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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
TESE DE DOUTORADO
ESPETÁCULO, SIMULACRO, TRIBALISMO, HIPERMODERNIDADE:
paradoxos da sociedade da imagem
JULIANA TONIN
Porto Alegre
Outubro de 2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
TESE DE DOUTORADO
ESPETÁCULO, SIMULACRO, TRIBALISMO, HIPERMODERNIDADE:
paradoxos da sociedade da imagem
JULIANA TONIN
Orientador: Prof. Dr. Juremir Machado da Silva
Tese apresentada como pré-requisito parcial para
obtenção do título de Doutor (a) em Comunicação
Social no Programa de Pós-graduação em
Comunicação Social.
Porto Alegre, outubro de 2008
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Espetáculo, Simulacro, Tribalismo, Hipermodernidade:
paradoxos da sociedade da imagem
Banca Examinadora:
____________________________________________
Prof. Dr. Juremir Machado da Silva
Orientador
____________________________________________
Prof. Dr. Michel Maffesoli
Université René Descartes – Paris V - Sorbonne
____________________________________________
Prof. Dr. Francisco Menezes Martins
Universidade Tuiuti do Paraná
____________________________________________
Prof. Dr. Álvaro Nunes Larangeira
Universidade Tuiuti do Paraná
____________________________________________
Prof. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind
PUCRS
Porto Alegre, outubro de 2008
AGRADECIMENTOS
Nunca mudei tão rápido e radicalmente de idéia quanto nesta trajetória acadêmica.
Seja por força das palavras, das letras ou da vida.
Ninguém consegue sentir além de mim.
Todos que comigo estiveram viram, ouviram, perceberam...
Não são muitos, mas os que de perto me olharam torceram, e torceram, e torceram.
Incansáveis parceiros!
Demasiadamente incansáveis, eu diria.
Nilo: grande amor. De onde vem tanta confiança?
Gabriel: filho anjo. De onde vem tanta luz?
Família Baptista: minha gente. De onde vem tanta alegria?
Cris: irmã “gêmea”. De onde vem tanta paciência?
Barbara: irmã de coração. De onde vem tanta razão?
Lú: irmã mais velha. De onde vem tanta doação?
Bethi: irmã “do meio”. De onde vem tanto aconchego?
Farias: irmão preferido. De onde vem tanta coragem?
Juremir: grande Mestre. De onde vem tamanho dom?
Amados, obrigada!
É esta a nossa tarefa:
levantar questões tão evidentes
que chegam a ficar esquecidas.
A tessitura do mundo é complexa
e o texto que a formula em palavras não deve ser irrepreensível, perfeito;
é que tal texto não faz mais do que atualizar,
para o tempo presente,
os mitos que permitem, bem ou mal, viver-(se) em sociedade.
Michel Maffesoli
RESUMO
O objetivo desta pesquisa consiste em compreender qual é o papel
desempenhado pela imagem no contexto em que se apresentam plurais suas
condições de produção, emissão e recepção. Através de um estudo teórico que
refletirá as idéias de Guy Debord, Jean Baudrillard, Michel Maffesoli e Gilles
Lipovetsky, pretende-se “compreender no choque” o que se pode pensar da imagem
pós-moderna. Explorar as várias possibilidades de resposta dadas por eles é o alvo
maior a ser atingido.
Isto porque eles apresentam argumentos díspares capazes de promover uma
outra via de acesso ao conhecimento: aquela que opta pelo desvio, pelo paradoxo.
Julga-se ser esta a melhor maneira de olhar para a diversidade do social que
sempre escorre quando tenta ser contido na linearidade de um argumento.
Guy Debord em sua tese 04 designou: o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens. Como
Jean Baudrillard definiria o simulacro? E Michel Maffesoli, o tribalismo? E Gilles
Lipovetsky, a hipermodernidade? Tentar-se-á apresentar as possíveis definições em
“forma de tese 04” para melhor ver, abordar, comparar, separar os pensamentos de
cada um acerca da imagem.
A Sociologia Compreensiva apresentada por Maffesoli será a metodologia
fundamental para, no mínimo, garantir a coragem no início do projeto. E Hans-Georg
Gadamer auxiliará a compreender a labilidade hermenêutica como garantia do
conhecimento.
Palavras-chave: Imagem. Espetáculo. Simulacro. Tribalismo. Hipermodernidade
ABSTRACT
The objective of this research is to understand what role the image plays in the
context in which its conditions of production, emission and reception are presented in
a multifaceted manner. Through a theoretical study that will reflect the ideas of Guy
Debord, Jean Baudrillard, Michel Maffesoli and Gilles Lipovetsky, it intends to
“understand through shock” what can be thought of the postmodern image. The
major purpose of this work is to explore the variety of possibilities that arise from their
answers.
This is because they present contradictory arguments capable of providing
other means of access to knowledge: those which opt for deviation, or for paradox.
This seems to be the best way to look at social diversity that always deviates when
an attempt is made to linearly restrict it to a single argument.
Guy Debord states in his fourth thesis that “the spectacle is not a collection of
images; rather, it is a social relationship between people that is mediated by images”.
How would Jean Baudrillard define simulacrum? And Maffesoli tribalism? And Gilles
Lipovetsky hypermodernity? It will try to present the possible definitions in the form of
“the fourth thesis” so as to better see, approach, compare and separate the thoughts
of each of them surrounding the image.
Comprehensive Sociology, as explained by Michel Maffesoli, will be the
essential methodology to, at least, guarantee motivation at the start of the project.
Hans-Georg Gadamer will assist in understanding hermeneutic instability as a
guarantee of knowledge.
Key words: Image. Spectacle. Simulacrum. Tribalism. Hypermodernity.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Gravura rupestre .................................................................................... 25
Figura 02 e 03 - Escrita Cuneiforme ......................................................................... 25
Figura 04 - Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg ................................. 28
Figura 05 - Prensa de Gutenberg ............................................................................. 28
Figura 06 - Apocalipse de Angers (tapeçaria) .......................................................... 29
Figura 07 - Nickelodéon: visão externa .................................................................... 35
Figura 08 - Nickelodéon: visão interna ..................................................................... 35
Figura 09 - Irmãos Lumière ..................................................................................... 35
Figura 10 - Cenas do filme Le voyage dans la lune ................................................. 35
Figura 11 - Andy Warhol ........................................................................................... 36
Figura 12 – Sténopé ................................................................................................. 36
Figura 13 - Lanterna Mágica .................................................................................... 36
Figura 14 – Fantasmagories ..................................................................................... 37
Figura 15 - Daguerreótipo ........................................................................................ 37
Figura 16 - Primeira imagem registrada pelo daguerreótipo .................................... 37
Figura 17 - Le chanteur de jazz – primeiro filme sonoro .......................................... 38
Figura 18 - TV em cores ........................................................................................... 38
Figura 19 - Sistema Binário ...................................................................................... 44
Figura 20 - O corpo de Cristo ................................................................................... 54
Figura 21 - Mort d'Orphée ........................................................................................ 55
Figura 22 – Teoria da Deriva .................................................................................... 94
Figura 23 – Fundadores da IS .................................................................................. 95
Figura 24 – Fotografia de Baudrillard ..................................................................... 129
Figura 25 – Comunhão ........................................................................................... 145
Figura 26 e 27 - Declínio do Império Americano (Canadá, 1986) .......................... 167
Figura 28 - Invasões bárbaras (Canadá/França, 2003) ........................................ 167
Figura 29 - Narciso ................................................................................................. 168
Figura 30 - Sidney Magal ...................................................................................... 168
Figuras 31, 32, 33, 34, 35 - David Beckham .......................................................... 169
Figura 36 – Medo ................................................................................................... 169
Figura 37 – Espiral do Imaginário ........................................................................... 196
Figura 38 – “ELE” ................................................................................................... 207
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 A IMAGEM.............................................................................................................. 20
1.1 A Imagem Simbólica........................................................................................ 49
1.2 Imagem: ... pecadora! ..................................................................................... 58
1.3 Imagem: perdoa-me? ................................................................................... 63
1.4 Imagem: como compreendê-la?...................................................................... 71
2 ESPETÁCULO ..................................................................................................... 92
3 SIMULACRO ...................................................................................................... 114
4 TRIBALISMO ...................................................................................................... 134
5 HIPERMODERNIDADE........................................................................................ 154
6 PARADOXOS DA IMAGEM................................................................................. 176
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 209
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 218
INTRODUÇÃO
Quando se pretende pensar nas imagens, surgem na mente as mais
diferentes questões. Estas funcionam, parece, como uma espécie de a priori: Quais
imagens? De que época? Para que servem? Por que existem? Por que pensá-las?
Esse “fenônemo indagativo” parece querer dizer, num primeiro momento, que
não se possui uma categoria no mundo intitulada “as imagens”, consolidada, estática
e separada sobre a qual é possível refletir, ou simplesmente olhar e tocar. As
imagens possuem um suporte. As imagens, dependendo do seu suporte, estão
presentes a partir de determinadas épocas. Elas, além disso, desempenham
determinadas funções em diferentes contextos. E a elas são atribuídos os mais
diferentes sentidos quando passam a conviver diretamente com o homem, ou seja,
grosseiramente falando, a serem “utilizadas” pelo homem.
Atualmente não parece difícil justificar o interesse por elas pois, sejam
pictóricas, fotográficas, cinematográficas, televisivas, virtuais, abocanharam muitos
dos espaços que existem diante dos olhos. É tamanha sua participação no cotidiano
que se reivindica o direito de não vê-las excessivamente nas ruas dos centros
urbanos, seja em forma de cartazes, outdoors, placas, luminosos, entre outras, uma
vez que produzem a chamada “poluição visual”, ou seja, geram mal-estar espacial e
visual aos que ali transitam. Tanta imagem que chega a perturbar, incomodar.
12
Desde que os homens obtiveram-na através de rabiscos feitos nas paredes
escalavradas da caverna, só criaram e aperfeiçoaram os suportes, que dariam
maiores condições para que ela fosse produzida e propagada cada vez mais e
melhor. Como forma de comunicação, de acesso ao Sagrado, ao Belo, ao Novo, ao
Mundo, a imagem sempre participou ativa (e por que não?) decisivamente na
configuração de - e principalmente na maneira pela qual era sentida e vivida - cada
época. Muito além de ser uma simples ferramenta à disposição do homem para a
conquista de um lugar maior, melhor, mais seguro ou mais agradável, é algo que
produz relação social, sentimentos e conhecimento em comum.
Nos diversos anos que separam as primeiras manifestações da imagem das
atuais formas pelas quais ela se faz ver, aconteceram muitas transfigurações no
mundo praticamente, aconteceu o que se conhece como a história da
humanidade. Assim, ao mesmo tempo em que ela ganhou novas formas, o homem
se tornou absorto em outros valores, e o contexto passou a ser visto com novas
perspectivas.
Pensar a imagem e todas as questões e premissas que carrega consigo, e
considerando que o homem e seu mundo transformaram-se tanto ou mais que ela,
dependendo do momento que se analisa, mostra uma ligação intrínseca entre
homem-imagem-mundo. Isso significa que se presume haver uma espécie de
circularidade entre eles, são todos agentes de metamorfoses, numa influência mútua
que os torna cúmplices, dependentes uns dos outros.
Enquanto o homem cria a imagem e deposita nela os mais diversos
significados, é correspondido por um poder que muitas vezes o torna a criatura, ao
invés do criador. Ele cria, e se deixa levar. Criar. Transformar pela imagem.
13
Não se quer dizer com isso, claro está, que ela, a imagem, juntamente com o
homem, fez e refez (a) história. Mas sim que a história por eles protagonizada é
caracterizada por uma relação de trocas intensas que consegue abarcar muito do
imaginário de cada época. Ou do “espírito”. A finalidade com que os homens a
desenvolviam, o que esperavam delas e o que obtinham – tudo isso demarca modos
de ser e de se compreender no mundo.
Por todas estas considerações é que se apresenta qual é a curiosidade maior
que gera esta pesquisa: quer-se compreender, numa atualidade onde são diversos
os meios de produção, distribuição e recepção das imagens, como suas diversas
facetas interferem no social. Ou, de outra maneira, qual é o papel desempenhado
pela imagem atualmente no social? Faz-se estas questões para, em seguida,
compreender o que se pode pensar do social quando analisando-o pelo viés da
imagem.
Não se pretende aqui eleger determinados tipos de imagens, por exemplo, as
midiáticas, as cinematográficas, as virtuais, porque se deseja falar de todas elas ao
mesmo tempo. Isso porque significa menos para este texto o fato de serem obtidas
através de tal ou qual meio de produção ou emissão, propagadas para tal e qual
público, com tais e quais resultados, do que percebê-las enquanto um conjunto
imbricado num social, que se relaciona e se forma através de suas mais diversas
manifestações.
Para ser possível esta compreensão, optou-se por repassar os
questionamentos desta tese para quatro pensadores que produziram (e dois deles
ainda produzem) conhecimentos atuais e fundamentais acerca das novas formas de
relação social presentes no mundo depois da irrupção da pós-modernidade
(desconsiderando aqui toda polêmica acerca da nomenclatura dos tempos atuais).
14
Guy Debord, Jean Baudrillard, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky serão as
referências, serão os convocados a esclarecer a presença da imagem na atualidade,
bem como suas implicações no social.
Preferir estes autores é uma escolha entre outras, muitos outros cruzamentos
poderiam ser estabelecidos. Entretanto, pensa-se que a proximidade das teses de
Debord e Baudrillard juntamente com as derivações díspares de Maffesoli e
Lipovetsky, apresenta relações e originalidade tais que propiciam, quem sabe, uma
barreira para a compreensão de um sentido único, para a construção de um
conhecimento em linha reta. De maneira geral, pode-se perceber que, enquanto
Baudrillard retira o caráter crítico das reflexões de Debord, Maffesoli e Lipovetsky
esfumaçam o caráter catastrófico de ambos, mas sem consenso entre eles. São
impressões que indicam que estes quatro autores são importantes fontes de
conhecimento por apresentarem profundas divergências entre suas idéias, que não
necessariamente significam exclusões.
Para estruturar esta pesquisa será preciso buscar, no entanto, outros autores
que possam servir de apoio na sua construção. Conhecer a história das imagens, os
modos como foram percebidas ao longo dos anos, quais valores receberam, o que
impulsionou a chegada de cada fase diferente, todas estas explanações são
fundamentais, uma vez que são estas considerações que estimulam o seu
entendimento no momento presente.
Além disso, será preciso compreender o que a imagem carrega consigo além
de si mesma, ou seja, quais são as razões pelas quais ela ganha “vida”, ela
representa algo além daquilo que somente chega aos olhos. Seria mesmo entender
o caráter simbólico, o que vem a ser uma imagem simbólica e se esta é mesmo a
razão pela qual ela parece ultrapassar seus contornos físicos. Para completar a
15
trama, ainda se faz necessário conhecer quais foram as valorações atribuídas a ela
pelo pensamento ocidental.
Os principais autores responsáveis por esta “abertura”, por fornecer o
embasamento que servirá como sustentação deste texto são Régis Debray e Gilbert
Durand. É com eles que se inicia o trabalho e se configura o primeiro capítulo a ser
apresentado.
Régis Debray mostrará a seqüência da história da imagem. Será possível
compreender os sentidos atribuídos à imagem, as expectativas diante dela, bem
como os diferentes suportes que conquistou na passagem dos anos. Debray
assinala uma nova temporalidade: Logosfera, Grafosfera e Videosfera. Trata-se de
uma cronologia diferenciada, que esclarece o relacionamento homem-imagem-
mundo desde a invenção da escrita, passando pelo surgimento da arte e da
imprensa de Gutenberg e, finalmente, chegando ao vídeo e ao sistema binário.
Como o homem se expressa, pensa e se comunica com as e através das imagens é
o que se explora em cada um destes momentos.
Gilbert Durand, por sua vez, será convidado a explicitar as noções de símbolo
e tudo o que se pode compreender de uma imagem simbólica. Será possível
entender simplificando apressadamente - o aspecto acidentado constitutivo de
uma imagem, que sempre permite o aparecimento de algo que não pode ser
figurado concretamente, um mistério. Além destas elucidações, será apresentada
uma síntese das maneiras pelas quais o ocidente pensou a imagem ao longo dos
anos, configurando duas épocas bem distintas, a iconoclasta (aquela onde
predominaram as correntes reducionistas, funcionalistas e estruturalistas) e aquela
que resgata a imagem e a coloca em evidência (onde predominam as correntes
hermenêuticas redutoras e as instauradoras).
16
Estabelecidos estes conhecimentos prévios, inicia-se a investigação do
problema proposto.
No segundo capítulo, então, far-se-á uma contextualização da obra de Guy
Debord, e a apresentação das principais idéias que o levaram a intitular o contexto
atual de “espetáculo”. Ele, ao fazer surgir logo nas primeiras páginas do seu livro A
Sociedade do Espetáculo, a definição do que se trata o espetáculo, acaba por
fornecer ao pesquisador um grande “conceito” para ser trabalhado durante a
pesquisa. A tese 04 revela: espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social entre pessoas, mediada pelas imagens.
O que não é espetáculo? O que é o espetáculo? Qual é o papel da imagem
no espetáculo? Qual é a conseqüência do espetáculo? E a causa? Pensar esta tese
durante a pesquisa configura-se como um recurso adequado para fazer convergir as
diferentes propostas de Debord, Baudrillard, Maffesoli e Lipovetsky.
Pensá-la é tentar recriá-la para cada um dos três autores seguintes. O que é
o simulacro? O que não é o simulacro? O que é tribalismo? O que não é tribalismo?
O que é hipermodernidade? O que não é hipermodernidade? Todas as perguntas
irão se repetir para os termos-chave estabelecidos, para representar cada um dos
autores. Isso para delas desencadear o entendimento necessário acerca do social
que se configura a partir de cada uma das constatações. Quer-se forçar a
aproximação para, talvez, deixar mais nítida a dessemelhança.
O terceiro capítulo abrangerá as reflexões de Jean Baudrillard. Através da
leitura das mais diversas obras escritas por ele, buscar-se-á nelas o que da imagem
pode se atinar. Isso tudo pretendendo estabelecer uma ordem, uma seqüência
lógica, um “início-meio-fim para as alavancas, os assentamentos e o patamar
ocupado hoje pelo simulacro. Iniciar por suas considerações acerca da sociedade de
17
consumo - e o sistema de objetos por ela constituído -, motivada pela criação e
consolidação dos meios de comunicação de massa e pelo virtual parece ser uma
boa trilha para percorrer até a chegada nas valorações da imagem que resultam de
suas percepções.
O quarto capítulo será destinado às explanações de Michel Maffesoli.
Apresentar suas idéias ancoradas na visão de que as épocas o alternâncias de
duas polaridades. Mostrar que, a cada repetição, agregam algo novo, mas nem por
isso descaracterizam-se. Isso para pensar a imagem atual como pertencente a um
contexto no qual o retorno do arcaísmo configura um tribalismo munido com os mais
diversos aparatos tecnológicos.
O quinto capítulo será designado a Gilles Lipovetsky, um pensador que
acredita estar-se vivendo hoje num contexto que levou a máxima individualista da
modernidade às últimas conseqüências. Ou melhor, num momento em que a
modernidade, acrescida ao prefixo hiper, liberta o individuo para gozar o mundo. E
também para sofrê-lo na mesma intensidade. Um hipernarciso que encontra na
mídia, na publicidade, na imagem, os recursos para a satisfação e fuga de si.
O último capítulo entrecruzará as principais noções dos autores e tudo o que
delas se pode compreender quando pensadas a partir da imagem. Todas as “teses
04” que tentarão ser construídas em cada capítulo apresentar-se-ão para o diálogo.
Num primeiro momento, parece ser possível deduzir que, enquanto o
espetáculo de Debord é uma condenação da sociedade da imagem pela alienação e
massificação produzidas no social e advertência para uma imprescindível tomada de
consciência (idéia do sujeito), o hiper-real de Baudrillard é uma constatação da
desrealização do mundo pela imagem e da impossibilidade de retorno a um estágio
anterior (fim do indivíduo).
18
Para Michel Maffesoli, a sociedade da imagem demarca o fim do
individualismo e o nascimento da sociedade tribal caracterizada pela convergência
entre práticas arcaicas e desenvolvimento tecnológico. A imagem tem função
gregária, gera laço social, cria microgrupos transitórios, efêmeros, protagonizados
por “personas” que fazem da vida uma sucessão de instantes eternos
fundamentados no prazer. A imagem não é o conteúdo que forma uma nova
sociedade, mas o elemento que promove a socialidade, o reencantamento do
mundo.
Contudo, para Gilles Lipovetsky, a hipermodernidade é a complexificação de
um estágio no qual surge um incontestável avanço nas condições de vida, de
liberdade e autonomia dos indivíduos simultaneamente ao aparecimento de novas
desigualdades e formas de dependência. O “hipernarciso”, o indivíduo soberano de
si e engajado muito mais em práticas para escapar da dor do que para obter um
prazer efêmero. Encontra no par consumo-mídia um refúgio perfeito para obter os
serviços necessários para sua satisfação.
Para amparar esta pesquisa, a Sociologia Compreensiva de Michel Maffesoli,
aliada aos pressupostos da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer fornecerá o
suporte metodológico necessário para esta tarefa. Isto porque evidencia a
possibilidade de um conhecimento construído por um ser que está contido no seu
objeto. E de um objeto que por horas se solta do seu sujeito e passa a falar por si.
Além disso, apresenta pressupostos (crítica do dualismo esquemático; forma;
sensibilidade relativista; pesquisa estilística; pensamento libertário) que auxiliam no
entendimento de quais premissas deve o pesquisador carregar consigo durante a
caminhada. Sem contar na revelação de quais expectativas deve deixar de lado para
19
conseguir abordar um social plural através de uma visão à sua altura, ou seja,
polidimensional. A visão que enxerga seus aspectos sinuosos e contraditoriais.
Hans-Georg Gadamer é quem auxiliará o entendimento sobre a ciência da
interpretação e os limites que uma busca teórica fornece à pesquisa. Ele destaca,
assim, os princípios da compreensão que se configura como um instante bem
delimitado no qual acontece uma epifania.
1 A Imagem
Onde começa uma imagem? Onde termina?
Esta poderia ser uma das primeiras curiosidades classificada naquela
categoria, talvez, de questões filosóficas, de perguntas sem respostas. Ou com
muitas respostas. Imagem não seria tudo o que chega até o olho? E, por
“decodificação”, produz idéia, sensação, conhecimento, comunicação? A imagem
depende do olho? As imagens são inerentes ao mundo? Ao homem? O que são,
afinal, as imagens?
Julga-se que nenhum destes porquês” é descartável quando se quer pensar
a imagem. Entretanto juntá-los e somá-los a muitas outras indagações que surgem
num desencadear de idéias é propor uma espécie de “estudo geral da imagem”.
Pensá-la nesta complexidade é instigante, mas exige extraordinário conhecimento e
capacidades quase fantásticas de entrar profundamente nas mais diversas
disciplinas. De misturar tudo e alcançar o cume da reflexão.
Aqui neste texto, contrariamente às próprias crenças, vai-se remar apenas por
um afluente, produzir um foco de análise que, no fundo, sabe existir outros pontos a
considerar, mas na superfície prefere tentar o passo o mais próximo possível do
comprimento da perna.
Régis Debray, autor, entre outras obras, de Vida e Morte da Imagem: uma
história do olhar no Ocidente, lançado em 1992 na França e no Brasil em 1993, é
escolha norteadora desta pesquisa por apresentar um denso estudo sobre as
mudanças sofridas pela imagem ao longo das épocas, mas, principalmente, por
destacar de qual mirante o pesquisador saboreia a imagem.
21
Não é o olhar do filósofo. Nem do antropólogo. Nem do sociólogo. Nem do
historiador. Mas do midiólogo. Mesmo que não deixe de escorregar, inevitavelmente,
vez por outra (ou na maioria das vezes), para estes campos do saber, é o midiólogo
quem está indagando a presença das imagens no mundo e a potência/ poder de
estabelecer vínculos sociais através dela.
É aquele que acredita, antes de tudo, que uma imagem é algo produzido pelo
homem, em diferentes contextos, para determinados fins. Simples assim.
A imagem é algo que no decorrer do tempo deixa de ser rabisco, figura plana,
ganha espaço delimitado, o peso das sombras, o calor das luzes. Conquista o status
de ser reproduzida indefinidamente. Assim, em diferentes meios e formas, avança
sua história preenchendo a frente dos olhos e alterando, através de suas
metamorfoses, as maneiras de percepção e de relação social que se estabelece a
partir desta interação.
Tudo seria de fácil entendimento se bastassem estas considerações iniciais,
frias e estáticas, seguidas de uma seqüência de informações condizentes a elas.
Porém, o que traz o fascínio pelo estudo deste objeto a imagem é justamente
tudo o que dela transborda. Porque o basta considerar que ela seja
intencionalmente produzida para cumprir um objetivo num contexto social
determinado e congelá-la para estudo. Pois ela, assim que findado o último traço de
sua completude, escapa para frente, para trás, para cima, para os lados, para dentro
do mundo e dos seres. Vai aquém e além das intenções. Tanto dos produtores
quanto dos receptores. É de pensar que a imagem detém a fórmula tão sonhada
pela ciência, aquela de propiciar “inteligência” à criatura, principalmente àquela que
ainda não superou sua estupidez interna de debater-se indefinidamente entre 0 e 1.
22
Pensa-se que é nesta fresta o esconderijo onde ela guarda as forças que
alavancam o social e transformam-no em outra coisa. Em algum ponto não
dimensionado, adquirem vida própria, as imagens. Mudam de lugar e de símbolos as
placas do destino. E causam verdadeiras indigestões teóricas, preocupações,
adorações, polêmicas. São sempre estrelas. Talvez o maior ídolo da história da
humanidade. Seja por adoração da sua majestade, por curiosidade para ver sua
cara lavada, ou por vontade de ver confirmada sua degradação.
Analisar a trajetória da imagem é arriscar dizer que ela não passa de uma
“entidade eterna” que a cada reviravolta da história ocupa a cena com outra
máscara. Ela despe-se, veste-se, adquire nova forma, espaço e influência no
theatrum mundi.
Fotografia, cinema, televisão, computador: em um século e meio, do químico
ao binário, as máquinas destinadas a ver tomaram conta da antiga imagem
“feita pela mão do homem”. Resultou daí uma nova poética, ou seja, uma
reorganização geral das artes visuais. Durante a caminhada, entramos na
videosfera, revolução técnica e moral que não marca o apogeu da “sociedade
do espetáculo”, mas seu fim (DEBRAY, 1993, p. 260).
Esta é a sentença dada por Régis Debray. Este é o ponto máximo de uma
obra que resgata em detalhes a história da imagem e analisa as transformações em
cada passagem de um estado a outro. Como se lê, videosfera é o nome que se dá à
atualidade em se tratando de uma visão “imagemidiática”. Aparentemente pode-se
dizer que são estas constatações que o despertaram para a cronologia dos tempos
da imagem.
Tentar-se-á, por mais impossível que possa parecer, ao se pretender separar
o autor de sua obra, buscar em Debray o que diz respeito à história da imagem sem
entrar nas questões conclusivas sobre suas metamorfoses. Sabe-se que, apenas
23
por determinar o início e término de cada fase a partir das premissas do autor, o
conteúdo está pleno de sentido e de posicionamentos do sujeito que o conduz.
Porém em outra escolha também não seria possível obter um conteúdo limpo,
esterilizado, pronto para um uso instrumental. As idéias são impuras, profanas. A
materialização delas o é da mesma forma.
A citação anterior descreve a trajetória que se idealiza percorrer aqui. Tudo
que precede esta fase, que a pontua e a ultrapassa, bem como os sentidos que elas
engendram. Não se configura como ponto de interesse do trabalho saber por
intermédio de Debray qual é, enfim, o estatuto atual da imagem na sociedade para
debatê-lo com os outros pensadores aqui convocados para esta tarefa.
Não se faz pertinente, então, compreender a fundo qual é o sentido da (por
ele decretada morta) sociedade do espetáculo. Não se faz necessário apresentar
que apenas se trata de uma outra concepção sobre espetáculo, talvez mais próxima
à de Baudrillard, aquela que lamenta o contexto perdido, o do palco e da platéia, no
fundo, da distância, da diferenciação espaço-temporal. Enfim, por mais que em
muitos momentos estes veredictos possam aparecer violentamente delimitando
começos e fins, solicita-se que a concentração seja dada, ou melhor, que a atenção
fique retida na passagem das “eras”. Não esquecendo, é claro, de refletir sobre os
diferentes sentidos produzidos ali.
Debray defende a importância de se historicizar, delimitar duração para os
eventos. Tudo porque acredita nela como garantidora de conhecimento, ao contrário
de palavras descontextualizadas, pois ficam demasiadamente vagas para serem
apreendidas. Entretanto aposta numa temporalização nada convencional. História
enquanto Antigüidade, Idade Média, Tempos Modernos está fora de questão.
Tampouco declinar o tempo da arte enquanto “antigo”, “medieval”, “clássico”,
24
“moderno”, “contemporâneo”, conforme satiriza, “decalcando a visão escolar”. Como
escreve: “a história do olhar não se gruda à história das instituições, da economia ou
do armamento. Tem direito, nem que seja unicamente no Ocidente, a uma
temporalidade própria e mais radical” (DEBRAY, 1993, p. 205).
O autor separa em três grandes momentos a história das imagens.
Praticamente por levar em conta as diferentes práticas que obtêm da imagem um
diferente suporte.
1) Logosfera: a era dos ídolos no sentido lato (do grego eídolon, imagem); vai da
invenção da escrita até a imprensa.
2) Grafosfera: a era da arte. Da imprensa à TV em cores.
3) Videosfera: era do visual. Época em que vivemos.
Estes grandes grupos são chamados por ele de midiasferas. É importante
sublinhar que elas não são excludentes, mas sobrepostas, imbricadas uma na outra.
Mesmo cada uma apresentando um modo específico de pensamento, nas palavras
de Debray: um horizonte de expectativa no olhar.
A midiasfera precursora, a logosfera, define-se a partir do surgimento da
escrita, aproximadamente 4000 a.C. Antes dela, explica Debray, a imagem ocupava
seu lugar. Participava de um “simbolismo smico, intelectual, altamente ritualizado,
sem vida combinando com proferições verbais”. Sem a escrita as imagens eram
códigos a serem decifrados, não representavam estilo, estética, busca por
expressão artística, mas se configuravam produtos permutáveis, com uma regra
coletiva de vida (Debray, 1993, p. 217-218).
25
Figura – 01: Gravura rupestre – Período Paleolítico
Fonte: http://www.arteespana.com/paleolitico.htm
Assim que as primeiras grafias adquirem a responsabilidade intransferível de
fazer comunicação, a imagem se desprende das amarras de uma função utilitária de
troca de informações coletivas e passa a trazer para si as funções expressivas e
representativas. Como sintetiza o autor: “(...) a imagem é a e do signo, mas o
nascimento do signo da escrita permite à imagem viver plenamente sua vida de
adulto, separada da palavra e alijada de suas tarefas triviais da comunicação”
(DEBRAY, 1993, p. 217).
Figura 02 Figura 03
Escrita Cuneiforme
Fonte: http://www.facom.ufba.br/projetos/digital/aescrita.html
26
A era dos ídolos é a grande fase na qual a imagem não depende do olhar.
Isso significa, grosso modo, que não precisa ser vista para emanar todo o poder que
carrega concentrado consigo. O que vale, aqui, é apenas a sua presença. Assim, a
relação com ela não é contemplativa, pois não é necessário que seja vista para que
produza seu efeito. Recorrendo a um exemplo fornecido pelo autor, um ortodoxo
reza a seu ícone com os olhos fechados porque carrega consigo o ícone de Cristo.
o fato de estar perto tem valor propiciatório, profilático e santificante (DEBRAY,
1993, pp. 221-222).
O ídolo, no sentido estritamente grego, designa “o pedestal cilíndrico ou
tetragonal”, ou a estátua pré-helênica anterior à estátua dita dedálica. No
sentido amplo, porém, vamos reagrupar sob este termo o conjunto das
imagens imediatamente eficazes (pelo menos para os expectadores imersos
em certa tradição da fé), quando o olhar vai além da materialidade visível do
objeto (DEBRAY, 1993, p. 219).
O olhar vai além da materialidade do objeto. O que o espectador além da
imagem conecta-se com algo que carrega dentro de si. Epifanias. Pode ser esta a
síntese da logosfera. A imagem não existe para ser analisada, para ser reproduzida,
nem mesmo contemplada. Ao extremo pode-se pensar que talvez a imagem nem
exista nesta época. Ela é uma porta, um acesso ao invisível. É uma espécie de
intermediário. Ou, utilizando melhores palavras, as de Debray, é dizer que a carne
conta menos que o Verbo que a habita. O mais importante nos primeiros passos da
imagem após a escrita é que consiga ser algo além de si mesma, além de uma
figuração concreta. Precisa, necessariamente, conter algo de divino, um poder
(DEBRAY, 1994, p. 222).
O rompimento desta relação mística com a imagem se na Grafosfera, ou
era da arte. Muda consideravelmente a maneira de olhar. Antes o espectador era
visto pelo ídolo, este tomava a iniciativa no ato da visão. Suas virtudes beneficiavam
27
os homens que, ávidos pela salvação, esperavam por elas. Passivos eles eram.
“Quando um cidadão grego ou romano, um fiel bizantino ou medieval levanta os
olhos para uma imagem sagrada ou divina, lhe resta baixá-los. Com efeito, ‘é o
olhar do Senhor’ que pousa sobre ele” (DEBRAY, 1994, p. 230). Nada mais resta
para um fiel, nestas circunstâncias, além de traçar a cruz no peito e inclinar-se o
quanto antes. O ídolo não consegue ser apreendido, ser possuído, ele irradia sobre
o sujeito. Não tem autor nem possuidor, é completamente autônomo. Mesmo sendo
elaborado pela mão humana é entendido como enviado por Deus, e o vivente que
recebe este dom somente o transmite como bem deve fazer.
O concílio de Trento opera a passagem do ídolo para a obra de arte. O ícone
vira quadro. A imagem, em vez de aparição, torna-se aparência. Perde sua fortuna
de sujeito e obriga-se a viver uma vida de objeto. Esta mudança sofrida pela imagem
é simultânea à passagem do manuscrito para o impresso, entre os séculos XV e
XVI.
Conforme explica Debray, o iconoclasmo calvinista desenvolve-se na
seqüência da invenção de Gutenberg e representa a segunda Querela das Imagens
do Ocidente cristão:
(...) pela propagação do livro a Reforma denuncia as perversões mágicas ou
indiciais das imagens cristãs. É preciso adorar Deus e não sua imagem,
martela Lutero, retomando o fio de Tertuliano que acusava os pagãos de
‘tomarem pedras por deuses’(DEBRAY, 1993, pp. 226-227).
O regime arte da imagem acrescenta em relação ao anterior, principalmente,
a eliminação de uma relação catártica entre ídolo-espectador. Agora se tem maior
número de imagens, maior ênfase em sua presença. Mas a imagem era
compreendida enquanto representação. Nada mais de epifanias.
28
Invade, assim, todos os domínios: igrejas, palácios, a rua, as fachadas. Os
poderes outrora condicionados aos divinos caem por terra. A idolatria iniciada com a
invenção da escrita é, enfim, derrubada por Gutenberg (DEBRAY, 1993, p.227).
Figura 04 Figura 05 – Prensa de Gutenberg
Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg
Imagens retiradas da internet, meramente ilustrativas
O impresso, segundo Debray, manchou de páginas cinzentas o livro ilustrado,
colorido, com iluminuras e figuras alegóricas. Aquelas imagens narrativas, os relatos
em imagens, tais como os vitrais, a tapeçaria, os afrescos - ficam todos encobertos.
Por esta razão o autor, precisamente aqui, pára e afirma eloqüente que a Idade
Média foi a verdadeira, ou melhor, a civilização mais próxima de receber o título de
Civilização da Imagem (DEBRAY, 1993, p. 227).
29
Figura 06 - Apocalipse de Angers (tapeçaria)
Fonte: http://balaiovermelho.blogspot.com/2008/02/o-apocalipse-de-angers-srie-
constituda.html?showComment=1203893520000
Contudo não deixa de atestar que, anteriormente à foto, foi o impresso que
permitiu a criação do primeiro museu imaginário europeu. Tudo porque não se pode
separar a cultura do impresso com a cultura das imagens. Num primeiro momento o
livro circulava de tal forma a miscigenar as idéias, ou melhor, como agente
globalizante. Como expõe Debray, “a gravura colocou o norte iconófobo em contato
com o sul e o sul iconófilo com a escola do norte”. E o findaram os debates. Tudo
promovido pela invenção gutenbergiana (DEBRAY, 1993, pp. 228-229).
Na história das imagens, a vitória do humanismo em relação à teologia
assinala a liberação do homem para produzir a arte. Arte enquanto produto de uma
civilização, não como manifestação inerente à espécie, conforme destaca o autor.
Pode-se pensar em arte quando a obra encontra em si mesma sua razão de
ser, “quando o prazer (estético) não é tributário da encomenda (religiosa)”. O
surgimento da arte é o momento em que o fabricante toma a iniciativa, individualiza-
se, atua, toma a palavra. Aparece a figura do artista que ninguém mais é além do
artesão que diz, convictamente, “eu”. Ele desempenha um papel na sociedade
através do “eis como vejo o mundo” contido em cada tela (DEBRAY, 1993, pp. 223-
224).
30
O artista trabalhou para as comunidades religiosas, as cortes principescas,
para o rei, sua corte e sua Academia, para os colecionadores, para os críticos e
salões, para as empresas, a mídia e os museus. Essas passagens significaram
também uma mudança das temáticas de cada momento da pintura: no ponto mais
alto, a pintura de história; em seguida o retrato. Paisagem, pintura de animais,
natureza morta completam a seqüência. Em datas, pode-se apresentar a sucessão
do período da arte explícita na obra de Debray (1993, pp. 233-234):
De 1450 a1550 período clerical e curial: o pintor deixa de ser
um fabricante, mas continua sendo um “criado”;
De 1550 a 1560 – período do mecenato e dos príncipes: aparece
a figura do pintor da corte.
De 1650 a 1750 período monárquico e acadêmico: artistas
oficiais designados
A partir de 1750 período burguês e comercial. Momento em
que o impresso recebe um novo impulso. Por volta desta data se
estabelece a complexa constelação de atores que irá manter-se
no século XIX: o marchand, a galeria, o crítico, a exposição.
Na grafosfera o período da arte iniciado pela invenção da imprensa muito
além de análises minuciosas do motivo pelo qual o tempo passa e,
conseqüentemente as ações e os resultados, o mais importante a observar é o
nascimento de uma imagem, nas palavras do autor, esclarecida. Esvaziada dos
31
mistérios, “dos fundos duplos do visível por uma transparência puramente humana”.
Saem do espaço para uma superfície plana. É o momento da criação, inserção de
uma terceira dimensão: a realidade. Situada entre o ícone e seu observador. O
espectador não é um possesso em potência, mas um possuidor efetivo da obra
(DEBRAY, 1993, pp. 229-233).
A criação de um método gráfico da representação espacial, ancorado num
sistema de perspectiva geométrica, torna a inteligibilidade universal. Debray
apresenta a Renascença como a época na qual aconteceu a unificação do mundo
real. Se anteriormente existia, segundo afirma, uma compulsiva observação do
detalhe, a partir de então um sistema homogêneo e global, pleno de um espaço
inteligível, neutralizou as pregas, os recônditos obscuros do sensível”. Conforme
síntese do autor: “liberando-nos dos deuses a perspectiva artificialis levou-nos a
descobrir a terra. Permitiu a saída do eterno” (1993, p. 233).
Revolução do olhar, isso tudo significa. O olhar transfigurador encaminha-se
para o leito de morte enquanto o novo olhar percebe a imagem e procura nela o real.
E mais: o real começa a ser reduzido ao que é percebido na imagem. As epifanias
cedem lugar ao trompel’oeil.
Segundo Debray, a arte ocidental nasce tomando-se como fim e objeto. E
morre por isso mesmo. Com a fotografia, o cinema, mesmo com o dadaísmo
1
,
acontece a morte da pintura, confessa Debray. Mesmo que esteja decretando a
1
É a primeira manifestação antiarte gerada pela frustração com as ciências, religiões e a filosofia.
Desejo do choque, da denúncia, do escândalo, o absurdo é cultivado. Uma noite dadaísta típica
contava com diversos poetas declamando versos nonsense simultaneamente em línguas diferentes e
latindo como cães. Queriam acordar a imaginação. Um dos principais expoentes foi Marcel Duchamp
que, em 1913, cria os ready mades (arte pronta). Os readymades abrem as portas para a arte
puramente imaginal e não retinal. Ver também: THOMAS, Karin. Hasta hoy. Estilos de las artes
plásticas en el siglo XX. Barcelona: Ediciones Del Serbal, 1994.
32
morte de alguém que estava sendo declarado morto desde o século I, por
Plínio, o Velho, sublinha. Contudo a questão não está na discussão da arte
enquanto morta ou viva, mas na compreensão da história das relações dos homens
com as imagens. Pontuando sem discussões, a estetização das imagens começa no
século XV e termina no século XIX, situa-se entre o aparecimento das coleções
particulares dos humanistas e a abertura dos museus públicos (DEBRAY, 1993, p.
226).
Debray explica que o nascimento da arte é ocasionado pela produção de um
território indissoluvelmente ideal e sico, cívico e citadino. É a reunião de um lugar
com um discurso. E esta sentença, destaca o autor, vale tanto para a arte enquanto
noção como para esta ou aquela arte enquanto nero (teatro, romance, dança,
cinema, etc.). Trata-se, escreve o autor,
(...) de um lugar ad hoc para se estabelecer por sua conta, separado do
templo ou do palácio. Como se diz: um quarto fora de casa. Espaço de
salvaguarda, de exibição, de visita, desencadeando o efeito patrimônio pela
estocagem dos vestígios e das competências. Glipto-, Pinaco-, Cinema-,
Vídeo-teca” (DEBRAY, 1993, p. 224).
No momento em que a imagem fazia parte do regime do ídolo, ela fazia ver o
infinito. Agora, na arte, traz aos olhos a finitude. Se antes havia um olhar sem
sujeito, agora é colocado um sujeito por detrás do olhar, o homem. Debray explica
ter um nome esta revolução, trata-se da perspectiva euclidiana. Ela quebra toda a
humildade do homem diante da imagem e torna o olhar do ocidente “orgulhoso a
respeito de sua perspicácia” (1993, pp. 230-231).
Parafraseando o autor, trata-se do momento da história no qual o olhar sente
a maior satisfação: é quando o homem, criado à imagem de Deus, acaba recriando a
natureza à imagem do homem. Assim, resumidamente:
33
(...) não se gosta do que se vê, olha-se para aquilo de que se gosta. E
quando uma sociedade passa a gostar um pouco menos de Deus, ela passa
a olhar um pouco mais para as coisas e pessoas. Distanciando-se do
primeiro, aproxima-se das segundas (DEBRAY, 1993, p. 197).
A obra de arte é uma tentativa de possuir o mundo, dimensioná-lo. O culto da
arte foi, utilizando palavras do autor, uma saída religiosa para a religião, a crença
dos incrédulos, a devoção cética, encontrando nos museus um santuário para
agnósticos. “Engana-a-fome espiritual”, escreve Debray. No momento em que esta
veneração transborda e multiplicam-se seus “templos”, administradores e
mediadores da transmissão cultural, ela conquista um apogeu mercadológico
esvaziado de sua anteriormente sagrada função estética. Debray atesta que o
dadaísmo conseguiu mostrar devidamente isto, que a arte estava despedida de sua
função artística e passara a ganhar a vida enquanto coisa, objeto indiferente, como
ready made. Renegara seu dom diante das possibilidades de ganhar muito dinheiro
nos “reality-show-rooms” (1993, p. 239).
