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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ANASTÁCIA, MANUEL BARBOSA E FERREIRA-FIALHO,
FAMÍLIAS E TERRITÓRIOS NEGROS: tradição e dinâmica territorial
em Gravataí e Viamão, RS
Luciano Souza Costa
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Baptista da Silva
Porto Alegre, 2007
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ANASTÁCIA, MANUEL BARBOSA E FERREIRA-FIALHO,
FAMÍLIAS E TERRITÓRIOS NEGROS: tradição e dinâmica territorial
em Gravataí e Viamão, RS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Luciano Souza Costa
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Baptista da Silva
Porto Alegre, 2007
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2
“... Dos sonhos, porem, acordamos todos e agora eis-me
não diante do sonho realidade, mas da concreta e
possível forma do sonho. Por isso me limitarei a
escrever: ‘Isto é um livro sobre o Alentejo.”
José Saramago, sobre sua obra ‘Levantado do Chão’
3
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos necessário são muitos e nunca serão o suficiente. Gostaria de
agradecer ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul por ter depositado em mim seu voto de confiança, malgrado as
condições adversas que anunciavam desde meu ingresso, na condição de aluno e
trabalhador com carteira assinada.
Agradeço aos meus colegas do Controle da Arrecadação e Depósito a
Discriminar, Ronaldo, Acira, Liane, Estevão e Karoll, pela força, incentivo e compreensão
em minhas muitas horas de ausências permitidas acumuladas neste período do mestrado.
Agradeço em especial aos meus gestores, César Augusto Perelló e Ângela Pianca
Scangarelli, pela confiança, pelo incentivo e por abraçarem um projeto distante de suas
realidades imediatas com os olhos de quem pensa além das fronteiras locais.
À Márcia e ao Gustavo pelo apoio e por terem lido e corrigido versões desta
dissertação. À Heloísa, à Patrícia e ao Gustavo, pela solidariedade imensurável e pela
formatação e correção ortográfica dos originais desta dissertação.
Difícil encontrar palavras para agradecer ao meu orientador, professor e amigo
Sérgio Baptista da Silva, pelas muitas sugestões e tentativas de transformar esta dissertação
em um produto muito mais consistente. Não pude honrar plenamente seus esforços, mas
sou enormemente grato por sua confiança e pelo senso de respeito que demonstra em todas
as ocasiões e para com todos ao seu redor - e por ser, antes de tudo, um mestre e professor
em toda a acepção dos termos.
Outros mestres estiveram neste caminho, e a professora Daisy Barcellos, além de
minha especial orientadora durante a graduação, foi também uma grande incentivadora
deste meu projeto de cursar o Mestrado mantendo meu emprego regular.
Agradeço à Heloísa, pelo carinho, solidariedade e compreensão nestes tempos
difíceis do mestrado.
Às comunidades de Manuel Barbosa, Anastácia e Ferreira-Fialho, cuja acolhida e
amizade possibilitaram o diálogo que resultou neste trabalho. Agradeço ao Antônio Fialho
Costa, pelas muitas trocas e conversas que se prolongam no tempo. A todos de Mato Alto
com quem convivi, em especial ao Jairo, à Célia , à D. Maria Augustinha, à Zadir e ao seu
Adão Fialho, por compartilharem seus tempos e suas memórias. Ao seu Franciscão, de
Manuel Barbosa pelos diálogos e conversas impagáveis e por compartilhar sua casa, suas
práticas e suas memórias. Ao pessoal do Passo da Caveira ao Telmo e à Clareci em
especial, cujo afeto e acolhida e os exemplos de uma socialidade familiar imprimiram sua
marca não apenas neste trabalho, mas em mim pessoalmente.
Aos meus familiares, pelo carinho e pelo suporte, na proximidade e na distância.
À vó Zilda e ao vô Jubal, em especial, este trabalho foi feito com vocês.
4
RESUMO
Este trabalho pretende abordar as vivências cotidianas de três comunidades negras
rurais dos municípios de Gravataí e Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre, de
modo a salientar a importância da territorialidade, das redes de relacionamentos destas
coletividades entre si e com os demais humanos e não-humanos.
ABSTRACT
This work aims to deal with daily living of three black comunities from Gravataí and
Viamão, at the Metropolitan Region of Porto Alegre, RS, as a way to emphasize the
importance of territorial settlemment, social networks and human-nonhuman relationships
among these collectivities.
5
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS...........................................................................................................6
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................9
CAPÍTULO 1. HISTÓRIA E CONTEXTO.....................................................................22
1.1.
A
NTECEDENTES
..........................................................................................................22
1.2.
A
LGUNS DADOS DESTE PANORAMA
.............................................................................23
1.3.
G
RAVATAÍ E
V
IAMÃO
:
O
RIGENS
H
ISTÓRICAS
.............................................................24
CAPÍTULO 2. REFERÊNCIAIS TEÓRICO-CONCEITUAIS.....................................32
2.1.
C
OMUNIDADES QUILOMBOLAS DO
RS.........................................................................32
2.2.
C
OMUNIDADE
..............................................................................................................36
2.3.
E
STUDOS DE COMUNIDADE NO
B
RASIL
........................................................................37
2.4.
C
OMUNIDADE NEGRA RURAL
......................................................................................38
2.5.
P
ARENTESCO
...............................................................................................................39
2.6.
E
TNICIDADE
................................................................................................................42
2.7.
T
ERRITORIALIDADE
.....................................................................................................44
CAPÍTULO 3. O CAMPO, NA PRÁTICA ......................................................................49
3.1.
E
TNOGRAFIA DAS
R
EDES
A
NCESTRAIS
........................................................................49
3.2.
L
UZES SOBRE O PASSADO
-
M
ANUEL
B
ARBOSA
...........................................................55
3.3.
L
IGAÇÕES
A
NCESTRAIS
...............................................................................................60
3.4.
C
OMPANHEIROS DE BATALHAS
...................................................................................62
3.5.
C
OMUNIDADES E TERRITÓRIOS
....................................................................................77
3.6.
C
LARECI
,
T
ELMO E O
P
ASSO DA
C
AVEIRA
...................................................................82
3.7.
C
ÉLIA
,
J
AIRO E AS REDES DE
M
ATO
A
LTO
...................................................................94
CAPÍTULO 4. VIVÊNCIAS E PRÁTICAS..................................................................104
4.1.
C
OLETIVOS LOCAIS
...................................................................................................104
CAPÍTULO 5. CONSTITUIÇÃO DOS TERRITÓRIOS: MORFOLOGIA E
DINÂMICA .......................................................................................................................112
CONCLUSÕES.................................................................................................................117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................119
ANEXOS............................................................................................................................128
Anexos 1 – documentos......................................................................................................128
Anexos 2 – fotos .................................................................................................................137
6
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: América do Sul 1650. Em destaque a localização dos Territórios do
Guairá e Tape
24
Figura 2: Missões Jesuíticas na América do Sul – Século XVII
26
Figura 3: Rio Grande do Sul e Região da Grande Porto Alegre onde se encontram
as comunidades estudadas
50
Figura 4: Rio Grande do Sul e áreas abrangidas pelas comunidades, nos
Municípios de Viamão e Gravataí
51
Figura 5: Região de Gravataí e Viamão - Comunidades e Grupos Negros
Estudados
51
Figura 6: Rio Grande do Sul Comunidades Negras Estudadas em Relação a
Algumas Comunidades Quilombolas da Região Litorânea do Rio Grande do Sul
52
Figura 7: D. Idalina esq), Zaida (centro) e Denise ao fundo, em reunião com
pesquisadores da convênio INCRA-FAURGS, em 07/01/2006
59
Figura 8: Seu Franciscão, D. Eva Barbosa e Zaida (filha de Eva), em 07/01/2006
59
Figura 9: Os irmãos Antônio Francisco Ramos Barbosa (“seu Franciscão à
esquerda) e Marino Ramos Barbosa em 09/11/2006
61
Figura 10: Antônio Freitas dir.) e o sobrinho André, neto de Francisco,
capinam o terreno de Francisco em Manuel Barbosa, 07/11/2006
61
Figura 11: Genealogia de Adão Fialho dos Santos
63
Figura 12: D. Maria Augustinha Fialho em sua casa em Gravataí, Mato Alto
Gravataí, 07/2005
66
Figura 13: Adão Fialho no terreno de sua sobrinha Zadir, Mato Alto, Gravataí,
08/11/2006
66
Figura 14: (suprimida)
Figura 15: Ascendentes de Idalina
68
Figura 16: Adoções de Fialhos por parte de Fonsecas
69
Figura 17: Localização da área das antigas terras da família Ferreira-Fialho
76
Figura 18: Localização comparativa dos territórios ancestrais das famílias dos
descendentes de Manuel Barbosa, Crispim Ferreira e Anastácia de Souza Reis
78
7
Figura 19: Genealogia das Famílias de Manuel Barbosa, Crispim Gomes Ferreira
e José Fialho
79
Figura 20: Mapa Geral - Territórios ancestrais e novos territórios: Anastácia,
Ferreira-Fialho, Manuel Barbosa
81
Figura 21: Residência atual de Telmo e Clareci
85
Figura 22: Derrubada das árvores na casa do Japonês, 16/11/2006
86
Figura 23: Fogão a lenha na cozinha velha de Clareci 11/2006
88
Figura 24: Katielen brinca enquanto Clareci lava roupas, 14/12/2006
90
Figura 25: Clareci visita prima Ilza na comunidade Manuel Barbosa, em
15/11/2006
91
Figura 26: Chimarrão no fim da tarde em frente à casa de Clareci e Telmo.
Vizinho (em pé), Valdemir, Clareci, Luciana, vizinha e Telmo, 16/11/2006
91
Figura 27: Sandra, Bruno e Giovana na cozinha velha de Clareci, 17/11/2006
91
Figura 28: Gilberto com a égua ‘Lacraia’, 17/11/2006
91
Figura 29: Redes de Clareci e Telmo no Loteamento Santa Cecília
92
Figura 30: Telmo e o compadre ‘Valdemir’. Festa de aniversário de Clareci e
‘Luciana’, 15/11/2006
93
Figura 31: Clareci esq.), Telmo e ‘Luciana’. Festa de aniversário de Clareci e
Adriana, 15/11/2006
93
Figura 32: Clareci conversa com D. Lucinda e olham Telmo trabalhar. Casa do
Japonês, 16/12/2006
93
Figura 33: Clareci conversa com D. Lucianda enquanto Telmo trabalha. Casa do
Japonês 16/12/2006
93
Figura 34: Antônio Fialho,Juraciara, Antônio Carlos, Milady, Geraldo e Júlio,
16/06/2007
95
Figura 35: Foto da casa de Jairo, no Mato Alto, 16/06/2007
95
Figura 36: Foto em frente à casa de Geraldo, no Mato Alto, 16/06/2007
96
Figura 37: Jairo, em frente a sua casa no Mato Alto, 16/06/2007
96
Figura 38: Acesso à casa de Jairo, no Mato Alto, 16/06/2007
97
Figura 39: Vista da Vila Mato Alto 16/06/2007
97
Figura 40: Casas dos sobrinhos de Jairo e Célia, Mato Alto, 16/06/2007
97
8
Figura 41: Célia e D. Noercy em Barragem-Viamão, 05/03/2005 97
Figura 42: Mapa Gravataí Mato Alto: Locais de Moradia de Membros das
Comunidades Negras Estudadas
98
Figura 43: Genealogia Fialhos – Anastácia
99
Figura 44: Jairo mostra as ervas que cultiva, Mato Alto, 03/11/2006
101
Figura 45: Roseira de Jairo e Célia, Mato Alto, 03/11/2006
101
Figura 46: Reunião Quilombo Anastácia, casa de Geraldo, Mato Alto,
30/06/2007
103
Figura 47 e 48: Clareci mostra a casa velha da avó Anastácia em Barragem,
Viamão. 11/05/2006
105
Figura 49 e 50: Figuras 49 e 50: Clareci, na casa velha da avó Anastácia em
Barragem, Viamão. 11/05/2006
106
Figura 51: Genealogia de Trajano Fialho
107
Figuras 52 a 55: Animais de Seu Franciscão em Manuel Barbosa
109
Figura 56: Telmo passeia na égua Lacraia com a neta Katielen, 14/01/2006
110
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho que ora apresentamos sob a forma de dissertação de mestrado
representa uma tentativa de resumir um conjunto de experiências, vivências, diálogos e
reflexões que vimos desenvolvendo
1
ao longo dos últimos anos, fruto de nossa
aproximação com os integrantes de algumas comunidades negras de origem rural das
regiões de Viamão e Gravataí, Região Metropolitana de Porto Alegre, RS.
Durante a realização do curso de graduação em Ciências Sociais na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul teve início nossa aproximação com uma das comunidades
negras aqui representadas. Entre os anos de 2001 e 2003, realizamos pesquisas que
resultaram em um trabalho de conclusão de curso (TCC) a respeito de parentesco e
casamento interétnico, envolvendo um grupo familiar de etnia negra, auto-reconhecidos
como descendentes de Anastácia de Souza Reis (COSTA, 2003). Esta família específica
habita pelo menos quatro gerações uma região denominada Barragem, próximo ao local
denominado “Passo dos Negros”, no município de Viamão, RS.
Mas antes de entrar nos relatos que irão compor o objeto desta dissertação
propriamente dita, talvez caibam algumas palavras que podem ilustrar o porquê de este
trabalho ter assumido esta determinada configuração, ter abordado estes assuntos, estar
sendo apresentado nestas condições, possuir os defeitos que tem e, eventualmente até,
possuir algumas das qualidades pelas quais possa ser julgado favoravelmente.
Durante as fases de elaboração do projeto que daria origem a esta dissertação,
chegamos a ter como intenção tratar da existência de uma matriz negra e indígena que
estariam mestiçadas (misturadas) nestes grupos - algo que uma pesquisa de memórias
pudesse eventualmente evocar. Havia os relatos como os de D. Eva Barbosa, uma senhora
de aproximadamente 86 anos, da comunidade de Manuel Barbosa, de que sua avó seria de
origem “bugra” e teria sido “caçada no mato, a cachorro” mas somente ela conhecia esta
1
Com o inestimável suporte de meus orientadores e de diversos interlocutores de dentro e de fora da
academia.
10
história na família e não se sabia de alguém que tivesse mais detalhes sobre o caso. Havia a
história de vida de D. Dila, 75 anos, vinda de fora e casada com um descendente de
Anastácia de Souza Reis; o pai de Dila teria sido “índio mesmo, do mato” – embora este pai
não a tivesse criado. Havia ainda a história de Anastácia, que era descrita como sendo
“meio bugra”, com o cabelo liso e a pele “cor de cuia”; sua casa era descrita como sendo
“do tempo dos escravos dos jesuítas”, mas ninguém nas comunidades sabia dizer quem
eram estes “jesuítas”.
Conforme veremos no capítulo dedicado ao histórico da constituição dos
municípios da região, a presença indígena na formação, principalmente de Gravataí, foi
realmente uma questão importante. No entanto, ainda no decorrer da fase de pesquisas
exploratórias foi-se tornando claro que estes indícios não se revelariam sob a forma de
relatos de uma memória mais consistente acerca desta ancestralidade indígena. As histórias
de antepassados indígenas haviam passado para alguns grupos familiares como parte da
construção de suas auto-imagens, mas atualmente estes grupos identificavam-se mais como
negros (ou como “morenos” também, muito freqüentemente) do que como indígenas e não
mantinham relatos de detalhes deste suposto passado indígena; por mais que esta matriz
indígena esteja ou possa estar incorporada a muitas de suas práticas e saberes. O âmbito, a
duração e as condições exigidas para uma pesquisa deste tipo não permitiram que este
projeto fosse levado adiante neste momento.
Dentre as condições limitantes para a realização da pesquisa, pode-se citar o
pouco tempo disponível para permanências em campo, as quais teriam que ser realizadas
em nossas folgas, férias e licenças remuneradas a que tínhamos direito no vínculo
empregatício atual - uma vez que optamos por manter esta relação de emprego durante toda
a realização do mestrado
2
. Outra questão limitante passava pelo custeio da pesquisa em si –
custos como os de deslocamentos, manutenção, reciprocidades, livros e gastos em geral
2
Mantivemos durante a realização do Mestrado vínculo empregatício com a Caixa Econômica Federal. As
possibilidades de opção, mesmo existentes, são restritas: licenças não-remuneradas têm um alto custo
monetário e profissional, demissão nunca esteve em questão. Assim, optamos por realizar o mestrado
contando apenas com as folgas regulamentares acumuladas para a realização dos trabalhos de campo – férias,
licença-prêmio e ausências-permitidas.
11
deveriam ser suportados pelo pesquisador, que, com a manutenção de nosso emprego
público, não poderíamos ter acesso a bolsas ou outras subvenções de origem pública.
As pesquisas precedentes e pesquisas exploratórias levaram-nos a constatar a
existência de muitos grupos de famílias negras que habitavam e faziam uso de uma mesma
grande região e que formavam redes de relacionamentos entre si - redes estas que
envolviam parentesco, alianças matrimoniais, sociabilidade, festas, religiosidade, formas de
trabalho, lealdades e interações com determinadas redes socio-técnicas que se sucederam
(ou se sobrepuseram) no espaço de tempo em que as gerações de descendentes destas
comunidades vivem e viveram. Tais condições - de grupos familiares profundamente
entrelaçados várias gerações - conferiam-lhes a possibilidade de compartilharem
diversos aspectos de suas formas de vida e levaram-nos a colocar como questão de pesquisa
a investigação de até que ponto estas condições comuns de vida e de sociabilidade
corresponderam ou correspondem a formas específicas de práticas e de relacionamentos
destes grupos com os seus territórios, suas divindades e com todos os seres humanos e não-
humanos que os acompanham.
Além das visitas feitas em finais-de-semana (que continuaram sendo feitas,
esporadicamente), os períodos de estadia mais prolongados em campo ocorreram
primeiramente entre os dias 16 de outubro e o dia 04 de novembro de 2006, quando
alugamos uma casa de um dos integrantes das comunidades localizada no bairro do Mato
Alto, em Gravataí. Em seguida, a partir do dia 9 e até o dia 18 de novembro de 2006,
mudamo-nos para uma outra pequena casa situada na Vila Santa Cecília, dentro do terreno
de Clareci e Telmo (da família de Anastácia) onde pudemos ter acesso mais fácil tanto
aos integrantes deste grupo familiar como à comunidade Manuel Barbosa, situada a 2 ou 3
quilômetros dali.
O trabalho de campo para esta dissertação foi circunscrito a alguns dos integrantes
de três grandes troncos familiares
3
- com os quais tivemos contato principalmente a partir
3
A circunscrição da pesquisa a estes grupos familiares deveu-se a questões práticas da realização da pesquisa
e também de proximidades de relacionamentos nossos no interior destas redes. Estamos cientes, pelos
12
dos laços que mantivemos com os descendentes de Anastácia de Souza Reis (op. cit.,
2003). Tais grupos podem ser agrupados como: a) os descendentes de Anastácia de Souza
Reis; b) os descendentes de José Fialho e Matheus Crispim; e c) os descendentes de Manuel
Barbosa dos Santos. Estes grupos familiares formam comunidades negras de origem rural
que se relacionam entre si e habitam há pelo menos um século diferentes localidades dentro
de uma mesma grande região, situada na divisa sudeste do município de Gravataí com o
município de Viamão (até a margem do rio Gravataí) e a região norte do município de
Viamão, Região Metropolitana de Porto Alegre.
O foco principal desta dissertação será a questão da territorialidade destas famílias
e comunidades, mas há que se fazer alguns reparos quanto à questão geográfica, da
localização dos indivíduos que fazem parte destes grupos. As formas de ocupação do
território ancestral, por mais que sejam essenciais na confecção deste trabalho, precisam ser
complementadas e problematizadas com outros elementos de suas práticas concretas. Tal
como apontou Rosane Rubert (RUBERT, 2007), o questionamento da imagem dos
territórios quilombolas como unidades circunscritas e fronteiras bem definidas já vem
sendo feito por diversas etnografias dos territórios negros e territórios quilombolas e a
autora cita os exemplos de O’Dwyer (2002), Dos Anjos e Baptista da Silva (2004) – ao que
nós acrescentamos o próprio caso de Rosane Rubert (RUBERT, 2007). Naquele texto a
autora afirma:
“O que a experiência das comunidades estudadas informa é que a rede de
relações que a compõe não está limitada aos seus domínios territoriais zonais.
Seus tendões se estendem para outros locais, próximos ou longínquos, situados
no meio rural ou em centros urbanos (...)” (RUBERT, 2007, p. 12).
A necessidade de considerar uma territorialidade geograficamente descontínua,
alargada em relação à territorialidade ancestral, faz com que se tenha uma imagem da
próprios dados que surgiram em campo, de que as redes de relacionamentos envolvendo grupos negros da
região são bastante mais extensas do que os casos que pudemos incluir nesta pesquisa. Como exemplos de
comunidades e grupos que estão localizados para além destes e que foram referidos pelos grupos negros com
que estivemos em contato, cito os casos de grupos negros residentes na região conhecida como “as Lombas”,
13
territorialidade destes grupos que não necessariamente coincide com aquela territorialidade
catalogada nos relatórios técnicos utilizados por órgãos públicos, como o INCRA ou o
Ministério Público, na instrução dos processos de regularização fundiária dos
“remanescentes de comunidades de quilombo”, como é o caso de alguns destes grupos por
nós estudados. No caso daqueles relatórios técnicos (e muito compreensivelmente) a
preocupação mais premente está nos marcos sicos, históricos, etnográficos e culturais da
ocupação ancestral de um mesmo território; no caso do presente trabalho, o limite dos
territórios será a totalidade das formas de ocupação reais por parte das pessoas que se
reconhecem e são reconhecidas como fazendo parte das comunidades estudadas.
Os elementos que iremos considerar nesta dissertação, e que darão o relevo aos
processos de territorialidade destes grupos, serão as suas formas de existência concreta, nos
diversos territórios constituidos e incorporados ao território ancestral. Serão ainda seus
relacionamentos entre si, com seus territórios e com os demais humanos, animais, plantas e
divindades encontrados ou representados como fazendo parte destes territórios. A
preocupação de fundo será a de fazer ressaltar o quanto estes aspectos relacionam-se com
as formas de ocupação negra de um grande território e, ao fim de tudo, o quanto estas
formas relacionam-se ou não com uma forma cultural negra, brasileira, gaúcha e da região
metropolitana de Porto Alegre, de ocupação e existência (e porque não, resistência) em seus
territórios.
Ao longo deste processo, procurarei salientar as dinâmicas territoriais e sociais e o
quanto os enquadramentos e as mudanças de enquadramento em determinadas redes socio-
técnicas (LATOUR, 1994) - enquadramentos estes aos quais eles têm ou tiveram,
provavelmente, muito pouca autonomia de decisão - podem alterar as relações e as formas
de relação deles com seus territórios e deles entre si, mas também, por outro lado, o quanto
mudanças internas dos grupos são levadas a cabo de maneira a manter determinadas
relações tradicionais. Também pretendo abordar as redes de alianças, de parentesco e redes
de sociabilidade que ligam estas comunidades entre si e com outras redes de pessoas da
mesma região. Estas relações podem envolver tanto o “fazer parentes” - relações de
zona leste de Viamão e grupos negros habitantes da região conhecida como “Paredão”, zona Norte de
14
casamento, compadrio, relações de amizade, cooperação, trabalho, diversão - como ainda as
relações deles com o meio ambiente, com suas terras, com os animais, plantas, objetos, com
as divindades, com o imaginário, e ainda com os poderes constituídos ou difusos.
A comunidade “Quilombo Manuel Barbosa” é uma destas comunidades negras
rurais que tem laços ancestrais com outras comunidades negras da mesma região. Está
localizada no município de Gravataí, próximo à região conhecida como “Barro Vermelho”,
em um lado oposto à margem do rio Gravataí onde se localiza a comunidade de Barragem
ou “Anastácia”.
Estas duas comunidades estão envolvidas, cada uma a seu ritmo e com histórico
próprios, em processos de reivindicações de seus direitos territoriais mediante processos de
reconhecimento como comunidades quilombolas. Estes processos foram ou estão sendo
alvo de pesquisas que, do lado da comunidade de Anastácia, já resultaram na elaboração da
dissertação de mestrado intitulada “De Gente da Barragem a Quilombo da Anastácia: um
estudo antropológico sobre o processo de etnogênese em uma comunidade quilombola no
município de Viamão/RS”, de Vera Regina Rodrigues da Silva (2006)
4
. No caso da
comunidade de Manuel Barbosa, recentemente, no final de 2006, foram divulgados pelo
INCRA o “Relatório Sócio-Histórico-Antropológico da Comunidade de Manoel Barbosa
(Gravataí)” e o “Relatório Sócio-Econômico da Comunidade Manoel Barbosa (Gravataí)”,
relatórios estes realizados através de convênio firmado entre o INCRA e Fundação de
Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAURGS). Tais relatórios fazem
parte dos requisitos que o INCRA
5
estabelece ao lidar com comunidades que fizeram sua
Gravataí.
4
Vera Regina Silva foi minha colega no curso de Ciências Sociais e parceira em várias etapas da realização
de nossos trabalhos de campo na Graduação. Esta fase de colaboração direta, mesmo que não tenha tido
continuidade durante nossa pós-graduação, viu seus efeitos prolongarem-se até o presente momento, dado
que, sempre que possível, continuamos trocando opiniões e discutindo aspectos de nossos respectivos
trabalhos de campo.
5
De acordo com informações disponíveis na página da SEPPIR/Presidência da República (Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), tais relatórios fazem parte das etapas de elaboração de um
relatório mais completo, o RTID - Relatório Técnico de Identificação e Delimitação. Este último é descrito
como “o instrumento utilizado pelo INCRA em sua tarefa de regularização fundiária dos territórios
quilombolas no País, determinada pelo Decreto 4.887/2003”. É composto por sete peças, entre as quais os
estudos sócio-histórico-antropológicos e os [estudos] sócio-econômicos”. Prossegue a página da SEPPIR:
“Depois da publicação do RTID segue-se um período para contestação de 90 dias. Esgotado o prazo ou
resolvidas as contestações apresentadas, pode então haver a decretação de desapropriação das áreas
15
declaração como comunidades quilombolas e que requereram regularização fundiária,
como é o caso da comunidade Manuel Barbosa
6
.
Neste mesmo aspecto, também a comunidade Anastácia encontra-se envolvida no
pleito como comunidade quilombola. Em 2004, representantes da comunidade
protocolaram junto ao INCRA e à Fundação Cultural Palmares (FCP) sua auto-declaração
como comunidade quilombola. Foi dado início também à organização da Associação de
Moradores, que no entanto ainda não possui registro efetivo. Independente disso, têm sido
realizadas reuniões e demandadas ações junto ao Ministério Público Federal e ao INCRA,
pedindo a intervenção e a mediação daqueles órgãos, como no caso do pleito de fazendeiros
que, em setembro de 2006, queriam ocupar parte de suas terras com uma nova barragem no
rio Gravataí. Contudo, disputas e clivagens internas a respeito de se a comunidade deve
ou não pleitear a intervenção do INCRA para demarcação dos antigos limites de suas terras.
A questão da propriedade coletiva, que é a condição presente na legislação e a
“desintrusão” (como trata o INCRA) das pessoas “de fora” da comunidade e que estejam
ocupando as terras são os temas que suscitam as maiores desavenças internas.
A terceira das comunidades talvez seja a menos “visível” em termos do que se
espera encontrar quando se refere a “comunidade”, tendo em vista ser a única que não
possui mais (ou não está de posse mais) do território tido como de propriedade de família,
ancestralmente. Trata-se dos descendentes de Crispim Gomes Ferreira e de José Fialho, um
grupo familiar cujos integrantes encontram-se em núcleos mais ou menos coesos de
moradores, em bairros vizinhos a suas terras, nas regiões de Mato Alto e Cavalhada, em
Gravataí, e também em Canoas uma vez que tiveram as terras da família na região da
Cavalhada perdidas por expulsão e esbulho ao longo dos anos. Desde o início de 2007, um
grupo dos integrantes deste grupo familiar resolve requerer junto à Fundação Cultural
envolvidas, se for o caso, procedendo-se à titulação da comunidade”. Em
http://www.planalto.gov.br/seppir/noticias/2006/403.htm (acesso em 29/09/2207).
6
Ainda de acordo com a página da SEPPIR, “as 18 famílias da comunidade de Manoel Barbosa, em Gravataí
descendem do casal Manoel Barbosa dos Santos e Maria Luiza Paim de Andrade, que habitaram a região no
século XIX. Desde a herança de Manoel Barbosa até os dias de hoje, várias áreas foram perdidas pela
comunidade, que ficou restrita a um pedaço de 18 hectares longe das melhores terras e recursos hídricos. O
relatório antropológico concluiu por um território pretendido de 123,5 hectares. As famílias, que estão
divididas em três núcleos, concordaram com a delimitação. A comunidade receberá os relatórios sócio-
histórico-antropológico e sócio-econômico.” (idem).
16
Palmares o seu enquadramento como “remanescentes de comunidade de quilombo” e o
retorno da posse das terras dos ancestrais. Até o presente momento, ainda não há o
protocolo por parte da FCP, como resposta à requisição, mas pode-se dizer que eles
encontram-se em etapas iniciais de um processo de organização e mobilização pelas terras
de seus antepassados.
