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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
RICARDO MARAVALHAS DE CARVALHO BARROS
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL COMO VETORA DA
PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO TRABALHO HUMANO NO CAMPO
MARÍLIA
2008
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RICARDO MARAVALHAS DE CARVALHO BARROS
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL COMO VETORA DA
PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO TRABALHO HUMANO NO CAMPO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Direito da Universidade de Marília, como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito, sob
orientação do Prof. Dr. Lourival José de Oliveira.
MARÍLIA
2008
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Autor: RICARDO MARAVALHAS DE CARVALHO BARROS
Título: A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL COMO VETORA DA
PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO TRABALHO HUMANO NO CAMPO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília,
área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social,
sob a orientação do Prof. Dr. Lourival José de Oliveira.
Aprovado pela Banca Examinadora em ____/_____/_______
Prof. Dr.
Orientador
Prof.(a) Dr.(a)
Prof.(a) Dr.(a)
“E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de
maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor,
nada seria”. Coríntios 13:2.
Mayra, sem seu amor eu nada seria. Obrigado por seu amor
incondicional.
Dedico este trabalho à mulher da minha vida, àquela que sempre
se fez presente.
AGRADECIMENTOS
Recebi de meu falecido pai, Ronoel Pedro Antônio de Carvalho Barros, herança maior
àquela realmente merecida. Meu bom pai me deixou amor, orientação, bons exemplos e um
conselho que carrego desde o dia 19 de agosto de 1989: - Filho, nunca deixe de estudar. Esse
bem precioso jamais será expropriado!
Obrigado pai por seu amor, sua dedicação, seus exemplos e seus conselhos. Onde quer
que esteja, saiba que sempre o amarei e que, durante todos esses dias da minha vida, sempre
me lembrei do calor de seu abraço.
Mãe, sempre discutimos quanto ao meu desejo de cursar Ciências Econômicas.
Sabiamente, do alto de sua experiência, você sempre dizia: - Após concluir sua graduação em
Direito você poderá buscar especializações na área econômica!
Obrigado Vera Maria Maravalhas de Carvalho Barros (Vera do Ronoel) pelos
conselhos; aquilo que você visualizou acabou por se materializar. Saiba que a amo e que
sempre a amarei.
Morgana e Adriana, minhas irmãs, estas parcas linhas de agradecimentos não serão
suficientes para traduzir a minha gratidão e reconhecimento pelo esforço de ambas. Não
importa onde estejamos, ou quão longe seja a distância, muito menos importa a freqüência de
abraços e beijos, meu amor por vocês será eterno.
Lourival José de Oliveira, você personifica o exemplo vivo de que a sabedoria não
exige a arrogância. Você é exemplo de que a sabedoria é alma gêmea da verdadeira e sincera
humanidade. Não tenho como agradecer todo o conhecimento teórico e empírico por você
transmitido; muito menos como agradecer sua paciência e dedicação a mim despendida.
Muito obrigado é pouco. Espero que aceite minha eterna admiração e gratidão.
Luis Gustavo Tirado Leite, Ricardo Marques de Almeida, Wladir Muzati Buim Junior
e Laura Maria do Rego, meus parceiros de trabalho, muito obrigado pela tolerância e pelo
suporte fornecido. Sem vocês jamais teria conseguido.
Marco Antônio Rasquel e Helder Hofig, a amizade, confiança e parceria de vocês
foram fundamentais para mais uma conquista. Muito obrigado!
À Arthur José Hofig Junior e Marilena Lopes Siqueira, reais cumpridores da função
social da propriedade rural, obrigado por despertar em mim o interesse pelo tema ora
dissertado.
Aos amigos Anderson Pineli, César Koury, Fábio Cavalaria, Luis Dias Tavares e
Rodrigo Koury, obrigado pela torcida, incentivo, tolerância e, principalmente, compreensão
quando da minha ausência nestes meses de estudo. O carinho e sincera amizade de vocês é
tesouro que carrego guardado a sete chaves.
A todos aqueles que de alguma forma contribuíram para que este trabalho fosse
concluído e, por um lapso imperdoável de minha memória, se tornaram ausentes de meus
agradecimentos acima, meu sincero Muito Obrigado.
“Não criarás a riqueza dos pobres, eliminando a riqueza dos ricos”.
