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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado
Área de Concentração: Psicologia Aplicada
VIVIANE SILVA BARRETO
AS MARCAS DA SUBJETIVAÇÃO PROFISSIONAL DE
UMA PROFESSORA ALFABETIZADORA
UBERLÂNDIA
2008
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VIVIANE SILVA BARRETO
AS MARCAS DA SUBJETIVAÇÃO PROFISSIONAL DE
UMA PROFESSORA ALFABETIZADORA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia – Mestrado, do
Instituto de Psicologia da Universidade
Federal de Uberlândia, como requisito parcial
à obtenção do Título de Mestre em Psicologia
Aplicada.
Área de Concentração: Psicologia Aplicada
Eixo: Psicologia do Desenvolvimento Humano
e da Aprendizagem
Orientadora: Profa. Dra. Silvia Maria Cintra da
Silva
UBERLÂNDIA
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado
Área de Concentração: Psicologia Aplicada
VIVIANE SILVA BARRETO
AS MARCAS DA SUBJETIVAÇÃO PROFISSIONAL DE UMA
PROFESSORA ALFABETIZADORA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada do Instituto
de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia como requisito parcial para obtenção do
título de mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Aplicada
Eixo: Psicologia do Desenvolvimento Humano e da Aprendizagem
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Silvia Maria Cintra da Silva – UFU
Orientadora
Prof. Dr. César Donizetti Pereira Leite – UNESP/Rio Claro
Profa. Dra. Lúcia Helena Ferreira Mendonça Costa – UFU
Aos meus amados pais, Alzira e Hélio,
pelas fortes marcas de amor, fé,
honestidade, luta, confiança e esperança.
Esta vitória é nossa.
A todas as vozes que me constituem,
especialmente àquelas de professoras e
professores... mamãe, Silvia, Clara... e
tantas outras que ecoam neste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Pela voz sempre presente, obrigada meu Deus. Obrigada pelo Amor imenso
concretizado por meio de mais esta conquista e por colocar em minha vida pessoas tão lindas
e tão especiais.
Pela voz doce e acolhedora, pela amizade, e por compartilhar comigo seu
conhecimento e sua trajetória profissional e pessoal, obrigada Silvia, querida orientadora,
companheira afetiva e efetiva de tantos momentos, de tantas descobertas, de encontros e
desencontros, de constituição recíproca, sobretudo na construção cotidiana de uma relação de
respeito, confiança e carinho. Marcas de uma profissional competente, ética, estudiosa,
comprometida, afetiva, humilde; de uma pessoa muito especial. A maior aprendizagem é
aquela que eu levo para a vida, para os meus relacionamentos, para a maneira de ver e de lidar
com o ser humano.
Pelas vozes amorosas, obrigada mamãe e papai, que sabem reconhecer a importância
desta aventura em minha vida e me apóiam incondicionalmente.
Pelas vozes honestas, obrigada Ernane e Marcos, irmãos queridos, pela confiança,
admiração e por ser exemplo de luta, inteligência e dedicação ao trabalho. Vocês também são
responsáveis pela realização dos meus sonhos.
Pelas vozes presentes e alegres, obrigada Gláucia e Keila, minhas cunhadinhas que
demonstram seu carinho, especialmente ao cuidar dos “meus” nos momentos em que estou
“distante”.
Ah... pelas vozes lindas, sempre verdadeiras e simples dos meus amados Hígor, Thaís
e Lavínia, afilhado e sobrinhas. Obrigada meus amores, pelos calorosos momentos de
diversão, brincadeiras, curiosidade, sorrisos e choros, passos e quedas, descobertas e longas
risadas. Vocês são motivo de muita alegria e sempre me ensinam muito.
Pela voz de sabedoria, obrigada vovó Jove, pelas orações e por torcer e acreditar
sempre em meu sucesso.
Pelas vozes de incentivo, muito obrigada a toda a minha família.
Por me acolher em sua casa e por me encorajar a enveredar pelos caminhos do
mestrado, obrigada Marilda. Pela voz amiga, pela confiança e apoio em momentos cruciais
que garantiram a minha permanência em Uberlândia. Obrigada pelo exemplo de garra,
serenidade e fé.
Agradeço aos amigos de Divinópolis, vozes que renovam as minhas forças para
continuar, mesmo que, para isso, eu precise estar a maior parte do tempo “longe”.
Aos amigos “anjos” de Uberlândia, pelas vozes perenes e próximas, cantadas ou
simplesmente faladas com amizade e carinho. É muito bom poder contar com vocês. Obrigada
especialmente a Ana Flávia por compartilhar comigo o dia-a-dia, muitas vezes difícil neste
período.
A todos os meus amigos espalhados pelo mundo afora, obrigada pelas vozes em
diferentes línguas e timbres que hoje também fazem parte de mim. Obrigada por proporcionar
uma experiência inesquecível de vida que, inevitavelmente, marca este trabalho.
Obrigada, ainda, aos amigos Jhonny, Erika, Leidiane e Viviane.
A Juliana, pela amizade, e por me preparar para a prova de inglês.
Agradeço de coração, a todos os meus amigos.
A Chiara Lubich, por me ensinar o profundo e sério significado da palavra Amor, e
aos amigos do Movimento dos Focolares, pela experiência de vida compartilhada, marcas que
também permanecem.
Pelas vozes atentas e decisivas para as escolhas que me trouxeram até aqui, obrigada
Larissa, Kátia, Isabela, Márcia, Lucíola, Carlos Reche, Alexandre Simões, Ângela Cibiac.
Aos professores que marcaram a minha vida desde a infância até os dias atuais,
obrigada! Pelas vozes que deixaram em mim o amor pelo conhecimento e o desejo de
trabalhar pela educação. A Maria Lúcia, primeira professora do mestrado, pelo olhar calmo e
acolhedor, sensível e bem humorado. A todos os professores do Programa pelas
contribuições valiosas em minha formação. Às professoras Lúcia Helena e Maria José, pelo
incentivo para seguir adiante. Aos professores da graduação em psicologia, da UEMG e da
UFU, e a minha mãe, professores da Educação Infantil, Fundamental, Médio, Superior,
obrigada.
Obrigada pelas valiosas e pertinentes vozes dos professores Haroldo e Lúcia Helena
no momento do Exame de Qualificação. E ainda, ao Haroldo pelas preciosas contribuições em
relação à metodologia da história oral de vida, também por via da atenção e dos materiais
disponibilizados. A Lúcia Helena pela confiança, pelo incentivo profissional, pelo carinho,
pela presença competente e amiga.
Aos professores César e Eleonora pela disponibilidade em partilhar de momento tão
importante.
A todos os colegas do mestrado, que participaram direta ou indiretamente da
construção desta pesquisa e da minha formação. À Malba, Juliana e Mariângela pelo apoio
nos momentos de dificuldade. Especialmente à amiga Cíntia pelo apoio e respeito. Voz
amigável e incansável em momentos de desânimo, cansaço e situações difíceis, e também de
festa, de alegria, de ricas trocas. Obrigada!
Aos meus alunos de PEPA I, por dividir comigo a estréia na docência.
À querida Marineide, pela presença acolhedora e competente e pela disponibilidade
constante em ouvir e orientar. Obrigada por tudo, desde o meu ingresso na UFU até agora. Foi
imprescindível contar com você todo este tempo. Obrigada pela dedicação, pela sincera
torcida, pela simpatia e pelo carinho.
A Jodi pelas traduções.
A Sônia, pela atenta e caprichosa revisão.
A FAPEMIG, pela bolsa de estudos, muito importante para a conclusão deste estudo.
E, de uma maneira muito especial, agradeço a Clara, professora protagonista deste
estudo que permitiu o registro de sua voz afetiva, criativa e consciente, ao compartilhar
comigo de maneira tão generosa e franca a sua história de vida. Obrigada pela
disponibilidade, carinho e confiança em todos os momentos. Obrigada, ainda, por permitir
que eu conhecesse através de sua prática “alguém do outro mundo”, em histórias e
personagens que transformam a escola em um lugar rico em imaginação, fantasia, criatividade
e vida! Marcas de esperança e de compromisso com a educação. Aprendi demais com você!
Muito obrigada!
...
Gratidão... Palavra que pode ser traduzida aqui como o reconhecimento de que nesta
minha caminhada estiveram presentes diversas vozes que me ajudaram a vencer este árduo
desafio. A minha voz em relação a uma multidão de vozes. Vozes de amor, de carinho, de
incentivo, de confiança, de esperança, de amizade, de liberdade, de admiração, de paciência,
de respeito, de atenção, de partilha, de desabafo, de apoio, de ternura, de “colo”, de
responsabilidade, de autoridade, de ensino, de curiosidade, de paz, de impaciência, de
decepção, de reconstrução, de desculpas, de reconciliação, estranhas, familiares, próximas ou
distantes, fortes ou fracas, cantadas ou faladas, de graça, de recomeço, de risos, de
perseverança...
Muito obrigada a você que se reconhece nestas palavras. Você que em algum
momento passou pela minha vida e, com a sua voz, deixou marcas. Você verdadeiramente foi
fundamental para que eu conseguisse chegar até aqui.
Uma história de vida não é feita para ser
arquivada ou guardada numa gaveta como
coisa, mas existe para transformar a
cidade onde ela floresceu.
Ecléa Bosi
RESUMO
De acordo com os pressupostos da teoria histórico-cultural, sobretudo as contribuições de
Vigotski, é na relação com o outro que nos constituímos como humanos. Se a apropriação da
cultura pelo homem ocorre por via da mediação social, ou seja, na relação eu–outro, é
também nesta relação que um professor torna-se professor: por meio das relações sociais
estabelecidas e internalizadas em seu desenvolvimento, em um processo histórico e social. Ao
problematizar a constituição profissional de uma professora alfabetizadora de Ensino
Fundamental da rede pública de Uberlândia (MG), diferenciada em sua prática, o objetivo
desta pesquisa foi conhecer os caminhos de subjetivação profissional desta docente, isto é, os
seus processos de apropriação e internalização do sentido e dos modos de ser professora. A
pesquisa qualitativa foi desenvolvida a partir da orientação metodológica da história oral de
vida e constou de entrevista registrada em áudio, realizada em seis sessões. As cinco
primeiras sessões, conduzidas livremente pela professora, destinaram-se ao relato de sua
história. A sessão final foi semidirigida e destinou-se ao esclarecimento de aspectos tais como
o papel da família em sua escolha e formação profissional; a sua relação com a escola e com a
educação; as professoras que marcaram a sua trajetória escolar; sua percepção a respeito da
construção da própria prática como um todo; o que ela considera importante na formação
docente; enfim, como percebe o próprio processo de subjetivação profissional. Devidamente
transcrita, a entrevista foi lida atentamente com o intuito de melhor apreender na narrativa
como a participante constituiu-se professora. Buscou-se destacar os temas mais recorrentes e
significativos, de maneira que pudessem configurar categorias de análise, ilustradas pelas
falas e episódios biográficos que perpassaram a formação profissional da educadora. Os dados
da pesquisa têm como substrato a memória da professora, reconstruída a partir da
reconstituição de sua história de vida, com recordações daquilo que foi sendo significado e
internalizado a partir das mediações e dos sentidos construídos acerca do que representa, para
ela, ser professora. Como afirma Vigotski, a memória é uma função psicológica superior que
se constitui histórica e socialmente pela mediação social. Verifica-se que a história de vida da
docente foi e é permeada por experiências marcantes que revelam, desde muito cedo, um
contato com o universo escolar atravessado por relações afetivas, especialmente na figura de
uma tia, a primeira professora de Clara, que a apresentou à leitura, à fantasia e à imaginação.
As outras professoras, ao longo de sua formação, também foram importantes para que ela
aprendesse e desenvolvesse reflexões em relação à função educativa, mesmo quando não
condiziam com sua compreensão acerca da profissão. O contato com os pares, supervisoras e
alunos igualmente constituíram aprendizagens significativas para que a professora que se
tornou alfabetizadora pudesse fazer emergir, em seus projetos, suas concepções acerca da
escola e da educação, refletidas em uma prática pedagógica diferenciada. Em seus relatos, fica
evidente que a subjetivação profissional, no caso da docência, não se inicia no momento da
escolarização formal, profissionalizante, mas principia nas vivências que envolvem situações
de ensino e de aprendizagem que, dialeticamente, constituem o sujeito.
Palavras-chave: formação docente, história oral de vida, memória, subjetivação profissional,
aprendizagem e desenvolvimento
ABSTRACT
Based on the cultural-historical theory and mainly from the contributions of Vigotski, it is the
relationship with others that we as humans are made up. If culture is appropriated by man via
social mediation or be that through the other-I relationship, it is also in this relationship that
the teacher becomes a teacher: through the established and internalized social relations during
development in a historical and social process. The aim of this study was to know the ways of
professional subjectivity, or better said, processes of appropriation and internalization of
meanings and ways of being a teacher, for the studied teacher. The qualitive research was
performed from the oral life history perspective and registered in six audio taped sessions.
The first five sessions were conducted freely by the teacher as she told her story. In the last
session, questions were presented to clarify aspects such as the role of the family in her
professional choice and training, the teachers that influenced her; her perception in regards to
the construction of her practice as a whole; what she considers important in teacher training;
all in all, how she perceives her own process of professional subjectivity. The interview was
carefully listened to, transcribed, printed out and read so as to try to comprehend in her
narration how she became a teacher. The most recurrent and significant themes were
highlighted in such a way that analysis categories could be made up, illustrated by the talks
and biographical episodes that pass through the professional training of the educator.
Research data has as a substrate, the memory of the teacher from the reconstruction of her life
story with memories of that which turned into meaningful and was internalized from
mediations and from meanings constructed upon what it represents for her to be a teacher. If
fact, for Vigotski, memory is a superior psychological function which is historically and
socially made up by social mediation. In this study, the life history of the teacher was
permeated by notable experiences that revealed, from early on, a contact with the school
universe gone through by affective relations especially in the figure of an aunt, the first
teacher of Clara that presented her to reading, make-believe and imagination. The other
teachers, up to her graduation also were important for her to learn and develop reflections in
regards to the educative function even when they did not match her comprehension upon the
profession. Contact with partners, supervisors and students equally made up significant
learning, for the teacher who became a literacy teacher, could make surge her conceptions
about school and education in her projects reflected in her differentiated pedagogical practice.
In her reports, it is evident that professional subjectivity, in the case of teaching, does not
begin at the moment of formal schooling, professionally, but initiates in the experiences that
involve teaching and learning situations that dialectally make up the subject.
Key words: teacher training, oral life history, memory, professional subjectivity, learning and
development.
SUMÁRIO
HISTÓRIAS DE PROFESSORAS ................................................................................ 12
1. CAMINHOS PERCORRIDOS, CAMINHOS POSSÍVEIS ................................. 20
2. SUBJETIVAÇÃO PROFISSIONAL, MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL DE
VIDA .......................................................................................................................... 35
2.1. Subjetivação profissional ..................................................................................... 35
2.2. Memória ............................................................................................................... 42
2.3. História oral de vida.............................................................................................. 50
2.4. Delineamento metodológico ................................................................................ 53
3. (RE) CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA, UMA MEMÓRIA .............................. 57
3.1. PARA COMEÇAR, VOU CONTAR UMA HISTÓRIA ................................... 59
3.2. AS “MARCAS QUE FICARAM” ...................................................................... 71
3.2.1. A FAMÍLIA DE CLARA ...................................................................... 75
3.2.2. AS PROFESSORAS DE CLARA ......................................................... 81
3.2.2.1. A primeira professora de Clara: inesquecível. ........................ 83
3.2.2.2. Outras professoras marcantes ................................................. 92
3.2.3. CLARA, A PROFESSORA ................................................................ 103
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 127
13
HISTÓRIAS DE PROFESSORAS
SUBJETO
O cheiro da flor de abóbora, a massa de seu pólen
para mim como óvulo de coelhas.
Vinde zangões, machos tolos,
picar a fina parede que mal segura a vida,
tanto ela quer viver.
Ainda que não vos houvesse
eu fecundaria essas flores com meu nariz proletário.
Entre lixo e meu coração, galinhas e outros meninos,
sua forma inocente e cor,
no imenso território do terreiro sem cerca
de minha infância sem fel.
Ora, direis, um lírio ignóbil.
Pois vos digo que a reproduzo em ouro
sobre meu vestido de núpcias, meu vestido de noite.
Dentro do quarto escuro,
ou na rua sem lâmpadas, de cidade ou memória,
um sol.
Como pequenas luzes esplêndidas.
Adélia Prado – O coração disparado
M...u... mu...
L... a... la...
Mu... la... Mu... la... Mu... la, mu..la, mu..la... MULA!!! MULA!!!
Não sei se era manhã, se era tarde, não sei...
Sei que a menina estava na área de sua casa, com sua cartilha a estudar, a brincar, a
descobrir... Muitas letras misturadas e ainda sem sentido... Também não sei ao certo que
letras, desenhos, símbolos, não sei...
O que sei é que, de repente, na união de quatro letras, a descoberta de uma palavra:
mula!
A menina vai tentando unir as letras; lentamente, consegue formar uma sílaba...
aqueles símbolos até então estranhos e novos começam a ganhar sentido, forma, som...
14
Mais uma tentativa e uma nova sílaba... e ela nem sabia que esta segunda sílaba, “la”,
também pode se referir a um lugar... lá é a nota musical que afina o mundo... LÁ... sem contar
que faz parte de inúmeras outras palavras...
Mas estava ali, menina, curiosa, sozinha naquele espaço fora, enquanto sua mãe
trabalhava ou, quem sabe, cuidava de seu irmão menor...
La... uma nova união que parece fazer algum sentido para a menina que não desiste,
continua a desafiar as letras e a tentar compreender e descobrir o que queria dizer...
m...u...l...a... mula!
Mais uma tentativa e um momento incrível, inesquecível, a conquista, o desvendar
daquilo que até então representava um mistério: a palavra!!!
Mu...la, Mu...la, Mu..la, Mula, MULA, MULA... MULA!!!!
Gritos eufóricos chamam a atenção da mãe, que aparece para ver o que está
acontecendo...
A menina descobre... um novo mundo, o mundo das palavras, da leitura!!! Uma
explosão de alegria, de conquista, de quem tão pequena conseguiu alcançar tamanho feito:
Ler!!!
E ela parece até ter ganhado um encanto que a fez crescer, como num passe de mágica,
e lhe deu coragem para aventurar-se a descobrir tantos outros símbolos, conjuntos de letras,
palavras... quase não conseguindo parar mais...
Incrível experiência da pequena menina grande pela emoção e descoberta que quase
não cabia em si, gritando aos sete cantos... canto...
História de professora
1
?
Memória viva e presente da magia da descoberta de um novo mundo, mundo estranho
em que diferentes símbolos e sons unem-se e formam as palavras, aparentemente
1
Utilizo o termo professora, no feminino, visto que este trabalho diz respeito diretamente a mulheres
professoras.
15
insignificantes em si, mas plenas de sentido e significado, imagens... mundo da representação,
de infinitas possibilidades...
Escrever a memória desta história, possível agora justamente por este momento
passado, revela o quão presente ele é. A memória é clara e é quase como se eu revivesse, ou
até poderia dizer que estou revivendo, com riqueza de detalhes, imagens, sons, sentimentos,
emoções, o momento em que consegui, pela primeira vez, ler uma palavra: mula...
Tal cena compõe a minha memória, tal cena é parte viva da minha história...
História de vida, história de criança, história de filha, história de aluna, história de
leitora, história de escritora, história de pessoa, história de pesquisadora, história profissional
sendo construída, história de professora...
História... Memória... Vida...
Os arranjos que a vida tem criado, executado, tocado, improvisado, são constitutivos
de mim mesma como pesquisadora e como professora em formação.
Como falar da história de professoras, da profissão professora, sem falar da minha
própria história?
Nossa! Minha história...
História de professoras...
Era uma vez uma menina sonhadora que morava no interior de Minas Gerais... Aquela
menina que ficou encantada ao ler sua primeira palavra: MULA.
Divinópolis, cidade do Divino, terra de artistas, de cantores, de poetas, de professoras
e professores, de Adélia e... de Viviane.
Filha de professora...
Minha mãe é professora aposentada e trabalhou a maior parte do tempo com crianças
pequenas, com o que hoje é chamado de Educação Infantil, mas na sua época era Pré-Escolar.
Eu sempre estava com ela na escola, nos passeios da escola, nas festas da escola. Lembro-me
16
de sua bolsa de palha com o material... e de brincar no parquinho do Jardim da Infância onde
ela trabalhava... Eu gostava mesmo era de ir aos passeios do Dia das Crianças... Ela dizia que
eu seria professora, mas eu nunca quis. Eu gostava de brincar de escolinha, de aulinha com
minhas amigas e amigos quando criança, mas não admitia a idéia de ser professora quando
crescesse. Achava que seria difícil...
Entretanto, parece que vou acabar assumindo o meu ser professora, já inaugurado com
crianças em aulas de musicalização infantil, e na universidade, no estágio em docência,
realizado recentemente no Programa do Mestrado. Eu gostei muito da experiência,
especialmente na universidade...
Aluna de tantas professoras... Muitas especiais...
Lembro-me da minha primeira professora, no Jardim da Infância... Ela me marcou
porque uma vez deu a todos os seus alunos um jogo de canetinhas hidrocor. Aquilo foi o
máximo! Naquela época não era comum ter canetinhas, era raro, e aquele presente para mim
representava o carinho da professora.
A professora de primeira série... Brava, mas muito boa. Eu aprendia muito com ela e
lembro que uma vez ela fez uma festa em sua casa. Ainda posso ver a sala de aula, o alfabeto
afixado na parede e eu aprendendo as primeiras letras... Na época aprendíamos a ler na
cartilha “O barquinho amarelo”. Eu tinha uma pasta tão pesada que custava a carregar e um
dia tive que voltar em casa correndo, tinha esquecido a cartilha. Parecia tudo tão distante, tão
grande, tão difícil!
Segunda, terceira, quarta-série... Eu gostava das minhas professoras, gostava de ir à
escola, de estudar. Quinta, sexta, sétima série... Novas professoras, agora mais professoras...
As minhas professoras de matemática e de português me marcaram muito. A de matemática,
porque gostava muito de mim e eu era uma das melhores alunas. A de português, também
porque gostava de mim, mas eu não era uma das melhores alunas desta disciplina; tinha mais
17
dificuldades. No último dia de aula da sétima série, eu ia mudar de escola porque a oitava era
no período noturno, e essa professora me deu um presente muito significativo: um livro, com
dedicatória e tudo, e disse que se eu lesse mais seria uma excelente aluna. Ela tinha percebido
que eu não tinha uma relação muito íntima com a literatura e os livros e sabia da importância
disso em minha vida. Eu me senti muito especial!
A oitava série e o segundo grau eu fiz em outra escola, agora particular. Foram anos
muito bons, de descoberta de novas amizades, novo ambiente, novas possibilidades. Eu
precisei crescer muito porque era uma escola no centro da cidade, precisei ir morar com uma
tia, precisei correr atrás de alguns conhecimentos como o inglês, que eu quase não tinha
estudado na outra escola. Aquela nova escola e aqueles novos colegas e professores exigiam
uma nova postura, tinham outro ritmo, tudo muito novo.
Um dos sonhos da menina, agora já moça, era estudar em uma Universidade Federal.
Ela ouvia de todos os cantos que “estudar na federal é outra coisa!”. Devia ser muito bom
mesmo. Crescimento humano, oportunidade de um futuro melhor. Mas não pensava em sair
de casa, ainda nem sabia o que queria ser quando crescesse! “Dizem que ano que vem vai ter
um campus ‘da federal’ em Divinópolis...”. O tempo passava e... nada!
Gostava muito de matemática e fui cursar Ciências Contábeis. Tempo bom, muitos
amigos, trabalho, estudo, mas sem sentido, não era o que eu queria. No final do curso tive
uma disciplina de Relações Humanas e descobri a psicologia. Ah... isso sim faz sentido, faz os
olhos brilharem, desperta o interesse e vontade de conhecer, de saber... Um novo e
interessante caminho possível.
Ainda em Divinópolis fiz vestibular para psicologia em uma faculdade particular e
comecei a fazer o curso. Muito bom, é muito diferente estar estudando aquilo que faz sentido,
aquilo que interessa, aquilo de que se gosta. Quase não me continha na cadeira da sala de
aula, emocionada ao descobrir que era isso, estudar e trabalhar com o ser humano, aquilo que
18
eu buscava e até o momento não tinha tido oportunidade de encontrar. Muito complexo,
difícil, desafiador, mas... lindo.
Na universidade, ainda na cidade natal, fiquei admirada e fui atraída por uma
professora de Desenvolvimento humano que trabalhava na área da educação. Esta mesma
professora passou um trabalho para ser feito com história oral de vida, na disciplina de
Psicologia do Desenvolvimento 3 em que estudávamos a idade adulta e a velhice. Gostei
muito de fazer este trabalho, achei muito rico porque permitiu conhecer toda a trajetória de
vida de um senhor que também fora professor de português e era escritor. Lembro que foi um
dos trabalhos que mais gostei de fazer na faculdade.
Mas o sonho da federal continuava e incomodava... Incômodo que culminou em duas
tentativas frustradas de transferência para federais até a conquista desta vaga tão disputada.
Agora poderia dedicar todo o tempo ao estudo e poderia descobrir a pesquisa, grande
diferencial que me fez insistir na tentativa de estudar na universidade pública.
Saí de casa em busca dos sonhos e fui morar com uma... professora! A amiga que me
acolheu em sua casa é pedagoga e professora universitária. É uma pessoa que admiro porque
tem uma história de vida de muita luta, de conquista profissional através de muito trabalho,
estudo e esforço. Foi justamente esta amiga que me incentivou a fazer o mestrado quando um
dia eu lhe disse que estava pensando em fazer especialização para ganhar tempo, visto que,
com a transferência, eu demoraria muito a concluir minha graduação em psicologia. Era como
se estivesse perdendo tempo.
Primeiro dia na nova universidade, na fila esperando para ver minha matrícula, na
conversa com um colega, eu disse que gostava da área da educação. O colega falou de uma
professora... Aquele nome ficou gravado... quem será, como será? Em um evento da
universidade, estava assistindo a uma mesa redonda sobre o tripé da universidade – ensino,
pesquisa e extensão – e lá estava ela, falando sobre a importância da pesquisa. Como um dos
19
meus principais objetivos na universidade federal era a pesquisa, não hesitei e fui falar com
ela. Ela não me conhecia, mas me acolheu de forma surpreendentemente educada e aberta.
Começamos um relacionamento... Algo chamou minha atenção, comecei a entender por que
os alunos gostavam tanto dela. Lembro-me de que nesse evento, quando ela foi chamada para
compor a mesa, os alunos vibraram...
Em casa, com a amiga professora, disse que gostaria de conhecer a faculdade em que
ela trabalhava formando professores... Ela, então, me convidou para a Semana da Pedagogia...
Era uma faculdade fora da cidade, e no carro em que viajamos tinha uma professora que ia
ministrar minicurso... Ela falava de um projeto. Mesmo não entendendo direito do que se
tratava, fiquei muito curiosa. Aquela professora – Clara
2
– chamou minha atenção porque
parecia diferente! Tinha algo de novo, de especial e desconhecido que despertou minha
curiosidade e interesse.
Escolhi participar do seu minicurso e realmente gostei do trabalho daquela professora,
especialmente pelo compromisso que ela demonstrou ter com a educação, com uma prática
inovadora, rica em afetividade e criatividade. Foi um encontro curioso e feliz, porque ela
conhecia a minha amiga docente com quem eu morava e também conhecia a professora da
universidade com quem eu estava começando a trabalhar, aquela citada acima.
Histórias de professoras...
Dialética, constituições...
Mais uma professora, um novo caminho a ser construído. Agora como pesquisadora...
Simplicidade, troca, cumplicidade, conhecimento, formação recíproca.
Algumas histórias de professoras...
2
O nome utilizado é fictício, para preservar a identidade da professora que participou da pesquisa.
20
PRIMEIRA INFÂNCIA
Era rosa, era malva, era leite,
as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser famosa.
Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da Trindade te proteja.
Em ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos à vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.
Adélia Prado – O coração disparado
A partir de encontros da minha história com as histórias de tantas professoras, posso
agora falar de uma pesquisa.
Com a oportunidade de conhecer a prática pedagógica de Clara sob a ótica da
psicologia histórico-cultural, através de uma pesquisa de Iniciação Científica realizada na
graduação em psicologia
3
, emergiu uma questão: como Clara se constituiu professora? Nascia
uma nova investigação que originaria esta dissertação. Na intenção de percorrer os caminhos
de constituição profissional da professora Clara por meio de sua história oral de vida, os
rastros de uma formação profissional iniciada muito cedo levaram-me a conhecer – ainda que
de forma limitada, por ser apenas um olhar entre tantos possíveis – a singularidade de um jeito
de ser e de estar professora. Marcas de um passado presente na memória narrada,
apresentando uma história de significados construídos nas interações com outras histórias.
Vozes de tantas em uma só. Diversas vozes, harmônicas e dissonantes, compondo uma
narrativa, que se apresenta a seguir.
3
Esta pesquisa será apresentada em maiores detalhes no Capítulo 1.
21
1. CAMINHOS PERCORRIDOS, CAMINHOS POSSÍVEIS
Papéis no redemoinho levantados,
esta sede excessiva
e ciscos.