Nossa intenção nesse trabalho, contudo, não é a de abordar como foco central a
questão das reivindicações ou das demandas por reconhecimentos de direitos vinculadas ou
resultantes da aplicação do artigo 68 do ‘Ato das Disposições Constitucionais Transitórias’
(ADCT) da Constituição de 1988, embora (e mais adiante abordaremos este tema)
estejamos cientes de que não podemos tampouco estar alheios a esta conjuntura. Assim,
embora este trabalho pretenda abordar temas e conceitos que são caros especialmente à
antropologia vinculada aos laudos e relatórios de reconhecimento de comunidades
quilombolas, nossa intenção também é a de demarcarmos nossa distância prática e
epistemológica em relação àqueles trabalhos, que visam instruir os poderes na tomada de
decisão favorável ou contrária ao pleito das comunidades ou resolver impasses e embargos
daqueles que se opõem ao pleito. Devo dizer que os trabalhos antropológicos produzidos
sob a demanda dos laudos ou dos relatórios técnicos serviram-nos como bagagem de
conhecimento e estímulo intelectual. Mas não será demais insistirmos neste ponto, de que o
foco desta dissertação será a territorialidade destas famílias e comunidades negras
territorialidade esta que será considerada para além dos territórios ancestrais. Ou seja,
interessar-nos-ão todas as relações e dinâmicas territoriais que envolvem estas famílias e
indivíduos, relações estas que podem ajudar a ressaltar as formas de existência que ocorram
também fora dos territórios ancestrais, mas que, segundo concebemos, também podem ser
vistas como essenciais ou como fazendo parte das condições de existência destas famílias e
de manutenção dos próprios territórios originais.
Mais especificamente, nossa intenção será a de procurar entender como se a
inter-relação entre os territórios físicos, concretos, e este território alargado, compreendido
em sua concretude e em sua representação, em conjunto com as redes sociais que envolvem
parentesco, alianças e etnicidade destes indivíduos e grupos. Com isto, mantemos a
esperança de também contribuir para a discussão da constituição e reconhecimento de
17
direitos que não estejam unicamente vinculados à matéria física do território, mas propor
pensar também, dentro daquela conjuntura, a busca e defesa dos direitos territoriais e
culturais e sociais e étnico-raciais.
Nesta dissertação estes temas estão relacionados com as possibilidades de
conceber formas específicas de relacionamento homem-natureza: formas caracterizadas por
Bruno Latour como “formas híbridas” de relacionamento homem-natureza, as quais
configuram o que este autor chamou de “coletivos natureza-sociedade”; aquilo que está
entre a matéria e a representação, em conjunção com as duas realidades que a ciência
moderna procurou sempre separar: natureza e cultura (LATOUR, 2004[1999]). No caso do
espaço e dos territórios propomos pensar o espaço geográfico em conjunção com o
espaço das redes, com o espaço das alianças, com o espaço étnico, com o espaço físico,
geográfico e com a representação simbólica do espaço dos territórios.
O trabalho que pretendemos desenvolver envolverá, como dissemos, a abordagem
dos conceitos de “parentesco”, “território”, “territorialidade”, e “etnicidade”. Envolverá
ainda as inter-relações possíveis de serem traçadas entre estes conceitos, ao serem aplicados
para abordagem do caso concreto de comunidades negras dos municípios de Gravataí e
Viamão na Região Metropolitana de Porto Alegre. Assim, procuraremos tratar não apenas
dos conceitos em si, mas, igualmente, de até que ponto estes conceitos descrevem situações
que, em uma situação prática, os implica mutuamente.
Mas, se por um lado o recorte da questão política e da mobilização das
comunidades quilombolas não estava sendo enfocado diretamente por este trabalho, por
outro lado, procuramos não perder de vista o fato de que as comunidades estavam e estão
de fato - cada qual em seu ritmo - engajadas em processos de reconhecimento enquanto
“comunidades quilombolas”. A questão ética envolvida na elaboração de laudos em
comunidades mobilizadas politicamente foi abordada, por exemplo, por Arruti (2004), em
uma entrevista ao site “Comciência
7
”. Ao responder a respeito da elaboração dos laudos,
ele afirma que o antropólogo não devia se furtar a descrever as situações de politização e de
7
Disponível em http://www.comciencia.br/entrevistas/memoria/arruti.htm (acesso em 20/09/2005).
18
disputa que estivessem ocorrendo na comunidade, na medida em que esta situação é parte
da realidade a ser descrita; “o próprio campo de disputas deve entrar como parte do objeto a
ser descrito”, o que implica também em um esforço para que o antropólogo consiga
“objetivar sua própria posição” – ou seja, compreender e ser capaz de descrever o papel que
ele próprio desempenha na disputa política (ARRUTI, 2004).
Essa questão da objetivação da posição do próprio pesquisador tem sido abordada
como um dos elementos do chamado “aumento da responsabilidade do autor”, como
escreve Tereza Pires Caldeira (CALDEIRA, 1988) - uma necessidade à qual a
Antropologia tem de estar atenta. De fato, esta mesma autora expressou em um texto
anterior (CALDEIRA, 1981) preocupações igualmente legítimas a respeito das vicissitudes
da posição do antropólogo em campo, a questão de seu poder desigual, a questão da
qualidade de seus dados e dos usos que podem ser legítimos (e éticos - ou não) de serem
feitos quanto aos dados qualitativos que o antropólogo obtém em campo.
Para uma aproximação ao universo do parentesco faremos uso também das
genealogias, cujo uso se justifica não como uma ferramenta que permite uma maior
aproximação pesquisador-pesquisado, mas por proporcionar também as condições para uma
“atualização da memória social” do grupo (BAPTISTA DA SILVA, 2004). Ao mesmo
tempo em que permite uma maior compreensão dos laços familiares, pode levar ao
compartilhamento de informações que quase sempre são restritos a alguns membros das
famílias, mas que neste momento da pesquisa passam a ser novamente atualizados e a
circularem no grupo, trazendo muitas vezes efeitos alentadores dos laços familiares. Trata-
se também (desde que combinada com o uso de uma metodologia voltada para isso) de uma
ferramenta que permite enxergar as alianças ao longo do tempo. Estas genealogias
permitirão, por exemplo, o cruzamento dos dados sobre quem são os atores identificados
como pertencentes a determinados grupos familiares cujas alianças são mais frequentes; no
caso de casamentos interétnicos, que também já sabemos, vêm ocorrendo há algumas
gerações, importa saber como são apresentados e representados estes "outros", "brancos"
qual a origem concreta dos indivíduos e grupos familiares que estabelecem relações de
alianças matrimoniais com estes grupos negros. Tudo isto não depende unicamente dos
19
mapas genealógicos, mas eles serão um importante instrumento de visualização e
caracterização destas alianças.
Se a legitimidade do método de pesquisa etnográfica o trabalho de campo não
está em discussão, pelo menos o caráter dos dados assim obtidos tem sido objeto de um
debate contemporâneo bastante acalorado. A questão do poder e da legitimidade do
pesquisador em propor interpretações sobre os “informantes” está no centro dessa discussão
que envolve uma antropologia identificada como “pós-moderna”, a qual questiona o papel
do antropólogo que se convencionou chamar de “clássico”, enquanto autor de discursos e
ou de interpretações sobre “o outro” - vide, por exemplo, James Clifford (CLIFFORD,
2002 [1994]) e também Clifford Geertz (GEERTZ, 2002[1988]). Muito embora não
aspiremos intervir de maneira propositiva, teórica ou metodologicamente, sobre essa
discussão, estamos cientes também de sua incidência sobre nosso trabalho e do quanto
modificações no contexto do campo da Antropologia podem afetar as possibilidades de
disposição dos nossos dados sob a forma da dissertação, assim como a recepção por parte
de seus leitores.
Ainda a respeito da questão da produção de narrativas, é possível verificar, dentro
da área acadêmica, a existência de determinados viéses, formados historicamente e que
afetam as condições de produção e recepção das narrativas dos antropólogos. Isto é o que
afirma Edward Bruner em “A Etnografia como Narrativa” (BRUNER, 1986). As
contribuições deste autor mostram-nos, além disso, que podem-se formar, nos meios
acadêmicos ou culturais da sociedade em geral, determinados “ciclos de narrativas”. Assim,
Bruner cita o exemplo da narrativa do índio romântico e romantizado - o “outro exótico” -
trazida pelos primeiros viajantes e cronistas. Em seguida há o ciclo da narrativa dos índios
vitimizados e da resistência indígena, e tantas outras narrativas que se encaixam em
modelos prévios de produção e recepção destes produtos intelectuais. Por outro lado, estas
narrativas produzidas pelos antropólogos ou cronistas - e o próprio contato dos
antropólogos com as comunidades e grupos - ajudam a construir uma auto-imagem nativa.
No decorrer destes processos, podem ocorrer também apropriações nativas das
categorias usadas e das descrições feitas pelos antropólogos. É Bruner também (op. cit.)
20
quem apresenta o exemplo dos indígenas Pueblo, que estariam “encenando as teorias dos
antropólogos”. Assim também no Brasil, é referido por diversos autores o fenômeno da
apropriação, por parte dos indígenas, dos conceitos usados pelos antropólogos (ou pelo
homem branco), como é o caso dos conceitos de “cultura”, “patrimônio material”,
“propriedade intelectual”, dentre outros (vide COELHO DE SOUZA, 2005).
Certamente estes viéses influenciam as condições de produção e de receptividade
dos trabalhos antropológicos desde antes do momento de serem produzidos - e esta
narrativa etnográfica certamente não é uma exceção a isto. Trata-se também de um campo
de disputa quanto aos discursos que serão feitos e em que a produção de determinadas
narrativas é esperada interessadamente, seja por parte das próprias comunidades, seja por
parte de determinados setores dos movimentos sociais, como por exemplo o movimento
negro, seja também por parte de organismos ou pessoas representando forças as mais
diversas - políticas, jurídicas, econômicas, partidárias, religiosas, acadêmicas, dos meios de
comunicação e tantas outras, quanto mais complexas forem as situações apresentadas.
No caso das comunidades negras quilombolas, trata-se de um campo de estudos
que teve um impulso muito grande nos últimos anos, especialmente por conta das
atribuições delegadas pelos poderes executivo e judiciário, ao demandarem trabalhos a
serem realizados especificamente por profissionais com formação em antropologia social
para fins de elaboração de laudos ou relatórios técnicos uma situação nova, discutida e
tematizada nos encontros normativos da principal entidade de classe dos antropólogos
como é a Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
8
.
Assim, pretendemos defender, com os casos aqui apresentados, a existência de um
território negro que se estende para além das fronteiras de cada um dos territórios ancestrais
- “Anastácia”, ou “Manuel Barbosa” ou das terras dos Ferreira-Fialho na Cavalhada -
tomados isoladamente; nosso ponto será tentar mostrar a existência de uma inscrição social
deste mapa, em uma geografia descontínua, mas que propomos que deva passar a ser vista
8
No ano 2000, a ABA produziu e publicou a “Carta de Ponta das Canas”, em que divulga para a classe dos
antropólogos os procedimentos e cuidados que os antropólogos devem ter ao assumirem as tarefas
demandadas de elaboração de laudos de reconhecimento étnico, territorial ou de impacto sócio-ambiental.
21
também em sua categoria de totalidade: pode haver uma descontinuidade espacial e física,
mas em termos afetivos e representacionais, estes territórios são representados como
fazendo parte de um mesmo território negro.
Dessa forma, territorialidade, parentesco, redes cio-técnicas e etnicidade serão
conceitos que pretendemos abordar individualmente e também em conjunção uns com os
outros. Mas, como dissemos, pretendemos também, através da abordagem destes temas,
salientar a existência de formas culturais próprias a estes agrupamentos humanos
9
. Formas
que podem estar, e certamente estão, em constante processo de mudança, mas que, em um
determinado momento, situado entre um passado recente e o presente etnográfico que
presenciamos, assumiram, para nós, uma forma que se aproxima dos relatos que tentaremos
trazer a seguir.
9
Formas culturais estas que certamente relacionam-se ou encontram algum paralelismo com outras formas
culturais, como as das comunidades rurais do sul do Brasil ou de outras comunidades quilombolas ou
indígenas ou seja, não esperamos encontrar um cultura específica e inteiramente desvinculada de outras
culturas regionais ou nacionais
22
CAPÍTULO 1. HISTÓRIA E CONTEXTO
1.1. Antecedentes
A atenção que o tema das comunidades negras e comunidades remanescentes de
quilombo tem recebido nos últimos anos gerou uma significativa e diversificada
produção de trabalhos acadêmicos, que vieram lançar luzes no estudo de uma parcela da
população que aentão havia merecido pouca atenção enquanto segmento específico: as
comunidades negras - rurais ou urbanas - do Brasil. Um aspecto referido por diversos
autores, tais como Ilka Boaventura Leite, Ruben Oliven, José Carlos Gomes dos Anjos,
entre outros em períodos que antecederam esta fase mais recente de eclosão de estudos
sobre populações negras no Brasil, é de que houve um período marcado tanto por uma
invisibilidade social, imposta às populações negras, quanto por uma pouca atenção dada ao
próprio tema das comunidades negras urbanas ou rurais como objeto de pesquisa
acadêmica. No caso do estado do Rio Grande do Sul, esta invisibilidade pode ter sido ainda
mais agudamente sentida: sendo um estado que, durante seu processo de constituição e
incorporação ao Estado brasileiro, sofreu sucessivas e distintas ações de colonização e
imigrações, começando com a vinda dos imigrantes açorianos, no século XVIII, e que
tiveram continuidade, mais tarde (já no contexto das tentativas de “branqueamento” da
população brasileira), com a vinda dos imigrantes alemães e italianos no século XIX (e de
outras ações de colonizações menores, no século XX, letões, russos, poloneses,
japoneses, dentre outras etnias). Todo este contexto contribuiu, sem dúvida, para a
caracterização deste como sendo um dos estados da federação de maior influência branca e
européia. Mas nem por isso os grupos negros deixam de ter uma influência marcante – que,
no entanto, não se refletiu nem nas concepções dominantes acerca da influência cultural
destes grupos no estado, e nem nas concepções que os estudos sociais e históricos nos
traziam acerca desta influência, para além dos itens incorporados à brasilidade como o
samba, o carnaval, a feijoada e o futebol.
23
No caso do Rio Grande do Sul, então, esse conjunto de trabalhos mais recentes,
abordando comunidades quilombolas rurais e urbanas das mais diversas localidades e
regiões
10
, traz-nos a condição para vislumbrarmos um panorama da ocupação negra no
estado. Com este trabalho, composto de dados etnográficos e relatos abordando grupos e
comunidades negras de origem rural de uma região específica, localizada nos municípios de
Gravataí e Viamão, na Grande Porto Alegre, pretendemos acrescentar peças a este
panorama - o que poderá, por sua vez, indicar lacunas e novos rumos de pesquisas no
estudo das comunidades negras do Rio Grande do Sul e do Brasil.
1.2. Alguns dados deste panorama
Levantamentos quantitativos da população escrava nas províncias do Brasil no
ano de 1874 mostravam a província de São Pedro do Rio Grande como a 6ª província
brasileira com maior número absoluto de escravos (BERND e BAKOS, 1991). Atualmente,
o estado do Rio Grande do Sul possui uma população em torno dos dez milhões de
habitantes, dos quais, aproximadamente um milhão e trezentos mil (13%) declararam-se
pretos ou pardos
11
, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios
(PNAD) de 1999. É um percentual bastante inferior à média nacional (45,34% segundo
dados da mesma PNAD), mas se levarmos em conta a distribuição da população negra nos
municípios gaúchos chegaremos a dados que apontam que o percentual dos que se
declaram pretos na região metropolitana de Porto Alegre é, de fato, superior à média
nacional (6,53% contra 5,39%), o que é um dado até certo ponto surpreendente para um
estado da federação em que a influência negra não é considerada como muito relevante.
É bem verdade que estes dados devem ser entendidos dentro de contextos bastante
mais amplos que envolvem desde a maior tendência à endogamia de cor (casamentos
10
Segundo Ana Paula C. Carvalho, citando dados do NUER-SC e dos movimentos negros no estado, haveria
no RS um total de 130 comunidades quilombolas “passíveis de se identificarem como remanescentes de
comunidades de quilombos” (CARVALHO, 2007) e destas, até o mês de setembro de 2007, 32 haviam
solicitado ao INCRA a abertura de processo administrativo de regularização fundiária.
11
Os dados censitários no Brasil captam as informações de cor dos respondentes baseados na pergunta –“qual
é a sua cor?”, em que as respostas possíveis são “preta”, “parda”, “branca”, “indígena” e “amarela”
(contribuição do professor José Carlos Gomes dos Anjos).
24
dentro dos mesmos grupos de cor) das populações negras e pardas no RS, (BARCELLOS,
1996) até um possível entendimento diferenciado, conforme os estados brasileiros, das
próprias categorias “negro”, “pardo”, “branco”, “indígena” e “amarelo” no Brasil
(categorias utilizadas nos censos demográficos e em outras pesquisas do IBGE, tais como a
PNAD). Mas mesmo com estas ressalvas, é inegável que a presença dos negros e pardos no
RS esteve marcada por aquela mencionada invisibilidade social o que se refletia na
ocupação de lugares de pouco destaque social, na acomodação a empregos e ocupações de
baixo status social, na ausência de políticas públicas que visassem aquela parcela específica
da população, na pouca ou nenhuma visibilidade de suas manifestações culturais e
religiosas e, para culminar, na pouca atenção dada pelos estudos acadêmicos a estes estratos
sociais.
1.3. Gravataí e Viamão: Origens Históricas
Ao investigarmos as origens históricas e demográficas das cidades de Gravataí e
Viamão, é necessário mencionar que a presença de grupos populacionais autóctones na
região data de pelo menos 9.000 anos antes do período atual. Isto porque, segundo
pesquisas arqueológicas mais recentes, teria havido sucessivas ocupações por parte de
tradições indígenas antecessoras, por exemplo, aos grupos Charrua, Guarani e Kaingangues
- nomes atuais de algumas das etnias contatadas pelos homens brancos que começaram a
aventurar-se pela região a partir do início do século XVII .
Segundo Goldmeier e Schmitz (apud Francisco NOELLI et alli, 1997), é possível,
a partir dos fragmentos deixados, determinar uma seqüência histórica aproximada da
ocupação da região, conforme a seguir:
A) Tradição Umbú: +- 9.000 A.P*
B) Tradição Humaitá: +- 6.600 A.P
C) Tradição Vieira ( Minuano): +- 1.800 A.P
D) Tradição Taquara (Kaingang): +- 1.600 A.P
E) Tradição Guarani : +- 1.800 A.P
(* AP: antes do presente)
Fonte: Goldmeier e Schmitz , apud NOELLI et alli, 1997.
25
Assim, a fundação dos primeiros núcleos de fazendas de sesmeiros na região, que
trouxeram, além do homem branco, os escravos negros (e eventualmente indígenas
também), não encontrou uma terra despovoada de populações indígenas. Ao contrário,
tratava-se de uma terra povoada e utilizada por grupos indígenas nos deslocamentos que
caracterizavam sua mobilidade nos territórios tradicionais constituídos. Por outro lado, a
origem da cidade de Gravataí, conforme veremos a seguir, esteve ligada à transferência de
aproximadamente 1.000 índios Guaranis, provenientes da dissolução dos “Sete povos das
Missões” os quais, em 1762-63, começaram a chegar aos campos de Viamão, às margens
do rio Gravataí, fundando a “Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos”, primeiro núcleo da
futura Vila de Gravataí.
Figura 1: América do Sul – 1650. Em destaque a localização dos Territórios do Guairá e Tape
Fonte: Atlas “Cartes Générales de la Géographie Ancienne et Nouvelle”, reproduzido de Mapoteca
Min. Rel. Exteriores. Em
www.novomilenio.inf.br/santos/mapas (acessado em 18/08/2007).
Tapé
Guairá
26
A expansão dos domínios portugueses e espanhóis na região do Tape e do Guairá
envolveu conflitos entre estas duas coroas e também teve as populações indígenas, ora
como aliadas, ora como adversárias. Bartolomeu Meliá caracteriza assim a situação:
“En los siglos XVI y XVII, los españoles, a medida que avanzaban en sus viajes
de exploración y en sus expediciones de conquista y los misioneros en su
‘conquista espiritual’ encontraron a los Guaraní formando conjuntos
territoriales más o menos extensos, que llamaron ‘provincias’, reconocidas por
sus nombres propios: Cario, Tobatin, Guarambaré, Itatín, Mbaracayú, gente
del Guairá, del Paraná, del Uruguay, los del Tape... Estas provincias
abarcaban un vasto territorio que iba de la costa atlântica al sur de São
Vicente, en el Brasil, hasta la margen derecha del rio Paraguay, y desde el sur
del río Paranapanema y del Gran Pantanal, a lago de los Jarayes, hasta las
Islas del Delta junto a Buenos Aires.” (MELIÀ, Bartolomeu, 1991, apud
LADEIRA, 2003)
O início do povoamento da região encontra-se, assim, relacionado com todo um
contexto de estratégias coloniais e disputas políticas, militares e de fronteiras que
envolveram as coroas portuguesa e espanhola em torno da posse e usufruto das terras
meridionais ao sul do paralelo 28 (sul de Laguna) e até a foz do Rio da Prata, em sua
chamada “Banda Oriental” (margem esquerda). Envolveu ainda a dissolução das reduções
indígenas, erigidas e comandadas por padres jesuítas que desde 1610 organizavam-se em
Figura 2: Missões Jesuíticas na América do Sul – Século XVII
Adaptado de: MONTEIRO, 1995.
27
um amplo território de ambos os lados dos rios da Prata, Rio Uruguai, rio Paraná, regiões
do Guairá, Tape e Itatim (MALDI, 1997). O avanço português, em território espanhol, as
incursões dos bandeirantes pelo apresamento de indígenas, são todos fatos que demandaram
que solução diplomática fosse tentada através do tratado de Madrid (1750). Conforme
Moacyr Flores, este tratado:
“(...) estipulava a transmigração dos Sete Povos para a outra margem do rio
Uruguai e a saída dos jesuítas como medida de segurança para evitar futuras
rebeliões contra os colonos portugueses que deveriam se estabelecer nestas
terras.” (FLORES, 1990, p.36)
A resistência dos Guaranis em serem transferidos e sua determinação em
permanecerem nas antigas terras ocasionaram a Guerra Guaranítica de 1751. Os confrontos
que envolveram as duas coroas ibéricas tinham os índios Guaranis ora como elemento
humano para milícias, ora como objeto de troca, ora como perigo a ser evitado. Um novo
confronto armado entre Portugal e Espanha ocorre em 1762 e fez com que os espanhóis
retomassem a Colônia de Sacramento e avançassem até a região da vila de Rio Grande,
fazendo os portugueses recuarem em seu domínio até os limites dos campos de Viamão e à
margem esquerda do rio Jacuí até Rio Pardo. Ainda segundo Moacyr Flores, os
portugueses, temerosos de que índios guarani que já estavam aldeados em Rio Pardo
debandassem para o lado espanhol, resolvem, em 1762, transferir este aldeamento para as
margens do rio Gravataí, região pertencente à vila de Viamão, fundando, na margem norte
daquele rio, a “Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos”. Moacyr Flores comenta ainda que a
motivação dos portugueses não seria a colonização do continente:
“A única intenção da transmigração dos índios para a Aldeia dos Anjos era de
diminuir o potencial bélico dos espanhóis que se apoiavam em grande parte
nas milícias guaranis.” (idem, p.42)
Não é a mesma opinião de Corsino Medeiros dos Santos, que afirma:
“Na verdade, a fundação da Aldeia de N. Sa. dos Anjos representou mais uma
tentativa de organização de uma colonização dirigida, assim como o fora a
importação de casais das Ilhas e seu assentamento no Rio Grande, como o se
a fundação da Real Feitoria do Linho-Cânhamo.” (DOS SANTOS, 1990, p.48)
28
De toda forma, este aldeamento viria a ser temporário e, apesar de ter recebido
outros contingentes de índios “que vagueavam pela província”, sua população, de um total
de 3.500 índios em 1762, esteve em permanente decréscimo. Em 1784, a população
registrada era de 1.362 índios. Em 1803, ocorre o fim da administração da Aldeia dos
Anjos e os índios são “liberados para irem aonde quisessem” (FLORES, 1990, p.41). Em
1814 os registros falam de apenas 300 índios na mesma região. (id. ibid.)
Mas estes dados merecem ser analisados sob a ótica da própria política de
integração, promovida pela administração portuguesa, na qual era estimulada a mestiçagem
do índio com o elemento branco, a fim de incorporar as famílias resultantes ao abrigo da
relação de vassalagem para com o rei de Portugal. Denise Maldi fornece um interessante
estudo sobre o desenvolvimento das políticas Portuguesa e Espanhola de utilização do
elemento indígena e na manutenção das fronteiras de cada reino:
“(...) a relação estabelecida entre os portugueses e os índios das fronteiras
durante o século XVIII [caracterizava-se]: por um lado, [pelo] reconhecimento
(...) da existência de povos definidos, com perfis próprios, que serão, ora
“nações”, ora “confederados”, por outro (...), se amigos de Portugal, tratados
com deferência, se inimigos, perseguidos.” (MALDI, 1997, p. 203)
Na época em que a Aldeia dos Anjos foi criada, a incorporação do “gentio(as
gentes da terra os índios) somente era possível quando deixassem de fazer parte de
“nações” indígenas. Ou seja, somente deixando de serem índios - que os índios poderiam
ser incorporados plenamente à população vassala do rei.
Este processo de “desaparecimento” ou a “incorporação” da população de 3.500
indígenas à população local é um aspecto que esteve, durante um certo tempo, como uma
das pistas e um possível horizonte de pesquisas, enquanto este trabalho ainda estava em sua
etapa de elaboração do projeto com vistas à produção desta dissertação de mestrado. A
despeito do êxito econômico do aldeamento, atestado pelos dados tanto de Moacyr Flores
(idem, p.41) como de Corcino M. Dos Santos (idem, p.66), o destino destes 3.500 índios (e
de outros que certamente viviam na região ou constituíam ali seus territórios de uso
29
tradicional) que no período de 50 anos aproximadamente (1763 até 1814) “desaparecem” é
fato que merece, sem dúvida, ser melhor estudado.
O artigo de Rodrigo Weimer (2002) aborda esta questão tendo como ponto de
partida a mesma dúvida: quais os motivos da rápida mudança demográfica que levou à
dissolução da Aldeia dos Anjos em 1798. Um dos elementos analisados pelo autor foi, por
um lado, o confronto de interesses e de estratégias entre a Coroa Portuguesa e os sesmeiros,
proprietários de terras da região de Viamão e Gravataí. O interesse dos proprietários era
poder empregar a mão de obra e os saberes dos índios aldeados, acostumados ao cultivo
daquela região e à lida com o gado, que haviam aprendido nas missões. Por outro lado, a
intenção da coroa e da administração pombalina nesta época (1750) era povoar a região
com estas populações, que se tornariam, no entanto, submissas diretamente à Coroa, e não
aos proprietários de terras estes últimos interessados, sempre que possível, em escravizá-
las. A Coroa Portuguesa e a administração local editam diversos decretos e instrumentos
jurídicos para evitar a administração dos indígenas por particulares, ou pelo menos evitar
que o uso da mão-de-obra indígena fosse feito de forma não remunerada, já que não era
proibido aos índios prestarem serviço a terceiros, fora dos aldeamentos. Mas na prática,
foram as fugas, vinculadas ao emprego dos índios como agregados em estâncias da região,
o principal fator da dissolução do aldeamento:
“Uma vez foragidos do aldeamento, acreditamos ter sido o destino da
população Guarani estabelecer-se como reserva de mão-de-obra à disposição
dos lusobrasileiros, seja sob a forma de agregação, seja através de peonato.
Podemos lembrar que nas regulamentações para o aluguel de índios,
verificam-se especializações vinculadas às lides rurais (domador, peão,
trabalho na roça) do Rio Grande de o Pedro que no século XVIII tinha
atividades econômicas ganadeiras e tritícolas. Percebe-se outra evidência
quando verificamos que as fugas desta população indígena eram efetuadas em
alguns meses específicos, coincidentes com os momentos de alta demanda
laboral no calendário agrário: dezembro a março (tempo de colheita do trigo)
e de junho e julho (tempo de plantio do trigo e também de acúmulo de
trabalhos pecuários). Resta saber através de quais relações sócio-produtivas
concretizou-se a apropriação desta o-de-obra, sendo necessários, para isso,
novos estudos. Contudo, é evidente que a exploração do trabalho indígena foi
determinante para a diminuição da população aldeada.” (WEIMER, 2002,
p.3)
30
A questão da miscigenação da população indígena certamente foi outro fator
importante para a dissolução dos aldeamentos, e este é um aspecto abordado por Ruben
Neis (1975). Analisando a questão da constituição de Viamão e Aldeia dos Anjos, dedica
um capítulo ao tema da mestiçagem. Uma das pistas para o “desaparecimento” dos índios
do aldeamento poderia estar nos próprios registros cartoriais. Segundo o autor, os registros
de nascimentos dos descendentes de brancos com índios consideravam estes filhos como
brancos a partir da segunda geração:
“... o controle dos nascimentos de mestiços se torna um tanto difícil, não só por
ter havido poucos casamentos e muitos filhos naturais, mas também porque os
descendentes de brancos e índias são muitas vezes considerados brancos na
segunda geração. [...] Todos admitem que havia muitos índios casados com
mulheres pretas ou pardas, e muitos pretos, até escravos, casados com índias.
