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VARIA DA SILVA
REVISITANDO O PASSADO
o papel da história na obra romanesca de Franklin Távora
ASSIS
2008
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VARIA DA SILVA
REVISITANDO O PASSADO:
o papel da história na obra romanesca de Franklinvora
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual
Paulista para o Exame de Defesa, como requisito final
para a obtenção do título de Mestre em Letras
(Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social)
Orientadora: Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti
ASSIS
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Silva, Valéria da
S586r Revisitando o passado: o papel da história na obra roma-
nesca de Franklin vora / Valéria da Silva. Assis, 2008
163 f.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Cncias e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Literatura brasileira. 2. Távora, Franklin, 1842-1888. 3.
Regionalismo na literatura. I. Título.
CDD 869.93
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço, com muito carinho a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram
para a realização deste trabalho.
À minha orientadora, Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, pela oportunidade concedida e por
vir me acompanhando desde a iniciação científica,
com seus ensinamentos, sua generosa compreensão e sua sabedoria sensível.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, pelo financiamento,
mas sobretudo pela credibilidade que deu ao meu trabalho, inclusive na iniciação científica.
À professora Dra. Heloísa Costa Milton, por sua apreciação
tão providencial no exame de qualificação.
À professora Dra. Ana Maria Carlo, pelas críticas
e sugestões e pelas reflexões suscitadas no exame de qualificação e na defesa.
À Ana rcia Alves Siqueira, pelas sugestões e o rico diálogo na defesa.
AHiroshi Maeda, Allan Alex e particularmente a Leandro Assis, que me proporcionou reflexões
valiosas nos diálogos que tivemos, compartilhando generosamente o percurso de um trabalho
artístico muito especial inspirado no romance de Távora.
À Nilma Gomes, pela amizade firme e bem humorada apesar da distância.
À Adriana Menezes Delfino, pelo carinho, companheirismo e torcida sincera.
A José Francisco de Souza Júnior e à Linda Catarina Gualda,
pelos momentos de alegria e descontração.
A Eiwalt, que sempre ajudou generosamente nas horas em quem não havia a quem recorrer.
4
À minha mãe, Maria das Graças da Silva
e à minha irmã, Flávia da Silva.
Minha imensa família, meu imenso universo,
meu imenso amor, incondicional...
Ao Fernando Simplício dos Santos,
Pela sua amizade e pelo seu amor, meu anjo da guarda.
5
RESUMO
O presente trabalho consiste em analisar três romances de Franklin Távora, com enfoque na
questão do subgênero romance histórico, bem como em outros aspectos de ordem estética que
estão direta e indiretamente relacionados ao assunto. O Cabeleira (1876), O Matuto (1878) e
Lourenço (1881) o as obras mais bem conceituadas pela fortuna crítica do autor, dados o
caráter polêmico, a importância cultural e temática e a inovação genérica que as caracterizam.
Um dos pontos mais polêmicos e discordantes é a questão histórica presente nessas obras:
muitos críticos vêem de forma negativa o recurso ao passado na construção do processo
enunciativo de tais obras, principalmente em relação ao projeto estético do autor. Por esta razão,
alguns as consideram como documentais, e outros, como romances históricos. Tais apreciações
críticas se dão, na maioria das vezes, de forma um tanto pejorativa. Por outro lado, História e
Literatura são hoje vistas como estruturas discursivas complementares. O presente estudo é,
portanto, uma proposta de aprofundamento da pesquisa já realizada sobre o estado da arte da
produção tavoreana, agora enfocando diretamente a obra do escritor a fim de contribuir com os
estudos sobre o autor.
PALAVRAS-CHAVE: Franklin Távora, O Cabeleira, O Matuto e Lourenço, romance
histórico, regionalismo.
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SU:
Ce travail se propose à analyser trois romans de Franklin Távora, tout en considérant la question
du sous-genre roman historique, ainsi que d’autres aspects d’ordre esthétique qui sont directe ou
indirectement liés à ce sujet. O Cabeleira (1876), O Matuto (1878) e Lourenço (1881) sont les
oeuvres les plus bien reçues dans l’ensemble de la réception critique de l’auteur, concernant le
caractère polémique, l’importance culturelle et thématique et l’innovation nérique qui les
caractérisent. Un des points les plus polémiques et discordants est la question historique
présente dans ces oeuvres-là: plusieurs critiques jugent de façon gative le recours au passé
dans la construction du processus énonciatif des oeuvres étudiées, notamment par rapport au
projet esthétique de l’auteur. C’est pourquoi quelques chercheurs considèrent ses oeuvres
comme documentales; d’autres, par contre, les envisagent en tant que romans historiques, ce
qui se donne, la plupart de fois, de façon quelque peu péjorative. On sait néanmoins que
l’Histoire et la Littérature sont aujourd’hui vues comme des structures discursives
complémentaires. Notre étude est donc une proposition d’approfondissement de la recherche
réalisée sur l’état de l’art de la production tavorienne tout en abordant directement
l’oeuvre de l’écrivain et ayant le but de contribuer avec les recherches sur l’auteur.
MOTS-CLÉS: Franklin Távora, O Cabeleira, O Matuto e Lourenço, roman historique,
régionalisme.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................................
INTRODUÇÃO
No meio de tudo, de tudo um pouco: os motivos de determinadas escolhas ......................................
PARTE 1
O MOSAICO CRÍTICO: A FORTUNA CRÍTICA DE FRANKLIN TÁVORA......................................
Panorama crítico..................................................................................................................................
O passado na berlinda..........................................................................................................................
PARTE 2
O SONHO E A MOLDURA: PROJETO ESTÉTICO E ARTÍSTICO.....................................................
Holograma de um ideal...............................................................................................................................
Despindo trajes desbotados.........................................................................................................................
“Literatura do Norte”: uma saga histórica...................................................................................................
PARTE 3
CAPÍTULO I — UM CANGACEIRO QUE VIROU LENDA E VIROU HISTÓRIA: O CABELEIRA..........
Vida que vira lenda: malfeitores também fazem (parte da) história..........................................................
História e tradição popular..........................................................................................................................
Reconstruindo um facínora: o pacto de leitura defensivo e as marcas de persuasão..................................
“Fitou-o como um anjo deve fitar um demônio que promete ser anjo”......................................................
Influências do romance histórico tradicional..............................................................................................
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CAPÍTULO II — UMA GUERRA NO TEMPO, OUTRA GUERRA NA VIDA: O MATUTO..............
Traços comuns: escolhido o excluído – os desviados no caminho da ficção..............................................
Embate no herói..........................................................................................................................................
Os que existiram e os que surgiram: outras marcas – personagens ...........................................................
Demarcando pegadas...................................................................................................................................
CAPÍTULO III A GUERRA COMO PRENÚNCIO DE NOVOS TEMPOS E COMO RECUSA:
LOURENÇO ......................................................................................................................................................
Diferenciais de uma perspectiva.................................................................................................................
A centelha chamejante: um sonho de liberdade..........................................................................................
Inversões e troca de papéis..........................................................................................................................
PARTE 4
HISTÓRIA E FICÇÃO COMO MARCA GERICA ............................................................................
Incompatibilidade de gêneros? Aproximações com o romance histórico...................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS
História e ficção: uma relação de cumplicidade..........................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................................
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................................................
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“Infelizmente, ‘pós-moderno’ é um termo bom à tout faire.
Tenho a impressão de que hoje se aplica
a tudo aquilo que agrada a quem o usa. [...]
Julgo, entretanto, que o pós-moderno não é uma tendência que possa
ser delimitada cronologicamente,
mas uma categoria espiritual,
um Kunstwollen, um modo de operar.”'
(Umberto Eco,s-escrito a O nome da rosa)
10
APRESENTÃO
Revisitando o passado não é um trabalho que começou somente a partir da análise dos
romances de Franklin Távora. Na verdade, as questões que são aqui discutidas começaram a ser
observadas anteriormente, através do estudo da fortuna crítica do autor. A análise desse material
trouxe a lume várias questões interessantes, como o embate Norte-Sul, que Távora incitou ao
afirmar que o Norte teria uma literatura “mais nacional” e diferenciada da do Sul, o que passou
a configurar um ideal que está diretamente vinculado ao projeto literário do autor, além das
questões apontadas na querela das Cartas a Cincinato (1872), que consistem em analisar, sob
um tom polêmico, algumas obras de Alencar, criticando-as pela o observação da realidade e
por “excesso” de imaginação. Diferentes marcas genéricas e novas perspectivas fizeram com
que Távora fosse considerado um dos intelectuais que deram início a um período de transição
entre tendências literárias (Cf. CANDIDO, 2000, p. 266). Além disso, outro fator importante
apontado pela crítica e que permeia toda a obra do autor diz respeito à questão da identidade
nacional (e de certa forma tamm literária) e do regionalismo nordestino que o romancista
teria instaurado. Este último, sem dúvida, é tido como a maior contribuição literária da época,
que passou para a posteridade cada vez mais enriquecida na pena de seus sucessores, sendo que
uma das referências máximas deste regionalismo es nas obras de Guimarães Rosa, por
exemplo.
Mas dentre tantas particularidades apontadas pela crítica, nenhuma chamou mais a
atenção do que a questão do enlace entre História e Literatura, a partir do qual seriam
constituídas algumas obras do autor. Além disso, há a inquietação, ou mesmo a inaceitabilidade,
demonstrada por parte da crítica, em relação ao uso desse tipo de projeto narrativo, que recorre
ao passado, a eventos históricos para montar a tessitura ficcional, misturando real e imaginário,
verdade e mentira. Isto pode ser caracterizado como o embate disciplinar entre História e
Literatura, que tem sua base na discussão, ainda atual, sobre o fato de ambas serem
consideradas interdisciplinares como categorias discursivas. No entanto, a crítica adiciona
algumas questões importantes acerca deste assunto, no que tange a Franklin Távora. Primeiro:
se é possível considerar como obra de arte o texto que mistura o histórico com o literário;
segundo: se tais produções seriam, por outro lado, históricas ou literárias; terceiro: se o projeto
estético do autor, tendo como um de seus itens fundamentais a observação direta da realidade,
pode ser considerado compatível com uma ótica que privilegia o passado.
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Estes questionamentos estão diretamente relacionados principalmente a O Cabeleira
(1876), O Matuto (1878) e Lourenço (1881). A decisão de analisá-los também parte do fato de
serem tidos como os romances de maturidade do autor, de estarem inseridos num conteúdo
programático consciente e, portanto, são considerados pela crítica como as melhores obras de
Franklin vora, uma vez que possuem traços genéricos que os interligam, como o veio
histórico e a ótica regionalista. A crítica apresenta três propostas para a classificação destes
romances: 1. eles seriam documentais, devido à suposta inserção de textos tidos como
“oficiais”, o que auxiliaria numa pretensa forma de atestar a veracidade dos fatos; 2. eles seriam
romances históricos, uma vez que se servem da historiografia como ponto de partida para a
criação literária e artística e 3. há também a classificação destas obras como crônicas, devido ao
fato de a narração parecer tão fiel aos fatos reais que seria quase testemunhal. Questiona-se,
ainda, o regionalismo do projeto estético do escritor que afirmava privilegiar a realidade e o
tempo presente, mas seus romances se referem a eventos que aconteceram pelo menos um
século antes, estabelecendonculos com passados distantes, não se atendo, assim, ao tempo e a
realidade do escritor – de acordo com o que afirmam determinados críticos.
A problematização consiste principalmente em uma certa recusa no reconhecimento
destas obras enquanto produções artísticas dado o recorte histórico em relação ao projeto
estético e sua realização. Partindo de um aprofundamento da pesquisa realizada, de acordo
com estes juízos críticos, o trabalho se propõe a analisar os romances O Cabeleira, O Matuto e
Lourenço, na tentativa de abordar os aspectos que assegurariam seu caráter literário. Inclui, por
isso, a necessidade do estudo da concepção contemporânea das relações entre história e ficção,
ou ainda, de romance histórico, e a análise do projeto estético de Franklin Távora através de
novos critérios. A necessidade de uma análise das obras sob um olhar mais atual, a avaliação do
resgate do passado sob perspectiva histórica em benefício da região e uma eventual
atribuição/equivalência genérica mais espefica justificam a pertinência deste estudo. Para isso
serão utilizadas principalmente teorias sobre as narrativas histórico-ficcionais o apenas
relacionando-as com as personagens, o enredo etc., mas também com o projeto literário do
autor. E a discussão é de que os romances em questão podem ser considerados como romances
históricos, sendo, por isso, construções artístico-literárias e originais.
O trabalho se divide em quatro partes. Primeiramente apresentamos as discussões e
questões suscitadas pela crítica, e, em segundo lugar, expomos e refletimos sobre o projeto
estético do autor. Na terceira parte, as obras em questão são analisadas em suas características,
em sua dimensão histórica e literária, em suas composições, juntamente com o projeto literário
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idealizado pelo autor. Por último, são feitas considerações quanto à sua validade artística, sua
importância no cenário literário e sua filiação ao romance histórico.
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INTRODUÇÃO
No meio de tudo, de tudo um pouco: os motivos de determinadas escolhas
João Franklin da Silveira Távora é um cearense da cidade de Baturité, onde nasce em 13
de janeiro de 1842. As viagens que faz com a família quando se muda para Goiana, em
Pernambuco, ainda menino, são penosas e longas e “aos olhos do pequeno João Franklin [...], a
paisagem nordestina, com certeza, deve ter se fixado em sua retina para sempre” (AGUIAR,
1997: 33). A experiência visual do sertão e o contato com os matutos em suas expedições
marcam inconfundivelmente todas as suas prodões artísticas. Goiana viria descrita, anos mais
tarde, em O Cabeleira, cenário dos últimos momentos da vida do cangaceiro, sendo possível
notar o conhecimento da região através do narrador da história, que percorre esse espaço através
de datas, destacando as mudanças e os eventos que aconteceram em determinadas “vilas” e
monumentos.
Em 1863, Franklin Távora conclui o curso de direito enquanto trabalha no Jornal do
Recife. Chega a advogar com banca montada em Alagoas, mas abandona a profissão após a
morte do pai, voltando para Recife. A formação de advogado influencia na maneira como
interpreta a validade das leis vigentes, não em seu tempo, como no passado a crítica ao
enforcamento de José Gomes presente no fim do romance e as alfinetadas contra a pena de
morte são bons exemplos disso, observáveis também em O Matuto e Lourenço.
Posteriormente, é eleito Deputado Provincial pelo Partido Progressista Pernambucano,
momento em que começam os problemas, pois é alvo de duras críticas, quando se no meio
do fogo das primeiras polêmicas oriundas de inimigos de partidos políticos, mesmo depois de
cumprido seu mandato. É nomeado curador dos Órfãos e Diretor Geral da Instrução Pública, o
que faz com que se acirrem os ataques que os políticos rivais lhe dirigiam. Dentre outras coisas,
eles não admitiam que um jovem (Távora conta então com 26 anos de idade) exercesse cargos
tão importantes. Essas foram as primeiras faíscas que acenderam a “fleuma do polemista”,
como informa o biógrafo do autor, Cláudio Aguiar (1997). A atuação nestes cargos talvez
explique o fato de todas as suas obras serem permeadas pela crença na educação e na base
familiar como itens fundamentais na formação de qualquer pessoa. Pode esclarecer, inclusive,
seu olhar indulgente e solidário, às vezes até ingênuo, em relação aos marginais e delinqüentes
que protagonizam seus romances – sua experiência com a realidade dos órfãos e,
possivelmente, os cuidados com o processo educacional devem ter causado profunda impressão
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no autor de Lendas e tradições do Norte (1879). A explicação dos problemas através do recuo
ou do ponto de partida na infância das personagens teria o insistente propósito de chamar a
atenção para o fato de que, mais do que adultos vivendo em conflitos, seus marginais o antes
crianças que passaram pela marca da auncia, da violência ou de algum tipo de abandono – por
isso, Távora vê no amor e na família um caminho através do qual possam se redimir.
Em 1869, por sua conta e risco, vora traduz e publica na Opinião Nacional a carta que
Victor Hugo escrevera contra a escravidão, o que provoca novo escândalo e discussão. Tal
gesto torna clara sua posição em favor dos escravos e da República, posições que destoam dos
interesses da época. Como nos seus romances, nos quais o escritor tenta tornar a realidade do
sertão e do sertanejo mais próxima do leitor citadino, Franklin Távora, como destaca Cláudio
Aguiar,
Preferiu chamar a atenção do leitor para um espetáculo dramático da
escravidão que se desenrolava próximo ou mesmo ao lado do próprio leitor,
talvez na intimidade de seu lar. Ele queria que aquelas palavras enérgicas e
convincentes escritas pelo autor de Os Miseráveis tocassem o coração e a
razão dos brasileiros. (AGUIAR, 1997: 156).
Em O Matuto uma amostra representativa deste drama da escravidão na maneira
como os mascates tentam manipular os escravos contra os nobres senhores-de-engenho,
prometendo em troca alforriá-los. No romance, a traição de um escravo produz conseências
graves para os inimigos dos mascates e demonstra de maneira perspicaz o sonho de liberdade
que os escravos almejam realizar a todo custo, colocando em xeque ao mesmo tempo a gratidão
devida ao bom senhor de engenho, a honra e a lealdade.
Como redator-chefe do jornal A Verdade, mais um dos rios jornais em que colaborou
ou que dirigiu, envolve-se na Questão Religiosa, conflito entre a Igreja Católica e a Maçonaria.
De acordo com a proporção do embate, não é difícil supor que Távora se posicionaria do lado
mais polêmico, o dos maçons, aproveitando o ensejo para defender a liberdade religiosa. Por
isso, provoca mais uma vez muito barulho. Essa talvez tenha sido uma das discussões mais
controversas dentre aquelas em que se envolveu. A figura do padre Antonio e do frade que faz o
sero no meio da guerra o demonstrações do ponto de vista que o autor tinha da religião,
como instrumento através do qual o homem deve buscar alento e respeito, e não o temor, como
observa em O Matuto (TÁVORA, 1878: 179-181).
Apesar do envolvimento em conflitos e polêmicas de grande alcance e proporção ter
deixado rastros atrás da sombra do escritor, nenhum outro debate marcaria tanto e de modo tão
15
negativo a sua biografia quanto o que suscitou em relação a José de Alencar e junto ao qual
atrelou suas críticas à Corte sulista (que passou a sediar a monarquia portuguesa) – as chamadas
Cartas a Cincinato (1872). Távora sai sem grandes máculas das outras discussões, mas não
sairia impune ao tentar arranhar a imagem do irretovel Alencar, na época o escritor mais
respeitado da literatura brasileira. As cartas, que comportam análises sobre Iracema e O
gaúcho, entre outros romances alencarianos, am de não agradarem ao escritor radicado na
Corte, não agradam também ao grande número de admiradores do conterrâneo devora. Além
disso, veiculam um tom de crítica depreciativa em alguns aspectos. Por outro lado, o próprio
Alencar acaba modificando alguns aspectos da composição de seus romances. As críticas
constituem-se como progstico dos elementos que Távora considera necessários para a criação
artística: apoio na experiência e na observação, controle da fantasia, compromisso nacional (na
verdade, mais regional), realismo cênico, pesquisa histórica etc., que Alencar acaba assimilando
com maior ênfase em suas últimas obras, como na ótica regional de O Sertanejo.
Em 1874, finalmente Távora sucumbe às dificuldades do habitante e intelectual
nordestino e muda-se com a família para o sul, ou seja, para o Rio de Janeiro. A ida para a
Corte, no entanto, não tolhe sua atuação literária, histórica e jornalística. Tanto que, no ano
seguinte, passa a colaborar com a revista Ilustração Brasileira, publica O Cabeleira em 1876 e
O Matuto em 78, quando é diretor da Revista Brasileira. Em 1881, ingressa no Instituto
Histórico e Geogfico Brasileiro, sendo mais tarde orador e redator-chefe da Revista
Trimestral do mesmo órgão. Depois disso, funda a Associação dos Homens de Letras do Brasil,
que mais tarde ressurgirá, por intermédio de Machado de Assis, como a Academia Brasileira de
Letras, na qual é patrono da cadeira 14. Em suma, também na Corte Franklin Távora se firma
como autoridade respeitada, e trabalha intensamente tanto no meio literário como no da
pesquisa histórica.
Mesmo quando o romancista reside na Corte, não abandona seu pendão nortista. Todos
os seus trabalhos publicados nesta época tornam claras sua filiação e sua fidelidade à região
natal. Nos romances estudados neste trabalho, evidencia-se o diálogo de um narrador que se
dirige ao leitor que o conhece o sertão, o Norte, ou seja, não perde o foco de seu projeto
regionalista. O fato de ter publicado seus melhores romances no Rio de Janeiro constitui grande
oportunidade para o autor, pois lhe permite atingir diretamente o blico que desejava: o leitor
citadino, alheio às tradições e aos costumes nortistas. vora sabia que, para alcançar o
reconhecimento e o efeito desejado de seu projeto, era necesrio supor este leitor, a quem o
narrador se dirige nas narrativas: “o leitor não versado nas coisas do norte”, o leitor que o
conhece os costumes do sertão” etc. Nos momentos finais de sua vida, quando se inclina para a
16
pesquisa histórica, resultado da evidente influência do seu trabalho no Instituto e também das
dificuldades financeiras, até mesmo seus últimos trabalhos continuam se referindo à porção
hiperbórea do país, que Távora enxergava de modo muito claro e particular, mas,
inegavelmente, com devoção e compromisso.
Ao criar o seu projeto da Literatura do Norte, possivelmente Franklin vora esperava
trazer a lume as peculiaridades de sua região e torná-la não conhecida, mas sobretudo
reconhecida. Este anseio é o eixo principal de suas obras, cuja consagração talvez esteja
vinculada ao reconhecimento regional – e pessoal:
Toda vez que o criador fixa a sua obra, tenta ele alcançar o espectador
fictício de quem a mesma espera sua plenitude de existência. A tal
espectador, porém, não é somente um olhar que a obra pede: é uma
consagração. Uma obra de arte não existe senão na medida em que é tida em
conta de obra de arte – julgada digna de figurar em certa ordem. Para a obra,
a existência é inseparável do valor. (PICON, 1969: 28)
No entanto, as obras devora não alcançaram totalmente este espectador fictício para
quem o escritor compõe e de quem espera a consagração. Como foi observado, algumas de
suas obras sequer saíram da primeira edição, perderam-se com o passar dos anos ou estão
encerradas nas seções de livros raros, para não serem tragadas de vez pelo tempo, que a
chance de uma reedição para algumas é bastante remota.
Dos doze romances que escreveu, somente O Cabeleira continua a ser publicado com
certa regularidade; no caso de Lourenço, as reedições têm sido muito esporádicas. Os debates
que provocou conferiram notoriedade a Távora, e contribuíram para fixar tanto sua figura como
suas produções na literatura brasileira com maior destaque do que outros escritores, embora sem
tanto brilho. Mas uma questão sobre as “apreciações” feitas à obra de Távora que sempre nos
incomodou desde o início da pesquisa está no fato de um escritor com fortuna crítica o ampla
poder estar ao mesmo tempo à margem. Pelo pprio exame de sua fortuna crítica é possível
notar que alguns motivos para essas e outras contradições são sintomáticos. Provavelmente isso
se dê como reflexo do julgamento crítico (lembrando que a crítica de meados do século XX não
aprecia muito as produções de Távora), e do questionamento da qualidade de alguns trabalhos.
Do mesmo modo que podem existir aspectos conflitantes na obra de um escritor,
igualmente o exame literário não está livre de trair sua pretensão à isenção a partir de uma visão
que acaba por levar à condenação da obra. Cortázar, ao discorrer sobre a vocação e o recurso,
observa que “um escritor vocacional busca e estabelece no curso de suas primeiras obras o
17
equilíbrio paulatino entre sua necessidade de enunciar e o seu instrumento enunciador”, e toma
como exemplo Les Chouans, que
denuncia[m] um Balzac que se debate entre uma potente vontade de
construção romanesca com fins sociais [...] um idioma carregado de
aderências românticas [...] linhas estilísticas que não concordam com a
carga romanesca a expressar [...], inadequação entre continente e conteúdo.
(1998: 38).
Contudo, mais adiante lembra que “o escritor agressivo o incorre na puerilidade de
sustentar que os literatos do passado se expressavam imperfeitamente ou traíam seus
compromissos. Sabe que o literato vocacional chegava a uma síntese satisfatória para o seu
tempo e sua ambição”. (CORTÁZAR, 1998: 46-47).
vora se assemelha bem a esse escritor vocacional que carrega consigo uma missão
apresentada por trás de afirmações, críticas e contestações “disfarçadas” em situações
ficcionais, através das quais se sentem autorizados e “desafogados”. Sem o espírito
revolucionário que as obras carregam, possivelmente não acabariam modificando nada no
cenário literário. Por isso, muitos vêem emvora um dos autores que mais contribuíram para a
mudança de paradigmas, além de ter provocado a reflexão sobre a criação artística pelo viés de
um sentimento de nacionalidade filtrado pela consciência da realidade em que o país estava
mergulhado: uma nação desigual e injusta. Por esses e outros motivos – a preocupação regional,
o olhar histórico, folclórico, os costumes sertanejos etc. –, a presença de Távora tornou-se
indispensável no quadro canônico da história da literatura. Os seus elementos artísticos trazem
uma contribuição ainda maior pela diversidade de relações estabelecidas e de questões
suscitadas.
De acordo com os atributos mais destacados, o conjunto romanesco tavoreano, quando
analisado isoladamente, não goza de um status de uniformidade algumas obras se destacam
mais que outras, dadas as diferenças entre as características estilísticas e genéricas e, claro, pela
qualidade. vora estréia literariamente em 1861, com a publicação de A trindade maldita
(contos no botequim), em que está patente a tônica romântica de Álvares de Azevedo e do seu
Noite na Taverna. Inicialmente segue de modo rigoroso os moldes românticos, mas já na época
a escola literária começava a se “dissolver”. Com Um mistério de família (1861) e Três
grimas (1869), aventura-se na dramaturgia. Tendo sido encenadas até por atores famosos e
depois publicadas, tais peças, segundo Cláudio Aguiar (1997), alcançaram sucesso: na época
em que escreveu a primeira, Távora tinha apenas dezoito anos, sendo que ela ficou em cartaz
18
por mais de dois anos. O seu teatro transmite a ótica do realismo que marca os romances
posteriores. Na fortuna crítica do autor raramente figuram esses trabalhos, considerados como
as primeiras tentativas de um escritor jovem que ainda se iniciava na carreira literária, como
atesta Silvio Romero. O próprio Távora reconhece que a primeira fase de seus trabalhos ainda é
muito “eivada de prosaísmos”.
Com Os índios do Jaguaribe (1862), ele fixa seu papel precursor, pois o livro, primeiro
romance do autor, é também o primeiro romance cearense, de acordo com Abelardo
Montenegro (1953). A influência de Alencar é claramente manifesta. Talvez por isso Távora
tenha se animado a enviá-lo para o famoso conterrâneo, a fim de obter uma apreciação do
trabalho, que ficou, todavia, sem resposta. Para muitos esta seria a centelha que animaria
vora a participar das críticas contra Alencar, dez anos mais tarde. Os índios do Jaguaribe
exprimem os primeiros interesses pelos acontecimentos históricos da rego, uma vez que é a
primeira ficção que se detém na história da colonização do Ceará. A partir da composição desta
obra pioneira se verificam a simpatia pela narrativa histórica e o cuidado com os substratos
fundadores da região, atrelados ao espaço nacional.
A partir daí se inicia em vora a concepção de constrão de uma nacionalidade
vinculando sertão e nação, e abre-se o caminho entre o nacional e o histórico que perpassa a
obra e que vai se adensando no ideário estético que compreende o romantismo, o realismo-
naturalismo, o modernismo e, agora, o pós-modernismo, com romances metaficcionais e
congêneres. A inserção de fatos históricos, narrados em clave literária, é um dos mecanismos
que procuram representar a identidade nacional, como observa Flora Süssekind (1984): o
escritor procura formular uma imagem especular, na busca de uma identidade-nação, que ela
representa com as máximas “Tal pai, tal filho; tal autor, tal obra; tal Brasil, tal literatura”
imagens que, contudo, vivem se esfumaçando de tão rarefeitas, dada a nossa eterna busca pela
identidade nacional na tentativa de superar a do colonizador e do estrangeiro, o que é
possível posicionando-se num “entre-lugar” discursivo e ideológico
1
.
Em 1866, Távora escreve A casa de palha, romance que trata das populações
campestres, tal como ocorre em Um casamento no arrabalde (1869). Acentua-se o interesse por
figuras e costumes do povo, sendo possível perceber que, em suas criações, a nação é
representada através das classes mais simples. Começa verdadeiramente aí seu programa de
1
Silviano Santiago em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, de Uma literatura nos trópicos, fala desta
busca por unidade e identidade que, no entanto, se resolve na assinalação da diferença, na desmistificação do
discurso da História, na criação de um entre-lugar no qual o escritor latino-americano reinventa(se)
antropofagicamente. A maior transformação estaria na inversão/torção que acrescenta algo totalmente novo: “ali,
nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali se realiza o ritual antropofágico
da literatura latino-americana.” (2000: 28), do qual o próprio Silviano é um grande exemplo.
19
descrição regional, que se desenvolve de forma consciente, experimental e ponderada,
delineando-se efetivamente, a partir de Um casamento no arrabalde, novos rumos para certo
tipo de ficção brasileira, que integra e inclui a diversidade. O ingrediente complementar (o veio
de regionalismo nordestino de seus últimos romances) também vem nitidamente expresso no
prefácio dessa narrativa, onde Távora afirma que “há cinco para seis anos anda falando em um
novo nero cujo nome Literatura do Norte o pode soar bem em um mercado” avesso a
esse tipo de cultura e “onde tanto abundam produtos franceses e lusos que vários tomam por
modelo para a sua indústria, com prejuízo da indústria nacional, que não pode assim
desenvolver-se e prosperar” (1903: VII). Com isso estabelece a manifestação regional e o ritmo
norte-sul, que viria explicitamente manifesto no prefácio a O Cabeleira (1876).
Posteriormente, tendo como objetivo cumprir o conteúdo de um projeto programático
amplo, Távora iria classificar as suas quatro melhores obras no seu programa “regionalista-
histórico-literário”, traçando um plano que abarcaria a gama de elementos sobre o nordeste: “a
obra a que aludo, intitula-se O Norte, e será divida em três partes ou tomos: I – Literatura; II
História; III – Política(TÁVORA, 1903: VIII). Esta primeira parte, sobretudo no que tange
aos romances em questão, compreenderia também as Lendas e tradições populares do Norte
(1878).
A Literatura também pode ser vista como um processo de “união” com a segunda, a
História. Mas, em seu quadro programático, Távora relaciona as obras pelas quais esboça de
maneira específica o traçado da ampla esfera setentrional. Assim, o primeiro volume deste
grande e ambicioso programa reúne Um casamento no arrabalde, O Cabeleira, O matuto e
Lourenço, consideradas as obras-primas do autor. Contudo, a primeira delas o apresenta
princípios suficientes que se atenham à visão histórica inserção de figuras ou acontecimento
históricos, recuo a um passado remeto, por exemplo – , como é o caso das outras.
Pelo percurso que seguem as criações de Távora, pode-se perceber o quanto elas têm de
programáticas e se completam na própria evolução literária do autor. Ele contesta os moldes
que comavam a se figurar na busca de uma nacionalidade, e constrói um novo modelo de
identidade, que deixa de ser o índio para se fixar no sertanejo, deixa de priorizar grupos restritos
e põe em causa a restrição do nacional na porção sul. Isso não impede que a região seja tomada
pelo mito do progresso, pois os elementos regionais, por serem tidos como originais, já que não
sofreram grande transformação, não devem, por isso, permanecer no atraso e na ignorância:
vora quer que sua região permaneça “nacional” em sua essência, mas que também prospere.
A ênfase na observação e no olhar histórico representam a mudança metodológica que para
vora deve ter o seu cerne nos estímulos da realidade concreta, refletidos e problematizados
20
através de uma ótica que procura saber não só como as coisas aconteceram no tempo, mas o que
elas trouxeram de conseqüências para o presente.
Neste sentido, o quadro evolutivo de suas obras traduz a idéia de que a literatura deve
apresentar as características da região e do seu povo, em seus aspectos históricos, como
elemento complementar, que forja uma idéia de tradição porque sua história é rica e modelar. A
nacionalidade naquele momento (e, se repensada no culo XX, adotaria a mesma perspectiva)
deveria ser traduzida de outra maneira – Távora reconhece essa identidade na miscigenação, da
qual os seus matutos, caboclos etc. constituem a representação. Por isso via no Norte, antes sede
da Corte portuguesa, o primado autêntico da representação original da tria, com um rico
manancial folclórico, histórico, cultural e artístico.
Franklin vora escreveu ainda o romance O Sacrifício (1879), sob moldes naturalistas
e, dando início à segunda parte de sua sonhada obra O Norte, escreveu a História da Revolução
de 1817 e a História da Revolução de 1824, o que torna evidente sua identificação com a
História. Também escreveu outras obras inéditas, sempre voltadas para a cultura, a literatura e a
história do nordeste, mas que tiveram o mesmo destino das obras historiográficas: O Sacrifício
é tido como o fiasco de sua carreira, e as duas últimas, devido à grande pobreza por que passava
e ao esquecimento a que foi relegado, atirou ao fogo alguns dias antes de morrer, em 18 de
agosto de 1888.
21
PARTE 1
O MOSAICO CTICO:
A FORTUNA CTICA DE FRANKLIN TÁVORA
“Se os julgamentos fazem a história, fazem-na, amiúde, ao acaso.
Ao descobrir a presença e a necessidade do julgamento,
descobrimos a necessidade de uma reflexão sobre o julgamento
– única com capacidade para frustrar, entre outras, as armadilhas da história.”
(Gaëtan Picon, O escritor e sua sombra)
22
Panorama crítico
A partir da fortuna crítica de Franklin vora, foram aparecendo questões singulares,
algumas das quais o analisadas no decorrer do presente estudo. Para uma melhor
compreensão e ilustração dos motivos deste exame que envolve os romances O Cabeleira
(1876), O Matuto (1878) e Lourenço (1881), é indispensável retomar, ainda que
resumidamente, os principais pronunciamentos críticos e os pontos mais indispensáveis para o
auxílio das reflexões que norteiam, por exemplo, a configuração de uma possível tipologia das
obras. Por isso, inicialmente, faz-se necessário traçar um breve panorama geral do estudo da
fortuna crítica do autor e do que, a partir dele, foi constatado.
Quando foi percebida a gama de embates captados através da análise dos críticos, notou-
se que o autor é polêmico e coberto de estigmas, apresentado pelo viés de uma espécie de
“rebeldia sem causa”, paradoxalmente tida como precursora, por ter instaurado novas temáticas
e características literárias, e ao mesmo tempo conservadora, devido a alguns aspectos de seu
posicionamento ideológico, como o regionalismo efervescente e o nacionalismo às vezes
saudosista.vora é concebido, em todo esse processo de reunião da crítica, como um escritor
peculiar. Delineou-se então a noção de como seria ainda mais difícil o trabalho que lida com um
conjunto de “coisas de antiquário” dentro de um panorama contemporâneo, onde a literatura se
“superou” para se revelar, praticamente, sempre um passo à frente de seu tempo – a literatura é
reinventada a todo instante, segue quebrando amarras e fundando conceitos e gêneros cada vez
mais desafiadores, torna-se pós-moderna, metaficcional, desconstrutivista, etc. Liberta, enfim,
“das quimeras e dos romantismos das literaturas oitocentistas”, tidas como ultrapassadas. A
literatura de alguns escritores daquela época parece suscitar o interesse de poucos e não ter mais
nada a acrescentar. Torna-se difícil transpor a barreira da literatura tida como periférica e
secundária, ou como menor, e, de maneira curiosa, uma literatura que é paradoxalmente muito
citada dentro do cânone, embora muitas vezes seja pouco conhecida e/ou divulgada para/entre
os leitores. Periférica porque produzida fora dos grandes centros. Secundária porque se refere a
escritores tidos como menores por não terem alcançado grande notoriedade e devido a
motivos não apenas artísticos.
Os estudiosos, críticos e historiadores da literatura que compõem a fortuna crítica de
Franklin vora vão desde Silvio Romero até Alfredo Bosi, por exemplo. Dos principais,
podem-se destacar, além destes, Abelardo Montenegro, Lúcia Miguel Pereira, Massaud Moisés,
Afrânio Coutinho, José Veríssimo, Antonio Soares Amora, bem como José Aderaldo Castello e
Jo Maurício Gomes de Almeida. Estes são os que fazem uma análise mais detalhada de sua
23
obra, e geralmente se pautam em parâmetros estabelecidos a partir de um contato mais direto
com os romances analisados, além de alguns encetarem entre si uma espécie de diálogo crítico.
Suas análises servem mesmo de informação e orientação para outros historiadores cujos estudos
mais sucintos se orientam por um viés mais ou menos quantitativo ou qualitativo, ou em
listagens literárias panorâmicas.
Assim, a fortuna crítica de Távora é relativamente ampla. Embora seja alvo de tantas
apreciações e de alguns estudos acadêmicos, não é um romancista completamente consagrado.
A escassa reedição de algumas obras e o verdadeiro descaso conferido a outras comprovam essa
contradição. Das que o aqui estudadas, somente O Cabeleira continua a contar com
publicações regulares. Alguns estudiosos m contribuído para que este quadro se reverta e
recentemente publicaram-se o teatro do autor e uma nova edição de Um casamento no
arrabalde, obra admirada por Lúcia Miguel Pereira, por exemplo. Um outro paradoxo é que,
embora famosa, esta não chega a ser considerada pela crítica a obra-prima do autor.
Deste modo, cabe observar que, apesar de o estudo crítico ser amplo, a sua contribuição
mais interessante está em não ser homogêneo em seus exames, o que não quer dizer que muitos
não partilhem de opiniões coincidentes em alguns aspectos. Silvio Romero e Antonio Candido,
por exemplo, o os que fazem um estudo mais cuidadoso e detalhado de Franklin Távora e, de
maneira geral, partilham das mesmas opiniões no que diz respeito ao autor e a algumas obras,
escolhendo destacar as obras de maturidade, com a ressalva de que Candido se mostra
aparentemente mais “isento”. Assim, enquanto para este as obras de maturidade do escritor são
as de maior importância, não sendo as outras nem mesmo consideradas no arcabouço de sua
análise, Silvio Romero prefere colocar todas as produções de Franklin Távora a partir de um
quadro evolutivo, em que as obras de maturidade representam a completude e o resultado
harmonioso de um processo de progressão que começa em 1861 e termina em 1881, com a
publicação de Lourenço, considerado pela maior parte da crítica como sua melhor obra. Por sua
vez, cia Miguel Pereira, Massaud Moisés e Afrânio Coutinho são os mais exigentes e
severos, por não concordarem com alguns traços artísticos e ideológicos do autor, como a
valorização da questão histórica em suas obras. Antonio Candido e José Aderaldo Castello
encaram tais características sob outros parâmetros consideram a época e as transformações
suscitadas por vora, por exemplo, ao passo que Silvio Romero, Ronald de Carvalho,
Abelardo F. Montenegro o os mais “solidários” ao escritor, já que se identificam com alguns
dos seus ideais, como os da Escola de Recife.
Deste modo, os atributos existentes no discurso crítico devem ser considerados, além da
grande importância das apreciações, uma vez que cada um de seus estudiosos tem uma visão
24
diferente, influenciado pelas vertentes e teorias da época em que está inserido. Sendo assim, os
pressupostos metodológicos que permeiam a fortuna crítica de Franklin vora o desde uma
concepção naturalista da literatura até uma perspectiva mais estética e estilística, voltada para a
“obra de arte em si” e para a linguagem nela adotada; de tendências que vão do Positivismo ao
New Criticism, como se observa, respectivamente, nos métodos de Silvio Romero e de alguns
de seus contemporâneos, e em Antonio Candido, dentre os mais recentes. No entanto, a
preocupação permanente diz respeito à formão da literatura brasileira e de sua verdadeira
identidade, de como este valor se resolve esteticamente, pois “o pensamento crítico do culo
XIX em busca da nacionalidade literária forma o embasamento de teoria da moderna literatura
brasileira.” (COUTINHO, 1968, p. 159). Portanto, há implícita e explicitamente uma
preocupação com a identidade da literatura nacional, no sentido em que se entende por uma
literatura com características próprias e inconfundíveis, ainda que o enfoque teórico se
modifique de uma época crítica a outra, como observa Roberto Reis ao tratar de algumas
questões do cânone:
Seja dito também, embora muito de passagem, que um número expressivo de
histórias literárias e de estudos sobre literatura brasileira está orientado sob
um paradigma nacionalista e um vetor teleológico: a crítica, engajada num
processo de “emancipação” da cultura brasileira da independência que a tem
acossado desde os tempos coloniais, projeta a sua ideologia no corpus
literário e como que tende a avaliar os textos e escritos em função do grau
maior ou menor de “nacionalidade” que porventura contenham. (1992: 81)
Neste sentido, pelo fato de as perspectivas ideológicas serem distintas, e por isso a
diferenciação nas vertentes críticas, o estudo sobre as produções de Távora não segue padrões
fixos, pois se choca tamm com a própria ideologia do escritor também preocupado com a
emancipação e a nacionalidade literária, ainda que sob um olhar mais regional, algumas vezes
interpretado até mesmo como separatista, quando, na verdade, sua maior preocupação residia na
integração e no diálogo cultural . Sob o crivo de seus estudiosos, encontram-se várias posições e
maneiras de analisar as suas obras. Mesmo nos exames mais concisos observa-se uma
perspectiva e uma premissa individual, ligada ao lugar estratégico de onde partem a inquietação
e a perquirição sobre a literatura e sua identidade, sobre a originalidade e a qualidade. E de
como desses embates surgem tantos paradoxos, notadamente nos séculos XVIII e XIX, sempre
flutuantes no cenário da arte e da crítica. Incessantemente manifesta, a questão da identidade é
retomada, reinventada e repensada. No meio deste impasse, posiciona-se o crítico, que veste (ou
é vestido de) sobrepeliz. Por trás de sua lente existem vários fatores que permeiam seu
25
julgamento crítico, muitos dos quais não estão somente associados à obra literária em análise,
tal como afirma Roberto Reis acerca das mudanças de perspectivas da crítica literária no Brasil:
Cabe ressaltar que o crítico foi grande beneficiário quando, em especial em
nosso século, se separou a obra do autor para concentrar o objeto da análise
literária no próprio texto. É o crítico que passa a exercer a autoridade sobre o
sentido, a estrutura, as relações internas do artefato literário e, através do
exercício profissional, a disseminar as interpretações que lhe convém para
leitores e alunos. Sem o autor para reivindicar a sua interpretação e a
integridade semântica de sua obra, o crítico está liberado para direcionar a
exegese de acordo com suas premissas e propósitos, sejam eles conscientes
ou não. (REIS, 1992: 75)
Tendo em vista tais pressupostos, no entanto, o apelo que conduz ao “exterior” (que
neste caso, equivale também ao autor) da obra no que se refere principalmente a O Cabeleira,
por exemplo, é muito grande. Principalmente porque esse livro contém o manifesto regionalista,
presente em seu prefácio, de modo que expressa e veicula a posição ideológica de Távora no
seu desfecho ou “posfácioda obra. Am disso, a redação das Cartas a Cincinato (1872) é um
outro fator decisivo que acaba desviando o olhar do crítico. Ao criticar ali Alencar e suas obras,
dentre outras coisas, Távora torna clara a sua concepção de arte e especialmente o seu todo
de composição literária, não podendo deixar de ser mencionada aqui a antipatia que atrai para si
através deste gesto.