Adélia Prado – O coração disparado
Escolhi estes versos do poema “Estreito” de Adélia Prado para iniciar este capítulo
porque representa para mim a mistura entre as possibilidades infinitas diante da pesquisa e um
caminho escolhido, que no final deixa vestígios, “ciscos” do significado do fenômeno
pesquisado. A sede excessiva é a vontade de construir um conhecimento acerca de uma dada
questão, a partir do diálogo com aqueles que aparecem nos caminhos percorridos na pesquisa.
Nesse caso em particular, é a sede de compreender um pouco mais sobre a complexidade que
nos caracteriza, seres humanos em relação.
Durante minha graduação em psicologia, desenvolvi uma pesquisa de Iniciação
Científica com o objetivo de investigar a prática pedagógica de uma professora da primeira
série do Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de Uberlândia/MG. Essa
professora era Clara, que se tornou a protagonista do presente trabalho, visto que a pesquisa
sobre a sua prática suscitou uma nova pergunta que aqui tento responder. Inicialmente faço
uma breve retrospectiva sobre o meu encontro com Clara, para possibilitar a compreensão do
que gerou a pesquisa acima mencionada e o posterior interesse em aprofundá-la no mestrado.
No ano de 2003, participei de um minicurso ministrado por Clara em um evento da
área de Pedagogia, a que me referi anteriormente. Nesse minicurso sobre prática pedagógica e
projetos, Clara enfatizou a importância da afetividade na relação professor-aluno e no
processo de ensino e aprendizagem. Chamou-me a atenção a maneira como aquela docente
trabalhava e logo percebi que ela era diferente da maioria das professoras que eu conhecia.
Além de destacar a afetividade, demonstrou ser bastante criativa e incentivar muito a fantasia
e a imaginação de seus alunos.
22
Durante o minicurso, ela apresentou um projeto que estava criando e desenvolvendo
em sua prática pedagógica, projeto permeado por aspectos lúdicos e por uma construção
contextualizada dos conteúdos que deveriam ser vistos em sala de aula. Trata-se de um
projeto interdisciplinar, no qual bonecos “ganham vida” pela imaginação da professora e pela
fantasia das crianças, conferindo sentido à aprendizagem e acompanhando os alunos no
processo de alfabetização, com especial incentivo à leitura e à escrita.
O projeto consiste na narração de histórias e aventuras que formam e informam os
alunos, os quais aprendem brincando, num ambiente afetivo e fantástico. São bonecos de pano
com a “carinha” de borracha, que Clara leva para a sala de aula para mediar a sua relação com
as crianças. Eles têm uma história, têm amigos, uma casa na “Terra dos Brinquedos” e
aparecem na biblioteca da escola onde existe uma passagem secreta que só a bibliotecária,
cúmplice na proposta, conhece.
O personagem principal, que dá nome ao projeto, é um boneco muito curioso e que
gosta muito de ler. Aprecia tanto a leitura, que descobre a passagem secreta quando está na
biblioteca da “Terra dos Brinquedos” e, ao organizar algumas estantes, de repente é
surpreendido com uma passagem e um túnel que vai dar na biblioteca da escola de Clara. A
partir daí, começa a fazer parte do dia-a-dia de seus alunos como “alguém” muito especial
com quem as crianças constroem um relacionamento. Ele e seus amigos passam a
acompanhar a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças de forma bem próxima e
afetiva. A comunicação entre eles acontece, de forma tanto individual quanto coletiva, através
de cartas. As crianças passam a conhecê-lo e também a seus amigos. Através das histórias e
cartas são trabalhados os conteúdos do programa e até mesmo as avaliações são elaboradas
com a sua ajuda.
A experiência de conhecer Clara e um pouco de sua prática foi muito marcante para
mim. Apesar de, naquela época, ainda não ter estudado Psicologia Escolar e Educacional na
23
graduação, já tinha um grande interesse pela interface da psicologia com a educação. Percebi
que estava diante de uma professora diferenciada, com um trabalho muito interessante em
escola pública
4
e relevante para o cenário escolar como um todo.
Em seguida, soube que a minha professora de Psicologia Escolar – hoje minha
orientadora – conhecia Clara e também considerava sua prática diferenciada e muito
interessante. Assim, decidimos desenvolver um projeto de Iniciação Científica a respeito da
prática pedagógica dessa docente
5
.
Estávamos de acordo quanto à importância de um estudo sobre a prática pedagógica
de Clara, ainda mais por se tratar de uma professora de escola pública que, em geral, não
conta com muitos recursos e incentivos referentes à formação e atuação. Porém, ainda não
sabíamos ao certo o que pesquisar. Fui para a escola fazer observações na sala de aula de
Clara e conhecer de perto o dia-a-dia de seu trabalho. O primeiro momento foi um pouco
decepcionante, porque parecia ser uma sala de aula como todas as outras. Entretanto, logo fui
percebendo que a diferença não estava em acontecimentos extraordinários, mas expressa com
simplicidade em detalhes rotineiros do cotidiano e também nas atividades que envolviam o
projeto.
A sala de aula de Clara tinha uma dinâmica que, para mim, era peculiar. Na maioria
das aulas, as crianças ficavam sentadas aos pares, para favorecer a troca entre elas. Havia um
momento inicial da aula em que Clara fazia uma dança ou um desfile dentro da sala. Os
alunos dançavam com ela e com os colegas, em duplas. Para sair da sala de aula, havia um
sinal e uma regra, que era um retângulo feito de E.V.A. que ficava pendurado na parede perto
da porta, sendo um lado verde e outro vermelho, para não ser necessário pedir para sair.
4
O negrito deve-se ao fato de que Clara trabalha na rede pública com uma prática diferenciada, visto que eu
estava acostumada a observar, ler e ouvir inúmeros relatos e estudos somente sobre professores de escola pública
sempre desmotivados e com práticas repetitivas e maçantes.
5
O relatório final da pesquisa intitulado “Afetividade e Aprendizagem, conhecendo a prática pedagógica de uma
educadora” foi publicado em forma de artigo na Revista Horizonte Científico e consta nas referências
bibliográficas deste trabalho.
24
Se o lado verde estava na frente, significava que não havia ninguém fora da sala e, portanto,
era permitida a saída para ir ao banheiro ou beber água. Se estivesse do lado vermelho, a
criança deveria esperar que o colega voltasse. Assim, só podia haver uma criança fora da sala
de aula por vez, a qual, quando retornava à sala, deixava o sinal na posição combinada, isto é,
o lado verde virado para a frente.
As atividades referentes ao projeto nem sempre contavam com a presença física dos
bonecos. Os conteúdos eram trabalhados principalmente a partir das cartinhas que os
personagens escreviam aos alunos, dos nomes dos personagens e de temas pertinentes à
história geradora do projeto. De vez em quando os bonecos iam à escola para estar com seus
amigos e para contar mais aventuras. Quando estavam em sala de aula, passavam o tempo
todo com as crianças. Havia uma pequena caixa com cartões contendo os nomes de todos os
alunos e Clara fazia um sorteio para ver quem ficaria segurando cada boneco durante a aula.
Até o final do turno todos os bonecos circulavam entre os alunos e todas as crianças podiam
pegá-los, senti-los e se despedir deles. Eles chegavam e partiam dentro de uma grande caixa
de papelão, decorada com vários desenhos infantis feitos por ex-alunos de Clara.
Para conduzir o projeto pautado na fantasia sem desconsiderar a esperteza e
inteligência das crianças, na história havia uma “fumacinha” no túnel já na chegada à
biblioteca da escola, que retirava os poderes de movimento e fala dos bonecos. Sendo assim,
eles iam para a sala levados pela bibliotecária, não andavam, não se mexiam e nem falavam,
mas podiam ouvir e sentir. As crianças conversavam com eles e tinham cuidado ao pegá-los.
Uma cena que ficou marcada para mim foi quando um dos meninos pegou no colo o boneco
principal do projeto e pareceu sussurrar em seu ouvido, como se lhe contasse um segredo.
Este episódio representou uma grande intimidade da criança com o boneco, uma proximidade
do aluno com alguém que representava a professora e a crença na história criada por esta.
25
Além da fantasia, imaginação e ludicidade muito presentes no projeto e, portanto, nas
aulas de Clara, ela também utilizava recursos como cartazes com poesias e histórias para
trabalhar a leitura, que ficavam pendurados na sala, além de quadro com as palavras que as
crianças estavam aprendendo. Utilizava a música tanto para momentos como o da dança
acima descrito quanto para atividades de leitura em que ela explorava a letra da música,
escrita em grandes cartazes expostos nas paredes. Ou ainda como fundo para atividades que
exigiam mais concentração (música instrumental) ou momentos para recortar e colorir
(músicas infantis). Jogos também eram muito utilizados e uma atividade bastante apreciada
pelas crianças era o bingo que acontecia às sextas-feiras. Clara utilizava na cartela do bingo
palavras relacionadas ao universo da história dos bonecos e à vida dos alunos. As letras eram
sorteadas e, à medida que iam completando as cartelas, as crianças podiam escolher um
brinde que estava em cima da mesa da professora. Os brindes eram brinquedinhos doados
pelos próprios alunos ou balas e pirulitos trazidos por Clara.
Por motivos éticos, pensamos em realizar um estudo que respeitasse a autoria do
projeto de Clara com os bonecos e, portanto, que não o investigasse diretamente. Sendo
assim, a partir das observações da sala de aula e de algumas leituras para compor o referencial
teórico da pesquisa, pareceu-nos interessante estudar naquele momento a prática pedagógica
da professora como um todo. O foco estaria na compreensão dos caminhos trilhados por ela
para a construção de uma prática profissional diferenciada: criativa, contextualizada, que
contava com recursos lúdicos para trabalhar a alfabetização e motivar a aprendizagem de seus
alunos.
Com a revisão bibliográfica sobre formação e prática docente, percebi que vários
estudos sobre a formação de professores
6
, sobre o “professor reflexivo” e o “bom professor”
que foram desenvolvidos a partir de 1990 – Cunha (1995); Nóvoa (1995a, 1995b e 1997);
6
Todos os autores citados abordam a questão da formação docente, embora sob perspectivas teóricas diferentes.
26
Gómez (1997); Vasconcelos (1997); Schön (1997 e 2000); Zeichner (1998); Geraldi et al.
(1998); Fontana (2000a, 2000b, 2000c); Sadalla (1998 e 2000) e Pimenta (2002) – destacaram
a importância da reflexão acerca da própria prática como meio de construção de saberes, de
valorização da profissão e de conhecimentos construídos a partir do ato de reflexão sobre a
prática cotidiana. Em geral, pode-se dizer que os autores apontam que a reflexão sobre a
própria prática pode gerar uma nova compreensão sobre a ação docente no cotidiano,
possibilitando a chance de avaliar as próprias ações, questionar e rever atitudes e
posicionamentos e, por conseguinte, desenvolver-se pessoal e profissionalmente
7
. Há, ainda,
aqueles que chamam a atenção para a dialética da constituição profissional a partir das
relações sociais do cotidiano. São posturas que, de um modo ou de outro, demonstram o
caráter político-social da atuação docente e de seu impacto na formação dos alunos.
O estudo de Vasconcelos (1997) mostrou-se convergente com a prática pedagógica
observada em Clara e tornou-se uma importante referência bibliográfica para a pesquisa. O
livro Ao redor da mesa grande, a prática educativa de Ana (Vasconcelos, 1997) é fruto de
uma pesquisa de doutorado em que a autora faz um estudo etnográfico para acompanhar uma
sala de aula, registrando a prática de Ana, docente considerada professora-mestra, isto é, uma
professora sensível, criativa, coerente com uma proposta educacional significativa, rica e
respeitosa em relação à infância, voltada inclusive para a imaginação e a ludicidade.
Uma proposta educacional é significativa, segundo Gasparin (2002 apud Martins,
2007b), quando há apropriação, por parte dos educandos, do objeto do conhecimento em suas
múltiplas determinações e relações, recriando-o e tornando-o “seu”. É o que Martins (2007b)
chama de aprendizagem verdadeira, que é consolidada pela mobilização de “sentimentos
intelectuais”, ou seja, aqueles provocados pela atividade mental requerida na construção de
7
É importante esclarecer que este referencial foi básico para a pesquisa naquele momento, mas agora avançamos
a partir de novos estudos que, inclusive, fazem críticas a teorias como a do professor reflexivo, por exemplo.
Porém, não se trata de desconsiderar as contribuições desta teoria para o campo da formação de professores. São
abordagens diferentes, que podem ampliar a compreensão sobre a subjetivação profissional.
27
conhecimentos. A autora afirma que “sentimentos intelectuais positivos são imprescindíveis
no interesse em aprender e também em ensinar”. (Martins, 2007b, p.131).
Os contatos com Clara e as observações de sua sala de aula fizeram com que eu a
relacionasse com Ana, o que sinalizava para uma proposta educacional que também era
significativa. Só mais tarde fui saber que o livro de Vasconcelos (1997) fora um dos
mediadores da construção de seu projeto.
Os pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural foram tomados como os
principais referenciais teórico-metodológicos dessa pesquisa, pois era imprescindível
considerar as condições sociais, históricas e culturais de constituição de Clara. Acredito que
seu projeto seja fruto de uma construção dialética profissional e pessoal que culmina em uma
prática diferenciada e importante para a educação.
Fontana (2000a) desenvolveu uma pesquisa acerca da formação docente baseada na
teoria histórico-cultural, onde ressalta que a subjetividade profissional é socialmente
constituída. A autora destaca o conceito de subjetivação profissional como os modos de
apropriação e internalização tanto das dimensões teóricas quanto práticas construídas pelo
sujeito em relação a sua profissão. Se na perspectiva da teoria histórico-cultural (Vigotski
8
,
2000) é na relação com o outro que nos constituímos, é também na relação com o outro que
um professor torna-se professor, por meio das interações. É, ainda, nas e pelas interações que
o professor conhece, experiencia e constrói o contexto e a prática docente, os aspectos das
relações entre professor-aluno e suas particularidades, e demais aspectos que configuram a
aula, a sala de aula, a escola e os aspectos educacionais como um todo.
Assim, na relação com os diversos outros: professor, aluno, família, sociedade,
conhecimento, o professor constrói o seu ser/fazer/saber docente, forma e é formado
8
A grafia do nome do autor adotada será esta, exceto quando estiver grafado de forma diversa na referência
bibliográfica consultada.
28
dialeticamente em suas relações, em uma dinâmica interativa. De acordo com Rego (2003),
em seu estudo sobre as marcas deixadas pela escola na constituição de singularidades,
as características do funcionamento psicológico tipicamente humano são construídas
ao longo da vida do indivíduo mediante um processo de interação
9
entre o homem e
seu meio físico e social, que permite, por sua vez, a apropriação da cultura elaborada
pelas gerações anteriores ao longo de milênios. (p.26).
A apropriação da cultura de gerações passadas inclui também a apropriação de
profissões presentes na cultura e igualmente constituídas ao longo do tempo no contexto
social. Nas interações apontadas como constitutivas por Rego (2003), pressuposto
apresentado originalmente por Vigotski (2000), são constituídos o ser humano a priori, e nele,
o profissional com suas características, ou seja, os modos de ser/fazer/saber da profissão
docente, no caso daqueles que se tornam professores. Sendo assim, as teorias e práticas
concernentes ao que representa ser professora, culturalmente elaboradas nas interações sociais
em contextos e tempos diversos, ao serem apropriadas e internalizadas por Clara, representam
os modos como ela vem construindo o próprio processo de subjetivação profissional.
Com o objetivo de investigar a prática pedagógica de Clara, com ênfase em sua
constituição profissional revelada em sala de aula, o foco da pesquisa passou a ser a dialética
de construção da subjetivação profissional dessa professora. Foram levados em consideração
os gestos, olhares, falas, ações, mediações, tanto da professora quanto dos alunos e demais
atores que vivenciavam o cotidiano da escola e, mais especificamente, da sala de aula de
Clara. Quais seriam, portanto, os modos de apropriação e internalização teóricos e práticos
relativos a sua formação profissional observados em sua prática pedagógica?
Buscando responder a esta pergunta, videogravações da professora em sala de aula
foram realizadas e analisadas minuciosamente pelo enfoque microgenético, que procurou
9
Em itálico no original.
29
abordar “transições e mudanças qualitativas da ação do sujeito, referentes às mediações
sociais/semióticas aí implicadas”. (Silva, 1998). As gravações foram transcritas com
fidelidade aos detalhes das imagens, falas, gestos e ações, possibilitando uma análise mais
aprofundada do contexto da sala de aula de Clara, das relações e interações registradas nas
filmagens.
A análise microgenética, segundo Góes (2000, p.9), é “uma forma de construção de
dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame
orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições
sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos”. É interessante
observar que tal abordagem metodológica me permitiu um contato mais detalhado com a
prática e modos de subjetivação profissional da professora ao possibilitar-me perceber a
gênese de pequenos modos de seu ser/fazer/saber profissional, revelando que, em suas ações,
Clara parecia ter consciência da importância de seu papel de mediadora. Como exemplo,
destaco a atenção voltada aos alunos, sempre com respeito e afetividade, enxergando-os como
crianças; o espaço destinado à brincadeira e a linguagens como a musical, por exemplo; a
preocupação em suscitar o interesse dos alunos pela aprendizagem, despertar a curiosidade e
dar sentido àquilo que era ensinado; diferentes e criativas formas de ensinar o conteúdo e de
alfabetizar, extrapolando o livro didático e buscando uma construção contextualizada e
integrada do conhecimento.
A prática pedagógica e o projeto de Clara indicavam uma docente em ininterrupto
processo de constituir-se, resultado de um movimento de construção pessoal e profissional
comprometido com a aprendizagem significativa, com o desenvolvimento de seus alunos,
com a educação
10
. Sua prática pedagógica diferenciada revelou-se extraordinária, pelo seu
caráter educacional e formativo, além de inovador.
10
Aqui entendida como “prática histórico-cultural de constituição do humano”. (Fontana, 2000a, p. 13).
30
No artigo resultante do relatório final da pesquisa, ressaltamos (Barreto e Silva, 2006)
que a constituição da subjetivação profissional pode ser investigada através da observação do
cotidiano da sala de aula do professor, por meio de recursos metodológicos que evidenciem o
processo de sua construção dialética. A subjetivação profissional de Clara está refletida em
sua ação educacional e pessoal através de sua prática, em uma construção constante e
dinâmica do seu ser/fazer/saber docente. Na ação pedagógica e nas interações entre
professora, alunos e todo o contexto escolar, foram sendo apresentados aspectos referentes às
dimensões teóricas e práticas, por meio de em gestos, falas, olhares e mediações dos sujeitos
participantes do contexto da sala de aula.
Em vista das análises, consideramos ao final da pesquisa que o projeto e a atuação
diferenciada de Clara estavam relacionados a novas apropriações e internalizações que a todo
o momento eram colocadas em prática e dialeticamente proporcionavam novas experiências,
daí as novas apropriações e internalizações referentes ao seu ser pessoa e professora. Tais
movimentos eram concernentes ao meio social, cultural, educacional em que Clara estava
inserida. As experiências eram construídas e vivenciadas de acordo com esse meio. (Barreto e
Silva, 2006).
Infelizmente, são raras as práticas pedagógicas que privilegiam a imaginação, o lúdico,
a integração do conhecimento, a formação humana, o sentido para a aprendizagem e o vínculo
afetivo entre professor e alunos no processo de ensino-aprendizagem, bem como o gosto pela
leitura, a fantasia, o respeito à infância e aos direitos da criança, ou seja, a aprendizagem e o
desenvolvimento satisfatórios e adequados. E foi nesse sentido que a prática de Clara chamou
a minha atenção, principalmente após conhecê-la atuando em sala de aula, quando novas
questões começaram a ser suscitadas.
Com base na referida pesquisa e de acordo com os pressupostos teóricos da psicologia
histórico-cultural, comecei a pensar que uma prática marcada pela afetividade, pela
31
criatividade, pela imaginação, pela fantasia e pelo respeito ao aluno não poderia existir sem
um percurso de vida e de constituição do ser pessoa e ser profissional coerente com tais
características. Acredito que não há como separar subjetivação profissional de formação
pessoal.
Todo este movimento da pesquisa sobre a prática diferenciada de Clara despertou a
minha curiosidade e instigou o interesse em entender o seu processo de subjetivação
profissional, agora por meio de um estudo aprofundado de sua história de vida e,
conseqüentemente, do percurso de seu desenvolvimento como um todo, pessoa e professora
em um contexto social mais amplo.
Deste modo cheguei à problemática principal da presente pesquisa: como Clara se
constituiu professora?
A partir desta pergunta, o desafio foi compreender como se deu o processo de
constituição profissional de Clara. Reitero que, pelos fundamentos da teoria histórico-cultural,
é nas e pelas interações com o outro que nos constituímos (Vigotski, 2000) e, por conseguinte,
parto do princípio de que ninguém nasce professor, mas torna-se professor por meio de
processos dinâmicos e mediados pela cultura, pelo meio social, pela própria história, pelo
outro, que atuam na constituição da subjetividade. Neste caso, da subjetivação profissional.
Dentro da perspectiva acima, escolhi como recurso metodológico a história oral de
vida que, segundo Meihy (1996, p.35), “trata-se da narrativa do conjunto da experiência de
vida de uma pessoa”. Tal recurso mostra-se coerente com os objetivos da pesquisa, quais
sejam, investigar e compreender a constituição de Clara como professora, percorrendo os
caminhos da construção de sua subjetivação profissional ao longo da vida, sem prescindir dos
aspectos pessoais envolvidos nesta construção.
Para responder à questão norteadora desta investigação, a proposta foi realizar uma
pesquisa qualitativa na forma de estudo de caso por via da história oral de vida.
32
Para justificar a escolha de uma única professora recorro a Ginzburg (1987, p.25) ao
escrever que alguns estudos biográficos mostraram que “um indivíduo medíocre, destituído de
interesse por si mesmo – e justamente por isso representativo – pode ser pesquisado como se
fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado período histórico...”.
Entretanto, assim como Menocchio, o moleiro pesquisado por Ginzburg, não era “um
camponês ‘típico’ (no sentido de ‘médio’, estatisticamente mais freqüente) do seu tempo”
(Ginzburg, 1987, p.25), Clara também apresenta uma singularidade (sócio-historicamente
situada) que conduziu a sua eleição como sujeito deste estudo. Além disso, o conhecimento
científico a partir de uma epistemologia qualitativa é legitimado pela qualidade da expressão
dos sujeitos ou do sujeito e não pela quantidade destes, como afirma González Rey (2002).
Ainda que Clara apresente condições semelhantes à maioria dos professores
brasileiros, ou seja, professora de escola pública com jornada dupla de trabalho, salários
baixos, falta de incentivo por parte das políticas públicas, ausência de recursos materiais e
didáticos, estrutura física inadequada nas escolas, falta de reconhecimento e incentivo
profissional, entre outros, ela conseguiu desenvolver um trabalho que se destaca pelos fatores
já mencionados. Ao contrário de grande parte dos docentes de nosso país, ela conseguiu
encontrar motivos e recursos para desenvolver sua profissão de forma criativa e
comprometida com a formação de pessoas alfabetizadas, que encontrem sentido e prazer na
leitura e na escrita. Acima de tudo, é uma atuação voltada para a formação de cidadãos
críticos e criativos. Por que ela é diferente? Por que, apesar de todas as dificuldades
apresentadas, ela encontra meios de promover a formação e aprendizagem de seus alunos? E
ainda, por que é uma professora comprometida com a constituição de pessoas que se sentem
valorizadas e capazes?
O professor e a escola têm papel fundamental na formação de novas gerações,
conforme destaca Marcovitch (2001), o que dependerá de uma escola mais integrada,
33
empreendedora e generosa. O que significa a valorização por parte de alunos e professores da
habilidade de aprender; aprender a conhecer, pensar, fazer, ser e viver com o outro. Uma
aprendizagem voltada para a busca de atitudes críticas, que saiba lidar com a expansão das
informações. Aprender a construir um pensamento independente baseado em valores que
dignifiquem o ser humano, aprender a transformar alternativas em soluções, a conseguir uma
harmonia entre as próprias exigências, do grupo social e da sociedade como um todo, a
cultivar a tolerância e o respeito ao próximo, favorecendo o enriquecimento coletivo. No que
tange aos professores, protagonistas do processo educacional, Marcovitch (2001, p.16)
enfatiza que “(...) Se a função da escola é forjar indivíduos criativos, e não apenas repetidores,
temos de exigir que este perfil seja comum aos professores de todos os níveis de ensino.”
A educação como ação transformadora tanto no espaço escolar quanto na prática
social mais ampla colabora e pode até ser decisiva para o desenvolvimento global do homem
como um ser capaz de construir e reconstruir o mundo em que vive. Para tanto, faz-se
necessário que a atuação profissional pedagógica seja compreendida em suas dimensões
político-sociais e que a formação docente seja problematizada, compreendida e incentivada.
De acordo com Martins (2007b), a relevância da educação escolar implica em
considerar a relação existente entre o processo educacional dentro da escola e a constituição
da subjetividade, processo em que o professor está diretamente envolvido.
A natureza social do homem demanda a educação escolar como possibilidade para a
humanização, para a criação das forças vivas da ação práxica, isto é, para o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores
11
, bases reais da subjetividade
dos indivíduos. A assunção desta tarefa implica o trabalho educativo como atividade
11
De acordo com Wertsch (1988), as funções psicológicas superiores são processos prioritariamente humanos,
tais como a atenção voluntária, a memória lógica, o pensamento abstrato e a vontade.
34
interpessoal, pressupõe professores e alunos frente a frente, numa relação mediada por
conhecimentos, atos e sentimentos intelectuais.
12
(Martins, 2007b, p.131).
O grande número de estudos voltados para a formação docente – Cunha (1995);
Nóvoa (1995a, 1995b e 1997); Gómez (1997); Schön (1997 e 2000); Zeichner (1998); Geraldi
et al. (1998); Fontana (2000a, 2000b, 2000c); Sadalla (1998 e 2000); Pereira (2000);
Mizukami e Reali (2002); Pimenta (2002) e Facci (2004) – mostra a importância desta
temática tanto na área da educação como na Psicologia Escolar e Educacional. Muito se tem
falado a respeito das tensões vivenciadas pelos docentes no cotidiano escolar e na formação
continuada para aqueles que já estão na sala de aula. Entretanto, algumas perguntas ainda
precisam ser respondidas, ao se considerar que a profissão docente não é dom nem vocação,
mas um ofício que se ensina e se aprende.
Então pergunto:
Como são formadas as professoras? Como são constituídas estas profissionais
indispensáveis ao cenário escolar e ao processo de escolarização e de humanização, tendo em
vista que é nas relações e através da mediação da cultura que o homem é de fato humanizado,
como preconiza a psicologia histórico-cultural?
Diante da importância da educação no contexto social e, em especial, da educação
fundamental como nível mais básico e responsável por um desenvolvimento satisfatório em
níveis vindouros, como a educação secundária e superior, Marcovitch (2001) vê a questão
educacional como um todo indivisível e considera o Ensino Fundamental como aspecto de
grande relevância neste cenário único. Neste sentido, afirma que “há uma conexão entre os
três níveis de aprendizado, e será muito difícil neutralizar a posteriori um ensino precário em
suas origens.” (Marcovitch, 2001, p.12).
12
Conforme explica Martins (2007b), conhecimentos, atos e sentimentos intelectuais são aqueles mobilizados
pela atividade mental requerida pela construção de conhecimentos. A autora ressalta ainda a importância de que
tais elementos sejam positivos em relação ao aprender e ensinar, tanto por parte dos alunos quanto dos
professores, como foi mencionado anteriormente.
35
Tais proposições são muito relevantes, uma vez que a protagonista desta pesquisa é
uma professora de Ensino Fundamental e que tem desenvolvido uma prática voltada
especialmente para a alfabetização, ou seja, alguém que atua no que Marcovitch (2001) está
denominando de ensino nas suas origens. Daí a importância de questionar e compreender
quais condições sociais, históricas e culturais foram panos de fundo para a trajetória de
constituição de Clara como professora. Conhecer e entender os caminhos percorridos por ela
pode auxiliar a compreensão sobre a formação docente de maneira geral, também nos
momentos anteriores à escolarização profissionalizante do magistério.
36
2. SUBJETIVAÇÃO PROFISSIONAL, MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL DE VIDA
...a história social dos homens nunca é
mais do que a história do seu
desenvolvimento individual, quer tenham
consciência disso ou não...
Marx – In: Oliveira (2001)
2.1. Subjetivação profissional
As pesquisas atuais sobre professores, tanto no exercício da profissão quanto em
relação a sua formação, referem-se cada vez mais à importância da subjetividade deste
profissional. É o que afirma Martins (2007a), lembrando que as características pessoais, as
vivências profissionais, as histórias de vida, a construção da identidade, dentre outros aspectos
da atuação e formação docentes, freqüentemente tornam-se objetos de investigação
educacional. Para estudar o ensino, continua a autora, deve-se levar em conta a subjetividade
do professor, mas é urgente trazer para esta discussão questionamentos acerca das reais
possibilidades de desenvolvimento e de objetivação que este encontra em sua vida.