Nos livros de registros do século 18 são muitíssimo freqüentes tais ocorrências
(...)E em triunfo nos dez primeiros anos de freguesia, de 1758 a 1767, foram
registrados no livro de casamentos dos pretos, pardos e índios 47 casamentos.
Em 29 deles, ambos os noivos eram pretos ou pardos, escravos ou livres, um
preto ou pardo casava com índia ou vice-versa, e houve dois casos de
casamentos de açorianos com índias” (NEIS, 1975, apud LIMBERGER,
2007).
Enfim, a questão da miscigenação certamente pode ter estado presente, muito
mais na questão de geração de filhos e menos na questão dos casamentos. Isto porque,
ainda segundo Neis, embora houvesse um Alvará Real de 1755 estabelecendo a não
discriminação das uniões em casamento dos portugueses com os filhos da terra, na prática e
na vivência local havia uma discriminação, tendo havido até mesmo um edital local de
1773, do governador José Marcelino de Figueiredo, estabelecendo distinções para que, na
distribuição de terras, tivessem preferência aqueles “de bom procedimento e sangue limpo”
(ou seja, não miscigenados). Assim, o número de filhos de uniões entre brancos e índios foi
sempre muito superior ao número de casamentos registrados.
Mas no que se refere, contudo, aos casamentos e uniões entre índios e negros, os
dados são ainda mais difíceis de serem obtidos. Como dissemos, tivemos, a certa altura
deste trabalho, a intenção de pesquisarmos uma possível memória desta miscigenação
negro-indígena na região de Gravataí e Viamão e que víamos presente nos relatos de alguns
31
de nossos informantes. Minha experiência de campo mostrou que, a despeito de ser
reconhecido por muitos deles uma ascendência indígena, isto não se reflete na existência de
uma memória das formas de vida ou sociabilidade auto-reconhecidas como indígenas, ou
na existência de uma memória de um possível processo de incorporação (ou mistura ou
fusão, como se queira chamar) das populações indígenas às populações (negras) que para
se deslocaram. Este foi o fator que nos motivou a abandonarmos esta linha de investigação
a qual, para poder ser levada a cabo, talvez requeresse uma etnografia bastante mais
extensa, e o uso de metodologias outras (tais como a arqueologia, a genética avançada),
além das fontes documentais (sempre escassas quando se trata das populações não-brancas
no período colonial e imperial do Brasil), inviabilizando que este objetivo pudesse estar no
âmbito deste trabalho, muito embora permaneça como um horizonte de possibilidades e
indícios a serem perseguidos.
Assim, no caso do estudo que estamos propondo aqui, abordaremos as populações
negras de uma região situada na divisa dos municípios de Gravataí e Viamão. A
especificidade da dinâmica territorial da população negra do Rio Grande do Sul é o
principal aspecto que este estudo pretendeu abordar. Nossa intenção mínima é podermos
contribuir para firmar um ponto de comparação com relação a outras comunidades do
estado do RS e do país, fazendo crescer a compreensão sobre as condições de existência,
suas necessidades e as especificidades das formas culturais destas populações negras.
32
CAPÍTULO 2. REFERÊNCIAIS TEÓRICO-CONCEITUAIS
Diversos trabalhos nos mostraram a relação intrínseca existente entre família,
parentesco e território - algo enfatizado, por exemplo por Ilka Boaventura Leite (LEITE,
1996), José Maurício A. Arruti (ARRUTI, 2001), entre outros, ao investigarem
comunidades etnicamente diferenciadas, em especial as comunidades negras. Também no
caso das comunidades que estamos investigando, achamos que força da ligação deles com o
território de origem permaneceu e permanece atuante, como pudemos mostrar no trabalho
anterior (COSTA, 2003) [ver também Vera Regina Rodrigues da Silva (RODRIGUES
DA SILVA, 2003), Trabalhos de Conclusão do curso de Ciências Sociais, UFRGS].
2.1. Comunidades quilombolas do RS
Um dos primeiros trabalhos a respeito de comunidades negras do Rio Grande do
Sul, feito com a intenção de apresentar um laudo antropológico sobre a situação de uma
comunidade que reivindicava a posse de terras, tidas como legado de antepassados
escravos, foi realizado na comunidade de Casca, próximo aos municípios de Mostardas,
região litorânea do estado. Este trabalho foi reunido no livro “O legado do testamento: a
comunidade de Casca em perícia”, de Ilka Boaventura Leite (LEITE, 1999). Trata-se de um
trabalho encomendado pela Procuradoria Geral da República do Estado do Rio Grande do
Sul e realizado pelo Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER)
da Universidade Federal de Santa Catarina. É uma obra pioneira que consegue reunir tanto
o rigor da pesquisa de fontes documentais e históricas como a utilização dos métodos da
Antropologia: utilização das genealogias detalhadas, relacionamento prolongado com a
comunidade em campo - um campo marcado pela mobilização e pelo conflito.
Trata-se, assim, de um trabalho em que este envolvimento em campo foi sempre
marcado pela questão da elaboração do laudo e pela questão política envolvida, no que era,
33
afinal, a sua razão de ser. Mas nesta elaboração, Ilka ao mesmo tempo constrói um marco,
um padrão de elaboração de um trabalho que procura apresentar ao seu principal
demandante a Justiça Brasileira a complexidade do campo e os elementos necessários
para que a justiça fosse feita.
Nesse percurso, Ilka constrói, problematiza e discute categorias que nos serão
extremamente úteis em nosso trabalho. Assim, por exemplo, a noção de territorialidade
nativa quanto às terras legadas em testamento (testamento este que tinha uma cláusula
específica de proibição de venda das terras), os embates com os vizinhos, herdeiros ou não,
e com os poderes públicos em vários níveis são todos fatores que se conjugam em
representações que marcam a vida da comunidade e sua relação com seu território.
Outro importante estudo a tratar de uma comunidade quilombola do RS foi o
trabalho multidisciplinar, coordenado por Daisy Macedo de Barcellos, que resultou no livro
intitulado “Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade”
(BARCELLOS et alli, 2004). O estudo, viabilizado sob a forma de convênio entre a
UFRGS e o Ministério Público Federal, foi encomendado também para instruir o processo
de reconhecimento dos direitos territoriais de uma população negra habitante da região de
“Morro Alto”, na divisa dos municípos de Osório e Maquiné, RS. Naquele trabalho, são
enfocados diversos aspectos históricos, geográficos, ambientais, sociais e culturais dos
relacionamentos das redes de famílias negras que ocupam um território conflagrado em
disputas e em resistência aos avanços e ameaças de esbulho que sofrem e sofreram ao longo
do tempo. Trata-se também de um estudo exemplar, de grupos que têm uma proximidade
muito grande com as redes que fazem parte deste nosso estudo – tanto proximidade
geográfico-espacial (perto de 60 km de distância), que faz com que estejam, por vezes, em
contato em um circuito mais amplo de trocas e fluxos, quanto de compartilhamento de um
histórico semelhante, de submissão a redes de trabalho e produção (por vezes os mesmos
proprietários de terras da região empregavam trabalhadores destas rias comunidades) o
que não significa que não tenham também muitas diferenças e especificidades no que se
refere às circunstâncias de seus relacionamentos com os territórios e as memórias que
mantêm do tempo da escravidão.
34
Outro trabalho que lida com a tarefa da construção de laudo para duas
comunidades é o livro “São Miguel e Rincão dos Martimianos: ancestralidade negra e
direitos territoriais”, que tem como autores-organizadores José Carlos Gomes dos Anjos e
Sérgio Baptista Silva (2004). Dessa feita, os autores e colaboradores lidam com duas
comunidades negras rurais profundamente imbricadas por laços de parentesco e
reciprocidade localizadas no município de Restinga Seca, RS. É uma situação bastante
semelhante àquela encontrada nas comunidades com as quais trabalharemos, embora
naquele caso (Restinga Seca) os laços de parentesco e a imbricação mesma das
comunidades parece ocorrer em escala maior do que os nossos estudos preliminares
apontaram para o caso de Anastácia, Manuel Barbosa e Ferreira-Fialho.
Dentre as contribuições que podemos citar como sendo de grande valia para o
nosso trabalho está a defesa de que tanto as comunidades negras rurais quanto as
comunidades indígenas possam estar enquadradas no conceito de “sociedades tradicionais”.
Este conceito, conforme de Da Matta (1981, apud BAPTISTA DA SILVA, 2004)
compreende sociedades em que a noção de indivíduo é “residual”, em que a categoria
“totalidade” prevalece sobre as partes. Isso nos levará à possibilidade de fazer uso de
conceitos e categorias (tais como etnicidade, territorialidade e parentesco) que têm todo
um acúmulo teórico no uso específico na abordagem do tema das sociedades indígenas e
tradicionais.
São contribuições como estas que permitirão ver também, tal como havia sido
relatado por Ilka B. Leite (op. cit., 2002), como se dá a administração dos territórios, as
regras de sucessão, o estabelecimento ou não das partilhas da terra, a questão da etnicidade
e a emergência destas questões nas comunidades negras rurais com as quais tratamos.
O tema da emergência étnica ou etnogênese em uma comunidade quilombola é
questão principal abordada em um outro trabalho, de autoria de Vera Regina Rodrigues da
Silva, em sua Dissertação de Mestrado intitulada “De Gente da Barragem a Quilombo da
Anastácia: um estudo antropológico sobe o processo de etnogênese em uma comunidade
quilombola no município de Viamão, RS” (RODRIGUES DA SILVA, 2005). Vera
constrói seu campo tratando da comunidade de Barragem, ou Quilombo Anastácia -
35
justamente uma das comunidades de que nos ocuparemos em nossa pesquisa - a qual, tal
como descrito no próprio trabalho, ao longo dos anos últimos anos (e a exemplo de outras
comunidades também envolvidas na legalização de suas terras, tais como a comunidade
Manuel Barbosa, sua vizinha) resolve reivindicar seu enquadramento como comunidade
quilombola e assumir uma (nova) identidade de integrantes do “Quilombo Anastácia”.
No trabalho de Vera R. R. da Silva, a ênfase foi dada ao processo de etnogênese
a questão da negociação de (novas) identidades - uma situação presente na maior parte das
comunidades envolvidas nestes processos de reconhecimento. Mas para os fins que nos
interessam aqui, torna-se também importante o fato do trabalho de campo trazer como pano
de fundo o relacionamento interno aos grupos de famílias negras - justamente algumas das
famílias negras com as quais desenvolveremos este trabalho (de fato, uma parte da pesquisa
de campo até aqui foi feita de maneira compartilhada).
Assim, o respectivo contraste e complementaridade dos nossos trabalhos pode ser
visto, por um lado, pela questão da emergência da etnicidade e por outro lado, na questão
do “idioma do parentesco”, que, segundo entendemos, perpassa a maior parte dos processos
envolvendo os membros destas comunidades (incluindo a etnicidade).
Mas, como dissemos, um dos objetivos desta pesquisa será explicitar as relações
entre territorialidade, parentesco e práticas culturais e de sociabilidades que envolvem estas
comunidades negras ao longo das gerações. Este estudo envolverá, portanto, pelo menos
três conceitos fundamentais; um deles é o de parentesco, com todos os desdobramentos que
a história do desenvolvimento da disciplina antropologia nos legou; o segundo deles é o de
etnicidade (idem); e o terceiro deles, de uso mais moderno, é o de territorialidade.
Começaremos pelo conceito de comunidade.
36
2.2. Comunidade
O conceito de comunidade é um destes conceitos que possui um longo histórico
de reflexões, práticas e problematizações dentro do âmbito das Ciências Sociais e da
Antropologia em particular. As definições mais clássicas de comunidade costumam fazer
referência a “um grupo de pessoas vivendo segundo instituições sociais comuns,
integradoras e interdependentes” (VARELLA, 2005). O “Dicionário Crítico de Sociologia”
(BOUDON & BOURRICAUD, 1993 [1986]), registra uma problematização acerca de uma
das definições clássicas, aquela baseada no pensamento de Ferdinand Tönnies. Tönnies
diferenciava a “Gemeinschaft” (“comunidade”) de “Gesellschaft ” (“sociedade” ou
“associação”), de forma que comunidade representasse o pólo da integração social -
“...integrada, pré-industrial, em pequena escala, baseada em parentesco, amizade e
vizinhança, em que as relações sociais são íntimas, duradouras e multiintegradas”, enquanto
que a sociedade (também definida como “não-comunidade”), aparece “simbolizando os
laços impessoais, anônimos, contratuais e amorais característicos da sociedade industrial
moderna”. O problema destas concepções, segundo os autores do Dicionário, além do viés
ideológico de imputar à sociedade capitalista os males da desagregação comunitária, estaria
na pouca correlação do conceito com as situações práticas. Tönnies tratava dos conceitos
através do método de considerá-los na forma de “tipos normais” (semelhantes ao “tipo
ideal” weberiano); mas, continuam os autores do dicionário, mesmo nas sociedades
industriais, produtivamente organizadas e modernas, poder-se-iam encontrar elementos de
comunitarismo em diversos grupos e associações e, em direção oposta, mesmo em grupos
pequenos, agrários e ou marginais à sociedade capitalista moderna, pode não haver uma
vida comunitária “multiintegrada”. Para os autores, portanto, a comunidade :
“não constitui uma relação social simples e primitiva. Ela é ao mesmo tempo
complexa (...) e aprendida, uma vez que somente graças a um processo de
socialização, que a rigor nunca termina, aprendemos a participar de
comunidades solidárias. Ela jamais é pura, que vínculos comunitários estão
associados a situações de cálculo, conflito ou mesmo violência.” (BOUDON,
op. cit.,1993, p.74)
37
Max Weber é um dos autores clássicos que atribuía grande importância à vida
comunitária, mas, apesar disto, não deixou uma definição muito precisa de comunidade a
não ser por seu caráter de relação e por sua importância em modelar a ação social - como
ele afirma nestas passagens:
"(...) o conceito de comunidade é mantido aqui deliberadamente vago e
conseqüentemente inclui um grupo muito heterogêneo de fenômenos. (...)
Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a
orientação da ação social, na média ou no tipo ideal, baseia-se em um sentido
de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos
participantes." (WEBER, 1987 pp 77 e 79, apud RECUERO, 2001, pp 1 e 3)
Apesar não ter definido claramente o que entendia por comunidade, o conceito
Weberiano de “comunalização”, descrito como um efeito muito visível na formação das
comunidades emocionais ou místicas (que é o exemplo de onde ele deduz o conceito) é
apontado pelos autores do referido dicionário como um conceito passível de ser utilizado
em outros tipos de fenômenos de formação de comunidades: os processos de “organização”
e “institucionalização” da “comunidade emocional” podem aparecer também como
componentes na formação de comunidades econômicas, políticas, científicas e quaisquer
outras.
2.3. Estudos de comunidade no Brasil
Dentro do âmbito da prática de pesquisas de campo e pesquisas qualitativas, uma
linha de estudos que teve no Brasil uma grande repercussão foram os chamados “estudos de
comunidade”. Tais estudos surgiram e desenvolveram-se a partir dos anos 30 e 40 do
século passado, principalmente a partir da Escola Livre de Sociologia e Política de SP e sob
influência de autores da Escola de Chicago. Pesquisadores oriundos ou influenciados por
aquela instituição como Donald Pierson, Charles Wagley e Marvin Harris - e também
autores formados inicialmente no Brasil, como Oracy Nogueira e Florestan Fernandes
conduziram muitos dos trabalhos hoje considerados clássicos da sociologia brasileira,
principalmente dentro dos chamados estudos urbanos.
38
Contudo, nas ciências sociais, o uso do termo “comunidade” promovido pelos
“estudos de comunidade” suscita ainda hoje muitas controvérsias. Dentre as principais
críticas, sobressai a que afirma que estes estudos promovem uma confusão entre unidade
ecológica e unidade sociológica (WOORTMANN, 1972). ainda a crítica ao caráter de
unificação e homogeneização cultural que o uso do termo potencialmente promove perante
grupos que podem não apresentar estas características de homogeneidade tão exacerbadas
(MARCUS, 1991)
12
.
Neste trabalho iremos abordar mais detidamente o alcance do termo comunidade
para cada um dos três grupos considerados, mas achamos que ele permanece uma unidade
de análise válida na medida em que é um conceito utilizado também localmente pelas
pessoas ao referirem-se aos seus próprios grupos. Assim, seria um conceito “êmico” ou que
foi incorporado pelos grupos e logo veremos de que modo isto ocorre na prática.
2.4. Comunidade negra rural
O conceito de comunidade negra rural foi descrito por Linhares (2000) como
tendo, no período anterior à Constituição de 1988, um uso interessado por parte de
organizações sociais tais como grupos do movimento negro, que reivindicavam políticas de
reparações para comunidades rurais e que preferiam o uso deste termo por ser mais geral e
inclusivo do que o termo “quilombo”.
Pouco mais adiante, o texto da Constituição de 1988 criou a figura jurídica, até
então inexistente, dos “remanescentes das comunidades de quilombos”. Nesta nova
realidade, diversas instâncias da sociedade - movimentos sociais, comunidades negras,
poder Judiciário, Estado, partidos, mercado, universidade, etc. - passaram a disputar
(alguns) e a estudar (outros) o alcance do novo termo: ou seja, uma das questões passou a
ser decidir quais seriam aquelas comunidades negras que poderiam ver legitimado seu
12
Segundo o comentário de Magnani: “Nesse artigo, Marcus propõe problematizar o conceito de
comunidade, tradicionalmente referida a uma localidade específica e a uma identidade determinada: é preciso
dissolver as conotações de solidez e homogeneidade implicadas nessa relação, que a formação de
identidades depende de atividades desenvolvidas em muitos locais” (MAGNANI, 2003).
39
enquadramento como “comunidades quilombolas”. Mais recentemente, surgem contendas
envolvendo comunidades negras que não eram mais ou nunca foram comunidades
rurais, mas que mesmo assim reivindicam seu acesso à terra onde habitam mediante
requisição de seu enquadramento como comunidades quilombolas - urbanas desta vez -,
cujo exemplo mais próximo é o caso do quilombo “Família Silva” de Porto Alegre, RS
13
.
2.5. Parentesco
O tema do parentesco representa, dentro da história da formação da disciplina (ou
da Ciência, se quisermos) da Antropologia o estatuto de um dos seus temas fundantes.
Desde os pioneiros evolucionistas, Morgan, por exemplo, passando por (funcionalistas
como) Malinowski e Radcliffe-Brown, em uma linha de crescente confiança na
legitimidade do tema, até chegar a Lévi-Strauss, que nos traz a chamada “Teoria Estrutural
do Parentesco”, o fato é que “família e parentesco” constituiu-se em um tema obrigatório
de análise e objeto de vivas discussões teóricas que prolongaram seu ímpeto até pelos
menos meados dos anos 60 e 70.
É por volta desta época que, ao menos no âmbito da antropologia feita nos
Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a obra de David Schneider, “American Kinship: a
cultural account” (1968) veio lançar a grande e impactante dúvida; não seriam a maior parte
das discussões sobre parentesco meras projeções dos conceitos tirados da própria cultura
(ocidental) dos pesquisadores, que sub-repticiamente imporiam seus problemas, seus
sistemas classificatórios e tentariam enxergar nas sociedades locais as mesmas categorias
das sociedades ocidentais Euro-Americanas. A questão da (impossibilidade da) tradução
lança na dúvida e no ceticismo a maior parte dos estudos do parentesco que, especialmente
na América do Norte, passam a perder terreno para os estudos de gênero (CARSTEN,
2000).
13
Em 26/10/2006 a área do quilombo “Família Silva” foi desapropriada em nome das 12 famílias que
haviam recebido a certidão de reconhecimento como comunidade quilombola, emitida pela Fundação Cultural
Palmares desde 2003 (Fonte: http://www.fomezero.gov.br/noticias/).
40
Antes disso, os estudos do parentesco já se haviam enredado, por vezes, em
celeumas lingüísticas, e outras tantas vezes enrijeceram-se em formalismos esquemáticos,
mas esta nova crise foi mais profunda e prolongou-se até pelo menos a década de 90 do
século passado. É bem verdade também que isto não impediu Louis Dumont (1968) e
outros autores importantes, inclusive no Brasil, de continuarem a fazer estudos
retrospectivos e prospectivos sobre o parentesco e de este tema continuar a ser um
horizonte de pesquisa e de discussão para toda uma comunidade intelectual não totalmente
dependente das discussões anglo-americanas (vide VIVEIROS DE CASTRO, 1976, 1978,
1992 e 1993; CARNEIRO DE CUNHA, 1993, entre outros tantos).
Mas no contexto anglo-americano, é na década de 90 do século XX que todo um
conjunto de produções reaviva a discussão sobre um (agora) “novo parentesco” é bem
verdade que dessa vez em uma nova chave. Autores como Marilyn Strathern, Sarah
Franklyn, e a própria Janet Carsten, tomam a crítica de Schneider a sério, mas retomam
conceitos importantes de autores como Bruno Latour (1993) para chegarem a análises dos
novos tipos de parentesco: um parentesco que seja capaz de dar conta tanto das
representações do corpo, da manipulação e representação genética, do sangue e de
substância compartilhada, quanto dos aspectos relacionais ligados às formas
contemporâneas de paternidade e maternidade fertilização in-vitro, novas tecnologias
reprodutivas e (novas e antigas) formas relacionais do parentesco. Aliás, não é de se
estranhar que estas produções, quando feitas em língua inglesa tenham, o mais das vezes,
preferido utilizar o neologismo “relatedness” (parentesco que inclui a relação de afinidade)
ao invés do termo mais tradicional “kinship” (que é reportado como portador de uma
insuperável associação com o parentesco de sangue”, filial, que kin = filhos,
descendentes) vide a própria Janet Carsten (2000, op. cit.) - embora neste quesito, as
línguas latinas tenham ficado imunes à discussão, uma vez que o termo “parentesco” das
línguas latinas não carrega a mesma associação tão presente com a descendência, podendo
representar igualmente os parentes consangüíneos e os afins.
A crise com os universalismos foi absorvida e enfrentada, mas singularmente, as
soluções desses dois conjuntos de autores Franco-Sul-Americanos e Britânico-
Americanos – aproximaram-se por vias diversas. A discussão dos híbridos de Latour
41
também estimulou a produção de Viveiros de Castro dentro do marco do Perspectivismo.
Mas seguindo por esta via – a da produção de afinidades - será necessário voltarmos a Lévi-
Strauss, não apenas o autor de “As Estruturas Elementares do Parentesco”, mas também de
“Análise Estrutrual em Lingúistica e Etnologia”. Nesta última obra, a existência quase
universal do tabu do incesto não é algo a ser explicado pela maior ou menor cultura de um
povo, ou um sinal de seu estágio civilizatório; ao contrário, a cultura e a civilização a
necessidade de se fazer relações, de se estabelecer alianças, obter aliados, fora da família, é
que seriam os verdadeiros fundamentos da existência de sociedades humanas e de
civilizações. Esta “inversão universal” de obrigação em proibição gerou a teoria da aliança
e daí toda uma vertente teórica que poderá ter implicações nas análises dos grupos com os
quais estamos tratando.
Contudo, como vimos em análises na comunidade de Anastácia, se por um lado
a necessidade de se fazerem alianças (que envolvem a troca de mulheres) nem por isso
quaisquer alianças serão feitas, e é que intervêm os fatores que nos interessam ver em
conjunção: etnicidade, territorialidade e criação de parentes neste conjunto de comunidades
negras das cidades de Gravataí e Viamão.
É neste ponto que achamos que a produção de Eduardo Viveiros de Castro (2002,
op. cit.) sobre o idioma do parentesco e a afinidade potencial nos povos da Amazônia pode
ser muito útil e trazer elementos de comparação para se pensar nos processos de se
“fazerem parentes” entre as comunidades negras com as quais nos estaremos relacionando;
mesmo tratando-se de grupos que, segundo entendemos, possuem muitas diferenças em
relação ao estatuto de compartilhamento de uma mentalidade e uma cultura ocidental
(indígenas das terras baixas da Amazônia versus comunidades negras do RS), os exemplos
dos povos amazônicos podem servir como problematizadores dos tipos e dos limites de
alianças possíveis e dos limites dos grupos com as quais a trocas podem ou não ser feitas.
42
2.6. Etnicidade
A análise da etnicidade vem recebido diversas contribuições recentes no campo
das Ciências Sociais e dentre estas contribuições, certamente a obra de Fredrick Barth “Os
Grupos Étnicos e suas Fronteiras” tornou-se uma das mais influentes. Na obra “Teorias da
Enicidade”, Poutignat e Streiff-Fenart (1998) procuraram apresentar uma visão geral destes
debates e contribuições atuais mais importantes em torno do tema. Uma das conclusões dos
autores, no entanto, é a de não ser possível apontar uma teoria de etnicidade que se
destaque das demais. Um dos motivos apontados para a multiplicidade de matrizes teóricas
pode estar, segundo os autores, na diversidade de escalas que o problema comporta. Mesmo
que diversos pontos de vista tenham em comum a crítica das chamadas “concepções
primordialistas” e “substancialistas”, tem ocorrido que teóricos tomem situações tão
diversas como, por exemplo, o novo tribalismo africano e os grupos católicos da Irlanda do
Norte como se fossem fenômenos étnicos de mesma magnitude e passíveis de serem
abordados pela mesma matriz teórica. Mas diversos autores concordam, afinal, de que
existe uma diversidade de situações por trás do mesmo conceito, e Poutignat e Streiff-
Fenart assim descrevem essa diversidade como vista pelos autores:
“existe etnicidade e etnicidade: etnicidade tradicional e nova etnicidade
(Gumperz 1989); etnicidade interacional e reativa (Hechter, 1976), etnicidade
real e simbólica (Gans, 1979; Mc Kay, 1982) (1998, pp.120-121).”
Glazer e Moynihan (1975, apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998), em
uma obra de catalogação das definições utilizadas pelos cientistas sociais quanto à questão
étnica, apontam que, em geral, as definições referem-se:
“...ou a um conjunto de atributos, ou de traços tais como a língua, a religião,
os costumes, o que a aproxima da noção de cultura, ou à ascendência comum
presumida dos membros, o que a torna próxima da noção de raça.” (1998, op.
cit., p.87)
Um paralelismo da noção de etnicidade com os termos “raça” e “nacionalidade”
encontra-se registrado também em Weber (1922). Ocupando-se do tema das ‘relações
43
comunitárias’, Weber tratou a questão do pertencimento a uma comunidade ou uma raça
como possível fundamento da ação social de tipo comunitária. Este autor procura enfatizar
o caráter político com que a “afirmação das etnicidades” costuma vir acompanhado. Mas
para ele, as disposições hereditárias somente conduziriam a uma ‘comunidade’ quando
houvesse o ‘sentimento do pertencimento’. A definição que Weber para “grupo étnico”
envolve, mais do que elementos externos e objetivos, a “crença subjetiva na procedência
comum” que seria importante para o estabelecimento do que ele chamou as “relações
comunitárias étnicas” (WEBER, 1922).
Agudizando a questão da centralidade da interação entre grupos sociais étnicos e a
chamada “sociedade englobante”, a obra de Fredrik Barth trouxe a contribuição decisiva de
considerar a etnicidade não mais em termos de características “primordiais”, “essenciais”
ou “necessárias” que pudessem ser arroladas ou classificadas, mas do ponto de vista do
processo (e da permutabilidade) da eleição daquelas características que o grupo seleciona e
se auto-atribui com vistas a manter as fronteiras étnicas que os diferencie dos demais
grupos. Assim, os chamados “sinais diacríticos” aqueles traços que são escolhidos como
fundamento da separação entre “nós” (os membros do grupo ou comunidade étnica) “os
outros” (outsiders) - estariam relacionadas a momentos de apropriação e negociação
mediados pelos contatos externos. Essas marcas e sinais selecionados como importantes
poderiam, portanto, variar com o tempo, mas o que permanece é a existência da fronteira
étnica. Em outras palavras, para Barth (e para os grupos étnicos) não importa tanto o “do-
que-a-fronteira-é-feita” (quais são os sinais escolhidos), mas antes, “que-a-fronteira-exista”.
Esta questão, da fronteira étnica e da fronteira cultural possui também uma
interpretação que critica o reducionismo teórico que seria considerar o uso da etnicidade
com um sentido apenas pragmático por parte das populações. Mas no caso destas
comunidades da região de Gravataí e Viamão é forçoso reconhecer que a etnicidade tem
estado cada vez mais em discussão para os membros das comunidades, em especial aqueles
mais envolvidos no processo de reconhecimento como comunidades quilombolas, quando
se discute agora, além de uma etnicidade negra ou “morena”, uma identidade e uma
etnicidade “quilombola”. Daí se verifica então que o componente político pragmático, se
44
quisermos está presente nesta situação de afirmação e ostentação das fronteiras, em uma
condição em que a luta pelas fronteiras territoriais também é uma realidade.
