção
decorre do exemplo a ser dado a outros agentes públicos aventureiros intimidados com as
sanções impostas ao agente ímprobo. A condenação do agente desonesto em sanções diversas e
graves também representa a justa retribuição ao ímprobo por si praticado.
A reparação ou o ressarcimento traduzem-se não na recuperação dos bens, objetos e
valores apropriados indevidamente, ou às custas do erário, como também na reparação moral do
status a quo da administração pública, que se desgastada perante seus administrados,
restando prejudicado o bom andamento e o bom trato da coisa pública.
A responsabilização pela prática corrupta atinge o agente público faltoso
cumulativamente com outras sanções previstas nas diversas esferas. Em traços não taxativos, a
Constituição da República estabelece sanções a serem aplicadas aos agentes públicos corruptos
e/ou incompetentes, independente da repressão penal e administrativa, sujeitando-os às sanções
aplicáveis.
314
CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 396.
249
As sanções civis previstas na Lei de Improbidade Administrativa podem ser aplicadas
sem que seja necessário o julgamento antecipado nas esferas penal e administrativa, ressalvadas
as exceções legais, ocasiões em que a sentença penal absolutória definitiva também fará coisa
julgada no cível.
O art. da Lei de Improbidade Administrativa determina que, ocorrendo lesão ao
patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á
o integral ressarcimento do dano”. Entendimento imediato é que a responsabilização
correspondente ao ato de improbidade administrativa se exterioriza em decorrência do
comportamento corrupto, faltoso ou omisso do agente público que, dolosa ou culposamente,
causa prejuízo à administração pública.
É apropriado recordar que a responsabilização civil pela prática de ato de improbidade
administrativa independe da ocorrência de dano material ou da aprovação ou rejeição das contas
pelo Tribunal de Contas, se for o caso (LIA, art. 21).
Como registrado, além do ressarcimento integral do dano, o agente público faltoso se
sujeitará à suspensão dos direitos políticos, além de perda da função pública, perda dos bens
obtidos irregularmente, multa civil e proibição de contratar com administração pública e
receber benefícios. É bem verdade que o Magistrado deverá adequar com razoabilidade e
proporcionalidade as sanções aplicáveis conforme a hipótese concreta.
Recorde-se que entre as previsões constitucionais que determinam a suspensão dos
direitos políticos (CR, art. 15) encontra-se a improbidade administrativa. O comando
constitucional, não se contentando com a previsão do princípio da moralidade administrativa,
independente da ocorrência de dano material, ou da intenção do agente, estabeleceu severas
sanções ao agente público corrupto. Com efeito, a Lei 8.429/92, em seus arts. 9º, 10 e 11,
estabeleceu situações específicas, classificando-as como atos de improbidade administrativa,
cuja prática pelo agente público ocasionará como resultado de seu ato a aplicação das sanções
previstas nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa. O terceiro
250
particular envolvido, direta ou diretamente, com benefício próprio ou não, se sujeitará, no que
for cabível, às penalidades legais impostas.
De acordo com a adequação típica legal, os atos de improbidade administrativa, segundo
seus efeitos, são classificados como os que importam enriquecimento ilícito do agente público
(art. 9º), os que causam prejuízo ao erário (art. 10) e os que violam os princípios da
Administração Pública (art. 11), sujeitando os agentes corruptos e/ou faltosos na gradação
estabelecida com razoabilidade e proporcionalidade – às sanções legais.
Márcio Luís Chila Freyesleben, a partir de estudo sobre o fenômeno da corrupção
formulado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, associa os tipos de corrupção com as três
modalidades de atos de improbidade administrativa:
(...) três tipos de corrupção que, salvo melhor juízo, corresponderiam aos três grandes
grupos de atos de improbidade administrativa definidos na Lei n. 8.429/92. A saber: a
corrupção-suborno, que é a corrupção por meio de retribuição material e que estaria
configurada nas condutas do art. 9 (atos de improbidade administrativa que importam
enriquecimento ilícito); a corrupção-favorecimento, que é a corrupção de que resulta
privilegiamento do privado em detrimento do público e que corresponderia às condutas
descritas no art. 10 (atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário); e a
corrupção-solapamento, que atinge o próprio fundamento último da legitimidade e que
estaria consubstanciada nas fórmulas de conduta do art. 11 (atos de improbidade
administrativa que atentam contra os princípios da administração Pública).
315
Embora não se enquadre perfeitamente nas hipóteses previstas nos incisos dos arts. 9º,
10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, a comparação é válida para compreensão da
graduação das gravidades dos atos de corrupção praticados. A trilogia dos atos de corrupção
prevista nos arts. 9º, 10 e 11, caracteriza tipos excepcionais de natureza disciplinar que não são a
regra em nosso ordenamento jurídico-constitucional. A doutrina mais autorizada reconhece
nesses artigos a previsão de infrações disciplinares jurisdicionalizadas. Segundo Marcelo
Caetano:
315
FREYESLEBEN, Márcio Luís Chila. A Improbidade Administrativa - Comentário à Lei n. 8.429, de 2 de junho
de 1992, Revista AJUS, n. 17, 1994, edição especial, p.312.
251
As infrações disciplinares não são, pois, típicas: as leis especificam fatos que podem ser
considerados infrações, mas nem essa especificação é taxativa, nem constitui a descrição
rigorosa do tipo de conduta punível. Os conceitos que referem fatos disciplinarmente
puníveis são indicativos, meras normas de orientação para servirem de padrão ao
intérprete.
316
E continua o autor:
As infrações podem ser classificadas segundo critérios extraídos da definição. Assim se
distinguirão infrações por ação ou por omissão, culposas ou intencionais, de perigo (...). Tem
maior interesse, porém, a classificação que se faça segundo os deveres violados, donde
resultam as infrações de deveres profissionais, as infrações aos deveres de conduta na vida
privada e as infrações de natureza política.
317
Sendo em regra as infrações disciplinares atípicas, excepcionalmente quando a lei definir
condições específicas para caracterização das infrações, tipificada a norma disciplinar, estarão
presentes as infrações disciplinares jurisdicionadas, como ocorre nas hipóteses constitucionais
previstas no § 4º, art. 37, CR, e nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa.
Com relação ao Ministério Público, enquanto um dos legitimados para busca da
responsabilização dos atos de improbidade administrativa, este se valerá especificamente de um
fabuloso instrumento constitucional, como veremos em seguida.
3.2.4. O instrumento da Ação Civil Pública
Além das tradicionais funções do Ministério Público, de fiscal da lei (custos legis) e de
titular da ação penal pública, destaca-se a promoção da ação civil pública, instrumento pelo qual
o Parquet aciona o Poder Judiciário para promoção da defesa de direitos transindividuais,
difusos e coletivos, dentre os quais o patrimônio público e o próprio postulado
normativo/valorativo constitucional do princípio da moralidade administrativa (direito e
garantia).
316
CAETANO, Marcelo. Obra citada. p. 396.
317
___. IDEM.
252
A Lei da Ação Civil Pública, Lei Federal 7.347, de 24 de julho de 1985, anterior ao
texto constitucional, dispunha sobre a responsabilização por danos causados ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico. O instrumento restou consagrado pela Constituição da República ao dispor no
inciso III do art. 129, entre as funções institucionais do Ministério Público, a promoção da ação
civil pública
318
para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos, alargando-se ilimitadamente o catálogo de direitos protegidos
pelo instrumento constitucional. Como se constata, aão civil pública se transformou no
principal instrumento constitucional repressivo para defesa judicial dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a Lei Federal 8.078, de 11 de setembro de 1990 Código de Defesa do
Consumidor – inclui o inciso IV no art. 1° da Lei da Ação Civil Pública
319
, para fazer constar as
ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a qualquer outro interesse
difuso e coletivo.
Como pondera Paulo de Tarso Brandão, a ação civil pública é instrumento da cidadania,
a serviço da ordem política. O autor observa, citando Antônio Carlos Wolkmer:
“Levando-se em conta que as novas fontes de produção jurídica deverão ser encontradas na
própria sociedade, nada mais correto do que realçar o processo de formação da
normatividade das contradições, interesses e necessidades dos novos sujeitos sociais.” Não
resta dúvida de que a ação civil pública é um instrumento que tem hoje suporte normativo na
própria Constituição Federal, mas que teve seu nascedouro das tensões causadas no interior
da sociedade e na necessidade de “administrar” os conflitos daí decorrentes.
320
Por outro lado, observe-se que, embora muito se tenha discutido a respeito na doutrina, a
ação civil pública é o instrumento constitucional adequado para o Ministério Público tutelar o
princípio constitucional da moralidade administrativa (probidade), haja vista, como referido
318
Art. 129 e inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 129. São funções institucionais do
Ministério Público: (...) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. (grifamos).