Para Debray a história da arte sucede desta lamentável maneira. Parece que
seu ponto de vista se resume nesta frase: “do mesmo modo que a barca do amor,
assim também a do sublime veio a despedaçar-se na vida corrente” (1993, p. 248).
Sabe-se que existem incontáveis pontos a discutir a respeito da arte, da sua
definição, do seu início, seu fim, se é o fim, enfim, questões que por si renderiam e
rendem atualmente livros, teses, dissertações, artigos, palpitações, talvez até noites
sem dormir. Aderir à unilateralidade do autor por acreditar ser um apropriado meio
para se chegar ao fim, ao objetivo desta pesquisa é estar sujeito a ter que parar para
“ruminar” incontáveis vezes. O que se considera, cabe ressaltar, o verdadeiro prazer
da caminhada reflexiva.
34
De certa maneira simpatiza-se com as declarações de Debray e com suas
frases derradeiramente ressentidas, pois é como se de alguma forma existisse um
ombro amigo para se deitar e lamuriar. Tudo porque, ao se retirar a carapaça de
midiólogo, e ao se perceber enquanto um profundo desconhecedor do universo da
arte, espreme-se o cérebro para compreender porque se paga ingresso para tentar
ver ou dizer, por exemplo, que um pufe construído com garrafas pet é alguma coisa
mais que um pufe construído com garrafas pet.
Querendo ou não, cabe engolir o pasto e seguir em frente, decretar um ponto
final na arte e seguir a história. Das imagens. Assim: “a arte é imortal (para um
indivíduo); a arte morreu (na história ocidental das formas); a morte da arte não é a
da imagem (que advirá enquanto houver homens que saibam que vão morrer)”
(DEBRAY, 1993, p. 159).
Debray descreve em apenas um (relativamente longo) parágrafo a seqüência
de décadas que poderia ser comparada às fases de crescimento de um ser humano.
Querendo esclarecer, bem entendido, a sucessiva abertura das manifestações
artísticas e criação de espaços próprios para cada uma delas. Eis as modificações:
os diálogos do ofício religioso passam a ser representadas no adro. Na catedral,
mas na praça pública, o drama do mistério. Depois do adro vai para um espaço
construído para este fim: nascimento, no século XVI, do teatro. Depois o
cinematógrafo dos irmãos Lumière deixa as barracas de feira ou a sala do Grand
Café, e Méliès em 1902 inventa o Nickelodéon, antepassado das modernas salas de
projeção. Mostra ali o Le voyage dans la Lune: nascimento, no princípio daquele
século, do cinema como arte. Assim, a emancipação, a capacidade de “refletir sobre
si mesmo, com sua própria linguagem, sob seus próprios lustres”, dá o compasso da
marcha da transformação e criação das artes (DEBRAY, 1993, p. 225).
35
Figura 07 Figura 08
Nickelodeon – visão externa e interna
Fonte: http://marcosnocinema.zip.net/arch2007-09-02_2007-09-08.html
Figura 09 - Irmãos Lumière Figura 10 - Cenas do filme Le voyage dans la lune
Fonte: http://filmsdefrance.com/FDF_Le_voyage_dans_la_lune_rev.html - le voyage dans la lunex
Crescem os museus, as exposições, os valores de cada tela. Ao mesmo
tempo surgem outros meios para manifestação da imagem no mundo. A arte passa
a movimentar uma engrenagem econômica grandiosa (1993, p. 238). E mais um
elemento surge na cena da história. Começa a era visual. A videosfera. Através do
eclipse da transcendência, culto, etnia, partido, território, nação, arte, desponta outra
maneira de ver e pensar o mundo (1993, p. 253). Conforme o autor:
(...) o fim do politeísmo antigo tem algum parentesco fisionômico, embora em
uma escalada completamente diferente, com o fim de nosso milênio cristão.
Gigantismo das cidades, inflação do divertimento, paixão pelos jogos e
espetáculos, culto dos histrões e gladiadores; fusão dos universos masculino
e feminino, promoção do intersexo; desenvolvimento de uma erudição
compilatória em círculo fechado, promoção do intertexto; personalização do
animal doméstico; adoração embrutecedora da infância; frenesi do novo, do
“isto funciona”; erotismo onipresente; efusões cosmológicas... (DEBRAY,
1993, p. 255).
36
É precisamente isto que surge quando “a força e a honra de ser um homem”
(Malraux) deixam de ser evidentes, esbraveja
Debray.
Elege-se um totem, então: Andy Warhol.
Não se pode dimensionar ainda, segundo o
autor, em que escala se está na “acumulação
de relíquias”. Trata-se de uma “religião da
forma”, o momento em que uma “voracidade estética ostensivamente exibida
consegue encobrir uma fascinação fruidora do nada” (1993, p. 255).
Mas o que é realmente a era do visual? Quando começa? O que pode ter
sucedido à imagem?
Para responder a estas dúvidas precisa-se cavucar. A arqueologia do visual
proposta por Debray (1993, p. 262) inicia com o
fogo e as sombras da caverna, e a crítica de
cinema de Platão. Porque, como escreve, a
câmara escura, sob o nome de sténopé,
remonta à Antigüidade.
Figura 12 - Sténopé
Fonte: http://www.universphoto.fr/histoire-photographie.html3
Contudo, de forma mecânica, a projeção luminosa fixa
começa no século XVII com a lanterna mágica de Kircher que é,
por seu turno, um apêndice da câmara escura.
Figura 13 - Lanterna Mágica
Fonte: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/hist37.htm
Figura 11 – Andy Warhol
Fonte: http://brasilia.usembassy.gov/
37
Quanto à imagem animada, aparece no século XVIII com a invenção sob a
Revolução Francesa - do travelling pelo belga Robertson, o inventor das
“Fantasmagories
2
que fazia deslizar sobre trilhos, por detrás de uma tela, uma
lanterna em um carrinho.
Figura 14 – Fantasmagories
Fonte: http://analysefilmique.free.fr/prehisto/robertson.php
Mas é a prova única sobre metal, ou daguerreótipo, fabricada por Daguerre,
pintor e decorador de teatro, que faz entrar a imagem ocidental na nova era
mecânica.
Figura 15 - Daguerreótipo Figura 16 - Primeira imagem registrada por ele.
Fonte: http://www.mnemocine.com.br/fotografia/historia_foto.htm
2
"Fantasmagorie" vient du grec phatasma qui signifie "apparition ou fantôme" et de agoreuin qui
signifie "parler en public". Les "fantasmagories" sont les noms donnés aux spectacles d' Etienne-
Gaspard Robertson vers 1798. Ils se constituait principalement d'une lanterne magique (ou lanterne
de Kircher) très perfectionnée appelée également "Fantascope". Robertson y ajoute de la fumée, des
bruits lugubres, des odeurs ou encore des mouvement de projecteurs. Il s'agit, à l'époque, d'un
spectacle impressionnant, aux effets si sophistiqués qu'il attire de nombreux curieux dans le théâtre
parisien du couvent des Capucines, près de la place Vendôme à Paris. Le thème de la mort, fascine
principalement le public. Robertson, sachant valoriser la résurrection, projettera parfois, sur demande
de la famille, le portrait de défunts. Il rend concrèt ces réincarnations virtuelles par des procédés qui
témoignent de son don de technicien. Fonte: http://analysefilmique.free.fr/prehisto/robertson.php
38
No entanto, e para avançar depressa, confessa Debray, a entrada da imagem
no Novo Mundo não se opera, segundo escreve, em 1839 com a fotografia. Nem em
1859 com a primeira exposição de fotografias no Salon de Beux-Arts de Paris.
Tampouco em 1895 com primeira projeção dos irmãos Lumière. Não começou,
também, por ocasião do primeiro filme sonoro em 1928, Le chanteur de jazz,
resposta no mesmo tom do cinema à rádio.
Figura 17
Le chanteur de jazz – primeiro filme sonoro
Fonte: http://musicals.blogs.allocine.fr/
Ainda nos meandros da cronologia, nada da
chegada da era do visual em 1937, com o
Technicolor. Nem em 1951, com o Eastmancolor
(filme negativo em cores).
Mas sim, finalmente, nos anos 70 com a
utilização da TV em cores. Partia-se para videosfera
por volta de 1968, segundo Régis Debray.
Figura 18
Um dos primeiros televisores em
cores
Fonte:
http://www.colegiosaofrancisco.com.
br/alfa/historia-da-televisao/historia-
da-televisao.php
39
Para ele a transmissão dos jogos olímpicos de Inverno de Grenoble, na qual
foi testada e lançada, na França, a retransmissão hertziana das imagens coloridas,
foi o ponto final da grafosfera (1993, p. 262).
Ao analisar o transcorrer destas técnicas de produção de imagem, Debray
afirma que a fotografia não foi o primeiro multiplicador de imagens, que a gravura e a
litografia eram técnicas que propiciavam este fim. Mas a invenção do
daguerreótipo promoveu uma reviravolta porque se tratava de uma tecnologia que
estimulou a transição das artes plásticas para as indústrias audiovisuais. Conforme
lamenta Debray: no imediato, o procedimento fotomecânico cometia o sacrilégio de
introduzir um automatismo material no coração impalpável do que constitui a vida. O
repetível passava a ser desprezível”. Tudo isso despontando depois do dia 18 de
agosto de 1839. Apesar da sentença, o autor pondera. Porque com a reprodução
inicia, inevitavelmente, uma democratização (DEBRAY, 1993, pp. 263-264).
Para Debray o livro de bolso de Gutenberg constitui-se o ponto máximo da
prensa. Assim como o Photomaton e Polaroid, os da fotografia. “Kodac foi para a
imagem o que Lutero foi para a Letra. 1888: aperte o botão, nós fazemos o resto”.
Atualmente, registra o autor, cem bilhões de cliques por ano. O extraordinário passa
a ser cotidiano. O especialista deixa de ser solicitado quando é possível ser apenas
qualquer um para manejar os aparatos tecnológicos de produção de imagens
(DEBRAY, 1993, p. 265).
Mesmo assim é o cinema que se impõe sobre todas as outras artes como arte
de referência. A imagem-som tem um poder hipnótico superior, confirma Debray.
A foto classificou a pintura para o alto, para as elites. O cinema
transbordou-a, ao mesmo tempo, por baixo (cativando a atenção
popular) e pelo alto (em termos de prestígio artístico) (DEBRAY,
1993, p. 269).
40
Seguindo Debray, a videosfera foi a união de dois bandeirantes: a foto e o
cinema. Este casamento se deu ainda na grafosfera. Não se pode dizer que a foto é
uma pintura inferior, nem que a TV é o cinema em ponto pequeno. É outra imagem.
A TV inicialmente pretendeu fazer cinema. A foto também usou esta artimanha ao
tentar ser pintura.
Mas ao invés de conquistarem seus objetivos, apenas reforçaram seus
modelos. Depois partiram sozinhas para seu lugar específico dentro do mercado de
produção imagética. Debray explica que é uma espécie de transição midiológica
natural: “obrigação de fidelidade e depois a evicção” (1993, p. 270).
Uma midiasfera depende do principal vetor material de transmissão. Como
mostra Debray, o que separa o regime da arte do visual é a passagem da película
química para a fita magnética, do travelling para o zoom, do documentário para a
grande reportagem. Na foto e no cinema, a imagem existe fisicamente. Um filme é a
sucessão de fotogramas visíveis a olho nu, em curso de projeção. A videosfera
começa com o vídeo. E em vídeo, materialmente, deixa de haver imagem, e sim um
sinal elétrico em si mesmo invisível, passando vinte e cinco vezes por segundo
sobre as linhas de um monitor. É tarefa do espectador recompor estas imagens
(1993, p. 271).
As propriedades do vídeo demarcam o novo horizonte da imagem a ser
discutido:
- imagem e som na mesma pista;
- não necessita de revelação química em laboratório (que exige entre uma e
duas horas para cada bobina de filme);
- custo bastante baixo do suporte;
41
- possibilidade de transmissão instantânea à distância (por ligação através de
satélite, ao passo que a bobina, por exemplo, deveria ser expedida por avião).
Prático. Rápido. Barato. Eficiente. Como o passar a produzir mais e mais
imagens diante destas conquistas? Mesmo sem saber o que espera no futuro, é
possível notar aqui a modificação do espaço e do tempo. O mundo começa a ser
visível porque está fácil de compactá-lo, editá-lo e transmiti-lo. O mundo, a bem da
verdade, continua o mesmo, o que se diferencia é a percepção que se tem dele, a
maneira como se olha e se age para e dentro dele.
Bate na mesa Debray (1993, p. 272) e entoa o nascimento da “logística do
visível em favor do vivenciado”. Indicador hirto, olhos em chamas, vocifera a
diminuição do grau de liberdade das apreciações subjetivas. E um aumento
considerável no número de imagens disponíveis. Sério risco de desvalorização... de
abolição das distâncias. Sem contar as mudanças no tempo. Não aquele
meteorológico, mas aquele do passado, presente, futuro, aquele linear que alicerça
o modo de compreensão que o homem tem do mundo. Parece que agora passa a se
chamar de real. Mas o melhor a fazer agora é não cutucar Debray.
Vai-se convidá-lo educadamente para explicar didaticamente o porquê de a
imagem vídeo colorida promover o corte entre grafo e videosfera. Eis o texto (1993,
p. 274):
a) o tubo catódico fez passar da projeção para a difusão, ou da luz
refletida de fora para a luz emitida pela tela. A televisão quebra o
imemorial dispositivo comum ao teatro, à lanterna mágica e ao cinema,
opondo uma sala obscura a uma revelação luminosa. Aqui sua imagem
tem sua luz incorporada. Revela-se a si mesma. Sendo sua própria
42
fonte, ei-la, aos nossos olhos, causa de si. (...) Se toda a projeção
supõe um projecionista exterior à tela e, portanto, um desdobramento,
a imagem catódica funde os dois pólos da representação em uma
espécie de emanação das próprias coisas. (...) O veículo e o veiculado
são homogêneos. Passamos de uma estética para uma cosmologia;
b) a cor reforça de maneira decisiva o analógico, a concretude e a
capacidade alucinatória da marca. Tal como o caráter escrito em preto
sobre branco, o sinal impresso na página, assim a abstração distante
do preto e branco mantém com seu observador um afastamento
convencional, desambientado e frio. (...) Menos exigente e mais
amena, realiza plenamente “o efeito de realidade” que é a aptidão da
imagem para não aparecer como tal. Mas como o próprio mundo em
plenitude e concretude, embalado tal qual até nós em seu invólucro
sonoro completamente cru.
Abolição das distâncias entre o eu e o mundo. O olhar muda nesta fase
porque passa a ser, segundo Debray, uma modalidade da escuta. Anteriormente,
explica, os termos paisagem e mundo circundante estavam atrelados,
respectivamente, ao olhar e ao som. Agora, como diz “o visual tornou-se uma
ambiência quase sonora e a antiga paisagem num mundo circundante sinestésico e
envolvente. Fluxus é o nome de nossa época. O som flui; talvez tenha levado a
imagem juntamente com ele” (1993, p. 275).
Debray esmiúça este ponto porque para ele retirar-se, tomar distância,
abstrair-se faz parte do próprio conceito do ver. O olhar se coloca fora do campo de
43
visão. É livre. Vê-se de longe. É possível possuir seres e coisas por meio de vistas
“claras e distintas”, como uma idéia.
O ouvido, por sua vez, emerge no campo sonoro, musical ou de ruídos
artificialmente reconstituídos. Escuta-se de perto. O espaço sonoro absorve, bebe,
penetra. É-se possuído por ele. O ouvido é servo. Debray aclara as características
destes dois sentidos humanos para dar conta do entendimento da videosfera, época
que conjuga o ouvido e o olho, a era audiovisual. Para ele:
(...) o audiovisual modera o desligamento ótico pela ligação sonora, em uma
combinação instável em que o áudio tende a tomar o comando.
Tecnicamente, é possível cortar o som de sua TV, o que não se pode fazer
no cinema. Mas houve e pode haver cinema mudo, ao passo que não se
pode conceber uma TV muda (DEBRAY, 1993, p. 276).
Uma imagem-TV funciona como se fosse o melhor amigo do homem. Sem
querer proferir preconceito, julgamento, rebaixamento a nenhum cão, fique claro.
Nos tempos de hoje deve-se tomar cuidado com as palavras. Às vezes, como
escreve Saramago, elas mudam de opinião como as pessoas. Retomando, existe
uma relação íntima, ingênua, profunda, fiel, cúmplice, calorosa, entre espectador e
imagem-TV. Quase que se entendem num simples cruzamento de olhar. Ela é tão
parte do espectador quanto o personagem visível é parte da própria caixa que
habita. Na TV a palavra máxima é o dentro. Tudo junto, sem distâncias. Conforme
Debray,
(...) interpenetração, imanência máxima. O apresentador ‘convida-se a si
mesmo para entrar na casa das pessoas’; e vibramos com ele, na conversa,
no estúdio. Tudo se torna próximo. O estúdio deixa de ser um espaço fora do
nosso espaço, um tempo fora do nosso tempo. confusão. Provoca crise o
afastamento entre sujeito e objeto que mantinha tensa a mola das catarses
(DEBRAY, 1993, p. 276).
44
Superfície plana e todos nela inseridos. Esta parece ser a idéia de Debray.
Para ele a TV estremece com o que chama de “dualismo fundador de nosso espaço
de representação clássica”. Palco e platéia. Visto e vidente. Existia entre estes
elementos um corte bem delimitado através do qual saltava e se originava a
verdadeira, segundo Debray, relação espetacular. Agora, na videoesfera, tudo está
simplesmente em tudo, escancara o autor: o show está no real e o telespectador por
detrás de sua telinha, não quer olhar, mas participar do happening em que o próprio
jornalista participa na fabricação do acontecimento. Assim acontece a marcha rumo
ao “círculo de êxtases encantados, em que se quebra o velho face a face entre olho
e visível, cada um em seu lugar, que pressupunha a distinção entre a coisa e sua
imagem, o fato e seu vestígio” (DEBRAY, 1993, p. 276).
Se estas páginas cheiram a crisântemos e velas acesas, imagina-se o que
sucederá após a pergunta que se tem a fazer ao autor a partir de agora. Mas afinal,
o que acontece, então, ao mundo, à imagem, às eras (melhor dizendo) pelos idos de
1980, quando surge o sistema binário? (Não se poderia esperar outra resposta):
- a carne do mundo transformada em um ser
matemático como os outros. Tal seria a utopia das
‘novas imagens’ (1993, p. 277).
A disseminação das imagens como fruto de operações
de cálculo gera mal-estar. Na transição de um sistema
analógico para um binário, a imagem ganha um status
completamente imaterial, é nada mais nada menos que
número.
Figura 19
Sistema Binário
Fonte:
http://www.terniweb.it/imgnew
s/sistema-binario.jpg
45
As telas virtuais se fazem ver e revolucionam o olhar. Se havia uma terrível
maldição que fazia imagem e imitação acorrentadas uma à outra, criando
indefinidamente o simulacro, com a “imagem-código” veio a libertação, é no que
acredita Debray. Pois anteriormente ela necessariamente continha em si mesma um
estatuto espetacular de reflexo, decalque ou engodo, substituto, embuste, enfim, era
sempre ilusão, reforça. Nesta passagem, acabou o processo das sombras e a
reabilitação do olhar no campo do saber platônico.
Com a concepção assistida por computador, a imagem produzida deixa de
ser cópia secundária de um objeto anterior: é o inverso. Contornando a
oposição entre ser e parecer, semelhante e real, a imagem graficamente
computadorizada já não tem de imitar um real exterior, já que é o produto real
que deverá imitá-la para existir (DEBRAY, 1993, p. 270).
Sentença de morte para as aparências, acalca a caneta o autor. Para ele tudo
se inverteu. Conforme escreve, o “re” de representação vai pelos ares. Tudo porque
a imagem computadorizada é auto-referente, ela permite, conforme exemplifica,
visitar um prédio que ainda não está construído. A era visual, enfim, se resume a
isso, a ser tal como si mesma (1993, p. 277).
Na era dos ídolos tratava-se de um olhar sem sujeito. Na outra, a era da arte,
falava-se de um sujeito por detrás do olhar, o homem. Neste momento da imagem, o
visual, tem-se um olhar sem sujeito. Aquela transcendência inerente, o simbolismo,
aquele mistério e relação separada com a imagem cedem lugar a uma mistura, a
uma espécie de “boa digestão” da imagem. Um relacionamento “de igual para igual”
com ela. Ela não está além, aquém, não merece idolatria, tampouco antipatia.
Pensando, talvez, em outros possíveis interessados em estudar a temática da
imagem, Debray organizou um quadro comparativo dos três regimes propostos por
46
ele. Simples, objetivo, didático o quadro traça, sem as vísceras da emoção, o que
pontua um e outro tempo. Facilitando, assim, a comparação.
LOGOSFERA
(após a escrita)
Regime ídolo
GRAFOSFERA
(após a imprensa)
Regime Arte
VIDEOSFERA
(após o audiovisual)
Regime Visual
A imagem tem como
princípio de eficácia
(ou relação ao ser)
PRESENÇA
(transcendente)
A imagem é vidente
REPRESENTAÇÃO
(ilusória)
A imagem é vista
SIMULAÇÃO
(computadorizada)
A imagem é visualizada
Modalidade de
existência
VIVA
A imagem é um ser
FÍSICA
A imagem é uma coisa
RITUAL
A imagem é uma
percepção
Referente Crucial
Fonte de autoridade
O SOBRENATURAL
(Deus)
O REAL
(A natureza)
O PERFORMÁTICO
(A máquina)
Fonte de luz ESPIRITUAL
(de dentro)
SOLAR
(de fora)
ELÉTRICA
(de dentro)
Objetivo e Expectativa
de...
PROTEÇÃO (e salvação)
A imagem captura
DELEITAÇÃO (e
prestígio)
A imagem cativa
INFORMAÇÃO (e jogo)
A imagem é captada
Contexto histórico Da MAGIA para o
RELIGIOSO
(Tempo Cíclico)
Do RELIGIOSO para o
HISTÓRICO
(Tempo Linear)
Do HISTÓRICO para o
TÉCNICO
(Tempo individualizado)
Deontologia EXTERIOR
(direção teológico-política)
INTERNA
(administração autônoma)
AMBIENTE
(gestão técnico-econômica)
Ideal e norma de
trabalho
EU CELEBRO (uma
força)
Segundo a Escritura
(cânon)
EU CRIO (uma obra)
Segundo o Antigo
(modelo)
EU PRODUZO (um
acontecimento)
Segundo minha concepção
(moda)
Horizonte temporal
(e suporte)
A ETERNIDADE
(repetição)
Duro (pedra e madeira)
A IMORTALIDADE
(tradição)
Flexível (tela)
A ATUALIDADE (inovação)
Imaterial (tela)
Modo de atribuição COLETIVA –
ANONIMATO
(do feiticeiro ao artesão)
PESSOAL =
ASSINATURA
(do artista ao gênio)
ESPETACULAR = grife,
logotipo, marca
(do empresário à empresa)
Fabricantes
organizados em...
CLERICATURA
CORPORAÇÃO
ACADEMIA ESCOLA REDE PROFISSÃO
Objeto de culto O SANTO
(eu sou sua salvaguarda)
O BELO
(eu lhe dou prazer)
O NOVO
(Eu o surpreendo)
Instância de governo
2) Curial – O
Imperador
3) Eclesiástica –
mosteiros e
catedrais
4) Senhorial – o
Palácio
1) Monárquica =
Academia 1500-
1750
Burguesa = Salão +
crítica + galeria
1968
- Mídia / Museu/ Mercado
(artes plásticas)
- Publicidade
(audiovisual)
Continente de origem e
cidade-ponte
ÁSIA (entre Antigüidade e
cristandade)
EUROPA – FLORENÇA
(entre cristandade e
modernidade)
AMÉRICA - NOVA
IORQUE
(entre moderno e pós-
moderno)
Modo de acumulação PÚBLICO: o Tesouro PARTICULAR: a Coleção PRIVADO/ PÚBLICO: a
Reprodução
Aura CARISMÁTICA
(anima)
PATÉTICA
(animus)
LÚDICA
(animação)
Tendência patológica PARANÓIA CARÁTER OBSESSIVO ESQUIZOFRENIA
Ponto de mira do olhar
ATRAVÉS DA IMAGEM
(a vidência transita)
MAIS DO QUE A
IMAGEM
(a visão contempla)
SOMENTE A IMAGEM
(a visualização controla)
Relações mútuas A INTOLERÂNCIA
(religiosa)
A RIVALIDADE
(pessoal)
A CONCORRÊNCIA
(econômica)
Fonte: DEBRAY, Régis. Vida e Morte da Imagem: uma história do olhar no Ocidente. Petrópolis: Vozes, 1993,
pp. 210-211.
47
Cada época tem seu inconsciente visual. Para bem ou para mal a imagem
sofreu história e ganhou outros enfoques, valores, usos. Ela muda, o mundo muda.
E vice-versa. Parece banal, conversa sem eira nem beira, mas a técnica assim se
conduz. Existe um imaginário que possibilita a criação da técnica. E uma técnica que
vai alimentando continuamente um imaginário até que fique pronto para gerar a
técnica. Evidentemente trata-se da história do ovo e da galinha. E o problema
algum em não se conseguir evidenciar, provar, verificar com as réguas da razão
onde um começa, onde outro termina. É nisso que se pensa quando se quer discutir
a relação homem-imagem-mundo. Viu-se através da história exposta por Debray, e
também se confessa meio óbvia a percepção, mas de fundamental importância a
título de acalmar os ânimos, que é o homem, sim, quem cria a imagem. A partir daí a
criatura entra num jogo de poder, de sutilezas, de birras, de sedução, de comando
com seu criador, que se torna impossível destacar um do outro ao longo do tempo.
Enroscados demais, eles ficam. Debray faz ver, além de sua dramaturga opinião,
exatamente este caráter dependente entre eles.
Na era dos ídolos, o homem precisava da imagem para crer, para se
considerar salvo. Mas de quê? Na era da arte, o homem precisava da imagem para
ter prazer. Mas por quê? Na visual, atualmente, o homem precisa da imagem para
se surpreender. Mas com o quê?
Na era dos ídolos, a imagem precisa dos homens para se sentir o médium do
Senhor. Na era da arte, a imagem precisa do homem para acreditar que possui a
essência do Belo. Na visual, a imagem precisa do homem para rejuvenescer.
Cada qual desempenha sua função e ao despontar da menor necessidade de
mudança partem juntos na vertigem da metamorfose.
48
Furungar e mais furungar esta relação entre homem e imagem. Hoje. Depois
de todas estas reviravoltas. É esse o instinto deste texto. No fundo se está aqui
dentro querendo falar sobre o que está acontecendo ali fora, na esquina.
Acreditando, vale dizer, que é possível ser ao mesmo tempo “quem” pesquisa e “o
que” é pesquisado.
A versão da história da imagem proposta por Debray desvela uma
decrescente perda simbólica, melhor dizendo, um esvaziamento de sentido na
imagem. É um ponto importante a ser observado, pois a questão de ela ter mais ou
menos camadas de recheio é discutida pelos autores responsáveis por dar conta da
análise proposta aqui, seja para atestar seu fim ou sua inquestionável, permanente,
capacidade de funcionar como ímã social. Vale este reconhecimento porque
quaisquer que sejam as percepções expressas sobre ela, inevitavelmente carregam
consigo o homem e uma espécie de quantificação de seu ser-simbólico-no-mundo.
Segundo Debray,
A imagem é benéfica porque simbólica. Isto é, remembrante e reconstituinte,
para usar termos equivalentes. Mas para fazer ou refazer um todo, em
virtude do mecanismo lógico da incompletude, vai ser preciso incluir em seu
jogo um parceiro escondido. Quem cria vínculos faz o bem, mas somente em
referência a um alhures, a um longínquo, a um terceiro simbolizante permite
que uma imagem venha a estabelecer uma ligação com seu observador e,
por ricochete, entre os próprios observadores (DEBRAY, 1993, p. 61).
Interpretando fugazmente: a imagem é boa se - e somente se - simbólica. É
simbólica se - e somente se - colocar em sua vitrine algo que não se pode ver.
Forçando a busca da compreensão do que vem a ser uma imagem simbólica, ou
mesmo um “simbólico”, passa-se uma borracha no “boa” da afirmação acima e
direciona-se a mira para este conhecimento.
1.1 A imagem simbólica
É ingênuo dizer que para esclarecer as dúvidas que surgem ao longo de uma
pesquisa deste porte preferem-se sempre as melhores referências. Aquelas que são
famosas por proporcionar um novo, arejado, complexo, profundo conhecimento
acerca do tema. Contudo, não são considerados pensadores irrefutáveis, ou
verdadeiras entidades superiores funcionando como intermediários da verdade a ser
humildemente recebida e digerida por ávidos fiéis. São, digerianamente falando,
gente como a gente. Pessoas que estão no mundo para viver e pensar. E
disponibilizam seu conhecimento para a troca.
Apesar da confessável vontade de negar tudo o que foi escrito no parágrafo
anterior ao apresentar o nome Gilbert Durand, não por deixar de se tratar de uma
boa referência, mas também por se acreditar que existem pessoas com maior
capacidade reflexiva que outras e, por isso, merecem grandes reverências, mantém-
se o pulso.
Aqui nesta tese a pessoa escolhida para fazer entender do que se trata a
imagem-símbolo é este senhor. Sabe aquele “nerd” da tecnologia, aquela pessoa
que sabe tudo-tudo de informática, que adora jogos de computador, que conhece
todos os lançamentos de equipamentos e programas para turbinar e turbinar a
máquina cyber? De maneira nada depreciativa, apesar do emprego de um termo
estereotipado, pensa-se que Gilbert Durand é o “nerd” do imaginário.
Ele é o autor de uma obra importantíssima sobre o tema, As Estruturas
Antropológicas do Imaginário. Tamanha empreitada talvez tenha sido propulsada
pela consideração escrita ainda nas primeiras páginas do livro: “o imaginário, ou
seja, o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado
50
do homo sapiens aparece-nos como o grande denominador fundamental no qual se
vêm encontrar todas as criações do pensamento humano”.
Dispor um conhecimento em categorias de uma grande estrutura por defender
o dinamismo do imaginário. Este foi o resultado da obra e o sucesso de Durand. Em
outra
3
oportunidade, As Estruturas Antropológicas do Imaginário foi a escolha feita
para compreensão daquela temática. Agora os cotovelos serão debruçados sobre o
Imaginário e a Imaginação Simbólica, preferencialmente.
Durand explicita, através do uso de metáforas, as possíveis maneiras pelas
quais se pode pensar o imaginário. Enquanto bacia semântica, o imaginário, à
imagem do processo hidrográfico, constitui-se progressivamente por uma grande
quantidade de pequenos arroios que darão origem a um rio, o qual posteriormente
receberá um nome, será canalizado e por fim se lançará ao mar, pronto para iniciar
um novo ciclo (2001, pp. 100-116).
O imaginário também seria o “museu de todas as imagens passadas,
possíveis, produzidas e a serem produzidas” (2001, p. 6). Evocando figuras
diferentes para exacerbar uma noção sobre o imaginário, Durand faz perceber um
dinamismo intrínseco ao mesmo, bem como estimula a suposição de que há
complementaridade nas duas, pois se pode pensar que o processo implicado na
bacia semântica depende da água, que nada mais é do que o conteúdo do museu,
ou seja, a imagem.
A imagem é o elemento fundamental nas estruturas do imaginário. Através
dela o homem cria, pensa, vive. Para o autor, a imagem é inerente ao homem.
Pensar o aspecto simbólico da imagem é considerar, para além de Debray e
3
Ver: O Imaginário Infantil na Publicidade Contemporânea: a campanha da RBS “O Amor é a
Melhor Herança, Cuide da Criança”. Dissertação de Mestrado defendida em dezembro de 2004.
Acesso: http://www.pucrs.br/famecos/pos/download/dissertacao_tonin.pdf
51
conforme Durand, que o homem criou a primeira imagem porque tinha uma
imagem que foi racionalizada para virar outra imagem.
Para Durand a consciência dispõe de duas maneiras de representar o mundo:
1- Direta: a própria coisa parece estar presente na mente;
2- Indireta: quando o objeto, por qualquer motivo, não pode se apresentar
“materializado” (ex. lembranças da infância).
É este segundo caso que interessa a Durand. Nele o objeto ausente é “re-
(a)presentado” à consciência por uma imagem, no sentido amplo do termo, ressalta.
Dentro desta “re(a)presentação” ela pode adquirir uma disponibilidade em diferentes
graus, pode estar adequada totalmente, pode se manifestar de maneira branda
como uma presença perceptiva, assim como estar totalmente inadequada, caso no
qual um signo permanece privado do significado. Este signo privado de significado, o
signo longínquo, conforme escreve, seria o símbolo (DURAND, 1988, p. 12).
Para pensar os símbolos como pertencentes à categoria do signo é preciso
depreender, antes de tudo, que aqueles o ultrapassam. Um signo apenas precede a
presença do objeto que representa. E, mais ainda, pode ser categorizado:
- arbitrário: quando é indicativo, quando remete a uma realidade significada
que, mesmo ausente pode ser representada (ex. a idéia de perigo
representada pela caveira com duas tíbias cruzadas);
- alegórico: quando evoca uma realidade significada dificilmente apresentável
e acaba figurando somente uma parte do que significa (ex. a idéia da justiça).
Os mbolos, por sua vez, apresentam-se quando o significado não é mais
absolutamente apresentável, e o signo não pode mais se referir a um objeto
52
sensível, mas a um sentido. E, para apreender esse sentido, é necessário o
acionamento da imaginação simbólica.
Durand afirma que é através dela que o homem conquista um “equilíbrio vital”,
ou seja, eufemiza a morte, coloca uma máscara diante desta terrível figura. Ele
usufrui, também, de um “equilíbrio psicossocial”, no qual o papel da imaginação
seria, conforme a psicanálise clássica, o “amortecimento” entre o impulso e sua
repressão. Sem contar no “equilíbrio antropológico” propiciado pela instauração do
homem como ser simbólico, devido ao “humanismo ou ecumenismo da alma
humana” e, por fim, a “infinita transcendência” que se coloca como valor supremo
(1988, pp. 100-106).
O símbolo, assim, seria “a recondução do sensível, do figurado, ao
significado; mas, além disso, pela própria natureza do significado, é inacessível, é
epifania, ou seja, aparição do indizível pelo e no significante”. Contudo,
paradoxalmente, o símbolo tem valor apenas por si próprio, pois a “re-(a)
presentação” simbólica não se confirma pela apresentação daquilo que ela significa.
Não consegue figurar a transcendência, apenas apresenta uma imagem simbólica
que transfigura uma representação concreta através de um sentido eternamente
abstrato. Ele é, portanto, “uma representação que faz aparecer um sentido secreto,
ele é epifania de um mistério” (DURAND, 1988, pp. 13-15).
Sintetizando, é possível afirmar que o símbolo seria uma espécie de além-
signo que se apresenta à consciência como uma imagem no grau extremo de
supressão da significação.
Estaria compreendida a noção de símbolo não faltasse expor ainda o
aprofundamento estimulado por Durand ao afirmar que é possível operar nele uma
divisão. Ele contém duas dimensões: uma visível e outra indizível e indivisível.
53
A parte visível seria a do significante concreto. Que, por sua vez, conforme as
idéias de Paul Ricouer, explicitadas por Durand, subdivide-se em três partes.
Matemática básica, uma metade tripartida:
Primeira parte: cósmica (retira do mundo a sua figuração);
Segunda: onírica (fundamentada nas lembranças, nos gestos que emergem
dos sonhos);
Terceira: poética (utiliza-se de linguagem impetuosa, portanto, mais concreta).
A parte indizível e indivisível, a outra metade do mbolo, seria a reunião de
um significante e de um significado infinitamente abertos. Isso o diferencia mais uma
vez do signo, pois este propõe um significado limitado a um significante infinito.
Também o diferencia da alegoria, pois esta traduz um significado finito através de
um significante também delimitado. O significante, no mbolo, é o único que pode
ser conhecido e remete amplamente a todas as espécies de qualidades não
figuráveis, até a antinomia. Como exemplo, o autor evoca os sentidos divergentes
contidos no signo-símbolo fogo. Ele pode remeter tanto ao “fogo purificador” como
ao “fogo sexual” ou até mesmo ao “fogo demoníaco e infernal”. o significado
(concebível, mas não representável) pluraliza-se em todo o universo concreto,
mineral, vegetal, animal, astral, humano, “cósmico”, “onírico” ou “poético”. Assim se
explica, segundo Durand, a possibilidade multíplice da designação do “sagrado”, da
“divindade”: pedra elevada, árvore gigante, águia, serpente, um planeta, Jesus,
Buda, Krishna, etc (DURAND, 1988, p. 16).
O significante, ao se repetir numa única figura, pode englobar os atributos
mais contraditórios. O significado, transbordando-se sobre todo o universo sensível,
54
manifesta-se repetindo incansavelmente o ato epifânico”. São estas características
que imperam duplamente na imaginação simbólica e marcam de maneira específica
o signo simbólico, além de constituir a flexibilidade do símbolo (DURAND, 1988, pp.
16-17).
O símbolo é um signo que remete a um indizível e invisível significado, sendo
obrigado a encarnar concretamente essa adequação que lhe escapa, pelo
jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas que corrigem e
completam inesgotavelmente a inadequação (DURAND, 1988, p. 19).
Para Gilbert Durand, o caráter comum entre o significado e o significante,
passível de ser analisado, é a redundância. Através do poder de se repetir é que o
símbolo ultrapassa indefinidamente a sua inadequação fundamental. Esta repetição
não é tautológica, mas aperfeiçoadora. Ela é redundância de gestos, de relações
lingüísticas e de imagens materializadas por uma arte.
A redundância de gestos constitui a classe dos símbolos rituais (ex, o padre
cristão que abençoa o pão e o vinho).
Figura 20 – “O corpo de Cristo”
Fonte: http://www.jorwiki.usp.br/gdmat07/index.php/Antropofagia
A das relações lingüísticas é significativa do mito e de seus derivados, pois
um mito “é uma repetição de certas relações, lógicas e lingüísticas, entre idéias ou
imagens expressas verbalmente” (1988, p. 17).
55
Figura 21 - Mort d'Orphée
Stamnos à figures rouges. Vers 470 avant J.-C. Athènes
Fonte: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=7346
As imagens, por sua vez, consideradas pelo autor como tudo o que se
poderia chamar de “símbolo iconográfico”, são constituídas de múltiplas
redundâncias: “‘cópia’ redundante de um lugar, de um rosto, de um modelo, mas
também representação pelo espectador daquilo que o pintor representou
tecnicamente”. Para Durand variação na intensidade simbólica de uma imagem
pintada. Ela pode veicular mais ou menos sentido. Explana que um “verdadeiro
ícone” é instaurador de sentido.
O problema está na imagem, a simples imagem, aquela que, segundo ele, se
perverteu, tornou-se ídolo, fetiche. Esta é a imagem que se produz atualmente. Ela
fecha-se sobre si mesma, apresenta uma recusa de sentido, não passa, segundo
Durand, de uma “cópia” inerte do sensível (1988, pp. 18-19).
Gilbert Durand, notável estudioso do imaginário e referência contemporânea
para seu entendimento, amplia o sentido da imagem dando a ela muito mais que um
papel coadjuvante na história. Leva-a para as profundezas do sentido jamais
apreendido, para aquele lugar que custam palavras para expressar. Ainda mais
quando se está longe de qualquer talento poético.
56
O problema parece residir, no entanto, na produção midiática da imagem. O
peso deste termo, “midiática”, amplia os questionamentos, traz a necessidade de
definições e diferenciações de mídias, ou até entrar no mérito da classificação da
internet enquanto mídia ou não. Tudo muito interessante, pertinente, mas não para
este texto. Vai-se retirar o fardo. Aqui a imagem é vista enquanto uma produção que
emerge de diversas tecnologias e configura um modo de ver. Atualmente, se a
imagem emana da tela, muito menos importa a própria tela do que a consideração
de que se trata, ainda, da imagem.
Durand não gosta desta imagem. Ele escreve que ela é a responsável por um
“sufocamento” do imaginário, pois impõe um sentido a um espectador passivo e
anestesia a criatividade individual da imaginação (2001, pp. 118-120).
Convém ponderar. O estudo de Durand é inspirador. Instiga a buscar tudo
que não reduza a imagem, tudo que não a coloque novamente nos ventos do
iconoclasmo. Supõe-se que, no momento da análise da “simples imagem”, que
configuraria, segundo ele, a sociedade atual, conclui apressadamente um
esvaziamento do seu sentido e função, esquecendo-se de algo fundamental que
proferiu ao criticar os estudos de Jean-Paul Sartre: “para poder ‘viver diretamente as
imagens’, é ainda necessário que a imaginação seja suficientemente humilde para
se dignar encher de imagens” (2002, p. 25).
Deve-se recordar, antes de tudo, que toda e qualquer imagem é algo que
alimenta o imaginário. Conforme magistralmente revela e aprofunda o autor, esse
imaginário seria, grosseira e sinteticamente falando, um “museu indefinidamente
dinâmico”. Se um indivíduo ou uma sociedade é “sufocado” por uma “simples
imagem”, onde estaria o dinamismo criador capaz de ultrapassar, de reconfigurar,
seu próprio conteúdo, ou seja, a imagem? É possível dizer que alguns dos
57
pensadores escolhidos para auxiliar a compreensão do papel da imagem na
sociedade contemporânea possuem a visão de que ela apresenta uma
conseqüência nefasta para o social, de uma maneira até mais radical do que a
suposta aqui através do pensamento de Durand. Porém, a opção por trabalhar com
pontos divergentes acerca desta conseqüência é justamente para provocar um
choque e ampliação do sentido, e o para confirmar a linearidade de um
argumento.
Convém, após esta apresentação da imagem enquanto símbolo e desta
chegada no terreno do julgamento acerca da sua função, ou valor atual, percorrer
brevemente os caminhos que levaram o pensamento ocidental a odiar e amar as
imagens. Ninguém melhor do que Durand para auxiliar esta tarefa, pois é um
conhecedor e contestador das correntes iconoclastas que configuraram a história
ocidental das imagens. Por mais estranho que se possa parecer depois de “ouvir”
tamanha crítica ao contexto atual. Isso faz ver que ninguém, em momento algum,
está livre de recaídas.
1.2 Imagem: ...pecadora!
Durand, para fazer saltar aos olhos o sentido e a vitalidade do imaginário
pergunta-se: quais foram, no decorrer dos tempos, as valorações, as formas de
pensar a imagem? Várias aparecem, mas, predominantemente, é dentro de uma
iconoclastia que se debatem as imagens até conquistarem uma brecha de luz para
romperem o cárcere e libertarem consigo o entendimento sobre o imaginário.
Reducionistas, funcionalistas e estruturalistas, foram estes os encargos dados
às imagens durante séculos. Durand esclarece que a imagem enquanto um modo de
conhecimento, por não ser adequada ou objetiva, não conseguir atingir um objeto,
bastar a si mesma e carregar consigo uma imanente transcendência (mesmo se
implícita, ambígua e redundante) sempre foi desconsiderada em nome de opções
religiosas e concepções filosóficas. Qualquer espécie de conhecimento que dela
pudesse surtir era veementemente ignorado.
Durand acredita que o conhecimento envolve três critérios fundamentais: 1) o
pensamento sempre indireto; 2) a presença figurada de uma transcendência; 3) a
compreensão epifânica. Fundamentos pouquíssimo interessantes para o partido da
corrente iconoclasta ocidental. Abaixo segue a prova argumentativa cedida por
Durand:
À presença epifânica da transcendência, as Igrejas opuseram dogmas e
clericalismos. Ao pensamento indireto, os pragmatismos opuseram o
pensamento direto, o conceito; à imaginação abrangente, surgiram correntes
de razões da explicação semiológica, aliando estas últimas às longas cadeias
de “fatos” da explicação positivista (DURAND, 1988, p. 24).