Thomas Jefferson.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL COMO VETORA DA
PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO TRABALHO HUMANO NO CAMPO
Resumo:
A propriedade privada, direito individual fundamental, com o advento da Constituição Federal
de 1988 se relativizou. O Estado brasileiro apenas e tão somente garante o direito fundamental
e individual de propriedade privada se cumpridora da função social a que se destina. O Artigo
186 da Constituição Federal estabeleceu em seus incisos os requisitos que deverão ser
cumpridos de forma simultânea pela propriedade rural para que esta desempenhe sua função
social. Dentre os requisitos fixados no referido Artigo destaca-se o dever de observância das
disposições que regulam as relações de trabalho, conforme estabelecido no inciso III. O
descumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho pode afetar a dignidade
da pessoa humana e os valores sociais do trabalho atraindo, neste caso, à propriedade rural a
desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária, nos termos do Artigo 184 da
Constituição Federal. Desta forma, o citado inciso III torna-se importante e poderoso
instrumento para a efetivação do trabalho digno no campo e para que sejam respeitados os
valores sociais do trabalho naquele ambiente. Contudo, o legislador pátrio não definiu de
forma objetiva critérios específicos para se aferir o cumprimento do mencionado inciso
Constitucional. A carência de critérios legais objetivos para aferição do cumprimento das
disposições que regulam as relações de trabalho, por seu turno, não retira do inciso III do
Artigo 186 a eficácia de promoção dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil. Assim, o presente trabalho busca evidenciar que, por meio da aplicação do inciso III
do Artigo 186 é possível, não cumprir com um dos requisitos constitucionais da função
social da propriedade rural, mas também, consolidar no campo a promoção da dignidade do
trabalho humano.
Palavras Chave: Função social, Propriedade rural, Relações de trabalho.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL COMO VETORA DA
PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO TRABALHO HUMANO NO CAMPO
Abstract:
The private property, fundamental individual right, by the coming of the Constitution of 1988
has revitalized itself. The Brazilian state itself guarantees the fundamental and individual right
of a private property if it has its social function. The 186 Federal Constitution Article has
established in its propositions which requirements should be done, so that it has the social
function. In the 186 Federal Constitution Article there is the duty on compliance that rules the
relations at work (proposition III of 186 Article). The breach of the work relationships rules
can affect the human dignity and the social values of work attracting, in this case, to the rural
property the expropriation by social interest to the agrarian reform, in 184 Federal
Constitution Article. This way, the proposition III of the Federal Constitution has become an
important and powerful instrument to the effective and decent work in the field, and so to the
respect of the social values of work in that environment. However the patria legislator has not
defined in an objective way a specific criteria to rate the fulfilling of the Constitutional
proposition mentioned. The shortage of legal criteria in checking the compliance of provisions
that rules work relationships, in its turn, do not cut off proposition III of 186 article the
effective promoting of the fundamental objectives of the Brazilian Federative Republic. That
way, the present work tries to emphasize that, applying the proposition III of 186 Article it is
possible not only to fulfill with one of the Constitutional requirements of a private property
and its social function, but also solidify in the field the human work dignity promotion.
Key words: Social function, Rural property, Relations at work
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
1 A EVOLUÇÃO DO ESTUDO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL
NO ESTADO LIBERAL E NO ESTADO SOCIAL............................................................14
1.1 O Estado liberal...................................................................................................................14
1.2 Os pensadores clássicos do Estado liberal..........................................................................17
1.3 O Estado liberal e a propriedade.........................................................................................20
1.4 O Estado social....................................................................................................................23
1.5 Os pensadores do Estado social..........................................................................................25
1.6 O Estado social e a propriedade..........................................................................................28
2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO BRASIL E SEU
DESENVOLVIMENTO.........................................................................................................31
2.1 Evolução da propriedade e de seu conceito no Brasil.........................................................31
2.2 A função social no direito brasileiro...................................................................................40
2.3 Os direitos humanos fundamentais e o do direito de propriedade......................................47
2.4 A ordem econômica e a função social da propriedade .......................................................49
3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL..........................................................53
3.1 Função social da propriedade rural no texto constitucional vigente...................................53
3.2 Conceito de função social da propriedade rural..................................................................61
3.3 Função social da propriedade rural no texto infraconstitucional........................................64
3.4 Requisitos condicionantes da função social da propriedade rural......................................68
3.4.1 Aproveitamento racional e adequado (Art. 186 I da CF).................................................70
3.4.2 Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente
(Art. 186 II da CF)....................................................................................................................75
3.4.3 Observância das disposições que regulam as relações do trabalho (Art. 186 III da
CF)............................................................................................................................................79
3.4.4 Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (Art. 186 IV
da CF)........................................................................................................................................90
4 A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA COMO REQUISITO CONDICIONANTE DA
FUNÇÃO SOCIAL.................................................................................................................95
4.1 O descumprimento da legislação trabalhista rural e seus efeitos à propriedade rural........95
4.2 O posicionamento dos tribunais brasileiros quanto aos efeitos fundiários decorrentes do
descumprimento da legislação trabalhista.................................................................................99
4.3 A competência judicial de apreciação do descumprimento da função social decorrente
da omissão aos preceitos legais trabalhistas de acordo com a Emenda Constitucional n.
