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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - UFMT
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO - IE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE
A FORMAÇÃO DO LEITOR ADOLESCENTE
DO “FAZENDINHA” – EM CUIABÁ- MT
MARCELO PORRUA
CUIABÁ – MT
2005
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - UFMT
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO - IE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE
A FORMAÇÃO DO LEITOR ADOLESCENTE
DO “FAZENDINHA” – EM CUIABÁ- MT
MARCELO PORRUA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós
Graduação em Educação da
Universidade Federal de Mato
Grosso sob a orientação da Profª
Drª Lázara Nanci de Barros
Amâncio.
CUIABÁ – MT
2005
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3
P838f PORRUA, Marcelo
A Formação do Leitor Adolescente do ‘Fazendinha’ em
Cuiabá – MT/Marcelo Porrua. – Cuiabá: UFMT/IE, 2005.
144p.:il. color.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de s-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso, sob a orientação da Profª Drª Lázara
Nanci de Barros Amâncio.
Bibliografia: p. 140-142
Anexos: p. 143-146
CDU 028.6:372.41
Índice para catálogo sistemático
4
A leitura da palavra é sempre prescedida pela
leitura do mundo. E aprender a ler, a escrever,
alfabetizar-se é, antes de mais nada aprender a
ler o mundo ...
Paulo Freire
5
Agradeço à minha orientadora Profª Drª Lazara Nanci de Barros Amâncio,
pela acolhida incondicional;
aos professores e colegas do Programa de Pós Graduação em Educação;
pelas contribuições
à Luiza e Simone da Secretaria da Pós-Graduação,
pela paciência e carinho e
aos adolescentes sujeitos de minha pesquisa,
pela voz e pelo silêncio.
6
Dedico este trabalho aos adolescentes marginalizados,
sem voz e sem vez
que povoam este imenso país em busca de seu espaço de dignidade,
que seus clamores e silêncios sejam ouvidos
e ecoem em nossas mentes e corações,
discursos e ações.
7
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo compreender a constituição do
processo de formação de leitores vivenciado pelos adolescentes infratores do “Lar
do Adolescente“ Fazendinha - em Cuiabá/MT. Para tanto, foram adotados os
pressupostos metodológicos da pesquisa qualitativa-interpretativa e realizadas
entrevistas aberta e semi-estruturada, que priorizaram relatos e vivências dos
adolescentes relacionados às suas práticas de leituras e às dimensões nelas
contidas, e observação de atividades relacionadas às práticas de leitura dos
adolescentes em sala de aula e fora dela. A leitura e seu processo histórico, bem
como a formação do gosto e a leitura como ato de cidadania, são as reflexões que
sustentam as discussões aqui empreendidas; como também, a explicitação do
contexto social, político, econômico e jurídico dos sujeitos da pesquisa, que
tratamos de dimensões instauradoras de representações sobre a leitura. Tais
dimensões, vividas pelos adolescentes em suas famílias, onde receberam os
primeiros estímulos, em suas escolas, onde poderiam ter desenvolvido
competências como leitores, e no cárcere, onde estão para serem ressocializados,
são explicitadas a fim de retratar o papel de cada uma dessas instituições, e seus
agentes, como mediadores no processo de formação de leitores. A ausência de
meios eficazes que promovam a leitura no cotidiano dos adolescentes faz parte de
sua trajetória, e o rcere corrobora a falta de perspectivas para políticas blicas
de leitura que visem a formação do homem e de seus valores. As dimensões
vividas pelos adolescentes em suas práticas de leitura o são, obviamente, a
razão de serem delinqüentes, nem a delinqüência os faz vivenciar tais condições;
todavia, o que fica evidenciada é a necessidade de se compreender que tais
condições sociais presentes no processo de construção do leitor,
sistematicamente percebidas nos adolescentes pesquisados, provavelmente, são
constitutivas de seus perfis atuais e podem otimizar as condições da delinqüência.
Assim, ao enxergarmos uma pequena fração do percurso desses adolescentes,
podemos pensar em estabelecer uma política de práticas de leitura escolar que
focalize os anos iniciais de escolarização e se estenda ao longo do Ensino
Fundamental.
8
ABSTRACT
This research has as objective understands the constitution of the process of
formation lived by adolescents offenders of the Lar do Adolescente
“Fazendinha” in Cuiabá MT. For so much, the methodological presuppositions of
the qualitative-interpretative research were adopted and accomplished interviews
opened and semi-structured, that prioritized reports and existences of the
adolescents appointed to your reading practices and the dimensions in them
contained, and observation of activities related to the practices of the adolescents’
reading in class room and out of its. The reading and your historical process, as
well as the formation of the taste and the reading as citizenships act, they are the
reflections that sustain the discussions here undertaken; as well as, the
explicitacion of the social, political, economical and juridical context of the subjects
of the research, since that treated of news dimensions of representations on the
reading. Such dimensions, lived by the adolescents in your families, in your
schools, where they could have developed competences as readers, and in the jail,
here they are to be included in the social life again, are showed in order to portray
the papers of each one of those institutions, and your agents, as mediators in the
process of formation of the readers. The absence of effective means that promote
the reading in the daily of the adolescents it’s part of your path, and the jail
collaborates the perspectives lack for public politics of reading that seek the man’s
formation and your values. The dimension lived by the adolescents in your reading
practices not be, obviously, the reason of they be delinquent, nor the delinquency
makes to live them such conditions, though, what stay evidenced is the need to
understand that such present social conditions in the process of reader’s
construction, systematically noticed in adolescents researched, probaly, they are
constituent of your current profiles and they can optimize the condition of the
delinquency. Like this, to the we see a small fraction of those adolecents1 course,
we can think about establishing politics of family and school reading that focalize
the years the begin of the school’s process and extend along of the Fundamental
Teaching.
9
ÍNDICE
INTRODUÇÃO _________________________________________________
I – O ROTEIRO DA PESQUISA
1.1 – As balizas metodológicas _______________________________
1.2 – O lócus da pesquisa ___________________________________
1.2.1 – Os espaços das penas __________________________
1.2.2 – As salas das aulas _____________________________
1.3 – Os sujeitos da pesquisa ________________________________
1.4 – As técnicas e instrumentos da pesquisa ___________________
II – AS CENAS DA LEITURA
2.1 – A Leitura no Ocidente __________________________________
2.2 – Os efeitos da leitura ___________________________________
2.3 – A formação do leitor e do gosto pela leitura _________________
2.4 – O que ler, afinal? _____________________________________
2.5 – Outros modelos de ler _________________________________
2.6 – Leitura para a cidadania _______________________________
2.7 – A importância do ato de ler _____________________________
III – DELINQÜÊNCIA E SOCIEDADE: OS BASTIDORES DO PROBLEMA
3.1 – A criminalidade: aspectos socioeconômicos ________________
3.2 – Infratores e Instituições: considerações sócio-políticas ________
3.3 – As instituições prisionais sob o prisma jurídico ______________
3.4 – O adolescente infrator e a instituição de ressocialização _______
3.5 – Uma pedagogia carcerária ______________________________
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10
IV –
EM CASA, NA SALA E NA SELAA FORMAÇÃO DO LEITOR EM 3 ATOS
4.1 – A Família ___________________________________________
4.1.1 – Escolaridade __________________________________
4.1.2 – Suportes de leitura _____________________________
4.1.3 – As relações leitura/família ________________________
4.1.4 – O papel do livro ________________________________
4.2 – A Escola ____________________________________________
4.2.1 – A importância da escola _________________________
4.2.2 – Suportes, tempos e espaços de leitura ______________
4.2.3 – A função do professor ___________________________
4.2.4 – A (an)alfabetização secundária ____________________
4.2.5 – Aspectos sociais da leitura _______________________
4.3 – O Cárcere ___________________________________________
4.3.1 – O sentido da leitura _____________________________
4.3.1.1 – Valoração _____________________________
4.3.1.2 – Utilidade _______________________________
4.3.1.3 – Motivação _____________________________
4.3.2 - Práticas de leitura ______________________________
4.3.2.1 – O mundo da ficção e do faz de conta ________
a – Leituras Encantadas____________________
b – Leitura Escolarizada ____________________
4.3.2.2 – O Cânone do Cárcere ___________________
a – O sagrado e o profano __________________
b – O sonho e a realidade __________________
CONSIDERAÇÕES FINAIS ______________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ________________________________
ANEXOS _____________________________________________________
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143
11
INTRODUÇÃO
A leitura sempre foi uma constante em minha vida; minha trajetória
educacional e pessoal revela esse aspecto de forma inconteste. Contudo, não
havia parado ainda pra refletir sobre as questões da infância e da adolescência e
o quanto elas me faziam pensar e agir.
Primeiro foram os grupos de jovens da Igreja e a catequese em
Morretes/PR, depois o trabalho voluntário num lar de crianças em situação de
risco social em Curitiba/PR, seguiu-se a dedicação à formação de jovens
seminaristas em Passo Fundo/RS e o trabalho com crianças e jovens favelados
dos morros de Porto Alegre/RS; mais tarde estive como missionário junto à
juventude em Apiacás MT e em seguida adentrei ao magistério em Carlinda/MT; e
agora, derradeiramente, continuando o processo de minha formação permanente
me colocando na dinâmica de pesquisa em educação do PPGE/UFMT.
O recorte que faço em minha pesquisa, agrupa duas temáticas com as
quais me identifico bastante: as questões da leitura e da adolescência. Não posso
negar que minha história me leva a esses sujeitos, ou me traz esses sujeitos, ou
esses sujeitos vêm até mim. o sei se sou eu que os escolho ou eles me
escolhem. Como devem ter percebido, não são quaisquer sujeitos, mas aqueles a
quem é negada a voz que mais me chamam a atenção - os adolescentes em risco
social, o risco da marginalidade e da delinqüência. Por eles, para eles e com eles
é que deve ser feito algo, afinal às parcelas mais necessitadas de dignidade deve
ser dada toda a atenção, procurando saber de suas carências para que sejam
elaborados programas de resgate de suas condições mínimas de sobrevivência e
subsistência social.
12
Pensei imediatamente que minha contribuição poderia ser pesquisando
sobre o processo de formação, enquanto leitores, dos adolescentes em situação
de risco e marginalidade em vista de que um futuro mais cidadão pudesse ser
construído. Afinal, os trabalhos que mais me gratificaram, frente a multiplicidade
de crianças e adolescentes de tantos lugares diferentes, foram aqueles que se
propuseram a resgatá-los social e existencialmente. Eu possuía poucos recursos,
mas a leitura sempre foi a alavanca que eu poderia contar. Um instrumento
prático, barato e exitoso.
A leitura pode e poderia ser sim, promover o descobrimento dos sujeitos.
Usei-a sistemática ou assistematicamente como meu instrumento de içamento
social. Não sei exatamente a dimensão desse trabalho, apenas sei que durante
alguns momentos a leitura oferecida foi uma porta para outras dimensões da vida
desses adolescentes. Algumas portas foram abertas, outras ficaram em frestas
e outras não puderam ser atravessadas; mas estavam lá, cada uma delas,
esperando quem as transpusesse.
No cerne das questões entre a formação do leitor adolescente e sua
condição de infrator várias questões me pontilharam o pensamento: como se
processaria esta formação? Como haviam sido as suas experiências de leitura em
casa, com sua família, se as tiveram ou não, como foram suas relações com os
textos? A que textos tiveram acesso? Como foi que a escola os preparou para o
mundo através da leitura? Esses adolescentes tiveram acesso a diferentes
suportes de leitura e gêneros textuais? Afinal, no meio da delinqüência
atividades de leitura ou não? E ao serem recolhidos à instituição prisional, como
era o caso de muitos adolescentes, o que lhes era proposto enquanto projeto de
ressocialização abrangia as práticas de leitura?
Como Paulo Freire, acredito que a leitura da palavra pressupõe a leitura do
mundo, mas também acredito que a leitura da palavra influencia na leitura de
mundo, e, conseqüentemente, nas ações dos sujeitos, na construção da teia de
suas relações e na compreensão da sua história e dos fenômenos sociais que o
cercam. A leitura possibilita restituir ao sujeito o que lhe é tirado perenemente
13
pelas formas de alienação de si mesmo: a consciência de si e do outro enquanto
sujeitos históricos, protagonistas de reformas e conquistas e não apenas
marionetes de um sistema que não reconhece sua humanidade, ou pior, o alija
dela.
Como havia dito, diferentes perguntas povoaram minha mente, e, de forma
desordenada, saltavam aos meus olhos. A pesquisa junto aos adolescentes
infratores do Lar do Adolescente Fazendinha em Cuiabá - MT surgia-me como
um desafio inevitável à minha formação. Aceitei-o e passei a pensar no problema
dessa pesquisa. Foi uma tarefa um tanto quanto desgastante, pois muitas
variáveis se entrelaçavam em meio às indagações que norteavam o problema e o
faziam, na maioria do tempo, um tanto quanto nebuloso. Mas algumas luzes se
acenderam e me proporcionaram refletir mais objetivamente sobre o seguinte: em
que medida a delinqüência juvenil está relacionada ao processo de formação do
adolescente enquanto leitor ou vice-versa? Assim constitui-se em meu problema
de pesquisa.
Para que isso pudesse ser levado adiante foi elaborado um projeto de
pesquisa que previa algumas etapas básicas, de acordo com as exigências
acadêmicas. Na primeira etapa foi necessário o mergulho na bibliografia de apoio
à pesquisa e acesso aos estudiosos das questões da leitura e dos contextos da
delinqüência. Depois de devidamente autorizados pelo Juizado da Infância e da
Juventude de Cuiabá, realizamos a primeira visita à superintendência responsável
pela direção do “Lar do Adolescente”, ocasião em que fizemos os primeiros
contatos exploratórios do lócus de pesquisa para a organização dos trabalhos de
observação e entrevistas. O terceiro momento foi marcado por contatos coletivos
com os trinta e dois (32) adolescentes escolhidos para serem sujeitos da pesquisa;
o critério adotado levou em consideração serem alunos de 5ª a 8ª séries do
Ensino Fundamental e do Ensino Médio e estudarem num mesmo período
(vespertino), o que facilitaria a observação dos grupos. Numa quarta etapa, foram
realizadas as entrevistas abertas e os questionários foram respondidos, bem como
foram realizadas as observações em sala de aula e os contatos com outros
informantes como professores, orientadores e membros da equipe técnica. Num
14
quinto momento, depois de estudadas as informações obtidas, foram feitas novas
entrevistas, agora semi-estruturadas, com seis (06) dos adolescentes que foram
escolhidos a partir da disponibilidade que apresentaram em estar aprofundando
seus relatos sobre a sua formação enquanto leitores. Sistematizados os dados,
realizaram-se as análises.
Este relatório final ficou constituído do seguinte modo: no primeiro capítulo
apresentamos os pressupostos da pesquisa qualitativa-interpretativa e os
elementos que a constituíram, como os pressupostos do método, os sujeitos, o
locus da pesquisa e os instrumentos que foram utilizados; as questões
relacionadas à leitura, à formação do leitor e do constante movimento sofrido pelas
práticas de leitura e como elas atingem o leitor, são as discussões do segundo
capítulo. Em seguida, no terceiro capítulo, com o caráter de contextualizar o
problema da marginalidade, falamos sobre a relação existente entre questões
econômicas, política, sociais e jurídicas, que norteiam o fenômeno da
marginalidade e a delinqüência juvenil. Esse capítulo precede nossa análise dos
dados e informações obtidos durante a pesquisa e as considerações que dela
fizemos.
A preocupação com a formação do leitor adolescente, em especial aquele
posto em regime de privação de liberdade, deve-se a fato de, além de não haver
muitas pesquisas acadêmicas que relacionem essas duas categorias: a leitura e o
adolescente infrator, serem os seus resultados importantes na implementação de
programas que combatam a delinqüência juvenil. Assim, acredito que os
resultados dessa investigação possam contribuir sobremaneira para que sejam
pensadas políticas públicas de leitura numa perspectiva que vislumbre a
construção e re-construção da cidadania. Propostas que possibilitem não apenas
o acesso a universos de significação, mas que ampliem as perspectivas de vida de
inúmeros adolescentes que poderão adentrar à marginalidade, e com isso
promovam intensamente a sua inclusão social e o seu desenvolvimento pleno
enquanto seres humanos.
15
I – O ROTEIRO DA PESQUISA
Diga-me por onde andas
e te direi aonde chegarás!
Anônimo
O interesse pelo objeto dessa pesquisa, a leitura, aconteceu rapidamente,
afinal é com essa dimensão do conhecimento que venho trabalhando muitos
anos, seria natural querer trabalhar com essa questão numa pesquisa mais
profunda e sistemática no mestrado. Definir os sujeitos com os quais trabalharia foi
um tanto quanto penoso, afinal vários sujeitos em diferentes situações e contextos
eram interessantes, mas nenhum deles me havia feito brilhar os olhos e
sabemos que sem paixão uma pesquisa fica sem alma; então me propus a dar o
tempo da maturação de algumas idéias para abraçar uma proposta de pesquisa
que fugisse um pouco das tradicionais abordagens comparativas entre as práticas
de leitura da escola pública e da escola particular, ou entre alunos de baixa renda
e de renda mais alta etc., abordagens dessa linha não me interessavam, em
absoluto.
Até que um dia, em uma aula de ‘Pesquisa em Educação’
1
, no
PPGE/UFMT
2
, um trabalho apresentado sobre os interesses do jovem leitor e, em
seguida outro, falando sobre a formação da identidade das crianças de rua, me
fizeram brilhar os olhos. Pensei imediatamente sobre o processo de formação,
enquanto leitores, dos adolescentes em situação de risco e marginalidade. Afinal,
como se processaria esta formação, como haviam sido as suas experiências de
leitura em casa, com sua família, se as tiveram ou não, como foram suas relações
1
A Disciplina de Pesquisa em Educação 2003/02 foi ministrada pelas Profª Drª Ana Arlinda de Oliveira e
Lázara Nanci de Barros Amâncio
2
PPGE/UFMT – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso
16
com os textos? A que textos tiveram acesso? Como foi que a escola os preparou
para o mundo através da leitura? Esses adolescentes tiveram acesso a diferentes
suportes de leitura e gêneros textuais? Afinal, no meio da delinqüência
atividades de leitura ou não? E ao serem recolhidos à instituição prisional, como
era o caso de muitos adolescentes, o que lhes era proposto enquanto projeto de
ressocialização abrangia as práticas de leitura? Diferentes perguntas povoaram
minha mente, e, de forma desordenada, saltavam aos meus olhos. A pesquisa
junto aos adolescentes infratores do Lar do Adolescente Fazendinha em Cuiabá
- MT surgia-me como um desafio inevitável à minha formação. Aceitei-o.
Pensar o problema dessa pesquisa foi uma tarefa um tanto quanto
desgastante. Muitas variáveis se entrelaçavam em meio às indagações que
norteavam o problema e o faziam, na maioria do tempo, um tanto quanto
nebuloso. Contudo, o que mais me fazia estar perplexo frente à proposta de
trabalho eram as possíveis relações entre o adolescente infrator e a leitura; elas se
davam? como se davam? Assim, saber em que medida a delinqüência juvenil está
relacionada ao processo de formação do adolescente enquanto leitor ou vice-
versa, constituiu-se em meu problema de pesquisa. Portanto, é em vista de tentar
aproximar-me das respostas a esta questão que procederei à análise dos dados e
informações coletados junto aos meus sujeitos de pesquisa os adolescentes
infratores do Lar do Adolescente – Fazendinha, em Cuiabá – MT.
Assim, para a realização desta pesquisa, muitos caminhos foram trilhados,
obstáculos transpostos, dados encontrados, informações desveladas. Nada disso
se fez sem que um passo após outro fosse dado. São eles que agora trazemos no
roteiro da pesquisa.
1.1 – AS BALIZAS METODOLÓGICAS
Durante muito tempo a investigação quantitativa foi utilizada para a reflexão
sobre o fenômeno educacional como abordagem única. No entanto, tal
abordagem, não conseguiria responder sozinha questões relacionadas a valores,
17
crenças, hábitos, atitudes, representações e opiniões do adolescente infrator
sobre as suas práticas e experiências de leitura; o que requer muito mais do que a
descrição de fenômenos altamente complexos, requer a sua interpretação.
Isto significa tratar de descobrir as características culturais que
envolvem a existência das pessoas que participam da pesquisa, não
porque através delas se pode chegar a precisar os significados
dos aspectos do meio, mas também porque desse ponto de vista
derivam algumas considerações importantes. Com efeito, além de
salientar a necessidade de observar os sujeitos não em situações
isoladas, artificiais, senão na perspectiva de um contexto social,
coloca ênfase na idéia dos significados latentes do comportamento
humano. (Triviños, 1987: 122)
Assim, a abordagem qualitativa instaura-se como um novo paradigma para
as pesquisas em educação, representando a possibilidade de aprofundamento na
complexidade de fatos e processos particulares relativos a indivíduos e grupos,
processos esses que não podem apenas passar por uma quantificação, mas,
sobretudo, exigem a apresentação de dados qualitativos para sua análise e
significação.
Do ponto de vista metodológico, as investigações quantitativa e qualitativa
são de natureza diferente. Consideram ainda que, do ponto de vista
epistemológico, nenhuma das duas abordagens é mais científica do que a outra.
Ou seja, uma pesquisa, por ser quantitativa não se torna “objetiva” e, portanto,
“melhor”. Da mesma forma, uma abordagem qualitativa em si não garante a
compreensão em profundidade de um determinado fenômeno. Em resumo, pode
ser dito que ambas são de natureza diferenciada, não excludente e podem ou não
ser complementares uma à outra na compreensão de uma dada realidade. Se a
relação entre elas não é de continuidade, tampouco elas se opõem ou se
contradizem.
18
Isso posto, cabe evidenciar as características particulares apresentadas
pela investigação qualitativa. Bogdan & Biklen (1994) apontam para cinco
características essenciais da investigação qualitativa:
1. Na investigação qualitativa a fonte directa dos dados é o ambiente
natural, constituindo o investigador o instrumento principal. [...] 2. A
investigação qualitativa é descritiva. [...] 3. Os investigadores
qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente
pelos resultados ou produtos. [...] 4. Os investigadores qualitativos
tendem a analisar os seus dados de forma indutiva. [...] 5. O
significado é de importância vital na investigação qualitativa. (Bogdan
& Biklen,1994: 47-50)
Ludke e André (1986) corroboram categoricamente essas proposições,
reafirmando que o ambiente dos sujeitos pesquisados é a fonte direta de
informações e dados. O pesquisador, apesar dos instrumentos outros de registro,
em contato com este ambiente, é o instrumento otimal para a descrição dos
dados.
Porém, a pesquisa qualitativa não deve enfatizar os produtos, mas o
processo descrito; com isso entende-se que o significado que os sujeitos atribuem
ao que está sendo descrito, neste caso o processo de formação do leitor
adolescente, deve despertar especial atenção do pesquisador. Por isso, na análise
dos dados, a indução deve prevalecer, pois o pesquisador deve partir de um foco
de observação particular para evidenciar conclusões de validade mais ampla, sem,
contudo, ter a pretensão de esgotar as possibilidades de interpretação dos dados
elencados para análise.
A imersão na esfera da subjetividade e do simbólico, firmemente
enraizados no contexto social do qual emergem, é condição essencial para o
desenvolvimento da pesquisa qualitativa. Através dela, pretendemos penetrar nas
intenções e motivos dos adolescentes, a partir dos quais suas ações, experiências
e relações adquirem sentido. Sua utilização é, portanto, indispensável para o tema
19
que pesquisamos, pois eles demandam um estudo fundamentalmente
interpretativo.
Entre suas características, encontram-se: a imersão do pesquisador nas
circunstâncias e contexto da pesquisa, a saber, o mergulho nos sentidos e
emoções; o reconhecimento dos sujeitos de pesquisa como sujeitos que
produzem conhecimentos e práticas; os resultados como fruto de um trabalho
coletivo resultante da dinâmica entre pesquisador e pesquisado; a aceitação de
todos os fenômenos como igualmente importantes e preciosos: a constância e a
intermitência, a freqüência e a interrupção, a fala e o silêncio, as revelações e os
ocultamentos, a continuidade e a ruptura, o significado manifesto e o que
permanece oculto, e, fundamentalmente, como comenta Gil (1999), a busca de um
sentido mais amplo para os dados.
Os elementos da pesquisa interpretativa acima elencados, e que a
caracterizam como tal, foram presentificados por ocasião do adentramento ao
lócus da pesquisa que ora será descrito.
1.2 – O LÓCUS DA PESQUISA
O “Lar do Adolescente Fazendinha”, instituição pública estadual fundada
em 1989 e vinculada à Secretaria de Estado de Segurança, está localizada na Av.
dos Trabalhadores s/n , bairro Planalto, em Cuiabá MT, e destina-se a atender
adolescentes infratores do sexo masculino, de 12 a 17 anos e 11 meses e
excepcionalmente até 21 anos, que estão sob regime de internação por
determinação judicial.
dois grandes espaços na estrutura física que envolve os adolescentes;
um ligado estritamente às questões de cumprimento da pena e o outro ligado às
questões que garantem o direito à educação.
20
Entrada do Complexo Pomeri onde se localiza o Lar do Adolescente - Fazendinha
(PORRUA, 2003)
1.2.1 – Os espaços das penas
O primeiro desses espaços divide-se em dois ambientes: o Centro
Acautelatório, nominado “C.A.” para onde o adolescente é enviado pelo Juizado e
aguarda seu julgamento. Nesse lugar, o adolescente pode passar a 45 dias
aguardando o julgamento.
O outro ambiente é a “Internação” para onde o adolescente é levado após
ser julgado e condenado. Segundo prescreve o Estatuto da Criança e do
Adolescente, de agora em diante nominado apenas como ECA, A internação
constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios da brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
(Art. 121. ECA)
As medidas a que os adolescentes estão submetidos não podem ser
cumpridas em qualquer lugar, num presídio ou delegacia, por exemplo, ou mesmo
em outras entidades como amparos sociais e similares. Uma vez determinada, a
21
medida de internação deve ser cumprida em local adequado ao acolhimento
desses adolescentes.
A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para
adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo,
obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição
física e gravidade da infração. (Art. 123. ECA)
Placa indicativa do acesso ao Lar do Adolescente e ao Centro Acautelatório
(PORRUA, 2003)
O Centro Acautelatório C.A. possui apenas uma ala com 8 celas com
capacidade para aproximadamente 50 adolescentes divididos entre elas; na
Internação 4 alas de tamanhos diferentes separadas entre si por outras
estruturas. Cada ala possui capacidade para abrigar de 15 a 20 adolescentes.
22
Portão de entrada e muro de 5 metros de altura do Lar do Adolescente
(PORRUA,2003)
1.2.2 – Escola na Prisão: As salas das aulas
3
A fim de atender uma exigência legal da internação do adolescente, em um
espaço à parte, entre o C.A. e a Internação, localizam-se as salas das aulas e os
demais espaços que visam atender as necessidades escolares dos adolescentes.
Esses espaços são garantidos no que reza o inciso XI do Art. 124 do ECA sobre
os direitos do adolescente privado de liberdade, pois, esse deve receber educação
e profissionalização.
Tendo em vista essa determinação legal, no interior do Lar do Adolescente
existem salas anexas da Escola Estadual “Meninos do Futuro” que atendem tanto
aos adolescentes já condenados e que cumprem suas penas na Internação do Lar
do Adolescente, como outros adolescentes que estão no Centro Acautelatório -
C.A. aguardando a determinação judicial para cumprimento de pena ou soltura.
3
A terminologia “salas das aulas” refere-se intencionalmente ao espaço onde as aulas são ministradas;
espaços estes que não foram planejados com tal intenção, mas apenas adaptados, por isso a adoção do termo.
23
Conforme o Projeto Político Pedagógico datado de junho de 2002, a Escola
Estadual “Meninos do Futuro” foi criada pelo Decreto Lei 404 de 22/09/95, e
autorizada pela resolução 027 de 14/02/1997. É mantida pelo governo do Estado
de Mato Grosso, através da Secretaria de Estado de Educação, e tem sua
autorização renovada a cada três anos. A escola se destina à educação básica, na
forma presencial, de crianças e adolescentes em situação de risco compreendidos
os adolescentes e crianças excluídos do sistema de ensino e de todo contexto
social, dentre eles os adolescentes infratores.
Para tanto, são oferecidas quatro salas para aulas de aproximadamente 30
m
²
, onde são disponibilizadas carteiras escolares e quadro de giz. As salas
possuem aberturas de três metros de largura no lugar das portas em frente das
quais se posicionam de dois a quatro “orientadores”
4
devidamente acompanhados
de seus cacetetes
5
e espalhados por todo o corredor. As salas possuem pequenas
janelas gradeadas que não possibilitam a suficiente entrada de luz natural e
ventilação, por isso nas salas ventiladores e luz artificial que estão
constantemente ligados.
As salas recebem de 15 a 20 adolescentes assim distribuídos: 01 turma
de a séries, 01 turma de série, 01 turma de a 8ª séries, uma turma de
ensino médio regular e supletivo e uma turma especial que atende aos
adolescentes do seguro
6
,
Quantidade
de turmas
Escolaridade
atendida
Período de
funcionamento
01 1ª a 4ª séries Matutino (08:00 – 11:30)
01 5ª série Vespertino (13:30 – 17:00)
01 6ª a 8ª séries Vespertino(13:30 – 17:00)
01 Ensino Médio (regular e supletivo) Vespertino(13:30 – 17:00)
01 Especial (seguro) Matutino (10:00 – 12:00)
4
Orientador é o nome dado à pessoa que é contratada para tomar conta dos adolescentes em recuperação e
têm as atribuições relativas à função de carcereiro.
5
Os cacetetes são uma espécie de porrete de madeira ou outro material de boa durabilidade utilizados na
vigilância diária e para a coerção dos adolescentes.
6
Seguro é o lugar onde estão os adolescentes que correm risco de morte na instituição por parte de outros
adolescentes, e que se forem colocados no convívio com os demais podem sofrer atentados às suas vidas.
24
Para os adolescentes estupradores (02) e assassinos compulsivos (01)
as aulas são dadas na sala dos professores por um professor que os atende
individualmente. As atividades pedagógicas, quaisquer que sejam, são sempre
acompanhadas pelos “orientadores”, tanto as atividades com grupos maiores
quanto aquelas destinadas aos pequenos grupos.
As aulas têm duração de aproximadamente três horas e meia e acontecem
todos os dias de segunda a sexta-feira, durante a manhã para algumas turmas e à
tarde para outras.