Gaëtan Picon atenta para essa sombra que segue o escritor a crítica, seu processo de
análise e seus conflitos. Ele observa que “toda a reflexão da obra transfere-se, inevitavelmente,
para o exterior da obra, evadindo-se para regiões onde não podemos senão perder de vista
aquilo que a obra tem de único e necessário. (1970: 20), embora seja importante considerar o
contexto no qual a obra foi escrita. A análise da obra tavoreana recai em comparações
depreciativas, principalmente junto a Alencar, que possuía, salvo engano, um projeto diferente
(com preocupações distintas) daquele proposto por Távora. Além disso, a figura polêmica do
escritor é taxada com características negativas, julgamento que vem às vezes de ecos de outros
críticos, sem, portanto, contar com a análise direta da obra, mas que estabeleceram
determinadas sentenças, quase fixas, sobre o escritor. É neste sentido que, ao reterem seu olhar
sobre as produções de Távora, alguns críticos, influenciados por outros fatores, dão a impressão
de que a análise resultante vem pré-definida, condicionada. Um exemplo disso estaria nas
afirmações feitas por alguns críticos, que, no entanto, se servem de outros discursos, e não do
conhecimento da obra, revelando uma certa antipatia no caso, os ataques promovidos contra
Alencar.
26
Ainda, no caso de Franklin Távora, separar o escritor de seu trabalho artístico constitui
um processo problemático, uma vez que é difícil debruçar-se somente sobre a obra se o autor é
nela uma mistura espessa, se o autor faz dela sua perfusão. No caso em questão, essa autoridade
e essa concentração não se limitam apenas ao seu texto, mesmo em críticos mais “modernos”.
As apreciações não se restringem apenas à produção literária, uma vez que o escritor também
foi uma figura contestadora no panorama das letras de seu tempo, e algumas de suas produções
de fins do XIX se tornaram manifestos, difusões panfletárias. Távora se familiarizava com
muitas idéias de Romero, em função de uma identificação com as concepções oriundas da
Escola de Recife, da qual fizeram parte. De modo que os comentários feitos por muitos críticos
dizem respeito também ao temperamento do autor e a sua atuação “extraliterária”, como
podemos observar em Lúcia Miguel Pereira:
Nada conhecia, e não tinha o menor desejo de travar agora relações com o
detrator de Jo de Alencar. Em todo caso, tratei de descobrir-lhe os livros,
encontrando dois, O Cabeleira e Lourenço, em ssima edição popular.
Não tendo, portanto, lido a obra toda, faltando, notadamente, Casamento no
Arrabalde – o melhor livro do autor, segundo José Veríssimo, que o compara
a Inocência não poderei dar sobre o autor uma opinião segura. Pelo que li,
concluí que não existe o romancista Franklin Távora. (PEREIRA, apud
COUTINHO, 1955: 896, grifo nosso).
Além do destaque para a dificuldade de encontrar as obras de vora, o que ainda
permanece, nota-se que existe de antemão a indisposição acrescida a uma apreciação que é
assumida como não podendo ser segura, mas que é caterica em sua conclusão. O julgamento
sobre Távora contém estas particularidades. Visíveis resultados de uma má vontade, em alguns
casos, que o próprio vora atraiu para si ao se envolver na polêmica contra Alencar, nas
famosas Cartas a Cincinato, além da discórdia causada pela passionalidade e o radicalismo de
suas posições. Mas igualmente relacionadas a este fato existem considerações feitas com
justeza, quando, como Araripe nior, se destaca que, embora Semprônio (o Távora das cartas)
faça algumas observações realmente lidas e conscientes, isso o o impede de estar animado
principalmente pela goa. Este sentimento, no entanto, ultrapassa o âmbito individual para
intensamente se ressentir dos problemas sociais, e também dos políticos e literários. Sendo
assim, a apreciação atrelada à consideração das ideologias e atuações intra e extraliterárias de
vora fazem parte, direta ou indiretamente, da sua fortuna crítica como parâmetros, e formam
um importante conjunto que se tornou, sob determinados aspectos, “indispensável” para a
análise de seus trabalhos críticos e artísticos.
27
Por outro lado, a psicologia do escritor e as inflexibilidades crítica e ideológica, plenas
de uma sensibilidade aflorada, próprias dos espíritos passionais e intensos, são ingredientes que
dão às produções de Távora e à sua atuação no cenário literário um papel e um aspecto
singulares. Silvio Romero sublinha o fato de o autor ter sido o primeiro a destacar as classes
populares e a fazer delas a base dos seus romances, valorizando-lhes os costumes, o cotidiano e
o ambiente, colocando as elites em segundo plano, além do “cunho naturalístico que infundiu
nas cenas”, e da dramaticidade. O que torna claro, como demonstra Célia Pedrosa, que o
“empenho intelectual serve à afirmação do homem enquanto indivíduo e cidadão, definindo-se
em fuão das necessidades de seu próprio tempo e meio”. Por conseguinte, o posicionamento
diferenciado de Távora demonstra que “o esclarecimento que tem por meta implica na
divulgão de idéias e na instauração do debate, a fim de desestabilizar dogmas e preconceitos e
dinamizar a coletividade” (PEDROSA, 1992: 283). Por isso conseguiu estabelecer novos
paradigmas e discussões proveitosas não apenas dentro do cenário literário. Antonio Candido,
cuja análise é das mais completas dentre os historiadores e críticos que se debruçam sobre o
romancista, vem reforçar a idéia de a importância de Távora residir igualmente no fato de ter
levado alguns valores literários à discussão, propiciando a revisão de muitos princípios
artísticos, como o uso da imaginação em detrimento do papel da realidade, da mesma forma que
os debates acerca da Literatura do Norte geraram um campo fértil para as gerações seguintes:
O nacionalismo romântico, cioso da terra e dos feitos brasileiros, se
transformou lá, graças a este processo, num regionalismo literário sem
equivalente entre nós e bem ilustrado nos romances de Franklin Távora.
Távora foi o primeiro “romancista do Nordeste, no sentido em que ainda
hoje entendemos a expressão e deste modo abriu caminho a uma linhagem
ilustre, culminada pela geração de 1930, mais de meio século depois de suas
tentativas, reforçadas a meio caminho pelo baiano fluminense d’Os Sertões.
(CANDIDO, 2000: 267, 268, grifos nossos)
Constata-se, então, através do discurso judicioso sobre Távora, que ele é visto como um
dos primeiros escritores que suscitaram novas propostas literárias, além de ter introduzido uma
compreensão da nacionalidade diversa da que era veiculada à época do Romantismo, por ser
mais consciente literária, social e politicamente –, e que se convencionou chamar de
Nacionalismo Nordestino. Sua escrita não deixa de ser um ato de provocação literário,
político e social. Seus romances tentam representar os problemas advindos das estruturas
sociais do século XVIII e XIX do norte do país. Do mesmo modo, seu nacionalismo antanico
vai na contramão do patriotismo de sua época, em que “o nacionalismo é a ideologia de base
28
que costura [...] projetos das elites letradas e a valorização da natureza tropical” correspondendo
“às necessidades ideológicas de uma recém-emancipada ‘aristocracia’ nacional (REIS, 1992:
79). As narrativas estudadas escapam do exotismo que o tema agregou diversas vezes em obras
nacionalistas, ou que tinham apenas o fim de mostrar o desconhecido para deleitar ou
surpreender.
Assim, existe o diferencial de romper com a “construção de uma história literária, como
a de uma árvore genealógica que “se faz com o ocultamente das diferenças e
descontinuidades” (SÜSSEKIND, 1984: 33): só o fato de as narrativas se voltarem para a região
que não figurava na grande maioria dos romances da época configura a negão de tal
procedimento. No que tange ao nacional enquanto identidade, existe uma ruptura na concepção
ufanista, utópica, principalmente em O Cabeleira, em que um criminoso feroz é redimido na
pena do autor, que reinventa rios elementos de sua história atribuindo-lhe um outro
significado. Com a incorporação literária do Cabeleira e o modo como Távora resolve dar corpo
à sua lenda, o expostas as “marcas da diferença” no discurso e no âmbito literário
nacionalista, uma vez que a aparente igualdade interna é colocada em xeque e o bandido, o
delinqüente, choca-se com a figura do índio, que se tornou o protótipo do herói da tria. Seus
marginalizados convertidos em heis representam a negão desse modelo e a proposta de um
olhar voltado para a realidade da nação, ainda que isto seja transmitido algumas vezes de
maneira utópica.
De várias formas Távora vai contra esse discurso do poder em que a literatura
compactua com a ideologia das camadas sociais dominantes daquela época, cujo nacionalismo
privilegiava uma pretensa totalidade e não as diferenças internas, nem trabalhava com aquilo
que distinguia os homens no espaço social, como destaca Roberto Reis (1992: 83). O resultado
dessas constatações não está totalmente dissociado do Romantismo e nem totalmente arraigado
no Realismo-Naturalismo, mas se estabelece como reação que aponta para um importante
momento de transição. E mesmo a configuração de um certo Romantismo brasileiro,
correspondente ao da terceira geração, é perfeitamente coerente com muitos anseios e posturas
de vora, e com um empenho intelectual consciente e atuante.
Como voz dissonante, Távora insuflou-se contra a hegemonia do Sul, na época a Corte,
e criou a sua chamada Literatura do Norte. Por conta disso, foram motivadas várias discussões
e, provavelmente, os seus romances conseguiram ganhar uma maior notoriedade devido à
polêmica literária à qual estão atrelados, como é o caso dos que são objeto desse estudo. O
Cabeleira, O Matuto e Lourenço são os romances que “materializam” as propostas do autor, e
são justamente os que entraram para a posteridade, o que evidencia a validade e a necessidade
29
de uma literatura voltada para a região que com o tempo se tornou ainda mais periférica: o norte
do país, sobretudo em seus lugares mais afastados das cidades, como o sertão. O mesmo se deu
com o projeto de Távora, que pode, neste sentido, ser encarado como paradigma para seus
sucessores.
Esta proposta, contudo, gerou alguns conflitos, que são apontados pela crítica. A questão
Norte-Sul, que vem expressa no prefácio de O Cabeleira, é um dos pontos mais condenados e
esassociado à discussão iniciada nas Cartas a Cincinato, também muito reprovadas. Trata-se
de duas atitudes consideradas desinteligentes, como indicam Lúcia Miguel Pereira, Alfredo
Bosi e mesmo José Veríssimo, que esteve a par de toda a questão, pois trocava correspondência
com vora. No que tange à particularidade das duas premissas (a do Norte como sendo
superior e a da representação nacionalista de Alencar), Veríssimo afirma:
Nestas condições tal insurreição, como outras quejandas, e tanta coisa da
nossa vida literária, era apenas uma macaqueação de idênticas rebeliões nos
centros literárias europeus. Com violência que tanto pode haver sinceridade
de convicções como a congênita irritabilidade dos poetas, e sob o
pseudônimo de Sempnio, atacou Franklin Távora a José de Alencar...
Ainda que banindo da literatura e da vida, como devem ser quaisquer
estreitas pretenções nacionais, de todo impertinentes na ordem intelectual,
essa obra de Franklin Távora, aliás apreciável como crítica e como estilo, era
uma má ação.” (1963: 236-237)
vora, estilisticamente um bom crítico, consideração feita também por Silvio Romero,
passaria igualmente pela rigidez da análise (que ele afirmava duvidosa e ironicamente ser
bem intencionada) que teve para com Alencar. Para Massaud Moisés, que faz um estudo severo
sobre ele, a instauração da “Literatura do Norte” é “fundamentada num vago determinismo
geográfico e num sentimento regionalista que seria aceitável não fosse levado ao
extremo” (1984: 300). De fato, fruto de um pesar pelo papel literário periférico e ao mesmo
tempo de um apaixonado nacionalismo literário, as investidas de vora referem-se a uma
tentativa de elevar o conceito de sua região e seus escritores (incluindo ele próprio), e de atrair
os olhares da Corte, totalmente voltados para o Sul. Por isso, pode-se mesmo interpretar sua
proposta como a de um nacionalismo nordestino, de cunho regional, embora Franklin Távora
não tivesse usado o termo. Suas críticas tinham a intenção de trazer de volta a atenção e a
hegemonia perdidas.
A opinião da maioria dos estudiosos, no entanto, é de que as asserções de Távora estão
fundamentas em um separatismo perigoso e nocivo, principalmente levando-se em conta que
ele teria afirmado, em prefácio ao livro O Cabeleira, que cada parte do país tem a sua literatura
30
e “há de ter, se já o tem, sua própria política”. Tristão de Athayde é quem encara a discussão
de outro ângulo, posicionando-se de forma diferente, entendendo a questão Norte-Sul como um
fator próprio do Brasil, em termos de características artísticas próprias, tal como se dá, desde
longa data, nasica, no folclore, na literatura, nos costumes, pois
o fundo de verdade é que a unidade brasileira, milagre e nervo da nossa
história, inclusive literária, não é, nem nunca foi, uma unidade mecânica. É,
como já dissemos, uma unidade vital, isto é, uma unidade orgânica que só se
entende dentro da variedade. Assim o foi e continua a sê-lo por motivos
geográficos, políticos, econômicos, psicológicos, motivos de toda ordem. O
clima, a configuração da terra, a paisagem, tudo o que forma o ambiente
físico no qual se desenrola o drama histórico do homem e da nacionalidade,
não é uniforme no Brasil inteiro. (1980: 489)
Veríssimo, amigo do escritor, disse dele: “o bairrismo, o irredutível provincianismo do
meu saudoso Távora, e a sua concepção romântica do que é brasileiro, empanaram-lhe a
visão” (1977: 78). Forçoso é observar que o embate Norte-Sul existia não apenas no discurso
dos literatos, mas igualmente no dos críticos sinal evidente do quanto a questão da
nacionalidade, alicerce ideológico do embate, era uma inquietação conflituosa. O próprio
Veríssimo chega a dizer que “Geograficamente, Norte e Sul são distintos, e talvez, ao contrário
do sentimento bairrista de Franklin Távora, sob o aspecto da beleza e do pitoresco, com
vantagem do Sul.” (idem: 75, grifo nosso). Em sua História da literatura brasileira, Veríssimo
incorre em impropriedade maior, afirmando que Távora, assim como outros escritores da época,
ficavam “indiscretamente revoltados contra a legítima e natural preponderância mental do Rio
de Janeiro.” (1963: 238, grifo nosso). Silvio Romero, que partilhava das tendências tavoreanas
(mais que isso, tendências de época, embora algumas estivessem condicionadas à situação
geográfica ou à ideologia), atribui o afastamento imputado ao autor de O casamento no
arrabalde à sua insubordinação, pois o “escritor nortista apareceu no meio deles sem lhes
abaixar a cabeça, e, ao demais, tendo a coragem de falar em Literatura do Norte...” (1943: 98).
As apreciações, em geral, condenam as críticas feitas a Alencar, e os próprios ataques de
vora hoje servem como mediadores na avaliação de seus romances. Tais ataques têm como
principal referência o estilo de Alencar, concorrendo para o prejuízo de Távora. Não obstante,
estas investidas não devem ser reduzidas apenas a uma discórdia pessoal e geográfica. Existe
por parte da crítica uma indisposição que leva a uma comparação com Alencar. Além disso, a
tese Norte-Sul es prenhe de outros fatores mais profundos, de ecos permanentes, como é
possível verificar no discurso de Gilberto Freyre, anos depois do manifesto regionalista presente
31
em O Cabeleira, quando essa consciência regional reaflorou ganhando novas proporções, como
observa José Maurício Gomes de Almeida: “Constitui fato revelador que o pretenso purismo
nacionalista invocado por Franklin Távora a favor da cultura nordestina reapareça, já na década
de 1920, na pena de Gilberto Freyre, der do movimento regionalista que se processa então no
Recife.” (1999: 95).
O receio da derrocada dos princípios nacionalistas era um dos principais debates da
época, além da busca por uma preponderância literária (regional, mas também pessoal, no que
tange aos escritores). Além disso, a idéia de que o Norte abrigava as condições para a
elaboração de uma literatura nacional “constitui um mecanismo nítido de racionalização
compensatória para a perda efetiva de importância da área sociocultural do Nordeste no cenário
nacional. (ALMEIDA, 1999: 94). Importa ainda saber que, como retomado por Gilberto
Freyre, e com a mesma intensidade entusiasta de Távora, o nordeste significava uma
preocupação, como o prenúncio de uma piora de muitos dos fatores discutidos na época. E na
querela entre a província nortista e a então Corte sulista, embora haja um ingrediente de
separatismo, existe a realização do projeto tavoreano nos temas próprios à região periférica do
país que serviriam de base para uma gama de criações artísticas, de inovações que
revolucionaram a literatura, dando vazão ao regionalismo do século XX, cumprindo-se, assim,
um objetivo também no plano social e artístico.
Assim, a posição crítica constitui, em seu conjunto, a expectativa de encontrar
elementos que formem o arquétipo histórico-literário, propiciando-lhe uma organização
sistêmica. Portanto, considerando aqui os estudiosos que estão ligados ao autor em questão e o
que foi percebido em suas avaliações, as produções artísticas deveriam possuir características
particulares, plenamente consonantes, que as definissem numa escola literária, por exemplo. O
trabalho de Távora, no entanto, é peculiar, pois suas obras não seguem um esquema rigoroso. O
próprio projeto literário do autor possui algumas características amplas, indefinidas e algumas
vezes desconexas, insólitas, não suprindo por isso a expectativa de seus “censores”. Dois fatores
primordiais foram responsáveis pela inserção de Távora no arcabouço histórico-literário: o
projeto literário que engendrou, de maneira determinante, e as discussões que suscitou sobre o
métier do escritor, bem como as suas soluções estéticas, relacionadas também a um ambiente
situado dentro de um espaço nacional diferenciado. Tal aspecto provém da angústia da
emancipação, da influência, da identidade, da tradição.
O discurso ideológico tavoreano e sua elaboração artística formam uma imagem
holográfica em que é preciso posicionar um objeto sob a luz e movimentá-lo devagar para que
se possa distinguir cada emblema, cada imagem sobreposta. E num holograma, embora a
32
imagem se mostre sob a luz, vista em uma posição minimamente diferente, reflete uma cor
diversa. Esse mecanismo pode ser perfeitamente relacionado com a crítica, de um lado, e com
as ideologias e as produções literárias de Távora, de outro. Assim deve se posicionar o
intérprete da obra: deslocando-se devagar para distinguir com clareza sobre o que pode ou o
ser conflitante na obra artística. Pois, não podemos nos esquecer de que a crítica que consagra é
também aquela que condena, que determina e recomenda ao mesmo tempo em que exila, que
livra e oprime:
É muito difícil que um saber esteja desvinculado do poder. Com isso
deduzimos que os textos não podem se dissociados de uma certa
configuração ideológica, na proporção em que o que é dito depende de quem
fala no texto e de sua inscrição social e histórica. O que equivale a afirmar
que todo texto parece estar intimamente sobredeterminado por uma instância
de autoridade. O critério para se questionar um texto literário não pode se
descurar do fato de que, numa dada circunstância histórica, indivíduos
dotados de poder atribuíram o estatuo de literário àquele texto (e não a
outros), canonizando-os. (REIS, 1992:69).
Pode-se observar, portanto, que a preocupação expressa na análise da fortuna crítica de
vora, e no próprio discurso romanesco deste, é a mesma: o caráter da literatura e suas
implicões transformadoras. Assim, os esteios” da crítica não diferem tanto dos anseios do
escritor; com a diferença da posição que ocupam dentro do cenário literário e do fato de que de
um lado se “julga”, e do outro, se “é julgado”. Além do que, é preciso estar atento para o efeito
canônico e suas implicações, pois existe no ato de criticar uma relação de poder, própria da
escrita, em que este parece suprimir a parte mais importante deste ato – a análise: “crítica: não é
por acaso que um termo negativo designa todo o julgamento sobre a arte, como se julgar o
pudesse ser senão recusa, como se fosse impossível que afinal a crítica admire... (PICON,
1970: 15).
O passado na berlinda
Uma outra discussão prenhe de indeterminações e equívocos está relacionada ao tempo
em que se detém a enunciação nos lineamentos de O Cabeleira, O matuto e Lourenço. A
literatura, nestes três romances, é enredada pela história. Ou seria o contrário? Talvez falte um
consenso capaz de unificar o que alguns censores de Távora segregam, pois não assimilam a co-
relação entre história e literatura. Não obstante, desde que se convencionou colocar história e
literatura contra o reverso de um espelho, passou a haver uma relativização de seus discursos.
Ainda agora que o romance histórico metaficcional atinge seu auge, alguns estudiosos trazem à
33
discussão a relativização de seus papéis discursivos, a questão damesis e do imaginação, do
efeito de real etc., tal como Antoine Compagnon questiona: “mas para que procurar ainda
conciliar literatura e história, se os próprios historiadores o crêem mais nesta
distinção? (2003: 222). Analogamente, por tal motivo, essa (in)conciliação também passa
transversalmente pelo discurso dos estudiosos das obras de vora. Incluindo todas as
propriedades singulares e perturbadoras dos textos e das idéias do escritor, essa problemática
atinge proporções complexas quando são cotejadas com seu projeto literário.
Ao propor o seu manifesto regionalista, o que Távora mais sublinhou foi o cuidado que
se devia ter com o nacional, sobretudo condicionado à sua região, transformado literariamente
de maneira consciente, de modo que aí se estabelecesse uma percepção da realidade como um
topos da identidade emancipada, do empenho de transformão social e de reflexão
transformadora. Nas suas apreciações das obras de José de Alencar, principalmente de O
Guarani, Iracema e O Gaúcho, critica principalmente a carência de tirocínio gerado através do
contato com o ambiente representado na prosa do conterrâneo – o representar aquilo de que não
se tem conhecimento direto, abrigando-se apenas no uso da imaginação e do conhecimento
indiretamente adquirido. Assim, um dos traços primordiais na elaboração romanesca de Távora
es relacionado à questão da realidade subjugada ao uso exclusivo da imaginação, ao grau de
inventividade; portanto, um embate entre “realidade e fantasia. Por conseguinte, como se
estivessem sob um véu, quando relacionadas à escolha de uma óptica histórica na composição
de suas produções da maturidade, as dicotomias realidade-fantasia/observação-imaginação
estão cobertas por uma outra mais genérica, alicerce da questão: a relação verdade-mentira. Ou
seja, também uma questão sobre imaginação versus história.
Por isso, segundo a perspectiva do escritor, o primado da observação seria o elemento
que suplantaria a interpretação exclusiva e arbitrariamente idealizada da realidade e do
ambiente que cerca os agentes da criação romanesca, atuando como um corretivo dos excessos
da imaginação. Além disso, esse método está claramente vinculado à expressão de um cuidado
com o ambiente que cerca o escritor, sendo que, no caso de Távora, é em especial a região
fisiográfica e suas características. Seu esquema inventivo es pautado nas apreensões de um
resgate da autonomia da região, do trato com as origens e com as tradições culturais, por meio
das quais geriu o seu projeto regionalista. Quando esse desígnio é rotulado unicamente como
uma “virose separatista”, é encarado por alguns examinadores como um projeto meramente
localista. No entanto, a consciência das agruras sofridas no ambiente geográfico em que vivia –
sofrimento que de alguma forma atingia todos os habitantes (desde matutos até intelectuais) – e
a tentativa de saná-las de alguma forma, eram idéias fixas para o escritor cearense, que se
34
empenhava vivamente em modificá-las, e esses motivos estariam acima de uma alegada ótica
separatista. Távora estava em consonância com as inquietações da época ao tentar forjar e fixar
uma origem, tanto nacional quanto literária, que certamente provoca nele a reflexão sobre os
mesmos problemas, canalizando-os, no entanto, para a porção setentrional do país, a qual
priorizava e era vista como apropriada para representar a nacionalidade. Neste sentido, para o
autor de O Matuto, o escritor deveria centrar forças no sentido de fazer perceber a realidade,
vivenciando-a. Assim, a obra deveria incluir comprometimento social, num papel engajado que
procurasse estabelecer uma relação estreita com o blico leitor para proporcionar, de alguma
forma, a transformação da realidade:
Uma transformação de um mundo apenas esteticamente é uma ilusão, porque
é uma construção artificial, à margem do mundo real, uma fuga e não uma
mutação do mundo real. A obra de arte não pode substituir o mundo; mas
indica, sugere, persuade que esse mundo pode ser transformado. Portanto,
deve ser definido o “uso humano da obra de arte” para usar uma expressão
de L. C. Lima que justamente ataca a literatura como “fetiche”, perguntando-
se como a literatura pode se ultrapassar, sem negar e assumindo sua
especificidade.
Isto só se realiza dando um salto, saindo do mundo imaginário para o mundo
real em que ela vai funcionar. (FURTER, 1974: 106)
Mas se todo esse cuidado incide sobre a observação e sobre a experiência imediata com
a realidade, o que dizer quando o olhar observador se volta para o passado e em que experiência
sua narração pode se ancorar? Deste modo, além da problemática do relacionamento que
começou a se delinear entre história e literatura, fazendo esvaecer suas fronteiras outrora
aparentemente tão bem delimitadas, o entendimento de um projeto que, com tais características
(observação, realidade, certo tolher da imaginação, preocupação social etc.), resolve-se por um
viés que se insinua desvinculado do presente, ainda é uma outra incumbência outorgada à
análise crítica.
Abre-se então outra discussão a partir da qual este exame se debruça: o estudo analítico
de O Cabeleira, O matuto e Lourenço se debate com o aspecto histórico das obras,
principalmente ao relacioná-las também à proposta literária do autor. Mas não são deixadas de
lado as suas polêmicas posições ideológicas, pois também estão presentes no bojo da crítica,
ainda que algumas vezes isso se de forma velada (como aquele véu que procura esconder
uma argüição já contaminada por uma certa intolerância). Ao considerarem a proposta do autor
e seu resultado literário, determinados críticos não reconhecem entre os dois uma lógica.
Alguns julgam frustrada a proposta da Literatura do Norte, incompatível com a primazia da
35
imaginação, e mesmo a estrutura das obras revela-se problemática para outros. Fica a
apreciação resolvida a favor do documento, ou seja, alguns críticos o atribuem valor artístico
às obras de Távora. E documento não é o mesmo que literatura, o tem relação alguma com o
imaginação e com o processo literário de composição. De acordo com a perspectiva que se
adota e ao que ela se dirige, não tem mesmo, sobretudo se os indícios de literariedade são
nimos, e porque o documentário é exclusivista, o paradigma é o da reprodução pura e simples
que toma para si uma dimensão de verdade incontestável.
Ao analisar as “apreciações” que Távora faz nas Cartas a Cincinato sobre a obra O
Gaúcho, José Maurício Gomes de Almeida observa que “ao censurar o autor do romance por ter
preferido a criação imaginária à transposição histórica, Franklin Távora revela de modo indireto
sua própria atitude estética e o ponto fraco de sua concepção de romance”, uma vez que parte de
um procedimento que parece privilegiar a consideração dos fatos “reais”. Por esse motivo, “não
consegue estabelecer uma distinção entre verdade histórica (adequação do narrado aos fatos
efetivamente ocorridos, por conseguinte externos à obra) e a verdade romanesca (que depende
da coencia interna)” (1999: 87). Nos livros em que o presente trabalho se detém, emoldura-se
o cuidado com os fatos cujos efeitos marcaram não somente a região em seu contexto, mas
também o eco deixado no ar posteriormente, da mesma forma que os elementos do imaginário
são diluídos na narrativa. Contudo, o estudioso completa:
Assim procedendo, Távora ao invés de criar uma novelística fundada na
observação direta dos fatos como preconizava [...], retorna ao romance
histórico romântico, sem o talento suficiente para fundir os elementos
tomados às antigas crônicas com as figuras e fatos necessariamente
imaginados. O resultado torna-se desequilibrado: não chega a ser história e
não consegue realizar-se de forma plena enquanto ficção. Ao localizar a ação
de seus romances em épocas pretéritas, torna impossível o aproveitamento
de uma experiência direta, vivencial, do ambiente descrito, e incorre assim
no pecado de “literatura de gabinete” de que acusa Alencar, com a
desvantagem de não ter em seu socorro a força criativa que, no outro, supria
com vantagem a observação direta. [...] Situando suas narrativas no culo
XVIII, o autor de O Cabeleira se priva da possibilidade de uma observação
efetiva da realidade social que lhe serve de matéria, devendo contentar-se
com pesquisar as fontes históricas. (ALMEIDA, 1999: 87-89)
Assim, existem duas problemáticas sobre o discurso histórico na produção tavoreana: a
primeira traduz, em parte, o próprio conflito entre os discursos da história e da literatura e suas
instâncias disciplinares (a pretensamente científica para uma e a artística para a outra), e a
segunda refere-se ao tracejar de um plano literário cuja prática revela-se interpretada como
ilógica e/ou incompatível. Principalmente porque, segundo Roland Barthes, a narração dos
36
acontecimentos passados é submetida comumente “à sanção da ‘ciência’ histórica, colocada sob
a caução imperiosa do ‘real’, justificada por princípios de exposição racional’” (1988: 145).
Para que a reconstrução e a narração do acontecimento histórico sejam pertinentes e possam
efetivar o seu poder baseado na idéia de verdade deste acontecimento, é necessário um talento
que, ao escolher e organizar discursiva e temporalmente seus elementos, produza o efeito de
real. De certa forma, trata-se de uma sanção da imaginação que Távora consegue realizar
plenamente, ao cruzar fatos inventados com históricos, o que torna claro também que não tinha
o propósito de fazer obras históricas ou ficcionais, mas de considerar ambos os elementos, com
maior ênfase no segundo. Uma vez que “história e ficção são relatos que pretendem
‘reconstruir’ e ‘organizar a realidade a partir de componentes pré-textuais
2
(AINSA, 1997:
112), talvez não seja possível afirmar que a narrativa que se volta para o passado o tenha
relação direta com a realidade circundante do autor, pois é sempre o seu ponto de partida.
O tratamento dispensado ao tema da história enquanto construto enunciativo e enquanto
documento é sintomático: traduz a conflituosa relação entre a formação discursiva histórica e a
ficcional. O relato estritamente documental é frio e não admite qualquer pré-concepção ou
diálogo, porém, isso se aparentemente. Essa seria uma forma do discurso histórico
pretensamente objetivo, que suprimiria os signos do enunciante, “que é uma forma particular de
imaginário, o produto do que se poderia chamar de ilusão referencial, visto que o historiador
pretende deixar o texto falar por si só.(BARTHES, 1988: 149). Ou seja, o sujeito “anula” sua
pessoa passional para criar um “sujeito objetivo”. Contudo, ainda que se note um esforço, esse
não é o caso de Távora, que é fácil notar que existe um posicionamento subjetivo desse eu
que toma o partido do bandido, ao tentar redimi-lo mudando sua história, e o dos nobres,
favorecendo-lhes com diversos dotes. Desse modo, essa ilusão do objetivo “não é exclusiva do
discurso histórico: quantos romancistas na época realista imaginam ser ‘objetivos’ porque
suprimem no discurso os signos do eu!” (BARTHES, 1988: 149).
A censura de JoGuilherme Merquior refere-se tanto ao caráter documental quanto ao
que vora constrói de fabuloso, pois ele sublinha que, “exceto em Lourenço, [...] Távora
fracassa na animação dos seus caracteres: seus romances documentais são, afinal, muito mais
documentos que romances”. Por outro lado, demonstra que o tratamento dado aos elementos da
inventiva o lhe agradam igualmente, ao afirmar que “todavia [...], os personagens são
romanticamente heroicizados, os diálogos são ‘literários’ demais”. (1977: 99). Ao fazer suas
afirmações ressalta as discrepâncias de Távora, características que o um demonstrativo das
2
“história e ficción son relatos que pretenden ‘reconstruir’ y ‘organizar’ la realidad a partir de componentes pré-
textuales” (AINSA, 1997:112, a tradução para o português é nossa)
37
sinuosidades conflituosas que perduraram por um longo período até que o Romantismo tanto se
fixasse quanto se diluísse completamente à medida que outras tendências iam se estabelecendo.
A fluidez dos gêneros vai se dissipando na medida em que a literatura brasileira vai adquirindo
contornos mais firmes. Hoje a linha que os divide tem a transpancia relativa de uma marca
d’água: tem a transparência que evidencia suas co-relações e a visibilidade que garante suas
particularidades, o que pode perfeitamente se aplicar aos resultados dos trabalhos nos quais este
estudo se detém.
Como as apreciações não se limitam apenas ao caráter documental, existe ainda o
questionamento quanto à filião regionalista de O Cabeleira, O matuto e Lourenço, pois
vora as relacionou e as inseriu num esquema, pretendendo com elas consolidar o plano de sua
Literatura do Norte, com elementos “verdadeiramente nacionais”, “e isso seria regionalismo,
ainda que vora não tenha usado a expressão (COUTINHO, 1955: 899). Afrânio Coutinho
começa por dizer que O Cabeleira é um romance histórico, usando as asserções do próprio
vora, contidas nos prefácios dos referidos livros. Seguindo a mesma estratégia, observa que
os outros dois romances, pelo próprio subtítulo que ostentam, o de crônica pernambucana,
limitam-se unicamente a uma filiação histórica, pois “o autor documenta fatos e até
personagens, repetidas vezes”, o que “não prova, apenas, que os romances de vora eram
históricos e não regionalistas”, mas também que “era um mau romancista, sem imaginação, sem
capacidade inventiva”, porque suas concepções de romance e dos movimentos literários “eram
primárias e falhas” (idem, ibidem). Por seu turno, há aqueles que, como Alfredo Bosi, entendem
que justamente por “sua vocação real [ser] antes a história que a arte, soube exprimir-se de
modo mais convincente nessas páginas coloniais do que na fatura do Cabeleira (1975:
162-163), talvez pelo fato de que Távora reconstrói a história de uma forma diferente da história
“real” da personagem e, ademais, toma o partido dela servindo-se de vários recursos para
atenuar a má fama do cangaceiro.
Na História da literatura brasileira, de Lúcia Miguel Pereira, a análise dos romances se
prende mais às características históricas das obras. De acordo com o seu ponto de vista, foi
talvez reconhecendo os obstáculos” quevora “escolheu a história; quis ser historiador – o que
representa uma limitação para o romancista e historiador moralista limitação ainda mais
grave – buscando no passado exemplos da influência do meio e da educação sobre o indivíduo.
(1988: 48). Com a ascensão do romance histórico e suas novas acepções nos dias de hoje, ser
historiador não é mais necessariamente uma limitação para o romancista, uma vez que os
próprios limites entre a ficção e a história tornaram-se solúveis, principalmente desde que foi
revelada a proximidade da escrita da história com os modos literários de narrar. Do mesmo
38
modo, existe uma superfície da ficção que proporciona um modo diferenciado do conhecimento
da história, a partir do momento em que esta deixou de ter a credibilidade incontestável de
antes, quando se considerava que a escrita da história não possuía limitações convencionais da
probabilidade ou possibilidade. No entanto, desde então muitos historiadores utilizaram técnicas
da representação ficcional para criar versões imaginárias de seus mundos heróicos e
reais.” (HUTCHEON, 1991: 142).
Embora tivesse se adiantando em outras tendências, a preferência de Távora pelo
tratamento histórico estava consoante com o ideário nacional e rontico, do qual nunca se
desvencilhou. E, como já foi visto, o discurso histórico, mesmo o que se acredita mais objetivo,
foi igualmente marcado pelo ressumar de idéias que fermentaram, sobretudo entre o período do
romantismo e do realismo. E “um primeiro elemento diferenciador das utopias românticas é
que “elas carregaram consigo, quase que invariavelmente, uma concepção peculiar de história e
de temporalidade” (HUTCHEON, 1991: 52). Neste sentido, a marca do século XIX será a
história, que transforma a literatura e a arte em objetos de conhecimento. É assim que, “entre
todas as perspectivas às quais se vê submetida a obra de arte, desde então, nenhuma existe mais
constante do que a história (PICON, 1970: 149). O Cabeleira, O Matuto e Lourenço são os
trabalhos que traduzem o anseio por alcançar e difundir o conhecimento dos fatos que
contribuíram para a formação da nação. A preocupação e o zelo historicista o suprimem a
preocupação e o desvelo artístico, assim como (e isso é exemplar) não destitui a fantasia.
A apreciação das obras na ótica da crítica ainda observa que, devido “às contínuas
intervenções do autor”, a leitura de O Cabeleira seria prejudicada, que o narrador
constantemente se reporta à sua própria época, para depois retornar ao passado, o que comprova
então a existência da observação da “realidade direta”. Todavia, determinados críticos
concluem sobre esta narrativa que a história do bandoleiro seria preciosa como documentação
folclórica. Em relação a este livro, O Matuto é tido como superior devido à estrutura, à eficácia
do drama e à superioridade das cenas. Talvez isso se deva também ao fato de este livro e
Lourenço não possuírem um prefácio funcionando como “cartaz” para as idéias do autor, e as
narrativas não se mostrarem tão preocupadas com a veiculação de suas idéias, não sendo,
portanto, tão panfletárias. Em O Cabeleira diluem-se na voz do narrador muitos dos ideais do
autor, enquanto em O Matuto e Lourenço, embora essas intromissões também existam, o,
contudo, mais genéricas. Ainda são vistas com incômodo as evocações do presente misturadas
aos fatos do passado mais uma manifestação de que, embora a ação se situe no passado, o
foco da narração está comprometido com o presente, além de cruzar os elementos do passado
com as observações diretas da realidade coeva ao escritor, mesmo que feitas em recortes. Da
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série que encerra os romances em que o cenário se nutre da historicidade, a estudiosa julga que
“o mais bem escrito e o mais realizado como romance dos livros históricos de Franklin é
todavia Lourenço” (PEREIRA, 1988: 49-50).
Ressaltando o fato de vora “ainda estar muito preso ao romantismo, Lúcia Miguel
Pereira conclui que, cuidando do passado em lugar do presente, frustrou sua busca pela
observação da realidade, uma vez que, “juntando assim a reconstituição histórica à regional,
dificultaria sobremodo a tarefa”. Por isso, a preferência pelos dados históricos viria a “expandir
as suas convicções sem se lançar ao exame da sociedade contemporânea. O seu historicismo foi
assim um recurso semelhante ao regionalismo de Taunay, um desvio inconsciente para poder
impunemente chegar à realidade” (1988: 50-51). É preciso lembrar que, no entanto, à história
cabe o papel de reconstruir a partir de extratos do passado que se vinculam diretamente ao
presente, e o romance histórico acompanha essa lógica, desde o tradicional até o mais moderno.
A reconstrução do passado segue trilhas deixadas ao longo do tempo, partindo do tempo
presente.
Os romances e crônicas históricas podem orientar-se pelo nacionalismo, pelo
cientificismo, pelo realismo revolucionário, pelo desconstrutivismo, pela dessacralização da
história como monumento e/ou como verdade incontestável etc. Portanto, é uma vertente
literária cujas tendências também estão calcadas nos valores de época ou na superação de
movimentos e teorias anteriores. Assim, se vários elementos ligam a história à realidade, e esta
ligação está sempre permeada por uma visão de mundo, isso não quer dizer que a intenção
estabelece explicitamente seus referentes.
A narrativa que recupera a história da região serve a Távora para ressaltar não a
originalidade brasileira, mas o fato de que essa originalidade tem suas raízes e sua preservação
nas porções que se encontram na parte hiperrea do país. E a forma como posiciona as
personagens do povo, gente simples e de gênio forte, principalmente em O Matuto e Lourenço,
destaca-aso só como figuras que se movem dentro da ação, mas como figuras que interferem,
comprovando a crença do autor na foa popular como detentora do poder de interferir em sua
própria realidade:
Como um vasto e integrado conglomerado geocultural, a nação era vista,
sobretudo, como manifestação inconsciente e espontânea do ‘gênio’ ou
‘espírito popular’; todas as manifestações históricas seriam, assim,
portadoras privilegiadas de destinos insondáveis e vastos objetivos.
(SALIBA, 1991: 36).
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O modo pelo qual é configurada a participação popular na guerra também procura
explicitar que o povo, além de compor uma importante engrenagem no mecanismo em que vai
sendo desenvolvida a guerra, interessado em impulsionar a efetivação de determinados
objetivos (autonomia política, desenvolvimento sócio-econômico), ao mesmo tempo se debate
entre a conservação de suas raízes e a proteção do que acredita lhe proporcionar maiores
garantias. Os conflitos sociais e políticos também são colocados nos termos da busca pela
emancipação da nação.
O esquema historiogfico “fragmentado de Távora acaba estabelecendo algumas
relações interessantes, mais ainda porque muitas vezes revela que não se fixa num quadro
esquemático rigorosamente delineado, e que não é servil e meramente restrito a registros
oficiais. Na descrição da época, dos acontecimentos, além das especificidades historiográficas,
existe também laboriosa releitura folclórica da história do cangaceiro e sua trupe. Assim,
vora acaba estabelecendo uma relação entre o histórico e o folclórico, aproximando-os,
pulverizando as diferenças entre fato e lenda, misturando-os de uma forma especular,
dialogicamente. Quadrinhas populares servem para conferir veracidade ao discurso do narrador,
agente fundamental na reedição do percurso de vida de José Gomes, retomado desde a infância,
uma vez que, na versão de Távora, o maior responsável pelos desvios do herói bandido seria o
próprio pai: Quem tiver filhos/ Saiba-os ensinar;/ Veja Cabeleira/ Que vai a
enforcar. (TÁVORA, 2003: 168).
O aspecto primordial que define Távora e sua obra é sem vida o seu sincretismo
ideológico e literário, combinado às particularidades da época em que viveu. É com certeza um
dos motivos pelos quais ele o “se encaixa” rigorosamente numa determinada escola literária:
ao mesmo tempo em que se liga a algumas concepções realistas, realiza “manobras” ficcionais
naturalistas, justificando a psicologia da personagem pelo viés da influência, por exemplo, e a
preocupação com a veracidade dos fatos: Esforcei-me por dar, quer no primeiro [O Matuto]
quer no último [Lourenço], uma idéia o completa quanto possível, dessa guerra [dos
mascates]” (TÁVORA, 1972: 2). Mas é um rontico contaminado pela própria passionalidade
de suas opiniões, no afinco com que tenta fazer valer seus princípios, na insistência da luta por
seus ideais e na caracterização da psicologia passional das personagens. Atrelado à concepção
histórica da literatura (ou à concepção literária da história?), a marca mais profunda que deixou,
contraditoriamente à pouca notoriedade que conseguiu, é sem dúvida a do regionalismo,
acrescente-se histórico, devido à clara noção que tinha das rias dificuldades que degradavam
o nordeste e das especificidades da região.
41
Assim, o sertão da civilizão e da barbárie de O Cabeleira, da guerra e do interesse de
grupos restritos e detentores do poder representados em O Matuto e Lourenço, seguiu sua
marcha, muitas vezes sem encontrar curva no caminho que modificasse sua feição, e muitas de
suas características permanecem imutáveis: “no Brasil, desde o primeiro século da colonização,
vai sendo chamado de sertão o interior e a palavra carrega consigo os significados de interior,
indesbravado, selvagem, desconhecido, não-urbano (GALO, 1974: 36, grifos do autor), tão
diverso que até hoje, levando em consideração as características de determinados lugares,
cidades “geograficamente é impossível caracterizá-lo: é a caatinga deserta e sem água, é
campos férteis, é oásis” (idem, ibidem). O nordeste do país possui regiões singulares, onde a
diferença social, climática, política e cultural praticamente não possui meio-termo.