Mas levando adiante esta situação, e tomando emprestado os exemplos trazidos
pelos estudos de grupos como os “índios do nordeste brasileiro” ou “índios misturados”,
dos trabalhos de João Pacheco de Oliveira e outros pesquisadores, talvez seja possível
discutir também como a etnicidade pode ser uma estratégia de sobrevivência ou ter um uso
político para os grupos mesmo quando as fronteiras são relaxadas ou deixam de existir. Os
estudos tratam de populações que os autores caracterizam como “de pouca distintividade”:
populações mestiças, em geral, e que podem ter permanecido por largo tempo sem
ostentarem sua etnicidade – aqueles sinais diacríticos de que fala Barth. No caso de
algumas destas populações que hoje reivindicam ou procuram ostentar sua etnicidade
indígena, como nos relatam os autores, pode ter havido diversos ciclos em que a luta pela
sobrevivência dependeu da maior ou menor distintividade que pudessem ter em relação às
populações locais, inclusive momentos em que a associação e fusão com outros grupos
por exemplo, grupos negros ou caboclos, locais - foi a estratégia para não serem
aniquiladas. Isto nos leva a pensar nesta situação de uso interessado, na negociação das
identidades justamente através da não-ostentação. No caso das populações indígenas e das
populações negras, esta negociação de identidades pode estar na raiz daqueles processos
históricos de assimilação dos indígenas da Aldeia dos Anjos de Gravataí, e pode ser visto
em alguns grupos como na comunidade Anastácia, onde alguns de seus membros
identificavam-se como “morenos” ou “puxados pra bugres” o que não os impedia de
participar da mesma rede de sociabilidade dos “morenos” do barro vermelho e dos grupos
negros da região.
2.7. Territorialidade
A questão dos chamados “territórios negros”, analisada por Arruti (2001), surgiu
do bojo no debate político feito pelos movimentos sociais que procuraram uma
aproximação entre a questão dos chamados “territórios indígenas” e essas novas formas de
45
reivindicação por regularização fundiária para grupos etnicamente diferenciados (como os
referidos pelo artigo 68 do ADCT).
A importância que assume um território como força de memória social e
identidade de um grupo, nos parece, pode ser vista também nessas três comunidades, o que
permite que se faça uma aproximação com as definições de território e territorialidade, tais
como tratadas por Muniz Sodré e Ilka Boaventura Leite, citados por Carvalho e Doria
(1996) em “O Quilombo do Rio das Rãs”. Assim, para Muniz Sodré, territorialização:
“[define-se] como força de apropriação exclusiva do espaço (resultante de um
ordenamento simbólico) capaz de engendrar regimes de relacionamento,
relações de proximidade e de distância.” (SODRÉ, Muniz, apud CARVALHO e
DORIA, 1996, p.115)
Ilka B. Leite compara as noções de “terra”, “território” e “territorialidade”,
enfatizando o caráter de inscrição subjetiva e existencial presente neste último conceito:
“A terra
sugere uma base física, o lugar sob o qual a existência do grupo
torna-se possível, seja para residir, encontrar, produzir ou permanecer por
algum tempo. [...] O território
inscreve limites, indica a presença de fronteira
concreta, simbólica ou ambas. [...] E territorialidade
pode ser vista como uma
relação, um jogo, um tipo de experiência que constrói subjetividade [...]
(LEITE, apud CARVALHO e DORIA, 1996, p.115, grifos nossos)
As discussões recentes acerca do conceito de quilombo aprofundaram a
necessidade de uma compreensão dos territórios negros e territórios tradicionais enquanto
instância integrada na vida social destas comunidades. Bruno Latour forjou o termo
“coletivos natureza-sociedade” (ou natureza-cultura, também com o mesmo sentido) para
demarcar uma inflexão nos estudos da sociedade e da natureza. Baseando-se nas
contribuições de Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro, Latour propõe uma crítica
radical ao projeto Ocidental-moderno de separação dos mundos: uma natureza
(mononaturalismo) e muitas culturas (multiculturalismo). Os exemplos etnográficos, tanto
aqueles vindos das margens mais distantes do mundo ocidental (por exemplo, dos grupos
indígenas das terras baixas da Amazônia) quanto aqueles vindos do centro da sociedade
46
ocidental moderna (por exemplo, os laboratórios avançados da sica ou da genética
molecular) podem demonstram uma mesma tendência não-moderna e não desejada (pelo
menos pelos autores ou beneficiários da constituição moderna): a proliferação dos seres
híbridos dos matters-of-concern (em oposição aos matters-of-fact); ao invés de separação
entre objetividade e subjetividade, objetos que carregam em si mesmos os signos de serem
objetos mas de não poderem ser descritos senão pelas questões que carregam - éticas,
afetivas, morais filosóficas, transcendentais. Neste mundo moderno (mas jamais foi
moderno, pois que jamais foi ou será completa a separação objetivo-subjetivo, natureza-
cultura) assiste-se à proliferação dos (e dos debates sobre) seres híbridos - clones, genes,
pets, quarks, transgênicos, robôs, agrotóxicos, biocombustíveis, em uma lista interminável.
Eduardo Viveiros de Castro introduziu o conceito de “multinaturalismo”, que foi
abraçado por Latour como um emblema definitivo do sepultamento do projeto modernista.
A possibilidade de que não apenas culturas diversas se deparassem frente a frente
(multiculturalismo) no contato de civilizações, mas que igualmente diversas ciências da
natureza, que proponham diferentes separações dos mundos dos corpos físicos e espirituais,
tenham igualmente o direito a serem levadas em conta, esta é a radicalidade do
multinaturalismo. Explicando uma passagem da ciência e do mito Yanomami, Viveiros de
Castro cita outro Antropólogo, Bruce Albert, que dialoga com estas questões, tais como
propostas por membros dos Yanomami:
“Os Yanomami [i.e. humanos] queixadas viraram queixadas; os Yanomami
veados viraram veados; os Yanomami cutias viraram cutias; os Yanomami
araras viraram araras. Eles assumiram a forma dos queixadas, dos veados, das
cutias e das araras que habitam a floresta hoje em dia. São esses antepassados
transformados que caçamos e comemos. Os animais que comemos são
diferentes. Eles eram humanos e se transformaram em caça. Nós os vemos
como animais, mas são Yanomami. São simplesmente habitantes da floresta.
Somos semelhantes a eles, também somos caça. Nossa carne é idêntica, não
fazemos senão trazer o nome de humanos. No começo do tempo, quando nossos
antepassados ainda não tinham se transformados em outros, éramos todos
humanos: as araras, os tapires, os queixadas, eram todos humanos. Depois,
esses antepassados animais se transformaram em caça. Para eles, porém,
somos sempre os mesmos, somos animais também; somos a caça que mora em
casas, ao passo que eles são os habitantes da floresta. Mas nós, os que ficamos,
nós os comemos, e eles nos acham aterrorizantes, pois temos fome de sua
47
carne…” (ALBERT in KOPENAWA & ALBERT 2003, apud VIVEIROS DE
CASTRO, 2006)
Viveiros de Castro parte do pressuposto de que os grupos indígenas devem ter o
direito a uma ontologia completa, às suas próprias explicações sobre seus mundos, sobre os
sentidos de viver entre os seres humanos e não-humanos que habitam seus mundos algo
que uma antropologia “simétrica” (LATOUR, 1994), ou uma antropologia “diplomática”
(LATOUR, 2004), ou uma antropologia “multiversal” (VIVEIROS de CASTRO, 2002)
deve estar apta a captar e interpretar.
Afastando-se da idéia de uma (mono)natureza unificadora, as concepções destes
autores (e das populações ameríndias, que os créditos também devem ser dados aos
povos que desenvolvem estas concepções, que Viveiros de Castro chamou de
“perspectivismo”) constituem-se em uma inversão mais do que em uma relativização: não
mais a fórmula “uma natureza - múltiplas culturas”, mas sim “uma ‘cultura’- múltiplas
naturezas; epistemologia simples, ontologia variável.” (idem, p. 379)
“(...) continuamos à procura de conceitos capazes de iluminar as diferenças
entre as sociedades, única via aberta à antropologia para visar eficazmente a
condição social de um ponto de vista verdadeiramente universal, ou melhor,
‘multiversal, isto é, um ponto de vista capaz de gerar e desenvolver a
diferença.” (VIVEIROS de CASTRO, 2002, p.316)
O conceito de “rede sócio-técnica” faz parte deste mesmo contexto teórico que
Latour introduziu ao rejeitar as possibilidades de se realizar a separação objetividade-
subjetividade, técnica-sociedade, Ciência–política (mas aqui trata-se da Grande Ciência, e
não das ciências no plural) (idem, 2004[1999]). Para Latour, tanto os objetos como os
sujeitos estão imersos em redes que lhes dão suporte e sentido. Estas redes podem então ser
representadas como compostas simultaneamente por aparatos técnicos (e tecnológicos),
sociais e políticos, produtores de valor econômico e cognitivos. O fato de os “coletivos
natureza-sociedade” estarem vinculados a estas redes de sentido torna possíveis interações
produtivas e novas possibilidades de conexões que introduzem a dinâmica da sucessão das
“redes sócio-técnicas”.
48
Estas considerações devem servir para matizar e balizar as concepções de
territorialidade e também de práticas e de representações, de etnicidade e de
pertencimento que estaremos utilizando. O que nos propomos neste trabalho será uma
tentativa de compreensão daqueles conceitos apresentados no início deste capítulo
territorialidade, etnicidade, parentesco, redes sociais - para, apoiados nas concepções de
Bruno Latour e de Eduardo Viveiros de Castro, tentar verificar como estas coletividades
negras constróem e reconstróem seus relacionamentos nestas redes, relacionamentos estes
que envolvem seus territórios e tudo o mais que os rodeia. E ainda, quais as especificidades
que estes coletivos natureza-sociedade, composto por grupos negros da região Gravataí-
BarroVermelho, Gravataí-Mato Alto e norte de Viamão, apresentam em seus
relacionamentos, entre si, com os demais humanos e não-humanos destes territórios? Tais
territórios que ao serem considerados poderão ser tanto os territórios ancestrais como os
novos territórios; territórios circunscritos e/ou alargados - incluindo ainda toda a dinâmica
que um pode exercer sobre o outro.
Isto nos traz então de volta às comunidades negras de Mato Alto, Anastácia e
Manuel Barbosa, apenas para que coloquemos estas questões que deixaremos para serem
respondidas, se assim for possível, por nossa etnografia: qual o sentido de considerar estes
grupos negros com os quais estivemos em contato como sociedades tradicionais? Em que
medida estes grupos incorporam um modo de vida e de relacionamento com os seres vivos
e coisas, humanos e não-humanos que os distinguem das demais coletividades? São estes e
outros aspectos que procuraremos ver mediante a análise daqueles conceitos que
mencionamos acima: parentesco, territorialidade, etnicidade, redes sociais.
49
CAPÍTULO 3. O CAMPO, NA PRÁTICA
3.1. Etnografia das Redes Ancestrais
Foi no ano de 2001 que entramos
14
em contato com as primeiras famílias negras
da região da várzea do rio Gravataí, região norte da cidade de Viamão. Tratava-se, viemos a
saber mais tarde, dos descendentes mais antigos de Hortência de Oliveira Pacheco e
Patrício de Souza Reis, um grupo familiar que habitava esta região no início do século
XX. Este casal teve uma filha legítima, Anastácia de Souza Reis que, ainda criança, ficou
órfã e herdou dos pais (junto com dois meio-irmãos mais velhos, filhos somente de seu pai)
“um pedaço de campo e mato” e uma casa “em muito mau estado”
15
como parte que lhe
coube no inventário dos bens. Quanto aos meio-irmãos, não se sabe que fim tiveram, mas
aquela menina Anastácia veio a formar, nestas terras do distrito de Viamão um grupo
familiar que se manteve unido e ocupando o território apelo menos o início dos anos 80
do século XX. Nosso contato e o acompanhamento da trajetória de vida de algumas das
pessoas deste grupo familiar nos fez perceber a importância de um estudo mais abrangente,
que envolvesse diversas outras famílias negras que habitam a mesma região, a fim de que
se pudesse fazer um mapa da presença negra nesta região da Grande Porto Alegre.
Isto foi o que nos fez “estender” a abrangência geográfica e genealógica de nossa
pesquisa para outras margens e para outros grupos familiares. Geograficamente, os locais
mais significativos surgiram logo “do outro lado do rio": territórios situados na margem
direita, à jusante do rio Gravataí; famílias e territórios com os quais tem havido trocas
intensas ao longo das gerações e cujo acesso pelo rio certamente foi durante muito tempo o
caminho mais curto – mais fácil até do que o acesso por estradas de terra o é hoje em dia.
14
Neste parágrafo o “nós” refere-se ao pesquisador, Luciano e a Vera Regina Rodrigues da Silva, dado que o
trabalho de campo daquela primeira pesquisa foi realizado de maneira compartilhada.
15
Trechos do Inventário de Patrício de Souza Reis e Hortência de Oliveira Pacheco, pais de Anastácia de
Souza Reis, Anexo 1, doc. 2.
50
No caso das famílias que resolvemos pesquisar, compõem-se de pelo menos três
grupos familiares, representados pelos “troncos” ancestrais de Anastácia de Souza Reis, a
família dos descendentes de José Fialho e Crispim Gomes Ferreira e a família dos
descendentes de Manuel Barbosa dos Santos, estes últimos grupos familiares negros da
cidade de Gravataí que têm laços históricos de relacionamento afetivo e familiar entre si e
com os descendentes de Anastácia de Souza Reis.
Começaremos mostrando então alguns mapas que situam estes grupos familiares
com os quais trabalhamos.
Figura 3: Rio Grande do Sul e Região da Grande Porto Alegre onde se encontram as
comunidades estudadas
Adaptado de: DNER
RS 2001
0 100km
N
51
Legenda:
Localidades e Distribuição dos Grupos Familiares Principais:
Figura 5 – Região de Gravataí e Viamão - Comunidades e Grupos Negros Estudados
Adaptado de: Google Maps, 2007
N
3) Bairro
Mato Alto
(Gravataí)
4
) Bairro Morada
Gaúcha
(Gravataí)
2) Barragem – Anastácia
(1º distrito de Viamão)
5) Parada 94 -
CTG
(Gravataí)
6) Pda 107 – P.
da Caveira - Vl
Sta Cecília
(Gravataí)
1) Bairro Barro
Vermelho
(Gravataí)
MUNICÍPIO DE
VIAMÃO
MUNICÍPIO DE
GRAVATAÍ
Rio Gravataí
Comunidade Manuel Barbosa
Comunidade Anastácia
Bairro habitado por descendentes de diversos Grupos Familiares negros – Ferreira Fialho, Anastácia, M.Barbosa
Área Reivindicada pelos descendentes de Crispim Matheus Ferreira-Fialho
Descendentes de Eva Barbosa e João Fialho
Grupo Familiar de Telmo e Clareci. Ela descendente de Anastácia de Souza Reis Gomes (novo núcleo)
General
Motors
dos Negros
Figura 4: Rio Grande do Sul e áreas abrangidas pelas comunidades, nos
Municípios de Viamão e Gra
v
ata
í
Adaptado de Google Maps, 2007
52
Figura 6 – Rio Grande do Sul – Comunidades Negras Estudadas em Relação a Algumas Comunidades Quilombolas
da Região Litorânea do Rio Grande do Sul.
N
Legenda:
Comunidades e Grupos Familiares Objeto deste estudo
Família Crispim Ferreira-Fialho (município de Gravataí)
Comunidade de Manuel Barbosa (município de Gravataí)
Comunidade Anastácia (município de Viamão)
Outras Comunidades Quilombolas da Região Litorânea do RS
Comunidade de Morro-Alto (municípios de Maquiné e Osório)
Comunidade de Casca (município de Mostardas)
Adapta
do de: Google Maps, 2007
53
A região de Gravataí, especialmente em sua porção sudeste, consolidou-se ao
longo de um período histórico bastante longínquo (que remonta à fundação do município,
em 1763) como um território habitado por negros e “morenos” (talvez incluam-se os
descendentes de indígenas). Na falas dos habitantes mais antigos, relatos de que, tão
freqüente como a ocupação por parte de famílias negras de terras nesta região, foram os
processos de expulsão dos negros de suas terras.
O senhor Antônio Francisco Ramos Barbosa, 82 anos, “seu” Franciscão, da
comunidade de Manuel Barbosa é quem nos conta:
“Aqui do passo dos Ferreira até o passo da taquara, até Miraguaia
[próximo a Santo Antônio da Patrulha], era só preto, não tinha... era só preto...
e índio. Então veio entrando essas famílias e vieram matando e espantando os
‘tronco’..., tomando conta. E tem uma área “dos Estácio” que era uma área
muito grande. Ali, mataram o dono (...) e “atropelaram” (sic) os filhos tudo.
P –Atropelara, como?
- É, atropelaram, mandaram por diante, espantaram. - Que é onde (hoje) ta os
Machado, os galho Fonseca, o Dr. Mucila (?), era tudo deles, mataram o velho
e correram os filhos[...]. O finado meu pai e minha contavam que a maioria
era preto e índio. O que era índio mataram tudo, e os preto correram tudo.
Tinha índio o que era de índio mataram. Aqui nessa nossa área aqui do
Barro Vermelho, Fonseca, os Fonseca quando chegaram aqui não tinham nada
chegaram e foram botando cerca. Um dia um deles falou que o meu pai
trabalhou... eu falei Teu pai não trabalhou coisa nenhum. Chegaram aqui
sem nada. A minha vó dizia pro meu avô, - Quem são esses que tu ta botando a
morar aqui? E ele disse Ah, vou bota esses italiano que vieram da Itália
pra morar um bocadinho, que eles não tem nada. foram botando cerca, e
ficam um ano, de um ano foi pra dois e de dois e tomaram conta.”
(depoimento ao pesquisador, 09/07/2005)
Antônio Freitas, também conhecido como Tonho ou Borracha, é genro de
Francisco e natural da mesma região, também traz-nos relatos a respeito da perda de terras
em sua família que vão na mesma direção:
“Borracha: (...) O meu pai era daqui. Eu conheci a mãe da minha e, a
Neca, mãe da Maria, casada com o Podalirio. Foi na tal época que a falecida
minha mãe... Eles moravam em cima onde é Wagner agora. O falecido pai e
a mãe moravam ali perto daquele capão. Eu me criei ali... e o Lauro fez o
negócio, que a falecida que morava ali pegou e levou elas [a e e as tias]
e na época, eu me lembro, que eu era criança, eu me lembro que até o pai
54
não queria que ae fosse. E ele [Lauro] levou a vó, a mãe, a Diquinha e a
Zeli [todas filhas]. Levou pra assinar e tomou conta das terras. Naquele
tempo, davam um pedaço de carne, se bebesse davam um litro de cachaça e
ficou com as terras. Lauro era o Lauro Pacheco, que era o dono de ali em cima
de onde tinha umas divisas. Ele comprou, ficou de dono de tudo e depois
vendeu. E depois foi pro Ceará. Eu me lembro que ali atinha umas divisa, e
muita gente falava olha isso ali é de vocês. Eu até tive em Glorinha e me
deram um papel e tinha que levar no Cartório de Gravataí e disseram que
tinha que ir no Ministério Público, e eu também não fui mais, porque eu
andei falando com os parentes que são os filhos da Zeli, os filhos da Diquinha,
e ninguém se interessou, e eu pensei, também caminhando e os outros
também tinham que se interessar.” (depoimento ao pesquisador em
09/11/2006)
A questão da perda da terra por parte de famílias negras nos distritos do Barro
Vermelho em Gravataí é um assunto muito presente nas rodas de conversa na região,
especialmente no contexto atual da região, em que existe a circulação de informações sobre
a questão dos quilombos.
“Borracha: Tem uma área de terra que o meu cunhado, o Luis, que ta morando
aqui na [parada] 107, disse que nós temos que ver essa área de terra na
Glorinha, que é muito grande, que eles querem ir atrás também. Eu to pra
passar pra ver. Quer ver se eu junto pra nos também dar força. Que é
nosso, vamos buscar... Se eles puder juntar tudo que é deles....
Francisco: Tem que mexer... s aqui, agora,[em Manuel Barbosa] no fim do
ano, diz que vai ter que pegar a se mexer essa gente aí, tão tudo nervoso...
Borracha: Vai vir o INCRA aqui?
Francisco: É, tem que sair, não adianta. Dono é dono, pode passar 500 anos,
não adianta, né... dono é dono.”
Neste contexto, entram em ação integrantes destas e de muitas outras redes locais,
interessados em requererem auxílio e reparação de antigas contendas e formas de esbulho
de terras sofridas no passado, que teriam agora a oportunidade de serem revistas.
55
3.2. Luzes sobre o passado - Manuel Barbosa
Manuel Barbosa dos Santos é o nome do ancestral tomado como referência para a
comunidade quilombola denominada “Comunidade Manuel Barbosa”, no município de
Gravataí, RS. A família dos descendentes de Manuel Barbosa é conhecida na região como
“os Bia”, usado como se “Bia” fosse o sobrenome atribuído a cada um deles no lugar de
“Barbosa”. O histórico de vida e trabalho de Manuel Barbosa dos Santos, no período antes
de fixar-se nas terras que hoje pertencem à família, na localidade de Barro Vermelho
(distrito de Gravataí) ainda não está inteiramente esclarecido. Sabe-se pelos relatos dos
mais antigos moradores que ele e diversos companheiros, igualmente negros, vieram fixar-
se na região de Gravataí e Barro Vermelho no final do século XIX e que antes disso
estiveram juntos em batalhas e guerras que os familiares hoje vivos não sabem precisar
exatamente quais foram. Mas também a versão que diz que Manuel Barbosa era
morador da região ou pelo menos possuía parentes residindo ali antes dos conflitos.
Os principais conflitos em que houve arregimentação de escravos ou ex-escravos
e os mais prováveis de terem ocorrido durante o período de vida destes personagens foram
a Guerra do Paraguai e a Revolução Federalista de 1893. Embora haja referências
igualmente à Revolução Farroupilha, é menos provável a participação dele nesta revolta por
conta da cronologia conhecida, em que possivelmente esta revolta esteja mais distante no
tempo em relação à época em que Manuel Barbosa viveu.
Dentre os filhos e filhas de Manuel Barbosa, permanece viva apenas D. Eva de
Andrade Barbosa, a filha mais nova, nascida em 1921. Ela não tem lembrança de conhecer
o pai, pois tinha apenas um ano de idade quando Manuel Barbosa faleceu, em 1922, picado
por uma cobra “cruzeira” (Bothrops alternatus). Mas esta senhora relata que ouviu de sua
mãe que Manuel Barbosa não seria originário de Gravataí, mas teria passado por e
gostado das terras. Neste relato familiar, ele teria avistado uma negra e dito aos
56
companheiros que voltaria para casar-se com ela. A negra era D. Maria Luiza Paim de
Andrade a qual veio a tornar-se a esposa de Manuel Barbosa. Esta versão é corroborada
pelas memórias de um dos netos mais velhos de Manuel Barbosa, Francisco Ramos, seu
Franciscão:
Esses homens velhos vieram tudo do Uruguai, daquela guerra brigando.
Acho que não eram nada era daqui. Falecido meu avô [materno] Alberto
Ramos, Lourenço velho, José Fialho, o Manuel Barbosa, o Pedro Barbosa [que
não era parente de Manuel Barbosa], ainda tinha o Florêncio Feijó, o Horácio
Rosa, isso tudo veio do Uruguai daquela guerra dos Farrapos brigando.
Ficaram aí, depois de escravo e se terminaram, morreram (...). Eram tudo
do mesmo lado, vieram brigando nessas guerra aí. O que sobrou ficou, não
foram embora mais (...), isso daí eram os que sobraram do resto da guerra,
ficaram por ai. [Eram tudo preto?] Era. Eram moreno. Ainda tinha o Horacio
Rosa, que não era daqui também. Daqui o Demétrio.” (Francisco Ramos
Barbosa, depoimento ao pesquisador em 09/11/2006)
Então existe a referência ao fato de Manuel Barbosa ser um ex-escravo, mas que,
no tempo em que se estabeleceu no Barro Vermelho, era um negro livre e possuidor de
recursos com os quais adquiriu, por compra, uma parte das terras da família. Sobre este
processo de compra por parte de Manuel Barbosa das terras no Barro Vermelho, existem
registros, tanto no inventário de Manuel Barbosa (e Maria Luiza Paim), quanto no próprio
cartório de registro de imóveis de Gravataí.
Mas as memórias da comunidade apontam ainda a existência de uma outra parte
de terras que a comunidade também reivindica como sua, mas da qual não se tem ainda
uma determinação tão precisa quanto à origem. Trata-se das terras que Maria Luiza Paim
de Andrade, esposa de Manuel Barbosa, teria recebido em doação antes mesmo do
casamento com Manuel Barbosa. Existem controvérsias sobre se a doação teria sido feita
por parte da proprietária de escravos (e proprietária de D. Maria Luiza Paim de Andrade), a
senhora Isaura Barbosa Vargas, ou se teria sido feita pela madrinha de D. Maria Luiza, a
Sra. Senhorinha Rosa Barbosa. Esta imprecisão foi registrada no “Relatório cio-
Histórico-Antropológico da Comunidade Manuel Barbosa” (CARVALHO, Ana Paula C.,
et alli, 2006). Nas falas de seu Francisco, no depoimento para o Relatório do INCRA, ele
afirmava:
57
“Ela [Maria Luiza Paim de Andrade] foi criada por Isaura Barbosa. Era
escrava. Foi criada duas [escravas]. Uma herdou pelas áreas de Tramandaí e
a falecida minha aherdou as terras na área aqui. Isaura Barbosa que criou
ela. Deu e fez escritura e tudo, em 1806[
16
], que eu não sei onde está.”
(Carvalho, 2006, p. 19)
Por outro lado, D. Idalina, outra das netas de Manuel Barbosa, em conversa com
seu primo, o Sr. Francisco a respeito do assunto, traz a versão de que houve também uma
doação por parte da madrinha de Maria Luiza, uma senhora de nome Maria Senhorinha,
conforme outro trecho do mesmo relatório, em conversa também presenciada pelo
pesquisador:
“Idalina: - A vovó [Maria Luiza] era babá das crianças dos Vargas. Ela até
amamentou para a madrinha dela. E a madrinha dela que deu cinco hectares
de terra para ela. Era a madrinha dela.
Ana Paula: - E o nome de madrinha dela, qual era? O nome da madrinha da
Maria Luiza? (...)
Idalina: - Senhorinha, ouvia fala muito da Maria Senhorinha.
Francisco: - Senhorinha era dos Vargas?
Idalina: - Botaram o nome da neta também Maria Senhorinha.
Francisco: - Senhorinha, mãe do Antonio Vargas? Diziam que tudo era
escravo. Agora a falecida a foi criada com a Isaura Barbosa, aqui a
Senhorinha.” (idem, 2006 p.19)
Nos documentos de compra e venda das partes de terra adquiridas por Manuel
Barbosa, é feita referência a uma senhora de nome Senhorinha Rosa Barbosa, esposa de
Joaquim José Barbosa, vendedores de um quinhão de terras e uma Atafona para Manuel
Barbosa. Esta coincidência dos relatos e dos documentos é também registrada pelo relatório
do INCRA.
Mas do ponto de vista deste trabalho, qualquer que tenha sido a origem das terras
de dona Maria Luiza Paim de Andrade, permanece a versão conhecida por todos da
comunidade Manuel Barbosa de que ambos os ascendentes dos atuais “Bia” - tanto Manuel
16
Aqui possivelmente haja uma imprecisão, pois é mais provável (e posteriormente isto foi também referido
no relatório do Incra) que a doação tenha ocorrido em 1896.
58
Barbosa quanto Maria Luiza Paim de Andrade - haviam sido escravos e que ambos
possuíam ou vieram a adquirir terras que passaram a ser as terras da família Manuel
Barbosa.
Ao longo do século XX, uma parte daquelas terras veio a ser ocupada ou
expropriada por terceiros e dada como perdida pela família, mas no final dos anos 90 do
século XX, são noticiados os primeiros processos de regularização fundiária do Estado do
RS
17
ocorridos sob a nova legislação (art. 68 das ADCT da Constituição Federal de 1988).
E foi neste novo contexto jurídico que, por iniciativa de algumas lideranças, a comunidade
Manuel Barbosa decide também pleitear a regularização fundiária das terras perdidas,
mediante declaração da comunidade como remanescentes de comunidades de quilombo.
Outra controvérsia refere-se ao fato de Manuel Barbosa ser ou não originário
desta região de Gravataí e Barro Vermelho ou ter vindo de outra região para fixar-se em
Gravataí, como acima relatamos. A pesquisa documental para o Relatório Sócio-Histórico-
Antropológico da comunidade registra:
“A família de José Joaquim Barbosa, o indivíduo que vendeu as terras para
Manoel Barbosa em 1896, era proprietária de terras e possuidora de escravos
na região do Barro Vermelho em Gravataí. O escravo Estácio, irmão de
Manoel Barbosa , pertenceu a Antonio de Paula Barbosa e posteriormente a
Manoel José Barbosa, respectivamente tio e primo de José Joaquim
[Barbosa]. Estácio também foi vendido como escravo em 1879 para um dos
lindeiros da área adquirida por Manoel Barbosa, Manoel Antônio de Vargas.