45/2004....................................................................................................................................104
CONCLUSÃO.......................................................................................................................112
REFERÊNCIAS....................................................................................................................115
12
INTRODUÇÃO
Com o advento do Estado liberal, a propriedade privada passou a receber forte
proteção do Estado, tornando-se não só um direito individual absoluto, mas também alicerce
para a construção do capitalismo.
Os inúmeros problemas sociais decorrentes da aplicação literal do direito de igualdade,
de liberdade, e de propriedade, sem a devida consideração das diferenças sociais e materiais
existentes, provocaram o surgimento de novas idéias que influenciaram a construção do
Estado social e da função social da propriedade.
A função social idealizada por meio dos pensadores sociais positivou-se em vários
textos constitucionais nacionais pretéritos, e foi elevada à categoria de direito individual
fundamental com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
O texto constitucional de 1988, além de elevar a função social da propriedade à
categoria dos direitos fundamentais, também positivou os requisitos caracterizadores do
cumprimento da função social da propriedade rural.
São requisitos caracterizadores do cumprimento da função social da propriedade rural
estabelecidos no texto constitucional: o aproveitamento racional e adequado, a utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, a observância
das disposições que regulam as relações de trabalho e, por fim, a exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Ou seja, caso algum dos requisitos caracterizadores do cumprimento da função social
da propriedade rural seja descumprido pelo proprietário, haverá autorização constitucional
para a desapropriação para fins da reforma agrária e, via de conseqüência, a propriedade rural
estará desprovida da proteção decorrente do direito constitucional e fundamental da
propriedade individual.
Por meio do raciocínio dedutivo a presente investigação científica, após discorrer
acerca da evolução do pensamento filosófico, da função social, e da própria propriedade.
Focará esforços em abordar o requisito caracterizador da função social da propriedade rural
contido no inciso III do Artigo 186 da Constituição Federal para responder as seguintes
indagações: Quais os requisitos caracterizadores do cumprimento da função social da
13
propriedade rural? A propriedade produtiva pode ser objeto de desapropriação por interesse
social para fins da reforma agrária? O cumprimento da função social da propriedade rural é
capaz de auxiliar na promoção da dignidade do trabalho humano no campo e na busca dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil na forma em que foi apresentado
constitucionalmente? Quais outros benefícios sociais podem ser alcançados com o
cumprimento da função social da propriedade rural?
Estas e outras questões serão debatidas direta e indiretamente, com o intuito de somar
esforços para o aperfeiçoamento do referido instituto.
14
1 A EVOLUÇÃO DO ESTUDO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL
NO ESTADO LIBERAL E NO ESTADO SOCIAL
1.1 O Estado liberal
Não como iniciar qualquer trabalho que inclua em seu núcleo a função social, sem
antes introduzir os leitores às origens dos sistemas políticos, e sua evolução até os dias atuais.
Importante ressaltar que demonstrar a evolução e as características dos Estados
políticos, principalmente o Estado liberal e o Estado social, é de grande serventia para
compreender-se o Estado democrático de Direito erigido com a promulgação da Constituição
Federal da República Federativa do Brasil de 1988 que, dentre os cerca de 250 Artigos,
preconiza a função social como direito constitucional de todos.
Apesar de muito se discutir acerca da origem do Estado liberal, encontra-se lastro
doutrinário quanto ao de ter aparecido de forma inicial, muito antes da revolução francesa,
precisamente em 1215, com a Carta de Direitos dirigida ao Rei João Sem Terra, na Inglaterra.