319
Art. e inciso IV da Lei Federal 7.347, de 24 de junho de 1985: Art. 1°. Regem-se pelas disposições desta
Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (...) IV
– a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
320
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ação Civil Pública. Florianópolis: Obra Jurídica Editora, 1996, p. 101.
253
acima, se tratar da defesa de direito difuso decorrente do resguardo do patrimônio público e da
exigência dos padrões referenciais administrativos aos agentes públicos no trato da coisa
pública. Como observa Emerson Garcia:
Equivocada assim, data venia, a assertiva do descabimento da ação civil pública com vistas
ao ressarcimento dos danos causados ao erário e à aplicação das sanções do art. 12 da Lei nº
8.429/92 em razão do suposto rito especial adotado pela Lei 7.347/85. Equivocada,
rogata venia, não só porque o rito da ação civil pública não é especial, como também,
mesmo que especial fosse, ou venha a ser, porque a questão do procedimento, para fins de
incidência da Lei, de sua técnica protetiva, como visto, é de nenhuma importância.
321
Portanto, em que pese o disposto no art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa
322
,
tratando-se indiscutivelmente da defesa de direito difuso, do patrimônio público e do próprio
princípio, direito e garantia da moralidade administrativa flagrante o interesse coletivo –, a
determinação constitucional (inciso III, art. 129, CR) indica a ação civil pública como o
instrumento adequado à reserva destes direitos.
323
A promoção da ação civil pública não é monopólio exclusivo do Ministério Público,
podendo a mesma ser proposta pela União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas,
fundações, sociedades de economia mista ou por associações, desde que presentes os requisitos
legais. Todavia, a prática tem demonstrado que o Ministério Público é, com vantagem, o
principal ativador do instrumento constitucional, seja na defesa do patrimônio público e do
321
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Obra citada. 2002. p. 524-525.
322
Art. 17 da Lei Federal 8.429, de 2 de junho de 1992: Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será
proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro do de trinta dias da efetivação da
medida cautelar.
323
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ação Civil Pública. Atos de Improbidade
Administrativa. Defesa do Patrimônio Público. Legitimidade Ativa do Ministério Público.
Constituição Federal, arts. 127 e 129, III. Lei 7.347/85 (arts. 1°, IV, 3°, II, e 13). Lei 8.429/92
(art. 17). Lei 8.625/93 (arts. 25 e 26). 1. Dano ao erário municipal afeta o interesse coletivo,
legitimando o Ministério Público para promover inquérito civil e a ação civil pública
objetivando a defesa do patrimônio público. A Constituição Federal (art. 129, III) ampliou a
legitimação ativa do Ministério Público para propor Ação Civil Pública na defesa dos interesses
coletivos. (...) REsp. 154.128, SC - Turma, rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA.
Julgamento: 11/05/1998. Publicação: 18/12/1998.
254
princípio (direito e garantia) da moralidade administrativa, seja na defesa de outros interesses
difusos e coletivos. Rodolfo de Camargo Mancuso constata:
As estatísticas demonstram a absoluta superioridade do número de ações civis públicas
propostas pelo Ministério Público, em face daquelas propostas pelos outros co-legitimados.
Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz observa que “não deixa de preocupar a larga
preponderância dessa instituição quando se trata de atuação em defesa de interesses difusos
(com certeza é ela responsável pela atuação em mais de 90 % dos casos). Preocupa pois esse
é um sintoma claro da fragilidade de nossa democracia, na medida em que revela o grau
ainda incipiente de organização da chamada ‘sociedade civil’, a grave crise nacional da
educação, a baixa consciência dos cidadãos quanto aos seus direitos mais elementares, o
sentimento generalizado de impotência diante da impunidade”.
324
As críticas no sentido da banalização e do uso excessivo e abusivo do instrumento da
ação civil pública, como referido no item 3.1; também representam estratégias de ataque e de
resistência à atuação do Ministério Público. Lembrando as considerações de Maria Teresa
Sadek
325
, os agentes políticos temem a atuação operante e imparcial do Ministério Público, pois
sabem que poderão ser efetivamente responsabilizados pelas ilicitudes praticadas. No mesmo
sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso observa que casualmente
(...) registra-se algum excesso na utilização da ação civil pública (como, de resto, sói ocorrer
com outras ações de caráter coletivo), mas a crítica vem bem enfrentada pelo Min.
Sepúlveda Pertence, do STF: “Não espanta a conseqüente resistência dos reacionários de
sempre, aos quais apraz ingênua ou conscientemente pinçar um que outro exemplo
gritante de abuso da ação civil pública para denegrir o instituto e, de modo especial, a
atuação do Ministério Público no seu exercício cotidiano. Resistência que já colheu alguns
retrocessos significativos na legislação casuística dos últimos anos. Exemplos de abuso da
ação civil pública existem. E vários deles, gritantes. De modo especial, os que o
distinguem entre a intervenção na implementação de políticas públicas contestáveis à luz de
opções positivadas em princípios e regras da ordem constitucional ou legal que é legítima
– e a tentativa de impor-lhes objeções meramente políticas do agente eventual de sua
propositura. São custos inevitáveis da implementação de um poder novo...”.
326
324
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e
dos consumidores. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 108-109.
325
Entrevista concedida à Revista Época em 15/03/2008, Edição 513: Os prefeitos hoje em dia temem de tal
forma o Ministério Público que a probidade administrativa aumentou. Por quê? Eles sabem que, se cometerem
desvios, poderão ser denunciados. um integrante do Ministério Público em cada município. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EDG82364-9556,00.html
326
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Obra citada. p. 110-111.
255
A consagração constitucional de novos direitos fundamentais difusos e coletivos tem no
Ministério Público o instrumento persistente pela busca da efetividade do comando
constitucional e, em especial, do combate à corrupção, da defesa do patrimônio público e da
moralidade administrativa. A fruição dessas garantias e direitos constitucionais impõe-se como
medida imperiosa.
Com a politização das atribuições do Ministério Público, encontrando-se o Parquet no
olho do furacão – no centro dos conflitos coletivos, sociais e políticos da sociedade brasileira –,
a garantia de independência no exercício de suas funções é imposição constitucional que
permite sua eficiente instrumentalidade, estando a salvo (ou quase) das pressões externas, e
mesmo internas, provenientes da forte e poderosa resistência à operatividade do princípio
constitucional da moralidade administrativa.
Nesse contexto, apresenta-se a ação civil pública como um importante instrumento
constitucional no combate à corrupção, destinado à efetivação do princípio da moralidade
administrativa e à defesa do patrimônio e da probidade pública perante o Poder Judiciário.
É bem verdade, e preferível seria, que o Ministério Público priorizasse sua atuação
preventiva, estimulando o acesso ao exercício consciente de cidadania e, conseqüentemente, o
fortalecimento da democracia, na medida em que contribui para o aumento da capacidade de
reflexão em relação aos direitos fundamentais, rompendo com a conformação social e com o
desânimo decorrente da impunidade prevalecente no país. Portanto, conforme poderemos
acompanhar no próximo item, a diminuição do fenômeno da corrupção passa induvidosamente
pela prevenção. Como diz o velho brocardo popular: “É melhor prevenir do que remediar”.
3.3. A atuação preventiva e a educação das novas gerações
A corrupção é um fenômeno que atinge, sem distinção, praticamente todos os países do
mundo, sendo uma tipologia do comportamento humano ínsito a todas as sociedades
politicamente organizadas, flagelando, indistintamente, tanto as instituições de caráter público
como as de caráter privado. Nesse ponto, os debates travados para melhor compreensão do
256
fenômeno, têm convergido, na grande maioria, para a prevalência da adoção de medidas
preventivas em detrimento das medidas repressivas.
Prevalece o entendimento que não basta tão-somente a aplicação de sanção após a
prática do ato de corrupção para impedir que ele venha a se repetir. A sanção, quando imposta,
tem um efeito de caráter repressivo, que repercute principalmente no patrimônio jurídico do
agressor, e secundariamente, um caráter preventivo, pelo exemplo que representa para toda
sociedade. Ocorre que as medidas repressivas, por se caracterizarem pela prevalência do efeito
intimidativo, não são os instrumentos mais adequados para evitar efetivamente que a prática de
novos atos de corrupção venham a se repetir.
Assim, ganharam terreno os novos métodos de combate à corrupção focados numa
atuação de cunho preventivo, que propagam o engajamento conjunto do poder público e da
sociedade civil organizada.
O ponto positivo das ações preventivas consiste justamente no fato de que elas se
desenvolvem antecedentes à prática corrupta, possibilitando, assim, alcançar os indivíduos com
a personalidade ainda em processo de desenvolvimento. Nesse particular, sendo o ato de
corrupção uma afronta direta aos valores morais e éticos, entranhados na cultura popular,
vislumbra-se a importante influência que as ações preventivas podem ocasionar em indivíduos
que ainda não formaram por completo o seu arcabouço de valores.