A teoria histórico-cultural considera como importantes os elementos políticos,
econômicos, culturais e históricos na formação do psiquismo humano. Fundamentada no
materialismo histórico dialético, essa abordagem teórica apresenta alternativas à psicologia no
que diz respeito à redefinição do método de compreensão do fenômeno humano. Isto porque,
como afirma Silva (2002), é uma teoria em que as interações sociais têm importância
fundamental. Portanto, nessa abordagem só é possível entender o funcionamento psicológico
nas dimensões individual e social, pois essa teoria concebe o desenvolvimento humano como
o “movimento de apropriação de formas culturais mais elaboradas de atividade” (Silva, 2002,
p.28). Desse modo, temas como o desenvolvimento humano, a relação entre desenvolvimento
37
e aprendizagem, o processo de humanização e de subjetivação profissional são entendidos
como processos socialmente e dialeticamente construídos. (Tanamachi, 2007).
Sob tal perspectiva, ao falar da psicologia histórico-cultural, Martins (2007a) afirma
que nesta o mundo é visto como objeto da práxis humana, e não como objeto de mera
percepção e contemplação passiva do homem. “Deste modo, a práxis é o fundamento da
existência humana e, conseqüentemente, do desenvolvimento do psiquismo e da
personalidade.” (Martins, 2007a, p.143). Portanto, como considero o professor como ser
humano, homem ou mulher exercendo uma profissão, é preciso ter em mente que o seu
desenvolvimento, a formação de sua personalidade, de sua identidade, do seu ser professor
são fundamentados em uma práxis real, concreta, nas e pelas relações inerentes a sua história
de vida em âmbito pessoal e profissional. A autora salienta que
Marx (...) afirma a atividade humana como atividade objetiva, sensorial, real, isto é,
como práxis, e o mundo dos objetos, a ser então apropriado pelos homens, como a
própria objetivação teórico-prática da essência humano-genérica. A realidade objetiva,
a sociedade e as relações que a constituem são produtos da atividade humana,
inexistindo fora da história, das relações sociais de produção. (Martins, 2007a, pp.
142-143).
Tais fundamentos levam ao entendimento da essência humana como relação, como
descreve Martins (2007a), o que pressupõe entendê-la dialeticamente, “como movimento,
como produção recíproca, isto é, como processo criador alimentado exatamente pelas
contradições que a singularidade e a universalidade encerram” (Martins, 2007a, p.141). Para a
autora, o ser humano efetivamente considerado como conjunto das relações sociais não se
furta de estar junto com outros homens e de organizar historicamente o modo desta união. E
prossegue:
38
Conceber a essência humana como conjunto das relações sociais implica reconhecer
que essas relações são produzidas pelos homens e por meio da atividade consciente,
encontrando-se na base dessas relações as relações sociais de produção. Este dado
apresenta de modo implacável a conexão entre a subjetividade e a atividade vital do
homem, pela qual ele constrói a si e a seu mundo. (p.141).
Conforme assinala Martins (2007a), para que o ser humano exista, este precisa
satisfazer suas necessidades implementando atividades de troca com a natureza e com os
outros indivíduos, ou seja, para formar-se e desenvolver-se necessita de uma sociedade.
Assim, entendo que problematizar a constituição profissional de uma professora
significa pensar nos processos de construção e desenvolvimento de seu psiquismo, levando
em consideração a mediação de outros seres humanos e do mundo concreto, histórico e social
constitutivos destes processos.
Elejo a teoria histórico-cultural e Vigotski
13
seu representante como referência
fundamental para tentar responder à principal pergunta desta pesquisa: Como Clara se
constituiu professora?
Vigotski (2000, p.24) postula: “através dos outros constituímo-nos”. E explica que
... a personalidade torna-se para si aquilo que ela é em si, através daquilo que ela antes
manifesta como seu em si para os outros. Este é o processo de constituição da
personalidade. Daí está claro, porque
14
necessariamente tudo que é interno nas funções
superiores ter sido externo: isto é, ter sido para os outros, aquilo que agora é para si.
(...) Qualquer função psicológica superior foi externa – significa que ela foi social;
antes de se tornar função, ela foi uma relação social entre duas pessoas. (Vigotski,
2000, p.24).
13
A psicologia histórico-cultural possui outros importantes representantes como Luria, Leontiev, Bakhtin, que
trariam significativas contribuições para esta pesquisa. Entretanto, no momento será feita uma interlocução com
Vigotski, ficando os outros autores para trabalhos futuros.
14
Em itálico no original.
39
Temos então o que Meira (2007) denomina tese central de Vigotski, quando diz que
para o autor as formas superiores do comportamento consciente do ser humano têm suas
origens nas relações sociais do indivíduo com o mundo exterior. Sendo assim, o verdadeiro
curso do desenvolvimento não é do individual para o social mas, inversamente, vai do social
para o individual.
O desenvolvimento do psiquismo humano, conforme reitera Rego (2003), é sempre
mediado pelo outro, que indica, delimita, sugere, e atribui significados à realidade. As
relações sociais, as relações eu-outro são condições para o desenvolvimento por meio da
mediação. Pino (2000, p.32) afirma que “num sentido amplo mediação é toda a intervenção de
um terceiro “elemento” que possibilita a interação entre os “termos” de uma relação”. O autor
destaca que neste processo de desenvolvimento histórico-cultural, as três formas de mediação
que podem ocorrer são a mediação instrumental, que permite a ação indireta sobre o mundo
através de instrumentos; a mediação semiótica, que permite a passagem do plano social ao
pessoal, ao ser convertido o fato natural em cultural por via da significação, ou seja, quando
algo é nomeado e representado e passa a existir para o homem; e por fim, a mediação social,
que remete a uma relação que acontece por meio de objetos, instrumentos e da linguagem,
através da participação do outro no processo de desenvolvimento humano.
Pode-se afirmar que a mediação é o que possibilita a interação em uma relação social
(Pino, 2000) e, desta forma, possibilita a humanização, uma vez que, como destaca Fontana
(2000b), é através da mediação de gestos, atos e palavras do outro que a criança é integrada às
atividades de sua cultura, ao ter acesso ao mundo de significações no qual se vê inserida desde
o seu nascimento.
Nesse sentido, Martins (2007a) apresenta o professor como indivíduo mediado pelas
relações sociais, em estudo sobre a constituição social da personalidade deste profissional, no
qual evidenciou que nem dados biológicos nem circunstâncias sociais podem explicar por si
40
só a subjetividade humana. Ainda que estas vertentes dêem suas contribuições, não
conseguem abarcar o fenômeno em sua totalidade concreta, porque dicotomizam
singularidade e socialidade, indivíduo e gênero humano.
É fato existir no indivíduo uma singularidade irredutível às coordenadas sociais, mas a
essência, o ser desta singularidade, é exatamente sua constituição genérica, uma vez
que o homem apenas se individualiza através do processo histórico-social, e não
apesar ou em detrimento dele. Isto é, existe intervinculação e interdependência entre
singularidade e socialidade na medida em que o indivíduo é um ser social singular
única e exclusivamente porque é um ser social genérico. (Martins, 2007a, pp.141-142).
A singularidade contém em si a socialidade, e a socialidade pode ser descrita como
formada e formadora de singularidades. A constituição daquilo que é característico do
humano e, neste, do profissional, diz respeito a uma dinâmica dialética entre o singular e o
social, entre o universal e o particular, entre singularidade e universalidade.
Ao falar a respeito da dialética do singular-particular-universal, Oliveira (2001)
assinala que na concepção histórico-social de homem, a relação indivíduo-sociedade pode ser
compreendida somente como uma relação inerente a uma outra relação mais ampla, a relação
indivíduo-genericidade, ou seja, a relação do homem com o gênero humano. A relação
indivíduo-genericidade, segundo a autora, inclui necessariamente a relação de cada
indivíduo com as objetivações humanas. Isto quer dizer que cada indivíduo se relaciona com
as objetivações que foram concretizadas historicamente pelos homens através das gerações,
ao longo de toda a história da humanidade.
São objetivações que precisam ser apropriadas, pelo indivíduo, para que possa
dominar o sistema de referências do contexto em que vive e, assim, objetivar-se como
sujeito ativo e participante das transformações desse contexto. Mas para que isso possa
ser compreendido nas suas múltiplas relações, é preciso considerar que todo esse
41
processo entre o indivíduo (o singular) e o gênero humano (o universal) se concretiza
na relação que o indivíduo tem com a sociedade (o particular). (Oliveira, 2001, pp.3-
4).
Para tratar da constituição profissional de Clara, nestes termos, é imprescindível
contextualizar esta professora, inserindo-a em seu tempo e espaço de formação. Mais do que
isso, faz-se necessário compreender o processo de constituição pessoal/profissional de Clara
em sua singularidade, o que quer dizer, nas palavras de Oliveira (2001), considerar o singular
em sua relação com o universal. Para a autora, o singular não existe em si e por si. Existe
somente na relação intrínseca com o universal, relação esta que só se estabelece através de
mediações entre o indivíduo e a sociedade. O universal, por sua vez, só existe quando se
concretiza no singular, continua a autora. “No indivíduo está sintetizado a particularidade (as
mediações sociais) e a universalidade (a genericidade) que foi possível ao individuo
apropriar-se.” (Oliveira, 2001, p.20).
Olhar para o fenômeno humano por este prisma significa romper com a linearidade e
perceber as contradições, explicar o homem e a sociedade em relação e como unidade e luta
de contrários que se constituem mutuamente. Conforme aponta Martins (2007a),
... o indivíduo humano só existe como tal porque as atividades que implementa para
satisfazer suas necessidades pressupõem um necessário intercâmbio com a natureza e
com os outros indivíduos, isto é, só se realiza ante uma sociedade lhe permite formar-
se e desenvolver-se. (p.141).
Em face disso, um estudo referente à subjetivação profissional de uma professora, à
luz dos pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural, realizado por meio da
orientação teórico-metodológica da história oral de vida é o desafio a que se propõe o presente
trabalho. Desafio, porque a pesquisa trabalha com a história oral de vida, um recurso pouco
42
utilizado em estudos dessa natureza, especialmente no campo da Psicologia Escolar e
Educacional.
15
Não me propus a realizar um mero estudo biográfico a respeito da história de uma
professora, mesmo reconhecendo a sua importância. Para além disso, este trabalho considera
que a história narrada por ela representa uma reconstrução mnemônica de sua experiência
pessoal e profissional, em seu contexto social, histórico e cultural, a partir do presente. Nessa
reconstrução, de acordo com a orientação teórica deste trabalho, vários mediadores poderão
ser apontados como fundamentais na constituição de sua memória, de sua subjetividade, de
sua singularidade e, portanto, de sua subjetivação profissional. Fontana (2000a) ressalta, nesse
percurso de formação docente, que:
Focalizada a partir do movimento de monologização, a ilusão de unidade do sujeito se
dilui: somos povoados por múltiplas vozes; vozes dos outros, que nos constituem,
vozes dos múltiplos papéis sociais que desempenhamos, vozes da história que ecoam
em nós e nos significam. O outro, próximo ou distante, fala em nós, do mesmo modo
que também falamos nos/pelos outros”. (p.64).
E para compreender o processo de constituição da subjetividade de Clara, esta
professora do Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de Uberlândia/MG, cabe
considerar os aspectos referentes à constituição dialética e sócio-histórico-cultural de seu
ser/saber/fazer docente, a plurideterminação de sua subjetividade que sua história de vida
“memoralizada”, mediada, significada, pode mostrar.
15
Nos Anais dos Congressos Nacionais da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional –
ABRAPEE (2007, 2005, 2003, 2000, 1998, 1996, 1994 e 1991) não foram encontrados trabalhos sobre história
oral de vida e formação de professores.
43
2.2. Memória
Professores são contemporâneos de seu
próprio tempo e contexto, como também
são memória.
Teixeira (1999)
Para abordar o processo de subjetivação profissional de Clara pela via da história oral
de vida, é necessário destacar a memória como função psicológica constituída socialmente.
De acordo com Batista (2002, p.239), “relatar o vivido traz a incumbência de assumir que a
memória traduz significados e condições socialmente determinadas que se imbricam e
possibilitam delinear uma história que é pessoal e, dialeticamente, coletiva”. Percorrer os
caminhos de subjetivação profissional de Clara significa observar a constituição de um modo
de pensar e ser/saber/fazer docente que é ao mesmo tempo singular e marcado pela
coletividade. A maneira como Clara constrói sua história estão aqui traduzidos por meio de
sua memória, considerando as condições socialmente determinadas e as significações
elaboradas pela professora.
De acordo com Vigotski (2000), o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre
mediado pelo outro. Sendo assim, através dessas mediações, os indivíduos apropriam-se do
patrimônio social, histórico e cultural da humanidade que, uma vez internalizados,
configuram-se como processos voluntários e independentes, sem a necessidade de
intermediações. Para se objetivarem como seres humanos (pertencentes ao gênero humano),
os indivíduos devem se apropriar das objetivações histórica e socialmente elaboradas pela
humanidade. (Tanamachi, 2007, p.81).
Em seus estudos, Vigotski esteve voltado de forma especial para o que ele chamou de
funções psicológicas superiores. Para o autor, as funções psicológicas superiores podem ser
descritas como processos mentais sofisticados relacionados a ações conscientemente
controladas, mecanismos intencionais e processos voluntários. (Vygotsky, 1988). São
44
originadas nas relações sociais e desenvolvidas mediante a internalização da cultura, não
sendo, portanto, inatas. Diferentemente dos processos psicológicos elementares, que possuem
origem biológica e envolvem ações reflexas e associações simples presentes em crianças
pequenas e animais, é um modo de funcionamento psicológico particularmente humano, com
características como o controle consciente do comportamento, a capacidade de planejamento,
atenção e lembrança voluntárias, memorização ativa, pensamento abstrato, raciocínio
dedutivo e imaginação.
As funções psicológicas superiores são aquelas que, segundo Vigotski, vão além dos
limites das funções psicológicas impostas pela natureza (Vygotsky, 1988), isto é, à medida
que “o indivíduo vai apropriando-se de novas atividades e novas formas de relações com o
mundo pelas quais desenvolve modelos culturais de comportamento” (Martins, 2007b, p.126),
as funções psicológicas primárias de que o indivíduo dispõe ao nascer vão sendo
complexificadas.
Vigotski (apud Wertsch, 1988, p.42) expõe os quatro critérios principais que usou para
diferenciar as funções psicológicas elementares das superiores: 1) a emergência da regulação
voluntária, ou auto-regulação; 2) o surgimento da realização consciente dos processos
psicológicos; 3) a origem e natureza social das funções superiores, e 4) o uso mediador dos
signos.
Vigotski (2000) considera que os processos psicológicos aparecem duas vezes no
desenvolvimento; primeiro no plano social, como processo interpessoal ou interpsicológico, e
posteriormente no plano individual, como processo intrapessoal ou intrapsicológico. Portanto,
nas palavras do autor, “qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em
cena duas vezes
16
(...) primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois –
16
Em itálico no original.
45
dentro da criança”. (Vigotski, 2000, p.26). Para Vigotski, esta é a lei geral para todas as
funções psicológicas superiores.
É importante destacar que o autor alerta para a evidência de que a passagem de fora
para dentro, do plano social para o plano individual, do interpessoal para o intrapessoal,
transforma o processo psicológico. Esta transformação é o que possibilita explicar a diferença
entre funções psicológicas elementares e funções psicológicas superiores. “O individual, o
pessoal – não é ‘contra’ mas uma forma superior de sociabilidade.” (Vigotski, 2000, p.27).
Logo, falar de funções psicológicas superiores significa falar de atividades mediadas
por signos. O que é internalizado é aquilo que foi apropriado nas relações interpessoais e que,
ao ganhar significado, ao ser representado, passa a constituir o psiquismo do indivíduo, passa
do plano externo e interpessoal para o plano interno e intrapessoal; passa a ter significado
pessoal e interno, uma vez que mediado por signos.
Para Vygotski, (...) a atividade humana não é internalizada em si, e sim como
atividade significada, tal como um processo social, mediado semioticamente. A
consciência, dessa forma, é semioticamente estruturada, resultado dos próprios signos,
ou seja, de instrumentos construídos pela cultura e pelos outros que, quando
internalizados, se tornam instrumentos internos e subjetivos da relação do indivíduo
consigo mesmo. Signo é, pois, entendido neste caso como tudo aquilo que possui um
significado e que remete a algo situado fora de si mesmo: é o elemento que integra as
funções psicológicas superiores. (Aguiar, 2000, p.130).
Segundo Smolka (2000, p.185), o signo incide necessariamente onde existe imagem,
imaginação, imaginário, memória. Isto porque a memória e a história são possíveis justamente
no/pelo discurso, uma vez que modos específicos de ações são constituídos pela palavra,
“signo por excelência”. Vygotsky (1988, p.58) ressalta que “a verdadeira essência da memória
46
humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda
de signos”.
Braga (2000) desenvolveu um estudo sobre a constituição social da memória a partir
da psicologia histórico-cultural, especialmente dos estudos de Vigotski. A autora diz que na
psicologia russa, Vigotski, Luria e Leontiev atribuíram um caráter sociocultural à memória.
“Eles enfatizam uma visão de recordação, memorização e esquecimento como
trabalhos/processos construídos culturalmente, em termos de seu conteúdo e sua estrutura.”
(Braga, 2000, p.18). Desta forma, contestam a noção idealista de memória humana como
capacidade mental pré-existente e concebem-na como um processo que se constitui na
dinâmica social.
Para compreender melhor esta concepção de memória, faz-se necessário evidenciar
que Vigotski (Vygotsky, 1988) aponta dois tipos fundamentais de memória. O primeiro deles
é a memória natural, que pode ser caracterizada pela impressão não mediada de materiais e
signos, tendo como base dos traços mnemônicos a retenção das experiências reais. A memória
natural, segundo o autor, aproxima-se muito da percepção, com o processo caracterizado pela
qualidade do imediatismo, pois aqui surge como conseqüência “da influência direta dos
estímulos externos sobre os seres humanos”. (Vygotsky apud Wertsch, 1988, p.42).
A memória enfocada no presente estudo, porém, é descrita por Vigotski como
memória mediada, ou seja, memória constituída a partir de operações com signos que são
produto das condições específicas do desenvolvimento social. (Vygotsky, 1988). “Elas
estendem a operação de memória para além das dimensões biológicas do sistema nervoso
humano, permitindo incorporar a ele estímulos artificiais ou autogerados, que chamamos de
signos.” (Vygotsky, 1988, p.44).
Vigotski (1998, p.42) afirma ainda que, “em termos psicológicos, não há dúvida de
que, quando memorizamos algo diretamente e quando o fazemos com a ajuda de qualquer
47
estímulo complementar, trata-se de duas operações distintas”. A memória mediada por signos
estaria relacionada a qualidades psíquicas como a imaginação e o pensamento, que na
memória imediata não têm papel relevante. Tal constatação se deve a análises que foram
realizadas com crianças e demonstraram que, para memorizar de forma mediada por signos, é
necessário que possuam uma imaginação rica e uma forma de pensamento desenvolvido.
(Vigotski, 1998).
Como função psicológica semioticamente mediada, a memória de Clara a respeito de
sua história de vida é um dos elementos de destaque nesta pesquisa. Tendo em vista a
afirmação de Bakhurst (apud Braga, 2000, p.105) de que deve-se “ver a estrutura da memória
mediada como narrativa
17
, cabe frisar que é na narrativa oral da história de vida da
professora que buscarei os elementos para poder entender os processos de sua subjetivação
profissional. A memória mediada, função psicológica superior, torna-se o elemento principal
nos relatos aqui analisados. Como afirma Bosi (1987, p.17), “na maior parte das vezes,
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e idéias de hoje, as
experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”.
Ao falar de sua história de vida, Clara precisa lembrar-se do que viveu. Esta
lembrança, contudo, é ativa e está relacionada aos sentidos atribuídos por ela quando da
apropriação e internalização de suas experiências, sentidos que foram memorizados e que são
recordados. A professora se vê hoje e pensa o ser professora hoje, a partir de suas condições
afetivas, cognitivas e sociais, condições estas às vezes muito distantes daquelas em que
ocorreram os fatos narrados. Conforme enfatizam Asbahr e Souza (2007),
A passagem do mundo social ao mundo psíquico não se dá de maneira direta, o mundo
psíquico não é cópia passiva do mundo social, isto é, as significações sociais
compartilhadas por meio da linguagem não são apropriadas imediatamente pelos
17
Em itálico no original.
48
homens. Essa apropriação depende do sentido pessoal atribuído às significações
sociais. (p.191).
A consciência, entretanto, reflete a realidade e as relações entre indivíduo e cultura a
partir do sentido pessoal que aquele ativamente atribui às suas relações com o mundo
concreto, social, cultural e histórico (Asbahr e Souza, 2007). O sentido pessoal é originado
pela vida do sujeito concreto, mediado pelas significações que somente podem existir pela
consciência das pessoas, concluem as autoras.
A memória, então, de acordo com Vigotski, é uma importante função psicológica
superior que também constitui a consciência e é semioticamente estruturada. (Vygotsky,
1988). No processo de reconstrução da memória, o que vem à tona são internalizações e
apropriações do sujeito em relação à própria história de vida. Pode-se dizer, assim, que é uma
maneira de configuração dos processos de subjetivação. Através das atividades mediadas
semioticamente, “(...) o que ocorre não é a internalização de algo de fora para dentro, mas a
conversão de algum elemento da realidade social, em algo que mesmo permanecendo quase
social se transforma num elemento constitutivo do sujeito.” (Aguiar, 2000, p.132).
Asbahr e Souza (2007) chamam a atenção para a relação entre significação social e
sentido pessoal como componente central da consciência humana. Nas relações entre a
consciência e a atividade – afirmam as autoras –, “a consciência é forma especificamente
humana do reflexo psíquico da realidade, ou seja, é expressão das relações do indivíduo com
o mundo social, cultural e histórico”. (Asbahr e Souza, 2007, p.191).
Rego (2003, p.28) ressalta que o modelo vigotskiano, ao evidenciar a apropriação da
cultura por meio da linguagem, principalmente, coloca em destaque o papel da aprendizagem
em relação ao desenvolvimento das funções psíquicas. Na perspectiva de Vigotski, o
desenvolvimento é possibilitado, impulsionado pela aprendizagem e “o ‘bom aprendizado’ é
somente aquele que se adianta ao desenvolvimento”. (Vygotsky, 1988, p.101).
49
Tal pressuposto refere-se a um conceito fundamental de Vigotski, denominado zona de
desenvolvimento proximal
18
, a ZDP. Em síntese, o autor considera que existem dois níveis de
desenvolvimento: o nível de desenvolvimento real, caracterizado pela “solução independente
de problemas”, e o nível de desenvolvimento potencial, em que os problemas são
solucionados sob a orientação de alguém mais capaz ou experiente. A ZDP é a distância ou a
diferença entre os dois níveis. (Vygotsky, 1988).
Sendo assim, a aprendizagem é responsável por criar a zona de desenvolvimento
próximo, porque a criança pode colocar em movimento vários processos de desenvolvimento
ao entrar em contato com outras pessoas, processos estes que não ocorreriam sem a ajuda
externa, sem a interação com adultos ou crianças mais capazes. A partir daí, os processos são
internalizados e passam a compor o desenvolvimento individual. Nesta relação, um novo
nível de desenvolvimento real é criado e, conseqüentemente, uma nova ZDP. (Vygotsky,
1988).
...Desse ponto de vista, aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado
adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento
vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de
acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de
desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e
especificamente humanas. (Vygotsky 1988, p.101).
Para elucidar o conceito de zona de desenvolvimento próximo, o autor destaca a
imitação, dizendo que esta deve ser considerada e até mesmo reavaliada em seu papel relativo
ao aprendizado (Vygotsky, 1988). A imitação, neste caso, remete ao fato de que as “crianças
podem imitar uma variedade de ações que vão muito além dos limites de suas próprias
capacidades. Numa atividade coletiva ou sob a orientação de adultos, usando a imitação, as
18
São utilizados como sinônimo da zona de desenvolvimento proximal expressões como zona de
desenvolvimento potencial e zona de desenvolvimento próximo, sendo a última a mais utilizada atualmente.
Doravante o conceito será referido como ZDP.
50
crianças são capazes de fazer muito mais coisas” (Vygotsky, 1988, pp.98-99). Pensada desta
forma, a imitação refuta um princípio da psicologia clássica dito por Vigotski como intocável
e presente em avaliações do desenvolvimento mental ainda nos dias atuais – avaliações
baseadas naquilo que as crianças conseguem realizar sozinhas, sem a assistência de outrem e,
portanto, sem o fornecimento de pistas. Este tipo de concepção de imitação e de
aprendizagem está na contramão do que Vigotski (Vygotsky, 1988) propõe, pois constituem
processos somente mecânicos.
Desta forma, tais conceitos e pressupostos de Vigotski são fundamentais para o campo
da psicologia e da educação, inclusive por sua importância em relação à formação e atuação
docente. De acordo com o autor (Vygotsky, 1988), geram a mudança em conclusões
referentes às avaliações do desenvolvimento humano, sendo muito relevante no que diz
respeito às relações dinâmicas e complexas entre desenvolvimento e aprendizagem.
51
2.3. História oral de vida
Conversarão da forma mais delicada e menos
fatigante de todas; sem perguntas; sem
respostas; num desenrolar de pensamentos e
lembranças que unifica os planos do tempo;
num formar e combinar imagens que nenhum
diretor cinematográfico jamais conseguiu nem
conseguirá tão perfeito.
Carlos Drummond de Andrade – A bolsa e a vida
A história oral de vida é considerada aqui como um importante meio para se entender
a constituição do indivíduo em sua totalidade, de acordo com os pressupostos da psicologia
histórico-cultural. “Trata-se, neste caso, de adotar uma visão de indivíduo concreto, mediado
pelo social, determinado histórica e socialmente, que não pode jamais ser compreendido
independentemente de suas relações e vínculos” (Aguiar, 2000, pp.126-127), bem como de
suas condições materiais de vida.
Neste trabalho, adoto a história oral de vida como caminho metodológico para a
construção de dados que possibilitem o estudo da subjetivação profissional de Clara, a partir
da memória
19
de suas experiências.
Na perspectiva teórica desta pesquisa, a análise da narrativa da história de vida de
Clara e, nesta, das recordações referentes à memória da professora, é relevante, pois, como
afirma Silva (2003, p.51), as narrativas como atos de linguagem e de significação do mundo
“permitem a construção dinâmica e simultânea de sentidos de identidades pessoais e de
relações sociais”, mostrando-se como “instrumento especial para vincular cultura e mente,
pessoal e social, na sua constituição dialética” (Silva, 2003, p.51). A história de vida
reconstituída na narrativa apresenta-se como recurso privilegiado de reconstrução da memória
de Clara e, nesta, de sua subjetivação profissional.
19
A partir deste trecho, a palavra memória deve ser lida como memória mediada.
52
Em um estudo realizado com presidiários por meio da história oral de vida, Resende
(2002) afirma que as narrativas biográficas – expressão utilizada analogamente para designar
história oral de vida – possibilitam a visão do sujeito relacionando-se com sua história pessoal
e com a história de seu tempo, constituindo-se nessa relação. “Pode-se compreender e
aprender um pouco sobre a sociedade e sua construção cultural por intermédio da
especificidade de uma experiência individual” (Resende, 2002, p.36). As narrativas
biográficas ainda permitem, de acordo com o autor, o acesso a informações e pontos de vista
particulares, mas que carregam em si traços comuns ao corpo social a que pertencem os
narradores.
É importante esclarecer que a história oral de vida é uma modalidade da história oral.
Meihy (1996, p.13) descreve a história oral como “um recurso moderno usado para a
elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes à vida social de pessoas”. O
autor destaca que o depoimento gravado é a base da existência da história oral. Sendo assim,
três elementos constituem sua condição mínima: o entrevistador, o entrevistado e a
aparelhagem da gravação. O depoente é o sujeito primordial e tem maior liberdade para
dissertar o mais livremente possível sobre sua experiência pessoal. Então deve ser dado ao
depoente espaço para que sua história singular seja encadeada segundo sua vontade.
Meihy (1996) argumenta que a história oral é um recurso que tem permitido que
pessoas comuns encontrem espaço para suas palavras, como forma também de dar sentido às
próprias experiências vividas sob diferentes circunstâncias; e, segundo o autor, este ainda é
um recurso relativamente novo e pouco utilizado no Brasil. Oliveira (2005) aponta que há
poucos pesquisadores da área da educação trabalhando com história oral, sendo este recurso
mais freqüente nas áreas da história, da antropologia, da geografia e da sociologia. Na área da
psicologia existem alguns estudos, dentre os quais se destaca o estudo de Ecléa Bosi (1987),
53
“Memória e sociedade: lembranças de velhos”, que é considerado pioneiro em história oral no
Brasil.
Discorrendo a respeito do papel da singularidade, que se constitui como realidade
diferenciada na história da constituição subjetiva do indivíduo, González Rey (2002) afirma
que, quando trabalhamos com o sujeito como singularidade, o identificamos como forma
única e diferenciada de constituição subjetiva. Para o autor, “a subjetividade é um processual
plurideterminado, contraditório, em constante desenvolvimento, sensível à qualidade de seus
momentos atuais, a qual tem um papel essencial nas diferentes opções do sujeito” (González
Rey, 2002, p.37). Ainda segundo o autor, a subjetividade é um sistema aberto e em
desenvolvimento que caracteriza também a constituição dos processos sociais, um sistema de
sentidos e significações subjetivos em que se organiza a vida psíquica do sujeito e da
sociedade, e não uma organização intrapsíquica que se esgota no indivíduo. Nesse sentido,
A história oral recupera aspectos individuais de cada sujeito, mas ao mesmo tempo
ativa uma memória coletiva, pois, à medida que cada indivíduo conta a sua história,
esta se mostra envolta em um contexto sócio-histórico que deve ser considerado.