A Carta de Direitos em questão, para muitos o primórdio do Estado liberal, cobrava, dentre
outros, o direito dos cidadãos protestantes ingleses de portar armas para defender-se de
injustas agressões contra o direito de religião, e defender as garantias constitucionais
1
.
Nota-se aqui evidente caráter de garantia ao direito individual emanado da Carta de
Direitos, uma vez que protege o cidadão, o indivíduo e seu lídimo direito de repulsa à injusta
agressão de terceiros. Mesmo que não seja uma garantia individual contra os abusos do
Estado, ao menos, verifica-se uma gênese de garantia individual.
Passados anos da Carta de Direitos, já em 1689 foi editado a Bill of Rights,
declaração de direitos individuais imposta pelo Parlamento à Coroa inglesa. Os direitos do
monarca passam a ser definidos pela ordem legal constituindo-se assim, uma proteção ao
indivíduo contra os arbítrios do Rei
2
.
Um século antes da festejada revolução francesa, que muitos autores apontam como o
nascedouro dos direitos individuais e do Estado liberal, os ingleses iniciaram a demolição do
1
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006. p. 06.
2
Ibid., p. 08.
15
absolutismo, garantindo a liberdade individual protegida contra a vontade suprema do Estado,
na época, personificado na figura do rei.
A relevância da declaração inglesa atravessou o oceano e acabou por servir de fonte
inspiradora ao futuro documento do Estado da Virgínia. Resultado natural do desdobramento
da Gloriosa Revolução Inglesa de 1689 (Westminster), precisamente em 1776, nos Estados
Unidos da América do Norte, redigiu-se a Declaração da Virgínia que trazia em seu
preâmbulo:
Os homens foram criados iguais; com direitos inalienáveis como à vida,
liberdade e felicidade; os governos devem defender esses direitos, porque
foram formados pelo consentimento dos governados; o povo pode invocar o
direito à insurreição, contra toda forma de governo que atente contra tais
direitos, garantias e liberdades
3
.
Historicamente conta-se que os peregrinos do navio Mayflower, ainda em alto mar,
haviam celebrado a intenção da revolução americana com bases no contratualismo. Assim,
como numa seqüência lógica, natural e sem freios, três meses após a Carta de Direitos da
Virgínia, surge aos 04 de julho de 1776 um dos mais importantes documentos políticos da
história, a declaração de independência dos Estados Unidos da América
4
.
O curioso é que as idéias revolucionárias da época surgiram em movimentos e
pensamentos europeus, sendo que de lá partiram para o novo mundo, conforme acima descrito
e, revigorados com o sucesso da independência americana, retornaram para a Europa com o
fim de cumprir seu destino: a revolução francesa que, sem dúvida, é um marco histórico para
o mundo ocidental.
Com a queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 a Revolução Francesa, na esteira do
pensamento de Jean Jacques Rousseau, editou outro documento de suma importância para o
liberalismo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que estabeleceu:
Art. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As
distinções sociais não podem fundar-se em nada mais do que na utilidade
comum.
3
RIBEIRO, Marcus Vinicius. Direitos humanos e fundamentais. Campinas: Russel, 2007. p. 31.
4
OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado. A conquista dos direitos humanos: direitos humanos e cidadania. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 85.
16
Art. 17. Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém dela
pode ser privado, salvo quando o exigir evidentemente a necessidade
pública, legalmente comprovada, e sob a condição de uma indenização justa
e anterior
5
.
A transformação da sociedade e do mundo, na época em questão, encontra justificativa
em diversas causas; porém, pode-se destacar o colapso do sistema feudal decorrente dos
abusos do Estado, personificado no senhor feudal e no monarca, cometidos contra todos os
homens, e o surgimento do primitivo comércio mundial materializado no descobrimento do
mundo novo que acabou por parir o capitalismo.
Com o Estado liberal o poder não mais pertencia ao clero ou à nobreza, passando-se à
burguesia que, cada vez mais participava da criação de leis que a protegia dos abusos do
Estado.
Por meio da burguesia, toda uma sociedade ascendeu no momento histórico da
revolução francesa, para a consciência de suas liberdades políticas. Segundo Paulo Bonavides,
“o primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades individuais, alcançou sua
experimentação histórica na Revolução Francesa”
6
.