1.3 – Os Sujeitos da Pesquisa
No momento em foram iniciadas as observações e pesquisa documental a
respeito dos adolescentes acautelados ou internados no Lar do Adolescente
Fazendinha em Cuiabá, foram encontrados setenta e dois (72) adolescentes. Em
31/12/2003 o perfil desses adolescentes assim era constituído:
Quanto à idade:
Nº internos
Percentual %
14 anos 04 5,5
15 anos 04 5,5
16 anos 11 15,2
17 anos 32 44,5
18 anos 15 20,8
19 anos 03 4,1
Não declarado 03 4,1
Total 72 100%
25
Quanto à procedência:
Procedência
Nº internos
Percentual %
Alta Floresta 03 4,1
Barra do Bugres 02 2,7
Cáceres 01 1,3
Cuiabá 45 62,5
Jaciara 01 1,3
Juara 02 2,7
Juscimeira 01 1,3
Nobres 01 1,3
Peixoto de Azevedo 01 1,3
Poconé 01 1,3
Primavera do Leste 01 1,3
Rosário Oeste 01 1,3
São José do Rio Claro 01 1,3
Sinop 01 1,3
Várzea Grande 07 9,7
Vila Bela 01 1,3
Não declarado 02 2,7
TOTAL 72 100%
Quanto à infração cometida:
Infração Nº internos Percentual %
Ato Libidinoso 01 1,3
Estupro 02 2,7
Furto 06 8,3
Homicídio 19 26,3
Latrocínio 05 7,0
Porte de Arma 01 1,3
Roubo 43 59,7
Tentativa de Homicídio 09 12,5
Tráfico 01 1,3
TOTAL 72
26
Quanto à escolaridade:
Escolaridade
Nº internos Percentual %
Analfabeto
01 1,3
1ª série
05 7,0
2ª série
04 5,5
3ª série
05 7,0
4ª série
12 16,6
5ª série
17 23,7
6ª série
09 12,5
7ª série
03 4,1
8ª série
06 8,5
2º Grau
02 2,7
Supletivo
05 7,0
Não declarado
03 4,1
TOTAL
72 100%
1.4 – As técnicas e os instrumentos de pesquisa
Toda pesquisa é um processo que se ampara em fundamentos racionais e
sistemáticos, objetivando proporcionar respostas aos problemas propostos, neste
caso específico evidenciar a relação entre a delinqüência juvenil e o processo de
formação do leitor. A pesquisa é desenvolvida com o uso dos conhecimentos
disponíveis e a utilização cuidadosa de todos, cnicas e instrumentos
científicos. Com base nos procedimentos técnicos utilizados, a pesquisa que
realizamos é de cunho bibliográfico/documental, e ampara-se na observação e
nos levantamentos, pois
... sem dúvida alguma, o pesquisador qualitativo, que considera a
participação do sujeito como um dos elementos de seu fazer
científico, apóia-se em técnicas e métodos que reúnem
características sui generis, que ressaltam sua implicação e da
pessoa que fornece as informações. (Triviños, 1987: 138)
27
A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida, segundo o que sugere Gil (1999)
a partir de produções elaboradas, constituídas principalmente de livros e artigos
científicos, que permitem explicitação de um dado fenômeno e como ele se
manifesta em outros tempos e espaços, fundamentalmente com outros sujeitos.
Para tanto nos debruçamos sobre os trabalhos de Campos (1984), Queiroz (1984)
e (1985), Strauss (1994), Waiselfisz (1998) e Silva (1998), que falam sobre
adolescentes em situação de risco social, particularmente no contexto da
delinqüência.
Enquanto a pesquisa bibliográfica utiliza a contribuição de diversos autores
sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se de materiais que não
receberam ainda um tratamento analítico, sendo a natureza das fontes a única
diferença entre ambas. Para essa pesquisa foram acessados o Projeto Político
Pedagógico da Escola Estadual Meninos do Futuro, as diretrizes que orientam o
programa de ressocialização dos adolescentes, elaborado por um corpo técnico
da PROSOL e as fichas psico-sociais dos adolescentes.
Usualmente a pesquisa qualitativa emprega a observação do
desenvolvimento de determinada situação.
Observar, naturalmente, não é simplesmente olhar. Observar é
destacar de um conjunto (objetos, pessoas, animais etc) algo
especificamente, prestando, por exemplo, atenção em suas
características (cor, tamanho etc.). Observar um “fenômeno social”
significa, em primeiro lugar, que determinado evento social, simples
ou complexo, tenha sido abstratamente separado de seu contexto.
(Triviños, 1987: p.153)
Evidenciamos nesse instrumento dois aspectos de natureza metodológica
que, segundo Triviños (1987) são muito importantes. O primeiro diz respeito à
amostragem de tempo e o outro à anotação de campo.
A amostragem de tempo diz respeito a escolha dos dias em que se dão as
atividades em que estamos interessados em verificar e dentro delas os aspectos
específicos de nossa observação. No caso dessa pesquisa sobre as práticas de
28
leitura do adolescente infrator, descobrimos os dias em que havia aulas de Língua
Portuguesa e realizamos as observações nesses dias impreterivelmente. Foram
observadas doze (12) aulas na sala da série e doze (12) aulas na sala da a
séries. Dentro das várias atividades propostas durantes as aulas foram
destacadas as que estavam diretamente ligadas às práticas de leitura. Dessa
forma, as observações foram realizadas utilizando-se a técnica da amostragem de
tempo.
Outra técnica a que se refere Triviños (1987) é a anotação de campo que é
o registro de informações durante a observação. As diferentes conceitualizações
sobre as anotações de campo apontam na direção de uma “descrição por escrito
de todas as manifestações (verbais, ações, atitudes etc.) que o pesquisador
observa no sujeito; as circunstâncias físicas que se considerem necessárias e que
rodeiam a este.” (Triviños, 1987: p.154)
No entanto, como a pesquisa configura-se essencialmente como qualitativa
e interpretativa não poderia furtar-se do levantamento que segundo Gil (1999) “...
se caracteriza pela interrogação direta das pessoas cujo comportamento se deseja
conhecer” (Gil, 1999: 70). Normalmente seleciona-se uma amostra significativa, e
as conclusões obtidas a partir dessa amostra são projetadas para a totalidade do
universo. Suas vantagens são o conhecimento direto da realidade, nesse contexto
as práticas de leitura dos adolescentes; a rapidez na obtenção dos dados
desejados e, fundamentalmente, a possibilidade de quantificar alguns dados, côo
fizemos mediante a apresentação de tabelas.
Um instrumento de grande importância utilizado nessa pesquisa, sem
sombra de dúvida, é a entrevista. Portelli (1997) nos lembra que a palavra
entrevista, em uma grande diversidade de situações, - incorretamente - a idéia
de uma perspectiva unilateral. No entanto, “entre-vista”, como o próprio nome diz,
comporta mais do que uma única perspectiva. Como nos dizem Martins & Bicudo
(1989), a entrevista pode ser construída como um “encontro social”, cujas
características, entre outras, seriam a empatia, a intuição e a imaginação; ocorre
29
nela uma penetração mútua de percepções, sentimentos, emoções. para Gil
(1999) essa entrevista aberta ele prefere chamar de informal e diz que
... o que se pretende com esse tipo de entrevista é a obtenção
de uma visão geral do problema pesquisado, bem como a
identificação de algum aspecto da personalidade do
entrevistado. (Gil, 1999: 119)
Para esse primeiro contato pessoal entre o pesquisador e os pesquisados,
foram selecionados, para entrevista aberta ou informa,l trinta e dois (32)
adolescentes dos setenta e dois (72) presentes no Lar do Adolescente
Fazendinha. Os trinta e dois (32) adolescentes entrevistados eram alunos da a
série do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. A escolha foi realizada em
virtude de estarem todos estudando em um mesmo horário, o que facilitaria o
acesso às observações de suas práticas de leitura em sala de aula, bem como de
outras atividades em um horário diferente e diferentes locais.
De fato, todas as entrevistas são formas especiais de conversação e, nesse
sentido, interativas, pois, conhecimentos e significados são ativamente construídos
no próprio processo da entrevista. Entrevistador e entrevistado são, naquele
momento, co-produtores de conhecimento. A participação, nesse nível de
interação, envolve ambos em um trabalho de produção de sentido, processo este
que é tão importante para a pesquisa quanto o sentido produzido.
Pode-se, assim, tentar fazer o discurso escrito o mais fiel possível ao
discurso falado. No entanto, fica muito presente que, assim como os sonhos têm a
ver com o sonhador, as narrativas nos remetem ao narrador, elas igualmente
revelam-se àquele que as interpreta e busca captar-lhes forma e sentido.
Nesse meio tempo, cinco (05) dos adolescentes saíram da nossa pauta
enquanto sujeitos de pesquisa. Três (03) deles ganharam liberdade e dois (02)
empreenderam fuga. Não pensamos em substituí-los, pois acabariam
30
descaracterizando o grupo. Seguimos a pesquisa com vinte e sete (27)
adolescentes.
Algumas informações ficaram obscuras e superficiais, nos fazendo recorrer
ao questionário aplicado como uma forma de conhecer as opiniões dos
adolescentes sobre a leitura, suas crenças nos valores difundidos por tal atividade,
os sentimentos brotados do percurso de leitura, os interesses que possuem acerca
da leitura e algumas situações por eles vivenciadas; por isso a utilização do
questionário esteve ligada objetivamente à necessidade de obtenção desses
dados a respeito dos sujeitos. Assim, utilizamos um questionário de vinte e nove
(29) questões feitas para os vinte e sete (27) adolescentes.
O resultado dessa investigação preliminar, realizada através das perguntas
do questionário, revelou dados específicos que nortearam a elaboração da
entrevista semi-estruturada ou por pautas, como prefere Gil (1999): “A entrevista
por pautas apresenta certo grau de estruturação, que se guia por uma relação
de pontos de interesse que o entrevistador vai explorando.” (Gil, 1999: 120). Sem
a realização do questionário algumas questões da entrevista poderiam ter ficado
sem a riqueza de detalhes que apresentaram. E esse foi o próximo passo dado.
Para a entrevista semi-estruturada, ou por pauta,s selecionamos seis (06)
dos adolescentes entrevistados, aproximadamente 20% do universo inicial de
entrevistados. A redução do número de sujeitos e a escolha dos seis
colaboradores finais resultaram de dois motivos principais: o primeiro diz respeito
à recorrência das respostas e condições encontradas nos relatos sobre as práticas
de leitura, o que nos levou a ter elevado número de informações repetidas, o
segundo motivo está ligado à disponibilidade dos sujeitos em estarem
aprofundando as informações que precisávamos em nova entrevista e a
capacidade de relatar essas informações de modo mais preciso e coerente.
Para alguns tipos de pesquisa qualitativa a entrevista semi-estruturada é
um dos principais meios para a realização da coleta de dados, pois ela, conforme
nos diz Triviños (1987), ao mesmo tempo em que valoriza a presença do
31
investigador, também oferece liberdade suficiente ao sujeito para que este
espontaneamente enriqueça a investigação.
A entrevista semi-estruturada partiu de alguns questionamentos básicos,
mas que não nasceram simplesmente a priori da investigação, mas como
resultado das várias informações recolhidas. Assim, seu valor está justamente
em dar ao pesquisador e ao sujeito pesquisado autonomia suficiente para tratar a
informação de um modo capaz de ser incrementada quando necessário.
Para que isso pudesse ser garantido, escolhemos os adolescentes com
maior possibilidade de expressão e que foram mais receptivos à colaboração com
a pesquisa. Foram feitas 17 questões de amplo debate que versaram sobre as
experiências de leitura do adolescente infrator, desde aquelas constituídas no
ambiente familiar e escolar, até outras evidenciadas no ambiente de privação de
liberdade em que se encontrava o adolescente, e que se constituem num foco
especial de interesse para a pesquisa.
As entrevistas foram gravadas e transcritas. Em todas as suas falas, tanto
nas entrevistas como no questionário, os adolescentes são identificados por
apelidos por eles mesmos escolhidos que se relacionam ou não com sua vida
pessoal enquanto interno no Lar do Adolescente – Fazendinha, em Cuiabá - MT.
32
II – AS CENAS DA LEITURA
A leitura da palavra é sempre prescedida
pela leitura do mundo. E aprender a ler, a
escrever, alfabetizar-se é, antes de mais
nada aprender a ler o mundo ...
Paulo Freire
Dentre outros possíveis conceitos, a leitura é uma forma de atribuição de
sentido ao universo de significações possíveis e, enquanto houver alguma forma
de produção de texto, a leitura terá o seu futuro garantido, mesmo nas mais
adversas situações, como as que encontramos no Lar do Adolescente
Fazendinha, em Cuiabá MT, lócus de nossa pesquisa. Assim, quando pensamos
em leitura, imediatamente nos remetemos à diversidade de textos produzidos no
mundo, e todos eles destinados à leitura e acessados pelos mais diferentes
leitores, dentre eles jovens e adolescentes de diferentes raças e credos, situação
social e econômica, livres ou encarcerados como o são os nossos sujeitos.
Em diferentes partes do mundo a leitura possui importância, mas seu papel
tem lugares diferentes na cultura de um povo. Muitos países, como França,
Inglaterra e Chile, possuem a leitura como um hábito atrelado aos costumes de
seu povo; nesses países a formação de leitores está ligada às práticas definidas
pela família e continuadas na formação escolar. Contudo, em outros países, essas
práticas nem sempre possuem um lugar comum, seja por que motivo for, desde
passar o tempo, até a capacitação frente a importantes decisões. Dentre os países
sem tradição de leitura e mesmo estando o índice de analfabetismo decrescendo,
o Brasil aparece entre aqueles de baixo índice per capto na relação habitante/livro
adquirido, com sensível melhora nas últimas décadas.
33
Não obstante a esse fato, alguns indicadores mundiais apontados por
Petrucci (1999), nos mostram que a alfabetização das massas está em
crescimento, contudo, continua aumentando o número de analfabetos, devido ao
aumento demográfico mundial descontrolado e também, por que não dizer, pela
ineficácia da escola na formação de leitores. O analfabetismo continua se
alastrando devido a razões políticas, ideológicas e à baixa renda das populações
de países bastante povoados. Contudo, a produção de livros vem se alastrando
pelo mundo todo, bem como a produção de jornais e periódicos e o empréstimo de
livros nas bibliotecas públicas. Parecem realidades paradoxais, mas não são.
Vamos entendê-las no decorrer de nossa discussão.
2.1 - A LEITURA NO OCIDENTE
Antes mesmo de a escrita ser inventada, todos os povos tinham à mão um
poderoso instrumento de preservação de sua cultura: a tradição oral. Com o
advento da escrita, os povos passam a ter mais uma forma eficiente de registro de
suas histórias, de sua memória e de tudo que o constitui como povo.
As formas de registro da língua evoluem e as técnicas para que
efetivamente ocorra o registro também são substituídos rapidamente, exigindo
cada vez mais novas tecnologias. Essa dinamicidade ocorre por ser a língua um
organismo vivo e em constante evolução dentro da sociedade que a vivifica.
Concomitantemente às formas de registro, o desenvolvimento das práticas de
leitura está ligado à implementação dessas novas tecnologias capazes de
multiplicar as publicações do que é registrado e oferecer, a um público cada vez
maior, uma variedade cada vez maior de informações, sem contudo serem
possíveis de acesso à grande parte da comunidade marginalizada e alienada
desse direito fundamental.
A difusão de textos não depende necessariamente de sua impressão, pois
podem ser difundidos através de cópias manuscritas, principalmente panfletos
políticos, artigos clandestinos e composições de diferentes gêneros feitos de
34
maneira artesanal, muito utilizados na década de 60, por exemplo, na ditadura
militar. Todavia, essa tecnologia aos poucos foi se tornando obsoleta,
principalmente com o avanço das técnicas e pela necessidade de atingir cada vez
mais público. Com a popularização dos textos escritos, observou-se que a leitura
poderia ser feita de forma individual, silenciosa e solitária, enquanto na tradição
anterior as leituras eram feitas em alta voz e difundidas por via oral e comunitária,
e não por via impressa.
A leitura em voz alta denota uma sensível mudança na conduta dos leitores
e em seu comportamento. Leitores que exerciam sua atividade de leitura somente
em voz alta, pois os textos eram muito mais escassos e por isso deveriam ser
socializados ao máximo, agora poderiam ter a oportunidade de fazer suas leituras
em silêncio, o que a torna mais reflexiva. A evolução da leitura, evidenciada pela
passagem de uma leitura sonora para uma leitura visual, deu-se no Ocidente
através da evolução tecnológica que permitiu a popularização e o barateamento
da reprodução dos textos.
Pode-se ver uma evidência, a contrário, dessa evolução nas
sociedades ocidentais de hoje, nas quais as pessoas são
consideradas iletradas não somente pelo fato de não poderem ler de
modo algum, mas também pelo fato de serem capazes de
entender um texto quando o lêem em voz alta. (Chartier, 1999: 23)
Na Idade Média, os livros eram raros e limitados, portanto eram lidos,
memorizados e recitados sob uma aura de mistério e sacralidade, o que lhes
conferia sobremaneira um caráter de autoridade. Com o advento da impressão, o
livro tornou-se algo mais comum e vulgar, perdendo um pouco de sua dimensão
divina, pois os leitores poderiam acessar essas leituras sem muitas cerimônias;
fato que não se repete no ambiente carcerário, onde o livro, apesar de não ter
mais a aura de sagrado, continua sendo um bem precioso e disputado avidamente
pelos adolescentes, talvez não pela importância que possui em si mesmo, mas
pelo que pode proporcionar como mercadoria essencial no exercício de poder nas
barganhas realizadas pelos grupos.
35
Mesmo tendo maiores possibilidades de escolha do que poderiam ler, os
leitores, até meados do século XIX, ainda eram levados a escolher suas leituras
com base nos modelos antigos de leitura, os chamados cânones
7
. Suas escolhas
eram feitas pelo reconhecimento que faziam das obras através da tradição. Assim,
os hábitos de leitura dos leitores mais populares foram direcionados por antigos
modos. No final do século XIX, com o desenvolvimento das escolas, o aumento
nas taxas de alfabetização e a diversificação dos títulos editados, esses modos
vieram a sofrer algumas mudanças de postura que permitiram o incremento de
novas práticas de leitura.
Com o advento da industrialização, surgiram novas classes de leitores: as
mulheres, as crianças e os trabalhadores. Todos esses segmentos foram alvos de
um intenso processo de massificação pela definição de uma forma única de ler,
controlada e codificada para todos. Em sua origem também havia a necessidade
de letrar minimamente a classe trabalhadora para que essa desempenhasse o
melhor possível os seus afazeres. Tais procedimentos não impediram a
disseminação de textos alternativos que passaram a fazer parte do cotidiano das
pessoas. Além da leitura oficial, uma leitura de “submundo” era feita através do
intenso comércio de impressos, inspirando o aumento da diversidade das práticas
de leitura. Além disso, o aumento dos títulos oferecidos e, portanto, do público
leitor, nos levam a pensar na influência que esses textos levam aos leitores, os
efeitos que a leitura pode causar.
2.2 – OS EFEITOS DA LEITURA
Não podemos negar os inúmeros benefícios que a leitura pode trazer ao ser
humano, desde tornar os sujeitos mais cultos, até proporcionar-lhe maior
consciência crítica e torná-lo cidadão. estão as premissas que fundamentam as
mais diversas campanhas de fomento à leitura de que temos notícias.
7
Segundo Petrucci (1999), cânone é um rol de obras a serem lidas, estabelecido de forma a ser
rígido o suficiente para reproduzir os valores ideológicos, culturais e políticos de uma sociedade de
forma a assegurar a manutenção do pensamento e do status quo desejados.
36
Mas nem sempre foi assim; conforme Abreu (1999), campanhas contrárias
à leitura estiveram presentes em vários momentos históricos e tentaram dissuadir
os leitores de tão perigosos hábitos, pois os livros eram portadores de um “veneno
lento”; uma ideologia veiculada até os nossos dias e, particularmente percebida
nas atitudes ‘desmotivadoras’ das práticas de leitura encontradas nos discursos de
alguns profissionais ligados à execução das penas dos adolescentes sujeitos
dessa pesquisa. Alguns autores chegam a elencar alguns malefícios físicos
vinculados à prática da leitura, chegando a ser recomendado por alguns médicos
que a leitura deveria ser substituída por exercícios físicos mais constantes.
Algumas leituras deveriam mesmo ser combatidas por serem perigosas
para a alma, pois colocavam em risco a moral do leitor através de idéias que
estimulavam a imaginação, a falta de pudor e a desonestidade, corrompendo os
valores sociais. Essas leituras eram realmente perigosas, pois poderiam
estremecer a ordem social.
O poder de alterar comportamentos, atribuído à leitura, não era, em
si, um mal. O problema advinha do fato de que os livros não
ensinavam apenas atitudes recomendáveis. Eles corrompiam a
inocência, afastavam a virtude, favoreciam o crime, pois as pessoas
desejavam transpor para a vida real aquilo que leram nos livros.
(Abreu, 1999: 12)
Como o terreno da moralidade está muito próximo da religião, diversas
campanhas foram realizadas para afastar os homens da leitura, chegando-se a ser
defendido, no século XVIII, que haveria mais maldade naquilo que era escrito do
que nos atos e nas falas. “Tal preocupação levou, como se sabe, ao empenho em
censurar, controlar e proibir a composição, publicação, venda e posse de livros
tidos como inconvenientes.” (Abreu, 1999: 13)
Logo as preocupações chegaram às esferas políticas, pois se a leitura
poderia fazer mal ao poder religioso, poderia trazer malefícios também aos
governantes e às suas formas de governar. A leitura poderia fazer aparecer as
37
desigualdades sociais, gerando descontentamentos e comportamentos de não
subordinação aos ditames sociais. Em outras palavras, seria um perigo deixar ao
pobre o livre acesso à leitura e à escrita. Eis o fundamento que dirige a total
ausência de propostas efetivas de leitura e de formação do leitor no cárcere: a
manutenção e o cumprimento da ordem.
O desejo de manutenção da ordem social estabelecida esteve na origem de
muitas campanhas de perseguição aos livros e aos leitores. Hoje, amplia-se o
mercado editorial e se incentiva a leitura, mas, muitas vezes, o que é colocado
como opção de leitura é bastante incipiente, quase o mesmo que não se estivesse
lendo nada. Ocupados com leituras amenas, os sujeitos não se interessariam em
estar questionando a ordem vigente, o que, de certa forma, asseguraria o status
quo das instituições.
Por outro lado, um grande aumento na venda de livros; contudo, o que
tem sido lido em grande quantidade é a literatura de auto-ajuda, quadrinhos, livros
sobre astros da televisão e cinema, histórias eróticas e livros de piadas, únicos
gêneros amplamente ‘contrabandeados’ para dentro do cárcere. É essa a
literatura que compõe o novo cânone, dentro e fora dos muros do rcere, e que
não contempla e nem assegura a disseminação de alguns valores culturais,
políticos e religiosos básicos para a convivência em sociedade, e por que não
dizer, para o programa de ressocialização do adolescente infrator.
O repúdio ou o estímulo à literatura podem ser bem
compreendidos se forem examinados os objetos que se tomam para
ler e sua relação com questões políticas, estéticas, morais ou
religiosas nos diferentes tempos e lugares em que homens e
mulheres, sozinhos ou acompanhados, debruçaram-se sobre textos
escritos. A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é
espaço de poder. (Abreu, 1999: 15)
Assim, a leitura pode ser um instrumento eficiente e eficaz para a realização
de inúmeros projetos, para tanto temos que saber o que fazer com ela, afinal, os
valores da leitura apontados pela classe dominante, segundo Soares (1982) são
38
diferentes da classe dominada. Para aquela, leitura é fruição e prazer, ampliação
de horizontes e experiências, para exata, é um instrumento que pode auxiliar nas
melhorias das condições de vida. Para quem, portanto, há crise na leitura?
Os principais indicadores da crise de leitura, com percebemos em dados do
ENEM, por exemplo, é o contínuo mau desempenho e aproveitamento dos
estudantes. Talvez porque observemos dois tipos diferentes de educação. Uma
educação dirigida às massas, que privilegia o ensino voltado para a preparação
para o mercado do trabalho e outra à elite, que proporciona à sua clientela a
inserção em um universo de tradição e cultura bastante amplo.
Para essas duas clientelas distintas, segundo Robert Pattison (Appud
Chartier, 1999), em pesquisa realizada nos Estados Unidos, a leitura tem um lugar
bastante diferente. Para os adolescentes de situação econômica menos
privilegiada, a leitura ganha um tom de marginalidade, está sempre relegada ao
descaso e ao esquecimento, o que está em primeiro plano são os jogos
eletrônicos, a música (rock, rap, funk), o cinema e a TV; enquanto para os
adolescentes em situação econômica privilegiada, o acesso às mídias é realizado
apenas como complemento do acesso que possuem ao cinema e ao teatro de boa
qualidade, aos livros que lêem, à boa música que ouvem.
Talvez no Brasil o se exatamente dessa forma, pois nem sempre o
poder aquisitivo garante o desenvolvimento de práticas de leitura e a formação de
leitores, pois tais comportamentos estão muito mais ligados às práticas culturais
do que às práticas de consumo e aquisição de suportes de leitura. Conforme
pesquisa realizada por Aguiar (1979) junto às preferências de leitura de jovens e
adolescentes
8
, percebemos que os tipos e gêneros apontados por ele são
bastante comuns, não evidenciando uma significativa discrepância de suas
escolhas devido às condições econômico-financeira, como apontou a pesquisa
americana.
8
A pesquisa de Aguiar (1979) foi realizada com jovens e adolescentes de a séries do ensino
fundamental e relacionou idade, sexo e nível econômico dos mesmos Ás suas preferências de
leitura. Os resultados estão publicados na obra “Que livro indicar? Interesses do leitor jovem.”,
relacionado na bibliografia desta pesquisa.
39
Os adolescentes de menor favorecimento econômico costumam ler
narrativas contemporâneas, histórias em quadrinhos, materiais pornográficos e de
ficção científica. Ninguém pode dizer que não em. Realmente, se olharmos por
esse prisma a indústria editorial nunca esteve tão promissora, pois esses materiais
têm sua venda garantida, não lhes falta público; um público que discordamos ser
formado apenas por adolescentes menos favorecidos economicamente, pois pelo
que pudemos evidenciar até agora, a busca por esses suportes de leitura não
respeita classe social. A crise então, tão anunciada, não é de leitura, mas de boa
leitura, não é do mercado editorial, mas do bom mercado editorial
9
. É em meio a
essa crise que o gosto do leitor é formado.
2.3 - A FORMAÇÃO DO LEITOR E DO GOSTO PELA LEITURA
As reflexões de Magnani (2004) nos permitem resgatar múltiplas afirmações
cruciais para discutirmos a formação do leitor; dentre elas a de que o leitor inicia a
sua formação por meio de uma série de diferentes aprendizagens que precisam
ser colocadas frente ao sujeito, não de forma natural ou espontânea, mas
intencionalmente. É dessa forma que se aprende a ler e a gostar de ler. Se ao
sujeito são ofertadas leituras triviais, que apenas vão ao encontro dos seus
prazeres e desejos mais imediatos, como esperar que outro gosto se forme?
Segundo Magnani (2004)
[...] o gosto pela leitura, não é um dado da "natureza humana",
imutável e acabado, e sua formação tem a ver com as necessidades,
com o tempo e com o espaço em que se movimentam pessoas e
grupos sociais. (Magnani, 2004: 1)
9
Conforme Chartier (1999) considera-se boa leitura, aquela que oferece ao seu leitor perspectivas
de enfrentamento do mundo e não de alienação. Considere-se bom mercado editorial aquele que
preocupa-se em colocar no mercado obras e autores que não escrevam apenas preocupados com
o comércio de seu produto, mas com a condição existencial de seus leitores e sua relação com a
realidade que o cerca.
40
Dentre os papéis e funções da aprendizagem, enquanto atividade não
espontânea, o lugar da formação do leitor, dimensão fundamental do
desenvolvimento do sujeito. Tendo em vista esse aspecto, muitos projetos de
leitura e formação do leitor o pautados em uma pedagogia da facilitação e da
"não-castração" dos interesses dos alunos. No entanto,
tais práticas parecem muito mais estar servindo para a
confirmação do gosto estabelecido, ou seja, para um
conformismo educacional e cultural, discrepante em relação
aos objetivos explicitados de "despertar o espírito crítico do
aluno", "transformar a sociedade" etc. (Idem)
E é justamente este aspecto, acima descrito que percebemos ser evitado e
combatido no programa de ressocialização vivido pelos adolescentes do Lar do
Adolescente – Fazendinha em Cuiabá MT.
O que acontece no processo de formação do gosto, principalmente na
escola, é que uma gama incontável de textos é escolhida tendo como base o
gosto dos alunos e o seu regozijo. Todavia, nos esquecemos de que a formação
de gosto também traz consigo as fortes marcas de um aprendizado de leitura
realizado a partir do contexto social em que vivem esses sujeitos, e dos valores
culturais disseminados naquele contexto, mas que não pode construir-se apenas
desses aspectos. E é assim que se justifica a escolha e a apresentação de textos
conformistas que tendem a imobilizar o gosto e a formar não leitores, mas
consumidores da trivialidade histórica, lingüística, literária, cultural e política.
Leitura não é um ato isolado e "virgem" de um indivíduo ante
ao escrito de outro indivíduo. Supõe a decodificação de sinais
e propõe a imersão no contexto social da linguagem e da
aprendizagem, através da compreensão do discurso de
outrem, ambos (leitor e autor) sujeitos – com suas respectivas
histórias de leitura relacionadas às do texto responsáveis
por um trabalho de construção de significados de, com e
sobre a linguagem. [...] compreendida como lugar de
interação humana e social, constitui a si e ao sujeito nesse
trabalho de leitura. (Magnani, 2004: 02)
41
A leitura, vista desse prisma, torna-se então um trabalho coletivo, realizado
entre sujeitos com objetivos conscientes e não uma ação realizada nos ‘cantos’,
onde os sujeitos lêem como se fosse um ato de subversão. A aprendizagem de
leitura desenvolve-se no contato, na inter-relação entre os sujeitos envolvidos com
o texto. Mas, se faz necessário que a aprendizagem signifique um desafio de
conhecer o que não se sabe – o novo –, e não apenas supervalorizar aquilo que o
sujeito já sabe.