A temática regional de Távora, além de estar em harmonia com a apresentação dos
diferenciais da região a que se reporta, exaltando sua importância, es tamm com o caráter
histórico que adota quando se observa um outro aspecto, condizente com a história: os
substratos medievalizantes que a região conserva e que tamm estão presentes em suas obras,
caminhando pari passu com a história:
Se alargarmos a perspectiva e examinarmos o romance anterior a 1930, ou
seja, o regionalismo literário desde seu início, verificamos que essa
assimilação medievalizante se encontra. E mais: ela também é extra-
ficcional, pois está presente na obra de historiadores, de memorialistas, de
cronistas, etc. (GALVÃO, 1974: 37).
Esses substratos estão presentes até hoje, preservados, por exemplo, na literatura de
cordel. Os temas desse tipo de manifestação cultural e artística possuem, aliás, uma acepção
folclórico-histórica. Távora utiliza tais marcas medievais representando-as no comportamento e
no pensamento de personagens, na própria elevação tradicionalista dos acontecimentos e de
personalidades de tempos pretéritos, no resgate da cultura e da arte das trovas populares que em
muito se remetem a essa vinculação medieval etc. O pensamento de determinadas personagens
é outro fator que demonstra essa característica, uma vez que o posicionamento pelos senhores-
de-engenho como nobres não se apenas por serem eles filhos da pátria, ao contrário dos
mascates portugueses, mas também porque estes senhores tiveram longo poderio estabelecido
por uma relação de proteção e abrigo em troca de fidelidade, respeito e trabalho, seus engenhos
representando, portanto, a relação de vassalagem e senhorio da Idade Média. Esta feição
medieval, presente na constituição da personagem em O Cabeleira, também é nitidamente
42
exposta em Lourenço, no momento em que a personagem homônima vê preso João da Cunha, o
senhor-de-engenho dono das terras onde ele e a família moravam, o engenho Bujari.
Além disso, existe também a valorização dada ao título de nobreza e a forma como isto
é colocado na narrativa é outro traço: o nobre é o mais honrado, sua influência, sua autoridade e
até sua figura o quase divinas. Sem contar a clara divisão social entre nobreza, igreja e plebe
– os matutos caboclos, mestiços, escravos. Mesmo o posicionamento do narrador que privilegia
os nobres como uma classe superior pode ser configurado como uma forma de expressão desse
medievalismo. Através dessas características, a ficção histórica tavoreana concentra vários
elementos que possibilitam outras construções interpretativas.
Em vários aspectos os livros nos quais este estudo se detém lidam ao mesmo tempo com
a relativizão do fato histórico e com uma interpretação ficcional destes fatos. Tais livros o
parecem partir da idéia da mera “reprodução” ou do compromisso de estrita fidelidade factual,
sem, contudo, estarem totalmente rendidos pelos meandros da ficção. o poderiam fazê-lo
nem se essa fosse a intenção primordial, uma vez que a história o pretende necessariamente
excluir a estética... Ela a e simplesmente entre parênteses: não se pode fazer tudo ao mesmo
tempo. um tempo para estabelecer as fontes da obra; e um tempo para, na mesma obra,
matar a sede (PICON, 1970: 151). Ademais, como observado, o retorno ao passado não
subtrai a realidade, pois “uma trilha para a distinção e a mútua necessidade das escritas da
história e dos gêneros literários: [é que] a seu modo, cada uma delas contém um dispositivo que
as capacita a lidar com a realidade” (COSTA LIMA, 2006: 40). Uma coisa é certa: trata-se de
um tipo de narrativa melindrosa esta que se dispõe a caminhar no meio fio entre a história e a
ficção, ainda mais quando existe uma intencionalidade que as ultrapassa e aí se situam as
curvas sinuosas do percurso no/enquanto construto literário.
43
PARTE 2
O SONHO E A MOLDURA:
PROJETO ESTÉTICO E ARSTICO
“Sou um herege cnico [...]”.
(Franklin Távora, Casamento no arrabalde)
44
Holograma de um ideal
A exposição de um ideal estético em Távora começa a se esbar a partir de seu
primeiro romance, Os índios do Jaguaribe, de 1862. Embora Távora siga em sua totalidade os
passos de Alencar, tratando dos nativos que foram encontrados quando da chegada dos
colonizadores, além de destacar o importante papel do indígena, o seu diferencial está no
seguinte aspecto: primeiro tratar o indígena como parte orgânica de uma História do país, e não
sob a exclusiva ótica do indígena como um povo que será filtrado pelo branco colonizador. Ou
seja, a história do Brasil o começa, para vora, apenas a partir da consolidação da
miscigenação do branco com o índio, como em Alencar. Na sua pena, o país é um
conglomerado que se modificado e enriquecido pela chegada do colonizador. Este tra o
progresso, não apenas dará início ao “verdadeiro povo brasileiro. Se em Alencar isso se
constitui como o mito da origem do povo, em Távora o interesse se volta para os subsídios que
tirarão o povo da ignorância e do atraso, da selvageria, e seu interesse se volta sempre para os
processos históricos. A dualidade entre civilização e barbárie e os mecanismos que segregaram
o norte como uma porção esquecida do país, por meio de uma partilha “lesiva e desigual”,
configura uma visão que sempre critica a prosperidade do sul em prejuízo da do norte: “O que
era o Norte, então? Completo abandono, quase”. Sempre a angústia do abandono da região, que
o tornou algumas vezes separatista, outras incompreendido.
Poucos escritores possuíram essa febre pelo torrão regional e tal determinação em
desviar para ele os holofotes: “Malfadado foste, ó norte! desde os tempos coloniais, sempre mal
e tardiamente quinhoado, até mesmo no alimento da doutrina santa, que Deus manda derramar a
os cheias para sua maior glória!” (TÁVORA, 1984: 22-24). Ou seja, sua preocupação é
sempre regional, particular. Isto também é formulado através de uma pesquisa etnográfica e
histórica e se configura neste romance a ótica histórico-regional que iria permear a maior
parte das composições do escritor. Todo o enredo da narrativa está marcado pelo lamento de
que essa colonização o tivesse trazido ainda os benefícios do seu vigor imprescindível para
essas reges mais remotas do norte do país; daí a interpretação sobre o colonizador mais
voltada para a idéia de que é ele quem poderia trazer o desenvolvimento, o apenas cultural,
mas também econômico.
No episódio mais citado pela crítica, as Cartas de Semprônio a Cincinato: “encontramos
Franklin Távora [...] atacando José de Alencar [...] em nome da necessidade de se fazer uma
literatura que expressasse [o] Nordeste...” (GALVÃO, 1976: 35). Aqui não importa discorrer
novamente sobre o teor de discórdia e interesses que essa atitude tamm envolvia, mas
45
constatar que, ao criticar Alencar, Távora deixa patente o seu ideal estético, que se apoiava na
valorização da experiência baseada na realidade, encarando a imaginação exclusiva como algo
que a distorcia. Suas concepções eram, portanto, apoiadas nas teorias do positivismo, e tinha
suas ramificações no realismo-naturalismo, sem, contudo, se desvencilhar de algumas acepções
românticas, às vezes até em seu aspecto mais exacerbado. A crítica que fazia era como “diques
aos extravasamentos das imaginações superabundantes” (TÁVORA apud AGUIAR, 1997:
192). Para o escritor, não bastava tratar de algo literariamente se não fosse baseado na
observação e em suas fontes. Por esse motivo, afirma que Alencar, para escrever O gaúcho,
deveria conhecer as características culturais do meio neste caso, o Estado no qual a obra se
ambienta. Para ele, a experiência viva com a realidade estava fundamentada nos esteios de
Cooper, em que a observação funcionava como uma autêntica fotografia. o sem razão,
embora tenha ido morar no Rio de Janeiro em 1874, e tendo lá permanecido até a data de sua
morte, praticamente todos os seus romances tratam da região na qual passou a maior parte da
vida: o nordeste, pois o conhecia a fundo através de suas vivências lá.
Além disso, na análise que faz do referido livro do conterneo, observa-se que vora
tem o apuro do conhecimento das tendências de sua época e o levantamento das tendências
históricas em O Gaúcho é um exemplo que viria a ser reiterado e aproveitado nas obras O
Matuto (1878), Lourenço (1881) e O Cabeleira (1876). Ao mesmo tempo em que é
influenciado por estas tendências, desvia-se para outras extremidades, onde se esvaeciam
muitas das disposições românticas. Por isso, algumas vezes se confunde na apropriação das
teorias de seu tempo, o que o leva a cair em alguns “caprichos”, percebidos por pequenos lapsos
de inconstâncias no ritmo, tempo, causa e efeito, e/ou ação, que culmina em certos resultados
curiosos em suas narrativas. O caso da personagem Luisinha e seu reencontro com Cabeleira é o
exemplo apontado pela crítica que concentra alguns desses deslizes, em maior ou menor grau,
devido aos supostos: curto espaço de tempo na relação entre as duas personagens, a aceleração
dos sucessos narrativos e ao menor volume de peripécias e maior de descrição histórica.
Presente já nos exames que faz nas Cartas a Cincinato, a ótica histórica em vora vem,
portanto, reforçar o tratamento e a oposição entre inspiração e observação, instaurando novas
perspectivas para os trabalhos de criação literária. Como afirma Cláudio Aguiar, as discussões
teóricas presentes nas cartas revelam “as bases de uma tendência do romance brasileiro
seguidas, na época, sobretudo por Franklin vora, Visconde de Taunay e Machado de Assis,
os quais se constituíram numa espécie de geração intermediária que abriu caminho às hesitantes
novas idéias em sacrifício das formas gastas e em decancia da prosa romântica” (1997: 199).
Deste modo, seus romances constituem um marco de mudanças de mentalidade, estrutura
46
artística e estética. Além disso, nesta época iniciam-se “as primeiras tentativas de se fundar aí
uma historiografia literária nacional. E fundar a disciplina mesclava-se, neste caso, à idéia de
descoberta da origem da própria literatura nacional em sua diferença” que para o escritor estava
diretamente ligada às diversidades culturais, “enquanto dotada de singularidade e de marcas
inconfundíveis de brasilidade” (SÜSSEKIND, 1990: 16), no que as especificidades de cada
rego são o principal eixo sobre o qual se equilibrava a totalidade da “verdadeira essência
nacional”.
Desta maneira, Távora tem em seu benefício o fator primordial de seus principais
anseios: o primado da observação a seu favor, porquanto os elementos aos quais suas
composições estão ligadas, e dos quais tratam a experiência da região - ele conhece de cor, e
por isso tem uma grande familiaridade com as temáticas que elege para os seus romances,
conseguindo estabelecer através delas um diferencial que serve de inspiração para outros
escritores. A valorização da realidade vem como um respaldo também à rejeição de
estrangeirismos, como os parâmetros que eram seguidos na Corte, uma vez que, no projeto
literário do escritor, o sentimento do nacional e o desejo de fi-lo quase sem cula é algo
recorrente. Távora acabou sendo um dos primeiros a valorizar o espaço sertanejo, mas furtando-
se a fazê-lo de maneira passiva, o que deve ser entendido como algo que deveria fugir da
representação fantasiosa demais, resultado daquilo que era idealizado utopicamente, forjando a
realidade, distorcendo-a.
Concomitantemente a isso, o projeto de Literatura do Norte destaca o pensamento, a
cultura e a tradição nordestina, tentando atrair e reafirmar notoriedade para a rego. As
investidas literárias e críticas de Távora destacam a pobreza e o abandono num largo alcance, e
expõe as problemáticas de forma a destacar o modo excludente pelo qual a região é tratada,
como se o sertão o configurasse a parte de um todo da nação, e, por isso, suas reprovações
chegam a ser interpretadas como uma tentativa de repatriação de uma área sem rei nem lei. Os
protagonistas e o cenário de seus romances concentram esses preceitos e prerrogativas: a ordem
política e legislativa só aparece em casos extremos, por exemplo, nos de guerras e banditismo.
A forma pela qual percebia o espaço sertanejo foi um diferencial em relação aos
escritores de seu culo, pois explicitou sem meias palavras o progresso do Sul, que resultava
da “partilha prejudicial e irregular, impelindo o setentrião para o abandono (inclusive
demogfico); a conquista da civilização se consolidava criando um rio muito estreito, deixando
ao redor de si uma imensa margem, que por sua vez se ampliava cada vez mais, absorvida pela
barbárie: “A oposição que constrói sertão e civilização, na verdade, prenuncia o debate que
se acentuou nas décadas seguintes em torno da necessidade de integrar o espaço sertanejo pela
47
ciência e o progresso técnico.” (BARBOSA, 2000: 65), e foi isto que acabou sendo inserido de
forma direta em seus romances, dos quais o maior ícone é O Cabeleira, com a representação do
“advento” do cangaço.
A partir destas reflexões, Franklin Távora percebe que “a imagem da região precisa,
portanto, ser reelaborada, seguindo estratégias variadas, sendo, portanto,
vel (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006: 49), de modo a tentar, assim, desviar-se da
imaginação que mascara, para apelar para a imaginação que desvenda. Por isso, através de suas
questões, “o discurso regionalista não é apenas um discurso ideológico, que desfiguraria uma
pretensa essência do Nordeste ou de outra região” (idem, ibidem), pois se fundamenta numa
visão realista sem, no entanto, embotar o desejo de representação expressivo ligado à
imaginação. Neste sentido “o discurso regionalista o mascara a verdade da região, ele a
institui (idem, ibidem). Sua obra procura proporcionar a reflexão sobre as problemáticas que
são apontadas, de modo a estabelecer outras possibilidades que ultrapassam ou acrescentam
algo à criação artística. Hoje se observa que o Nordeste é uma produção imagético-discursiva
formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em
relação a uma dada área do ps.” (idem, ibidem).
Muito engajado e comprometido em todos os meios em que atuou (teatral, político,
crítico, literário e, por fim, histórico e geogfico, sem contar o envolvimento em outros
debates), o autor de O Cabeleira tinha uma percepção sagaz de muitas coisas. Porém, algumas
vezes radical, em certas ocasiões vinham-lhe em troca a ironia de resvalar nos mesmos erros”
que condenava nas Cartas a Cincinato (1872). Semprônio (pseudônimo que usava) criticou as
idéias paradoxais arranjadas em estruturas organizadas para “iludir os incautos”. Embora haja
motivos mais ou menos razoáveis, quando vora faz com que a personagem Luisinha
acompanhe tão espontaneamente o homem que acaba de agredir sua e, resultando em sua
morte, o leitor distraído que, num primeiro momento, não estranhe um perdão tão célere,
mesmo estando enleado por um sentimento amoroso e abnegado, tão intenso como o da herna,
cujas descrições e ações transformam-na praticamente numa santa. Nisto se percebe a ligação
ainda forte com o romantismo cuja “característica mais definidora [...] foi exatamente a
permeabilidade ao instável.” (SALIBA, 1991: 26). Tal aspecto movediço é notável nas idéias e
nas realizações artísticas de Távora, que o fazem transitar no meio-fio entre as concepções
realistas, naturalistas, e soluções muitas vezes românticas, como é dotado o século XIX, “um
campo onde se cruzam e entrecruzam, avançam e recuam, atuam e reagem sobre as outras, ora
se prolongando, ora opondo-se, diversas correntes estéticas e literárias.” (COUTINHO, 1997:
5). Deste modo, Távora é realista na sua oposição ao idealismo fantasioso e num certo recorte
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historicista presente em suas obras; naturalista na conceituação a respeito da influência como
força capaz de modificar o indivíduo, e romântico no olhar solidário que tem para com as
personagens de suas histórias, preservando-as por meio do sentimento amoroso e na crença de
que o homem é naturalmente bom e no nacionalismo por vezes exarcebado.
Em suas censuras a Alencar, deixa claros o seu ideal artístico e o intento de que este
deve estar dotado, afirmando que os romances devem ter sabor local, estilo apurado, devem ser
sensatos, naturais, moralizadores, uma “fiel fotografia social”. Mas, a despeito destes quesitos,
tais “iguarias”, porém, não “gratificam o paladar”, que não agradam o gosto hegemônico da
época. Disso advém um dos principais alicerces de suas obras. O panorama de seus romances é
essencialmente localista, centrado setentrionalmente, e o descortino de paisagens e lugares
exprime com perfeição o conhecimento do espaço representado em qualquer um de seus
trabalhos artísticos, de tal forma que promove uma ambientação praticamente plástica e
sensitiva no leitor; tanto que para muitos estudiosos estes constituem os pontos mais fortes de
suas obras.
Por isso, a questão sobre a observação do real, se analisada ainda por outro prisma,
suscita outra reflexão que leva a pensar na realidade da ficção. Uma fião que mente seria
aquela que, arbitrariamente, teria sido construída sob falsas prerrogativas e devaneios sem
qualquer consistência. Já a ficção que fala a verdade” seria aquela embasada nas experiências,
ainda que transmutadas, trabalhadas de uma outra forma, resultando numa forma ficcional
originária de uma vivência e/ou interação com a realidade. Neste percurso, Franklin Távora
acabou indo contra a corrente, num tempo em que “a pobreza, a violência, a vingança” e outros
itens integrantes da “explosão rústica” figuravam em problemas “que as autoridades, não
conseguindo dominar, apesar de todo o terror empregado, amaldiçoavam, e os historiadores
oficiais fingiam ignorar.” (RODRIGUES, 1976: 146)
Nas composições do escritor existe também um objetivo didático, em toda a sua gama
de significado. É pensando nisto que seus matutos são modelares e trazem consigo toda a carga
do conjunto que para Távora é o cerne que forma e fortalece o ser humano: trabalho, honra e
moral, praticamente valorizados como uma trindade. Deste modo, o tom moralizante que é
destilado pelos narradores é praticamente uma constante, mas nem por isso deixa de ressumar
alguma ironia, de modo que a crítica figura como característica inserida na narrativa, com o
prosito de contestação, ainda que isso ocorra algumas vezes de forma velada, como crítica
religiosa, política etc.
Sua predileção por uma “fotografia fiel da sociedade”, contestada por seus críticos, é
lograda apenas superficialmente, uma vez que o objeto do exame social ao qual O Cabeleira, O
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matuto e Lourenço se detêm está situado mais de um século do escritor. Contudo, seu foco
não se desvia da interpretação relativista que visa refletir sobre os efeitos desse passado no
presente. Como fazer uma fotografia exata de uma sociedade passada, da qual não fizemos parte
e com a qual o tivemos contato? Isso faz com que não presenciemos os efeitos de sua
temporalidade? Essas questões são consideradas como possíveis equívocos do autor. o
obstante, em lugar de fazer uma “fiel fotografia da realidade”, o que Távora faz é um exame
detalhado da sociedade; e melhor que tenha conseguido fazê-lo de modo diverso, pois não tinha
uma dimensão clara de alguns intentos, como a impossibilidade de paralisar todos os elementos
sociais e materializá-los num flash. Além disso, seu exame social ligado ao presente mostra que
este não oferece tantas diferenças para com o passado, uma vez que o sertão conserva algumas
peculiaridades oitocentistas mesmo em nossos dias. Tateando pelas agruras que tanto o
instigavam a lutar, distorcendo alguns conceitos, acabou atingindo resultados melhores do que
aqueles que planejou rigorosamente: melhor que ter feito uma fotografia social foi ter feito um
exame cuidadoso da “sociedade marginalizada e excluída do século XVIII, que iria calcar
seriamente muitos de seus problemas nos idos da época do escritor, e mesmo posteriormente, e
disso o escritor parecia ter a noção exata.
Despindo trajes desbotados
Sem desprezar o que havia de vaidosamente pessoal em seu projeto (afinal ele também
aspirava, e muito, ao reconhecimento e a outros louros, como todo artista), vora toma como
encargo inovar a sua produção com elementos originais integrantes do nacionalismo,
imprimindo novos rumos para a produção artística e crítico-literária; ao mesmo tempo em que
ergue o seu pendão regional, dando-lhe voz e tonalidade, acaba inserindo no cenário a cultura
popular nortista, embora o seu papel seja quase sempre citado como o de um escritor
coadjuvante. Assim, o projeto estético devora é estritamente sensível às idéias da Escola do
Recife, complementado pelas inovações advindas das concepções cientificista e realista, ao
historicismo como matéria programática e ao sentimento de patriotismo regional. Por fim, como
determinados elementos que dão corpo à sua obra o se desprendem de uma concepção
romântica e moralizante, do mesmo modo que estão apoiados na experiência que edifica, as
características da ótica naturalista se misturam à romântica caracterização das personagens.
Nesse sentido, é destacada a idéia de que o homem carrega o dom natural do bem e do mal. Só
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que um dos diferenciais das narrativas está na crença de que o poder da influência neutralizante
do primeiro elimina os efeitos do segundo.
Em seus trabalhos, a escolha dos excluídos para ocuparem o centro do palco está
estritamente ligada às suas considerações sobre as necessidades do nordeste e os elementos que
poderiam ativar uma mudança. A escolha de um bandido de boa índole e um delinqüente de
s entranhas estabelece a dicotomia ordem e progresso: a ordem social que resgata o
indivíduo e reprime as injustiças sociais, com suas conseqüências, e o avanço econômico que
abriga em seu discurso o deslumbramento pelo progresso, capaz de sanar as hostilidades do
ambiente e de suprimir a pobreza, a desigualdade etc. Num tom que deixa claro o modo como,
através desses subsídios, a parte setentrional do país o só se desenvolveria tanto quanto sua
porção meridional, mas tamm certamente se destacaria tanto quanto esta. O prefácio de O
Cabeleira contém a marca da admiração pelo progresso capitalista, uma vez que Távora
neste poder uma forma eficaz de mudança. Observa-se, então, o desejo de uma conjunção entre
o ideário nacional e sua efetivação motivadora, propulsora de todos os eventos que estariam por
vir, caminhando silenciosos, flutuantes como promessas, suspensas no tempo, cuja chegada
elevaria a nação ao mesmo patamar das outrastradicionais, bem “situadas” nos seus eventos
históricos próprios, comunicantes e influentes. Neste sentido, Franklin Távora, com discurso de
um norte mais fértil, mais propício a erigir uma nação com características próprias, “mais
nacional”, enfim, configura um messianismo regional que eleva a região e convida os seus para
participarem de sua quimera, sonho este que estava longe da idéia de ser impossível, pois ele
julgava que o norte poderia (voltar a) ter um o pendão melhor que o da corte sulista, do qual
surgiria um novo país, mais filho da terra e autêntico na sua filiação e na sua busca por
igualdade social, política e, por que não?, regional. O sonho do progresso, da fixação de uma
identidade independente, de tradição nacional.
51
“Literatura do Norte”: uma saga histórica
“Seus matutos ainda não aparecem desfeitos pelas verminoses,
ainda guardam no corpo franzino aqueles nervos de aço”
(Ronald de Carvalho, Pequena história da literatura brasileira)
O Cabeleira (1876), O matuto (1878) e Lourenço (1881), à primeira vista, parecem
centrar-se na problemática básica do bem e o mal. Tal embate, de certo modo, se no plano
subjetivo, pois ocorre na esfera íntima da personagem, fazendo com que se estabeleça um
conflito a ser resolvido ao longo da narrativa, o que é característico, por exemplo, da
personagem Cabeleira e do enlace amoroso por ela vivido. No entanto, tais características estão
primordialmente relacionadas à questão da hereditariedade e da influência, ou seja, a índole
natural do ser e o que o meio ou o contato social pode fazer para modificá-lo. Tratar-se-ia,
portanto, de uma perspectiva tipicamente naturalista, mas que vai além, pois é ampliada: além
do poder da influência também é questionada a índole que o ser humano traz consigo, sendo
que todas essas ambigüidades, no decorrer das narrativas, procuram ser diluídas pela crença no
dom natural do indivíduo, que vora estabelece com a idéia “desnaturalização”. Por isso,
depois que é propiciada a tomada de consciência dessas dualidades, começa a luta interior das
personagens para suplantar a “má índole ou a “má influência”, o que se no âmbito
individual, mas também tem um alcance social considerável. Tudo isto acontece tendo como
pano de fundo a história fazendo com que as obras se aproximem da narrativa historiogfica.
Na mesma via as duas histórias (o cangaço e a guerra) incluem igualmente em seu bojo
o contraste entre civilização progresso, desenvolvimento, ordem e barbárie atraso,
violência, desordem. Representando tipos peculiares e conflitos políticos, as narrativas parecem
isolar-se em suas problemáticas particulares, mas o é o que realmente ocorre. Elas se
conjugam por representarem a guerra, em investimentos narrativos que, à primeira vista,
aparentam ser muito distintos. Ou seja, embora apenas O matuto e Lourenço estejam
intrinsecamente ligados por ajustarem, sob o esquema da continuidade, a conclusão de uma
narrativa completa, os três romances dialogam entre si justamente porque apresentam a
formação de conflitos, que se originam por motivos diversos, mas sempre comunicantes. Em
vista disso, trata-se de narrativas que, do mesmo modo que abordam diversas questões, também
conjugam outros elementos: como o olhar histórico e a dimensão humana dos protagonistas.
Na primeira obra (O Cabeleira), a subversão se no vel social o banditismo que
provoca reações tanto do povo quanto da lei. Trata-se de um conflito originado de um modo
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particular, mas que nem por isso deixa de incluir outras questões, por estar ligado a outra série
de problemas, como a desigualdade social e a criminalidade, que o os principais ingredientes
que fomentam o cangaço. o sem motivo o livro não se encerra apenas com a história, mas
com uma “carta-comentário”, uma espécie de posfácio. Não é por acaso que tanta crueldade do
bando do Cabeleira acabe causando um sentimento agudo de injustiça e vingança, tanto que,
movida pela revolta, uma minoria, alguns personagens, se lançam no combate, numa reação que
facilita a detenção do Cabeleira.
Nas outras duas (O matuto e Lourenço), a Guerra dos Mascates tem um caráter
estritamente político. Contudo, é interessante observar como este fato histórico agrega na ficção
forças e objetivos destoantes (como os do povo e os dos senhores-de-engenho), ao mesmo
tempo em que é particularizante e está alheio ao conflito que provoca o desequilíbrio
ecomico-social, que continua produzindo mazelas e, conseqüentemente, marginais. Assim,
estranhamente, o conflito político conta com o braço do povo em prol de um ideal, ainda que
este favoreça diretamente a uma minoria interessada, detentora do poder. Tudo isso é
construído em torno de uma ótica e de um cenário histórico, que é a base da ação nas três
narrativas, onde existe uma evidente preocupação com o resgate do passado e sua releitura. Os
matutos sertanejos o colocados em foco; no entanto, fica claro que em alguns momentos sua
participação é historicamente secundária. Seja personagens de extração histórica ou ficcional, o
povo e a nobreza dividem o privilégio do foco narrativo. Existe a preocupação explícita de o
povo não servir apenas como um “apetrecho” ou como figurante num imenso cenário. A
imagem metafórica do grupo popular que lutava a favor dos mascates no momento da invasão
de um engenho é um exemplo desta idéia: o povo é representado como uma unidade, um
organismo; é representado com imagens metafóricas, como “o dragão popular” e a grande
serpente: “então já as duas multidões, pondo-se em comunicação pela escada, formavam um só
corpo, uma como serpente imensa, irrequieta, assanhada, que se esfregava pelas paredes, sumia-
se pelos quartos adentro” (TÁVORA, 1878: 185).
Como se dá através de um recuo no tempo, o exame dos fatos acaba se chocando com o
ideal de experiência e observação proposto pelo autor. Aqui podemos considerar a importância
da vivência em ambos os termos, uma vez que a ótica adotada por Távora vem de alguém que
parece ter vivido e convivido com os problemas abordados. A familiaridade e mesmo a
assimilação do passado e de muitas de suas faces são declaradas. Contudo, não deixa de ser o
lado oposto de um traje que, olhado pelo avesso, tem suas cores embotadas. Não se trata apenas
do passado mediado pelo estudo e pela perscrutação, mas também da questão de que o presente
pressupõe uma mediação ligada à observação e à vivência efetiva, evocado de forma explicita
53
ou velada em virtude da preocupação reflexiva e reinterpretativa. Isso coloca os textos em
situação genérica limítrofe (ou pelo menos, em alguns aspectos, torna confusa uma
aproximação e/ou uma definição genérica). Concomitantemente, existe a questão de como o
passado é reconstruído em seus interstícios e com que intuito é evocado. O mais evidente nestas
obras é o compromisso e o amor pela região, e como de fato suas temáticas contribuíram para se
fazerem conhecidos o caráter de um povo e sua cultura.
Por isso, coexistem, na análise e na releitura das obras em questão, a busca por uma
definição genérica menos inespecífica e a tentativa de fazer revelar a instância artística
diferencial que certamente paira nestas três obras. Assim, o estudo posiciona-se de maneira a
possibilitar a validação do projeto literário que gerou os livros em questão, de forma a que eles
sejam, enfim, melhor compreendidos e reconhecidos, através de uma releitura e de uma
reinterpretação, sugeridas pelo presente trabalho.
54
PARTE 3
55
CATULO I
UM CANGACEIRO QUE VIROU LENDA E VIROU HISRIA
O CABELEIRA
O bandido refletiu um momento.
E se me quiserem matar? – perguntou depois.
Fugirá – respondeu Lsa.
E seo puder fugir?
(Franklin Távora, O Cabeleira)
56
Vida que vira lenda: malfeitores também fazem (parte da) história
O livro O Cabeleira (1876) trata da história de um ancestral de cangaceiro, chamado
José Gomes, de alcunha Cabeleira. Por ter praticado diversas maldades através de roubos, furtos
e outras ilegalidades, entrou para a história como um dos bandidos mais perigosos do século
XVIII, que aterrorizou o sertão nordestino, principalmente em Pernambuco, a partir de onde
ganhou fama e virou lenda. Após sua morte foi inserido na tradição “mitológica nordestina,
assim como outros cangaceiros. Sua presença ainda hoje é muito forte, sobretudo no folclore,
principal meio através do qual permanece viva a célebre história do bandido, que já foi também
assunto no cinema.
Além disso, figurando em análises de tipos antropológicos e em livros que tratam das
lendas e histórias do nordeste, sua presença é obrigatória, o que demonstra que a figura de José
Gomes é presente, e vem perpassando todas as épocas posteriores à sua existência. A temática
suscitada por Távora fortaleceu-se principalmente a partir do começo do século XX, no qual as
características e os elementos da cultura sententrional transformaram-se em produções artísticas
e literárias muito especiais, como as de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José Lins do Rego,
Ariano Suassuna, Candido Portinari, Tarsila do Amaral etc.
Em O Cabeleira, vora conta a história com algumas releituras e alterações
importantes, elaborando sua própria versão dos fatos, sob uma perspectiva que leva a uma
espécie de justificação das atitudes e do comportamento de José Gomes, de modo a diferenciá-
lo de outros bandoleiros da mesma estirpe. O que leva em comum da versão da “história
oficial” (aquela registrada em anais, ou seja, documentada) é o destino traçado para o malfeitor:
a perseguição e a pena de morte. o mudança no destino do bandido da versão da
historiografia para esta construção ficcional, romanceada.
Por outro lado, esse termo definitivo posto à vida do cangaceiro adquire uma conotação
totalmente diferente, constituindo-se como a grande chave do traçado de seu novo percurso”
pela história ficcional. Távora também coloca em destaque episódios tidos como documentados
de alguns dos roubos mais famosos cometidos pelo bando do Cabeleira. É importante destacar
que, embora sejam focados os acontecimentos da vida de um cangaceiro, estão incluídas no
contexto da personagem informações históricas importantes, como a citação de outros conflitos,
doenças, secas e guerras que se deram na região, a partir da representação da legião de
desajustados que fazia parte da realidade da época, devido ao agravamento de problemas
sociais a partir dos quais estes fenômenos resultavam:
57
são tradicionais os roubos que deste modo se praticaram na ponte do Recife
por aqueles tempos e durante muitos anos depois. Segundo contam os
antigos, eles reproduziram-se no começo deste século com tanta freqüência,
que os armazéns ao princípio, com razão cobiçados pelos comerciantes,
perderam o valor (TÁVORA, 2003: 35).
Deste modo, o narrador volta e meia estabelece uma ponte entre os tempos que se
sucedem, comentando ou comparando fatos do tempo de Cabeleira com os anteriores ou
posteriores a ele. De qualquer forma, JoGomes, o Cabeleira, acaba estabelecendo um marco
na história do sertão setecentista, e serve de ligação entre o passado e o presente como uma
prerrogativa não da violência que assolava a região naquela época, mas também como
resultado de outros fatores, outras mazelas. Neste sentido, embora a narração dos motivos de
seu comportamento seja direcionada para o conflito familiar (entre a educação boa da mãe e a
educão do pai), José Gomes representaria o resultado de um prognóstico, que também é
reiterado nesta e nas outras narrativas: de que a pobreza, a miséria e o abandono político
produzem “bandos de sicários que põem em risco a segurança de qualquer sociedade, seja
citadina ou periférica, sulista ou nortista.
A figura do bandoleiro é sempre atual, uma vez que sempre se pode estabelecer um
paralelo entre os criminosos do passado e os do presente ele faz parte de toda e qualquer
sociedade e em qualquer época, representando, a grosso modo, os desajustes cio-econômicos
e a “desordem social”. Cabeleira conseguiu grande notoriedade pelos grandes crimes cometidos
por ele, o pai e seu bando, mas, ao que parece, “não estava destinado a ser o que foi”, afirma o
narrador. Principalmente pela particularidade de sua história, que vem sendo reafirmada pelo
folclore e pela memória popular, mesmo nos dias de hoje, em que seu nome figura
obrigatoriamente nos livros sobre lendas e figuras daqueles tempos e desta porção setentrional
do país, tão particular em suas tradições e sua cultura. Franklin Távora recria a história
aparentemente incomum de um malfeitor que, segundo as vozes que carregam esses entes
marcantes no tempo, não nasceu para ser bandido. Poderia ter sido uma espécie de “Cid ou
Hobin Hood pernambucano” (TÁVORA, 2003: 25), o fosse o fato de estar inserido em um
ambiente maculado. Sob esta concepção, a questão da influência é bastante marcada nesta
narrativa, pois José Gomes passa a fruir de uma espécie de significação emblemática – de certa
forma, nele são condensadas todas as mazelas e frustrações capazes de corromper ou aniquilar o
homem, seja por razões econômicas, educacionais, psicológicas ou racionais. Por outro lado,
Cabeleira não está isento da possibilidade de redenção, servindo como exemplo de que a
marginalidade pode ser algo transitório se for repreendida por fatores favoráveis que
58
proporcionem a transformação do indivíduo. O surgimento deste tipo de desviado social tem
suas origens apontadas principalmente na questão da influência e de seu largo alcance.
Embora haja um destaque do embate entre o bem e o mal, plasmados na questão da
inflncia, do meio e da índole, buscando como resultado o intuito de forjar uma redenção, a
narrativa não começa por traçar de maneira sincnica a história do cangaceiro. José Gomes tem
dois pólos em seu universo: a figura benéfica e virtuosa da mãe e da amiguinha de infância e,
do outro lado, toda a carga negativa representada pela figura paterna. Entretanto, estas questões
não o apresentadas logo de início para o leitor. Uma vez que vora baseia sua história na
idéia de “redenção”, sendo assim, o natural seria “começar do começo”. Natural, mas talvez não
tão coerente para os propósitos do autor e o mais interessante. Então, o é pela infância do
protagonista que a narrativa começa, o que influencia diretamente na “receptividade da
personagem pelo leitor. A primeira peripécia a ser narrada é a de um assalto, quando o
protagonista é bastante famoso e temido. Logo, Távora trabalha uma forma de aceitação e
recusa do leitor de modo inverso: primeiro apresenta o bandido cruel, depois faz um retrocesso
no tempo e conduz o leitor até a infância do rapaz, apresentando a verdadeira origem dos
problemas de José Gomes. A narrativa é iniciada com o que pode ser considerado claramente
como o objetivo central do livro:
Merece-nos particular meditação, ao lado dos que se mostram dignos de
gratidão da pátria pelos nobres feitos com que a magnificaram, alguns vultos
infelizes, em que hoje veneraríamos talvez modelos de altas e varonis
virtudes, se certas circunstâncias de tempo e lugar, que decidem dos destinos
das nações e até da humanidade, não pudessem desnaturar os homens,
tornando-os açoites das gerações e algozes de si mesmos. (TÁVORA, 2003:
25, grifos nossos)
De tal modo, o narrador começa destacando e advertindo que não de benfeitores é
feita a história (que nela figuram glorificados), mas igualmente o inverso tem suma
importância, ou seja, tanto os “modelos” históricos, que se fixam sem mácula por sua bravura e
liderança, como seus desvios, “seus vultos infelizes”, que o possuem o brilho da mesma
estrela destes heróis devido a atos indignos, compõem o tecido da história. Isto porque ambos
levam a refletir sobre as implicações resultantes da tenacidade de seus atos e sobre o que
provocam de bom e ruim como resultado, ao longo do tempo qual o legado que um ou outro
transfere para o futuro e qual o seu valor. Relacionar a relevância do papel de determinadas
personalidades históricas a “circunstâncias de tempo e lugar”, ao poder do meio como grande
benfeitor ou vilão no desempenho do papel da figura histórica é a proposta que inicia O
59
Cabeleira e permeia todo o seu percurso pela narrativa. Estes fatores de tempo, lugar, influência
etc., são decisivos numa atuação histórica inserida dentro ou fora do acontecimento, e, por
conseguinte, podem mesmo decidir o destino de uma nação na mesma medida, pode-se
considerar a atuação de heróis ou vilões. Aliás, até a inserção de um bandido no âmbito
ficcional pelo viés da redenção pode ser interpretada como questionamento da validade
maniqueísta destas concepções, ou seja, quem é realmente vilão ou herói na história, se tal
diferenciação é permanente. É nesta idéia que está fundada a reconstrução de Cabeleira.
A inserção do marginal e da focalização no povo, especialmente neste romance, de
anteo mostra quevora desvia-se do principal aspecto da perspectiva histórica (e literária)
tradicional, cuja visão partia do “centro”, desviando-se da visão dos grupos de poder. Am
disso, é preciso relembrar que o modo pelo qual o autor concebeu sua “Literatura do Norte” e o
prosito no qual está inserida também quebram tal visão, já que seu compromisso é apresentar
culturas, literaturas, histórias que eram consideradas periféricas e/ou menores, mesmo para a
época. Posicionando-se dessa forma, acaba por expressar que “a partir do centro, é impossível
abarcar com o olhar uma sociedade inteira e escrever sua história de outro modo”, esclarecendo,
a partir da re-invenção e do re-contar do percurso da vida de Cabeleira, que “a compreensão
brota da diferença” (SCHMITT, 2005: 351). Uma intensa mudança de perspectiva, que nega o
etnocentrismo, porquanto “o interesse dos historiadores pelas margens deve-se ainda mais, sem
vida, à evolução de sua própria sociedade” (SCHIMTT, 2005: 353). Com esta premissa,
evidencia-se, ainda na esteira de Jean-Claude Schimtt, que
já no século XIX e no início do século XX alguns historiadores debruçavam-
se sobre os vagabundos e os criminosos do passado: eles sofriam a dupla
inspiração de uma tradição literária com viva inclinação pelo exotismo social
essa tradição remonta ao Renascimento, tendo os românticos lhe dado
nova vida e estudos jurídicos e estatísticos sobre a criminalidade
contemporânea. (2005: 353).
Todos esses efeitos influenciaram do mesmo modo a literatura e a arte. A figura
histórica de Cabeleira é fincada pelos efeitos devastadores que provocou, e é resgatada de modo
a ganhar uma conotação exemplar”, porém, diferente do herói histórico este exemplo deve
ser entendido como aquele que serve de aviso, de recalque. o apenas isto: embora possa
parecer que o texto trate de um caso de banditismo particular, é desnudada a crise social que
marcou a região. Sendo assim, o herói e o bandido são colocados no mesmo patamar, de modo a
nivelar a importância de sua existência e de suas influências, atribuindo-lhes um outro sentido.
Veja-se o que afirma Amado Alonso a este respeito:
60
Na história, entendida como a ação de homens individuais, se manifesta as
forças criadoras do homem naquilo que têm de permanente. E quanto mais
singular é a cadeia de ações e mais extrema a personalidade de seu ator ou de
seus atores, mais exemplarmente podem ser encarnadas em ambos as forças
humanas universais de perpétua atualidade. (1989: 4)
3
Ou seja: os feitos de certos homens favorecem a criação poética se suas vidas são plenas
de um sentido particular, que impõe uma reflexão valiosa, como um ato vivo, envolvendo o
afetivo (subjetivo) e o concreto (a cultura, o tempo e o lugar). Também porque, tanto no caso do
“herói histórico como do seu “avesso”, o efeito está tanto na influência de seus atos sobre a
história, de modo a transformá-la, como na transformação que se opera naquele que propicia
mudanças.
Este último aspecto tem um destaque especial em O Cabeleira: “São fatos acontecidos
pouco mais de um século. Se alguns deles foram recolhidos pela história, quase todos
pertencem à tradição, que no-los legou, antes como mpido espelho, que como tenebrosa
notícia do passado” (TÁVORA, 2003: 90, grifo nosso). O modo de interpretar do romancista,
que acaba criando uma outra versão para alguns aspectos da história oficial de José Gomes,
sem, contudo, descartar suas principais características, acaba por desvinculá-lo do peso e da
frieza da visão histórica documental, positivista (especialmente a do culo XIX), que tende à
descrição “irrefutável”, e, como já foi mencionado, nega, silencia ou persegue. Assim sendo, as
características presentes em O Cabeleira o contrárias à idéia desse discurso histórico que não
comporta, como no discurso literário, os signos do eu.
Como o sentido é moralizante, esse destinatário, o leitor, é claramente evidenciado, pois
a história se propõe como lição a ser seguida. Pode-se usar, em outra acepção, o raciocínio de
Gaëtan Picon, ao questionar: “a historicidade é somente o caráter daquilo que sucedeu? Não
será, melhor, o caráter daquilo que, de certa maneira, o cessa de ocorrer? O presente chama
de histórico tudo quanto tem um lugar no passado. Mas somente aquilo que mantém um sentido
para o nosso presente tem um lugar no passado” (1970: 159-160).
Fica claro que o olhar do ficcionista se volta para um tempo histórico o estático,
possuidor de uma significação ampla que se estende em seu decorrer contínuo, sucessivo,
porque estabelece uma sintonia com o presente. Essa propriedade rompe com a visão conceitual
3
En la historia, entendida como un hacer de hombres individuales, se manifestan las fuerzas creadores del
hombre en lo que tienen de permanente. Y cuanto más singular es la cadena de acciones y más extremada la
personalidad de su actor o de sus actores, más ejemplarmente pueden encarnarse en ellas y en ellos las fuerzas
humanas universales de perpetua actualidadh .(a tradução para o português é nossa)
61
da história estritamente documental atribuída às obras, visão que encara o tempo como um
quadro onde a imagem é o recorte individual no qual se congela parte de uma figura, deixando-
a suspensa de todo o resto da paisagem que não está no quadro, mas que deveria estar
subentendida na totalidade. Este tempo (tanto histórico quanto ficcional) é trabalhado no ritmo
do vai e vem, pois, do mesmo modo que não se segue rigorosamente cíclico, também o se
limita apenas à época narrada usando a expressão de Michel de Certeau, “enquanto falam da
história estão sempre situados na história.” (2006: 32)
Sendo assim, levando-se em consideração que o principal eixo da narrativa es focado
numa tese, é curioso que o texto se perfile de modo peculiar, uma vez que não começa pela
infância do protagonista. Destaca de modo simbólico o indivíduo corrompido, cruel e
sanguinário, sem a menor possibilidade de recuperação. A advertência sobre aquele que deixa
seu mau exemplo é feita porque a idéia do cangaceiro ter sido corrompido transforma-se numa
preparação para o leitor. Jo Gomes é apresentado de forma a chocá-lo, e a primeira cena do
livro, que termina com o assassinato de duas crianças, é eficaz neste sentido. depois essa
imagem vai sendo quebrada (ou pelo menos existe a tentativa de fazê-lo) proporcionando ao
leitor a reflexão e se possível a compaixão, como certamente queria o escritor. O narrador
conduz a história a partir da idéia enfática de que “pela sua organização, pelos seus predicados
naturais, o Cabeleira não estava destinado a ser o que foi, nós o repetimos (TÁVORA, 2003:
53, grifo nosso), reforçando, perante ao leitor, a tese do corrompimento, a desnaturalização :
“alguns vultos infelizes, em que hoje veneraríamos talvez modelos de altas e varonis virtudes,
se circunstâncias de tempo e lugar [...]., não pudessem desnaturar os homens” (idem, ibidem:
25).