Com o Estado liberal, inaugurou-se uma nova era que possuía como características
essenciais, os limites do poder do Estado soberano elevados ao status de direitos fundamentais
do cidadão, bem como a proteção irrestrita e absoluta ao direito de propriedade, conforme
pode ser verificado pela simples leitura do Artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem,
acima transcrito.
Em razão destas leis, surgiu o direito de propriedade absoluto como de fato foi
consumado em 1804 com a edição do Código Civil francês (Código Civil Napoleônico) que
em seu Artigo 544 definiu como la proprieté droit de jour et disposer de choses de la
manière lê plus absolue”.
Definida a origem e o histórico do Estado liberal, importante aprofundar o tema
mediante análise dos pensadores liberais que influenciaram os fatos históricos até aqui
traçados. Sem o empenho e o pensamento de certos homens, talvez as correntes que
aprisionavam o homem ao seu senhor monarca não se romperiam em decorrência da
construção do Estado liberal, garantidor dos direitos individuais de primeira geração.
5
LISITA, Cristiane. Fundamentos da propriedade rural. Belo Horizonte: Mandamento, 2004. p. 67.
6
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 42.
17
1.2 Os pensadores clássicos do Estado liberal
Demonstrada toda a evolução social ocorrida em razão dos acontecimentos históricos
que fizeram por emergir o Estado liberal e a criação dos direitos individuais humanos de
primeira geração desde a sua gênese até a sua mais efetiva materialização, aborda, neste
ponto, os pensadores e idealizadores das primeiras garantias do homem.
Vários foram os pensadores que influenciaram a sociedade com seus conceitos e
estudos acerca do liberalismo, edificando o Estado liberal sob as pilastras da liberdade,
igualdade e propriedade.
Dentre os inúmeros pensadores, alguns merecem destaque, sendo objeto de estudos
jurídicos até os dias de hoje como, por exemplo, Thomas Hobbes, John Lock, David Hume,
Montesquieu, Jean Jacques Rousseau, François Quesnay e Vincent Gournay.
John Locke, defensor da idéia da experimentação onde “O homem adquire através
daquilo que experimenta o seu conhecimento”, foi o grande mentor da revolução gloriosa que
implantou na Inglaterra a monarquia parlamentar
7
.
Na linha de seu pensamento liberal, Locke questiona o lidimo direito natural do
homem em possuir a perfeita liberdade e ao gozo irrestrito de todos os seus direitos e
privilégios legais.
Tendo o homem nascido, como se provou, com direito à perfeita liberdade e
ao gozo irrestrito de todos os direitos e privilégios da lei da natureza,
igualmente a qualquer outro homem ou grupo de homens no mundo, tem por
natureza o poder não apenas de preservar sua propriedade isto é, sua vida,
sua liberdade e seus bens – contra agravos e intentos de outros homens [...]
8
Resta evidente a preocupação do pensador com o direito natural do indivíduo em
possuir a liberdade e a propriedade, sendo-lhe garantido o direito de preservação em face e
injustas ameaças. As idéias do pensador fazem reconhecer a necessidade do direito de
proteção para com a liberdade e propriedade individual.
7
LOCKE, John. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de Reinaldo Guarany.
São Paulo: Martins fontes, 2002. p. 133.
8
Ibid., p. 144.
18
Montesquieu com suas críticas aos costumes nas cortes européias acabou por
transmitir a sociedade por meio de sua grande obra “O espírito das leis” o fantástico legado da
teoria da tripartição dos poderes - executivo, legislativo, judiciário base das democracias
modernas no mundo ocidental.
Porém, o legado deixado pelo Barão de Montesquieu possuía não só o intuito de
preservar a democracia e o equilíbrio entre os poderes do Estado, mas também visava
principalmente, a um sistema de contrapesos que garantisse a plenitude da liberdade
individual contra os abusos do poder do Estado, materializado na figura do soberano que
concentrava todos os poderes em suas mãos, executivo, legislativo e judiciário.
Não existe palavra alguma que admita significados mais variados, e que
tenha causado impressões mais diferentes na mente humana, do que a
palavra liberdade. [...] Enfim, como nas democracias o povo parece agir
quase como lhe agrada, essa espécie de governo tem sido considerada a mais
livre; e o poder do povo tem sido confundido com sua liberdade
9
.