Este último, (...) era senhor de Fabrício, pai de Maria Luiza.” (idem, 2006
p.24)
17
Embora não seja o tema deste trabalho realizar um histórico das demandas das comunidades quilombolas
no RS, lembremos que o livro de Ilka Boaventura Leite “O Legado do Testamento”, editado em 2002,
constitui-se no produto final da perícia encomendada pela Procuradoria da República do RS, cujo início do
processo deu-se em 1996. Neste livro e em muitos outros relatos de pesquisadores das comunidades negras do
RS é mencionada a atuação dos movimentos sociais negros no processo de difusão da informação e dos
direitos derivados do artigo 68 às comunidades negras do RS. Ilka Boaventura, por exemplo, menciona a
colaboração de membros do Movimento Negro Unificado (MNU), que a acompanharam no processo de
Casca no RS. Rosane Rubert, em seu levantamento das comunidades quilombolas do estado (RUBERT, 2007)
também afirma que teve o acompanhamento de membros do CODENE (um órgão consultivo, fiscalizador e
deliberativo das ações e políticas voltadas para o atendimento e proteção dos direitos da comunidade negra do
59
Estes dados aparentemente contrapõem-se à afirmação anterior de seu Francisco
(e também de D. Eva Barbosa) de que Manuel Barbosa seria originário de outra região do
estado ou mesmo do país. No entanto, também é possível imaginar uma situação em que
ambas as versões fossem verdadeiras, na medida em que, entre os escravos, devia ser
bastante comum o fato de que tanto pais e filhos como os irmãos serem separados e
enviados para outras fazendas e regiões. Neste sentido, a situação de que Manuel Barbosa
tivesse parentes (um irmão) nesta região, mas que ele próprio tivesse sido criado em outra
região, é portanto também bastante plausível.
Mesmo após o fim da escravidão, são comuns os relatos de indivíduos que haviam
sido entregues pelos pais aos patrões ou a fazendeiros diferentes (parentes dos patrões ou
não) para serem “criados como filhos” por estes fazendeiros na verdade, o mais das
vezes, para servirem como mão-de-obra infantil não-remunerada, em situações que
avançaram até a idade adulta de muitos deles. A experiência vivida por D. Maria
Augustinha Fialho e seus irmãos, que veremos a seguir, é exemplar a este respeito.
Governo do Estado do RS) no contato com as várias comunidades negras do RS visitadas para o projeto do
Figura 8: Seu Franciscão, D. Eva Barbosa e Vera
(filha de Eva), em 07/01/2006. Foto: LC
Figura 7: D. Idalina (à esq), Vera (centro) e Denise ao
fundo, em reunião com pesquisadores do convênio
INCRA-FAURGS, em 07/01/2006. Foto: Luciano Costa
60
3.3. Ligações Ancestrais
A memória dos membros mais antigos das três comunidades faz referência a uma
ligação ancestral entre os antepassados destes grupos negros que até hoje habitam a região.
Dentre estes grupos negros de Gravataí, as referências recaem principalmente nas figuras
de Manuel Barbosa, José Fialho, Alberto Ramos e Pedro Barbosa. Como vimos, os relatos
dão conta de que estes homens teriam sido companheiros em guerras travadas longe das
terras de morada. No período histórico que poderia coincidir com o tempo de vida de
Manuel Barbosa, supostamente entre 1850 e 1927, os principais conflitos armados que
envolveram o Brasil e a Região Sul foram a Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870, e a
Revolução Federalista, de 1893 a 1895. A Guerra do Paraguai foi o conflito armado que
mobilizou o maior contingente nacional (perto de 160 mil soldados, além dos milicianos
civis). Por outro lado, o período do nascimento do primeiro filho de Manuel Barbosa, em
1895 e a aquisição das terras por parte de Manuel Barbosa em 1896 coincidem com o final
da Revolução Federalista (1893 a 1895). Além disso, na memória dos familiares a
referência à participação deles na “Revolução”, como por exemplo, na fala do Sr. Marino
Ramos Barbosa, irmão do Sr. Antônio Francisco Ramos Barbosa, quando comenta a
origem do dinheiro usado pelo avô, Manuel Barbosa, para comprar as terras:
“P- As terra também devia ser mais baratas nessa época...
Marino: - É, era muito barata. Então ele que comprou as terra. Comprou com
o dinheirinho da revolução. Ele comprou e pagou. O governo deu aquele
dinheirinho pra ele, ele comprou. Como é que o negro comprou? Isso ele
comprou com o sacrifício, nas guerra ele podia ter morrido, e voltou né. [...]
[nessas guerras]... Ele teve pra São Paulo...
Francisco - São Paulo nada, pro Uruguai.
Marino: - Ele teve em São Paulo também.”
(os irmãos Marino Ramos Barbosa e Francisco Ramos Barbosa, em conversa
no dia 14/11/2006)
Estas guerras e combates em que estes homes teriam participado, teriam ocorrido
em terras distantes e, além de São Paulo (mencionado apenas pelo Sr. Marino)
livro, incluindo entre elas a comunidade Manuel Barbosa de Gravataí.
61
novamente a referência ao Uruguai, justamente um dos palcos da Revolução Federalista de
1823. O Sr. Antônio Francisco Ramos Barbosa também faz relatos neste sentido, sobre o
que teria escutado dos mais antigos:
E meu avô também foi no meio dessas guerras, desses escravos, dessas
coisa braba aí. Vieram brigando. Meu avô [Manuel Barbosa], o Fialho, o
Alberto [Ramos] que era o meu [outro] avô, Florêncio dos Santos... isso foi
tudo nessas guerras que vieram dos lados do Uruguai, e nunca mais voltaram
pra lá. [...] Brigaram, brigaram, brigaram... quando terminou as guerras não
foram mais embora. O que sobrou, sobrou muito pouquinho.[...] Eles andavam
no lombo do cavalo, ia puro, não tinha mais nada... Comendo pedaço de
carona, não tinha comida nada. Coisa Braba [...] Os arreio, assavam o couro
dos arreio porque não tinham comida. É. Coisa triste...risos. Meu avô contava.
Os arreio, torravam eles no fogo e comiam. A fome era demais. Couro.
Matavam gado, e comiam sem sal. Coisa braba, era no tempo da ignorância.
Aquelas revolução de primeiro era pra roubar mesmo. Saiam roubando e
matando e roubando gado e faziam coisa braba.” (Antônio Francisco Ramos
Barbosa, depoimento ao pesquisador em 16/12/2006)
Mas se estes ancestrais estiveram nas mesmas guerras e combates, diferentes
foram as condições de inserção na sociedade após estes conflitos. Veremos os casos dos
diferentes destinos destes companheiros, antepassados das famílias por nós estudadas.
Figura 9: Os irmãos Antônio Francisco Ramos Barbosa
(“seu Franciscão” – à esquerda) e Marino Ramos Barbosa
em 09/11/2006 Fotos: Luciano Costa
Figura 10: Antônio Freitas (Borracha), à dir. e o
sobrinho André, neto de Francisco, capinam o
terreno de Francisco, 07/11/2006.
62
3.4. Companheiros de batalhas
No caso da família de Manuel Barbosa, por conta da elaboração dos Relatórios
Técnicos do INCRA, já bastante material pesquisado que comprovam a aquisição de
terras, por parte desta família, das duas maneiras aqui mencionadas a compra e a doação
por herança de parte dos antigos senhores de escravos. Estas doações ocorriam
provavelmente em uma conjuntura de manutenção das lealdades e das obrigações por parte
daqueles que as recebiam, assim como as alforrias, também freqüentes, mas vinculadas a
cláusulas de prestação de serviço por todo o tempo de vida do antigo proprietário ou algum
de seus descendentes (vide RIO GRANDE do SUL, 2006). Mas as condições de vida e de
acesso às terras foram bastante diversas, por exemplo, entre Manuel Barbosa e um destes
companheiros, José Fialho.
Depois de regressar da guerra, José Fialho ficou residindo em terras logo abaixo
das terras de Manuel Barbosa, em direção à várzea do rio Gravataí:
P. O José Fialho veio junto então?
Francisco: Veio.
P: E ele não tinha terras?
Fransico: Não. tinha o Aristides [filho de JoFialho], o velho José Fialho
mesmo não tinha. Mostro a morada aonde é que ele era. Às vezes quando ele
tava bem velho... Tu não vendo aquelas duas paineiras ali embaixo, ali no
terreno da tua vó [avó de Antônio Borracha]? Ali que ele morava...”
Muitos dos descendentes de José Fialho residem hoje no bairro Mato Alto,
também em Gravataí, embora haja alguns que tenham ido para Canoas e outros tenham
feito laços de casamentos com os descendentes de Manuel Barbosa e outras famílias. Dona
Maria Augustinha é neta de José Fialho, filha de Aristides José Fialho. A história deste
grupo familiar está intimamente ligada a uma família de fazendeiros chamados
genericamente como “os Fonseca”. Estes “Fonsecas” constituiam um grupo familiar que
veio a possuir várias fazendas independentes na região. Os antepassados mais antigos são
citados como sendo Otacílio Fonseca e Bernardino (Dino) Fonseca, Cassemiro (ou Cacildo)
Fonseca. Depois vieram alguns dos filhos destes mais antigos que permaneceram na região,
63
cuidando das fazendas - Dario Fonseca, Sid Fonseca, Olinto (Lino) Fonseca, Alexandrina
Fonseca e outros filhos e genros que continuaram a tradição da lida com fazendas na região.
Segundo relatos, José Fialho havia sido escravo dos pais de Otacílio Fonseca, e
provavelmente havia ganho a liberdade para poder ir à guerra, substituindo algum homem
branco recrutado, muito possivelmente. Então, após voltar da guerra, José Fialho retorna à
região com seus companheiros, mas, ao que se saiba, e ao contrário dos demais
companheiros de guerra, não adquire nem recebe terras em seu nome, apesar de ser tido
como extremamente fiel e devotado aos patrões. JoFialho residia nos fundos das terras
de Manuel Barbosa, próximo à casa do Sr. Antônio Francisco Ramos Barbosa, em um
pedaço de terreno emprestado por Pedro Barbosa.
A especificidade de relação deste personagem, José Fialho, com seus patrões da
família Fonseca surge em relatos velados, feitos quase sempre em tom grave ou
confessional, por parte de seus descendentes. Um destes depoimentos é dado por Adão
Fialho dos Santos, 74 anos, neto de José Fialho.
Figura 11: Genealogia de Adão Fialho dos Santos
Firmino Idallino
da Silva
(Firmininho)
Maria
Genericia
de Jesus
Cristina Maria
Genericia de
Jesus
Aristides
José Fialho
(Fialhinho)
1927
Maria
Augustinha
Fialho
80
1929
João
Fialho
dos santos
1933
Adão
Fialho (dos
Santos)
74
Eva
Antonia
de Jesus
José
Fialho
João
Fialho
And
Fialho
Idalina
Silva
(?? )
Crispim
Gomes
Ferreira
João Crispim
Gomes Ferreira (ou
Crispim Matheus)
Maria Jose
Fialho (Ramos)
(pequeninha)
Bernardino
Bibino
Fialho
Estevão
64
“P -Mas ele [José Fialho] já tinha trabalhado pros Fonseca?
Adão (...) Ah, mas com certeza, porque a Fonsecada todo mundo do Barro
Vermelho trabalhava pros Fonseca. O meu avô tinha sido escravo, né. É por
que eu me lembro que eles faziam assim quando tinha plantação, assim eles
reuniam aquela turma, assim, faziam os pixuru como se dizia e o meu avô ia
pra picar rama, que ele não podia fazer outro serviço, ele ia pra picar rama. E
tinha um senhor aqui na Cavalhada que conheceu toda a trajetória dele. (...)
Então quando chegava o meio-dia todo mundo almoçava e ficava no galpão,
ali conversando achegar a hora da pegada de novo, né. E ele contava o que
o meu avô fazia e meu avô ficava danado, ficava atacado da vida. Porque
decerto o pai velho meteu o dedo na moleira, né. Ele, com a idade que ele tava
passou a entender das coisas. Mas diz que ele, se fugia os escravo, o sinhô,
pegava, como meu avo era o braço direito do sinhô, ele mandava o cara matar
os cabra. Aquele bicho que era meio rebelde, mandava matar. Então diz que
eles saiam, meu asaia com o cara, o fuzil embalado, né, saia com o cara,
numa certa altura tinha o mato lá e ele saia conversando, dizia - Olha, é aquele
mato lá, quando chegar numa certa distância tu mete o e te some, mas tu
não aparece mais aqui, eu dou um tiro pra cima e digo pro sinhô que eu te
matei. E tu te some no mundo. Ah, aquele pobre daquele miserável, tava
sentenciado né, chegava numa certa distancia o meu avô mandava ele ir e o
cara enxergava aquele mato e metia o peito. Chegava na entrada no mato ele
levantava o fuzil de e derrubava o cara. O velho esse contando meu avô,
bah, ficava danado da vida, porque de certo ele começou, com o tempo ele
começou a analisar o mal que ele fazia, né. Ficava danado. ... Esse era um tipo
de conversa que criança não podia ouvir, né. era os velho conversando
mandavam os moleque ir pra outro lado. Não é como hoje que nós tamo
conversando e as crianças tão tudo aí. Antigamente a coisa era diferente,
certos tipos de conversa os moleque não podiam ouvir. Mas alguma coisa eu
ouvia, depois eu vi o comentário que o velho saía com essas conversas e o
meu avô não gostava. (...) Que era coisa braba. Diz que o nego era bom de
mira. Levantava o fuzil de cá, o nego deitava de lá. Nem entrava no mato.
Ehta, que ... coitado do miserável.” (depoimento de Adão Fialho dos Santos ao
pesquisador em 07/11/2006)
Este depoimento traz muitas informações interessantes sobre as formas de
sociabilidade e trabalho - através dos mutirões ou “pixuruns” destes grupos. Também
eram nestas situações que, durante as pausa para o almoço, as conversas e histórias dos
grupos negros eram atualizadas. Nestes momentos, a honra e a situação de José Fialho
perante os companheiros eram muitas vezes colocadas em questão, por conta de seu
passado de colaboração com os senhores de escravos. Mas se a história dá conta de que
José Fialho teria se tornado o braço direito do Senhor de escravos, do “sinhô” - uma espécie
65
de capitão-do-mato local - mas nem por isso, como vimos, ele consegue obter terras em seu
nome
18
.
Em uma conversa com D. Augustinha Fialho, seu filho, Antônio Fialho Costa, e
Juraciara, também conhecida como Mana, atual companheira de Antônio e trineta de
Manuel Barbosa, surgem mais detalhes interessantes da vida de José Fialho e dos
descendentes deste grupo familiar, em um trecho mais longo que tomo a liberdade de
transcrever:
“Antônio: ...É a tradição deles, dos velhos escravos [trabalhar para os
Fonseca], que esse JoFialho era escravo, que ele teve na guerra e tudo, ele
tinha as cadeiras duras, depois virou capitão do mato. O José Fialho, que era
o vô da mãe isso. (...)
P: A Sra. não conheceu ele?
Augustinha: O meu avô? Conheci, sim, o meu avô (José Fialho).
P: E ele não contava essas historias?
Augustinha: Não, essa ele não contava. Até nem gostava muito de falar
dessas coisas das escravatura.
P: Da guerra...
Augustinha: É, da guerra, escravatura, essas coisa. Essas coisa ele o
gostava de falar muito porque os outros xingavam ele.
Antônio: Esse a da mãe é que tem essas histórias de que ele..., de que o
senhor mandava matar os negros (...) e ele dizia que ia dar um tiro pra cima e
nada, ele matava mesmo. E então as irmãs... as irmãs dele, né mãe?
Augustinha: As filhas...
Antônio: As filhas dele falavam e ele não gostava, ficava brabo. (...) Então na
verdade o José Fialho, esse, o da mãe era capitão do mato mesmo. Que
matava os próprios negros. Então ele era capitão do mato.
Augustinha: É. Ele não contava nada porque as gurias, as filhas dele,
xingavam ele. Elas falavam. Bah! Os rapazes não. Não falavam, mas as filhas
falavam.
P: Então ele contava essas histórias em casa?
Augustinha: Não, mas elas sabiam, que os outros contavam, né.
18
Embora deva ser feita a ressalva de que pouco se conseguiu saber sobre os arranjos que levaram este
personagem, José Fialho a ocupar local cedido para erguer um sítio, em terras de Pedro Barbosa, e se nestes
arranjos não haveria a influência dos patrões, por exemplo.
66
P: A Sra. chegou a ouvir essas histórias por ele?
Augustinha: Não. Elas é que falavam. Ele não falava. Qualquer coisa que
falava, ele já ficava brabo ...”
A figura singular deste personagem José Fialho, relembrada por muitos apenas em
sua velhice, mas geralmente descrita como grave e sisuda, não o impediu de ser alvo de
perseguições e acusações por parte dos demais membros do grupo e da própria família,
especialmente as filhas mulheres. Esta situação aproxima-se daquela vivida por
personagens timas de descrédito, por conta de uma mácula ética ou uma conduta
moralmente repreensível do passado, tal como descreve Erwing Goffman (GOFFMAN,
1978[1963]). Não temos muitos elementos para levar adiante reflexões sobre o caso, mas
possivelmente exista alguns aspectos de transmissão da honra (ou do estigma)
masculina(o), ser mais fortemente sentida para os membros do sexo masculino; neste caso,
uma cumplicidade para com o pai ou avô, vítima (ou portador) do estigma talvez explique o
silêncio dos filhos homens, embora não explique as acusações domésticas por parte das
filhas.
Figura 12: D. Maria Augustinha Fialho em sua casa em
Gravataí, Mato Alto Gravataí, 07/2005. Foto:Vera Silva
Figura 13: Adão Fialho no terreno de sua
sobrinha Zadir, Mato Alto, Gravataí,
08/11/2006. Foto: Luciano Costa
67
Como vimos no depoimento do Sr. Adão Fialho, a experiência dos descendentes
de José Fialho esteve muito vinculada à família de sobrenome Fonseca, um grande grupo
familiar de proprietários de terras – tanto na região de Gravataí como na região dos
“Campos de cima da serra” São Francisco de Paula e região. Na genealogia a seguir
(figura 15), apresentamos um esboço dos relacionamentos de adoção (ou cessão dos filhos)
dos descendentes de José Fialho para os fazendeiros Fonseca (e este sim pode ser um dos
elementos a explicar a estigmatização dentro do grupo familiar).
Estas situações de doação-adoção ou adoção-trabalho que envolveram estes
personagens, foi vivida de maneiras diferentes por cada um deles. Dona Maria Augustinha
Ferreira Fialho conta o início de sua peregrinação em casas dos diversos Fonsecas onde ela
esteve:
“Augustinha: Ele [o pai, Aristides Fialho] foi criado pelos Fonseca. Eu fui
criada pelos Fonseca, também, mas é ... bah.... é uma enrolação que até nem
dá...(pausa). Quando a minha e morreu eu fui pro Esteio. Eu tinha 9 anos;
depois do Esteio eu fui pra casa deste homem que criou meu pai. (Otacílio
Fonseca?); É. E depois de eu fui pra casa do filho deste homem [cujo nome
era Lino Fonseca], onde eu terminei de me criar e que era onde eles criaram o
João [Fialho], meu irmão.
P: Foi nesta fazenda que a Sra. encontrou o João e o Marcílio [João Marcílio
da Silva e Marcílio José da Silva, que casaram com filhas de Anastácia]?
Augustinha: É, quer dizer... que esse homem que criou o João [Marcílio], o
Adão Fialho e o Marcílio [José] era genro do Otacílio Fonseca [casado com
Alexandrina Fonseca]... Eu fui pra Esteio e fui pra casa do Otacílio Fonseca;
e depois pra casa do Lino Fonseca que é filho do Otacílio Fonseca. O José
Fialho era escravo dos pais do Otacílio Fonseca ... porque depois ele tinha os
filhos e ele deu esses, ele deu pro Otacílio Fonseca criar. Era três, deu dois
irmãos para um dos filhos (do Otacílio Fonseca) criar e um (dos filhos) pra um
outro [filho de Otacílio Fonseca]. Era dois irmãos pra um irmão e deu esse
pra um outro... Um era André e outro também acho que não existe mais, o
João, esses foram pra cima da serra. Pras terra de um irmão do Otacílio
Fonseca – acho que era Nena o nome desse irmão.” (Augustinha Fialho,
depoimento ao pesquisador em 05/11/2006)
Por estes relatos vemos que vários dos filhos e netos de José Fialho foram dados
para serem criados por (ou criados de) membros da família Fonseca. Este tinha sido o caso
de Aristides José Fialho e de pelo menos dois outros irmãos dele, André e João, que haviam
68
sido enviados, ainda crianças, para a região dos Campos de Cima da serra, para as terras de
um dos irmãos dos Fonseca de Gravataí. E também foi o caso de D. Maria Augustinha e
seus dois irmãos, Adão e João. No caso de D. Maria Augustinha, esta situação de ter sido
“dada” para outras famílias é um fato vivenciado com muita mágoa, de lembranças difíceis
de serem esquecidas e igualmente difíceis de serem lembradas:
“Augustinha: (...) A nossa criação foi assim. Se... Com quem nós ficava...
(pensa). Com quem nós ficasse, aquelas pessoa é que mandavam. Em
comparação, se nos quisesse fazer uma queixa pra ele (pro pai), qualquer uma
coisa nós não podia. À vereda que nós ia chegando,ele torcia os bigode e
nós já sabia.
Antônio: Tchau pra ti (risos).
Antônio: Eles mesmos não queriam saber. O pai,
Antônio: É que quando a vó morreu a mãe tinha o quê, 9 anos..
Augustinha: Nove anos. Mas era uma pessoa muito boa, barbaridade. (...) E o
pai largou os filhos assim, porque ele era mais pro lado dos patrão do que dos
filhos, né. Eles não dava muita bola.”
Esta interpretação de os pais serem “mais para o lado dos patrões do que para lado
dos membros da família” é recorrente e atinge os homens de vários grupos familiares, e não
apenas os descendentes de José Fialho. Isto possibilita a interpretação de haver
componentes de contra-prestação e de honra masculina envolvidos nestas relações dos ex-
escravos da região para com seus patrões fazendeiros. Em outro grupo familiar que
estabeleceu laços com a família de Manuel Barbosa, D. Idalina, cujo pai não era
da família
de Manuel Barbosa também entregou alguns dos filhos para serem criados por fazendeiros
Fonseca.
Figura 1
5
:
Ascendentes de
Idalina Barbos
a da Silva
.
69
Figura 16: Adoções de Fialhos por parte de Fonsecas
Legenda: Relação senhor-escravo
Relação de adoção-trabalho
70
Na família Fialho, como vimos, desde José Fialho, passando pelos filhos deste,
que igualmente legam seus filhos para adoção-trabalho com os fazendeiros Fonseca, a
tradição continua também entre os filhos de D. Maria Augustinha, mesmo contra a vontade
desta: seu marido, Dinarte Costa, é quem encaminha o filho Antônio com 6 anos para “ser
criado e aprender a trabalhar” nas terras do compadre, Sidi Fonseca:
“Antônio: A bem da verdade, Luciano, assim ó, que no caso da mãe e dos avô,
assim, tinha uma tradição de Fonseca, de família dos nego como os Fonseca.
Porque tu vê, a mãe, ela foi dada, que não era empregada, não recebia nada,
foi dada... O vô também a mesma coisa, circulou pra lá e Fonseca e passava da
casa de um pro outro, e esse troço veio até ....sei lá, eu com 51, até 45
anos atrás, por que na verdade taí a mãe. Eu fui dado pro velho Sidi pelo pai.
Com seis anos de idade, o que é que tu vai fazer numa fazenda? Eu fui pra casa
de um Fonseca desses com 6 anos (...) o Sidi Fonseca, filho do Otacílio
Fonseca...
Augustinha: Mas já ele era diferente do pai.
Antônio: O velho era diferente, mas a mulher dele não. Ela dizia -‘Vai na
roça e corta pasto pras vaca, negrinho, que tu é escravo e escravo não tem
vez.’ Eu cortava de machado com seis anos, cortava lenha pro fogão a lenha,
com seis anos de idade. eu fui me revoltando até que chegou com 7 anos eu
larguei o pé no mato, tentando fugir(...) e o velho saiu atrás de mim e me pegou
quando eu fui passar,(...) quando eu mergulhei por baixo da porteira ele me
pegou pelo pé(...) e me levou pra casa de volta, que era um pátio grandão
assim. me levou pra casa de volta, e eu brabo, e ficou tentando me segurar,
e aquilo e mandou uma empregada que tinha uma empregada, a mandou
ela cangar o cavalo na charrete. Me botou na charrete e eu esperneava que
nem um bicho. E ele teve que levar a empregada junto pra me levar embora,
por que ele não conseguiu sozinho, guiar o cavalo e me segurar. foi até
em casa... Uma charrete daquelas de roda de ferro. E eu esperneava assim, que
eu me mijava de brabo.” (Antônio Costa, depoimento ao pesquisador em
05/11/2006)
No caso de Antônio, havia a situação de que o fazendeiro, Sid Fonseca e o pai de
Antônio, Dinarte, eram compadres, em que a entrega do filho para adoção pode ter servido
de reforço da relação de dom e contra-dom.
71
Antônio, depois de passar algum tempo na casa de Sid, e de ter tentado fugir,
volta para casa dos pais, mas sua inserção no mundo do trabalho, que tinha-se iniciado,
não voltaria atrás.
“Antônio: o velho Sid chegou em casa e disse: ‘-Ó Dinarte!’ (...) ‘- O
negrinho queria fugir pro mato, né?’ Aí o pai disse: ‘-Não. Deixa ele aí..’
P: E Tu ia fugir pra onde?
Antônio: Pro mato, que eu não ia nem pra casa. Não ia. Tu que eu tinha
uma cabeça, assim, com sete anos, eu não ia volta pra casa. Eu ia fugir pro
mato. Pro mato, cara. o pai disse Ah ele é rebelde? Então . Deixa ele
seu Sidi. Vai embora, compá, que eles eram compadres. Cumpá (...) Ai o velho
disse: -‘Não não ... então deixa ele aí, que ele vai ver’. Me levou pra granja,
com sete anos. Eu, com uma pazinha nas costas, até me lembro que eu, aí, ele
cortava arroz no banhadão, lá, e a gente morava na beira rio e a gente
atravessava e ia a ou subia rio acima de madrugada de caíque, deixava o
caiaque lá na Anastácia [Viamão] e a gente ia pra granja a pé dali pra cima. E
eu com uma pazinha nas costas... Trabalhava nas fazendas do Haroldo, Guga,
tudo por ali acima, da Anastácia pra cima, sabe, eles plantavam arroz por ali
tudo.” (Antônio Costa, depoimento ao pesquisador em 05/11/2006)
O Sr. Adão Fialho, 74 anos, irmão de D. Maria Augustinha, também trabalhou nas
fazendas dos Fonseca dos 8 aos 32 anos. Suas experiências podem não ter sido tão
traumáticas, mas o rompimento tardio parece ter sido:
“Adão: A fazenda do meu pai de criação era do Amantino José de Campos (...)
aqui na Cavalhada.
P: E o Sr. foi separado dos seus irmãos pra ficar com eles?
Adão: É... Mas a família morava perto tudo aqui. O meu pai de criação e o pai
de criação deles eram cunhados.
P: Mas o Sr. não tinha muito conhecimento com a casa [dos fazendeiros]...?
Adão: Tinha, pois eu fui pra com 8 anos [1940] e saí de com 32 anos
[1965].
P: E daí o Sr. foi pra onde.
Adão: Eu vim trabalhar aqui pra Gravataí, em firma,
P: E o pessoal da fazenda deram força pra o Sr. sair ou foram contra?
Adão: Naquela época era uma ignorância. Se eu fosse executar eu até tinha
direito, porque naquela época já existia direito. Só que eu não quis. ... Mas eles
me deram, a casa que eu moro aqui, no Parque dos Anjos. Não ficou muito boa
mas eles me deram. Só a casa, que o terreno eu tinha.” (Adão Fialho,
depoimento ao pesquisador em 07/11/2006).
72
Estes relatos do passado revelam muito das situações, criadas no pós-escravidão,
em que, na prática, os vínculos senhor-escravo não haviam sido rompidos totalmente, ou
pelo menos não se haviam instalado relações de trabalho inteiramente do tipo mercantil-
capitalistas no trato com a mão-de-obra.
A publicação em 2006 pelo Arquivo Público do Estado do RS (RIO GRANDE
DO SUL, 2006) do catálogo em dois volumes intitulado “Documentos da Escravidão:
catálogo seletivo de cartas de liberdade” fornece uma amostra das condições estabelecidas
pelos proprietários de escravos ao concederem cartas de alforria aos seus escravos. Mesmo
sem uma análise exaustiva da obra ou de suas fontes (já que é uma obra de referência sobre
o conjunto de documentos disponíveis para pesquisas documentais sobre o tema) é possível
ver, a partir dos trechos publicados dos documentos, que uma grande parte, senão a
maioria, das cartas de liberdade registradas continham cláusulas condicionantes à
concessão da liberdade fossem pecuniárias ou de continuidade de prestação de serviços
como escravo por um período de tempo determinado - quando não, até a morte do
proprietário. Seguem alguns exemplos encontrados no livro, com a ressalva de que não se
trata, necessariamente de casos de antepassados ou familiares de pessoas das comunidades
estudadas, uma vez que a comarca de Gravataí, como esclarece a própria obra, não legou
aos arquivos públicos registros deste tipo de cartas de alforria. O livro está organizado por
Comarca, Tabelionato e data dos arquivos; dentro destas chaves, como entrada o
primeiro nome do escravo liberto e um breve resumo com as condições da concessão, como
nos exemplos:
“Carlota; preta; Nagô; Sr. Antônio da Silva Rios; dt. Conc. 29-09-43; dt. Reg.