Outro mérito das ações preventivas está na ampla gama de métodos colocados à
disposição para que se mantenha a integridade moral das instituições e, por conseqüência, da
própria sociedade.
No âmbito das ações preventivas, diversos estudos foram realizados com o intuito de
visualizar a dimensão exata do problema da corrupção infiltrado nas instituições públicas e
privadas.
257
Nesse sentido, a Convenção Interamericana contra a Corrupção ressalta a importância de
gerar na população local uma consciência em relação à existência e à gravidade desse problema
e da necessidade de reforçar a participação da sociedade civil na prevenção e na luta contra a
corrupção.
Entre os propósitos constantes na referida Convenção, encontram-se a promoção, o
fortalecimento e o desenvolvimento de mecanismos necessários à prevenção da corrupção,
estabelecendo, para tanto, as seguintes medidas preventivas: a) normas padrões de condutas a
serem observadas no exercício das funções públicas; b) mecanismos para efetivação do
cumprimento dessas normas; c) educação dos servidores públicos; d) sistemas para a declaração
de receitas, ativos e passivos em determinados casos pré-estabelecidos; e) sistemas de
recrutamento de funcionários públicos e de aquisição de bens e serviços que demonstrem
transparência, eqüidade e eficiência; f) sistemas para arrecadação e controle da rendas como
forma de impedir a corrupção; g) leis que vedem tratamento tributário irregular diferenciado; h)
sistemas de proteger as testemunhas; i) órgãos de controle superior, a fim de desenvolver
mecanismos modernos de prevenção; j) medidas que impeçam o suborno dos servidores; l)
mecanismos para estimular a participação da sociedade civil e de organizações não-
governamentais nos esforços de prevenção à corrupção; m) adoção de novas medidas de
prevenção a partir da remuneração eqüitativa e da probidade administrativa.
327
Por sua vez, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, assinada em 9 de
dezembro de 2003, promulgada no Brasil pelo Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006,
estabelece a necessidade de cooperação internacional para prevenção e combate à corrupção, a
partir de um enfoque amplo e multidisciplinar, prevendo o fortalecimento da capacidade do
Estado, inclusive com a criação de mecanismos e de instituições que busquem a efetivação dos
fins pretendidos.
327
Convenção Interamericana contra a Corrupção. Disponível em:
<http://www.cgu.gov.br/oea/convencao/arquivos/convencao.pdf >. Acesso em 18/09/2008.
258
O art. da Resolução
328
indica as medidas preventivas políticas e práticas no combate
efetivo à corrupção, indicando quatro estratégias prioritárias: a) o desenvolvimento, a
implementação ou a manutenção de políticas públicas eficazes e coordenadas contra a
corrupção, com a participação social, a partir da gestão apropriada de assuntos e bens públicos,
a integridade, a transparência e prestação de contas, conforme os princípios universais do
Estado Democrático de Direito; b) esforço concentrado no sentido de estabelecer e promover
práticas eficazes destinadas a prevenir a corrupção; c) avaliação periódica dos instrumentos
jurídicos e das medidas administrativas, com o desiderato de verificar a adequação para
eficiência preventiva; e d) colaboração internacional e regional para promoção e
desenvolvimento de medidas preventivas, a partir da inclusão em programas e projetos
destinados ao combate à corrupção, sempre de acordo com os princípios e direitos fundamentais
previstos no ordenamento jurídico-constitucional.
Como se vê, o dispositivo normativo apresenta uma série de propostas obrigatórias e
discricionárias, objetivando a prevenção eficiente das práticas corruptas, buscando minimizar ou
eliminar facilitadores da corrupção, bem como a adoção de políticas públicas anticorrupção com
a observância dos direitos fundamentais e os princípios universais do Estado Democrático de
Direito.
Os desafios propostos pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção passam
necessariamente pela apresentação de soluções práticas, viáveis e eficientes ao combate da
corrupção. Além da indicação das políticas e práticas de prevenção à corrupção (art. 5°), a
328
Art. 5° da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção: Artigo 5. Políticas e práticas de prevenção da
corrupção. 1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico,
formulará e aplicará ou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção que promovam a
participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens
públicos, a integridade, a transparência e a obrigação de render contas. 2. Cada Estado Parte procurará estabelecer e
fomentar práticas eficazes encaminhadas a prevenir a corrupção. 3. Cada Estado Parte procurará avaliar
periodicamente os instrumentos jurídicos e as medidas administrativas pertinentes a fim de determinar se são
adequadas para combater a corrupção. 4. Os Estados Partes, segundo procede e de conformidade com os princípios
fundamentais de seu ordenamento jurídico, colaborarão entre si e com as organizações internacionais e regionais
pertinentes na promoção e formulação das medidas mencionadas no presente Artigo. Essa colaboração poderá
compreender a participação em programas e projetos internacionais destinados a prevenir a corrupção. Disponível
em: <ttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5687.htm>. Acesso em 19/09/2008.
259
Convenção prevê a existência de órgãos públicos de prevenção (art. 6°); a orientação do setor
público a partir das diretrizes indicadas (art. 8°); a gestão apropriada dos negócios públicos (art.
9º); a integridade e a transparência pública (informação compreensível), a prestação de contas e
a revisão legislativa (art. 10); a adoção de medidas que visem reforçar a integridade e evitar a
corrupção no Poder Judiciário e no Ministério Público (art. 11); a adoção de medidas para
prevenção da corrupção no setor privado, com o aperfeiçoamento das normas contábeis e
auditorias (art. 12); a participação da sociedade (art. 13) e a adoção de medidas preventivas para
evitar a lavagem de dinheiro (art. 14).
Nessa realidade, a atuação preventiva do Ministério Público no combate à corrupção, no
cumprimento de suas tarefas constitucionais, busca dar operatividade ao princípio constitucional
da moralidade administrativa através de um processo educativo de formação de cidadãos a partir
da consciência crítica e da valoração dos direitos fundamentais. Dito de outra maneira, um
processo mediato de transformação cultural edificado com medidas práticas, viáveis e eficientes
na prevenção à corrupção.
Como salientado, ao membro do Parquet, muito além das manifestações processuais
(judiciais), é exigido um novo proceder a partir de uma melhor compreensão da comunidade.
Sua eficiência funcional prática depende justamente do conhecimento real das condições de vida
dos respectivos jurisdicionados. Partindo dessa compreensão, sensível aos conflitos sociais que
lhe rodeiam, caberá estabelecer estratégias práticas e efetivas para resolução dos problemas
locais. Nesse ponto, após a articulação e sensibilização dos Poderes constituídos, a adoção de
medidas preventivas são extremamente eficazes e vantajosas para a resolução dos conflitos
sociais e, conseqüentemente, para inibição das práticas corruptas.
Além disso, após a identificação das eventuais irregularidades e deficiências
administrativas e legais mais relevantes, é aconselhável ao Ministério Público o exercício do
controle preventivo da administração pública através da expedição de recomendações e de
sugestões, com o propósito de buscar soluções consensuais para as demandas sociais. Nesse
sentido, o Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade do Ministério
260
Público do Estado de Santa Catarina
329
, vem recomendando aos respectivos Poderes, com
sucesso, a adoção de providências no sentido da revogação voluntária de textos legais
pretensamente inconstitucionais. Esse controle concomitante e preventivo realizado pelo
Parquet, decorrente do dever constitucional de vigilância e zelo pelo patrimônio e pela
probidade pública, antecipa voluntariamente com eficiência e praticidade os resultados
perseguidos na esfera judicial, não raras vezes tardios e ineficientes.
Parece certamente desejável estabelecer mecanismos preventivos de combate à
corrupção. Aliás, depois de consumado o ato de corrupção, em regra, o ressarcimento integral
dos danos causados ao erário resta reduzido ou inviabilizado. A estratégia preventiva, como se
verifica, antecipa-se à consumação da prática corrupta, trazendo resultados mais eficientes e
positivos à sociedade brasileira.
Sem prejuízo da sua atuação tradicional na área repressiva, muitas vezes necessária e
obrigatória, o Ministério Público está legitimado (poder-dever) constitucionalmente a agir
preventivamente em busca da observância e do respeito ao princípio (direito e garantia) da
moralidade administrativa. Assim, é recomendado ao membro do Ministério Público, valendo-
se de suas prerrogativas constitucionais, exercer prioritária e efetivamente o controle preventivo
da corrupção, valendo-se, inclusive, da articulação com os Poderes constituídos e do
envolvimento com os movimentos organizados provenientes dos anseios sociais.
3.3.1. Os movimentos sociais
329
(...) Com meus cordiais cumprimentos, informo-lhe que tramita nesta Procuradoria-Geral de Justiça a
Representação (...), que tem por objetivo a análise de constitucionalidade da Lei Complementar Estadual (...).