Estas três normas correspondem aos três estados sucessivos do iconoclasmo,
da extinção do símbolo. Respeitando a exposição cronologicamente invertida dos
59
estágios refletida por Durand, inicia-se afirmando que é com Descartes que se pode
perceber uma forte depreciação do símbolo e triunfo do signo.
A imaginação era considerada por ele como a “senhora do erro”. “Eu penso”
era sua máxima. Logo, o pensamento, o todo (matemático) passa a ser o único
símbolo do ser.
Leibniz e Newton, no século XVIII, ofereceram resistências ao cartesianismo,
mas estavam inspirados demais pelo empirismo escolástico, não conseguindo
romper, assim, com o enfoque iconoclasta, lamenta Durand. E sintetiza que todo o
saber dos dois últimos séculos se resume a um método de análise e de medida
matemática mesclada à preocupação com a enumeração e a observação. Neste
espírito inaugura-se a era da explicação cientificista que, no século XIX, desemboca
no positivismo.
Essa concepção ‘semiológica’ do mundo será a concepção oficial das
universidades ocidentais, especialmente da universidade francesa,
filha mais velha de Auguste Comte e neta de Descartes (DURAND,
1988, pp. 16-25).
Assim, tem-se a idéia de que o mundo é passível de exploração científica. E
principalmente: somente ela tem o direito de ser legitimada como conhecimento.
Como mostra Durand, o ser foi reduzido ao tecido de relações objetivas dele
resultante. Fim, como diz, do sentido figurado, da “recondução à profundidade vital
do apelo ontológico” (DURAND, 1988, p. 27).
As repercussões do cartesianismo e cientificismo na imagem artística,
segundo Durand, foram a minimização do papel do artista e do ícone. Perderam
lugar numa sociedade que pouco a pouco eliminou a função essencial da imagem
simbólica. A arte do século XVII e XVIII foi reduzida a puro “divertimento”, a puro
60
“ornamento”. E, na anarquia das imagens que emergiram no século XIX, o artista
intentou fundamentar sua “evocação” além do deserto do cientificismo (1988, p. 27).
A fase dois do iconoclasmo presente alguns séculos antes do cartesianismo,
a partir do século XIII, é o da apologia do pensamento direto, representado pelo
conceitualismo aristotélico. Aqui, a implicação simbólica do platonismo
4
(recondução
dos objetos sensíveis ao mundo das idéias) e conseqüente derivação para a
angelologia de Valentino
5
(em resposta à questão de Basilide ‘como é que o Ser
sem raiz e sem vínculo acabou chegando até as coisas’?) são desconsideradas em
prol de um mundo material, o lugar do limpo, separado de um motor imóvel,
manifesta Durand. O mundo da percepção, do sensível, não era mais um mundo de
“intersecção ontológica” onde se epifaniza um mistério. A idéia, no conceitualismo,
possui uma realidade na coisa sensível e é extraída pelo intelecto, mas conduz a
um conceito, a uma definição objetiva e com sentido próprio (1988, pp. 28-30).
Na arte este realismo perceptivo percebeu-se na passagem da arte romana
para a gótica. Durand faz ver que, enquanto a primeira se caracterizava por ser
indireta e por conservar uma arte do ícone que repousava no princípio “teofânico de
uma angelologia”, a segunda representava um tipo de iconoclasmo por excesso.
Conforme escreve, ela acentua o significante e acaba convertendo o ícone em nada
além de uma imagem naturalista, perdendo seu sentido sagrado. Isso se deu
porque, no conceitualismo, as artes e a consciência não tinham mais por ambição
reconduzir a um sentido, mas “copiar a natureza”.
4
Segundo Durand o platonismo tanto grego como alexandrino é uma espécie de filosofia do
“algarismo” da transcendência, ou seja, implica uma simbólica. O problema platônico era a ascensão
dos objetos sensíveis ao mundo das idéias, das realidades eternas, perfeitas da reminiscência que,
em vez de ser vulgar memória é, ao contrário, imaginação epifânica (1988, p. 28).
5
Conforme esclarece Durand é a doutrina dos anjos intermediários, os éons que são os modelos
eternos e perfeitos desse mundo imperfeito porque separado, enquanto a reunião dos éons constitui
a Plenitude (O Pleroma). Esses anjos, encontrados em outras tradições orientais, são o próprio
critério de uma ontologia simbólica (...). Eles são símbolos da função simbólica que é, como eles,
61
O conceitualismo gótico pretende ser um decalque realista das coisas tais
como são. A imagem do mundo, seja pintada, esculpida ou pensada se des-
figura e substitui o sentido da Beleza e a invocação ao Ser pelo maneirismo
da formosura ou o expressionismo do terror à feiúra (1988, pp. 31-32).
Durand sintetiza as correntes cartesianas e cientificistas afirmando que
representam uma espécie de iconoclasmo por falta, por desprezo pela imagem. O
conceitualismo, por sua vez, exacerba um iconoclasmo por excesso. Tudo estava
fundamentado na epiderme do sentido. Esta consciência teria sido preparada,
segundo o autor, por uma corrente iconoclasta mais primitiva e fundamental, a do
dogmatismo da palavra.
Este terceiro estado caracterizava o momento em que a imagem
transformara-se em sintema (expressão tomada por Durand de E. Alleau), ou seja,
quando passava a ter a função de representar apenas um reconhecimento social,
uma segregação convencional. O símbolo fora reduzido à sua potência sociológica,
expressa Durand. E, numa convenção dogmática do símbolo, ele não é mais sujeito
a um evento, a uma situação histórica ou existencial que revela outros sentidos. Ele
encarna uma cultura e uma linguagem cultural que o transforma em dogma e em
sintaxe (1988, p. 33).
Essa é a história da imagem que perdeu a abertura para a transcendência por
não permitir a livre imanência. Este dogmatismo foi expresso pela Igreja, que dividiu
o mundo em duas partes, a dos fiéis e a dos sacrílegos. No momento culminante de
sua história, a Igreja Romana valeu-se desta divisão e não permitiu a liberdade de
inspiração da imaginação simbólica. Como escreve Durand: “(...) a virtude essencial
do símbolo, como já dissemos, é de assegurar, no seio do mistério pessoal, a
mediadora entre a transcendência do significado e o mundo manifesto dos signos concretos,
encarnados, que através dela se tornam símbolos (1988, p. 29).
62
presença mesma da transcendência. Tal pretensão aparece a um pensamento
eclesial como a porta aberta para o sacrilégio” (1988, p. 34).
Para Durand, o que a escolástica medieval promoveu foi a substituição do
ícone pela alegoria. Porque na época do dogmatismo e do esforço doutrinário, no
apogeu do poder papal, com Inocêncio III ou após o Concílio de Trento, a arte
ocidental foi essencialmente alegórica. A arte católica romana fora ditada pela
formulação conceitual de um dogma. Ela não conduzia com uma iluminação, apenas
“ilustrava as verdades da Fé dogmaticamente defendidas” (DURAND, 1988, p. 37).
Esses três estágios do iconoclasmo apresentados às pressas aqui são as
principais estruturas de organização do pensamento ocidental identificadas por
Gilbert Durand.
Contudo, o autor ainda enfatiza que, somado a este denso parecer negativo
acerca da imagem, surge no século XIX alguém que consegue disseminar idéias que
misturam o pensamento enquanto dogmatismo sendo direto sob a verificação dos
fatos reais. Autor da façanha: Auguste Comte. Assim foi, segundo Durand, a maneira
pela qual se iniciou o século XX, com concepções e funções reduzidas do universo
simbólico, ou seja, com uma “extinção progressiva do poder humano de relação com
a transcendência, do poder de mediação natural do símbolo” (DURAND, 1988, p.
39).
Desolador. Quanta tristeza o bicho homem consegue criar ao redor de si.
Após esta narrativa parece só restar a foto em primeira gina dos escombros da
grande tragédia sofrida pelo imaginário. Graças aos ditos populares, depois de uma
tempestade, sempre vem a bonança.
1.3 Imagem: perdoa-me?
A imagem começou a retomar sua importância a partir das correntes
hermenêuticas: redutoras e instauradoras. Saiu do lugar obscuro onde se
encontrava e caminhou, pontas dos pés, corcunda abraçando o pescoço, olhos
amedrontados até perder de vista seu algoz.
Seu primeiro movimento rumo à salvação deu-se com as hermenêuticas
redutoras. Trata-se da psicanálise de Freud, do funcionalismo de Dumézil e do
estruturalismo de Lévi-Strauss. O mérito desta corrente foi, nas palavras de Durand,
fazer com que a atenção da ciência se voltasse para o denominador comum da
comparação: o reino das imagens, o mecanismo pelo qual se associam os símbolos
e a pesquisa do sentido mais ou menos velado das imagens, ou hermenêutica
(1988, pp. 41). O demérito, por sua vez, advém do fato de redescobrirem o papel da
imagem, mas de reduzir a simbolização a um simbólico sem mistério.
A descoberta do inconsciente por Freud mostrou que o psiquismo humano
não funcionava somente através de uma percepção imediata das coisas e de um
encadeamento racional das idéias, mas através de imagens obscuras, imagens
irracionais do sonho, da neurose, da criação poética. A manifestação da imagem,
para Freud, representaria um intermediário entre um inconsciente não manifesto e
uma tomada de consciência ativa, explica Durand. Por esta consideração é que a
imagem consegue retomar o caráter de símbolo, pois o significante ativo conduz a
um significado obscuro. O problema fundamental desta valorização estava, no
entanto, na tentativa de Freud em reduzir a imagem a indicador de vários estágios
da pulsão única e fundamental, a libido (2001, pp. 35-36).
64
André Piganiol e Georges Dumézil são as principais figuras do funcionalismo.
Neste enfoque são apresentados trabalhos etnográficos que representaram uma
critica a Freud, pois mostravam que o simbolismo edipiano não passava de um
episódio cultural bem localizado no espaço e no tempo. Eles exploravam a mitologia,
a poética simbólica das sociedades primitivas, para responder a que remetiam os
símbolos por eles pensados, e que de certa maneira fundamentavam seus
comportamentos e pensamentos. Entretanto, esse método valia-se da lingüística
para realizar tal pesquisa. Como as línguas são diferentes e os grandes grupos
lingüísticos irredutíveis uns aos outros, o simbolismo passava a ser reduzido à
sociedade que o continha, ou seja, ele não era passível de generalização, sua
natureza era diferencial e a significação atribuída não ultrapassava a significação
sociológica (1988, pp. 48-50).
Firmaram-se críticos a Freud, mas, conforme Durand, ele havia mostrado
que o símbolo não é passível de uma leitura direta, não está no nível da consciência
clara. “Se o símbolo precisa de deciframento, é justamente porque ele é cifra,
criptograma indireto, mascarado” (1988, p. 50).
Foi Lévi-Strauss quem conseguiu ampliar relativamente o método de Dumézil,
retirando o enfoque lexical e semântico e redirecionando-o sobre a fonologia
estrutural. Buscando, assim, uma espécie de relação entre as coisas. O
estruturalismo, para Durand, é a possibilidade de decifrar um conjunto simbólico, um
mito, reduzindo-o a relações significativas. Não se faz necessário passar deste
conceito para jogar esta vertente para o saco das reducionistas. São duas as
questões derradeiras feitas por Durand: como distinguir estas relações? E como
estabelecer relações não-arbitrárias, ou seja, constitutivas, que possam ser dadas
como leis? Para ele nem estruturalismo, nem funcionalismo conseguiram ir além da
65
redução do símbolo ao seu contexto social, semântico ou sintático, conforme o
método utilizado (1988 pp. 53-55).
Seria possível dizer que a redução sociológica é o inverso exato da redução
psicanalítica, mas procede da mesma exclusiva. Para a psicanálise, o
inconsciente é uma verdadeira faculdade sempre ‘plena’, e simplesmente
plena do potencial energético da libido. (...) Para o sociólogo, ao contrário, o
inconsciente ‘está sempre vazio’, ‘tão estranho para com as imagens como o
estômago para com os alimentos que o atravessam’; ele se limita a ‘impor as
leis estruturais’, e a estruturação integra em suas formas simples as imagens,
os semantemas veiculados pelo social (DURAND, 1988, pp. 55-56).
Na concepção do autor estas correntes hermenêuticas reduzem o mbolo a
signo. A transcendência do simbolizado é refutada em prol de um aminguamento a
um simbolizante explicitado. Apenas consideram ser possível um “efeito de
transcendência” devido à opacidade do inconsciente (1988, p. 56).
Contudo, paralelamente a estes desdobramentos, Ernest Cassirer, Carl-
Gustav Jung e Gaston Bachelard ampliam o olhar e compõem a sinfonia das
hermenêuticas instauradoras.
A obra de Ernest Cassirer, segundo Durand, funcionou como inspiradora para
a obra de Jung, Bachelard, Merleau-Ponty e, inclusive, dele mesmo. Deve-se a
Cassirer a consideração de que o homem tem ação na realidade por meio de
suas criações simbólicas.
Para Cassirer o objeto da simbólica não seria uma coisa analisável, mas uma
fisionomia, “uma espécie de modelagem global, expressiva, viva, das coisas mortas
e inertes. É esse fenômeno inelutável para a consciência humana que constitui essa
imediata organização do real” (DURAND, 1988, p. 58). Assim, o pensamento não
poderia intuir objetivamente uma coisa, mas integrá-la num sentido, o que Cassirer
nomeia de “pregnância simbólica”. Assim, esse pensador, ao mesmo tempo em que
revela a impotência constitutiva do pensamento, desvela o poder do sentido, o que
66
sugere que, à consciência, nada é simplesmente apresentado, mas sempre
representado, explica Durand.
As coisas existem através da ‘figura’ que lhes o pensamento
objetificante, elas são eminentemente ‘símbolos’, que se mantêm na
coerência da percepção, da concepção, do julgamento ou do raciocínio pelo
sentido que as impregna (DURAND, 1988, pp. 58-59).
A partir destas considerações o homo sapiens passa a ser considerado um
animal symbolicum. Contudo, Durand assinala que Cassirer conseguiu mostrar o
dinamismo do símbolo, mas de certa maneira hierarquizou as formas da cultura e do
simbolismo. Tudo por considerar o mito como algo esclerosado, que perdeu sua
vocação poética. E defender a ciência como a objetificação por excelência, como a
questionadora dos mbolos, possuindo, assim, um maior poder de pregnância
simbólica. Isto, para Durand, são os exemplos que apontam para as limitações
contidas na obra de Cassirer (1988, p. 59).
Carl-Gustav Jung, sendo influenciado por Cassirer, apresentou uma das
teorias mais profundas em relação ao poder das imagens, conforta-se Durand. A
imagem, para Jung, seria um símbolo multívoco que remeteria a alguma coisa, mas
não se reduziria a ela. Assim é que surge a expressão arquétipo: “forma dinâmica,
uma estrutura que organiza as imagens, mas sempre ultrapassa as concretudes
individuais, biográficas, regionais e sociais da formação das imagens” (1988, p. 60).
Esta forma arquetípica, em si mesma vazia, é fornecida pelo inconsciente ao
consciente, para se tornar sensível neste, através do auxílio das representações,
conexas ou análogas (1988, p. 60).
67
Conforme aponta Durand, com Jung o homem não pertenceria ao mundo das
causalidades físicas, pertenceria também ao da emergência simbólica, um mundo de
criação simbólica constante através da pluralização da libido. Ele teria uma
consciência clara, em parte coletiva, englobando a conduta, os costumes, os
métodos, as línguas inculcadas na psique pela educação, e o inconsciente coletivo,
a libido, uma energia composta de arquétipos. Para Jung, a imagem faria parte da
autoconstrução do homem, da individuação da psique. E o mbolo seria uma
mediação, pois equilibra, esclarece a libido inconsciente pelo sentido consciente que
lhe dá. Porém, não é um processo que limita a consciência, mas que a amplia, uma
vez que a imagem veicula uma intensa energia psíquica (1988, p. 63).
Entretanto, o ponto limitado do pensamento de Jung seria a confusão entre
arquétipo-símbolo e individuação, explora Durand. Pois existem símbolos
conscientes que não são individualizantes, e a imaginação simbólica o tem
apenas uma função sintética objetivando este processo de individuação (1988, p.
63). Durand atesta que, enquanto Freud teve uma concepção restrita do simbolismo
reduzindo-o à causalidade sexual, Jung teve uma concepção excessivamente ampla
da imaginação simbólica e a concebeu somente em sua atividade sintética, moral.
Jung desconsidera, segundo Durand, a morbidez de certos símbolos e imagens:
“Jung parece confundir estranhamente, num otimismo do imaginário, a consciência
simbólica criadora da arte e da religião e a consciência simbólica criadora dos
simples fantasmas do delírio, do sonho, da aberração mental” (1988, p. 64).
Seria a partir das idéias de Gaston Bachelard, segundo Durand, que se
especifica este bom e mau uso do símbolo. O universo simbólico dividir-se-ia em
três, conforme utilizações diferenciadas. Os dois primeiros seriam o setor da ciência
e do sonho, da neurose. Durand esclarece que, no primeiro, todo símbolo deve ser
68
banido para que o objeto seja preservado. No segundo, o símbolo se desfaz, se
reduz a uma sintomática. São momentos nos quais os símbolos devem ser expulsos.
A terceira segmentação, por sua vez, seria a da linguagem humana, uma
linguagem poética, ao mesmo tempo língua e pensamento. Essa linguagem permite
uma encruzilhada entre uma revelação objetiva e um enraizamento desta revelação
na parte mais obscura do indivíduo (DURAND, 1988, p. 65). É precisamente neste
ponto que Durand explicita o grande mérito da divisão proposta por Bachelard, ele
conseguiu pensar a imagem na função de servir para iluminar a própria imagem
(2001, p. 57).
Assim, o homem dispõe inteiramente de dois e não de apenas um meio de
transformar o mundo, de duas numenotécnicas: de um lado, a objetificação
da ciência, que pouco a pouco domina a natureza; de outro, a subjetivação da
poesia que, através do poema, do mito, da religião, acomoda o mundo ao
ideal humano, à felicidade ética da espécie humana (DURAND, 1988, p. 66).
Enquanto a psicanálise e a sociologia orientaram-se para uma redução do
inconsciente, seja interpretando os sintomas oníricos, seja interpretando as
seqüências mitológicas, Bachelard desvelou a presença de um “sobreconsciente
poético (expresso por palavras e metáforas) e do devaneio, um sistema de
expressão mais leve e menos retórico que a poesia. Seguindo palavras de Durand,
não importa se é devaneio livre ou devaneio das palavras” do leitor de poemas,
contanto que se mantenha iluminado por uma consciência desperta, deste lado das
trevas do sonho (1988, p. 66).
Para Durand, Bachelard consegue explicitar o cerne do mecanismo do
símbolo, cujo funcionamento essencial é uma “recondução instauradora” em direção
a um ser que se manifesta através, e apenas através, da imagem singular. Ele
atribuiu à imagem o sentido de ser uma semente que permite a criação daquilo que
69
é visto, restaurando-a em sua plenitude. O conjunto destas imagens plenas de
dinamismo reforça a concepção de Durand acerca do imaginário, pois ele seria o
dinamismo criador, a amplificação poética de cada imagem concreta (1988, p. 68).
A genialidade de Bachelard, esbanja Durand, foi sua compreensão de que a
ultrapassagem dos iconoclasmos só seria possível através da ampliação das noções
simplificadas e confusas atribuídas anteriormente ao mergulho onírico. Enfocando
numa espécie de ingenuidade da linguagem poética, num “espírito de infância”, o
momento onde o encantamento permite uma significação própria das coisas, onde
não se é sujeito além da ação de simplesmente maravilhar-se com estas coisas,
Bachelard conseguiu compreender a experiência da consciência na poesia e libertar
as imagens de sua clausura. Porém ainda não é através dele que se pode explorar a
totalidade do imaginário. Porque a totalidade, para Durand, seria pensá-lo em
relação aos velhos mitos, aos ritos, religiões, magias e neuroses (1988, p. 74).
Bachelard reintegrou potências imaginativas no cerne do ato da consciência e
forneceu a Durand a caneta para seguir o aprofundamento/ aperfeiçoamento do
estudo sobre o imaginário o que acabou gerando, como se sabe aquela que se pode
considerar sua obra capital, já mencionada neste texto, a Estruturas Antropológicas
do Imaginário.
As premissas do autor em relação ao conhecimento sempre indireto, figura
uma transcendência e denota uma compreensão epifânica justificadas através do
detalhamento obtido nas críticas aos principais expoentes do pensamento
iconoclasta e das correntes hermenêuticas redutoras e instauradoras, permitem o
entendimento de que a imagem é o substrato, é a figura que permite ao homem
conhecer, constituir, acumular, acomodar, mostrar, transformar, criar, recriar, mover,
transcender, ocultar o mundo em que vive e a si próprio. Para Durand, enfim, “as
70
imagens não valem pelas raízes libidinosas que escondem, mas pelas flores
poéticas e míticas que revelam” (2002, p. 39).
Neste capítulo buscou-se abordar a imagem de três maneiras: conhecer sua
história enquanto produção humana, aprender o que se pode dizer dela enquanto
símbolo, ou melhor, entender sua função intrínseca ou poder, e finalmente
compreender que juízos o pensamento ocidental fez dela o longo dos anos. É
possível agora colocar estas meditações na mochila e seguir adiante, em busca das
flores poéticas e míticas reveladas pela imagem no social do qual hoje é formadora.
Seu papel no atual cotidiano, passível de ser caracterizado das mais diferentes
formas pelos autores aqui destacados como chaves para esta compreensão, é o que
se começa a explorar a partir de agora. Antes porém, mostra-se de que maneira se
parte em busca deste objetivo.
1.4 Imagem: como compreendê-la?
Embora o mundo seja difícil de ser vivido,
sabemos que é preciso vivê-lo.
E, da mesma forma, se é impensável,
é preciso pensá-lo.
O movimento em espiral da reflexão é inquietante;
e o fato de lançarmos idéias – que não raro vêm a ser
retomadas após terem sido atacadas ou consideradas
extravagantes-
é nada menos do que confortável.
Michel Maffesoli
Qual é o assento ocupado pelo pesquisador e qual é a visão que obtém do
espaço a sua frente? Cadeira dura ou confortável, banquinho ou poltrona, sofá ou
chão: onde ele se senta para remoer o seu problema? Ele percebe em plongé,
contraplongé, close up, panorâmico? Como ele vê?
Quais são suas motivações na vida?
Qual é seu prato e filme favorito?
E livro?
O que faz quando deixa de pensar na pesquisa?
Para onde vai quando tudo parece dar errado?
Onde mora?
Quem ele ama?
Onde trabalha?
72
Quem ele odeia?
O que ele teme?
Do que é capaz, afinal?
Pesquisador, por muito tempo, era a pessoa que criava um problema digno de
ser resolvido e passava dias de sua existência buscando os melhores meios, ajudas
e insights para destrinchá-lo de maneira a ficar o dissolvidas as dúvidas quanto
desaparecido de cena o seu mestre criador. Ou melhor, o sujeito curioso era tão
dono do seu objeto intrigante que se colocava acima e distante acreditando tirar
desta relação uma verdade pura e passível de ser prescrita para, pelo menos, a
metade esquerda da humanidade.
Tudo se tentava ver sobre o objeto. E nenhuma pergunta se fazia ao sujeito.
Era como se aquele tivesse uma existência própria e vivesse numa encubadora
giratória para propiciar os diversos ângulos de sua inércia.
Viu-se ali atrás muito sobre o objeto da pesquisa, mas nada em relação a
quem o assim intitulou.
A primeira coisa que se precisa dizer neste momento em que se faz
necessário apresentar uma metodologia, ou seja, tentar dizer sob que olhar, que
métodos e que técnicas vai-se trabalhar o objeto, numa descrição objetiva sobre as
estruturas das quais se parte e nas quais se move para se chegar ao cumprimento
do objetivo, é que existe este sujeito. E não é aquele mestre e senhor da natureza.
Mas um “indivíduo poroso” que responde a todas as perguntas iniciais deste texto.
Parece banal, mas é um ser vivo, como qualquer outro. Que gosta, desgosta, chora,
ri, sabe, desconhece, acha que sabe, tem um RG e um CEP. Ou seja, tem uma
73
identidade, uma personalidade, uma influência interna muito determinada por seu
lugar no mundo.
O sujeito cria a partir de determinando ponto. Às vezes uma simples estrela
cadente fornece a ele inspiração necessária para a evidência de um problema.
Assim, sem cerimônias. Ainda de pijama e sem escovar os dentes, o pesquisador
corre aos livros.
Depois de tão pouco glamour na escolha, pensa e escreve, debate e pensa,
pensa e pensa, escreve. Livros e livros rodeiam seu computador e alguns até
escapam para o chão, janelas abertas de vários artigos e arquivos e sites para
auxiliar nos momentos difíceis.
Mas o fardo maior que carrega consigo e que muitas vezes precisa cuidar
para que não caia e quebre a tela da máquina é o fato de ser do mundo, de um
continente, de um país, de uma cidade, de um bairro, de uma rua, de uma casa, de
uma família que vem de outra família. E ter amigos que têm amigos que têm
famílias, enfim, o fato de se localizar em um, e não em todos, os pontos disponíveis
para visualização no google maps. Sem falar no que se descobriu após dizer ao ser
que ainda por cima possuía um inconsciente. Enfim, o maior fardo que carrega o
sujeito é o de não ser Deus (ou pelo menos possuir seus dons).
Porque estas características humanas aparecem na pesquisa. Restringem o
vocabulário, aumentam ou diminuem o campo do saber conforme o conhecimento,
opinam valores, moral, ética. Só fica faltando mesmo a fotografia.
por estas considerações inicias já se faz, ao que parece, fundamental,
urgente, uma atitude compreensiva como “perspectiva” metodológica. Porque este
sujeito é “vivo” e “cria” seu objeto a partir desta condição. Objeto que inevitavelmente
74
está contido nele. Sujeito e objeto que estão vivos em algum ponto do planeta
pretendendo, através do pensamento, compreender o resto do mundo.
Assim como parte de um ponto o sujeito pode chegar a um determinado
ponto. Ele e o objeto são pouco para “determinar” a vida do todo. Mas são muito
quando aceitam seus pontos de partida, a relação inseparável entre eles e
corajosamente acreditam na importante participação que têm na formatação do
mundo tal qual é.
Para muitos esta consideração é uma excelente justificativa para refugiar
aqueles que não têm nada a dizer. Isso porque acreditam que pouco importa se
imprecisão e indecisão climática são características inerentes ao próprio tempo, a
meteorologia deve captar estas condições e elaborar um relatório eficaz e
estabelecer uma variação. Sempre, sem erro. Colocar em tabelas, símbolos e
números algo que por definição caminha pelo lado oposto da razão.
Agora se pretende trazer para a ciência o sangue que corre nas veias do
mundo. E considerar o caráter visceral e não individualizante entre sujeito e objeto é
principiar, quem sabe, a construção de um conhecimento mais honesto e próximo,
talvez, de receber o nome de conhecimento.
Trabalhar com e o o objeto. Assim, sujeito e objeto, numa atitude
compreensiva, estabelecem uma relação “orgânica”, dinâmica, poder-se-ia dizer
“viva”, em que ora se fundem, ora se sobrepõem um ao outro e, também, ora se
separam um do outro. Como em qualquer outra relação de intimidade que se preze.
A premissa do imbricamento entre os dois conduz para a construção de um
saber que acresce os processos de racionalização uma subjetividade, uma
sensibilidade que transforma, ou pelo menos faz assumir que mesmo nas peripécias
da lógica existe escolha, interpelações inexplicáveis, enfim, que existe algo não-
75
racional que ultrapassa o sujeito, e que determina, ou melhor, redimensiona
constantemente a relação.
A ligação sujeito-objeto, razão-sensibilidade é uma fusão que age diretamente
em todo o processo de análise. Isso quer dizer que não se pode esperar avidamente
por uma decomposição perfeitamente sustentada por um encadeamento racional,
comedido e ordenado.
A atitude compreensiva é simplesmente a confissão de uma relação “mística,
orgiástica, confusional” que não descarta as inúmeras possibilidades de estruturação
de uma reflexão. Até as deseja, a bem da verdade, mas no fundo sabe não se tratar
da aplicação de uma fórmula para a criação de outra. As fôrmas são instrumentos
excelentes, desde que se prestem somente para assar os pães.
Resta aceitar a relação. Deixar fluir. Michel Maffesoli é quem propicia estes
ensinamentos metodológicos. Ele é quem explica a compreensão. O cum prendere,
em sua etimologia, mostra do que se trata esta sugestão: “colocar junto”, “pôr
em relação” (Maffesoli [1985] 1988, p. 19). Em primeiro lugar, como se viu, colocar o
sujeito no seu devido lugar: inserido no mesmo patamar e “agido” pelo seu objeto.
A perspectiva compreensiva conduz à noção de o-separação, ou ao menos
da impossibilidade de ela se dar na construção de uma idéia. Ela mostra que o
sujeito e o objeto estão imbricados, que aquele pesquisa um social do qual faz parte,
e que por isso, pela consideração de estar dentro de um todo “confusional”, este
não permite uma única nomeação ou verdade. Pois é múltiplo, apresenta diversas
relações e manifestações que não se encaixam numa visão reducionista.
Tudo isso quer dizer que houve uma mudança de olhar. Nada que sirva para
melhor atingir um resultado, para se chegar finalmente ao encontro da VERDADE,
mas se trata de um modo de ver que parte da “impotência” como uma verdade. E
76
que, diante dela, tenta encontrar as melhores maneiras de “menos errar”. De tentar
não determinar o que a partir da pesquisa deve-se pensar, mas apenas mostrar o
que se pode pensar, sendo esta uma possibilidade entre diversas outras.
Para Maffesoli ([1985] 1988, p. 29), os fenômenos sociais a serem analisados
seriam cristalizações da complexidade do mundo e podem ser explicados de
diversas maneiras. Podem ser, inclusive, diante de uma proposta mais abrangente
de conhecimento, um simples elemento elucidativo. Ao se promover um recorte
desta multiplicidade social, seria preciso não pensar que ele justifica ou se sobrepõe
ao todo, mas que simplesmente cristaliza-o. Assim a “tarefa” de um pesquisador que
“fala” de um social plural no qual está inserido seria, para o autor, não tentar buscar
o significado do todo na parte, mas mostrar, revelar ao máximo a multiplicidade que
nela se apresenta. Para explorar esta multiplicidade, Maffesoli revela qual seria a
grande ferramenta a ser carregada pelo aventureiro das idéias: a simpatia.
A compreensão pretendida do pluralismo existencial requer uma atitude de
simpatia e, a este mesmo respeito, falei de empatia que nos faz presentes
ao acontecimento social. Nosso papel não é, claro está, o de tudo justificar ou
a tudo desculpar: nossas convicções podem condenar, mas nossa
generosidade de espírito deve tudo aceitar ([1985] 1988, p. 72).
Estar aberto para inscrever-se na organicidade das coisas, na multiplicidade
de jogos, no cruzamento de ações e palavras que constituem o cotidiano é, para
Maffesoli ([1985] 1988, pp. 143-145), a possibilidade de produzir um discurso que
possa fazer compreender, ou se aproximar da miscelânea da trama social. Seria
mesmo para expor a trama, não para retirar seus nós.
Intentar responder qual é o papel desempenhado pela imagem atualmente,
para depois compreender qual é a conseqüência desta atuação, a partir de uma
construção teórica que apresenta as idéias de quatro pensadores divergentes
77
acerca do tema - tudo isso dentro da perspectiva compreensiva - é a opção por
“colocar junto” o que está separado, as diferentes manifestações deste social,
explicitar a teia.
É, portanto, a eleição de um “recorte”, de um “fenômeno”, de um “objeto”, e a
tentativa de mostrar o que nele se apresenta. A imagem avança nos anos da história
e desemboca hoje num contexto onde se possui uma diversidade grande de meios
para sua produção, transmissão e de pessoas dispostas a consumi-la. Por que é tão
produzida? Por que é tão transmitida? Por que todo mundo as vê? Qual, afinal, é
sua função atual?
Este é o problema do sujeito condutor desta tese. A imagem mudou, hoje é
abundante e quer-se compreender as razões destas transformações. Acredita-se,
daqui deste lugar (e carregando todo aquele fardo) que se pode especular tudo isso
com a ajuda de pessoas que, mesmo olhando o mundo de algum lugar do outro lado
do Atlântico, tempos refletem sobre a imagem, mesmo se dentre tantas outras
temáticas consideradas por eles igualmente ou mais interessantes.
Recorte temático é uma expressão dura. A sociologia compreensiva vem
justamente para esfumaçar as delimitações de contorno para se conseguir ver
melhor a imagem composta no todo. Senão fica aquela montagem grosseira, fora de
contexto, aquela espécie de adesivo destacado e sinalizando que coisas fora do
lugar estão ali.
Objetivo é de certa maneira restrito. Isso quando se parte sabendo o lugar
que se quer chegar. Na sociologia compreensiva o objetivo é decidir o momento de
parar de se relacionar com o objeto e tentar perceber de todas as incursões feitas
onde se conseguiu chegar. E assumir que é uma questão de decisão.
78
Relaxar. Talvez seja um bom termo. Sentir prazer ao pesquisar. Tentar
construir um saber consciente de que nem tudo se pode saber. Mas que tem sua
pertinência em apresentar mais uma das maneiras pelas quais se pode pensar.
Testar. Aglutinar idéias, propostas, tentar possibilitar a expressão de diversas
falas, permitir uma participação “mística” entre as diversas manifestações que
provêm do coletivo. Agregar. Separar. Rearticular. Ousar. Sem medo de errar.
A opção por colocar em relação idéias antagônicas é a escolha, conforme
expressão de Maffesoli, por “carregar mais nas tintas” e investir na exploração de
algumas das diversas facetas de um todo que não pode ser reduzido a uma única
verdade ([1985] 1988, p. 78). Seria uma “composição com a alteridade”, a aceitação
da contradição, o projeto de uma dinâmica de contrários, um jogo com múltiplos
matizes.
Isto é o que configura, segundo Maffesoli, a retirada de qualquer caráter
utilitário da pesquisa. Isso simplesmente quer dizer que, se a heterogeneidade do
mundo interdita um saber absoluto, o desvelamento da contradição o interdita da
mesma maneira. Contudo, a “contradição-em-ato” admite um “equilíbrio tensional”,
segundo o autor. É possível promover uma espécie de relação de
complementaridade que se aproxima da constituição do social ([1985] 1988, pp. 58-
62).
Ou, com outras palavras, mas não outras idéias, poderia complementar Silva:
A análise jamais pode ser frontal. A verticalidade desvia qualquer argumento
do seu alvo. O caminho da interpretação com algum poder de eficácia precisa
sempre ser transversal como condição para a percepção do aspecto sinuoso
da existência. Nenhuma metodologia aguda estaria apta a fazer emergir a
arbitrariedade do signo ou a revelar a singularidade do contingente. O
pensador, nesse sentido, está obrigado a recorrer ao paroxismo, à caricatura
e à reversão do sentido aparente para tentar se aproximar do mistério do
objeto, esse conceito próprio à sociedade particular surgida da revolução
industrial (2003, p. 75).
79
Transversalidade como condição para a percepção do aspecto sinuoso da
existência. É esta ferramenta que se prefere utilizar. Assim, não se almeja buscar a
resolução, a dissolução do problema, do conflito, mas enfatizar as divergências.
Tentar explorar os muitos matizes que juntos refletem o social.
Conforme esclarece Maffesoli, introduzir um número variado de autores é
algo que não se deve temer, pois seriam seus próprios antagonismos que
permitiriam uma abordagem polidimensional do social. Complementa, ainda, que
não se deve recusar ou denegar paradoxos, antinomias e antagonismos, mas
abordá-los naquilo que são: “donde não aparecerá a Verdade divina, mas um
ajustamento de seus aspectos acidentados (altos e baixos) ao seu objeto lábil”
([1985] 1988, p. 182).
O que se propõe, então, é uma “pluralidade funcional”, a simples construção
de uma “arquitetura” na qual diversos elementos apresentem suas atrações e
repulsões. E, juntando a fórmula proposta por Balandier, expressa por Maffesoli, às
suas próprias considerações, pode-se dizer que, se a “sociedade é vários”, a melhor
aposta é no desvio, sendo ele o caminho mais perto para a centralidade ([1985]
1988, pp. 62-73).
Claro está que existe o perigo de uma grande palhaçada ou de obter-se uma
construção com materiais de variada proveniência e de escolha aleatória.
Nem sempre é possível evitar-se tal risco – mas é preciso encará-lo enquanto
tal ou mesmo, por que não, aceitá-lo. Através de costuras malfeitas, é algo
como a vida que às vezes pode vir a insinuar-se.
(...) A polissemia existencial não se ajusta a uma gica redutora. Assim, sem
nada negar às diversas contribuições intelectuais, mas jogando-as umas com
(ou contra) as outras, obtemos um quadro talvez mais impressionista, mas
mais completo do todo social. Como sabemos, a vida das sociedades assenta
num número elevado de desacordos, de antagonismos que, confrontados uns
aos outros, produzem uma surpreendente cenestesia. É, portanto, normal que
utilizemos, para exprimi-la, uma abordagem igualmente constituída de
heterogeneidades e de paradoxos. Vale a pensa apostar que, por este viés,
será possível chegarmos, senão a um sistema, ao menos a um afresco de
cores e formas contrastantes, mas equilibrado (MAFFESOLI, [1985] 1988, p.
190).
80
Cabe ressaltar, então, que a proposta da tese é entrecruzar idéias para tentar
compreender o que se pode pensar da imagem na contemporaneidade. Segundo
Maffesoli, a atitude compreensiva é mais ou menos isso: saber que o sujeito está
contido num todo e o consegue deixar de fora sua “história” ou mesmo de
determinar o caminho a seguir a partir dela; não se ver separado do objeto; entender
que existe entre eles uma relação subjetiva em constante transformação. Tentar
expor a polissemia social através de uma análise aberta às diversas manifestações
que dele provêm. Conseqüentemente não buscar o sentido, a finalidade, pois as
coisas estão engatadas numa “circularidade” que leva a verdade para aqui, ali, toda
a parte, enfim ([1985] 1988, p. 183). Conforme escreve, numa atitude compreensiva,
“falamos muitas vezes um pouco de nós mesmos; falamos sempre para uns poucos
e, assim fazendo, integramo-nos a uma arquitetura de conjunto, naquilo que já
chamamos de harmonia conflitual” ([1985] 1988, p. 44).
Todas estas considerações o as pistas metodológicas a serem lembradas
em cada passo deste caminho. Articulação de verdades locais que permitam o
somente um situar-se no presente. São as orientações a servirem como guia deste
texto. Ou, como escreve Gadamer em relação às intenções de seus estudos, seria
um “discurso que descreve apenas uma intenção, mas que não trela para
nenhuma resolução dogmática” ([1986] 2002, p. 18).
Uma Sociologia Compreensiva, conforme explorado em O Imaginário Infantil
na Publicidade Contemporânea: a campanha da RBS “o amor é a melhor herança,
cuide da criança”
6
nada mais deseja além de descrever o “vivido naquilo que é”,
mesmo que o deixe como está. Narrar o presente, lugar da incerteza, do paradoxo,
6
Dissertação de Mestrado defendida em dezembro de 2004, sob orientação do prof. Dr. Juremir
Machado da Silva, no programa de pós-graduação em Comunicação Social da PUCRS. Acesso
online: http://www.pucrs.br/famecos/pos/download/dissertacao_tonin.pdf
81
da incoerência, da polissemia, esta é a intenção. Retirando da pesquisa, por
derivação, qualquer caráter profético, catastrófico ou redutor.
Naquele texto referido acima se viu alguns pressupostos a serem atendidos
para uma melhor “compreensão”, conforme Maffesoli. Eles são de necessário
entendimento, pois sustentam todos os aspectos discutidos sobre as
“conscientizações” necessárias para se produzir um conhecimento em
compreensão. São eles:
1) crítica do dualismo esquemático;
2) forma;
3) sensibilidade relativista;
4) pesquisa estilística;
5) pensamento libertário.
O primeiro pressuposto trata de duas instâncias que configuram as maneiras
de pensar: a razão e a imaginação. Como expõe Maffesoli, elas sempre
caracterizaram diferentes produções intelectuais, umas repousando sobre a
82
construção, a crítica, o mecanismo e a razão, e outras sobre a natureza, o
sentimento, o orgânico, a imaginação.
Como escreve, era construção paranóica opondo-se ao procedimento
metanóico: “uma e outra atitudes possuem regras próprias e, portanto, eficácia
específica o que as conduz a escolher os objetos a que se vão aplicar. Claro está
que poderiam ser complementares”. Para o autor é preciso uma dosagem sutil
entre as duas atitudes para se obter uma melhor visão de um período ou fenômeno
em particular (1988, pp. 22-24). É isto que versa a crítica ao dualismo, deixar de
promover o conflito e aumentar a distância em favor de uma relação harmônica entre
estas instâncias.
O segundo pressuposto seria buscar uma quantidade ótima” de racionalismo
capaz de bem amparar o “lógico e não-lógico que modelam o dado social”. Partir do
entendimento anterior, ou seja, não promover o dualismo razão-imaginação
pressupõe, conforme explica Maffesoli, uma organicidade social e natural. Propõe,
então, a noção de formismo, como diz, para fazer justiça à sociologia de G. Simmel.
Quer com ela retirar as enganadas idéias que se tem acerca da forma e mostrar que
serve para “descrever, de dentro, os contornos, os limites e a necessidade das
situações e das representações constitutivas da vida cotidiana” (1988, p. 26).
A sociedade atual, ou a “socialidade” atual como escreve o autor –, tem
uma forma, tem uma aparência constituída de infindáveis elementos que analisados
separadamente podem significar e ao mesmo tempo tornar significantes os outros
elementos ilusoriamente entendidos “fora” da análise. O “micro” significa ele mesmo
e dá sentido ao “macro” que o inclui. Neste aspecto, o banal, o cotidiano, o “frívolo” é
especialmente carregado de sentido. Para entender as modulações da forma é
possível estabelecer categorias invariáveis que estabelecem certa regularidade. É
83
dizer, nas palavras do autor, que a compreensão de crises, das mudanças e das
modulações que se observam não pode realizar-se sem referência a estruturas
intangíveis: a fortiori, tudo o que diz respeito à vida de todos os dias, moldada por
repetições ou remissões, latentes ou manifestas, aos arquétipos ou aos estereótipos.
“A forma permite a atenção ao particular sem que se negligenciem as características
essenciais”. O estudo caracteriza-se então como especulativo, como “formista”,
contentando-se “com a criação de ‘condições de possibilidade’” (MAFFESOLI, 1988,
p. 30).
A sensibilidade relativista, terceiro pressuposto, move-se em duas direções
(1988, p. 31):
- de um lado não novidades nas histórias humanas: de modo
cíclico presenciamos o retorno dos mesmos valores – e somente
sua ponderação tecnicista apresenta alterações;
- de outro, diversidade nas abordagens, acentuando-se tal ou
qual aspecto segundo o valor dominante do momento.
Para Maffesoli trata-se da oscilação entre o dionisíaco e o prometéico. Não há
realidade única, mas maneiras diferentes de concebê-la. O contraditorial operante no
dado social remete a versões contraditórias que seria vão tentar reduzir.
Para a sociedade da imagem, da heterogeneidade, a “compreensão” deve
corresponder a um espectro potencialmente extenso, “especulandono pluralismo o
próprio relativismo que a induz. “Ela fica a exigir uma sociologia aberta, apta a
84
integrar saberes ‘especializados’ num ‘conhecimento’ plural sempre em vias de se
construir e de se desfazer” (1988, p. 32).