Portanto, apesar de a escolha do método se justificar pelo enfoque no sujeito, a análise
dos relatos leva em consideração (...) as questões sociais neles presentes. (Oliveira,
2005, p.94).
Conforme escreve Silva (2003, p.71), a “subjetividade constitui-se num lugar único da
articulação das diferentes vozes dos outros e a pessoa guarda a dialogicidade e multiplicidade
dessas vozes (...)”. Desse modo, cabe investigar no relato de Clara os rumores de outras
vozes, ecos de suas relações.
54
2.4. Delineamento metodológico
As diversas vozes que narram por meio de apenas uma voz, a de Clara, foram
registradas durante a entrevista de história oral de vida da professora. Compõem os dados
utilizados para as análises, as gravações (registro oral) e transcrições (registro escrito) da
entrevista e o material da pesquisa de Iniciação Científica mencionada anteriormente
20
.
Para realizar a presente pesquisa, o primeiro procedimento foi a assinatura dos Termos
de Consentimento Livre e Esclarecido pela professora pesquisada e pela instituição em que
ela trabalha, e onde foram realizadas as sessões da entrevista de história oral de vida.
Após o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de
Uberlândia, foi agendada uma visita à escola com o objetivo de combinar com a professora os
dias, horários e local adequado para as sessões da entrevista, que foram marcadas de forma
que não causassem prejuízo ao trabalho da docente e em local que garantisse a privacidade e
sigilo dos dados.
Garantido o espaço para a entrevista, os dados foram registrados com o uso de um
gravador, e posteriormente transcritos. O local definido para a narração da história oral de
vida foi a biblioteca da escola A duração de cada sessão da entrevista foi de uma hora (em
média), respeitando as necessidades e conveniências da entrevistada. O total de sessões não
foi predeterminado, mas dependeu da duração do relato da professora. A entrevista foi
suspensa quando a narrativa de Clara chegou aos dias atuais; ela deu por terminado o relato e
eu me considerei satisfeita com o material acerca de sua história de vida. Bogdan e Biklen
(1994) referem-se à saturação dos dados, momento em que o investigador percebe que o
20
Segundo o professor Wanderley Geraldi (UNICAMP), no Brasil geralmente há um grande número de material
de pesquisa que fica arquivado após o término da investigação e que poderia ser utilizado pelo próprio
pesquisador ou por outrem para aprofundar o conhecimento e gerar novas pesquisas. Neste sentido, a intenção
aqui é aproveitar o material da pesquisa anterior para auxiliar na análise dos dados. Vale lembrar que o sigilo e
anonimato dos envolvidos será resguardado.
55
conteúdo da pesquisa até aquele momento é suficiente para iniciar e sustentar o processo de
análise.
A história de vida de Clara foi narrada em um total de seis sessões, sendo a última
sessão orientada por um roteiro de perguntas, construído a partir das outras cinco sessões que
transcorreram sem a minha intervenção, por ser um procedimento coerente com os
pressupostos da metodologia adotada. Diante da escuta durante a entrevista, da transcrição das
falas, e das sugestões apresentadas no exame de qualificação, emergiram dúvidas,
curiosidades e propostas de aprofundamento de elementos constitutivos da história de Clara.
Por tais razões, realizei a sexta sessão sob a forma de entrevista semidirigida. As perguntas
direcionadas a Clara buscaram esclarecer aspectos como o papel que ela atribuía à família em
sua escolha e formação profissional; a sua relação com a escola e com a educação; as
características das pessoas que a marcaram e em que contextos, principalmente as professoras;
o que significou criar o seu projeto; como ela vê/entende a construção de sua prática como um
todo, especialmente a atenção voltada para despertar o interesse em seus alunos; o que ela
considera importante na formação de professores; enfim, como percebe o próprio processo de
subjetivação profissional em relação ao que ela mesma narrou em sua história oral de vida.
De acordo com os dados construídos na entrevista de história de vida e levando em
consideração a análise dos materiais da pesquisa anterior, foram realizadas análises
qualitativas em caráter minucioso e atento, procurando compreender quais aspectos foram
mais relevantes na constituição profissional de Clara e quais foram os principais mediadores
em seu processo de subjetivação profissional, identificados a partir do seu relato. Estes
aspectos, observados por sua recorrência nos dados, sinalizaram temas principais que foram
agrupados para a construção de categorias a serem discutidas na análise dos dados, de modo
que pudessem subsidiar a compreensão acerca do processo de constituição profissional da
professora.
56
Para chegar às categorias de análise, as sessões da entrevista foram ouvidas e
transcritas por mim de forma cautelosa. Após a transcrição, foram impressas e comparadas
com as gravações, observando se a digitação das falas e a descrição das diversas expressões
da professora (como risos, pausas etc.) estavam de acordo com o registro oral. Feita a revisão
e correções na escrita de alguns trechos, a entrevista foi novamente impressa.
Foram destacados os trechos relacionados ao objetivo da pesquisa, a partir de leitura
atenta, com grifos em lápis de diferentes cores, na busca de responder à pergunta inicial
21
do
presente estudo. Os temas encontrados, sempre relacionados a Clara, foram: a família; as
professoras; reflexões atuais da professora Clara; comparação com modelos de professora; sua
relação com histórias e literatura, criatividade/fantasia/imaginação; construção de narrativas;
gênese da prática pedagógica; a aluna Clara; relações com o aprender;
estereótipo/preconceito/decepções na escola; concepções a respeito da escola; dificuldades
enfrentadas no âmbito educacional. Diante destes temas, percebi que eles poderiam ser
agrupados em três grandes categorias, que se apresentaram como as principais trazidas por
meio de sua história oral de vida.
Assim cheguei às três categorias de análise referentes à constituição de Clara como
professora: A família de Clara; As professoras de Clara; Clara, a professora. Os episódios
referentes aos temas destacados foram recortados e posteriormente colados de acordo com as
categorias às quais estavam relacionados, formando uma espécie de fichas das categorias. Em
uma perspectiva dialética, porém, esta separação tem caráter meramente didático, uma vez
que o processo de constituição se dá no movimento, na dinâmica das interações sociais.
Para a análise da constituição de Clara como professora, portanto, sua narrativa foi
dividida em três categorias. A primeira diz respeito a suas relações com a família e foi
nomeada “A família de Clara”. A segunda refere-se às experiências vivenciadas na escola e
21
Como Clara se constituiu professora?
57
com os professores, desde a infância até a formação profissional, com ênfase nas professoras
que encontrou nesse percurso. Esta categoria foi intitulada “As professoras de Clara”. A
terceira e última categoria, “Clara, a professora”, apresenta Clara como professora em seu
processo constante e dialético de constituir-se, bem como a sua prática pedagógica.
58
3. (RE)CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA, UMA MÉMORIA
O relembrar é uma atividade mental que não
exercitamos com freqüência porque é desgastante ou
embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na
rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa
identidade, não obstante muitos anos transcorridos, os mil
fatos vividos. [...] Se o futuro se abre para a imaginação,
mas não nos pertence mais, o mundo passado é aquele
no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos
buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre
nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade.
Bobbio – In: Delgado (2006)
Reconstruir uma identidade, reconstruir uma história... Ou melhor, a memória de uma
história. Traduzir em palavras aquilo que eu construí acerca da subjetivação profissional de
Clara, mediada pela pesquisa e nesta, pela história oral de vida e pelos pressupostos teóricos
da abordagem histórico-cultural, especialmente pela apropriação dos conceitos de Vigotski até
o momento, é o que tenciono fazer neste capítulo. Não é fácil expressar tudo aquilo que
representa a pesquisa, ainda mais em se tratando da história de toda uma vida e da formação
de uma professora na perspectiva de uma teoria complexa e dialética como a de Vigotski.
Apresentar a trajetória de constituição do que Fontana (2000a) chama “ser profissional” em
um indivíduo singular é a proposta do meu trabalho. Caminhemos então pela vida de Clara,
guiados pela(s) voz(es) da sua memória.
Minhas palavras buscam explicitar as vozes que ressoam em Clara. Vozes de pessoas
de sua família, vozes dos seus professores, dos seus colegas, de suas supervisoras, vozes do
seu lugar de professora, vozes de sua história. Vários outros que falam em Clara e através
dela, que a constituem e são constituídos por ela nas e pelas relações sociais. Signos que
medeiam a formação de Clara como professora?
São vozes harmoniosas, mas também vozes estridentes. Vozes que ecoam com força,
potência, intensidade e vozes baixas e fracas... às vezes silenciadas. Vozes que se encontram e
falam em uníssono, e outras que formam um coral de múltiplos timbres, registros e alturas.
59
Vozes muitas vezes dissonantes, para enfatizar o quanto a harmonia soa mais bela e mais
serena. Vozes universais e vozes particulares. Vozes contraditórias.
A voz singular que ecoa neste trabalho é a voz de Clara, que traz em sua história de
vida a diversidade de vozes que fazem parte da composição aqui registrada de sua oralidade,
expressando sua memória. Uma composição dinâmica e dialética que traz em si o movimento
de seu desenvolvimento como pessoa e, neste, como professora. Quando Clara fala, a
narrativa é e não é somente sua, porque é também de muitos outros.
As palavras a seguir dizem respeito a uma recriação da história oral de vida de Clara,
fidedigna aos fatos por ela narrados. É uma forma de situar a sua história em um espaço e
tempo de forma organizada cronologicamente, ressaltando os principais episódios em relação
ao objetivo da pesquisa, e apresentá-la ao leitor. Seria ingênuo, porém, não admitir que a
escrita da história é um ensaio de análise, pois empresta à protagonista o olhar e a voz da
pesquisadora, embebida das apropriações dos aspectos teóricos, práticos e metodológicos do
processo da pesquisa.
60
3.1. PARA COMEÇAR, VOU CONTAR UMA HISTÓRIA...
Na pequena cidade de Patrocínio (MG), onde nasceu e morou até a adolescência, a
menina Clara brincava enquanto sua mãe trabalhava. Relacionamento bem estreito e amoroso.
Clara gostava muito de brincar com a aliança da mãe: pegava a aliança, colocava e retirava do
dedo... De repente, uma surpresa. Estava inscrito na parte interna do anel o nome do pai de
Clara e uma data, a data do casamento de seus pais. Como já compreendia as coisas, logo
percebeu que havia algo estranho. Uma continha simples, a curiosidade e a pergunta:
“Mamãe! Eu nasci de sete meses?”
22
A mãe, perplexa, não sabia o que dizer. Ela e o pai de Clara haviam escondido a sua
verdadeira história até então. Porém, diante da pergunta da filha, passado algum tempo
resolveu contar. E a menina, maravilhada, descobriu que o que poderia ser uma história
comum escondia uma grande lição de amor que a marcaria por toda a vida.
Quando o pai e a mãe de Clara se casaram, a mãe estava grávida de dois meses. E isso,
na década de 1960, em uma cidade do interior, era algo catastrófico. Adolescentes, ambos
com dezessete anos de classes sociais diferentes. Um de uma família modesta da cidade, de
pele morena assemelhada à dos índios, filho de sapateiro. Outro, quase transparente de tão
branco e filho de empresário. Uma relação que fugia completamente aos padrões da época e
daquela cidade. Mas eles, enamorados, apesar de tudo viviam intensamente a paixão.
De repente, a gravidez!
O namoro não era bem-visto, quanto mais o casamento, formar uma família, filhos...
Sugeriram até certochá da comadre”, “tiro e queda”... Mas o casal decidiu pelo casamento e
por assumir a criança com amor e responsabilidade. Abriram mão da adolescência para cuidar
22
Os trechos em itálico e entre aspas referem-se à transcrição literal de falas de Clara na entrevista.
61
da filha. Um sinal de amor e uma proximidade que a menina tomou para si e passou a levar
em seus relacionamentos... Uma criança sensível e afetuosa.
Desde bem pequena, Clara gostava muito de ir para a escola. Não era qualquer escola,
era a escola da tia Beatriz. A tia Beatriz era irmã de sua mãe. Aliás, a sua mãe tinha seis irmãs
professoras! Ela foi a única que não estudou “pra professora” porque casou-se muito cedo e
preferiu ficar por conta de cuidar da família.
– “Tia Beatriz, me leva pra sua escola?”
Você vai dar trabalho!” – Falava a mãe.
A menina dizia que não ia dar trabalho e a tia Beatriz a levava. Era tão pequenininha
(devia ter uns três ou quatro anos) que se sentava em trio, “de três”... É que era um tempo em
que os alunos sentavam-se em pares nas carteiras e, como Clara era muito pequena, tia Beatriz
a deixava sentar “de três”.
Ficava fascinada com as histórias que a tia contava. Também amava desenho... A
escola era fantástica, tinha história e desenho! Era tudo aquilo de que Clara gostava. Ir para a
escola significava ir aprender a contar história e aprender a desenhar igualzinho à tia Beatriz...
Desenho era uma coisa que a menina amava mesmo. Quando tinha uns quatro anos,
mais ou menos, certa vez acompanhou a mãe à casa de uma bordadeira. Para cuidar da filha
sem ter que trabalhar fora, a mãe de Clara fazia bordado, crochê... Foi entregar um trabalho e
levou a filha, que ficou esperando em um cômodo da entrada da casa, enquanto a mãe entrou
na sala, com a mulher, para negociar. Onde estava Clara havia uma mesa, e a menina avistou
um “tanto de canetinhas”... Ah! Não eram comuns aquelas canetinhas, e eram tão bonitas,
tão coloridas. Ela pegou algumas, o quanto coube em sua mãozinha, e escondeu na roupa.
Quando chegaram em casa, pediu à mãe um papel e foi desenhar lá no cantinho da sala. A
mãe de Clara percebeu e logo questionou onde ela havia “arrumado” aquelas canetinhas. A
menina, sem hesitar, respondeu:
62
“Peguei lá na casa da mulher”.
A mãe de Clara ficou brava e a fez devolver as canetinhas. A bordadeira disse que ela
poderia ficar com as canetinhas, mas a mãe dela não deixou. Clara voltou de mãos vazias,
sem entender por que, agora que a mulher havia doado, ela não podia ficar com as canetinhas.
Nesse dia levou uma surra e ainda ficou de castigo.
Chegada a hora de entrar mesmo na escola a menina teve um choque. A professora era
muito diferente da tia Beatriz e a sala de aula também. Todo mundo sentado sozinho, não
trocava material nem nada. A professora lá longe, nem para sentar-se do lado das crianças e
nem para pegar na mão dos alunos. Parecia até uma boneca de louça, distante, distante. E para
piorar, ela não contava histórias!
Um dia Clara e dois coleguinhas fugiram da escola e foram para a praça em frente,
onde havia pássaros, onde ela podia brincar... A mãe ficou de cabelo em pé, sem entender por
que antes ela chorava querendo ir para a escola com a tia Beatriz e agora que estava na escola
ela fugira? Nesse dia Clara foi parar na diretoria, e a diretora chamou sua mãe à escola. A
menina tentou explicar que a professora não era igual à tia, mas a mãe continuou não
entendendo o que a filha queria dizer com aquilo.
Já na primeira série, Clara também não gostou da professora. Era brava demais e ainda
por cima a fez decorar o livro “Os três porquinhos”. Por um lado uma tortura, porque só sabia
essa história, era a única que a professora levava para a aula; por outro lado, uma aventura
prazerosa, porque ela foi alfabetizada com a história Os três porquinhos. Ela deve ter lido
umas trinta vezes aquele livro! Várias leituras até chegar à leitura das palavras mesmo! As
palavras diziam outras coisas... As palavras diziam outras coisas? Ah!!! Estava lendo as
palavras!
Quando Clara percebeu que o que estava lendo não era igual ao que ela contava
quando apenas imaginava a história, isto é, a leitura da história ainda não era uma leitura de
63
palavras, achou muito interessante. Antes, as histórias contadas eram meios de dar asas à
imaginação, que ganhou asas ainda maiores com a possibilidade da leitura das palavras. Ela
poderia mergulhar no mundo da fantasia e da imaginação através dos livros que lia.
Uma fase muito prazerosa em casa também. Os adultos de casa eram atenciosos com a
menina. O pai trazia bonecas de plástico, que eram vestidas pelas roupinhas que a empregada
costurava. A mãe comprava sabonete para a menina dar banho nas bonecas, sabonete
“Pompom” para as bonecas ficarem cheirosas... Clara percebeu que, além de ouvir, ler e
imaginar as histórias que outras pessoas contavam e escreviam, ela poderia criar histórias e
fazer história com as suas bonecas.
Em meio a histórias, bonecas, cheiros, gostos, imaginação, relacionamentos,
sentimentos, Clara chegava à segunda-série. Ah, daquela professora ela gostava! Ela era
maravilhosa, levava os alunos para a biblioteca. Finalmente, após dois anos na escola, Clara ia
descobrir o que havia atrás daquela porta. Ela nunca havia entrado na biblioteca da escola
antes. E a professora os levava para a biblioteca e contava uma história em capítulos...
História que tinha uma Terra dos Brinquedos... E os brinquedos ganhavam vida durante a
noite. Era uma história tão real para Clara, que ela passou a levar água para as bonecas
beberem durante a noite e a cobri-las porque as pobrezinhas poderiam sentir frio. Começou a
cuidar com esmero das bonecas, afinal elas eram vivíssimas.
As bonecas entravam nas brincadeiras assim como os irmãos menores. Clara tinha
dois irmãos, um menino e uma menina. Nas brincadeiras, o irmão já maiorzinho era o
motorista das bonecas e a irmã, bem pequenininha, era como uma boneca também. Uma
bonequinha que já queria brincar de bonecas (a diferença entre Clara e a irmã é de seis anos).
Era uma época divertida em casa e na escola.
A escola era lugar de muitas surpresas, de pessoas diferentes, de variados
relacionamentos, de aprendizagens diversas... Uma figura, porém, se destacava, e a relação
64
com ela: a professora, ou... as professoras... De cada professora uma imagem, uma voz, um
nome, uma recordação... Professoras que ensinavam muito mais do que imaginavam...
Ensinavam matemática, ensinavam português, ciências, literatura, história, e mal sabiam que
estavam ensinando uma profissão a uma menina. Nem Clara sabia disso! Mas no
relacionamento com suas professoras, cada um diferente do outro, uma mágica: cada
professora ia ficando dentro da menina. Em sua memória, em seu pensamento, em sua fala
começavam a ecoar vozes... da tia Beatriz, das primeiras professoras... E essas vozes
provocavam em Clara sentimentos e pensamentos que às vezes eram divertidos, animados,
próximos, prazerosos e que ela queria encontrar novamente... Entretanto, alguns pareciam de
distância e frieza, sem graça, sem vida, sem movimento e que, apesar de presentes, Clara não
queria experimentar de novo e tampouco que as outras pessoas os experimentassem.
O que aconteceu na terceira e na quarta série, a menina não queria que se repetisse.
Clara não gostou das suas professoras. A professora da terceira série puxou sua orelha, pois
naquela época tal atitude era permitida. E ela era boa aluna, fazia todas as atividades, mas
conversava muito. E a professora da quarta série era distante, mal falava bom dia, e em suas
aulas havia um marasmo que a incomodava muito. Parece que não acontecia nada naquela
sala de aula...
Foi quando Clara quis fazer alguma coisa a esse respeito e acabou fazendo o que
poderíamos chamar de... uma travessura. Ela queria movimentar a classe, mas... Ela gostava
de alguns colegas e havia outros que ela achava “meio chatos, metidos”. Então pensou: vou
escrever uma carta anônima para cada um dos meus colegas dizendo o que eu penso deles e
vou escrever uma para mim também, para não “dar na vista” que sou eu a autora. Escreveu as
cartas e levou para a escola. Na hora do recreio, disse à professora que havia esquecido o
lanche na sala e voltou para apanhá-lo. Colocou as cartas nas mochilas dos colegas, bem no
fundo para que eles não as vissem naquele mesmo dia.
65
No dia seguinte, o movimento que Clara queria. Todos os colegas chegaram com a
carta e foi aquela confusão. A suspeita número um: Clara. Era a única que tinha voltado à sala
de aula na hora do recreio. Foi ingenuidade dela pensar que a professora não iria desconfiar.
Mas mesmo assim ela negou.
Eu também recebi uma carta!”
Não adiantou usar este argumento; foi parar na diretoria e a sua mãe teve que
comparecer à escola. E pensar que a mãe de Clara achou que ela estava sendo influenciada
por uma coleguinha... Até proibiu a filha de ir à casa da colega e à colega de ir à sua casa, por
um bom tempo. Mal sabia que a filha era quem influenciava a colega...
Além de provocar um acontecimento na sala e quebrar o marasmo, Clara conseguiu
que a sua professora ficasse mais atenta a ela, mas não do jeito que gostaria. Ela queria que a
professora entendesse que as aulas eram monótonas, que na sala de aula não acontecia nada
de interessante, o que para ela era muito maçante. Mas a professora não quis saber, disse que
não tem que acontecer nada mesmo”, que ela estava ali para aprender. Como se aprender
fosse algo chato, sem movimento, sem novidades, sem dinamismo... mas para Clara não era
assim.
Este era um período em que a menina estava desperta para os amigos e para a música.
Sim, para a música! Em uma casa em que todos gostavam de música, e o pai quis que Clara
aprendesse a tocar violão para tocar as músicas de seresta que ele tanto apreciava. Ela nem
conhecia aquelas músicas... “Carinhoso”? “A casa do sol nascente”? Seu pai, sim, as conhecia
e quis que ela aprendesse justamente este tipo de música para tocar nas serestas... Ela
obedeceu e as músicas ficaram tão marcadas que “A casa do sol nascente” passou a ser a
referência de sonorização para conferir a afinação de seu instrumento.
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Dois mundos muito diferentes. De um lado uma casa movimentada, cheia de amigos,
de relações próximas e afetivas, de trocas, de sons...; de outro lado, uma sala de aula morna,
parada, “um atrás do outro”, silenciosa...
Até este momento, Clara havia estudado sempre na mesma escola. Da quinta série em
diante, uma mudança. Em sua cidade havia duas possibilidades de estudo neste nível de
ensino: a escola estadual e a escola normal. A escola normal era particular, uma escola “de
freiras” onde só estudavam e trabalhavam mulheres. Este foi um período difícil para Clara.
Ela gostava de estar entre os meninos, tinha muitos amigos que encontrava nos jantares, nas
serestas. Na escola normal ela não tinha contato com eles, só com as meninas... E com as
professoras.
Clara era uma aluna “terrível” nessa escola, dava muito trabalho. Ela não gostava de
lá e não via sentido nas coisas que ela tinha que aprender, como aquelas aulas no primeiro
andar da escola (de três pavimentos) em que as meninas aprendiam a cuidar de uma casa e a
cuidar de crianças. Aquilo não era para ela, que acabava levando a fama de indisciplinada.
Como poderia a menina quase moça não querer fazer as tarefas da escola, ficar em sala de
aula, fazer educação física? E ainda ficar subindo no muro da escola? Ah, porque ela subia no
muro para ver os meninos na escola estadual se divertindo lá em baixo. Como queria estar lá...
E por isso, ficava de castigo, varrendo o pátio. A freira chegou a falar para a mãe de Clara:
Essa menina não vai virar nada, ela não tem conserto. Pega ela e leva para o
colégio estadual, que é para lá que ela quer ir.”
Mas como Clara era uma boa aluna, mesmo se a maioria das professoras e a diretora
não conseguiam compreendê-la e nem conquistá-la, elas não tinham muitos argumentos,
porque de qualquer forma ela tirava boas notas, estudava, entregava os trabalhos em dia. Era
especialista em mapas... fazia mapas e os coloria como ninguém, com os lápis de cor que
67
faziam sombreado. Aqueles que o pai comprava para ela. Os mapas eram famosos, ela fazia
para os colegas, para a professora, para apresentação. Era uma menina caprichosa.
O seu comportamento com uma professora dessa escola, porém, era diferenciado. Uma
professora de português, a Sofia! Ela era uma professora que conseguia ensinar com
autoridade, que tinha domínio da sala e que encantava Clara. Falava baixinho, era séria, mas
sua aula era diferente e ela sabia explicar muito bem. A valorização da leitura a aproximava
muito de Clara, afinal a menina amava ler. Sentia-se bem em sua aula e até fazia tarefas
longas, que se fosse com outra professora... Seria pela maneira de ensinar e pela afinidade ou
porque ela ensinava justamente português e literatura, conteúdos que a menina preferia? Nem
uma coisa nem outra, e ao mesmo tempo por tudo isso.
Essa professora foi bem marcante para Clara, a ponto de levá-la a dizer que quando
crescesse queria ser igual à Sofia. Incentivava a leitura, dava muitos exemplos em sala de aula
e até contava para a classe os filmes a que assistia, instigando a imaginação das alunas. Ela
era uma professora que também contava histórias, então?!
Foi nessa escola que Clara passou a quinta, sexta, sétima e oitava série. Era um tempo
em que a sua família possuía uma condição financeira estável. Até que um acidente na
empresa da família de seu pai, da qual ele era sócio, provocou uma transformação em sua
vida. De um tempo de “vacas gordas” ela passou a um período de “vacas magras”. A família
de Clara passou a ter uma nova situação financeira após um incêndio na empresa, que causou
prejuízos muito grandes. Esta foi uma ocasião de reestruturação da vida familiar.
Mesmo esta sendo a chance de Clara mudar de escola para não precisar pagar – tudo o
que ela queria –, seus pais decidiram mantê-la na escola particular e, assim, dar continuidade
a seus estudos. Seus irmãos, porém, foram estudar na escola pública. Clara passou a ter que ir
para a escola a pé e a ajudar a mãe com as tarefas de casa, porque não tinham mais ajudante.
68
Apesar das dificuldades, porém, em casa e também fora era um tempo feliz, de festinhas, a
turma de amigos, o primeiro namorado.
Como a empresa onde trabalhava o pai de Clara tinha uma filial em Uberlândia que
precisava de uma pessoa para cuidar dos negócios, ele decidiu mudar com a família para esta
cidade. Ali, Clara começou a estudar de manhã em uma escola particular, porque tinha
ganhado uma bolsa de estudos integral. Mas logo precisou passar para o noturno, já que a sua
mãe precisava trabalhar e ela, então com quinze anos, deveria cuidar da casa e dos irmãos.
Nessa época Clara cursava o primeiro ano do ensino médio. Em casa, cuidando dos irmãos e
ajudando-os nas tarefas escolares, teve suas primeiras experiências no papel de quem ensina.
Nessa mesma escola começou a fazer o magistério. É, magistério. Ela queria ser
professora. Clara iniciou os estudos com uma grande expectativa e logo vieram as decepções,
uma atrás da outra, no magistério e depois no curso de pedagogia. Ela queria dar aulas, queria
ser professora. Tinha isso bem definido.
Fez o curso de magistério (1982-1984) e começou logo a estagiar. Não muitos
estágios, porque tinha muito trabalho em casa. As suas tias professoras trabalhavam nessa
escola e começaram a ajudá-la. Mas Clara gostava mesmo era de pedir auxílio à tia Beatriz.
Foi ela que a ajudou a começar a trabalhar. As outras também colaboravam, mas eram muito
diferentes, mais “linha dura”. Clara tinha mais afinidade com tia Beatriz.
As aulas no magistério não faziam muito sentido para Clara, que queria aprender a ser
professora. E ela nem tinha idéia de que muita coisa do que buscava já vinha aprendendo com
as professoras que tivera ao longo de toda a sua história escolar. Ela parecia procurar algo
mais, algo que ainda não havia encontrado, ou melhor, que ainda não havia explicitado para
si: o seu modo de ser professora.
Novas professoras entravam em cena. Vozes que dialogavam com aquelas anteriores,
agora de professoras e supervisoras, professoras e supervisoras de professoras. Porém eram
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novas vozes que, em sua maioria, não estavam em sintonia com as mais fortes e significativas
de antes. Onde estariam os sentimentos e o interesse vivenciados com as professoras Beatriz e
Sofia?
O curso de magistério não correspondia às expectativas de Clara. Ela queria a todo
custo ter a oportunidade de dar aula como estagiária e então ser avaliada para saber como
estava indo, aprender também no momento do estágio. Essa era a proposta do curso, mas não
conseguiu ninguém que a avaliasse. Conseguiu, sim, quem queria assinar os papéis do estágio
sem que ela o tivesse feito. Achou isso um absurdo! Não quis.
Quando surgiu a oportunidade de fazer uma substituição e enfim ir para a prática,
mesmo sem ser observada por outra professora, aí pôde questionar o curso de magistério,
ainda mais porque sentiu que o que estava aprendendo não se aplicava àquelas crianças. Que
formação era aquela que não poderia servir para o contexto real de sala de aula, para crianças
reais?
A formação em pedagogia era a sua esperança. Clara começou a estudar pedagogia em
uma faculdade particular, logo após terminar o magistério. Como precisava pagar o curso e na
época não conseguiu um trabalho como professora que fosse duradouro, mas somente
substituição, começou a trabalhar em uma boutique.