Considerando os estudos e conclusões do Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade
CECCON, constantes do parecer anexo, e o propósito de buscar soluções consensuais para as demandas sociais,
tomo a liberdade de me dirigir a Vossa Excelência para sugerir a adoção de providências no sentido de que seja
revogado o aludido texto legal, a teor do art. 27, parágrafo único, IV, da Lei Federal nº 8.625/1993 e art. 83, XII, da
Lei Complementar Estadual nº 197/2000. Solicitamos, outrossim, a cientificação desta Procuradoria-Geral de
Justiça acerca das eventuais medidas levadas a efeito. Certo de merecer a costumeira atenção, reitero-lhe minhas
expressões de elevado apreço e consideração. Atenciosamente, (...). Fonte: Centro de Apoio Operacional do
Controle de Constitucionalidade do Ministério Público do Estado de Santa Catarina.
261
Não obstante a relevância dos deveres constitucionais incumbidos ao Ministério Público,
enquanto decisivo instrumento constitucional de garantia dos direitos fundamentais, o Parquet,
sozinho e isoladamente, pouco ou quase nada pode fazer, senão continuar “enxugando o gelo”.
Torna-se imperioso buscar a cooperação com a sociedade civil organizada, estabelecendo uma
relação de parceria e confiança mútua, legitimando o processo de conquista da cidadania e da
exigência pelo cumprimento das promessas constitucionais.
Embora se observe uma crescente evolução do envolvimento e da participação política
por parte de determinados setores da sociedade civil, a grande massa de brasileiros, condenados
à ignorância e ao esquecimento, desconhecem o poder dos movimentos sociais. O sintoma é
negativo. A sociedade, adoecida, comprova a falácia da democracia no Brasil. Um pouco
deseducado, sem consciência cívica e auto-estima, desconhece a amplitude dos diretos
fundamentais que lhes foram outorgados. Diante da impunidade, um sentimento generalizado de
impotência fabrica analfabetos políticos aos milhões. Lembrando Bertolt Brecht:
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos
acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da
farinha, do aluguel, do sapato e do remédio; depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política.
Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das
empresas nacionais e multinacionais.
330
De acordo com o art. 13 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção
331
, a
330
Texto de Bertold Brecht, escritor e teatrólogo alemão (1898/1956). Disponível em:
<http://www.consciencia.net/2004/mes/01/brecht-analfabeto.html>. Acesso em 19/09/2008.
331
Art. 13 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção: Artigo 13. Participação da sociedade. 1. Cada
Estado Parte adotará medidas adequadas, no limite de suas possibilidades e de conformidade com os princípios
fundamentais de sua legislação interna, para fomentar a participação ativa de pessoas e grupos que não pertençam
ao setor público, como a sociedade civil, as organizações não-governamentais e as organizações com base na
comunidade, na prevenção e na luta contra a corrupção, e para sensibilizar a opinião pública a respeito à existência,
às causas e à gravidade da corrupção, assim como a ameaça que esta representa. Essa participação deveria esforçar-
se com medidas como as seguintes: a) Aumentar a transparência e promover a contribuição da cidadania aos
processos de adoção de decisões; b) Garantir o acesso eficaz do público à informação; c) Realizar atividade de
informação pública para fomentar a intransigência à corrupção, assim como programas de educação pública,
incluídos programas escolares e universitários; d) Respeitar, promover e proteger a liberdade de buscar, receber,
publicar e difundir informação relativa à corrupção. Essa liberdade poderá estar sujeita a certas restrições, que
262
participação ativa da sociedade civil na formulação e na cobrança da implementação das
políticas públicas, deve ser assegurada através do envolvimento social independente e
responsável. Portanto, o Estado deverá levar em consideração os anseios dos representantes da
sociedade civil, que deverão ser necessariamente incluídos e consultados sobre as metas e
resultados das políticas públicas determinadas.
Apesar da dramaticidade da realidade nacional, mesmo que timidamente, os movimentos
organizados começam a brotar dos conflitos sociais, destacando-se, dentre tantos outros
movimentos dispersos no Brasil, alguns bons exemplos de participação efetiva na prevenção e
no combate à corrupção: a Associação Brasileira de ONGs, a Articulação de Mulheres
Brasileiras, a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, a Associação dos Cartunistas do
Brasil, a Campanha Nacional pela Educação, o Conselho Latino Americano de Educação, o
Conselho Nacional do Laicato do Brasil, o Comitê da Escola de Governo de São Paulo da
Campanha em Defesa da República e da Democracia, o Fórum da Amazônia Ocidental, o
Fórum da Amazônia Oriental,o Fórum Brasil do Orçamento,o Fórum de Entidades Nacionais de
Direitos Humanos, a Fundação Friedrich Ebert, o Fórum de Reflexão Política, o Fórum Mineiro
pela Reforma Política Ampla, Democrática e Participativa; o Fórum Nacional de Participação
Popular, o Fórum Nacional da Reforma Urbana,o Coletivo Brasil de Comunicação Social, o
Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, o
Movimento Pró-reforma Política com Participação Popular, o Observatório da Cidadania, o
Processo de Diálogo e Articulação de Agências Ecumênicas e Organizações Brasileiras, a Rede
Brasil Sobre Instituições Financeiras Multilaterais, a Rede Pela Integração dos Povos, a Rede
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, o Fórum Permanente de Combate
à Corrupção em Pernambuco, o Fórum Paraibano de Combate à Corrupção, o Movimento
Articulado de combate à Corrupção do Rio Grande do Norte, o Fórum de Articulação Integrada
deverão estar expressamente qualificadas pela lei e ser necessárias para: i) Garantir o respeito dos direitos ou da
reputação de terceiros; ii) Salvaguardar a segurança nacional, a ordem pública, ou a saúde ou a moral públicas.
2. Cada Estado Parte adotará medidas apropriadas para garantir que o público tenha conhecimento dos órgão
pertinentes de luta contra a corrupção mencionados na presente Convenção, e facilitará o acesso a tais órgãos,
quando proceder, para a denúncia, inclusive anônima, de quaisquer incidentes que possam ser considerados
constitutivos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção. Disponível em:
<ttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5687.htm>. Acesso em 19/09/2008.
263
do Controle dos Gastos Públicos do Ceará, o Movimento “Pé Vermelho! Mãos Limpas!” do
Paraná, a Associação Amigos Associados de Ribeirão Bonito de São Paulo, o Projeto “O que
você tem a ver com a corrupção?” do Ministério Público brasileiro, muitos dos quais com a
participação efetiva de membros do Parquet.
Parece claro, portanto, que os movimentos sociais possuem um papel determinante na
construção de uma nova mentalidade e consciência cívica, sem a qual o Estado Democrático de
Direito no Brasil continuará representando mera fantasia. Assim, a mobilização para
participação da sociedade civil, das organizações não-governamentais e das organizações com
base nas comunidades, na prevenção e no combate contra a corrupção, a partir da articulação e
da sensibilização da opinião pública, também é tarefa constitucional do Ministério Público, que
deve interagir ativamente com a sociedade que representa, razão maior de sua instrumentalidade
constitucional. Um exemplo vitorioso desse envolvimento social pode ser observado através do
Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”.
3.3.2. O projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”
A necessidade de uma ética humana comum para a convivência coletiva e harmônica
deve ser construída a partir da singularidade do sujeito, respeitadas as diferenças e pluralidades
múltiplas da raça humana. Como se sabe, uma sociedade se modifica quando os indivíduos
que a compõem se modificam. E toda mudança envolve educação.
No Brasil, a educação se apresenta como um importante veículo de combate à
corrupção, por meio da percepção e do estímulo à ética, àmoral e à honestidade do cidadão, e o
comprometimento da sociedade na cobrança pela transparência da gestão pública e com o fim
da impunidade. Outro fator relevante é a adoção de medidas que contribuam para a diminuição
da burocracia judicial e melhorem a eficiência dos serviços da Justiça na punição de corruptos e
de corruptores. Essavisão estimula a criação de soluções passíveis de serem incrementadas,
como a atuação preventiva por meio da mobilização e conscientização social.
264
Partindo dessa premissa e diante das dificuldades em se coibirem práticas corruptas
arraigadas na sociedade brasileira, considerando que uma das soluções seria a atuação
preventiva dos agentes sociais, resolvemos iniciar um programa de mobilização e
conscientização social denominado “O que você tem a ver com a corrupção?”.
332
O programa tem o caráter educativo de trabalhar a problemática da corrupção, a partir de
soluções práticas visíveis, longe do discurso demagógico tão comum nos dias de hoje.
O grande trunfo do ineditismo do projeto consiste na confecção de um processo cultural
de formação de consciência e de responsabilidade dos cidadãos, a partir de três tipos de
responsabilidades: a) a responsabilidade para com os próprios atos, ou responsabilidade
individual: estou fazendo a minha parte no dia-a-dia? b) a responsabilidade para com os atos de
terceiros, ou responsabilidade social ou coletiva: estamos cobrando individual e coletivamente a
efetiva apuração e punição de corruptos? Estamos exigindo o fim da impunidade? c) a
responsabilidade para com as gerações futuras a partir de um agir consciente.