O autor sugere a mudança de uma visão “monocular” própria de certas
“especializações” para uma visão “estereoscópica”, que manifeste diversos ângulos
aproximando-se do paradoxo que é a sociedade. Nesse sentido, retoma uma
passagem de Max Weber no qual o autor refere-se a todo o trabalho científico
“acabado” como estimulador de outros questionamentos e visões, seu fim exige sua
superação e marca seu envelhecimento.
Sensibilidade relativista é, simplesmente, aniquilar o “terrorismo da
coerência”, escreve Maffesoli. É “sedimentar sucessivamente”, é confluir, aproximar
dados sem receios de deixar vãos e imperfeições, “a perfeição é a morte”. A
verdade, como explica, é momentânea e factual, e o estudo aproxima-se dela por
“sinceridades sucessivas” que admitem níveis de saber e, inclusive, não-saber
(MAFFESOLI, 1988, pp. 31-34).
A “pesquisa estilística” é outro pressuposto configurado como “correlato de
uma reflexão formista”. Isso porque, conforme sustenta Maffesoli, existe um estilo
cotidiano, composto de gestos, palavras, teatralidade, de obras em caracteres
maiúsculos minúsculos, do qual é preciso que se conta. Mesmo que para isso
seja quase impossível ir além de um tocar de leve, de um afagar nos contornos.
Do momento em que consideramos o dado mundano como uma
composição de elementos heterogêneos, e do instante em que a
“correspondência” física e social é levada em conta em nossas
análises é, então, preciso encontrar-se um modo de expressão que
saiba exprimir a polissemia dos sons, situações e gestos, que
constituem a trama social (1988, p. 38).
85
Maffesoli aponta a metáfora, a alegoria e a analogia como elementos
auxiliadores centrais da escrita “compreensiva, como modos de expressão que
sabem exprimir a polissemia dos sons, situações e gestos, que constituem a trama
social”. É preciso segui-las até um ponto de não afastamento demasiado “da
banalidade social”. “O ‘saber dizer’ não é de nenhum modo sinônimo de tudo dizer.
imprecisões que são, a um tempo, elegâncias em face da complexidade das
coisas e respeito manifesto ao leitor”. Claro que não se poderia deixar de comentar,
conforme alerta o autor, que este procedimento aberto será pouco satisfatório para
todos os que têm necessidade de obter certezas (MAFFESOLI, 1988, pp. 38-39).
O último pressuposto, o pensamento libertário, é , conforme o autor, trabalhar
pela liberdade do olhar. “É ela a um tempo insolente, ingênua, mesmo trivial e,
pelo menos, incômoda mas abre brechas e permite intensas trocas, algo
inimaginável para uma mentalidade de mercadores e burocratas” (1988, p. 41). A
liberdade sublinha uma pesquisa dionisíaca, uma inauguração de novas maneiras
de indagar e, como bem reflete o autor, possui menos certezas, apenas possui a
noção da direção a seguir na busca do desconhecido.
A direção é o que se viu em outro pressuposto, é a “tipicalidade”. Desta
liberdade nasce a interação ou “empatia” entre o pesquisador e seu “objeto”, num
processo audacioso, inventivo, que parte de um sujeito que analisa algo que o
contém. É por isso, entende o autor, é por ser parte do vivido que ele pode passar
da crítica à afirmação de um real, pois é seu testemunho. Ele expõe e se expõe
intensamente, convergindo a “tipicalidade” social à “tipicalidade” individual. “Nunca é
demais repetir que a errância intelectual é somente a duplicação da errância social.
(...). A errância espiritual necessita de um espírito aventureiro que, às vezes, pode
mesmo passar por traidor ou por oportunista” (MAFFESOLI, 1988, pp. 41-48).
86
Não dualismo, formismo, relativismo, estetismo e liberdade funcionam, então
como alertas ao sujeito que deseja produzir um saber dentro de uma perspectiva
metodológica chamada sociologia compreensiva, ou sociologia romântica, como
mencionado por Maffesoli.
É preciso, além destas considerações, dizer que esta pesquisa pretende
compreender determinado aspecto do social (a imagem) a partir de reflexões. Ao
invés de sair às ruas, mergulhar-se-á nos livros.
É o método hermenêutico que sustentará esta incursão. Tudo porque este
resgate se faria presente, como afirma Gadamer, “não como doutrina de método,
mas como uma teoria de experiência real, que é o pensamento” ([1986] 2002, vol. II,
p. 25).
Ernildo Stein
7
apresenta as idéias do filósofo Hans-Georg Gadamer -
conhecido como o autor de Verdade e Método: esboços de uma Hermenêutica
Filosófica. Conforme esclarece Stein, sua obra foi recebida primeiramente como uma
contraposição às ciências do espírito que interpretaram mal a palavra “compreender”
como método. O livro, escreve, tinha por objetivo apresentar o compreender do
intérprete como fazendo parte de um acontecer que decorre do próprio texto que
precisa de interpretação.
O que estava em jogo era o fato de que as ciências históricas do espírito
tinham estremecido a confiança da filosofia numa razão que perpassa a
história. Gadamer tinha compreendido a nova tematização do "tempo" em
"Ser e Tempo" (1927), de Heidegger: Se o tempo é o horizonte de toda
compreensão, todas as teorias devem converter-se inelutavelmente em
formações históricas, e isso afetaria o núcleo da razão.
7
Filósofo, escritor e professor. Publicou o texto consultado aqui in Mais, caderno especial de
Domingo da Folha de São Paulo, 24/03/02.
87
Gadamer percebera, pelo seu estudo dos gregos, da filosofia clássica alemã
e da fenomenologia, que a tradição não podia mais se apoiar, num sentido
filosófico relevante, nas interpretações metafísicas da razão. O diagnóstico da
perda da possibilidade de um compromisso possível de nossas orientações
fundamentais para a vida numa tal tradição leva Gadamer a introduzir a
perspectiva hermenêutica.
Gadamer, portanto, conforme explica Stein, não trouxe de volta a metafísica
nem mesmo uma ontologia salvadora. O que lhe importou foi mostrar como a razão
deve ser recuperada na historicidade do sentido.
Feitas estas primeiras considerações a partir das explanações de Stein, cabe
se aproximar da obra propriamente dita. Para Gadamer, então, todo o processo de
interpretação de textos envolve uma experiência de compreensão. Não se trata,
contudo, de compreender o próprio texto, mas significa que em seu “reaparecimento”
fazem-se presentes as próprias idéias do intérprete. Gadamer elucida que o
horizonte deste acaba por determinar a verdade do texto. Não através da
manutenção ou imposição do seu ponto de vista, mas através de um jogo de
opiniões e possibilidades que aciona o sentido do texto.
Esta presença do intérprete na apropriação de um texto configura o que o
autor chama de uma “fusão horizôntica”. Para ele, o desejo que uma interpretação
possui de fazer com que um texto venha a “falar” somente seria sanado através da
utilização da linguagem do texto. O que seria, na verdade, a presença mesma do
texto. Assim, enfatiza que não existe uma interpretação correta “em si”, pois ela não
passa de uma fusão entre o texto e a situação interpretativa do próprio intérprete.
Portanto, uma interpretação não se coloca no lugar da obra citada, a ela é
inerente uma acidentalidade fundamental que de certa maneira acaba por
transformar o texto em outra coisa ([1986] 2002, pp. 566-582). Como conclui o autor:
88
(...) o fato de que, em seu conhecimento, opere também o ser próprio
daquele que conhece, designa certamente o limite do ‘método’, mas
não o da ciência. O que a ferramenta do ‘método’ não alcança tem de
ser conseguido e pode realmente sê-lo através de uma disciplina do
perguntar e do investigar, que garante a verdade” ([1986] 2002, 709).
Gadamer sublinha que o sentido de um texto sempre supera seu autor. Por
essa razão justifica que, na compreensão, não a possibilidade de um
comportamento meramente reprodutivo, pois se trata de uma relação intensamente
produtiva. Conforme escreve:
Compreender o é compreender melhor, nem saber mais, no
sentido objetivo, em virtude de conceitos mais claros, nem no da
superioridade básica que o consciente possui com respeito ao
inconsciente da produção. Bastaria dizer que, quando se logra
compreender, compreende-se de um modo diferente ([1986] 2002,
pp. 444).
Através do exemplo do que acontece numa tradução de um texto, o autor
esclarece que nunca se consegue fazer parte plenamente das idéias e sentimentos
de um autor, não sendo possível, assim, promover uma ressurreição da obra, mas
uma reconstituição da mesma guiada pela compreensão do que está expresso nela.
Por isso mesmo é que se trata de uma interpretação e não de uma co-realização
([1986] 2002, p. 562).
Para Gadamer a compreensão significa primeiramente “entender-se na coisa
e, em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal” ([1986]
2002, vol II, p. 78).
Edgar Morin, ao explorar a relação existente entre compreensão e explicação,
esclarece que a compreensão não é uma “confusão”, pois destaca que ela contém
89
uma distinção entre o “eu e o tu em conjunção”. Esclarece que acontece uma
dinâmica de um “eu me torno tu permanecendo eu”. Realça que o fato de a
compreensão acionar o movimento de um “eu sou tu” remete para a inclusão do
“outro” numa “esfera de simpatia”, num “círculo comunitário” que, conforme sublinha,
pode não durar além do tempo da compreensão ([1986] 1999, p.159).
Conforme aprofunda Morin, a compreensão seria um conhecimento
empático/simpático que permite um reconhecimento do outro. Isto acontece,
segundo ele, numa projeção (de si para o outro) e numa identificação (com o outro),
num duplo movimento contrário formando um ciclo ([1986] 1999, p. 159).
Contudo, reforça que toda compreensão contém limites e possibilidades de
erro, inclusive o risco da incompreensão, pois, conforme a obviedade presente em
suas palavras: “uma compreensão só pode compreender o que compreende” ([1986]
1999, p. 163). Assim, estas considerações de Morin denotam que a compreensão
necessita de uma abertura para este outro numa atitude de simpatia, mesmo que
nunca se consiga deixar de ser eu.
Esta relação dinâmica para a compreensão do outro seria o que Gadamer
chamou de “fusão horizôntica”. Os processos de compreensão explicitados por
Morin evocam uma relação entre dois sujeitos, mas eles se dão na interpretação de
um texto. Isto porque, conforme Gadamer, para se compreender um texto deve-se
estar disposto a deixar que ele “diga” alguma coisa.
Explica que uma “consciência formada hermeneuticamente” deve, antes de
tudo, estar receptiva à alteridade que seria o próprio texto. Para Gadamer, a
receptividade não significa neutralidade, tampouco uma anulação de si mesmo, das
próprias opiniões e preconceitos. No entanto, é preciso estar consciente dos próprios
pressupostos para que se consiga fazer com que o texto se apresente em toda a
90
sua alteridade. É preciso, enfim, propiciar o encontro da verdade objetiva do texto e
lutar contra a emergência da opinião própria ([1986] 2002, p. 76).
Para Edgar Morin, a compreensão está dialogicamente relacionada com a
explicação. Na verdade, acredita que uma está contida na outra. Para ele, a
compreensão não pode se compreender a si mesma, a explicação tampouco. Mas a
relação destas duas propicia a construção de um conhecimento. Esclarece que
compreensão e explicação formam uma relação complementar, concorrente e
antagônica, mas, mesmo assim, longe de estabelecer um equilíbrio.
A explicação seria a organização coerente, lógica, racional, da compreensão.
Conforme elucida, enquanto a compreensão “capta” os significados existenciais de
uma situação ou fenômeno, a explicação situa-o em relação a sua origem, modo de
produção, elementos constitutivos, utilidade, finalidade, enfim, situa-o numa
causalidade determinista e numa ordem coerente.
A relação dialógica entre compreensão e explicação confere uma dinâmica de
exclusão/inclusão do sujeito. Na compreensão, como se disse, há uma projeção do
sujeito no outro, de certa maneira um “sair de si”. Na explicação, por sua vez,
acontece um “retorno a si” e o estabelecimento de um discurso coerente sobre a
compreensão. Entre os embates desta relação conflitiva nasceria então uma
possibilidade de conhecimento ([1986] 1999, pp. 164-166).
Assim, a interpretação de textos configura-se como uma fusão, uma entrega à
alteridade num processo de compreensão, e um retorno à singularidade no processo
explicativo sobre esta alteridade. Mesmo que se possa entender esta relação, deve-
se pensar que formam um ciclo incessante, sem possibilidade de pontuar seu
princípio, tampouco seu final. A única finalização possível deste processo
infinitamente dinâmico é o fim da própria pesquisa. Ela comporta, ao seu final, um
91
momento finito onde o “sujeito e o objeto” interagiram, falaram, e que, após seu
término, deixaram o texto para continuarem em devir, eternamente. Assim, a partir
de todas estas considerações “metodológicas”, pode-se dizer que a maior verdade
possível numa “pesquisa compreensivo-interpretativa” seria, nos seus múltiplos
aspectos, a verdade do próprio acontecimento da compreensão.
2 Espetáculo
Guy Debord é o pensador do espetáculo. Nasceu em Paris em 28 de
dezembro de 1931 e suicidou-se em 1994, com um tiro de fuzil no coração, devido a
uma polineurite alcoólica
8
detectada em 1990 e progressivamente degradante.
Debord não foi um intelectual de intensa carreira acadêmica ou de ampla visibilidade
midiática, mas sim um aventureiro das idéias que acreditava poder teorizar e viver.
Sua aventura inicia em 1952 quando “quatro ou cinco pessoas pouco
recomendáveis de Paris decidiram investigar a superação da arte”, conforme afirma
no Prefácio à 4ª edição italiana do seu livro mais conhecido, A Sociedade do
Espetáculo (1967). Esta obra condensa as principais idéias de Debord, antes
apresentadas em revistas (principalmente Internacional Lettriste, Potlatch e
Internationale Situationniste) e em filmes
9
produzidos por ele.
A idéia da superação da arte foi apresentada a Debord através do Letrismo,
movimento iniciado em 1946 por Isidore Isou. Este propunha, com um grupo
pequeno de adeptos, uma renovação da arte e da civilização. A noção de reduzir a
poesia a um elemento único, a letra, logo foi estendida para todos os domínios
artísticos e sociais, como o cinema e a arquitetura. As idéias de Isou inspiraram
8
É uma situação em que ocorre inflamação de vários nervos simultaneamente. É caracterizado por
diferenciação dos nervos comprometidos, com distúrbio ou perda resultante da condução ao longo
das fibras nervosas e graus variáveis de distúrbio motor sensitivo e reflexo. Apesar dos sintomas
serem idênticos para todos os tipos de polineurites, a doença costuma ser classificada de acordo com
a causa. Fonte: http://fisiocorpore.com.br/textos/poli.doc
9
- L'anti-concept, (1952) / - Hurlements en faveur de Sade (1952) / - Sur le passage de quelques
personnes à travers une assez courte unité de temps (1959) / - Critique de la séparation (1961) / - La
société du spectacle (1973) / - Réfutation de tous les jugements, tant élogieux qu'hostiles, qui ont été
jusqu'ici portés sur le film «La société du spectacle» (1973) / - In girum imus nocte et consumimur igni
/ Movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo (1978) / - Guy Debord, son art et son
temps (1994).
93
Debord, pois fizeram nascer a convicção de que o mundo inteiro deveria ser
desmontado e depois reconstruído não mais sob o signo da economia, mas da
criatividade generalizada. Contudo, Debord logo se afastou deste grupo, por criticar
as formas demasiadamente artísticas que eram criadas para promover o fim da
arte
10
.
Em 1952 Debord funda a Internacional Letrista. As questões defendidas
surgiram das mudanças sofridas pela França nas décadas de 40-50 do século
passado. Principalmente após os anos 50, houve um crescimento econômico que a
tirou de uma condição atrasada. Conforme Jappe (1999), “este período é
reconhecido como o ponto culminante de uma segunda e silenciosa revolução
francesa, que arrancou violentamente a França de seu quadro ainda tradicional e
que marca o início da alienação atual” (p. 75). A transmissão televisiva em 1953, a
construção de grandes conjuntos habitacionais, o aparecimento da máquina de
lavar-roupas são exemplos de mudanças quantitativas geradas pelo
desenvolvimento técnico e econômico que representaram, antes de tudo, uma
mudança qualitativa na França. Elas abalaram radicalmente o cotidiano. Numa Paris
considerada capital cultural do mundo, nascia a mercadoria. E o principal anseio de
Debord e de seu grupo era buscar, nestes novos modos de ser, os fundamentos
para uma revolução. A pergunta de fundo era: “Esses novos meios servirão para a
realização dos desejos humanos”? (Jappe, 1999, p. 76). Os letristas desprezavam a
vida burguesa e declaravam necessária a inversão da apatia oferecida por esta nova
sociedade, pregavam a busca da paixão e da aventura, defendiam que a condição
da vida era ser absolutamente apaixonante, algo sufocado pelas novas
configurações sociais que vinham sendo estabelecidas. Debord participava de
10
As considerações sobre as obras, idéias e trajetória de Guy Debord podem ser vistas
detalhadamente em: JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999.
94
grupos restritos, expulsando membros para que se mantivesse absoluta fidelidade e
autenticidade nos propósitos defendidos. Como afirmou na revista Potlatch: “É
melhor mudar de amigos que de idéias” (Jappe, 1999, p. 79).
Ainda na Internacional Letrista surge um conceito chave para Debord, a
saber, a deriva, a construção de situações que não podem ser realizadas pela
afirmação de dogmas, mas pela busca e experimentação (Jappe, 1999, p. 81).
Figura 22 - Teoria da Deriva
Fonte: http://www.rizoma.net/interna.php?id=130&secao=potlatch
A superação da arte, da técnica, era absolutamente necessária para que o
homem pudesse criar para si uma vida cotidiana diferente, uma vida que realizasse
as promessas da arte e que eliminasse a limitação da criatividade propiciada pelo
avanço técnico como mediador entre o sujeito e o mundo. O sujeito, para Debord,
deveria entregar-se às “derivas”, que, segundo definição retomada por Jappe (1999,
p. 83) era defendida enquanto “uma técnica da passagem apressada através das
ambiências variadas; passeios de mais ou menos um dia durante os quais a pessoa
‘se entrega às solicitações do lugar e dos encontros’”. A defesa da deriva enquanto
95
técnica é uma maneira de expressar um conceito do que seria o vivido para Debord.
O sujeito deveria ser livre, passageiro, entregar-se às sensações do vagar pelas
cidades, pelas pessoas, intensamente, na banalidade de todo e qualquer dia. Assim,
o aventureiro seria o criador de sua aventura e não o contrário. Para isso, seria
preciso, segundo Debord, refazer a realidade, construí-la de maneira a não mais
expressar algo, mas a apenas suscitar novas sensações.
Em 1957, Debord participa do primeiro encontro do que veio a ser definido
como a Internacional Situacionista, reunião de pessoas de diversos países,
preocupadas em construir uma crítica à arte, à economia, à unidade perdida pela
divisão do trabalho, ao cotidiano, através da sustentação de uma espécie de ciência
das situações.
Figura 23 - Fundadores da IS
Fonte: http://www.ruibebiano.net/zonanon/non/abc/situac.html
96
O intuito era buscar os meios práticos para as manifestações da criatividade e
liberdade humanas. Debord e seu grupo pregavam a revolução, a reconstrução do
mundo através de fundamentos marxistas mas, ao mesmo tempo, sugeriam uma
renovação nesta proposta, criticavam a necessidade de construir-se uma instância
superior capaz de doutrinar as consciências do proletariado a respeito das formas
degradantes da vida, como a economia e o Estado. Para Debord, as pessoas não
necessitavam de deres e dogmas, apenas de uma tomada de consciência
individual, que levaria automaticamente a uma interrupção da ordem econômica
estabelecida. Por esta razão é que os acontecimentos de Maio de 68 em Paris foram
significativos para os situacionistas, pois foi uma espécie de realização prática de
seus pressupostos. Como afirma Jappe (1999), este ano significou uma grande
ruptura no século passado, pois a revolta estudantil, somada à primeira greve geral
selvagem, com 10 milhões de trabalhadores parados, representou muito além de
uma reivindicação contra as formas universitárias e baixos salários dos operários
significou a renúncia das autoridades:
Houve um sentimento de “tudo é possível” e uma transformação do mundo
transformado que representava um evento histórico e, ao mesmo tempo, algo
que concernia aos indivíduos em sua essência íntima e cotidiana. Era a prova
de que, num grande número de pessoas, dormita o desejo de uma vida
totalmente distinta e de que, se encontrar meios de se expressar, tal desejo
pode, a qualquer momento, pôr de joelhos um estado moderno: exatamente o
que sempre afirmara a IS (JAPPE, 1999, p. 132).
Após 68, os situacionistas gozaram de um momento de glória, que logo foi
diluído por crises internas que reduziram seus membros a apenas dois. Em 1972,
Debord decide dar fim à organização, argumentando que os tempos faziam sentir
que uma revolução (através dos princípios situacionistas) estava próxima. A
dissolução da Internacional Situacionista foi justificada por Debord como a
97
superação de uma vanguarda separada, pois a revolução pretendida não poderia se
dar através de uma organização. Apenas pela crença nesta possível e próxima
reconstrução do mundo é que os situacionistas pensavam ter acabado suas
atividades enquanto grupo. Entretanto, Debord não deixava de considerar as
rupturas internas como motivações para o fim da IS e de verificar que, ao invés de
as pessoas marcharem para a transformação da civilização, era a economia que
mais se ampliava contaminando todos os domínios da vida social.
Nesta rápida deriva pela trajetória de Debord, percebem-se as principais
motivações de suas idéias. E é através da obra A Sociedade do Espetáculo que se
pode perceber explicitamente a crítica ao espetáculo e aos novos modos de ser, que
eram os fundamentos para que o autor defendesse a necessidade da reconstrução
da existência. Num conjunto de 221 teses, divididas em nove capítulos, o autor trata
das mudanças sofridas pelo ser, pela vida e pelo mundo a partir do nascimento do
espetáculo. Analisa a transformação radical da comunidade em sociedade
espetacular; a mercadoria como único ser humanizado neste social; as severas
mudanças nas concepções da história, do tempo, da ideologia, da cultura, dos
espaços urbanos; além de uma espécie de atualização dos projetos e práticas
marxistas, permitida pelas suas divergências contra eles, isso tudo apenas como
maneira de melhor elucidar o caminho que levaria, segundo ele, diretamente à porta
de saída da sociedade espetacular.
Logo nas primeiras teses do livro, o autor apresenta a definição do que seria o
espetáculo. Para ele, o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social entre pessoas, mediada pelas imagens” 04). O espetáculo, então,
não é a soma de todas as imagens. Não é o termo que representa em conceito uma
atualidade que, em virtude de modernos meios de produção e irradiação, eleva em
98
progressão geométrica as taxas demográficas da imagem. Espetáculo é relação
social. Contudo, é uma relação mediada pela imagem. Para o autor, é esta
mediação imagética que apaga a autenticidade, o concreto do vivido, ou seja, deixa
de ser verdadeira a relação entre homem e mundo. Além disso, ela promove a
separação dos indivíduos na ilusão de uma unidade, significando que inautêntica
também se torna a relação entre homem e semelhante. Isto interfere diretamente na
qualidade das formações que derivam destas relações, tais como as
comunidades/sociedades. Assim, as relações sociais se estabelecem entre seres
alienados, apagados em suas individualidades, seres que vivem necessidades
socialmente sonhadas, vivem por procuração, através de vedetes que representam o
que não são, vivem, enfim, dogmas de um espetáculo, que é o motor do/movido pelo
apogeu do consumo.
Estas relações mediadas acabam com a potência criativa do sujeito, uma vez
que as “derivas” são feitas pelas imagens que passeiam pelos seres e pelo
mundo, escamoteando o fato de que o protagonista da deriva, o aventureiro, não faz
nada além de naufragar o olho na superfície da tela. O olho que tudo vê, que tudo
sente, que tudo vive, é o olho do peixe morto, o olho daquele que saltita de imagem
para imagem e não se deixa envolver pelo abismo de tudo que existe no intervalo do
salto.
Para Debord tudo o que existe e que deve ser vivido está justamente neste
intervalo. O mundo-imagem passeia pelo ser, arranca-lhe sensações, solicita-o para
que se entregue. E ele cede. Entrega seu olho ao espetáculo e, o que é mais
significativo, reduz-se ao próprio olho. Ele, o outro e o mundo são o que é visto e
vivido na imagem.
99
Determina-se que a tese 04 de Debord, a relembrar, “o espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas
imagens”, será o ponto de partida desta pesquisa. Isto porque se tem como objetivo
confrontar idéias discordantes de quatro pensadores franceses acerca da questão
de fundo “qual é o papel que a imagem exerce atualmente no social?”. E, por
derivação: qual é a conseqüência, as mudanças que podem ser percebidas a partir
desta atuação?”. Esta opção, a da tese 04 de Debord como norteadora desta tese,
justifica-se porque ela condensa objetivamente as respostas segundo este autor,
assim sendo, a imagem exerce papel de mediadora das relações sociais e a
conseqüência disto é o espetáculo. Quer-se buscar em Jean Baudrillard, Michel
Maffesoli e Gilles Lipovetsky a mesma possibilidade de afirmação sucinta, avançar
nos emaranhados racionais que conduziram os autores a ela e, finalmente,
estabelecer um confronto de idéias.
É possível, num primeiro momento, desencadear o seguinte pensamento:
para Debord o que se configura atualmente é o espetáculo, o que pode ser, segundo
Baudrillard, o simulacro. Simultaneamente pode-se pensar na socialidade
maffesoliniana e na hipermodernidade lipovetskiana. Tudo depende do ponto de
vista, este produz significações profundamente diversas. Tensionar as respostas
dadas pelos autores pela (re)criação da tese 04 para cada um deles é objetivo
primeiro desta pesquisa. Isto para atingir, quem sabe, uma versão atual da tese,
provocada pela aproximação de cada reflexão.
A tese 04 condensa em apenas duas linhas a certeza de que uma
redefinição do social, de que a imagem é o elemento fundamental desta mudança,
mas o o suficiente. E acredita-se que, justamente nesta insuficiência, é que se
100
abrem os espaços para as divergentes conclusões e interpretações do social a
serem exploradas aqui.
Para Debord, então, o espetáculo não seria apenas uma profusão de imagens
ocasionada pelo desenvolvimento das técnicas para estes fins, e a observação da
pululência delas no social seria fonte da sua avaliação. É preciso salientar que
Debord nunca foi um analista dos meios de comunicação de massa, mas um crítico
da economia-política, do devir capitalista do mundo. Para ele, o espetáculo é um
produto da sociedade capitalista. A imagem, no espetáculo, seria o capital no grau
máximo de acumulação (§ 34).
Assim, a simples produção e a disseminação de imagens não transformam,
per se, o social. A imagem estabelece relação social porque é um produto da
expansão econômica. Segundo ele, é o mundo que cria o espetáculo, não o
espetáculo que cria o mundo. E acaba representando este mesmo mundo porque os
sujeitos nada querem além de vê-lo e vivê-lo pela imagem.
É preciso dizer que para Debord a imagem, no espetáculo, apenas vale pela
raiz libidinosa que oculta: a mercadoria. Ela faz viver aquilo que é visto. Liberta a
ilusão de ser possível viver nela a verdade. Esta imagem não passa, no fundo, da
única forma pela qual as modernas condições de produção permitem que seja
figurado o mundo à consciência.
A imagem está em plena exuberância porque é o capital, a política, e
justamente por esta virilidade é que debilita o sujeito, enfraquece-o real e
simbolicamente. Para Debord, foi o apogeu do consumo que se apoderou da
imagem para apagar o sujeito, adquirindo vida própria e construindo a própria
realidade do mundo.
101
O espetáculo é o apagamento dos limites do eu e do mundo pelo
esmagamento do eu, pela supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo
recalcamento de toda a verdade vivida, diante da presença real da falsidade
garantida pela organização da aparência (DEBORD, § 219).
Debord enfatiza que o espetáculo é a degradação do ser. Se este tinha
declinado para o ter, toda a realização da condição humana no espetáculo o
degenera agora para o parecer. O ser é enquanto aparece. Toda a existência
individual, para Debord, assim, é forçadamente social, dependente do fazer ver, é o
império do ser visto 17). “Ser conhecido fora das relações espetaculares equivale
a ser conhecido como inimigo da sociedade” (Comentários sobre a sociedade do
espetáculo, 1988, p. 180).
O espetáculo, assim, é afirmação de toda a vida humana (social) como
aparência (§ 10). E, como destaca o autor, esta afirmação é a negação da vida, pois
a realidade que surge no espetáculo acaba tornando somente o espetáculo o real (§
8). E a consagração do espetáculo se justamente porque ele justifica esta ação,
ele positiva a adesão ao parecer através de um argumento unilateral, indiscutível de
que “o que aparece é bom, o que é bom aparece” (§ 10). O “ser-visto” contemplando
seu “mundo-imagem” se deixa levar pelas correntes deste argumento espetacular.
Todavia, mesmo que o sujeito, através da imagem, viva numa condição alienante
por se encontrar num estado de recepção passiva, não está sendo abduzido pelo
mundo espetacular, pois, como complexifica Debord: “o espetáculo é o sonho mau
da sociedade moderna aprisionada, que expressa afinal o seu desejo de dormir”
21). Com isso, o espetáculo não se configura como o entorpecente ingerido a
contragosto pelo indivíduo; este apenas encontra no espetáculo a cama feita para
seu sono, sob a proteção do mais eficiente guardião.
102
A imagem, para Debord, é mercadoria. A imagem é a reificação do mundo,
tudo tornado objeto. O sujeito se coisifica e se troca pelo seu ídolo. O mundo se
coisifica e é trocado pela imagem-mundo. No espetáculo, a “máxima empírica” se
no zapping.
Para ele, a unidade do mundo foi perdida em prol da totalização do
espetáculo. Se outrora havia uma ordem mítica, uma contemplação sagrada que
justificava o ordenamento cósmico e ontológico do mundo, Debord acredita que a
diferença se porque nesta ordem mítica havia a explicação do que a sociedade
não podia fazer, era imposto o limite. Ali todos aderiam e havia um reconhecimento
comum, a percepção de uma unidade. No espetáculo, é o contrário que ocorre: o
modo de ser concreto transfigura-se na própria abstração. O espetáculo expressa
justamente o que a sociedade pode fazer, mesmo que esta permissão nunca chegue
a significar a possibilidade absoluta de concretização. Perde-se o sentimento de
unidade, e o ser transforma-se num elétron que gravita indefinidamente em torno do
núcleo altamente atrativo, porque positivo, o núcleo espetacular.
Para Debord o espetáculo é o resultado da Revolução Industrial, da divisão
fabril do trabalho e da produção em massa para o mercado mundial. Destas três
causas surge a mercadoria como “uma força que vem ocupar a vida social” 41).
Assim, é a força da mercadoria, produzida em escala mundial, por trabalhadores que
criam solitários apenas uma parte dela, tudo isso para um mercado alucinadamente
capitalista, que abusa da imagem para provocar a falsa união. A, tão odiada por
Debord, relação social entre pessoas mediada pelas imagens.
O homem produz e apenas detalhes do mundo e se cada vez mais
separado dele. Ele (enquanto força de trabalho), seu mundo (enquanto objeto de
contemplação) e sua vida (enquanto produto a ser consumido) copulam com
103
imagens prometéicas da união, mas gozam espetacularmente no império da divisão
23 - 29). O urbanismo das grandes cidades acaba sendo o sintoma desta
separação, pois é encenado nele a unificação atomizada dos trabalhadores, uma
reintegração de indivíduos isolados em grades e conjuntos habitacionais, formando
uma pseudocoletividade. O espetáculo, para Debord, é a reestruturação social sem
comunidade (§ 165 – 179).
O espetáculo é o mundo transformado em economia. Esta opera, agora,
somente para seu próprio fim, ou seja, seu próprio crescimento e manutenção. Neste
mundo, as necessidades de sobrevivência transfiguram-se numa busca de
sobrevivência ampliada, na busca da satisfação de pseudonecessidades, no
consumo do mesmo como se fosse algo diferente, no consumo pelo consumo. Nada
mais de qualidades, mas quantidades e homens sem qualidades que mergulham na
lógica da abundância. Consomem-se ilusões, consome-se o mundo enquanto
mercadoria. O capital humaniza a mercadoria a tal ponto que o seu fetichismo
alarga-se em todos os setores: fetichismo de si, fetichismo do outro, fetichismo do
mundo, fetichismo das idéias, enfim, o homem e a natureza tornam-se coisas
passíveis de troca através de um único elemento concreto e fluido que circula na
totalidade espetacular, o dinheiro.
Na sociedade do espetáculo, o sujeito trabalha para ser merecedor de férias,
de poder, de consumo. São instâncias apresentadas como subprodutos, finalidades
do próprio trabalho, instâncias consumíveis, amplamente vendidas como de possível
acesso por todos. E, o que é mais radical, como se o indivíduo fosse capaz de
encontrar a felicidade nelas. Para Debord, nada escapa à lógica espetacular do
consumo. O espetáculo é o supermercado onde se compram rotinas, valores,
lugares, prazeres que perambulam entre produtos multifacetados. Na abundância
104
explícita das gôndolas do supermercado espetacular, o movimento e afirmação da
vida são consumidos diante dos incontáveis tipos de sabão em pó. A qualidade da
vida torna-se adesão ao mundo em quantidade, em meio a batalhas para a
conquista do que Debord intitula como a banalidade quantitativa. As diferenças, os
regionalismos, os racismos, as oposições etárias constroem-se espetacularmente
através das escolhas e capacidades de compra de cada sujeito. E, conforme
sublinha o autor: “sob as oposições espetaculares esconde-se a unidade da miséria”
32).
Debord acredita que não opção num mundo em que o dever é escolher
tudo 64). Sempre se escolhe falsamente por uma coisa ou outra. E o movimento
da escolha, que faz os seres tornarem-se dinâmicos através dos diversos objetos
pelos quais podem transitar, apenas apresenta a prova de uma vida estática e
esvaziada de seu conteúdo efervescente. Toda a vida é preterida em favor das
formas que promovem o jogo de fazer pensar que, por detrás delas, encontra-se o
conteúdo: a vida diretamente vivida.
A satisfação da mercadoria abundante não se encontra no seu uso, mas em
si mesma. Ela, enquanto promessa de supressão de insatisfações, torna-se um nada
quando adquirida pelo indivíduo, pois este objeto revela ao sujeito o vazio por detrás
de sua máscara. Mas a frustração logo é esfumaçada pelo surgimento de outro
objeto, que justifica o sistema espetacular e exige ser reconhecido e possuído.
Assim, a satisfação exacerba um ciclo de pseudomudança dos produtos e condições
de produção. E, para Debord, no espetáculo, o perpétuo está fundado nesta
mudança, na perenização do ser através da obsolescência dos objetos (§ 68-71).
Debord analisa esta cisão na maneira de conceber o tempo como fruto da
transfiguração da passagem do tempo cíclico e do irreversível ao tempo espetacular.
105
No cíclico, a sociedade tinha a consciência de um presente perpétuo e era produto
de sua própria história. Percebia o tempo que voltava, não o que passava. Era
organizado conforme a experiência imediata com a natureza. O irreversível surge
nas sociedades de classes, nas quais passam a ser organizados os sistemas de
trocas e as concepções temporais. Se, na era do tempo cíclico, as sociedades
míticas eram produto de sua história, nas de classes, a história passa a ser seu
produto. O tempo cíclico do eterno retorno passa a ser o tempo irreversível do ser
vivo. E esta história é medida através de acontecimentos entrelaçados com o poder,
a sucessão de poderes. A eternidade saiu do tempo cíclico e passou a ser orientada
para além dele, para um final, seja para o reino de Deus, seja para a construção do
paraíso terrestre, seja para a concretização de projetos políticos. Para Debord, a
transição do tempo cíclico em tempo irreversível não se de imediato, inicia na
Grécia com a tomada de consciência do tempo histórico, passa pelo nascimento das
religiões monoteístas, pela Idade Média, pelo Renascimento, até seu triunfo na
noção do tempo irreversível da burguesia, o tempo do trabalho: “é a vitória do tempo
profundamente histórico, porque é o tempo da produção econômica que transforma
a sociedade, de modo permanente e absoluto”. O tempo irreversível passa a se
metamorfosear em tempo das coisas através da produção em série de objetos: “o
irreversível unificado mundialmente pelo capitalismo é o mercado mundial, do
espetáculo mundial. O tempo irreversível da produção é antes de tudo a medida das
mercadorias” (§ 125-146).
Assim é que nasce o tempo espetacular, o tempo da mercadoria, o que,
segundo Debord é a abstração do tempo irreversível. O tempo vivido é o do
consumível, e configura-se como um tempo pseudocíclico, através do movimento
para a satisfação da sobrevivência ampliada. Debord acredita que o tempo
106
pseudocíclico é o clico acrescido do dia e da noite, do trabalho e do descanso
semanal, da saída e da volta do período de férias. Mas ele passa a ser consumível.
Estes momentos são mostrados como distantes do trabalho e como a imagem social
do que deve ser desejável por definição. “Esta mercadoria é oferecida como
momento da vida real, cujo retorno cíclico deve ser aguardado”. Assim, este tempo
não se organiza mais através de uma experiência direta com a natureza, mas com a
experiência indireta com a pseudonatureza do trabalho alienado. Por esta razão é
que o autor enfatiza que, em qualquer momento da vida, o que ocorre é a
reprodução do espetáculo, que a vida real não passa da vida mais “realmente
espetacular”. É um tempo da realidade vivida ilusoriamente, o oposto do cíclico em
que o tempo da ilusão imóvel era vivido realmente. Para Debord, enfim, o tempo
espetacular é o tempo do consumo de imagens, estas sendo, para ele, o “meio de
ligação de todas as mercadorias” (§ 147- 164).
Debord, no ano da edição do seu livro (1967) acreditava haver dois tipos de
espetáculo, o concentrado e o difuso: o primeiro seria a ditadura da economia
burocrática, de uma imagem heróica que justifica a exploração absoluta. Nele, todos
dependem do sistema, devem consumir e a ele aderir para continuar a fazer parte
deste mundo. O segundo trata da abundância das mercadorias. Mesmo que as
mercadorias sejam separadas e sustentem projetos contraditórios de planificação da
sociedade, são justificadas “em nome da grandeza da produção da totalidade dos
objetos, cujo espetáculo é um catálogo apologético”. O consumo da totalidade dos
objetos buscada pelas qualidades atribuídas ao conjunto através do espetacular
difuso traz à tona o caráter falso da satisfação, pois o “consumidor real poder
tocar diretamente numa seqüência de fragmentos dessa felicidade mercantil”, e o
todo está definitivamente ausente destas partes (§ 65).
107
Nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo, escrito aproximadamente
20 anos mais tarde, Debord revela o surgimento do espetacular integrado, a junção
das formas anteriores: “no lado concentrado, por exemplo, o centro diretor tornou-se
oculto: não se coloca chefe conhecido, nem uma ideologia clara” (p. 173). No
lado difuso, por sua vez, todos os comportamentos e toda produção de objetos estão
absolutamente absorvidos pelo espetáculo.
O sentido final do espetacular integrado é o fato de ele ter integrado na
própria realidade à medida que falava dela e de tê-la reconstruído ao falar
sobre ela. Agora essa realidade não aparece diante dele como coisa
estranha. Quando o espetacular era concentrado, a maior parte da sociedade
periférica lhe escapava; quando era difuso, uma pequena parte; hoje, nada
lhe escapa. O espetáculo confundiu-se com toda a realidade, ao irradiá-la (p.
173).
A sociedade do espetacular integrado, explica Debord, se caracteriza pela
combinação de cinco aspectos:
1 - as renovações tecnológicas: propiciam a entrega do mundo ao juízo
racional do “corpo dos especialistas”;
2 - fusão econômico-estatal: as alianças entre economia e Estado dominando
o espetáculo pela impossibilidade de distinção entre uma e outro.
As outras três aparecem como derivação desta dominação:
3 - o segredo generalizado,
4 - a mentira,
5 - a produção de um presente perpétuo.
108
Segundo Debord, os três últimos são as mais importantes operações do
espetáculo, pois eliminam a verdade por torná-la impossível de ser demonstrada (o
que consuma o fim da opinião pública) e iludem a todos num movimento cultural
ativo devido à incessante circulação da informação. E, além de organizar a
pseudonovidade, organizam o esquecimento do que pôde ser conhecido. Tudo sob
a vigília de um segredo profundo que nada mais é, para Debord, que o segredo da
dominação (Comentários..., p. 214).
O espetáculo, para Debord, é o fim da história, da cultura, das ideologias e a
emergência destas instâncias somadas ao prefixo pseudo. Não se vivem mais
acontecimentos, mas pseudo-acontecimentos através do contato com a
pseudonatureza do tempo pseudocíclico: “(...) Com a destruição da história, o
próprio acontecimento contemporâneo logo se afasta para uma distância fabulosa,
em meio a narrativas inverificáveis, estatísticas incontroláveis, explicações
inverossímeis e raciocínios insustentáveis” (Comentários..., p. 179). O fim da arte, da
música, da moda, é mascarado por uma pseudocultura que se torna a mercadoria
vedete do espetáculo ao recompor destroços e configurar um meio neo-artístico.
Para Debord, na aplicação de pseudonovidades, fica oculta a destruição da vida real
e da poesia.
Às ideologias, por sua vez, não se adiciona o prefixo, mas se tem o triunfo do
seu conceito por sua materialização no espetáculo. Como afirma o autor 212-
213), a ideologia é uma vontade abstrata do universal e passa a ser legitimada no
espetáculo pela abstração universal, a “ditadura efetiva da ilusão”. “O espetáculo é a
ideologia por excelência, expõe e manifesta em sua plenitude a essência do sistema
ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real”. O que se vive
no cotidiano espetacular, segundo Debord, é a prática da “desinserção da práxis e a
109
falsa consciência que a acompanha” inspirada pela realização da idéia de ideologia.
Se ela não pode ser considerada uma pseudo-ideologia, por outro lado sua glória
transforma em “pseudo” toda a realidade que contém (§ 217).
Segundo Debord, tudo acaba apagado no espetáculo. Entre os homens e
entre eles e o mundo, subsiste a tela que elimina as possibilidades de o indivíduo
possuir até mesmo sua própria história, pois ele não vive os pseudo-acontecimentos
dramatizados no espetáculo, permanece na sua vida cotidiana separada, sem
linguagem, sem conceito, sem acesso ao passado, uma vida incomunicável. O
indivíduo não reconhece na própria vida a porta para sua realização e até para
sua morte. O espetáculo nada faz além de manter as aparências da vida (§ 107-
215). O sujeito espetacular é o espectador.
O motor da economia passa a ser a produção, distribuição e consumo de
acontecimentos, obscurecendo as consciências através de uma “subcomunicação
generalizada da organização social da aparência” (§ 195). A mídia, assim, torna-se o
veículo por excelência da lógica espetacular, ela é o veículo do espetáculo.
No plano das técnicas, a imagem construída e escolhida por outra pessoa se
tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava
por si mesmo, de cada lugar onde pudesse ir. A partir de então, é evidente
que a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro de uma imagem é
possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de imagens
carrega tudo, outra pessoa comanda ao seu bel-prazer esse resumo
simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o
ritmo do que deve se manifestar, como perpétua surpresa arbitrária que
não deixa nenhum tempo para a reflexão, tudo isso independente do que o
espectador possa entender ou pensar (...) (Comentários..., p. 188).
O discurso espetacular midiático mostra tudo completamente isolado do
ambiente, do passado, das intenções, das conseqüências. O espetáculo é ilógico.