De outro modo, podemos dizer que as práticas de leitura que vivem apenas
da reflexão do conhecimento imediato, isto é, de temáticas voltadas
exclusivamente à reflexão da realidade subjetiva, na maioria das vezes o
conseguirão apontar para a superação dessas condições de existência,
potencializando o desenvolvimento do sujeito. As propostas de leitura e de
formação de leitor somente obterão êxito se houver perspectivas, modelos a
serem seguidos, um vir-a-ser perene que é buscado dialogicamente através de
sucessivas aproximações do que fora planejado, desejado, idealizado.
Por ocorrer no contexto da interação social (e histórica), o
trabalho de construção de conhecimento se agita na tensão
constante entre reprodução e produção de significados.
Mas, os modelos são históricos. E valorizar o aluno é
auxiliá-lo (como professor/sujeito que também constrói e se
forma) a conhecer essas contradições e avançar na
consciência de seu processo de constituição como sujeito (e
não consumidor) das determinações históricas e seus
conflitos e suas transformações. (Magnani, 2004: 04)
Da mesma forma que o gosto pode ser aprendido, também pode ser
ensinado, afirma Magnani (2004). A aprendizagem comporta uma dimensão não-
espontânea, necessita e pressupõe algum tipo de intervenção intencional e
construtiva; e é exatamente nessa intencionalidade que pensamos quando
refletimos sobre os programas que deveriam compor efetivamente as políticas de
ressocialização dos sujeitos postos sob a responsabilidade do sistema prisional.
Mas, a formação e a transformação de atitudes e comportamentos, dentre elas as
42
do gosto, não se dá de forma mágica, mas com sucessivas aproximações em vista
do rompimento com o estabelecido e a proposição de buscas que apontem para
constantes avanços. Para isso é preciso problematizar o conhecido,
transformando-o num desafio que proporcione um olhar dinâmico para a realidade.
Desse ângulo, a leitura, enquanto processo de construção de conhecimento,
requer procedimentos didático-pedagógicos que propiciem esse movimento de
troca entre o texto e o sujeito.
Outro ponto a ser refletido é que a leitura não acontece isolada. Portanto, a
formação do leitor envolve também a diversidade como princípio norteador da
seleção e utilização dos textos literários e da reflexão sobre o desenvolvimento
dos sujeitos/alunos, para um aqui e agora e para um vir-a-ser que se constroem.
As leituras de que os alunos gostam de fazer, porque de certa maneira os
constituem, podem e devem servir como ponto de partida para a reflexão, análise
e comparação com outros textos, e não como um fundamento irrevogável frente a
novas possibilidades.
Os gostos não são naturais, nem imutáveis, nem
sucessivos, mas que se integram ao processo de
desenvolvimento em sobressaltos, em que o sujeito vai
superando a si mesmo, traçando seu percurso histórico
rumo a um objetivo que é sempre provisório e ponto de
partida para novos avanços. (Magnani, 2004: 06
Ainda ressaltamos a influência necessária e inevitável que o meio sócio-
cultural estabelece na formação de um gosto pela leitura, o que se transforma
necessariamente em prática de leitura, mesmo que seja quase nenhuma, na vida
do sujeito. A ausência de influências, em diferentes dimensões de sua vida, faz
com que os sujeitos – crianças, adolescentes ou adultos – não se tornem leitores.
Para a formação do leitor, segundo reflexões de Magnani (2004), alguns
sujeitos devem servir de exemplo, devem permitir conscientemente serem
imitados. Pais e professores participam ativamente desse processo; pois alguém
43
que lê, estuda, expõe sua leitura e seu gosto, tendo frente ao texto sensibilidade e
atitude crítica, por suposto leva à imitação dessa postura. E ela diz respeito à vida,
à formação de uma visão de mundo. Não basta falar, é preciso fazer da
contradição e, da busca de sua superação uma atitude cotidiana de vida, seja
onde for; seja sob quaisquer condições.
As perspectivas para a formação do leitor que queremos não passam
somente pela boa vontade ou atualização das cnicas do professor. Esta
proposta de formação do gosto nem se assenta em produtos, nem é controlável: é
um movimento vivo de contradições que instigam caminhos mais adequados de
superação, a partir dos princípios que iluminam o perfil de sociedade que
queremos. Conforme Magnani (2004) “A história se constrói não pelo acaso, nem
pelo descaso (pelo menos como a queremos), mas pelo agir consciente de
sujeitos e grupos sociais nela envolvidos para transformar a realidade”. (p.06)
A leitura tem a capacidade de mobilizar o espírito em vista da superação
constante da condição existencial do ser humano, jogá-lo para o alto e para fora
de si mesmo em busca de horizontes cada vez mais amplos. Possibilitar a cada
sujeito a oportunidade de ingressar nessa dinâmica existencial é uma tarefa
coletiva e interrelacional, requer muito mais do que espontaneidade, requer
intencionalidade. Frente à necessidade que temos de atitudes objetivas e metas
claras em relação à formação do leitor, nos perguntamos: o que ler, afinal. E esse
é o subtítulo de nossa próxima abordagem sobre a leitura.
2.4 - O QUE LER, AFINAL?
A princípio, devemos pensar que o leitor deve ser guiado e in-formado, ou
melhor, formado no uso da palavra escrita, isto é, nas leituras que possivelmente
empreenderá. Mas, não podem ser quaisquer palavras. Na ótica dos educadores
devem ser palavras que possibilitem a formação integral do sujeito, para tanto o
Ministério da Educação elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs
44
que balizam os objetivos pretendidos pelas inúmeras disciplinas que compõem o
currículo das escolas. Sobre a leitura, os PCNs recomendam que:
A leitura na escola faça sentido par ao aluno, isto é, a atividade de
leitura deve responder, do seu ponto de vista, a objetivos de
realização imediata. Como se trata de uma prática social complexa,
se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem
deve preservar sua natureza e complexidade, sem descaracterizá-la.
(PCNs, 1997: 54)
na ótica do mercado editorial, as palavras devem ser vendáveis sem
causar estranhamento ao leitor. Como sabemos que quem decide o que será
publicado é o mercado editorial e não os educadores, interditos são introduzidos
nas estruturas de todo o material publicado e publicável, a ponto de tornarem-se
por si mesmos as regras e as leis do que pode e deve ser produzido. uma
espécie de “naturalização” do que é produzido, como se fosse um desejo comum e
unânime. Essas mesmas estruturas chegam massivamente ao leitor através do
que ele lê. Os critérios de escolha e de interdição, os valores e ideologias são
... introduzidos mecanicamente nas estruturas de conservação e do
uso, e repetidos automaticamente, tornaram-se, por si mesmos, fonte
de autoridade e portanto de juízo inapelável também para o leitor
comum, para a opinião pública e para o assim chamado público, que
é, afinal, o que lê e o que compra. (Petrucci, 1999: 209)
Esse fenômeno que proposiciona ao leitor um modelo do que deve ser lido
e, que se torna um movimento de contestação dos cânones conhecidos não se
de forma isolada. Em diversos países do mundo, a leitura de obras indicadas e de
valor histórico e relevância literária é substituída gradativamente pela leitura do
que Petrucci (1999) chama de trivial litteratur
10
.
10
Conforme Petrucci (1999), Trivial litteratur são os chamados livros instantâneos de péssima
execução e livros sobre hobies, ensaios filosóficos ou lingüísticos e coletâneas de piadas, poesias
e literatura policial, ficção científica e política, histórias de comportamento e de sexo, e romances
cor-de-rosa, de maneira totalmente indistinta, isto é, de modo tal que nem a marca editorial, nem o
aspecto do produto, nem sobretudo o preço sirvam para discriminar, para por ordem no amontoado
de textos produzidos diariamente. (p.213)
45
A impressão que temos é que esse fenômeno não se dá isoladamente, mas
é um perfil mostrado pelo mercado editorial em consonância com um mercado
maior, mais amplo e que visa, acima de tudo, o consumo indiscriminado de
qualquer coisa que possa ser produzida. E que, preferencialmente, tenha uma
vida útil muito pequena para poder ser logo descartado. Nada mais natural, para
uma ótica claramente capitalista, que produzir um produto e manipular o desejo de
consumi-lo.
Pois bem, o que a grande indústria editorial está fazendo a algum
tempo no interior do mercado do livro é uma forma de dano baseado
no cancelamento de todo critério seletivo, que também pode ser
considerado como um autêntico estelionato em que o prejudicado é o
leitor-consumidor. (Petrucci, 1999: 214)
Os cânones tradicionais perderam sua força, porque as instituições que os
poderiam manter também estão sem forças. Elas perderam, além da força, a
capacidade de influência. Escola e família não arbitram sobre as leituras que os
adolescentes querem fazer e fazem efetivamente, basta perguntar aos jovens e
adolescentes, o que lhes é proposto como leitura. Aqueles que lêem alguma coisa,
raras exceções, dirão que, tanto em casa como na escola suas leituras são de
obras comerciais ou ‘da moda’, aquilo que todo mundo lê. Projetos educativos que
visam atingir as grandes massas de uma forma também massificada engrossam a
tiragem de tais obras. Adotadas para a implementação de tais projetos, esses
livros também não possuem critérios de seleção. A literatura dita de
entretenimento acaba por ocupar o lugar dos antigos cânones.
Seguem-se a esse fenômeno as discussões acadêmicas quanto à retirada
do cânone tradicional, obrigatório nas universidades. Requer-se um cânone que
inclua obras mais abertas à atualidade e à contemporaneidade. Paulatinamente,
isso vem se dando, mas se a recusa do cânone tradicional, mas sem, contudo,
descartar as possibilidades de inclusão de novos títulos. Ao menos é o que vem
sendo veiculado pelos PCNs para o Ensino Fundamenta, conforme afirma Faria
(1999):
46
É necessário, porém, que seu estudo não se feche na literatura
erudita, mas se abra sem preconceitos elitistas, para outras
manifestações literárias, como a literatura para crianças e jovens, a
literatura popular e mesmo a de massa. (Faria, 1999: 09)
Um aspecto importante a ser considerado, e que está intimamente
relacionado à crise de paradigmas vivida pelas instituições, é o nascimento de
novas práticas de leitura que são personificadas na figura do leitor anárquico.
Esse novo tipo de leitor é gestado, e para atendê-lo surge o escritor de consumo
“... que escreve textos de para-literatura, reescreve textos alheios, redige
romances cor-de-rosa e policiais ou compila jornais de pouca importância...”
(Petrucci, 1999: 224)
Paralela e paradoxalmente a esses acontecimentos, percebemos que as
grandes campanhas mundiais de alfabetização e de leitura apontam
prioritariamente para as questões da leitura e não da escrita. Enfatizamos as
propagandas veiculadas pela Rede Globo de Televisão que utiliza a imagem de
atletas para propagar a idéia de que “Ler também é um exercício”. O exercício leva
a uma prática automatizada, mecânica de alguma ação. Assim, pensando em
disseminar o hábito da leitura, os meios de comunicação levam até a massa de
tele-espectadores a idéia de que a leitura é apenas uma questão de exercício, e
que o importante é ler e não o que se lê.
Todas essas campanhas para disseminar a leitura têm sido sustentadas e
incentivadas por instituições que têm interesse na difusão de seus valores. Os
incentivos ao ato da escrita, que está na raiz do processo de leitura, não é
incentivado da mesma forma, pois o ato da escrita é algo ligado à capacidade
individual e totalmente livre do escritor, ao que não poderia haver controle. No
entanto, isso não ocorre com a leitura, pois a mesma pode ser orientada, dirigida
por um cânone e, como sabemos, a leitura pode “formar” a consciência do leitor.
Veja o que nos escreve Petrucci (1999):
47
O controle da leitura aparece como mais direto, mais simples e,
certamente, mais indolor. Para funcionar, basta que as leituras do
público a ser alfabetizado e educado (portanto, a ser doutrinado)
sejam orientadas, mediante algum mecanismo de autoridade, para
determinados corpus de obras e não para outro, para um cânone fixo,
que pode ser mais ou menos amplo, mais liberal ou mais restritivo,
mas que é imposto ... (p. 207)
Os cânones tendem a assegurar a manutenção do pensamento e do status
quo desejados. Todas as sociedades possuem seus mecanismos de controle,
organização e distribuição dos discursos que lhe interessam; os que não
interessam aos seus propósitos são interditados e marginalizados, pois o
estabelecimento de um cânone não obedece apenas aos desejos de uma
sociedade como um todo, mas a grupos dentro dela ou de algumas instituições.
Dentre elas, a instituição carcerária também elenca o seu rol de obras permitidas e
estabelece o seu cânone. No quarto capítulo dessa pesquisa mostraremos a
constituição do cânone do Lar do Adolescente – Fazendinha em Cuiabá - MT
2.5 – OUTROS MODOS DE LER
Os cânones são estabelecidos para assegurar interesses de grupos e por
isso mesmo são históricos e mutáveis, por isso mesmo, cabe-nos ressalvar que a
mudança de cânone nunca se de forma absoluta, pois mesmo na vigência de
um cânone, outro, “marginal”, com ele coexiste. Isto é, ao lado das obras que são
indicadas para leitura, e representam a manutenção de um determinado status
quo, existe um rol de outras não indicadas, mas que mesmo assim, circulam
paralelamente. É o que podemos nominar, conforme Faria (1999,) de leitura
erudita
11
e leitura comum
12
11
A leitura erudita é aquela consagrada pela tradição humanista e assimilada pela escola
tradicional, ao longo de sua estruturação, como a única leitura válida. Sua finalidade é de ordem
exclusivamente estética; o leitor mantém distanciamento do texto, fruindo-o formalmente, segundo
os padrões eruditos estabelecidos pela crítica literária de seu tempo. (Faria, 1999: 82)
12
A leitura comum, ao contrário, não é feita em função do valor literário atribuído à obra pela
academia. [Nela] a relação do leitor com a obra é afetiva; ela se manifesta pela identificação do
leitor com a história, com os temas tratados, coma s personagens. (idem)
48
Esse “cânone marginal” é composto por leituras comuns e que não
obedecem a nenhum tipo de seleção, lidas ao acaso, e, dadas as devidas
oportunidades, tornam-se alvo de leitura e de acesso de indivíduos e de grupos, e
rapidamente se disseminam, principalmente entre idosos e adolescentes.
... duas categorias de livros socialmente fracos, mas que praticam
muitas vezes a leitura de modo muito ativo, porque são ricas em
tempo livre: os adolescentes e os velhos. Eles não conseguem quase
nunca programar suas leituras (...) lêem livre e caoticamente tudo o
que lhes cai nas mãos, misturando gêneros e autores, disciplinas e
níveis: portanto, mesmo inconscientemente, eles também ignoram e
contestam ao mesmo tempo o cânone oficial e suas hierarquias de
valores, atuando e escolhendo fora deles. (Petrucci, 1999: 216)
Portanto, para Petrucci (1999), Além de não terem critérios para selecionar
o que lêem, muitos adolescentes geralmente lêem cada vez menos livros, pois
suas práticas de leitura o têm claros os seus objetivos. Assim, não definem
muito bem se lêem para aprender, lembrar e formar-se ou se lêem por ler, para
passar o tempo ou para divertir-se.
... lêem-se sempre menos livros enquanto é bastante alto o número
de leitores de folhas periódicas, jornais, revistas, cartazes, murais e
outros impressos. Mas os leitores de publicações volantes, diárias,
não lêem: vêem, olham. Olham com uma atenção de histórias em
quadrinhos mesmo quando sabem ler realmente; olham e jogam
fora. (Petrucci, 1999: 217)
Nesse tocante, os adolescentes não possuem nenhuma distinção. Ressalva
se faça aos adolescentes infratores, encarcerados no Lar do Adolescente
Fazendinha, que não jogam no lixo tais materiais. No cárcere qualquer tipo de
suporte de leitura pode se tornar de imenso valor, o que nos permite afirmar que a
relação do adolescente infrator com os livros é sui generis.
49
Petrucci (1999) nos remete a considerações importantes quando associa a
mudança dos cânones com a mudança da postura dos adolescentes frente aos
livros e à realização da leitura. Junto ao questionamento sobre o que deve ser lido,
congrega-se a reflexão sobre a postura ideal para se realizar a leitura. Da mesma
forma que o cânone é questionado e outras obras lhe são agregadas, novos
comportamentos para ler deixam a marginalidade para integrar o comportamento
usual dos leitores mais jovens. Afinal, as histórias em quadrinhos e literaturas afins
têm a capacidade de adaptarem-se a quaisquer ambientes.
mencionamos o fato de os jovens com menos de 20 anos
representarem potencial e naturalmente um público que recusa o
cânone (qualquer cânone) e que prefere escolhas anárquicas. Na
verdade, recusam também as regras comportamentais que
constituem o corolário de cada cânone. (Petrucci, 1999: 222)
À rebeldia adolescente em renegar as obras indicadas tradicionalmente
para leitura, segue-se a rebeldia em sua postura frente aos livros ou a qualquer
material que lhe caia nas os para ser lido. A leitura, conforme o que nos fala
Hans Magnus Enzensberger (Apud Petrucci, 1999: 223), é um ato anárquico e, por
isso, ao leitor deve ser dada sempre razão. Ninguém pode tirar dele a liberdade de
fazer do seu texto o que mais lhe aprouver.
Assim, a leitura pode ser um instrumento potente de acesso à cultura, de
aquisição de experiências e de difusão do conhecimento. “Entendendo-se por
‘experiência’ o conhecimento adquirido pelo indivíduo nas suas relações com o
mundo, através de suas percepções e vivências específicas...” (Silva, 1984: 32)
Ao mesmo tempo em que se multiplicam as possibilidades de acesso, a
intensa renovação do mercado editorial reconceitua tempos e espaços de
socialização da leitura. Esse advento traz consigo algumas mudanças na relação
do leitor com o texto escrito. Apesar de se manterem os signos, a materialidade do
espaço eletrônico não existe tudo é virtual, por isso a relação com os textos
prescinde do apoio material. Ao mesmo tempo, o autor, que anteriormente apenas
50
escrevia, pode também fazer a divulgação de seu texto, sendo, portanto, autor,
editor, divulgador.
A distinção entre escrever e ler, entre o autor do texto e o leitor do
livro, que é imediatamente discernível na cultura impressa, lugar
agora a uma nova realidade: o leitor torna-se um dos possíveis
autores de um texto multiautoral ou, no mínimo, o criador de novos
textos compostos de fragmentos deslocados de outros textos.
(Chartier, 1999: 27-28)
Tais mudanças, dentre elas a do suporte físico dos textos, desafiando a
ordem dos livros impressos, impõe ao leitor a tomada de novas decisões e
posturas e, fundamentalmente, de novas práticas intelectuais para poder
compreender a indeterminação, por assim dizer, do lugar do texto e do seu próprio
lugar em relação a ele. Assim, conforme o que nos diz Chartier (1999), o texto
eletrônico desvinculado de materialidade, em teoria, pode alcançar em qualquer
lugar, qualquer leitor.
Concomitante a esse advento, não podemos deixar de pensar na
diversidade de sujeitos que ainda não adentraram nem mesmo ao universo da
leitura em seu conceito mais original a decodificação de signos gráficos; outros
ainda não operam a dimensão da atribuição de sentido, e se o fazem, esbarram
em sentidos cristalizados, aprendidos na escola e utilizados como mais uma forma
de manutenção de sentidos apenas adotados e não construídos.
Como se sentem esses sujeitos frente à emergência de textos virtuais em
que as funções de eleitor e autor se confundem. Que sentimos, nós educadores,
diante desse universo que instituirá outros analfabetos, se é que não estamos
fazendo parte dele? Pois, diferentemente do mercado editorial, a educação deve
primar pela democratização incondicional aos suportes de leitura e não na
massificação dos sujeitos, estejam eles onde estiverem. Que cidadão seeste,
colocado à margem de mais esse texto, alijado de mais essa leitura?
51
2.6 – LEITURA PARA A CIDADANIA
No âmbito escolar, a leitura é uma das principais fontes donde brotam
inúmeras ações pedagógicas, assumindo, por diversas vezes, o papel de
mediadora no acesso a muitos outros bens culturais; assim, cabe a todos os
professores serem orientadores de leitura e não apenas ao professor alfabetizador
ou das disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura; aliás, digamos ainda mais: o
papel educativo cabe a todo cidadão, independente da sua condição de atuação
profissional. Delegar unicamente à escola a tarefa de educar é injusto e
insuficiente, afinal, em todas as relações estabelecidas pelos seres humanos
um processo educacional mais amplo sendo gerado.
Pensando especificamente na educação formal, outra reflexão que
demanda do processo de formação do leitor está justamente no equívoco de se
pensar que uma vez alfabetizado, o aluno vai ser capaz de ler todos os tipos de
mensagens escritas. Entendemos que à revelia do processo de alfabetização não
é possível formar leitores, contudo, somente a inserção do aluno em um universo
de codificação e decodificação não lhe garante as habilidades necessárias à
formação de referenciais e significados que ampliam sua competência frente aos
textos lidos.
No que tange à atividade de leitura, vejamos o que os PCNs nos trazem:
Para aprender a ler, portanto, é preciso interagir com a diversidade de
textos escritos, testemunhar a utilização que os já leitores fazem
deles e participar de atos de leitura de fato, é preciso negociar o
conhecimento que se tem e o que é apresentado pelo texto, o que
está atrás e diante dos olhos, recebendo incentivo e ajuda de leitores
mais experientes. (PCNs, 1997: 56)
Daí a evidente preocupação em viabilizar por “todos os meios possíveis” as
práticas de leitura, sejam em que ambientes forem. No entanto, ao nos
depararmos com as questões de leitura no interior das escolas, percebemos
52
igualmente a falta de meios para estimular a sua prática. Paradoxalmente, ao
mesmo tempo em que as práticas de leitura são estimuladas, os meios para tanto
são bastante reduzidos.
No bojo perverso dessas políticas, encontramos jovens e adolescentes
analfabetos reais e funcionais que, conforme veremos posteriormente em nossa
análise, são uma demanda cada vez maior que engrossa as estatísticas dos
despossuídos e alienados, pois, segundo o que nos diz Silva (1984),
[...] sem a possibilidade de compreender o material impresso, é
impossível ao indivíduo situar-se dentro dos horizontes veiculados
através da escrita. Ao analfabeto, em outras palavras, fica vedada a
possibilidade de fruição dos bens culturais que compõem o
patrimônio literário da humanidade. (Silva, 1984: 37)
Além de proporcionar o gozo de patrimônios culturais, a leitura proporciona
um impulso extra à construção e circulação contínuas do conhecimento. Quando
as pessoas têm acesso às mesmas informações de forma massificada, como é o
caso dos sujeitos dessa pesquisa, pouco se constrói ou se incrementa em relação
à condição existencial de cada sujeito. Contudo, ao nos depararmos com uma
ampla oferta de textos que veiculam diversos conhecimentos e informações, a
possibilidade de troca é bastante significativa, e dá a cada um dos interlocutores a
chance de superar sua própria condição de ser-de-cultura.
Assim, a aquisição de novas informações e a conseqüente expansão
de horizontes decorrentes de leituras ecléticas vão se tornar
instigadoras de diálogos mais freqüentes e de comunicações mais
autênticas. Nesse sentido, ler é realmente participar mais crítica e
ativamente da comunicação humana. (Silva, 1984: 41)
Através da leitura os homens podem acessar formas efetivas de
participação, pois os textos impressos possibilitam o efetivo encontro entre o
homem e sua realidade sócio-cultural. “Ao aprender a ler ou a ler para aprender,
53
portanto, o indivíduo executa um ato de conhecer e compreender as realizações
humanas registradas através da escrita.” (Silva, 1984: 42)
Além do aspecto da compreensão do signo, que remete imediatamente à
idéia de decodificação, o sujeito é levado, antes mesmo de compreendê-lo, a
atribuir-lhe um significado. Na intermitência entre compreensão e significação, o
sujeito tem a possibilidade de atribuir sentido ao que é lido, e isso ele o faz
considerando toda a sua trajetória de sujeito-histórico inserido num determinado
contexto sócio-cultural que o constitui como tal. Dessa forma podemos entender
que o universo de possibilidades de atribuição de sentidos possíveis vincula-se
necessariamente, mas não unicamente, às condições sócio-históricas do sujeito; o
que nos permite inferir que o olhar do adolescente infrator para tudo que está em
seu entorno é limitado pelas significações próprias de seu meio social e pelas
experiências por ele vividas; o que não o impossibilita de atribuir novos e não
cristalizados significados aos ‘textos’ acessados, mas, pelo que tudo indica,
limitam a direção que os sentidos tomam. Segundo Orlandi (1998):
Quando lemos estamos produzindo sentidos (reproduzindo-os ou
transformando-os). Mais do que isso, quando estamos lendo
estamos participando do processo (sócio-histórico) de produção de
sentidos e o fazemos de um lugar e com uma direção histórica
determinada. (Orlandi, 1998: 59)
Silva (1984) atribui algumas funções à leitura enquanto prática sócio-
educativa. Dentre eles estão a de situar o homem no mundo, instrumentalizar o
processo ensino-aprendizagem, possibilitar a práxis, combater a massificação e
difundir o conhecimento. Assim, adentrando ao processo de leitura, o leitor
executa um ato de compreensão do mundo e de suas mediações.
Nesse sentido, não basta decodificar as representações indiciadas
por sinais e signos: o leitor (que assume o modo de compreensão)
porta-se diante do texto, transformando-o e transformando-se. (Silva,
1984: 44)
54
Corroborando essa mesma linha de pensamento sobre a leitura, Scliar-
Cabral (1992) diz:
A leitura é um processo criativo, ativo no qual o indivíduo joga todo o
seu conhecimento anterior para, colhendo novas informações e/ou
novos enfoques ou visões de mundo, reestruturar sua própria
cosmovisão. (Scliar-Cabral, 1992: 92)
Comumente ouvimos da boca dos adolescentes frases como: ‘Leio o que
bem entendo’. Esta é a máxima utilizada pelos leitores de massa, frutos da grande
crise vivida pelas estruturas institucionais e ideológicas. Os sujeitos o têm a
quem recorrer, então, se ensimesmam de forma egoísta, egocêntrica e anárquica
em suas escolhas. Essas são mais algumas das atitudes que estão na origem da
delinqüência: a crise nas relações entre os seres humanos, cada qual se
defendendo do outro. As instituições não mais agregam pessoas, as reúnem
fisicamente, quando o fazem; afinal a virtualidade tenta substituir o calor das
relações.
Os seres humanos não precisam mais dos livros e da leitura para se
aculturarem, a televisão faz esse papel. “... o papel de informação e de formação
de massa que por alguns séculos foi próprio dos produtos impressos, portanto
“para ler”, [agora esse papel] passou para os meios audiovisuais...” (Petrucci,
1999: 219)
Os audiovisuais, em especial a televisão, chegam até o telespectador de
forma não articulada e permitem que ele mude muitas vezes de canal e
acompanhe muitos e, ao mesmo tempo, nenhum programa em especial. Essa
atitude lhe tira toda e qualquer possibilidade de continuidade no que está sendo
visto ou ouvido; são apenas um amontoado de fragmentos, pois ao ver TV,
geralmente se assiste a um incontável número de partes de programas.
Esse mesmo comportamento é imitado nas práticas de leitura e na busca
de informações. Não uma seleção, um projeto, um roteiro, seja o que for, que
55
conduza o leitor, assim como o espectador, a um determinado objetivo. Desse tipo
de prática nasce a desordem não-programada do deo que se estende às
práticas de leitura e ao desrespeito constante pela ordem do texto. Mas a
desordem das práticas de leitura é apenas um reflexo da desordem dos valores
vivenciados pelo ser humano. Com isso não queremos evidenciar um pessimismo
exacerbado em relação ao futuro do homem, mas apontar a fragilidade de uma
sociedade que leva um incontável número de adolescentes à criminalidade e os
trancafia no cárcere sem compromisso real de libertação desse sujeito.
Na gênese de uma proposta libertadora de educação, isto é, que liberte o
sujeito das amarras da alienação e de seus produtos, como apontam as
reflexões freirianas, a leitura crítica aparece como condição de superação dos
modelos mecanicistas (não geradores de novos significados) de formação de
sujeitos-leitores.
O caráter libertador do ato de ler está nas atitudes do sujeito leitor que
presentifica-se na e com a mensagem do texto, como preconizava Paulo Freire.
Ao situar-se, o leitor se conscientiza de que o exercício de sua consciência não
visa apenas memorizar os conteúdos, mas, ao contrário, compreendê-los e
atribuir-lhes significado. Frente à leitura que realiza,
O leitor crítico, movido pela sua intencionalidade, desvela o
significado pretendido pelo autor (emissor), mas não permanece
nesse nível ele reage, questiona,problematiza, aprecia com
criticidade. Como empreendedor de seu projeto, o leitor crítico se faz
ouvir. A criticidade faz com que o leitor não compreenda as idéias
vinculadas por um autor,mas leva-o também a posicionar-se diante
delas ... (Silva, 1984: 80)
São o que podem ser chamadas de leituras possíveis, uma vez que o leitor
reconstrói o texto na sua leitura, atribuindo-lhe significação; atitude própria de
leitor maduro. Vejamos o que nos diz Lajolo (1982) a esse respeito:
56
Leitor maduro é aquele para quem cada nova leitura desloca e altera
o significado de tudo que já se leu, tornando mais profunda sua
compreensão dos livros, da gente e da vida. (Lajolo, 1982: 53)
No âmbito crítico, o ato de ler é significado pela superação do dado
imediato, pois a esse nível de leitura estão atreladas concepções de mundo que
superam as expectativas de linearidade, inserindo-o num modelo dinâmico de
universo, o que possibilita a maior e melhor compreensão das tramas sociais e
dos frutos produzidos pelas relações estabelecidas, inclusive, o fenômeno da
delinqüência.
A leitura crítica, mais do que um modismo, é uma necessidade imperiosa
frente à realidade social do Brasil. Enquanto prática social, capaz de fazer com
que os homens interajam, a leitura não pode ser refletida à revelia do contexto em
que se realiza. Assim, questionar o que é lido e para que fim é lido, deve estar na
gênese de qualquer reflexão sobre a leitura numa dimensão crítica, isto é, numa
dimensão que
...encontra a sua principal razão de ser nas lutas em direção à
transformação da realidade brasileira, levando o cidadão a compreender as
raízes históricas das contradições e a buscar, pela ação concreta, uma
sociedade onde os benefícios do trabalho produtivo e, portanto, da riqueza
nacional, não sejam privilégios de uma minoria.