É justamente essa responsabilidade que justifica o estímulo às novas gerações a
adotarem uma conduta ética e moral comprometida com o bem estar coletivo. É extremamente
importante conscientizar a juventude sobre as conseqüências dos vícios e condutas desonestas.
Lembremos que se toda humanidade fosse viver em condições financeiras iguais aos 20% (vinte
por cento) dos que mais detêm poder econômico, seriam necessários 10 (dez) planetas Terra
para satisfazer o consumo de toda a humanidade.
Além do objetivo preventivo por meio da educação, o projeto tem como escopo
estimular as denúncias populares dos atos de corrupção, não importando o maior ou menor grau
de lesividade à população. Com isso, cria-se um canal direto entre a sociedade e o Ministério
Público, facilitando a apuração das mencionadas condutas.
332
O autor é coordenador nacional do Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”.
265
O projeto está alicerçado em dois vieses fundamentais: 1º) acabar com a impunidade, ou
seja, buscar a efetiva punição dos corruptos e dos corruptores, por meio de um canal real para o
oferecimento de denúncias; 2º) educar e estimular as novas gerações, mediante a construção, em
longo prazo, de um Brasil mais justo e sério, destacando-se o papel fundamental de nossas
próprias condutas diárias a partir do seguinte princípio: é preciso dar o exemplo.
O primeiro passo para consecução do projeto envolveu as seguintes situações: a)
promover no Ministério Público brasileiro uma mudança cultural, estimulando o desempenho de
atividades extrajudiciais e preventivas; b) convencer instituições, empresas, pessoas, enfim, a
sociedade civil organizada, a se engajarem num projeto de longo prazo que enredasse a
sociedade em uma campanha de estímulo à ética e à honestidade dos cidadãos.
Diante da simplicidade, criatividade e eficiência do projeto, o Ministério Público de
Santa Catarina, por meio do autor da presente dissertação, foi o vencedor da segunda edição do
Prêmio Innovare
333
, na categoria Ministério Público. Vale lembrar que a segunda edição do
Prêmio ocorreu em 2005, ano em que foi criada a categoria Ministério Público, tornando a
prática a primeira a receber o troféu, em nome da Instituição.
Os resultados obtidos até a presente data são relevantes e consideráveis. O projeto
tomou conta do Brasil, possuindo coordenadores estaduais (e distrital) em cada Estado e no
Distrito Federal. Conta com a participação de todos os Ministérios Públicos Estaduais, do
Federal, do Trabalho e do Militar.
A prática foi lançada em agosto de 2004, com o objetivo de conscientizar toda a
sociedade, especialmente crianças e adolescentes, sobre o valor da honestidade e da
transparência das atitudes do cidadão comum, destacando atos rotineiros que contribuem para a
formação do caráter.
333
II Prêmio INNOVARE. A Justiça do Século XXI. A REFORMA Silenciosa da Justiça. Org. Centro de Justiça e
Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 2007, p. 20-37.
266
O lançamento da campanha ocorreu na Sala 1 do Cinema Arco-Íris, no Shopping
Mercocentro, em Chapecó-SC, com a exibição de um vídeo animado com abordagens
diferenciadas sobre o assunto. Até maio de 2005, o vídeo tinha sido exibido em todos os
meios de comunicação do estado, iniciando um ciclo de palestras e debates sobre a campanha.
Paralelamente, foi produzida uma cartilha no formato de gibi para distribuição nas escolas
primárias e secundárias. As Secretarias de Estado Regionais foram responsáveis pela
distribuição do material da campanha às escolas de sua área de abrangência.
A divulgação junto à mídia vem ocorrendo nacionalmente desde fevereiro de 2008. O
programa possui um cronograma nacional a ser executado por cada Ministério Público Estadual
e parceiros. O desenvolvimento do projeto vem compreendendo diversas atividades nas mais
variadas searas: a) informativa (divulgação dos deos do projetos nos meios de comunicação,
televisão, rádio, jornais, cinemas etc.); b) educativa (distribuição de cartazes, gibis e DVD’s; c)
realização concursos de redação, de desenho e de projeto e desenvolvimento de atividades
pedagógicas nas escolas nacionais); d) esportiva (divulgação em eventos esportivos); e) cultural
(apresentação da peça de teatro “O que você tem a ver com a corrupção?”); f) mobilizações
populares (passeatas, shows, concursos de faixas, pedágios nas rodovias em parceria com a
Polícia Rodoviária Federal); g) mobilizações sociais (fóruns, congressos, palestras, seminários,
reuniões etc.); h) cursos de capacitação; i) convênios e termos de cooperação (parceria para
divulgação do projeto com universidades, empresas, instituições, Poderes, associações,
fundações, ONG’s etc.).
O processo de implementação nacional da prática se iniciou a partir de um diagnóstico
das realidades regionais, com a definição e o complemento das seguintes estratégias
padronizadas nacionalmente para a execução do projeto: a) elaboração do material educativo; b)
estabelecimento de canais para denúncias com efetiva apuração e/ou encaminhamento para os
órgãos competentes, com o devido acompanhamento; c) mobilização da sociedade e
disseminação do projeto por meio de atividades jurídicas, esportivas e culturais; d) palestras
com promotores de Justiça, juízes, operadores do direito, professores, alunos etc; e) teatro, jogos
de futebol, basquete etc; f) passeatas e mobilizações; g) realização de parcerias com diversos
órgãos e instituições por meio da assinatura de termos de Convênio e/ou Cooperação; h)
267
realização de concurso escolar com premiações nas categorias ensino infantil (desenho), ensino
fundamental (redação) e ensino médio (projeto).
O material educacional do projeto é composto das seguintes peças: DVD’s, revistas em
forma de gibis, cartazes, adesivos, chaveiros, cartões telefônicos, outdoor e camisetas com a
temática: “O que você tem a ver com a corrupção?”.
Como o projeto está direcionado principalmente para crianças e adolescentes, o material
educacional foi preparado em forma de desenho animado para audiovisuais e revistas em
formato de gibis. O enredo nos dois recursos é narrado por meio de desenhos e textos, discurso
direto, numa linguagem simples que facilita a compreensão da narrativa. O tema corrupção é
colocado em situações cotidianas na primeira parte da narrativa e depois assume a temática que
engloba o incentivo à honestidade e a transparência das atitudes em todos os níveis, de escolas a
governos. O que se propõe é simplesmente a reflexão do que a corrupção pode ocasionar em
nossas vidas. Nesse enfoque, o projeto estimula as pessoas a assumirem a responsabilidade com
suas próprias atitudes tanto para si como para com as outras pessoas.
O personagem do desenho representa um adolescente que conversa de forma familiar e
compreensível, utilizando-se de recursos lingüísticos próprios dos desenhos animados, para que
o leitor ou o expectador se identifique com o personagem e a comunicação se estabeleça de
imediato.
Apesar da simplicidade do projeto, o Ministério Público brasileiro busca resgatar, a
partir da atuação preventiva, alguns valores éticos e morais esquecidos por muitos brasileiros.
Acredita-se, pois, que somente através de um processo educativo estratégico e planejado,
comprometido, aceito e envolto na própria sociedade, é que se poderão estruturar as bases
necessárias para primeira conquista do Estado Democrático de Direito, de viés garantista e
constitucional, onde os direitos fundamentais não sejam apenas imagináveis pretensões.
3.3.3. A educação como instrumento de conscientização para a democracia
268
O fenômeno da corrupção manifesta-se em nossos dias de forma tão intensa e
diversificada que não como negar sua generalização na sociedade brasileira. Os desvios de
verbas previdenciárias, as fraudes eleitorais, as apropriações de verbas públicas, o nepotismo, os
cabides de emprego, os funcionários fantasmas, a sonegação fiscal, a profusão entre o público e
o privado, o jeitinho brasileiro, enfim, a corrupção materializada em hábitos cotidianos tão
comezinhos, comprova a massificação de um processo anti-educacional baseado no
individualismo, na ignorância e na manipulação. Na macro-criminalidade, a engenharia da
corrupção desenvolveu novas e modernas tecnologias com o objetivo de melhor se apropriar de
bens e direitos alheios.
A corrupção domina as razões e os hábitos dos nossos dias. A parte visível do iceberg
não representa 10 % de seu volume total. A corrupção não será combatida eficientemente
apenas com um sistema avançado para realização dos direitos fundamentais. Nenhuma garantia
sobrevive pela simples inscrição de normas constitucionais, sendo necessária sua consolidação
no mundo real. Um sistema jurídico, mesmo que teoricamente perfeito não pode garantir, por si
só, coisa alguma.