Ninguém consegue contradizê-lo, pois ele ainda consegue apresentar falsos
inventários morais através de pseudodivergências que denotam o contrário do que
110
parecem, desvelam “o resultado de uma convergência espetacular buscada com
muita tenacidade” (Comentários..., p. 171).
No espetáculo, tudo o que existe é o que é apresentado e repetido pela mídia,
principalmente os boatos. Eles passam a ser o real. E, ironiza Debord, o que deixa
de ser falado durante três dias passa a não mais existir. O que ele passa a falar é o
que passa a existir de fato. O espectador aprisiona-se neste universo limitado e
entrega a sua existência para os “interlocutores fictícios”, estes não fazendo nada
além de entreter unilateralmente o indivíduo através da propaganda política da
mercadoria. E, destila Debord, “a imbecilidade acha que tudo está claro quando a
televisão mostra uma imagem bonita, comentada com uma mentira atrevida” 218
e Comentários..., pp. 182-214).
As personalidades são suprimidas pela impossibilidade do conhecimento das
experiências autênticas e, com isso, das definições de suas próprias preferências.
Segundo Debord, quem sempre olha esperando o que vem depois não age, e assim
nasce o bom espectador. O espetáculo considera o espectador um ignorante em
tudo, não se importa com o que ele prefere e oculta isso através de sondagens de
opinião, eleições, reestruturações modernizantes. “Seja quem for o vencedor, a
amável clientela vai levar o que há de pior: Isso, e nada mais, foi produzido para ela”
(Comentários..., pp. 183- 222).
Para Debord, a maior mudança ocorrida desde suas verificações no ano de
lançamento do livro (1967) foi a continuidade do espetáculo. Explica que isso não se
deu pelo avanço na instrumentação midiática, pois ela estava em estágio
avançado, mas pela educação de uma geração em torno dos seus dogmas
(Comentários..., p. 171). Considera que a sociedade moderna avançava
positivamente até 1968 e mostrava a todos que era passível de ser amada, mas
111
após esta data ela perdeu a ingenuidade e impôs o temor no lugar do amor. Ela
começara pela imposição, pela ilusão, pelo sangue, mas prometia a felicidade,
afirma Debord. Agora ela não promete, ela não diz mais o que aparece é bom, o
que é bom aparece”, mas diz apenas “é assim”. Para Debord, esta é a confissão de
impossibilidade de reforma em sua essência (Comentários..., pp. 161 e 232). Como
atesta: “O maior resultado da decomposição catastrófica da sociedade de classes é
que, pela primeira vez na história, o velho problema de saber se a maioria dos
homens ama de fato a liberdade está superado: agora, eles vão ser obrigados a
amá-la” (Comentários..., p. 162).
Debord sempre acreditou na possibilidade de reversão, de eliminação do
espetáculo. A alternativa efusivamente defendida por ele era a criação de conselhos
(inspirado na formação dos comunistas conselhistas de 1920), que seria uma
maneira de os trabalhadores revolucionarem a vida social alienada. Debord
pretendia que os homens colocassem em ação uma força prática para destruir a
sociedade do espetáculo, tornando-se conscientes de si. Como afirma na tese 122,
a alternativa é “recusar a totalidade de sua miséria, ou nada”. Assim, para Debord,
nada existe no espetáculo, nada pode surgir dentro da lógica espetacular, é preciso,
conforme defendia, reconstruir a realidade. Ou nada.
A imagem, enfim, para Debord, é o vínculo abstrato entre as pessoas. Ela
garante que as pessoas vivam no pseudomundo do tempo pseudocíclico
pseudoconscientes da pseudomudança e de uma pseudocoletividade e sigam
trilhando sua pseudo-história. Garante, também, que os sujeitos satisfaçam suas
pseudonecessidades pseudo-escolhendo entre pseudonovidades produzidas pela
pseudonatureza e conhecidas através da subcomunicação unilateral dos pseudo-
acontecimentos e pseudodivergências da pseudocultura espetacular. Para Debord, o
112
prefixo do mundo espetacular é o pseudo. E a única verdade a ser admitida é a
realidade do espetáculo.
A sociedade atual, seria então, para Debord, o espetáculo da economia
radical que tolda a realidade do mundo, da vida e dos seres através das imagens.
Como o autor escreve na tese 01, tudo o que era diretamente vivido transformou-se
em representação. Debord critica o espetáculo, pois quer poetizar o instante, o
cotidiano concreto, e acredita que somente a eliminação da mediação trará o retorno
ao conteúdo. A imagem, a forma-imagem não seria o seu alvo, visto que ela em si
não acarreta transformações. O alvo de Debord é a forma valor que a sociedade
adquiriu, o devir mercadoria do mundo. A economia inverteu a concretude do mundo
irrealizando-o e tornando os homens apenas almas que penam no purgatório
crentes de que estão no paraíso.
O que se percebe com o pensamento de Debord é que uma divisão entre
um real autêntico (para ele existe este lugar, basta eliminar o espetáculo), e uma
representação do real (esta seria a categoria do espetáculo, ela requer,
obrigatoriamente, uma mediação). A mediação, para Debord, é o problema [nada
mais é vivido diretamente, tese 01]. O espetáculo apenas disfarçou a divisão. Vive-
se através da imagem o real e o representado. Debord considera a economia da
sociedade capitalista como uma entidade separada que determina as relações entre
as pessoas através da imagem, assim como outrora se pensava Deus como
determinante da existência e relação entre as pessoas através da fé. O único motor
absolutamente dinâmico que interfere na vida das pessoas é a economia, a
mercadoria. E para se livrar deste ente é preciso decretar sua morte, pois o sujeito
precisa fazer sobressaltar sobre a sua vontade de dormir a sua consciência, que
113
mostrará os caminhos e, principalmente, fará perceber o abuso e as artimanhas da
lógica espetacular.
Para Debord, não consciência no espetáculo, não vida, não há
comunicação. É preciso quebrar o receptáculo espetacular da alienação para
encontrar e gozar o real.
A sociedade contemporânea é a imagem tornada o álibi do sistema
econômico e político em sendo a mediadora de relações fantasmas. O espetáculo é,
necessariamente, algo que deve ser exterminado, pois impede o (re) conhecimento
da verdade do mundo e dos seres. Para Debord, enfim, a sociedade da imagem é o
seqüestro da realidade pelas imagens.
Parte-se agora em busca das prováveis repostas que Jean Baudrillard daria
ao questionamento desta tese.
3 Simulacro
Jean Baudrillard nasceu no dia 20 de julho de 1929 na cidade de Reims, na
França, e faleceu em 06 de março de 2007, em Paris. Sua bibliografia, iniciada em
1968 com a publicação da sua tese de doutorado O Sistema dos Objetos,
desenvolvida em Nanterre com Henry Lefebvre, espalha-se até os dias de hoje,
somando um total de mais de 50 livros publicados, sem contar artigos em revistas e
jornais. Interessado nas análises das transformações estruturais promovidas pelo
desenvolvimento econômico, faz desta temática um fio condutor para suas reflexões
e, ao longo das metamorfoses promovidas pelo passar do tempo, verte para as mais
diversas tramas, sempre surpreendendo o pensamento.
É triste perder Jean Baudrillard durante o trajeto desta pesquisa. Faz pensar
que gênios não deveriam morrer. Precisa-se deles. Baudrillard ironiza, dessacraliza,
radicaliza a idéia para melhor fazer ver ou, quem sabe, para possibilitar o desajuste,
a transgressão, a destruição criadora. O quer fazer agora, sem ele, o mal
necessário? Trazer para junto de si sua obra, lê-la, ruminá-la, colocá-la na estante
com a certeza que jamais cairá sobre ela o mais insignificante farelo de pó.
A impressão de que uma obra finita é mais fácil de ser capturada e
transmitida sistematicamente é pura vertigem, em se tratando deste autor. O
pensamento de Baudrillard somente se solidifica para melhor sublimar-se. Ele
escreve, torce, inverte, vira do avesso as próprias idéias. Testa. Sempre. Tudo isso
produz um efeito libertário para a mente: faz pensar. Por este motivo, confessa-se a
dificuldade em estabelecer uma ordem, uma estrutura, um ponto de partida ou
chegada, enfim, uma linearidade a sua reflexão. Mas o exercício intelectual aqui é
115
tentar. Correndo sempre o risco de errar. Isso porque as limitações (ou perspectivas)
do pesquisador funcionam como filtro severo, direcionam o olhar e deixam muita
coisa para trás. Convoca-se a melhor conselheira nestes momentos em que a
lucidez da ignorância ainda sabiamente sussurra que é um bom momento para nem
começar: ousadia, é hora de acordar! Tarefa agora é buscar na obra de Jean
Baudrillard todos os elementos, as pinceladas que possam mostrar o papel que a
imagem exerce hoje no social.
Pronunciar a palavra simulacro é evocar o nome Jean Baudrillard. Tudo
porque é dele a afirmação “o que se vive hoje é a simulação”. Fingir ter o que não se
tem. Além da conta, cabe ressaltar. As grandes verdades não fundamentam mais o
mundo porque se descobriu que não merecem tanta confiança como outrora se
acreditou. Abrem-se as facetas da política, do sexo, da mulher, da arte, das
ideologias, apenas para citar algumas das “pulsões” que se pavonearam, gozando
de liberdade e expressão jamais esperadas. Mundo em orgia.
E para Baudrillard o problema é simples: ainda não inventaram o antídoto
contra a ressaca. O abominável dia seguinte. O pós-orgia. O que fazer após a orgia?
Esta foi talvez uma das questões-chave propostas por ele. Graças a ela o autor foi
levado a responder: simular, repetir ao infinito todas as utopias. Considerar que o
passado nunca existiu e tentar preencher os espaços vazios de referenciais, valores
individuais e sociais (BAUDRILLARD, [1990] 2003, pp. 9-10).
Poder-se-ia dizer que para Baudrillard a sociedade de consumo é a alavanca
para o mundo do signo, o simulacro. Ela nasce da transformação das relações de
produção, do fim da lógica cartesiana do consumo. Nesta os objetos eram os frutos
da produção e adquiri-los era a finalidade do trabalho. Inseriam-se aquém dos
116
conflitos e contradições entre os sujeitos que dominavam a produção, os que eram
dominados por ela e os que aspiravam à conquista ou derrubada desta dominação.
Na época pós-industrial, o consumo passa a ser sua própria finalidade. Os
objetos precedem à produção, ou seja, antecipam-se à soma dos esforços para sua
conquista, e são libertos de suas antigas funções (posse ou uso), existem apenas
para ser produzidos e comprados. A nova lógica do consumo não mais expõe a
presença de um sistema econômico dominante, mas de um sistema dos objetos que
deixa de provocar conflitos estruturais, pois todos são cúmplices e consentem diante
do consumo e da tarefa de praticá-lo instantaneamente.
O sistema produz devido ao consumo e o indivíduo consome porque tudo é
dado a consumir. Ao invés do conflito, é o consumo que passa a ser o modo de
relação com o mundo, reestruturando a coletividade (BAUDRILLARD, [1968] 1993,
pp. 165-172).
Os benefícios do consumo não são vistos como fruto do trabalho ou dos
processos de produção, mas como milagres. A crença é que se é herdeiro natural da
abundância revelada cotidianamente, do “milagre” feito por uma “instância mitológica
benéfica”: a Técnica, o Progresso, e o Crescimento ([1970] 2003, p. 23). Para o
autor, o resultado real pode ser visto no cotidiano, na ambigüidade da abundância e
do consumo, que são vividos como mitos e reconfiguram as condutas coletivas.
“Salivadores fantásticos”, os homens acreditam que a evidência do excesso, a
negação do raro é a chegada na tão esperada “terra prometida”.
Contudo, a abundância, segundo Baudrillard, é a presença de objetos
ausentes, sem sentido, pois o potlatch
11
, a destruição que promove suas
11
Mauss apropria-se do nome potlatch para designar o sistema das prestações totais observadas das
tribos Tlingit e os Haïda do Noroeste americano. Nelas o princípio da rivalidade e do antagonismo que
domina todas as práticas leva até a batalha, até o assassinato dos chefes e nobres que assim se
117
valorizações e das posições sociais deixa de acontecer. Não é mais o desperdício
que valoriza e sentido à produção, apenas o consumo ([1970] 2003, pp. 38-43).
Este é servido, segundo Baudrillard, de todo um dispositivo de objetos-signos que
carregam consigo a possibilidade do gozo da felicidade e da concretização das
singularidades. Estas não precisam mais se efetivar através de batalhas, mas da
aquisição de objetos signos da diferenciação.
As necessidades de distinção projetam-se nos objetos e fazem os
consumidores arremessarem-se de signo para signo, uma vez que o objeto em si
não opera o milagre. As diferenças reais que outrora desvelavam seres
contraditórios, que opunham os indivíduos uns aos outros, passam, na era industrial,
a ser diferenças personalizantes, consumidas através de modelos hierarquizados na
escala vertical das necessidades. A diferenciação, para o autor, é a adoção de um
modelo que qualifica abstratamente o indivíduo, renunciando à singularidade real
que só pode existir a partir de uma relação concreta e conflitual com o Outro e com o
mundo.
E o indivíduo passa a buscar sua personalidade num objeto-signo, a buscar o
“seu estilodentro da loja de departamentos do shopping center. A certeza é que o
encontro da própria “personalidade” trará a diferença e estabelecerá a relação com
os outros ([1970] 2003, p. 59-66).
Para Baudrillard, as necessidades individuais que seriam a legitimação de
uma sociedade de consumo passam a ser as necessidades de manutenção do
próprio sistema econômico, que utilizam sistematicamente como álibis as
necessidades individuais. o fruição e satisfação delas devido às relações de
um indivíduo com o objeto, mas escolha, aceitação e cumplicidade com um estilo de
enfrentam. Leva, por outro lado, até a destruição puramente suntuária das riquezas acumuladas, para
eclipsar o chefe rival. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70, 2001.
118
vida social. Isso, para o autor, decreta o fim da autonomia e não faz triunfar a
soberania do consumidor.
A igualdade presente nesse sistema é a do homem perante o princípio de
satisfação, igualdade perante o consumo. O que reflete a busca por objetos e signos
de felicidade, bem-estar e distinção. Segundo Baudrillard, os discursos correntes
que acreditam na liberação das necessidades, no desabrochamento do indivíduo, no
prazer e da abundância são concepções de superfície, pois a essência do sistema
não mudou. Segue-se numa sociedade que origina diferenciação e discriminação
social através da utilização e distribuição desigual do excedente.
A abundância, entendida como o resultado positivo do crescimento
econômico, não passa de uma estratégia de manutenção, produção e reprodução da
ordem social desigualitária e do privilégio. Em suma, não autonomia possível
quando se é obrigado a gozar e a ser feliz. O “eu personalizado” que emerge através
do consumo é somente o consumidor que é, para Baudrillard, o novo ser político e
social, a nova força produtiva. Não é a tima, mas o cúmplice do sistema. Não é
passivo, pois precisa produzir e inovar constantemente suas necessidades ([1970]
2003, pp. 80-85).
Conforme o autor, a lógica do consumo é que tanto a relação com os outros
como a consigo mesmo é consumida. Ele é a substituição das relações espontâneas
por relações mediadas por um sistema de objetos signos. Vive-se menos na
proximidade do outro e mais sob o olhar mudo de objetos que, pela sua abundância,
acabam por suprir a ausência mútua de uns aos outros.
Para Baudrillard, o consumo é a semente do simulacro, das relações de signo
para signo. E os fermentos para sua consumação são os meios de comunicação de
massa e os avanços tecnológicos e científicos.
119
Os meios de comunicação de massa auxiliam para que o conjunto das
relações sociais não mais se estabeleça entre homem e homem, pois a recepção e
criação de mensagens promovem uma espécie de comunhão. Contudo, não se trata
de uma comunhão através de um suporte simbólico, mas de um suporte técnico:
O que distingue a sociedade de consumo não é a ausência deplorada
de cerimônias (...). A comunhão cerimonial, no entanto, não se dá
através do pão e do vinho, que se tornariam a carne e o sangue, mas
através dos mass media (...). O que é repartido deixa de ser a
“cultura”: o corpo vivo, a presença atual do grupo (tudo o que fazia a
função simbólica e metabólica da cerimônia e da festa); é um
estranho corpo de signos e referências, de reminiscências (...) que
define a menor panóplia comum de objetos a possuir pelo consumidor
médio para aceder ao título de cidadão da sociedade de consumo
([1970] 2003, p. 108).
Para Baudrillard, a publicidade é o “mais notável meio de comunicação de
massa da atualidade”, pois fala de qualquer objeto e, por isso, todos o
virtualmente glorificados. Não orienta para objetos reais, para o mundo concreto,
para outro ponto de referência, mas de signo para signo, de objeto para objeto, de
consumidor para consumidor. Nada de conteúdo, tampouco de blico real. Valoriza
o objeto e transfere para ele todo o discurso do real.
A publicidade na TV , no rádio, nos meios impressos, (e digitais) produz
uma equivalência entre informação noticiosa e publicitária, acontecimento e
espetáculo, história e fait divers, neutraliza e despersonaliza o discurso do mundo. O
anúncio e a notícia formam uma idêntica substância visual, escrita, fônica e mítica, e
suas sucessões parecem naturais, suscitam idêntica curiosidade e absorção
espetacular/lúdica. Baudrillard elucida que os indivíduos são neutralizados neste
corte, e acabam por aderir a um consumo simultâneo ([1970] 2003, p. 23).
Segundo Baudrillard, qualquer juízo que se pretenda objetivo não pode deixar
de analisar os meios de comunicação nas categorias do mito, que não é nem
120
verdadeiro, nem falso. E também não pode deixar de compreender que estes meios
não são soberanos, pois são neutralizados pela indiferença ([1970] 2003, pp. 128-
135).
Entretanto, a falta de soberania dos MCM parece ser anulada quando
Baudrillard trata de analisar o aparecimento do código, desde o código binário como
linguagem do computador, que permitiu o surgimento do Virtual, até a descoberta do
código genético, que parece desvendar o invólucro de todas as informações que
regem a constituição e o encadeamento dos seres. A descoberta do código é, para
Baudrillard, a busca por um futuro de reprodução perfeita de seres, objetos e
situações, e viabiliza a extrapolação do real para a entrada definitiva no universo
hiper-real.
Na lógica interna dos MCM uma impossibilidade em avaliar o tempo e a
distância devido à contemplação do achatamento do mundo. Com o Virtual, explica
Baudrillard, a interatividade e o tempo real provocaram o colapso destas instâncias.
O espectador é convidado a atuar, e a referência do tempo enquanto sucessão do
passado, presente e futuro é ultrapassada pela referência do instante, do “ao vivo”,
do minuto a minuto. Baudrillard avalia a interatividade como a mistura de tudo o que
estava separado, distante: os sexos, o palco e a platéia, o sujeito e o objeto, o real e
o seu duplo, etc. O indivíduo se converte em codificador e decodificador, em seu
próprio correspondente diante da posse do seu terminal. Para Baudrillard, estas são
as peripécias trazidas pelo vídeo, pela tela interativa, pelo multimídia, pela Internet,
pela realidade virtual: “essa confusão dos termos e essa colisão dos pólos fazem
com que em mais nenhum lugar haja a possibilidade do juízo de valor: nem em arte,
nem em moral, nem em política. Pela abolição da distância, do pathos da distância,
tudo se torna irrefutável” ([1997] 2002, p. 129).
121
O discurso dos MCM orientava de signo para signo, de objeto para objeto, de
consumidor para consumidor, despersonalizava o mundo, neutralizava o indivíduo e
provocava o consumo. O discurso do virtual orienta para o mesmo objeto no qual o
mundo está totalmente personalizado para que o indivíduo o acesse irrestritamente
a partir de sua ação. É um discurso puramente convocatório, que põe em marcha a
possibilidade de tudo ver e realizar através da tela do virtual. Se para Baudrillard a
análise dos meios de comunicação de massa deveria ser pensada na categoria do
mito, que não é verdadeiro, nem falso, o Virtual deve ser pensado como o mais
verdadeiro que o verdadeiro, como o mais real que o real, como o último estágio do
simulacro, no qual a referência, o princípio da realidade sucumbe diante do princípio
da simulação, desfaz-se diante do seu duplo, o hiper-real.
No simulacro, os signos são vazios de significação, pois não precedem mais a
existência do conteúdo que representam. O real, o conteúdo por excelência,
desaparece na simulação. Não desaparece por falta, mas por excesso, por
proliferação, por transparência, por “epidemia da simulação” ([1990] 1992, p. 12).
Baudrillard não opõe a simulação ao real, pois explica que não há uma crise
no real sendo vivenciada. A simulação é o apogeu do real, é a sobra do real. Ele não
estaria por detrás do simulacro ou sendo ocultado por ele, está sendo criado,
excessivamente. Se o real acaba pelo excesso, o que acaba por liquidação, para
Baudrillard, é a ilusão. Como explica, não se trata do conceito de ilusão como
falácia, fantasmagoria e mal, mas como “ilusão radical e objetiva do mundo, a
impossibilidade radical de uma presença real das coisas e seres, sua ausência
definitiva deles próprios” ([2000] 2001, p. 77).
Para Baudrillard, a ilusão é a regra do universo, o real é a exceção. Isto
porque nunca se obteve a verdade absoluta, incondicional sobre as coisas, pois
122
existe uma ausência, um hiato, a “alteridade radical” que impede que o Eu seja
idêntico para si mesmo e para o outro, ou seja, ninguém é em nenhum momento
real. A impossibilidade desta realização plena e identificação total é o que permite
que se possa seduzir e ser seduzido, e incentiva o jogo com o segredo ([2000],
2001, pp. 78-79).
Na virtualização do mundo, o que acontece é que a alienação transmuta-se
em privação total: “já não nos batemos contra o fantasma da alienação, mas contra o
da ultra-realidade. Já não nos batemos contra a nossa sombra, mas contra a
transparência. E cada avanço tecnológico, cada progresso na informação e na
comunicação nos aproxima desta transparência inelutável” ([1994] 1996, p. 95). Para
Baudrillard, a privação é o fim da condição na qual tudo existe apenas como idéia,
sonho, fantasia ou utopia, pois tudo passa a ser imediatamente realizado ([2000],
2001, p. 73). Assassina-se o real destruindo a ilusão: “a ilusão que pôs desde
sempre um travão no real cedeu e nós assistimos ao rebentamento do real num
mundo sem ilusão” ([1983] 1991, p. 61).
Resta, porém, uma ilusão: a virtual, a tecnologia como ilusão definitiva.
Baudrillard assegura que se está no último estágio da ilusão, apresentando a
seguinte cronologia: da ilusão trágica do destino passou-se para a ilusão metafísica
do sujeito e do objeto, do verdadeiro e falso, do bem e mal, do real e imaginário.
Chegou-se agora na virtual, a do nem verdadeiro nem falso, nem bem nem mal, a de
uma indistinção do real e do referencial, a de uma reconstrução artificial do mundo
onde todos conquistam a imunidade total ([1994] 1996, p. 68).
Isso foi possível, segundo o autor, porque a simulação, o fingir ter o que não
se tem, deixou de ser um efeito do real, mas passou a ser o princípio, pois se
constrói uma realidade mais real que o real, hiper-real, em que se perdem as
123
capacidades de diferenciação entre real e imaginário, real e virtual, presente e o
futuro, o eu e o outro. A simulação não é imitação do real, nem dobragem, nem
paródia, enfatiza Baudrillard, é a substituição no real pelos signos do real ([1981]
1991, p. 9).
Baudrillard atesta que o mundo é uma ilusão radical. É a ausência, a
improbabilidade e impossibilidade do real. E a vida seria a tentativa constante de
agarrar e ordenar os mínimos instantes em que ele parece possível. E ao invés de o
homem contemplar o fato de viver num mundo irreal e a sua total insignificância, ele
optou por:
(...) realizar o mundo, dar-lhe força de realidade, fazê-lo existir e significar a
qualquer preço, retirar-lhe todo o caráter secreto, arbitrário, acidental,
expulsar-lhe as aparências e extrair-lhe o sentido, subtraí-lo a toda a
predestinação para o devolver ao seu fim e à sua eficácia máxima, arrancá-lo
à sua forma para o devolver à sua fórmula. Este gigantesco empreendimento
de desilusão – literalmente: extermínio da ilusão do mundo em proveito de um
mundo absolutamente real é isso que é propriamente a simulação
(BAUDRILLARD, [1994] 1996, p. 39).
Se o é possível afirmar o que é e o que existe, produz-se excessiva e
tautologicamente o que falta e cria-se uma realidade onde não pode faltar nada e um
indivíduo para o qual não pode faltar potencialmente nada ([1994] 1996, p. 95). Não
se finge ter o que não se tem, cria-se. E pronto.
Nesta carnavalização
12
dos signos que simulam o real, ele mesmo é
canibalizado pela realidade dos signos. Transgressão total, afirma Baudrillard,
12
O texto Carnaval/Cannibal foi apresentado por Jean Baudrillard no evento Metamorfoses da Cultura
Contemporânea, ocorrido no Salão de Atos da UFRGS, Porto Alegre, nos dias 17, 18, 19 de outubro
de 2005. Posteriormente este ensaio foi publicado na Revista Famecos, Porto Alegre, EDIPUCRS,
28, pp. 7-17, dez. 2005.
124
supressão dos limites entre cena e verdade. E tudo passa a se concentrar num
espaço homogêneo e “terrorista” da hiperinformação e hipervisibilidade.
A simulação é o estágio da troca viral dos termos, das “metástases”
generalizadas no corpo social a partir de uma reação em cadeia onde o sexo, o
político, a economia, o esporte, a ciência, a arte já não se encontram em si mesmos,
mas em todos os domínios, eliminados enquanto categorias ([1990] 1992, p. 15). O
desaparecimento dos referenciais, das posições pontuais dos sujeitos e objetos,
acaba impulsionando a positivação do mundo, a eliminação da negatividade, da
contradição, das singularidades, em prol de uma transparência definitiva. A busca do
grau zero da diferença a partir da ultrapositividade elimina a oposição dialética e
transforma o social em metástase do mesmo, em privação do outro, avalia o autor
([1994] 1996, p. 94-96). Elimina-se (ao menos se quer eliminar) o outro sob todas as
suas formas: doença, morte, negatividade, violência, estranheza, diferenças de raça,
de ngua. E esta supressão é, para Baudrillard, o início do que pode vir a ser a
extinção de si mesmo, pois como escreve: “não é absurdo supor que a exterminação
do homem comece pela exterminação de seus germes. Porque tal como é, com
seus humores, paixões, riso, sexo, secreções, o homem não passa de um
germezinho sujo, vírus irracional que perturba o universo da transparência” ([1990],
2003, p. 68). Segundo Baudrillard, o projeto “fim do mal” faz do sujeito o senhor de
um mundo, e a única coisa perdida foi a finalidade desta dominação ([1994] 1996,
pp. 148-150).
Baudrillard elucida que o princípio do Mal nada mais seria do que a parte
maldita, o desajuste, o contrário, a estranheza radical e o paradoxo, que produzem e
conservam a “oposição regulada”. Declara que não se trata de um princípio moral,
tampouco de morte, mas de “um princípio de desequilíbrio e de vertigem, de
125
complexidade e de estranheza, de sedução, de incompatibilidade, de antagonismo e
irredutibilidade, é um princípio vital de desligação”. Sem ele, não o entendimento
de relações de causa-efeito, mas de efeito-efeito ou relações virais de efeito-efeito,
e o sistema passa a mover-se por inércia” ([1990] 1992, pp. 114-115). Para o autor,
polaridade, alteridade, antagonismo, multiplicidades divergentes, tornam
possíveis o mundo, o pensamento, assentam os “eus” e os outros. O apagamento do
mal anula a distância entre signo e sentido, e coloca no lugar da ilusão e do segredo
o excesso de imagens, informações, coisas, palavras, criando o pleno, a perfeição
desrealizante e indiferenciadora”. Conforme decreta: “o avanço tecnológico conduz-
nos simultaneamente à afirmação de uma soberania vazia e de um espaço simbólico
exaurido” ([1994] 1996, pp. 11-14).
No simulacro, a prova da existência do ser e do real deixa de ser uma
questão, pois a ilusão de ser é descarregada numa realidade objetiva. O ser existe
apenas enquanto performance no mundo virtual. Ele é signo de si, se joga na
carnavalização dos signos e canibaliza os próprios poros e os do mundo em nome
do fim das vertigens que o inencontrável (ele mesmo e o real) provoca em toda e
qualquer tentativa de demonstração e domínio. O ser deixa de “ser-espectador” e
passa a “ser-performático”, não “defronta a irrealidade do mundo como espetáculo”
está “sem defesa diante da extrema realidade deste mundo, da perfeição virtual”
([1994] 1996, pp. 51-65). E se não possibilidade de defesa, resta fazer alguma
coisa. Fazer gozar, fazer sentir, fazer saber, fazer querer, fazer aparecer. Resta
atuar.
O indivíduo contemporâneo não passa nunca sem os seus clones
reintegração da antiga fatalidade incestuosa, do ciclo infernal da identidade
que, pelo menos na fábula, tinha o ar de um destino trágico, mas que, para
nós, não é senão o código da desaparição automática do indivíduo. A
individuação fazia parte da idade de ouro de uma dinâmica do sujeito e
126
objeto. Desde o momento em que ele se torna verdadeiramente indivisível e
realiza assim a sua forma perfeita, isto é, delirante e auto-referencial, deixa
de se poder falar de indivíduo, mas somente do Mesmo e da hipóstase do
Mesmo. É o que ilustra a diferença absoluta, intransitiva que assinala o ponto
final dessa auto-referência: a “minha”, a “tua”, a “sua” diferença
(BAUDRILLARD, [1994] 1996, p. 162).
Para o autor, o ser é desplugado de seu corpo e de suas idéias e reconectado
no vazio, mergulhado na “indiferença das redes”. E são as imagens que suprimem o
vazio, através da disseminação de outro vazio: o excesso dos signos do real.
Conforme Baudrillard, o problema da realidade ou da verdade se resolve na
simulação técnica e na disseminação de imagens onde nada pode ser visto. Porém
sublinha que no simulacro nada pretende ser olhado, apenas absorvido visualmente.
“As coisas se oferecem não sendo outra coisa além de ilusão de si próprias” ([1994]
1996, pp. 27-29).
Na sociedade da imagem, no simulacro baudrillardiano, as imagens
preenchem o espaço” da ilusão perfeita. Elas presenteiam aos olhos o hiper-real.
Se, para Debord, as imagens eram resultado do ápice do capital, para Baudrillard
elas não são movidas por nenhuma entidade totalitária e maléfica. Elas são o
resultado dos projetos de sujeitos agonizantes diante da impossibilidade de
encontrar alguma “cela” na qual possam se abrigar ou da qual possam escapar, pois
todas as portas foram abertas no momento orgiástico da liberação. Mas a
disseminação de imagens, além de acarretar a morte do real por excesso e da ilusão
por falta, traz à luz mais um cadáver: o da própria imagem.
A imagem, para Baudrillard, não se associa nem à verdade nem à realidade,
ela é uma aparência ligada à aparência. Ela está unida à ilusão do mundo e apenas
relembra a incerteza sobre o real. A potência da imagem é perdida quando ela
passa a se conectar com o real. Baudrillard destaca que não se pode negar a
127
violência da imagem na atualidade, mas não se pode afirmar por conta disso que ela
e a profusão de signos ocasionaram o desaparecimento do real. A questão, para ele,
está na violência feita à imagem, pois ela ganhou uma finalidade: de documentação,
de testemunha, de mensagem. É utilizada para fins morais, políticos, informativos. E
grande parte delas não consegue refletir mais que a miséria e a violência da
condição humana, realça o autor. Explica que o conteúdo da imagem consegue
afetar quando ela existe por si mesma, quando impõe sua linguagem original. Para
ele, as imagens midiáticas, virtuais, não são verdadeiras imagens, são apenas
reportagens, clichês e performance estética. No simulacro, a imagem não passa de
um operador de visibilidade, o médium de uma visibilidade integral. A ação de tornar
visível passa a definir o que seria o real. Ele é entendido como o que é visto e
visível. Para ser real, então, é preciso somente ser visto. Para Baudrillard, fazer de si
mesmo uma imagem ao expor a vida cotidiana, as tristezas, os desejos, se
comunicar, ser visto a todo instante, incansavelmente, é não guardar nenhum
segredo.
O autor pensa o fim da imagem como conseqüência da própria transparência.
É dizer, novamente, que, pelo excesso de visibilidade, as imagens perderam o
mistério, não mostram nada além do que são, ou melhor, perderam o princípio da
ilusão.
Tel est le meurtre de l’image, dans cette visibilité forcée, comme source de
pouvoir et de contrôle, au-delà même du « panoptique »: il ne s’agit plus de
rendre les choses visibles à un oeil extérieur, mais de les rendre
transparentes à elles-mêmes. La puissance de contrôle est comme
internalisée, et les hommes ne sont plus victimes des images: ils se
transforment eux-mêmes en images (BAUDRILLARD, 2004, p. 80).
128
Como ele mesmo sintetiza no texto Carnaval/Cannibal: “le carnaval de l'image
est aussi l'(auto)cannibalisation par l'image” (2005, p. 10).
A maior perda que se teve através da imagem do computador, a imagem de
síntese, do cálculo numérico, foi a perda da imaginação, salienta Baudrillard. E isto
se deu porque nesta imagem não há real nem referencial. Porque a imagem como
analogia não é mais possível, e com isso se perde o real como podendo ser
imaginado (2004, p. 81).
Baudrillard descreve laconicamente quais seriam as fases sucessivas da
imagem, traçando uma possível história das imagens ([1981] 1991, p. 13):
1) Ela é o reflexo de uma realidade profunda (boa aparência).
2) Ela mascara e deforma uma realidade profunda (má
aparência).
3) Ela mascara a ausência de uma realidade profunda (finge ser
uma aparência).
4) Ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu
próprio simulacro puro (já não é de todo do domínio da
aparência).
Segundo Baudrillard, foi no jogo puro da forma que foi subjugada a idéia de
uma estrutura escondida, de uma objetividade mais rigorosa – foi retirada a máscara
da semelhança para fazer ver a verdade analítica do objeto. Com isso, foi-se direto à
realidade, ao desvelamento, a algo mais real que real.
129
Para o autor, a potência de uma imagem seria o poder de negação do real no
instante em que inventa outra cena. Explica que transformar um objeto em imagem é
tirar dele todas as suas dimensões, tais como o relevo, o perfume, a profundidade, o
tempo, a continuidade e o próprio sentido. Esta “desencarnação” é o que à
imagem sua potência de fascinação, pois passa a ser o médium de um objeto puro,
afirma. E proclama que reagrupar as dimensões, dar movimento, sentido, expor o
desejo, “multimidializar” a imagem para fazê-la mais real, melhor simulada, é um contra-senso total.
Figura 24 – Fotografia de Baudrillard
Fonte: O Anjo de Estuque, p. 36
130
A imagem é um universo paralelo, outra cena, sem profundidade, e a falta da
terceira dimensão seria seu charme e nero. Inserir a terceira dimensão é violentá-
la e destruí-la como universo paralelo:
Chaque dimension supplémentaire annule les précédentes. La troisième
dimension annule la seconde. Quant à la quatrième, celle du Virtuel, du
numérique, et de la Réalité Intégrale, elle annule toutes les autres - c’est un
hyperespace sans dimension. C’est celui de nos écrans, l’image à
proprement parler n’existe plus (mais l’univers du réel et de la représentation
non plus) (BAUDRILLARD, 2004, p. 83).
Poder-se-ia dizer, após este passeio pelas idéias de Baudrillard, que a
imagem define os novos modos de ser do eu, do outro e do mundo atualmente. Eles
afloram da intensa criação e replicação do real entendido agora como o que pode
ser visto, o que é visível. A imagem acaba com os interstícios do mundo, com o
segredo e com as possibilidades de sedução estimuladas pelo mistério. Baudrillard
acredita que foi dentro desta imagem, de sua produção e a distribuição que se
apagou o universo simbólico.
O simulacro baudrillardiano, assim como o espetáculo debordiano, não seria
um conjunto de imagens. Elas também não transformam por si mesmas o social.
Mas se, para Debord, o espetáculo, não sendo um conjunto de imagens, seria uma
relação social entre pessoas mediada pelas imagens, para Baudrillard, o simulacro
poderia ser pensado como uma relação social entre pessoas que se esgota na
imagem, não mediação. Porque a mediação supõe que existam dois referenciais
que se ligam através dela. E são justamente os referenciais que são anulados no
simulacro, segundo Baudrillard. A única mediação possível para o autor era a da
ilusão perfeita, o segredo era o mediador. Agora o real, o representado, imaginário,
o eu, o outro, o mundo, o codificados e decodificados na própria imagem. As
131
distâncias não são simplesmente disfarçadas, ocultadas pelo simulacro, elas são
anuladas.
Através das idéias de Baudrillard, entende-se que a imagem não oculta
uma raiz libidinosa. Ela apenas se coloca no lugar do que é oculto e neutraliza a
libido, pois tudo é dado a ver na obscenidade do real através da imagem. Conforme
escreve o autor: “tudo aquilo que esquece esta cena e este domínio da ilusão, para
se virar para a simples hipótese e domínio do real, cai no obsceno. O modo de
aparição do real é o do obsceno” ([1983] 1991, p. 43).
Para Baudrillard, a exigência que se tem de encontrar algum sentido é
sempre decepcionada na ilusão, mas de uma forma encantatória, salienta. A perda
da ilusão desencanta as relações e faz da aparição excessiva do real apenas um
encadeamento entre as pessoas. Poder-se-ia dizer que as relações sociais no
simulacro não passariam de reações em cadeia.
Para Debord e Baudrillard, a forma-imagem não se apresenta em si como um
problema. Debord acredita que a questão encontra-se na forma-valor, no devir
mercadoria do mundo. Para Baudrillard, a questão parece se fazer presente na
própria forma, pois no simulacro ela elimina o conteúdo. Entretanto, a forma apenas
acaba com o fato de este conteúdo (o real) não existir em si. Contudo, para
Baudrillard tudo se torna reversível no simulacro, menos o próprio simulacro.
São percebidas intensas semelhanças entre os desenvolvimentos das idéias
de Debord e Baudrillard. No entanto, parece que, de tamanha semelhança, eles
acabam sendo contrários. Debord compreendia que o problema do espetáculo era o
excesso de ilusão e falta do contato com o real. E que por conta disso a criatividade
não era possível. Baudrillard acredita que o problema do simulacro é que o excesso
de real deu fim à ilusão e à possibilidade de jogo. Enquanto Debord propõe uma
132
solução, uma saída para o espetáculo, Baudrillard destaca que o simulacro foi a
solução encontrada, ele é a saída. Arrisca-se, assim, a traçar alguns pontos que
poderiam fazer parte de um diálogo entre estes dois pensadores:
Debord – O sistema econômico é dominante. E as massas devem eliminá-lo.
Baudrillard – O sistema econômico é dominante. E intrínseco à massa.
Debord – O sujeito está sendo dominado pelo espetáculo. Deve sair dele para gozar
a natureza.
Baudrillard O sujeito está dominando a natureza. Mas perdeu a finalidade da
dominação.
Debord – O real é a regra. Deve-se expulsar o espetáculo.
Baudrillard – O real está sendo a regra. Mas ele não existe.
Debord – As imagens são colocadas no lugar do real. Deve-se cassá-las.
Baudrillard As imagens são colocadas no lugar da ilusão perfeita. Mas esta já não
pode ser encontrada.
Debord – Os MCM constróem a verdade. Deve-se provar esta farsa.
Baudrillard – Os MCM constróem a verdade. Mas a indiferença os anula.
Debord – As relações sociais permanecem. Mas são falsas.
Baudrillard – As relações sociais permanecem. Mas são reações em cadeia.
Debord – O prefixo do espetáculo é o pseudo.
Baudrillard – O prefixo do simulacro é o hiper.
Debord – Deve-se assassinar o espetáculo para fazer ressurgir o real.
Baudrillard – O crime já aconteceu pelo excesso do aparecimento do real.
Debord Uma teoria crítica aliada à prática social é o melhor caminho para a
revolução.
133
Baudrillard - Um pensamento radical seria uma forma feliz e uma inteligência sem
esperanças.
Esta aproximação é uma “deriva debordiana”, uma passagem apressada
através de ambiências variadas, durante a qual houve uma entrega às solicitações
das semelhanças e diferenças do encontro. Segue-se na busca por novos pontos de
vista que possam complementar as idéias expostas até aqui.
4 Tribalismo
O sociólogo Michel Maffesoli, nascido em 1944, é professor na Universidade
René Descartes, Paris V, Sorbonne e diretor do CEAQ (Centro de Estudos sobre o
atual e o cotidiano, fundado em 1982 em parceria com Georges Balandier), do CRI
(Centro de pesquisa sobre o imaginário) e da revista Sociétés. É um pensador
interessado nas novas formas de socialidade, no cotidiano e nas múltiplas facetas
do imaginário, temáticas constantes no conjunto de suas obras. Através das
constantes visitas que faz ao Brasil é possível estar sempre em interação com o
autor, discutindo e aprofundando suas noções.
Maffesoli utiliza o termo tribalismo como uma imagem para se pensar o
renascimento de fenômenos sociais ensejados pela saturação dos valores
individualistas da modernidade. Pensa que a civilização moderna, individualista,
utilitária e calcada sobre valores econômicos está em vias de ser substituída por
uma nova cultura, onde paira o sentido do supérfluo, do inútil, a busca do qualitativo,
tudo em comum. A vida sem qualidade, por meio de suas situações aparentemente
sem significação, transforma-se em uma perpétua criação, sendo vivida no presente,
lugar compartilhado por todos.
Maffesoli, ao contrário de Debord e Baudrillard que apresentam uma forma
peculiar de transpor suas idéias, a maioria delas através de aforismos, fragmentos
intempestivos que num só golpe “desmantelam” o leitor pela falta de uma linearidade
ou de encadeamentos históricos nos quais seja possível se agarrar traz
argumentos claros, límpidos, cadenciados, que podem ser saboreados com intensos
mergulhos em contextualizações históricas, etimológicas e exemplos da mitologia,
135
da literatura, do cotidiano, sendo verdadeiros bálsamos após o “terrorismo”
provocado pelos dois primeiros autores. Contudo, sua regularidade e ordenação,
este terreno aparentemente sereno, é ele mesmo uma aparência que guarda em
suas entranhas os aspectos fugazes, trágicos.
Em um dos seus livros (A Transfiguração do Político), Maffesoli revela
precisamente o ponto de partida de sua reflexão: quando repete a questão de
Eclesiastes “que de novo sob o sol?”. E responde: “Nada, claro”. Para ele, então,
a modernidade (a separação) representaria a emergência das noções:
- razão
- sujeito
- objeto
- autonomia
- social
- sociedade
- economia
- política
- identidade
- drama
Acredita que foram estas grandes construções que determinaram
profundamente o pensamento ocidental, moderno, judaico-cristão, como faz questão
de frisar. A pós-modernidade, por sua vez, seria a inversão de polaridade destas
grandes estruturas dos modos de ser e se relacionar com os outros. Agora as
estruturas seriam:
136
- imaginário
- persona
- heteronomia
- natureza
- societal
- socialidade
- consumição
- ética da estética
- pluralidade de si
- trágico
Não detectar a existência de algo novo sob o sol soa contraditório diante de
tantas “novidades”, mas, uma vez mais, trata-se de uma aparência, pois suas idéias
entram em conformidade com os estudos de seu mestre Gilbert Durand acerca dos
regimes diurno e noturno da imagem. Em cada época existe a predominância de um
deles. O esgotamento de um seria, necessariamente, a emergência do outro. Grosso
modo: o regime diurno é o regime da luz, dos verbos separar, dominar e vencer (ou
pelo menos acreditar vencer). O noturno é o das trevas, dos verbos misturar, perder-
se e retornar, eternamente (e assim suportar).