Assim, no início da narrativa o narrador explica por que, com tantos heróis com seus
nobres feitos geralmente tão providenciais e benéficos para a posteridade, Távora prefere
justamente contar a história de um criminoso. Tal escolha também acaba problematizando e
rompendo a dualidade mocinho/bandido, plasmando-a em uma personagem, misturando e
relativizando seu significado, porque também coloca em questão o que é ser herói e o que é ser
seu avesso. Nivela freqüentemente a importância e o significado histórico de ambos,
estabelecendo paradoxos de forma a analisar conflitos individuais e subjetivos. Em O
Cabeleira, O Matuto e Lourenço, o apresentadas duas faces em uma personagem e o
modo como esta duplicidade é cunhada talvez seja o mais importante para o romancista. se
encontra um enriquecimento da questão da influência, de forma a não cercear a chance de
mudança e a não atribuir unicamente a fatores externos as problemáticas que cercam e formam
62
as personagens. Tais questões também vêm amparadas pelo valor da influência familiar e a
chance de recuperação através da educação e, de certo modo, da religiosidade.
O resultado de tudo isso é uma profunda crença no indivíduo, inclusive, neste caso,
como agente histórico capaz de servir de exemplo e reflexão. Esse parti pris em favor de José
Gomes e de Lourenço, e de todo o universo que cerca suas figuras, se aproxima muito da visão
de Michelet, tal como é entrevista por Elias Thomé Saliba: “enigmático ou inacessível, algoz ou
vítima, messias ou mártir, eis o povo (1991: 61), em função do qual estas personagens
também atuam como representação particular. Tal como todos os utópicos românticos, vora
destaca a seu modo “as massas populares, a grande legião dos deserdados”, diagnosticando com
veencia, a ausência de solidariedade, [e a] quebra profunda de todos os laços de
sociabilidade” (idem, ibidem).
Neste sentido, torna-se interessante a comparação entre o papel do herói, que deixa os
exemplos de seus grandes feitos, e o do bandido que deixa um exemplo mais amplo: o de sua
degradação e suas conseqüências neste caso, a ampliação resulta da pela redenção como
agente propiciador do resgate. É importante pensar que o heroísmo se pauta basicamente por
capacidades e atitudes geralmente acima da média, e por isso os que são dotados desta “estrela”
nãoo muitos. Já o seu contrário se pauta por capacidades e atitudes abaixo da média, mas es
de alguma forma mais próximo do indivíduo, por ter suas inflncias distribuídas
perigosamente em maior grau de amplitude. Nestes romances, nos dois exemplos (JoGomes
e Lourenço), a grandeza humana não deixa de ser sublinhada, porque está inerente em cada
caso, declarada em um, forjada, construída em outro; do contrário, a significação emblemática
não seria possível. Por esse motivo, o marginal é o termômetro direto dos problemas sócio-
políticos, uma vez que escapa a todas as estruturas de integração, podendo mesmo formar uma
contra-sociedade, como observa Jean-Claude Schmitt (2005: 377) o que, aliás, é notório
atualmente.
É bem verdade que as mesmas agruras que constroem o bandido fazem surgir o herói,
porém, geralmente em menor proporção em relação ao primeiro; pois depende de um esforço de
convicções. Nas três narrativas, a linha que separa os atos e os instintos de bravura dos de
vilania, ao mesmo tempo em que é bem demarcada, é igualmente bastante nue. As
personagens envolvidas no universo dos protagonistas o possuem um meio-termo em seu
caráter: as “bondosas” o o plenamente, e as que são ruins formam o outro pólo. Mas em José
Gomes e Lourenço essa distinção se dilui, visto que ambos condensam os dois extremos,
especialmente no caso do primeiro, que é mesmo a maior representação e a personificão do
caos social. Estes fatores são importantes, visto que Franklin Távora acaba fugindo de
63
paradigmas fossilizados: embora não se desvencilhe do molde, o herói romântico, de bom
caráter, passa a ser refutado inicialmente, ainda que no desfecho da história exista uma
aproximação do bandido neste sentido. Isto ocorre principalmente porque os protagonistas que
dão nome aos romances vivem também um conflito individual entre a bondade e a maldade. De
qualquer forma, o “herói” tavoreano deixa de ser modelo para ser modelado. Deixa de servir de
modelo para servir de exemplo em O Cabeleira esta interpretação pode ser tomada
negativamente, mas também contém um lado bastante positivo ao sugerir que todo indivíduo é
passível de ser recuperado, o importando o quanto tenha decaído. Idéia difícil de ser aceita,
ainda mais em se tratando de um sicário: daí o desafio do romance para o leitor e para o crítico.
Desse modo, a reinterpretarão histórica da vida de José Gomes parte de uma visão
mistificadora, em direção contrária, questionando a legitimidade de alguns elementos que o
discurso histórico-documental fixou. Como apontou José Honório Rodrigues trinta anos
atrás, sendo adequadas aqui suas observações, “o banditismo social, que é parte importante da
história popular, inexist[ia] nas histórias gerais e não [era] ainda objeto de pesquisas e análises
mais profundas.” (1976: 145). Franklin Távora instala a problemática entre nós pela primeira
vez devido à perspectiva diferenciada e humana, como é possível verificar logo nas primeiras
linhas do romance, quando afirma que “merece-nos particular meditação [...] alguns vultos
infelizes [...] açoites das gerações coevas e algozes de si mesmos” (TÁVORA, 2003: 25). Ao
mesmo tempo, não partilha da visão histórica conservadora, que “não tem predisposição para
teorizar, nem alimenta utopias” que “es sempre, em sua estrutura, em completa harmonia
com a realidade que ela dirige”, guardando a idéia de que “não é para progredir que ela dirige a
mudança, mas para continuar a manter o controle prático das coisas e da
sociedade.” (RODRIGUES, 1976: 149-150). Por isso, descortina o que a sociedade
pretensiosamente idealizada tratou de ignorar ou esconder. Ao invés de a criação aparecer como
um simples acordo com o que passou, preocupa-se com o como e por que se passou. Assim se
reconstrói a trajetória da personagem que justifica sua conduta e revela outra interpretação dos
fatos, modificando o sentido canônico da história, o que, repetimos, começa no ato de
focalizar os marginais. Isto de antemão se configura como inovador, já que é uma característica
que passa a ser mais integrada à prosa do século XX.
64
História e tradição popular
Durante a narrativa, vão sendo acionados alguns dados que remetem à vida da
personagem central e formam os elementos que procuram instituir o tom de verossimilhança
dos fatos, sendo auxiliares na reconstrução e reinterpretarão de sua história. Dentre eles
destacam-se principalmente as trovas do cancioneiro popular e algumas influências presentes no
folclore, no qual figura a presença do Cabeleira, sobretudo em livros que tratam das lendas
tradicionais nordestinas. Além disso, numa espécie de posfácio do livro, estão presentes
diversas referências históricas, com explicações, excertos de “documentos”: “a parte
propriamente histórica foi escrita de acordo com a seguinte passagem das Memórias históricas
da província de Pernambuco, por Fernandez Gama (TÁVORA, 2003: 172), revelando desde
pegadas do seu processo de composição a base histórica; um pequeno vocabulário etc., até
planos de próximos projetos literários: “fico concluindo O Matuto –, segundo livro da série.
Provavelmente só o receberás em março ou abril do próximo futuro” (TÁVORA, 2003:180),
atestando, como sempre, o caráter programático no qual inseriu as composições nas quais este
estudo se detém.
Desta modo, são explicitados os subsídios dos quais o autor se serviu para compor a
história, ou seja, a natureza dos vestígios que possibilitaram o retrocesso no tempo e a
elaboração imaginária. Considerando que “em todo gênero existe uma dimensão
ideológica”
4
(FERNÁNDEZ PRIETO, 2003: 37) e que, de acordo com esta idéia, “o romance
histórico evidencia-se na medida em que se apresenta como escrita de textos prévios”
5
(idem,
ibidem), o autor escolhe e organiza textos que o auxiliam na inventividade, no modo como
resgata e reconstrói a história de Cabeleira. Se de um lado, “um primeiro tipo de história
interroga sobre o que é pensável e sobre as condições de compreensão”, e, por conseguinte,
“examina sua capacidade de tornar pensáveis os documentos de que o historiador faz um
inventário” (CERTEAU, 2006: 46), Távora, por sua vez, procura apreender estas fontes tecendo
a narração ficcional por meio da estratégia indiciária (FIGUEIREDO, 2003: 137-139),
construindo outro tipo de significação. O acesso ao passado é totalmente condicionado pela
textualidade, e sua expressão, tanto histórica, quanto literária, subentende a mesma relação.
Esses textos, contudo, o são totalmente homoneos. Entre o folclore presente na
narrativa e os dados documentais, existe um diferencial que influencia no tratamento dado à
história do bandido. O folclore proporciona outra leitura, da qual se serve a narrativa de Távora,
4
“en todo genero existe una dimensión ideológica” .
5
“en la novela histórica se hace muy patente en la medida en que se presenta como una escritura de textos
prévios” (a tradução para o português é nossa).
65
e com a qual se familiariza em muitos aspectos. Na versão folclórica, José Gomes, apesar do
destaque constante a suas crueldades, na maioria das vezes figura como uma espécie de herói
legendário. Em certos momentos, ele é destacado não exatamente como um bandido, pois é
envolto por uma aura que fascina e aterroriza ao mesmo tempo. Cabeleira vigora quase como
um símbolo de valentia, aspecto tido como primordial para o sertanejo daqueles tempos, e que
vem a ser reiterado em narrativas roseanas, por exemplo. Por isso, o cango foi tido até certo
tempo como característica espetacular, parte do exotismo regional atribuído à história e à
cultura do Norte, e neste sentido Cabeleira não é uma exceção. Anjo caído, também é
representado como um vilão arrependido, que tenta justificar seus atos pela má influência:
Quem tiver seu filho
Dê-lhe educação;
Ao depois não tenha
Dor no coração
Adeus, minha mãe,
Ide por mim rezar,
Que lá no outro mundo
Eu irei penar.
(DANTAS, 1963: 76)
Traço marcante neste romance, a personagem é vista como vítima da ausência de meios
corretos que lhe proporcionassem a oportunidade de se desenvolver enquanto ser humano. Não
na esfera social, mas, possivelmente, acima de tudo na esfera familiar. A personagem carrega
o papel exemplar dentro e fora da ficção.
O Cabeleira, em sua versão folclórica, também apresenta o traço de um homem que,
embora tenha sido cruel, foi um rebelde, o antagonista do “bom matuto” – entenda-se com isso
o personagem resignado, muito honesto e trabalhador, forte, tamm servil e pafico; portanto,
a idéia é de contraste. Em O Matuto e Lourenço a representação deste matuto comporta
igualmente essas feições, porém a que prevalece é a bravura, a persistência. Num tempo em que
poucos se atreviam a ter qualquer atitude que de alguma forma contestasse os mecanismos de
exclusão social a que o sertanejo/nordestino era impelido, os que quebravam normas quase
sempre figuram no folclore nordestino com a insígnia da valentia, da independência e da
insubordinação – a contra-ordem, a contra-sociedade. Tais traços são tidos algumas vezes como
positivos e tomados como inspiração e/ou símbolo de uma ordem duramente combatida ou
contestada (a dos senhores-de-engenho e outras oligarquias, a política de exploração da então
66
metrópole portuguesa, por exemplo), de forma bastante diferente dos dois romances que
sucedem o que vem sendo analisado.
A instauração da “desordem”, que os criminosos causavam, desafiando a minoria que
instaurava e manipulava essa “ordem”, fazia com que os pobres tivessem certo orgulho de seus
criminosos. Eis o recado dado: se os nortistas eram vítimas dos criminosos, tampouco deixavam
também de ser timas de suas oligarquias: “O Nordeste é, pois, uma região que se constrói
também no medo da revolta do pobre, no medo da perda de poder para a ‘turba de facínoras que
emprestavam a rego’” e, desde então, a “descrição das ‘misérias e horrores do flagelo’ tenta
compor a imagem de uma região” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2006: 59-71). Por isso, tanto o
fenômeno do cangaço quanto o do messianismo, lidos ou tomados pejorativamente ou o,
tanto por nortistas, quanto por sulistas, transformam-se, igualmente, em argumento para a
modernização do Norte. Tendo em vista os problemas e as discussões que envolviam a região
cada vez mais numa situação excludente, periférica, todas essas questões são cruciais em O
Cabeleira, O Matuto e Lourenço.
O destaque que Távora concede às pessoas comuns são exemplos que, na fala do
narrador, expressam a dualidade entre, de um lado, a honra e a bravura do sertanejo, e, de outro,
a sua resistência. Exemplos disso são Liberato e Matias, Florinda e a própria Luisinha. As
poucas personagens que cruzam o caminho de Cabeleira resolvendo enfrentá-lo são marcadas
pela coragem e pela inquietação que levam aqueles que se revoltam contra a tirania do bandido
a desafiá-lo, como no caso de Gabriel, Liberato e seus filhos, além das respectivas esposas.
Aqueles acabam morrendo no confronto, ao tentar impedir o roubo de suas posses e vingar seus
mortos; estas preferem morrer queimadas a serem levadas pelo bando do Cabeleira. Todos eles
tentam estabelecer a ordem, não se render, o se resignar é mais que a reão contra um
“simples” criminoso, é a reação contra as várias agruras pelas quais passa o sertanejo, e que são
representadas pelo banditismo.
Neste âmbito existe um aspecto paradoxal, mas que resulta numa inversão no mínimo
curiosa: embora os matutos e sertanejos, portanto os mais humildes, que atravessam o caminho
do Cabeleira nutram-lhe ódio e sejam os responsáveis diretos pela sua captura, depois que ele é
preso, um soldado e a esposa do capitão responsável por comandar a captura do bandido
exprimem compaixão por Cabeleira. Ao contrário do que se espera, até mesmo o próprio
capitão se compadece. Isto pode ser interpretado como a estratégia de “humanizar” a sisudez e a
isenção da “justiça”, figurando como uma maneira de reforçar a absolvição de José Gomes e,
por conseguinte, a redenção da personagem . Eis mais um modo de “dilatar o relato
documental: mesmo utilizando-se favoravelmente de seu conteúdo, não deixa de desintegrar seu
67
status ontológico. Segundo a carta de um amigo arquivista (e daí a confiabilidade factual, pois
passa a ser a voz documental), a cena seria verdadeira:
Tocava viola com muito gosto, e a esta circunstância ia devendo ser solto, a
pedido da mulher do capitão-mor, a qual, tendo ouvido o preso tocar, ficara
com pena dele. Esta pena aumentou quando o Cabeleira lhe rogou com voz
cândida, segundo me diz o meu informante, pessoa acima de toda exceção, e
ainda parente daquele capitão-mor, que mandasse afrouxar-lhe as cordas. Foi
atendida a súplica, e então aproveitou-se ele da ocasião para mostrar a sua
grande habilidade de tocar o instrumento. (TÁVORA, 2003: 174, grifo do
autor).
Porém, para garantir a coerência das cenas que reinventa na narrativa e a repentina e
estranha compaixão, o escritor ancora-se no folclore e na tradição popular, para os quais dá total
preferência, procurando legitimar sua versão dos fatos: “segundo as tradições mais correntes e
autorizadas, o Cabeleira trouxe do seio materno um natural brando e um coração
benévolo.” (TÁVORA, 2003: 52). Esta ancoragem na tradição popular pode ser considerada,
segundo a definição de nsa (1991: 82), a incorporação, pela ficção, do imaginário individual
e coletivo do passado. É utilizada, desta forma, uma técnica que tende a reforçar a veracidade
do relato, validando o discurso. Esse imaginário é eleito como o postulado que demonstra a
coencia, a pertinência e a necessidade da versão imaginada estabelecendo conexão entre o
pretérito e o atual, verdade e lenda, história e ficção, visto que “o romance histórico se
desenvolve entre a investigação histórica e a criação literária, entre a arqueologia e a ficção,
ainda que com diferentes graus de inter-relação encaminhe-se para uma ficção subordinada à
história” (INGELMO E CARTELLE, 1994: 41)”
6
. A escrita da história, ao reunir e excluir o
material utilizado, formula sua hitese fictícia escolhendo determinados textos para legitimar
interpretações ficcionais da história. Nesta escolha é determinado o critério temático, seu objeto
literário e, neste caso ainda, a argumentação declarada: “O mais evidente e o que mais chama a
atenção do leitor é o critério temático, ao mesmo tempo em que a finalidade ou a intenção com
que se escreve o romance”
7
(idem, ibidem).
É claro que, tendo em vista os ideais do escritor, a tradição popular o consta apenas
como respaldo para o traçado da história, mas é uma forma de tornar valorizados e conhecidos
esses legados da região, transformando-os em postulado. Este intuito manifesta-se várias vezes
6
“la novela histórica se mueve entre la investigación histórica y la creación literaria, entre la arqueologia y la
ficción, aunque con distintos grados de interrelación se tienda a una ficción subordinada a la história.”
7
“el más evidente y el que más llama atención del lector es el critério temático, a la vez que la finalidad o
intención con la que se escribe la novela” (a tradução para o português é nossa).
68
na narrativa: “com a simplicidade irrepreensível que é o primeiro ornamento das concepções do
espírito popular, habilitam-nos esses trovadores a ajuizarmos do famoso valentão” (TÁVORA,
2003: 26). O tratamento, a confiança e o privilégio atribuídos a essas marcas culturais
comprovam que, “como um vasto conglomerado geocultural”, a região “era vista, sobretudo,
como manifestação inconsciente e espontânea do ‘gênio ou ‘espírito popular’; todas as
manifestações históricas seriam, assim, portadoras privilegiadas de destinos insondáveis e
vastos objetivos” (SALIBA, 1991: 57). Esse papel da voz sertaneja, que ia preservando e
disseminando a cultura e a história regional, é firmemente destacado em O Cabeleira, também
porque representa a voz do povo, maior legado da nação, guardiã do passado, assim considerada
pelo autor. Além disso, estas características estão atadas igualmente por uma finalidade
didático-moralizante, que, dos dados que dão notícia sobre a vida do Cabeleira, reitera-se o
privilégio dado a estes tipos de corpus folclóricos, originários da tradição popular oral e escrita:
Em O Cabeleira o folclore serve como meio auxiliar na reconstrução histórica porque,
ao contrário dos documentos, guarda a autoridade popular da visão dos acontecimentos.
Juntamente com a fidelidade dos dados oficiais e sua cientificidade, o folclore entra como a voz
histórica do povo, registro histórico informal considerado tão ou mais confiável que o primeiro
devido à interpretação e à assimilação diferenciada destes fatos. Este tipo de “registro” é
utilizado sempre de forma comprovadora. Por exemplo, no cimo sexto capítulo, é narrado o
cerco do bandido no canavial: “cedo seus olhos reconheceram que uma linha compacta de
soldados cercava todo o canavial, donde não poderia sair um rato contra a vontade
deles” (TÁVORA, 2003: 153-154). O trecho é seguido de uma trova em nota de rodapé,
utilizada como ilustração e comprovação do ocorrido na cena:
A trova popular diz:
“Meu pai me chamou:
– Zé Gomes, vem cá;
Como tens passado
No canavial?”
– “Mortinho de fome,
– Sequinho de sede,
– me sustentava
– Em caninhas verdes.”
“Vem cá, José Gomes,
– Anda me contar
– Como te prenderam
– No canavial.”
69
– “Eu me vi cercado
– De cabos, tenentes,
– Cada pé de cana
– Era um pé de gente.”
(TÁVORA, 2003: 154)
Este recurso de utilizar o folclore como apoio, citação e captação do passado e da
história sob perspectiva comprovadora acontece desta forma diversas vezes durante a narrativa.
Atribuir tal confiança, de alguma forma, sempre eleva a ficção duplamente em detrimento da
história, reduzindo-a enquanto molde padronizado. Faz do folclore, tipo de textos oriundos não
somente da reprodução de fatos acontecidos, mas prioritariamente do imaginário popular,
portanto de base ficcional, a pedra de toque para a criação romanesca. Sua utilização legitima
incontestavelmente a natureza artística do romance, não apenas documental, como quer parte da
crítica. O hibridismo característico do romance histórico, como técnica narrativa, é ampliado,
imbricando os elementos históricos e ficcionais.
Reconstruindo um facínora: o pacto de leitura defensivo e as marcas de persuasão
O narrador tavoreano traz a experiência do que ouviu na tradição popular, na observação
da vivência sertaneja, de suas andanças e soma tudo isso com a pesquisa histórica. Fazendo uma
releitura da teoria de Walter Benjamim, nota-se que este narrador é dotado de determinado
senso prático, pois possui uma dimensão e uma visão utilitária, escorada no intento de
moralizar, uma vez que seu valor utilitário pode “consistir seja num ensinamento moral, seja
numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa forma de vida de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos” (1985: 200). Isto pode ser observado em várias
passagens:
Joana, a mãe boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o pai sem alma
nem coração. Jo foi sempre o motivo, a causa, desse combate, sem tréguas,
José, o filho sem sorte que estava fadado a legar à posteridade um eloqüente
exemplo para provar que sem educação e sem moralidade é impossível a
família...
[...]
é que as tradições do crime são menos duradouras que as da virtude. Há nisto uma
lei salutar da providencia. (TÁVORA, 2003: 53-54, 61, grifo nosso).
70
O papel moralizador e informativo do narrador estende-se para praticamente todas as
composições tavoreanas, umas vezes explicitadas, outras vezes mascaradas através da tentativa
de manter uma aparente isenção. A honra, a importância dada ao trabalho, o heroísmo, entre
outras virtudes sublinhadas em algumas personagens, não só as valorizam como estão presentes
na visão de mundo de quem narra. Seus comentários explicitam seus princípios morais,
evidenciados não neste significado, mas no desígnio mesmo da narrativa de firmar juízo
baseado na concepção naturalista, na insistente afirmação de que pela sua organizão, pelos
seus predicados naturais, o Cabeleira não estava destinado a ser o que foi” (TÁVORA, 2003:
53). Portanto, é possível constatar que “De modo geral, estes dois aspectos [o papel
moralizante e informativo] do romance histórico latino do século XIX se integram naquilo que
poderíamos denominar por tendência pedagógica, por um lado, e a moralizante, por outro
8
.
(CARTELLE E INGELMO, 1994: 19-20). O narrador é o responsável por veicular a versão da
vida do cangaceiro sob a perspectiva modelar, por transmitir a tendência pedagógica que a
história como uma lição da qual se deve sempre tirar um exemplo que oriente as ações do
presente e do futuro.
O leitor se depara com um “pacto de negociação no processo de leitura, onde o
narrador vai manipulando e orientando suas expectativas, pacto este que tende, ainda que
medianamente, a fazer uma torção da história (não no sentido pós-moderno), em favor de uma
versão que explica os fatos, em prol do favorecimento da personagem, explicando e justificando
suas atitudes. O leitor é colocado em foco devido à tentativa existente no romance de convencê-
lo sobre os reais motivos que levaram o protagonista a se transformar num bandido, por meio de
um texto literário no qual a argumentação não está ausente. Um pacto de leitura é traçado, o que
se torna estratégia comum ao gênero. Como no romance histórico tradicional, o leitor não
participa do jogo ficcional, é um espectador que passa a ser persuadido de que a história que
es sendo lida aconteceu, ou seja, o é participativo como nos romances moderno e pós-
moderno, que primam por enleá-lo em diversos jogos narrativos, inserindo-o portanto no
processo ficcional.
O leitor tavoreano tudo no quadro estabelecido pela narrativa e seus subsídios,
conjugados de modo a acender nele a reflexão profunda e a simpatia por José Gomes.
Semelhante objetivo é um desafio a ser atingido, afinal, o romance discorre sobre a vida de um
bandido. Consciente de tal empreitada, Távora faz com que o narrador lance o de todos os
artifícios possíveis para persuadir. É estabelecida uma relação de proximidade com o leitor, que
8
“a nivel más general estos dos aspectos de la novela histórica latina del s. XIX se integran en lo que podíamos
denominar tendencia pedagógica, por un lado, y afán moralizante por outro.” (a tradução para o português é
nossa).
71
é denominado de “meu amigo na carta-prefácio e no posfácio. Neste sentido, de certo modo,
uma tentativa de fazer com que o leitor identifique os elementos da história do bandido em
seu presente, por isso, é evocado durante a exposição ficcional, quando o narrador se justifica
junto a ele. De tal forma que, nesta obra, talvez mais do que nas outras, a problemática entre a
sanção histórica e a literária é demonstrável pela insistência em fazer crível o aquilo que está
sendo contado, através da relação de verossimilhança, tornando válida a versão ficcional,
possuidora do poder de indagar e explicar a história.
Franklin Távora utiliza rios elementos da narrativa historiogfica nos interstícios do
texto. Elementos paratextuais, objetivo artístico evidenciado em prefácios, refencias, etc. são
ainda um exemplo disso, confirmando que os autores de narrativas histórico-ficcionais
“mostraram desde o princípio uma clara consciência genérica, que os levava a explicitar as suas
intenções, a matizar a sua posição na série genérica e a conformar um leitor implícito que
guiasse a conduta interpretativa do leitor real
9
(FERNÁNDEZ PRIETO, 2003: 169, grifo
nosso). Esta característica fica clara na intencionalidade exposta diretamente ao “leitor
benévolo”, de quem se espera que se solidarize com a história de Cabeleira, originária de dados
submetidos ao império da ficção sob a linha reinterpretativa. O narrador cuida de situa -lo
temporalmente através de sua visão e exposição privilegiada e exclusivista, e dele se diferencia
pelo seu conhecimento histórico. A conscncia genérica es indicada no prefácio: “no
Cabeleira ofereço-te um mido ensaio do romance histórico, segundo eu entendo este gênero
de literatura (TÁVORA, 2003:22). Aqui o autor expressa o modo como enxergava sua
composição, consciente de que estava se embrenhando em uma nova categoria ficcional em
tempo e seu contexto.
A temporalidade narrativa é um pouco complexa, com relação aos eventos tidos como
históricos. A ação ocorre nos idos do culo XVIII, sendo que os acontecimentos começam no
ano de 1773 e terminam em 1776: “A vila estava em festa. Foi no primeiro domingo de
dezembro de 1773”; “Nem é de admirar que tais fossem as condições da cadeia pública daquela
vila em 1776(TÁVORA, 2003: 28,159). Não é tão cil situar o tempo exato em que ocorre a
ação, principalmente porque não é narrada de maneira rigorosamente linear. O texto começa por
um assalto protagonizado por Cabeleira e seu bando, volta para a infância e retorna à vida
adulta da personagem. Algumas informações, como dados históricos extras, embora excedam
no romance algumas vezes, comprovam irrepreensivelmente tanto o domínio das informações
9
“mostraron desde el princípio una clara consciência genérica, que les llevaba a hacer explicítas sus intenciones,
a matizar su posición en la serie genérica y a conformar un lector implicito que guiase la conducta interpretativa
del lector real.” (a tradução para o português é nossa).
72
históricas, quanto a ponte estabelecida com o presente, características constatáveis no trecho a
seguir:
Uma tarde Luisinha foi buscar água no rio Tapacurá, que banha a cidade de
Vitória, então povoação de Santo Antão, à qual pertencia Glória de Goiatá donde
era natural o Cabeleira. Santo Antão distingue-se na história pernambucana pela
circunstância de lhe estar próximo ao monte das Tabocas, no qual se verificou em
3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portuguesa contra o
domínio holandês [...]. Em comemoração, uma lei provincial de 6 de maio de
1843 erigiu a antiga povoação em cidade a que chamou da Vitória como acima se
vê.
[...]
Pau-d’Alho fazia então parte da freguesia de Iguaraçu, da qual foi desmembrada
em 1799 para ser elevada a freguesia por proposta do visitador Joaquim Saldanha
Marinho, nome que traz hoje com invejável brilho um dos maiores espíritos que
conta o Brasil moderno. Passou a vila por alvará de 27 de julho de 1811, e a
comarca pela lei provincial de 5 maio de 1840. (TÁVORA, 2003: 65, 147, grifos
nossos)
É preciso mencionar que dois ou três trechos como estes tornam claro o domínio
histórico, mas tendem a confundir o leitor devido à inserção de muitas datas e informações
históricas de caráter burocrático – quando determinada cidade mudou de nome, a data da lei etc.
Se olhado por outro prisma, trechos como este remetem mais à história documental, pois, na
ficção, tais informações o praticamente irrelevantes. Em todo caso, ficam notórios a
preocupação e o compromisso histórico, além do invejável conhecimento e domínio das
menores transformações sofridas pela região.
De modo geral, o narrador cita alguns acontecimentos e personalidades de época, que
vão desde o século XVII até o XIX. Deste modo, exibe as marcas do presente do enunciado, de
tempos mais remotos e de uma postura cuidadosa em relação à história da região. Tais indícios
(“hoje”, “Brasil moderno”) representam o posicionamento do narrador como simultâneo ao
momento da enunciação, exprimindo atualidade. De tal modo, temporalmente, o narrador se
situa o mais próximo possível do leitor, a fim de conseguir a sua visão solidária e a sua
aceitação, para melhor persuadi-lo.
Franklin vora julgava que nos outros escritos cujas temáticas literárias estavam
relacionadas à região, a elevação da natureza vinha de um cenário apenas idealizado, e o
observado, notadamente como já foi visto em Alencar. Assim, a presença de um ideal, o anseio
pelo progresso e a necessidade de atrair olhares para a rego entram como elementos que ligam
o sentimento histórico ao caráter de missão, relacionando-o à ficção. A história é vista como
“monumento”, uma vez que, na sua visão os escritores “deveriam honrar seu torrão, exumar os
73
seus tipos legendários, fazer conhecida e preservada a história da rego” (TÁVORA, 2003: 23).
O passado é visto como modelo ou exemplo para o futuro, embasando-se, deste modo, na “idéia
de que um bom romance histórico ensinava [e esclarecia] mais do que um livro de
História” (MARINHO, 1999: 15). Na esteira de Ivone Cordeiro Barbosa, é possível pensar que
as reflexões de Távora voltadas para o embate entre a natureza versus a cultura, a barbárie, o
meio, e suas inter-relações, “constituem certo ajuste de contas com suas experiências históricas,
[...] uma vez que o que está em jogo é a busca de acionar lembranças e experiências, relatos e
imagens” (2000: 13), resultados de um estranhamento antigo, coevo ao romancista,
observador sensível de “realidades”. Posteriormente este estranhamento é transformado em
percepções, inquietações, ase converter em aspirações e daí em inspirações, percurso que foi
ampliando o seu arcabouço romanesco.
Conseqüentemente, especialmente neste livro, existe a preocupação em transmitir o
discurso ficcional e a história narrada como verdade, a fim de legitimá-los de forma
diferenciada. Este traço exemplifica de forma modelar as mudanças que o romance de extração
histórica, principalmente o que segue a concepção romântica, estabelece num momento em que
“invertem-se, pois, a tradicional hierarquia que colocava a história acima do
romance”
10
(FERNÁNDEZ PRIETO, 2003: 89), postulando-se como meio de conhecimento e
de compreensão privilegiado. O Cabeleira carrega em sua constituição este mesmo desígnio
característico do romance histórico do culo XIX, que vem acompanhado de um propósito
artístico consciente já que “em seu projeto de recriar o passado, de reconstruí-lo e ressuscitá-lo
imaginativamente, o romance histórico romântico declara seu suporte documental e sua
intenção de levar a conhecimento os aspectos do passado histórico nacional de forma amena.”
11
.
(idem, ibidem). O romancista utiliza a história com o intuito de complementá-la, ilustrar e
explicar determinados acontecimentos, preencher lacunas e a contestá-la em certas questões,
re-traçando percursos. De sorte que “agora o romance aparece como um meio auxiliar da
historiografia, como possibilidade de completar a história chegando até onde ela não pode
alcançar: os detalhes da vida privada, os acontecimentos particulares, os costumes, etc”
12
(idem,
ibidem, grifo do autor).
10
“se invierte, pues, la tradicional jerarquización que colocaba a la história por encima de la novela”.
11
“en su proyecto de recrear el pasado, de reconstruirlo y resucitarlo imaginativamente, la novela histórica
romántica declara su soporte documental y su intención de hacer conocer a los lectores de una forma amena
aspectos del pasado histórico nacional”
12
“la novela aparece ahora como un buen auxiliar de la historiografia, como la posibilidad de completar la
historia llegando hasta donde ella no puede llegar: los detalles de la vida privada, los acontecimientos menudos,
las costumbres, etc..” (as traduções para o português são nossas)
74
Apesar de todos esses cuidados, porém, a versão do autor sobre a vida do Cabeleira não
se exime de ansiar por ser quase o verdadeira e mais plausível que a própria história: “a mor
parte das provas eu as corrigi a pis, no bonde, de viagem, às pressas. Isto não é fantasia; é a
verdade” (TÁVORA, 2003: 180). Ao reunir todos os subsídios possíveis, afirma-se a
veracidade através de umtodo que não exclui a investigação, a dedução, a reinterpretação e a
indução, mas que preserva as informações oficiais enquanto arcabouço narrativo. Outro dado
importante para a questão é que, ao tentar postular o texto como verdadeiro, pretende despertar
no leitor maior predisposição para a leitura, o que pode ser percebido na conjuntura do
romance. Além disso, o autor procura mascarar o processo de invenção. Na afirmação implícita
de não haver alteração no texto além das necessárias somente “as corrigiu” e “às pressas”
usa este argumento da pressa para afastar a suspeita de que o autor houvesse tido tempo para
inventar.
Explícita ou implicitamente, o narrador afirma várias vezes que a história que conta é
que é a verdadeira, e esta idéia/objetivo se reafirma por meio do apoio alusivo ou manifesto em
documentos, no fim do livro. Todo o aparato contido na obra cerca-se de uma postura que
“pretende reencontrar uma veracidade dos fatos sob a proliferação das ‘lendas”, e, assim,
instaurar um discurso de acordo com a ‘ordem natural’ das coisas, ali onde proliferavam as
misturas da ilusão e do verdadeiro” (CERTEAU, 2006: 23), procurando estabelecer a ficção
como versão, quando não verdadeira, no nimo a mais plausível ou mais justa, ao reiterar
que por mais extraordinariamente que pareça ele na verdade o se mede pelos moldes
vulgares e conhecidos – o Cabeleira não é uma ficção, não é um sonho, e acabou como aqui se
diz(TÁVORA, 2003: 171, os grifos o nossos). Em momento algum esta afirmação titubeia.
O autor não busca manter a autoridade histórica da sua invenção, como chega a reduzir
qualquer outro meio “vulgar” ou “conhecido que de alguma forma não condiga com a sua
versão. Ao asseverar que essa versão da história não é ficção nem sonho a ficção fica sitiada
pelo critério da verdade. Távora tem noção da escolha que faz: narrar a vida de um bandido e
tentar convencer o leitor a aceitá-lo como vítima em lugar de algoz é algo indigesto, mas de fato
parece mesmo extraordinário, ainda mais se a vida é contada assim. Extraordinária história,
narrada usando algumas das acepções simbólicas que esta palavra comporta na obtenção do
resultado.
Deste modo, ainda que isto se observe furtivamente, na obra de Franklin Távora, “o
problema o mais se coloca da mesma maneira a partir do momento em que o ‘fato’ deixa de
funcionar como ‘signo’ de uma verdade, quando a verdade’ muda de estatuto, deixa pouco a
pouco de ser aquilo que se manifesta para tornar-se aquilo que se produz, e adquire deste modo
75
uma forma ‘escriturária.’” (CERTEAU, 2006: 23). Nota-se, igualmente, por detrás da
conjuntura do texto, a preocupação que produz “o sofrimento... de preencher as lacunas” (idem,
ibidem), para tornar o texto ainda mais convincente, o que é verificável na medida em que vai
sendo construído todo o universo do protagonista, como uma forma de dizer: foi assim que tudo
aconteceu.
Mesmo a narrativa se ancorando sobre tais métodos, a verdade, contudo, o é a mesma
que é estabelecida por uma visão histórica tacanha, que postula seu resgate do passado numa
concepção que torna sua leitura como verdade absoluta, uma vez que desconhece a negação,
principalmente no século XIX, em que “a escrita da história não tinha nenhuma dessas
limitações convencionais de probabilidade ou possibilidade.” (HUTCHEON, 1991: 141), tão
seguramente ancorada no cientificismo positivista que praticamente não permite e não
considera questionamentos. Essa verdade é interpretada do modo como a conceitua Luiz Costa
Lima, que relativiza o sentido da verdade entre a história e a ficção:
A verdade da história sempre mantém um lado escuro, não indagado. A
ficção, suspendendo a indagação da verdade, se isenta de mentir. Mas não
suspende sua indagação da verdade. Mas a verdade agora não se pode
entender como “concordância”. A ficção procura a verdade de modo
oblíquo, sem respeitar o que, para o historiador, se distingue como claro ou
escuro. Procurar captá-la por um instrumental historiográfico pode ser um
meio auxiliar de explicá-la. Mas tão só. (2006: 156).
Em O Cabeleira a inserção da história visa ao resgate; por outro lado, tem por objetivo
desvendar os reais motivos das ações do bandido. O trabalho ficcional corpo a este intento.
Como dito anteriormente, busca a verdade, busca atribuir seu estatuto à criação, sem, contudo,
eleger-se absoluta esvaziando outras possibilidades,. No posfácio estão os elementos nos quais a
construção do romance se ancora, demonstrados através de interpretações, deduções etc.:
Tenho para mim que a morte do Cabeleira, não obstante seus imensos crimes, comoveu a
sociedade”; é de observar que pela alcunha Cabeleira, a meu parecer deve entender-se antes o
filho do que o pai.”, Eu vejo nesses horrores e desgraças...” (TÁVORA, 2003: 90, 172, 174,
grifos nossos). Fica evidente que o autor lança mão de vários artifícios para elaborar a sua
versão dos fatos, sem. no entanto. desviar-se completamente da história enquanto molde, isto é,
na atribuição do caráter “verídico”, na inserção de fatos que aconteceram, de informações
documentais (até aquelas extras, burocráticas, como foi mencionando), no método de
reconstrução selecionando e utilizando dados, entre outras expedientes. Usa um método que faz
com que se interpenetrem o histórico e o ficcional, utiliza o discurso consagrado historicamente
76
e o institui ficcionalmente; traduz o anseio de tornar o texto convincente, ao mesmo tempo em
que procura encontrar e sugerir uma elucidação viável das coisas e de sua versão.
Logo, a imaginação atua como um artifício que recria apropriando-se das lacunas
deixadas para elaborar seus pprios signos. A proposta de O Cabeleira não é somente recontar
sua história dando uma versão nova aos fatos, mas se propõe também como meio de chegar a
uma interpretação redentora do bandido a partir de um exercício que procura desvendar os
motivos e as origens da personagem enquanto problema, tentando responder às questões que a
investigação suscita. Assim, as respostas podem conter mais ou menos verdades, uma vez
que aspiram a desvendar a natureza de um fenômeno, não a estabelecer fatos. O romancista não
aspira senão a este segundo tipo de verdade” (TODOROV, 1991: 128). Neste sentido, “tanto o
historiador como o etnólogo se limitam, devido às normas rígidas das suas posições, a falar do
que aconteceu, daquilo que podem estabelecer como fatos, enquanto o romancista, que não tem
a superstição da palavra verdadeira, pode aceder a uma verdade superior, para além da verdade
do pormenor.” (idem: 126). A crença na recuperação do ser humano através do amor: eis
possivelmente a verdade que é buscada no romance.
No livro não existem grandes mudanças quanto ao desfecho da história da personagem
contada nas rimas das trovas populares e nos registros tidos como oficiais inseridos no livro. O
narrador descreve sua morte – e Cabeleira tem de morrer para sua total expiação (e punição). O
ponto de vista do narrador é único e unilateral. Ele coloca sua versão dos fatos, a que ele
considera mais justa. Mesmo não havendo mudanças no desfecho entre a história real e a
ficcional, a questão sobre a importância da verificabilidade dos fatos é permanente. A coencia
dos acontecimentos é atribuída à narrativa, como se a versão contada fosse tomada como a
realidade dos acontecimentos, porque, além de ser colocada como a mais plausível, é baseada
no cancioneiro e apoiada, principalmente, no prestígio do cordel, que são tomados como
legados, monumentos, ou seja,o considerados partes integrantes da História (entendida como
conjunto de feitos e acontecimentos notáveis no tempo). O autor confere à história um
tratamento ficcional, sem contudo modificar a seqüência que o folclore tornou conhecida.
Assim, Franklin Távora toma-os com todo o respeito que é conferido a uma herança histórica, e
não se atreve a macular estes tesouros consagrados:
Não obstante terem sido numerosas as trovas de que foram assunto sua vida
e morte, e haver eu metido as minhas melhores forças por conseguir todas
elas, ou pelo menos tantas quantas bastassem para dar, com uma notícia mais
larga do célebre valentão, uma amostra por onde pudesse ser devidamente
77
aferida a musa popular, do norte um século, não pude obter mais do que
as que entremeei no texto.
Não me atrevi a mudar-lhes uma palavra, uma vírgula sequer. Para o
fazer, se eu o quisesse, acharia apoio nos exemplos dados por autorizados
engenhos e nomeadamente por Garrett no seu Romanceiro.
Não quis usar desta faculdade. Fez-me escrúpulo tocar no legado que tem
por si a consagração de algumas gerações; e como eu o recebi dos nossos
maiores, assim o receberá de mim a posteridade, se não se interpuser, como
é quase certo, entre ela e este livro, o esquecimento, prêmio natural das
produções mínimas. (TÁVORA, 2003: 171-172)
A ficção fica, assim, como que “escamoteada”, atuando de forma que pareça ser
coadjuvante, de tal modo que as fontes folclóricas e históricas pareçam focadas com
exclusividade, as primeiras bem elevadas à condição de monumentos, legados, herança
histórica. É a partir delas que se firma a intenção de extrair a imperiosidade da verdade, uma
garantia disciplinar. Não obstante, essa verdade dentro do discurso histórico romanesco é seu
critério, nunca uma lei irrefutável. É a garantia da seriedade das reflexões suscitadas sobre a
personagem. Um modo de impedir que o teor mediado pela imaginação seja tomado no âmbito
do sonho, da ilusão, ou melhor, do capricho e da simploriedade. Usando os termos do escritor,
“de imaginações superabundantes”. A posição adotada pelo autor espelha-se no narrador. A
maneira como o tratados os elementos que contribuem para a formação do corpo romanesco
parecem tendenciosas, diluindo o caráter de probabilidade e da possibilidade, distorcendo-os
para afirmar direta e indiretamente o “foi assim que realmente aconteceu”. Os materiais que
vora elege e nos quais sua tese se fundamenta estabelecem a relação entre interrogação e
resposta, o que é necessário para o tecer o texto de acordo com seus interesses. Enfim, ele se
detém nestes materiais porque eles tornam precisas as interrogações que encontrou e porque
também possibilitam as respostas.
o se trata apenas de narrar e forjar a redenção de um cangaceiro: há igualmente, como
em toda fião, o prazer e o dever de contar, como observa Michel de Certeau: “a explicação do
passado não deixa de marcar a distinção entre o aparelho explicativo, que está presente, e o
material explicado, documentos relativos a curiosidades que concernem aos mortos. Uma
racionalizão das práticas e o prazer de contar as lendas de antigamente (2006: 21), além do
dever de transmiti-las.