334
O fenômeno da corrupção poderá ser efetivamente combatido e atenuado a partir da
criação de um ambiente com condições propícias para implantação do Estado Democrático de
Direito. Sem a formação de uma consciência universal, estruturada através de estímulos à
reflexão crítica (seres pensantes), e definida consensualmente num processo educativo plural,
tudo permanecerá como outrora.
Assim, a partir da compreensão histórica do fenômeno da corrupção no Brasil, de suas
origens patrimoniais no Estado português com a edificação de valores anti-morias, da
compulsão orçamentária, do consumo desmedido, da repulsa ao trabalho produtivo, da
dependência e bajulação ao poder poderemos identificar o caminho da reconstrução cívica,
através da educação das novas gerações como instrumento de conscientização para a
democracia e usufruto efetivo dos direitos fundamentais.
334
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada. p. 752.
269
Por certo, longe de qualquer discurso fantasioso, o desenvolvimento humano exige o
compartilhamento com a igualdade dos povos, sendo razoável a aceitação de um catálogo
universal de direitos fundamentais reservados ao bem-estar das atuais e futuras gerações.
Todavia, não se pode confundir o bem-estar da humanidade, com o discurso hipócrita do
desenvolvimento sustentável que escamoteia, na verdade, uma única intenção, um único desejo,
com ou sem o pagamento de propinas: o consumo frenético em busca de lucros sempre
crescentes, de mais e mais, quem sabe, o consumo do próprio homem.
335
Portanto, a responsabilidade individual de cada vivente, e a responsabilidade coletiva de
grupos, comunidades, países, enfim, da própria humanidade, são pontos fundamentais para
condução racional da vida humana no planeta. É preciso que cada sujeito seja capaz de assumir
responsabilidades cotidianas e futuras, para construção responsável da paz e da harmonia
universal.
Importa destacar que a responsabilidade de preservação da vida planetária é de todos:
crianças e idosos, devastadores e ambientalistas, cientistas e filósofos, desempregados e
trabalhadores, etc. Mesmo que muitos dos delitos ainda permaneçam impunes, e que grandes
corruptos a quase todos comprem ou subornem, é preciso lutar pela efetiva responsabilização
dos indivíduos que violem as regras impostas indistintamente a todos. Somos, pois,
responsáveis pelos atos que edificamos durante a vida terrena, independentemente das melhores
ou piores intenções.
Como se vê, essencial se torna uma educação voltada para a convivência humana
tolerante no planeta. Uma sociedade se modifica quando os indivíduos que a compõem se
335
DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças. Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal.
Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro, Companhia de Freud. 2005. p. 10: No momento da vitória
total do capitalismo e da celebração do “capital humano”, da gestão esclarecida dos “recursos humanos” e da “boa
direção ligada ao desenvolvimento humano”, essas falas maliciosas guardam todo o seu sal. Elas muito
simplesmente deixam entender que o capitalismo consome também... o homem. Em resumo, ele diria respeito à sua
notável inteligência de ter sabido transformar em um sistema social eficiente, de uma amplitude presentemente
quase que mundial, o que o irônico slogan surrealista exprimia com um belo verdor: “Comam o homem, é bom!”.
270
modificam. A educação das novas gerações é o único instrumento possível capaz de deter o
fenômeno da corrupção. Somente através da reflexão crítica e libertária, do diálogo franco e
horizontal, do julgamento consciente e compreendido, da ação responsável e comprometida, da
convivência harmônica e tolerante, da escolha de bons exemplos, da nova ética humana e da
visão complexa universal, atos esses proporcionados e disseminados por uma educação
instrumental de conscientização para a democracia, se poderá realizar o Estado garantista. Urge,
portanto, reeducar cada sujeito para a convivência consciente e harmônica, baseada na igualdade
dos povos, em busca da sonhada e almejada paz e harmonia universal. Eis a utopia!
336
3.3.3.1. Uma consciência universal
Torna-se necessário refletir sobre os atos praticados por cada indivíduo durante sua
existência. Cada um de nós está fazendo a sua parte? Não podemos considerar nossos atos como
insignificantes, sendo necessária a reflexão diária sobre nossas próprias responsabilidades.
Nossas condutas deverão ser aquelas adequadas à convivência comum harmônica, julgando
cada situação concreta com análise crítica e coletiva e rejeitando a aceitação cômoda da melhor
escolha individual. Devemos julgar e eleger bons exemplos, além de exercer uma ética humana
universal, aceitando um padrão mínimo de desenvolvimento preventivo do planeta. Aliás,
somos todos responsáveis, individual e coletivamente, para com a durabilidade do mundo por
meio de um agir consciente.
É pertinente evocar a pluralidade presente internamente dentro de cada indivíduo,
considerando os diversos pontos de vista possíveis à análise de determinada situação concreta,
com a formação de uma opinião consciente e segura dos deveres e das responsabilidades
individuais e coletivas da humanidade. Impossível, portanto, abrir mão da faculdade de reflexão.
O julgamento individual deve se socorrer dos exemplos vivenciados durante toda história da
humanidade acertos e erros buscando a prevalência das melhores escolhas para convivência
tolerante e harmônica. O indivíduo que pensa é constantemente testemunha de seus próprios
atos. Além da responsabilidade individual pelos próprios atos, também somos todos
336
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada. p. 749-750.
271
responsáveis pela construção coletiva da vida em sociedade. Assim, tanto a omissão como a
conformação impotente em relação aos acontecimentos modernos, representam igualmente uma
responsabilidade que deve ser absorvida por todos os sujeitos conscientes desse processo.
Hannah Arendt
337
refere-se a uma espécie de atualização constante da nossa
singularidade, por meio do exercício diário da capacidade de pensar, de refletir, de questionar os
acontecimentos que se impõem a nossa volta. É através dessa reflexão e desse julgamento
interno, que acontece a distinção e a escolha entre o certo e o errado, determinação que nos
conduzirá à prática de atos comprometidos com a igualdade social ou, em sentido contrário,
com a corrupção generalizada, estando esta sempre associada à estrutura de poder.
A necessidade de uma ética humana comum para a convivência coletiva e harmônica
deve ser construída a partir da singularidade do sujeito, respeitadas as diferenças e pluralidades
múltiplas da raça humana. Hannah Arendt esclarece que:
A moralidade diz respeito ao indivíduo na sua singularidade. O critério de certo e errado, a
resposta à pergunta, a resposta à pergunta: O que devo fazer?”, não depende, em última
análise, nem dos hábitos e costumes que partilho com aqueles ao meu redor nem de uma
ordem de origem divina ou humana, mas do que decido com respeito a mim mesma.
338
O ponto central do pensamento arendtiano ressalta a faculdade da vida do espírito à
noção de responsabilidade para o convívio harmônico, coletivo e universal. A responsabilidade
do ser humano está ligada a sua ação pessoal cotidiana. Portanto, somos todos responsáveis pela
igualdade universal, sendo razoável o preparo de uma educação como instrumento de
conscientização para a democracia voltada aos compromissos presentes e futuros.
3.3.3.2. O processo de educação: seres pensantes
337
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução: Rosaura Eichenberg. São Paulo, Companhia das
Letras. 2004.
338
___. IDEM. p. 162-164.
272
As responsabilidades a que todos se sujeitam, seja pela prática de um pequeno desvio de
conduta (furar a fila), seja pela prática de um grande ato de corrupção (desvio de verba pública),
desde que realizado um julgamento interno consciente e reflexivo, poderão determinar uma
reviravolta na promessa profética da corrupção definitiva e da impunidade prevalecente. Cientes
de nossas responsabilidades e deveres, tolerantes à convivência de diferentes sujeitos, será
possível erguer o Estado Democrático de Direito e, conseqüentemente, operacionalizar os
direitos fundamentais.
Mas como e de que maneira refletir sobre as conseqüências das ações humanas? Como
interferir responsavelmente nos acontecimentos modernos num mundo globalizado? Como
determinar esse agir consciente? Contribuímos de alguma forma para disseminação do
fenômeno da corrupção? Vivemos num Estado Democrático de Direito? O que são os direitos
fundamentais?
Bem, as respostas a tais perguntas, longe de conclusões definitivas, absolutas,
verdadeiras ou exclusivas, podem surgir através do exercício elaborado de uma educação ética e
consciente, objetivando a reflexão crítica e a formação de seres pensantes. Trata-se da educação
como instrumento de conscientização para a democracia, caracterizada por um agir consciente e
responsável, através de um novo processo educativo consubstanciado no diálogo franco,
transparente e realista.
Afinal, a sociedade não pode mais esperar. É exatamente a consciência individual que
possibilita a igualdade e o respeito universal entre os povos e as pessoas. Somente através de um
agir consciente, conquistado com a educação instrumental libertária e responsável –, é que se
poderá alcançar a reflexão necessária à compreensão da gravidade das conseqüências do
fenômeno da corrupção.