04-10-43 (Livro 15, p. 18v). Desc.: A carta foi concedida mediante o
pagamento, por Francisco Bento de Lima, de 600$, e em razão do “bem que de
muitos anos a esta parte tem me servido, e de três filhos seus que me tem criado
durante tempo que é minha escrava [...] com a condição de sempre me
obedecer e respeitar como seu senhor que sou.
(Município de Rio Grande)
Faustino; Sr. Francisco Nunes Vieira (e sua mulher); dt. conc. 31-12-83; dt.
reg. 26-02-84 (Livro 2, p. 27v). Desc.: A carta foi concedida “com a condição
de nos acompanhar e servir enquanto vivos formos”. O escravo estava
matriculado sob 7968 da matrícula geral e 2 da relação. Por não saberem
ler nem escrever, os senhores pediram a Manoel Soares de Medeiros que a
assinasse a rogo. (Município de Viamão)
73
Francisco; Crioulo; 35; Sr. David José Flores; dt. conc. 14-06-65; dt. reg. 16-
06-65 (Livro 4, p. 72r). Desc.: A carta foi concedida “com a obrigação de
servir em lugar de meu filho Serafim José Flores não só em todo a atual guerra
que o Império do Brasil sustenta contra a República do Paraguai, como de,
depois dela concluída, continuar a fazer todo o serviço da Guarda Nacional
em lugar do dito meu filho
[...], para cujo o fim fica o dito meu escravo
Francisco obrigado a vir residir neste Município logo que se conclua a atual
guerra” (Município de Santa Maria)
Dionísio; Sr. Desidério Antônio da Silva; dt. conc. 30-04-79; dt. reg. 28-02-83
(Livro 1, p. 11r). Desc.: A carta foi concedida mediante o pagamento de 800$
.
(Município de Viamão)
Margarida; solteira; preta; desta Província; Sr. Desidério Antônio da Silva; dt.
conc. 10-08-81; dt. reg. 17-12-82; do Distrito do Norte (Livro 19, p. 8v). Desc.:
A carta foi concedida mediante pagamento, pela escrava, de 600$
.” (Município
de Viamão) (RIO GRANDE DO SUL, 2006, vol.1, pp 682, 868, 1220,
1225,1229, grifos nossos)
Estes exemplos que trouxemos, a maioria da comarca de Viamão não pretendem
ser representativos no sentido estatístico, das situações de concessões de liberdade a
escravos no Rio Grande do Sul, mas apenas apresentar uma idéia dos processos reais e
legais de concessão das alforrias, que compreenderam, muitos deles, o estabelecimento de
cláusulas de continuidade dos trabalhos ou contra-prestações econômicas. É de se supor
também que, para além daquilo que foi registrado nos cartórios e tabelionatos, exista
também toda uma realidade não-documentada e mais freqüente, dos acordos informais,
cujos efeitos prolongaram-se, em um tempo muito posterior à abolição da escravatura,
situações essas de que as condições de vida de nossos informantes podem ser testemunhas.
Seja em nome do pagamento de dívidas monetárias contraídas com a alforria, seja
em nome de cláusulas de continuidade de prestação de serviços, estas situações que
envolveram os ex-escravos e os antigos proprietários (e agora novos patrões) encontraram
várias soluções locais cujos ecos vieram encontrar as gerações dos nossos informantes.
Quanto à questão da circulação de crianças, é possível supor que a circulação e o
uso de crianças, filhos de escravos ou de peões e agregados, nos serviços domésticos, já era
uma realidade nos períodos muito anteriores à abolição (vide, por exemplo, relatos de
74
cronistas como Auguste Saint-Hilaire
19
que já registrava o trabalho infantil nas estâncias de
charqueadas do RS de 1820). A continuidade destas práticas certamente está vinculada à
continuidade dos elementos presentes nos vínculos destes trabalhadores com seus senhores
e depois patrões. citamos a lealdade e a contra-prestação, mas podemos citar ainda, a
necessidade de que também as mulheres prestassem serviços domésticos ou agrícola junto
aos fazendeiros, a ausência de sistemas de creches ou mesmo de escolas próximas, as
pressões econômicas e a necessidade de os jovens “aprenderem a trabalhar”, ou seja, serem
socializados no tipo de serviço que iriam desempenhar (e que começam em criança a
desempenhar) para os mesmos patrões – necessidade esta sentida tanto pelos pais das
crianças como pelos patrões, em busca de mão-de-obra leal e barata.
Por outro lado, que se fazer a ressalva quanto à situação específica vivida por
Aristides José Fialho, que ficou viúvo enquanto seus filhos ainda eram jovens D. Maria
Augustinha, a filha mais velha, estava com 9 anos - o que poderia colocar a situação desta
família como diferenciada. No entanto, os relatos da circulação de crianças das
comunidades Manuel Barbosa, como foi o caso de D. Idalina e seus irmãos - também para
fazendeiros Fonseca - o deixam dúvida para o fato de ser esta uma prática recorrente
até poucas gerações.
Antônio Fialho Costa conta-nos sobre a situação e os serviços do avô, que apesar
de também ser “empregado de confiança” dos patrões, nem por isso obtém ganhos
monetários condizentes à confiança:
“Antônio: Outra coisa é o pai da mãe [Aristides Fialho] (...) que se criou com
a família dos Fonseca, foram passando de um pro outro, né, que o último que
morreu é o Olinto Fonseca.(...) Pelo visto ele trabalhou a vida inteira (...) e no
19
Cito esta conhecida passagem de Auguste de Saint-Hilaire:“Pelotas, 11 de setembro de 1820 - Nas
charqueadas os negros são tratados com muito rigor. O senhor Chaves é´ considerado um dos
charqueadores mais humanos; no entanto, ele e sua mulher falam a seus escravos com extrema
severidade, e esses parecem tremer diante dos seus patrões. Há sempre
na sala um negrinho de 10 a 12 anos,
que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a prestar
pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que essa criança. Não se assenta, não sorri,
jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e freqüentemente é martirizado pelos filhos do
patrão. Quando anoitece, o sono o domina e, quando não ninguém na sala, põe-se de joelhos para poder
dormir. E não é esta casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é freqüente em outras." (SAINT-
HILAIRE, 1987[1887], p.90)
75
fim da vida o vô tinha uma casinha que a cozinha dele era de chão. Era tudo de
chão. Não tinha conforto nenhum. E o quando morreu não tinha dinheiro
pra comprar o caixão. Não tinha dinheiro...e o vô não bebia, que eu me lembre.
(...) Não saía, não ia a festa em lugar nenhum ... e quando morreu não tinha
nada, nada, nada. Não tinha nem um cavalo.
Augustinha: E quem fez a fazenda, quem fez a vida do Otacílio Fonseca foi ele.
Antônio: Desde cavalo, domava, tudo era tudo ele.
Augustinha: O Lino Fonseca não trabalhava. Trabalhava pra ele [Otacílio],
domava os cavalo dele e ainda domava os cavalo da vizinhança toda,
trabalhava pros outros. (...) [Mas] dentro da fazenda ninguém valorizava...
Dinheiro que é bom nada.
Antônio: Só trabalhava pela comida.
Augustinha: Mas hoje em dia, se falar, barbaridade...
Sabe-se que estas famílias, Fialho, Ferreira, Barbosa, Ramos, Reis, e outras
compartilham uma mesma região e modo de vida algumas gerações, nesta região entre
Gravataí e Viamão. Vimos que José Fialho não possuía terras, mas alguns de seus
descendentes sim. É o caso de Aristides Jo Fialho, que se casou com Cristina Maria
Generícia de Jesus. A família da esposa, Ferreira, possuía um grande pedaço de terras na
região da estrada da Cavalhada, próximo a onde é hoje o bairro Morada Gaúcha e ao trevo
que dá acesso à empresa General Motors.
Estas terras foram perdidas ao longo do século passado, em uma situação não
muito bem explicada. Sabe-se que, por volta de 1940, as terras ainda eram ocupadas pela
família de João Crispim e Rosalina Barbosa (tio e padrinhos de D. Maria Augustinha). Em
algum momento, esta família muda-se para Canoas, onde junta-se ao núcleo da chácara das
Rosas
20
. Após a morte João Crispim, aproximadamente em 1953, outras pessoas
apropriam-se de parte das terras e outra parte permanece não ocupada. Recentemente, em
2007, os descendentes de D. Maria Augustinha estão mobilizando-se para formarem
também uma associação quilombola - que pretendem chamar de “Quilombo Ferreira-
Fialho” a fim de requererem a posse das terras que reclamam como sendo suas por
direito.
20
Estudado inicialmente, em 2002, por Ana Paula Comin Carvalho e, mais recentemente, pelo convênio
INCRA – UFRGS.
76
“Antônio: Ali nos Ferreira Fialho, as minhas irmãs moram lá, que elas
voltaram na invasão. Na invasão elas invadiram também. A Elisabete, a Elaine
e a Alexandra que é filha da Elisabete e a Isamara. São quatro famílias que
moram . É uma segurança, né, das nossas terras. Eu disse pra elas: ‘- Não
sai daí, nega! Fiquem até eu ver esses papel.’ (...) Ali seriam os Ferreira.
(...) E como agora a gente pediu, é capaz de aparecer também, se era deles, se
tava no nome da minha bisavó ou não, vai aparecer, vai ter que aparecer, né.”
Uma parte destas terras encontra-se hoje ocupada por sítios de pessoas
conhecidas e influentes de Gravataí, mas uma outra parte encontra-se até hoje não ocupada.
Na década de 90 do século passado, circulou pelo bairro do Mato Alto a notícia de que
haveria uma invasão às terras da Cavalhada, justamente à área de terra reivindicada pela
família Ferreira-Fialho. Sabendo disso, Antônio diz ter encorajado as irmãs Elisabete e
Elaine e as sobrinhas a irem também participar da invasão-ocupação, pois estariam assim
garantindo que uma porção menor de terras da família fosse invadida por terceiros, além de
ajudar a resolver, é claro, os problemas deles de moradia, uma vez que “todo mundo paga
aluguel”.
Figura 17: Localização das antigas terras da família Ferreira-Fialho*
Fonte: Adaptado de Google Earth 2007
(*a partir de indicações de Antônio Costa e Maria Augustinha Fialho).
500 m
Área de terras dos
antepassados e
reivindicada pelos
integrantes da
família Ferreira -
Fialho
BR
-
290
Porto Alegre
Área ocupada por
integrantes da Família
Ferreira
-
Fialho
Estrada da
Cavalhada:
paraMato Alto,
Gravataí (Centro)
Trevo de acesso
BR290 - GM
77
3.5. Comunidades e territórios
Para a operacionalização destas estratégias de manutenção dos territórios podem
entrar em ação uma multiplicidade de formas de agir e de relacionamentos com e entre os
territórios e famílias ancestrais. Assim, por exemplo, a dinâmica da posse das terras no que
hoje é o Quilombo Anastácia, compreendeu arranjos que tiveram relação com a dinâmica
dos ciclos de trabalho, com o desenvolvimento de determinadas redes cio-técnicas da
agricultura moderna (vide LATOUR, 2001), em detrimento das redes sócio-técnicas
tradicionais. Por outro lado, nas famílias descendentes de José Fialho, a dependência direta
das famílias negras (escravas ou apenas formalmente libertas) em relação às famílias de
grandes proprietários de terras na região (no caso dos Fialho, “os Fonseca”), faz com que a
dependência das redes sócio-técnicas, também presente, torne-se acessória em relação aos
aspectos de dependência formal, honra, respeito e obediência devida pelos empregados e
seus descendentes em nome de uma honra e de uma dependência ancestral e talvez até da
memória de uma fidelidade devida por seus antepassados, ex-escravos que ganharam a
liberdade em condições de continuidade dos vínculos e garantia de estrita obediência, que
se estendia à prole.
78
Figura 18: Localização comparativa dos territórios ancestrais das famílias dos descendentes de Manuel
Barbosa, Crispim Ferreira e Anastácia de Souza Reis.
Adaptado de Google Earth, 2007. Obs.: nesta imagem, as marcas coloridas são apenas indicativo da
localização das áreas e não correspondem ao tamanho real das áreas ocupadas, disputadas ou
pretendidas.
2 km
N
BR -
290
BR -
290
Fábrica GM
Fábrica GM
Passo dos Negros
79
que se falar também da relação com a dinâmica das alianças, lealdades e
casamentos a condicionar as partidas e permanências. Os casamentos são, como mostrou
Ellen Woortman (1994), momentos privilegiados para se conformarem os laços, as
aproximações e dinâmicas daquilo que está desde sempre “em jogo” no caso dos
casamentos de pessoas proprietárias de terras no meio rural: a manutenção da posse das
terras. Assim, é a partir da compreensão de que a mobilidade territorial pode fazer parte de
um conjunto de estratégias e de práticas destes grupos muitas gerações é que se pode
chegar a propor a existência de uma conexão entre os territórios ancestrais e os novos
territórios, e que se pode tentar caracterizar uma possível continuidade de práticas - sejam
territoriais, identitárias, de sobrevivência, de organização do parentesco - e ainda, a
existência de uma identidade negra intimamente ligada às próprias práticas cotidianas e ao
manejo de códigos de relacionamento com os seres e objetos que os rodeiam.
Mas a dinâmica da posse das terras e a manutenção da posse dos próprios
territórios ancestrais de que se fala aqui pode não estar vinculada apenas à continuidade da
habitação de todo o grupo no mesmo território, mesmo porque o próprio crescimento
demográfico dos grupos seria um empecilho a esta situação hipotética - e portanto podemos
ver como isto também implicou em processos de mudança de território, ampliação e
recriação dos territórios originais, permanência de certos elementos e determinados
contextos e condições, criação de um amplo ciclo e círculo de territórios. Nesta dinâmica,
então, diversos outros elementos - que certamente envolvem o parentesco, mas não se
Figura 1
9
: Genealogia das Famílias de Manuel Barbosa, Crisp
im Gomes Ferreira e José Fialho
80
restringem a ele - podem estar em ação e é isto o que procuraremos ver nas estórias aqui
evocadas.
Nesta tentativa de caracterizar as dinâmicas entre os territórios considerados, uma
categoria que adquire importância fundamental é a categoria da mobilidade territorial. Em
nossa etnografia destes grupos negros, é freqüente, nas gerações mais recentes, o relato de
mudanças de local de moradia, os ciclos de moradia e trabalho em um ou outro território, e
a circulação em um amplo território formado pelo parentesco e pelas relações de alianças,
amizade, parentesco informal e relações de trabalho. Esta circulação nos territórios podia
ocorrer não apenas nas terras de propriedades das próprias famílias das comunidades, mas
também nas terras de outros. É o que surge nos relatos das histórias de vida dos integrantes
da geração mais antiga que ainda vive nas comunidades, hoje na casa dos 70 ou 80 anos.
Da mesma forma, os relatos da memória da vida dos ancestrais fundadores das
comunidades também nos remetem à questão da mobilidade territorial.
81
Figura 20: Mapa Geral - Territórios ancestrais e novos territórios: Anastácia, Ferreira-Fialho, Manuel Barbosa
2 km
Adaptado de Google Earth, 2007.
N
BR -
290
BR -
290
Fábrica GM
Fábrica GM
MATO
ALTO
BAIRRO
CTG
PASSO DOS
NEGROS
VILA SANTA
CECÍLIA
CAVALHADA
BARRO
VERMELHO
P 107 – Passo
da Caveira
82
3.6. Clareci, Telmo e o Passo da Caveira
Ao se falar em territórios e territorialidade estamos querendo referir tanto sobre
relações das pessoas com seus locais de moradia quanto a respeito das relações e das
formas das relações que as pessoas estabelecem entre si, com os vizinhos, com os seres
humanos e não-humanos destes espaços.
Um local específico, localizado na cidade de Gravataí, veio a concentrar um
grande núcleo de famílias negras - a maior parte delas descendentes de Anastácia de Souza
Reis - na região conhecida como “Passo da Caveira” (ou “parada 107”). Este núcleo
territorial e de relações familiares pode ser visto também como um locus diferenciado, em
que um grande núcleo familiar estabelece formas de relações com uma comunidade de
famílias vizinhas, com o meio em que vive e com o território dentro de parâmetros que
queremos caracterizar como específicos destes grupos negros - relações estas que podem
possuir traços definidores das formas de socia(bi)lidade construídas e re-construídas aqui
em um espaço situado para além dos territórios originais, mas que mantém, recriam ou
reatualizam aquelas formas tradicionais neste novo núcleo de relações. É neste novo espaço
que se constrói (ou se reconstrói) uma rede de pessoas e famílias de uma tal forma coesa
que, segundo pensamos, pode ser vista como um modelo exemplar de re-configuração
territorial e social tal como queremos caracterizar para estes grupos.
Neste bairro denominado hoje loteamento ou vila Santa Cecília, dentre os
primeiros moradores, estavam a família do casal Clareci e Telmo. Clareci é a neta mais
velha de Anastácia de Souza Reis e residiu em Viamão, nas terras da avó, durante um
grande período de sua vida e chegou a residir nas terras do Quilombo Anastácia em alguns
momentos depois do casamento. Clareci e Telmo conheceram-se em virtude do trabalho de
Telmo nas granjas de arroz, na região de Barragem, em que ele trabalhou na companhia dos
irmãos e tios de Clareci. Telmo é originário da região conhecida como “as lombas” de
Viamão, local onde famílias negras (parentes de Telmo) também reivindicam atualmente a
condição de quilombola. Telmo, no entanto (por motivos não muito claros para nós)
decidiu não manter mais contato com sua família de origem - tios e irmãos que ficaram na
83
região das Lombas. Telmo conta que sua família possui terras muito boas na região das
Lombas, mas que ele não se interessa mais em buscar seus direitos naquela região: seu
interesse atualmente é apenas sua casa e seu terreno de Gravataí - longe da família de
origem.
Clareci, por sua vez, antes de casar-se, em (1974) já havia residido fora de
Barragem: ainda solteira, havia ido morar com o tio Lézio em Gravataí onde conseguira
emprego como doméstica. Poucos anos depois disto, conhece Telmo em Barragem,
apresentado pelos irmãos e primos. Após o casamento, inicialmente residem em Barragem,
mas por conta das mudanças de local de trabalho do marido, fazem inúmeras mudanças de
residência ao longo do tempo - calcula umas trinta mudanças em toda sua vida. Clareci diz
que sempre mantiveram a casa em Barragem e que depois destas inúmeras mudanças, ainda
voltaram a residir junto à avó que ainda era viva por volta do início dos anos 80. Clareci diz
que, junto com Jairo e Célia, teria sido ela uma das netas que mais tempo morou em
Barragem.
No início dos anos 80, um acidente foi a causa de mais uma mudança: vítima de
um acidente dentro de um ônibus urbano que lhe causou graves ferimentos, Clareci ficou
por volta de um ano tendo que submeter-se a tratamento médico. O proprietário da empresa
de ônibus que era a responsável por pagar os custos do tratamento ofereceu à família de
Clareci e Telmo a possibilidade de mudarem-se para um sítio em Gravataí, pois este local,
próximo à rodovia RS-020 (também conhecida como Estrada de Taquara), era mais
acessível ao transporte urbano necessário para o tratamento de Clareci. Aceitaram a oferta e
foram para lá, onde ficaram por aproximadamente 3 anos. Depois disso, a aquisição de uma
outra empresa levou o empresário a mudar-se para outra cidade, na serra gaúcha. Ele
chegou a oferecer um local semelhante, em um sítio, na serra, para que Clareci e Telmo
fossem para também, mas eles decidiram ficar, e assim tiveram que procurar outro local
para morar. Foi quando um vizinho deste local de moradia avisou-os de um loteamento “na
parada 107 da RS 030”, no passo da Caveira em Gravataí. Eles não possuíam economias
suficientes para adquirirem o terreno, mas são auxiliados pelo mesmo empresário da
empresa de ônibus a darem andamento na regularização de um terreno situado na área
verde do loteamento. Neste momento os contatos políticos do empresário foram
84
fundamentais para que fosse solicitada a regularização das terras que eles pretendiam
ocupar e foi assim que, em 1983, Clareci e Telmo adquirem o direito de uso de suas terras
atuais, situadas próximo à parada 107 e ao “Passo da Caveira” (ou “Passo do Cáa-verá”,
conforme as placas rodoviárias da região). Este local - que pertencia à área verde do
loteamento - faz divisa com o que sobrou da área verde do loteamento.Parte da área verde é
utilizada em usufruto pela família (terras que são públicas, mas que são utilizadas como
potreiro, horta e local de lazer) mesmo que sempre façam a ressalva de que não consideram
estas terras como suas.
Assim, foi para este bairro próximo à parada 107 que Telmo e Clareci vieram
morar nos idos dos anos 70, depois de um ciclo de muitas mudanças de local de moradia.
Telmo continua sua ocupação de empreiteiro de obras, além de encarregado de cuidar de
chácaras naquela região. Este novo terreno que eles vêm ocupar é um pedaço de terra
bastante maior do que a maioria dos terrenos loteados no local e está situado em um ponto
que, se não é localizado em uma das ruas principais do bairro, é dos mais altos e com pouco
movimento.
Telmo orgulha-se de ter sido um dos primeiros moradores do bairro e este seu
pioneirismo - e possivelmente também a personalidade extrovertida do casal Telmo e
Clareci - os fez bastante conhecidos e respeitados na região, o que rende alguns frutos de
distinção para eles. Por conta deste seu conhecimento no bairro, Telmo faz alguns “bicos”
como intermediário na venda e locação de terrenos ou casas - uma espécie de corretor
informal, que no entanto não é a sua principal ocupação. Clareci, por sua vez, também
trabalha como vendedora autônoma de roupas e mercadorias como toalhas, bacias plásticas,
cosméticos e perfumes trazidos através de uma rede de vendedores evangélicos (embora
Clareci não seja evangélica a religiosidade que trazem catálogos e deixam a mercadoria
em consignação com ela e Sandra, sua nora (esta rede de relações no bairro poderá ser
melhor vista através de outros exemplos que iremos evocando a seguir).
85
RS-030
Para Gravataí
Telmo e
Clareci –
Área própria
Pda 107 – Passo
da Caveira
Área de
usufruto
LOTEAMENTO
SANTA
CECÍLIA
Figura 21: Residência atual de Telmo e Clareci
Fonte: Adaptado de Google Earth 2007
Um dos trabalhos que Telmo desempenha atualmente é o de zelador de algumas
propriedades de pessoas que não residem no bairro, mas têm ali uma segunda casa. É o caso
da propriedade “do Japonês”, situada em uma quadra vizinha. Trata-se de um terreno
apenas um pouco maior que um terreno urbano padrão (aproximadamente 20m x 50m), mas
que era chamado por eles de “chácara do Japonês”. Este trabalho de zelador desdobrava-se
em uma série de outros trabalhos empreitados, tais como jardinagem, pinturas, derrubada e
reconstrução de cercas, muros, tratamento de madeiras e muitos outros. Qualquer trabalho
solicitado, Telmo orgulhava-se de saber fazer ou conseguir achar quem soubesse fazer o
que precisava ser feito, que uma das ocupações de Telmo antes desta sua fase de pré-
aposentadoria tinha sido a de empreiteiro de obras de construção civil - o que incluiu o
trabalho, por exemplo, de colocação da cerca em um grande trecho da rodovia Porto
Alegre-Osório (freeway), trabalho este em que foi o capataz, empregando seus filhos e
diversos outros empregados.
No período em que este trabalho de campo foi realizado, Telmo estava ocupado
com uma obra que iria aumentar a casa do Japonês. Para isto seria necessário a derrubada
de um bosque de árvores frutíferas existentes nos fundos da casa antiga. Esta derrubada das
árvores foi acompanhada por mim: na
verdade, ofereci-me para ajudar na
obra, a fim de poder melhor
acompanhar e interagir com Telmo e
Clareci ao longo da execução do
trabalho. Foi assim que, em alguns dos
dias mais quentes do mês de novembro,
fomos os três - eu Telmo e Clareci (e
algumas vezes com a companhia da
neta Katielen) ao trabalho na casa do
Japonês. A derrubada das árvores em si foi uma atividade vivida com muita pesar, tanto por
parte de Clareci como de Telmo. Clareci parecia mais penalizada pelo aspecto de derrubada
de árvores que estavam dando frutos - “Que pecado! Um arvoredo novo, bonito”, dizia.
Telmo, por sua vez, procurava não demonstrar contrariedade. Era seu trabalho derrubar as
Figura 22: Derrubada das árvores na casa do Japonês,
16/11/2006. Foto: LC
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87
árvores, e é um trabalho que ele faria porque assim tinha de ser feito. No entanto também
lhe acompanhava o pesar e a certa altura fiquei sabendo que aquele arvoredo havia sido
plantado por ele, há mais ou menos 10 anos atrás - tempo em que aquele terreno do
“japonês” era ainda parte de uma chácara maior, da qual ele também tinha sido zelador.
Então, suas razões para estar sentido com a derrubada das árvores eram igualmente fortes e
ele externou esta situação ao relatar justamente este seu histórico de cuidados com aquelas
árvores. Mas as razões da construção da nova casa e as razões de seu patrão (das quais
dependia seu emprego) pareciam também igualmente fortes, de maneira que não houve
qualquer declaração de contrariedade por parte de Telmo com a decisão do patrão de
derrubar aquelas árvores, mesmo que Clareci protestasse. Nestas empreitadas o valor que
era cobrado era a totalidade do trabalho a ser realizado (e não os dias de trabalho), e assim
não havia um controle muito rígido da jornada de trabalho e podíamos fugir do trabalho nas
horas mais quentes do dia e fazer grandes pausas para o almoço - o que foi providencial
nestes dias em que as altas temperaturas estavam batendo recordes no ano. No primeiro
destes dias de trabalho, conheci a família do Japonês. Eles estavam de saída para passarem
alguns dias na praia, o que tornou a empreitada ainda mais autônoma para nós.
No que se refere ao terreno onde Telmo e Clareci foram morar, trata-se também
de uma chácara onde atualmente três casas instaladas. A primeira delas é a casa de
Telmo e Clareci, recentemente reformada com a construção de uma grande cozinha e do
banheiro, ambos de alvenaria. também uma parte nova construída em madeira, onde
ficam os quarto e uma pequena sala raramente usada. A reforma recente da casa é um
motivo de orgulho para a família, especialmente para Telmo, que faz questão de mostrar o
material diferenciado das paredes, feitas por ele e pelos filhos. Também gosta de chamar a
atenção para a grande espessura da madeira utilizada na parte da frente da casa: trata-se de
tábuas medindo cerca de uma polegada de espessura em eucalipto, uma bitola nada comum
em construções populares. A madeira também havia sido cortada, desdobrada e tratada pelo
próprio Telmo antes da construção. A forma como ele contava da madeira que ele
armazenara no terreno, do tempo que ele levou para curar a madeira, cortá-la, aplicar o
tratamento contra cupim, todo um processo que levou anos, faz crer que a construção foi
88
toda uma atividade longa, planejada e vivenciada como uma conquista muito grande para
eles.
Conheci a casa de Telmo e Clareci antes da reforma e, já naquela época, a
principal peça da casa era a grande cozinha, com chão de terra, uma grande mesa com
bancos longos, de madeira e um fogão a lenha. Uma parte desta antiga cozinha foi mantida
após a reforma, de modo que, atualmente, duas cozinhas contíguas, embora com usos
bastante bem definidos e diversos. Pelo que pude constatar, a cozinha nova, de alvenaria e
piso de cerâmica, é utilizada principalmente para refeições rápidas, café da manhã, almoços
diários quando feitos no fogão a gás (quando se tem pouco tempo para o preparo), para
refeições em família e ainda funciona como uma sala em que se recebe visitas. É onde
ficam muitas cadeiras, sofás e bancos, além dos eletrodomésticos mais modernos -
geladeira, freezer (que em certas épocas do ano é desligado, seja por questões climáticas ou
mesmo para economizar energia e
também funciona como despensa), o
fogão a gás, o aparelho de som - e a
mesa da casa, além de uma pia com água
corrente e a porta para o banheiro da
casa. Na outra cozinha, que mantém
aproximadamente a metade do tamanho
que tinha antes da reforma, ficam uma
segunda pia, um fogão a lenha - que
Clareci chama de “o borralho” - um
outro sofá mais antigo e, às vezes, a
televisão da casa (que fica no quarto do
casal) vem para esta cozinha, quando
assistem novela ou telejornal (mais
raramente). O chão não é mais de terra, e
sim de madeira, exceto na parte onde
fica o fogão a lenha, onde uma chapa
de metal no chão para protegê-lo das
Figura 23: Fogão a lenha na cozinha velha de Clareci
11/2006. Foto: LC
89
brasas que podem cair do fogão. O foco principal desta cozinha, vem a ser o fogão a lenha,
muito valorizado, especialmente por Telmo, para o preparo da comida. Clareci, no entanto,
reclama de ter de utilizar o borralho”, principalmente por causa da fumaça que faz dentro
da cozinha. As duas cozinhas são ligadas diretamente por uma porta e a fumaça da cozinha
velha pode facilmente atingir a cozinha nova e o resto da casa, motivo pelo qual a porta
entre as duas cozinhas permanece sempre fechada. Clareci delega a Telmo a tarefa de
acender o fogo e manter lenha seca para cozinhar. A economia do fogão a lenha pode ser
também um dos argumentos para seu uso, mesmo no verão quando não há necessidade de
aquecer a residência. Mas, para Telmo, certamente não é apenas a economia de gás o que o
faz ser um incentivador tão grande do uso do fogão a lenha, apesar das reclamações de
Clareci. Telmo é da opinião de que a comida feita no fogão a lenha fica mais gostosa.