Todavia, o curso de pedagogia também foi decepcionante. Clara queria aprender a ser
professora. Como poderia, por exemplo, alfabetizar uma turma de crianças? Ela não tinha
idéia. Aliás, tinha pavor só de pensar nisso. Não aprendeu durante o magistério e no curso de
pedagogia também não.
Quando perguntou a uma professora do curso de pedagogia onde ia aprender o que
precisava fazer para alfabetizar, teve vontade de abandonar o curso, diante da resposta. A
professora respondeu que não era ali que ela iria aprender, pelo menos não seria naquela
70
disciplina, que falava sobre jogos (mas que também não ensinava as aprendizes de docência
como inserir estes jogos em suas aulas). Como não? Se não é aqui, onde será?
O curioso é que ela se tornaria exatamente uma alfabetizadora. Não propriamente
através da formação profissionalizante e acadêmica em docência, ainda que estas tenham tido
seu papel, de deixar como legado vozes a serem questionadas e refutadas.
Clara fez sua formação em pedagogia em duas faculdades particulares. Começou o
curso em Uberlândia (1985), onde fez os três primeiros períodos. Foi morar em Belo
Horizonte e cursou mais três períodos, pois, a diferença entre os currículos, a adaptação à
grade de disciplinas da faculdade não permitiu que ela avançasse regularmente no curso. Ela
transitava por diferentes cursos para fazer as disciplinas. Depois voltou para Uberlândia, onde
retomou o curso e concluiu a licenciatura curta em Supervisão Escolar (1993) e a licenciatura
plena em Magistério das Matérias Pedagógicas (1994).
A professora Clara começou a trabalhar fazendo algumas substituições até que,
aprovada em um concurso da Prefeitura, começou a trabalhar na Educação Infantil, com
crianças de um ano. Algum tempo depois, voltou a morar em Belo Horizonte.
As vozes internalizadas por Clara pelas primeiras professoras manifestavam-se na
inquietação de pensamentos recorrentes: o que preciso fazer para que os meus alunos
aprendam? Eles precisam de um ambiente acolhedor, afetivo, com espaço para a imaginação e
a fantasia? Eles necessitam interessar-se por aquilo que eu tenho para ensinar? Eles precisam
estar curiosos a respeito do que eu tenho a dizer? Eu não quero ser como aquelas professoras
distantes, bravas, que não valorizam os alunos e suas idéias, que não são criativas, que não
despertam o interesse, que não estão preocupadas com o seu aluno. Quero ter um
relacionamento próximo com os meus alunos, porque não quero que eles pensem que o
conhecimento que eu estou tentando ensinar é tão distante e inacessível como a relação fria
estabelecida entre nós...
71
Certa vez uma supervisora de uma escola onde Clara fazia estágio lhe dissera que não
precisava se preocupar, porque iria encontrar o seu caminho quando estivesse na prática.
Realmente, foi o que aconteceu. Nas idas e vindas em estágios, substituições, estudos,
trabalho, ela foi constituindo o seu modo de ensinar e, com o tempo e a partir das
oportunidades que foram surgindo, construiu um modo próprio de alfabetizar.
No período em que esteve em Belo Horizonte não atuou como docente. Em
Uberlândia, porém, começou a trabalhar aos dezessete anos, quando a tia Beatriz conseguiu-
lhe uma substituição. Fez algumas substituições e depois passou no concurso da Prefeitura.
Este trabalho foi importante porque era uma escola em implantação e os professores tiveram
alguns meses dedicados exclusivamente aos estudos. Quando retornou de Belo Horizonte pela
segunda vez, foi trabalhar com uma turma da primeira série até que conseguiu reassumir o
cargo na escola municipal, que havia deixado quando fora para Belo Horizonte. A escola em
que ela foi lecionar é a instituição na qual está até hoje. Começou trabalhando com o pré-
escolar, onde ficou durante dois anos, já começando a realizar um trabalho diferenciado,
integrando o conhecimento e desenvolvendo projetos. Em seguida foi para a primeira série,
onde enfrentou grandes desafios para se tornar alfabetizadora. Criou o seu projeto com os
bonecos. Fez especialização em psicopedagogia em 2003. Hoje é diretora desta escola, eleita
por seus pares em 2006.
72
3.2. AS “MARCAS QUE FICARAM”
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância das coisas:
Alguém sabe?
Manoel de Barros – Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo
Um dado interessante a ser observado e que merece destaque é o fato de que a
formação de Clara como professora teve seu início muito cedo, muito antes dos cursos de
Magistério e de Pedagogia, ou até mesmo antes da menina entrar na escola oficialmente. Na
relação vivenciada com as tias-professoras, especialmente com a tia Beatriz, imersa em um
contexto em que a educação, a escola e a profissão docente estavam bastante presentes, Clara
já começa a significar a educação, os processos de ensinar e de aprender, o espaço escolar, a
docência.
Para Vigotski, “a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem
escolar”
23
. A aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na
escola tem uma pré-história.” (Vigotskii, 1991, p.109). Aquilo que Clara aprendeu no
momento denominado por Vigotski de pré-história está relacionado a aprendizagens inclusive
dos significados da profissão que se materializa na figura da professora e no espaço da escola.
Parafraseando o autor, poderia afirmar que uma aprendizagem acadêmica e profissional nunca
parte do zero. A formação do professor em nível secundário ou superior também tem uma
pré-história, como foi observado na história de Clara.
A gênese da constituição de um modelo do que significa ser docente foi mediado pelas
relações iniciais de Clara com uma professora que também é sua tia, a Beatriz. Ela foi a
primeira professora de Clara, mesmo que extra-oficialmente. A experiência da menina ao
vivenciar a relação com a escola e com a tia-professora foi internalizada e passou a servir de
referência para todas as suas experiências posteriores.
23
Em itálico no original.
73
Clara relata que, como essa experiência fora muito agradável, apresentando-a a um
mundo de imaginação, fantasia, história e desenho, permeado por uma proximidade carinhosa
do adulto, a entrada de fato na escola provocou-lhe um choque:
“Quando eu fui para a escola... para o pré... aí eu não gostei
muito não, porque a professora não era igual... (...) era
diferente... a disposição dos alunos era diferente... Não
ficávamos um ao lado do outro, não trocávamos material
como eu trocava na outra escola, e a professora não era
igual à tia Beatriz. Eu achava a professora... distante.”
24
Este trecho mostra que Clara já havia começado a construir um modelo de professora,
de relacionamento e de organização do cotidiano da sala de aula. Já existia uma referência de
professora, a tia Beatriz. E de organização e funcionamento do espaço da sala de aula, bem
como do relacionamento com os alunos. Clara diz não ter gostado da experiência com a nova
professora e com a sala de aula porque não era igual à vivenciada anteriormente, da qual
guardava ótimas recordações.
A experiência inicial da menina em relação à educação, à escola e à profissão docente
é o que chamo de formação pré-acadêmica. Ocorreu por meio das suas primeiras relações com
a escola e com as suas professoras dos níveis atualmente denominados Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Médio. Essas relações foram gerando significados que eram
internalizados por Clara de acordo com o que ela considerava condizente ou não com o papel
e o lugar de professora, o universo escolar e a educação.
É relevante destacar que os significados construídos por Clara em sua formação pré-
acadêmica, narrados na história oral de vida e que foram fundamentais para a construção de
sua concepção a respeito de educação, de escola e de docência, representam sua maneira
singular de recordar e pensar as circunstâncias vivenciadas por ela e os sentidos pessoais
24
Os trechos em fonte Maiandra GD, deslocados e entre aspas, representam falas da professora durante o relato
oral de sua história de vida. Os recortes selecionados foram editados, isto é, ajustados da forma oral à forma
escrita, adequando-se a linguagem aos padrões gramaticais, mas preservando o conteúdo da narrativa oral,
inclusive algumas palavras e expressões próprias da professora. Tal procedimento foi realizado para facilitar ao
leitor a compreensão, uma vez que este trabalho não objetiva analisar aspectos lingüísticos de expressões da
oralidade, mas essencialmente o conteúdo da narrativa.
74
atribuídos a tais vivências no âmbito de suas relações sociais. Nesse sentido, Pino (2005,
p.104) esclarece que funções como o pensamento são comuns a todas as pessoas, mas a forma
de pensar é constituída de acordo com a posição que a pessoa “ocupa no campo das suas
relações sociais”.
Assim, considero que a subjetivação profissional de Clara passa por três momentos
significativos. O primeiro momento é a formação pré-acadêmica como descrita acima,
anterior à entrada oficial em cursos profissionalizantes. O segundo, a formação inicial, nos
cursos específicos para a formação de professores, que no caso de Clara são o magistério e o
curso de pedagogia. E o terceiro momento seria a formação continuada, que consiste em
novos cursos e estudos, além do desenvolvimento de práticas e da experiência profissional em
sala de aula. Este terceiro momento pode ser representado pelos estudos desenvolvidos por
Clara durante o trabalho, os cursos de capacitação freqüentados, a troca de experiências com
as colegas, a orientação de supervisoras, a própria experiência construída a partir dos estudos
e do confronto com as necessidades dos alunos e das próprias necessidades, o curso de
especialização em psicopedagogia, a troca de experiências com a universidade em pesquisas
anteriores, em estágios de alunos de psicologia e pedagogia em sua sala e, claro, do
relacionamento comigo e da experiência desta pesquisa.
25
Ainda que neste trabalho estejam presentes os três momentos acima descritos, darei
ênfase à gênese da formação docente de Clara, por entender que ela foi fundamental para a
sua escolha e desenvolvimento profissional. Além disso, essa época da formação praticamente
está ausente na bibliografia sobre esta temática. Na narrativa de Clara podem ser destacados,
desde o início, signos que sinalizam para mediações fundamentais na constituição de seu
perfil como professora. Penso que a partir destas mediações começaram a ser estabelecidos
25
Embora estes três momentos pudessem constituir categorias de análise, considerando-se a extensão do material
apresentado por Clara na entrevista, em que a família recebe grande destaque e os cursos de magistério e
pedagogia são brevemente mencionados e principalmente no que se refere a experiências decepcionantes, optei
por manter as categorias anteriormente mencionadas.
75
significados acerca da educação, da escola e do ser/saber/fazer docente que foram
constituindo a subjetivação profissional de Clara, trazida por meio de sua memória ao narrar
sua história. História que demonstra a sensibilidade da professora em relação à educação
escolar. Deleuze (1987 apud Fontana, 2000a, p.109) afirma que
aprender diz respeito essencialmente aos “signos”. Os signos são objeto de um
aprendizado temporal, não de um saber abstrato. (...) Alguém só se torna marceneiro
tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos
da doença. (...) Todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou hieróglifos.
Aprender é, portanto, uma interpretação de signos, diz o autor. Uma interpretação que
Clara iniciou em um tempo específico, na infância, quando ainda era bem pequena e não tinha
idade escolar. Interpretação de um “aprendizado temporal” e de um saber concreto em relação
à profissão docente. “Tornar-se sensível é processo, é história que se faz nas relações e no
tempo”, comenta Fontana (2000a, p.109).
Desta forma, acredito ser relevante pensar a formação docente desde os primórdios,
desde as primeiras relações e determinações históricas, sociais e culturais das condições
concretas de vida da pessoa. O professor já chega aos cursos de formação com uma formação
prévia (uma iniciação) e faz-se necessário levá-la em consideração. As concepções sobre a
escola dentro da família, o início da vida escolar, a primeira ou as primeiras professoras
constituem uma “memória escolar” que repercute na escolha de uma profissão, seja ou não
ligada ao magistério. Será que adiantaria uma formação inicial e/ou continuada de excelente
qualidade se os professores e as professoras não vêem sentido em sua profissão, não gostam
do que fazem, não escolheram a carreira docente, têm uma relação negativa com a escola e
com a aprendizagem, têm uma história escolar marcada por experiências que os constituíram
com posturas e práticas que não correspondem ao que deveria ser um processo de
escolarização que favoreça a aprendizagem e o desenvolvimento (Silva, 2002)? Os interesses,
76
os motivos, também vêm dos mediadores que apresentam o mundo da escola à criança. Será
que é possível uma formação de qualidade ao desconsiderar-se esta formação pré-acadêmica?
3.2.1. A FAMÍLIA DE CLARA
Apesar de ter como foco principal a memória de Clara acerca de sua formação pré-
acadêmica e do papel das professoras como mediadoras no processo de constituição de sua
subjetivação profissional – a pesquisa visa priorizar essa constituição, privilegiando o
ambiente escolar e seus atores –, a primeira categoria de análise apresentada diz respeito à
família da professora, pois em sua história Clara destaca como “imenso” o papel de sua
família em relação à sua escolha profissional.
Falar em família é falar de origem. A família é uma importante referência na vida das
pessoas, onde geralmente acontecem as primeiras relações sociais, os primeiros contatos com
a cultura, as primeiras mediações. E ao falar em constituição humana pessoal e profissional
em uma perspectiva histórico-cultural, é fundamental destacar as relações humanas e os
contextos em que estas ocorrem e considerar que a história de uma vida, de uma profissão,
assim como a memória que narra esta história é constituída nas e pelas relações sociais, pela
mediação de signos presentes na cultura (Vigotski, 2000).
Destaquei da narrativa de Clara trechos que ilustram aspectos fundamentais em sua
constituição pessoal/profissional, iniciando pelas relações familiares.
Nascida em 1967 em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, Clara conta que
desde pequena percebeu que tinha um grande valor na vida dos pais ao saber da história de
seu nascimento que, diz, a marcou muito.
“(...) a minha chegada foi e é para mim até hoje, uma lição
assim... de amor!”
77
Para a cultura local da época, uma jovem solteira de dezessete anos engravidar de um
rapaz também de dezessete anos representava, nas palavras de nossa protagonista, um caos.
Principalmente considerando que entre o casal havia diferenças como cor da pele e condições
socioeconômicas. Diante da opção de interromper a gravidez, os jovens pais de Clara
escolheram enfrentar juntos as dificuldades para assumir a filha. Uma escolha corajosa e
definitiva que representou para a menina uma marca inicial muito forte de amor e
proximidade, conforme mencionado na apresentação de sua história.
Ao destacar a proximidade e o amor que ela sempre recebeu dos pais, Clara atribui a
este fato uma relação direta com uma de suas características mais marcantes, pois afirma que
esta pode ter sido a “pedra inicial” em relação à afetividade
26
que ela apresenta em suas
relações interpessoais. Observa-se que a constituição de uma subjetividade marcada pela
afetividade começou muito cedo em Clara, uma vez que a história revelada pela mãe foi
internalizada pela menina com um sentido especial ao compreender o amor entre os pais e por
ela desde a gestação. Com a mediação da história narrada pela mãe, a professora re-significou
a própria história.
Nos relatos da professora, fica evidente a presença de pais que buscam compartilhar
com a filha o processo de desenvolvimento também em relação às vivências escolares. São
pais que demonstram, em suas atitudes, a importância do estudo, como por exemplo, o
esforço em garantir a continuidade do processo educacional em uma escola particular, mesmo
em um momento de crise financeira.
Em casa, a mãe acompanhava atentamente as tarefas escolares apesar de sua pouca
escolaridade. Clara diz que a mãe seria uma ótima professora, mas foi a única das irmãs que
não estudou porque se casou muito cedo e preferiu cuidar da família. Cuidar da família
significava também cuidar do material da filha, de sua aprendizagem escolar.
26
A afetividade de Clara foi o principal tema discutido na pesquisa de Iniciação Científica sobre a sua prática
profissional, apresentada anteriormente. Ver Barreto e Silva (2006).
78
“Eu tenho lembranças, assim, maravilhosas da minha mãe
(...) na varanda da minha casa, onde eu ia fazer dever, a
minha mãe assentava lá no cantinho da varanda, nós
sentávamos no chão. A minha mãe pegava os meus lápis,
pegava o meu estojo... ela apontava... ela era muito
caprichosa, ela apontava tudo com estilete (...)”
“Tomava lição. (...) Minha mãe não sabia as coisas que... às
vezes a gente estudava alguma coisa em que ela tinha
dúvidas, ela pegava meu caderno e lia tudo. Mandava-me
explicar o que a professora tinha falado e depois ela ia
fazendo um jogo de palavras para mim. Ela começava uma
frase para terminar de acordo com aquilo que eu estava
estudando. A minha mãe passava exercícios no caderno
para mim, copiando o caderno... Então para mim foi de
fundamental importância. Foi decisivo para mim, muito
importante.”
As relações entre mãe e filha, narradas pela docente, também podem ser consideradas
constitutivas de sua formação pré-acadêmica; uma intensa relação afetiva, de troca, de
criatividade, capricho, aspectos lúdicos e uma presença efetiva na busca de promover a
aprendizagem. Uma constituição dialética da formação, na medida em que se alternavam em
papéis ora de quem ensina, ora de quem aprende. Fato que nos remete ao que afirma Moita
(1995) a respeito da formação:
Ninguém se forma no vazio. Formar-se supõe troca, experiência, interacções sociais,
aprendizagens, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se
forma é ter em conta a singularidade da sua história e sobretudo o modo singular como
age, reage e interage com os seus contextos. Um percurso
27
de vida é assim um
percurso de formação, no sentido em que é um processo
28
de formação. (p.115).
Além das experiências com os pais, entra em cena a família da mãe de Clara. Isto
porque os seus pais se casaram e a necessidade de ajuda os levou a morar por um ano na casa
de sua avó materna. Segundo Clara, a família de sua mãe sempre foi mais próxima e, de fato,
27
Em itálico no original.
28
Em itálico no original.
79
foi no contexto familiar da mãe que a menina nasceu e vivenciou as primeiras relações
sociais. Ela afirma que na família da mãe teve mais exemplos.
Uma característica da família materna de Clara
29
precisa ser destacada ao pensar em
sua constituição profissional. Clara conta:
“A minha mãe tem seis irmãs, seis professoras! Seis
professoras... A única que não é professora é a minha mãe.”
Desta forma, a menina se viu inserida muito cedo em um ambiente em que a profissão
docente estava muito presente. A escola em que as tias trabalhavam ficava próxima de sua
casa, o que proporcionava uma convivência cotidiana com o trabalho das tias-professoras.
Clara começou a perceber em suas tias uma prática que promovia a aprendizagem de fato, a
ponto de dizer que
“(...) na escola eu realmente ia aprender tudo, porque as
minhas tias conseguiam ensinar.”
A concepção de escola passa a ser mediada por uma prática que representa este espaço
como um lugar onde a aprendizagem efetivamente acontece. Uma escola e uma aprendizagem
que estavam relacionadas a um modo de ensinar, ao modo das tias. Nesse momento, em que a
família e a escola configuram-se como instâncias não separadas, a instituição educacional é
vista como familiar e não algo que está no mundo “lá fora”. Reitero a importância de destacar
esse contexto inicial de Clara no âmbito acadêmico por acreditar que, como afirma Pino
(2005, p.156), “o que a criança internaliza do meio cultural se torna parte integrante de sua
constituição como pessoa”.
Clara conta que “brincava de professora” e, quando isso acontecia, suas tias falavam:
“Está vendo, Clara, você vai ser uma ótima professora!”
29
É importante ressaltar que a docência, assim como a enfermagem, foi considerada uma atividade profissional
que, ao envolver o “cuidado dos outros”, estava ligada a características consideradas essencialmente femininas
(Codo, 1999). Essa marca histórica e social ainda estava muito presente nesta época em que Clara era criança e,
provavelmente, também está relacionada ao fato de que em uma família de sete filhas, seis sejam professoras.
(Codo, W. (1999) Educação: Carinho e trabalho. Petrópolis: Vozes, Brasília: Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação: Universidade de Brasília. Laboratório de Psicologia do Trabalho).
80
Ela achava aquilo o máximo e as palavras das tias eram muito significativas para ela,
pois faziam-na acreditar que “ia conseguir ser uma professora”. Uma das tias que dizia isso
era a tia Beatriz, figura importante em sua história.
Pode-se afirmar que a escola, com seus componentes, passava a fazer parte da
realidade da menina Clara e de sua imaginação, presente inclusive em suas brincadeiras. De
acordo com Vigotski (1988),
No brinquedo, a criança opera com significados desligados dos objetos e ações aos
quais estão habitualmente vinculados; entretanto, uma contradição muito interessante
surge, uma vez que, no brinquedo, ela inclui, também, ações reais e objetos reais. Isto
caracteriza a natureza de transição da atividade do brinquedo: é um estágio entre as
restrições puramente situacionais da primeira infância e o pensamento adulto, que
pode ser totalmente desvinculado de situações reais. (Vygotsky, 1988, p.112).
Estas relações, portanto, começavam a constituir em Clara uma possível professora, de
acordo com o modelo e a fala das tias. Conforme a contradição de que fala Vigotski
(Vygotsky, 1988), as brincadeiras da menina incluíam ações e objetos reais relativos ao ser
professora, vivenciados em sua infância, e sinalizavam a construção de sentidos e significados
posteriormente presentes em sua vida profissional quando adulta.
Vigotski afirma que o “brinquedo é muito mais a lembrança de alguma coisa que
realmente aconteceu do que imaginação. É mais a memória em ação do que uma situação
imaginária nova” (Vygotsky, 1988, p.117). A brincadeira “de professora”, recordada no
presente ao narrar a história oral de vida, já era no momento de sua realização uma lembrança
de ações que faziam parte do cotidiano de Clara na relação com as tias-professoras e através
delas com a escola, com o aprender, com a educação.
Uma família de professoras. Todas as tias de Clara eram professoras, mas cada uma
com características muito diferentes. Na sessão final da história oral de vida, ao ser indagada
81
sobre o papel das tias-professoras em sua formação, Clara apontou como “modelo de
inspiração” a tia Beatriz e, a partir desta, apresentou algumas outras
“(...) a tia Helena foi professora por doze anos. Mas ela
desistiu. Ela preferiu montar uma loja de peças. E hoje eu a
olho e acho-a tão triste! Se ela fosse... ela tem tudo o que
talvez não teria se ela tivesse continuado na sala de aula, em
termos de bens materiais. Ela é uma comerciante bem-
sucedida... mas o olho dela é diferente de quando ela era
professora. Quando ela era professora, que as meninas dela
eram pequenininhas, eu muitas vezes fiquei com as meninas
para ela ir trabalhar. E ela era uma boa professora. Mas ela
desistiu.”
“A tia Luísa é uma professora excelente. Mas ela é muito
brava. (...)”
“A tia Lígia falava comigo quando eu era pequena (...):
‘Você vai fazer magistério, minha filha, porque magistério é
profissão de mulher. Porque você trabalha quatro horas só lá
na escola e dá tempo de você cuidar da sua casa, dos seus
filhos...’ a tia Beatriz falava assim para mim: ‘Não é assim,
não! Você tem que ir só se você gostar. Se você não gostar,
você não vai não, que você não dá conta. Sala de aula não
é fácil!’”
“(...) elas não são iguais a tia Beatriz, de jeito nenhum, elas
são linha dura...”
Tia Beatriz ganha papel de destaque e serve de parâmetro para Clara falar das outras
tias-professoras. Ainda que sejam diferentes entre si, para a menina são diferentes da tia com
quem ela gostava de ir para a escola, que não era “linha dura”. Ao contrário da tia Beatriz, a
tia Helena desistiu da docência e tornou-se uma pessoa triste; a tia Luísa era muito brava,
apesar de excelente professora, e a tia Lígia via o magistério como opção de trabalho
conveniente para a mulher.
As dificuldades intrínsecas à docência e a necessidade de haver um prazer em ser
professora como condição para a atuação profissional são elementos importantíssimos da fala
da tia Beatriz, recordada por Clara em oposição à fala da tia Lígia, que vê o magistério como
profissão de mulher”.
82
Esta fala pode ser descrita como um dos aspectos do processo de constituição da
consciência de Clara em relação ao que significa ser professora. Toassa (2006), ao estudar o
conceito de consciência em Vigotski, afirma que as fontes da formação da consciência são
sócio-históricas. A “consciência é sempre consciência socialmente mediada de alguma coisa”
(Vygotski apud Toassa, 2006, p.72). Nesse sentido, o discurso de Beatriz, ao ganhar
significação e ser internalizado por Clara, passa a constituir a consciência e a memória desta a
ponto de ser rememorado no presente.
As tias-professoras de Clara ensinaram-lhe diferentes visões a respeito da profissão, da
relação com a profissão e da inserção desta na vida pessoal. Em cada espaço que não o da
escola, também havia conteúdos de um currículo oculto: os diferentes modos de constituir-se
e atuar como professora. No que se refere ao currículo oculto
30
, esta é também uma
aprendizagem muito importante e significativa: o que faz um professor. Nesse sentido, é
fundamental um olhar mais cuidadoso para as professoras que Clara encontrou em sua
formação. Fica uma pergunta: se Clara tivesse tido mais exemplos da família paterna, em que
não havia professoras, teria se constituído docente?
3.2.2. AS PROFESSORAS DE CLARA
As professoras de Clara... A professora em relação com as suas professoras ao longo
da vida, em diferentes momentos, em diferentes contextos, em relações diversas, constituindo
sentidos de ser... professora. Estes sentidos construídos a partir das relações com os signos
que remetem à profissão docente mediaram a constituição profissional e pessoal de Clara em
30
Segundo Cornbleth (1992 apud Veiga, 2000), o currículo oculto diz respeito às mensagens implícitas
transmitidas pela sala de aula e pelo ambiente escolar como um todo. (Veiga, I. P. A. (Org.) (2000) Projeto
Político Pedagógico da Escola: Uma construção possível. 11ª ed. Campinas: Papirus.)
83
relação ao ser professora, elaborando significados que traduzem relações de
proximidade/afastamento, de familiaridade/estranheza, assim como destaca Batista (2002):
Venho aprendendo que o ensino, ao configurar uma ação intencional e complexa,
exige que se reconheça no professor um sujeito com suas histórias, saberes, valores,
mantendo relações de proximidade/afastamento, familiaridade/estranheza com o
conhecimento e com os alunos. Estas relações conferem ao processo ensino-
aprendizagem traços da interação, da parceria, da perspectiva interdisciplinar, da
educação dialógica. (p.233).
Batista (2002) menciona o ensino como ação intencional e complexa e destaca o
professor como agente mediador entre o conhecimento e seus alunos - a mediação pedagógica
(Fontana, 2000b), uma forma específica de mediação social de caráter pedagógico e
prioritariamente exercida por professores. De fato, conforme aponta Fontana (2000b), a
mediação pedagógica pode ser vista como aquela que favorece o desenvolvimento das
capacidades cognitivas e é diferente das mediações sociais cotidianas por seu caráter
intencional e sistemático.
Segundo as autoras referidas acima, os professores são sujeitos considerados
mediadores da apropriação do conhecimento e, mais especificamente, do desenvolvimento
das capacidades cognitivas de forma organizada, sistematizada e intencional. A história de
Clara, contudo, apresenta os professores também como mediadores sociais do sentido e das
possibilidades de atuação profissional. Nas relações estabelecidas com seus professores, ela
demonstra que, mesmo sem a intenção ou a sistematização de conteúdos referentes ao que
significa ser professor, como se dá a relação entre o professor e o conhecimento, a relação
entre o professor e o aluno, dos professores entre si, do professor com a escola, do professor
com a educação, do professor com os modos de atuação profissional, tais conteúdos
84
representam mediações significadas e internalizadas pela menina, adolescente, jovem, adulta,
professora em processo de constituição.
Nesse sentido, é importante pontuar que tais mediações foram ocorrendo e deixando
marcas em Clara, desde seu primeiro contato com a escola até os dias atuais, de forma
dinâmica e dialética. São marcas que, ao ganharem significação, passaram a constituir a sua
subjetivação profissional, mesmo em vivências muito precoces. Marcas que passaram a
acompanhar Clara em suas experiências como aluna e, a partir dos sentidos estabelecidos em
relação a elas, nos termos de Batista (2002), a manter relações de proximidade/afastamento,
familiaridade/estranheza. Entretanto, estas relações passaram a dizer respeito não somente aos
conhecimentos, mas principalmente às professoras e a suas práticas.
Com uma experiência escolar iniciada muito cedo por intermédio das tias-professoras,
muitas foram as docentes que Clara encontrou pelo caminho e com as quais experimentou
relações de identificação e/ou oposição.
Nesse percurso de aprendizagens, tecido no tempo, a presença constante do outro –
nas interações face-a-face, como discurso e como prática social – apontando os sinais
e indícios imprimidos no vivido e ensinando (na identificação e na oposição) a lê-los,
a interpretá-los e re-interpretá-los, a interpretar-me e reinterpretar-me frente a eles.
(Fontana, 2000a, p.111).
A identificação e a oposição foram constantemente presentes na constituição da
subjetivação profissional de Clara, em relação a suas professoras. Identificação e oposição em
relação a quê? É o que apresento na categoria a seguir, mediações e mediadores fundamentais
para a construção de um perfil profissional materializado na professora Clara.
3.2.2.1 A primeira professora de Clara: inesquecível...
85
Quem terá sido a primeira professora de Clara? Se considerarmos a sua entrada oficial
na escola, foi a professora do pré-escolar. Mas aqui considero que a primeira professora de
Clara foi a sua tia-professora Beatriz.. A sua primeira experiência escolar aconteceu por
intermédio dessa tia que, de vez em quando, levava-a para a escola mesmo antes de atingir a
idade escolar. E esta experiência teve uma repercussão muito grande na vida de Clara,
tornando a tia Beatriz uma professora inesquecível.