Ocorre que a educação como instrumento de conscientização para a democracia será
viável através do rompimento com os esquemas verticais característicos da atual estrutura
tradicional (patrimonial) da educação brasileira. A nova educação problematizadora deve
273
superar a contradição existente entre o educador e os educandos, libertando, através do diálogo
franco e igualitário, a troca de conhecimentos entre os agentes do processo educativo.
O educador não mais transmite conhecimentos, como também os recebe, através de
uma troca saudável entre o educador e o educando, que, reciprocamente, alternam o papel de
comando, possibilitando o crescimento mútuo, esquecida a conhecida hierarquia da educação
tradicional opressora. Cuida-se de um verdadeiro diálogo, sem detentores exclusivos de palavras
ou de verdades. Como lembra Paulo Freire:
Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens
se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos
cognoscíveis que, na prática ‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os
deposita nos educandos passivos.
339
Na educação opressora tradicional, os educandos não são apresentados ao conhecimento,
sendo obrigados a decorar as informações repassadas pelo educador opressor, deixando de
existir qualquer reflexão crítica a respeito do assunto abordado, situação que, por si só,
inviabiliza as escolhas conscientes e responsáveis por parte dos educandos. Ao contrário,
através do diálogo horizontal entre o educador e o educando, possível se apresenta a
interferência questionadora dos debatedores. Como transparece evidente, ao educador será
possível existir, e educar, desde que constituído o educando. Para Jean-Paul Sartre a
consciência e o mundo se dão ao mesmo tempo: exterior por essência à consciência, o mundo é,
por essência, relativo a ela.
340
A educação como instrumento de conscientização para a democracia, ao inverso da
educação tradicional opressora, exige um esforço permanente do vivente através do exercício de
sua percepção reflexiva como sujeito presente no mundo em que funciona. Educador e
educando devem escolher livremente a si próprios, julgando conforme seus argumentos,
339
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 2005, p. 79: Prática bancária é a
educação tradicional como prática de dominação dos educandos oprimidos, característica da dominação tradicional
patrimonial.
340
SARTRE, Jean-Paul. El hombre y las cosas. Buenos Aires. Losada S.A. 1965. p. 25-26.
274
elegendo seus próprios exemplos, ambos conscientes de suas responsabilidades para com a
construção do Estado Democrático de Direito por meio de um agir crítico. Paulo Freire
acrescenta:
Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas que estamos analisando.
A “bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas certas razões que explicam a
maneira como estão sendo os homens no mundo e, para isto, mistifica a realidade. A
problematizadora, comprometida com a libertação, se empenha na desmistificação. Por isto,
a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda tem nele o selo do ato cognoscente,
desvelador da realidade.
A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à
dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da
consciência como um desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua
vocação ontológica e histórica de humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à
libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens
sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da
busca e da transformação criadora.
341
Edgar Morin
342
indica sete saberes indispensáveis que podem contribuir valiosamente
para a consolidação da educação como instrumento de conscientização democrática. Segundo
sustenta, os setes saberes As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do
conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as
incertezas; Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano podem conduzir ao caminho
que deve ser trilhado pela humanidade em busca de uma possível educação crítica, responsável
e consciente, para todos aqueles que almejem contribuir para o desenvolvimento sadio da vida
planetária.
A cegueira do sistema educacional tradicional, característica do Estado patrimonial,
esquece a necessária tarefa de fazer conhecer o conhecimento, haja vista que totalmente
engessada por erros e ilusões do passado e do presente. Aliás, conhecer o conhecimento deve
ser o primeiro passo do educador comprometido com o saber consciente, evitando muitos dos
erros e das ilusões ocasionadas pela educação tradicional opressora, que se transformam em
341
FREIRE, Paulo. Obra citada. p. 83.
342
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução: Catarina Eleonora F. da silva e
Jeanne Sawaya. São Paulo, Cortez. Brasília, DF: UNESCO. 2005.
275
verdadeiras armadilhas à mente de educadores e de educandos. A lucidez racional da mente
humana acaba por ser resfriada por preconceitos equivocados e oníricos, próprios do mundo
fictício em que vivemos nos dias atuais.
Torna-se imperiosa a promoção de uma educação calcada no conhecimento universal,
devendo ser superada a supremacia do conhecimento fragmentado abordado através das
tradicionais disciplinas individualizadas. A complexidade do “Todo”, do conjunto, acaba sendo
assassinada pela análise bitolada de conhecimentos parciais que isoladamente não demonstram
o verdadeiro sentido dos acontecimentos da vida cotidiana. O fracionamento do conhecimento é
incompatível com a complexidade da natureza humana, ao mesmo tempo física, biológica,
psíquica, cultural, social e histórica. Portanto, a própria condição humana deve ser objeto de
estudo específico, reconhecidas a unidade e complexidade das atividades humanas num
universo rico e complexo.
É necessário o conhecimento da história da humanidade, demonstrando a identidade
terrena, devendo ser adotada uma solidariedade mundial, já que todos somos seres de um
mesmo habitat. Partilhamos as mesmas angústias, medos e incertezas, mesmo que presentes
algumas diferenças singularizadas, sendo oportuna a convivência tolerante, pois que o destino
do planeta é o destino comum que deverá ser partilhado por toda a humanidade. É a própria
utopia perseguida por Ferrajoli, consistente na fundação de um Estado de direito
internacional.
343
Devemos enfrentar nossas angústias, medos e incertezas, através do diálogo e da
reflexão, esquecendo das verdades absolutas, frutos de anos de incompreensão. Certo é que o
futuro é incerto, sendo conveniente consciência e reflexão. Importa evitar atitudes impulsivas
destinadas à imediata satisfação. É preciso, vez por outra, corrigir o rumo e apontar em uma
nova direção, compreendendo as necessidades humanas, sempre lutando por ajustes e soluções.
Ensinar a identidade e a consciência terrenas, posto que nenhum tem existência única no
planeta. Morin assevera que:
343
FERRAJOLI, Luigi. Obra citada. p. 749-750.
276
O planeta exige um pensamento policêntrico capaz de apontar o universalismo, não abstrato,
mas consciente da unidade/diversidade da condição humana; um pensamento policêntrico
nutrido das culturas do mundo. Educar para este pensamento é a finalidade da educação do
futuro, que deve trabalhar na era planetária, para a identidade e a consciência terrenas.
344
A compreensão é, portanto, ao mesmo tempo instrumento e objetivo da comunicação
humana no planeta, sendo fundamental para a educação como instrumento de conscientização
democrática o reconhecimento da compreensão universal, para convivência harmônica e uma
educação pela paz, a qual estamos relacionados por essência e vocação naturais. Nas palavras de
Edgar Morin, a compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é
daqui para a frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de
incompreensão.
345
A ética do gênero humano também não pode ser esquecida como elemento chave a
determinar o sucesso da educação como instrumento de conscientização democrática, sendo
essencial o ensinamento e a compreensão do desenvolvimento conjunto das particularidades de
cada vivente, das contribuições sociais e da consciência da própria existência humana.
Por fim, não se deve confundir uma educação libertária, com uma educação de
libertinagem, irresponsável e sem limites. Ocorre que o Estado patrimonial, hoje com uma
maquiagem pós-moderna, continua sendo caracterizado pelo predomínio de uma nova condição
subjetiva fortalecida através da construção de um indivíduo alienado e ignorante. Um sujeito
sem reflexão, sem contestação, enfim, niilista, uma presa fácil dos donos do poder.
Escamoteado através de um discurso democrático e liberal, o Estado patrimonial brasileiro
realça a ilusão da modernidade, da igualdade constitucional e dos direitos fundamentais.
Assim, condição obrigatória exigida para a eficiência da educação como instrumento de
conscientização para a democracia, a consciência humana deve ser trabalhada entre educadores
e educandos, cientes de que a criatividade e a liberdade de reflexão demonstram, ao contrário do
344
MORIN, Edgar. Obra citada. p. 64-65.
345
___. IDEM. p. 17.
277
que pretendem fazer os donos do poder, que a verdadeira liberdade será conquistada através
da imposição de limites e da garantia de direitos fundamentais aplicáveis indistintamente a
todos, marcos essenciais para co-existência igualitária e universal.
O fenômeno da corrupção, caracterizado pelos implícitos do discurso tecnocrata e
infalível do ganho fácil e do lucro certo, conduz o vivente às maravilhas da ilusão de um mundo
sem limites. Tudo é possível, inclusive, a apropriação da coisa pública. O indivíduo,
conformado com a corrupção epidêmica no Brasil, desiludido com a impunidade reinante,
adoece. Inconscientemente, contaminado pela patologia, num maior ou menor grau, o vivente
acaba aderindo e consentido com as práticas corruptas. E, com ele, adoce também um país, que
já demonstra visivelmente as conseqüências de toda essa ganância e corrupção.