(Silva, 1998: 22-23)
Ainda vale dizer que as leituras e as propostas que as estimulam, tanto
quantitativa como qualitativamente, sofrem ações ideológicas. Algumas políticas
legitimam as ações de dominação, reproduzindo e conservando esquemas que
privilegiam o conformismo e a ignorância, e, por suposto, escravizam as
consciências das pessoas, como afirma Silva (1998); outras podem trazer a
descoberto as relações de poder que incrementam a continuidade das
contradições sociais e buscar ações para superá-las. Daí a importância do ato de
ler.
57
2.7 - A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER
Apesar das grandes crises e reflexões constantes vividas por essa
‘instituição’ chamada leitura, é ela que constitui grande parte de nosso caráter e
nos possibilita a inscrição contínua e perene na humanidade de forma dinâmica. O
homem e o mundo se constituem mutuamente em suas inter-relações, cada qual
atribuindo sentido ao outro. Sentido esse que não prescinde da leitura realizada,
da significação apontada, do sentido forjado no chão da existência.
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra” (Freire, 2001: 11)
Podemos considerar que esta frase de Paulo Freire se tornou, com o passar dos
anos e das reflexões sobre a leitura, uma máxima de validade ímpar. Tal
afirmação aponta inequivocamente para a relação de interdependência, ou
melhor, de complementariedade entre linguagem e realidade, tornando
necessária, para a compreensão de qualquer texto, a percepção das relações
entre ele e seu contexto.
O ato de ler está ligado intimamente ao ser questionado pelo mundo e por
si mesmo, é o que afirma Foucambert (1994)
Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa
que certas respostas podem ser encontradas na escrita, significa
poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma resposta que
integra parte das novas informações ao que se é. (Foucambert,
1994: 05)
Freire (2001) pensa a leitura enquanto um fenômeno existencial que se
manifesta na relação do homem sujeito/leitor com o mundo e estende-se à
palavra, e, dela ao mundo. Antes de tornar-se leitor da palavra e de significá-la, o
sujeito experimenta a significação da materialidade à sua volta, significando seu
mundo mediato. Objetos, coisas e experiências treinam e preparam a percepção
do sujeito para que ingresse num universo ainda mais amplo e rico de significados
58
possíveis: o universo dos signos gráficos que ultrapassa a imediatez dos
fenômenos e repousa sua atenção sobre as mediações que provocam.
A leitura da palavra e a leitura do mundo, nas reflexões freirianas, não são
momentos estanques, que se dão separadamente, ao contrário, a leitura da
palavra deve ser apenas uma continuidade da leitura de mundo. De um mundo
que continua significando no significado dado à própria palavra. Freire (2001)
chama isso de “palavramundo”. Assim escrita, no ajuntamento de duas palavras,
esse neologismo une linguagem e realidade, palavra e mundo, e
metalinguisticamente significa a continuidade de um no outro.
Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da
palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele (...)
este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está
sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui no mundo
mesmo através da leitura que dele fazemos. (Freire, 2001: 20)
O mundo é pensado em palavras e estas são significadas pelo mundo. Ao
mesmo tempo em que a palavra é significada pela forma como o sujeito “escreve e
re-escreve” o seu mundo, reescrevendo-se a si mesmo, a palavra ganha as
mesmas nuances: é significada por uma ação perene que se estende
continuamente do mundo à palavra e ao mundo. E é na dinaminicidade da
“palavra-mundo” que se constrói o leitor, que ele torna-se cidadão e que,
fundamentalmente, forma-se o ser humano em sua plenitude.
59
III – DELINQÜÊNCIA E SOCIEDADE: OS BASTIDORES DO PROBLEMA
Ao nascimento da mecanização e da indústria
moderna (...) seguiu-se um violento abalo como um
avalanche, em intensidade e extensão. Todos os
limites da moral e da natureza, de idade e de sexo,
de dia e de noite, foram rompidos. O capital
celebrou suas orgias.
Karl Marx
Neste capítulo trataremos de questões relacionadas à delinqüência juvenil
tentando evidenciar suas relações com as estruturas econômicas e políticas da
sociedade, vistas, em alguns momentos, sob o prisma teórico foucaultiano.
Traremos à tona algumas discussões sobre os aspectos jurídicos que balizam a
atuação do Poder Judiciário sobre os adolescentes infratores, enfocando
posteriormente a relação deste adolescente com o sistema prisional e a instituição
ressocializadora, portadora de estratégias pedagógicas para o cumprimento de
medida sócio-educativa, a que estão submetidos os adolescentes infratores.
3.1 – A CRIMINALIDADE: ASPECTOS SÓCIO-ECONÔMICOS
Os problemas sociais, na grande maioria das vezes, são resultados de
causas estruturais dentro da sociedade. Por isso, não é possível combater a
delinqüência, a marginalidade, a criminalidade em si mesmas, como se fossem
princípio e fim do problema; elas são efeitos das relações de poder mantidas na
sociedade e que, pela maioria da população são vistas, algumas vezes, como
normais, ou naturais.
Podemos dizer que a provável solução para o problema da marginalidade
está na solução para o problema da pobreza, da orfandade, do abandono dos
60
idosos, das infrações cometidas pelo adolescente, para a reincidência na
criminalidade. Todos esses problemas não têm sua origem em si mesmos, mas
em uma estrutura social de poder e dominação muito além, muito mais profunda
que estes mesmos problemas; numa sociedade que marginaliza parte de sua
população quando lhes nega socialmente igualdade de condições de
sobrevivência.
A Revolução Industrial trouxe não apenas o advento da máquina, mas do
homem-máquina. Aquele que vale pelo que produz. Uma peça na engrenagem da
empresa. De dono e proprietário no campo, passa a ser empregado na cidade. O
campo não produz mais para dar alimento às bocas famintas. Os produtores rurais
produzem para acumular produtos. Perde-se o objetivo da produção. Produzir pra
que? A finalidade fica perdida, o homem fica alienado de sua ação. O capital toma
o lugar da mercadoria. O capital é a mercadoria.
Os grandes latifúndios se multiplicam e os pequenos produtores são
expulsos de suas terras por não poderem competir com os grandes produtores.
Expulsas de suas terras, famílias inteiras vêm tentar a vida nas cidades grandes.
Trazem seus filhos, crianças e adolescentes para tentarem a sorte. Muitos
referenciais ficam para traz. Histórias, tradições e valores vividos até então são
colocados em dúvida, sua validade, antes inquestionável, agora são relativizados.
E essa não é uma história incomum, ao contrário, essas são as histórias da
maioria dos sujeitos aqui pesquisados e que estão sob a custódia da justiça. A
imensa maioria deles traz em seu trajeto de vida as marcas da ‘gente’ do interior
que veio para a capital e nela perdeu seu rumo, perdeu-se em meio a tantos
monumentos ao capital.
Esse tipo de penetração do capitalismo no campo não gera emprego,
expulsa a gente da terra, que se vai aglomerar na cidade, numa
cidade que é um acampamento funcional para o desenvolvimento do
capitalismo. (Sampaio, 1985: 125)
61
As favelas e cortiços aumentam nos grandes centros industrializados
renovando a cada dia a mão de obra necessária para fazer a máquina capitalista
funcionar: indivíduos desqualificados que trabalham muito e por um pequeno
salário; um bom exemplo dessa condição de trabalho são os empregos, aliás sub-
empregos ofertados aos jovens e adolescentes: uma rotina intensa que não lhe
permite estudar pois ocupa toda a sua energia com o trabalho físico. Sem
qualificação, por não poderem estudar, esses adolescentes tornam-se alvos fáceis
da exploração do mercado.
Como se condicionar a viver numa situação de contínua exploração?
Adentrar a força ao mundo dos bens de consumo, feito para todos, mas, acessado
por poucos, seria a única forma de experimentá-lo, que pelo trabalho isso será
muito difícil. É nessa dinâmica que pode instaurar-se a criminalidade, pois,
tentando acessar legalmente a um universo que lhes proporcione vida digna,
muitos jovens não encontram essas oportunidades. Para alguns resta acessá-lo
por meios não muito ortodoxos: a criminalidade.
Embora estejamos falando de questões que relacionam a delinqüência a
questões econômicas, não devemos nos de que no cerne da questão da
criminalidade está o ser humano. Ao mesmo tempo em que é centro da questão,
ele está nas duas pontas do processo. De um lado temos o cidadão que se
encontra vitimado pela infração que sofre e espoliado de seus direitos pela atitude
do infrator; de outro temos o infrator, sujeito da infração que por se sentir
espoliado pelas estruturas sociais que o expropriam de diversas oportunidades,
vitimizam o cidadão comum, pois nele configura-se a estrutura econômico-social
contra a qual se rebela. Rebela-se porque já foi marginalizado pela estrutura
social, ficou fora da “repartição do bolo”. Ao rebelar-se pessoal e individualmente,
sem organização para reivindicar seus direitos, se torna marginal, pois assume
socialmente a sua condição de marginalizado. Que paradoxos são esses em que
o ser humano adentra à marginalidade fazendo parte desta dinâmica?
Acreditamos que apenas uma mudança de status em sua condição de estar à
margem.
62
Em todo processo da criminalidade estamos lidando com seres humanos,
pois os fenômenos por nós apontados envolvem essencialmente pessoas - na
originalidade de seu ser - que possuem um nome, uma identidade. E que
deveriam também ter um lugar digno na sociedade. Contudo, não é isso que
acontece. Combate-se o problema imediato sem levar em consideração que
existem sujeitos históricos envolvidos, e que os problemas fazem parte de um
universo muito maior de relações de poder que geram dominação, autoritarismo e
consumismo.
Todos esses aspectos poderiam ser resumidos falando apenas que
vivemos numa sociedade capitalista em que impera o valor do produto sobre quem
o consome. Um bom exemplo da perversidade são crimes cometidos contra
pessoas com a intenção de apropriação de seus bens, os chamados latrocínios.
As notícias de que jovens matam outros jovens por causa de tênis, relógios e
celulares são bastante comuns.
O capital toma o lugar dos bens de consumo, o produto reina soberano
sobre quem o produz. Os únicos sujeitos que possuem “valor agregado” é uma
pequena minoria capaz de consumir esses bens. No entanto, a propaganda
consumista atinge a todos indistintamente. Todas as classes sociais são
incentivadas ao consumo sem terem as mesmas possibilidades de verem seus
desejos saciados. Jovens, adultos e velhos têm à sua frente um mercado enorme
de consumo, sem, contudo, terem possibilidades de consumir, nem mesmo alguns
bens essenciais, quanto mais livros, o considerados bens de primeira
necessidade. Essa situação serve à lógica do capitalismo. Vejamos por que:
Quanto menos comer, beber, comprar livros, for ao teatro, sair para
dançar e para beber, pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, esgrimar
etc. .., mais você poupa e maior se tornará o tesouro que nem as
traças ou os vermes podem consumir o seu capital. (Marx apud
Gonçalves Filho, 2000: 53)
63
Muitos sujeitos não se submetem passivamente às situações de
desigualdade e se revoltam contra a impossibilidade de ser um cidadão com os
mesmos direitos, com o mesmo acesso a esses bens. Não uma cultura de
reivindicação desses direitos, com debates políticos e tomadas de posturas contra
a estrutura que gera esta desigualdade, por isso as revoltas se dão em nível
individual e de modo anárquico. Segundo Foucault, é neste momento que o
Estado exerce o seu poder estabelecendo o controle dos corpos e das forças
individuais e evitando os distúrbios civis. Isso acontece por meio de estratégias
múltiplas que visam disciplinar os corpos dos indivíduos
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações
do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar das disciplinas. (Foucault, 1988: 126)
São essas estratégias que os fazem submissos pelo trabalho, direcionando
suas vontades individuais para questões coletivas; desta forma o estado
redireciona possíveis levantes de indivíduos que poderiam despontar como
subversivos da ordem social, por não se encontrarem em igualdade de situação
no tecido social. Nem sempre este processo de coerção obtém êxito, seja
individual ou coletivamente, resultando em desordem social. Cada cidadão que
adentra à delinqüência está convicto da validade de sua revolução pessoal, de seu
combate aos efeitos da pobreza e da desigualdade. Infelizmente não combatem
suas causas.
... é a pobreza que causa o crime, porque as pessoas não se
conformam com a injustiça. Alguns se rebelam de uma forma social,
outros fazem a sua revolução individual, pelo bom comportamento, e
outros se rebelam de forma anárquica, resolvendo fazer um pouco
de justiça pelas próprias mãos. Na medida em que essa população
aumenta, e na medida em que a situação da miséria aumenta, a
criminalidade aumenta exponencialmente. (Sampaio, 1985: 122)
64
O aumento das diferenças sociais entre as pessoas é um grande gerador
de criminalidade, e o Poder Público por não conseguir resolver o problema tenta
domesticar o “selvagem” que se rebela. Sabemos, porém que ao tentar
ressocializar o infrator que se rebelou frente às injustiças a que foi submetido, as
instituições correcionais não têm êxito, pois estão tentando “acostumar” o cidadão
a ser vitimado, discriminado, alijado de seus direitos. O único êxito dessas
instituições é tornar o infrator um alienado, adequado ao convívio social. É com
este comportamento que ele ganhará a liberdade pelo seu bom ajustamento, e
disciplina adequados ao bom convívio social. Sua função social setanto mais
valorizada no sentido inverso de sua participação política.
Foucault (1988), assim se expressa sobre a disciplinarização dos corpos:
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
públicos de obediência). (...) Se a exploração econômica separa a
força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e
uma dominação acentuada. (Foucault, 1988: 127)
As instituições promovem os infratores de um estado de marginalidade
social para outro. Continua sendo marginal, mas com um comportamento
diferente. De marginal não aceito socialmente, para um marginal institucionalizado
e essencial para a manutenção do status quo das relações de poder no interior da
sociedade capitalista. Os infratores ressocializados farão parte do exército
industrial de reserva, como diz Marx mão de obra barata para a produção do
capital. E ainda carregarão a culpa da infração em seus ombros. Onde foi parar o
seu posicionamento crítico frente às injustiças sociais? Sua pena, se cumprida
com êxito, apagou o seu desejo de lutar por igualdade social. Ele é mais um dos
inúmeros corpos dóceis produzidos pelo sistema que se satisfaz apenas com pão
e circo, com o mínimo necessário às suas necessidades mais elementares. Saciar
o espírito não é tarefa para uma sociedade preocupada com a eficiência do corpo.
65
3.2 – INFRATORES E INSTITUIÇÕES: CONSIDERAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS
Da mesma forma que se pensa a criminalidade essencialmente ligada às
questões econômicas, também não podemos deixar de considerar as implicações
políticas que tal temática possui.
Assolada cotidianamente pelos problemas da criminalidade, que se inicia
muito cedo, a sociedade cada vez mais debate o problema da criminalidade,
principalmente de adolescentes. No entanto, não obstante ao debate, a opinião
pública quase não se sente atingida com a situação do encarceramento de muitos
jovens, que mesmo antes de terem seus direitos de cidadãos assegurados
tornam-se reféns do sistema criminal e, principalmente, das relações de poder
estabelecidas em nossa sociedade.
A sociedade brasileira ainda possui uma tradição intensamente autoritária;
mesmo com as mudanças das últimas décadas em prol da democracia e do
estabelecimento de novos paradigmas no exercício da cidadania, o povo brasileiro
continua sofrendo os recalques de sua ausência de participação política efetiva;
percebemos isso na maioria da população que apenas reclama quando sua
carteira é arrancada por um adolescente qualquer.
Atitudes como essas acabam refletidas na naturalidade do olhar que é
lançado ao problema da marginalidade em que se encontra uma parte expressiva
da juventude deste país. Assim, o sistema que gera a delinqüência, e acolhe
posteriormente todo tipo de infratores para reeducá-los, é visto apenas como um
desdobramento de um conjunto de relações de poder estabelecido socialmente. A
família, tanto quanto a escola e outras instituições, também refletem o
autoritarismo das relações sociais.
Por mais que vislumbremos as mudanças nos regimes políticos no Brasil,
onde o regime militar foi superado a duras penas e lutas constantes das lideranças
populares deste país, a situação tanto de adultos quanto de adolescentes
infratores não viu mudanças em suas condições de encarceramento. Pois é
66
preciso, acreditam alguns, que a prisão seja terrível para que ninguém queira ir
para lá; como se ir para a prisão fosse uma opção do sujeito infrator.
A afirmação contínua de uma condição punitiva encerra em si mesma o
destino dos detentos, sejam eles quem forem: em lugar da ressocialização, a
punição exemplar. Em lugar de cidadãos que devem ser tratados como tal, o
tratamento destinado a estes infratores é a de um prisioneiro de guerra, um
inimigo. Continua-se punindo as pessoas da mesma forma que os regimes mais
selvagens e as ditaduras mais sangrentas o fazem. Para a comunidade de
detentos não houve a superação da ditadura. Não se superam os modelos
punitivos nas detenções por que as relações de poder, efetivamente, não se
alteram. Práticas repressivas acontecem dentro e fora das prisões. Todavia, fora
do modelo democrático, as mudanças nas relações do Estado com os sujeitos que
entram em conflito com a lei serão ainda mais difíceis.
Embora muitos mecanismos tentem assegurar ao cidadão oportunidades de
participação nos bens produzidos pela sociedade, percebemos que o
determinismo social ainda é a ideologia que prevalece nas relações entre as
pessoas e as instituições. Os lugares determinados na família, na escola, e na
sociedade como um todo, parecem ser assegurados por lei, e, uma vez integrado
a uma instituição correcional, o infrator carregará para sempre o estigma de ser a
encarnação do “mal”. Ao menos é o que sente uma gama considerável de
adolescentes infratores reincidentes, sujeitos dessa pesquisa, que por diversas
vezes expressam a reação da sociedade frente à sua condição: a vergonha da
família que esconde o fato, o afastamento dos amigos, a vigilância da escola, a
ausência de incentivo e aceitação no mercado de trabalho.
Rotulado socialmente, este cidadão, embora sendo um infrator da lei e da
ordem social, tem sua recuperação invalidada. Desde o momento de sua
internação no sistema correcional ele esperará, conforme determina a lei, pela
oportunidade de ser ressocializado, isto é, de ser colocado em uma dinâmica de
desenvolvimento de valores que lhe possibilitem adentrar ao convívio social sem,
67
contudo, interferir na ordem estabelecida. Mas os programas de ressocialização,
mesmo implantados, não garantem o curso de sua recuperação.
Subliminarmente, além da punição institucional, vários fatores estabelecem
uma condenação suplementar. Verdadeiras expedições punitivas o realizadas
para tornar o período de ressocialização o mais cruel possível. As prisões no
Brasil o simplesmente para castigar; são apenas amontoados de cidadãos de
classes subalternas, em sua maioria, depositados em compartimentos
estruturados em aço e cimento, é nesse ambiente que os detentos vivem a sua
condição de “encantamento”.
13
Não é de se estranhar que os rceres tenham a mesma arquitetura
erguida para as fortalezas, são repetidas em Igrejas e conventos, escolas e
colégios, hospitais, penitenciárias e outras instituições, inclusive as casas mais
abastadas da burguesia. Esta engenharia a cada indivíduo o seu lugar social,
isto é, cada indivíduo em seu lugar, em sua , em sua sala, em seu quarto e em
cada lugar um indivíduo. Nos rceres são depositadas a mesma maioria que não
participa politicamente das decisões sociais, não possui capital e apenas detém
sua força de trabalho como patrimônio colocado cotidianamente à venda.
Qualquer instância do sistema prisional no Brasil configura-se como uma
nova versão dos campos de concentração que não intentam nada além de apagar
uma existência incômoda à sociedade. Se não dão conta de fazer com que o
próprio sistema os absorva e sejam vitimados por seus pares, os dizimam moral e
emocionalmente, tornando-os ainda piores. E as considerações aqui feitas não
são apenas frutos de revisões bibliográficas, mas se constituem a partir de
observações realizadas no lócus de pesquisa o Lar do Adolescente
Fazendinha em Cuiabá MT. Lá, relatos e observações contam as atrocidades
sofridas pelos adolescentes, tanto física quanto moralmente, cometidas pelos
agentes prisionais. Por outro lado os mesmos adolescentes vitimam seus pares,
chegando às vias do assassinato por ocasião de rebeliões ou outros levantes.
13
Esse termo, nesse contexto de pesquisa, ganha uma nova conotação que será explicada no
capítulo IV.
68
Está fartamente demonstrado que as penitenciárias não reeducam
os detentos, não dissuadem a prática do crime. Estão reduzidas à
sua função retaliatória, quer dizer, ao puro castigo. A prisão no
Brasil, hoje, é puro castigo. O que nos cabe, numa conjuntura de
abertura, para o debate da democracia, é saber se os reformadores
interferem na correção desse quadro geral, que não satisfaz.
(Pinheiro, 1985: 70)
“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode
ser transformado e aperfeiçoado.” (Foucault, 1988: 126) Sem lei, sem medo da
morte, sem sonhos, sem nada. O que lhes resta? Resta resignar-se a cumprir o
que manda a lei, afinal é para isso que existem as instituições prisionais. É nesse
espaço/tempo que o sujeito é formado, (de)formado, (re)formado, (en)formado,
mas não é (trans)formado. Quem sabe o que realmente essas instituições fazem
aos adolescentes?
3.3 – AS INSTITUIÇÕES PRISIONAIS SOB O PRISMA JURÍDICO
Para que nos seja possível discutir com maior autonomia as questões
relacionadas à criminalidade do adolescente faz-se mister compreendermos, nem
que seja de forma rápida, como as instâncias jurídicas se colocam frente ao
adolescente infrator.
A execução de uma pena não é papel apenas do poder judiciário. Aliás, o
poder judiciário apenas estabelece a pena e entrega o condenado ao Estado para
que este a execute, cabendo à autoridade administrativa os poderes para executar
as penas do sistema penitenciário. Portanto, cabe à administração desfrutar de
autonomia e independência para a execução da pena. Ao Juiz cabe acompanhar e
supervisionar a execução da pena e a educação do adolescente que praticou o
ato infracional.
O Ato Infracional, conforme o ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
(2003), constitui-se numa conduta de crime ou contravenção penal, ao qual cabe
uma medida sócio-educativa que tem por objetivo educar e não punir. Elas
69
deverão ser aplicadas somente após o devido processo legal, ou seja, depois que
o adolescente for ouvido pelo juiz, bem como seus pais ou responsáveis, a parte
vitimada, testemunhas e todos quantos estiverem envolvidos no processo. Se
condenado a uma medida sócio-educativa, o adolescente poderá ser: advertido,
obrigado a reparar o dano causado, a prestar serviços à comunidade, a ter
liberdade assistida, semiliberdade ou internação.
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado pela Lei
Federal 8.069, de 13 de julho de 1990, em seu Art. 2º, “Considera-se criança, para
efeitos desta Lei, a pessoa de até doze anos de idade incompletos, e adolescente
aquela entre doze e dezoitos anos de idade” (ECA, 2003: 13).
Vejamos, conforme o Manual dos Direitos da Criança e do Adolescente
(2001), em que consiste cada uma das penas que poderão ser instituídas e
acompanhadas pelo Poder Judiciário e aplicadas pelas instituições correcionais,
em caso de haver infração por parte de adolescente:
a) Advertência: é a medida sócio-educativa em que o adolescente será
orientado sobre o ato que praticou, as conseqüências de seu ato e as
penas se nos mesmos atos incorrer. Sefeita ao adolescente diante dos
pais ou responsáveis por escrito e assinada;
b) Obrigação de reparar o dano: esta medida deverá ser aplicada quando
o ato infracional gerar algum prejuízo de ordem material à vitima e deverá
ser cumprida pelo adolescente infrator e não pelos seus pais, pois possui
caráter reeducativo;
c) Prestação de serviços à Comunidade: esta medida destina-se à
realização de tarefas gratuitas e de interesse geral, nunca por um período
maior que seis meses, de modo a não prejudicar sua freqüência na escola;
d) Liberdade Assistida: necessária quando as circunstância da infração
indicarem a necessidade de um maior acompanhamento do adolescente
para que este não retorne à pratica de infrações. O acompanhamento
poderá ser feito por assistente social, entidades ou programas de
atendimento;
70
e) Semiliberdade: o adolescente recebe restrição parcial de sua liberdade,
por acreditar-se que a manutenção total de sua liberdade poderá levá-lo ao
cometimento de novas infrações;
f) Internação: medida sócio-educativa mais grave no Estatuto da Criança
do Adolescente. É a restrição total da liberdade do adolescente e sua
internação em estabelecimento sócio-educativo.
A medida de internação resultante de flagrante (prisão no ato do
cometimento do ato infracional) ou por determinação do juiz para
melhor se apurar o caso, chama-se INTERNAÇÃO PROVISÓRIA e
ocorre antes da produção de provas, mas poderá durar no
máximo 45 dias. (Manual dos Direitos da Criança e do Adolescente,
2001: 17)
Se condenado, o adolescente deverá cumprir uma das penas estipuladas
pelo Juiz; contudo, entre o adolescente condenado a uma medida cio-educativa
e o Poder Judiciário que o condenou existem diversas instâncias hierárquicas.
Entre essas duas pontas do processo uma distância quase intransponível. O
contato entre elas se apenas de forma indireta através de diferentes e
inúmeros relatórios obtidos através do trabalho das equipes técnicas - peritas em
crimes e em avaliar as condições de “ressocialização” do condenado. Assim, os
contatos mais próximos do condenado são mantidos pelos carcereiros; são eles os
cidadãos que têm mais possibilidades de estabelecer uma relação de proximidade
com o condenado em vista de sua ressocialização.
Quando pensamos em ressocialização do cidadão deixado sob a tutela do
sistema penitenciário, bem como na melhor forma para que isto venha a
acontecer, temos que, necessariamente pensar em encontrar o caminho da
socialização do próprio Brasil. Como diz Dias (1985):
Quando pensamos na melhor forma de ressocializar o preso,
deveríamos procurar encontrar o caminho da socialização do país.
(...) é realmente a grande desigualdade na distribuição da renda
nacional a causa principal dessa nossa criminalidade marginalizada,
que existe um outro tipo de criminalidade, a criminalidade
institucional, que sustentação a esse sistema, e que é a razão de
ser do próprio sistema. (Dias, 1985: 33)
71
A impunidade e a má distribuição de renda que não oportuniza a equidade
de condições de acesso aos bens culturais, incluindo-se a educação e todos os
outros, impede que os cidadãos vivam a sua condição plena enquanto seres
sociais, alijando-os desse exercício, pois os bens materiais, as regras e normas
são insistentemente colocados acima dos seres humanos.
Numa dinâmica que privilegia o patrimônio acima da liberdade e da vida, os
cidadãos um dia condenados, com muita sorte um dia serão egressos, e levarão
indelevelmente as marcas de sua reclusão. Ficarão vinculados à sua história de
delitos e serão “julgados” perenemente pela sociedade conforme suas infrações.
Estabelece-se novamente a mesma dinâmica das relações de poder que o
levaram ao delito. Seu eu pessoal vale menos do que o patrimônio que avariou;
sua condição de sujeito de direito não é restabelecida mesmo tendo cumprido sua
pena. Seu retorno à sociedade é mediado por um sistema de opressão. A
discriminação de um sujeito pelo crime que cometeu, não seria também um crime?
Tal atitude é capaz de desencadear uma série de atitudes que geraria ainda mais
desequilibro social. A condição do egresso é descrita por Dias (1985) da seguinte
forma:
O melhor dos egressos, de acordo com o nosso sistema
penitenciário, é aquele que assimila com maior intensidade os
valores do nosso modelo. Portanto, jamais será um operário
consciente que luta em favor de sua classe. (...) Nós não podemos
pensar num sistema penitenciário que se destina a preparar
revoltosos e inconformados ou então oprimidos conformados, mas
cidadãos conscientes de um país que ainda não lhes pertence, mas
que deverá ser deles e de toda classe trabalhadora. (Dias, 1985: 39)
A busca pela ressocialização do sujeito delinqüente, sob as formas
apresentadas, não coaduna com a emergência de um cidadão crítico e
consciente, capaz de exercer sua cidadania no meio social onde vive.
Diante dessa constatação, podemos compreender a total, completa e
absoluta inexistência de programas que permitam ao adolescente constituir-se
72
enquanto cidadão, na amplitude do termo. Não interessa ao sistema político-
econômico, representado nessa instância pelas instituições prisionais, uma grande
leva de cidadãos conscientes, muito menor ter programas, inclusive os de leitura,
que viabilizem a tomada de postura frente às estruturas sociais.
3.4 - O ADOLESCENTE INFRATOR E A INSTITUIÇÃO DE RESSOCIALIZAÇÃO
O adolescente infrator é a materialização de um cidadão que sabe que o
seu país não lhe pertence; que a sociedade em que está não é a sua casa, o seu
lar, o seu lugar; ao menos não como está. Ao sentir essa certeza, de estar à
margem e que as oportunidades de sucesso lhes são reduzidas a cada dia, aos
poucos vai adentrando ao mundo dos pequenos e contínuos delitos, até ingressar
num mundo de criminalidade, assumindo socialmente sua condição de marginal.
Marginalidade esta que não se inicia em seus primeiros furtos, mas que nasce
com ele na condição de alijamento social em que é gerado.
Depois de insistentes atos infracionais, a sociedade num extremo ato de
autoproteção percebe a existência deste cidadão. Antes não o percebia, mas
quando os seus direitos de ir e vir e, essencialmente de ter e consumir, estão
sendo ameaçados por algum “delinqüente” esta sociedade se manifesta e exige
decisões e providências. Assim, todo o aparelho repressor do Estado entra em
ação. Este mesmo aparelho que não foi capaz de perceber o grito deste
“marginalizado” por igualdade de condições de existência, ouve o grito da
sociedade capitalista quando ameaçada em seu “patrimônio”.
Sem demora este “delinqüente” é levado para a execução sumária.
Ingressam nas instituições ressocializadoras. Quando adentram, carecem de
uma série de valores de convívio social, tidos como adequados, e o seu tempo de
internação no sistema deve ser o necessário para que ele obtenha os valores
essenciais que lhe garantam o necessário para se reintegrar à família, à escola, ao
mundo do trabalho, à sociedade como um todo, sem voltar a lhe causar danos. Em
outras palavras, o adolescente deve aprender a ler na cartilha do sistema.
73
Para tanto, necessidade de uma série de especialistas que formarão a
equipe técnica, responsável por dar suporte ao seu processo de ressocialização.
Na medida em que se moderniza a instituição, ela se propõe a colocar em prática
uma situação de possibilidade de integração desse menor na sociedade, e para
tanto cria um corpo de funcionários.
Esse corpo vai proceder a uma avaliação da sua clientela, a partir da
capacidade de introjeção, isto é, da capacidade que têm essas
crianças de absorver os valores que a instituição quer passar, por ela
considerados como universais. Somente a partir desse corpo de
especialista é que o menor vai conseguir obter passaporte para a
sua liberdade (Passetti, 1985: 99).