Maffesoli caracteriza a época pré-individual e a pós-moderna como
dominadas pela lógica do regime noturno, intercaladas pela modernidade e seu
regime diurno. Nada de novo sob o sol significa, então, o retorno de valores
arcaicos, com uma novidade trazida justamente pela diairética moderna, a
137
tecnologia. Para o autor, a pós-modernidade nada seria além da união dos valores
arcaicos com a tecnologia, ela é fator de agregação.
Para Maffesoli
13
, a era razão, da separação, da perspectiva unitária, da
redução da polissemia do real a um único valor se consolida através de três grandes
fundamentos: a perspectiva da unidade das religiões monoteístas, a projeção da
eternidade no futuro (Santo Agostinho) e a invenção do indivíduo. Através de duas
afirmações, de Santo Agostinho e de Augusto Comte, respectivamente, “a razão
humana leva à unidade” e “reductio ad uno”, Maffesoli acredita ser possível refletir a
constituição progressiva dos modos de ser e de pensar do Ocidente. Para ele, a
compreensão também pode se dar através da noção de substancialismo: a crença
no fato de haver uma substância distinta do fenômeno. É através dela que o ser é
substantivado e passa a ser algo que se define: alguém, alguma coisa, isto ou
aquilo, construindo a lógica da identidade que constitui a sociedade moderna. A
partir desta identidade (sexual, profissional, ideológica, entre outras) existe a
possibilidade de ser autônomo, de ser a própria lei.
Maffesoli explica que o processo de individualização inicia com Descartes
(cogito) e passa por Lutero e a Reforma (sujeito religioso, livre-arbítrio), o Iluminismo
e a Revolução Francesa (sujeito político, Èmile e o Contrato Social de Jean-Jacques
Rousseau), o século XIX e a emergência dos Estados-nação e das instituições
sociais (sujeito jurídico). Nesse processo, esclarece o autor, opera-se a separação
do homem e da natureza. Esta passa a ser um objeto distinto, separado e passível
de sofrer uma ação por parte do sujeito, numa relação de causa-efeito que
fundamenta todo o valor do trabalho na modernidade. Após este corte, tudo o que se
13
Seminário Sociologia compreensiva, razão sensível e conhecimento comum promovido e sediado
pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUCRS nos dias 8 a 11 de maio de
2006.
138
fez foi aperfeiçoar as maneiras pelas quais este sujeito dominaria este objeto. Na
homogeneização, na separação, na redução ao uno, a idéia da saída da barbárie
através da educação, a noção de autonomia, a supressão das particularidades
regionais, locais, dos múltiplos dialetos, dos usos e costumes, dos modos de vida e
das instâncias provinciais de administração ou de governos em nome de um
sentimento nacional fundamentaram a sociedade contratualista, a modernidade do
ideal democrático (H. Arendt), a busca do bem comum e da cidadania (Revista
Famecos, 8, jul. 1998, p. 9). Nesta lógica, as noções de social e de sociedade
parecem ser essenciais, segundo Maffesoli, pois o primeiro é compreendido como
um “estar-junto racional”, e a sociedade como sua manifestação. Como se pode
depreender de um esquema proposto pelo autor em O Tempo das Tribos (1998, p.
9), o social seria uma estrutura mecânica que possui uma organização econômica-
política formada por indivíduos que têm funções em grupos contratuais.
Para Maffesoli, a fórmula da modernidade é: aprender a tornar-se mestre de
si para poder ser mestre do mundo. É um momento em que se vive um tempo
“monocromático, linear, seguro, o do projeto”, que seria a perspectiva dramática da
existência, segundo a qual a partir da ação, da construção, encontra-se a solução,
evolui-se ([2000] 2003, p. 31). Por esta razão, destaca que o “rei clandestino” da
modernidade é a figura prometéica, “ativa, produtora e que pode ser reprodutora”.
Como afirma, “este seria o esquema de uma espécie de intangibilidade do ser: o
indivíduo não divisível é capaz de fazer sua própria história e associar-se
contratualmente com outros para fazer a história do mundo
14
”.
14
Evento Metamorfoses da Cultura Contemporânea, ocorrido nos dias 17, 18, 19 de outubro de 2005
no Salão de Atos da UFRGS. Posteriormente os textos produzidos pelos autores participantes do
evento foram publicados no livro Metamorfoses da Cultura Contemporânea. Porto Alegre: Sulina,
2006.
139
Maffesoli avalia o período moderno como trazendo uma grande segurança
para a maioria das pessoas, mas que ao mesmo tempo “enervou” o corpo
comunitário, pois projetou para instâncias distantes e abstratas o cuidado de gerir o
bem comum e o vínculo coletivo: “permitiu o deslizamento da solidariedade orgânica,
mais próxima do cotidiano, para a solidariedade mecânica, promovida pela tecno-
estrutura autoproclamada como garantia do bom funcionamento da vida social. (...)
Em tal lógica o mundo tornou-se estranho mesmo aos que nele vivem” (1998, p. 9).
Hoje, para Maffesoli, ainda se faz presente a base contratual e racionalista do
indivíduo, mas existem três grandes mudanças:
- saturação da noção de indivíduo e emergência da noção de persona;
- saturação das instituições do social e do Estado-nação e emergência de
uma entidade global que retoma a idéia do Império, uma entidade vaga e
vasta formada de pequenas tribos;
- saturação epistemológica, ou seja, as coisas são mais vividas que
pensadas.
A existência é tomada de aspectos puramente criativos e rompe com o
grande valor do trabalho em nome de fazer da própria vida uma obra-de-arte
fundamentada em práticas hedonistas.
Para dizê-lo mais trivialmente, “a gente explode” e faz rebentar os controles
que o poder havia elaborado antes e imposto progressivamente para
canalizar toda a vida social. Daí a espécie de vertigem que caracteriza
atualmente o Zeigeist: os valores reconhecidos desabam, os dogmas
convertem-se em metafísica, as fronteiras vacilam e os impérios se
enfraquecem. Tudo isso, até agora firmemente garantido, sofre a sorte dos
colossos com s de barro, os quais, da noite para o dia, despencam. (...) Eu
disse passagem do poder abstrato, mecânico, racional, à potência,
encarnada, orgânica, empática. Poder-se-ia retomar a expressão de Charles
Péguy, invertendo os termos: a política termina no místico. Entendendo, claro,
140
stricto sensu, o que faz mistério, isto é, une dois iniciados entre eles. Logo,
não mais corpo social universal, gerido por regras comuns, o do Estado-
nação específico que estabeleceria relações contratuais em seguida com
outros Estados-nação específicos, mas pequenos corpos fragmentados,
tribos misteriosas, acomodando-se do jeito que podem umas com as outras
([1992] 1997, p. 91).
No evento Metamorfoses da Cultura Contemporânea, ocorrido nos dias 17,
18, 19 de outubro de 2005 no Salão de Atos da UFRGS, no qual Gianni Vattimo,
Jean Baudrillard, Donaldo Schüler, Muniz Sodré, Sérgio Paulo Rouanet, Carlos
Roberto Cirne Lima e Renato Janine Ribeiro debateram sobre as transfigurações
contemporâneas, Maffesoli apresentou dois pontos-chave para entendimento das
transformações. O primeiro ponto seria o fato de a dominação da natureza pelo
homem ter se transmutado em posse, especificamente, o homem passa a ser
possuído pelo objeto. Isto implica primeiramente num retorno do vitalismo, um
retorno da idéia de physis, ou seja, de não mais perceber a natureza como algo
separado e inerte, mas o lugar no qual todos estão inseridos e que apresenta seu
próprio vitalismo. Ao invés do princípio de individualização, trata-se de um princípio
de relação que promove a união das matérias: dos seres, dos objetos e da natureza.
Maffesoli (1995, pp. 121-126) explica que entende a matéria a partir de sua
definição barroca, como uma matéria orgânica, composta de múltiplos elementos
combinados entre si, uma força vital. Uma “forma-formante”, concepção diferente
daquela em que a matéria é algo estático. Os objetos, na contemporaneidade,
seriam uma modulação da matéria e representariam (seja o objeto nobre, o útil ou o
inútil, o supérfluo que se destaca nos tempos do consumo) a cristalização de
sonhos, imagens, “do desejo de infinito que sempre atormenta o ser humano”. Para
o autor, estes objetos são objetos-imagem que religam, introduzem o mundo da
comunhão. Os objetos fetiches que são consumidos atualmente fariam, para o autor,
a “comunhão dos santos pós-moderna”, na qual o ser “aliena-se de si e perde-se no
141
outro”, ele comunga com outros, entra num todo coletivo, numa espécie de realidade
pré-individual na qual faz parte da matéria que se põe diante dele. Como
exemplifica, o homem acariciando o seu automóvel parece o primitivo que, ao tocar
seu amuleto, participa da potência primordial do mundo que o envolve.
O objeto separado e separante dá lugar a um objeto unificante, e talvez seja o
mundo em sua totalidade que se transforma em objeto puro: o mundo
“objetal”. Isto é, um mundo que levou tão longe a lógica artificial que esta se
tornou sua própria natureza. Um mundo em que o objeto, e a imagem que o
exprime e lhe serve de suporte, a exemplo da materialidade pura e bruta da
natureza, desenham uma nova harmonia, em que o animado e o inanimado
entram em sinergia, desembocando em um equilíbrio, às vezes conflitivo, às
vezes um tanto monstruoso, onde todas as coisas estão em seu lugar e
mantêm seu lugar (1995, p. 127).
Assim, de um regime diurno que promove antíteses, separação, redução ao
uno (homogeneização), desliza-se para o noturno, para o hibridismo, para uma
heterogeneização entre ser, objetos e natureza. O indivíduo separado, protegido por
uma instituição estável, que através de sua ação dominava a natureza, cede lugar
para a persona (máscara), alguém que representa papéis nas diversas tribos das
quais participa. Como esclarece o autor, “mudando o seu figurino, ela vai, de acordo
com seus gostos (sexuais, culturais, religiosos, amicais) assumir o seu lugar, a cada
dia, nas diversas peças do theatrum mundi” (1998, p. 108).
O sujeito identitário sai de si, perde-se no outro através de dimensões não
mais racionais, mas imaginárias, lúdicas e oníricas. Para Maffesoli, esta perda de si
no outro inverte uma noção fundamental da modernidade, a da autonomia. Pois o
indivíduo não é mais sua própria lei, mas a lei é dada pelo outro, num processo de
heteronomia. E para o autor isto se torna mais radical quando se percebe que não
se existe senão pelo olhar deste outro (1998, p. 15). É um processo de perdição de
si num todo amplo que converge intensamente para as noções da mistura, da perda
142
e do eterno retorno. O sujeito estável vira o nômade, o errante que perambula entre
as diversas tribos com a finalidade última de comunhão, partilha do sentimento.
Seria a saída de um estar-junto racional para um estar-junto stico (comungar com
o mistério): “à imagem dos aforismos de místicos célebres, a felicidade consiste em
não mais existir por si mesmo” ([1992] 1997, p. 250).
Para o autor, é o fim da história em que o indivíduo constrói a comunidade
contratualmente coligado a outros indivíduos racionais (ideal democrático,
comunidade construída) e emergência do mito no qual todos simplesmente
participam, compartilham (ideal comunitário, a comunidade é algo dado e a ser
partilhado). Um ideal comunitário manifesta a presença do societal ao invés do
social, pois naquele se tem a reintegração do lúdico, do onírico e do imaginário ao
estar-junto. Sendo a socialidade, por fim, a manifestação deste societal.
O segundo ponto-chave para a compreensão das metamorfoses
contemporâneas seria a questão de a eternidade não mais se projetar num futuro
distante, seja ele religioso ou político. Maffesoli aponta precisamente qual seria a
causa de estas instâncias terem perdido sua força de atração:
(...) não dá mais resultado o adiamento do gozo: a espera messiânica
do paraíso celeste ou a ão urdida para um amanhã que canta, ou
outras formas de sociedades futuras reformadas, revolucionadas ou
mudadas. Somente o presente vivido, aqui e agora, com outros,
importa ([1992] 1997, p. 20).
O autor salienta que os sujeitos não se ajustam mais à moral do dever ser, ou
à moral política, agora eles estariam engajados, ou melhor, enraizados numa ética
da estética, esta compreendida como uma “maneira de sentir e experimentar em
comum” (1995, p. 53). Assim Maffesoli declara que o “rei clandestino” da
modernidade é Dionísio, o deus preso à terra, mas em constante devir, jamais
estabelecido, a eterna criança ([2002] 2004, p.151).
143
O retorno da eternidade ao aqui e agora, para Maffesoli, é a substituição do
drama moderno pelo trágico da existência. Ele é algo que não possibilita a vitória, a
dominação, não permite ir além, não tem resolução. A economia de si traduz-se em
perda de si, em gasto, na noção de despesa, na emergência de um aspecto
selvagem que integra a alteridade e dança com ela num jogo de “queima” de afetos
e objetos. A persona deixa-se engolir pela natureza e copula com a matéria numa
rítmica na qual o único elemento restante é a possibilidade de repetição do ciclo. É
somente nesta abertura para o todo, nesta entrega e jogo para e com a morte, que
existe a possibilidade de controle do tempo, de um devir. Mesmo que o controle
signifique somente a possibilidade de reingresso no devir cíclico digestivo-copulativo.
Todas as matérias da natureza entram neste regime noturno, nesta concepção
libidinosa e sombria da existência. Para Maffesoli, a única entidade dominante da
pós-modernidade seria a libido, a libido dominandi, a erótica social que leva a uma
fusão não produtiva, mas mística, com o social. Este caráter trágico, a concepção
segura de um tempo linear e controlável transmutando-se em uma concepção
instável de um tempo clico, é o que aponta, para o autor, o fim da sociedade de
consumo ancorada na lógica da economia de si e do mundo, e plenitude de uma
sociedade da consumição, da perda, do gasto de si, de um retorno à animalidade
através da reintegração da parte maldita, da alteridade, seja ela qual for. O ser
pereniza-se através da obsolescência de si e dos objetos.
Não devemos esquecer que o “filho do mundo” de Heráclito “amontoa os
mundos para brincar e destruí-los”. A crueldade, portanto, tem seu lugar na
socialidade pós-moderna. Esta sensibilidade em relação ao outro (em si, na
natureza, na vida social) leva a uma concepção ampliada da realidade.
Realidade plural, polissêmica. Realidade absoluta. A experiência e vivido que
não se limitam a um ideal distante, à realização de uma sociedade perfeita
por vir, mas que tecem, pelo contrário, num entrecruzamento sem fim, todos
os afetos, as emoções, as paixões constitutivas da vida de todos os dias,
para formar o “tecido” social e natural compartilhado ([2002] 2004 p. 151).
144
A reintegração dos contrários, a diversidade, o sincretismo, o relativismo
(estar em relação com a alteridade), a experiência mística da perda de si para a
comunhão com o todo, a saturação da “explicação” do mundo pelo viés racional e
ressurgimento de uma “implicação”, um enraizamento dinâmico, um arcaísmo,
explicitam, segundo o autor, o reencantamento do mundo, ou seja, a restauração da
eficácia simbólica, a constituição de uma rede mística” (1998, p. 117). Assim, todos
os heróis, santos, figuras emblemáticas que se fazem presente são idéias-tipo,
arquétipos, matrizes que permitem o reconhecimento e a comunhão. Não seriam
mais figuras representativas, mas que se oferecem à percepção como a ponte que
levará direto à experimentação do todo, ou, nas palavras do autor, “não representam
o mundo, mas fazem perceber o mundo”. Deixam de suscitar ativismos para serem
estimulantes do gozo (1995, p. 35).
Para o autor, o desenvolvimento da imagem, do espetáculo, das explosões
esportivas, turísticas, entre outros, seriam, antes de tudo, a causa e o efeito destas
novas formas de estar-junto. Imagens cinematográficas, pictóricas, esculturais,
tecnológicas, enfim, todas elas, resultam deste imaginário atual. Como explica, não
é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário. A existência de um imaginário
determina a existência de conjuntos de imagens. A imagem não é o suporte, mas o
resultado” (Revista Famecos, nº 15, ago. 2001, p. 76).
A imagem, para o autor, é o totem através do qual as personas comungam
com o todo, partilham as emoções. É através dela que se constrói uma participação
mágica, um encontro com o outro.
145
Figura 25 – Comunhão
Fonte: internet. Caráter ilustrativo
Ela coletiviza e dinamiza o espaço, é vetor de comunhão, permite ultrapassar
a separação através de um potencial simbólico que não pode ser avaliado pelo
conteúdo que mostra ou deixa de mostrar, pela mensagem que deve transportar,
pela autenticidade que tem ou não, pois é “orgíaca”, é uma forma que propicia o
fundo do estar-junto, uma “forma formante”, que une dois aspectos essenciais,
limitação e vitalismo, e favorece o sentir coletivo (1995, p. 93). Segundo ele, ela é
uma matriz que preserva, protege e faz vir o mundo, pois, como esclarece, ela
suscita uma confiança mínima que propicia o reconhecimento de si a partir do
reconhecimento do outro, tendo este outro qualquer estatuto (indivíduo, espaço,
objeto, idéia, etc) (1995, p. 117).
Para Maffesoli, a imagem constitui um “mundo imaginal”, um “hiper-real”, um
real pleno de lúdico, de onírico, de fantasias, em que todos os elementos interagem.
E, como atesta, isto é pontualmente o que constitui o real contemporâneo: “pode-se
até mesmo dizer que, ao evocar, ou ao invocar as coisas pelo que elas são, e sem
146
referência ao seu aquém ou a um além, a imagem está mais próxima do ‘real’ do
que o racionalismo ocidental gostaria de apreender, agir e explicar com toda a força”
(1995, p. 95).
Para o autor, toda a dificuldade das análises feitas acerca da “sociedade da
imagem” estaria no fato de não se pensar a dimensão mítica de uma realidade sem
a preocupação em determinar se é verdadeira ou falsa. Para ele, a realidade não se
resume à realidade, ela é carregada de uma “sobre-realidade”, de uma espécie de
negociação com o que é, de astúcia na reserva, de ão na contemplação, de
resistência na passividade ou mesmo de uma indiferença que sempre a ultrapassa
(2004, p. 31).
A imagem, para Maffesoli, é amoral. Ela não procura o que deve ser, mostra o
que é, aqui e agora. Seduz, atrai, faz sair de si, enfim, é viscosa, favorece o apego
ao outro. Em si mesma, declara, a imagem não apresenta nenhum valor, ela
passa a valer pela força do social na qual está integrada e que acaba constituindo,
evocando, epifanizando”, com maior ou menor beleza, completa. A imagem liberta
um “estar-no-mundo”, um participar do conjunto social. Liberta o ver, o ser visto
(1995, pp. 97-99). Como elucida, para além ou aquém das mediações, ela propicia
um conhecimento direto, uma partilha através da comunhão de idéias, experiências,
modos de vida e maneiras de ser: “a imagem é uma espécie de ‘mesocosmo’, um
mundo do meio entre o macro e o microcosmo, entre o universal e o concreto, entre
a espécie e o indivíduo, entre o geral e o particular. Donde sua eficácia própria, e
aquilo que ela representa”. Para Maffesoli, enfim, trata-se de uma “imagem viva”,
que une sonho e realidade e que tem por função conduzir ao sagrado. Ela reflete,
intensamente, a pluralidade do real (1995, pp. 102-107).
147
Assim, as imagens produzidas e distribuídas pelos meios de comunicação de
massa e as imagens do Virtual seriam vetores de agregação. Conforme Maffesoli,
mesmo que os jornais, as emissoras de rádio, a televisão, a Internet forneçam
abundantemente informações e imagens, cada pessoa incorpora um fragmento,
alguma especificidade que a permita sonhar, estabelecer uma “comunidade
espiritual”, um “grupo virtual de afinidades” (2004, p. 27). Isto significa dizer, quem
sabe, que o poder dos meios em unificar, difundir, homogeneizar, é sempre
determinado pela potência das “massas”. Pois, como escreve o autor, “a
comunicação é sempre fragmentada, negociada, jogada, investida de emoções e de
sentimentos, articulada entre partes que ora se opõem, ora se complementam”
(2004, p. 32).
Para Maffesoli, a comunicação não tem finalidade, ela serve de elo, é motivo
para estar com o outro. Ela não se situa numa hierarquia entre informação,
formação, educação, prestação de serviços e distração, ela cumpre principalmente a
função de distrair, sem que isto tenha qualquer aspecto pejorativo, enfatiza. Pois
distrair não remete para noções de subcultura, consumidores inconscientes,
manipulados e acríticos, mas sim para o desvio da angústia da morte (conforme
noção que retoma de Pascal). Ela retira a fixação que se tem na idéia da morte em
troca da criação de uma comunidade fértil que a faz esquecê-la, mesmo se
provisoriamente (2004, pp. 26-28).
Para Maffesoli, esta experiência mística através da técnica é possibilitada
pela saturação do sujeito pleno, seguro de si, e pelo surgimento de um ser múltiplo
que utiliza todos os vácuos, todos os buracos, todos os vazios para estabelecer
comunhão. Se a técnica opera um vazio da comunicação verbal, ela provoca, por
outro lado, um outro tipo de comunicação, uma comunicação horizontal, mais global,
148
pois apela para a “inteireza do ser”, para uma espécie de união cósmica que
reintegra ao “todo”: “êxtase que, embora seja vivenciado por indivíduos, tem
essencialmente uma dimensão coletiva. Experiência do ser integrando ou
ultrapassando os limites do próprio corpo para chegar à epifanização no corpo
comunitário” ([2002] 2004, p. 155).
A comunicação e a informação, para o autor, propiciam esta comunhão. Para
ele, através do apego às imagens, a comunicação, a informação e o imaginário
estabelecem laço, unem-se. Fusão que o autor esclarece da seguinte maneira:
O imaginário é a partilha, com outros, de um pedacinho do mundo. A imagem
não passa disso: um fragmento do mundo. A informação serve, então, para
fornecer elementos de organização do puzzle de imagens dispersas. Assim,
as tribos de cada cultura, partilhando pequenas emoções e imagens,
organizam um discurso dentro do grande mosaico mundial (2004, p. 26).
A partir desta ligação, o autor salienta que, neste jogo, fazem parte
motivações utilitárias, práticas e intelectuais, mas também as lúdicas, oníricas, as
motivações sem finalidade. Por esta razão é que o autor enfatiza a comunicação
sem fim: “pode ser, como nas conversas sem razão de ser de todo dia, um ato em si,
conversar por conversar, para estar junto, para passar o tempo, para dividir um
sentimento, uma emoção, um momento, um pequeno nada de cada dia. Comunicar
por comunicar” (2004, p. 26).
Para Michel Maffesoli é com as imagens que se torna possível deixar a morte
de lado, estas imagens restauram o simbólico em toda uma sociedade. As “simples
imagens”, as “imagens fetiches”, o os totens através dos quais as pessoas
comungam, participam de um todo maior, fundem-se com o mundo. Para Maffesoli a
imagem não é moral, não tem um valor maior ou menor, não apresenta maior ou
menor autenticidade, ela seria de outra ordem. A imagem, independente do seu
149
conteúdo, independente do fato de ser verdadeira ou falsa, mais verdadeira que
verdadeira, estabelece laço, relação, partilha. E esta relação, para Maffesoli, não
seria verdadeira ou falsa, mais verdadeira que verdadeira, ela é mística,
irrestritamente simbólica. As pessoas que perderam suas instâncias separadas
através das quais conquistavam sua segurança e garantia contra a morte vivem
plenamente no instante eterno de cada dia as fusões com o social e, assim,
despistam a morte. Jogam com o mistério. Jogam com a incerteza. Jogam com elas
mesmas. Jogam com os objetos. Jogam com as regras, fazem com que estas
tenham que ir se ajustando como podem diante da potência deste societal.
Para Maffesoli, a única coisa que a pós-modernidade elimina é a unidade. E
diante deste “convite para a fusão” torna-se impossível brecar o gozo: é-se possuído
pelo objeto. É-se possuído pelo outro. É-se outro. Não se tem uma grande utopia.
Existe incerteza em relação ao futuro. O espetáculo instaura-se em toda a parte. As
novas tecnologias permeiam todos os aspectos da vida social. E goza-se.
Retomando a tese 04 de Debord, que é também a tese desta pesquisa, pode-
se dizer que o tribalismo de Maffesoli não seria somente a formação de um conjunto
de imagens. Salienta-se que a opção pela utilização deste termo justifica-se através
dos mesmos argumentos que o autor apresenta para expressá-lo, a saber, é uma
imagem para fazer pensar as novas relações que se estabelecem. Assim, opta-se
por ele como imagem para se refletir sobre as idéias do próprio pensador. O
tribalismo poderia ser, então,
Uma relação societal entre personas através das (e graças às) imagens.
É pertinente dizer que esta primeira fusão entre o autor e a tese faz saltar aos
olhos a seguinte constatação: salvo o emprego de termos diferentes, vê-se a
150
permanência da tese. Ou melhor, a tese de Debord, a tese desta tese, para
Maffesoli, é a mesma.
Contudo, as aparências remetem, necessariamente, ao fundo. Enquanto a
tese de Debord denota uma palavra-chave para a mediação feita pelas das imagens,
a separação, para Maffesoli, a mediação explicita seu antônimo, a união. Assim,
chega-se no outro extremo do que foi proposto por Debord. Isso se dá, quem sabe,
pelo fato de que, enquanto Debord defende a idéia de um real autêntico, separado,
imaculado, através do qual as pessoas libertam suas potencialidades criativas, e que
este real é disfarçado, ocultado pelo espetáculo, Maffesoli aponta que o real é o aqui
e agora, o necessariamente sempre foi, nem necessariamente sempre será. E
este real vivido agora, mesmo sendo a realidade do espetáculo, amplia
indefinidamente as potencialidades criativas das pessoas. Para Maffesoli, a “massa”
que contempla o espetáculo cruza-se, roça-se, toca-se, estabelece relações, forma
grupos. O espetáculo não sufoca este real, ele liberta a imaginação, o imaginário, a
mística deste social. Para Maffesoli, não há princípio de realidade além ou aquém do
cotidiano, ele é seu verdadeiro princípio.
Jean Baudrillard havia tensionado a questão de existir ou não o real.
Confessou acreditar na sua absoluta inexistência, enfatizou que existiria o
segredo, a ilusão, e seria ela a condição para se jogar com o mistério do mundo.
Explicou que no simulacro emerge um hiper-real que impossibilita a sedução, que
faz com que os indivíduos acreditem no real como o que é visível e no ser real como
ser visto, e que isso eliminava o segredo das coisas e, assim, a sedução. Destacou
que a produção e disseminação de imagens midiáticas e do Virtual assassinaram a
imagem e propiciaram que o simulacro fosse levado às últimas conseqüências. Tudo
isso pelas possibilidades de criar o que não se tem ao invés de simplesmente fingir.
151
Através desta constante criação, o simulacro tornou-se irreversível, pois não existe a
viabilidade de fazer retornar ao mundo o mistério. Sublinhou, também, que a perda
significativa operada pelo simulacro foi a dos referenciais, das unidades, das
condições que permitiam conflitos dialéticos e, assim, facilitavam a criação de si, ou
melhor, a acomodação de si a partir desse confronto. Frisou que, pelo fato de a
modernidade ter promovido uma liberação irrestrita destas instâncias, os indivíduos
eram dominados pela incerteza diante de um momento de pós-orgia e optavam por
positivar o mundo, impulsionar um ascetismo, eliminar a alteridade em todas as suas
formas. Tudo isso sem deixar de demonstrar, é claro, que a sociedade do consumo
fora a alavanca deste simulacro, pois através do consumo descabido de objetos-
signos o ser entregava-se aos seus domínios e fazia sua existência e finitude serem
determinados, configurados a partir do objeto. Isso refletindo na impossibilidade de
autonomia do sujeito.
Maffesoli, por sua vez, concorda em muitos pontos com Baudrillard. Seriam
eles:
- há hiper-real;
- o jogo se dá a partir do segredo;
- a natureza não pode mais ser imaginada;
- os valores perderam seus referenciais;
- é o fim do indivíduo;
- o social acabou;
- há um consumo desenfreado;
152
- os objetos estão apoderando-se dos seres;
- não há autonomia.
Entretanto, após a concordância, sempre vem o complemento:
- o hiper-real é o real;
- a comunhão, o jogo, se a partir da possibilidade de partilhar, com outros,
através das imagens, o mistério;
- a natureza não é mais imaginada porque não é mais separada e inerte, é
orgânica e provoca a vivência plena do potencial simbólico;
- os valores perderam seus referenciais e se pluralizaram;
- fim do indivíduo é a emergência da persona;
- fim do social (estar-junto racional) é o triunfo do societal (estar-junto místico,
emocional);
- há um consumo tão desenfreado que leva à consumição;
- o objeto se apodera dos seres porque o mundo objetal é sua natureza;
- fim da autonomia e gozo da heteronomia.
Não se pode dizer, a partir destas aproximações, que Maffesoli seria a
oposição direta de Baudrillard, assim como se percebe diante das idéias de Debord.
Poderia ser, talvez, seu complemento direto. O que se compreende a partir destes
efêmeros contatos entre os três autores é que a questão de suas análises está
centralizada na forma. Para Debord, trata-se da forma valor, ela seria o problema da
153
sociedade do espetáculo. Para Baudrillard, é a própria forma, ela elimina o conteúdo
(o real). Para Maffesoli, também é a própria forma, mas como a possibilidade de
reabilitação do fundo do estar-junto. Uma forma também dominadora, claro está,
pois é prenhe de libido. Enquanto a solução para o espetáculo era proposta através
de uma teoria crítica aliada à práxis, para o simulacro não haveria solução, apenas
restaria um pensamento radical desencantado, sendo feliz através de sua própria
manifestação. Para o tribalismo, por fim, não haveria problema, nem solução.
Bastaria se pensar o que é, não o que foi, tampouco o que deveria ser.
Sendo assim resta trazer à cena Gilles Lipovetsky para o debate e
complexificar ainda mais a temática.
5 Hipermodernidade
Em 1944, na cidade de Millau, na França, nascia um garoto que 63 anos mais
tarde autodefinir-se-ia como “um filósofo extraviado”, quando solicitado a comentar
sobre as inquietações que o levaram a constituir uma obra pluritemática e polêmica
acerca da contemporaneidade. Seu interesse por fenômenos como o da moda, as
tramas do luxo, do consumo, da publicidade, levaram-no, como confessa, a dedicar-
se a disciplinas universitárias inclassificáveis dentro da filosofia, pois seus objetos de
estudo são caminhos pelos quais a “filosofia não costuma ter muita estima”
(LIPOVETSKY, 2004, p. 107).
Os tempos atuais, para Gilles Lipovetsky, são hipermodernos. Este é o termo,
a senha de acesso a suas teses. Tudo porque não defende uma ruptura na história
do individualismo moderno. Para ele não existe um dedo que vira a página da
modernidade e caligrafa em destacadas letras um novo título para o rumo da velha
história. existe um acontecimento que promove a possibilidade de se alterar a
perspectiva de análise: o fim dos entraves que impediam a plenitude da
emancipação individual. Como escreve:
As grandes estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes
ideologias já não estão mais em expansão, os projetos históricos já não
mobilizam mais, o âmbito social não é mais que o prolongamento privado
instala-se a era do vazio, mas “sem tragédia e sem apocalipse”
(LIPOVETSKY, 2004, p. 22).
Vazio que, para o autor, acaba sendo preenchido pela manifestação dos
desejos subjetivos, da realização individual, do amor-próprio.
155
Tudo seria simples, linearmente compreensível, não existissem os paradoxos.
Pois a sociedade da liberação da autonomia individual (em relação à tradição, Igreja,
instituições, sagrado) concomitantemente é a sociedade da globalização econômica,
da uniformização dos modos de vida, da hegemonia de certas marcas, da
massificação, sinaliza o autor.
Para Lipovetsky, é o consumo de massa carregando consigo sacolas de
valores hedonistas que reafirma a chegada de um novo modo de ser e pensar no
mundo. O autor propõe uma cronologia, pensa o avanço do capitalismo moderno
sob três fases.
A primeira seria de 1880 a 1950. Com o aumento da produção industrial, a
difusão de produtos, o progresso dos transportes e da comunicação, o aparecimento
de métodos comerciais (exemplo: marketing e publicidade), haveria a consolidação
do capitalismo. Precisamente aqui se poderia pensar, segundo afirma, numa pós-
modernidade (2004, p. 24). Esta num sentido restrito: apenas uma mudança de
degrau na mesma escada.
Cabe ressaltar que a apresentação das fases reconhecidas por Lipovetsky
esclarece as mudanças que o autor emprega na nomenclatura dos tempos e justifica
a opção pelo prefixo hiper como expressão máxima do Zeitgeist. Porém não se trata
de analisar a escolha e precisão de expressões, mas de observar as nuances
provocadas por cada apertadinha a mais do pé no acelerador do consumo.
Precisa-se dizer acerca da primeira fase que nela os olhos se voltam ao
momento presente. Isso leva o autor a caracterizar o fenômeno da moda como um
dos pontos-chave para se pensar este social que aprende a querer, gostar, gozar o
novo, mesmo se na efemeridade do pão de cada dia.
156
Em O Império do Efêmero, Gilles Lipovetsky faz uma verificação histórica da
moda desde uma produção de vestuários aristocráticos, da alta costura e do prêt-à-
porter. É desde o século XIV que se inicia a moda entendida como pequenos ciclos
de mudança, como estrutura móvel da aparência. Vestimenta específica e
radicalmente diferente para homens e mulheres. Vestimenta como um prazer da alta
sociedade. É o que salta aos olhos nesta época.
Até o século XIX, a moda era uma febre que trazia consigo, segundo o autor,
uma nova relação social, a legitimação de um novo tempo e a paixão do Ocidente
pelo moderno. Entretanto, as inovações que surgiram desde então não abalavam a
estrutura do vestuário, eram modificações nos acessórios, ornamentos, enfeites, o
que Lipovetsky sintetizou na expressão “torrentes de pequenos nadas”
(LIPOVETSKY, 1989, p 33).
Para o autor (1989), a moda rompeu com a lógica imutável da tradição,
adquiriu poder, inventou sua maneira de aparecer e propiciou que cada um
começasse a ser o senhor da sua condição de existência, tendo o presente com o
eixo temporal.
A passagem dos anos e o conseqüente aparecimento da moda prêt-à-porter,
dos grandes estilistas, dos espetáculos da moda, da diversidade e barateamento
das roupas, enfim, da democratização da moda, permitem uma individualização
estética, a personalização. Sob a fantasia e o lúdico a moda traz a autonomia do
homem. Para Lipovetsky (2003), os argumentos correntes de que uma tirania da
moda e que esta exerce pressão e regulação social são exacerbados, pois mesmo
tendo contribuído para instituir uma nacionalização dos gostos, uma hierarquia
social, não pode ser considerada como negativa. Esclarece que através da
nacionalização, cada estado territorial europeu passou a singularizar seus trajes e a
157
criar um sentimento de pertença, um sentimento coletivo que não acaba com as
possibilidades de cada indivíduo, dentro desta “norma” geral, escolher o que melhor
lhe convier. A hierarquia, a verticalidade da moda, na época aristocrática e da Alta
Costura era evidente, atesta o autor. A elite gozava de seus benefícios, e os
produtores e artesãos propiciavam o deleite. Mas considera que atualmente estas
teses precisam ser revistas.
Pensar a hierarquia é também discutir o fato de se ter atribuído à moda a
função de distinção social. Lipovetsky pensa que todas as reflexões ancoradas na
afirmação de que a moda serve para este fim não vêem que o estímulo da criação
da moda não se fundamenta num desejo de distinguir uma classe. Elas precisam
reiterar suas posições e entender que as reviravoltas da moda são efeitos de novas
valorizações sociais, de uma nova posição e representação do indivíduo em relação
ao conjunto coletivo: (...) é uma nova relação de si com os outros, do desejo de
afirmar uma personalidade própria (...)” (1989, p. 59).
A moda, para o autor (2003), não é marca de distinção social, é atrativo, é
prazer dos olhos e da diferença. É uma prática de agradar, surpreender, ofuscar. É
um desejo pela felicidade e prazeres terrenos gerados por uma sensibilidade
moderna que sente a melancolia do tempo e a angústia da morte. Ela conjuga o
efêmero e o lúdico, pois a estetização e individualização da vaidade humana através
do artifício “descartável” fazem do superficial um instrumento de salvação, uma
finalidade de existência.
A ampliação do fenômeno da moda, segundo o autor, demonstra uma
sociedade que elevou seu nível de vida, que cultua o bem-estar, o lazer e a
felicidade imediata. Esta é a última etapa da legitimação e da democratização das
paixões de moda. As classes populares são convidadas ao gozo da moda no
158
momento em que ela deixa de ser inacessível para ser uma exigência de massa,
num cenário de sacralização da mudança, do prazer e da novidade: “a era do prêt-à-
porter coincide com a emergência de uma sociedade cada vez mais voltada para o
presente, euforizada pelo Novo e pelo consumo” (LIPOVETSKY, 2003, p. 115). A
grande operadora da embriaguez da mudança, da multiplicidade de protótipos e da
possibilidade de escolha é a sedução. A sedução da opção e da mudança é, como
escreve o autor, réplica subjetiva do mito da individualidade, da originalidade, da
metamorfose pessoal: “o sonho do acordo efêmero do Eu íntimo e da aparência
exterior” (2003, p. 95).
A cada novidade, uma inércia é sacudida, passa um sopro de ar, ponte de
descoberta, de posicionamento e de disponibilidade subjetiva. Compreende-
se porque, numa sociedade de indivíduos destinados à autonomia privada, o
atrativo do Novo é tão vivo: ele é sentido como instrumento de liberação
pessoal, como experiência a ser tentada e vivida, pequena aventura do Eu
(LIPOVETSKY, 1989, p. 183).
A segunda fase do capitalismo moderno permearia os anos de 1950 a 1980
aproximadamente. Aqui o consumo que anteriormente estava disponível quase que
em totalidade apenas à classe burguesa passa a ser acessível à maioria das
pessoas, ou seja, produção e consumo de massa ao alcance das massas. E os
sentimentos que começavam a despontar na primeira fase, ainda meio desajeitados
ou envergonhados, desenvergam seus pés e pisam firme no assoalho dos
provadores. Basicamente: novo sedução - frívolo bem-estar desenvolvimento
pessoal escolha autonomia prazer: tudo isso coloca uma pedra em cima das
noções de alienação, controle, disciplina.
159
Nada mais de normas impostas sem discussão, diz Narciso, a figura
emblemática desta fase, o indivíduo cool, flexível, hedonista e libertário (tudo isso ao
mesmo tempo) (LIPOVETSKY, 2004, p. 25).
Consumo com finalidade de dar prazer, libertação e gozo ao indivíduo. Buscar
objetos que proporcionem bem-estar, funcionalidade e prazer para si, que operem
uma satisfação privada. Quanto mais se pode consumir, mais desencantados
tornam-se os objetos, mais reduzidos à categoria de instrumentos. Pois o novo
ganha legitimidade social e a socialização da mudança permite aos indivíduos uma
constante reciclagem. Para o autor, é esta a democracia do mundo material. A
sociedade de consumo, para o autor, é a sociedade da revolução individualista
subterrânea, mesmo apresentando desigualdade, exclusão, miséria, solidão,
depressão e incerteza. Lipovetsky se diz favorável ao consumo e lamenta que ele
não possa ser “vivido” de forma igualitária (nem todos têm poder financeiro para
consumir).
Ele acredita que a sociedade mais liberta que oprime. É emancipadora,
flexível, transitória. É uma época na qual a obsessão por um mundo perfeito e
ordenado, típico da modernidade, cede lugar ao hedonismo. Como defende em
Metamorfoses da Cultura Liberal, o hedonismo destrói a moral heróica e sacrificial,
pois não se quer mais colocar a vida em risco por uma causa, uma ideologia (política
ou religiosa). Hoje se percebe que a vida vale mais do que a causa. É o que o autor
(2004) chama de momento pós-moralista, estágio alcançado após a passagem por
uma moral teológica (reinou até o início do Século das Luzes) na qual moral e
mandamentos divinos eram inseparáveis. A mistura entre moral e religião fazia da
Bíblia o documento supremo, sem estas sanções a moral não poderia existir, era o
160
que se pensava. Não havia virtude possível fora disso. Segue-se a ela a fase laica
moralista, do final do século XVII até o século XX.
Os responsáveis por esta mudança foram os pensadores modernos
(principalmente Kant e Voltaire), que estabeleceram as bases de uma moral
independente da Igreja. Os valores anteriormente divinos passaram a ser racionais,
universais e eternos, uma espécie de “moral natural”, presente em todos os homens.
Na filosofia moral de Kant, por exemplo, os imperativos morais são anteriores a
qualquer obrigação religiosa (Lipovetsky, 2004, p. 23). Ao invés de jejuns, rezas,
penitências, peregrinações, devia-se obedecer à lei moral. O princípio era a
liberdade de consciência, tendo como exigência máxima uma ão por dever
conforme as leis da razão e não conforme as leis religiosas. Agora era possível ter
uma vida moral, mesmo sendo ateu. O homem não precisava mais de Deus para ser
virtuoso. Lipovetsky (2004) afirma que a secularização da moral coincide com a
supremacia da razão moral, com o humanismo ético.
Mesmo havendo uma emancipação da religião, este processo é paradoxal
para o autor. Isto porque duas figuras essenciais da religião continuaram presentes
nesta fase, o dever absoluto e a ética do sacrifício. Houve a adesão a uma moral
infinita, ao espírito do dever cívico, nacionalista, familiar, produtivista. Como escreve,
acabou o dever religioso, mas começou a religião moderna do dever, o culto e
entrega total à família, à pátria e à história. A modernidade apenas fundou uma nova
moral. Pregava a emancipação, mas temia o hedonismo e a dimensão total da
liberdade. Havia, segundo Lipovetsky (2004), uma obsessão por um mundo perfeito
e ordenado.
Assim se chegaria ao momento pós-moralista, aquele que rompe e
complementa o processo de secularização da modernidade. Conforme sublinha, é
161
uma sociedade pós-moralista, não pós-moral. Para ele, desde os anos 1950/60, a
cultura não é mais dominada pelos grandes imperativos do dever sacrificial e difícil,
mas pela felicidade e sucesso pessoal. Pelos direitos do indivíduo, o mais pelos
deveres. É uma sociedade que exalta mais os desejos do ego e do bem-estar
individual do que o ideal de abnegação. Os deveres para consigo mesmo, tais como
castidade, temperança, higiene, trabalho, poupança, interdição de suicídio,
pensados como absolutos no passado, transformaram-se em opiniões livres, em
direitos individuais. O que existe o deveres em relação aos outros, mas quase
nada deles em relação a si mesmo. Os deveres foram substituídos pelos direitos em
nome do máximo de bem-estar (2004, pp. 24-27).
Conforme escreve em Genealogia do Virtual: comunicação, cultura e
tecnologias do imaginário (2004, p.37) não se expõe mais a vida por uma causa,
seja ideológica, política ou religiosa. A satisfação imediata abandona o sonho do
paraíso futuro. Quer-se viver o presente com a maior intensidade possível. Contudo,
ainda existe a indignação moral, a ajuda ao próximo, o humanitarismo, mas tudo
sem uma rígida disciplina moral. Hoje o indivíduo é movido por uma obsessão por si,
menos presente pelo desejo irrestrito de prazer do que pelo medo da doença e da
idade. Nas palavras do autor, Narciso está aterrorizado pela vida cotidiana, seu
corpo e ambiente social parecem-lhe mais agressivos.