78
“Fitou-o como um anjo deve fitar um demônio que promete ser anjo”
Agora nos voltamos aos mecanismos que o romancista utiliza para tentar convencer o
leitor de que José Gomes, o Cabeleira, adquire qualidades dignas de um herói ou mártir, ao se
arrepender de seus crimes. Seu enforcamento é transformado em um ato de remissão e a
personagem acaba sendo elevada apesar de seus crimes. Sua face heróica é construída por meio
da dualidade.
Existem diversas categorias de herói, devido às mudanças em sua concepção através dos
tempos, proporcionando-lhe diversas facetas: herói da epopéia clássica, do romance de
cavalaria, burguês, problemático até chegar ao herói moderno. Dentre muitas outras, aqui se
observada o herói em sua basicamente categoria romântica e histórica, como característica
norteadora.
Um dos itens mais contestados em O Cabeleira é o vetor utilizado para a transformão
do bandido em mocinho, e a maneira como isto é configurado. O meio decisivo através do qual
Jo Gomes alcança a transformação é o amor. A personagem que torna possível o despertar
deste sentimento em toda sua grandeza é Luísa.
Jo Gomes passa por três fases na narrativa: a infância, onde seus sentimentos e sua
índole são puros e sem resquício de maldade, mas é também nesta fase que tem sua “iniciação”
praticando o primeiro ato de crueldade. Na juventude, famoso e temido como grande ladrão e
facínora; os primeiros traços da infância que comprovam sua boa índole parecem o deixar
resquícios na psicologia da personagem. A terceira fase é marcada pelo reencontro com Luísa
que, sob uma ótica religiosa, cumpre o papel de extinguir por completo a perversidade do rapaz.
Ocorre que num primeiro momento parece totalmente arbitrária a conversão ditada em tão curto
espaço de tempo. Não obstante, um olhar mais atento descobre neste trecho justamente os
elementos mais interessantes da história.
Como constatado anteriormente, a personagem Cabeleira plasma de forma incomum
inúmeros aspectos do herói e do anti-herói, interpretado também como vilão. O primeiro possui
como características básicas a valentia, o destemor, a habilidade de lutador, a beleza, enfim,
qualidades que lhe conferem superioridade. Por outro lado, também é mais humano, passa a
simbolizar e estar dentro do coletivo, sem grandes diferenças, visto que sofre por ser marionete
facilmente manipulável pelo pai. Neste sentido, perde sua grandeza e se adensa no comum, uma
vez que, a princípio, não consegue quebrar as cordas nas quais as amarras da ão paterna o
prendem, o que, de certa maneira, torna-o totalmente moldável. Como segundo traço, é,
79
simplesmente o vilão, anti-herói de si mesmo, movido por forças contrárias a sua natureza.
Assim, passa a ser representado praticando atos vis e cruéis. Movido gratuitamente pela
maldade, é inflado pelo desejo de subjugar ou matar, para firmar seu poder. Protótipo do
cangaceiro, a personagem acaba representando, gradativamente, a desmistificação e a
mistificação da figura do herói, visto que de bandido sanguinário é convertido emrtir.
Considerando as definições de Massaud Moisés em seu Dicionário de símbolos, Jo
Gomes é representado por estas três facetas, tornando-se uma figura paradoxal. É descrito como
belo, não conhece o medo, possui força descomunal, um bom coração, possui um aspecto que
inspira confiança e inocência: “a natureza o havia dotado com vigorosas formas [...]. É de notar
que a fisionomia deste mancebo, velho na prática de crimes, tinha uma expressão de insinuante
e jovial candidez.” (TÁVORA, 2003: 27). Na narrativa, pouco a pouco é envolvido em uma
espécie de eflúvio tico, responsável, aliás, por sua fixação folclórica como tipo legendário
sua figura romanesca está carregada de simbologias.
Por outro lado, moldado pela má influência paterna, revela falta de firmeza moral que o
transforma em um indivíduo extremamente violento e passional, comportamento responsável
por sua fama: “à sua audácia e atrocidades deve seu renome este herói legendário para o qual
não achamos par nas crônicas provinciais” (TÁVORA, 2003: 25). A menor resistência faz
Cabeleira reagir mortalmente contra aquele que ousa desafiar ou excitar o seu poder de
destruição. Suas ações, no entanto, não são premeditadas, revelando que sua maldade não é algo
que aflora de seu íntimo, mas sim na superfície, pois ele reage conforme ação. No episódio do
roubo à igreja, Teodósio, comparsa do grupo, fica encarregado de pegar o dinheiro e encontrar-
se depois com Cabeleira e Joaquim. Enquanto estes fogem deixando um rastro de morte por
onde passam, aquele, por sua vez, esconde o montante do assalto. Ao se reunir com o grupo,
finge ter deixado o dinheiro numa canoa. Do outro lado do rio, Cabeleira duas crianças,
sendo esta uma das duas cenas que consideramos mais impactantes no romance:
Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro,
continuou a correr no encalço deles [...] como sua cólera aumentou com a
fugitiva resistência dos pequenos, atirou ele sobre o primeiro que lhe ficou
ao alcance o facão com tanta certeza, que o pobrezinho, cravado pelas costas,
caiu banhado em seu próprio sangue.
Não parou por então a fereza inaudita. José, achando limpas as mãos da
vítima, lançou-se com encarniçada fúria atrás do camarada, o qual, [...]
lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pávidos,
crendo escapar por este modo ao terrível assassino. Reconheceu, porém, que
se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão
diligenciava feri-lo com o facão.
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Acuda, mamãe, que o homem me quer matar – gritou o menino das alturas
aonde havia subido.
Ah, tu pões a boca no mundo, caiporinha? observou José. Pois vou
tirar-te a fala num instante.
Um tiro covarde, cruel, assassino atroou os ares. Sangue copioso e quente
gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do
inocentinho, crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabeleira, veio
dar-lhe novo testemunho, de sua perícia na arte de atirar contra seu
semelhante. (TÁVORA, 2003: 42, grifo nosso)
Ao descrever as ações, um narrador o isento expressa seu sentimento: “inocentinho”,
“pobrezinho”; bem como transmite o juízo de valores que possui frente à personagem. Destaca-
lhe a irracionalidade absoluta através da animalização e de termos fortes, como “fereza
inaudita” e “encarniçada ria”, atribuindo-lhe traços bestiais ou bastantes primitivos,
desprovidos de humanidade – perícia em matar”. Nesta cena fica evidente o teor narrativo que
traz à tona através das personagens uma região mergulhada no problema do conflito entre
civilização e barbárie.
A caracterização psicológica da personagem, que a princípio parece estar inteiramente
delimitada, na verdade engloba mais de uma faceta, dificultando a sua definição como uma
figura unívoca. Tanto no caso do Cabeleira, como no de Lourenço, existe um evidente conflito e
esse embate do herói tamm se dá no nível humano. Não obstante, tais paradoxos presentes na
constituição do bandoleiro o fundamentais no projeto do autor, em sua tentativa de encontrar
uma explicação e uma redenção para a personagem em seu percurso narrativo. Também é parte
da motivação na escolha por narrar a vida de um bandido ao desnudar, em nível social e
literário, problemas diferenciados da literatura do período: boa parte dos heróis e das heroínas
eram construídos de maneira a que os leitores “provavelmente [se sentissem] lisonjeados pelos
retratos pessoais que eram a última moda na pintura burguesa (SOMMER, 2004: 29). Neste
sentido a problemática tavoreana atinge questões mais pontuais, negando moldes sem
objetividade prática, inadequada a realidade.
Perdido num ambiente desestruturado familiar, política e socialmente falando José
Gomes é uma personagem de extremos, oscilando sobre um meio-fio, em sua falta de domínio
próprio. Os primeiros capítulos do romance traçam o percurso de sua degradação, momento em
que o pai, Joaquim, tem participação fundamental. A influência paterna age como deflagradora
das reações que envolvem o jovem cangaceiro em situações de violência:
Joaquim, feroz por natureza, sanguinário por longo hábito, descarregou a
parnaíba sobre a cabeça do primeiro que acertou de passar junto dele. [...], o
81
sangue da vítima, espadanando contra a face do matador, deixou
estampada uma máscara vermelha através da qual só se viam brilhar os olhos
felinos daquele animal humano.
José Gomes, por irresistível força do instinto que muitas vezes o traiu aos
olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse:
– Para quê matar se eles fogem de nós?
[...]
Estás com medo, Gomes, deste poviléu? [...] Não sejas mole,
Gomes; sê valentão como é teu pai.
Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava
Joaquim irresistível poder, fez-se fúria descomunal [...]. (TÁVORA, 2003:
31-32, grifos nossos)
Joaquim é como sombra negra que conduz o filho por um caminho de trevas. A
diferenciação deste pai em relação ao filho confere-lhe traços negativamente sobrenaturais e
corruptores. Apesar da aparente empatia entre pai e filho, existe um evidente conflito orientado
também pelos princípios básicos do naturalismo, que distingue ao colocar as personagens em
patamares diferentes. Denuncia uma luta aberta e ao mesmo tempo silenciosa, sutil. No
contraste com a brutalidade do “carniceiro pai” é possível notar o conflito interior instalado em
Cabeleira, de onde o verdadeiro instinto surge ingênuo, um instinto irresistível que trai a
consonância entre ato e pensamento “para quê matar se eles fogem de nós?”, revelando aos
olhos do leitor um ser evidentemente conduzido por forças antagônicas plasmadas na figura
paterna que exerce nele irresistível poder. A influência naturalista é um dos moldes desta
relação entre Joaquim e José Gomes.
Voltando à infância do rapaz, vamos à segunda cena que consideramos uma das mais
fortes nesta fase do protagonista. Encontramos no menino José uma criança pura, centro do
“combate sem tréguas” entre os bons ensinamentos de Joana, “a mãe boa e fraca e os maus
exemplos do pai sanguinário. O combate provoca em José um misto entre docilidade e
nocividade, contemplação e crueldade, denotando o processo de relutância e transformação da
personagem. O pai “exercitava” o filho instigando-o a matar animais pequenos, enquanto a mãe,
de outro lado, o dissuadia: “ – Olha, meu filho, olha bem para ele. Não achas vivos e bonitos os
olhos do preazinho?”/ “- É, mamãe. Acho tudo bonitinho” (TÁVORA, 2003: 54). Como José,
antes incitado energicamente pelo pai, insistisse na idéia de matar o preá, Joana solta-o.
Joaquim, no entanto,
prometeu a José que o primeiro preá que o fojo pegasse havia de ser sujeito a
um gênero de morte que ele ainda não conhecia.
O menino mal pôde dormir aquela noite [...] na maior excitação e vigília.
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Pela manhã correu José ao fojo, onde encontrou, em lugar de preá, um
coelho.
Era uma lindeza o animal gordo, coberto de macio pêlo em que se divisavam
ligeiras malhas tão alvas como o algodão [...] o filho do campo despertava
[...] todos os sentimentos benévolos de que é capaz o humano coração. Os
olhos reluziam como dois coquinhos polidos. O coração batia-lhe precípite
qual se quisesse sair-lhe pela boca. E essa criatura tão cândida e inofensiva
ia morrer! [...].
Sim, sim, mamãe; eu não o levarei a papai para o matar como ele disse;
não quero que meu coelho morra. Ele é tão bonitinho, que faz gosto. Quero
criá-lo para mim, [...]. Meu coelhinho tão bonitinho!
[...] Joana leu em seu rosto a pureza e a sinceridade da sua comoção, indício
irrecusável, senão prova convincente das boas inclinações do filho.
(TÁVORA, 2003:55-56)
Este trecho serve como evidência das boas inclinações presentes na origem de
Cabeleira, e o esforço da mãe em preservá-las dos péssimos exemplos do pai. O leitor pode
notar a falta de estrutura familiar sólida e coerente e identificá-la como o agente que contribui
para fragilizar a constituição e a fixação das “boas inclinações inerentes não somente à
personagem, mas ao ser humano de modo geral, segundo a visão do autor. De acordo com a
concepção do autor, que confere suma importância ao papel da falia na sociedade, à mãe cabe
o papel de protetora desses bons instintos. Como escritor que atribui à educação o eixo, motor
necessário para o desenvolvimento social e humano, Távora valoriza sobremaneira o papel da
mulher como potência moral: sua influência é sempre representada de maneira a lhe conferir
força providencial. Todavia, Joana, na sua condição de mulher diante da imoralidade
devastadora do marido, é fraca. Sua atuação neste momento da vida de Cabeleira consegue
deixar a boa índole do filho num estado latente, prenunciando a necessidade de um sentimento
muito maior, capaz de neutralizar os malefícios inculcados por Joaquim. Veja-se o que acontece
quando este chega e ouve o colóquio entre Joana e José Gomes:
— Hei de ensiná-lo a ser valente. [...] Não sabes que o assassino é respeitado
e temido?
— Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai.
[...]
—Vais ver agora de que modo morre o coelho – disse com expressão que se
não pode descrever.
[...]
Joana [...] tomou caminho de casa na qual se lhe deparou um espetáculo em
que ela nunca imaginara e que por um triz não abateu de todo o seu cansado
espírito. Uma forca havia sido levantada com ramos verdes no terreiro em
sua ausência, e dela pendia por uma embira o coelho, [...] agora morto, o
pescoço distendido, os belos olhos empanados. José, não não chorava,
mas até se mostrava indiferente ao espetáculo repugnante, como se não
fosse o mesmo que poucos instantes [...] o pequeno prorrompia em aplausos
83
a cada balanço que dava o corpo inanimado do animal que Joaquim, por
entre chufas grosseiras e de mau gosto, impelia de quando em quando com a
mão ensangüentada e torpe.
[...]
— Quem matou o coelho José? [...]
Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.
(TÁVORA, 2003:55-58)
A impotência materna e o modo como Joaquim força o filho a matar o coelho tão
desejado ganha ares de um rito macabro de iniciação. Este episódio marca a negativa e
progressiva transformação de José Gomes em criminoso.
É claro que o narrador menciona o fato de Joaquim também ser vítima da ignorância.
o obstante, não dúvida de que podemos ver na figura de Joaquim uma composição
demoníaca: seu corpo e seu comportamento estão sempre marcados pela animalização no
sentido grotesco, descaracterizado do humano, e na significação sobrenatural que remete ao
satânico; pela bestialidade, no sentido espiritual. A sua figura macabra tem como símbolo
impresso o sangue que deixa uma scara vermelha na face, a mão ensangüentada, “as
narinas dilatadas pelo odor do sangue quente e fresco que do rosto lhe descia aos
lábios (TÁVORA, 2003: 32) e pelo desdém sobre a existência de Deus: “– Deus! Quem é
Deus, toleirona? Quem o viu? Quem ouviu sua voz? (TÁVORA, 2003: 58). Joaquim
parece fazer o papel do diabo na vida de José Gomes, de modo que a influência do pai sobre ele
se aproxima da possessão, em todo o sentido da palavra.
Assim, neste romance, levando em consideração a tese do autor fundada na crença do
ser humano como alguém essencialmente bom e na sua confiança na recuperação do indivíduo,
vemos a personagem central percorrer um caminho sempre em direção às trevas. É o discípulo
do mal paterno, cuja cegueira provocada por tal influência nociva desconecta-o totalmente de
sua essência.
É neste estado de coisas que Cabeleira encontra Luísa. A última vez em que o
protagonista a vê, ainda são crianças. Antes de ser seqüestrado para longe de sua mãe, Jo
Gomes passa na casa de Luisinha para se despedir e fazer uma promessa, que convém destacar:
“— Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha logo por certo que
não faço mais mal a ningm. Se pareço mau, Luisinha, não é por mim” (TÁVORA, 2003: 61).
Esta promessa estabelece um importante elo de ligação entre os dois. A jovem acompanha o
crescimento do menino e a fama de seus crimes à distância com as faces “inundadas de
lágrimas”. O narrador explicita o desvelo especial de Luísa em relação a José, sempre presente
em suas orações, onde a imagem do companheiro que a pediu em casamento quando criança
84
não se desvanece: “é que bem dentro no seu coração estava a imagem do companheiro de
infância que ela nunca pôde esquecer [...] ainda quando esta imagem aparecia [...] envolta em
uma nuvem, de sangue, e acompanhada de uníssonas maldições.” (idem, ibidem: 64, grifo
nosso). A demarcação desta constância dos sentimentos da moça para com o jovem sicário é o
primeiro subsídio a explicitar a especial ligação entre os dois, além de trazer o primeiro
presságio sobre o destino de ambos. Do mesmo modo, indica o nível de elevação espiritual de
Luísa, anjo vigilante de Cabeleira que o acompanha à distância. Cabeleira, regido pela
inflncia maligna do pai, tem em Luisinha a possibilidade de re-conexão humana com o
divino.
Quando José Gomes e Lsa se reencontram um não reconhece o outro. Ao ver a jovem
e bela ma sozinha, pegando água em um poço, Cabeleira vai até ela decidido a rap-la e fazer
dela sua mulher à força. Luisinha resiste vivamente, o que o deixa surpreendido: “eu não vou
com você ainda que me custe a própria vida (TÁVORA, 2003: 67). Florinda, mãe adotiva da
moça, vem em socorro da filha, mas recebe um golpe mortal do então desconhecido bandido, o
que Luisinha presencia aterrada. É neste instante violento que os antigos amigos de infância se
dão a conhecer:
Ah! Não conheceste o Cabeleira, cascavel? acrescentou ele com os
olhos fitos em Florinda.
Aos ouvidos de Luisinha aquele nome passou como uma chama elétrica, que
lhe deu forças para voltar à vida.
[...]
Agora te conheço, José malvado disse a moça. Mata-me também,
que mataste minha mãe que nunca te ofendeu.
— Ah, conheceste afinal o Cabeleira?
— Tanto me conheceste tu, desgraçado!
— Que queres dizer com estas palavras? – perguntou o bandido.
Olha-me bem. Até de Luísa esqueceste! Assassino, eu te perdôo a morte:
mata-me.
Tinham chegado à beira do capão de mato. O Cabeleira estacou. O que
acabava de ouvir tê-lo-ia prostrado mais depressa do que um golpe igual ao
que descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes [sic] de Florinda [...].
Ah! Era você? Perdoe-me, Luisinha. Eu não a esqueci. Perdoe-me. Eu
não sabia que era você disse então com brandura, soltando a moça sem
mais demora.
— Só Deus te poderá perdoar, assassino de minha mãe [...].
(TÁVORA, 2003: 69)
O momento do reencontro entre as duas personagens o poderia ser mais negativo. A
mudança instantânea no ânimo de José Gomes a medida da poderosa influência que Lsa
exercia sobre ele e do sentimento que ele nutria por ela. O efeito é proporcionalmente contrário
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naquela que acaba de ver a mãe golpeada por aquele por quem tanto recomendou preces.
Percebe-se que a aceitação de Luisinha o é imediata, porque o primeiro e natural sentimento
que ela lhe confere é de repulsa.
A partir daí, a progressiva “conversão” do criminoso é cercada de significões
simlicas. O narrador destaca a pureza de um amor único, que Cabeleira jamais havia
experimentado por ninguém, ligando-o à moça “primeiro pelo espírito” a construção de um
amor que o está ligado e nem se origina da atração mundana, mas transcendente, que se
eleva, que não está presa ao universo de conflitos no qual Cabeleira está mergulhado Indica
também a importância dada a essência, não a apancia. Recurso que convida o leitor a repensar
a essência verdadeira da personagem e como vítima eleva-o destacando a pureza de seus
sentimentos. Tendo que sair para socorrer o bando que se envolvia em uma briga, quando volta
não encontra mais Luisinha. Marchando em sua procura, além da impactante impressão que lhe
remia o espírito pouco a pouco, tudo concorre para sua transformação até o novo reencontro
com a jovem. A água, símbolo da purificação, é a primeira de tantos outros:
Sentiu a dor dos golpes recebidos [...] Lembrou-se de banhar as feridas como
costumava [...]. mas a água fresca que tantas vezes lhe havia servido de
bálsamo refrigerante, produziu-lhe agora diferente efeito. A vista do bandido
foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou-lhe mais do que o corpo, e
ele caiu sem sentidos à beira do poço. (TÁVORA, 2003: 83).
Este banho prepara o espírito de Cabeleira de modo salutar. Representa, por isso, outro
ritual de iniciação que parece anular o primeiro, observado na cena do coelho. É o começo da
contrição, e a efusão provocada realmente promove uma mudança radical de atitudes. A
primeira delas impele Cabeleira a entrar em conflito com as conseqüências que põem em
questão a “idealização” do pai como homem que merece respeito e obediência por sua bravura.
Tardiamente José Gomes entende que esta bravura é, na verdade, mascarada por atos de grande
covardia e desumanidade, e percebe que isso também o condena de forma muito mais
implacável a ser apontando como criminoso, porém no seu caso injustamente. Joaquim, após
matar Liberato e seus irmãos, planeja arrastar as viúvas para divertimento do grupo. Cabeleira
nega-se a participar, para estranhamento do pai. Joaquim acaba capturando Luisinha, que
tentava salvar o cadáver da mãe para não jazer no fogo. Ela é a única sobrevivente do incêndio
provocado por ele; as outras mulheres preferiram antes morrer queimadas a cair nas mãos dos
criminosos. Joaquim, ao ver a bela jovem, logo a toma em seu poder. Cabeleira surge e enfrenta
o pai, decidido a defender Luisinha:
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Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ela, pertencer-nos na
mocidade. Chegou a ocasião.
Atreves-te a falar-me em juramento! Não sabes o que estás dizendo. Esta
mulher é minha, e quem for homem que se meta a vir tomar-ma.
Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabeleira puxava da
faca [...]
— Zé Gomes, olha bem o que dizes! – redargüiu Joaquim. – Teu pai?
Não tenho pai; só tenho mãe que me ensinou o caminho do bem, pai nunca
tive e nem tenho. Não é meu pai aquele que só me ensinou a roubar e matar.
(TÁVORA, 2003: 101, grifos nossos)
Desde modo, José Gomes figura como alguém que acorda de um transe – a percepção da
real influência maligna sob a qual estava forçado acaba impelindo-o a renegar o pai, fato crucial
no romance. Ao mesmo tempo, consegue recuperar e reavivar de algum modo a estima de
Luísa. Não é sem relutar que ela é arrastada de novo por Jo Gomes, mas, dessa vez, o único
intuito deste é protegê-la, em prejuízo do pai e de todo o bando, que abandona à própria sorte,
perseguidos pelas tropas do governo. Este gesto desvincula-o totalmente da vida que leva até
então, quebrando de modo definitivo as cordas com as quais Joaquim o controlava.
Cabeleira, que nunca havia se preocupado com a segurança de quem quer que fosse,
abandona o pai e todo o grupo do qual era chefe para proteger e se deixar governar por Luísa.
Também para conseguir seu perdão por haver matado Florinda, única protetora que a jovem
tinha. Cabeleira comporta-se como seu verdadeiro servo, perto dela vazão a todo o seu
sentimento. Mas somente isso o a convence. Luisa, então, estabelece-lhe outro compromisso
como condição, que ele aceita prontamente: Cabeleira jura nunca mais voltar a matar, ser um
homem de bem. É claro que esta mudança é gradativa. Portanto, os rompantes violentos são
prontamente repreendidos e reprimidos pela orientação de Luisa, a “santaque traça o caminho
de volta na vida de crimes do bandido.
Nesta altura da narrativa, certamente o leitor se pergunta, ainda não convencido
suficientemente, por que Luisinha perdoa Cabeleira, sendo ele o assassino de sua própria mãe.
Luísa, no entanto, é uma mulher especial. A influência que tem sobre Cabeleira remete sua
representação à de uma santa: “dir-se-ia que Luísa estava possuída de um espírito angélico”;
“aquela a quem devia a ressurreição de sua alma”, “a virgem dos seus pensamentos”, “o anjo da
prece e da solidão”. Ela evangeliza, reeduca, inspira o amor em toda a sua grandeza, conduz
Jo Gomes com brandura, porém energicamente. A ela o bandido entrega tudo a alma e o
coração. Diante de Luísa, José Gomes literalmente depõe todas as suas armas; reconhece nela
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uma superioridade quase sobrenatural. É como se a jovem fosse a representante de Deus:
Ah! Luisinha! Vo me abranda com suas palavras, em sua presença me considero uma
criança.” (TÁVORA, 2003: 131).
Por isso, Luisinha veicula uma sensível e poderosa carga religiosa. Durante a
recuperação de Cabeleira, momentos na narrativa que fazem referência a situações bíblicas.
Uma das mais importantes se dá no momento em que o cangaceiro vê a cruz da sepultura de um
marchante que ele havia matado um ano antes. Aterrado pela assombração do morto, ele pede
socorro:
Ele está lá, Luisinha, de pé, com o chicote na mão, olhando para mim
com seus olhos mortos, à flor da cara.
[...]
— Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz.
[...]
O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia, com seu
vestido azul e seu lenço branco, passado em torno do pescoço, o anjo da
prece da solidão.
[...]
— Reza Cabeleira – disse a moça ao matador assombrado.
Ai, Luisinha! Não sei rezar! disse ele com voz tão sentida e magoada
que indicou a pena profunda que lhe cortava o coração. [...]
— Eu te ensinarei – redargüiu Luisinha. – Dize comigo.
[...]
Seu espírito, que durante vinte anos conhecera idéias de sangue e morte,
seus ouvidos, afeitos a escutarem palavras licenciosas, insultos, arrogâncias,
queixumes e maldições, recebiam agora doces expressões que anunciavam
uma consoladora existência superior.
[...]
— Oh! Luisinha, como é poderosa a oração! Minha mãe bem sabia [...] que a
oração tem mais força que os homens e vence todas as armas. [...]
Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira.
[...]
No bandido não havia o assassino, havia um espírito contrito, um coração
cheio de temor de Deus. Uma mulher fraca, tendo ao seu serviço unicamente
a benevolência natural, a perseverança, as lágrimas e um passado quase
desvanecido, havia operado uma conversão com a qual poderia
legitimamente orgulhar-se um verdadeiro apóstolo do cristianismo.
(TÁVORA, 2003: 136-137, grifos nossos)
Fica evidente o papel de Luisinha na recuperação de Jo Gomes, bem como a
significação da simbologia religiosa que envolve sua figura. Se por um lado Joaquim representa
uma influência demoníaca (o mal), Luisinha apresenta-se como a influência divina (o bem),
fomentando assim as duas forças contrárias pelas quais passa o protagonista. Na situação acima
citada, a jovem cumpre o seu papel na vida de Cabeleira: convertê-lo, trazê-lo de volta das
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trevas em que vivia. Reitera a crença do autor no bem natural, na educação. Para ele, o bem,
orientado corretamente, potencializa seus efeitos, seus benefícios.
A chave desta relação extrema de amor e compaixão encontra-se, sobretudo, em outro
aspecto, concluindo definitivamente a conversão da personagem principal e a fase em que este
começa a viver seus momentos finais de provação. Alguns críticos, apesar de todos os recursos
evidentes na narrativa elencados aqui, ainda entendem a relação dos dois jovens como algo
totalmente ambíguo e inverossímil, ou seja, a questão do perdão de Luisinha em um espaço de
tempo tido como insuficiente em relação à morte da mãe. A nosso ver, esta “incoerência” vem
de um detalhe salutar, talvez crucial. Por que Luísa o perdoa tão “prontamente como
continua cultivando o seu amor por um criminoso? Porque possivelmente o amor de Luísa e
Cabeleira transcenda o plano terrestre, como é apontado durante a narrativa. Luísa está prestes a
morrer devido a um ferimento grave sofrido na tentativa de escapar do incêndio; sabe, portanto,
que seu tempo é curto para redimir e evangelizar Cabeleira (tal fato, numa outra interpretação
possível, aproxima Luísa de uma representação feminina de Jesus Cristo). Ela pistas de seu
fim próximo e da inviabilidade da efetivação do amor no plano terrestre nas circunstâncias que
cercavam a vida do casal: “estou prestes a morrer”, “não poderei resistir a minha desgraça, que
eu considero bem maior que a sua”, “a morte está mais perto de mim do que...”, “na terra não há
felicidade, Cabeleira”, “a desgraça está para desmentir o seu sonho”.(TÁVORA, 2003: 127,
131, 133, 134). No entanto, ela tem consciência de sua situação. Ensinar o ex-criminoso a
rezar é o ponto final de sua trajetória na narrativa:
Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dor que atroou a
imensa solidão como um urro de touro selvagem.
— Morta! Morta! Luisinha!
[...] dobrou-se enfim e deu larga prova da fragilidade humana. Dos olhos do
bandido irrompeu uma torrente de lágrimas. Soluços, como animal bravio,
escaparam de seu peito e ecoaram pela imensidade ainda em grande parte
adormecida. Havia quinze anos que esses olhos não choravam diante dos
mais tristes e lastimosos espetáculos.
— Que noivado o meu! É o noivado do assassino! Oh! meu Deus!
(TÁVORA, 2003:138-139)
A perda da agressividade, da força impulsionante e o agravamento de suas desilusões
m com a morte da mulher amada, que o deixa completamente perdido e inerte, o que
contribui para a sua captura. Por meio de tais acontecimentos, Cabeleira adquire traços
provenientes do relevo naturalista-realista, pois a mistura destes elementos evidencia o conflito
da visão de mundo do hei e a que se tem dele, que passa a ser representado como títere
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influenciável da realidade e do meio implacável que o cerca. Cabeleira paga o preço: a morte
salda o imenso débito de seus crimes. A morte é perda, todavia também é sua libertação: a
descrição de sua morte, seu caminhar para o cadafalso e seu comportamento diante do povo é o
de um mártir, eleva-o estabelecendo uma estranha aproximação com o episódio da crucificação
de Cristo, invertido na figura de um bandido.
Por outro lado, o relacionamento amoroso com final trágico é moldado pela ótica
estritamente romântica. Ao cumprir essa purgão pelo sertão juntamente com Luísa, Cabeleira
consegue superar seu grande problema individual, revelando suas grandes virtudes neste
percurso ritualístico que promove a renovação que o transforma em herói e mártir. Acaba sendo
legitimado como herói histórico na medida em que sua vida é exemplar, inspiradora é um
representante da condição humana, porque agrega todas as características as quais todo o ser
humano é suscetível. A história de Cabeleira ganha, assim, a dimensão da tragédia humana.
Influências do romance histórico tradicional
Como tem sido exposto até aqui, várias características permitem aproximar O Cabeleira
das características da ficção com perspectiva histórica, uma vez que contém muitos elementos
próprios do romance histórico do século XIX. A temática de suas narrativas contém efeitos
expressivos, o que lhes confere o privilégio de algumas peculiaridades, como algumas cenas
draticas que transmitem uma conotação religiosa: mulheres que morrem rezando, o
protagonista que é resgatado através de uma conversão, a denominação de algumas personagens
como anjos ou demônios etc. A riqueza que a diversidade nacional tem como principal
característica é bem explorada e bem delineada tanto nos romances aqui estudados quantos nas
outras obras do autor. É necessário relembrar que é Távora quem começa a traçar de modo
consciente e programático o percurso do que se poderia chamar de um desvio para o passado
por meio de um recorte regional, a partir do estudo do conjunto das tradições e documentos,
relacionando esses dados sob um caráter evolutivo. Percorrendo o caminho do presente para o
passado, busca decifrar, demonstrar e explicar os traços culturais, sociais, econômicos etc. que
marcam a região ao longo do tempo.
A temática histórica vem traduzir seus anseios de escritor (e) nordestino e é eleita como
conteúdo principal de seu projeto literário. Tendo trabalhado no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o autor assimilou uma sensibilidade especial para a disciplina e conscientemente
pretendeu conectar essa visão à criação romanesca. Em prefácio à obra em questão dirigido a
90
um amigo (que pode ser entendido também como o leitor), Franklin Távora assevera: “inicio
esta série de composições literárias, para não dizer estudos históricos, com O Cabeleira” (2003:
18), e mais adiante completa: “n’O Cabeleira ofereço-te um mido ensaio sobre o romance
histórico, segundo eu entendo este gênero de literatura.” (idem: 22). Portanto, fica clara a
intenção do autor e o modo como classifica sua composição, assim como fica evidente em que
noções vai se pautar: as que incluem a valorização da informação histórica, que vem permeada
por uma visada extra-literária. O narrador curiosamente expressa a consciência histórica da sua
narração: “As procissões eram então atos majestosos e dignos. Uma delas produziu tão viva e
salutar impressão no esrito do povo daquele tempo, que o historiador se julgou na obrigação
de transmitir sua memória à posteridade” (TÁVORA, 2003: 46-47). Sublinha repetidamente a
importância da transmissão e resgate dos acontecimentos e episódios do passado: relembrar,
fixar no presente, transmitir e atualizar o passado.
Como mais de uma corrente literária se dilui nos ideais e resultam por isso em textos
híbridos, aqui entendidos desta maneira por reunirem mais de uma característica genérica, mais
de uma tendência (histórica e regional), o é tarefa fácil tentar organizar características que
pressupõem uma certa complexidade, contrariamente ao que pode parecer, e isto é algo bem
demarcado na voz dos censores de Távora. Ou uma coisa ou outra: é assim que sua obra
costuma ser tomada pela análise canônica. Crônicas ou regionais, históricas ou literárias,
novelas ou romances, separatistas ou inclusivistas etc. - possivelmente encontram-se diluídos
em seus textos todos esses aspectos, como numa composição gangorra, elevando ora uma
extremidade, ora outra. NO Cabeleira essas dualidades são ainda mais nítidas.
Uma das características scottianas deste romance é a crença no progresso como força
motriz para o desenvolvimento: “O trabalho, o capital, a economia, a fartura, a riqueza, agentes
indispensáveis da civilização e grandeza dos povos, teriam lugar eminente nesta imensidade
onde vemos unicamente água, ilhas, planícies, seringais sem fim.” (TÁVORA, 2003: 22).
Observa-se que, como Walter Scott, Távora afirma esse progresso, pois “é um patriota, ele
acredita no desenvolvimento de seu povo”
13
(LUKÁCS, 1965: 56). Lukács destaca que este
sentimento é “absolutamente necessário para a elaboração de um genuíno romance histórico,
aproximando-nos do passado e permitindo revivê-lo em sua verdade e em sua
realidade.
14
(1965: 56). Deste modo, o escritor estabelece uma relação sensível com o presente
(ou uma relação com o passado a partir de sensações provocadas pelo estado de determinadas
13
“c’est un patriote, il est fier du développement de son peuple” (a tradução para o português é nossa).
14
“absolumment nécessaire pour la création d’un véritable roman historique, rapprochant de nous le passé et
nous permettant de le revivre dans sa vérité et sa réalité.” (a tradução para o português é nossa).
91
coisas, no presente), sem a qual a figuração histórica tornar-se-ia impossível (idem, ibidem). Ao
passo que o escocês representa e defende o progresso, o cearense representa a barrie e a “des-
naturalização” como seu inverso, sua ausência.
A preocupação em estabelecer o estatuto de verdade à narrativa histórica ficcional é bem
característica do romance histórico tradicional, em que, aparentemente, não conscncia
do fato de a produção artística ser representação. Em O Cabeleira existem dois movimentos
narrativos simultâneos: primeiro aquele que distancia o narrador dos fatos históricos, como
algm que narra a partir do que pesquisou - “autorizavam-nos a formar este juízo do Cabeleira
a tradição oral, os versos dos trovadores e algumas linhas da história que trouxeram seu nome
aos nossos dias envolto em uma grande lição” (TÁVORA, 2003: 25), argumento que serve para
absolver e sacralizar Jo Gomes ao final da sua saga romanceada. O segundo, curiosamente,
aproxima o narrador dos fatos através de um recurso que atribui a eles o valor da recordação:
Mas desgraçadamente estas cenas não o geradas pela minha fantasia. São
fatos acontecidos pouco mais de um século. Se alguns deles foram
recolhidos pela história, quase todos pertencem à tradição, que no-los legou,
antes como límpido espelho, que como tenebrosa notícia do passado. Não
estou imaginando, estou sim, recordando; e recordar é instruir, e quase
moralizar. Com estas razões considero-me justificado aos teus olhos, leitor
benévolo. (TÁVORA, 2003: 90, grifos nossos)
Talvez nenhum trecho do livro pudesse melhor sintetizar e desnudar o esquema
narrativo de O Cabeleira e, ao mesmo tempo, através dos aspectos presentes, posicioná-lo tão
próximo do romance histórico oitocentista. Ora, primeiro a fantasia a um só tempo é declarada e
escamoteada, literalmente empurrada para os bastidores, não sendo admitida sua mediação.
Segundo: é estabelecida a exata relação temporal entre o presente e o passado mais de um
século. Terceiro: afirma tanto seu propósito didático-moralizante quanto o de resgate, além da
versão do passado como tradição e espelho do presente; portanto, exemplar. Em quarto lugar, e
mais importante: o passado é evocado e nomeado como recordação, mas tal afirmação nada
mais é que escancarar o fato de que aquilo cujo percurso de volta ao tempo pretérito não foi
preenchido através dos dados (as famosas e implacáveis lacunas, ausências de pegadas em
determinados trechos passados), a imaginação completa. Aqui, a recordação nada mais é do que
a imaginação preenchendo essas lacunas e forjando seu novo significado. Para usar a expressão
de Heloísa Costa Milton, a imaginação está sitiada: através dela é fomentada a história do
menino pobre, desvirtuado pelo pai, que o transforma no maior cangaceiro do século XVIII,
mas que antes de morrer é redimido pelo amor de uma donzela que é quase uma santa. A
92
tentativa do escritor é a de constituir o romance stricto sensu nos moldes das fontes históricas e,
sobretudo, das populares folclóricas. Mesmo que as afirmações sejam contrárias; e neste
sentido, é preciso lembrar sempre que todos estes aspectos (a tentativa de fazer com o que o
discurso histórico-ficcional seja tomado como verdadeiro, o didatismo etc.) estão em perfeito
acordo com as tendências vigentes na época do autor; portanto, não devem ser tomados como
incoerentes, contrariando o discurso crítico que não considera tais aspectos.
93
CATULO II
UMA GUERRA NO TEMPO, OUTRA GUERRA NA VIDA:
O MATUTO
a escrita representa o papel de um rito de sepultamento;
ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso.
Por outro lado, tem uma função simbolizadora;
permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem,
um passado, abrindo assim um espaço próprio para o presente.”
(Michel de Certeau, A escrita da história)
94
Traços comuns: escolhido o excluído – os desviados no caminho da ficção
O Matuto
15
trata da história da primeira fase da Guerra dos Mascates, a de 1711,
quando começam a ocorrer os primeiros acontecimentos de relevo na narrativa em
Pernambuco, e foi resultado de um conflito principalmente político – mas que também envolveu
interesses econômicos que ocorreu entre, de um lado, senhores-de-engenho de Olinda, os
“nobres”, e, de outro, comerciantes de Recife, os “mascates”, cuja maior parte era de
portugueses. Coincidiu com a derrocada da cultura canavieira e a prosperidade do comércio,
que aguçou a concorrência entre nobres e comerciantes, e teve seu estopim porque os
olindenses não queriam a emancipação político-administrativa de Recife, que até então era
subordinada a Olinda. Outro agravante da crise é que os nobres ficaram à merdos mascates,
pois a nobreza latifundiária contraiu muitas dívidas junto a estes por meio de vários
empréstimos, sobre os quais eram cobrados juros muito altos. Seguros de sua importância
ecomica, os comerciantes recifenses solicitaram ao rei de Portugal que o povoado fosse
elevado à condição de vila. Por fim, Recife foi elevada à condição de capital de Pernambuco.
No entanto, esta guerra serve como pano de fundo para a história de um menino,
delinqüente temido, aspirante a cangaceiro, de nome Lourenço, e de uma família de matutos,
muito humilde, que resolve adotá-lo. Personagem central, sua história é traçada desde a
meninice, quando ainda era um órfão de natureza, até se tornar o adolescente em amplo
processo de recuperação, que será concluída na idade adulta. Francisco, o traz para casa para tê-
lo como filho, mas é sobretudo sua esposa, Marcelina, quem cuida de reeducá-lo. Contudo, a
maior característica do protagonista é relutar em sublimar seu verdadeiro gênio, inclinado para
o mal, o que configura uma ótica naturalista mais forte e específica do que em O Cabeleira,
pois sublinha no caminho inverso em relação a este, o mal natural da personagem e a inflncia
do meio. Assim, neste romance, como é via de regra na obra do autor, o foco da narração está
centrado nas personagens mais humildes e nos elementos e atividades que envolvem o seu
cotidiano, seu ambiente, sua cultura. Lourenço se vê envolvido num compromisso de casamento
com Marianinha, firmado entre os pais de ambos, e a partir de então começa uma problemática
amorosa que só se resolverá em outro romance, Lourenço. Embora Lourenço seja visivelmente
a personagem principal, em O Matuto, como o próprio título sugere, através do universo do
menino, amplia-se o olhar para as falias sertanejas, para o peso e a força de sua moral e sua
vida agria, apresentada como edificante através da valorização do trabalho.
15
Preferimos atualizar a ortografia presente no exemplar usado para a análise.
95
Novamente neste livro, como em O Cabeleira, o narrador se dirige a um amigo,
podendo ser compreendido como o leitor, uma vez que esse tipo de referência é feita tanto no
seu pequeno prefácio, quanto durante a narrativa: “Meu amigo, eis o Matuto prometido há perto
de dois anos, e agora publicado, por circunstâncias que o vêm ao caso revelar”,
“Entristeço-me, meu amigo, a qualquer indício de que a cultura de planta diferente [da cana-de-
açúcar]” (TÁVORA, 1878: 1, 37). Neste romance, o autor também frisa a censura sobre o seu
projeto literário, reflexo das críticas que surgiram após a publicação de O Cabeleira e seu
manifesto regionalista: “fica fora deste livro a carta que escrevi, tendo em vista as objeções de
amigos e inimigos à fundão, ou antes, ao reconhecimento de uma literatura que suponho, se
não formada, em trabalho de formação a que denominei Literatura do Norte (TÁVORA,
1878: 1), repisando, em toda oportunidade, a receptividade deste tipo de produção a que
Franklin Távora se propõe. Nas primeiras linhas ainda se notam resquícios da quizília
regionalista. Há sempre uma comparação entre os costumes e a moral do campo (entenda-se
também o norte) e os costumes da cidade (do mesmo modo, o sul). Além disso, existem breves
referências a José Gomes, sendo que a crença na educação como respaldo para a boa índole
volta a ser um dos parâmetros principais nos três romances da série da literatura nordestina de
Franklin Távora.
Fica expresso o ar solidário do narrador para com os matutos, através do seu
enaltecimento e de críticas esparsas a sistemas institucionais que os prejudicam, e este papel
também está diretamente ligado à guerra que é descrita na narrativa. Singularmente, este
romance traz de forma veemente o valor da educação e da base familiar na vida do indivíduo,
destacando principalmente o papel da mulher nesta empreitada, o que é muito demarcado no
processo de reeducação da personagem principal, Lourenço. A partir disso, é demonstrado
como este recurso da educação pode ser útil à família, a sua comunidade, a um acontecimento
histórico.