No entanto, devemos perceber que nesse processo em que a instituição
está preocupada em passar ao adolescente uma série de valores, que revelam a
sua concepção de mundo, não há espaço para a valorização das concepções que
o próprio adolescente traz consigo; nem mesmo como um ponto de partida para a
introjeção de outros valores. Não se leva em conta o seu conhecimento de mundo,
historicamente construído, para propor as suas “verdades”. Afinal, a instituição
detém consigo mesma o poder, os mecanismos de controle do comportamento,
devidamente legitimados pela sociedade. Representa um valor institucional, por
isso, um valor universal, válido, consolidado que objetiva adaptar o adolescente
infrator aos seus moldes. o adolescente possuidor de outros valores deseja
apenas sobreviver.
Decididamente, instituições ressocializadoras e adolescentes vivem em
mundos separados de forma abissal. Não interesse comum que os possa unir.
De um lado a instituição luta para colocá-lo dentro das teias de suas relações
sociais, estabelecidas com base nos pressupostos das desigualdades sociais que
mantém o sistema capitalista; de outro o adolescente, rebelado socialmente,
tentando lutar contra este mesmo sistema que o oprime e que agora é obrigado a
introjetar para poder se ver livre de suas amarras. Para este adolescente restam
poucas saídas: a primeira saída é a fuga. A segunda é a incorporação do discurso
74
da instituição para livrar-se o quanto antes da condenação; “A terceira é “transar”
com a inspetoria, em troca de algum bem. Então ou se transforma em alcagüete
interno, ou passa a se tornar um malandro com a “ética” da malandragem”.
(Passetti, 1985: 103). Na carceragem os alcagüetes formam um grupo que precisa
ficar separado. Eles ficam no ‘seguro’ onde são protegidos dos demais
adolescentes que podem atentar contra suas vidas.
Assim, este mesmo adolescente que é alvo permanente da instituição que
tenta incutir-lhe valores, desenvolve um rol de comportamentos que contrariam
esses valores. A dissimulação de seus próprios valores o coloca numa situação
ainda de maior distância do seu eu verdadeiro, enquanto o aproxima do modelo
idealizado pela sociedade: o garoto arrependido que vai amoldar-se às
convenções sociais. “No fundo, o mito do certo e do errado não é internalizado
pelo menor como efeito de sua relação com a instituição”. (Passetti, 1985:103).
Para sobreviverem, como diz Mafezolli (2002), os adolescentes criam seus
grupos
14
, no interior dos quais engenham planos para obter vantagens da
instituição; vantagens estas que podem ir desde a troca de armas artesanais,
fabricadas por eles mesmos para serem usadas em rebeliões, por revistas ou
outros materiais pornográficos, até favores sexuais em troca de entorpecentes.
Quanto mais a instituição os pressiona para serem o que a sociedade
deseja, mais os adolescentes reagem, pois vêem a pressão da instituição como a
pressão da própria sociedade que ali se configura. Frente ao que lhe é imposto,
imposição contra a qual se rebelou sua vida toda, reage das formas mais
inusitadas gerando um turbilhão de violência contra aqueles que se encontram
mais próximos dos interesses da sociedade, seus pares alcagüetes são os
primeiros alvos. Uma reação que não teme nem a morte.
14
A formaçãodos grupos, conforme Maffesoli (2002) “... favorece a auto-conservação, um ‘egoísmo de
grupo’ que faz com que este possa desenvolver-se de maneira quase autônoma no seio de uma entidade mais
ampla” (p. 130)
75
... porque a morte para ele é um elemento natural, com o qual
convive no seu dia-a-dia. Ele não tem esse medo, esse pavor próprio
das pessoas que não vivem constantemente em perigo. Ele também
percebe na sua trajetória que a sua situação, a sua condição de
miséria, a passagem pela instituição colocam apenas duas
alternativas na fase adulta: a prisão ou a morte.
(Passetti, 1985: 104).
Se pensarmos nos processos de ressocialização ou nas medidas sócio-
educativas a que os adolescentes são submetidos, percebemos ações que visam
moldar estes sujeitos aos comportamentos socialmente aceitos, comportamentos
esses que garantirão o sucesso da manutenção das relações de poder próprias do
modelo capitalista; as mesmas contra as quais se rebelaram e que os levaram à
criminalidade e ao cumprimento de medidas punitivas, afinal que medidas
educativas são essas no interior das instituições correcionais?
3.5 - UMA PEDAGOGIA CARCERÁRIA
Colocado sob a tutela de uma instituição correcional, o adolescente infrator
recebe dela uma série de “propostas” para o cumprimento da medida sócio-
educativa a qual foi condenado. Assim, podemos dizer que este adolescente
acaba sendo alvo de algumas estratégias pedagógicas, tendo em vista a
necessidade da mudança de sua visão de mundo, e, conseqüentemente, de seu
comportamento frente à sociedade e seus valores. Mas seria possível educar no
cárcere? Para refletir conosco esta questão, nos remeteremos às discussões
empreendidas por Mascellani (1985).
A pedagogia pode ser entendida como a organização da ação educativa, na
relação entre sujeitos que se educam. Nesta perspectiva, a educação se
estabelece num movimento de interação contínua entre sujeitos historicamente
constituídos. Quando falamos em educação, voltamos nossa reflexão para
crianças, adolescentes e adultos que gozam de “determinadas” condições de
acesso à escolarização, sem nos darmos conta de que existe uma parcela de
76
sujeitos que não tem acesso, ou se o tem, não vêem nesta oportunidade a mola
propulsora de seu entendimento sobre as condições sociais em que vive.
Qualquer que seja o sujeito, e muito mais no caso do adolescente, ainda
em processo de formação de sua personalidade, e por isso mesmo mais
suscetível ao aprendizado de novas formas de interagir com o mundo, a influência
das atitudes experienciadas no convívio lhes acarreta grandes possibilidades de
imitação e introjeção dos valores ou desvalores apontados por estas atitudes.
Nesse caso, o sujeito não deveria ser pensado na perspectiva da
‘reeducação’, pois a educação é um processo contínuo de introjeção de valores e
de competências, mas deveria ser introduzido nas bases de uma educação que se
aperfeiçoasse, que se modificasse na sua forma, na sua natureza, continuamente,
e lhe abrisse outras possibilidades de ser no mundo.
Mesmo que assim não seja pensada, a educação nos meios
ressocializadores acaba reproduzindo esta mesma dinâmica. Cada sujeito inserido
nas dinâmicas das instituições correcionais garante a reprodução do modo de ver
da instituição e tenta garantir os objetivos que esta detém. Valores que não são
outros que o da própria sociedade contra a qual o adolescente infrator cometeu os
seus delitos. Uma relação educativa pautada no autoritarismo, na punição e
expiação das culpas contra a sociedade, da dominação e até da própria extinção
dos sujeitos da educação.
Essa anatomia política, como chama Foucault (1988), equivale a processos
mínimos de disciplina que se repetem em vários espaços institucionais: família,
escola, Igreja, hospitais e organizações militares. Todas essas instituições
abraçam uma pedagogia que tem a disciplina por eixo fundamental. Uma
disciplina voltada para a manutenção dos valores sociais, por meio da observância
dos regulamentos que garantem sua existência e coesão. Essas instituições estão
intimamente ligadas aos processos sócio-econômicos por elas vivenciados e
acabam por defender os interesses da classe dominante, que em última estância,
por manter o poder econômico em suas os, também detém o poder político e o
77
poder de determinar que sujeitos são interessantes para assegurar sua
manutenção.
As tentativas de reintegrar o adolescente infrator à sociedade, adaptando-o
às condições contras as quais ele se rebelou, apresentam-se como um dos
resultados produzidos pelo incentivo à acomodação dentro de um sistema de
corrupção e exploração que existe tanto dentro das instituições como na
sociedade. Frente à acomodação desejada para esse adolescente, alguns
programa não têm espaço para serem desenvolvidos, pois ao invés de acomodar
os sujeitos, os desacomodariam. Dentre as práticas possibilitadoras de
efervescência pessoal e coletiva, as práticas de leitura podem ser bastante
significativas.
Parece mais uma pedagogia de dominação, que atravessa todos os
planos das situações ali vividas, uma pedagogia alienante, anti-
crítica, conservadora e reprodutora do estado autoritário e do
autoritarismo, que invadiu a sociedade civil, nestes últimos anos, na
medida em que grande parte dessa sociedade, representada pelos
extratos médios e pelos extratos dominantes, aceitam a violência
como forma de segurança e atribuem às camadas trabalhadoras e
aos chamados mais pobres, a capacidade de oferecer perigo a esta
mesma segurança, que convém aos dominadores. (Mascellani, 1985:
151)
Uma educação voltada para a apreensão crítica da realidade e ao
entendimento da condição existencial vivida por este adolescente infrator, muito
mais do que pensar numa libertação individual, se constituiria numa proposta
educativa adequada à condição desses adolescentes. No entanto, o que
percebemos é uma reflexão voltada para um benefício pessoal, físico, material em
detrimento de posturas que visem a libertação de uma estrutura de dominação e
opressão dos pobres. Uma educação que não permite ao adolescente descobrir a
sua vocação de transformador da sociedade, pois, “(...) em qualquer sociedade o
corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõe limitações,
proibições ou obrigações.” (Foucault, 1988: 126), muito mais do que direitos.
78
O que comumente vemos são práticas de ensino e não práticas educativas.
As práticas de ensino visam a aprendizagem pelo adolescente, seja ele quem for,
de alguma atividade específica como noções de marcenaria, eletricidade, pintura,
música, dança e outras atividades profissionalizantes etc. Os processos
educativos, ao contrário, visam suscitar junto ao adolescente um posicionamento
frente à realidade e não apenas o desenvolvimento de uma habilidade motora. O
que no Lar do Adolescente Fazendinha configura-se, idealmente, como um
processo de adequação aos valores sociais, mas não a quaisquer valores, apenas
aos que sustentam a ordem social vigente. Se não for possível uma adequação
real, uma máscara convincente já satisfaz o sistema.
O que se deixa de considerar é que toda a vivência numa instituição
correcional resulta num processo educativo. Assim, todas as posturas que não
admitem participação, que não toleram críticas, não permitem às pessoas a
descoberta de si mesmas, pois incentivam o uso de máscaras para poderem
sobreviver ao sistema, não viabilizam sua realização, se mostram inócuas.
Esse tipo de relacionamento que vai ‘educando’ o preso para dobrá-
lo, consegue dobrar a sua personalidade, que deixa de ser uma
figura erecta humana e vai caindo, até ficar “de quatro”, até ficar
numa posição de animal, conduzido por um cabresto. (Mascellani,
1985: 155)
Qualquer sujeito se apercebe fraco para reagir frente à deteriorização de
seu “eu” pessoal, de sua personalidade, e coloca-se numa situação de impotência,
de dependência do seu dominador, ainda que esse dominador seja apenas
instrumento de todo um sistema.
79
IV - EM CASA, NA SALA E NA SELA
A FORMAÇÃO DO LEITOR EM 3 ATOS
Se não houvesse a palavra
a solidão humana seria intolerável.
Dostoievski
4.1 - A FAMÍLIA
O ser humano nunca esteve sozinho no mundo e jamais conseguiu
escrever história isolado de seus pares, nem, tampouco, conseguirá forjar seu
caráter e tomar seu norte independentemente de todas as dimensões que fazem
parte de sua existência. Enquanto ser social, o homem precisa essencialmente do
outro para instituí-lo enquanto ser humano. Outorgada sua humanidade, o homem
continua a missão de inscrever-se conscientemente na história e,
intencionalmente, manter-se nela.
A alteridade, o outro, aquele que está fora do sujeito, que não é ele mesmo,
mas que lhe condições de reconhecer-se enquanto ser de existência, permeia
todo o processo de constituição do sujeito, segundo as inúmeras rememorações
de reflexões filosóficas de Martin Buber. Afinal, o homem constrói-se na interação
contínua com outros sujeitos, objetos e circunstâncias que se inserem em suas
relações durante toda sua história. É a partir dessa realidade, desse mundo que
se constitui à sua volta, que o homem toma decisões, elabora planos, realiza
projetos, e, fundamentalmente, constrói a si mesmo a partir de suas escolhas.
Afinal, quem é o homem além das escolhas que faz?
Antes mesmo de poder escolher, optar, exercer o livre arbítrio entre as
possibilidades de ser e de existir, o ser humano é inserido numa determinada
80
realidade existencial, em um meio social que lhe oferece algumas escolhas em
conformidade com as condições materiais e morais que dispõe. Assim, em
determinados meios, os sujeitos têm a possibilidade de acessar alguns tipos de
relações com o outro e com o mundo; em outros meios, essas mesmas relações
se dão de forma diferenciada.
Sem dúvida, o ser humano não é apenas uma síntese de múltiplas
interações sociais, contudo, não é possível negar a importância do meio e de suas
inúmeras dimensões na construção do caráter do sujeito e de suas escolhas.
Assim, o sujeito traz para a constituição de sua própria história, a história de todos
aqueles com os quais compartilhou sua existência; desde os genes até os sonhos.
A primeira grande formação sofrida pelo ser humano vem da família. É ela
quem sustenta o rebentar do homem na existência, o institui enquanto sujeito
histórico e lhe apresenta o mundo. Mostrando-lhe o mundo, a família ensina o
sujeito a ler a existência, a enxergar o mundo e a lhe dar sentido e significado
através de uma linguagem própria tecida no transcorrer dos seus caminhos. As
primeiras visões do mundo e de tudo que nele contém, do outro com todas as
suas possibilidades de ser, bem como das circunstâncias e seus desdobramentos
passa pelo prisma familiar.
Na verdade, a primeira cartilha que o sujeito usa é a família, é ela que
ilumina a razão e estabelece os primeiros rumos na existência dos seus; é ela que
acalenta o choro e alavanca os primeiros passos; nutre o corpo e alimenta a alma
com ou medo, com arte ou dor, com histórias, sonhos ou pesadelos. A família é
a primeira alteridade significativa que inscreve o indivíduo na existência e o
instaura como sujeito.
Não podemos, portanto, pensar em entender qualquer sujeito, ou algum
aspecto de sua formação, sem nos remetermos, necessariamente, aos primeiros
níveis das relações por ele estabelecidas e que refletem o seu percurso inaugural
de socialização, pois a relação desse sujeito com o seu entorno explica-se
também pelo acesso aos bens, comportamentos e vivências culturais que lhe
81
foram ofertados pela família. Nessa ordem, em pesquisa encomendada pela
UNESCO, Waiselfisz (1998), a razão apontada por inúmeros professores frente à
violência do jovem, está a desarticulação familiar, a influência dos meios de
comunicação e a falta de limites.
15
Nesse momento, o processo de formação do leitor adolescente e as
dimensões que o constituem são os focos para onde convergem as reflexões aqui
pretendidas, não nos esquecendo de que a formação do leitor não erradia-se
apenas a partir do espaço escolar, mas também das primeiras experiências
familiares. Portanto, os dados e relatos aqui explicitados não têm por objetivo
explicar ou justificar a inserção dos sujeitos da pesquisa em um universo de
delinqüência, ao contrário, o que se deseja é apenas iluminar o entendimento das
diferentes vivencias sociais do adolescente infrator no processo de sua formação
enquanto leitor, tentando relacioná-las.
4.1.1 – A Escolaridade da Família
Um primeiro dado relevante diz respeito à formação educacional dos pais
ou responsáveis pelos adolescentes. Os relatos dos trinta e dois (32) entrevistados
para o levantamento inicial informam que apenas quatro (04) mães e um (01) pai
concluíram o Ensino Fundamental. Apenas dois (02) dos pais têm mais de quatro
(04) anos de escolaridade, e as mães, onze (11) delas, possuem escolaridade
superior a quatro (04) anos.
No meio familiar, apesar de a e ter uma escolaridade maior que a dos
pais, ainda verifica-se que a média dos anos destinados à educação formal são
muito baixos. A imensa maioria dos pais dos adolescentes é retratada por seus
filhos apenas como alfabetizados; alguns adolescentes o se recordam se seus
pais sabem ou não ler e escrever, o que pode configurar exemplarmente o quadro
da estimulação sócio-cultural do adolescente em questão, pois conforme Silva
15
Em seu estudo, publicado na obra “Juventude, Violência e Cidadania”, presente em nossa
bibliografia, Júlio Jacobo Weiselfisz traz inúmeras informações sobre a violência em suas múltiplas
formas de manifestação, a partir do caso do ‘Índio Galdino’, ocorrido em Brasília.
82
(1986), “... a gênese das dicotomias com ‘ler x o ler’, ‘gostar de ler x não gostar
de ler’ [...] depende das incitações do meio sócio-cultural (família,escola e
sociedade)” (p. 57)
Mesmo com baixa escolaridade, é possível ao sujeito configurar-se como
leitor, pois o acesso a alguns bens culturais, neste caso específico a literatura, não
depende apenas de escolaridade e sim de muitos outros fatores que aqui
poderemos verificar no decorrer de nossa exposição. O mais comum a ser
observado é que uma relação de proporcionalidade direta entre os níveis de
escolaridade e as práticas de leitura. No caso do núcleo familiar dos adolescentes
pesquisados, suas lembranças remetem às práticas de leitura de seus pais para
momentos estanques, pois circunscrevem essas experiências de leitura a um
tempo e espaço bastante reduzidos: os domingos à noite quando não havia
mais nada a fazer.
Alguns adolescentes, no entanto, não lembram e nunca viram seus pais
lendo alguma coisa. Cabe lembrar uma célebre frase de Santo Agostinho, que dita
na no século IV pode ser usada em consonância com as mais modernas teorias
sócio-interacionistas quando apontam as zonas de desenvolvimento proximal
como uma possibilidade de desenvolvimento de capacidades reais no sujeito, que
diz assim; “As palavras convencem, os exemplos arrastam”. Portanto, os sujeitos
expostos a um meio social, nesse caso a família, em que experiências
concretas de leitura, podem, a principio por aproximações sucessivas, desenvolver
esse hábito até que se tornem aprendizado significativo na vida dos sujeitos.
A prontidão para a leitura é determinada, em grande parte, pela
atmosfera literária e lingüística reinante na casa da criança (...) A
criança será bem-sucedida, e a experiência do êxito é a melhor
motivação para desenvolver o interesse. A ajuda dos pais continua a
ser necessária mesmo depois que ela tenha aprendido a ler. A
criança deve ser capaz de sentir o interesse dos pais pelo que está
lendo... (Bamberger, 1995: 71)
83
Assim, a atenção dos pais, em conjunto com um mínimo de suportes de
leitura podem levar a criança ou o adolescente a terem experiências significativas
de leitura.
4.1.2 – Os Suportes de Leitura do Ambiente Familiar
As reflexões sobre as dimensões sociais vividas pelos adolescentes em seu
processo de formação enquanto leitores pedem que as investigações não se
dêem apenas no tocante à realização de leituras, mas também sobre os suportes
de leituras a disposição no ambiente familiar e que poderia ser acessado.
Portanto, indagamos aos adolescentes, o que era lido por seus pais. Em resposta,
encontramos a Bíblia como a fonte de leitura mais importante nos lares de todos
os adolescentes; em seguida aparecem as revistas e os jornais na maioria das
vezes velhos e desatualizados, como suportes acessados pelas famílias, conforme
relatos.
Apesar de muitos adolescentes não saberem exatamente o que seus pais
liam, e uma quantidade significativa deles nunca os terem visto lendo alguma
coisa, recordam-se dos suportes que havia em suas casas. A Bíblia, gibis, revistas
e livros didáticos são os suportes mais encontrados. Livros de literatura,
enciclopédias e dicionários foram encontrados em apenas três (03) dos vinte e
sete (27) relatos obtidos. Saltam aos olhos dois depoimentos efusivos, um deles
afirmando a presença de revistas e a inexistência de livros em sua casa. Durante a
entrevsita Boca diz com veemência:
Livros não. (BOCA).
Outro adolescente ainda reforça a presença mínima de suportes de leitura
afirmando:
Livros de escola somente. (BACURAU)
84
A ausência de suportes de leitura como obras literárias, por exemplo, reduz
as possibilidades de acesso das famílias aos livros, que não é inda menor pela
presença dos livros didáticos, que talvez sejam a única forma de acesso ao
conhecimento acumulado pela humanidade por aquele núcleo familiar. No entanto,
nenhum dos relatos evidencia o manuseio ou a leitura desses livros por parte dos
pais dos adolescentes.
No cotidiano da vida das pessoas o livro não é visto como uma
necessidade, como um objeto de valor e importância (...) onde como
conseqüência é pela ausência de leitura, leitores escolarizados
regridem ao estágio de analfabetismo ou semi-analfabetismo. (Silva,
1993: 78)
Em meio ao ambiente cultural acima descrito se constituem grande parte
das relações familiares dos adolescentes sujeitos dessa pesquisa, inclusive com
relação às práticas de leitura.
4.1.3 – As Relações Leitura/Família
As informações que são aqui apresentadas apontam para a necessidade de
perceber e destacar as relações entre pais e filhos no que tange às práticas de
leitura; isto é, as relações construídas entre pais e filhos norteadas, ou mediadas,
pelo ato de ler, pelo acesso ao livro, como parte de uma estratégia mais ampla de
preparação da criança/adolescente para a vida. Para tanto, trazemos para nossa
reflexão as considerações de Lajolo (2002) acerca da construção social das
imagens da infância
16
, do jovem e do adolescente que apontam para a condição
de aprendiz como um dos aspectos que melhor caracterizariam esse tempo de
existência.
16
Os estudos de Lajolo (2002), ‘Da Leitura do Mundo ao Mundo da Leitura’ voltam-se para a
história da infância e, por isso, para o resgate dos conceitos historicamente construídos do que
caberia especificamente à infância, diferentemente da vida adulta, nas questões relativas ao seu
aprendizado de leitura.
85
Entre os novos papéis que ajudaram a atribuir identidade à infância,
destaca-se o de aprendiz, isto é, a de um indivíduo que, com seus
coetâneos, reunidos coletivamente em espaços sociais denominados
escolas, desenvolveria aprendizagem mais indiferenciada do que
aquela que adquiria com os antigos ‘mestres’ ou com a família.
(Lajolo, 2002: 26
)
A presença de alguns depoimentos ajuda a elucidar alguns pontos
importantes que mostram as relações entre os adolescentes e sua família, tendo
como foco a possível aprendizagem advinda das práticas de leitura, vejamos o
que nos dizem:
(...) como castigo era colocado para ler. (SÓCIO)
Nesse fragmento de um relato bem mais extenso sobre sua vida e as
experiências pelas quais passou, o adolescente em questão evidenciou uma das
formas como a leitura pode ser encarada pela família: como uma obrigação, e
nesse caso como um castigo, um trabalho relacionado à mobilização de forças
não associadas ao prazer.
Em alguns outros relatos, são notados alguns momentos em que a
presença da leitura no seio familiar não foi exatamente o que pode ser chamado
de “positiva” ou “incentivadora” de práticas efetivas de leitura. O acúmulo desse
tipo de experiência pode configurar a formação de um sujeito avesso à leitura,
pois, associando-a a momentos de desprazer e desconforto físico e/ou moral os
sujeitos a evitam fazendo-a ficar à margem de seu cotidiano.
Vejamos o que os adolescentes nos dizem:
Minha mãe fazia eu ler a Bíblia, salmo 91, ler e depois copiar. Pra
mim era o fim da vida, eu grilava demais. (BOCA)
Meu padrinho me fez ler na marra, eu aprendi a ler e a escrever
com ele; ele que ensinou eu a ler. Antes de ir para a escola já sabia
ler, escrever e tudo mais. Foi bom. (FORMIGUINHA)
86
Frente à obrigação da leitura, os sujeitos respondem à situação a que são
expostos de formas diferentes, desde não compreender a situação e ficar “grilado”
como diz Boca, até assumindo mais tarde os benefícios de ser alfabetizado “na
marra”, como relata Formiguinha.
Situações mais extremas são relatadas:
A minha mãe me botava de joelho. Se não lesse ia de joelho.
(GUIGUI)
Minha mãe e meu pai me obrigavam a ler e eu nem lia, enrolava.
chegaram a pegar o livro e me bater com o livro da escola na
cabeça. Tava na primeira série e não tava querendo ler, tinha
redação pra fazer, era para ler e escrever, e eu não queria ficar lá.
Minha mãe foi e me deu umas livradas na cabeça. (LILICO)
Em outros depoimentos, doze (12) deles, as relações entre pais e filhos
mediadas pela leitura o foram lembradas, ou não aconteceram ou fazem parte
das experiências que os adolescentes apagaram de sua memória. Outros dez (10)
depoimentos afirmaram que os contatos entre os adolescentes e seus pais,
mediados pela leitura, eram promovidos com o claro objetivo de aprendizagem
escolar, esquecidos de que a literatura, conforme Lajolo (2002), tem a capacidade
de gerar diferentes comportamentos em diversos níveis inter-pessoais.
Outros dez (10) depoimentos relatam a presença de um mediador de
leitura em casa nos anos que antecederam sua alfabetização. As mães são as
que oportunizam aos filhos, nos seus primeiros anos, o contato com a leitura. Fato
curioso é que, tanto quanto as mães dos adolescentes, as irmãs mais velhas são
as fiéis depositárias das obrigações de apresentar o mundo letrado ao irmão mais
novo. Elas, as irmãs, são tão presentes quanto as mães no papel de apresentar o
mundo da leitura à criança.
Mães, irmãs mais velhas e avós são as personagens mais lembradas pelos
adolescentes quando é rememorada parte de sua história de leitura. Figuram
87
ainda timidamente os tios e os pais, nesta ordem. Ressalte-se nesse momento o
papel de destaque empreendido pela mulher como mediadora na construção das
competências do sujeito enquanto leitor. O que verificamos em nossa pesquisa é
corroborado pelos estudos de Faria (1999) quando trata das influências recebidas
por crianças e adolescentes nas escolhas dos livros para leitura; quando escolhem
admitem serem influenciados pelas mães, professoras e pela bibliotecária, sem
contudo destacar, em nenhum momento, a influência de figuras masculinas em
seus escolhas.
Ao incentivarem intensamente a leitura da Bíblia e dos livros didáticos, elas
são lembradas de forma significativa nesse processo, com podemos verificar no
depoimento que segue:
(...) a avó incentivava, mesmo analfabeta, dizia para ler e não ficar
como ela. (RAPOSINHA)
A superação do ser humano, percebida no depoimento de um dos
adolescentes, brota das circunstâncias menos favoráveis, de onde talvez o se
imagine possível. Na frase da velha senhora, a intenção de que a história dos
seus supere a sua própria história, revela uma possibilidade a mais de ser e estar
no mundo; é a presença do desejo de superação de sua condição social pelo
aprendizado, pelo domínio das competências de ler e escrever.
A intuição daquela senhora estava correta. A aprendizagem não se
espontaneamente, é preciso que haja uma intencionalidade na ação, por isso a
inserção da criança no mundo letrado não pode dar-se apenas de modo casual ou
informal, embora também possa se dar assim. É preciso espaços, tempos e
intenções que se voltem ao desenvolvimento das práticas de leitura de forma
sistemática com objetivos claros a serem conquistados, pois algumas práticas de
leitura vistas com um fim em si mesmas, apenas banalizam e esvaziam a leitura e
o leitor.
88
O convívio com pessoas que fossem bons exemplos de leitores e
pudessem mediar também o seu inserimento nesse universo reduzem-se a
lembranças vagas de parentes e conhecidos, e não de pessoas ligadas ao seu
cotidiano. Lembram das irmãs (Boca e Lilico), do vizinho Marcos (Neguinho), do
Tio Mirão (Guigui) e do padrinho (Formiguinha), os últimos três exemplos são de
pessoas com quem tinham um contato reduzido. Somente Cearazinho refere-se
ao seu pai, com quem não convive desde muito cedo, como exemplo de leitor por
que trabalha com programação de computadores, nos outros casos, os pais não
aparecem nas informações coletadas como sendo exemplos de leitores, por isso
não figuram entre possíveis modelos a serem seguidos pelos adolescentes.
Um depoimento mostra a saudade de uma realidade que talvez nunca fora
vivida, mas que salta aos olhos como uma possibilidade de existência. Ao ser
perguntado sobre as lembranças de seus pais lendo para ele, um dos
adolescentes diz:
Não lembro. Pra minha irmãzinha eles liam, de repente liam pra mim
também, mas não sei. No sofá mesmo, eles sentam do lado dela e
começam... (NEGUINHO)
Naquele momento da entrevista a humanidade daquele sujeito revelou-se
no silêncio que impregnou a sala e nos olhos agitados que subitamente pairaram
imóveis por alguns instantes num imenso vazio. Depois de um instante ele
completou:
Acho que eu iria gostar; pela presença, por estar ali
junto...(NEGUINHO)
A leitura está cercada por elementos que a significam, mesmo os
momentos não vividos são intuídos como experiências que ampliam a humanidade
do sujeito leitor, pois abrem universos de possibilidades. O seio familiar é o lócus
89
social onde se travam as primeiras inter-relações do sujeito, onde os primeiros
esboços de construção do ser humano são traçados, grandes projetos são
sonhados, todavia, às vezes, as condições sócio-históricas talham em formas
rudes a humanidade. Perfis inocentes o embrutecidos, rostos ainda pueris são
marcados por profundas cicatrizes que atingem muito mais os sonhos do que
propriamente o corpo.
O leitor deve estar atento às possibilidades que a leitura
surpreendentemente aponta. A ausência dessa perspectiva nos processos de
mediação social presentes na formação do leitor equivoca algumas propostas e
separam ainda mais leitor e obra e os sujeitos entre si.
4.1.4 – O Papel do Livro
Outra associação possível, desta vez ligada aos aspectos lúdicos e
prazerosos da leitura, foi investigada junto aos adolescentes para perceber se
havia indícios do valor que os livros e a leitura poderiam possuir em suas vidas.
Foi indagado se os adolescentes, desde sua infância, tinham recebido ou dado
algum livro de presente, afinal tais práticas inserem os sujeitos num universo de
valorização da leitura e, consequentemente de seu principal instrumento: o livro
Todos os adolescentes que responderam a esta questão foram unânimes em
afirmar que nunca presentearam ninguém com livro. quanto ao recebimento de
um livro como presente, vejamos o que nos contam:
Não ganhei, só livro de escola que era obrigação e não presente. (LILICO)
Nunca ganhei porque não gosto de livro. (FORMIGUINHA)
Além de não ser uma prática cultural presente no ambiente familiar dos
adolescentes, o recebimento do livro como presente mostra-se quase sem sentido
90
ou suscita, no máximo, indiferença em -lo ou não recebido, pois as práticas de
leitura, quase inexistentes em seu meio, apontam apenas para os aspectos
práticos da leitura como por exemplo ler um cartaz ou o destino de um ônibus.