A tripartição forneceu meios de descentralizar os poderes nas mãos de uma única
pessoa, dividindo-os em órgãos autônomos e interdependentes fiscalizatórios entre si.
Por seu turno, Rousseau, em sua obra “Do contrato social” materializou sua visão e
pensamento contratualista do poder, segundo o qual os governantes deveriam exercer o poder
conforme os interesses do povo e para o povo. A idéia do contrato social também foi uma
forma de preservação da liberdade individual e da propriedade, através de leis positivadas
onde deveria ser respeitado o pacto social firmado por meio do contrato.
O problema é encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com
toda força comum à pessoa e os bens de cada associado e em que cada qual,
embora se uma ao todo, possa obedecer apenas a si mesmo e continuar tão
livre quanto antes. Esse é o problema fundamental para o qual o Contrato
Social fornece a solução
10
Na esfera econômica, não menos importante, pois incide diretamente ao meio social,
surgiu a Escola Fisiocrática, muito bem representada por François Quesnay e Vincent de
9
MONTESQUIEU. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de Reinaldo
Guarany. São Paulo: Martins fontes, 2002. p. 166.
10
ROUSSEAU, Jean Jaques. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de
Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins fontes, 2002. p. 216.
19
Gournay pensadores que defendiam a não intervenção do Estado na economia, uma vez que
esta, segundo seus entendimentos, deveria ser regida por leis naturais, sem intervenção do
Estado.
A Escola Fisiocrática possibilitou ao liberalismo a ruptura da barreira da ciência do
direito alojando-se na ciência econômica de modo a garantir a mínima interferência estatal nas
relações privadas econômicas o que, na prática, favoreceu o fortalecimento da burguesia.
Quesnay possuía o entendimento de que a sociedade era semelhante ao organismo
físico do homem; da mesma forma, e seguindo o mesmo raciocínio, para ele circulação de
riqueza e bens, na economia, seria idêntica à circulação sangüínea corpórea, como forma de
oxigenar o corpo por meio das vias venosas. Quesnay acreditava que as leis feitas pelas
pessoas deveriam estar em harmonia com as leis naturais.
11
Por sua vez, ancorado nas idéias de Quesnay, Vicent de Gournay acabou por construir
uma das mais famosas frases da história econômica: Laissez-faire, laissez-passer”. Ou seja:
“deixe as pessoas fazerem o que quiserem sem a interferência do governo”.
12
Os governos nunca deveriam estender sua interferência nos assuntos
econômicos além do mínimo absolutamente essencial para proteger a vida e
a propriedade e para manter a liberdade de adquirir. Assim, os fisiocratas se
opunham a quase todas as restrições feudais, mercantilistas e
governamentais, favorecendo a liberdade do comércio interno, bem como o
livre comércio exterior
13
.
Nota-se que o fim da escola fisiocrática, assim como os liberais, era a garantia da
liberdade, da vida e da propriedade contra os desmandos do Estado soberano. A propriedade
foi fonte de proteção do Estado liberal, reconhecida como meio de produção essencial à
burguesia da época.
11
BRUE, Stanley L. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo:
Pioneira Thomson Leraning, 2005. 38 p.
12
Ibid., p. 35.
13
Ibid., p. 35.
20
1.3 O Estado liberal e a propriedade
Até o fim do século XIX o Estado era visto e concebido de forma que o homem fosse
o centro do direito absoluto e individual. Entendia-se que para a validade do direito e da
regulação da vida em sociedade a propriedade e sua relação com o homem desempenhavam
papel central de interesse exclusivamente privado e individual.
Nessa época, vários pensadores afloravam no mundo ocidental, podendo-se citar,
inicialmente, Thomas Hobbes para quem os indivíduos têm um desejo natural de se tornarem
proprietários, porém a propriedade deve ser fonte de um pacto válido.
A teoria hobbesiana é de singular importância ao tema ora discutido no sentido de que
seu pensamento trouxe a necessidade intersubjetiva do homem em ser proprietário.
Segundo Hobbes essa condição acaba por criar entre os homens um estado permanente
de guerra, onde se acaba confundindo direito e lei, necessitando então de regulamentação
através de contratos e da propriedade.