Lipovetsky denomina isso como neo-individualismo, algo imbricado num
projeto de construção e tomada de posse de si. Neo-individualismo, para ele, seria a
recusa prometéica do destino e a invenção de si mesmo sem via social traçada por
antecipação. É a época do controle soberano de si e da luta sem fim contra o
preexistente herdado. “(...) Cada um se quer autônomo para construir livremente, à
la carte, o seu ambiente pessoal" (Metamorfoses da Cultura Liberal, 2004, p. 21).
162
Segundo o autor, o individualismo democrático é a figura de Narciso afundado
em si por sentir as dificuldades de viver, insegurança, medo do terrorismo, da
alimentação, das relações, da idade, do trabalho, da aposentadoria. É precisamente
deste fechamento em si que surge a explosão do consumo. Este seria o doping, o
estímulo para a existência.
Esta busca é reforçada pela predominância da noção de bem-estar individual,
lazer, interesse pelo corpo, valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro
presente na cultura cotidiana, na mídia, na publicidade.
Segundo o autor, existe uma descrença em relação à moral e um sentimento
de anarquia de valores, o que leva Narciso a fechar-se cada vez mais sobre si
mesmo. Mas ao mesmo tempo hoje se sobrepõem os questionamentos éticos, a
bioética, a luta contra a corrupção, a ética dos negócios, a filantropia, as ações
humanitárias. Lipovetsky (2004, pp.23-32) demonstra possíveis razões que fazem
emergir este novo sopro ético:
- a responsabilidade inevitável gerada pelas ameaças ao planeta
através do desenvolvimento da tecnologia;
- necessidade de limites e de proteção para o homem contra os
projetos da biomedicina que fecunda projetos desestabilizadores dos
referenciais tradicionais da vida, morte e filiação;
- novo contexto econômico, ideológico e político. Com a erosão das
grandes utopias históricas da modernidade (revolução, nacionalismo,
Estado, progresso), a revitalização dos discursos dos Direitos do
Homem e das ações caritativas. Seria a busca de uma ética mínima de
ajuda aos outros, uma ética da urgência em prol dos desprovidos.
163
Assim, para o autor, no “contexto pós-moralista” não se pode estereotipar a
imagem do individualismo. Não se pode reduzi-lo a egoísmo e niilismo. Existe uma
preocupação com o racismo, com as crianças, com as futuras gerações, ainda
manifestação de indignação quanto ao que parece escandaloso, existe um
verdadeiro fenômeno de voluntarismo, o que prova que o senso moral não se
extinguiu.
Mesmo que a temática da decadência da moral e da cultura seja antiga (se
faça presente desde Rousseau) e seja acentuada pelo recuo da Igreja, da ascensão
da época do dinheiro e do neo-individualismo, os valores não estão equivalentes,
existe a distinção entre o bem e o mal, ressalta o autor. Isso se através dos
radicalmente rejeitados comportamentos como pedofilia, terrorismo. Continua a
existir um absoluto moral. Não se vive o grau zero da moral. “A cultura individualista
liberal é muito menos relativista e menos desorientada do que se diz. (...) O pós-
dever o significa o recuo do humanismo, mas a sua consagração social e
histórica”. A sociedade liberal, para o autor, não pretende uma regeneração moral
dos cidadãos, não exige que todos compartilhem os mesmos valores, apenas é
preciso, nela, serem aceitos valores mínimos necessários à conservação de uma
sociedade pluralista, tais como tolerância, respeito mútuo, civilidade, espírito de
cooperação. Não se pode afirmar que hoje não mais moral, mas se pode dizer
que há uma fragmentação dos sistemas de valor. Existem, agora, diversas
concepções do bem, um politeísmo de valores que faz parte da dinâmica e
reafirma a autonomia do indivíduo. (...) Nas sociedades, pluralidade moral, não
niilismo moral” (2004, pp. 33-34).
Por último, é preciso perceber que se por um lado a sociedade exalta o
prazer, a sexualidade, a satisfação do desejo, por outro não se configura como
164
sociedade orgiástica. Não decadência de todos os valores morais para uma
entrega a um “vale-tudo libidinal”, segundo o autor. A sociedade pós-moralista,
funciona, para o autor, como uma “desordem organizadora”, gera mais “costumes
moderados” que “costumes dissolutos”
(2004, pp. 33-37).
A grande questão para Lipovetsky é que não existem, não são exaltados mais
os deveres sacrificiais. Ao mesmo tempo, a caridade, os apelos em relação aos
pobres e aos doentes alcançam um espaço significativo na mídia. É a moral, como
escreve, segundo as leis do espetáculo. De austera, categórica e autoritária, a moral
passa a combinar com festas, com stars. Ninguém mais é culpabilizado, mas
mobilizado, como diz, em “enormes quermesses de benfeitoria”. Este espírito de
solidariedade crescente não deseja realizar o Bem, mas algo melhor, único objetivo
que homens vivendo em sociedade podem estabelecer para si mesmos (Lipovetsky,
2004, p. 40).
A moral pós-moderna é a dos encantamentos, das operações de mídia
essencialmente dirigidas a um ponto específico, circunstancial, emocional.
(...) Esta época não cria uma consciência permanente, introjetada, difícil, do
dever; cria, de preferência, conforme as palavras de Jean-Marie Guyau, “uma
moral sem obrigações nem sansões”, ou seja, uma moral emocional
descontínua que se manifesta principalmente por ocasião de grandes
desesperos humanos (LIPOVETSKY, 2004, p. 29).
Em síntese, pode-se dizer que Lipovetsky não acredita que hoje houve um
esvaziamento da moral. Pelo contrário, fala de um ressurgimento de valores que,
mesmo se efêmeros, fazem do indivíduo um ser mais liberado para julgar, pensar e
viver mesmo num contexto amplamente caracterizado pela insegurança em relação
aos referenciais e à tradição. É possível depreender, também, pelas críticas de
Lipovetsky aos pensamentos que caracterizam um fim da moral, que o autor não a
165
a moral como decadente, tampouco como algo que deva ser abolido, apenas
transformado em algo melhor para o homem.
Enfim, a última fase do capitalismo moderno chega às bancas. Perfilha da
penúltima década do século passado e caminha até a atualidade.
Pode-se dizer sucinta e superficialmente que estes tempos correspondem a
tudo o que Gilles Lipovetsky escreveu na obra a Era do Vazio acrescido do prefixo
hiper. Ele parece ter conseguido encontrar um termo que abole qualquer noção
frouxa acerca de uma possível pós-modernidade, e traz aos olhos decididamente:
estamos na hipermodernidade, a era do hiperconsumo e do hipernarcisismo.
Escreve o que significa esta noção desmembrando a afirmação e
apresentando um possível conceito para cada evidência. Tem-se (Os Tempos
Hipermodernos, 2004, pp. 25-26):
Hipermodernidade: uma sociedade liberal, caracterizada pelo
movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca
antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que
precisaram adaptar-se ao ritmo da hipermodernidade para não
desaparecer.
Hiperconsumo: um consumo que absorve e integra parcelas cada vez
maiores da vida social; que funciona cada vez menos segundo o
modelo das confrontações simbólicas caro a Bourdieu; e que, pelo
contrário, se dispõe em função de fins e de critérios individuais e
segundo uma lógica emotiva e hedonista que faz com que cada um
consuma antes de tudo para sentir prazer mais que para rivalizar com
outrem.
Hipernarcisismo: época de um Narciso que toma ares de maduro,
responsável, organizado, eficiente e flexível e que, dessa maneira,
rompe com o Narciso dos anos pós-modernos, hedonista e libertário.
166
Ao que parece, atingiu-se agora um ponto máximo, positivo e equilibrado do
sistema capitalista: liberdade, igualdade, responsabilidade – basicamente seriam
estas as grandes conquistas trazidas pelos ventos de cronos.
Porém, Lipovetsky defende que se trata apenas de um aumento significativo
no número de paradoxos. A passagem do tempo muda o ambiente social e a relação
com o presente. Toda aquela euforia hedonista, da desagregação do mundo da
tradição, se despavoneia” e passa a sentir por entre as frestas da emancipação as
facetas da tensão nervosa.
O futuro incerto não prega as atenções dos indivíduos ao momento presente
e às suas benesses, mas causa medo. A globalização se exerce tautologicamente,
independentemente dos indivíduos. O desenvolvimento das tecnologias da
informação foge do controle. Falta emprego. Falta dinheiro. Falta segurança. Sobra o
estresse.
(...) nas décadas de 60, 70, quem teria pensado em ver nas ruas, como hoje
se vê, um Narciso de vinte anos a defender sua aposentadoria 40 anos antes
de poder beneficiar-se dela? O que poderia ter-se assemelhado estranho ou
chocante no contexto s-moderno nos parece hoje perfeitamente normal.
Narciso é doravante corroído pela ansiedade; o receio se impõe ao gozo, e a
angústia, à libertação (LIPOVETSKY, Os Tempos Hipermodernos, 2004, p.
28).
Gilles Lipovetsky fornece uma imagem ainda mais clara acerca da mudança
que acredita ter permitido separar a segunda metade do século XX e início do século
XXI em duas fases distintas do capitalismo moderno. Expressa que basta analisar as
diferentes atuações em poucos anos do indivíduo contemporâneo nas cenas dos
filmes O Declínio do Império Americano (1986) e As Invasões Bárbaras (2003). No
primeiro se poderia pensar numa lógica do “goze sem entraves”.
167
Figura 26 e 27 - Declínio do Império Americano Denys Arcand – Europa Filmes (Canadá, 1986)
Já no segundo filme impera outro modo de pensar: “tenha medo em qualquer idade”.
Figura 28 - Invasões bárbaras – Denys Arcand – Europa Filmes (Canadá/França, 2003)
Na hipermodernidade lipovetskiana (2007), os indivíduos estão cada vez mais
informados e mais desestruturados; mais adultos e mais instáveis; menos
ideológicos e mais tributários das modas; mais abertos e mais influenciáveis; mais
críticos e mais superficiais; mais céticos e menos profundos, enfim, contraditórios a
ponto de alongar demasiadamente uma lista de contra-sensos. Como exemplifica, a
168
flexibilidade do hipernarciso termina quando são ameaçados seus benefícios
adquiridos!
Nada mais daquele Narciso caravaggiano,
contemplativo e seduzido por si.
Figura 29 - Narciso
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1594-1596). Galleria Nazionale d’Arte Antica. Roma
Tampouco daquele que muito mais tarde se olha, se toca, se roça, se mostra
e convida todos para o deleite. Liberado para gozar e fazer gozar!
Figura 30 - Sidney Magal
15
15
Imagem de Sidney Magal, nome artístico de Sidney Magalhães (Rio de Janeiro, 19 de junho de
1953), cantor e ator brasileiro. Apareceu na mídia nos anos 70 como um cantor de músicas bregas,
sensuais e românticas, causando furor entre as fãs.
169
Agora é a vez do Narciso famoso, atualizado, engajado, responsável,
saudável, popular aos olhos do mundo, mas carregando dentro de si, cada vez mais,
o peso das aflições que nenhum discurso teórico, promessa da ciência, crença
religiosa, poder político ou econômico ameniza.
Figuras 31, 32, 33, 34, 35 - Imagens meramente ilustrativas, retiradas da internet, do jogador de
futebol David Beckham.
Figura 36 - Medo
http://sinalizando.blogspot.com/2007/11/estado-de-grande-medo.html
acesso em 19 de agosto de 2008
Hipernarciso está volúvel, amedrontado. Mas se lança nas corredeiras das
filas aventurando-se como nunca a satisfazer-se. O Eu hipernarcísico é aquele que
merece tudo aquilo que conseguir comprar. E mais, muito mais. Sempre. Nada de
170
desafios, diferenças, enfrentamentos simbólicos entre os homens, nada de
concorrência. Segundo o autor, ser filiado a um grupo e criar distância social não
mais faz parte num contexto no qual novos objetos de comunicação aceleram as
trocas interindividuais e facilitam as estimulações do Eu. Sem contar nas cada vez
maiores demandas de saúde, divertimento e bem-estar. Como escreve:
Não é mais a oposição entre a elite dos dominantes e a massa os dominados,
nem aquela entre as diferentes frações de classe que organiza a ordem do
consumo, mas o sempre mais” e o zapping generalizado, as bulimias
exponenciais de cuidados, de comunicações e de evasões renovadas
(LIPOVETSKY, 2007, p. 43).
Lipovetsky destaca a chegada da época de um consumo “puro”,
descompromissado em relação às diferenciações estatutárias, mas engajado no
fornecimento de um conjunto de serviços para o indivíduo. Como sintetiza o autor: o
apogeu da mercadoria não é o valor signo referencial, mas experencial. A dinâmica
consumista se dá para servir ao indivíduo disposto a buscar sua felicidade privada, a
ter saúde ilimitada, a conquistar espaços-tempos personalizados. Distração,
conservação de si e conforto sensitivo suplantam qualquer valor honorífico, de
comparação social ou ostentação de signos (2007, p. 43).
Para o autor são os objetos, juntamente com a dia, que acionaram esta
“dinâmica de emancipação dos indivíduos em relação às autoridades
institucionalizadas e às coerções identitárias” (2004, p. 70).
Gilles Lipovetsky acredita que a explosão do individualismo contemporâneo
está casada com a da mídia. Tudo porque os conhecimentos sobre outros universos,
outras mentalidades, outras idéias, outras práticas, informações, tudo isso trazido
pela mídia leva o indivíduo a rever suas opiniões, a posicionar-se diante dos fatos, a
171
comparar lugares, pessoas, ele mesmo e os outros, antes e depois, leva-o a
diversificar modelos, valores, enfim, a ficar menos tributário de uma cultura una e
idêntica (LIPOVETSKY, 1989, p. 225). Abaixo segue a citação que explicita suas
opiniões e também o ponto chave deste texto:
Em muitos domínios, a mídia conseguiu substituir a Igreja, a escola, a família,
os partidos, os sindicatos, como instâncias de socialização e de transmissão
de saber. É cada vez mais através da mídia que somos informados sobre o
curso do mundo, é ela que nos passa os dados novos capazes de adaptar-
nos ao nosso meio cambiante. A socialização dos seres por intermédio da
tradição, da religião, da moral cede terreno cada vez mais à ação da
informação midiática e das imagens. Saímos definitivamente do que
Nietzsche chamava a moralidade dos costumes”: a domesticação cruel e
tirânica do homem pelo homem - em ação desde as origens das eras e
também da instrução disciplinar. Foram substituídas por um tipo de
socialização completamente inédito, soft, plural, não-coercitivo, funcionando
na escolha, na atualidade, no prazer das imagens (LIPOVETSKY, 1989, p.
226).
Para o autor, o espetáculo vai de encontro à vida. Mistura-se no mundo.
Imagens dão prazer. As estrelas amam suas belas imagens pululando como
celebridades, mas também querem algo além, desejam passar a profundidade que a
simples imagem supostamente esconde, estar acima do superficial, deixar
mensagens, enfim, exprimir-se. Assim, conforme o autor, elas desencadeiam novas
referências para os indivíduos, impulsionam que eles vivam mais por si mesmos,
que se apropriem de seu próprio Ego. Tudo para a conquista de uma vida de lazer,
felicidade e bem-estar individuais. Mesmo se numa ética lúdica e consumista da vida
(1989, pp. 217-223).
A cultura midiática, para Lipovetsky, oferece mais modelos de identificação e
possibilidades de orientação pessoais, apresenta um coquetel de escolhas e de
diversidades, promovendo uma aceleração do processo de individualização: “mais
estilos musicais, grupos, filmes, séries, o que suscita aumento das pequenas
172
diferenciações, possibilidades de afirmar preferências mais ou menos
personalizadas” (1989, pp. 223- 224).
Além disso, ela abre caminho para o universo de mudança de ares, lazer e
esquecimento, de sonho, salienta o autor. Ela adquire uma função histórica
determinante quando passa a reorientar as atitudes individuais e coletivas e a
difundir novos padrões de vida. (1989, pp. 221-222). Conforme escreve: é preciso
operar uma revisão de fundo: o consumo midiático não é o coveiro da razão, o
espetacular não abole a formação da opinião crítica, o show da informação
prossegue a trajetória das Luzes” (1989, p. 25). Para Lipovetsky, o indivíduo
neonarcísico, enfim, é filho da mídia.
Guy Debord via no desenvolvimento do capitalismo e midiático a explosão do
espetáculo e o fim do sujeito. Para ele, era como se existisse uma vida e um real
que foram corrompidos pela imagem-mercadoria e que ficaram ocultos por falta de
crítica e de balas nos canhões.
Jean Baudrillard se mostrava despido de esperanças. Nada mais resta
fazer senão sobreviver num excesso de signos que muito acabou com o real, os
referenciais, o indivíduo, a imagem, as surpresas do destino.
Michel Maffesoli rompe com as antigas e futuras expectativas de uma
superação, uma melhora nas condições da existência. Observa o instante, nomeia-o
de real e consegue mostrar que dentro deste cenário de consumo de objetos e
imagens, personas transitam, satisfazem seu desejo de pertença e acabam numa
viscosidade social, presenteísta e hedonista, comungando com a natureza.
Gilles Lipovetsky, por sua vez, não parece buscar os entendimentos
necessários para se transformar ou aceitar uma sociedade supostamente
aniquilada/beneficiada pelo crescimento de entidades como a Técnica, o Progresso
173
e a Ciência. Para ele a sociedade cresceu, se desenvolveu, acabaram os grandes
mitos castradores dos indivíduos, houve libertação e liberação das pulsões
individuais. Ganhos inegáveis para os seres humanos, que agora conseguem
segurar e direcionar as rédeas da própria existência e possuem o mundo como
mostruário para suas escolhas. Ganhos crescentes também na angústia, na
incerteza, nas desigualdades que levam estes mesmos seres a se excederem nas
tentativas de preencherem seus vazios, seus medos com tudo que prometer, de
maneira convincente, cumprir este papel. Muitas vezes o importando os meios
para estes supostos fins. Perda no ganho.
As pessoas que, dentro de suas favelas, passam horas de terror,
esgueirando-se das balas e sentindo o medo do perigo concreto que mora ao lado,
são as mesmas que, ao raiar de qualquer dia, ligam seus amplificadores de som,
convocam os amigos e, seja ao ritmo de samba, pagode, funk, calipso, seja o que
for, dançam, riem, contam piadas. Elas que usam trapos rasgados durante parte dos
dias, preparam o modelito “da hora” para “brilhar” no baile. A mesma “socialite” que é
obcecada pela peça exclusiva, rara, e por derivação, cara, é a que por vezes batalha
por uma vida melhor para crianças, jovens, adultos, velhos, doentes, enfim, abre sua
ONG, faz algo para o bem do coletivo. Sem teorias.
A questão que parece vir à tona a partir das reflexões de Lipovetsky é que
todo o avanço do capitalismo moderno e a ampliação do fenômeno do consumo e da
mídia trouxeram para a superfície as características mais obviamente humanas:
ninguém é feliz, triste, doente, são, realizado, frustrado, ama ou odeia todo o tempo.
O social é composto por indivíduos que são gangorras emocionais mais ou menos
equilibradas em determinadas épocas. Sem uma força coercitiva, é difícil mantê-los
em fila.
174
Mas, então, qual é o papel que a imagem exerce atualmente neste social
acima descrito? E qual é a conseqüência, as mudanças que podem ser percebidas a
partir desta atuação? Leia-se:
Opiniões frouxas e flexíveis, abertura para o real e para as novidades, a mídia
juntamente com o consumo permitem às sociedades democráticas passar a
uma velocidade de experimentação social mais pida e mais maleável
(Lipovetsky, 1989, p. 229).
Assim, pode-se deduzir que uma recriação da tese 04 de Debord, a
rememorar “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social
entre pessoas, mediada pelas imagens”, pode ser reescrito para Lipovetsky da
seguinte maneira:
A hipermodernidade não é um consumo de imagens,
mas uma experimentação social, frouxa e flexível,
mediada pelo conjunto consumo-imagem (a mídia).
Experimentação: para o bem e para o mal. Tendo possibilidades de dar certo
e errado. Faca de dois gumes. Nada estereotipado, nem fechado em um conceito.
Tudo frouxo e flexível. O hipernarciso se apresenta como figura que dói, mas que
sente prazer e prazer. É a figura daquele que pode mudar de opinião a cada
cena. Sem compromisso com uma coerência advinda dos mais diferentes lugares,
mas que o impedia de mostrar-se tão transitório quanto seus pontos de vista.
Hipernarciso é volúvel em suas opiniões, mas nem por isso menos confiável.
Esta época conjuga amor e dor. A dualidade. O paradoxo. Ninguém consegue
colocar-se acima e proferir um discurso totalizante que destrua os outros lados. É
175
como se existisse o fim de uma história na qual vencem, em igual medida, o bem e o
mal. E tudo o que existe entre estes extremos.
Existem imagens boas e ruins. Muitas delas. E o indivíduo as absorve
conforme se oferecem: para promover evasão, participação, consumo, mudança de
opinião, conhecimento, espetáculo. O indivíduo tira proveito disso. Parece ser isso o
que Lipovetsky desvela. O afastamento de conceitos pesados e distantes do
cotidiano, para uma aproximação simples e direta com a realidade como está, o
homem tal como é.
6 Paradoxos da Imagem
Espetáculo. Simulacro. Tribalismo. Hipermodernidade. Depois de desfilar
pelos sinuosos caminhos que originaram uma a uma dessas senhas de acesso ao
pensamento de Guy Debord, Jean Baudrillard, Michel Maffesoli e Gilles Lipovetsky
e considerar atingido delas um entendimento mínimo – faz-se necessário promover o
encontro, o debate entre elas. São noções que se distanciam a partir de um ponto
sutil, como se fosse aquele desvio insignificante no caminho do trem, aquela
curvinha que acaba levando-o para um outro lado.
Ao longo das abordagens feitas anteriormente, se percebeu aproximação,
exclusão, complementação entre as idéias. De pronto vale dizer que concordam:
(pós-modernidade) - acabaram os grandes mitos fundadores e estruturadores
da modernidade;
(sociedade de consumo) - o capitalismo desenvolveu-se rapidamente e o
consumo passou a estruturar a sociedade atual;
(indivíduo) - adere ao sistema e faz-de-conta que não percebe suas
implicações;
(separação) - os contextos face a face como a forma de organização espacial
da sociedade passaram a conviver com o mediado;
177
(imagem) - ocupa lugar de mediadora da distância entre o eu, o outro e o
mundo;
A imagem, mesmo aparecendo como uma (con)seqüência natural destas
transformações identificadas na sociedade, parece adquirir um ponto central na
trama justamente pela função que é designada a ela desempenhar:
Mediar.
Situar-se entre duas coisas de maneira imparcial, transparente. Ela precisa
fazer a ligação entre um território sem fronteiras e um homem sem barreiras.
Nenhum dos autores discorda que ela está prestando devidamente estes serviços à
humanidade. Contudo, os bigodes começam a se retorcer, as pernas começam a
“tiquenervosear”, quando se pensa no que decorre desta relação do homem que
olha a imagem que contém o mundo que vai para a imagem e chega até o homem.
Respectivamente eles dizem:
- a imagem separa;
- a imagem abduz;
- a imagem liberta;
- a imagem propicia, até certo ponto.
Isto por considerar que o relacionamento homem-imagem não passa - ainda
respectivamente - das seguintes constatações:
178
- o indivíduo está sendo enganado;
- o indivíduo está se enganando;
- o indivíduo está gozando;
- o indivíduo está gozando. E broxando.
Existia uma tecnologia (a partir da descoberta do vídeo) quase pronta para
fornecer os “acessórios” necessários para extrapolar de imagens o mundo. Ela
estava ali no momento em que o contexto metamorfoseava-se, e não tinha idéia
melhor do que agarrar as barras da saia da imagem para se fazer consolidar e
aparecer. Sem contar nos que ali habitavam, homens ávidos por uma alternativa
agradável para a vida e que pensavam encontrar na imagem a melhor aliada na
satisfação de todas as necessidades, de todas as instâncias que calcularam
precisar.
Assim,
uma tecnologia apta
+
um contexto propício
+
homens dispostos a aderir
=
179
uma nova maneira de ver, ser, estar no mundo, que encontra na imagem o substrato
necessário para tudo alimentar e fazer funcionar. Mesmo se a imagem venha a
representar ocultamento (Debord), fim (Baudrillard), relação mística (Maffesoli),
disponibilidade máxima (Lipovetsky) do eu com o real.
Poder-se-ia estabelecer o consumo e o indivíduo como os dois eixos
norteadores da análise. Porque perpassam as reflexões de todos os quatro
pensadores aqui referidos. O fato de se estar numa sociedade de consumo (mesmo
se considerada por Maffesoli uma sociedade da consumição) destaca que ele é a
principal mudança sofrida pela sociedade e é o principal agente das mudanças das
relações entre os indivíduos. Indivíduo que agora passa a explorar seu mundo de
maneira diferente.
O consumo, por sua vez, é compreendido de maneiras diferentes pelos
autores. Para Debord, como se viu, seu “ápice” não significa nada além de
escravidão e dependência porque acredita não haver opção num mundo em que o
dever é escolher tudo. Dizia, relembra-se: sempre se escolhe falsamente por uma
coisa ou outra. Aparentemente movimentada esta nova vida diante de tantas
escolhas, mas é tudo “pseudo”. Porque os seres tornarem-se dinâmicos através dos
diversos objetos pelos quais podem transitar apresenta a prova irrefutável de que
vivem, isso sim, uma vida estática e esvaziada de seu conteúdo efervescente.
Para ele toda a vida era preterida em favor das formas e suas promessas
falsas de carregarem consigo o “conteúdo sagrado” que era a vida diretamente
vivida. Ela se satisfaz em si mesma, a mercadoria abundante. Pouco importa seu
uso. Parece o candidato que promete mundos e fundos enquanto as câmeras e
microfones estão direcionados para ele e as cadeiras fofas das salas particulares do
180
gabinete são um objetivo a ser alcançado. Porque assim que findado o último tilintar
da urna, ganhado sinal verde, sofre de uma amnésia profunda e, assim como o
objeto descrito por Debord, torna-se um nada adquirido pelo indivíduo. Pois este
objeto revela ao sujeito o vazio por detrás de sua máscara.
Mas, pensava Debord, a frustração logo é esfumaçada pelo surgimento de
outro objeto, que justifica o sistema espetacular e exige ser reconhecido e possuído.
Assim, de (in)satisfação em (in)satisfação, gira a roda da pseudomudança dos
produtos e condições de produção. Assim se funda o perpétuo. Na perenização do
ser através da obsolescência dos objetos.
Baudrillard ampliou ao extremo as proposições de Debord ao dizer que na
época pós-industrial o consumo passou a ser sua própria finalidade. Os objetos não
existem por algum motivo além da gica de serem produzidos e comprados. Nada
mais de finalidade de posse ou uso. Eles não exigem mais a soma dos esforços para
sua conquista. Sistema de objetos, dizia Baudrillard. Varria-se das ruas todos os
conflitos estruturais entre as pessoas e gerava-se uma cumplicidade: consumo é
bom, vai-se praticá-lo. E se for agora! Um sistema que produz devido ao
consumo, e um indivíduo que consome porque tudo é dado a consumir. Ao invés do
conflito, é o consumo que passa a ser o modo de relação com o mundo,
reestruturando a coletividade.
Maffesoli, por sua vez, mostrou que os objetos, na contemporaneidade,
representam a cristalização de sonhos, imagens, “do desejo de infinito que sempre
atormenta o ser humano”. Retomando o texto, estes objetos são objetos-imagem
que religam, introduzem o mundo da comunhão. Os objetos fetiches que o
consumidos atualmente fariam, para o autor, a “comunhão dos santos pós-
moderna”, na qual o ser “aliena-se de si e perde-se no outro”. Ele comunga com
181
outros, entra num todo coletivo, numa espécie de realidade pré-individual em que
faz parte da matéria que se põe diante dele. Isso, como expressou o autor, é uma
espécie de retorno da idéia de physis, de não separação entre ser e natureza. Para
ele o “mundo objetal” transformou-se na natureza e o homem pratica ali, muito além
de um consumo desenfreado, vazio e desencantado, os aspectos simbólicos da
consumição.
Por fim, Lipovetsky. Consumo com finalidade de dar prazer, libertação e gozo
do indivíduo. Buscar objetos que proporcionem bem-estar, funcionalidade e prazer
para si, que operem uma satisfação privada. Quanto mais se pode consumir, mais
desencantados são, mais reduzidos à categoria de instrumentos. Pois o novo ganha
legitimidade social, e a socialização da mudança permite aos indivíduos uma
constante reciclagem. A sociedade de consumo, para o autor, é a sociedade da
revolução individualista subterrânea, mesmo apresentando desigualdade, exclusão,
miséria, solidão, depressão e incerteza. O consumo é bom, como disse, pena não
ser “distribuído” de forma igualitária. Destaca a chegada da época de um consumo
“puro”, descompromissado em relação às diferenciações estatutárias, mas engajado
no fornecimento de um conjunto de serviços para o indivíduo. Assim, quanto mais
consome, mais senhor da natureza e torna-se o indivíduo. O consumo, do ponto de
vista de Lipovetsky, é a relação entre o turboconsumidor e a natureza que, graças às
modernas condições de produção, oferece uma pluralidade fantástica de objetos
disponíveis para satisfazê-lo.
As noções que os autores defendem acerca do indivíduo também se
desencontram. Debord entendia que o espetáculo, como figura da sociedade de
consumo, apagava os limites entre o eu e o mundo pelo esmagamento do eu.
Acabavam os conceitos norteadores de verdadeiro e falso “pelo recalcamento de
182
toda a verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela
organização da aparência” (§ 219). O sujeito tornava-se um ser contemplativo,
protegido do mundo pela tela, ou melhor, distanciado dele quase ao extremo. Cabia
à sua consciência o seu veredicto. E ao que pareceu, segundo as próprias
considerações do autor, ele se perdeu, desistiu de si mesmo e permitiu, por sua
conformidade excessiva, que o espetáculo escondesse definitivamente todos os
cantinhos do mundo real que ainda conseguiam dele escapar.
No simulacro, como se viu, a prova da existência do ser e do real deixou de
ser uma questão. A realidade objetiva criada às pressas e à força pelas mais
diversas performances dos meios de comunicação de massa e do virtual acabou
com a ilusão. A ilusão, como a prova necessária de que o real não existe, deixou de
ser a regra. E com isso levou consigo o sujeito, o indivíduo tenha a nomenclatura
que tiver levou consigo aquele ser simbólico, misterioso, sedutor, senhor de uma
natureza que jamais pode ser conhecida e dominada por inteiro, levou,
simplesmente falando, a graça de viver. O ser virou performance dentro do
simulacro. Ele é signo de si. Como se escreveu, ele se joga na carnavalização dos
signos e canibaliza os próprios poros e os do mundo em nome do fim das vertigens
que o inencontrável (ele mesmo e o real) provoca em toda e qualquer tentativa de
demonstração e domínio. Enfim, não defronta a irrealidade do mundo como
espetáculo, está sem defesa diante da extrema realidade deste mundo, da perfeição
virtual.
Hoje, para Maffesoli, ainda se faz presente a base contratual e racionalista do
indivíduo, mas existem três grandes mudanças, como se viu: saturação da noção de
indivíduo e emergência da noção de persona. O sujeito identitário sai de si, perde-se
no outro através de dimensões não mais racionais, mas imaginárias, lúdicas e
183
oníricas. Pois o indivíduo não é mais sua própria lei, mas a lei é dada pelo outro,
num processo de heteronomia. Não se existe senão pelo olhar deste outro, afirmou o
autor. É um processo de perdição de si num todo amplo que converge intensamente
para as noções da mistura, da perda e do eterno retorno. O sujeito estável vira o
nômade, o errante que perambula entre as diversas tribos com a finalidade última de
comunhão, partilha do sentimento.
Neo-individualismo é o que determina Gilles Lipovetsky. Nada de pensar em
fim de qualquer conceito, mas no seu apogeu. Todas as instâncias que ainda
seguravam o indivíduo moderno dentro de uma sociedade que se queria ordenada,
através de uma contenção moral, ética, física, psicológica, seja de qual ordem for,
sucumbem, e ele, ao invés de virar um nada, ou mesmo outra coisa, pode gozar
plenamente de si. Ele pode sentir sua soberania. Viver sua soberania. Contudo,
como pensa o autor, não é um individualismo egoísta e niilista. O hipernarcísico,
expressão que cunhou para representar este momento do ser no mundo, é um
Narciso que toma ares de maduro, responsável, organizado, eficiente e flexível e
que, dessa maneira, rompe com o Narciso dos anos s-modernos, hedonista e
libertário. Ele sente angústia, solidão, indiferença, preocupa-se com o racismo, com
as crianças, com as futuras gerações, ainda manifesta indignação quanto ao que
parece escandaloso. E os novos objetos de comunicação aceleram as trocas inter-
individuais e facilitam as estimulações do Eu.
Antes de prosseguir, precisa-se parar porque o medo de utilizar determinados
termos, se não forem esclarecidos passarão a confundir este caminhante.
Viu-se que para os autores em questão existe uma diferença em utilizar as
noções de sujeito (Debord), indivíduo (Baudrillard), persona (Maffesoli) e
hipernarciso (Lipovetsky). Por isso, para deslizar no texto descarregando qualquer
184
menção a um ou outro autor quando o termo sozinho for mencionado, declara-se
uma definição de sujeito e objeto manifesta por Muniz Sodré, no Antropológica do
Espelho, que serve como background apenas para estruturar o pensamento:
Sujeito não significa necessariamente indivíduo é, antes, o suporte
estável e universal das representações – mas designa sempre a esfera
do humano e suas relações sócio-culturais, onde reina como entidade
onipotente, plena, garantida por uma tecnologia do conhecimento
intitulada razão.
Objeto isso que se lança à frente do sujeito, tem como referência as
coisas inertes ou assujeitadas do mundo. Uma barreira ontológica
separa as duas esferas no interior do paradigma epistemológico
(conhecer implica separar, compartimentar, fragmentar), cujo grande
marco filosófico é a concepção kantiana do sujeito transcendental,
capaz de impor a qualquer experiência suas formas a priori (SODRÉ,
2002, p. 93).
Voltando: Dos eixos norteadores (consumo-sujeito) finalmente se conclui:
Nova sociedade (de consumo)
Novo ser social
(fim do sujeito/ fim do indivíduo/ persona/ hipernarciso)
185
O consumo, para os autores, é a alavanca para o espetáculo, o simulacro, o
tribalismo e a hipermodernidade. Por um lado, ele leva as pessoas a tentarem
consumir alguma coisa que dentro delas deixou de existir - segundo se pode deduzir
acerca das proposições de Debord e Baudrillard. A prática deste consumo acaba
com qualquer possibilidade de retorno a um estágio no qual não tinham sido
pervertidos pelo objeto. Isso eliminou, assim, AQUELE (que não se sabe qual é)
sujeito ou indivíduo, em prol de um “reles” espectador ou ser-performático.
Por outro, trouxe a noção de que tão flexível o mundo é às mudanças quanto
pode ser o homem diante delas. Ele é muito mais dinâmico e maleável que se pode
sonhar. E talvez muito mais VAZIO de sentido do que se queira imaginar. O
consumo liberta a persona que existe em cada um. Conforme se pode depreender
das idéias de Maffesoli e Lipovetsky.
Saindo de Debord e correndo até Lipovetsky, passando por Baudrillard e
Maffesoli, se pode dizer que o espetáculo libertou o sujeito de funções que ele
mesmo se determinou tempos atrás, criando uma nova trama que exercita
cotidianamente as faculdades de atuar em dramas e comédias, próprias ou alheias.
E qual seria, então, o papel que a imagem exerce nesse contexto?
Ela medeia a relação homem-mundo, mesmo se apagando, aniquilando,
misturando ou ponderando os extremos.
As mudanças que podem ser percebidas a partir de cada uma das atuações
propostas pelos autores podem ser mais bem compreendidas ajustadas na tese 04
de Debord:
Espetáculo NÃO É:
Um conjunto de imagens
186
Espetáculo É:
uma relação social
entre pessoas
mediada
pelas imagens
E isso é, evidentemente, muito ruim. Porque a mediação imagética elimina a relação
concreta com a natureza tornando falsa a sociedade, pois faz contato através da
tela.
Simulacro NÃO É:
Um conjunto de imagens
Simulacro É:
o fim de uma relação social
entre indivíduos
mediada
pelas imagens.
E isso é, evidentemente, trágico. Porque a mediação, na verdade, é uma
propagação de signos de uma natureza, de um real que não existe. Ela faz com que
todos permaneçam diante da tela absorvendo este mundo e sendo absorvidos por
ele, uma vez que não existe mais a possibilidade de afastamento dela por nenhum
dos lados. Simplesmente porque os grandes referenciais não existem mais, resta
somente uma substância única, visível e consumível através da imagem.
187
Tribalismo NÃO É:
Um conjunto de imagens
Tribalismo É:
Uma relação societal
entre personas
mediada
pelas imagens
E isso é, evidentemente, vital. Porque a mediação religa, une, diminui as distâncias.
A imagem redimensiona um mundo que não é mais compartimentado, mas
partilhado em grande escala, por seres prontos para dele experimentar e nele
mergulhar.
Hipermodernidade NÃO É:
Um conjunto de imagens
Hipermodernidade É:
uma experimentação social, frouxa e flexível,
entre hipernarcisos
mediada
pelo conjunto consumo-imagem (a mídia).
E isso é, evidentemente, paradoxalmente óbvio. Porque a mediação oferece muitos
dos recursos dos quais o ser precisa para obter sua satisfação privada. Ela se
oferece para um ser que não possui o peso das grandes obrigações (ou sanções) da
modernidade, e que consegue agora “carregar-se consigo” e ao sabor das “derivas”
estabelecer neste novo mundo uma nova relação.
188
Espetáculo significa contemplação (fatal, desde que...). Simulacro significa
imersão (irreversível). Tribalismo significa comunhão (vital). Hipermodernidade
significa oximoro (imutável).
Isso faz concluir, primeiramente, que por mais poderosa que se possa
considerar uma imagem, ela ali amontoada com outras num canto não é nada.
Precisa fundamentalmente ganhar sentido do homem. Quatro pensadores permitem
isso dizer. Não importa o termo que venha antes, ele NÃO É um conjunto de
imagens. Então a imagem é vazia? É, Durand?
Tudo leva a crer que é preenchida de potencial simbólico” pelo homem.
Todos concordam que o conjunto de imagens voando sozinho o faz mesmo o
verão. É o olhar que diz: tu representas tal e tal coisa para mim, ó, imagem. Mesmo
que de maneira não tão consciente assim.
Será então que as questões sobre as perdas simbólicas sofridas pela imagem
no decorrer de sua história enquanto produto de diferentes mídias conforme se pode
tatear através das proposições de Debray, Durand e Baudrillard têm alguma
pertinência? Ela teve mesmo em algum outro momento da história, principalmente
aqueles onde a expressão “reprodutibilidade técnica” estava longe de ser cunhada?
Se for possível supor, apenas su-por, que nada significa sozinha a reles imagem,
teria sido ela ou o homem quem perdeu a aura? Existe aura?
A imagem, viu-se, sempre foi mediadora. De Deus, do Belo e depois do Novo,
lembrando Debray. Mas para os primeiros dois autores aqui relacionados ela hoje,
enquanto mediadora, é o fracasso do social. Porque Debord e Baudrillard
acreditavam não poder e não dever o homem tomar conhecimento das coisas e
travar comunicação com os outros utilizando matérias que não fossem a carne
189
carregada de todas as impressões causadas pelo cheiro, cor, forma, movimento
contidas nela. Para Debord, a verdade está no real que está longe, mas não do
outro lado da tela.
Para Baudrillard a verdade nem importa mais, o importante é poder transitar
sensivelmente entre essas manifestações da carne alheia e sentir o cheiro do
segredo, aquele que decreta ali haver uma revelação perpetuamente velada.
Para os próximos pensadores, no entanto, ela medeia num contexto
diferenciado. São os mesmos personagens interpretando outra história. Para
Maffesoli, as imagens são totens em torno do qual os seres comungam. A verdade
está ali e somente ali, naquele momento. E seu valor está nesta sintonia.
Para Lipovetsky, a imagem está aliada quase que plenamente ao consumo e
este é o “bunker a u aberto” para onde vão os hipernarcisos. E saem, caso não
gostem do ambiente, ou se incomodem com a temperatura baixa demais do ar-
condicionado.
Interpretando de maneira mais superficial suas reflexões (mesmo sabendo
que o correto seria o contrário) será estabelecida uma espécie de “seqüência da
história contemporânea do pensamento francês acerca da imagem” representando
os marcos a cada noção por eles defendida.
O homem, certa vez, contemplava uma tela amaldiçoada e precisava da
revolução para sair desta condição de possesso no mundo. Mas, ao invés de ela se
fazer, aconteceu a descrença na sua possibilidade e, quem sabe, na necessidade da
mesma. Tudo isso piorou ainda mais a situação. Pois o contemplador passivo que
estava a poucos tiros de tornar-se ativo sucumbiu diante da farsa tão evidentemente
mal construída pelos donos do dinheiro. Poucos eram os que conseguiam perceber
o jogo. Como sempre versa a democracia (ou deveria versar), vence a maioria. Foi o
190
que aconteceu. Todos entregaram seus corpos ao sedentarismo, amoleceram seus
membros e passaram a saltitar as bolitas dos olhos nas imagens de um mundo que,
mal sabiam, não era real.
Mas eis que surge alguém que teve coragem de aterrorizar o pensamento
sobre a imagem quando disse “mergulhado na tela, embalado pelas redes” é isso
que o indivíduo quer. Tudo porque ele não está ali sendo enganado, convencido (ou
desatento) de que vê um real que é falso, mas está acessando, pela primeira vez, o
mais real que real, o hiper-real. Tudo-tudo que sempre quisera ver, conhecer,
bisbilhotar e nunca conseguira justamente pela impossibilidade de tamanho ato.
Imagem, bem entendido, que não é mais “A” imagem, aquela que mostra
algo oculto, uma nova cena. Agora é a imagem de superexposição de um real que
não existe. Porque o mundo, a bem da verdade, é a impossibilidade de acesso a
este real. Lugar por onde saem a sedução, o jogo, a imaginação, a imagem
enquanto aparência. existe eu, outro, mundo porque existe um buraco negro
entre cada um deles. Um espaço desconhecido, instransponível, que causa medo,
mas é fundamental para tatear os limites. As luzes da simulação colocam o holofote
no buraco e acabam com as zonas de sombra e tudo o que era isto, aquilo, aquele
outro passa a ser a mesma coisa, a mesma substância achatada na imagem.
Quase se desiste de procurar os vestígios do mundo diante do crime perfeito,
não se percebesse um movimento querendo sorrir do canto direito do lábio daquele
que viria a perguntar: - mas que crime? Enlouqueceu?
É preciso deixar de lado o ranço de se pensar ou não na revolução. Chega de
proferir que ela precisa acontecer. Ou de lamentar - mesmo que brilhantemente - o
fato de que não venha a se realizar. É hora de perceber o caráter renovado, visceral,
191
vital, comunhal destas novas relações por entre os meios, as imagens, as pessoas,
o mundo, enfim.
Não se precisa parar a cada pedra no caminho para fazer um tratado moral
de se ela é boa, má, grande, pequena, pontuda, lapidada, preciosa ou bijoux. É
necessário fluir. Perceber que muitas amarras foram soltas, e isso precisamente
soltou o mundo. Pessoas transitam por imagens que transitam pelo mundo que
perpassa outras pessoas e pegam carona com os pássaros, com as minhocas, as
baleias, os antepassados, os robôs, com tudo o que está aí, dado a ver e a imaginar.