Eu aceito por aceitar, mas nem ler eu leio. (BOCA)
O relato acima descrito revela a situação não apenas de uns poucos
adolescentes, mas de muitos deles. Alguns foram saber que o livro poderia ser um
objeto a ser presenteado quando estavam encarcerados. No entanto, diversas
restrições, por parte do Sistema Prisional, à entrada de livros no cárcere fazem
com que os adolescentes sintam-se mais uma vez privados do acesso ao livro e à
leitura como direitos que possuem aos bens culturais da humanidade. Esses bens
lhes foram subtraídos desde muito cedo e, desde então, continuam sendo-lhes
negados. Segundo Held (1980) “o texto literário é uma fonte inesgotável de
leituras. É o real e o imaginário que se interpenetram, apontando formas de
percepção das pessoas em sua relação com o mundo.” (p. 17)
Nem sempre os primeiros anos são como pais e filhos sonham. Alguns nem
sonham mais. Mas há a esperança de que a educação traga as oportunidades que
faltam a esses sujeitos e que medie a emergência de um ser humano com mais
dignidade e oportunidade. Pais e mães, homens e mulheres, ainda acreditam que
a educação pode ser o timoneiro fiel que conduzirá com segurança os seus filhos
por um mar tranqüilo rumo a terras diferentes do presente e do passado.
Acreditam na sua ingenuidade que ainda é possível a mobilidade social tão
desejada.
Assim, chamada a mediar socialmente o processo de formação do sujeito,
a escola funde sua existência ao destino de cada um dos sujeitos que a cortejam.
A segunda família apressa-se em gerar novos sujeitos, a ensinar-lhes a ler o
mundo e a tomar decisões.
91
4.2 – A ESCOLA
Nessa segunda perspectiva de análise, adentraremos aos movimentos do
sujeito leitor nos meandros escolares; momento em que discutiremos o papel da
escola e de seus diferentes agentes educacionais no processo que visa mediar a
formação do leitor.
Asseguradas as experiências da primeira socialização vivida pela criança, a
família por força de seus valores, ou mesmo por força da lei que a obriga a
oferecer aos seus filhos o ensino básico, insere seus rebentos no ambiente
escolar. Adentrar ao universo da educação formal significa à criança, e mesmo à
sua família, não apenas um ingresso num mundo de novas oportunidades de
conhecimentos e relações, mas a oportunidade de constituir-se como sujeito
histórico consciente de si mesmo e do seu entorno.
Talvez essa visão não seja o ponto que move a família ou a própria criança
a pensarem em seu ingresso na escola, pois o maior desejo das classes populares
é que seus filhos saiam da situação de desvantagem sociais que vivem, e,
superando-as, consigam arrastar consigo suas famílias. A expectativa de
realização da mobilidade social, ora determinada pelo neoliberalismo da
sociedade atual, é posta aos cuidados do sistema educacional; nas mãos da
educação e dos educadores é depositado o sonho de ascender socialmente.
Às classes mais abastadas cabe zelar para que a escola apenas reproduza
a atual pirâmide social e mantenha seus filhos em seu status quo, isto é, a
educação deve garantir que as condições socioeconômicas se consolidem
exatamente como estão. Tal ideologia é tão forte que perpassa todas as classes
sociais sem que, na maioria das vezes, levante suspeitas; apesar de caber à
escola formar cidadãos através da indistinta oferta de possibilidades de acesso
aos bens culturais da humanidade a toda a sua clientela.
92
4.2.1 - A Importância da Escola
Assim, não podemos deixar de fazer a apologia da escola como um lócus
privilegiado de acesso às condições de formação integral do sujeito; e quando
falamos em escola, estamos falando em práticas discursivas onde múltiplas
leituras precisam ser exercitadas, aprendidas e discutidas. E essa forma de pensar
é extensiva aos adolescentes infratores do Lar do Adolescente Fazendinha, pois
lá funciona uma extensão da Escola Estadual Meninos do Futuro.
Quanto à importância dada à escola, os adolescentes são unânimes em
afirmá-la, e ao serem indagados sobre a melhora que a escola pode trazer à suas
vidas, eles dizem:
Com certeza, porque os adolescentes ficam mais de olho no futuro
para ser alguém na vida. (BOCA)
É, porque faz a pessoa entrar na sociedade, o diálogo e tudo mais,
saber muito mais das coisas. (FORMIGUINHA)
Nesses dois depoimentos a escola é definida como um instrumento
possibilitador do ingresso do sujeito na sociedade. A escola ainda é vista como
uma porta de acesso a uma vida diferente daquela que levam os adolescentes
infratores, e reveste-se da aura de um lugar de aprendizado de valores.
[A escola] é muito importante porque na escola começa tudo, a vida
da gente é uma escola, vivendo e aprendendo. Se não ficar na escola
aprendendo o que é bom, fica na rua aprendendo o que é
ruim.(LILICO)
Para alguns dos adolescentes a escola assume o papel de propagadora de
valores e de oportunidades; um lugar onde se aprendem coisas boas, ao contrário
da rua. Contudo, o panorama da educação, ou melhor dizendo, do papel da escola
93
para os adolescentes infratores, apresenta algumas tensões. Temos como
exemplo o depoimento de um dos adolescentes que relativiza a ação da escola
colocando o desejo do sujeito como principal catalisador de êxitos.
Depende da pessoa, porque não adianta o mundo querer e a pessoa
não querer. (CEARÁ)
Mesmo os adolescentes que depõem a favor da importância da escola para
melhorarem suas vidas, em alguns momentos eles fazer sentir a frustração de
suas expectativas em relação à mudança de condição social que a escola poderia
lhe proporcionar. Indagados se sentiram suas vidas melhorarem através da
escola, eles dizem:
Até agora não. (BOCA)
Sei o que os professores fizeram a parte deles até onde podem, mas
não adianta muito. (CEARÁ)
Alguns mais categóricos afirmam:
Até agora não ajudou em nada. Eu melhorei sem precisar ir à escola.
(NEGUINHO)
Não [conseguiu melhorar minha vida], porque eu não terminei os
estudos, tenho só a 5ª série e tenho que pegar no pesado. (GUIGUI)
Ao apresentarmos alguns depoimentos sobre o papel da escola na vida dos
adolescentes pesquisados, temos a nítida impressão que eles acreditam ser a
escola uma parceira importante em suas vidas, no entanto, reconhecem em
94
alguns momentos, levados indiscutivelmente pela sua condição existencial de
privados de liberdade, a ineficácia de sua freqüência aos bancos escolares.
Mesmo assim, todos eles foram freqüentadores da escola, o que nos leva a
um debruçamento sobre aspectos da escola descritos pelos adolescentes e que
aparecem como elementos de mediação do processo de formação do leitor. Afinal,
o que as escolas ofereciam a essas crianças e adolescentes como suportes de
leitura?
4.2.2 - Suportes, Tempos e Espaços de Leitura
Através dos relatos obtidos percebemos que 90% dos sujeitos tiveram
acesso somente ao livro didático, ao que chamam também de cartilha. Como
suportes de leitura. Alguns também lembram que faziam suas leituras das lições
do quadro. Alguns poucos tiveram ao seu dispor livros com historinhas (literatura
infantil). Contudo, outros suportes que evidenciassem diferentes tipos e ou
gêneros não foram citados. Ainda em tempo um dos adolescentes lembrou:
Eu lia as cartinhas que as meninas me mandavam. (MALUCÃO)
Apesar de considerável mero de sujeitos lembrar-se da “hora do conto”,
“hora da leitura” e “círculos de leitura”, essas leituras eram feitas do livro didático,
os mesmos usados como fontes de pesquisa na realização dos “trabalhos”
encomendados pelos professores. Um dos adolescentes ainda lembrou:
A gente lia para a diretora ver. (JAPÂO)
As informações reveladas pelos adolescentes nos apontam para um alvo
essencial na investigação: a presença de bibliotecas nas escolas. Ao indagarmos
a esse respeito descobrimos que 80% das escolas freqüentadas pelos nossos
95
sujeitos possuíam bibliotecas, contudo, somente 40% delas permitiam o acesso
aos alunos, nas demais somente os professores podiam dispor dos livros, quando
estes não ficavam trancados em armários.
Nas bibliotecas onde o acesso era permitido, os livros eram disponibilizados
apenas para o uso interno em vista da realização de trabalhos escolares, pois não
poderiam ser emprestados. Tendo em vista a restrição do acesso ao livro e o
direcionamento de seu uso, a freqüência dos adolescentes à biblioteca e aos livros
é destacada como bastante baixa. Vejam o que dizem:
Eu não emprestava porque os professores não deixavam levar.
(ARILDO)
Às vezes sim [eu ia à biblioteca], para fazer algum trabalho. Quando
não tinha nada pra fazer, quero ver eu aparecer lá. (SÓCIO)
Devido ao empréstimo de livros não ser feito, alguns adolescentes
possuíam outra motivação para irem à biblioteca.
Sim [eu ia à biblioteca] para roubar gibi. (FORMIGUINHA)
Ainda tenho um livro que roubei na escola: ‘Um beijo após o outro’.
(SÓCIO)
Os relatos acima nos fazem pensar imediatamente sobre a mediação
realizada pela escola no processo de formação de leitores. O que encontramos em
suas práticas de leituras são os seus livros didáticos que faziam parte tanto do seu
quotidiano escolar como também dos momentos “especiais” como “o” suporte de
leitura. Segundo Perini (1982), o livro didático, inicialmente recebido com
empolgação pelos alunos, logo torna-se desinteressante pela sua complexidade e
pela incapacidade de o aluno tem para entende-lo,
96
Os espaços de leitura, embora existam, são “proibidos” aos alunos que
quando os acessam são para mero cumprimento de alguma “tarefa”. Também
enxergamos aqui um aspecto motivador da delinqüência, ou da “socialização” do
que o poderia se socializado por mais tempo e que despertava a atenção e o
desejo dos adolescentes. Por não poder lhe ser emprestado, o livro, gibi ou outro
suporte qualquer acabava sendo produto de roubo.
Percebamos nesse episódio uma dupla marginalização desse adolescente.
Explico: O primeiro processo de marginalização sofrido pelo adolescente é estar
fora, à margem, do acesso ao livro enquanto suporte de leitura que deve ser
socializado; tentando sair da situação do não acesso, o adolescente apodera-se
do livro. Por minutos ele sai da marginalidade do acesso aos bens culturais e
adentra a um outro tipo de marginalização; ele torna-se o sujeito de uma pequena
infração um roubo, que por menor que seja, poderá ser o primeiro de uma série
de outras infrações. Se tiver ‘sorte’ será apenas um episódio da meninice, senão,
ele poderá inserir-se numa dinâmica perversa que o colocará à margem da
sociedade, fora dos padrões sociais de comportamento esperado, portanto, um
marginal. Ao acessar continuamente está prática, o adolescente sai da
marginalidade sócio-cultural a que estão fadados muitos adolescentes como ele, e
imediatamente adentra ao grupo da marginalidade institucionalizada que ‘precisa’
trancar e ressocializar seus sujeitos.
4.2.3 - A Função do Professor
A escola, conforme Magnani (1989), ainda é o espaço por excelência de
contato com o material impresso que congrega grande parte do patrimônio cultural
da nossa civilização. Diante de todas essas informações, textos a serem lidos, os
professores podem tomar diferentes posicionamentos, desde uma tentativa de
serem neutros frente ao que apresentam aos seus alunos, até um posicionamento
crítico revolucionário frente ao que é lido. Alguns se esquecem, porém, de que
nenhuma prática pedagógica, inclusive a leitura, é neutra, e todas elas suscitam
algum tipo de comportamento, mesmo que a alienação Quaisquer comporta-
97
mentos podem ser vistos por um prisma político, pois provocam posicionamentos
de seus leitores em vista de si mesmo e do outro.
Trabalho realizado pelos adolescentes por ocasião do Dia do Professor
(PORRUA, 2003
)
Não nos cabe nesse momento avaliar ou fazer juízos das práticas
pedagógicas dos professores dos adolescentes aqui pesquisados, nem tampouco
atribuir-lhes responsabilidades pela situação existencial pela qual passam os
adolescentes privados de liberdade. Todavia, fazemos questão de explicitar os
relatos dos adolescentes sobre seus professores, afinal, enquanto mediadores dos
processos de aprendizagem, da leitura inclusive, seu papel é de capital relevância
na vida de seus alunos. Eles sabem disso e seus discursos evidenciam o respeito
pelos seus professores.
Indagamos sobre a presença, em sua vida escolar, de professores que eles
consideravam bom exemplos de leitores. A essas indagações os adolescentes
responderam que encontraram alguns professores que evocavam imagens do
98
bom leitor. Contudo, pelo que nos fala Lajolo (2002) sobre o professor, é que sua
função “... confina-se ao papel de propagandista persuasivo de um produto (a
leitura) que, sob a avalanche do marketing e do merchandising, corre o risco de
perder, ao menos em parte, sua especificidade.” (Lajolo, 2002: 14)
Numa leitura mais atenta das respostas, percebemos que o que
caracterizaria o professor como um bom leitor para o sujeito pesquisado era ler
bem, isto é, decodificar com lisura os signos gráficos, ler em voz alta ou
dramaticamente, bem como falar difícil e sempre estar com um livro na mão. Veja
alguns exemplos:
Vários eram bons leitores, porque liam bem. (POLAQUINHO)
Só uma professora que eu achava que lia bem. (JAPÃO)
Professora Marilda, ela falava bem e difícil. (JAPÃOZINHO)
... um que sempre estava com o livro na mão. (DIDI)
Através desses relatos vemos que a concepção de leitura e de bom leitor
dos adolescentes está ligada ao ato da decodificação dos signos gráficos. Não
outros critérios para utilizarem e poderem ampará-los em seus juízos, além dos
externos (ver e ouvir). Nenhum dos adolescentes apontou para seu professor
como alguém capaz de lhe proporcionar outros sentidos para a realidade, ou seja,
apontar para algum tipo de mudança na visão dos dados imediatos, fazendo-os
ampliar a sua relação com o mundo.
Como afirma Magnani (1989): “Cabe ao educador romper com o
estabelecido, propor a busca e apontar o avanço (...) Para isso é preciso
problematizar o conhecido, transformando-o num desafio que propicie a
mobilidade.” (p. 92).
Como vimos anteriormente, quando falamos dos suportes de leitura
acessados pelos adolescentes, ou o acessados, na maioria das vezes,
percebemos que a formação do leitor também passa pela diversidade de tipos e
99
gêneros textuais selecionados pelos professores. Esses textos não devem apontar
apenas para uma realidade futura, de vir-a-ser, mas também para um aqui e
agora, isto é, que as preocupações não alcancem apenas dimensões de futuro,
mas também de presente, pois é dele que se constitui agora o que será.
Assim, com exemplos frágeis de bons professores leitores, pois “... nossos
professores em pouco, escrevem menos ainda e estão mal alfabetizados, para
abordar a diversidade de estilos da língua escrita.” (Ferreiro, 1993: 48-49), e
privados de quantidade e qualidade de textos, os adolescentes constroem visões
acerca de seus professores que vão desde a aversão à total indiferença por eles.
Eu não gostava de ler. Ficava com raiva deles. (BOCA)
Geralmente não lia muito... e não ia com a cara deles não. (CEARÁ)
Nunca fui de ficar assim com professor. Não sou muito de conversar
com professor, não sou de muita idéia, fico no meu canto.
(NEGUINHO)
Não falava nada pra eles. Não falavam nada pra mim. (LILICO)
Diante dessas falas, faz-se mister lembramos que as relações pedagógicas
entre professores e alunos instauram-se, conforme Morgado (2002), a partir das
heranças emocionais de antigas relações, o que pode dificultar a concretização de
objetivos educacionais. Em outras palavras, podemos afirmar que as relações
entre professores e alunos têm por base as relações familiares, principalmente por
parte do aluno que pode transferir ao professor os mesmos afetos das relações
emocionais originais.
17
O que lemos são alguns relatos que apontam para a relação existente entre
alunos e professores por ocasião das práticas de leitura em sala de aula. No
entanto, devemos vê-las não apenas como um comportamento estanque, mas
mediado e sustentado por um processo formativo anterior que possui suas bases
17
Os estudos de Morgado (2002), Da Sedução na Relação Pedagógica’, fundamentam-se em
conceitos psicanalíticos que definem uma forma de ver as interações sociais, nesse caso, a
interação entre professor e aluno, e nos ajudam a compreender um pouco as dinâmicas
inconscientes que subjazem as relações pedagógicas.
100
nas primeiras experiências de contato com a língua e as possibilidades que dela
se desprendem, mesmo antes da primeira alfabetização acontecer.
4.2.4 - A (An)Alfabetização Secundária
Como trabalhamos um objeto distinto de pesquisa que é a leitura,
manteremos nosso foco apontado prioritariamente para este objeto quando
adentrarmos às reflexões sobre o processo de alfabetização dos adolescentes
aqui pesquisados.
Assim, alfabetização
... não é aprender e dominar algumas determinadas habilidades
técnicas de decodificação, produção e compreensão de certos signos
gráficos, mas adquirir e integrar novos modos de compreensão da
realidade, do mundo, de si mesmo e dos outros. Ler e escrever são
práticas culturais que reestruturam a consciência e a mente. (Frago,
1993: 107)
Seguindo o mesmo raciocínio, as atividades de leitura devem reestruturar a
consciência do sujeito leitor a partir de elementos que o constituem culturalmente.
Enquanto prática social, a leitura é um modo de mostrar e compreender o mundo
e as relações sociais; o discursos ou modos de ser e agir, maneiras de usar a
linguagem e lhe dar sentido.
Nesse tocante, os relatos dos adolescentes demonstram que eles
percebem a leitura de diferentes formas, o que os faz relacionarem-se com ela
também de modo diferenciado, contudo o que prevalece ainda é uma visão de
ordem pragmática como afirma Soares (1998) em seus estudos, e que são
próprios das representações mais populares da sociedade, como por exemplo a
leitura para atender às necessidades de locomoção, localização, informação,
comunicação e trabalho. Vejamos:
101
Leitura é importante porque fica difícil viver sem ela, hoje é tudo
escrito. Para serviço tem que saber ler. (NEGÃO)
Porque o homem que não sabe ler não é nada. Não nome de rua,
não se localiza. (SALSICHA)
Para ler carta que a menina manda e várias outras coisas
importantes, carta da mãe, do irmão. (JAPÃO)
Vemos nesses relatos que a grande maioria dos adolescentes na leitura
um instrumento prático, pragmático para o seu dia-a-dia. Poucos pensam em
outros aspectos como por exemplos na dimensão intelectual e lúdica da leitura.
[A leitura é importante] porque liberta, abre a mente. (FORMIGUINHA)
Porque sem isso ninguém é nada, quem não sabe ler é o mesmo que
nada. Um esperto faz a cabeça do outro. (NEGUINHO)
Até para brincar é importante. (SÓCIO)
Vimos que os discursos dos adolescentes sobre a importância da leitura,
mesmo que numa esfera mais pragmática, nos mostram a sua consciência sobre
a vaidade de ter competência lingüística. No entanto, no momento em que são
chamados ao seu exercício efetivo de leitura outros comportamentos se sucedem,
como por exemplo durante as observações realizadas em sala de aula, quando
nos raros momentos de leitura os adolescentes se negam a ler. Suas desculpas
os levam a dizer de sua vergonha diante de seu professor e colegas. Novamente
se repete aqui a relação do sujeito leitor com o texto somente a partir do aspecto
da decodificação.
A vergonha apresentada por esses adolescentes está em não saber
decodificar os sinais gráficos a contento, como insinuam os mesmos dados que
vêem no professor bom exemplo de leitor aquele que bem, isto é, decodifica
bem, e não aquele que atribui sentido ao que lê e amplia sua visão da realidade.
Vejamos o que relatamos adolescentes:
102
Eu não gosto de ler para todo mundo, fico com vergonha, fico meio
inseguro, ficava gaguejando. (BOCA)
lia pra mim e pra professora, pros outros nem a pau, eu ficava
com vergonha na frente dos outros. (LILICO)
Se mandava ler, fiava com vergonha e não lia não. (NEGUINHO)
Normal, porque eu tenho uma leitura até boa, pois toda vez que tenho
que apresentar texto ou leitura eu dou uma lida nele antes pra mim e
depois não tem o que errar ... (CEARÁ)
Mesmo tendo acesso a escola e tendo cursado alguns anos da educação
formal, o acesso à escola não garantiu a esses adolescentes o desenvolvimento
de competências que representem à alfabetização mais do que a mera arte da
decodificação. Esse aspecto aqui apontado e que evidencia um tipo de relação
que esses sujeitos mantém com a leitura, sugerem o “enquadramento” desses
adolescentes numa categoria que Frago (1993) chama de “analfabetismo
secundário”.
Os novos analfabetos, conforme reflexões empreendidas por Frago (1993)
e outros autores, são os sujeitos destituídos da capacidade de ler e escrever
enquanto competência que excede a mera decodificação. Esses sujeitos são
desprovidos de coerência discursiva, possuem atenção dispersa, falta de
lembranças remotas e de projeções futuras, ausência de valores fundamentais,
fácil sedução à ditadura da imagem e do prazer imediato e o uso empobrecido da
língua em nome da manutenção de uma identidade social.
Nas observações realizadas durante o período de coleta de dados e
informações, nos deparamos com diversas características do que FRAGO (1993)
chama de “analfabetismo secundário”.
No que tange às questões relacionadas às lembranças das experiências de
leitura na infância, feitas com o intuito de levantar as dimensões vividas pelos
adolescentes em sua primeira infância, nos deparamos com uma grande maioria
103
dos adolescentes, praticamente sem lembranças de suas experiências de leitura;
se as tiveram não lembram, mas nem mesmo lembram se as tiveram ou não. O
que conseguem lembrar são fragmentos esparsos sem seqüência lógica como
podemos observar ao analisarmos as histórias de vida dos adolescentes. Sua
memória restringe-se apenas a fatos mais imediatos.
Durante as entrevistas que foram realizadas, bem como nos momentos em
que respondiam aos questionários, a falta de concentração e a desatenção foram
constantes a ponto de em vários momentos termos que retomar as questões a
serem respondidas. Em sala de aula a agitação na hora de quaisquer atividades
propostas e a incapacidade de estar nelas concentrados faziam com que os
professores chamassem continuamente a atenção dos adolescentes, sem que os
mesmos cumprissem o que lhes era apresentado.
Durante algum tipo de atividade de leitura, mesmo dos textos passados nos
quadros de giz, as reações são diversas. Havia o que se negavam a ler, que liam
intencionalmente para tumultuar as aulas e outros que simplesmente ignoravam
as atividades. Suas desculpas para tais atitudes eram:
Não leio porque dá sono. (JAPÃOZINHO)
Só leio às vezes. Não gosto, não entendo, parece que não tem
sentido. entendo umas partes. consigo ler uns 15 ou 20
minutos. (POLAQUINHO)
Alguns momentos de interesse por leituras se manifestavam, mas se
confundiam com o interesse pelas imagens e gravuras do texto em questão, o que
os leva a privilegiar revistas de TV e gibis, pois possuem imagens em abundância;
cria-se assim a falsa idéia de que se está entendendo o texto. As leituras, ou
melhor, a visualização de textos não verbais, o preferidos em detrimento dos
textos verbais impressos, apontados como mais difícil de entender, pois estes
necessitam ser compreendidos e, segundo o que nos traz a reflexão de Perini
104
(1982), a complexidade da leitura depende do leitor idealizado pelo autor e dos
conhecimentos prévios que esse leitor possui a seu dispor.
Inquiridos sobre o que gostavam de ler responderam:
Livros com gravuras. (LILICO)
O ser humano não é apenas aquilo que ou que não lê; no entanto, é
inegável que em muitas leituras, escolhidas e realizadas pelo sujeito, a recorrência
com que temas e assuntos são abordados podem ser indicativos do caráter do
indivíduo, ao mesmo tempo podem formar o seu caráter. Assim, os adolescentes
Também elegem suportes de leitura que apresentem temáticas relacionadas com
uma das tendências de seu caráter: a satisfação imediata de alguns interesses
específicos como as revistas de astros da TV ou as revistas pornográficas.
Esses suportes exercem bastante atração sobre os adolescentes, pois
possibilitam que eles canalizem seus desejos projetando-se nas personagens ali
presentes. A busca intensa por revistas pornográficas e de fofoca de TV
evidenciam, não exclusivamente, mas de forma bastante forte, os valores que são
acessados pelos adolescentes e acabam sendo atrelados às suas vidas. Parece
que buscam modelos de identificação sem nenhum critério além daqueles que
evidenciam a saciedade fácil e imediata do prazer, do sucesso e da aceitação
social. Sem nenhum critério de seleção com vistas a uma mudança de atitude e de
vida, os adolescentes repetem as escolhas que realizaram; seus discursos
enfatizam esse panorama e evidenciam os valores que possuem.
Veja o que nos foi relatado por CEARÁ quando indagado sobre os motivos
que os levaram a delinqüir (roubo de carro):
Era mais pra curtir, se divertir, uma questão de status também.
Carro dá status, né? (CEARÁ)
105
Observemos a transcrição da entrevista sobre o que motivou o adolescente
a realizar assaltos:
_ A primeira vez que você veio pra cá foi assalto?
_ Não, foi porte de arma.
_ E você, o que estava fazendo?
_ Era roubo mesmo, pegaram o material mesmo.
_ Você ia roubar pra que?
_ Pra curtir mesmo, assim pra curtir, pra conquistar as meninas,
fazer algumas coisas com as meninas e tal.
_ A segunda vez também?
_ Foi né, positivo, não porque precisava, mais pra curtir. Precisar,
não precisava não, e de repente uma curtição de algumas horas deu
nisso aqui, né? (NEGUINHO)
Os depoimentos aqui elencados não são os únicos, há muitos outros. Esses
foram apenas fragmentos que apontam para as motivações que possuem os
adolescentes para o cometimento dos delitos. O modo como encaram a vida, as
pessoas e o que elas possuem, gritam alto o modo como percebem a si mesmo e
os valores que possuem. Tudo possui valor imediato, mas não perene. Pessoas e
coisas valem pela satisfação imediata que proporcionam.
Determinados a viver o seu presente, não pensam muito no futuro, são
quase incapazes de sonhar, de ver-se em uma condição existencial diferente, de
êxito pessoal. Aliás, é impressionante a homogeneidade dos discursos proferidos
pelos adolescentes em relação a seu futuro fora das celas do “Fazendinha”.
Durante os primeiros contatos pessoais, sem exceções, os adolescentes
revelaram suas intenções de mudar de vida, encontrar um trabalho que na maioria
das vezes a família havia arranjado, voltar a estudar, parar de andar com a
antiga turma e construir um futuro melhor. Contudo, depois que passou a
insegurança dos primeiros contatos, os discursos outrora preparados para os
técnicos psicólogos e assistentes sociais – e proferidos para que façam parte de
seus relatórios e antecipem a emissão do alvará de soltura, caem por terra.
Sentindo-se a vontade para falarem verdadeiramente de si, depois de desligado o
106
gravador, os adolescentes falam de suas descrenças nas mudanças e na falta de
perspectivas para o futuro. Acostumam-se ao presente do cárcere.
Não é o que a gente quer, mas acostuma. A gente sabe a rotina,
tem aula, tem estudo, acostumei. É legal. (NEGUINHO)
Sabemos que esses adolescentes não são os únicos que apresentam fortes
evidencias de um analfabetismo secundário, como algumas passagens de suas
vidas mostram. Afinal, nossas escolas estão repletas de outros adolescentes com
este mesmo perfil, e nem por isso são delinqüentes. No entanto, o perfil
evidenciado nas proposições de Frago (1983) para o analfabetismo secundário é
bastante recorrente nos adolescentes infratores aqui sujeitos de pesquisa; aspecto
que o pode ser desconsiderado nos estudos sobre as práticas sociais de leitura
vividas por esses adolescentes, afinal, algumas dessas experiências colaboraram
para que viessem a ser o que são e delinearam o seu modo de ser e ver o mundo.
4.2.5 – Aspectos Sociais da Leitura
Não podemos deixar de pensar nos adolescentes infratores e nas
dimensões presentes em sua formação enquanto leitores, sem nos ocuparmos
rapidamente das relações sociais que estabeleceram.
Recorrendo a algumas idéias de Pfeiffer (1998) e aplicando-as aos nossos
sujeitos de pesquisa, devemos pensá-los como sujeito-leitor, e isso implica,
necessariamente, conhecer e refletir sobre as várias dimensões que envolvem sua
constituição como tal, pois o sujeito-leitor constitui-se em diferentes lugares,
inclusive fora da escola, o que traz conseqüências para suas atividades escolares
e vice-versa.
Conforme Pfeiffer (1998), o sujeito-leitor possui um corpo social discursivo
que permite a constituição de uma memória discursiva de leitura. Essa memória o
107
faz atribuir sentido ao que é lido, em conformidade com os sentidos a que teve
acesso, isto é, que estão em funcionamento, em uso, em seu meio discursivo. No
entanto, o que comumente encontramos são situações em que o leitor para ser
considerado bom deve apresentar alguns padrões pré-estabelecidos de
comportamento, geralmente voltados para as interpretações acadêmicas dos
textos que são estabelecidas a priori e externamente a eles.
A memória discursiva dos sujeitos, isto é, seu cabedal de experiências e
vivências que atravessam seu discurso e se explicitam nos sentidos que atribuem
ao que é lido, não são considerados. A desconsideração desse tipo de atribuição
de sentido vincula-se imediatamente ao rompimento de padrões sociopolíticos e
econômicos que determinam modos de significação que visam manter a
hegemonia das classes mais favorecidas.
Em algumas condições, o que vemos é o aluno, criança ou adolescente,
esbarrar naquilo que Orlandi, apud Pfeiffer, chama de “sitio de significância”
18
, isto
é, uma interpretação cristalizada de texto a ser lido, geralmente fornecida pelo
professor; o que contradiz o conceito mais amplo de leitura que adotamos e que
prima pela atribuição de sentido como sua dimensão mais profunda.