As comidas que são feitas neste fogão a lenha podem ser tanto um arroz com
galinha, o feijão, o carreteiro, ou ainda o pão caseiro. Há, é claro, sempre a água quente à
disposição. Certa vez, presenciei o preparo de um arroz com galinha, mas a galinha era
“caipira”, ou seja, um frango de casa. Apesar do numero grande de galinhas criadas soltas
na redondeza da casa, não era muito comum o uso de frango de casa para ser cozido, sendo
preferido o frango comprado. No caso deste frango, houve ainda a particularidade de que
foi morto com um disparo de arma de pressão por Gilberto um frango caçado para a
refeição. Outra das especialidades de Clareci são os pães feitos em casa. Um tipo de bolo
conhecido como “nego deitado” é uma iguaria muito famosa entre todos na família,
muitas gerações, mas Clareci adaptou seu preparo para fazê-lo frito, e chamou-o de
“chinelas”, pelo seu formato achatado como uma sola de sapato.
Nas primeiras horas do dia, quando ainda o fogão ainda não foi aceso, uma
garrafa térmica em que a água para o chimarrão é aquecida com um ebulidor elétrico que,
de forma muito precária e desafiando as leis da física e da segurança elétrica, é mergulhado
na água repetidas vezes para muitas rodadas de chimarrão.
Outra das casas que ficam neste mesmo terreno é a casa onde moram Gilberto,
Sandra e o filho deles, de 8 anos, Bruno Gabriel. Gilberto é filho de Clareci e Telmo e o
casal mora ali desde o casamento, 10 anos. A casa fica a mais ou menos 30 metros de
90
distância da casa principal. É uma casa menor, de madeira, com dois quartos, sala e
cozinha. O banheiro, de alvenaria, fica na parte externa da casa.
A terceira das casas é a casa construída para receber Dona Noerci (tia Chica) que,
logo após ficar viúva, no verão de 2006, chegou a passar uma temporada nesta casa. No
entanto, não muito tempo depois, tia Chica resolveu voltar para sua casa em Barragem
(Viamão). Ela chegou a utilizar a casa em algumas outras vezes em que voltou a Gravataí
para consultas médicas, mas já no final de 2006, ela tinha abandonado a casa, quase sempre
indo hospedar-se na casa de sua outra filha, Délsia, a poucas quadras desta casa, no mesmo
bairro. Esta casa de tia Chica foi a casa que utilizei quando estive. O banheiro que
utilizava era o da casa de Gilberto. A casa de tia Chica tinha a particularidade de ter sido
construída utilizando a madeira de uma antiga casa de Valmir. Esta situação de a casa
pertencer a Valmir e estar no terreno de Clareci e Telmo tornou-se um possível foco de
tensão na família, especialmente depois que tia Chica parou de utilizar a casa. Esta situação
agravou-se agora, com o falecimento de tia Chica, ocorrido em dezembro de 2006.
Logo, neste mesmo bairro (que se transforma rapidamente de rural em urbano)
forma-se um novo núcleo territorial familiar, em que diversos parentes de Clareci e de
Telmo (além dos filhos) vêm a residir no
entorno desta propriedade, em casas
próprias ou alugadas.
Telmo é um homem muito
falante e ativo, mesmo com a idade
próxima aos 60 anos. Desempenhou
múltiplas atividades ao longo da vida e,
talvez por conta destas múltiplas
experiências e saberes acumulados - ou de seu estilo narrativo grandiloqüente ou das
próprias histórias em si, em que ele demonstra sua sabedoria e habilidade nas mais divesas
tarefas - seja por que motivo for, muitos dos vizinhos, amigos ou parentes reportam suas
histórias como fantasiosas, embora nunca os tenha visto desmentirem-no abertamente.
Figura 24: Katielen brinca enquanto Clareci lava
roupas, 14/12/2006. Foto: LC
91
No início do verão de 2006, quando estive passando um dos períodos da pesquisa
neste bairro, qualquer visita com meus hospedeiros aos armazéns da região era suficiente
para atestar o carisma, às vezes ostensivo, que o casal demonstrava com os vizinhos,
demonstrada através de piadas e brincadeiras com pessoas - fossem conhecidos ou não - e
com os donos dos estabelecimentos. No caminho destas visitas ao mercado e em diversas
outras oportunidades, Telmo oferecia-me terrenos “baratos” no bairro. Ele e Clareci, de
fato, pareciam muito interessados em fazer-me residir próximo a eles - até mesmo no
terreno deles, onde poderia construir uma pequena casa, que “ficaria independente”. Logo
fiquei sabendo que esta maneira de relacionar-se comigo nada mais era que uma
decorrência de sua maneira de relacionarem-se com todos a sua volta: relacionamentos
intensos e tendentes a formar uma rede o mais ampla possível de aliados e parceiros. É
assim que se podem caracterizar as relações com diversos vizinhos, parentes e compadres
que conheci.
Figura 25: Clareci visita a prima Ilza na comunidade
Manuel Barbosa, em 15/11/2006. Fotos: LC
Figura 26: Chimarrão no fim da tarde em frente à casa
de Clareci e Telmo. Vizinho (esq., em pé), Valdemir,
Clareci, Luciana, vizinha e Telmo, 16/11/2006
Figura 28: Gilberto com a égua ‘Lacraia’, 17/11/2006
Figura 27: Sandra (esq.), Bruno e Giovana na cozinha
velha de Clareci, 17/11/2006
92
Rodovia
RS
-
30
Parada 107
Passo da
Caveira
Parada 107
(Garagem
SOGIL)
Para
Gravataí
Para Sto
Antônio da
Patrulha
Figura 29: Redes de Clareci e Telmo no Loteamento Santa Cecília
Adaptado de Google Earth, 2007.
93
É o caso, por exemplo do compadre Valdemir, na casa de quem fui a uma festa de
aniversário da comadre Luciana (os nomes são fictícios). Este casal possui cinco filhos com
idades entre 10 e 25 anos e todos são afilhados de Clareci e Telmo ou de algum dos filhos,
Giovana ou Gilberto. O histórico de moradia deles no bairro começa com uma casa que
adquiriram para passarem os finais de semana, já que moravam no centro de Gravataí, onde
Valdemir possuía uma oficina mecânica. Posteriormente, mudaram-se para a vizinhança de
Telmo e Clareci: alugaram o apartamento que possuíam no centro da cidade e compraram
“uma chacrinha” na Vila Santa Cecília. Passaram um período de dois anos residindo lá.
Depois disso, desfizeram-se da chácara, chegaram a morar mais uma vez no centro de
Gravataí, mas retornaram ao bairro onde já estavam há mais de um ano.
Figura 30: Telmo e o compadre ‘Valdemir’. Festa de
aniversário de Clareci e ‘Luciana’, 15/11/2006.
Figura 33: Clareci conversa com a vizinha enquanto
Telmo trabalha. Casa do Japonês. 16/12/2006. Fotos:
LC
Figura 32: Clareci conversa com a vizinha enquanto
observam Telmo trabalhar. Casa do Japonês,
16/12/2006.
Figura 31: Clareci (à dir.), Telmo e ‘Luciana’. Festa
de aniversário de Clareci e ‘Luciana’, 15/11/2006.
94
3.7. Célia, Jairo e as redes de Mato Alto
A Vila de Mato Alto, na cidade de Gravataí, localiza-se próximo à margem direita
da rodovia BR-290, no sentido Porto Alegre-Osório (rodovia também conhecida como
Freeway), embora não haja acesso direto através desta rodovia federal para se chegar à vila
neste trecho. O caminho mais comum é feito, partindo do centro de Gravataí e indo em
direção a Santo Antônio da Patrulha através da rodovia RS-30 (antiga estrada para o
litoral). A mais ou menos 3 km do centro, na altura da parada 87, há uma entrada à direita
para o bairro denominado “Aldeia dos Anjos” na Avenida Antônio G. Correa, e esta via faz
o cruzamento por sob as pistas da BR-290. Logo após cruzar a Freeway, dobra-se
imediatamente à esquerda para tomar uma estrada paralela à BR-290 - a Estrada da
Cavalhada. Neste trecho de pouco menos de 1 km passamos por algumas grandes empresas
instaladas em um pequeno parque industrial e então divisamos a primeira das ruas da
pequena vila que terminam nesta estrada. Em algumas destas ruas o asfalto chegou,
especialmente nos trechos onde os ônibus urbanos circulam com uma freqüência aqui
bastante maior do que nas zonas rurais do município. Há três ruas que começam na Estrada
da Cavalhada (e mais uma quarta rua, paralela a estas três, que não acesso à Estrada), e
que terminam todas na Rua Beira-Rio, às margens de um braço do rio Gravataí. Estas ruas
juntam-se a outras dez pequenas ruas para compor o arruamento da vila, com muitos
espaços vazios, terrenos arborizados e áreas de mata e campos junto a casas modestas - a
maioria sem os muros altos de outros bairros mais urbanizados que conhecemos nas
cidades ou às vezes sem sequer haver cercas na parte da frente das casas. Alguns mercados,
armazéns, duas igrejas evangélicas, uma capela católica, pontos de venda de peixe e casas
oferecendo serviços mecânicos compõem o comércio local.
Poucos anos atrás esta era uma região inteiramente rural e as pessoas que iremos
encontrar acompanharam parte da história do povomento e urbanização da vila. Sabemos
que a ocupação de famílias negras nesta região é anterior à urbanização do bairro. No que
concerne ao grupo por nós acompanhado, uma das primeiras famílias a residirem neste
local foi a família de João Fialho dos Santos e Hortência Gomes dos Santos (esta última,
filha de Anastácia), que se mudaram para a região nos anos 60 por conta do emprego de
95
João Fialho, que veio trabalhar em uma chácara como caseiro e jardineiro. Esta chácara
ocupava quase a totalidade do que hoje é o bairro. Nos anos 80 a chácara foi loteada e o Sr.
João Fialho obteve, parte por compra e parte por doação do antigo patrão, diversos terrenos
no loteamento, locais onde hoje se localizam as casas de seus filhos, Heloisa, Zadir,
Geraldo, Paula, JoPaulo e de vários netos, sobrinhos e sobrinho-netos. Muito próximo
dali, em outro grupo de terrenos quase vizinhos à chácara de João Fialho, reside D. Maria
Augustinha Fialho e duas de suas filhas, Solange e Maria Regina, em um terreno com duas
casas lado a lado. Outros quatro filhos desta senhora também moram no Bairro: Antônio
Costa, Odil, Neloí e Ivonete. Esta região, ou mais especificamente as proximidades do
cruzamento das ruas Florianópolis e Porto Alegre, nesta vila, acabou reunindo diversas
casas dos integrantes de dois grupos famíliares que acompanhamos e que já tinham laços
ancestrais entre si: os descendentes de Aristides José Fialho e os descendentes de Anastácia
de Souza Reis. Nesta mesma rua Florianópolis, algumas quadras mais adiante, o Sr.
Antônio Francisco Ramos Barbosa também comprou uma chácara alguns anos atrás e
deu os terrenos para suas filhas do primeiro casamento morarem.
Figura 34: 1-Antônio Fialho, 2-Juraciara, 3-Antônio
Carlos, 4-Milady, 5-Geraldo, 6-Júlio, (filho de Geraldo),
(
7 e 8
Não Id.) 16/06/2007. Foto: L
.
C
.
Figura 35: Foto da casa de Jairo, no Mato Alto,
16/06/2007. Foto: L.C.
1
2
3
4
6
5
8
7
6
7
4
96
Célia e Jairo são dois primos casados entre si, netos de Anastácia e que eram
também netos de Aristides José Fialho: Célia é filha de Ely e João Marcílio Filho, enquanto
Jairo é filho de Noercy e Marcílio José Fialho. Ambos foram um dos últimos casais a
deixarem as terras de Barragem. Célia e Jairo viveram em Barragem até o final dos anos 90.
Jairo obteve um emprego regular como operário e especializou-se em pintura industrial em
uma empresa de Gravataí. Por conta deste emprego, na época em que morava em
Barragem, saía de casa a às 4hs da manhã, caminhava por quase 2 horas (11 km) para
poder tomar o ônibus às 6 hs e chegar ao emprego às 07h30min. Ele cumpriu esta rotina por
5 anos aproximadamente, mas uma tragédia familiar (a morte da filha pequena, de 4 anos,
nos anos 80) os fez tomarem a decisão de largarem a moradia em Barragem e mudarem-se
para Gravataí. O local onde vão morar é em um terreno de fundos, com acesso por uma
pequena servidão, no mesmo bairro do Mato Alto em Gravataí - próximo aos tios João
Fialho e Hortência, aos parentes de seu avô Fialho e a inúmeros primos. O casal reside
até hoje e não tiveram mais filhos.
Recentemente, dois dos sobrinhos de Célia e Jairo, os filhos de Ilza e Valdemar,
Márcio e Goleiro, constroem casas no mesmo terreno de Jairo e Célia e mudam-se para o
local. Os dois sobrinhos já estão casados e têm filhos pequenos que são deixados com as
mulheres e com o “vô Jairo durante o dia. Jairo encontra-se afastado do trabalho para
tratamento de problemas de coluna, e por isso passa os dias em casa ou fazendo tratamento
de fisioterapia. Freqüentemente visita os primos Geraldo e Antônio que residem próximo.
Figura
36: Foto em frente à casa de Geraldo, no Mato
Alto, 16/06/2007. Foto: LC
Figura 37: Jairo, em frente a sua casa no Mato Alto,
16/06/2007. Foto: LC
97
Jairo e Célia eram, dentre todos os netos de Anastácia, os que expressavam mais
nitidamente o desejo de voltarem a morar em Barragem. Em meu trabalho anterior, eu
havia anotado uma fala de Jairo em que ele afirmava que nunca desligava o sentido de estar
nas terras, que, mesmo estando trabalhando na cidade, permanecia com “o sentido”
fora, com “aquela vontade de estar de volta”, algo que, “se Deus quisesse” ele e Célia
haveriam de fazer.
Figura 40: Casas dos sobrinhos de Jairo e Célia,
Mato Alto, 16/06/2007. Foto: LC
Figura 41: Célia (dir) e D. Noercy em Barragem-
Viamão, 05/03/2005. Foto: L.C.
Figura 38: Acesso à casa de Jairo, no Mato Alto,
16/06/2007. Foto: L.C.
Figura 39: Vista da Vila Mato Alto, 16/06/2007.
Foto: L.C.
98
Figura 42: Mapa Gravataí – Mato Alto: Locais de Moradia de Membros das Comunidades Negras Estudadas
João Fialho Stos – Hortencia (Fialho- Anastácia) e filhos
D. Ma Augustinha (Ferreira-Fialho)
Geraldo (Fialho-Anastácia)
Célia-Jairo (Anastácia)
Antônio Costa (Fialho)
Filhos Antônio Francisco Barbosa (Manuel Barbosa)
Adão Fialho
Filhos D. Ma Augustinha (Ferreira-Fialho)
Fonte: Adaptado de Prefeitura do Município de Gravataí
, 2007
.
99
Figura 43: Genealogia dos Fialhos - Anastácia
100
Com sua situação atual de dificuldades para locomover-se e impedido de realizar
trabalhos braçais mais pesados, o sonho de voltar a morar em Barragem parece ter sido
adiado. No entanto, seu próprio terreno no Mato Alto parece uma prova do quanto de vida
rural permanece em seu novo território. O terreno que permaneceu após a construção das
casas dos dois sobrinhos é bastante reduzido, mas permaneceram as áreas onde ele cultiva
todo tipo de chás e árvores que ele recolhe “lá de fora” ou então recolhe de antigos e novos
vizinhos. Em um final de tarde em que ele se pôs a mostrar-me suas ervas, ficamos
conversando por aproximadamente uma hora e meia em que ele me mostrou as mais de 20
espécies de chás que ele plantava em uma linha ao longo do muro alto que fazia a divisa de
seu terreno e o vizinho “de cima” (com quem o relacionamento não parece ser dos mais
amistosos). Além disto, havia ainda plantas ornamentais, flores, arruda, pimenta, temperos,
árvores frutíferas ou ainda árvores de chá, como o Cambará do Mato, que ele reportou
como muito rara e difícil de ser plantada, e cuja muda havia obtido com seu vizinho
Ornobe, do território de Barragem.
“Jairo: Isto daqui, o Ornobe, o home mais velho lá da Estância Grande
[região de Barragem], lá de fora, disse que de 100 pés [de ‘cambará do mato’]
que se tenta plantar, pega um. E aí. Eu trouxe pequeninho, que tinham
passado uma máquina na estrada, aí eu trouxe. Serve pra fazer chá.
P: Usa a casca?
Jairo: Usa a casca e também usa a folha dele.
P: E vocês tinham isso lá fora?
Jairo: Tinha. Na nossa chácara, tinha, na beira do rio em cima. Agora, fora
esse, durante os anos todos, eu conhecia mais um pé que tinha na beira do
banhado (...). Tinha, mataram e tiraram. É que ele vai ficando velho, tu vê, ele
vai enroscando, aquilo vai ficando uma madeira trançada. Aquilo, tira a casca.
E fica uma madeira, que... é uma madeira de lei, né. E não tem coisa melhor
pra saúde que isso aí. (...) Isso aí, pra tosse, não tem coisa melhor.”
(Jairo
Silva, depoimento ao pesquisador em 03/11/2007)
Dentre os vários tipos de plantas mostradas no percurso do muro, desde o fundo
do quintal, até a frente do pátio havia ‘malva cheirosa’ (pra botar em dente inflamado),
‘manjericão’, ‘arnica do mato’(queima e coloca na ferida com azeite “não tem o que não
cure”), uma bromélia, um de maracujá (podado, pois “tava matando as outras plantas”),
‘alcanfor’ (“pra todo tipo de dor e pra fazer afumentação”). Também tinha a planta amarga
101
que “usam pra fazer a ‘Essência Olina’.
Como ele disse, ele tinha “todo tipo
de imundície”. Chegando mais na
frente de casa, havia as plantas que ele
sabia terem, cada uma, um significado,
embora ele dissesse ser ‘sem religião’.
Nesta classe, havia as populares
‘espada de São Jorge’, ‘arruda macho’ e
‘arruda fêmea’. E ainda capim guiné e
pimentas.
Também na frente da casa, do lado oposto daquelas plantas que tinham ‘cada uma
um significado’ havia as flores - e estas também tinham um significado muito especial para
eles. Em um grande canteiro, bem em frente à casa, havia rosas de vários tipos, cravinas,
dálias e outros tipos de flores menores. Sobre uma roseira pequena, plantada ao de uma
maior, ele diz: “Vê? É mãe e filha”. As rosas eram sua maior atenção, e ele conta:
“Jairo: as rosas? Os outros anos,
todos os anos nós tinha que comprar
[pra levar no cemitério]. E este ano, faz
dois anos que nos não temos que
comprar.
P: Vocês pegam as rosas pra levar no
cemitério?
Jairo: Não, eu levo de tudo, que esse
ano tinha rosa branca, tinha rosa
amarela, tinha as cravina... eu peguei e
fiz um buquê bem bonito assim...”
(
idem
)
Este casal havia sofrido a
perda trágica da filha, uma menina de 4 anos, há mais ou menos 10 anos. As flores que eles
mesmos plantam e cuidam têm esse papel também, de serem levadas para a filha. É neste
sentido que é possível ver essa relação de Jairo e Célia com as plantas como uma relação
Figura 44: Jairo mostra as ervas que cultiva, Mato
Alto, 03/11/2006. Foto: L.C.
Figura 45: Roseira de Jairo e Célia , Mato Alto,
03/11/2006. Foto: L.C.
102
carregada de afetos, e de como as plantas podem ser as intermediárias nesta troca de afetos,
substâncias, territórios e pessoas.
Estas plantas que ele trazia, em sua maioria, “lá de fora”, pareciam reconfigurar
um “lá de fora” “aqui na cidade”, fazendo possível pensar-se nesta extensão dos territórios
- e em uma continuidade em dois sentidos: tanto uma continuidade territorial, quanto
também uma continuidade afetiva e cognitiva, de uma linha de sucessão de conhecimentos
e relações com as plantas.
“P: E é tu que escolhe o que vai plantar?
Jairo: É que eu vô lá fora e sempre trago uma coisinha.
P: E a Célia, não gosta?
Jairo: Ela gosta, mas quem acaba cuidando mais sou eu.
P: De onde de onde que tu descobriu essas coisas?
Jairo: Lá de fora. Tudo por intermédio dos antigos.”
(
Idem
)
A moradia dos sobrinhos de Jairo e Célia, ao lado, também faz-nos pensar na
questão do parentesco e da territorialidade como tendo um componente de possibilidades de
alargamento das fronteiras das terras nativas e ao mesmo tempo configurando as
possibilidades de intercâmbio entre os membros dos vários grupos negros aqui tratados
(Barragem - Mato Alto - Manuel Barbosa) - uma vez que estes sobrinhos de Jairo e Célia,
dois jovens da faixa dos vinte e poucos anos, recém casados, são também descendentes, por
parte de pai, de Manuel Barbosa, e criaram-se no território onde hoje é o Quilombo Manuel
Barbosa.
O motivo alegado para a vinda destes sobrinhos para morarem em Mato Alto foi a
facilidade de acesso ao transporte público, que ambos têm empregos regulares, longe da
casa de suas famílias em Manuel Barbosa: Márcio trabalha como operário em uma grande
indústria de autopeças em Gravataí e Goleiro trabalha com extração vegetal em uma grande
empresa madeireira, também em Gravataí. A respeito dos intercâmbios entre as várias
comunidades, dentre diversos outros elementos, também já fora possível ver como circulam
103
também os saberes e práticas mais modernas ou recentemente incorporadas à rotina dos
membros destas comunidades.
Por mais que estes grupos
formassem redes de parentesco e
relacionamento intensas no passado, estas
experiências de associativismo e
reivindicações políticas perante os órgãos
públicos e necessidades de cumprimentos
de requisitos organizativos e institucionais
(registrar uma associação de moradores,
por exemplo) são saberes e práticas só
recentemente incorporados à experiência
de alguns destes grupos, sendo que o Quilombo Manuel Barbosa teve o pioneirismo na
região. Nas reuniões com vistas à formação da Associação de Moradores do Quilombo
Anastácia, por exemplo, (ocorridas muitas delas na casa de Geraldo, primo de Jairo e Célia,
no Mato Alto), moradores de Manuel Barbosa traziam de lá suas experiências com a
formação do Quilombo Manuel Barbosa, que estava em estágio mais avançado de
organização. Juraciara (Mana) atual companheira de Antônio Fialho, mais os pais de
Márcio e Goleiro, Valdemar e Ilza, davam seus depoimentos ou conversavam nos
bastidores sobre as experiências de organização de uma associação de moradores e de
coisas que eles próprios vivenciaram em estágios anteriores da organização da
Associação dos Moradores de Manuel Barbosa.
Figura 46: Reunião Quilombo Anastácia, casa de
Geraldo, Mato Alto, 30/06/2007. Foto: L.C.
104
CAPÍTULO 4. VIVÊNCIAS E PRÁTICAS
Neste capítulo procuramos reunir alguns aspectos pinçados da etnografia e que se
refiram às práticas cotidianas, saberes, crenças e afetos dos indivíduos das comunidades
estudadas. O objetivo desta “seleção interessada” foi o de poder ressaltar o quanto aqueles
aspectos que anunciamos anteriormente territorialidade, etnicidade, parentesco e redes
sociais – interrelacionam-se em suas formas cotidianas de viver em seus territórios.
4.1. Coletivos locais
As referência a tesouros enterrados e também a segredos e encantamentos
associados a estes tesouros fazem parte de histórias populares de diversas regiões e grupos
do Brasil e aqui na região de Gravataí e Barro Vermelho também aparecem, muitas vezes
matizadas e atualizadas com dados e personagens locais.
“Mas faz tempo que eu ouço falar dos Jesuítas. Onde que era as terras deles,
eu não sei. Acho que era meio-mundo. Diz que eles pegavam o ouro,
encerravam os cavalos numa mangueira e, despejavam o ouro e botavam água
e botavam os cavalos por cima. (...)A gente fica sabendo do que os antigos
contavam pra gente.”
Outro destes personagens locais era “Sarapião”, um grande proprietário de terras
da região e que estava sempre disposto a cometer “barbaridades” para proteger seus
tesouros.
O sobrado do Sarapião. Eu trabalhava no sobrado do Sarapião. Sarapião
pegava um negro, saía com ele pro meio do campo com um panelão de ouro.
Chegava lá, mandava o negro fazer um buraco bem grande pra botar o ouro
bem no fundo, e aí, quando o camarada terminava ele, páa, matava o
camarada e botava ele na cova junto com o ouro (...), pra guardar o
tesouro...(...). Se tivesse um panelão pra ti, tu tirava?
P:- Não sei, diz que não pode?
É, tem dono. Não sendo dado pra aquela pessoa, não tira. E se tirar, aquele
camarada ali não dura muito....
(Telmo Silva, 14/11/2006)
105
Clareci, da comunidade Anastácia, tinha com a avó uma relação muito próxima,
pois ficou morando com a avó durante alguns anos de sua infância e adolescência, mesmo
que sua mãe verdadeira, D. Noercy morasse logo ao lado, na mesma chácara de Barragem
em Viamão. Por desfrutar da amizade e de uma relação mais próxima com a avó ela teria
sido legado a ela o segredo de um tesouro deixado pela avó (ou pelos antepassados dela),
na casa velha de Barragem.
“P: E tu não tens medo de que alguém venha a pegar isto que a tua avó te
deixou?
Clareci: Não. Já andaram cavocando e procurando mas não acham. Não
puderam tirar. Não adianta, se não for pra pessoa, a pessoa mesma pra quem
deixaram, outra pessoa não pega. Eu sei onde que tá, mas não quero pegar.
Deixa ele Eu sei que ta e que é pra mim. Então, deixa lá”.
(Clareci,
11/05/2006).
Este tesouro deixado pela avó e que Clareci diz não querer pegar, pelo menos não
ainda, parece configura-se em um “tesouro” também noutro sentido no sentido de manter
viva a memória deste relacionamento de Clareci com a avó, na casa velha e no território de
Barragem. Em uma visita que fizemos, em maio de 2006, o telhado da casa velha tinha
desmoronado e a casa ameaçava cair. Andamos em meio à casa e conversamos sobre estas
memórias, vividas com muito pesar pelo estado em que estava a casa.
Figuras 47 e 48: Clareci mostra a casa velha da avó Anastácia em Barragem, Viamão.
11/05/2006. Foto: LC
106
“A [Anastácia], ela dizia ‘Tu vai ver e eu não vou ver: tu vai ver as
pessoas ter dinheiro e não ter o que comprar. E tu vai ver também o esteio
desta casa cair, e daí, depois que cair o esteio, vai-se o resto’. E agora ta aí, ó
,
bem o que ela falou (Clareci, 11/05/2006).
A religiosidade foi um aspecto em que os dados de campo não trouxeram detalhes
muito precisos. No caso da comunidade de Anastácia, é feita a referência constante à
origem católica de todos do grupo. Jairo, ao falar das ervas e plantas em seu quintal refere-
se a isso, com a ressalva de que alguns, hoje em dia, podem ter outras religiões de matriz
africana:
“P: E a tua família é de religião católica?
Jairo: Todos são.
P: A tua vó também era.
Jairo: Todo mundo. Tem uns agora que... de repente, que a gente não sabe, até
de repente vão nesse tipo de coisa (...) [mas] depois de velho, criado. Eu não
sou contra nada (...).”(Jairo, 03/11/2006)
Figuras 49 e 50: Clareci, na casa velha da avó Anastácia em Barragem, Viamão. 11/05/2006. Fotos: LC
107
Se existem pessoas, dentre os descendentes de Anastácia, que passaram a
freqüentar religiões de matriz africana, isto é um assunto tratado com muita discrição e os
próprios personagens que adotaram estes cultos não relataram-nos pessoalmente detalhes
destas suas práticas e crenças. É possível que esta religiosidade de matriz africana enfrente
preconceitos inclusive internamente ao grupo familiar. Certa vez, quando indagamos a dona
Dila, de 75 anos, moradora de Barragem-Anastácia, sobre uma imagem de São Jorge que
ela tinha em sua cozinha, ela apressou-se em dizer “- Mas é São Jorge católico!”.
Esta matriz de religiosidade negra e católica parece ser forte em toda a região. D.