Após a convivência com uma diversidade de docentes, há aqueles que permanecem na
memória e aqueles que passam sem deixar grandes marcas. (Tagliaferro, 2006). Mas, ao
recordar a própria história de vida, cada um “encontrará um professor inesquecível. Aquela
pessoa cuja influência provocou mudanças na vida escolar e, muitas vezes, na vida
particular.” (Tagliaferro, 2006, p.97).
No caso de nossa protagonista, talvez não se possa falar em um único professor
inesquecível. A história de Clara traz diversos professores inesquecíveis, seja pela sua
identificação com estes, seja pelo movimento de oposição às suas posturas e às suas práticas.
Tantos uns quanto os outros acabaram deixando marcas, algumas mais profundas do que as
outras.
Pode-se dizer, porém, que a tia Beatriz representa para Clara uma professora
particularmente inesquecível, porque foi a partir da relação estabelecida com ela em seu
contexto de atuação profissional que a menina iniciou a construção de um modelo de docente
e de escola. Beatriz foi, portanto, uma professora que teve grande influência no processo de
subjetivação profissional de Clara, e a partir de sua atuação como mediadora das primeiras
experiências escolares de Clara, foi sendo internalizada como um “modelo” de professora.
Uma mediação fundamental na construção de sua relação com a educação, com a escola, com
a possibilidade, o desejo e o projeto de ser professora.
86
De acordo com Pino (2005), uma interpretação superficial das palavras de Vigotski a
respeito da conversão da relação interpessoal em uma relação intrapessoal poderia dar
margem a pensar que o que ocorre no plano pessoal é uma imitação do que ocorre no plano
social. Uma interpretação mais atenta vai revelar que não se trata de imitação, mas da
“significação que a palavra do Outro tem para o Eu”. (Pino, 2005, p.104). No caso de Clara, a
significação que a mediação social (palavras, ações, sentimentos) da tia Beatriz tem para a
menina ao descobrir e ao se relacionar com a escola e com uma professora.
A tia Beatriz foi fundamental na escolha e na constituição pessoal e profissional de
Clara, que descreve com detalhes o fascínio que a menina tão pequenina experimentava ao
freqüentar a escola e a sala de aula de sua tia. Mediada pela prática da tia Beatriz, a escola
adquire para Clara o significado de lugar onde há história e desenho. É um local onde ela
pode aprender a desenhar e contar histórias, como fazia a tia.
“Aí eu ia, sentava, lembro direitinho, eram aqueles bancos
de sentar de dois... Como eu era muito pequenininha aí
podia ficar de três! (...) eu ia assistir a minha tia dar aula, e
minha tia contava muita história. E eu ficava fascinada com
as histórias. Tanto que para mim escola tinha história e
desenho. A minha primeira concepção de escola... quando
falava que ia aprender... (...) para mim, o que eu ia aprender
era a contar história, não era outra coisa. Eu ia aprender a
contar história igual minha tia, desenhar igual minha tia
desenhava... Então era fantástico e eu gostava muito. De vez
em quando ela me levava... para a escola com ela. Não era
muito, não, mas ela me levava lá para essa escola com ela.
E cada vez que ela me levava, eu via esse lado da história...
que eu gostava muito.”
Clara foi introduzida no universo escolar por uma pessoa muito querida, o que fez com
que sua concepção sobre esse universo fosse permeada por situações extremamente
agradáveis, em que se contavam histórias e se desenhava... Entretanto, ao ingressar
oficialmente na escola, ela percebeu que nem todas as professoras eram como a sua tia:
“Quando eu fui para a escola... para o pré... (...) a professora
não era igual à tia Beatriz.”
87
Clara não gostou da instituição nem da professora, porque eram muito diferentes
daquelas que conhecera. Conta que até fugiu da escola um dia, deixando a sua mãe confusa,
afinal a filha gostava tanto de escola! Não se tratava de qualquer escola nem de qualquer
professora, pois o que Clara havia internalizado como escola e como professora estava
diretamente relacionado ao que havia vivido com a tia Beatriz. Sendo assim, uma instituição
tão diferente daquela que conhecera e uma professora tão distante e, conseqüentemente, tão
diferente da tia Beatriz tornaram-se insuportáveis, levando a menina até mesmo a fugir.
Martins (2007b) explica que a internalização ocorre por meio da apropriação dos
signos, que para Vigotski são os mediadores semióticos das relações do homem com a cultura
humana, isto é, os constituintes centrais do desenvolvimento do psiquismo. “Graças a eles o
homem pode criar modelos mentais dos objetos da realidade e atuar com eles, e a partir deles,
no planejamento e coordenação da própria atividade.” (Martins, 2007b, p.126). Clara havia
criado os próprios modelos mentais acerca da experiência escolar, que não estavam de acordo
com a nova experiência que estava vivendo.
Além de estar constituindo uma concepção de escola, Clara já estava constituindo a
sua concepção do que representava ser professora. Para ela, significava ser próxima, afetiva.
Uma professora que não se sentava ao lado dos alunos, nem pegava na mão das crianças... não
era o que ela queria. Para ser professora, no seu entender, era necessário ter contato físico com
os alunos, construir uma relação de proximidade. Além disso, era necessário saber muitas
histórias e ensinar muitas histórias aos alunos, além do desenho, porque ir para a escola,
aprender, significa aprender a contar história e desenhar... Mas não qualquer história e
qualquer desenho, sempre como a tia Beatriz fazia: “(...) Eu ia aprender a contar história
igual minha tia, desenhar igual minha tia desenhava (...)”.
31
31
Os trechos em itálico e entre aspas referem-se à fala de Clara.
88
Clara começa a estabelecer comparações entre a “primeira professora”, Beatriz, e
aquelas que ela foi encontrando em sua história escolar. Sua memória elabora pontos de
comparação já na época em que ainda era uma criança. Traz elementos como
silêncio/conversa, afetividade, alunos considerados difíceis, turmas grandes.
“E a tia Beatriz, a sala da tia Beatriz, ela não tinha (...) total
silêncio não. Mas o que tinha na sala da tia Beatriz era...
quando conversávamos, quando os alunos dela
conversavam, a tia Beatriz, ela entrava naquela conversa. E
sempre ela entrava naquela conversa e puxava aquela
conversa para um tema que ela estava falando, entendeu?
Então ela não tinha aquela coisa de ficar todo o tempo
mandando o menino calar a boca. E eram umas salas
imensas e tinha muito aluno na sala! Eu lembro que teve uma
escola em que ela trabalhou, que era essa lá em cima, lá
perto da minha casa, com aquelas carteirinhas de dupla,
sabe? Eu ficava encantada com tanto menino! (...) faziam
com ela a mesma coisa que fizeram comigo depois –
aqueles meninos que tinham dificuldades, muita dificuldade,
eles davam para ela. Mas a tia Beatriz, a questão dela era a
afetividade. Era uma escola estadual, era uma escola
pobre... mas tinha muito essa questão da afetividade,
muito... e a participação dos alunos...”
Em seu relato, Clara apresenta uma docente que gostava de seu trabalho e
demonstrava muito respeito pelos alunos. Pode-se considerar que a tia Beatriz, em casa e na
escola, era a mesma pessoa. Essa coerência parece ter sido fundamental tanto para a
admiração que despertou em Clara como no ensinamento, subjacente a esta coerência, de que
seus alunos eram tão importantes e mereciam tanta consideração como um parente. O mesmo
respeito, carinho e amor experimentados por Clara, a sobrinha, foram vivenciados pela aluna
Clara, na sala de aula da tia Beatriz, a ponto daquela dizer:
“Porque eu nunca via, depois da minha tia, em escola
nenhuma, alguém que levasse alguém para a escola, um
ente, um filho, ninguém. Então, o que eu pensava da minha
tia? Que ela deveria gostar tanto de mim quanto dos alunos
porque ela não ia me levar a um lugar que ela não gostasse.
89
Beatriz, a tia e professora de Clara, pode ser descrita como uma pessoa que sempre a
acompanhou. Seja pela recordação viva e marcante deixada em Clara desde que ela era bem
pequenina, ficando em sua memória como um modelo de professora, seja como alguém que a
seguiu efetivamente na carreira docente, no processo de escolha da profissão de forma
consciente, durante a inserção no mercado de trabalho, ou como ausência física quando Clara
estava longe e não podia contar com a sua ajuda para começar a trabalhar em uma cidade em
que ela não conhecia ninguém.
“(...) lá [em Belo Horizonte] eu não tive iniciativa nenhuma de
procurar uma escola para eu trabalhar, porque eu era
recém-formada, eu estava fazendo faculdade (...) e eu não
conhecia ninguém. Lá não tinha tia Beatriz para me ajudar!
Porque aqui foi ela quem me ajudou, que foi na Delegacia
de Ensino, que fez inscrição junto comigo. E lá não tinha tia
Beatriz... aí eu me senti assim. Lá eu me sentia incapaz, não
procurei escola nenhuma. Eu nunca procurei escola
nenhuma.”
O vazio permeou este período de vizinhança distante da educação. É o que conta a
professora Clara quando relata a experiência de morar ao lado de uma escola em Belo
Horizonte, quando trabalhava em uma empresa. O que a escola representava para Clara? Suas
palavras levam a compreender a escola como um espaço de vida, vida presente nas ações e
pensamentos dos “meninos” e ausente no mundo empresarial em que ela se encontrava, de
máquinas, telefones, dinheiro... coisas... Ambiente inanimado.
“Eu sentia o meu vazio... quando tinha aula aos sábados, eu
levantava de manhã, abria a janela do meu quarto e ficava
olhando aquele mundo de menino lá no pátio, vendo o que
é que os meninos estavam fazendo e pensando, assim:
quanta vida que tem nessa escola e eu lá na empresa, só
rodeada de telefones, de máquinas, de dinheiro... era uma
empresa de jóias...”
Para Clara, ser professora parecia ser bem mais interessante do que trabalhar em
uma empresa. O ambiente escolar no qual trabalha uma professora representava para ela
um ambiente vivo, que instigava sua curiosidade – “o que é que os meninos estavam
90
fazendo e pensando”, um contexto habitado por pessoas – “aquele mundo de menino”,
por relações humanas. No ambiente da empresa, ao contrário, são destacados os objetos
e a ausência de relações humanas, de vida.
“(...) quando eu voltei para a escola, eu tive certeza de que
era aquilo que eu queria. Porque eu já tinha uma experiência
fora da escola. (...) Eu sabia que o que eu queria era a
escola.”
Considero que o confronto de dois contextos tão diversos para Clara foi decisivo para
que ela fosse compreendendo qual seria o seu caminho profissional. Tal caminho também não
seria constituído a partir do mundo concreto da professora e aconteceria como um processo?
A este processo Fontana (2000a, p.109) chama de aprendizagem, ao invés de escolha, porque:
Enquanto a escolha parece ser um elemento demarcador do percurso, instaurando os
limites entre o antes e o depois de ter sido feita, o aprendizado evoca uma idéia de
movimento de elaboração e de re-elaboração dos significados e sentidos das práticas
culturais em nós.
A aprendizagem de Clara, portanto, a levava a considerar os significados e sentidos
das práticas culturais referentes à escola e à profissão docente, observados, percebidos e,
principalmente, vivenciados em suas relações como aqueles nos quais gostaria de investir
como formação e como trabalho.
“Eu sabia que o que eu queria era a escola. Então, a partir
daí, eu comecei a ver assim todas as possibilidades que eu
teria de estudo, de investir, o que eu queria aprender, quais
as turmas que eu ia querer trabalhar... porque a tia Beatriz
sempre se caracterizou assim, se formou para trabalhar com
uma determinada turma. Ela falava comigo: olha, eu já
trabalhei em todas... Mas ela gostava muito de quarta série,
dos meninos da quarta série. Então ela se dedicou mais. (...)
eu comecei a pensar desde o começo que eu também
queria ser assim. Eu também queria ter um perfil, hoje é o que
a gente chama de perfil. Eu fiz opção, com o tempo...
Naquela época, não, eu queria seguir tanto a tia Beatriz que
eu comecei com terceira e quarta.”
91
Ainda tendo como exemplo a conduta da tia Beatriz, Clara começou a pensar e a
desenvolver um perfil de professora, inicialmente seguindo os mesmos caminhos de sua tia-
professora Beatriz e posteriormente construindo o próprio caminho que a levou a tornar-se
alfabetizadora
32
.
Durante sua graduação em pedagogia, Clara sugeriu que a tia fosse convidada para dar
uma palestra sobre a autoridade do professor, pois estava acontecendo uma exposição na
faculdade sobre este tema. Ao narrar esse fato, ela novamente destaca que a tia sempre foi
modelo para ela, daí a idéia de convidá-la. Nessa palestra Beatriz relatou que quando sentia
que o seu aluno tinha dificuldades “na matéria”, ela não chamava os pais, pois a sua primeira
atitude era colocar a criança no colo e ensiná-la, porque “ela sabia que metade daquele
problema era afetivo”. A fala da tia Beatriz foi um choque e uma surpresa para todos, menos
para Clara, pois
“...aquilo confirmou tudo para mim, o que eu tinha
construído em mim tendo ela como modelo. (...) Ela foi uma
pessoa muito especial para mim (...) eu acompanhei a
carreira dela, eu vi nela esse lado afetivo, que é esse que eu
gosto demais nos meus alunos, eu tento ter essa proximidade
com eles, que eu dou tanto valor às relações afetivas.”
É muito interessante esta passagem da presença da tia Beatriz na faculdade de Clara,
em um outro momento de sua vida, bem diferente daquele em que a pequena menina esteve
com a tia em sua escola e em sua sala de aula. Aqui, a tia-professora vai à sala de aula da
sobrinha, quando esta já é uma jovem se preparando para a carreira docente. É importante
destacar dois pontos deste novo encontro de ambas. Em primeiro lugar, o fato de ser uma
oportunidade de confirmação de Clara acerca do que ela, ainda criança, havia aprendido com
a tia-professora sobre o que significa ser docente, no sentido da importância da relação afetiva
com os alunos. Além disso, a forma como a tia de Clara apresentou sua prática docente
32
Clara como professora e sua constituição como alfabetizadora será apresentada detalhadamente na terceira
categoria.
92
demonstrou que ela não fazia distinção entre o conhecimento e a afetividade, ou entre as
dimensões cognitiva e afetiva, mas ao contrário, assim como percebido pela sobrinha quando
criança, o processo de ensino-aprendizagem envolvia estas dimensões, a cognitiva e a afetiva,
dialeticamente relacionadas.
Leite (2006) afirma que o “processo ensino/aprendizagem” tem como característica a
relação “sujeito-objeto-mediação” marcada profundamente pelas dimensões afetivas, e que “a
qualidade da relação que se estabelece entre sujeito e objeto é também de natureza afetiva e
depende da qualidade da história de mediações vivenciadas pelo sujeito em relação ao objeto,
no seu ambiente cultural, durante sua história de vida”. (p.18).
Aprender a considerar a afetividade como uma premissa das relações entre professor e
aluno no processo ensino-aprendizagem, no contexto de sala de aula, foi para Clara uma
aprendizagem fundamental que se iniciou na infância, no primeiro contato com a tia Beatriz e,
pela mediação da tia-professora, no primeiro contato com a escola, com a sala de aula, com a
relação professor-aluno, com os processos de ensino-aprendizagem. Este aprendizado foi
muito marcante para Clara, uma mediação inicial de “qualidade” (Leite, 2006) que, depois de
muitos anos, foi reafirmada na fala da tia-professora a Clara e a seus colegas e professores de
faculdade.
Ainda sobre a relação com a tia-professora Beatriz, Clara conta recorda um episódio
em que ela precisou de ajuda para estudar frações, conteúdo que não sabia. Beatriz lhe
ensinou de um modo que não só foi apropriado por Clara, como passou a compor o modo
desta ensinar frações a seus alunos quando trabalhou com quarta série. No trecho a seguir
ficam evidentes essas marcas deixadas por Beatriz.
“Tanto é que quando eu fui fazer meu primeiro concurso da
prefeitura, naquela época caía conteúdo de primeira a
quarta série e eu sempre detestei matemática, eu não
gostava de fração. Eu não sabia fazer conta com fração. E
quem é melhor em matemática é a tia Lígia e a tia Luísa. Eu
não fui a elas. Eu fui à tia Beatriz para ela me ensinar. E ela
93
me ensinou. Nunca mais eu tive dificuldades. Depois eu fui
dar aula aqui na quarta série, fração foi uma coisa que eu
tirei de letra, porque eu ensinei para os meninos igualzinho a
tia Beatriz me ensinou. Então, ela é diferente. Tem as outras,
as mais novas. Mas cada uma delas tem características
diferentes, sabe? E a que eu mais tenho afinidade, e isso
sempre, desde pequena, é a tia Beatriz.”
Ao realizar as análises por meio das três categorias estabelecidas, senti dificuldades de
selecionar os episódios em que Clara mencionava a tia Beatriz e suas mediações, porque são
muitos momentos em que ela cita a tia-professora e os episódios dizem respeito às três
categorias. Quando fala da tia Beatriz, Clara fala de uma pessoa de sua família que foi
fundamental para a sua escolha profissional, já que desde menina acompanhou com encanto a
tia em sua profissão. Mas se pensarmos na tia Beatriz como a primeira professora de Clara,
porque esta começou a freqüentar a escola com a tia, a aprender com a tia as histórias de que
ela tanto gostava, por exemplo, as narrativas de Clara já dizem respeito à categoria sobre as
professoras de Clara. A tia Beatriz, porém, fez e faz parte da formação de Clara e da sua
atuação como professora desde o início, daquela formação que chamei de pré-acadêmica, ao
mediar a construção das concepções de Clara sobre o que representa a escola, o ser
professora, os sentimentos em relação à escola e aos alunos, ao conhecimento, à
aprendizagem e ao acreditar e dizer a Clara que ela seria uma ótima professora, mesmo
quando a sobrinha brincava de professora, ainda pequena. Também foi responsável por deixar
evidente que para ser professora é necessário fazer uma escolha séria e consciente das
dificuldades, e que não se trata apenas de uma profissão que facilita a vida da mulher que
também é dona de casa e mãe, mas implica compromisso com a educação e não é fácil;
portanto, em primeiro lugar, é preciso gostar do ofício.
3.2.2.2. Outras professoras marcantes
94
A tia Beatriz representa para Clara um modelo de professora, a primeira mediadora
entre ela e a escola. Entretanto, outras professoras também ganharam destaque no relato da
história oral de vida de Clara e as apresento a seguir. Algumas contribuíram para a “qualidade
da história de mediações” (Leite, 2006, p.18) em relação à profissão docente e passaram a
constituir também modelos a ser seguidos. Outras, porém, também importantes, sempre
presentes na narrativa e, portanto, na memória da professora, são como uma espécie de ZDP
“ao avesso”, ou seja, como mediadoras daquilo que Clara não gostaria de imitar, de repetir em
sua prática profissional.
Nas séries iniciais, Clara teve algumas experiências diferentes e até desprazerosas em
sala de aula. Da primeira série ela conta que não gostou, porque a única história que a
professora trabalhava era a história “Os três porquinhos”, com a qual foi alfabetizada de
maneira pouco afetiva e criativa.
“Primeira série... um caos!!! (...) Na minha primeira série, a
professora era brava demais (...) Andava com uma régua na
mão e eu tinha que decorar o livro Os três porquinhos. Eu
detesto Os três porquinhos! (...) A única história que a gente...
sabia... era a história Os três porquinhos.”
A segunda série, por sua vez, ficou marcada pela descoberta da biblioteca, com a
professora “maravilhosa” que contava uma história “em capítulos”. Foi uma época em que,
pela primeira vez após a experiência com a tia Beatriz, o mundo das histórias e da imaginação
estava de volta à escola.
“Na segunda série... que professora maravilhosa!! Na
segunda série, essa professora levava a gente para a
biblioteca. Olha, eu passei (...) o pré em uma escola. Na
mesma escola, primeira série. Na mesma escola, segunda. Só
na segunda série foi que eu fui apresentada à biblioteca. Aí
eu descobri o que tinha atrás daquela porta e essa
professora resolveu contar para a gente – eu não lembro o
nome da história – mas é uma história que ela contava em
capítulos... Cada dia ela levava a gente para lá e contava
um capítulo. E nessa história tinha uma Terra dos brinquedos.
(...) segundo essa história, à noite os brinquedos tinham vida.
95
Depois que todo mundo dormia, esses brinquedos tinham
vida e aí eles iam para esse lugar com uma nave, que seria
hoje a minha Terra dos Brinquedos.”
Clara conta que foi tão significativa a segunda série, que começou a cuidar das suas
bonecas, em casa, como se elas tivessem vida, assim como aqueles brinquedos da história que
a professora contava em sala de aula. A escola passou a acompanhá-la, a fazer parte de sua
vida em casa.
“Então essa professora assim... ela mexeu muito comigo,
muito... com essas histórias, o ir para a biblioteca.”
A recordação de Clara sobre a experiência com a professora da segunda série aponta
para uma experiência tão importante para a menina que estava descobrindo o mundo da
leitura que, observando a prática da professora Clara hoje, constata-se que muitos elementos
vivenciados naquele momento de sua vida foram sendo apropriados e internalizados a ponto
de fazer parte da memória desta. Isso pode ser observado tanto em sua narrativa quanto em
sua prática pedagógica apresentada anteriormente, visto que o projeto de alfabetização que a
professora criou tem uma história que se passa na biblioteca e também na “Terra dos
Brinquedos”, com personagens-brinquedos que têm vida. A mediação dessa professora de
segunda série, portanto, foi fundamental para a subjetivação profissional de Clara.
Em geral, a narrativa da docente protagonista deste estudo traz lembranças bem
precisas quanto aos nomes das professoras que teve, assim como de suas características físicas
e de personalidade. Porém, em sua fala ela destaca a maneira como as relações com estas
professoras a marcaram, de acordo com as relações vivenciadas entre professora e aluna e
também de acordo com as posturas e práticas pedagógicas de cada uma delas.
“Na quarta série... (...) Na quarta série eu achava que tudo
naquela sala era morno demais. A minha professora (...) tinha
o olho azul... Essa professora era séria demais, daquelas
professoras que mal falam bom dia. Ia para o quadro,
trabalhar no quadro... (...) E aquela sala de aula... morna!
Aqueles meninos, todos uns atrás do outros, entendeu?”
96
Neste trecho, por exemplo, ela recorda uma professora muito séria e distante.
Apresenta a sala de aula organizada de forma que não favorece a partilha, a comunicação e a
relação entre os alunos, e a relação com a professora parece ser muito restrita. Ela fala de uma
sala de aula “morna” e sem movimento, em que nada acontece, o que a incomoda muito. Foi
nessa sala de aula, com essa professora, que a menina Clara tentou provocar um
acontecimento diferente para movimentar a aula. Ela estava tentando dizer à professora que
do jeito que a situação estava não era interessante, que poderia mudar. Foi quando ela
escreveu as cartas anônimas. A sua atitude, como relatado anteriormente, foi interpretada
como travessura. A professora até passou a observá-la não para dar voz à aluna e procurar
saber por que ela havia feito aquilo, mas para tentar controlá-la. Pode-se afirmar que a forma
de relação estabelecida com essa professora ficou memorizada por Clara como modelo de
professora a não ser seguido.
Ao concluir a quarta-série, Clara passou a estudar na Escola Normal. Inicia uma nova
experiência escolar, pois esta era uma escola onde estudavam e trabalhavam exclusivamente
mulheres, era uma escola confessional “de freiras” e na qual Clara se definiu como uma
aluna “terrível”, exceto em relação a uma professora, a Sofia. Nesse período, portanto,
emergem como mediadoras da constituição de Clara, a partir de sua narrativa, a figura da
professora de português, Sofia, e a aluna Clara. A diferença atribuída a Sofia em relação às
demais professoras da Escola Normal é assim expressa por Clara:
“Só tinha uma professora que eu amava. A professora de
português, a professora de português eu amava. As outras
não.”
O que haveria de tão especial em Sofia, para ser diferenciada de tal forma? O trecho a
seguir é bastante significativo e traduz como a mediação desta docente em relação a Clara foi
importante e de “qualidade” (Leite, 2006), marcando a aluna com vários elementos
imprescindíveis à profissão docente.
97
“Da Sofia ... eu gostava muito das aulas embora ela fosse
uma pessoa muito séria (...) ela chegava na sala, não tinha
uma conversa na sala. A sala era... Ela tinha o domínio, uma
facilidade para explicar para a gente, que eu era
encantada. E outra coisa: ela valorizava muito a leitura e era
tudo o que eu amava. E aí ela tinha a mesma simpatia por
mim, por quê? Ela dava um livro e dava quinze dias para ler
o livro. Dali a três aulas eu já tinha lido o livro inteirinho. Então
eu chegava para ela e falava assim: Sofia, já terminei de ler
o livro. Lembro que ela olhava pra mim e falava assim: já? Eu
falava: já. Aí ela: já fez o resumo? Tinha que fazer resumos.
Ela adorava resumos. (...) Aí ela falava: pode entregar. Aí eu
entregava e falava: você não tem um outro título para eu ler
não? Então, assim, ela gostava disso, ela sabia que eu
gostava de ler. Existia uma interação e essa escola em que
eu estudava era uma escola de freira, em que só estudavam
as mulheres, e era uma disciplina... e eu não tinha disciplina
e eu era terrível! Mas com a Sofia... Nas outras aulas eu podia
fazer um samba, entendeu? Porque eu não gostava, aula de
matemática então, Deus me livre! Mas a aula dela não. A
aula dela era diferente. A maneira dela colocar, dela
explicar, entendeu? A quantidade de exemplos que ela
dava. Eu lembro que a gente trabalhava com verbo.
Naquela época ela pegava o verbo, você tinha que
conjugar em todos os tempos aquele verbo. Aquilo dava três,
quatro páginas... ela passava aquele mundo de verbos. Eu
fazia aquilo com o maior gosto. Se fosse outra professora,
talvez eu não fizesse. Mas a maneira dela falar, enfatizar... ela
lia livros, assistia a filmes... naquela época a gente não
assistia a filme assim, entendeu ? Ela assistia a filmes e ela
contava na sala para nós, nossa!, era a mesma coisa de
você ver o filme quando ela começava a contar. Ela era
uma das poucas professoras que tinham um domínio de
sala, mas não por imposição. Ela era uma pessoa que, na
sala, ela tinha autoridade. As meninas todas, a gente ficava
assim: oh... Então, como as outras que falavam muito, batiam
a régua na mesa, ela nunca... a Sofia falava baixinho, e ela
falava baixinho. Mas eu era encantada com tudo o que ela
sabia. Com tudo o que ela via... eu pensava... eu olhava a
Sofia... Ah!!! Quando eu crescer eu vou ser igual a Sofia! (...)
Mas ela era um modelo, sim.”
A grande admiração por Sofia envolve aspectos que Clara já valorizava quando aluna
e continuou a valorizar como professora. Sofia tinha “facilidade para explicar” o conteúdo, o
que faz supor que dominava este conteúdo, fornecendo vários exemplos, mas não restringia as
98
aulas a ele, pois também compartilhava com as alunas o seu interesse por filmes e livros.
Clara encantava-se com os conhecimentos da professora, partilhando e ao mesmo tempo
ampliando, graças à mediação desta, seu amor pela literatura. Nas palavras de Clara pode-se
perceber uma docente bastante identificada com a profissão e entusiasmada com a prática
pedagógica cotidiana. Todos estes aspectos levaram a aluna Clara a comportar-se de maneira
diferente nas aulas de português, distintamente do que ocorria nas outras matérias.
Também é possível reconhecer e ressaltar, nessa narrativa, algumas características que
a própria docente Clara apresenta em sala de aula, como uma não-submissão ao conteúdo
curricular; a partilha, com os estudantes, de outros interesses como a literatura e a música; o
domínio da sala de aula, fundamentado no respeito e no amplo conhecimento do conteúdo.
Clara sentia-se valorizada, reconhecida e respeitada por Sofia, o que a fazia agir
também com respeito e reconhecimento em relação à professora, e a realizar com aplicação
mesmo as tarefas mais longas, que, “se fosse outra professora”, talvez ela não fizesse. Nos
modos de ensinar da docente, conseguia compreender e ainda tinha a possibilidade de
conhecer novos mundos através das leituras, dos filmes que ela contava em sala de aula, da
imaginação. Mais uma vez a presença de histórias, da literatura, da imaginação.
A relação com Sofia constituiu-se em mediadora da subjetivação profissional de Clara,
na medida em que ela pôde observar que, em relação à professora de português, ela era
diferente porque tinha interesse pelo que era ensinado. Assim, ela foi se apropriando dos
elementos que diferenciavam Sofia das outras professoras, principalmente a importância de
despertar nos alunos o interesse pelo objeto de conhecimento. Pelisson (2006) diria que Clara:
Acima de tudo, percebeu que o aluno só se envolve com aquilo que desperta seu
interesse. Estava a caminho de entender que a aprendizagem só ocorre quando há
envolvimento do sujeito com o objeto e que a afetividade é fator indissociável nesse
99
processo. O aluno não só precisa aprender, mas gostar do que aprende, ver significado
naquilo que aprende e daquilo que se apropria. Entender, compreender. (p.295).