A falta de êxito em algumas estratégias de leitura, que insistem em
reproduzir os chamados ‘sítios de significância’, nos remete à certeza de que a
leitura, apesar de ser uma experiência única e pessoal, não é um ato isolado;
assim sendo, pressupõe uma interação entre o leitor e o mundo ao seu redor, seu
universo pessoal, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo e com
os outros.
Dessa forma, não podemos desconsiderar, conforme o que nos aponta
Soares (1988), a força determinante que existe entre a leitura, a sua situação
imediata e o contexto social mais amplo, isto é, “a estrutura social, a divisão do
18
Vejamos o que Orlandi comenta a respeito dos sítios de significância: “Face a qualquer objeto
simbólico, o sujeito se encontra na necessidade de ‘dar’ sentido. E o que é dar sentido? Para o
sujeito que fala, é construir sítios de significância (delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de
interpretação.” (Pfeiffer IN Orlandi, 1998: p 95)
108
trabalho e a conseqüente divisão de classes, as relações de produção, de
distribuição, de consumo, a estrutura ideológica.” (Soares, 1988: 19).
Por muito tempo o acesso à leitura foi considerado como naturalmente bom,
pois traria aos leitores e à sociedade benefícios importantes. No entanto, esses
benefícios são bem distintos, tão distintos como as classes sociais que os
desejam.
Os adolescentes sujeitos dessa pesquisa sofreram as influências de suas
famílias e das escolas públicas de periferia que freqüentavam - lugar onde viviam
e cometiam a maioria de seus delitos, e como tal, percebem o acesso à leitura
como algo de relativa importância para a obtenção de melhores condições de vida.
Na verdade, alguns deles acreditam que somente a via da delinqüência poderá
fazê-los acessar a vida pretendida muito mais rapidamente e sem esforços muito
grandes, portanto fazem escolhas deliberadas. Outros, por algum infortúnio ou
‘azar’ adentram à marginalidade por ‘acaso do destino’, por ‘um minuto de bobeira’
ou de’ fraqueza’, como eles mesmo costumam falar. Não planejam para si uma
vida na marginalidade, tanto que para alguns desses adolescentes existe
possibilidade de recomeçar, de ver o mundo de forma diferente, de atribui-lhe um
novo sentido.
Conforme estudos realizados por Soares (1988) as expectativas de
adolescentes de classes populares com relação à leitura são a de galgarem pelos
estudos uma condição melhor de vida, um trabalho, oportunidades de melhorarem
seu padrão de vida e de ascenderem socialmente em relação aos adolescentes de
classe mais abastada, o que se percebe é que eles vêem a leitura como uma
expansora de possibilidades de expressão e de comunicação e não a atrelam
necessariamente a ascensão social ou ao mercado de trabalho, pois os
possuem. O que diferencia os adolescentes infratores desses outros dois
segmentos e das suas correspondentes posturas frente a leitura, é que muitos
deles não acreditam realmente nessa possibilidade de acesso a outros níveis de
vida que não seja através de delitos. No entanto, algumas posturas de exceção
percebem outras possibilidades.
109
Podemos perceber, observando os discursos de alguns professores que
lidam diretamente com esses adolescentes, que eles usam a motivação do
ingresso no mercado de trabalho e da importância da informação para
incentivarem seus alunos a lerem e assim mudarem seus destinos. Assim, o
discurso do professor é absorvido pelo aluno e, assumido por ele, é reproduzido
em seu próprio discurso.
Mesmo sabendo que o aluno, principalmente o menos favorecido, necessita
do conhecimento como uma forma de ascensão social, algumas escolas não se
dão conta da importância de ofertar-lhes diferentes gêneros textuais, e assim
expandir as suas possibilidades de interação com o mundo a sua volta. Alguns
pressupostos evidenciados por Magnani (1989) remetem-se ao que ela chama de
‘trivialização do gênero’ que se caracteriza por uma postura da escola que
generaliza o gosto de seus alunos condicionando-os a consumirem textos como
se fossem mercadorias que satisfazem seu desejo de prazer, o que torna
homogêneos tanto a produção desses textos quanto a formação do gosto do leitor.
Afinal, o que gostam de ler os adolescentes do Lar do Adolescente –
Fazendinha? Dos vinte e sete (27) adolescentes aqui pesquisados, vinte e três
(23) gostam de ler contos eróticos, na verdade não chegam a ser considerados
contos, pois, o apenas uma profusão de imagens pornográficas. Ainda gostam
de textos que se aproximam de sua realidade e de situações de violência, tais
como textos sobre guerras, crimes, páginas policiais e a vida do crime. Assim se
configura o gosto desses adolescentes.
Não queremos dizer com isso que a escola incentiva ou forma esse gosto,
mas ao “oferecer” ao seu aluno apenas leituras para a sua satisfação e prazer
pessoal, a escola cria uma situação que propicia, sem maiores constrangimentos,
a busca pelo prazer imediato nas leituras que o realizadas. A busca por tal
prazer instantâneo pode se desdobrar na busca de outras satisfações e
comportamentos imediatos, como por exemplo os delitos cometidos pelos nossos
sujeitos e que não buscam a satisfação de necessidades primárias como comer e
vestir, mas sim a satisfação imediata dos seus desejos de consumo.
110
Enfim, ao abordarmos a dimensão escolar do processo de formação do
leitor, temos a refletir ainda muito mais profundamente sobre o papel da escola e
dos professores, seus principais agentes, nesse constante movimento que
constrói sujeitos, pois, apesar desses adolescentes acreditarem que a escola
ainda possa lhes proporcionar uma vida melhor, enquanto os cárceres estiverem
repletos, para quem neles estiver a esperança terá sido vã.
4.3 – O CÁRCERE
O cárcere é o ambiente que institui o adolescente enquanto infrator sob
regime de privação de liberdade. E é essa a condição que determina a escolha de
nossos sujeitos de pesquisa. A significação que é atribuída a qualquer experiência
está intimamente ligada às situações que o sujeito vivencia e o momento pelo qual
está passando. Assim, o mesmo fato pode ser visto e significado de formas
diferentes pelo mesmo sujeito ao considerar as mediações que sofre no momento
em que atribui sentido. É na condição de prisioneiro que recolhemos dos
adolescentes as dimensões por eles sofridas no que tange ao seu processo de
formação enquanto leitor.
4.3.1 – O Sentido da Leitura
A leitura constituir-se numa atividade intrinsecamente humana e intencional,
e é à sua materialidade sígnica, expressa nos textos escritos, que o sujeito leitor
atribui sentido. Ao entrar em contato com o texto escrito, ou mesmo antes, quando
pensa na atividade da leitura, o sujeito leitor possui um discurso sobre ele, isto é,
possui um posicionamento mais ou menos consciente sobre o que seja o texto e a
leitura, sua importância e as condições de sua prática. Tal discurso, atravessado
pelas experiências vividas por esse sujeito e, fundamentalmente, pelos valores
vivenciados em seu meio social, é que faz o sujeito relacionar-se com a leitura
dentro de determinadas expectativas. O que não podemos perder de vista é a
111
afirmação de Lajolo (2002): “Ou o texto um sentido ao mundo, ou ele não tem
sentido nenhum.” (p. 15)
Em contato com os adolescentes sujeitos dessa pesquisa, no âmago de
suas experiências existenciais enquanto privados de liberdade, bem como
enquanto sujeitos históricos forjados no embate de suas pulsões e das mediações
que viveram no decorrer de suas vidas, conhecemos alguns dos posicionamentos
que possuem frente à leitura. Ousamos apresentá-los em três categorias: a
primeira delas diz respeito à atribuição de valor ou não à leitura, a segunda tem
relação com a importância que lhe é dada e a terceira sobre as motivações para
praticá-la.
4.3.1.1 – Valoração
Aos indagarmos os adolescentes sobre ser a leitura importante ou não em
suas vidas, ou se haveria algo mais importante no seu contexto atual, isto é, no
cárcere, as respostas obtidas acenam para três diferentes posicionamentos:
23,8% dos adolescentes afirmaram categoricamente o valor da leitura e a
relacionaram com a escola; 29,5% são claros aos afirmar que atividades mais
importantes e, quase a metade deles, 46,7% percebem a leitura como algo de
valor relativo. o descartam seu valor, mas não a colocam em primeiro plano.
Quanto a essa questão dizem:
É importante, mas coisas práticas são mais importantes. (GUIGUI)
A leitura é importante, mas orar e jogar bola também. (NEI)
É importante, mas esporte e filme também. (BINHO)
Frente a essas respostas, percebemos que a leitura não está ligada a uma
atividade que ligada à praticidade, isto é, na visão de alguns adolescentes a leitura
não trará benefícios imediatos, ou então a colocam como atividade desligada da
112
dimensão do prazer que pode possuir quando a dissociam de atividades
esportivas ou de lazer. Segundo Craydi (1998) faz parte do perfil do adolescente
infrator usufruir o máximo de tudo que lhe prazer, pois infere que pela vida que
leva pode morrer cedo. Dentre as atividades mais valorizadas pelos adolescentes
estão o esporte, a arte-terapia e as aulas de música (flauta); o valor que atribuem
a essas atividades advém do bem estar que elas proporcionam a eles.
Arte-terapia [é importante] para expressar sentimentos. (NEGÃO)
Arte-terapia [é importante] porque inventa coisas. (BOCA)
Arte-terapia e música porque passa mais o tempo, por isso é importante.
(CATATAU)
O que veremos em seguida é o resultado de dois registros fotográficos que
mostram os adolescentes preparando-se para fazerem atividade de lazer.
Dois flagrantes dos adolescentes em atividade de aquecimento para jogar bola.
(PORRUA, 2003
)
113
Além de sentirem-se bem por poderem se expressar e serem criativos, o
tempo passa rápido quando centram sua atenção em um foco que não eles
mesmos e sua condição. A arte tem a propriedade de fazer o sujeito entrar em
contato consigo mesmo em um dos poucos momentos desejados pelos
adolescentes. Assim, valorizam bem mais essas atividades organizadas e dirigidas
do que leituras esparsas sem propósitos ou orientação. Frente às respostas que
obtivemos, indagamos: afinal, a leitura é importante para quê, qual sua utilidade?
4.3.1.2 – Utilidade
Algo bastante interessante revelou-se nas respostas à questão que diz
respeito à utilidade concreta da leitura no dia-a-dia dos adolescentes, quando
ainda não estavam sob a condição de privados de liberdade.
Mais de 1/3 deles, 37%, afirmaram que somente liam para desenvolver a
inteligência, saber mais e “ficar ligado”. Os relatos que abaixo veremos
determinam uma finalidade clara para o exercício da leitura: exercício do poder
através do conhecimento.
[A leitura] ajuda porque a inteligência fica desenvolvida, o cara sabe
mais e fica ligado nas paradas. (NEI)
Fica por dentro, fica informado, conhece mais. (LILICO)
Nesses relatos, os termos “ficar ligado nas paradas” ou “ficar por dentro”
referem-se à possibilidade de outras “fitas” ou “paradas”
19
. As situações descritas
acima remetem ao uso estritamente utilitário da leitura, por isso a insistência de
alguns adolescentes para terem acesso a textos de revistas e jornais que falem a
respeito de crimes ou outros relatos policiais.
19
“Fita” ou “parada” é a denominação dada pelos adolescentes a atos ilegais que foram ou poderão ser
praticados por eles, como roubos, furtos, assaltos e outros delitos mais ou menos graves..
114
Outros adolescentes apontam para práticas de leitura como um modo de
não ficarem à margem de seu próprio grupo e passarem vergonha, o que lhes
ocasionaria a perda de prestígio. Por isso, a necessidade apontada por eles de
saber ler ou falar, o que lhes ajudaria também a não serem facilmente enganados
por outros adolescentes ou mesmo adultos. Para alguns adolescentes a leitura
apresenta-se com um caráter bastante pragmático: promover uma maior aceitação
no grupo ou mesmo para a manutenção de seu status. Observe os relatos.
Importante para falar certo e não passar vergonha. (JAPÃOZINHO)
Aprender para não passar vergonha com os outros caras da turma.
(BACURAU)
Porque sem isso ninguém é nada... quem não sabe ler vem um
esperto e faz a cabeça. (NEGUINHO)
A leitura, mesmo sendo aqui encarada como mais um instrumento para a
delinqüência, pois quando é valorizada tem objetivos claros de assegurar a
manutenção do sujeito em seu meio infracional, ainda goza de certo prestígio no
meio desses sujeitos, afinal um texto ganha o sentido que o sujeito lhe atribui.
4.3.1.3 – Motivações
Talvez nenhum de s, interlocutores deste texto, saibamos,
verdadeiramente, o que seja uma experiência vivida do lado de dentro das grades
e dos muros do cárcere. Conviver por alguns ou muitos momentos com os
adolescentes não constitui experiência suficiente para compreender os motivos
que os levam a essa condição ou os motivos que os mantém ativos em suas
expectativa de liberdade ou acomodados ao cárcere. Contudo, podemos conhecer
um pouco do que os move através de seus discursos, de suas falas entrecortadas
e dos seus silêncios que ecoam pelos corredores do rcere e tornam-se
eloqüentes quando se juntam ao clamor de toda uma geração. Alguns deles
115
registramos e atribuímos um significado, outros continuam vagando pela nossa
consciência.
Mesmo assim, recolhemos relatos sobre as motivações que os
adolescentes possuem para acessarem os poucos suportes de leitura que lhes
são possíveis, pois embora haja várias atividades para passar o tempo, ainda o
tempo ocioso é bastante grande.
Dos adolescentes pesquisados, 1/3 deles lêem alguma coisa para passar o
tempo, dentre eles alguns buscam consolo, força interior e apoio espiritual,
revelando a necessidade de terem uma vivência espiritual ou de contato com
alguma espécie de realidade supra-sensível.
[Leio] a Bíblia para pedir a Deus para sair. (BINHO)
Leio a Bíblia para poder entender alguma coisa e me dar forças.
(CORINTIANO)
[Leio] a Bíblia para que Deus me ajude. (SÓCIO)
A motivação de ordem espiritual para a leitura aparece como um recurso
para poderem superar sua condição, pois a busca de conforto nos textos bíblicos
apresenta-se como uma forte motivação entre os adolescentes.
Manterem-se informados sobre as coisas que dizem respeito ao seu
mundo, como questões ligadas a situações legais ou policiais, é um outro forte
motivo para quererem acessar alguns textos. Por isso, os adolescentes lêem:
Ficar por dentro, ficar informado sobre o que os caras aprontam
fora. (LILICO)
Só leio para saber o que acontece na rua, pra ficar ligado. (THORKY)
116
Estou lendo um livrinho: ‘O Brasil não merece Cadeia’. (JAPÃO)
[Leio] um livrinho explicando a maioridade penal. (SALSICHA)
Outros adolescentes, porém, associam o manuseio de alguns suportes de
leitura à sua necessidade de masturbação e apelam para as revistas eróticas para
acalmarem seus ânimos, terem prazer e dormirem mais tranqüilos.
[Leio] revista pornô para me masturbar à noite. (POLAQUINHO)
Quando estou com a cabeça quente leio revistas eróticas com
histórias, depois esfria. (BEDUINO)
Todavia, da mesma forma que existem aqueles que encontram motivos
para lerem, ao contrário alguns os encontram para não lerem.
Não leio porque tenho preguiça. (GUIGUI)
Não leio por que me dá sono. (JAPÃOZINHO)
Não leio nada, porque não tem o que ler. (MALUCÃO)
Os motivos que os fazem acessar textos e lerem são os mais diversos, indo
da necessidade de informação, até a busca de conforto e consolo, tanto nas
palavras santas da bíblia como nas imagens mundanas das revistas eróticas.
4.3.2 – Práticas de Leitura
Neste exato momento de nossa análise, relataremos as práticas de leitura
efetuadas pelos adolescentes do sistema prisional, tanto nos momentos de
encarceramento nas celas, como naqueles vinculados à participação em
atividades de sala de aula, no que se refere especificamente aos projetos
desenvolvidos nessas duas esferas em relação à leitura.
117
4.3.2.1 – O Mundo da Ficção e do Faz-de-Conta
A proposta que sentido à existência do “Lar de Adolescentes”
Fazendinha, em Cuiabá, coloca-se na mesma dinâmica das políticas nacionais
para o bem-estar do menor, ou seja, seu objetivo é reintegrar o adolescente à
sociedade ou ressocializar esse mesmo adolescente através de sua adequação a
valores socialmente válidos. A visão que se mantém sob essa perspectiva implica,
afirma Queiroz (1984), que a delinqüência está relacionada a uma absorção falha
de valores por esses adolescentes.
No processo de ressocialização dos adolescentes estão implicadas duas
situações que obedecem a esta hierarquia, a primeira delas diz respeito à
proteção da sociedade, à proteção do cidadão comum, de bem, que paga seus
impostos e, a segunda delas é a correção do infrator, a sua punição que está
ligada à ressocialização do adolescente. Tal processo tem o objetivo de fazer o
adolescente voltar, o mais rapidamente possível, a ser produtivo na sociedade
convivendo pacificamente com as pessoas de bem. Segundo Queiroz (1994), isso
é feito por um corpo técnico, formado para acompanhar os adolescentes e a sua
capacidade de introjeção de valores, o que lhes conferiria o status de
reintegrados.
Contudo, a mudança e a introjeção de valores requer disciplina. “A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos e obediência). A disciplina é
uma anatomia política do detalhe” (Foucault, 1990, 127) Essa disciplina a que
fazemos menção faz parte de um universo bastante amplo de procedimentos que
caracterizam as práticas institucionais. De certa maneira, como na maioria das
instituições, tais práticas acontecem em um determinado nível e o discurso da
instituição em outro, este é de conhecimento blico, generalizante e abrangente,
bem como muito mais ético que determinadas práticas.
118
Na distância que se estabelece entre estas duas esferas ideológicas da
instituição, reproduz-se a mesma ética das ruas e do ambiente de criminalidade. O
mesmo espaço físico, social e psicológico, de onde os adolescentes foram
retirados para serem ressocializados, se reproduz dentro do cárcere onde deveria
haver valores diferentes para serem “introjetados”. Assim, vigoram a lei do
silêncio, a reprimendas violentas aos alcagüetes, o tráfico de influências, a
imoralidade, o mercado negro para produtos de várias espécies e o consumo de
diversos produtos ilícitos.
Em conversas informais com os adolescentes, depois que o gravador era
desligado, vários deles confirmaram a entrada de drogas lícitas como cigarros e
álcool e de outras ilícitas como maconha e cocaína. O acesso, em alguns casos,
dava-se com a anuência e/ou colaboração de parte do corpo institucional e em
outros momentos viabilizado por contatos externos.
Trabalho escolar desenvolvido pelos adolescentes em que a figura ilustra o lugar dos entorpecentes no ambiente
de ressocialização.
(PORRUA, 2003)
119
Mais por força do cumprimento da lei do que realmente por adesão a
valores humanos, há, por parte do sistema prisional, uma preocupação em fazer
cumprir e ofertar as condições para a reintegração efetiva do adolescente infrator.
Para que haja uma possibilidade real de vivência de outros valores sociais e
conseqüente êxito na sua reintegração, o corpo técnico deve proporcionar
acompanhamento terapêutico, assistência médico-odontológica, esporte, arte e
recreação, bem como educação formal, de uma maneira orgânica.
Tal forma de procedimento deve consolidar-se em vista da coerência de
propósitos da própria instituição que deve submeter o adolescente, ali posto sob
sua tutela, a programas que consolidem valores sociais e relacionais. Entretanto, o
que foi observado, e alguns relatos corroboram as observações, é que não existe
uma relação necessária entre os vários programas oferecidos pela instituição
prisional. Os trabalhos de professores, técnicos (assistentes sociais, pedagogos e
psicólogos) e outros profissionais como recreadores e arte-terapeutas não se
desenvolvem de forma orgânica, e são conflitantes em algumas ocasiões. Cada
qual procura fazer a sua farte e nada mais.
Aqui é cada um por si. O povo do lado de lá, os técnicos, nem dão as
caras, nem querem saber da escola. (COORDENAÇÃO
PEDAGÓGICA)
trabalho aqui muitos anos e sempre foi uma guerra entre a
escola e os técnicos. Isso não é positivo pra ninguém; os garotos
percebem. (PROFª ALFA)
O pessoal se desentende até pra fazer festa do dia das crianças. Fui
um ‘Deus nos acuda’ pra entrar em acordo com o pessoal de
[técnicos], e não teve jeito. Mas, que nós fizemos a nossa festa,
fizemos. (PROFª BETA)
Nós fazemos o nosso melhor. Cada um tem a consciência e a
responsabilidade do que faz, mas ainda falta muito para
trabalharmos realmente em equipe. (ASSIST. SOCIAL)
Esses técnicos e professores dão muita moleza para esses
marginais daqui. Sem essas aulas e essa frescura de terapia, essas
coisas, esses bandidos iam endireitar rapidinho. Iam trabalhar e sair
da moleza. Isso é falta de serviço pesado. (ORIENTADOR NALDO)
120
Esses depoimentos, colhidos em conversas informais e ouvidos ao acaso,
revelam a falta de coesão em termos de realização, e até mesmo de
conhecimento, de algum projeto educativo ali desenvolvido. Tal evidência denota a
perda dos rumos de uma equipe que deveria voltar-se para o mesmo destino: a
ressocialização do adolescente vista enquanto capacidade de introjeção de
valores. Diante dessa angustiante situação, nos perguntamos que valores são
esses que devem ser introjetados no adolescente, mas que, evidentemente, não
ecoam fora da esfera do discurso institucional? Aliás, ecoam silenciosamente nas
falas oficiosas de agentes e pacientes da instituição.
O adolescente não é quem mobiliza os esforços e estratégias de
ressocialização, mas ao contrário, ele deve adaptar sua conduta a cada agente
institucional. Alguns dos adolescentes por conheceram o “Lar” em outros
momentos, sabem os modos de proceder e têm a capacidade de adequar os
seus discursos e os seus comportamentos como pede cada técnico.
Aqui a gente dança conforme a música, senão não sai nunca.
(NEGUINHO)
Assim, os adolescentes falam o que os técnicos querem ouvir e os técnicos
ouvem o que desejam dos adolescentes e isso é o que basta para os relatórios
serem encaminhados positivamente.
Isso reafirma o fato de que o menor na instituição está diretamente
disponível aos técnicos e não o contrário, muito embora se coloque
como meta o soerguimento bio-psico-social do infrator: em ambas as
fórmulas, o que está em jogo é uma contabilidade econômica decisiva
no que tange o adequar-se sobrevivência institucional e reciclagem
de internos. (Queiroz, 1984: 109)
Enlevados por essa lógica e pelo cumprimento do que regem as medidas
sócio-educativas, a instituição prisional oferece atividades que pouco
ressocializam os adolescentes, haja vista a forma como são conduzidas; a não ser
que o acesso a inúmeras formas de passar o tempo torne o sujeito apto para viver
em sociedade sem maiores conflitos.
121
a – Leituras ‘Encantadas’
20
Não obstante a aparente ineficiência das medidas de reeducação social,
pois a reincidência de cerca de 80% dos casos, em delitos de igual ou maior
gravidade, conforme informações da assessoria da Gerência do “Lar do
Adolescente”, ainda se faz mister pensar na razão da não oferta da leitura
enquanto prática que possibilita a vivência de valores. A prática de leitura não faz
parte, efetivamente, em nenhum momento, das atividades de ressocialização dos
adolescentes como uma, dentre várias alternativas possíveis, oportunidade de
realizar novas construções simbólicas e de sentido existencial.
Ao mesmo tempo, pensamos no acesso permitido e incentivado das Bíblias
no ambiente prisional. Essa atitude vai além das questões relacionadas à
liberdade de culto e não faz parte de uma dimensão política da instituição que
promove o acesso à leitura em que o sujeito pode ressignificar os seus horizontes
de expectativas, mas sim de uma estratégia secular que adota os mais diversos
subterfúgios do medo. É pelo medo de Deus e dos castigos que lhe podem
sobrevir, que os adolescentes acessas os textos bíblicos, pois, nesses fragmentos
eles encontram, imperiosamente, a imagem de um Deus que é reconhecido como
‘meu pastor e nada me faltará’, mas também como um Deus que castiga o erro e
pune o pecador. Essa visão é corroborada pelas famílias e grupos religiosos que
incentivam a leitura da Bíblia.
A Bíblia é dada pelos missionários ou a mãe traz. (NEI)
20
O sub-título ‘Leituras Encantadas’ faz parte de um contexto de discussões acerca das práticas de
leituras do adolescente no cárcere, dividido em: onde lêem e o que em. Este título, nominado de
uma forma tão inocente, e que imediatamente remete ao enlevo das fábulas infantis, na verdade,
traz no adjetivo ‘encantadas’ uma significação bastante sui generis. Uma significação que não está
ligada à palavra encanto, mas à palavra ‘canto’, contudo também não ao ato de quem canta, mas
ao substantivo que remete à escuridão das celas, ao lugar onde se unem as paredes que
trancafiam os adolescentes e testemunham suas penas. Assim, ‘leituras encantadas’ traz em seu
significado o entorno, o contexto onde foi forjada e significada, relacionando-se aos lugares em que
as leituras acontecem. Seria um bom momento para tentar repensar as práticas de leitura e
‘desencanta-las’.
122
Os textos bíblicos somente são aceitos por representarem mais um
instrumento que auxilia no firme propósito da introjeção de valores, aliás, o nos
esqueçamos que são os valores da sociedade cristã ocidental; da promoção da
tranqüilidade dos ânimos e da aceitação passiva e submissa à vontade social
como se fosse a vontade de Deus. Lembremo-nos que um detento convertido aos
preceitos religiosos de modo firme e reto, representa um problema a menos e um
sucesso a mais nos programas de reintegração, sem que para tanto sejam
investidos nenhum esforço maior de ordem técnica, afinal não é ciência. Por
isso mesmo, o que Abreu (1999) afirma tem muito sentido no contexto social
vigente e muito mais no contexto prisional:
Ler, escrever, contar são (...) muito perniciosos aos pobres (...)
Homens que devem permanecer e terminar os dias num árduo,
fatigante e doloroso quadro da vida, quanto antes a ele se
acostumarem, mais pacientemente a suportarão. (Abreu, 1999: 13)
Indagamos por diversas vezes, e a diferentes agentes institucionais, sobre
a presença de outros suportes de leitura que poderiam também servir como
propagadores de valores e possibilitadores de mudanças de conduta. Muitas
foram as respostas, mas uma delas ganhou uma significação importante por
representar a forma como se configura a dicotomia insondável em que estão
inseridas práticas e discursos no processo de ressocialização do adolescente.
Veja:
Outro tipo de livro não pode entrar porque podem usar para colocar
fogo nas selas ou usarem para enrolar uns ‘cigarrinhos’.
(PESCADOR – ORIENTADOR)
Novamente temos nesse relato um discurso no mínimo polêmico. O fogo
nas celas por ocasião de rebeliões ou levantes de menor intensidade pode ser
ateado em roupas, papel higiênico, colchões e outros materiais inflamáveis,
portanto, não são os suportes de leitura os responsáveis por isso. Outro ponto
123
intrigante do relato diz respeito à associação de livros e revistas, ou qualquer outro
tipo de papel, ao consumo de drogas. O problema é a droga que entra no sistema
prisional e não o papel usado para consumi-la. A esse respeito um dos
adolescentes, ironicamente, e na contramão do que pensa o sistema prisional,
explicou o que acontece:
Enrolar um ‘back’
21
no papel da Bíblia é bem mais irado, o papel da
Bíblia é mais fininho. (NEGUINHO)
Quanto à entrada de material de leitura, oficialmente, isto é, na ordem do
discurso, impedimentos, mas na ordem prática, as revistas com notícias do
mundo, os jornais com fartas matérias policiais e de violência em geral, e,
sobretudo, as revistas pornográficas, são todos levados para as celas pelos
‘orientadores’ em troca de algo.
Os adolescentes confirmam como conseguem os suportes de leitura.
A Bíblia é normal trazer, revista pornô os orientadores trazem.
(BOCA)
[Se consegue as revistas] na correria
22
, [devido] a mente fraca dos
orientadores. (FORMIGUINHA)
Bíblias podem entrar, revistas não sei, revistas pornô os moleques
trocam por ferro com os orientadores pra crescer o nome.
(NEGUINHO)
As pornô, os orientadores trocam por ferros para se prevenir no caso
de rebelião. (CABRAL)
21
Back é o nome comum utilizado em alguns grupos para denominar o cigarro de maconha.
22
“Correria” é a denominação que tem a movimentação de alguém em busca da realização de uma ordem,um
desejo ou um favor para alguém. Pode ser de um detento para outro, de um externo para um detento ou de um
agente institucional para um detento.
124
O discurso velado, o segredo, são práticas constantes entre os
adolescentes como forma de auto-preservação. A ‘lei do segredo’, como afirma
Maffesoli (2002) é um “... mecanismo de proteção frente ao exterior, isto é, frente
às formas superimpostas de poder.” (p.128). Ao sentirem que a presença do
pesquisador não representa riscos às suas relações escusas com o sistema
prisional, os adolescentes apresentam um pouco mais de seus mundos e contam
como acessam o que desejam, mesmo não lhes sendo permitido legalmente;
afinal, os ‘orientadores’ são mais “legais” que a lei, pois não a representam
moralmente.
Outro dado importante, relacionado aos escambos do cárcere, é o fato das
trocas serem feitas por “ferros”, como também são denominados os “chuchos”
23
, o
que incentiva a confecção dessas armas e alimenta o tráfico de revistas e outros
suporte de leitura, bem como de outras espécies de produtos. Contudo, esses
fatos não são relatados às autoridades, e aqueles que o fazem são imediatamente
excluídos do grupo; uma espécie de ostracismo social denominado no cárcere de
‘seguro’. Conforme o que nos apresenta Maffesoli (2002) este acordo velado de
segredo e silêncio no interior do sistema prisional, faz com que os adolescentes
estejam na presença “(...) de uma lei não escrita, de um código de honra, de uma
moral clânica, que de maneira quase intencional se protege contra o que é exterior
e superimposto.” (p.130)
Observemos que a falta de políticas institucionais de acesso à leitura,
devida a esses adolescentes como uma forma otimal de acesso aos bens
culturais, ao lazer e à informação, incentiva o surgimento de um mercado negro de
revistas, jornais e materiais eróticos que pode deturpar e mesmo estancar as
possibilidades de vivência de alguns novos valores. Contudo, o mais importante
de nossa reflexão não são propriamente os produtos desses escambos, mas é o
processo que os fazem ser acessados e consumidos; a materialidade desse
processo reproduz exatamente a dinâmica da delinqüência contra a qual o sistema
prisional empreende combate, e que por suas debilidades acaba reproduzindo. Ao
23
“Chucho” é a denominação genérica de finos pedaços de madeira ou ferro de 20 a 40 centímetros,
aproximadamente, afiados nas pontas e usados pelos detentos como armas por ocasião de rebeliões ou outros
levantes menores no cárcere.