Eva Barbosa contou-nos sobre o tempo em que a festa da primeira padroeira da cidade de
Gravataí, Nossa Senhora do Rosário, era feita pelos pretos. Os pretos eram festeiros, faziam
procissões em que havia tamboreiro e carregador da bandeira negros. Um dos últimos
tamboreiros das festas de N.Sa do Rosário em Gravataí foi Trajano, filho de Aristides José
Fialho e irmão de criação de D. Maria Augustinha e Adão Fialho.
Figura 51 : Genealogia de Trajano Fialho
108
Ao longo do século XX, pouco a pouco os negros vão perdendo espaço na festa
da padroeira do município. Na década de 60, há relatos de que os negros foram proibidos de
serem os “festeiros” - podiam apenas levar a bandeira da santa. Até que, na continuação
deste processo de “embranquecimento” das festa religiosas da cidade de Gravataí, ocorre a
mudança da padroeira do município, também na década de 60, que passou de N. Sa. Do
Rosário para N. Sa. Dos Anjos – uma situação descrita com muita mágoa, espanto e revolta
pelos mais velhos como D. Eva Barbosa e D. Maria Augustinha Fialho.
Antônio Fialho conta que até os anos 80, nas festas religiosas do Barro Vermelho,
na capela de São José, os negros não podiam dançar. Solange, a irmã de Antônio, conta
então que foi o próprio Antônio quem, revoltado com a situação, brigou com os
organizadores da festa que acabaram com a proibição, no final dos anos 80 do século
XX.
Os relacionamentos das pessoas com as divindades e com a ordem dos mistérios e
do sagrado encontra-se, podemos ver, fortemente marcado por esta matriz do catolicismo
popular, mas entremeado por interpretações locais. Clareci e Telmo contam de um episódio
em que eles estavam voltando de uma visita à avó, e uma noite muito escura e sob chuva
Quando chegaram em determinado ponto, tinham que atravessar um riacho que estava
transbordando, mas não enxergavam nada. Então Clareci disse “- Que bom se tivesse uma
luzinha assim pra s enxergar o caminho”, e foi então que teria aparecido uma luz muito
forte por cima das árvores e da água, luz que ficou ligada, como que mostrando o melhor
caminho. Eles contam que ficaram em silêncio e atravessaram e foram correndo para
casa e foram falar daquilo um para o outro algum tempo depois. A interpretação deles é
de que aquilo era coisa de Deus e de Nossa Senhora, que foi quem iluminou o caminho.
Conforme Telmo sempre repete: “Deus tá vendo, Ele é quem sabe”.
A presença dos animais e as relações estabelecidas por estes grupos com as
diversas ordens de animais é um outro aspecto muito importante que gostaria de registrar,
109
ainda que brevemente, pois este assunto mereceria um espaço maior de reflexões do que os
que teremos condições de oferecer aqui.
Logo que chegamos a Barragem-Anastácia, chamou-nos a atenção o nome dos
cães de Seu Marcílio: um chamava-se “Cavalo” e o outro “Pingo”. No caso deste
personagem, Marcílio Silva, havia o histórico de vida deste homem, que havia sido
empregado de campo e tropeiro, e alguém cuja relação com os cavalos havia sido muito
importante. Em uma conversa despretenciosa ele me perguntava: ‘- Sabia que não tem
nenhum [nome de] pêlo de cavalo com a letra ([não anotei a letra])?’ e passou a me dizer
todos os nomes das pelagens que ele conhecia – talvez mais de 20.A troca dos nomes de um
animal de casa por outro também prosseguiu com Gilberto, filho de Clareci. Um dos
cachorros mais queridos da família chama-se “Burrinho”.
Os cães de Seu Franciscão, de Manuel Barbosa, chamam-se, Sultão, Rex, Coleira,
Diana e Loba. Quando mostro para eles fotos em que aparecem os cães e outros animais de
sua propriedade ele fica muito contente e pede para ficar com o retrato dos cães e das vacas
– e mostra para a esposa “como estão bonitos os cachorros na foto”.
Figuras 52,53, 54 e 55: Animais de Seu Franciscão em Manuel Barbosa
110
A família de seu Carlindo, ou Seu Xico, filho falecido de Anastácia, lembra que
eles criaram um “ratão do banhado” roedor muito comum na região dentro de casa
como se fosse um animal de estimação, e deram-lhe o nome de “Xico”. Este “Xico”,
segundo eles, até ser morto por caçadores da região, era manso a ponto de andar no pátio, e,
quando chamado, responder e vir comer à mesa com eles.
Célia conta-me uma ‘história exemplar’ a respeito da criação de como Deus criou
o homem e o cachorro:
“Porque tem uma historia assim, que é uma história, ciência, coisa assim, mas
é serio, é tipo uma historia mais que é real, de que Deus fez o homem e que ele
ia ter um tanto de anos que ele ia durar. A diz que o cachorro pegou e disse
que ao invés de o homem durar este tanto de anos, que ele ia substituir, e que
ele diminuía os seus anos de vida. E que foi assim, que diz que conforme o
cachorro tivesse dez anos, a mentalidade do animal já passa de 30, dobra. E da
pra ver que é verdade. Nois tinha um cachorrinho, que tinha 19 anos, que ele
caducava. Tem gente que acha que é historia ou coisa, é real!
(Célia, da
comunidade Anastácia, esposa de Jairo, 06/11/2006)
Na casa de Clareci e Telmo, eles adquririram recentemente “uma égua muito boa”
que foi batizada por Clareci como “Lacraia”.Esta família não faz uso da égua para trabalho
e então, do ponto de vista meramente material e instrumental não se justificaria arcar com
os custos de manutenção do animal,
mas “Lacraia” é tratada como um dos
“xodós” da família, que elogia a
inteligência do animal e não pensa em
desfazer-se dele.
Figura 56: Telmo passeia na égua Lacraia com a neta
Katielen, 14/01/2006. Foto LC
111
A referência às cobras é outro assunto que rende muitas horas de conversa em
qualquer das comunidades. É bem verdade que o fato de Manuel Barbosa, ancestral-
fundador da comunidade Manuel Barbosa ter falecido em decorrência de picada de cobra
“cruzeira” ajuda a remeter esse assunto para a esfera do mito, os quais acompanham, em
muitas culturas, este tipo de seres. É possível também que as condições ecológicas e de
clima na região favorecessem a presença destes animais em muito maior freqüência no
passado, justamente nos locais de trabalho destas pessoas, à beira do banhado, nas
plantações de arroz. Na comunidade de Anastácia, relatos de que trabalhos em taipas de
arroz à beira do rio muitas vezes eram recusados, por serem locais infestados de cobras. E
ainda relatos de ataques não fatais a membros da comunidade. Mas inegavelmente as
melhores histórias de cobras foram contadas por Seu Franciscão, como a que segue:
“O Fialhinho, no tempo que trabalhava com esses Fonseca, chegava ai
gritava. Vi uma cobra entrando na toca, uma cruzeira, ele dizia, Agarra, nego,
agarra essa cobra e puxa pra trás. E o falecido Aristides Fialho, apoiava a
perna no cavalo e puxava, que uma cobra depois que entra pra toca, não se
consegue puxar inteira, só vem um pedaço. como é que vem? Como é que se
agarra, se não tem perna? Tem perna, sim. Tem perna sim porque eu vi. Diz
que quem vê perna de cobra não vive muito, pois quantos anos... Eu tinha acho
que uns vinte anos. Uma cobra, uma Jararacona, tava pegando fogo, eu dei
uma bordoada nela e larguei no fogo viva, dei uma quebrada nela e ela
botou umas perninha tão curtinha assim, com uns dedinhos que parecem dedo
de pato. O cara que diz que diz que logo morre. Se tivesse que morrer eu
não tava vivo. Mas eu não quero ver mais, coisa feia. Como é que ela sobe num
coqueiro? Sobe numa parede. Tem perna sim. É um segredo que ela tem
(Francisco R. Barbosa, 09/11/2006).
Não poderemos explorar estes elementos etnográficos com maior profundidade
nesta dissertação, mas queremos apenas deixar indicado o quanto estas histórias que
apresentamos, como a da “pata da cobra” ou da criação do homem e do cachorro
convergem para as concepções de Bruno Latour, de que os elementos da natureza são
(sempre e por qualquer coletividade) híbridos. No caso dos coletivos com que estamos
lidando, ao invés de se falar em separação natureza-sociedade, pode-se ver o quanto se
mesclam elementos afetivos e elementos cognitivos, no entendimento da relação destes
seres (e mistérios e divindades) com os coletivos humanos.
112
CAPÍTULO 5. CONSTITUIÇÃO DOS TERRITÓRIOS: MORFOLOGIA E
DINÂMICA
O ponto central daquilo que quisemos trazer à discussão com este trabalho refere-
se ao estabelecimento das bases para uma compreensão diferenciada dos territórios e da
territorialidade das famílias negras desta região da Grande Porto Alegre, em relação a
algumas premissas estabelecidas quanto ao que sejam (ou o que devam ser) os territórios
negros e territórios quilombolas do Rio Grande do Sul e do Brasil. Esta compreensão
diferenciada envolve considerar as múltiplas formas de ocupação, manutenção e aquisição
dos territórios e ainda as mudanças espaciais, físicas e de usos dos territórios ancestrais e
dos novos territórios. Envolve considerar também as redes de relacionamentos que ligam as
diversas comunidades negras de uma mesma região e que podem incluir integrantes destas
comunidades que não necessariamente habitam o território ancestral, mas que podem fazer
parte das mesmas redes, com seus pequenos, e por vezes distantes, novos territórios.
É preciso então, segundo pensamos, tentar compreender as descontinuidades
geográficas territoriais e de residência dos habitantes não apenas com o signo da
descontinuidade, mas como possíveis prolongamentos, como “alargamentos”, em relação
aos territórios ancestrais anteriormente considerados. Esta compreensão vai ao encontro das
considerações trazidas por Marshall Sahlins (1997), onde este autor considera que, por
detrás das descontinuidades territoriais descritas ou representadas em certos fenômenos de
deslocamentos populacionais da modernidade mundializada (ou globalizada) podem estar
presentes fenômenos que estejam de fato garantindo as condições da continuidade das
formas de vida e das culturas locais das populações tradicionais. Dentro destes fenômenos,
há os casos narrados por Hau Hoffa, citados por Sahlins, envolvendo os habitantes das ilhas
da Polinésia, em que os migrantes alternam ciclos de moradia no exterior e períodos de
volta aos territórios de origem, além do envio de recursos materiais sempre que possível.
Um estudo da comunidade indígena Pankararu fornece um exemplo local
brasileiro de situação análoga aos exemplos dados por Sahlins. No caso daquela
comunidade, autores como J. M. A. Arruti (ARRUTI, 1996) e Priscila Matta (MATTA,
113
2006) registram como seus integrantes mantêm vínculos continuados mesmo possuindo
diversos locais de moradia, tanto em municípios do interior de Pernambuco como ainda em
uma favela de São Paulo. Esta seria uma das formas como o grupo mantém sua identidade
Pankararu apesar de (ou quem sabe justamente por) manterem um fluxo constante de
pessoas, práticas, produtos, saberes e crenças envolvendo os núcleos populacionais que
ocupam áreas situadas nos município de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá, em Pernambuco e
ainda este cleo localizado na favela paulistana de Real Parque, zona sul do município de
São Paulo, SP.
Estes exemplos trazem-nos a condição de traçarmos alguns paralelos com a
situação das famílias negras e comunidades que acompanhamos. Para situarmos melhor as
condições de uso dos territórios por parte destes grupos, propomos distinguir dois tipos de
territórios utilizados pelos membros das comunidades, a saber:
a) os territórios ancestrais, local sagrado de múltiplas representações identitárias e,
nos casos tratados neste trabalho, objeto de disputas e referencial para reivindicações
políticas e de organização dos grupos; e
b) os novos territórios, locais de moradia ou base territorial de cada um dos
membros que se reconhecem e são reconhecidos como membros das comunidades e que se
estabeleceram, em algum momento e por motivos diversos, fora dos territórios ancestrais
originais. Estes locais podem ser lotes urbanizados ou semi-urbanizados, e portanto mais
próximos a recursos como transporte, saúde, saneamento, escolas e outros serviços, ou
então podem ser em outras zonas rurais, escolhidas pelo acesso a alguma atividade
remunerada ou requerida por qualquer outro recurso, situação ou condição.
Procuramos ver a operacionalização de estratégias que não se referem apenas a
aspectos negativos das mudanças territoriais e das alterações sofridas ao longo do tempo,
como o esbulho ou a dissolução dos territórios e das comunidades, mas também a aspectos
114
que permitiram-lhes criar e recriar condições para a continuidade das comunidades e da
cultura de seus grupos
21
.
Marshal Sahlins abordou em “Ilhas de História” (SAHLINS, 1990[1985]) a
relação existente entre a continuidade dos esquemas culturais e mudança das estruturas
históricas. Em uma passagem muito conhecida, afirma:
“A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas
sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário
também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente
porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando
realizados na prática”
(SAHLINS 1990[1985], p.7)
Para Sahlins, portanto, existe a possibilidade perceber, nas dinâmicas e mudanças
que são vivenciadas pelas pessoas e grupos, a mediação e interpretação nativa, feita através
dos esquemas de significação locais. Usando a fórmula de Marshall Sahlins (
op. cit.)
,
aplicada aos territórios e à territorialidade dos grupos negros da Região Metropolitana de
Porto Alegre, podemos perceber, na mudança, a continuidade de esquemas culturais que
dão sentido às relações que estas pessoas estabelecem com os parentes, com as plantas, os
animais, os territórios e todos os elemento que os cercam. A dinâmica territorial
encontrada, segundo consideramos,
não
caracteriza-se, portanto, como uma dispersão dos
indivíduos em territórios distantes não se trata aqui de ‘diásporas’ - mas sim de uma
continuidade da existência dos laços, na reconstrução de territórios, saberes, práticas e
substâncias que se reconfiguram neste território “alargado” – recomposto em diversos
pequenos territórios que se incorporam aos territórios ancestrais como locais de passagem,
campo de um circuito de trabalhos, afetos e continuidade da vida social.
Por outro lado, não se trata de negar a violência que algumas vezes se fez
acompanhar a estas mudanças: aquilo que em nossos trabalhos acadêmicos é, por vezes,
retratado com termos neutros (como aqui mesmo é feito) como “processos de dinâmica
territorial”, pode ter-se feito acompanhar de situações de violência - real ou simbólica,
21
Pode-se, é claro, argumentar em que medida estas estratégias não seriam estratégias de defesa contra a
ocupação dos espaços negros por parte da população branca do entorno – espaços em diversos níveis, desde o
115
concreta ou afetiva – vivenciada, pelos sujeitos que sofreram estes processos mencionados,
com profundos sentimentos de perda. Mas deve-se dizer também, baseados na experiência e
nos relatos das pessoas que acompanhamos, que nem sempre são negativos (ou
inteiramente negativos) os sentimentos e as perspectivas daqueles que submetem-se às
mudanças de local de moradia a ponto de saírem dos territórios ancestrais e irem para
outros territórios vizinhos ou não muito distantes. O que queremos chamar à atenção é que,
qualquer que seja a situação que motivou a saída dos territórios ancestrais - e pode-se falar
tanto da existência da violência quanto da, também freqüente, situação em que as mudanças
são consentidas ou vividas como desejadas por aqueles que as realizam (quer por motivos
materiais, afetivos, emocionais, de saúde, ou uma conjunção de fatores deste tipo) - talvez
seja possível compreender estas saídas como formas de conquistas de novos territórios. O
relacionamento destas pessoas com os novos territórios e a relação que estes novos
territórios possibilitam estabelecer com os territórios ancestrais podem ser vistos como
possíveis configurações de uma extensão dos territórios negros. Nesta situação, elementos
dos territórios ancestrais são levados para os novos territórios e vice-versa, onde instaura-se
uma relação que é de continuidade mais do que de ruptura, instauram-se circuitos também
alargados de trocas de bens e práticas entre estes tipos de territórios considerados.
Desta forma, as mudanças pessoais e territoriais vivenciadas, as dinâmicas sociais
e geográficas impressas nestes diferentes territórios são aspectos que não devem ser vistos
como portadores apenas de uma marca negativa, a da ruptura em relação a uma
territorialidade ancestral, abstratamente considerada, que teria a alternativa de se manter
em seu estado “original” ou perecer (assim como a identidade negra ou quilombola, assunto
que parece nortear o espírito de certas intervenções legais do passado recente
22
(e de
propostas periodicamente recolocadas, de pedidos de alterações no texto de regulamentação
do dispositivo constitucional art. 68 das ADCT). Nesta chave interpretativa proposta, a
geográfico até o político e cultural - e em que medida foram bem sucedidas estas estratégias de defesa.
22
Vide o decreto 3912/2001 (revogado pelo decreto 4887/2003). Naquele texto legal havia um exemplo de
interpretação da territorialidade como algo estático, no tempo e no espaço, pois para caracterização da
identidade de “remanescente de comunidade de quilombo”, exigia-se a prova da ocupação imemorial de um
mesmo território. É contrariamente a este sentido que pretendemos caracterizar as dinâmicas territoriais desta
população como fazendo parte também das possíveis estratégias de continuidade destas comunidades, como
formas de manutenção da existência social destes grupos através da expansão e reaglutinação em novos
116
intenção é permitir uma compreensão mais abrangente e que leve em conta as dinâmicas de
como as formas culturais se mantêm.
Assim, se o nosso trabalho puder dar alguma contribuição à discussão das
comunidades quilombolas, nossa tentativa será a de ampliar o conceito de território,
tentando enxergar não somente as continuidades dos “marcos demarcatórios”, vistos pela
cartografia ou pela agrimensura, ou os “históricos de vida e sociabilidade sobre um mesmo
território” esperados pelos juízes ao demandarem os laudos antropológicos, mas também as
descontinuidades da ocupação territorial dos grupos e famílias pertencentes a cada uma das
comunidade. Em tais descontinuidades geográficas, pode-se abranger regiões e bairros
bastante diversos ou distantes, mas permanecem vivas as redes de circulação, sociabilidade
e reconhecimento mútuo. O fato de haver grupos de pessoas que habitam próximo à
“parada 68 de Gravataí, ou próximo ao “parque das indústrias, de Cachoeirinha”, e de
haver outro grupo que mora próximo à RS-118 em Viamão ou ainda grupos maiores que
residam no “Passo da Caveira” e no “Passo da Cavalhada”, em Gravataí todos estes
grupos são vistos e representados pelos seus parentes e afins (e não somente pelos
familiares mais próximos, mas por toda a rede que pretendemos caracterizar) em uma
geografia descontínua, em um espaço de sociabilidade que não está marcado apenas pela
continuidade dos territórios. Muito embora a força dos territórios permaneça como suporte
agregador de suas memórias e de suas identidades, esta geografia descontínua projeta-se em
muitos espaços mapeados mentalmente” por eles em suas referências a estas pessoas e
estes lugares como fazendo parte de suas redes, nas quais ou para as quais diariamente
levam e trazem elementos plantas, animais, práticas e crenças - fazendo subsistir, enfim,
suas formas de vida neste território alargado que estivemos interessados em caracterizar.
territórios, mantendo os vínculos com os territórios originais e com as famílias que fazem parte das
comunidades.
117
CONCLUSÕES
Ao longo da realização deste trabalho, e seguindo pistas deixadas por alguns
aportes teóricos como os de Marshal Sahlins, Bruno Latour e Eduardo Viveiros de Castro,
procuramos apresentar elementos históricos e etnográficos que nos ajudassem a ter uma
compreensão da relação destes coletivos - com seus territórios e com os demais coletivos de
humanos e não-humanos - de maneira a ver também em suas dinâmicas territoriais as
possibilidades de articulação das redes tradicionais com as redes da modernidade.
Cremos ser possível caracterizar estas formas de ocupação dos territórios, as redes
que ligam estas coletividades e suas vivências cotidianas com o signo da vinculação a
tradições que provêm das coletividades negras, “morenas” e indígenas da região da várzea
do rio Gravataí. É certo que diversas tradições, de diferentes matizes, envolveram e
envolvem os indivíduos destas coletividades, com graus variados de efeitos sobre os
sistemas locais de produção e de existência. Foi o caso da violência do regime escravista e
das muitas e intrincadas relações, lealdades e injustiças legadas aos descendentes destas
comunidades. Foi o caso das intervenções físicas nos territórios, através do aprofundamento
da calha do rio Gravataí, que na década de 60 foi “canalizado” e houve mudanças que
favoreceram os criadores de gado e o plantio do arroz mecanizado na região. No entanto,
pôde-se ver como os fatores como o parentesco, a identificação étnica, os relacionamentos
com os demais grupos de humanos e não-humanos, e, mais recentemente, os agenciamentos
políticos coletivos, configuram estes coletivos natureza-sociedade como portadores ou
como constituidores - de um
ethos
próprio, aberto às redes locais, não circunscrito aos
grupos negros e aos territórios ancestrais, mas fortemente ancorado nestes.
A realização desta dissertação, nas condições em que a mesma foi produzida, não
pôde deixa de apresentar imprecisões falhas, lacunas em aberto e até mesmo questões
propostas e não resolvidas. Esperamos ter honrado, contudo, a especial distinção que estes
coletivos nos deram de podermos ter compartilhado com eles estas experiências, de forma a
118
que esta sincera tentativa de apresentação de alguns aspectos de suas vivências possua um
mínimo de coerência com suas visões e seus anseios.
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ANEXOS
Anexos 1 – Documentos
Doc. 1: Fragmento do Inventário de Manuel Barbosa e Maria Luiza Paim
129
Doc. 2: Fragmento do Inventário de Patrício de Souza Reis e Hortência de Oliveira
Pacheco, pais de Anastácia de Souza Reis
130
131
Doc. 3 – Escritura de Perfilhação que fez Patrício de Souza Reis, pai legítimo de Anastácia,
reconhecendo 3 outros filhos que teve com a Margarida “de tal”, escrava de Desidério
Antônio da Silva.
132
Transcrição dos documentos anteriores: Inventário de Patrício e Hortência e Certidão de
Perfilhação feita por Patrício de Souza Reis.
Cartório de órfãos
Vila de Viamão
Escrivão: Caparcio
Arrolamento
D. Hortência de Oliveira Pacheco
E Patrício de Souza Reis Fall(eci)dos
Sem Testamento
Gregório José da Silveira Inventariante
Autuação
Anno de mil novecentos e dezoito, aos cinco dias do mês de setembro, nesta Vila
de Viamão, em meu cartório autuo a petição despachada e mais peças que se
seguem. Eu, Antônio Caparcio, ajudante do escrivão em exercício a escrevi e
assino
Ajudante do Escrivão
Antônio Caparcio
Ilmo Sr Dr Juiz Distrital da sede? V. Órfãos
(D. com o documento manchado ?, volta à conclusão.
em 5-9-1918
Francisco)
Gregório Jose da Silveira e sua mulher , dona Honorina Patrícia dos Reis vêm
dizer a V. Sa o seguinte:
que no dia 3 de julho de 1912 faleceu no 1º distrito deste município, onde
era domiciliada, Hortência de Oliveira Pacheco, ab-intestata e mulher de Patrício
de Souza Reis que também faleceu no dia 1º de junho do corrente ano;
que Hortência Pacheco deixou dois filhos, um de nome João que faleceu
há três anos mais ou menos, e Anastácia que tem atualmente a idade de 16 anos ;
que Patrício de Souza Reis, além dos filhos de seu casal com Hortência,
tem a suppte ? Honorina Patrícia dos Reis; Pedro de Souza Reis, ausente em
lugar incerto e não sabido, e Rita Patrícia dos Reis, já há muitos anos falecida,
todos perfilhados por escritura pública de reconhecimento conforme documento
que se junta;
que não foram feitos os inventários destes finados até esta data;
que os bens deixados pelo extinto casal são os seguintes:
133
Uma pequena casa em mau estado, na Extrema, digo, Estância Grande, 1º Distrito deste
município no valor presumido de ...................................................................150.000,00
Uma parte de campo e mato junto à casa acima descrita e que foi havido por compra de ?
Julia Masas dos Reis, com, em ? Maria Carlota da Silveira, Desidério Antônio da Silva
Junior e outros pelo valor presumido de......................................................... 1.200.000
Somma.................................................1.350.000
Nestas condições, requer o 1º suppte para ser admitido a prestar o compromisso de
inventariante e a citação dos M. Colector Estadual, promotor ad-hoc, curador que for
nomeado ao ausente, do tutor que V.S nomear para a menor Anastácia e o Avaliador
Judicial, os primeiros para assistirem a todos? os termos do arrolamento até final e para na
audiência que V. Sa designar escolher pessoa idônea para avaliador. (lugar agir ?) e os
últimos para proceder a avaliação, tudo sob pena de revelia. Requer, outrossim, a citação
da citada mesmo conjuntamente com seu tutor para assistir a todos os termos do
inventário.
P. Def.
Viamão, 5 de setembro de 1918
Pap Alcebíades Azevedo dos Santos
TRASLADO
LIVRO 4 FLS 97
República dos Estados Unidos do Brazil
Estado do Rio Grande do Sul
Procuração que fazem Gregório José da Silveira e sua mulher Dª Honorina Patrícia dos
Reis.
Saibam quantos este público Instrumento de Procuração virem que no ano de 1918, nesta
vila de Viamão estado do RS, aos 19 dias do mê de agosto, em meu cartório
compareceram os outorgantes supra, residentes neste município assinando a ? de
ambos por declararem não o ? escrever Ass João Nunes.
Reconhecidos pelos próprios de mim notário e das testemunhas no fim assinadas, perante
as quais disseram que faziam seu bastante procurador neste estado onde preciso for, ao
advogado Alcebíades Azevedo dos Santos, brasileiro, casado, com 36 anos de idade,
residente na rua Gal Osório no 13 nesta villa, para proceder inventário e partilha dos bens
deixados pelos finados Patrício de Souza Reis e Hortência de Oliveira Pacheco, sogro e
pais deles outorgantes, podendo o procurador prestar compromisso de inventariante,
requerer e assinar o que for preciso, concordar, discordar desistir transigir? usar de todos
os recursos em lei permitidos a bem dos outorgantes e substabelecer.
E assim me pediram que lhes fizesse este instrumento que lhes li acharam conforme
aceitaram ratificaram e assinaram com as testemunhas abaixo conhecidas de mim José
Américo dos Santos, notário nesta villa, que escrevi e assino. Notário JAS
Viamão 19 de agosto de 1918
Assinaturas e notas ?????
134
135
136
TRASLADO = Escritura de reconhecimento e perfilhação que faz Patrício de Souza Reis,
de seus três filhos ?naturais do mesmo?: Rita, Pedro e Honorina na forma abaixo
declarada.
LIVRO 6 FOLHA 58 P ??
Saibam quantos esta pública escritura de reconhecimento e perfilhação virem que no ano
de 1894 aos vinte e dois dias do mês de novembro do dito ano (22/11/1894) , nesta vila
de Viamão, em meu cartório compareceu o cidadão Patrício de Souza Reis, morador no 1º
Distrito desta vila, reconhecido pelo próprio de mim tabelião e das testemunhas adiante
novamente assinadas, do que dou fé; perante as quais por ele outorgante Patrício de
Souza Reis foi dido que, sendo solteiro como ainda hoje permanece, houvera uma D.
Margarida de Tal, escrava de Desidério Antônio da Silva, mulher solteira com quem vive
?? e usa ?? e que querendo podia ter casado, traz filhos naturais, uma de nome Rita de
de 15 anos de idade, sendo padrinhos Prudêncio de Tal e Maria de Tal; outro de nome
Pedro, de 14 anos de idade sendo seus padrinhos Jose Henrique e Adelaide de Tal, e outra
de nome Honorina, de 13 anos de idade, todos mais ou menos, sendo seus padrinhos
Boaventura de Tal e uma irmã Dona Olívia de Tal; todos batizados nesta freguezia de
Viamão, sua vontade perfilha-los como de fato pela presente escritura e na melhor forma
de direito, ao perfilhar para que possam ser herdeiros e gozarem de todas as honras e
prerrogativas com se de legítimo matrimônio tivessem nascido e herdassem e ??
todos os seus bens, direitos e ações e na forma do disposto no artigo 3º do decreto nº 436
de 2 de setembro de 1847, fazia o presente reconhecimento e perfilhação e pedia à Justiça
desta República que como tal os reconheça. E assim me pediu que lhe fizesse esta
escritura que sendo por mim lida e por ela outorgada
outorgada, aceita e a ?????? cargo do perfilhamento por não saber assinar o cidadão
Leopoldino Antunes Marciano, com as testemunhas Juvêncio C?? de Carvalho e
Joaquim Machado da Rosa, moradores nesta Vila e reconhecidos de mim Manuel Vaz
Ferreira , tabelião que o escrevi e assino
etc....
Em 22 de novembro de 1894.
137
Anexos 2 – Fotos
Acima, à esq., os sobrinho-netos de Jairo e Célia. Proxs:Ervas no pártio de Jairo Silva, Mato Alto, 03/11/2006.
Heloisa cuida da limpeza do pátio, Júlio e a irma Andriele, na casa da tia Zadir.
nos fundos da casa de
Z
adir
, em
Mato Alto.
Mato Alto,
07/11/2006
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