Dado que a condição do homem – conforme foi declarado no capítulo
anterior é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso
cada um governado por sua própria razão, não havendo nada de que possa
lançar mão, que não possa lhe servir de ajuda para a preservação de sua vida
contra seus inimigos, segue-se que em tal condição todo homem tem o
direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Ora, enquanto
perdurar esse direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para
nenhum homem por mais forte e sábio que seja a segurança de viver o
tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver
14
.
A teoria aqui levantada de que a propriedade passa a ser meio de pacificação social,
regra geral da razão humana segundo o próprio pensador clássico ora discutido: “É preceito
ou regra geral da razão, que todo homem deve se esforçar pela paz [...]”
15
.
Hobbes entendia que, ao sair do estado da natureza para que se viabilizasse a paz
social, a propriedade seria necessária e indispensável.
14
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 101.
15
Ibid., p. 101
21
De tal modo que a natureza da justiça consiste em respeitar os pactos
válidos, mas a validade dos pactos não tem princípio senão com a
constituição de um poder civil suficiente a constranger os homens a mantê-
los; e é, então, portanto, que têm princípio à propriedade
16
.
Em síntese, segundo a teoria em questão, a propriedade é válida quando fonte de um
pacto válido entre as partes, sendo a mesma propriedade um dos princípios basilares para
constituição do Estado.
Locke ensinou que propriedade para ter algum valor seria necessária a aplicação do
trabalho humano sobre a terra, pois a terra sem trabalho humano não possuía qualquer valor,
pertencendo a todos os que estão no estado de natureza.
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os
homens, ainda assim todo o homem tem uma ‘propriedade’ em sua própria
‘pessoa’. Ninguém tem direito algum sobre ela a não ser ele mesmo. O
‘trabalho’ de seu corpo e a obra’ de suas mãos podemos dizer, são
propriamente dele. Então, tudo o que ele retire do Estado que a natureza
proporcionou, misturando-o ao seu trabalho e juntando-lhe algo que é seu,
converte-se por isso em propriedade sua
17
.
A terra somente torna-se propriedade privada em razão do trabalho que o homem
empreende sobre a mesma para obtê-la e para obter seus frutos.
Mais adiante, finalizando o capítulo acerca da propriedade, indicando a evolução do
homem, do Estado e da própria propriedade, de certa forma da própria sociedade ocidental,
Locke admite que a posse da terra superior à própria força do trabalho humano, com direito ao
comércio da produção excedente e o dever de regulamentação por uma constituição positiva,
ante a importância da propriedade para a sociedade.
Como, porém, o ouro e a prata, sendo pouco úteis para a vida do homem em
comparação com o alimento, o vestuário e o transporte, só derivam seu valor
de consentimento dos homens – do qual o trabalho ainda constitui, em
grande parte, a medida - é claro que o consentimento dos homens concordou
com a posse desproporcional e desigual da terra quero dizer, fora dos
limites da sociedade e do pacto; pois nos governos as leis a regulam. E, por
consenso encontram uma maneira – e com ela concordam – de que o homem
16
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 101
17
HOBBES, Thomas. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de Reinaldo
Guarany. São Paulo: Martins fontes, 2002. p. 138.
22
pudesse possuir, de maneira legítima e sem dano, mais do que podia usar,
recebendo pelo excedente ouro e prata, que continuam por longo tempo na
posse de um homem sem se deteriorar, e concordaram esses metais deveriam
ter um valor [...]
18
Assim como Hobbes, Locke reconhece, em sua obra, a importância da propriedade
para a manutenção da paz social, sendo vital para a sobrevivência pacífica do homem na terra.
Rousseau também influenciou o mundo moderno e, para este, a propriedade era
reconhecida como essencial para a pacificação social. Um resultado da lei originada de um
pacto social válido e existente.
Todo o homem tem naturalmente direito a tudo o que lhe é necessário; mas o
ato positivo que o torna proprietário e algum bem o excluem de todo o resto;
estando feita a sua parte, a ela se deve limitar, e não tem mais direito à
comunidade. Eis porque o direito de primeiro ocupante, assaz débil no
estado de natureza, é para todo o homem civil, respeitável; respeita-se mais
nesse direito o que não é nosso que o dos outros
19
.