A imagem hoje consegue ser aceita sem grandes conflitos e carrega consigo
todo esse mundo, ela funciona como um plugue no nariz de cada um. Respira-se
tudo, com todo mundo, ao mesmo tempo. O que pode existir de mais ritualístico e
simbólico que isso? E mais: onde se encontra ou se esconde aquele real o
necessário de preservar na mente senão no cotidiano de cada um que se levanta de
manhã? Para viver e entender o viver, é preciso pensar menos. Neste caso, bem
menos. Ou, para não causar conflito, pensa, reflete, mas não exija que o mundo se
configure conforme tua razão. Não alimente tantas expectativas. São muito
frustrantes.
Está na hora de levantar da cadeira escondida nas sombras do salão e
badalar, transitar, mergulhar no banal que é - pode ser - por mais inaceitável que se
possa parecer, o próprio caráter do ser humano. Ba-nal, eis o que se é. Talvez essa
seja a época na qual toda a banalidade do ser humano, mesmo aquela ingenuidade
primitiva, tenha ganhado incontáveis aparelhos tecnológicos para dar vazão a ela e
gostado deveras da brincadeira - e siga partilhando o calor da fogueira em escala
global.
192
que o calor da fogueira nesta escala promove o aquecimento global. E
neste momento os indivíduos “param a brincadeira e entram em campanhas”,
preocupam-se com o futuro. Neste instante, mesmo que furtivo, saem do presente.
Isso é o versa a próxima sentença da história. O indivíduo quer partilhar, mas chega
uma hora que se cansa de tudo, vai para sua casa e quer deitar na cama, sofá, ou
mesmo no chão e pensar, dormir, enfim, ficar só. Dane-se o resto. Ele sente sim um
prazer imenso na partilha do mundo, mas para ele o termo que vale mais até antes
da vírgula é o prazer. Para si. É dizer que ele não está o à vontade para cruzar
indiscriminadamente pelas vielas dos outros corpos que dividem com ele um
pedacinho de terra. Ele sente angústia, e corre para tentar resolvê-la. Utilizando,
sem questionar, os recursos disponíveis para isso. Se ajudam - mesmo que de modo
efêmero - ajudam, basta crer.
O individuo comunga seu hiperindividualismo. Ele ajuda aos outros e ao
planeta com a mesma intensidade que se fecha sobre si mesmo e esquece que eles
existem.
As imagens, neste ponto da história, são benéficas porque trazem a ele o
menu do mundo de forma rápida e eficiente.
Ele se diverte bastante. Mas sofre na mesma medida. Ele se liberta através
do consumo. Que o escraviza.
O hipernarciso tem horror à morte, isso configura sua dor e causa seu prazer
quando consegue um anestésico potente que alivia instantaneamente o horror. Mas,
pensando bem, em que época da história se teve adoração a ela e vontade salivante
de chegar ali o quanto antes? Hoje ele tem recursos para ser (quase) sempre
adolescente e jovem (salvo quando se exagera no botox e se fica mais monstruoso
que bonito). Nada mais justo. Afinal, atualmente a expectativa de vida gira em torno
193
dos 72 anos (Brasil) e considerar-se adulto - e sisudo - partir dos 30 anos,
aproximadamente, é passar metade do tempo gozando da juventude e a outra se
curvando diante da bengala, contando rugas e os minutos do relógio até a chegada
daquele carro quadrado que leva direto às portas do céu. Se o corpo pode, onde
está o problema em esticar o frescor até os 50, 60, ou mais? Existe algo mais chato
do que ser um decrépito? Se é possível não ser, alguém gostaria de ser? Ou não se
trata de uma questão de escolha?
O indivíduo hipermoderno pensa: tenho medo da morte, sim! E quem não
tem? Acho feio ser velho, sim! E quem o acha? Ele não disfarça suas angústias e
segue em busca dos melhores especialistas ou maiores carnês para a satisfação
desta – por que não – primeiríssima necessidade.
A história, assim, passa do ser enquanto passivo para aquele que imerge num
todo irreversível(mente orgiástico) e que depois sai sozinho sacudindo os pés e
batendo nos ombros. Quer fazer saltar imediatamente a poeira da troca libidinal e ter
a chance de espantar com ela qualquer risco de infecção. Sim, as poeiras s-
modernas contaminam muito.
A imagem, assim, passa de agente de captação da inteligência da massa a
agente de aniquilação da massa (com seu consentimento). Assado o bolo, a imagem
oferece seus pedaços a todos que partilham seu sabor, mas é forçada a trazer o
melhor e maior pedaço no prazo mais imediato possível para o EU comer. Se
saciada a fome e disponível o tempo, o EU pode ajudar, na forma de partilha das
migalhas que sobraram. Afinal, tanto melhor se acabou a época na qual se pregava
a necessidade de dar exatamente o que se precisava para ser mais misericordiosa a
doação e mais próxima de “paraíso” a palavra a ser ouvida na seletiva após a
largada para o alto da vida terrestre.
194
LOGOSFERA (após a escrita), GRAFOSFERA (após a imprensa)
VIDEOSFERA (após o audiovisual). PRESENÇA (transcendente),
REPRESENTAÇÃO (ilusória), SIMULAÇÃO (computadorizada). O SANTO (eu sou
sua salvaguarda) O BELO (eu lhe dou prazer) O NOVO (Eu o surpreendo).
ATRAVÉS DA IMAGEM (a vidência transita), MAIS DO QUE A IMAGEM (a visão
contempla) SOMENTE A IMAGEM (a visualização controla). A INTOLERÂNCIA
(religiosa), A RIVALIDADE (pessoal), A CONCORRÊNCIA (econômica). Tradução:
na logosfera a imagem era vidente, salvaguardava o homem por carregar consigo a
transcendência num momento de práticas religiosas e relações de intolerância. Na
grafosfera, a imagem é vista porque dá prazer, é contemplada por representar algo a
mais do que si mesma, no centro de relações de rivalidade pessoal. Na videosfera, a
imagem é visualizada porque surpreende, nada aparece além dela em si, na chama
de uma concorrência econômica.
A imagem, novamente, é boa. Sempre é boa. Anteontem, ontem e hoje. O
problema é que foi corrompida pelo homem. Seja por aquele que vive catatônico
diante dela, por aquele que não se diferencia dentro dela, ou aquele que retira
dela somente o que lhe apraz. Ou então por aqueles que esquecem que a vida está
do outro lado das teorias. Quem está mais próximo, considerando que ela exista, da
verdade?
Juremir Machado da Silva debateu e escreveu com muito mais eloqüência,
talento e pontaria esta temática. Certa vez revelou que hoje existe o hiper-
espetáculo. Ou seja, ninguém (e todos) dos mestres aqui citados teria razão. Hiper-
espetáculo seria:
(...) a vitória da imagem à la carte, pay-per-view ao alcance de todos contra a
arbitrariedade de uma emissão de massa. No hiper-espetáculo, como
195
imaginário da fama, a visibilidade ofusca o seu negativo. O conteúdo pode ser
preenchido com silicone. Afinal, estamos no pós-humano e nada impede que
o saber seja uma prótese. O importante é fazer parte da tribo dos famosos,
comungar os valores da celebridade e celebrar o valor simbólico. A sociedade
“midíocre” é uma interminável revista Contigo. O hiper-espetáculo é a
conjugação da aneroxia com o silicone. Mais e menos (2007, p. 37).
O espetáculo “repaginado”. Nada mais justo para ele numa atualidade que
recicla o velho tornando-o objeto de luxo. O passivo está no poder, finalmente. Está
no controle – remoto. Ele fica sentado no sofá porque é mais confortável e higiênico
que a grama úmida. Adora as estrelas porque elas são realmente adoráveis. E mais,
pode-se ser como elas. Basta procurar na prateleira certa.
Hiper-espetáculo conjuga tudo. Menos a revolução. Nisso é taxativo, abaixo
as arbitrariedades!
Hiper-espetáculo é a novela das oito mostrando um personagem pobre-mas-
limpinho que inventa uma música e passa a ser o famoso. Como todo famoso que se
preze, uma aparição no Domingão do Faustão é inquestionavelmente a prova do
sucesso. A novela sabe disso, então o garoto vai até o Faustão. A novela imita a
vida. Depois disso, como é terça-feira, aparece o Casseta & Planeta imitando a
novela na cena que imitava a vida.
Confusão: o personagem alcançou sucesso e por isso foi ao Faustão que
sempre mostra os famosos, mas dessa vez não mostra porque está dentro da
novela que evita a fama porque imita a vida. Então a vida que está no sofá
contempla o espetáculo que é um decalque da vida mostrando a vida contemplando
o espetáculo. E depois a vida que está no sofá contempla o espetáculo que é um
decalque da vida contemplando o espetáculo que é espetacularizado pelo
espetáculo que é uma ironia da vida. Hiper-espetáculo, tá na cara.
196
O hiper-espetáculo é não lembrar mais do número de telefone de ninguém. E
tomara que não avarie o gadget que os contém. E tirar foto de si mesmo tirando foto.
E chegar num balcão de atendimento qualquer e ser “convidado” a voltar para casa
e mandar um e-mail. É aparecer, desaparecer, simular, passar adiante. E,
principalmente, não tentar entender.
Foi o consumo quem começou toda esta história. Ele alimentou o ser que
alimentou a imagem. Que, por sua vez, alimentou o ser que alimentou o consumo e
mudou a história. Estas construções frasais são difíceis. De escrever e de pensá-las.
Mas não é puro jogo de palavras para gerar efeito, parecer inteligente. É verdade.
Tudo acaba, quando se ouviu falar qualquer coisa sobre um tal de imaginário, na
história do ovo e da galinha. Ou num esquema cheio de setinhas:
Figura 37 – Espiral do Imaginário
197
Existem vários intelectuais. E um batalhão de gente (a maioria que habita o
mundo) que nem sabe o que vem a ser um intelectual. Portanto, em primeiro lugar,
não esperam nada, vale ressaltar. Não resolverá passar dias e dias enfurnado num
quarto destrinchando as mais cabeludas teorias para deixá-las num formato
atualizado e compreensível. Porque se garante que o Seu Maicou, aquele auxiliar da
construção civil, que carrega tijolo morro acima, segura o carrinho de mão cheio de
cimento morro abaixo e ainda “faz bico” de vigia no final de semana, não está
aguardando que o tal erudito bata a sua porta e ofereça a ele ginas e ginas do
seu manual “eis como vejo o mundo”.
Ele nem sabe ler ainda, cabe dizer. Apenas decorou o desenho do seu nome
e reconhece os números. Não os das horas, pois para ele é preciso “ter cabeça”
para compreender o que significa 13, 14, 15 horas e, principalmente, o que quer
dizer o “meia” de, por exemplo, duas e meia. Sem contar o entendimento dos 60
minutos contidos numa hora, que... ai, melhor parar por aqui. Mal ele sabe que
existe uma tal de geometria espacial.
Ele espera que bata à sua porta, isso sim, seus amigos prontos para “aquela
pelada” de fim de tarde, campo de barro, cerveja ou cachaça no final, depende do
tempo, quente ou frio. Ou quem sabe o pagode à noite, com feijoada. Também pode
esperar que seus cinco filhos o parem de zunir, sumam da sua frente, que sua
mulher morar com sua sogra, para poder ligar alto, mas bem alto o som, ouvir
suas músicas sem ninguém para importunar, para o utilizar palavrões. Casa de
dois cômodos e mais que o triplo de gente irrita na maior parte do tempo.
Ele, o Seu Maicou, gosta dos cartazes de propaganda de cerveja que colorem
os monocromáticos botecos de sua vila. - Aquelas gostosas... mmm.
198
Ele também gosta de saber que naquele dia, naquele canal, naquele horário,
aquele personagem vai repetir exatamente a mesma coisa (o mesmo bordão,
sussurra-se aqui). Ele gargalha. E gargalha. E repete pros colegas de trabalho
durante a semana. Esperto e atualizado.
Contudo, naquele dia, naquele canal, naquele horário em que aquele
apresentador de telejornal apresenta a cotação do dólar, ou as quedas ou altas da
bolsa de valores de sabe-se lá qual lugar ele está tão absorto empunhando sua
colher que nem pensar em distinguir onde está o arroz, o feijão, o bife e o ovo frito
na profundidade do seu prato ele quer. Mastiga e mastiga. Debruçado sobre a mesa
pra não se cansar. Detalhe: ele está quase na elite do mundo, pois tem esta
oportunidade de cardápio.
Filmes de ação, terror, lutas marciais, pornôs, comédias escatológicas. De
tudo ele gosta. Compra no centro os DVDs. Às vezes consegue dois pelo preço de
um. E gravados no mesmo disco. Que, graças ao progresso, não necessita ser
virado, nem rebobinado!
Ele fica realmente incomodado quando sente dor de dente ou qualquer outra
dor e precisa ficar horas, dias, semanas para ser atendido e encaminhado para outro
lugar que irá reencaminhá-lo para outro lugar que o atenderá. Toma os remédios,
por sorte melhora, consegue voltar ao trabalho e está tranqüilo novamente.
Passou. Está bem de novo. E bola pra frente. Uma espécie de memória curta
seletiva o ajuda potencialmente nestas horas.
Ele não tem computador. Mas um dia terá. Não sabe ainda que pode
conseguir dar vazão para as fotos que abarrotam sua máquina fotográfica, mas
talvez num futuro próximo venha a saber que este é o motivo pelo qual ela não
funciona. cheia. Por enquanto, sem conhecimento, computador e dinheiro para
199
levar à assistência técnica, fica sem registrar a imagem da sua família nas festas.
Por um lado foi providencial este “pifar” da máquina para sossegar os meninos que
passavam horas virando o olho da câmera contra seu rosto e tirando incontáveis
fotos de seus rostos de criança metidos a machões. Não estavam nada baratas as
pilhas. Se bem que os guris juntavam lixo seco e vendiam-no para adquirir este tipo
de necessidade pessoal.
- Quer suas coisas, trabalhe para conquistá-las! Esta era a proposta
pedagógica do Seu Maicou.
Mp3 e seus derivados. Sites de relacionamento pela internet. - Êita linguagem
estranha essa! Do primeiro nada sabia, nada. O “três em um” potencializado era
ainda insubstituível. Do segundo, o nome internet não lhe era estranho. Ouvira dizer
ser possível “tirar” coisas dali. Do tipo “tirar” o CPF (Cadastro de Pessoas Físicas).
Ou renovar. Enfim, mais ou menos isso ele conhecia.
o Vitor, quanta diferença. Seus pais possuem duas daquelas carreiras que
garantem estabilidade e um bom salário no bolso. Pelo menos bom para manter o
apartamento novo num bairro nobre da cidade, cercado de verde e de segurança,
sem contar os dois carros, a casa da praia, o apartamento na serra e toda a gente
que precisava circular para fazer tudo isso funcionar.
Vitor estava sempre nas baladas mais iradas. Vez por outra era clicado e sua
foto aparecia nas páginas do jornal destinadas a fazer ali aparecerem as pessoas
que devem ali aparecer. Cinco salários mínimos carregava de panos exclusivos
distribuídos pelo corpo. Fora: relógio, óculos de sol, carteira, cinto, celular, lentes de
200
contato e aparelho ortodôntico. Se mochila carregasse, então... a mesada contida no
cartão do banco e o limite do cartão de crédito não contam no cálculo.
Quando o estava em festas, nem na escola, nem cumprindo algum
compromisso ridículo com a família estava curtindo seu videogame, atualizando
seu perfil no orkut, conversando no msn, pesquisando novos acessórios para sua
bateria, mandando e-mails para alguém cujo sigilo da conversa era imprescindível.
Já passara da fase de fazer jiu jitsu quatro a cinco vezes por semana,
atividade iniciada ainda nos tempos de freqüentar os escoteiros, também daquela
que ignora a função do alimento. Sempre venceram, para ele, as “porcarias”. Agora
era tudo diferente. Ele, por namorar uma adoradora de vegetais, passou a detestar
as carnes e a fazer uma malhação mais “intimista”: musculação, contenção das
forças, e contemplação do detalhe nos espelhos que serpenteiam cada aparelho.
De-tes-ta-va programas de auditório, principalmente aqueles de bordões, ou
melhor, a programação água-com-açúcar da TV aberta. Mal conseguia dar conta de
assistir os mais de 300 canais que sua assinatura contemplava. Precisava ver 10
canais por dia, no mínimo, para usufruir de tudo antes da chegada do próximo
boleto. Gostava muito dos programas que mostravam grandes desastres ou
experiências bizarras feitas por seres humanos. Um dia quase “morreu de tanto rir”
vendo quatro jovens, três deles filmando o último a vomitar um punhado de fatias de
pizza numa bacia e a comer tudo de volta. Sensacional, bizarro, divertido.
Adorava sua cachorrinha, mas não sua mãe quando impunha ser ele o
responsável por levá-la para o banho, a tosa, o corte de unhas e, principalmente, a
escolha do modelo que vestiria naquela semana. Era poodle, a raça. Absolutamente
despreparada para sair de casa com um menino-homem. Para abrir mão do mico,
negociou uma “tele-busca-pet” por justificar tempo curto para tanto curso: Inglês.
201
Bateria. Terceiro ano diurno com pré-vestibular. Simulões e simulões. Breve
escolheria sua carreira e tiraria sua carteira. Esperava ansiosamente para a chegada
do verão e do final desta empreitada para poder surfar durante mais de dois meses
no intervalo de todas as suas obrigações.
Todas as curiosidades que tinha sobre o mundo quase sempre eram
resolvidas pelo google. Salvo quando via com seus próprios olhos as diferenças de
relevo, clima, cultura, cheiro, cabelos, peles, sotaques, línguas, sabores ao viajar
com seus pais.
Vitor, não fosse sopa o cardápio, sempre comia em prato raso e segurando
garfo e faca (esta nem sempre, por favor). Cotovelos: nunca! Antebraço: às vezes!
Braços no colo: sempre! Sua mãe sempre repetia ao pescar qualquer deslize à
mesa. Vitor tinha sobremesa para finalizar todas as refeições, exceto no café-da-
manhã. Vitor gostava de raves.
Vitor preferia duas horas do dia, em especial. Quando a empregada chegava
e tirava os pratos e copos sujos de perto do seu computador e de brinde ainda
arrumava sua cama e suas roupas. E quando ela ia embora, porque a casa ficava
vazia e ele podia, ao som de um solo a imitar, ensaiar exaustivamente as batidas
nos pratos da bateria. Os vizinhos só não enlouqueceram com o barulho porque ele
possuía um quarto específico para isso, com revestimento acústico 100% eficiente.
Seu problema era que o quarto, mais comprido que largo, abrigava a bateria de
forma atravessada e ele, portador de seus 1,93m de altura e braços a ela
proporcionais, não podia caprichar na envergadura porque acertava em cheio à
parede. Isso foi motivo de muita discussão em casa, por sinal.
202
Estes dois homens o apenas dois dos que habitam o mundo. Podem ser
classificados nos diversos “segmentos de mercado”, como parte X, Y e Z da
sociedade, mas o que interessa mesmo é que vivem.
Jeitos, costumes, vocabulários, posses, poses: tudo diferente. partilham o
mesmo momento que estão vivos no mundo. Ambos parecem totalmente adaptados
às suas realidades. Felizes, tristes, querendo mais disso, menos daquilo.
E a imagem, o que faz deles? Ou a eles? O que é igual? O que é diferente?
Onde está o espetáculo, o simulacro, o tribalismo, a hipermodernidade? E o hiper-
espetáculo?
Ao que parece, em se tratando desses conceitos, como de todas as outras
coisas da vida, não se pode ter tudo.
Seu Maicou e Vitor gostam das imagens: que gostam. E se o mundo está
cheio delas tanto melhor. Aglutinando aqui imaginativamente todos os outros perfis
que vivem por será que surgiria algo capaz de contrariar esta constatação? A
televisão generalista de Dominique Wolton não foi capaz de convencer, ainda.
A vida de todos os dias é demasiado atribulada para se ficar perdendo tempo
com mazelas teóricas, gritam as vozes daqueles que se situam do outro lado da
linha dos livros. Outro momento de sabedoria rüdigeriana: quem pensa não vive!
Quem reflete sobre o mundo acredita que ele é sempre muito pior do que
talvez o seja na realidade de todo e qualquer dia. Ou ao contrário, muito melhor.
As pessoas sofrem e se divertem. Unem-se até a eternidade do dia seguinte.
Vegetam. Conspiram. Elas, ao contrário dos computadores, sentem inveja, dizia
Baudrillard. Eles, estes seres incontroláveis, erram. Será que alguma nova
configuração técnica/tecnológica, imagética do mundo pode salvar o homem de sua
203
“estupidez natural”? Aquela, cabe ressaltar, que sempre, mas sempre deixa algo de
fora, algo que escapa à totalidade de qualquer tentativa de categorização?
Parte maldita é a imagem. Ou seria mesmo o homem?
Para Bataille, o princípio da perda é a parte maldita. É a essência do
indivíduo, é seu mundo íntimo que difere da realidade:
O mundo do sujeito é a noite: essa noite movente, infinitamente suspeita, que
no sono da razão engendra monstros. (...) Do ‘sujeito’ livre, de modo algum
subordinado à ordem ‘real’ e estando ocupado somente com o presente, a
própria loucura dá uma idéia suavizada.
(...) Se não me preocupo mais com ‘o que será’, mas com ‘o que é’, tenho
razão para guardar alguma coisa com reserva? Posso imediatamente, em
desordem, fazer da totalidade dos bens de que disponho um consumo
instantâneo. Esse consumo inútil é ‘o que me agrada’, tão logo seja suprimida
a preocupação com o amanhã.
E se assim consumo, sem medida, revelo a meus semelhantes aquilo que
sou intimamente: o consumo é o caminho por onde se comunicam ‘seres
separados’. Tudo transparece, tudo é aberto e tudo é infinito entre aqueles
que consomem intensamente (BATAILLE, 1975, p. 97).
Entre um ser e outro existe um abismo. Que é suplantando pela consumição.
Sexo. Luxo. Desperdício. Tudo isso oferece conexão. Isso, segundo o autor, é
instrínseco ao homem. É tão, mas tão belo o que escreve, tão convincente, tão óbvio
que, juntamente com o imaginário, esta teoria é uma espécie de chave mágica que
liberaria o homem de qualquer tipo de prisão. Sempre além, o homem. Mesmo
quando se mostra aquém. por isso é preciso abrir todos os conceitos, melhor,
todas as noções e deixar que se irradiem umas sobre as outras.
Aquele que não guarda nenhuma reserva “abobadeia-se” diante da tela.
Vitória do espetáculo. Mas porque o Seu Maicou nunca irá até a China não
204
significa que as imagens vistas dela através da tela não possam gerar nenhum
conhecimento. Derrota do Debord.
O Vitor pode viajar até a China, mas prefere ver suas imagens na tela. Vitória
do simulacro. Depois da excursão virtual, pede um China in box, combina
desastrosamente com um vinho, mas impressiona a gatinha porque conseguiu abrí-
lo sem quebrar a rolha. Derrota do Baudrillard.
O seu Maicou o perde ao Zorra, mas para zoar com amigos, seja no
“churrasquinho na laje” ou na Sessão de Descarrego feita uma vez ao mês. Vitória
do tribalismo. Ele, longe destas alegrias, dentro de algum canto dentro de si,
acocora-se e lamenta o destino, sente vontade de acabar com tudo, ignorando o
grito de sua mulher: “o rango tá na mesa“. Derrota do Maffesoli.
Vitor, desde que a TV de plasma do home theater esteja liberada no horário
do seu programa trash e que a NET não o sacaneie com uma ausência de sinal...
que o próximo aparelho da seqüência de exercícios da musculação não esteja
ocupado... que os acessórios da bateria não demorem muito para chegar de São
Paulo... que a sobremesa não seja arroz de leite... e que o cabelo o queira ficar
desobedientemente arrumado... sente-se bem. Vitória da hipermodernidade. Mas
Vitor passou a se sentir melhor quando ganhou de presente de uma tia um primo
que seria, sete meses depois, seu afilhado. Ele se emocionou. o entendeu muito
bem as razões, mas se sentiu pertencendo a alguma coisa da qual é responsável.
Sentiu com a alma. Alma solta. Para sempre. Derrota de Lipovetsky.
De maneira geral, de todos os autores pode ser isso depreendido: seja pela
força da presença generalizada no mundo, pela evidente adesão, mesmo se julgada
boa ou má, atualmente o relacionamento imagem-homem-mundo deixou de lado as
cerimônias. Elas estão aí, abundantemente aí. Para se fazer delas o que se bem
205
entender. Curtir. Editar. Contemplar. Visualizar. Rir. Odiar. E ignorar. Elas só
ganharam poder na medida em que foram promovidas, deixaram de ser um objeto
distante e se tornaram próximas e capazes de interagir “de igual para igual” com o
homem. Sem que disso, do ponto de vista do Maicou ou do Vitor, represente
nenhum juízo benéfico ou funesto.
A imagem despenca das alturas e deixa mesmo, talvez, de ocupar um lugar
destaque no carro alegórico do sentido. Hoje se tenta de tudo para suprir as
angústias trazidas pelo sentimento de incompletude inerente ao ser. E se tenta
completar o que falta com imagens.
Buscar o melhor, ousando ser melhor (diante das ofertas disponíveis) e
agindo sem muito perfeccionismo na “construção de um mundo melhor”. Ou
aceitando o pior, na mesma. É o movimento que sai do homem e corre pelas
ladeiras do consumo das imagens.
As imagens, pensando em Debray, Durand, Debord, Baudrillard, Maffesoli,
Lipovetsky, Seu Maicon e Vitor, são diferentes. E elas ascendem no indivíduo uma
vontade de uso pessoal, por mais que se trate de uma imagem que está sendo
alimentada pelo grande fomentador de cada contexto, o imaginário.
Hoje a imagem parece representar tantos papéis quanto dela se quiserem
obter. Ela registra, sacraliza, dessacraliza, mostra o outro, o longe, seduz, repugna,
tudo numa concorrência interna que a faz estar sempre na velocidade máxima na
esteira dos pixels. Ganhou humanidade, parece, a imagem. Ela quer, como qualquer
um, ser melhor, mais bonita, nítida até mesmo no mais imperceptível grânulo. Tudo
isso para satisfazer seu cada vez mais exigente senhor, o homem. Ele a quer mais
bela porque lhe agrada e, além do mais, prazer esta correria atrás da forma
perfeita. A imagem liga este “novo ser” a este “novo mundo”. Nunca deixando de
206
“ficar ligada em si mesma. Confere as unhas, endireita a postura e segue, à la
Bündchen, serpenteado as passarelas da vida ao ritmo do flutuar dos cílios.
As imagens são diferentes (suportes) e se relacionam com pessoas diferentes
de maneiras diferentes num mesmo contexto. O seu Maicou pode ter muito, mas não
totalmente, da característica passiva proposta por Debord. Assim como o Vitor pode
ter muito, mas o totalmente da neutralizante indiferença escancarada por
Baudrillard. Assim, ambos têm muito, mas não totalmente uma vivencia comunhal
através da imagem. Até o ponto em que ela os aborreça e eles partam sozinhos -
mas empunhando a passagem de volta - para catar encardidos nas pregas escuras
dos seus umbigos.
Que mulher hesitaria diante da possibilidade de ver nuzinho em pêlo o Brad
Pit porque presenciou esta cena numa revista? Que mulher tomaria o real pela
imagem?
Que mulher deixaria de sentir-se atraída ao vê-lo assim, como veio ao mundo
que um pouquinho maior, porque o desejo, a sedução está longe, no que
fica oculto? Que mulher acreditaria que o real, o “re-al”, não estaria ali, em carne,
osso e músculos?
E que mulher, diante de tamanha cena, sem nenhum deslize nos
questionamentos anteriores, optaria por partilhar o garoto com as amigas ou
desconhecidas, ou homens, mais que homens difícil listar as identidades sexuais
de hoje em dia – pelo simples prazer do sentimento em comum?
E que mulher, por fim, olharia para aquilo tudo e preferiria não se atrasar para
o body jump na academia porque simplesmente não se decepcionaria faltando à
malhação do dia?
207
Parece, antes de tudo, que o poder de penetração da imagem no mundo é
inversamente proporcional ao do homem quando quer fazer qualquer coisa que não
diga respeito a ela. Por que não pode - definitivamente não pode - haver mulher que
não se contente com o Brad nu, aos seus pés, para servir e proteger.
“ELE”.
Meramente ilustrativa a imagem.
Com certeza.
Figura 38
Pensar é não viver. Defendem alguns. Quanto mais perto do cotidiano, menos
capacidade reflexiva, então. Dualismos que se querem excluir. Está todo mundo
errado, a bem da verdade. Todos exageram.
Mas acertam na mesma medida. Isso que complica a análise.
É possível estabelecer um conhecimento que promova a união do pensar e
do viver nem que sirva somente para enfatizar matizes, reflexos, névoas, véus,
luzes, sombras. Para, sinceramente, complexificar.
208
Mesmo que esta consideração parta de alguém que sentiria prazer em
colocar um ponto final na discussão. Uma pena não ser possível. Seria a chave do
sucesso.
Contudo, termina-se este texto promovendo mais uma versão da tese 04.
Menos glamorosa, menos enfática. Talvez até imprecisa. Mas somente mais uma
apresentação de idéias para quem deseja e se interessa nesse assunto pensar:
O planeta tela não é um conjunto de imagens
Mas uma relação (des)encanada
entre pessoas, bichos e máquinas
mediada (também)
pelas imagens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender o que a imagem representa na sociedade contemporânea a
partir das idéias distintas de quatro autores sobre a temática não foi tarefa fácil.
Intensos mergulhos em raciocínios diferentes, próximos, sutilmente destoantes,
complementares, díspares, enfim, uma entrega a universos singulares levou o
pesquisador a transformar-se constantemente ao longo da relação.
Deixar as opiniões de lado para poder “fazer falar” cada autor, percebê-las
modificadas ao sair de cada um deles, perdê-las logo em seguida, aumentar a
angústia ao invés de dissolver a cada novo cenário apresentado, tudo fez parte
desta caminhada. Muito mais do que resolvida uma questão, terminada uma
proposta de trabalho, testada uma teoria” é o caminhante o maior “agido” por todos
os percalços enfrentados nessa jornada. Talvez o maior ganho obtido ao se chegar
ao final foram as flexibilizações ocorridas no próprio pensamento.
Nem se sabe, é importante salientar, se foi possível cumprir a tarefa
devidamente. Pois o caminho do pensamento é cheio de atalhos, buracos, retas,
curvas, desvios. Controlar seu rumo foi mesmo impossível, apesar de não ter sido
esta a intenção.
Era pretendido fugir das delimitações, especificações, principalmente aquelas
que buscam uma reflexão asséptica capaz de descarregar no mundo páginas e
páginas de um saber pretendido imparcial e universal. Optou-se por outro viés.
Diversificar, fazer surgir dúvidas, enfrentamento reflexivo. Premissa que parece ideal
para uma discussão mais “aberta” sobre o social, mas que ao mesmo tempo traz o
210
receio de não ter sido amparada satisfatoriamente. Mas se sabe, no entanto, que
nenhuma incursão é capaz de dar conta de uma exploração do social sem sair dela
com mais questionamentos.
A percepção de certo vitalismo na imagem, ou seja, uma capacidade,
potência, um poder de embrenhar-se no social e fazer surgir da relação com o
homem uma espécie de “compreender-se no mundo” e também uma reconfiguração
das perspectivas diante deste mesmo mundo levam-na a ocupar lugar central no
decorrer da história.
A arquitetura debord-baudrillard-maffesoli-lipovetskyniana” evidenciou esta
posição. Mostrou que a imagem atualmente serve para acessar o mundo, tentar
possuí-lo, comungar com ele, servir-se dele, sem considerar as mais diferentes
conclusões tiradas a partir de cada observação. Através da imagem, o homem
pensa conhecer uma realidade distante. Através da imagem, o homem acredita ter
conquistado o poder de ver uma realidade até então velada. Através da imagem, o
homem partilha o mundo, se conecta com um todo maior que é a essência da sua
natureza. Através da imagem, o homem conhece os recursos que a nova realidade
dispõe e escolhe pelo que considera mais apto a suprir suas necessidades de prazer
ou de eliminação de suas angústias.
O mundo transforma-se, assim, em algo visível que pode ser acessado e
sentido pelos olhos. Se por anos os homens buscaram através da imagem o
Sagrado, o Belo, ou o Novo, talvez se possa dizer que eles buscam através dela o
real. A realidade. o aquele real transformado num conceito capaz de atravessar
gerações, mas aquele real enquanto “a coisa mais próxima que se pode ter a cada
instante”. Talvez seja mais apropriado dizer que, ao invés de buscarem esse “real”,
simplesmente vivem-no através da imagem.
211
Contudo, cada autor estabeleceu uma sólida reflexão acerca das
conseqüências acarretadas por estes novos “usos” que o homem faz da imagem.
Para Guy Debord a imagem CONSEGUE ENGANAR o sujeito. Ela o torna um
ser dominado pelas lógicas do espetáculo, é levado (quase) definitivamente para
diante da tela e perde as referências de um real que, para o autor, está num lugar
não transmitido através da imagem. Para Debord a imagem ocupa lugar central, mas
isso deve ser exterminado. As pessoas, para ele, precisam inverter as lógicas
capitalistas do mercado para gozarem da natureza que não é vivida, com certeza,
através das telas.
Jean Baudrillard acredita que a imagem CONSEGUE ABDUZIR o indivíduo.
Para ele, se perderam definitivamente as capacidades de eliminação do sistema
político e econômico e com isso não se tem mais esperanças de sair do planeta tela.
Nesse mundo cheio de imagens, mas vazio de encantos, a imagem e todas as
outras referências que propunham relações dialéticas estruturantes do social são
eliminadas em favor de uma performance que finge um real, um ser, um valor,
através de outras imagens. Aquelas que eliminam todos os interstícios do mundo
para a obtenção de uma transparência definitiva.
Michel Maffesoli acredita que a imagem CONSEGUE LIBERTAR a persona
para usufruir de um social plural. Para ele as imagens ajudaram a transformar um
contexto marcado pela perspectiva da linha reta, da razão, da separação bem
delimitada entre sujeito e objeto. Sem contar na separação entre indivíduo e
indivíduo que ali, distantes, mas fazendo cada um uma pequena força, era capaz de
garantir a criação de um toda uma nação. A imagem abriu as fronteiras das nações,
das economias, inclusive as de si mesmo. E uma nova maneira de se relacionar
mostrou que as personas, através de suas intensas misturas, nada pretendem além
212
da vivência de instantes que juntos adquirem força necessária para movimentar o
societal.
Gilles Lipovetsky acredita que a imagem CONSEGUE PROPICIAR ao
hipernarciso a busca pelo que mais lhe agradar. Sabendo que a satisfação também
está longe dali. As imagens funcionam como um cardápio do mundo, elas fornecem
as mais diversas propostas de satisfação. O indivíduo, agora liberto das antigas
sentenças impostas pela modernidade, passa a se posicionar mais firmemente
diante de um mundo, diante de si, pois pode usufruir destas instâncias das maneiras
como quiser, motivado pelos mais diferentes sentimentos, dentre eles, o prazer ou a
dor.
Se fosse possível tensionar as análises colocando em cada ponto de vista
elucidado a imagem como ser pensante, como podendo falar, o que se poderia
depreender?
Será que entende o homem enquanto o objeto de sua sujeição? Será que
está mentindo deliberadamente e está torcendo para que ninguém perceba a trama,
caso contrário será seu fim?
Ou será que é uma imagem clone, a réplica “sem alma” de sua falecida irmã
e, por saber que é uma cópia malfeita, tornou-se vingativa e criou a armadilha
perfeita para neste mundo, sozinha, triunfar?
Quem sabe nada disso faça sentido e ela apenas, por aparecer nas mais
diversas circunstâncias e utilizando diferentes roupagens, tornou-se pretensiosa,
cogitando possuir mais importância e poder do que os homens acreditam que ela
tenha?
Ou então ela tenha sido mais e melhor produzida apenas para servir a seu
mestre, o homem, deixando-o livre para transitar por uma realidade diferente que
213
não dependeu dela para se formar, somente precisa dela, às vezes, para poder se
situar?
Qual é a raiz libidinosa que perpassa estas reflexões? No primeiro caso, a
imagem “possui”, no segundo “determina”, no terceiro se “funde” e no quarto se
“relaciona”, mas de forma subordinada.
Depois das explanações acerca das idéias dos autores é possível dizer que
(lembrando das teses 04 descritas no capítulo anterior) um conjunto de imagens,
pelo simples fato de ser produzido e transmitido no mundo, não determina o social.
Somente adquire sentido se considerado em relação. Isto porque ela, a imagem, em
relação com o homem, PRODUZ efeitos. Os mais diversos, como se viu. Ela age,
faz alguma coisa.
O problema está em deduzir qual é o efeito. Ou seja, saber o que configura
atualmente. É o espetáculo? O simulacro? O tribalismo? A hipermodernidade? Outra
proposta que não foi considerada aqui?
Entender que a imagem representa um papel de mediadora atualmente no
social é praticamente óbvio. Pensar que medeia o homem e o mundo porque
simplesmente se almeja ter acesso através dela a um real que é o fruto do instante
da conexão, sem nenhum apelo transcendente, é uma interpretação possível depois
das observações propostas por cada autor. O problema escorre, então,
definitivamente, para a conseqüência desta mediação. Pode ser tudo o que se
comentou ao longo desta pesquisa e nada disso ao mesmo tempo.
A segunda linha do tulo desta tese advertia: “paradoxos da sociedade da
imagem”. Quais são os paradoxos, afinal? Ao que parece, são as possibilidades de
se deixar levar pelo (espetáculo), de se anular no (simulacro), de partilhar no
214
(tribalismo) e de estar em posse da (hipermodernidade), tudo convivendo ao mesmo
tempo. Sendo permitida pela imagem esta nova relação.
Paradoxo da sociedade da imagem é também considerar que os paradoxos
anteriores em determinados momentos o delimitam a relação. Todos juntos,
alguns, nenhum, eles entram numa espécie de jogo de análise combinatória que
estrutura o social, mas são ultrapassados - mesmo que por instantes - por uma
potência que não se saberia aqui nomear, mas que amplia generosamente o campo
de visão.
Os quatro autores referidos aqui forneceram contundentes maneiras de se
refletir a imagem como capaz de propiciar alguma coisa no social. Principalmente a
reflexão de que a imagem pode desencadear “alguma coisa” e o seu contrario ao
mesmo tempo.
Isso ficou nítido quando recriada a tese 04 para Michel Maffesoli. foram
trocados alguns termos para tornar mais precisa a sentença, mas se apenas fosse
substituído o termo espetáculo pelo termo tribalismo - o espetáculo (tribalismo) não é
um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas
imagens - faria sentido para os dois autores. Contudo, a imagem no caso
debordiano, seria o agente de uma separação radical entre homem e homem,
homem e natureza, homem e real, enfim, sustentaria uma relação social que no
fundo nem existiria mais, pois tudo seria trocado pela sua imagem. No caso
maffesoliniano, é o contrário que ocorre. A imagem, conquistados recursos
tecnológicos que propulsaram sua presença no mundo, acabou com a diairética
moderna e fez retornar o mundo a um estágio primitivo de comunhão, de união, bem
mais complexo porque apto a fornecer os mais diversos totens através dos quais
comungar.
215
Qual proposição é falsa? Qual é a mais verdadeira? São contrárias, mas são
excludentes? A imagem não poderia ser pensada como fonte de união porque
separa?
Em outro ponto, o baudrillardiano, viu-se a força de domínio da imagem. Ela
apodera-se do mundo e elimina a possibilidade de usufruí-la, de pensá-la, de
manuseá-la, porque ela passou a preencher todos os espaços da vida e não se
pode optar por algo fora dela. Ela não separa, não une, ela contém.
Não existe, fora do simulacro, o real que Debord defendia existir fora do
espetáculo, tampouco existe a possibilidade de sedução, de jogo, de vivência
simbólica através dela como defende Maffesoli. Porque ela faz confiar que o real
está em seu campo de visão e não abre espaços para que o simbólico de apresente
como sempre foi, fruto do que o se pode ver, do que está para sempre contido
num segredo. É possível desprezar esta consideração? Ela anula as anteriores?
Para a perspectiva lipovetskyniana parece prevalecer o termo de separação,
a noção de indivíduo soberano no seu mundo. Ele, nada mais, importa. Mesmo que
se preocupe com o semelhante praticando voluntarismo, ou com o planeta nas mais
diferentes maneiras de protesto ou engajamento, faz tudo no momento que pode e
da forma como quer. A imagem o auxilia para que siga mais confiante no seu trajeto
finito no mundo. Sem referências ao real, ao simbólico, aos meios de propagação ou
a quantidade de imagens, Lipovetsky situa o indivíduo como o senhor a
experimentar como quiser o mundo com o auxílio da imagem.
O homem está mesmo usufruindo deste poder? Consegue se diferenciar tão
bem do seu semelhante e manter uma “distância equilibrada” com a imagem? Qual é
o elemento novo que traz em relação às outras proposições?
216
Recorrer a um exemplo, a uma figura, a uma “imagem”, para acalmar este
emaranhado de dúvidas pode ser útil agora.
Que paradoxo fica ressaltado quando se pensa num vídeo que mostra todo o
sistema digestivo do ser humano (em funcionamento), através de filmagens de alta-
definição? Quem olha está contemplando o espetáculo, aquele real falso que está
sendo mediado? Ou será que o espectador, por ver detalhes que, salvo a opção por
uma profissão que exija este conhecimento, permaneceriam ocultos, estaria no
simulacro? Ou nada disso, simplesmente entenderia o processo digestivo que
caracteriza sua espécie? Ou quem sabe veria este vídeo e julgaria irreais as partes
que lhe pareceram nojentas?
Todos ao mesmo tempo. Enquanto o indivíduo fica contemplando sua tela, ele
está consumindo um real que separa e o distingue do mundo, ao mesmo tempo em
que o coloca em relação, em comunhão com todos os seus semelhantes,
conectando-o à sua natureza. Além disso, sabe que existe algo aquém daquela
imagem, pois não compreende como poderia ser visível todo o processo, em tão
pouco espaço de tempo, em alguém que estivesse vivo. Teria que ser transparente,
a cobaia. O indivíduo também sabe que real, concreto, seria mesmo ver tudo
funcionando sem o intermédio da tela, mas não importa, porque ao vivo existe o
risco de uma cena chocante. Através da tela ainda faz permanecer um segredo, uma
carta na manga para um jogo que consegue estimular.
E quando este vídeo acaba e o sujeito se afasta da tela, o que resta desta
informação? Algum efeito danoso? Benéfico? Nada? O que resta?
O instante em que o homem está “fora” da mediação da imagem é “puro”?
Supondo que não, qual dos paradoxos prevalece? Ou melhor, deixa a marca mais
profunda? Supondo que sim, por que não percebe de longe as prováveis”
217
conseqüências negativas de cada um deles e transforma tudo numa outra coisa?
Algo que possua o conjunto das benesses da imagem nas suas diferentes
apresentações?
A imagem ocupa um lugar decisivo no contexto atual. Mas sua profusão não é
suficiente para definir o momento. Precisa ser percebida em relação ao homem, ao
que faz e ao que espera dela. Mas será, enfim, que o homem, aquele que o é
filósofo, sociólogo, psicólogo, antropólogo, midiólogo pensa que existem imagens?
Será que algum dia ele se diferenciou da natureza? Ou passou a acreditar que cada
época vivida era sua natureza?
Diferenciando-se ou não, a questão é que o pensamento sempre muda o
mundo. E muda porque parte de poucos hereges que têm a astúcia de tornarem-se
cânones. A sociedade atual, aquela que não possui um mito a servir de guia maior,
não ultrapassa, quem sabe, esta definição: é a presença de vários pensamentos
hereges que não pretendem ser nomeados como cânones, mas que em conjunto
formam a estrutura de um social definido também pela inquestionável onipresença
da imagem.
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