As personagens criadas por Franklin Távora costumam ser muito peculiares, e, em O
Matuto e Lourenço, essa característica se acentua e se torna um pouco mais complexa no que
tange a personagem principal. Do mesmo modo, as particularidades que envolvem as
personagens e o enredo associam-se diretamente ao recorte de um acontecimento situado no
tempo, o evento histórico. Além de servirem algumas vezes de porta-vozes do autor, a escolha e
a configuração das personagens dentro da produção romanesca não são apenas interessantes
porque encerram um arcabouço ideológico persistente e elaborado. Também porque os
protagonistas que dão título aos romances fazem parte da gente do sertão e, ao mesmo tempo,
figuram como os recusados do convívio daqueles sertanejos são desamparados e preteridos (na
96
época, o sertanejo pobre, latifundiário ou dependente do regime escravocrata, castigado por
pestes e pela seca). Assim, configura-se um duplo grau de exclusão. Lourenço é o protagonista
de O Matuto e Lourenço, tipo peculiar de delinqüente juvenil com gênio difícil; JoGomes, o
Cabeleira, é a personagem principal de O Cabeleira, espécie de cangaceiro, lebre no folclore
por suas maldades, são os famosos sujeitos que deram certa notoriedade a esses três romances,
destacando-se o último. Estas personagens representam, de certa forma, os párias de um grupo
social que era igualmente mantido à margem do todo que formava a nação.
Embora a posição ideológica do autor tenha relevância na análise de suas obras, não é
apenas isso que conta na criação literária de Franklin vora. Suas personagens encerram
peculiaridades interessantes de personalidade, são sujeitos destacados por sua conduta maléfica
ou, de outro modo, acima de qualquer suspeita ou reprovação, em detrimento ados senhores-
de-engenho, de quem são empregados, como é o caso da família e dos amigos de Lourenço.
Dessa maneira, como em Walter Scott, a narrativa firma-se porque “sua força consiste
precisamente nesta apresentação da vida popular, no fato de que os acontecimentos e as
personagens da história oficialmente notórias não recebem uma posição central”
16
(LUKÁCS,
1965: 59). O jogo romanesco é completado pela psicologia ambivalente do protagonista que,
por sua vez, é realçada pelo caráter e retidão de atitudes de outras personagens, que acabam por
influenciá-lo positivamente.
Embora o autor procure camuflar seus ideais nas obras, é possível notar que, servindo-se
do narrador, na maioria de seus romances, seus traços ideológicos aparecem de forma latente ou
manifesta. Talvez por esta razão tenha criado personagens tão marcantes e insubordinadas. Os
protagonistas de suas histórias primam por um caráter de revolução, insubordinação e revolta
contra os padrões sociais e políticos. Deste modo, chamam a atenção por serem os excluídos da
sociedade e conseguirem de alguma forma interferir no tecido social, benéfica ou
maleficamente. Lourenço e Cabeleira, as personagens principais das obras aqui estudadas,
possuem uma insubordinação atávica, encerram um caráter dúbio: são boas e más,
insubordinadas e subordinadas, frias e ao mesmo tempo passionais. Porém, são conduzidos por
uma forte influência rontica: basta observar como o amor torna-se um componente decisivo
em suas vidas. Isto es de acordo com as tendências da época do autor, fato que deve ser
considerado sempre. Por outro lado, algumas concepções ronticas são refutadas, na esteira
do romance histórico tradicional scottiano, pois “toma partido de maneira mais contundente
contra a concepção romântica de romance histórico, segundo a qual as grandes figuras da
16
“sa force consiste précisément dans cette présentation de la vie populaire, dans le fait que les événements et les
personnages de l’histoire officiellement grands ne reçoivent pas une position centrale”.
97
história devem servir de heróis principais
”17
(LUKÁCS, 1965: 85). Por meio da condição que
lhes é estabelecida, da maneira como são movimentadas na narrativa e da marca ideológica que
carregam, estas personagens tornam-se figuras marcantes. Principiam por causar antipatia ou
aversão no leitor, além de levantarem polêmica em rao de suas ões violentas e do olhar
solidário do autor ao enaltecê-los. Mas, de algum modo, acabam fazendo com que ele
compreenda e identifique as agruras, apesar de seus aspectos dissonantes.
O contexto histórico em que estão inseridas também esintrinsecamente ligado à idéia
de percepção, criação e comportamento revolucionário destas personagens. Um fator que as
aproxima da narrativa histórica é o fato de que, em um outro sentido, elas representam tipos
marginais de todas as épocas, de modo que são sempre atuais, como coloca Lukács acerca do
romance histórico scottiano, destacando a atualidade das questões e das atitudes que envolvem a
história narrada. Tal aspecto pode ser remetido, por exemplo, à figura do marginal e do conflito
psicológico que se instala no indivíduo, à dificuldade de integração social, à importância do
alicerce familiar etc., itens que são plasmados em maior grau e complexidade em Lourenço, e
de forma mais elaborada. Trabalhando ao mesmo tempo com o folclore e com a história, neste
romance Franklin Távora novamente insere atributos que levam não só a uma forçosa releitura e
reinterpretação da realidade sertanejo-nordestina, com suas peculiaridades, mas também a uma
mudança de ponto-de-vista sobre o indivíduo que nela está inserido.
Se para Távora o descortinar da natureza é um ritual rico em detalhes que convidam a
fincar os pés no ambiente sertanejo fictício para sentir o seu cheiro, o seu clima e seus efeitos e
travar conhecimento com a gente simples que mora no coração do sertão, tanto mais o explorar
das individualidades do sertanejo lhe é interessante. Para ele, os matutos do sertão muitas vezes
são mais interessantes e valorosos do que os comerciantes e senhores-de-engenho. Por isso,
contrariando a “norma” da época que se inclinava a reservar uma participação totalmente
secundária ou pejorativa das classes menos favorecidas e seus equivalentes esses bons
matutos, quando o estão ao menos em de igualdade, são colocados numa
posição/descrição superior àqueles de quem o subordinados, se não socialmente, no caráter e
na moral. Na produção tavoreana esta é uma visão que cada vez mais se fixa e se aprimora em
não beneficiar ou privilegiar grupos restritos, pois se coloca a serviço dos excluídos. Tais
quesitos são importantes por resultarem em personagens que acabam se configurando como
“tipos antropológico-históricos” ou sócio-históricos.
17
O autor prend position de la manière la plus vive contre la conception romantique du roman historique, selon
laquelle les grands figures de l’histoire doivent servir de héros principaux” (a tradução para o português é nossa).
98
Em O Matuto e Lourenço, sob um aspecto simbólico, pode-se dizer que Távora monta
um grande banquete, com gente “nobre”, senhores-de-engenho, políticos, coronéis etc., mas
escolhe seu anfitrião na multidão: quem senta na extremidade da mesa é o marginal. É ele que
recebe o leitor no abrir das portas da ficção romanesca tavoreana, guarda-lhe o casaco e o
chapéu, convida-o a se acomodar e prestar muita atenção no jogo que mostra a história com a
roupagem ficcional que visa à mímese, sob um sentido crítico e revolucionário, o que não deixa
de ser mais um ato de provocação de Távora. José Gomes, o Cabeleira, não é só um marginal –
é um fanora. Lourenço o é um bandido em formação é um rebelde imprevisível
traços negativos que o acentuados através da descrição do narrador. Embora as personagens
do povo, representadas nos três romances, tenham os melhores atributos para serem heróis e,
sobretudo, heroínas dada a personalidade forte das mulheres de sua obra –, Távora prefere
retirar dos marginalizados o seu herói romanesco. Portanto, as personagens de extração
ficcional são as protagonistas e agem diretamente dentro do tecido histórico, através de um
recorte social. Um dos motivos que podem ser observados nesta escolha é o propiciar da
construção efetiva deste hei: tirá-lo das vicissitudes em que vive e dar-lhe uma redenção,
mostrando o seu lado bom e os motores reais de suas atitudes. Uma contribuição a mais na
fixação do mito regionalista tavoreano.
Embate no herói
Lourenço é um pequeno marginal de 12 anos quando aparece pela primeira vez na
história. Desde menino mostra que é muito malvado, maltrata os animais e, por prazer de
judiar do irmão menor, acaba matando-o (TÁVORA, 1878: 14). Todos lhe têm verdadeiro
terror, e já ganhava fama quando Francisco, que não tinha filhos, resolve ir contra os conselhos
de todos e leva-o para a mulher, Marcelina, de modo que os dois adotam Lourenço. O narrador
descreve a vida e o caráter de Francisco e Marcelina que, amando-se e sendo humildes, são
constituídos como uma falia modelar:
Vivia assim feliz, sem ter coisa alguma que lhe causasse inquietação nem
tristeza, aquele casal pobre, mas honrado e discreto, só pedindo a Deus que lhe
desse chuva e sol nos tempos oportunos [...] e que não lhes mandasse doenças
graves que os privassem do trabalho, sua distração e prazer de todo dia.
(TÁVORA, 1878: 26)
99
Estas características, contudo, se estendem para os amigos do casal, também matutos
como eles, reiterando com freência que a dignidade não está somente em famílias da alta
sociedade, mas também, e sobretudo, entre os humildes. Este conceito é reforçado de forma
direta ou alusiva durante todo o decorrer do texto, e são estabelecidas comparações que
apontam para a perda do eixo familiar e da conduta que tende a dissolver cada vez mais
costumes e comportamentos tradicionais.
Deste modo, Lourenço é levado para um lar de paz e felicidade, mas não sem dar muito
trabalho. O narrador projeta, então, com poucas mas eficazes palavras, a grande luta travada
entre dois seres diferentes, ou seja, homem e mulher, mãe e filho, dois gênios opostos em todos
os sentidos. Nota-se que existe nesse verdadeiro embate entre o bem e o mal uma visão
religiosa que forma a personalidade de Marcelina, virtuosa em tudo desde a beleza até o
caráter. Impossível não nos remetermos à visão bíblica da Virgem Maria, que pisa e vence a
serpente, ou seja, o símbolo religioso do mal, que neste caso seria representado por Lourenço. O
narrador traça um perfil de Marcelina que corresponde à visão do cristianismo: mulher perfeita,
abnegada e que serve de instrumento para a conversão e a expiação do pecado. Sob este ângulo,
a educação que ela dá a Lourenço também ganha ares de redenção, (não na mesma proporção e
conotação de O Cabeleira), e a mudança do caráter de Lourenço adquire uma dimensão de
recuperação e reeducação. Em O Matuto o papel da educação ganha maior tonalidade, sendo
destacado como fator imprescindível na transformação da personagem.
Se, por um lado, o narrador expõe os maus instintos do garoto como o de algm
perverso, por outro, também destaca que, apesar disso, existe o lado bom que supostamente
todo ser humano tem, embora o lado mau de Lourenço pareça mais forte. Desta maneira, a
crença no homem volta a ser reiterada neste romance. Contudo, ao contrário do cangaceiro do
romance anterior, que se redime e se torna um homem bom, em Lourenço as coisas o um
pouco mais complicadas. O narrador frisa que “Ele era de índole má”, uma vez que nele, o que
imperava eram “as fatais leis do instinto” (TÁVORA, 1878: 30), ao contrário do Cabeleira, que
fora corrompido. Contudo, também aqui, como nos outros romances, existe a crença na
recuperação do homem, que, no caso de Lourenço, se através da educão e da base familiar.
Apesar da reabilitação propiciada pela mãe adotiva, nos dois romances, Lourenço vai
dar provas de que terá de lutar contra o mal dentro de si mesmo. O jogo propiciado pelo
narrador nessa dualidade do caráter faz com que o leitor se posicione diante da história,
oscilando entre a simpatia e a reprovação ao acompanhar a construção, a mudança e a oscilação
da personalidade da personagem:
100
Tantas tinha feito, que não houve aqui alma caridosa que não temesse tê-lo
perto de si. O mais compadecido de todos os moradores, a velha Aninha,
recolheu-o um dia em sua palhoça. Pelo correr da noite, acordou debaixo de
labaredas. Lourenço tinha posto fogo na casa da velha.
Vendo-o exercitar tão bem a sua atividade espontaneamente, como que
tocado de celeste inspiração, Marcelina não pôde suster as lágrimas.
Lourenço, a seus olhos, acaba de dar testemunho de emenda, resultado da
constância e paciência com que ela o dirigia para o bem desde o dia de sua
chegada.
Lourenço, que assistiu à solene entrega desses objetos, filhos das suas mãos,
viu com lágrimas nos olhos eles passarem de seu poder para o daquele cuja
vida pusera em perigo, e a quem dera tanto o que padecer. [...]
Nunca ele tinha compreendido tão bem, como nesse momento, que o homem
que menos mal faz, é o que está menos sujeito ao mal. (TÁVORA, 1878: 14,
40, 50-51)
Nota-se, durante a narrativa, que a reeducação de Lourenço ultrapassa o universo da
personagem para atingir diretamente o leitor, através de perspectiva e linguagem moralizantes.
Através desses subsídios, promove-se a reflexão sobre determinadas questões, como, por
exemplo, a da índole natural e da importância do respaldo educacional (seja social, familiar,
institucional) na vida do indivíduo. No caso de Lourenço, a família é o grande diferencial em
sua vida – sob este aspecto, pode-se entender que neste romance ela representa uma espécie de
pilar social. Não por acaso Francisco e Marcelina possuem dotes heróicos, legado que
transmitem a Lourenço: Francisco é “homem de trabalho e paciência, forte de constituição
física, [...] animado pela energia de seu espírito [...] habilitado a levar a efeito prodígios
semelhantes, e outros ainda maiores e mais admiráveis” (TÁVORA, 1878: 17). Ao passo que
Marcelina, além de características semelhantes às do marido, tamm possui traços marcantes –
é a mãe modelar: “aquela mulher era digna do estudo das mães de família, e de ser por elas
imitada. Era o modelo vivo da mãe pobre, boa e virtuosa” (idem, ibidem: 25, grifo nosso).
A descrição da personalidade de Lourenço se de maneira diferente, e é quase que
contínua durante O Matuto, uma vez que sua personalidade é oscilante. Narrando com minúcia
gradativa e em ritmo acelerado as maldades das quais Lourenço é capaz, na descrição
fisionômica lenta e detalhada, cria um efeito de claro-escuro, crueldade-pureza, bondade e
maldade, formando um sujeito dúbio, paradoxal:
Esta oncinha, que então tinha mostrado para quanto havia de dar,
quebrando as pernas dos cachorros a pedradas, furando com espeto quente os
101
porcos da casa a ver se lhes derretia o toucinho, segundo ele mesmo dizia e
pondo carvões abrasados na rede onde dormia um irmão menor que veio a
morrer desta e de outras malignidades.
[...]
A limpa corporal tinha sido completa.
Desapareceu o cabelo sórdido e especado, que fora cortado rente, as rajas
que desfiguravam a cara, as unhas que se podiam comparar com as garras
dos carcarás. Lourenço se mostrava, agora, outro que viera. O banho geral
que lhe foi dado por Marcelina lhe pôs ao natural. [...] Os vasos azuis
desenhavam-se sob a cútis das faces, murchadas pouco antes, agora porém
refrescadas pela ablução saudável, e como remoçadas pela pronta reação que
é natural da meninice.
Conheceu então que o menino não era feio. Tinha a fronte espaçosa, os olhos
rasgados e negros mas de desvairado brilho [...] Lia-se porém, no semblante
móvel e no olhar sorrateiro, [...] a desconfiança, que é uma das
manifestações naturais de quem se afez a obrar ações reprovadas, a cuja
prática se não animaria, se lhe não fossem propícios os esconderijos, as
trevas, os ermos. (TÁVORA, 1878: 14, 30, grifo do autor)
O caráter dúbio de Lourenço fica bem marcado através de expressões como estas:
“ablução saudável”, “olhos de desvairado brilho”, que destacam o seu lado bom, ao passo que
“garras de carcará”, “olhar sorrateiro”, “esconderijo”, “trevas”, “ermos”, revelam de maneira
clara seu lado mau. No entanto, tais “predicados”, unidos, tamm conferem à personagem um
caráter especial, pois o responsáveis pela constituição heróica que ela adquire em Lourenço,
que sucede o romance em questão.
Aos poucos Lourenço sai da condição de marginal e vai vestindo a roupagem de herói.
O banho revela um homem bonito e a educação persistente e rigorosa, e ao mesmo tempo
amorosa, revela um filho bom e abnegado, mas de gênio explosivo e imprevisível, o que acaba
concorrendo como diferencial para a psicologia do herói. Além disso, ele é filho de padre o
que o é visto de forma negativa, ao contrário do costume de muitas obras literárias de época.
Em o Matuto e Lourenço, o padre Antônio, pai de Lourenço, é um homem bom e muito
respeitado. Ele chega mesmo a assumir a paternidade depois que reencontra o filho em casa dos
pais adotivos. Curiosamente, mesmo a própria Marcelina se sente abençoada ao saber que criou
o filho de um padre. O que seria visto como pecado ganha uma outra conotação: acaba sendo
um diferencial que contribui qualitativamente como um dote a mais para o caráter de Lourenço
e na sua constituição de hei.
Outra particularidade é o cerco amoroso que envolve a personagem. Lourenço se vê
envolvido em uma tríade amorosa feminina. A primeira, Mariana, é aquela com quem assume
compromisso de um noivado arranjado, ainda adolescente. Contudo, a atração que sente por ela
não é tão forte quanto a que experimenta pela irmã desta, Bernardina, mais expansiva e sensual.
102
A terceira, Damiana, após o termino da guerra, será a jovem viúva do senhor de engenho,
proprietário da fazenda onde moravam. De um lado, como num verdadeiro romance-folhetim,
Lourenço enfrenta um duelo para resgatar Bernardina das os do chefe dos mascates, de
outro, num rompante, tenta matar a noiva, Mariana. Destarte, Lourenço, em situações-chave”,
é sempre marcado pela duplicidade de suas ões agressivo e heróico. Damiana se sente
atraída por ele, mas este é o tipo de amor impossível, dada a diferença social que separa os dois,
uma vez que ela é a viúva do dono do engenho onde a família da personagem reside. Essa
característica também faz parte do romance histórico tradicional: a frustração amorosa do herói
histórico ou o histórico. Neste sentido, incluído no discurso histórico, aparece caracterizado
física e moralmente desde o início da narrativa que envolve a guerra, e está implicado em uma
trama sentimental, o que é mais uma aproximação com o romance histórico tradicional e
scottiano. Estes traços de Lourenço serão determinantes em sua atuação na Guerra.
Estes e ainda outros fatores vão rechaçando a tese de alguns críticos que atribuem ao
romance de Távora um valor meramente histórico ou documental. Um fator que descaracteriza
totalmente este tipo de opinião sobre a obra es no simples fato de que a reconstrução da
infância (e isso também vale para o Cabeleira) só é possível na ficção – a história o dá conta
da dimensão humana, em seu arcabouço individual. A ação narrativa, embora se refira, em sua
quase totalidade, à Guerra dos Mascates, em muito favorece a personagem principal, pois nela
es centrada. O acontecimento acaba sendo utilizado também na formação do comportamento
heróico de Lourenço. O senso de urgência, a resolução de situações intricadas, o socorro em
horas extremas, a responsabilidade da proteção, todas essas características, que atestam uma
função heróica, são conferidas tanto a ele quanto a seus pais adotivos.
A escolha por introduzir o fato histórico da Guerra dos Mascates na ficção está
intimamente relacionada ao ideal romântico de nacionalidade. Levando em consideração que
este era um dos principais projetos ideológicos do autor e que por isso esta guerra “foi o
primeiro grito contra as metrópoles européias”, segundo as palavras do próprio autor
(TÁVORA, 1972: 2), Lourenço está inserido em um cenário de revolta e revolução que reforça
o ideal heróico de nacionalidade na personagem. A escolha e o foco no indivíduo comum dentro
de um acontecimento histórico colocam em destaque na criação romanesca a importância do
cidadão (o que está de acordo com os moldes do romance histórico criado por Walter Scott) na
realização de um ideal revolucionário para se libertar da inflncia econômica estrangeira, ou
seja, o povo como parte integrante de uma ação que promova um resultado efetivo na mudança
de sua própria realidade. Nesse sentido, o cidadão comum torna-se indispensável como dínamo
na firmação da identidade e da independência econômica e política nacional.
103
Os que existiram e os que surgiram: outras marcas – personagens
Antes de tudo, é preciso esclarecer que as considerações sobre as personagens
envolvidas na narrativa m como propósito apenas identificar outras marcas que compõem o a
criação histórico-ficcional dos romances de Távora, e como se dá esse processo na narrativa, ou
seja, mostrar a presença de personagens de extração histórica junto aos ficcionais, uma das
exincias do romance histórico. Sejam as personagens de extração histórica ou ficcional, uma
vez inseridas no universo romanesco, tudo é ficção. No romance histórico não é diferente.
Nesta obra, encarregada de narrar o primeiro período no qual tem início o conflito entre os
senhores-de-engenho e os mascates, o autor mistura personagens fictícias a personagens que
realmente existiram. Esta diferença é bem demarcada no que diz respeito a oficiais e
governadores, alguns sargentos e capitães, uma vez que estes últimos têm sua existência
comprovada através da descrição de trechos documentais ou que exprimem caráter de
veracidade: “o governador a que alude o cronista na passagem supramencionada era Sebastião
de Castro Caldas(1878: 63), “contava-se neste número Cosme Bezerra dentre todos os que ali
se achavam o mais ardente membro da nobreza [...] maior nome deixou nas crônicas do tempo
porque, degredado para a Índia em 1713, daí o voltou mais à sua pátria. Era juiz ordinário e
capitão de ordenanças. (1878: 71-72). Sobre Tunda Cumbe, contra quem Lourenço luta rias
vezes por causa de Bernardina, o narrador informa:
em poucas palavras poremos o leitor a par deste sujeito, que tão importante
papel desempenhou na Guerra dos Mascates. E para que o retrato venha com
o cunho de severa autenticidade, preencheremos a nossa promessa
trasladando aqui as próprias palavras em que um cronista pernambucano o
descreveu para conhecimento da posteridade. (TÁVORA, 1878: 85)
Assim, a relação entre as personagens evidencia que a interação entre ficção e história é
clara, formando um amálgama. As ficcionais compreendem Lourenço, sua falia e amigos,
que formam o núcleo dos matutos que moram na estrada do Cajueiro, pois o referência
histórica sobre eles e tampouco o intento direto e explícito de comprovar que existiram de fato –
neste caso, fica a cargo do leitor tomá-los como verdadeiros ou não. Não é feita qualquer alusão
à ficcionalidade ou à existência “real” destas personagens, o que nem por isso faz com que seja
tão fácil definir a qual instância pertencem. Supõe-se que sejam de fato inventadas devido à
104
trama que as envolve. Dificuldade maior está nos casos do representante dos nobres senhores,
dono do engenho Bujari e conseqüentemente das terras que incluem aquelas em que os matutos
da região moram, João da Cunha, e de sua esposa, Damiana, bem como o representante dos
mascates, Antônio Coelho: fica difícil saber se o inventadas ou se realmente existiram,
mesmo porque boa parte da ação e da trama histórica gira em torno delas.
Ao identificar a origem de determinadas personagens, sejam elas realmente históricas ou
não, o autor utiliza um recurso a mais para a verossimilhança, para atestar a pesquisa histórica
buscando reforçar a credibilidade erudita. É uma estratégia que possui interesse em convencer
ao forjar a pretensa veracidade dos fatos e da plausibilidade da versão narrada. Enfim, essa
identificação das personagens atua como um complemento auxiliar, tanto em O Matuto e
Lourenço, quanto em O Cabeleira. De um modo geral, no que tange a algumas personagens de
destaque das duas primeiras obras, (com algumas exceções, como Tunda Cumbe, cuja
“existência real é comprovada na narrativa, como se verificou anteriormente) e, sobretudo no
que diz respeito às que ocupam o primeiro plano, não é possível afirmar com certeza se são
históricas ou ficcionais. Tudo leva a crer que neste caso o escritor procura escamotear a
verdadeira “origem destes entes, facilitando a mistura de outros itens que conferem outra
dinâmica para o acontecimento histórico, tornando-o mais interessante, sem, contudo,
descaracterizá-lo em seus pontos primordiais. Esta identificação de algumas personagens como
reais serve apenas para atestar a seriedade da pesquisa histórica e da relevância do resgate do
acontecimento, não tem o propósito de fazer com que a narrativa se identifique com o discurso
da historiografia. Assim, através de determinadas personagens, insere outras tramas e
problemáticas ao cenário e ao acontecimento histórico. Munido desta e de outras estratégias, o
autor procura, usando a expressão de Cartelle e Ingelmo (1994: 22), exprimir algo mais do
aquilo que é “dito” apenas pelos feitos históricos. Igualmente, a criação de figuras ficcionais
integradas às históricas é uma forma de dar passos além e de antemão armar o esquema
reflexivo que, ao longo da narrativa, se encarrega de contar uma face da história, ao mesmo
tempo em queo se limita a mostrar apenas uma feão dela.
A composição do texto contendo figuras históricas e ficcionais é, portanto, dado
fundamental na caracterização do romance histórico, seja ele tradicional ou não. Célia
Fernández Prieto esclarece que os nomes próprios possibilitam ao leitor identificar as figuras
“reais da trama, por meio do acionamento da competência cultural. Mas no caso da distância
temporal que aumenta com o passar dos anos, dificultando o reconhecimento deste traço,
informações que situem o leitor são fundamentais:
105
A utilização no mundo ficcional de entidades históricas destacadas e
presentes na enciclopédia dos leitores formula certas restrições ao
romancista. O desenvolvimento e desenlace de um acontecimento histórico
assim como a trajetória biográfica fundamental de uma personagem estão
traçados de antemão, e os leitores esperam vê-los confirmados no romance.
18
(FERNANDEZ PRIETO, 2003: 184).
Tais requisitos estão presentes tanto em O Matuto quanto em Lourenço, e ao leitor é
possível identificar boa parte destes elementos não apenas através das informações sobre
determinadas personagens presentes no texto, mas também através da evolução da trama.
Porém, nem tudo é deslindável, o que, não obstante, é fundamental para garantir a ilusão
narrativa.
As personagens de extração histórica ou que desempenham tal função são humanizadas,
ou seja, têm o caráter bem delineado e detalhes da sua vida particular o colocados à mostra,
como a demonstração de sentimentos e fraquezas ou pequenos incidentes da vida familiar que
entram juntamente com a caracterização das personagens no tecido textual: “Quando Damiana
punha sobre ele seus grandes olhos negros e ternos, João da Cunha sentia no intnseco de sua
alma uma impressão de brandura, [...] reflexo da benevolência da esposa penetrando na dureza
natural do coração do marido” (TÁVORA, 1878: 67). Ou mesmo a inclusão de anedotas
correntes na tradição popular, como o caso do bandido Valentão da Timbaúba.
A constituição das personagens e o modo como ganham destaque durante o texto
seguem a linha do escritor escocês, que “se esforça para figurar as lutas e os antagonismos da
história por meio de personagens que, em sua psicologia e em seu destino, permanecem sempre
representantes de correntes sociais e de forças históricas”
19
(LUKÁCS, 1965: 34). Neste
sentido, a falia de Lourenço é a representação dos matutos e das dificuldades pelas quais
passam no dia-a-dia, subjugados ao senhor de engenho, ganhando a vida no cotidiano através do
esforço do trabalho na lavoura e do artesanato, aliando-se à guerra para não verem sua proteção
ameaçada juntamente com o engenho, do qual são parte. O sargento-mor João da Cunha
representa a nobreza agrícola e o cultivo canavieiro em crise, perdendo espaço, poder e
inflncia para o comércio, domínio dos portugueses, e desta forma também se assemelhando à
função que Célia Fernandez Prieto aponta no romance histórico de Benito Pérez Galdóz, que
18
la utilización en el mundo ficcional de entidades históricas destacadas y presentes en la enciclopedia de los
lectores plantea ciertas restricciones al novelista. El desarrollo y desenlace de un acontecimiento histórico así
como la trayectoria biográfica fundamental de un personaje están trazados de antemano, y los lectores esperan
verlos confirmados en la novela.” (a tradução para o português é nossa).
19
“s’efforce de figurer les luttes et les antagonismes de l’histoire au moyen de personnages qui, dans leur
psychologie et dans leur destin, restent toujours des représentants de courants sociaux et de forces historiques. »
(a tradução para o português é nossa)
106
consiste na “construção de personagens que funcionam como intérpretes dos acontecimentos
narrativos na medida em que são porta-vozes do sistema de valores preconizados no
texto”
20
(FERNÁNDEZ PRIETO, 2003: 117). Outra demonstração desse papel que
determinadas personagens desenvolvem está no didatismo que compõe a função familiar de
Francisco e Marcelina, que são impecáveis em sua conduta, exemplos de matutos:
Não tinha medidas o amor que Francisco votava a Marcelina, exclusiva
possuidora do seu coração.
Os matutos não casam por mera conveniência. Suas uniões ordinariamente
precoces, não deixam por isso, em regra, de ter o principal fundamento na
estima recíproca daqueles que as contraem. Grandes desgraças têm
procedido das junções prematuras, mas no mato não constituem a regra
geral. Ao reverso, tais junções são o princípio de moralidade no lar e no
povoado do matuto.
Causava inveja e admiração a harmonia e a felicidade desses dois entes
rudes, que dispensavam lições de gente civilizada para viverem com honra e
conveniência e que da beira de um caminho deserto, do pé de uma mata, sem
saberem ler nem escrever, davam edificativos exemplos de moral doméstica,
amor ao trabalho e fé no Criador. (TÁVORA, 1878: 21,27)
Também no sentimento do narrador evidencia-se esta função didática, que acaba
explicitando sua posição ideológica a respeito do conflito que, na sua voz, adota não somente a
função de expressar valores econômicos e políticos, mas também nacionalistas – através de sua
ótica, o narrador revela que a guerra passa a ser o só uma briga entre senhores-de-engenho e
comerciantes: é também uma briga entre a nação e a dominação estrangeira, entre a cana-de-
açúcar e o café. Assim, o texto tavoreano, que tanto prima pela dimensão social, é incrementado
também por questões de ordem política. O leitor se depara com a narrativa que o é isenta no
descortinar dos eventos. Contudo, é preciso lembrar, novamente com Célia Fernandez Prieto
(2003: 77), que, embora Walter Scott tenha como ponto de partida a Revolução Francesa, a
proposta do romance histórico é uma resposta artística para variadas situações políticas,
culturais, de contextos particulares, não se atendo, portanto, a uma única causa. Nem os
romances aqui analisados seguem rigorosamente o molde scottiano, uma vez que assimila desde
os pilares básicos por ele instaurados (narração de episódios nacionais, realismo histórico), até
alguns outros mais específicos (representação de momentos de crise, crença na grandeza do
passado e do homem, enquanto agente no/do evento histórico etc. de acordo com as teorias
lukacsianas).
20
“construcción de personajes que funcionam como intérpretes autorizados de los acontecimientos diegéticos en
la medida en que son portavoces del sistema de valores preconizados en el texto.” (a tradução para o português é
nossa).
107
Essas produções de Távora possuem suas particularidades, são intimamente ligadas a
questões e tendências de época, além das particulares ao autor, como o seu olhar regionalista,
suas idéias polêmicas, seu gosto por valores tradicionais, vale lembrar mais uma vez. Assim, o
narrador de O Matuto não mantém distância nem imparcialidade. Pelo trecho citado a seguir
pode-se entender por que a narração favorece os senhores-de-engenho (o que motiva o destaque
para João da Cunha e seu grupo):
A vista da moagem produz em mim gratas alterações, e traz-me saudades da
infância; recordações veneráveis dos tempos felizes em que, levando a vida
entre a vila e os engenhos, entre a casa paterna e os painéis que a natureza
expõe gratuitamente aos que para ela têm os seus principais afetos e a sua
primeira admiração...
Para o homem do norte o engenho de açúcar é o representante de imemoriais
e gloriosas tradições. Especialmente o pernambucano nasce vendo com
amigos olhos aquelas grandes propriedades que são como os seus castelos
feudais. O engenho é o solar do norte. A nobreza do país principiou por ele;
não conheceu outro solar. Ele figura nas maiores páginas da historia daquela
parte do vasto império. Sua importância é lendária, histórica e santa.
(TÁVORA, 1878: 37-38, grifo nosso)
Embora procure apresentar uma narração “objetiva dos fatos, este narrador sempre
demonstra uma visão subjetiva do momento histórico. Como assevera Ingelmo e Cartelle, “a
idiossincrasia do romance histórico faz com que amiúde ele seja utilizado como instrumento
para outros fins, porque o autor que se volta para o passado interpõe sua própria visão na hora
de o transmitir ao leitor de sua época.”
21
(1994: 32). NO Matuto acontece o contrário do que na
epoia, tal como observa George Lukács, uma vez que “na epopéia, o indivíduo é, por assim
dizer, assujeitado ao acontecimento; o acontecimento eclipsa a personalidade humana por sua
grandeza e importância, desviando dela nossa atenção, pelo interesse, pela diversidade e pela
multiplicidade de suas imagens
22
(1965: 35-36). Neste texto pode-se dizer que tal artifício
aparece de forma peculiar. O evento histórico tem o seu momento de destaque, mas é possível
perceber que as figuras dramáticas têm a prioridade das cenas na maior parte da narrativa,
aprofundando seu relevo, muitas vezes “roubando a cenaa partir de certas atitudes e aspectos
de personalidade. As personagens de primeiro plano possuem uma personalidade forte ou
marcante, e mesmo as que são desenhadas com pincel de cores mais brandas costumam ser
21
“la idiosincrasia de la novela histórica provoca a menudo que se la utilice como instrumento para otros fines,
porque el autor que se remonta al pasado interpone su própria visión a la hora de transmitirlo al lector de su
época.” (a tradução para o português é nossa)
22
«dans l’epopée, l’individu est, pour ainsi dire, assujeti à l’événement; l’événement eclipse la personnalité
humaine par sa grandeur et son importance, détournant d’elle notre attention par l’intérêt, la diversité et la
multiplicité de ses images.» (a tradução para o português é nossa)
108
decididas, persistentes e fortes, como as personagens femininas, cujos exemplos são Marcelina
e Damiana. Possuem quase sempre traços que, se não as transformam em heroínas, tornam-nas
muito próximas dessa tipificação. Ambas participam da guerra lutando junto com os homens,
pegando em armas contra os inimigos, inclusive. Damiana, a nobre senhora de engenho, por ser
exímia atiradora, é apelidada de “a escopeteira”. Estas duas são responsáveis por resistirem aos
ataques inimigos e dar grande respaldo no momento mais crítico da guerra, quando sofrem uma
traição de um escravo.
Tal como aponta Lukács acerca das principais figuras dos romances scottianos, que
possuem “características nacionalmente típicas, mais no sentido de uma virtude mediana do que
da superioridade eminente e global.”
23
,(idem, ibidem: 33) tais figuras tavoreanas representam o
cidadão nacional, na medida do que se entende por isso o sertanejo, o mestiço, como
representante da nacionalidade brasileira, tese defendida pelo autor. Portanto, enquanto no texto
scottiano o romance é construído “em volta de um herói ‘comum’, somente honesto e jamais
heróico”
24
(idem, ibidem: 33), no tavoreano ocorre justamente o contrário. Retomando o
exemplo, é em virtude desta diferença que Lourenço foge totalmente do parâmetro do herói
mediano, possui uma personalidade dúbia, que o faz agir por impulsivamente, muitas vezes sem
refletir sobre seus atos; sua constituição física e psíquica é a de um herói nato, impulsionado
sempre pela rebeldia, em detrimento da ponderação, e pela passionalidade, fazendo regredir
parte do progresso de sua reeducação. As personagens que formam a sua família adotiva, além
do dono do engenho onde mora, também o fogem muito a essa regra, mesmo sendo mais
“equilibradas”, como as heroínas citadas.
A psicologia de Lourenço é construída deste modo principalmente porque ele se o
herói da maioria das ações no segundo romance, que narra o último ano da Guerra dos
Mascates. Mesmo que seus atos sejam secundários, atuando nos bastidores da guerra, seu
desempenho terá efeitos importantes no cenário como um todo. Lembrando que Távora parte da
formação de seus protagonistas desde a infância, é interessante citar algumas considerações
feitas por Sidney Hook sobre o papel do hei na história, dentre as quais observa que “outra
fonte de interesse no herói é encontrada nas atitudes desenvolvidas no curso da educação e da
juventude (1962: 15). Com isso, no caso dos romances que tratam do conflito entre nobres e
mascates, o escritor não descreve a trajetória de seu protagonista desde a infância apenas como
mero apetrecho narrativo. A ação histórica também está atrelada tanto às transformações de
23
“des caractères nationalement typiques, mais dans le sens de la moyenne vertueuse plutôt que de la supériorité
émintente et globale” (a tradução para o português é nossa).
24
“autour d’un héros ‘moyen’, seulement correct et jamais héroïque” (a tradução para o português é nossa).
109
vida do povo de modo geral como à vida particular de Lourenço e sua evolução enquanto
indivíduo inserido nos dilemas da guerra, “devido ao efeito dratico da forma de narrativa, o
qual cresce, naturalmente, quando se trata a História como uma sucessão de aventuras pessoais”
(HOOK, 1962: 15). Isso pode ser observado o apenas nesta personagem, mas também nas
demais, devido a outros ingredientes inseridos no arcabouço narrativo, que pode ser tanto a
questão dos conflitos amorosos que acontecem no bojo da guerra, quanto os mais “práticos”,
como o caso da libertação dos escravos envolvidos.
Por outro lado, é preciso lembrar que este romance leva o título de O Matuto, que não se
dá com a continuação daquele cujo título é Lourenço – e os motivos para a intitulação deste são
evidentes. O título do primeiro pode se referir particularmente ao pai do menino, Francisco,
com quem Lourenço divide seus momentos de bravura. Francisco está diretamente ligado à
resolução dos acontecimentos de primeiro plano: a condução das tropas até o engenho Bujari,
bem como a libertação de João da Cunha e dos outros nobres das mãos dos mascates estão entre
as ões decisivas que garantem a vitória dos senhores-de-engenho neste primeiro ano da
guerra. Vale lembrar que, além disso, a narração começa e termina com o “foco” nesta
personagem: o início es no momento em que resolve levar Lourenço para casa, adotando-o
como filho. O fim, no gesto de Francisco ao repreender o filho por mais um rompante de sua
“natural má índole”: queimar vivo e crucificado o ladrão que roubara o cevado de Victorino, pai
de sua noiva, morto por Tunda-Cumbe durante o confronto. Ou seja, se a Lourenço cabe
proteger as mulheres e o engenho da ação dos inimigos, a Francisco cabe participar ativamente
da guerra e de seu importante desfecho. O romance confere a cada personagem do círculo de
Lourenço seu momento de projeção, realçando a ação de pessoas comuns no combate. De outro
lado, a reeducação de Lourenço ocupa o centro dos interesses do autor, portanto possui
particular relevo os conflitos sofridos pela personagem durante este processo.
Demarcando pegadas
O cuidado com a exatidão cronológica é outra marca da narrativa historiográfica
presente neste romance. O tempo, neste caso, é muito bem demarcado, com datas bem definidas
e linearidade na narração dos fatos referentes à Guerra. O ambiente no qual ocorrem as
contendas é igualmente bem descrito, e os traços de época bem delimitados. A seleção e
organização dos itens históricos obedecem ao rigor que pressupõe a demonstração do
conhecimento histórico da época narrada, fazendo com que se evidencie o cuidado com a
110
pesquisa histórica que antecede a criação romanesca e serve de arcabouço para a constituição e
a fixação do enredo:
Numeroso foi o concurso de pessoas de alta e distinta hierarquia durante a
noite da véspera e o dia de S. João de 1711 no engenho do sargento-mor
João da Cunha.
O São João, do mesmo modo que o Natal, é festa essencialmente popular e
campestre. ...
O engenho Bujari dava em 23 de Junho de 1711 testemunha dessa verdade.
Raiava enfim o dia 23 de Agosto de 1711, que ficou sendo memorável nos
fatos de Goiana. (TÁVORA, 1878: 61, 76, 168)
Por conseguinte, o tempo da narração o é o mesmo que o da narrativa, o que é outra
marca primordial para a caracterização do romance histórico. Durante este processo, é nítida a
tentativa de reconstrução primando pelo “mais real possível”, e dando a ilusão de trazer o
passado para o presente, que em O Matuto conta com pequenas e secundárias referências:
Ainda hoje a maledicência não é qualidade característica do povo; naqueles tempos ainda o era
menos”; “No mato ainda hoje se contratam casamentos com grande facilidade e
antecipação” (TÁVORA, 1878: 41-42, 52). Assim, os fatos são invariavelmente datados e,
sempre que possível, atestados com transcrições, citações ou paráfrases indicadas como
documentais, ou o forjar dos dados inventados o colocados como se fossem documentais.
Além disso, também são considerados registros informais, transmitidos oralmente e que foram
se perpetuando pelo tempo de modo a preencher as lacunas das quais os documentos não deram
conta:
O engenho Bujari estava situado em um ponto de que inteiramente se perdeu
a memória. O que se sabe ainda, pela tradição oral, é que, tendo ele ficado,
pelo tempo adiante, todo em capoeira em conseqüência do longo desamparo,
veio a confundir-se com a mata virgem. O engenho que traz hoje esse nome
fundou-se muito depois do desaparecimento do primeiro.
Eis algumas das quadras com que o rapaz gratificou a companhia. Muitas
delas ainda hoje em dia têm extensa voga entre os matutos de Pernambuco,
aos quais as ouvi mais de uma vez, jornadeando, entre fins de novembro e
princípios de dezembro, do Recife para Goiana nos meus tempos escolares.
Elas pertencem exclusivamente ao povo, e eu aqui as dou com a exatidão
com que as recebi da grande musa que as produziu. (TÁVORA, 1878: 68,
82)
111
A narrativa oferece detalhes da guerra, procurando deixar o leitor a par do maior número
possível de informações, de modo que os acontecimentos tornam-se bem delimitados. Aqui
existe a intenção de narrar os acontecimentos “como de fato se passaram”, o que denota o
realismo literário, ou o contrário do romance histórico moderno, que admite e demonstra a
“impossibilidade de reconstruir a verdade histórica e, por isso, “não conduz a uma verdade
objetiva e sim a interpretações conflitantes.” (FIGUEIREDO, 2003:137). Ou seja, nesta
narrativa histórica oitocentista o existe espaço para a dúvida: todas as possíveis lacunas o
pretensamente preenchidas pelo romancista deste período, que “vai tratar o passado como a pré-
história objetiva do presente, e como tal, considerá-lo passível de conhecimento do homem” em
sua totalidade (idem: 128). Além disso, novamente, tenta-se autenticar o real: “esse mesmo real
passa a ser a referência essencial da narrativa histórica, que pretende relatar ‘aquilo que se
passou realmente’: que importa então a infuncionalidade de um pormenor, desde que denote
‘aquilo que se deu’; o ‘real concreto torna-se justificativa suficiente do dizer.” (BARTHES,
1988: 163).
O recorte histórico tenta abranger toda informão possível – desde a listagem de todos
os nomes envolvidos no episódio até o modo como o narrador informa o leitor sobre as
primeiras centelhas que fariam eclodir a guerra. De modo que a história coma em 1706,
quando o leitor encontra Francisco reunido com outros matutos. Os dez primeiros capítulos dão
conta destes primeiros anos que antecedem à guerra, e que envolvem a reeducação de Lourenço.