O modelo proposto para a educação como instrumento de conscientização para a
democracia, longe de representar um esquema único e acabado, poderá com as contribuições
que certamente ainda receberá – determinar o descobrimento do Estado Democrático de Direito,
sem fórmulas mágicas ou “salvadores da pátria”, simplesmente a partir da existência do próprio
indivíduo, consciente e crítico. Eis a aposta: seres pensantes, cientes de suas responsabilidades e
de seus direitos fundamentais. Oxalá!
278
CONCLUSÃO
Como se pôde constatar, o fenômeno da corrupção no Brasil possui caráter
essencialmente cultural, influência do legado predatório português. E isso ocorre em virtude da
adoção da dominação tradicional patrimonial, caracterizada por um modelo centralizador,
absolutista e privatista de poder, o que permitiu a formação de uma estrutura totalmente
contrária e lesiva aos interesses sociais, difusos e coletivos, enfim, avessa à garantia de
quaisquer direitos fundamentais.
A corrupção se forma como valor negativo moral da sociedade, levando seus indivíduos
a tratarem o público como se fosse privado. Como fenômeno cultural e relacional, a corrupção
não se relaciona unicamente com a ação ímproba decorrente da utilização indevida do poder
constituído em benefício privado, como também, com a maneira de ser dos indivíduos e os
valores éticos pré-definidos no íntimo pessoal de cada personagem. Como observa Zancaro, o
fenômeno é anterior ao ato corrupto propriamente dito. Pelo que, sob um modelo de dominação
de características patrimoniais, em princípio, nenhum cidadão pode considerar-se imune aos
seus atrativos”.
346
O trabalho produtivo sempre foi considerado desprezível e humilhante, ao tempo em que
as funções públicas continuam sendo objeto de desejo por parte de muitos brasileiros,
preenchidas através de critérios subjetivos e pessoais conforme os gostos dos donos do poder.
Com o arbítrio e a interferência absoluta do Estado patrimonial, este, na condição de grande pai
da nação, continua, ainda nos dias de hoje, sendo o responsável pela resolução de todos os
problemas públicos e privados da sociedade brasileira. Através da manipulação e da
subjetividade do ordenamento jurídico, criou-se a convicção de que a lei pode ser alterada
conforme os interesses e as conveniências de cada hora.
A cultura do bem-estar sem esforço ou mérito, passou a ser o desiderato primordial da
nação. Em virtude da omissão e da desmoralização estatal, desenvolveu-se em relação ao
346
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 157.
279
ordenamento jurídico-constitucional uma mentalidade de “faz de conta”. Ser honesto é sinônimo
de inutilidade, de desventura ou de burrice.
A experiência introduzida por nossos colonizadores portugueses, disseminada e
desenvolvida com sucesso no Brasil, deve ser compreendida como um fenômeno histórico
conseqüente. Colhem-se, hoje, os frutos plantados no passado. A sociedade brasileira continua
impregnada de vícios e condutas antiéticas institucionalizadas, sendo certa a reprodução
moderna de muitos dos procederes antigos.
Parece certo que a circunstância de tutela e de dependência impregnada na cultura
brasileira desenvolveu generalizada tendência às práticas corruptas. A corrupção transformou-se
no resultado mais acabado da falta de cultivo de uma ética social comprometida com a
convivência consciente e harmônica, baseada na igualdade dos povos, na paz e na harmonia
universal.
Cumpre, portanto, indagar: Os escândalos diariamente renovados não comprovam que a
corrupção está institucionalizada no Brasil dos nossos dias? Como explicar a visível carência de
padrões éticos por parte de muitos dos nossos representantes políticos? Enfim, será que o
cultivo histórico de uma mentalidade individualista voltada à corrupção generalizada possibilita
alguma esperança?
Sem resposta para todos os questionamentos que circundam a problemática do
desenvolvimento da cultura da corrupção no Brasil, consciente, entretanto, do que somos e
porque somos, a partir da compreensão da própria história, é possível imaginar uma
transformação educativa para a formação de sujeitos pensantes: críticos e reflexivos. Somente
através de um processo educativo de formação de novos valores morais e éticos positivos,
compatíveis com os princípios, garantias e direitos fundamentais, é que será possível finalmente
descobrir o Estado Democrático de Direito, acessível a todos brasileiros.
Formar uma nova geração de cidadãos brasileiros que compreendam a importância da
construção de uma unidade nacional com base na solidariedade e na convivência harmônica e
280
tolerante, a partir das garantias e dos direitos fundamentais da raça humana. Um processo
educativo nacional planejado e aliado ao fortalecimento das instituições com a aplicação
impessoal e objetiva das regras previamente definidas, com a efetiva e irreversível punição de
corruptos e de corruptores, sejam pobres ou ricos, servidores públicos ou agentes políticos,
empregados ou empresários. Como determina Zancanaro:
Educação para cidadania: eis o caminho a ser trilhado com urgência pela sociedade
brasileira, se quiser vencer o estigma da corrupção. Mudar a mentalidade de seu povo,
implementando um processo educativo capaz de reverter o quadro de derrocada dos valores
morais que corrói as instituições e as consciências. O problema da corrupção é um problema
de formação de consciência cívica. Formar a consciência dos indivíduos, fazendo o
exercício de construção dos valores inerentes à dupla face da condição humana: a dos
valores e interesses individuais; e a dos valores e interesses coletivos. A corrupção nas
instituições não é causa, mas efeito da incorporação pelos indivíduos de antivalores sociais.
O sistema patrimonial de dominação mostrou-se incapaz de desenvolver um modelo de
relações sociais que tornasse possível enquadrar a ação dos agentes públicos dentro dos
limites da racionalidade.
347
Torna-se imprescindível tomar consciência que as eventuais alternativas possíveis para a
reformulação da cultura política nacional passam todas elas necessariamente pela
compreensão do passado, pela aposta no presente e pela responsabilidade para com o futuro. A
tarefa é não é fácil, pois demanda tempo, energia, persistência, coragem e, acima de tudo,
reflexão contínua.
Eduardo Ritt ressalta que o caminho da democracia é longo e difícil, eis que é muito
diferente prevê-la formalmente do que aplicá-la de fato.”
348
Hugo Nigro Mazzili assevera que
a existência de uma democracia legítima pressupõe longo caminho a ser trilhado, um caminho
de efetivo exercício da própria democracia.”
349
Emerson Garcia, entristecido, afirma “(...) que a
ordem natural das coisas está a indicar que ainda temos um longo e tortuoso caminho a
percorrer. O combate à corrupção não haverá de ser fruto de mera produção normativa, mas,
347
ZANCANARO, Antonio Frederico. Obra citada. p. 160-161.
348
RIITT, Eduardo. Obra citada. p. 161.
349
MAZZILLI, Hugo Nigro. Artigo citado. 1998, p. 78.
281
sim, o resultado da aquisição de uma consciência democrática e de uma lenta e paulatina
participação popular (...).
350
A caminhada em busca do idealizado Estado Democrático de Direito é longa,
representando a instituição do Ministério Público um instrumento constitucional, válido, eficaz,
eficiente e poderoso no combate à corrupção. O Parquet representa, portanto, um instrumento
claro de transformação social, ferramenta decisiva na operatividade do princípio (direito e
garantia) constitucional da moralidade administrativa, tendo importância vital na conquista e na
realização dos direitos fundamentais, universalmente consagrados.
A consciência da existência humana passa pela realização do presente através da
edificação das ações que estiverem ao alcance de cada indivíduo. Certamente, somente através
de uma mobilização social organizada é que poderemos nos articular e reagir contra o arbítrio e
a corrupção generalizada, fruto da experiência individualista e do abandono das liberdades
sociais.
Como se comprovou, a corrupção não é causa, mas sim efeito da incorporação pelos
indivíduos de valores sociais negativos. Assim, somente através de um processo educativo
voltado para o pleno exercício responsável da cidadania, a longo prazo, é que se poderá alcançar
um efeito prático e modificador da realidade atual, consubstanciada na falta de cultivo de uma
ética social, resumida na esperteza do ganho fácil e do lucro certo.
Por fim, é preciso declarar-se culpado. Culpado por imaginar a possibilidade do
improvável. Culpado por lutar pela conquista do impossível. Culpado por acreditar no resgate
dos valores éticos e morais universais. Culpado por investir na educação como instrumento de
conscientização para a democracia. Culpado por valorizar a participação social. Culpado por
apostar na formação de seres pensantes: críticos e reflexivos. Culpado por sonhar com a
primeira conquista do Estado Democrático de Direito, de viés garantista e constitucional, onde
os direitos fundamentais não sejam apenas supostas pretensões. Eis um convite ao delírio!
350
GARCIA, Emerson. Artigo citado. 2004. p.206.
282
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