Assim como a tia Beatriz, Sofia era uma professora, a seu modo, afetiva e que contava
histórias. A afetividade, que integra o processo ensino-aprendizagem como destaca Pelisson
(2006), pode ser vista pela fala de Clara quando menciona que a professora também tinha
simpatia por ela – a aluna terrível e que dava trabalho na escola. A leitura e a literatura
permitiram uma forte identificação entre ambas. A autoridade da professora, apesar da voz
baixa e da seriedade, representava uma presença permeada de saber e de respeito e não de
imposição, de um saber acessível e instigante.
Mas como era a aluna Clara, afinal?
“Sexta série, eu dei muito trabalho, toda vida eu dei muito
trabalho. Sétima série, nossa! Como eu dei trabalho. Por quê?
Porque eu achava tudo muito parado, eu ficava... nos
horários do recreio eu subia em cima do muro, porque se eu
subisse em cima do muro, essa escola ficava num plano mais
alto, e o Colégio Estadual que era onde todos os meninos da
minha turma estudavam, eles ficavam embaixo. Então eu
subia no muro aqui e dava pra ver o pátio lá, quando eles
estavam no recreio.”
“Mas acontece que eu sempre tinha notas boas.”
Em suas palavras, Clara era uma aluna que tinha boas notas, que fazia todas as
atividades em dia, que era caprichosa e coloria mapas como ninguém. Mas também era uma
aluna “terrível”, que não gostava de marasmo, de monotonia, de repetição. Gostava, sim, de
movimento, de fantasia, de literatura, de aprender com histórias, de ir para o mundo da
imaginação. Em uma mesma escola, entretanto, havia uma professora com quem Clara se
portava diferente, pois participava e tinha tanto interesse que, mesmo matando as aulas de
outros professores, as de português ela não matava. Esse contraponto é muito relevante,
porque evidencia o fato de não haver um perfil estático e pronto de aluna, com as
100
características estabelecidas. O que podemos perceber é a aluna Clara em relação à professora
Sofia, ou a aluna Clara em relação a uma professora específica ou um contexto específico.
Considero muito importantes as reflexões atuais de Clara a respeito da aluna que foi.
Ela não era a “aluna modelo”, “perfeita”, mas uma criança que conversava bastante durante as
aulas, questionava os professores, “subia no muro”, ia parar na diretoria, enfim. Entre tais
características, no entanto, ela destaca que “sempre tinha boas notas”, nunca deixando de
interessar-se pela aprendizagem e pelo conhecimento, principalmente quando adequadamente
mediados. Ao pensar sobre si mesma como aluna, Clara torna-se mais próxima de seus
alunos, respeitando-os ainda mais, porque consegue compreendê-los melhor. Neste caso, a
estudante ensina a professora.
Até aqui foram destacadas as principais mediações sociais vivenciadas por Clara em
suas experiências com professoras da formação profissional que denominei como pré-
acadêmica. Essas mediações foram fundamentais para o processo de subjetivação profissional
de Clara e deixaram marcas significativas que podem ser percebidas em sua prática já
apresentada brevemente no Capítulo 1. Percebe-se que uma característica importante das
professoras consideradas favoritas era a inclusão do mundo da fantasia, por via da literatura,
no cotidiano da sala de aula. Tal característica é comum entre a tia Beatriz, a professora da
segunda série e Sofia.
Naquela ocasião, Clara já pensava na possibilidade de exercer o magistério, e
considerava sua futura atuação a partir de experiências com os diversos professores que
participaram de seu histórico escolar.
Pode-se afirmar que ela apropriou-se de um modelo de docência a partir,
principalmente, das mediações da tia Beatriz e de Sofia, além da professora da segunda série e
das práticas de outras docentes que passaram a constituir a sua memória como exemplos a não
serem seguidos. Todas essas vozes passaram a constituí-la e podem ser percebidas em muitos
101
momentos em que ela narra sua prática pedagógica em ação e em construção. Outras vozes
também passaram a compor a voz de Clara, expressa na história oral de vida, e são
constituidoras da memória da professora, em constante constituição dialética.
Ainda sobre as professoras de Clara, destaco a formação profissionalizante desta, no
curso de magistério e na graduação em pedagogia. Embora ela faça poucas referências aos
professores que teve nessa época, relata grandes decepções. As decepções têm início logo no
começo do magistério e perpassam toda a formação acadêmica da professora; decepções
relacionadas à não identificação, nestes, das principais características que ela considerava
importantes à atuação docente, apropriadas a partir de sua relação com Beatriz e com Sofia,
especialmente. Ainda que tenha tentado manter as esperanças de uma formação coerente com
o que gostaria de fazer como professora, diz nunca ter encontrado o que procurava na
formação docente inicial e oficial:
“Só que aí começa a minha decepção... Porque aí o que os
professores blá blá blá falavam, eu não conseguia encaixar,
nem na Sofia, no jeito que ela trabalhava e nem... com o
sentimento da minha tia.”
Destaco, a seguir, alguns trechos sobre a formação profissional docente inicial de
Clara. Nesta fala, ela critica a formação no magistério ao relatar um episódio em que se dirige
a uma professora da graduação em pedagogia e pergunta a respeito da alfabetização, porque
nessa época tinha medo de precisar alfabetizar e não sabia como fazê-lo, pois não havia
aprendido.
“Eu queria saber o seguinte; oh, eu fiz um curso de magistério
que foi uma decepção para mim, esse curso de magistério.
(...) Aí a professora falou: ‘Por que você não gostou?’ Porque
o curso de magistério não é real. Tudo que você aprende ali
não serve para nada. Ela falou assim: ‘Nossa, mas você não
fez estágio, não?’ Falei: Exatamente, é um choque que você
toma. É um choque. Aí eu perguntei para ela assim: Onde
que eu vou aprender... – (...) eu tinha pavor de pensar que
algum dia eu teria que alfabetizar, porque terminei meu
magistério e eu não saberia alfabetizar uma criança,
102
entendeu? Aí eu virei para ela assim: Eu quero saber o
seguinte: Onde, quando e como eu vou aprender... por
exemplo...se eu tiver que pegar uma turma que eu vá
alfabetizar, como é que eu vou trabalhar com essa turma, de
onde que eu começo?”
Assim como o curso de magistério, considerado por Clara como um curso voltado para
uma situação ideal de escolarização e não para as crianças reais que ela encontrou no estágio,
o curso de pedagogia estava sendo pautado em teorizações, segundo o olhar da professora em
formação, e em exposições sobre a atuação docente desconectadas da prática. Daí o
questionamento acerca do processo de alfabetização explicitado na fala apresentada. Para o
desespero de Clara, a professora respondeu que ela não iria aprender ali. Então, onde iria
aprender? Conta que sentiu vontade de ir embora e deixar o curso. Na graduação em
pedagogia, quando estava oficialmente aprendendo a profissão, a decepção foi grande, pois
percebia que não conseguiria encontrar respaldo para a prática, quando se formasse.
A disparidade entre o conteúdo teórico e a prática profissional é um dos pontos
destacados por Zeichner (1997), quando ressalta a importância do practicum
33
para a
formação do professor. O autor explicita a necessidade de uma aprendizagem sistematizada e
mediada por parte do formador; de um vínculo estreito entre o aprendizado acadêmico e a
vida escolar, bem como o conhecimento acerca do contexto educacional em que o futuro
docente irá atuar; destaca, ainda, o ensino como prática reflexiva.
No episódio citado por Clara, sua professora perdeu uma oportunidade preciosa de
discutir com os estudantes de pedagogia questões fundamentais para a formação e a atuação
na escola, podendo também questionar a função do ensino superior nesse circuito.
Ao falar sobre os professores que encontrou durante sua escolarização e sua formação
docente, Clara menciona novamente a afetividade como aspecto importante para a
33
“... momentos estruturados de prática pedagogica (estágio, aula prática, tirocínio) integrados nos programas de
formação de professores.” (Zeichner, 1997, p. 117).
103
aprendizagem e reflete sobre as experiências que chama de “negativas” em relação a
professores da infância, dizendo que:
“(...) eram pessoas assim, que não tinham o mínimo de
afetividade, não tinham ligação. Mesmo na faculdade, a
gente encontra algumas assim, que mantêm uma distância
tão grande que eu me sentia como se aquele conhecimento
que ela dava ali, ele não fosse possível para mim, tamanha a
distância... Então, talvez quando criança essas professoras
que me marcaram assim, negativamente, talvez porque eu
tenha me sentido assim também, talvez por isso.”
Pensando dialeticamente na formação de Clara, tanto as professoras que a encantaram,
como aquelas que não provocaram tal impacto, contribuíram de importantes e diferentes
maneiras para a sua subjetivação profissional. Acreditar que somente as “boas professoras”
colaboraram para sua constituição é estabelecer um maniqueísmo que não ajuda a
compreender toda a riqueza humana que constitui cada um de nós, nos encontros e
desencontros com os diversos outros em nossa história de vida.
Beatriz, Sofia e outras permitiram a Clara descobrir as inúmeras possibilidades abertas
pelos caminhos do conhecimento, da imaginação e da fantasia, levando-a a querer imitá-las
“quando crescesse”. As outras professoras, ao gerarem outros sentimentos e reflexões,
igualmente despertaram processos de imitação, mas ouso dizer que às avessas, isto é, no
sentido dela não querer repetir aquilo que vivenciou. Nesse sentido, a mediação pedagógica
foi imprescindível para a organização de estratégias que pudessem favorecer o processo de
internalização de conhecimentos e de competências da Clara estudante, tanto acadêmicas
como profissionais.
De modo geral, considera-se que a mediação pedagógica ocupa um lugar especial nas
relações do sujeito, ao favorecer o desenvolvimento cognitivo e ao diferenciar-se das
mediações cotidianas, por sua intencionalidade e sistematização (Fontana, 2000b). Como
defendo aqui a idéia de que a aprendizagem da profissão docente inicia-se muito
precocemente (antes do ensino profissionalizante, formal), é interessante pensar que, neste
104
caso, geralmente não há intencionalidade e sistematização no cotidiano de sala de aula no
ensino fundamental e médio (exceto no magistério). Quero dizer que este professor não pensa,
ao preparar suas aulas ou ao entrar em classe: “preciso ser cuidadoso, pois em minhas aulas
também ensino aos estudantes conhecimentos sobre minha própria profissão”.
Além disso, como escreve Zeichner (1997, p.119), “não basta colocar os alunos-
mestres junto de ‘bons’ professores para que se obtenham bons resultados.” É imprescindível
que a aprendizagem da profissão seja organizada e mediada.
Por outro lado, Silva (2003) ressalta que
O processo de construção de si não ocorre de forma harmoniosa, mas sim através de
conflitos e crises. É exatamente na negociação que o indivíduo estabelece com o meio,
em cada situação de confronto das necessidades e significações, que ele forma sua
conduta, diferenciando-se de todos os outros membros de seu grupo, redefinindo seus
atributos e características. (p.70).
Com efeito, não existe um modo de ser professor igual a outro. O profissional antes
de tudo é uma pessoa que possui um campo de relações sociais que é significado e ganha um
sentido singular. Mesmo que Clara tenha em si as inúmeras e diversas vozes de tantos outros,
ecoando mais fortemente vozes potentes como as de Beatriz e Sofia, ela construiu uma
subjetivação profissional que é sua, singular e única. Esta constituição aconteceu por meio das
relações com o universal, através da mediação do particular (social), como destaca Oliveira
(2001). Mas não se encontra em nenhum outro lugar a não em ser em Clara, em sua memória,
em suas palavras, em sua prática. Modo de ser/fazer/saber estável e pronto? Não. Um
movimento constante e inacabado sendo constantemente mediado por outras e outras e outras
vozes, seja no âmbito pedagógico propriamente dito, seja no âmbito social e cultural mais
amplo, em uma construção que é aprioristicamente histórica.
3.2.3. CLARA, A PROFESSORA
105
Eu comecei a dar aula eu tinha 17 anos, que eu comecei a trabalhar, com a tia Beatriz...
Eu queria... dar aula...
Eu queria dar aula...
(...) e eu vou dar aula! Eu vou dar aula!
Clara – Barreto (2007)
O que está sendo é o que é e seus possíveis, ainda em movimento.
Fontana – Como nos tornamos professoras?
“Eu comecei a pensar o seguinte: eu queria, a todo custo, ser
professora. Mas a professora que eu queria ser não era... as
professoras que eu tive! Só se fosse a Sofia, que era minha
professora de português. E uma coisa que eu admirava na
Sofia (...) a sala tinha um comportamento diferente com ela
porque as pessoas se interessavam pela aula dela. A aula
dela não era maçante nem repetitiva... entendeu? E ela
sabia explicar muito bem o que ela queria e sabia valorizar o
que a gente fazia. Não era aquelas professoras... Tinha uma
raiva de pôr aqueles pontos de interrogação de todo
tamanho... entendeu? De sair riscando a prova da gente. Eu
não gostava daquilo e a Sofia não fazia isso. Então, lá na
escola das freiras em que eu estudava, eu tinha essa
professora. Essa professora eu tirava. Ou uma professora,
igual a minha tia, que ficava na minha cabeça, desde que
eu era pequenininha... Por quê? Porque... eu pensava que
ela tinha um sentimento pelos... pelos alunos diferente do
que eu via em outros lugares. Porque eu nunca via, depois
da minha tia, em escola nenhuma, alguém que levasse
alguém para a escola, um ente, um filho, ninguém. Então, o
que eu pensava da minha tia? Que ela deveria gostar tanto
de mim quanto dos alunos, porque ela não ia me levar num
lugar que ela não gostasse. Então, essa alma do negócio eu
queria.”
Apresentar Clara como professora é o propósito desta categoria. Uma professora que,
como foi dito anteriormente, traz as marcas de uma formação que teve seu início bem cedo,
quando ela ainda era criança, e continuou durante todo o seu percurso de escolarização.
Percurso em que foi se tornando sensível aos signos referentes ao trabalho educativo, a partir
de processos tanto de identificação quanto de oposição em relação às vivências escolares, aqui
destacadas principalmente no que se refere às relações com suas professoras. Ao dialogar com
106
Fontana (2000a), encontramos similaridade entre as palavras da autora e o processo narrado
por Clara.
Fui me tornando “sensível aos signos” do trabalho educativo na identificação e
oposição ao tipo de educação que eu vivi, em casa e na escola, mediada pelos cursos
que fiz (mesmo aqueles que não voltados para o magistério), pelo encontro com outros
modos de “significar” o trabalho educativo, pelo encontro/confronto com os alunos.
(pp.109-110).
Tentarei ilustrar os significados construídos e em construção por Clara, em alguns
trechos nos quais ela descreve a sua prática, perpassada o tempo todo pelas vivências
educacionais trazidas na história oral de vida, e portanto, constituintes da memória da
professora. O trecho do relato que introduz esta categoria destaca duas professoras, Beatriz e
Sofia, cuja mediação foi apresentada na categoria “As professoras de Clara”. Os aspectos que
marcaram Clara em sua relação com cada uma delas e que foram aprofundados na abordagem
das marcas das professoras de Clara estão presentes em vários momentos da prática
pedagógica da professora protagonista da pesquisa, que aqui se explicita.
Em casa, Clara começou a ocupar o lugar de quem ensina em relação aos irmãos
menores, na mesma época em que cursava o magistério e já iniciava os estágios. Ela precisava
cuidar dos seus irmãos, o que incluía ajudá-los nas tarefas de casa.
“Fazia magistério à noite... (...) Fiz estágio. (...) Tinha uma
supervisora ótima! (...) Mas eu fazia estágio assim... Eu
pegava poucos, porque eu não podia ficar muito tempo
fora de casa (...). Porque minha mãe ficava muito fora e eu
cuidava dos meus dois irmãos. Então, assim, eu tinha que pôr
menino para fazer tarefa de casa...”
Em sua primeira experiência profissional como professora, aos dezessete anos, Clara
destaca novamente a sua decepção e a dicotomia teoria e prática, questões discutidas
anteriormente. Nesse momento ela questionava o que havia aprendido até ali, julgando que
107
não servira “pra nada”, tamanha a dificuldade para lidar com os alunos, que pulavam a janela
e faziam-na pensar em estratégias para que a aula pudesse efetivamente acontecer. Estava
diante de alunos reais, que não correspondiam às metodologias de ensino aprendidas no
magistério.
“(...) minha tia arrumou para mim (...) uma substituição...
quinze dias... Ah!(...) eu quase morri nessa escola. Primeiro,
porque me deram uma sala em que os meninos pulavam a
janela o tempo inteiro. Pulavam a janela e entravam pela
porta, pulavam a janela, entravam pela porta. Era uma coisa
assim: a sala era um caos... E aí eu tive que arrumar mil e
uma estratégias para poder dar conta dessa sala. Quando
eu cheguei nesse ponto eu pensei: ‘Para que serviu tudo o
que eu aprendi? Nada. Para mim não estava servindo para
nada. Porque as coisas que eu tinha aprendido de como
você se... portar na sala de aula, como é que você vai
trabalhar com os alunos, era para alunos que não eram
aqueles meninos ali, não! (...) Então o meu primeiro choque
foi essa escola.”
Muitas vezes, o docente que ensina uma profissão não consegue mostrar aos alunos a
relação entre teoria e prática, o que pode levá-los à concepção equivocada de que os termos
desta relação são excludentes. O docente envolvido em cursos profissionalizantes (tanto no
ensino médio como no superior) precisa ter uma experiência profissional baseada em um
referencial teórico sólido, que lhe permita compreender a relação dialética entre a experiência
prática e a teoria. Toda prática sempre traz em si uma teoria, mas geralmente o que ocorre é
que as concepções dos autores são superficial e indevidamente apropriadas e isso pode trazer
conseqüências desastrosas para a “aplicação na prática”. Além disso, a teoria não apenas
fornece os óculos com que olhamos o mundo, mas ela pode sofrer modificações por meio de
pesquisas e estudos, ou seja, não pode ser considerada dogmaticamente imutável, a-histórica.
Ainda que não seja a intenção desta pesquisa aprofundar o estudo acerca dos aspectos
relativos à formação profissional de Clara no que diz respeito às políticas públicas de
formação docente, faz-se necessário situar esta formação em um contexto educacional mais
108
amplo, de acordo com o momento histórico em que ocorreu. Como se viu na história da
professora, ela cursou o magistério no período de 1982 a 1984 e iniciou o curso de pedagogia
no ano de 1985, concluindo-o em 1994. A maior parte da formação profissionalizante de
Clara ocorreu, portanto, na década de 1980 e início da década de 1990.
Segundo Saviani (2004), ao longo dos anos de 1980, dois vetores distintos
caracterizavam a organização dos educadores no Brasil; um representado por entidades
acadêmico-científicas e voltado para o significado social e político da educação e para a busca
de uma escola de qualidade, e o outro representado por entidades sindicais e preocupado com
o fenômeno econômico-corporativo. Os anos 1980 também foram marcados pela tentativa de
ruptura com o pensamento tecnicista e a busca por destacar o caráter sócio-histórico da
formação do educador. Entretanto, na década de 1990, a concepção tecnicista retornaria com
nova roupagem, com base nas políticas neoliberais (Freitas, 2002; Saviani, 2004).
O contexto educacional brasileiro referente à época de formação de Clara, portanto,
estava permeado por situações de transição e de movimentos contraditórios no âmbito da
educação, da escola e do papel do professor. Oscilava entre uma perspectiva mais crítica, isto
é, comprometida com a qualidade da escolarização e com os aspectos sociais e políticos da
educação; uma perspectiva que envolvia a organização de entidades dando mais ênfase ao
caráter profissional e do trabalho do professor e dos profissionais da educação, e uma
perspectiva tecnicista de educação, respaldada pelos interesses e pela ideologia da política
neoliberal.
Tais aspectos concretos do cenário educacional brasileiro também fizeram parte, de
um modo ou de outro, das relações de Clara com seus professores. De acordo com Fontana
(2000a), nós aprendemos a ser professores nas relações que estabelecemos com o outro e
entre nós, mediados pelos significados e pelas práticas culturais. A autora ainda acrescenta
que:
109
Tornamo-nos professores e professoras tanto pela apropriação e reprodução de
concepções já estabelecidas no social e inscritas no saber dominante da escola
(permanência), quanto pela elaboração de formas de entendimento da atividade
docente nascidas de nossa vivência pessoal com o ensino, nas interações com nossos
alunos, e do processo de organização política, com nossos pares, em movimentos
reivindicatórios (mudança). Diferentes, no entanto, nos “modus
34
de focar”. (p.44).
No caso de Clara, pode-se afirmar que a sua subjetivação profissional caminhou na
contramão do saber e das práticas dominantes, se considerarmos a perspectiva tecnicista
pautada na ideologia neoliberal. A constituição de seu vínculo com a escola e com a profissão
docente, bem como as suas representações das mesmas, dizem respeito mais a vivências
pessoais na infância fora e dentro da escola, caracterizadas por um constante movimento de
identificação e oposição. Nesse sentido, pode-se afirmar que Clara apropriou-se e internalizou
a partir de suas experiências modos de ser e de não-ser professora. Tais modos não
correspondem a uma postura tradicional de educação e apontam mais em direção a uma
educação voltada para uma escola de qualidade, nos termos de Saviani (2004), pela tentativa
de valorização do aluno, de um ensino criativo e que rompe com a dicotomia entre os aspectos
cognitivos e afetivos, bem como por uma prática que busca contextualizar a aprendizagem e
promover uma visão integrada de conhecimento e de homem.
A trajetória profissional de Clara foi iniciada, portanto, assim que ela concluiu o
magistério, com a substituição relatada acima (primeira experiência como professora). Após
essa iniciação, ela ficou afastada da educação em dois momentos, quando morou em Belo
Horizonte e não trabalhou como professora. Na volta a Uberlândia, trabalhou como professora
de Educação Infantil durante três anos. Foi morar novamente em Belo Horizonte, e quando
34
Em itálico no original.
110
retornou a Uberlândia começou a trabalhar como professora de primeira série, depois de
Educação Infantil e novamente de primeira série.
A segunda experiência profissional foi importante para Clara porque, ao ser aprovada
em um concurso público, iria trabalhar em uma nova unidade de Educação Infantil. Ela foi
nomeada em julho e a escola só foi inaugurada em novembro, período em que ficou
estudando antes de iniciar o trabalho diretamente com as crianças. Nessa oportunidade ela
teve acesso ao construtivismo e estudou teóricos como Jean Piaget e Emília Ferreiro e diz que
estava “descobrindo o mundo”. Foi percebendo que algumas pessoas apresentavam uma
visão equivocada do construtivismo ao afirmar que, na construção do conhecimento, as
relações de ensino-aprendizagem seriam livres e não dirigidas pelo professor ou por outrem,
desconsiderando o papel fundamental da mediação. Para ela, porém, não se tratava disso, pois
entendia que ao aprender a trabalhar com os alunos, deveria “buscar o interesse deles, mas
não só deixar por conta deles”. Ela poderia levar algo que lhes despertasse o interesse.
Mesmo sem fazer alusão a Vigotski, Clara expressa a importância de mediar o processo
ensino-aprendizagem, atuando na ZDP de seus alunos.
Ao retornar pela segunda vez de Belo Horizonte, Clara terá a sua terceira experiência
profissional, enfim como professora alfabetizadora. Começa a trabalhar com uma turma de
primeira série.
É relevante destacar que as supervisoras de Clara, durante sua prática profissional
como estagiária ou como professora em início de carreira profissional, foram vozes
importantes em sua constituição. Aponto a mediação de algumas que foram fundamentais
para esse momento de subjetivação profissional particular, ou seja, de entrada no campo da
alfabetização. Em contraste com o medo que ela tinha de alfabetizar, havia uma necessidade
premente de fazê-lo, pois era o trabalho que havia conseguido.
111
Clara menciona uma supervisora da época de estágio que a ajudou a ter mais paciência
em relação ao próprio processo de subjetivação profissional, especialmente diante das
decepções que estava experimentando em relação à escola e a algumas formas de atuação
docente. Ela diz que essa supervisora, Ana, era fantástica e a ajudou muito, e cita uma fala
que a marcou e mediou sua formação, especialmente ao questionar o que percebia como
errado na escola e as dificuldades de atuação frente a isso. A supervisora dizia:
“(...) Não, mas pode ter calma que as coisas vão se
ajeitando, você vai ver, quando você começar a dar aula,
você vai ver... Você vai encontrar seu caminho!”
As palavras de Ana representam uma indicação do que foi narrado por Clara ao
descrever a própria prática, um caminho ainda incipiente quando iniciou a docência, e em
todos os anos de experiência em sala de aula, um percurso construído dialeticamente, caminho
de formação humana e profissional. Além de ser um caminho de constituição constante de
consciência, memória, pensamento, cada vez mais aprofundados, mediados pelas relações da
professora com suas condições concretas de vida e, nestas, do desenvolvimento de suas
funções psicológicas superiores, é uma trilha de constituição profissional docente que, no caso
de Clara, diz respeito à constituição de uma alfabetizadora.
Alguns trechos da entrevista ilustram o caminho de constituição de Clara como
alfabetizadora, pela necessidade de trabalhar com a primeira série, assim que saiu da
faculdade de pedagogia. Estava diante um grande desafio.
“O meu desespero: uma primeira série. Eu nunca tinha visto
uma primeira série na minha vida. (...) Quarenta e um alunos
(...) Metade da sala não conhecia o alfabeto, a outra
metade conhecia. Uns escreviam em letra cursiva, outros
escreviam letra de imprensa. Eu não sabia o que fazer, que
tipo de atividade trabalhar, e a supervisora ia lá uma vez por
semana. Eu quase fiquei doida. Quando eu comecei a achar
um caminho... e é tão engraçado esse caminho, porque
assim... como eu não tinha experiência nenhuma, eu
comecei a ir pelas crianças...”
112
Diante da falta de experiência em relaçao à alfabetização e da ausência de uma
orientação mais efetiva de Marisa, a supervisora daquela escola (tratava-se de um anexo onde
Marisa passava uma vez por semana), Clara começou a buscar uma saída nos próprios alunos.
Ela começou a constituir-se alfabetizadora através da mediação dos seus alunos, alguns
conhecedores do alfabeto, outros não, alguns que escreviam em letra cursiva, outros não.
Partindo do conhecimento discente, Clara sentiu a necessidade de despertar o interesse dos
seus alunos, o que, como vimos anteriormente, foi uma aprendizagem também pautada na
relação de Clara com a professora Sofia. Assim como esta, não tinha problema de disciplina.
“... eu olhava pra aqueles meninos, pensava, gente eu
preciso dar um norte pra esses meninos (...) eu não tinha
naquela época uma listagem do conteúdo que eu teria que
trabalhar. Eu não tinha a proposta em mãos. Eu não tinha
nada! (...) E eu precisava do interesse deles. Era uma sala
imensa! Eu precisava ter a atenção deles. E mesmo com
toda essa dificuldade eu era a única que não tinha
problema de disciplina (...)”
Além da mediação dos alunos, entram em cena as colegas professoras com práticas
que, para Clara, eram equivocadas. Uma delas utilizava o caderno do filho que estudara vinte
anos antes e dizia: “Eu sigo por ele porque não tem erro. Ele já está na faculdade. Então
significa que esse caminho aqui vai dar certinho”. A outra trabalhava o BA, BE, BI, BO,
BU, prática de que Clara não compartilhava. Estes, portanto, eram caminhos que ela não
queria trilhar e fazia oposição a eles (Fontana, 2000a).
Naquela ocasião, a professora Clara não tinha nenhum recurso para direcionar o seu
trabalho, um livro, uma proposta, uma listagem de conteúdo. Marisa apenas dissera a ela que
deveria apresentar as letras do alfabeto aos alunos, que também precisavam dominar as
sílabas e aprender a escrever palavras e frases. Na ausência de instrumentos para mediar a sua
prática pedagógica, como material didático ou uma formação profissional voltada à
alfabetização e suas particularidades, Clara contava com as mediações de sua memória e
significados em relação às professoras que teve, com as palavras de Marisa acerca do que
113
deveria ensinar e com a relação concreta estabelecida com seus alunos. A partir daí, começou
a criar seu próprio caminho de alfabetizadora.
“O que eu comecei a fazer... (...) eu comecei a preparar
com eles o seguinte, por exemplo... eu queria trabalhar com
eles a letra A. Antes de começar com a lista de palavras eu
comecei a tirar deles... (...) O que começa com a letra A?
(...) E eu lembro direitinho. O A foi Abelha que eles falaram. Aí
montamos um pequeno texto sobre a abelha e eu, sem
saber, comecei a questionar com eles como é que
escreveríamos cada palavra, as frases, e fui registrando.
Depois que eu registrava no quadro – eu não deixava
ninguém escrever – aí eles copiavam. Aí circulávamos que
palavra em que aparecia o A, se era no meio, se era no final,
se era no começo. (...) lembro que comecei a fazer esse
trabalho e que a minha supervisora ficou encantada.”
Clara conta que a supervisora Marisa lhe perguntou onde havia estudado e ela
respondeu pensando que nada daquilo havia aprendido na faculdade, ao mesmo tempo em que
se perguntava: onde teria aprendido, então? Ao falar sobre isso, diz que não teve um professor
que lhe dissesse para trabalhar desse ou daquele jeito, mas que ela lidava com o interesse dos
alunos, porque não queria ter problema de indisciplina, não queria que a sua aula fosse chata,
queria envolver os alunos e que eles aprendessem.