Aos eventos particulares da vida dos matutos parecem o se confundir com os históricos
propriamente ditos. Mas a participação deles na guerra desmente esta primeira impressão
Quando iniciado o relato destes eventos, na composição da Guerra dos Mascates, o narrador faz
um retrocesso e vai de 1706 a 1711, cuidando para que os detalhes mais importantes e decisivos
estejam à mostra, o que contribui cada vez mais para dar a ilusão de que o texto não é uma mera
imitação ou fruto da imaginação (ou não deve ser tomado como tal). O que comprova que tanto
O Matuto quanto Lourenço são obras fundamentadas na necessidade de obter do leitor a crença
no relato histórico forjado na narrativa. Acerca destas proposições basta verificar como o
narrador se vale de discursos de cronistas e, mais uma vez, como em O Cabeleira, da memória
popular: “não no que aí fica relatado, invenção de romancista” (TÁVORA, 1878: 111).
Entretanto, essas marcas não se apresentam de maneira apelativa como em O Cabeleira.
O compromisso com a verdade, numa época em que se julgava possível a reconstrução do
passado “tal como foi”, configura-se primeiramente como um tipo de pacto de leitura e, em
outro âmbito, comprova a seriedade da pesquisa histórica que deu vazão à composição
112
romanesca. Sobretudo está de acordo com o projeto estético do autor (lembrando que este es
ligado às tendências de época, ainda que sob uma ótica regional).
No intuito de “contribuir para a criação de uma consciência nacional, familiarizando os
seus leitores com as personagens e os fatos que marcaram o passado
25
(MENTON, 1993: 36), o
narrador tavoreano é alguém que se dirige a um leitor citadino, que não tem conhecimento dos
sucessos narrados, mas também do ambiente em que ocorrem, um leitor que não é nordestino,
portanto. A narrativa inclui o descortino de costumes, tradições folclóricas, expressões
regionais... O cuidado com o pormenor histórico faz com que o autor organize os fatos com o
maior rigor possível, mas, às vezes, peca no detalhamento quase exaustivo, principalmente na
enumeração de vários nomes de personagens de extração histórica que participaram da guerra,
sendo que apenas algumas são realmente relevantes na evolução da narrativa.
Além do rigor cronológico e “factual”, ou seja, a inserção de textos que supostamente
teriam validade documental, ainda outra característica: uma espécie de delgado contorno no
esquema narrativo entre realidade (o evento histórico e seus elementos) e fantasia (as ões e
personagens imaginadas), através do qual, de certa forma, permite identificar alguns de seus
traços. O maior exemplo está na divisão da narrativa. O capítulo onze, onde todas essas marcas
se concentram, representa o caminho que conduz diretamente ao passado histórico, como uma
clara e inopinada viagem no tempo. Desta forma, a conjunção entre ficção e história são
distingveis neste romance até determinado ponto. Sob este aspecto pode-se observar que o
texto segue um esquema narrativo bem delimitado. Ainda que no romance tudo seja ficção, é
possível perceber alguns pontos que revelam o processo, a técnica e as estratégias de criação.
Os dez primeiros capítulos apresentam as personagens e a trama que o são de extração
histórica, têm papel principal – ao partir da hitese de que, como não existe nenhum indício de
que sejam históricas, não existiram de fato. Os dois capítulos que se seguem apresentam
personagens e trama históricas, ocupando o foco secundário e o cenário da narrativa – aí quase
todas as personagens são indicadas como “reais”, isto é, que existiram.
Tais aspectos podem ser facilmente percebidos pela diferença descritiva, como, por
exemplo, no primeiro capítulo:
estavam reunidos, por uma noite de 1706, à roda de um fardo de fazendas,
vários matutos... entre eles havia dois almocreves... um por nome Francisco,
e outro Victorino”;
25
“contribuir a la creación de una conciencia nacional familiarizando a sus lectores con los personajes y los
sucesos del pasado (a tradução para o português é nossa).
113
e no décimo primeiro:
e se seu nome [João da Cunha] não vem apontado nas incompletas crônicas
do tempo, como muitos outros... a tradição ainda o não deixou
desaparecer...” (TÁVORA, 1878: 4, 66),
numa clara demonstração de que no primeiro trecho (o que se aplica aos capítulos em questão)
não existem marcas de uma pretensão histórica, ao contrário do segundo. Nos capítulos
seguintes os dois universos se fundem proporcionando um ritmo novo à narrativa e envolvendo
todos num só objetivo: no caso, como o narrador posiciona-se claramente a favor dos nobres, o
objetivo é vencer os mascates, como de fato ocorre no romance. O autor traça dois percursos
identifiveis na narrativa, através dos quais se firma o romance histórico (sempre observando
que uma vez inseridos no universo romanesco, tudo é ficção): aquele que remeteria à história e
aquele que é puramente inventando, como dois rios que correm paralelamente, para unirem-se
cumprindo um percurso. Ao adotar tal esquema, Franklin Távora parece fragilizar aquele
pacto que pretende que o leitor aceite, vendo o seu romance como próximo da realidade, da
verdade. Távora, de certo modo, acaba deixando as costuras de seu texto à mostra, quase que
totalmente reveladas as cartas de seu jogo para o leitor – o que, para o novo romance histórico,
é uma das artimanhas fundamentais. Como são inseridos trechos de supostos textos oficiais: “O
governador a que alude o cronista na passagem supramencionada (TÁVORA, 1878: 63), ao
afirmar a existência histórica de determinadas personagens, especialmente as que estão
diretamente envolvidos na guerra, acaba aguçando a curiosidade do leitor de sobre a “origem”
dos outros atores da narrativa, causando a impressão de que todas realmente existiram.
114
CATULO III
A GUERRA COMO PRENCIO DE NOVOS TEMPOS E COMO RECUSA:
LOURENÇO
115
Diferenciais de uma perspectiva
A ambientação de Lourenço se apresenta a partir de um clima tenso. Um novo
governador chega a Pernambuco e prefere se instalar no Recife, e não em Olinda, o que já basta
para esquentar os ânimos dos nobres senhores-de-engenho e desenhar-lhes a nova situação:
desta vez, os mascates é que estão com a vantagem, dado que esse simples gesto do governador
deixa claro o posicionamento pelos comerciantes recifenses, e não pelos senhores-de-engenho
olindenses. O pano de fundo passa a ser elaborado com os primeiros momentos da guerra,
diferentemente de O Matuto, que narra o primeiro ano do conflito, e a situação vai se
delineando ao longo do texto até atingir o seu estopim e clímax. Em Lourenço esta chegada do
novo governador se constitui como um evento deflagrador, agravado com a perseguição
paulatina aos nobres, seguindo-se depois de perseguições e prisões, mesmo não havendo reação
desta parte. Tendo que enfrentar a opressão política desta vez, eles muito mal conseguem
elaborar qualquer ataque ou mesmo se defender: o momento é de desforra para os mascates.
Assim, esta narrativa marca a queda da nobreza setentrional, do cultivo e da economia
em torno da cana-de-açúcar, das relações de poder baseadas no servilismo, enfim, representa
mudança de época no campo social, político, cultural e até religioso. Depois deste golpe, os
senhores-de-engenho perdem a hegemonia, e poucos conseguem recuperar a bonança nos
negócios depois da guerra e de um momento de crise, aliás, bem anterior, com o gradativo
endividamento junto aos comerciantes burgueses, como foi visto anteriormente. Tais aspectos
demarcam como a trajetória das personagens está vinculada “de modo irrecorrível ao destino da
comunidade histórica de que fazem parte (BASTOS, 2007:12), pois definem “a natureza dos
eventos e da sorte das personagens” (idem, ibidem). Lourenço e seus pares, João da Cunha, sua
família e seu império são diretamente afetados por uma avalanche de acontecimentos que
transformam suas vidas de maneira definitiva.
Neste caso, os elementos de extração ficcional são inseridos em um cenário que está
desenhado de anteo, aliando-se ao romance anterior como uma continuação. Embora possam
ser tomadas individualmente, ambas as obras se complementam, pois em conjunto, além de
tratarem de toda a problemática que envolve a guerra, tratam também da vida das personagens
presentes nas duas narrativas, sendo que Lourenço representa o desenrolar final de embates,
existentes em ambos os casos. Este objetivo é declarado pelo próprio escritor no prefácio do
livro: “conquanto cada uma das duas narrativas tenha ão própria, conquanto cada uma delas
possa subsistir sem a outra, para melhor conhecimento da guerra dos mascates em que ambas se
inspiram, a leitura do Matuto sem a do Lourenço, e vice-versa, não é bastante” (TÁVORA,
116
1972: 1). Uma vez que se trata de um evento histórico, são importantes também como meio de
conhecimento da Guerra dos Mascates. Os conflitos principais presentes em Lourenço
continuam sendo esta contenta regional, resultando na queda da nobreza canavieira e a
psicologia da personagem, desta vez mais elaborada enquanto hei romântico. Nesta narrativa
também chama a atenção o conflito amoroso, que se torna mais complexo, enquanto na outra
isto é representado apenas como bosquejo. No entanto, entende-se que, enquanto lá, em O
Matuto, a personagem principal, Lourenço, ainda não despertou para o sentimento amoroso,
aqui ele é um jovem de dezoito anos, propenso aos sonhos e anseios próprios da idade.
Encontra-se, por isso, mais maduro e tão inclinado a paixões que as experimenta intensamente.
Por outro lado, seus amores se desfazem como a fugacidade e o repente que as fizeram surgir. O
desenvolvimento da personagem se de forma gradativa, de modo que neste romance a
psicologia da personagem é mais estruturada e menos conflitante, favorecendo-a no
desempenho de suas ações.
Lourenço também é marcado por uma forte consciência histórica, que vai do narrador às
personagens – é como se inclusive elas em alguns momentos tivessem plena consciência do seu
papel histórico. Aqui também o autor procura preencher os espaços vazios deixados pela
história: a narração acontece de forma comprovadora, lançando mão, por exemplo, de citações e
referências históricas, subentendidas ou não. Apoiando-se também nestes subsídios de modo a
utilizá-los conforme os seus interesses, mais uma vez a posição do narrador é favorável aos
nobres, empregando sempre uma nica que tende a elevá-los em relação a seus adversários. A
maneira como os descreve procura conferir às suas ões uma conotação de heroicidade.
Ressalta a nobreza o apenas do título que possuem. São adjetivados como corajosos, dignos,
ilustres, mas, sobretudo, patriotas e legítimos filhos da nação: “havemos de ver qual dos dois
sangues deixa primeiro de correr em Pernambuco, se o teu sangue de bicho da outra banda,
se o da nobreza de minha terra, o sangue azul daqueles que te mataram a fome e agora cobres
de lama e desaforos” (TÁVORA, 1972: 41, grifo nosso). Os mascates são representados como
os portugueses usurpadores e escravizadores da terra, bichos que caçam e destroem, ao passo
que os nobres são os filhos da nação que proporcionam grande desenvolvimento econômico
com o cultivo da cana, agora perseguidos, subjugados e levados à falência por aqueles. A partir
deste viés comprova-se mais uma vez que, dentre as pretensões de Távora no trato da literatura
sob um ângulo histórico-regionalista, interessa destacar o estabelecimento e o fortalecimento do
sentimento nacionalista, o que se retomando um processo histórico entremeado conflitos
políticos.
117
Um outro diferencial neste romance é o “desvelo histórico” mais contido, ou seja,
apresenta-se mais livre da preocupação em mostrar o conhecimento dos fatos do passado
através de um acúmulo de informações, como datas que antecedem ou são ulteriores ao
acontecimento histórico narrado. Isto acontece vez ou outra em O Matuto, onde o autor coloca
alguns itens históricos fora da época em questão e que não acrescentam nada de mais à
narrativa, como ocorre em O Cabeleira no momento do roubo da igreja e do enforcamento de
Jo Gomes e seus comparsas, por exemplo. Em Lourenço, última obra artística de Franklin
vora, o narrador deixa de fazer refencias a outros eventos históricos que aconteceram numa
outra data do que é então narrado, nem menciona fatos de outras épocas a partir de determinado
monumento ou lugar onde se passa a ação romanesca no momento da enunciação, evitando
interrupções desnecessárias. Agora o foco prende-se mais rigorosamente à época e ao evento
histórico em questão. Ao mesmo tempo, este evento é descrito e representado com a destreza
que impede a enumeração demasiada e informações irrelevantes, tornando o romance mais
fluido, bem dosado e com várias cenas interessantes.
Outro diferencial a ser destacado, principalmente em relação a O Matuto, mostra-se nos
inícios da narrativa. Compreende os acontecimentos e as personagens que cumprem um papel
histórico no romance. Os sucessos que resultam na segunda fase da guerra dos mascates é que
abrem a narrativa para se voltar, posteriormente, para Lourenço e sua família. o obstante, os
fatos históricos partem de uma escolha que parece ser bem mais seletiva, trazendo somente os
fatos marcantes, o que resulta numa representação muito objetiva destes episódios e, na mesma
medida, rica de contornos. Este romance possui também um diferencial na fixação de tipos
humanos, costumes, paisagens da época setecentista, etc. Curiosamente, desta vez, esta última
obra ficcional da carreira de Távora e de sua pretendida “trilogia” da Literatura do Norte
apresenta-se mais desprendida da ótica naturalista, que passa a ser apenas uma sombra nesta
narrativa adquire, ou melhor, retorna/assume abertamente uma tônica mais romântica, traço
que sempre esteve enredado nas tramas tavoreanas, como mencionado anteriormente. O
conflito amoroso vivido por Lourenço é um exemplo.
O foco narrativo se detém um pouco mais nas personagens que formam o círculo
estreito de convivência do protagonista, ou seja, nas ões, percalços, comportamentos e
psicologia de Lourenço, o que o concorre em prejuízo do enlace entre história e ficção, ou
seja, os elementos ficcionais e os históricos são permeados de forma equilibrada. O discurso
ficcional segue problematizando o encontro de tensões econômicas e sociais do tempo e das
personagens, do qual Lourenço, juntamente com a guerra, permanece sendo o grande exemplo
de O Matuto e Lourenço. A personagem homônima algumas vezes passa a ser o grande
118
intérprete dos efeitos que tais mudanças operam na vida das pessoas. Através do seu olhar é
possível experimentar as fendas que o se abrindo e engolindo algumas certezas, crenças, a
tradição rural etc. Tudo começa a ser tragado, juntamente com o poder dos nobres, depois de ter
servido como apoio e segurança – não sem tirania – por tanto tempo. Um exemplo disso está na
fala de Lourenço, que, num atentado, tenta matar Tunda-Cumbe, o seu principal opositor,
como também, tal como é caracterizado, grande vio da guerra: “– Se possível que tanta
gente, tanto fidalgo limpo, tanto homem rico e que sabe onde tem as ventas, esteja a sofrer as
ousadias de labregos sujos, que deviam ser botados para fora à peia?” (TÁVORA, 1972: 41).
Como família que contava com a predileção, o respeito e a confiança do mais poderoso senhor
de engenho, João da Cunha, o jovem matuto se acostumou a ver tanto nele quanto em outros
nobres um tipo de herói ou semi-deus poderosos e invencíveis, a quem o respeito e a
obediência eram senão quase uma devoção, no nimo uma obrigação incontestável. Para ele,
vê-los na posição degradante de perseguidos e fugidos é algo difícil de digerir, sequer de
imaginar. Assim, ocorre a perda do referencial que fora longa e previamente fixado. Lourenço e
sua família traduzem todo o despeito regional (talvez, mais particularmente do autor) contra a
burguesia e sua crescente ascendência.
A despeito disso, o narrador não consegue omitir que muitos estão cansados de tanto
tempo a servir aos senhores-de-engenho, outros sentem a insegurança da eminente falta de
proteção, devido ao longo costume do trabalho baseado no servilismo, e aqueles que
vislumbram o liberalismo a partir da extinção da nobreza canavieira, do desenvolvimento
ecomico, e assim a população fica dividida entre apoiar uns ou outros. Embora o privilégio
da perspectiva e do posicionamento do narrador seja conferido aos nobres, nota-se o quanto esta
guerra mexeu com o povo, além de sua notável importância como divisor de águas: a transição
da economia rural e patriarcal para a economia burguesa. Por meio disso, a associação da guerra
com o projeto estético de Távora e como escolha tetica torna-se clara: é também a partir
deste momento histórico que a importância da região coma a degringolar, resultando,
posteriormente, na mudança da economia e da sede da corte portuguesa para o Sul do país, que
passa a ser o centro. Mudança tão radical e decisiva que permanece até os dias de hoje.
O sentimento histórico ao qual o autor está ligado e que vai sendo reforçado ao longo de
seus textos é o do nacionalismo, uma espécie de “patriotismo regional que não se cansa de
levantar o pendão de matutos e nobres, ou seja, figuras e costumes típicos do Norte. Este
sentimento é o propulsor de um tipo de romance que resulta em ficção histórica investigativa.
Volta ao passado para responder a questões do presente que se resumem basicamente em
interrogações sobre perda de hegemonia, pobreza, abandono, atraso, de cuja regra Lourençoo
119
foge. Parte do olhar magoado que consegue enxergar a terra e seu povo degradado e
usurpado de algo que talvez nem mesmo Távora soubesse exatamente o que é. Pregava que o
seu torrão regional precisava de progresso, mas a tônica de seus romances é declaradamente
saudosista. Busca, então, resgatar o passado a fim de comprovar a importância de eventos
históricos da região que se converteriam em transformações importantes para toda a nação, mas
não consegue esconder a reverência retrógrada (já que ansiava tanto pelo progresso regional,
como demonstra em prefácio de O Cabeleira e Os índios do Jaguaribe) de uma economia rural
e patriarcal. Por outro lado, é visível ainda que estes sentimentos confusos sejam sintomáticos,
pelas questões que suscitam. São originários de um mal-estar recorrente que, conjugado ao
sentimento naci(regi)onalista, permanece indignado com a invasão paulatina do estrangeiro e
pela troca de/com suas culturas, costumes, modismos, ou seja, o esmagamento que parecia o
permitir a chance de ser “eu mesmo”, o eu nacional brotado da terra sufocado em sua epiderme.
Enfim, a velha história da identidade e do Outro (o colonizador estrangeiro), o novo e o velho
mundo, que vem trilhando a literatura é algo proeminente na produção tavoreana, sendo que a
narrativa aqui analisada representa o maior referente.
Esta sem dúvida é uma forma de posicionamento crítico diferenciado naci(regio)nalista
frente à historiografia consagrada, como coloca Fernando Ainsa: “Ao reler a história
‘criticamente’, a literatura é capaz de mostrar com franqueza e sentido crítico aquilo que não
pode ou não quer a história que se pretende científica.
26
(1997:115). Este sentido crítico,
inquieto e altercador, por si é uma marca que permeia O Cabeleira, O Matuto e tamm
Lourenço. O narrador não mantém a isenção e a distância necessária de um historiador que
pretende contar os fatos equilibrando os lados entre mascates e nobres, e com isso ele garante a
função ficcional que introduz, sobretudo, a expressividade e a compreensão. Estendendo a
acepção para a liberdade que a criação literária concede, levando muitas vezes a
esclarecimentos que seriam difíceis em outro sistema, é possível verificar que “o imaginário
individual, especialmente a criação literária, é utilizado como fonte documental ou
complemento indispensável para compreender a mentalidade e a sensibilidade de uma época.”
27
(AINSA, 1997: 114, grifo do autor). Tal assertiva é cumprida no romance em questão, mesmo
quando este senso de distância e isenção pretende ser resgatado:
26
“al releer ‘criticamente’ la historia, la literatura es capaz de plantear con franqueza y sentido crítico lo que no
quiere o no puede hacer la historia que se pretende científica.” (a tradução para o português é nossa)
27
“el imaginário individual, especialmente la creación literaria, es utilizado como fuente documental o
complemento indispensable para entender la mentalidad y la sensibilidad de una época” (a tradução para o
português é nossa)
120
Reproduzindo estas palavras, não sou levado por intuito de picar a
nacionalidade irmã, intuito que não teria o menor fundamento, e contra o
qual, muito ao contrário, não me seria difícil aduzir provas, tomadas de mim
mesmo. O meu fim único é dar idéias dos costumes e paixões dominantes
naquele tempo; é autorizar a narrativa com a tradição, junto da história.
(TÁVORA, 1972: 201-202, grifos nossos).
Neste trecho do romance o narrador esclarece não ter nada contra os portugueses, sejam
eles mascates ou não, apontando de modo direto para a idéia de que ao leitor é apresentado nada
além dos ânimos e da mentalidade da época em questão. Contudo, é difícil o relacionar a
época da narração e a da narrativa: uma se desenvolve em torno de uma problemática que via
nos comerciantes europeus os deflagradores de um conflito e de um tempo de crise, outra
associa esses acontecimentos a uma postura estritamente nacionalista. Em outros termos, paira a
indução/afirmação que responsabiliza esses estrangeiros pela “tradia” regional da perda
hegemônica e do estrangeirismo que sufocou o nacionalismo utópico. A configuração é,
invariavelmente, aquela do invasor, do intruso. O mais importante neste trecho está na
justificativa lúcida do narrador para o seu verdadeiro papel dentro da diegese no momento em
que se manifesta junto ao leitor: o de garantir a autoridade da criação literária através da
tradição e da história. Tal afirmação é a chave do romance, já que se refere à intencionalidade
textual e a sua afirmação genérica, tornando evidente a natureza ficcional do texto apoiada em
formas discursivas pares. O texto tavoreano não é estritamente histórico, pois não é reputado
como científico nem documental e tampouco pretende a neutralidade, ainda que pareça forjado
neste sentido. Em lugar de retratar a época narrada, faz uma representação e interpretação
particular por meio de costumes e, sobretudo, paixões, utilizando o eixo ficcional. Entretanto,
es sempre em posição de compromisso e de reverência para com o passado, característica
proeminente do pensamento histórico-literário do século XIX.
Em Lourenço tamm um cuidado maior com as fontes históricas de onde são
extraídos os dados para a inventiva. O prefácio é próprio de algumas obras em que existe um
recorte histórico: conta o percurso e a técnica que levaram a efeito a sua realização. Primeiro ele
esclarece que houve um aumento de informações e minúcias e uma adaptação para os leitores
da Revista Brasileira, onde foi publicada a obra pela primeira vez para seguir em volume O
Matuto, do qual Lourenço “é a conclusão lógica e natural”. Após fornecer algumas informações
gerais sobre a guerra, destaca o quão prejudicial foram os quatro anos em que perdurou,
arrasando famílias, instaurando a barbárie, a derrocada econômica característica deste tipo de
situação e os abusos políticos. O grande destaque a ela atribuída é a sua importância como
semente “donde pululou a planta da nossa independência política”, como afirma o autor em
121
prefácio da obra (1972:3). As fontes “oficiais”, no entanto, estão presentes em notas de roda
no romance, e os trechos extraídos destas fontes também são destacados no texto com aspas ou
referenciadas pelo narrador, e até são incluídas nas falas das personagens. As fontes de onde são
retirados trechos ou informações aos quais o autor recorreu são do Memorial Histórico de
Pernambuco, das “crônicas daquele tempo”, da tradição oral e de Abreu e Lima, no texto
“Synopsis”.
O interessante é que autor também utiliza O Matuto como fonte para o esclarecimento
ou informões complementares. Tal recurso não é apenas usado para evitar repetições,
comprovando um desvelo maior na seleção dos dados a serem inseridos. No primeiro capítulo
do livro, quando esta referência aparece pela primeira vez, além do “vide O Matuto”,
acrescenta-se: “segundo livro da Literatura do Norte” (TÁVORA, 1972:8, grifos do autor). Tal
artifício serve tanto para incentivar a leitura do conjunto desta obra literário-nortista, como de
destaque para o conteúdo programático que une as duas narrativas em uma literatura de caráter
diferenciado das composições realizadas na corte carioca, onde Lourenço saiu a lume. Além
disso, projeta o caráter didático de ambas, de modo que juntas servem de referência enquanto
meio literário de conhecimento dos sucessos históricos da guerra.
A narração histórico-literária tavoreana é sempre uma forma de discurso que procura
organizar e representar aquilo que, embora não tenha sido visto, foi experimentado e vivenciado
de alguma forma. Por exemplo, nos efeitos deixados pelas ações dos eventos do passado, ou nos
ecos de seus acontecimentos, cujo rumor atravessa o tempo e perpassa outras formas
discursivas, outras formas de plasmar os passado.
122
A centelha chamejante: um sonho de liberdade
Há um objetivo bastante direto em Lourenço que não está presente ou é apenas sugerido
no antecessor ao qual está vinculado. É verdade que O Matuto também se pauta na defesa dos
nobres senhores-de-engenho e da cana-de-açúcar. Esta merece até os devaneios do narrador que
associa a planta não à tradição, ao ambiente, ao tempo, como até a suas lembranças de
infância, e é sobre tal impressão de um poder agrícola que nunca deveria ter sido maculado que
conduz a narrativa culpando os indesejados mascates-portugueses com seu comércio ou com o
café. Contudo, no romance no qual nos detemos agora, essa visão favorável ganha mais lego
devido a uma perspectiva inteiramente nova. Claro que tudo vem pautado historicamente, mas,
como na ficção a regra é a verossimilhança alcançada por meio de diversos jogos e estratégias,
não é possível verificar se este apoio de fato vem registrado nos anais da História de
Pernambuco. E ainda que o fosse, a verificabilidade destes fatos é algo totalmente secundário,
pois são mais um elemento auxiliar para a inventiva, seja ficção moderna ou não. Tampouco
por ser romance histórico ou se aproximar deste gênero, signifique que tudo seja verdade, do
contrário não poderia ser romance. “O romance histórico não vale como história.”
28
(ALONSO,
1984:55).
Neste sentido, a manifestação positiva sobre os nobres tem como objetivo colocá-los
como os primeiros representantes do ideal da Independência. A Guerra dos Mascates agora
entra o apenas como um conflito econômico, e neste âmbito teria menor importância, mas
adquire importância estritamente político-nacionalista, como é possível constatar no prefácio:
Antes da emancipação das colônias americanas (1776), antes da conjuração
mineira (1789), reunida a nobreza com o Senado da Câmara de Olinda em
1710, tratou de dar à capitania de Pernambuco outra forma de governo,
independente de Portugal: foi a guerra dos mascates o primeiro grito do novo
mundo contra as metrópoles européias. Não imitou Pernambuco a França
nem os Estados Unidos. Pensou e obrou por si muito antes de nesses países se
pensar em independência e república. (TÁVORA, 1972: 2, grifo nosso)
Em Lourenço, categoricamente a guerra passa a valer mais do que uma simples luta
entre fazendeiros e comerciantes lutando para defender seus próprios interesses, ou, ainda, entre
olindenses e recifenses, como em O Matuto. Passa a significar uma luta entre colônia e
metrópole, entre brasileiros do novo mundo e lusos do velho mundo: “o que têm feito os
portugueses europeus [...], nunca havemos de esquecer” (TÁVORA, 1972: 176). Os nobres são
28
“La novela histórica no vale como história.” (a tradução para o português é nossa)
123
vistos, na verdade, como os primeiros a se rebelarem contra o jugo da coroa portuguesa, passam
a ser considerados os precursores da luta pela independência e em escala maior do que a
guerra regional, pois forjaram seu ideal de libertação antes mesmo até do que outros países
europeus. Mais ainda: foi o primeiro grito do novo mundo, cansados do papel ultrajante de
colonizado, contra as metrópoles européias, que administravam seus domínios de forma
subjugante e arbitrária. Gradativamente, o conflito exclusivamente regional se estende para a
nação e Pernambuco vai se transformando em Brasil. Exemplo dessa transição está na carta que
o Padre Guerra, escondido junto com os nobres, envia a Dom Manuel, figura que no primeiro
ano da guerra e no começo da segunda tinha asdeas do governo de Pernambuco:
O que nós queremos é a independência de Pernambuco [...]: esse meio é a
revolução.
Aos que nos disserem, Revdmo. Senhor, que, não procedendo de el-rei, mas
de seu governo, os males que padecemos, haveria excesso do recurso
indicado, responderei que não se podendo compreender sejam bons reis
aqueles que sustentam maus governos, não excesso, antes justiça, na
projetada providência.
Não é de hoje que na separação do Brasil do reino de Portugal eu vejo o
único remédio para os nossos males. (TÁVORA, 1972:52)
Deste modo, o reduzido conflito regional se estende politicamente. Doris Sommer
discute esta combinação entre “política e ficção na história da construção nacional (2004:20)
em romances nacionalistas da América Latina no século XIX. As produções romanescas de
vora traduzem muito bem essa mistura de patriotismo, história e a visão positivista que tende
a apoderar-se do romance como um meio de manifestação no qual é colocada toda a expectativa
de um projeto literário que se elege nacional nas entrelinhas. Porquanto, na realidade, tenta uma
legitimação frente a uma sociedade de âmbito bem maior que aquela à qual está
embrionariamente vinculado ou de compromisso firmado. Franklin Távora escreve sobre/a
partir de um meio social, o nortista, mas buscando atingir e ganhar o reconhecimento de outro –
a então corte carioca. Lourenço, como outros, segue tentando cumprir esta meta.
Propositalmente, durante o percurso da narrativa que vai sendo traçada, são inseridas
evincias da pesquisa e da seriedade histórica da narrativa, característica recorrente nas
narrativas tavoreanas em questão, pois “para o escritor/estadista não era possível haver uma
distinção epistemológica clara entre ciência e arte, fato e narrativa e consequentemente entre
projetos ideais e projetos reais.” (SOMMER, 2004: 22). A narração dos fatos passados era para
ele um meio de conhecimento e ensinamento. Para tanto, apóia-se algumas vezes numa
124
pedagogia histórica, pelo viés literário. Távora, como outros escritores de seu tempo, tamm se
aproveita da narrativa histórica para comprovar a importância da região num cenário mais
amplo, ao associar a guerra dos mascates do século XVIII a eventos futuros e decisivos para
todos os séculos seguintes: a Independência e a Proclamação da República. Neste caso, a
necessidade de preencher uma história que conferisse legitimidade à nação e, em contrapartida,
à região emergente, visa a uma oportunidade de direcionar e associar aquela história para um
futuro ideal (idem, ibidem: 22), obedecendo a uma gica inversa, traduzida do regional para o
nacional. Mais do que nos outros romances, confere ao povo do norte do país o advento de uma
transformação efetiva da história, alargando seu desempenho e importância aos destinos de toda
uma nação, bem ao gosto de Michelet e sua valorização da conscncia histórica como
manifestação de grupos, seus maiores agentes.
Para constituir este novo ângulo sobre a Guerra dos Mascates, Lourenço passa por
algumas mudanças em relação a O Matuto. Além do tratamento da guerra como um conflito
visto de forma mais estritamente rural e comercial, neste o maior representante dos mascates,
como foi visto, é o senhor-de-engenho e sargento-mor João da Cunha. Como foi visto na
análise do romance anterior, sua figura é a mistura de poder e severidade que causam temor,
generosidade e paternalismo que garantem a defesa dos moradores de seu engenho e da
nobreza, sendo, por isso, seu maior líder. Por estes motivos ele é classificado como o herói
histórico da narrativa, sua força e liderança contra os inimigos, mesmo na maior adversidade, é
triunfal. No entanto, o é o que ocorre nesta segunda fase da guerra na qual Lourenço se
detém. Logo nos primeiros capítulos, o nobre senhor já não tem mais o poder de um ano antes:
O malvado governador jurou acabar com a nobreza de Pernambuco [...] vem
uma grande força para prender os fidalgos de Goiana. [...] Os nobres, que
não caem nas prisões, perdem-se nos matos. [...] Não esperança de
salvação. se foi o tempo em que eu podia castigar tão grandes ousadias.
Hoje tudo me falta. A guerra levou-me as economias que eu tinha juntas.
um ano que o meu engenho não mói uma cana, e as minhas lavouras mal dão
para o gasto da casa. A nossa fábrica está reduzida pela morte de uns
escravos, pela fugida de outros. (TÁVORA, 1972: 23)
O fidalgo é um dos primeiros grandes representantes da nobreza a sucumbir à
perseguição dos mascates. Chega mesmo a ser o responsável pela prisão de um grande grupo de
nobres que estavam refugiados em um esconderijo junto com ele. O lugar foi delatado por outro
nobre, cunhado de Falcão d’Eça que, pressentindo a armadilha, tentou dissuadir todos a fugirem
dali. João da Cunha, numa atitude bastante ingênua, não acreditou que um nobre fosse capaz de
125
cometer qualquer delito, principalmente contra seus pares, simplesmente por achar que à
nobreza do título seguia-se irrefutavelmente a do caráter. Contrastando com o sucesso obtido de
outrora, sua queda é total. Preso, acaba morrendo e nem esse fato é descrito com tanta
importância e minúcia como no outro romance, onde lhe é atribuído o papel de maior destaque
entre as personagens de extração histórica. Basta apenas uma breve carta para avisar a jovem e
bela esposa Damiana de seu definhar na prisão causado pelas torturas que sofreu. Após isto,
todos os bens que possui o confiscados em nome da coroa portuguesa e a viúva vai morar na
palhoça dos empregados de confiança do marido, que são Lourenço e sua falia. João da
Cunha, antes o maior símbolo de tradição e força, acaba terminando por simbolizar toda a
desventura que se abate contra a economia rural e patriarcal da nobreza, no apagar das luzes dos
engenhos açucareiros terminam quase que totalmente arruinados, em meados do culo XIX,
em contraste com o brilho e a ascensão contínua e inevitável do comércio e da burguesia, tanto
no Norte quanto em outras partes do país.
O orgulho do patriarcado açucareiro é então manchado e perde o viço de outrora,
abrindo margem a esse resgate nostálgico e supervalorizado do passado, embebido de um lado
pelo sonho e, de outro, tocando no documentário, para lembrar uma expressão de Antonio
Candido
29
. Visão que à primeira vista parece demasiadamente simplória, está solidamente
fincada numa permanente resistência contra a perda e um enorme esforço de estagná-la. Perda:
na pena de escritores tanto da geração nordestina de Franklin vora, quanto nas posteriores,
tem imenso valor simbólico e abrangente, difícil de divisar. Uma palavra, um termo, um
significado traz sempre outro e outro. A identidade, vinculada à tradição e, por sua vez, à
cultura, à história, até chegar à imensa sensação de lugares vazios.
A opção pela perspectiva histórica em vora mostra essa necessidade de uma
reconstrução permanente do Nordeste, que se resolve indo em defesa do passado, como observa
Durval Muniz de Albuquerque Júnior: o medo de perder espaços numa nova ordem, de perder
a memória individual e coletiva, de ver seu mundo se esvair, é que leva à ênfase na tradição, na
construção deste Nordeste.” (2006:76). A reverência ao patriarcado, ao latifúndio, ao moralismo
etc. é um meio de preservação, visto que na “manutenção de tradições” está “a garantia da
perpetuação de privilégios e lugares sociais ameaçados” (idem, ibidem). A cena de maior valor
simlico na compreensão do choque que deve ter causado determinadas mudanças vem
filtrada pelo olhar da personagem principal, Lourenço. Ao escoltar João da Cunha até o
esconderijo, o jovem matuto adormece devido à grande jornada enfrentada debaixo de um
29
CANDIDO, Antônio. Um instrumento de descoberta e interpretação. In: Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.
126
temporal. É o momento que o primeiro esconderijo é descoberto. Quando acorda, uma
grande tropa de soldados:
Quando menos esperava, impressão mais violenta deixou o rapaz atônito:
descobrira, entre os prisioneiros, João da Cunha. Uma corda ligava-o com
outro nobre pelo braço direito. Trazia ele a fisionomia decomposta por
aflição íntima, por desgosto mortal, antes vergonha filha do desdouro em que
se via posto.
Em toda a sua vida, Lourenço nunca sentia dor tão atroz. Afeito desde
menino a ver no sargento-mor representada uma instituição, que ele não
sabia explicar, mas que impunha a seu espírito a força de lei fatal e quase
divina a instituição da nobreza, foi com verdadeiro assombro que
testemunhou agora aquele claro pulso aviltado pelo instrumento destinado
aos réus vulgares, que só despertavam compaixão. A filosofia da vida, dava
pela primeira vez a ler ao bisonho almocreve uma das páginas tristes, que o
homem versado em letras encontra aos milhares no imenso livro da história.
(TÁVORA, 1972: 36, 39, grifos nossos)
Vencido pelo infortúnio, o sargento-mor nada conserva de sua altivez, é vencido pela
vergonha e dele nada mais resta que uma fisionomia descomposta, pica dos fracos, diminutos
em sua queda, réus vulgares, como afirma o narrador. Nesta cena bem descrita está a medida do
impacto causado pela prisão do senhor-de-engenho aos olhos de Lourenço, que no fundo pode
ser ampliado para a maioria daqueles que partilhavam de sua condição naqueles tempos. Muitas
vezes, o costume/deslumbramento ilusório e ingênuo, e mesmo a situação ou a imposição,
transformam aquele que possui determinado status de poder em uma instituição, alguém
místico, falsamente autorizado por uma força superior, uma lei fatal quase divina, que o o
dinheiro ou o despotismo, na grande maioria os reais motivos. Tal é a lógica causadora da
surpresa quando se descobre que tal poder, na verdade, é transitório. A instituição opulente da
nobreza, tantos anos no comando, simbolizava o poder absoluto, título que desde a Idade
dia vinculava quem o possuía a um representante divino na terra.
Afeito desde menino a ver em João da Cunha todos esses falsos preceitos, a reão de
Lourenço é construída com adjetivos impactantes: impressão violenta, verdadeiro assombro,
aviltado. Exprimem o choque causado pelo estalar dos anelos de toda essa corrente tradicional
que de repente se quebra com a fragilidade de um sopro. O trecho acima expressa de maneira
clara a visão aurática que os menos favorecidos tinham da nobreza. Isto se através do abalo
provocado pela imagem degradante do fidalgo preso. Seu título e sua figura são desnudados do
símbolo que lhe confere superioridade quase divina, revelando-o tão comum como qualquer
outro. Neste momento ocorre uma desmistificação súbita e reveladora, o reconhecimento da
127
falsidade/fragilidade deste símbolo de nobreza e superioridade. Mais ainda: ocorre uma perda
de referencial.
Lourenço é o intérprete da conscncia repentina desta perda:
A perda é o processo pelo qual estes indivíduos tomam consciência da
necessidade de construir algo que está acabando. O fim do caráter regional
da estrutura econômica, política e social do país e a crise dos códigos
culturais desse espaço fazem pensar e descobrir a região. Um lugar criado de
lirismo e saudade. Retrato fantasioso de um lugar que não existe mais, uma
fábula espacial. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006: 77)
Talvez não somente através dos olhos de Lourenço, mas também do próprio autor, a
quebra do mbolo e da visão aurática de João da Cunha e de tudo aquilo que vem
representando pelo sargento-mor e nobre senhor-de-engenho é o primeiro sinal dos escombros
do monumento que se dissolve diante deste choque. Afinal tudo o que esrelacionado à terra,
ao tempo, ao ambiente nordestino é visto como monumento, (ou, no caso de Távora, é,
igualmente, monumentalizado). A noção deste processo está presente tanto em O Matuto quanto
em Lourenço, compondo-se como um dos motivos principais que norteiam a temática e a
perspectiva nas obras de Távora, mesmo as que não se compõem estritamente pelo resgate
histórico. Boa parte do regionalismo nordestino de modo geral visa ao resgate da tradição
nordestina por outros mecanismos de busca do passado e de textualidade.
Contudo, o papel do herói histórico o acaba com a morte de João da Cunha. Uma
outra personagem, o capitão-mor Leão Falcão d’Eça, assume o seu papel neste momento
desfavorável que se abate sobre a nobreza pernambucana. o sem algumas peculiaridades
interessantes. “Falcão d’Eça era a égide dos expatriados, a providência dos
perseguidos” (TÁVORA, 1972: 183); de acordo com o narrador, ele merece tal distinção por
der deixado seu nome “tão conspicuamente inscrito nos anais pernambucanos” (idem, ibidem:
42). Falcão d’Eça se torna o responsável por tentar formar um exército para libertar os nobres
presos. A situação adversa confere mais grandeza à “façanha” do capitão. Muitos ou não
querem lutar, ou estão do lado dos mascates que detêm naquele momento maior poder
ecomico e, portanto, influência sobre a maior parte da populão. Chegam mesmo a distribuir
dinheiro, armas, títulos militares, fidalguia e bebidas finas. Falcão consegue formar o
contingente já quase no fim do romance. No entanto, essa empreita consegue reunir um grande
número de nobres e pessoas comuns.
128
Concomitantemente a este processo rias diligências são enviadas na tentativa de
descobrir o esconderijo e prender os que se refugiavam, mas sem sucesso. Portanto, Falcão
vai se transformando na personagem responsável por simbolizar a resistência, em todos os
sentidos já aqui mencionados (a tradição, o nacionalismo, a fixação da identidade etc.). Durante
um ano reúne homens, formando a “Liga de Tracunhâem”, sem nunca terem sido descobertos,
de modo que uma escie de “aura” se forma em torno de Falcão e da Liga, que intimida até
mesmo o governador, responsável direto pela perseguição aos nobres: “coisas maravilhosas
diziam-se sobre o ponto. Exagerando as forças e recursos dos asilados, o povo propalava e
acreditava que o inimigo, por mais poderoso, que penetrasse ali estaria irremissivelmente
perdido.” (TÁVORA, 1972: 184). O principal objetivo do chefe da Liga no princípio é derrotar
os mascates novamente e retomar Olinda.
O discurso histórico veiculado através de Falcão d’Eça transforma-o no maior ícone do
“patriotismo regionalista em Lourenço. A personagem homônima até tem suas cenas de
heroísmo histórico, mas suas preocupações mais íntimas o de outra ordem. É na fala e no
sentimento sincero de Falcão, mais que nas ações, que a guerra é configurada como uma
metáfora da liberdade e da defesa do legado regi(naci)onal. Seu papel parece fixar a idéia de
que este conflito seria a marca inicial da Independência no culo seguinte. Como não poderia
deixar de ser, neste romance de Franklin Távora, a caracterização da personagem contribui para
formar nele um tipo de herói histórico: possui “majestoso e insinuativo aspecto”, “comunica aos
amigos grande e heróica firmeza”; o narrador chega mesmo a afirmar que nele se encontram
qualidades de dois dos mais admiráveis representantes do espírito revolucionário – Crowmell e
Mirabeau (1972: 209). A comparação não é casual. O primeiro foi o líder ings da causa
parlamentar que, com um grande e exemplar exército, derrotou o rei Carlos I, pondo fim à
monarquia absolutista britânica. O segundo foi grande ativista e teórico da Revolução Francesa
que ficou conhecido como orador do povo. Deste modo, a atribuição destes predicados a Leão
Falcão d’Eça acaba distinguindo-o das outras personagem de extração histórica ou que possuem
este papel na narrativa, fazendo com que sua figura, seu desempenho e suas idéias sejam
equivalentes aos dos grandes líderes revolucionários da história. Todas essas características são
verificáveis nas falas da personagem, que muitas vezes parecem discursos inflamados:
Que víamos antes da luta? Dois interesses, um estrangeiro, outro brasileiro.
[...] o amor à pátria, fazendo-nos pulsar os corações, proclamou a
necessidade de tornarmos Pernambuco independente da metrópole, madrasta
e não mãe. O amor à pátria [...] é uma paixão grande que gera [...] do
ajuntamento dos povos, [...] que nasce como [...] os sentimentos imortais,
129
trazendo à face dos patriotas o sangue vivo do coração, porque o amor da
pátria não é uma paixão vergonhosa, e sim uma paixão egrégia que dignifica
os que nela se abrasam.