125
lavar as mãos para estratégias que envolvem a leitura, o sistema prisional abre as
portas para que os germes da delinqüência tomem posição em qualquer canto.
Essas questões de leitura a gente deixa com a escola que ela
conta do recado. Nós temos que cuidar dos adolescentes para eles
irem embora recuperados. (GERENTE)
Conforme o que nos diz o gerente do “Lar dos Adolescentes”, as
responsabilidades pelas atividades de leitura são colocadas sob a tutela da
escola, haja vista as sua atribuições educativas; discurso que esquece, ou ignora,
completamente o conceito amplo de processo educativo (Mascellani, 1985),
confundindo-o com práticas de ensino, afinal, todo ato humano educa, no cárcere
não é diferente. Outorgado-lhe o poder pelo sistema prisional, vejamos o que a
escola no interior do cárcere propõe:
b – Leitura Escolarizada
Para sustentar a argumentação desse tópico, dentre outras reflexões, não
podemos deixar de apresentar o posicionamento de Lajolo (2002) sobre os efeitos
que a literatura e a leitura dos textos literários podem gerar: “... tanto [a literatura]
gera comportamentos, sentimentos e atitudes, quanto prevendo-os, dirige-os,
reforça-os, matiza-os, atenua-os; pode reverte-los, alterá-los. (Lajolo, 2002: 26).
Essas poderiam ser as bases para o desenvolvimento de programas que
utilizariam a leitura no processo de ressocialização, contudo vejamos o que foi
encontrado por ocasião da observação do cotidiano escolar dos adolescentes, seu
dia-a-dia nas salas das aulas.
Também ouvimos os professores em ambientes um pouco menos formais
como a sala dos professores e a sala da coordenação pedagógica. Assim sendo,
pudemos testemunhar as condições em que as aulas são ministradas, os
conteúdos que veiculam e a receptividade por parte dos adolescentes.
126
Apesar de termos testemunhado o desenvolvimento do processo
pedagógico, preferimos evidenciá-lo dando voz aos relatos dos adolescentes
sujeitos de nossa pesquisa, afinal o que eles vivenciam enquanto sujeitos
educandos e/ou ressocilizandos e a maneira como significam suas experiências e
lhes dão sentido, são o que há de mais importante nessas reflexões.
Vamos direto ao ponto. Indagamos os adolescentes sobre as práticas de
leitura nas salas das aulas do “Lar do Adolescente” – Fazendinha, onde funcionam
salas anexas da Escola Estadual “Meninos do Futuro”
24
. Para nossa surpresa, que
pensávamos que nas celas os adolescentes liam menos do que nas salas das
aulas, o inverso aconteceu. Os relatos apontam para a inexistência de atividades e
práticas de leitura durante as aulas. Observemos essas afirmações:
Não tem atividade de leitura, seria bom se tivesse. (LILICO)
Não tem atividade de leitura na sala, se tivesse eu lia. (BINHO)
Essas considerações ilustram a ausência das atividades que exijam ou
considerem a leitura de diferentes gêneros. Gêneros? Nem muitos, nem poucos.
Nenhum, pois as revistas levadas para as salas das aulas são para recorte e não
para serem lidas ou discutidas. Uma boa oportunidade para os adolescentes delas
se apropriarem.
As professoras levam para a sala de aula para recortar e a gente
pega e leva para a cela. (THORKI)
24
Conforme Projeto Político Pedagógico datado de junho de 2002, a Escola Estadual Meninos do
Futuro” foi criada pelo Decreto Lei nº 404 de 22/09/95, e autorizada pela resolução 027 de
14/02/1997. É mantida pelo governo do Estado de Mato Grosso, através da Secretaria de Estado
de Educação, e tem sua autorização renovada a cada três anos. A escola se destina à educação
básica, na forma presencial, de crianças e adolescentes em situação de risco compreendidos os
adolescentes e crianças excluídos do sistema de ensino e de todo contexto social, dentre eles os
adolescentes infratores do Lar do Adolescente – Fazendinha em Cuiabá - MT
127
Para a realização das aulas, os professores levam os lápis, as borrachas,
os cadernos ou papéis e, depois de contá-los, os distribui para os adolescentes.
Esses materiais são utilizados durante as aulas e, ao seu término, imediatamente
são recolhidos e conferidos, inclusive folhas de papel. Na falta de qualquer um dos
materiais distribuídos, os orientadores, que ficam em duplas ou trios nas amplas
portas das salas das aulas, são acionados para a recuperação do que estava
faltando.
Durante as aulas de língua portuguesa, às vezes, alguns livros didáticos
eram distribuídos para atividades gramaticais do tipo siga o modelo e complete, o
texto usado apenas como pretexto, como afirma Geraldi (1984). Em algumas
observações das atividades feitas em sala, foram produzidos pequenos textos
sobre opiniões pessoais de diferentes assuntos que não foram precedidos por
debates, nem posteriormente discutidos.
Leituras de textos não foram realizadas, sendo as mesmas substituídas por
um “vídeo”, isto é, por diversas vezes e em diferentes disciplinas, os adolescentes
assistiram a filmes dos mais diferentes gêneros. Todavia, mesmo sem que
houvesse qualquer forma de atividade ou proposta pedagógica por detrás de sua
exibição, além de passar o tempo, conforme o que nos afirmou a coordenação
pedagógica, os filmes eram criteriosamente escolhidos.
Os meninos não podem ver qualquer filme. Vicente
25
não gosta. o pode
ter violência. Sexo? Nem pensar. A promotoria cai de pau se souber.
(COORD. PEDAGÓGICA)
Assim eram os critérios de escolha dos filmes assistidos. Como se um filme
substituísse a leitura de um livro ou se uma sessão de vídeo fosse o mesmo que
uma aula. Apenas cumprem ao objetivo de passar o tempo, não que pensemos
serem os filmes, vídeos, músicas e outras imagens instrumentos destituídos de
25
O nome Vicente, que aprece aqui e em outros momentos, se refere ao então gerente do Lar de
Adolescentes – Fazendinha, o Srº Vicente Públio de Souza
128
possibilidades de socializar informações, porém são meios que podem veicular
leituras prontas, ao contrário do que acreditamos ser a leitura como prática de
atribuição de sentidos. Os adolescentes estão tão acostumados a essa rotina, que
não presentifica a leitura em momento algum, aliás, as exclui de qualquer
modalidade de currículo, que chegam a dizer sobre a importância da leitura o
seguinte:
É importante, mas esporte e filme também. (BINHO)
Mesmo quando havia aula, no sentido mais amplo do termo, os professores
não proporcionavam nenhuma atividade ligada às práticas de leitura para seus
alunos.
A gente não lê, copia do quadro. Seria bom ler, praticar e treinar a
voz. (THORKI)
Não tem leitura, só cópia do quadro. (PEPE)
Não tem leitura, só passam no quadro. (RAPOSINHA)
O que vimos foram amontoados de livros, ao invés de Biblioteca; vídeos, ao
invés de livros; sessões de filmes, no lugar de aulas; revistas sendo recortada, ao
invés de serem lidas. Incessantes pias substituem momentos de ressignificação
da existência; exercícios de repetição apagam novos modos de ser. Esta mesma
realidade corrobora o que Geraldi (1984) diz a respeito da leitura praticada na
escola como uma atividade lingüística artificial, porque ela simula as relações
intersubjetivas entre interlocutores, pois, nas escolas “...o se lêem textos,
fazem-se exercícios de interpretação e análise de textos. E isso nada mais é do
que simular leituras.” (Geraldi, 1984: 78)
129
Prateleiras onde são colocados os materiais usados com os adolescentes.
(PORRUA, 2003)
Frente a esse mesmo perfil que explicita claramente um projeto pedagógico
e, mais do que isso, um projeto de humanidade, os adolescentes rufam suas
vozes.
Hoje não tem nada na aula, se tivesse eu leria. (BEDUINO)
[Na aula} não tem nada, não gosto muito. (JAPÃOZINHO)
Não há leitura, só bagunça. (FORMIGUINHA)
Na aula, ninguém lê nada. É um faz de conta. (GUIGUI)
Frente a esses relatos, não tão distantes das salas de aula que compõem o
circuito da leitura das escolas públicas, o que pensar? Se o cárcere se constitui
130
educacionalmente numa instância de discursos ficcionais, e a escola materializa-
se em espaços e tempos de um mundo do faz de conta, o que resta considerar,
além do caráter pseudoeducativo dessas instituições? Veja onde parou a placa
que indicaria um dia a existência de uma biblioteca. Ela diz: “Biblioteca Sonho de
Aprender”. E em seguida uma citação dos direitos da criança: “A criança tem
direito à instrução gratuita e obrigatória”.
A instituição vê-se alheia, conforme explica Magnani (2004), a que a
aprendizagem comporta uma dimensão não espontânea e prevê algumas
intervenções intencionais; são esses pressupostos a que os próprios adolescentes
almejam nas falas elencadas anteriormente, se fizermos delas uma leitura para
além do dito, perceberemos um clamor silencioso, talvez, a princípio, retórico, mas
um enunciado que produz sentido e deve ser levado em consideração.
Flagrante da placa ao chão, em uma das salas de entrevista.
(PORRUA, 2003)
131
4.3.2.2 – O Cânone do Cárcere
O ser humano não está livre de viver dicotomizado, isto é, dividido entre
interesses diversos e muitas vezes conflitantes. No entanto, a permanente tensão
entre mundos diferentes, entre universos de expectativas distintos como um modo
de vida, pode retardar as escolhas desses sujeitos, fazendo-os viver sempre entre
dois mundos, na eminência da escolha. Na permanente tensão da escolha pelo
rumo que deve tomar sua vida, os sujeitos tomam decisões quase sempre
provisórias que tendem a refletir apenas os desejos e necessidades imediatas que
possuem. Numa abordagem mais sincrética poderíamos dizer que os
adolescentes aqui pesquisados “acendem uma vela para Deus e outra para o
Diabo”. As leituras a que tem acesso demonstram esse universo vivido em duas
dimensões, uma ideal e outra real, onde sonhos e desejos se deparam com os
limites da realidade.
a – O sagrado e o profano
Os discursos dos adolescentes, quase 60% deles, sobre suas práticas de
leitura, afirmam a importância de ler a Bíblia e buscar forças para enfrentar a
dureza do cumprimento das penas, e alguns dos adolescentes realmente tentam
faze-lo. No entanto, o que percebemos é que suas falas estão contaminadas por
uma intenção de religiosidade, pois perguntados sobre o que seus companheiros
lêem nas celas, os adolescentes não confirmam os índices de 60% de leitores da
Bíblia, aliás, ao contrário, afirmam a presença da Bíblia sim, mas que a sua leitura
limita-se a raros momentos.
[Não leio a Bíblia] dou uma olhada para desbaratinar. Tem gente
que quer virar crente. Eu não. Eu sou quem sou. Deus está comigo,
mas não preciso virar crente. Tinha Bíblia na cela e não fazia questão
de ler. (CEARÁ)
li as histórias de Jesus. Me ensinam os 10 mandamentos, mas eu
não cumpro nenhum. (BOCA)
132
As práticas de leitura dos adolescentes voltam-se essencialmente ao
material erótico e pornográfico, principais produtos de escambo dos adolescentes.
Por esses suportes os adolescentes fazem quase de tudo, chegando até a
brigarem pela sua posse.
[Já me envolvi em confusão] por causa de revista pornográfica.
Porque você empresta e não entregam ou sem página. Tem umas
quarenta e poucas e o cara rouba uma gina sua, briga se
bobear dá até morte. A revista vale ouro. (LILICO)
Emprestei uma revista pro guri, uma revista que eu tinha,
pornográfica. o guri emprestou pra um PM de lá. ele teve que
pagar uma outra revista pra mim. Eu discuti com ele e ele teve que
pagar outra. Ele me deu um short e uma camisa pela revista. A
revista é valiosa demais porque não tem visita íntima. (GUIGUI)
A necessidade de sentirem um pouco de prazer, que não encontram
outro tipo de consolo, os fazem consumidores vorazes de revistas pornográficas.
Ao serem perguntados sobre o que lêem com maior freqüência 90% dos garotos
responderam que fazem uso dessas revistas, proibidas para menores de 18 anos,
para passarem o tempo e depois masturbarem-se. Algumas páginas são
arrancadas e pregadas nas paredes das celas. Somente são tiradas das paredes
quando visitas importantes como por exemplo, do Juiz, Promotor ou alguém
dos Conselhos Tutelares ou dos Direitos Humanos, instâncias que não tolerariam
a presença de material pornográfico nas celas. Mas as Bíblias permanecem por lá,
pelas celas, bastante a vista para mostrar a quem quer que seja a devoção e o
firme propósito de mudar de vida.
Entre as coisas do céu e as coisas da terra, a tensão de viver uma vida
dupla se intensifica no cárcere. Até mesmo a intimidade dos desejos dos
adolescentes é perscrutada pelos olhos da moralidade e da lei, a mesma que os
faz ter por debaixo das Bíblias, escondidas por elas, as revistas pornográficas.
Sob as vestes dos suportes espirituais escondem-se os apelos voluptuosos da
carne que são vividos sorrateiramente. Uma leitura de ‘submundo’ como
133
caracterizaria Chartier (1999), que refrigera e dociliza os ânimos. É assim que o
sistema os quer manter, corrobora Silva (1998):
Não é de estranhar, portanto, que as características como a
docilidade, a ingenuidade e a cordialidade sejam tomadas como as
grandes virtudes do homem brasileiro – isto tudo no sentido de
bloquear e controlar o surgimento da contestação e do
questionamento sobre a razão de ser das estruturas de dominação.
(Silva, 1998: 23)
b – O sonho e a realidade
Os adolescentes sabem de sua condição de prisioneiros. Sabem que
estarão por ali um bom tempo. Eles têm noção, mesmo que intuitivamente, do que
os levou à marginalidade. Sabem, pelas suas falas, que mudar de vida é muito
difícil, pois a vida na delinqüência deixa marcas profundas, faz aproximações entre
sujeitos de mesma índole e cria hábitos que o cárcere não reverte.
Em certo ponto eu pensava em não cometer [delitos], em certo ponto
eu pensava [em cometê-los] porque eu não tenho estudo, às vezes,
eu pensava: ‘poxa’ vida eu não tenho casa, moro na casa da minha
avó. Eu pensava: como eu ia conseguir dinheiro para comprar uma
casa pra mim... (GUIGUI)
Dia desses, pude perceber para além do discurso as proposições que
acima apresento, quando, meses depois de concluída a coleta dos dados,
encontrei um dos adolescentes, o Cearazinho, na saída do shopping. Ele me
avistou e me chamou. Estranhei o eco da palavra ‘professor’ pelo corredor. Fiquei
procurando um rosto conhecido. Avistei-o enfim; nos cumprimentamos e convidei-
o a sentar-se, comermos algo e conversarmos um pouco. Assim aconteceu;
durante a conversa ele me perguntou se eu não estava interessado em comprar
um celular de última geração. Como nos conhecíamos da pesquisa que havia
realizado com ele e tínhamos nos encontrado algumas vezes para conversar,
134
quando ele ainda era interno, me senti bastante livre para indagar sobre suas
atividades desde que saíra do Lar do Adolescente. Contou-me, então, que tinha
voltado a estudar, pois a Juíza o havia obrigado como condição para sua soltura,
mas que ainda estava fazendo algumas “coisinhas” pra ganhar uma “grana”, pois
em casa a situação estava muito ruim. Essas “coisinhas”, entendi muito
claramente, eram alguns furtos, dentre eles o celular que estava me oferecendo.
Ao indagar-lhe o porquê de ter voltado àquele mundo, ele me disse que parecia
que o celular estava ali “chamando, pedindo para ser pego” e que de outro modo
não conseguiria nada na vida. Disse: “Sou bandido mesmo e minha vida é essa,
até quando Deus quiser.”
Esse depoimento aqui transcrito ilustra muito bem o mundo em que esses
adolescentes vivem e que é fomentado no cárcere. Os adolescentes infratores,
como todo adolescente de sua idade, têm sonhos de fama, sucesso, poder, belas
mulheres, dinheiro, carro e outros bens de consumo. No cárcere eles acalentam
esses desejos através das leituras de revistas de novelas e de artistas, pois 45%
deles afirmam ter acesso a essas revistas. A vida de glamour dos famosos povoa
suas mentes, pois a desejam intensamente. No entanto, o processo que levou
esses artistas e bem sucedidos a trilharem uma vida de êxitos não lhes chega ao
conhecimento de forma efetiva. Para eles tudo é imediato. ”Ronaldinhos” e
“Santoros” são fabricados ao acaso, sem maiores trabalhos ou desconfortos. Eles
são personagens que se deram bem na vida.
Os adolescentes desconfiam, talvez saibam, que não se darão bem por
essas mesmas vias e, imediatamente, desviam o seu olhar para um modo mais
rápido de chegar ao êxito. Procuram as informações de seus mundos de
criminalidade. Procuram por pistas que os remetam a uma nova possibilidade de
se dar bem.
Entre os adolescentes, 54% desejam acessar as notícias do mundo para
saberem de seus pares, ou mesmo para programarem uma “fita” para quando
saírem da “tranca”.
135
Perguntado sobre a possibilidade de algumas leituras o influenciarem a
cometer delitos, o adolescente respondeu:
Influenciar pode até ser, pois tem muitas pessoas que vêem e tentam
fazer igual. Páginas policias, essa coisas, o pessoal já mais crescido,
gente grande... Ficam lendo e botam na cabeça e quer ser igual a
eles e vai tentando. O pessoal fala: indo preso à toa sonhando com
uma fita boa. (CEARÁ)
A leitura de revistas de TV e de famosos os faz ver que a vida deles não é
assim, mas é assim que desejam viver, como os famosos vivem. Afastar-se da
delinqüência é retornar à estaca zero de conquistas por espaço e notoriedade,
afinal o mundo da marginalidade também tem o seu glamour. As páginas policiais
tornam-se o reflexo de um mundo que lhes interessa por ser o seu mundo, talvez
não o mundo que desejam, mas o mundo que podem acessar. Um mundo que
lhes tirará da invisibilidade social, que os retirará do anonimato e os inscreverá na
história seja como for.
Perguntados se algum tipo de livro os interessariam, alguns responderam
que se pudessem escolher, optariam por livros de narrativas de aventuras e
histórias policiais. As escolhas dos adolescentes recaem sobre os chamados
romances de tensão mínima, que pelo seu caráter de jogo, possuem apenas uma
tensão de ação e não uma tensão psicológica, segundo Faria (1999). Essas
atitudes revelam a busca de identificação travada por esses adolescentes. Faria
(1999) traz à discussão que o fenômeno da busca de identificação consiste na
afirmação, pelo adolescente, de sua personalidade através do livro, prolongando
nas leituras suas experiências e questionamentos pessoais.
Quando o leitor vive a vida das personagens, ele experimenta suas
alegrias e seus sofrimentos, se associa a seus combates e reage
diante deles como se reagisse diante das pessoas reais, ele faz de
sua leitura o instrumento de uma aprendizagem ética. (Faria, 1999:
82)
136
Surpreendentemente, algum afirma um comportamento de certa ética: Ao
ser perguntado sobre os seus pensamentos a respeito de novos delitos o
adolescente respondeu:
Sim pensei, virou mania, vício... Mas eu sei meus limites, de
conhecido eu não roubo, de desconhecido, igual aquele cara da
floresta o Robin Wood. (BOCA)
A ausência de oferta de suportes de leitura acentua ainda mais a intensa
cisão existencial vivida por esses adolescentes. Apoiados pelas idéias de Antonio
Cândido (apud Faria, 1999) sentimos que cada vez fica mais difícil apontar ao
jovem o certo, o belo, o justo, pois os valores humanos estão confusos; nessa
esfera a literatura pode ser uma âncora, uma base sólida que ajuda a construir o
caráter e a tomar decisões.
Divididos entre tantos mundos, os adolescentes são carentes de programas
de leitura, haja vista que permitir ou facilitar o acesso a alguns textos, sem
nenhuma intencionalidade por detrás disso, não garante práticas efetivas,
formação do gosto ou criticidade na leitura; ao contrário, permitem ao adolescente
apenas a contemplação de um universo fragmentado, sem prenhez de sentido e
significação que o remetam para além de si mesmo e de sua condição existencial.
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciar esta pesquisa, não fazíamos idéia do quanto ela tinha relação
com a minha história pessoal. Dito isso, você leitor pode estar pensando que eu
também fui um adolescente infrator. Não, não fui; a não ser, claro, pelos horários
infringidos, algumas inverdades para fugir do castigo e algumas fugas noturnas
para ir a festinhas em casa de amigos; mas acredito não terem sido infrações tão
graves assim. Esses episódios fazem parte das páginas escritas de minha história
e, neles descobri, nesses meses da pesquisa, uma antiga relação com as duas
categorias que analisei aqui: a leitura e a adolescência.
Descobri que estar à margem da sociedade como delinqüente não é um ato
isolado do querer individual, de mero desleixo ou descaso, mas um efeito das
relações estabelecidas entre os sujeitos frentes às estruturas que estão ao seu
redor e que são mediadoras de escolhas que fogem ao controle dos desejos. A
organização da sociedade em classes de pessoas com maior ou menor poder
aquisitivo, (1/3 delas não acessam aos mínimos bens culturais), um sistema
econômico que privilegia a livre concorrência somente entre aqueles que têm os
mesmos talentos e oportunidades, políticas sociais que ainda fazem do
assistencialismo a sua bandeira de promoção da igualdade entre os cidadãos ( e
nada mais ingênuo do que dar a todos o mesmo, sabendo que cada um tem
necessidades diferentes), um sistema judicial que protege crianças e
adolescentes, contudo, o sabe o que fazer com eles, são os bastidores da
delinqüência no Brasil. Os adolescentes do Lar do Adolescente Fazendinha em
Cuiabá/MT, com os quais tive contato, não são diferentes, eles vivem essas
mesmas condições.
Concluo momentaneamente com este relatório de pesquisa que a formação
do adolescente enquanto leitor talvez não esteja diretamente relacionada com a
138
formação do seu caráter infracional; ambas as condições leitor e infrator - não
estão necessariamente ligadas como elementos de causa e efeito do tipo: não é
leitor, então vai ser delinqüente, pois muito bons leitores tornam-se delinqüentes e,
há bons cidadãos, cumpridores de suas obrigações sociais, que são bons leitores.
Descobri também, que a leitura, enquanto um processo que supera a
simplicidade do ato decodificador e possibilita ao sujeito interpretar e interagir com
o universo ao seu redor, o está presente suficientemente nas trajetórias de vida
desses adolescentes, nem mesmo em sua dimensão mais primária. Esses
adolescentes viveram excluídos de qualquer nível de formação mais consistente
em relação às suas competências enquanto leitores. A família e a escola o lhes
apresentaram, por ignorância ou descompromisso, propostas em que
acreditassem ser possível a formação integral do sujeito através de sua formação
enquanto leitor. As vivências dessas relações são explicativas do papel de cada
uma dessas instituições e seus agentes no processo de formação de leitores.
Como dissemos, as dimensões vividas pelos adolescentes em suas
práticas de leitura não são, obviamente, a razão de serem delinqüentes, nem a
delinqüência os faz vivenciar tais condições; todavia, o que fica evidenciada é a
necessidade de se compreender que tais condições sociais no processo de
construção do leitor, sistematicamente percebidas nos adolescentes aqui
pesquisados, provavelmente, são constitutivas de seus perfis atuais e podem
otimizar as condições para o aumento da delinqüência de nossas crianças e
adolescentes.
Frente ao incessante processo de formação inócua do leitor adolescente,
ao qual ouso chamar de de-formação, em que assistimos a dicotomização
contínua desse sujeito entre o tênue desejo de ter um lugar na sociedade e a
pulsão da delinqüência; bem como diante da ausência de propostas que lhe dêem
um norte e o insiram numa circularidade de cidadania e o tirem dos cantos de suas
celas e dos guetos da sociedade, percebemos que é possível restituir-lhes a
dignidade de ser humano.
139
A relação existente entre a delinqüência e as práticas de leitura dos
adolescentes, ou melhor, a influência que a ausência de leitura pode acarretar às
escolhas dos adolescentes, pode ser ainda mais amenizada, e sua dignidade
pode ser conquistada, através de propostas de programas de leitura. Propostas
que busquem, intencionalmente, pois não acreditamos no esponteneísmo como
forma de aprendizagem, e oportunizem a excelente leitura de bons textos a ponto
de criarmos em nossas crianças e adolescentes o gosto pela leitura.
Que os programas de leitura não sejam voltados apenas à educação
formal, nas escolas, mas que façam das famílias o seu foco inicial e se desdobrem
para as escolas e para o seio de quaisquer outras instituições que se preocupem,
verdadeiramente, com a construção do cidadão. Uma construção que não deve
ser utopia, mas conquista cotidiana do aqui e do agora, de um presente como
garantia de um futuro com menos contrastes sociais e mais oportunidades de ler
as ‘palvrasmundo’ com cada vez mais dignidade.
140
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143
ANEXOS
144
FICHA DE IDENTIFICAÇÃO
N
OME
D
O
A
DOLESCENTE
:
S
ÉRIE
:
R
EINCIDENTE
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I
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ROCESSO
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P
ROCEDÊNCIA
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D
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ASCIMENTO
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D
ATA
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NTRADA
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E
NDEREÇO
:
BAIRRO
:
P
ONTO
D
E
R
EFERÊNCIA
:
F
ILIAÇÃO
:
P
AI
:
M
ÃE
:
I
DADE
:
T
ELEFONE
:
P
ROFISSÃO
D
OS
P
AIS
:
C
ERTIDÃO
D
E
N
ASCIMENTO
:
F
OTO
:
C
ARTEIRA
T
RABALHO
:
C
ARTEIRA
D
E
I
DENTIDADE
:
T
ÍTULO
D
E
E
LEITOR
:
CPF:
A
LISTAMENTO
M
ILITAR
:
O
UTROS
:
D
ISPENSA
S
ERVIÇO
M
ILITAR
:
H
ISTÓRICO
E
SCOLAR
:
P
ERTENCES
:
N
ÚMERO DE
P
ESSOAS
:
R
ENDA
F
AMILIAR
:
145
Questionário
1. Aspecto familiar
1.1. Qual a formação educacional de seus pais/responsáveis?
1.2. Em que situações eles costumam ler?
1.3. O que costumam ler?
1.4. Que tipo de livros há em sua casa?
1.5. Em sua casa, existe um ambiente especial (mais freqüentado) para leitura?
1.6. Você procurava seus pais/responsáveis para que eles lessem pra você ou
eles é que o procuravam?
1.7. Eles o incentivam a ler? O que eles sugeriam/sugerem?
1.8 - Quem ou o que mais o incentiva a ler?
2. Aspecto escolar
2.1. Logo que você entrou na escola, o que costumava ler?
2.2. Onde você estudava havia biblioteca?
2.3. Havia liberdade para freqüenta-la?
2.4. Você a freqüentava?
2.5. O que costumava emprestar?
2.6. Havia momentos especiais para a leitura? (Hora do conto, cantinho da
literatura, clube do livro)
2.7. Havia algum tipo de leitura que seu professor evitava fazer ou não deixava
que você fizesse?
2.8. Hoje, quais os assuntos mais que a escola lhe propunha nas leituras?
2.9. Quais os assuntos que mais te interessam nas leituras propostas?
2.10. Hoje, como você encara as aulas ou atividades que te exigem ler?
2.11. Você conhece professores envolvidos com a leitura e que a
estimulam?
2.12. O que você gostava de ler? Por que?
3. Aspecto pessoal na condição de privação de liberdade
3.1. A leitura é uma atividade importante pra você ou ha outras mais
importantes?
3.2. Que importância tem a leitura?
3.3. Por que você lê ou não lê?
3.4. O que seus colegas costumam ler?
3.5. As leituras de seus colegas fazem influenciam em suas escolhas?
3.6. O que você mais gosta de ler?
3.7. Como você consegue os livros que você gosta de ler? (Compra, empresta,
troca)
3.8. Como são trazidos para a instituição? Como as pessoas em sua volta
reagem?
3.9. As pessoas que os visitam trazem algo para você ler? O que trazem? Por
que trazem?
3.10. Já foi surpreendido com algo que não deveria, ou não poderia ler?
Os responsáveis pela sua ressocialização aprovariam? Por que ?
146
Entrevista semi-estruturada
1. Aspecto familiar
1.1. Você lembra de seus pais ou outras pessoas, em sua infância, lendo ou lhe
contando histórias?
1.2. Como isso acontecia?
1.3. Você gostava?
1.4. Por que gostava?
1.5. Que tipos de histórias te contavam?
1.6. O que sentia?
1.7. Alguma vez você ganhou um livro de presente?
1.8. O que acha disso?
1.9. Quais as pessoas que foram bons exemplos de leitura em sua família?
1.10. O que você sente com relação a essas pessoas?
1.11. Lembra-se de algum momento em que seus responsáveis tomaram
alguma atitude radical devido às leituras que você fazia?
1.12. Como foi?
2. Aspecto escolar
2.1. Nos momentos de leitura na escola, como você se sentia?
2.2. Como você via o professor naquelas atividades?
2.3. Como é sua relação com o professor da disciplina hoje?
2.4. O que é estar envolvido com a leitura?
2.5. Você acha que existem leituras que influenciam as pessoas a cometer
delitos?
2.6. Quais?
2.7. Já teve acesso a esses livros e os leu?
2.8. Por que?
2.9. Você não se sentiria muito a vontade para emprestar/comprar que tipos de
livros?
2.10. Por que?
2.11. A escola é importante para melhorar a vida das pessoas?
2.12. No seu caso, a escola não conseguiu isso?
2.13. Por que?
3. Aspecto da privação de liberdade
3.1. Alguma leitura que você fez no rcere te influenciou a cometer novos
delitos?
3.2. Se não os cometeu pensou em cometê-los?
3.3. Quais?
3.4. Por que?
3.5. Você envolveu-se em algum tipo de confusão por causa de material de
leitura?
3.6. Que tipo de livros você acha que deveria ler com mais freqüência?
3.7. Você já leu ou lê algum tipo de livro religioso?
3.8. Quais?
3.9. O que eles te ensinam?
3.10. Você acha que a leitura pode contribuir para melhorar sua vida?
3.11. Como isso poderia acontecer?
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