Tal posicionamento de Clara remete às práticas de Beatriz e Sofia. De fato, em sua
narrativa, ela diz que gostaria de ser como estas quando crescesse. O que pode ser destacado é
que, por trás dos aspectos sublinhados por Clara, tais como interesse, ausência de indisciplina,
aprendizagem prazerosa, existem objetivos que não estão vinculados a uma metodologia de
ensino específica e, sim, baseados em elementos de mediação pedagógica como criatividade,
afetividade, domínio de conteúdo, consciência do papel do professor.
Após a experiência como professora de primeira série e, portanto, de alfabetizadora,
Clara logo se viu em um novo desafio. Ao mudar de escola deveria assumir o que na época
correspondia ao pré-escolar, ou seja, ao ano anterior à primeira série do Ensino Fundamental.
114
Clara trabalhou com projetos no pré-escolar por dois anos. O primeiro projeto foi um
supermercado e o segundo, sobre animais. Todos os conteúdos que deveriam ser trabalhados
no pré eram inseridos nos projetos: higiene, alimentação, meios de comunicação, família,
meios de transporte. O interesse das crianças, os aspectos lúdicos envolvidos, a participação
da família, a construção do conhecimento mediada pela realidade das crianças, os vários
campos do saber sendo abordados de forma integrada, foram elementos que demonstraram à
professora que esse, finalmente, era um modo que ela gostaria de trabalhar. Clara dizia que
esse era o caminho que queria seguir, pois estava satisfeita com ele. No desenvolvimento do
projeto com os animais, Clara levava bichinhos de pelúcia que, além de ser material para
trabalhar os temas relacionados aos animais, eram utilizados como um recurso para lidar com
uma situação de dificuldades, pois como a escola estava começando a implantar o Ensino
Fundamental, mas também trabalhava com a Educação Infantil, funcionava em três turnos. As
crianças da pré-escola, muito pequenas, começavam a chorar quando começava a anoitecer,
então Clara levava os bichinhos para fazer o que pode ser chamado de uma mediação
pedagógica afetiva. Com a parceria dos bichinhos acalmava as crianças, enquanto contava
histórias.
“... a escola tinha três turnos. Eles entravam às 3h da tarde e
saíam às 7h da noite. Então, quando começava a escurecer,
metade da sala começava a chorar, entendeu? E para
acalentar esses meninos, nada melhor do que aquele saco
de bichinhos... então quando dava 6h da tarde eu os
mandava guardar tudo e a nós íamos contar história. Para
eles era o melhor momento.”
Como professora do pré, em sua relação com Glória, uma supervisora da escola,
começou a aprender sobre os níveis de alfabetização das crianças. Estudava Emília Ferreiro
com ela que, não se restringia à teoria, mas chamava alguns alunos e, enquanto ia fazendo
ditado, perguntava a Clara sobre o nível das crianças e o que ela precisaria fazer para que elas
115
mudassem de nível. Essa foi uma mediação muito importante, que Clara diz tê-la marcado
para o resto da vida, e reproduz as palavras de Glória:
“Professor pode sentar? Não é na mesa dele, não. A
professora pega a cadeira dela e senta ao lado do menino.
Se o menino for para a mesa dela, está indo para a
realidade da professora. Você tem que ir para a realidade
do menino. Senta ao lado dele, questiona-o no caderno
dele. Por que você faz isso? Para tudo ele vai ter uma
resposta e é a resposta dele que vai indicar para onde você
vai.
Dois anos depois, Clara precisou voltar à primeira série e o método de ensino
necessitava ser radicalmente transformado, pois cada conteúdo deveria ser ensinado em sua
disciplina específica, em “gavetinhas”. Um novo caminho a construir.
O início da construção desse caminho foi muito difícil para Clara, que não concordava
com o sistema de “gavetinhas”, queria trabalhar de forma interdisciplinar, integrando o
conhecimento como vinha fazendo com as crianças da pré-escola. A supervisão orientava-a a
trabalhar de maneira que as crianças escrevessem as letras, copiassem do quadro, mas isso
não acontecia. Tudo o que a professora Clara queria fazer de diferente não podia, como criar
novas metodologias mais lúdicas, trabalhar o conteúdo de forma integrada e não em
disciplinas separadas. Foi um ano em que ela declarou ter sofrido muito e chegou a dizer:
“Nunca mais na minha vida eu quero primeira série.”
Esse episódio da vida de Clara aponta para reflexões relevantes sobre o cotidiano da
escola, a inserção da professora, bem como a sua constituição profissional.
“Aí eu passei para o turno da tarde. (...) Aí, à tarde, sobrou
de novo primeira série. Oh, meu Deus, eu não acredito! Só
que aí, à tarde mudou minha supervisora. (...) as idéias da
Ângela eram diferentes. (...) o nível dos meninos da tarde é
muito diferente. Eu mereço uma turma boa. Aí nesse ano a
Ângela me deu. Foi a primeira turma boa que eu tive! Essa
turma boa me deu a oportunidade de refletir sobre o
trabalho da primeira série, para eu poder... no ano seguinte
foi que eu comecei com o projeto. Essa turma me tirou do
sufoco, porque até então eu só ficava desesperada. Eu
116
preciso alfabetizar, eu preciso alfabetizar, eu preciso disso...
Aquela coisa das gavetinhas me matava (...). Essa turma era
boa, o trabalho era ruim, mas a turma era boa.”
O trecho acima diz respeito a um momento de transição de Clara, no qual ela vivencia
diversas mudanças em relação ao turno de trabalho, à supervisora, às características de seus
alunos. É também um momento em que ela pôde escolher a turma, porque não estava mais no
papel de contratada, como anteriormente. Nesse sentido, representa um período muito
importante para a sua subjetivação como alfabetizadora em processo, explicitado pelas
contradições de sua fala. De fato, ainda que a subjetivação profissional de Clara aponte para o
processo de constituição de uma professora diferenciada que se tornou uma alfabetizadora
criativa, afetiva e comprometida com a educação, em seu relato podem ser destacadas
algumas contradições, que chamam a atenção para um processo de formação inacabado,
aspecto fundamental para não se cair na armadilha da linearidade e da estabilização de um
modo de ser. Segundo Fontana (2000a),
Por sermos multiplicidade (de papéis e de vozes) na unidade, nossa consciência e
identidade se constituem como contradição, e não como coerência; como
multideterminação, e não como indeterminação; como confronto, e não como
harmonia. (...) Nossa singularidade é “lugar de passagem”, é uma condição produzida
historicamente na dispersão das interações, no desafio de compreender o vivido (“nem
sempre percebido”) nas suas incoerências e contradições. (p.67).
As incoerências e contradições parecem não ter sido percebidas pela professora que,
apesar de ter dado ênfase à relação em vários momentos da entrevista, não a considera ao falar
de turma boa ou turma ruim de alunos, deixando de notar que não há uma turma boa ou uma
turma ruim em si, mas que cada turma terá certas características em relação a uma professora,
em relação a um contexto de sala de aula e em determinado momento histórico vivenciado
pela docente. Os aspectos concretos de mudança de turno e de supervisora, além da própria
117
experiência de Clara após um ano frente à primeira série são desconsiderados, sem falar da
dicotomia estabelecida entre o trabalho (referindo-se à divisão em gavetinhas), a sua forma de
lidar com este trabalho e de desenvolvê-lo, e a turma de alunos.
Leite (2000) afirma que o homem é um ser de linguagem e, como tal, é um ser em
constante movimento de constituição, isto é, “inconcluso, inacabado, polissêmico” (Leite,
2000, p.20). O autor recorda que o fato de ser social é a principal característica para este
inacabamento do homem, pois se a palavra não contém um sentido pronto e acabado, definido
e fechado e sim um sentido que precisa ser construído, um ser social e de linguagem, que se
expressa principalmente pela fala é também um ser inacabado.
Clara não encontrou alguém que a ensinasse diretamente a alfabetizar, mas foi
internalizando a importância do interesse e da afetividade para a aprendizagem e, a partir
destas premissas e das apropriações já discutidas, em confronto com as necessidades e a
mediação dos alunos, foi construindo o seu método, foi se constituindo alfabetizadora.
A sua experiência aponta também para a importância da mediação da figura da
supervisora na escola. Como já destaquei, algumas supervisoras foram muito importantes para
a constituição da professora. Nesse período, Ângela foi uma supervisora com uma mediação
muito significativa, que ajudou na constituição de Clara como alfabetizadora diferenciada e,
conseqüentemente, na construção do projeto com os bonecos.
“Aí eu já sabia do que as crianças eram capazes e já sentia
uma flexibilidade da supervisão, (...) já conseguia fazer
trabalhos interdisciplinares. Eu elaborava atividades de
geografia e matemática, de história e matemática. Os meus
textos... eu usava o texto de ciências para poder fazer
interpretação. Aí eu... aí eu comecei a me soltar. Aí, para
mim eu comecei a me achar de novo, entendeu? Aí eu
comecei a sentir de novo aquilo que eu gostava, que era
sentir o interesse dos meninos. Foi aí que começou... (...) Aí eu
comecei a ver como é que é trabalhar de forma
diferenciada.”
“Foi aí que eu comecei a pensar, que eu queria seguir
caminhos diferentes, que eu queria fazer coisas... lembrando
118
dos projetos que eu tinha trabalhado no pré, como tinha sido
bom o supermercado, os animais... eu pensava assim, que eu
tinha que levar isso pra primeira série! (...) Eu queria que a
aprendizagem deles fosse tão significativa quanto com
aqueles projetos que eu tinha trabalhado com as crianças
do pré. Aí então foi quando surgiu o projeto na minha vida.
Aí foi quando eu vi o boneco, quando eu pensei, sentei com
a supervisora, conversei muito com a Ângela. Ela me dava
idéia de como eu poderia introduzir, e aí nós fomos
construindo o projeto. Até, por exemplo, até chegar no
projeto mesmo, no boneco... até trabalhar com as crianças
para deixar as crianças assim, bem entusiasmadas, bem
interessadas em conhecer aquela história, e aí eu vi que o
ritmo da minha sala foi mudando. O interesse das crianças
era diferente. (...) Cada vez que eu via, por exemplo, as
crianças interessadas, e todo mundo queria escrever
cartinha, ainda não conheciam o personagem... E todo
mundo queria escrever cartinha. E eu pensava: esse é o
caminho! Esse é o caminho!”
Clara estava encontrando o seu caminho como professora e já havia feito a transição
de uma professora que não queria ser alfabetizadora, por falta de conhecimento sobre os
processos de alfabetização, sobre os modos de alfabetizar uma criança, para uma professora
que já começava a pensar em alfabetizar e para, enfim, assumir que gostava de alfabetizar,
tinha aprendido como fazê-lo. Apresento três momentos em que ela fala sobre esse processo.
Antes, Clara dizia:
“... eu não tinha vontade não, eu tinha pavor de pensar que
algum dia eu teria que alfabetizar, porque eu terminei o meu
magistério e eu não saberia alfabetizar uma criança...”
“... e eu ainda não tinha superado o meu trauma de
alfabetização... Tanto é que quando eu fui tomar posse [do
cargo na escola da Prefeitura](...) eu falei com ela assim: (...)
eu não quero trabalhar com alfabetização!”
Quando foi aprovada no concurso da Prefeitura e passou a estudar junto com as
colegas enquanto a escola não era inaugurada, disse:
“Aí eu comecei a ver, e despertou o gosto pela
alfabetização. Mas eu ainda tinha muito medo, porque eu
não sabia como que eu ia alfabetizar... que é aquela
119
questão da faculdade, que eu falava, gente, eu estudo,
estudo, estudo e não estou aprendendo nada. Então, a partir
do momento em que eu comecei... Quando eu vim aqui
para a escola, foi fantástico, porque aí que eu vi mesmo que
eu queria era alfabetizar.”
E ela passou a dizer, após muitos anos de encontros e desencontros com a educação e
com a carreira docente:
(...) eu gosto da primeira série, do fator alfabetizar. Eu gosto.
Muito. (...)”
A aprendizagem de Clara em relação à alfabetização diz respeito a um longo processo.
Procurei apresentar os principais mediadores a partir da narrativa de Clara sobre a sua história
de vida, sendo destacadas as professoras Beatriz e Sofia; as supervisoras Glória e Ângela; os
estudos realizados na escola da Prefeitura quando passou no concurso, dos quais Clara cita os
teóricos Jean Piaget e Emília Ferreiro e conta sobre o estudo em conjunto com outras
professoras; os seus alunos observados e considerados por ela em suas necessidades e
condições concretas de vida. As relações e práticas pedagógicas com as quais Clara não se
identificou também foram importantes mediadoras no sentido de exemplos a não serem
imitados.
O que será o mais importante em um processo de formação e de constituição
profissional? Será que esta formação, sendo iniciada desde as primeiras relações com a escola
e com professores já vai ganhando significado? O que medeia toda a formação posterior?
Parece que Clara procurava uma experiência de escola e de professora que ela denominou
fantástica, porque era um ambiente em que se sentia valorizada, especial, capaz de aprender e
as relações eram próximas, inclusive a sua relação com o conhecimento, representada também
pela relação próxima e afetiva da professora. Isso sem levar em consideração o fascínio das
histórias e, nestas, da possibilidade de imaginar, fantasiar, brincar e ainda aprender. Talvez o
que Clara procurava nunca fosse encontrado em lugar algum, a não ser na própria
subjetivação, construída a partir das relações que viveu.
120
Por outro lado, o que Clara estava procurando não estava materializado em uma única
pessoa ou em uma disciplina, mas uma construção pessoal, a partir de experiências que foram
fazendo sentido em sua formação, em seu desenvolvimento. Não posso deixar de dizer, ainda,
que práticas afetivas, criativas e diferenciadas como a de Clara podem ser raras, senão talvez
ela não tivesse vivenciado tantas decepções, teria encontrado mais professoras parecidas com
Beatriz e Sofia. A experiência de Clara aponta para a necessidade de pensar a formação
docente. Que professores estão formando professores, e como? Em que contextos? Qual a
formação destes professores? Existe afetividade, proximidade, autoridade nas relações
estabelecidas com os formadores e formandos na carreira docente?
Clara não encontrou em lugar algum o que ela buscava em relação à formação
profissional, porque ela deveria criar um caminho, um modelo de ser professora que era seu.
A importância da afetividade e do interesse para a aprendizagem foram elementos que fizeram
sentido em sua trajetória como aluna e que ela quis encontrar ao longo de sua experiência
acadêmica e profissional. Porém, isso não caracterizaria a maioria das práticas que ela
encontrou. As condições concretas que as escolas, seus alunos, o contexto escolar
apresentavam exigiram que ela criasse um modo novo e próprio de ensinar, de alfabetizar.
Desafio ainda maior para quem tanto temia ser alfabetizadora. As mediações de que ela
participou durante a vida permitiram que se apropriasse e internalizasse o que era necessário
para também mediar boas relações de aprendizagem e de desenvolvimento. Ela internalizou o
quanto eram importantes as relações de afetividade e respeito, e como pode fazer diferença o
interesse e o sentimento de ser capaz de aprender, o prazer em aprender, o mundo da
imaginação e da fantasia, a identificação com o professor. Tudo isso permitiu que ela criasse o
seu modo de alfabetizar, contemplando todos estes elementos e configurando a docente que
ela é hoje. Uma professora em formação que também tem suas contradições, mas que encanta
com sua prática afetiva, efetiva, criativa. A criatividade também aparece como um elemento
121
de constituição a partir do concreto, das relações, da necessidade de materializar um modo
diferenciado de ser professora.
O sentimento de Clara de ser alguém especial na vida dos pais, na família, em relação
à tia Beatriz, a Sofia seria um signo (talvez o principal) que mediou a construção de uma
profissional afetiva e compromissada com a educação, de maneira que seu principal objetivo
seja deixar marcas em seus alunos. Marcas que os façam ter os mesmos sentimentos que ela
teve, ou seja, de ser especiais, valorizados, felizes e de desenvolver-se e poder apropriar-se do
conhecimento, por meio da leitura e da escrita, de histórias e de desenhos. O sentimento de
Clara menina ao saber de sua história através da mãe, ao fazer parte de uma sala de aula tão
fantástica como a de tia Beatriz; de Clara adolescente que, mesmo não gostando da escola
onde estudava e sendo uma aluna “terrível”, na aula de Sofia era envolvida e tinha tamanho
interesse que não dava “um pio” e era valorizada e reconhecida pelo grande interesse pela
leitura.
“se ele tiver auto-estima, com qualquer outro professor ele
caminha, se ele aprender a valorizar ele mesmo (...) eu acho
que é fundamental. Se não tiver isso, não vale a pena!
Aprender a ler e a escrever... Nessa carreira deles, estudantil,
se não tiver umas coisas assim para marcar, não tem sentido.
Se ele não tiver essa auto-estima elevada, se ele não se sentir
feliz. A primeira conquista deles tem que ser a auto-estima.
(...) Eu acho que isso, isso falta. (...) Não tem didática que
faça o menino ter interesse... se você não faz um trabalho
para a criança ter auto-estima, não adianta. Eles precisam
sentir que têm importância.”
Clara sentiu-se marcada por suas professoras e são estas marcas que ela diz querer
deixar em seus alunos. Que marcas os professores têm deixado nos alunos? A história de
Clara é um exemplo de que os professores começam a ser formados muito antes de entrar na
escola, e que as vivências escolares deixam marcas que serão fundamentais para um possível
futuro professor. Vivências escolares nem sempre na escola oficial, como foi o caso de Clara,
122
que teve seu contato com a escola e com a profissão docente por meio das tias, mesmo antes
de entrar na escola de fato.
As marcas deixadas pelos professores oficiais também foram muito importantes e
constitutivos de um modo de ser/fazer/saber docente, como narrou Clara em sua história ao
falar de suas professoras. Mas aqui vale lembrar mais uma vez a experiência de escola e das
tias-professoras de Clara, em especial a tia Beatriz, que mediou a sua significação acerca do
que representa a escola, a aprendizagem e o ser professora. A partir desta experiência
internalizada a partir das relações de Clara quando criança, ela pôde ingressar na escola (agora
como aluna de fato) e experimentar novas relações e vivências escolares, apropriar-se de sua
nova experiência e, nesta, de novos modos de ser professora, mas sempre tendo como
referência as relações de afeto e de proximidade vividas anteriormente. Talvez a tia Beatriz
tenha sido a grande mediadora no processo de subjetivação profissional de Clara, ao
apresentar-lhe os signos que constituem bases de sua prática e que foram apropriados e
internalizados em sua formação pré-acadêmica.
“Para mim é isso que importa. (...) eles saem da primeira série
com o básico, com o estritamente necessário. (...) A escola
tem que ser um elo muito importante para ele. É lá que ele
vai ficar, ó, anos e anos! Se eu não construir isso agora, como
que esse menino vai ficar... segunda, terceira, quarta, quinta,
oitava, primeiro, faculdade? Tem que construir a base, é a
base que é o importante para a criança. (...) atividades
tecnicistas, de cópia... eu detesto isso (...) e não dou! Recuso-
me. Eu prefiro que o menino crie uma história linda,
maravilhosa, entendeu? Que ele a faça metade em
desenho, metade escrita. Metade pintura... o que for... do
que fazer ele copiar um texto. Pegar um livro de cá e copiar
o texto de lá. O que é que ele está aprendendo naquele
momento? Só copiar? Copiar ele vai copiar a vida inteira.”
O questionamento sobre a escola e a educação realizado na sessão final da entrevista
da história oral de vida evidenciou uma concepção de escola como a sua segunda casa e uma
concepção de educação:
123
“É a única chave que temos para mudar o futuro. Única... é
um ponto que precisamos muito melhorar, valorizar... (...) se
não for isso, não tem, não tem futuro. Então eu acho de
suma importância.”
Clara vê a educação como a chave para mudar o futuro. Mas de que educação ela fala?
Acredito que a voz de Clara pode acompanhar as palavras de Arendt (2003, p.247), que
escreve: “educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável
não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens”. Cabe frisar também, falando com
Fontana (2000a, p.13), que a educação é “prática histórico-cultural de constituição do
humano”. E a prática de Clara apresentada neste trabalho e, especialmente, o seu processo de
subjetivação profissional, estão relacionados a uma constituição profissional que é acima de
tudo humana. Assim como destaca Leite (2007), nos educamos no cotidiano, nas escolas, nas
famílias, igrejas, nas ruas. A história oral de vida de Clara, com efeito, traz a memória de uma
educação que “pressupõe um espaço de relações humanas onde palavras, sentidos, afetos,
corpos, pessoas, se posicionam, marcam lugares, definem ações e se encontram” (Leite, 2007,
p.32).
Assim como a formação de professores é apenas a parte final de uma rede de
processos de interação que envolve a sociedade e o sistema educacional (Souza, 2002), em
menor escala, a formação revelada em uma prática também deve ser vista como apenas “a
ponta de um iceberg”, numa visão complexa e dialética do processo que esconde uma rede de
relações e interações que estão a todo tempo construindo e sendo construídas, constituindo e
sendo constituídas.
Souza (2002) discute a relevância de um estudo sobre a formação docente apontando
que esta não consiste em encontrar uma saída ou um culpado para os problemas educacionais
brasileiros, mas que se trata de ver o profissional professor com respeito e em sua
complexidade, assumindo a importância de seu papel no processo de escolarização como
124
mediador direto do conhecimento e da cultura, portanto, do processo de humanização. Nesse
sentido, trata-se de reconhecer a possibilidade de um trabalho em conjunto com a psicologia,
especialmente, a Psicologia Escolar e Educacional, como aliada de uma efetiva constituição
dos envolvidos, quais sejam, crianças/adolescentes/adultos/idosos, escola, família, professores
e professoras, pessoas e profissionais.
A utilização da história oral de vida, ao provocar a memória de uma professora para
contar ao pesquisador suas inúmeras experiências, mostra-se como um recurso importante
para a Psicologia Escolar e Educacional. Ao compreender que a constituição da subjetividade
profissional tem início muito antes do início do ensino profissionalizante, o psicólogo
escolar/educacional pode redimensionar suas propostas dentro da escola, criando meios de
trabalhar com os professores com base na complexidade do que representa a constituição
profissional docente (assim como a influência docente na constituição de outras profissões).
Procurei mostrar aqui que a professora Clara, ao utilizar sua memória em um processo
ativo de reconstrução de acontecimentos relativos a sua vida como um todo, evidenciou
também a imprescindível participação do outro na constituição de sua subjetivação
profissional.
125
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aí que eu fico pensando na importância dessas
pessoas que passaram na minha vida. Essas
professoras que estão lá, elas não tiveram isso,
então elas não valorizam.
Clara – Barreto (2007)
A menina que juntava as sílabas, unindo as letras em suas tentativas de ler palavras,
foi juntando as palavras, as pausas, os risos, os sentidos da narrativa de Clara. Da leitura de
palavras à leitura do mundo: pode-se considerar/pensar que pesquisar é tentar ler as linhas e as
entrelinhas; as palavras, os gestos e os olhares. É desvendar e ao mesmo tempo construir um
sentido, com base na gramática fornecida pela teoria utilizada pelo pesquisador.
Benjamin (1995) narra uma cena quando era criança e, na escrivaninha de sua casa,
cria um recanto de imaginação e até mesmo de diversão. Na descrição do autor, seu recanto
ganha vida por meio da curiosidade, criatividade e fantasia do menino que brinca com os
objetos inanimados e descobre uma infinidade de possibilidades, tornando o seu encontro com
a escrivaninha desejado e prazeroso. Esta cena me remete a uma imagem similar de Clara na
escola. Um ambiente que poderia ser visto como local tão-somente de estudo passa a ser um
espaço de imaginação, de fantasia, de vida. A relação de Clara com a escola, com o
126
conhecimento, com a aprendizagem, com os colegas, com os professores, com as histórias e
com os desenhos está ligada a um mundo interessante, dinâmico, surpreendente e lúdico.
Entretanto, mais do que os objetos da escrivaninha, todas essas instâncias e parceiros
deixaram profundas marcas em Clara, constituindo-a como uma professora alfabetizadora
com as características acima muito presentes.
A docência vivenciada por Clara, da qual se apropriou, internalizou e, passando a fazer
parte de si, desenvolveu em suas brincadeiras, formações, questionamentos, conflitos,
imitações ou oposições, atuações e práticas, seria uma docência mágica, não fosse real a ponto
de ser contraditória e, às vezes, limitada e equivocada. Mas acima de tudo, é uma docência
com a qual é possível ultrapassar as barreiras dos padrões, da linearidade, para criar o novo a
partir do que já existe. Uma docência doce, criativa, afetiva, em que, com presença quase
silenciosa mas sábia, possibilita a aprendizagem ao valorizar quem aprende e ao reconhecer
que sua aprendizagem não é apenas sua, é também da docência. E esta aprendizagem é tão
próxima que faz com que aquelas coisas antes estranhas possam tornar-se simples e
familiares, pela proximidade que ganham.
As marcas deixadas em Clara desde muito pequena me fazem pensar em nossas
crianças e nas relações que estão vivenciando nas salas de aula, nos espaços escolares. Tão
importante seria que elas encontrassem em seu caminho professoras como Beatriz, Sofia,
Clara. Não que elas devam também tornar-se professoras; as mediações pedagógicas são
importantes para a constituição do humano, em primeiro lugar. Agora, conhecendo a
experiência de Clara, vejo o quanto elas podem ser relevantes até mesmo para a constituição
profissional, ainda que para outras áreas de atuação.
Mas que docência tem sido internalizada pelas crianças? Ou melhor, que docência
constitui as professoras que encontramos? Será que elas também encontraram professoras
com as quais estabeleceram relações de afetividade, criatividade e autoridade, como Clara?
127
Talvez a maioria delas não. Talvez tenham sido deixadas marcas outras, que as constituíram
de modo diverso.
Pensando no homem como ser social, de linguagem e, portanto, inacabado e em
constituição, acredito que ainda há espaço para transformações, para que outras marcas
possam ser deixadas nesse professor que lida todos os dias com as crianças, adolescentes,
adultos. Se a possível ausência de afetividade e de sentido faz parte da docência vivenciada
anteriormente, ausência atualizada pela memória de suas relações com professores ao longo
da vida, novas relações podem ser estabelecidas, instigando meios de gerar novos sentidos e,
daí, novas marcas. Nesse sentido, as intervenções da Psicologia Escolar junto a professores
precisam levar em conta estas marcas, tanto as antigas como as novas, que podem provocar
importantes mudanças no contexto escolar.
Após este estudo em que a formação docente ganhou destaque, assim como no início
do trabalho, volto a perguntar: como são formadas as professoras? Como são constituídas
estas profissionais indispensáveis ao cenário escolar e ao processo de escolarização e de
humanização, se é nas relações e através da mediação da cultura que o homem é de fato
humanizado, como preconiza a psicologia histórico-cultural? Agora que a formação de Clara
trouxe como aspecto muito importante a formação docente anterior ao ensino
profissionalizante, tomo por base os pressupostos da história oral de vida e questiono: que
sentidos e significados tem a memória, função psicológica superior que se destaca quando é
reconstituída a história oral de vida? Ou seria reconstruída a própria memória da professora ao
narrar sua história de vida? Novas questões podem ser postas, portanto, a partir da relevância
de considerar a pré-história da formação docente.
Sendo assim, a metodologia desta pesquisa pôde assumir uma dimensão importante,
ao destacar a relevância da memória mediada para a compreensão da formação docente. Ao
128
buscar responder à pergunta norteadora desta pesquisa
35
a partir da escuta dos relatos de
Clara, a história oral de vida mostrou-se um recurso metodológico extremamente precioso
para que fosse possível um olhar para a formação desta professora mesmo antes de sua
entrada na escola e situar esse momento como também constitutivo da subjetivação
profissional. Sua memória orientou-nos, a ela e a mim, nos meandros de uma história bastante
marcada por muitas dimensões do âmbito educacional e possibilitou reflexões importantes
sobre a formação docente de maneira geral.
Foi a memória da história de vida que veio trazendo as dimensões da constituição
dialética da subjetivação profissional de Clara. Nestes questionamentos torna-se importante
discutir o papel da história oral de vida, tanto na pesquisa orientada pela teoria histórico-
cultural quanto na prática do psicólogo escolar/educacional, que lida com professoras e que
tem importante papel na escola e na educação como um todo.
O que Clara nos ensina é que aprendemos a ser professoras, ou psicólogas, ou outros
profissionais, ao nos apropriarmos e internalizarmos sentidos e significações a respeito de
uma profissão, a partir das mediações do outro, pessoa, sentido, instrumento, prática. A
apropriação da cultura é condição para a humanização, assim como a apropriação da docência
é condição para a subjetivação profissional docente.
Ainda iniciante frente às possibilidades da docência e da pesquisa, penso que começar
o trabalho falando da minha experiência de alfabetização é significativo e importante, porque
falo da minha experiência com a aprendizagem da leitura seguida de um conjunto de outras
experiências e de relacionamentos com professoras que são marcas que também constituem a
minha subjetivação profissional.
Da menina aprendendo a ler as sílabas e palavras à pesquisadora encarando o desafio
de fazer a leitura da subjetivação profissional de uma professora alfabetizadora em sua
35
Como Clara se constituiu professora?
129
concretude e complexidade. Um mergulho na história de vida de Clara, memória que me foi
narrada através da minha mediação e que, por sua vez, passou a mediar também a minha
formação como pesquisadora, como docente, como psicóloga, como educadora, como ser
humano.
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