O meu intento não é outro, senhores! O meu intento é libertar a terra que nos
viu nascer. Eu quero a liberdade de Pernambuco, ou do Brasil, eu quero
acabar, de uma vez por todas, com o jugo dessa metrópole ingrata que nos
traz em baixa vassalagem. (TÁVORA, 1972: 203, 210, grifos nossos)
Como é possível verificar, só nestas palavras destacadas de Falo d’Eça estão presentes
vários dos elementos que foram antes mencionados: por exemplo, a nica nacionalista nas
expressões “ajuntamento dos povos”, “estrangeiro e brasileiro”; o alargamento do conflito
regional na afirmação “o intento é libertar a terra que nos viu nascer”; o patriotismo exacerbado
no “amor à tria etc. Indiretamente, talvez esta personagem seja o grande difusor dos ideais
presentes no projeto literário do autor, neste romance. É possível notar, novamente, ecos de
Michelet, na importância que dá ao povo como agente de transformações, e da influência de
Walter Scott, na narração de feitos que transformam a nação.
À primeira vista, pode-se interpretar tudo isto como excedida utopia, separatismo,
regionalismo ingênuo etc. Por outro lado, Lourenço contém alguns elementos que permitem
vislumbrar o amadurecimento literário positivo em relação a determinadas concepções de
Franklin Távora. É possível perceber em determinado momento da narrativa o esvaziamento de
expectativas criadas por/em torno de Falcão d’Eça. No quarto capítulo, a fim de convencer o
Padre Guerra de que enviasse carta a D. Manuel chamando-o para chefiar pelos nobres, Falcão
d’Eça diz: “convidardes a vir colocar-se entre nós, ser o nosso general, levantar conosco o
pendão da liberdade do meio destas solidões, que por si sós aterram a tirania?” (TÁVORA,
1972: 51). Em seguida o narrador faz o seguinte comentário: “nas palavras do capitão havia o
que quer que era de majestoso e patético. O sentimento nacional subira-lhe até aos lábios, e dali
se derramava, comunicando a todos que o escutavam, os tons desta paixão excelsa. (idem,
ibidem, grifo nosso). Destacar a puerilidade presente nas palavras d’Eça é o primeiro sinal de
que tais convicções talvez o sejam tão sólidas, ou antes, prenuncia o começo da desilusão
em relação a elas, junto ao autor. Hipótese que parece se confirmar no modo como o desfecho
da guerra e o fim da Liga de Tracunhâem são narrados. Após o esconderijo ser descoberto por
um espião, o líder faz outro discurso inflamado de patriotismo, quase deslizando na demagogia,
decidido de que é hora de sair do esconderijo e atacar. preparados para empunhar as armas,
chega Lourenço com a carta avisando do perdão concedido por el-rei, notícia que logo foi
seguida de vivas ao monarca que, instantes atrás, convencidos por seu líder, era visto como o
130
vilão diante do qual a pátria não deveria mais se curvar. Eis a descrição e o comentário do
narrador nesta cena:
O ruído, o burburinho produzido pelos que celebravam e comentavam a
nova; os sorrisos de uns, os gracejos de outros, os braços e as alegrias gerais
indicavam que a idéia da separação política, pouco aceita e proclamada
por todos os homiziados, não tinha grandes raízes senão em Falcão d’Eça, o
qual emudecera, triste e eclipsado, quando o júbilo dava brilho a todos os
semblantes, e eloqüência a todas as vozes. (TÁVORA, 1972: 211)
A alegria impetuosa e sincera dos quinhentos integrantes da Liga com o fim da guerra, a
ovação instantânea dedicada ao rei de Portugal, o alívio e o júbilo de todos enfim, contrastam
duramente com a tristeza de seu líder. O desejo de revolução parece ser sufocado por anseios
bem mais simples e menos danosos para quem se arrisca na luta. Todo o patriotismo inflamado,
todo o nacionalismo de repente arrefece deixando o revolucionário na trincheira que cavou,
num campo de batalha vazio, apenas idealizado. Uma repentina quebra de expectativas, fazendo
tudo o que foi sonhado cair no ridículo, no discurso vazio. Falcão d’Eça perde a sua aura de
imponente comandante e, diante da alegria de seus soldados, transforma-se em apenas mais um
visionário. Pode ser uma metáfora para esse sonho de liberdade construído em terreno
setentrional, por isso, insólito – o nacionalismo regionalista, de repente, perde o fôlego e todo o
brilho. Faz parecer também que a personagem, juntamente com seu discurso, era apenas um
títere. Arriscando um pouco mais, Falcão d’Eça, seu discurso e o malogro de seus ideais podem
ser a representação da perda de ilusões do próprio autor.
Inversões e trocas de papéis
Na narrativa o resultado da guerra é mostrado de forma contrária ou propositalmente
bia. Boa parte dos senhores-de-engenho é presa ou assassinada, suas famílias são ultrajadas e
poucos escapam da falência. Historicamente, os mascates são os vencedores definitivos do
conflito; em Lourenço a narração parece conceder a vitória aos nobres, pois o leitor fica
confuso, sem saber se o segundo perdão concedido derrota os mascates, como no primeiro
período da guerra. Neste sentido, embora despojados do poder e desdenhados em seus tulos e
cargos de nobreza, é aberta uma nova vereda que algumas vezes livra os aristocratas do açúcar
de serem representados como simples perdedores, mesmo na situação mais vexatória (com
131
exceção de João da Cunha). O autor se utiliza de estratégias que produzem resultados curiosos.
Numa situação em que os perdedores é que possuem o privilégio da simpatia do narrador e
carregam o pesado símbolo de prováveis precursores da revolução e da independência,
inicialmente parece não haver maneira de elaborar um modo de vingança ou de superioridade
que preserve suas integridades ideológicas, suas figuras de representação nacional. Mas, em
determinadas cenas a consciência histórica por parte das personagens, a inversão ou troca de
papéis torna possível elevar os nobres na adversidade da derrota, mantendo, até certo momento,
o status de nacionalistas revolucionários que lhes é conferido, como é o caso de Falcão d’Eça,
que experimenta a efervescência da liderança e do idealismo, logo depois a ironia da frustração.
O primeiro exemplo a ser visto é a questão da consciência histórica. Além de a narração
dos eventos contar com o respaldo ficcional, exime-se de ser tomada como documental por
existir esta percepção dentro das personagens que desempenham papel histórico, que se
sempre de forma inquieta em relação aos feitos que ficaram impressos no tempo, se fixaram
como exemplos e, por isso, serão lembrados. Existe uma manifesta preocupação de
determinadas personagens em o macular a imagem ou as ginas da história. Ao mesmo
tempo em que este senso sobre a importância dos acontecimentos da época estabelece uma
forma de elevação moral, também cria momentos de humor, no sentido de rebaixamento do tom
idealista adotado dentro da narrativa, exemplificado pelas trovas que satirizam os mascates.
Luis Vidal e os irmãos Cavalcanti são capturados depois de resistirem contra mais de dezesseis
homens. Eis o que um deles diz ao ser conduzido algemado:
Estou preso como um cativo, mas no meu crime um protesto em favor
da liberdade dos pernambucanos [...], meu nome passará, com meu ânimo, ao
grande quadro da história de Pernambuco, onde vêem desenhados vultos tão
ilustres, que basta ocupar um lugar ao pé deles para ter seguro o respeito dos
pósteros. (TÁVORA, 1972: 71-72)
De acordo com o interesse da narrativa que privilegia os senhores-de-engenho por
condensar em suas figuras o “legítimo” sentimento e compromisso de nacionalidade, as
personagens têm a exata medida da importância do papel que desempenham no cenário
histórico, mas isso acontece por parte dos senhores-de-engenho, de modo a manter o ajuste
com a situação vivenciada na narrativa, ou ainda, ressaltar o compromisso histórico nela
postulado. Esse último tamm é visto como uma forma de notoriedade que reduz o logro da
derrota, na crença de “ter o respeito seguro dos pósteros”. Igualmente, no trecho acima existe a
afirmação de que a história trata de separar os heróis dos vilões, denunciando uma ótica
estritamente maniqueísta sobre esse arquivo do tempo, com suas épocas e seus eventos.
132
Semelhante confiança nasce da consciência de historicidade efetiva da vida, resultado da
“possibilidade concreta para os homens de compreender a própria existência como algo
historicamente condicionado, de ver a história como algo que afeta profundamente suas vidas
cotidianas e que lhes afeta imediatamente.”
30
(LUCS, 1977: 23).
Mais adiante, quando os presos passam pela cidade são recepcionados com desprezo
pela multidão que os espera; não obstante o narrador os distingue: “nunca haviam mostrado
tanta nobreza no gesto e no porte. Tinham a serenidade dos rtires.” (idem, ibidem: 82). A
descrição lembra o caminho do calvário, e a comparação não deixa dúvidas: o narrador quase
mitifica os presos. Esses guardam a certeza de que o respeito negado naquele tempo seria
revertido ao passar para o “grande quadro da história”, que distingue as figuras imortais, como
se a história figurasse como um tipo de “reino das divindades”, um outro plano acima dos
mortais. o deixa de ser uma forma de reflexo agudo de temporalidade, seu transcurso e seus
reflexos nos tempos futuros. Tudo é traduzido, enfim, numa conceituação heróica da história, na
qual as personagens em destaque nesta cena se fiam, elegendo-se heis. Cabe mencionar aqui,
a tulo ilustrativo, um trecho do texto de Sidney Hook, O herói na história: “a crença que as
massas consagram antes que ele atinja o poder nasce do desespero da miséria e se nutre de
promessas ilimitadas.” (1962:16). Adequando à situação, o desespero da miséria, nutrindo-se de
promessas ilimitadas, traz a crença de que as massas, até as futuras, farão os que se colocam no
lugar de mártires atingirem o poder e o reconhecimento póstumo e mítico.
Outra situação digna de nota remete ao momento em que o esconderijo principal da Liga
de Tracunhâem é descoberto por um mascate que faz as vezes de espião. Os nobres não querem
matar o invasor. Preferem lhe dar um castigo exemplar para que “longe de ocultar o nome de
quem lhe aplicara o castigo, fosse depois o espião revelá-lo àqueles cujo era mandatário [sic].
Havia nisto o particular sabor de vingança...” (TÁVORA, 1972: 201), pois, conforme o
narrador, é a melhor maneira de desdenhar o fracasso de um ardil. Neste ponto até relaciona tal
artifício à outra revolução, do século seguinte. A escolha do castigo e o modo como é aplicado
produz uma curiosa inversão:
Chegado o momento, em uma aberta da mata, seis escravos formaram uma
roda, como se se aparelhassem para certa dança circular que usavam os
nossos índios.
Ao meio dorculo fora arrojado o espião, nu, da cintura para cima, com as
mãos atadas atrás das costas. Alguns dos refugiados mais animosos, os mais
30
“possibilité concrète pour des hommes de comprendre leur propre existence commme quelque chose
d’historiquement conditionnée, de voir dans l’histoire quelque chose qui affecte profondément leurs vies
quotidiennes et qui les concerne immédiatement” (a tradução para o português é nossa)
133
duros, de pé, ou sentados junto das árvores que formavam o desigual
anfiteatro grosseira semelhança dos circos romanos onde prisioneiros de
guerra combatiam para divertimento do público testemunhavam a punição
cruenta que talvez terminasse com a morte do delinqüente. Sobre este, que
umas vezes implorava perdão, outras soltava imprecações injuriosas,
descarregavam os executores os instrumentos da infame e infamante pena.
Era a isto que chamavam roda de pau
31
, castigo muito praticado naqueles
tempos, por naturais de Pernambuco, especialmente contra portugueses
europeus.
[...]
Terminado o atroz suplício, mandou Falcão d’Eça pôr um pano nos olhos do
supliciado, e conduzir este para fora do pouso. Inútil, senão irrisória
precaução. Gregório, mole, esquálido, metia horror. As alvas costas, para
onde, por especial recomendação, tinham convergido os golpes dos
executores, haviam enegrecido: não se notava diferença de cor entre os
algozes e a vítima. Somente as mãos e os pés atestavam, pela brancura, a
raça do infeliz. (TÁVORA, 1972: 200-202, grifo nosso)
Esta é uma das estratégias utilizada pelos fidalgos para ridicularizar os comerciantes,
como artifício para se elevarem e se vingarem. A melhor forma de vingança encontrada é a do
rebaixamento: a surra executada por escravos e o nivelamento racial na frase “não se notava
diferença de cor entre os algozes e a vítima”, reduz Gregório, português, europeu, à menor
condição que havia na época: àquela reservada aos escravos. Invertem-se os papéis. O branco é
castigado pelo escravo, e o português por aqueles que se enquadravam na condição de, digamos
assim, colonizados, pois trata-se de uma punição destinada “especialmente contra portugueses
europeus”. A comparação de maior valor simbólico pode ser a que aproxima todo o quadro
nico à “grosseira semelhança dos circos romanos”.
A fim de abster-se, o narrador destaca o lado abjeto e aviltante do suplício: “infame e
infamante pena”. Num outro momento, acrescenta que a “roda de pau”, diferentemente do
castigo denominado “saco de areia”, não é “filh(a) de país estrangeiro”. O primeiro era aplicado
para ensinar, enquanto o segundo tinha a finalidade de matar. Atribuir caráter didático ao
suplício para distingui-lo de outro não menos cruel é risível por tentar atribuir uma significação/
justificação didática para um ato violento. Não obstante a guerra seja representada através da
ótica da nacionalidade, tanta distinção entre “brasileiros” e europeus, até na maneira como cada
qual aplica suas torturas, por exemplo, tende a cair invariavelmente num perigoso separatismo
xenofóbico. Mesmo para a época e para os objetivos plasmados em Lourenço evidencia que
este momento da guerra era principalmente de luta entre pernambucanos e portugueses. Por
isso, neste deslize da narrativa, vale a comparação com os circos romanos, pois o que salta aos
olhos na cena é a barbárie que a guerra instala. Se por um lado o nivelamento entre o europeu e
31
Grifo do autor
134
o negro tende à comparação para humilhar, o rebaixamento, em outro sentido, sai frustrado,
acaba se revertendo. Tencionando nivelar o espião com os escravos, acaba por elevar o primeiro
e rebaixar aqueles que o segundo representa através do cruento castigo: os nobres.
Ainda em relação à dura forma que os portugueses, ou europeus de modo geral, são
criticados, tem-se a “revalorizão evasionista do passado e o nacionalismo exaltatório dos
valores, das figuras e das tradições locais (BASTOS, 2007: 62). Incorporados de forma o
contundente nas obras tavoreanas, pecando pelo excesso em alguns momentos, sempre podem
ser lidos como formas de recusa, de busca por unidade, identidade etc., que frequentemente são
atribuídas a outros universos literários: “a idéia de ‘unidade latino-americana’ aparece, pois,
ligada indissoluvelmente à luta contra a condição de colonizado.”
32
(CAMPRA, 1982: 19).
Todavia, no século XIX, tentativas brasileiras partilham igualmente de tais sentimentos, ainda
que sejam vistos como bastante embrionárias. O desdém por algo visto como estranho à nação
ou à região também partilha desta busca de ser, como afirma Rosalba Campra: “a necessidade
de reconhecer a própria identidade parece ser uma obsessão para o latino-americano.”
33
; e se “o
primeiro modo de ser, é ser contra.
34
(idem, ibidem), Lourenço traz na hostilidade ao donio
estrangeiro uma forma de boicote, de negação e de proteção.
A descrição de algumas personagens representantes dos mascates também cumpre o
papel de representá-los como figuras inferiores, próximas do burlesco, como, por exemplo, o
governador lix, caracterizado como grande pândego e glutão. O narrador o descreve em
festas inclusive apoiado em citações históricas: “quando chegou a hora da refeição s-se a
comer o alambazadamente, que a todos meteu assombro” (TÁVORA, 1972: 46), “é capaz de
comer um boi inteiro de uma assentada, [e] para exoneração do ventre cheio, à vista dos
assistentes, no mesmo tempo de comer, estar em ato contrário.” (idem, ibidem: 191). Muito
usada é a colocação destes excertos identificados como citações históricas na fala das
personagens: “ação tão fidalga pode presumir-se e afirmar-se que teve o nascimento em alguma
estrebaria, e a criação em algum chiqueiro.” (idem, ibidem).
O texto conta novamente com as trovas populares, que em Lourenço são destacadas em
sentido zombeteiro:
Tenho minha cachorrinha,
Que minha Tatá me deu;
Tenho um só desgosto dela:
32
“la idea de ‘unidad latinoamericana’ aparece pues ligada indisolublemente a la lucha contra la condición de
colonizado”.
33
“la necesidad de reconocer la propria identidad parece obsesionar al lationoameicano”
34
“el primeiro modo de ser, es ‘ser contra” (a tradução para o português é nossa)
135
É ser filha de europeu
Toda moça que é briosa
Não casa com Marinheiro;
Espera para casar
Com os quindins dos brasileiros.
Bravo, patusco,
Patusquinho, patuscão,
Marinheiros, pé de chumbo,
Comedor e beberrão.
(TÁVORA, 1972: 57)
Buscar lã veio o Gregório,
Mas volta bem tosquiado:
Se vier, por mais finório,
O Félix José Machado,
O Cutia e o Bacalhau,
Havemos de ter, não uma,
Mas quatro rodas de pau.
(idem, ibidem: 202, grifo do autor)
Deste modo, as quadrinhas presentes no romance auxiliam no propósito de negação da
presença do estrangeiro, de governos totalitários como a monarquia colonialista, com o
diferencial de manterem a perspectiva crítica de maneira espirituosa, sem deixar de veicular o
tom nacionalista e todos os elementos que foram denotados até aqui. O que distingue esta
inserção de trovas populares daquela de O Matuto é que neste, elas são valorizadas mais como
um bem cultural e histórico, enquanto em Lourenço a valorização fixa mais sua validade
também como textos de extração histórica, validando e ilustrando a narrativa através de uma
significação estritamente nacionalista, mostrando um conflito provincial como um movimento.
contestador da política centralizadora da Corte carioca daquela época. Com Lourenço, vora
destaca, na recusa ao estrangeiro e a ordem externa, a província setentrional como a primeira a
reivindicar a liberdade política, econômica – e identitária.
136
PARTE 4
HISTÓRIA E FIÃO COMO MARCA GENÉRICA
.
“A criação é uma negação da morte.
Mas é indispensável que a morte se deixe negar.”
(Gaëtan Picon, O escritor e a sua sombra).
137
Incompatibilidade de gêneros? Aproximações com o romance histórico
Alguns críticos não conferem validade literária aos romances O Cabeleira, O Matuto e
Lourenço por julgarem que são antes históricos que literários e, por conta disso, o escritor teria
tido o seu projeto literário malogrado, que se propôs a criar uma “Literatura do Norte”
baseada na observação direta da realidade, dos costumes e da gente do sertão. Para estes, o que
o Franklin Távora conseguiu realizar são apenas narrações de fatos que ocorreram um culo
antes, e, portanto, fora do tempo histórico do escritor. Em função desses julgamentos, enfatizam
que as obras são válidas apenas como documentos históricos”. Dentre outras considerações,
existe ainda a noção de que vora “não sem indecisão, engaja-se numa linhagem que
raramente gera frutos de sabor, visto que Literatura e História são incompatíveis,” e, portanto,
não podem subsistir entrecruzadas na obra literária, salvo quando o acontecimento histórico se
restringe à mera sugestão para o fantasiar livre do romancista, mas neste caso não se trata
mais de História, senão de Literatura”. (MOISÉS, 1984: 300-301, grifo nosso).
De tal modo, de acordo com tais concepções, o crítico acaba delimitando um dos pontos
decisivos que marcam a discussão sobre a narrativa historiográfica e a literária: suas marcas
discursivas e suas instâncias disciplinares. E ele tem suas razões para julgar desse modo tanto a
obra de Távora quanto a junção de história e literatura que vem concorrendo para a crião de
vários romances históricos, tornando o gênero consagrado. Entretanto, o ajuste entre história e
ficção vem sendo discutido amplamente e não parece haver total consenso sobre suas instâncias
disciplinares, por exemplo. Antes da metade do culo XIX o parecia haver uma noção clara
dessa junção enquanto nero: “se a História acompanha o romance desde sua origem, o
romance histórico propriamente dito é de origem recente. Ainda que se discuta fervorosamente
esta relativa juventude do gênero”
35
(GENGEMBRE, 2006: 22-23). Por isso, levando em
consideração o julgamento de Massaud Moisés e de outros críticos em relação à interação entre
história e literatura, tais afirmações não são totalmente equivocadas, devido aos olhares
diferenciados e influenciados por teorias diversas, no geral menos contemporâneas. Contudo, se
consideradas a partir das mudanças recentes que sofreram a literatura e a crítica literária,
principalmente no que diz respeito ao tratamento dado ao romance histórico, ou aos fatos
históricos como mola propulsora da criação romanesca, esta afirmação pode ser (re)vista
através de outro prisma.
35
“si l’Histoire accompagne le roman depuis l’origine, le roman historique proprement dit est d’apparition
récente. Encore que l’on discute fermement cette relative jeunesse du genre.” (a tradução para o português é
nossa)
138
Tendo nascido no início do culo XIX, o gênero se instaurou o sem divergências e
polêmicas que discutem justamente a junção de fatos historicamente reais aos fictícios. Por
isso, embora tenha sido consagrado por Scott, apesar do sucesso evidente que este tipo de
nero tem alcançado desde longa data, “o novo gênero es em crise desde suas origens. O
casamento aparentemente perfeito entre discursos histórico e literário não é fácil de
manter.” (ESTEVES, 1995: 25). Mesmo o surgimento deste entrecruzar de discursos enquanto
nero é complicado de divisar, uma vez que “as origens do romance histórico perdem-se no
tempo e estão associadas às origens do próprio romance (idem, ibidem: 24). Gérard
Gengembre, ao procurar distinguir a partir de quando a ficção passou a se ocupar da História
(eventos de um povo registrados oficialmente), evidencia tal dificuldade. Para ele, tal
fenômeno/manifestação se deu “depuis la plus haute Antiquité” ou mesmo a partir do primeiro
século antes de Cristo
36
. Mas quem teria acabado por fixar os parâmetros desse gênero foi
realmente Walter Scott, cujo esquema de romance histórico obedece a dois princípios básicos:
- A ação do romance ocorre num passado anterior ao presente do escritor,
tendo como pano de fundo um ambiente histórico rigorosamente
reconstruído, onde figuras históricas reais ajudam a fixar a época, agindo
conforme a mentalidade de seu tempo;
- Sob este pano de fundo histórico se situa a trama fictícia, com personagens
e fatos criados pelo autor. Tais fatos e personagens não existiam na
realidade, mas poderiam ter existido, que sua criação deve obedecer à
mais estrita regra de verossimilhança. (ESTEVES, 1995: 25).
vora resolveu buscar no passado e, nesse sentido, adotou uma visão de mundo
claramente romântica subsídios para a realização de seu propósito literário. As obras que,
portanto, viriam a traduzir esses preceitos o O Cabeleira, O Matuto e Lourenço, sob a idéia
de que é a partir da experiência e da “observação direta da realidade” que se pode chegar a
resultados melhores que os obtidos pela imaginação “rontica e excêntrica da época,
exclusivista, o que não quer dizer que se deve desprezá-la completamente. Por isso, em outras
palavras, alguns censores chegam a julgar que se Franklin vora recorreu ao passado,
36
"Déjà chez les Grecs, le roman raconte une histoire, comme il se doit pour une oeuvre littéraire mettant en
scène des personnages vivant des aventures situées dans un cadre quotidien ou extraordinaire, et ce faisant il met
souvent en rapport ces histoires individuelles avec un contexte historique, plus ou moins détaillé, expliquant,
déterminant à des degrés divers les actions, les comportements, les discours, les mentalités.” (GENGEMBRE,
2006 : 17)
“Já na Grécia, o romance narra uma história, como acontece em uma obra literária que e em cena personagens
que vivem aventuras situadas em um contexto cotidiano ou extraordinário e, fazendo isso, frequentemente
relaciona estas histórias individuais com um contexto histórico, mais ou menos detalhado, explicando,
determinando, em graus diversos, as ações, os comportamentos, os discursos, as mentalidades.” (idem, ibidem,
tradução nossa).
139
faltavam-lhe dotes inventivos. Em relação a este tipo de ponto de vista, as indagações feitas por
Amado Alonso são exemplos sintomáticos deste tipo de embate: “Será porque no romance
histórico a matéria está dada e, portanto, colocamos nela menos do raro dom da inventiva? Será
que a história remota impõe resistências que a história contemporânea o apresenta?
37
(ALONSO, 1984: 9).
Observa-se, então, que o problema incide principalmente no papel que literatura e
história exercem, dentro de seus quadros de ação, e que por muito tempo se acreditou serem
distintos. A inserção de elementos extraídos de eventos ocorridos em um tempo remoto é
interpretada como algo que tolhe a imaginação ou que vem em seu socorro devido a uma
deficiência na capacidade de fantasiar, o que é atribuído a vora.
Assim sendo, verifica-se que o papel da imaginação na reconstrução do passado coloca
em causa as fronteiras entre o historiador e o ficcionista, pois ambos lidam com o mesmo
nero discursivo a narrativa na composição de seus trabalhos. Além disso, o papel da
imaginação acaba sendo incorporado na reconstrução e na representação dos fatos que cada um
deles manipula, agora sem prejuízo do historiador, mas como um instrumento que deve ter a sua
mediação reconhecida sem preconceitos, o que nos faz ler o famoso trecho de Aristóteles sob
esta nova perspectiva: “O historiador e o poeta não se distinguem um do outro por escrever em
verso ou em prosa [...]; a diferença é que um relata os acontecimentos que de fato sucederam,
enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder” (ARISTELES, 1999: 47). Do que se
conclui que, se diferença entre historiador e poeta, entre a realidade narrada e a imaginada,
esta diferença é, no entanto, muito sutil:
Em princípio, a História e a Ficção se entrosam como formas de linguagem.
Ambas são sintéticas e recapitulativas; ambas têm por objetivo a atividade
humana. Como o romance, a História seleciona, simplifica e organiza,
resume um século numa página”. Seleção e organização pressupõem o que
Collingwood chamou de imaginação a priori, comum ao historiador e ao
novelista. “Enquanto obras de imaginação, não diferem os trabalhos do
historiador e do novelista. Diferem enquanto a imaginação do historiador se
pretende verdadeira.” (NUNES, 1988: 12).
Neste sentido, o fato de vora partir da observação de uma realidade fora do seu
contexto temporal não descaracteriza o valor histórico de sua obra, como muitas outras que se
baseiam nos mesmos mecanismos, mas também não lhe tira o valor de ficção. Ele consegue
37
“Será porque en la novela histórica la materia está dada, y portanto, echamos en ella de menos el raro don de la
inventiva? [...] Será que la matéria ofrecida por la historia lejana pone resistencias que la historia actual no
pone?” (a tradução para o português é nossa)
140
tornar concreta a concepção básica de romance histórico, já que “não se pode conhecer o que já
foi, através de documentos, senão solicitando da imaginação os seus recursos
tropológicos” (NUNES, 1988: 33). Um dos quesitos básicos que compõem este tipo de gênero é
ser romance, conter fatos imaginados entremeados aos históricos que não necessariamente
precisam ser inseridos na narrativa restritamente tal como aconteceram.
Sabendo do papel subversivo da literatura e da importância e da riqueza da história da
sua região, vora vai buscar no passado subsídios para a elaboração de sua obra, mas com os
olhos no presente, procurando estabelecer uma ponte que explique este passado como embrião
de eventos de seu tempo (marginalização, independência, economia capitalista, transformação
cultural etc.) ou de tempos futuros. O que atesta a seguinte afirmação de Benedito Nunes: “a
submissão ao passado é também uma preocupação com o futuro, instigada pela força do
presente” (NUNES, 1988: 12). Sendo um autor preocupado com a questão social, política e
ecomica de seu tempo e de sua rego, que caminhavam pari passu com o seu projeto
literário, não como deixar de constatar, nas obras estudadas, os conflitos sociais e políticos
da época, com a apresentação simultânea de personagens e tramas históricas e fictícias.
Sendo assim, O Cabeleira, O Matuto e Lourenço obedecem aos dois princípios básicos
do romance histórico sintetizados por Antonio R. Esteves: situam-se num passado não
experimentado pelo autor, m como eixo um evento histórico cujas cenas são rigorosamente
reconstruídas, sobretudo nos dois últimos romances, além de a narrativa estar composta por
personagens históricas e fictícias, agindo conforme sua época o rigorosamente, o que faz
parte do anacronismo necessário para possibilitar o entendimento do leitor. Exemplos é a
atualização ou a descrição das expressões de época numa espécie de glossário que acompanha o
romance ou em notas de rodapé
38
. Além destas características, a trama e as personagens
inventadaso verossímeis na medida em que dão a ilusão de serem reais, inclusive porque
O século XIX, por exemplo, marcado pela crença positivista no progresso,
acreditava que, graças à ciência, se estava chegando muito próximo da
certeza sobre a realidade. Por isso mesmo, a ficção desse período se
esmerava em emular os procedimentos científicos na sua prática discursiva,
a tal ponto que fingia que não fingia, isto é, fingia que não era ficção.
(KRAUSE, 2004: 23)
38
Vide, por exemplo, o glossário presente no romance O Cabeleira (TÁVORA, 2003: 171-180).
141
Baseada no mapeamento do gênero feito por Celia Fernández Prieto, nossa análise
constatou que as três obras possuem características que vão desde o romance histórico
romântico resvalando também no realista, contendo os seguintes traços:
a) as personagens históricas intervêm na ação; contudo, as personagens
ficcionais são colocados em primeiro plano, além de representarem um
determinado grupo social;
b) existem episódios amorosos baseados em peripécias, drama, desafios
(sobretudo em O Cabeleira); raptos, duelos, suspense (elementos principais
de O Matuto e Lourenço), e em todos o desenlace é infeliz, trágico e
desditoso;
c) a presença do narrador em terceira pessoa, que tem conhecimento de
“todos os sucessos históricos e ficcionais, inclusive dos sentimentos das
personagens, mostrando-se como um detentor do saber histórico que transmite
ao leitor, situando-o e informando-o. Am disso, as digressões do narrador
pretendem atestar a confiabilidade do que es sendo narrado, sendo ele
responsável por estabelecer as pontes que ligam o passado ao presente e
estando situado no mesmo tempo do leitor, além de veicular um discurso
moralizante e didático; o que nos faz constatar que “que o cabe possível
diferenciação entre este narrador e a figura do autor
implícito"
39
(FERNÁNDEZ PRIETO, 2003: 102);
d) este narrador pretende preencher os espaços vazios do discurso historiográfico
e contribuir para conformar a idéia de nação no caso das obras em questão,
este intuito assume uma característica predominantemente regional, por
atribuir a uma determinada porção do país a iniciativa de preservar o pendão
nacional;
e) as personagens ficcionais e históricas, em determinado momento, dividem o
privilégio do foco narrativo;
39
“no cabe posible diferenciación entre este narrador y la figura del autor implícito” (a tradução para o português
é nossa)
142
f) ao inserir marginais em seu arcabouço narrativo e fazer deles os
protagonistas, o autor abandona a visão histórica “elitista” e dá a conhecer os
fatos esquecidos ou ignorados pelos historiadores;
g) vários recursos pretendem provocar o efeito de realidade, apresentado-se
como “presente del pasado”. Tais recursos são evidenciados desde pelos
comentários do narrador, comparando costumes e outros elementos de época
com os do presente, até na citação de determinados eventos, personalidades,
mudanças das cidades etc. que vão desde o século XVI até o XIX;
h) o narrador apresenta detalhes pormenorizados das personagens não-ficcionais,
humanizando-as. O melhor exemplo disto está em O Cabeleira;
i) os relatos das três narrativas privilegiam em termos referenciais e temáticos
“eventos e personagens pretéritos, cuja relevância comporta uma feição
historicista, bem como feitos que no presente de sua produção” podem ser
“identificados pela moldagem de historicidade que os caracteriza” (SANTOS,
1996: 75)
Levando em consideração as características sicas desses três romances, pode-se
afirmar que Távora utiliza, de maneira inovadora, crítica e consciente, a história como recurso
para a criação romanesca, concebendo um projeto literário edificante, além de bastante
consciente, como foi repisado durante as reflexões deste estudo. Ele ainda consegue
manipular a contento os elementos básicos que caracterizam o romance histórico, sobretudo em
O Matuto e Lourenço. O traço determinante que faz com que O Cabeleira seja diferente dos
outros dois romances é seu caráter biográfico: Franklin Távora escreve uma biografia histórica
de José Gomes, inserindo fatos reais da vida do bandido a narração de alguns assaltos
efetuados pelo bando do cangaceiro e que constam em documentos. Mas acredita-se que a
maior parte dos dados seja inventada, sobretudo os que dizem respeito à redenção do bandido
através de Luisinha.
De acordo com todos os aspectos apresentados nesta análise, destacam-se duas funções
primordiais que constituem o diferencial do romance tavoreano. Primeiramente, a narrativa de
determinados eventos eleva a história ao vel de bem cultural, devendo, portanto, pertencer e
fazer parte do conhecimento de todos. A partir dela e da ficção é possível refletir sobre diversos
ecos que flutuam sob o percurso do tempo. Tanto a história quanto a ficção são encaradas como
143
complementos que constroem um legado. Unificá-las é apropriar-se duplamente deste legado,
pois uma preserva e outra reinterpreta. Unidas, ambas conduzem através do tempo, fixando o
passado como monumento, símbolo, mito e inspiração. Em segundo lugar, a reescrita da
história em Távora é uma forma de suprir a ausência de história ausência de tradição e de
referências próprias da nação/região e de se recusar a adotar a autoridade da refencia
externa, do outro, em cujo espelho não é possível se reconhecer, porque os traços não foram
desenhados com mãos próprias, mas se apresentam como marcas que mais se assemelham a
cicatrizes provenientes de imposições.
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
145
História e Ficção: uma relão de cumplicidade
A maneira como Távora constitui O Cabeleira, O Matuto e Lourenço atesta a
importância dessas obras no cenário da crítica e da estética. Inovações como as que ele
instaurou são decisivas literariamente, ainda que o escritor que se proponha a encabeçar tal
mudança possa ser muitas vezes mal compreendido, devido a vários aspectos teóricos,
conceituais, estéticos, de época etc., e este risco é quase infalível em determinados casos. É
deste pressuposto que são aqui entendidas as asserções críticas a respeito da obra tavoreana,
pois afirmam, em síntese, que no fundo as produções aqui analisadas não merecem consagração
como obras de arte, não somente em função de uma comparação entre a proposta e a
perspectiva que o autor adota. Também em razão de pré-juízos e fatores externos às suas obras
e da concepção diferenciada que cada crítico tem do discurso romanesco e do discurso da
história, e mesmo da arte. A presença da história nas narrativas literárias não implica que por
isso sejam “meros” romances históricos, sem qualquer valor literário. Tampouco oblitera o
valor artístico que eventualmente tenham, como colocam, grosso modo, alguns críticos, ao
afirmarem também que “o lirismo caboclo, prenúncio do regionalismo moderno, era o veio
aflorado por um ficcionista ‘distraído’ pela História (MOISÉS, 1984: 303) esta, portanto,
viria a frustrar o projeto de “Literatura do Norte”, por ser ligada ao passado e o na realidade
conhecida diretamente. A realidade, neste caso, é entendida como sendo o presente.
O autor imprime uma marca polêmica ao inserir nestas composições aqui analisadas os
debates inegavelmente ideológicos que promoveu. O questionamento religioso vem
representado na figura de um padre que teve um filho e o assume tempos depois (o padre
Antônio de Mariz e Lourenço, respectivamente). A despeito da quebra do celibato ser
considerado pela Igreja como pecado, este padre é descrito como alguém de visão religiosa e
caráter impecáveis isso se configura como uma forma de o autor questionar a validade de
certos dogmas, uma vez que destaca indiretamente a conduta religiosa relacionada ao caráter,
não aos preceitos que ela impõe. A figura patética de um dos frades que prega no meio de uma
guerra da qual eles próprios participavam também é outra forma de provocação. A crítica à
legislação vigente na época e à pena de morte vêm representadas por José Gomes: “Ah ! meu
amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado o ser mais que um crime
jurídico, de fato não corrige nem moraliza. (TÁVORA, 2003: 169). O drama da escravidão é
colocado na ação dos escravos que traem seus senhores em troca do sonho de liberdade e na
maneira como esse sonho é manipulado em benefício dos interesses de seus próprios carrascos.
146
E a edificação de uma literatura “genuinamente brasileira”, cujas fontes inspiradoras estariam
no norte, e não no sul, a seu ver produtor de uma literatura de estrangeirismos e inflncia
européia, ganha significão na tessitura narrativa dos romances, nas personagens simples, no
amor aos seus costumes e às suas tradições. Na bravura que atribui a praticamente todas as
personagens, como incansáveis defensores do interesse regionalista.
O escritor não se abstém de tomar o partido de causas que julga importantes para o norte
e para o nortista. Causas essas que podem ser tanto de cunho social, político e religioso, quanto
moral ou literário, e que o direta ou indiretamente inseridas em suas narrativas. Estes
posicionamentos podem ser observados nos prefácios dos livros e por meio das opiniões de
caráter ideológico das personagens e de seus narradores, que o o apenas “intrusos”, mas
enunciam vozes que ultrapassam os limites da narrativa, moralizando, debatendo, opinando e
interpelando o leitor. A questão norte-sul que Franklin Távora preconizou e representou através
de seu regionalismo, na verdade, constituiu-se não como uma forma de literatura com idéias
exclusivamente separatistas, mas como uma forma de tentar unificar as duas reges no
interesse de resgatar e preservar a cultura e a história da nação. Afinal, o narrador de seus
romances o se refere a um leitor nortista, provinciano, mas ao leitor sulista, citadino tal
postura procura manter um diálogo e o conhecimento entre regiões.
Seus estudiosos afirmam que a concepção de romance do escritor era “demasiadamente
elástica” e o deixam de ter razão em alguns aspectos. A isto se ligam os conceitos de
romance correntes à época em comparação com o projeto literário do autor e com a sua
realização levantou-se a hipótese de que entre eles diferenças consideráveis, tal como a
aproximação entre a história e a ficção, entre a idealização e a efetivação, onde poderia existir
um evidente conflito. Afinal, o escritor pretendeu edificar a “Literatura do Norte” a partir da
“observação direta da realidade”, mas suas obras apontam para um exame no passado como
meio de reflexão e diálogo com o presente Franklin Távora almejou criar uma literatura
“autêntica”, e serviu-se para isso da história. Diante dos aspectos apontados aqui, cabe
perguntar novamente a qual gênero pertenceria, afinal, a obra de Franklin vora, se histórico,
literário ou ambos; se é possível estabelecer uma definição genérica. Por fim, qual seria a
validade de suas obras e o que elas representariam de fato? Essas são algumas das dúvidas que
foram suscitadas em sua fortuna crítica.
Os romances de Távora, embora inspirados em eventos e figuras do passado são
termômetros de uma época de contrastes e da diversidade de correntes literárias do século XIX,
no entanto vislumbra as contradições e mudanças presentes em todas as épocas. Tais efeitos
estão presentes em maior ou menor grau na produção tavoreana. Contrastes entre regiões,
147
costumes e ideais, internos e externos ao país. Contradições entre o desejo de progresso e a
preservação nostálgica desses elementos, no “nacionalismo protetor” algumas vezes
verborrágico e ingênuo. A mudança de padrões com a inserção do marginal, de sertanejos e
matutos, transformados em heróis, mártires, exemplos enfim. O desvio didático para o passado
e para temáticas que envolvem guerra, barbárie, conflitos individuais, singeleza e valores na
vida dos matutos, crença no indivíduo e no progresso – e ao mesmo tempo nas tradições sociais,
ecomicas e culturais são algumas lições que bem exemplificam tanto o tempo de
transformações da época do autor quanto seus anseios revoluciorios. Franklin Távora aponta
a “necessidade” da elaboração de uma literatura autenticamente brasileira e discute o grau de
inventividade na elaboração estética se através do apelo à “observação direta da
realidade (que inclui principalmente o passado como forma de realidade ainda “atual”) ou, no
outro extremo, à imaginação irrestrita. Embora o projeto do autor pareça privilegiar apenas uma
das alternativas, a maneira como come seus textos deixa clara a escolha pela mescla entre
uma e outra.
A questão histórica é outro componente fundamental de seus romances que só vem a
enriquecer e unificar realidade e fantasia, modalizando os intuitos gerais do seu projeto estético
que, por sua vez, não se desvanece por conta da representação de um tempo remoto: a mira es
no passado, mas o alvo está no presente. A tônica didática e moralizadora, a apresentação de
problemáticas que se referem ou estão ainda presentes na atualidade, a valorização da história
juntamente com a memória popular como elementos que possuem a mesma autoridade devido à
importância conferida a cada um, validam irrefutavelmente a conexão do passado com o
presente. Até porque também a cultura popular sertaneja, como algumas outras, não deixa as
tradições se desvanecerem completamente resgata suas raízes firmemente fincadas no
passado: seus festejos e tradições de origem medieval, que celebram grandes batalhas, eventos e
fenômenos extremamente marcantes (como foi o cangaço, o messianismo, por exemplo) e,
ainda presente em muitos lugares, seu modo de vida baseado numa sociedade patriarcal são
exemplos disso. O diálogo entre a pesquisa histórica e a elaboração ficcional faz de O
Cabeleira, O Matuto e Lourenço romances históricos que se caracterizam por “uma forma de
conhecimento exemplar: o mais a livre e arbitrária evocação do passado para o prazer do
espírito e deleite da curiosidade, mas uma investigação indispensável para dar conta do estado
presente de todas as coisas.” (SALIBA, 1991, p. 53), vinculados a um projeto estético que
assume uma postura ideológica desafiadora. Igualmente, o alcance das idéias propostas nesse
programa da “Literatura do Norte” repelindo a cultura estrangeira e a subordinação a uma
identidade e a moldes externos, não se estanca em definições ou modelos fixos, ao gosto do
148
clima de transição e do desejo de formar uma identidade própria, traduzida no ideal
nacionalista, fontes que geraram este projeto.
A caracterização psicológica e social de Cabeleira e Lourenço simbolizam a perene luta
entre a ordem e o caos – são personagens que vivem o caos psicológico relacionado também ao
momento histórico em que vivem. Estão em busca ou necessitam de uma ordem psicológica e
“histórica”. O amor e a família, a educação e a luta em prol de um ideal são, essencialmente, os
caminhos que podem proporcionar o alcance dessa ordem. Não é sem motivo que, a partir do
resultado de uma negociação, o leitor é induzido a aceitar o marginal e o delinqüente como
anjos caídos, como vítimas. Ainda que a visão do sertanejo, do matuto, e mesmo da região
possa assumir contornos românticos, porque idealizados, a conscncia da situação vivida no
ambiente rural e sócio-político em que estes vivem corrige os desvios apontados pela crítica,
pois Franklin Távora não esconde suas reais misérias. É possível identificar muitos dos
problemas presentes nas narrativas como uma realidade que persiste até os dias de hoje.
Exemplos disso o a pobreza, a simplicidade, as dificuldades, a linguagem regional, o
pensamento e o modo de viver da gente do sertão, notadamente dos que vivem nas regiões
afastadas dos centros urbanos nortistas e que vêm servindo de terreno fértil para diversas formas
de representação artística. Portanto, trata-se de uma percepção histórica que, invariavelmente,
tende a avaliar o presente e, por conseguinte, relaciona-se diretamente com o exame da
realidade, pois a história é um objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homoneo
e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’.” (BENJAMIM, 1985: 229)
149
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