Mesmo que de forma tímida, quase sutil, é possível perceber na obra de Rousseau um
acanhado viés social que este à propriedade. Trata-se de uma pequena centelha em que o
pensador reconhece que a propriedade é subordinada não pelo interesse individual, mas
também pelo interesse que a sociedade tem sobre todos os interesses individuais.
Qualquer que seja a forma de aquisição, o direito que cada indivíduo tem
sobre seu patrimônio está sempre subordinado ao direito que a comunidade
tem sobre todos; sem isso o haveria estabilidade no vínculo social, nem
força verdadeira no exercício da soberania
20
.
Rousseau não exclui o que afirmavam outros autores, de que os homens têm direito
às condições dignas de sobrevivência. Para o autor é um direito natural, todavia, é uma ação
positiva, dentro de um interesse comunitário sobreposto ao individual, que o torna
proprietário.
18
HOBBES, Thomas. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de Reinaldo
Guarany. São Paulo: Martins fontes, 2002. p. 141.
19
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.
p. 35.
20
Ib idem.
23
Através das idéias de Rousseau, a propriedade da terra passou a ser regulamentada
juridicamente, devendo ser preservada por lei, como de fato ocorreu com a Declaração dos
Direitos do Homem, em seu Artigo 17.
A filosofia individualista tornou-se perfeitamente conveniente para os capitalistas
produtores que começavam a entrar no ramo do comércio. A partir disso, as relações entre os
homens passaram a ser vistas cada vez mais sob uma perspectiva de conflitos de interesses
individuais e não de integração social com base em valores e normas.
1.4 O Estado social
Como visto anteriormente, o Estado liberal obteve sucesso na preservação dos direitos
individuais. Aquele cumpriu seu destino ao garantir para todos os cidadãos o lídimo direito à
vida, liberdade, igualdade e a propriedade. Afastaram-se por definitivo as ameaças e
arbitrariedade praticadas contra os indivíduos em nome do absolutismo Estatal materializado
na figura do monarca.
Afixaram-se assim, diante do sucesso obtido, os direitos humanos de primeira geração:
a liberdade e a igualdade entre os homens. Os arbítrios do Estado anteriores ao Estado liberal,
ficaram relegados ao passado, tornando-se matéria da História ocidental.
Entretanto, pelo caráter rudimentar da aplicação prática dos direitos individuais, o
afastamento do Estado das relações intersubjetivas acabou por materializar contradições
sociais extremas, comprometedoras da dignidade da pessoa humana. Tal fato decorreu do
tratamento igualitário despendido a todas as pessoas, mesmo que estas encontrassem em
diferentes situações materiais e estados sociais. Ou seja, de forma equivocada, o princípio da
igualdade passou a ser praticado sem considerar as peculiaridades de cada pessoa. Trataram
de forma igual os desiguais o que, na prática, significava o aumento das desigualdades.
A crise social decorrente da aplicação rígida do princípio da igualdade de tratamento
foi dinamizada, ainda, com o total afastamento do Estado das relações econômicas e sociais
(Laissez-faire, laissez-passer).
Não se pode negar, e é necessário trazer à baila, que a classe social emergente que
passou a dominar o Estado (burguesia) aproveitou-se das boas idéias liberais para legitimar
seus interesses e, para tanto, deturpou a aplicação dos direitos humanos de primeira geração.
24
Este descompasso social criado pela aplicação literal do direito de igualdade acabou
por criar milhares de excluídos sociais que, diuturnamente, eram explorados por horas a fio
nas fábricas de tecelagem de propriedade da nova burguesia que, anos antes, lutaram contra as
arbitrariedades do Estado.
Assim, a arbitrariedade do Estado, legitimada pelo poder divino do soberano, foi
substituída pelas arbitrariedades praticadas pelos burgueses, agora legitimados pelo contrato,
pela lei e pelo absenteísmo do Estado.
A revolução Industrial acabou com a segurança da velha economia artesã
dos vilarejos agrícolas com o advento das grandes fábricas. Em volta dessas
fábricas surgiram favelas com multidões, onde o vício, o crime, a doença, a
fome e a miséria constituíam um estilo de vida. Quando ocorriam acidentes
nas indústrias as famílias recebiam pouca ou nenhuma compensação. Os
direitos políticos para os assalariados não existiam, e os sindicatos eram
ilegais
21
.
Diante dos problemas sociais decorrentes do excesso de abstenção do Estado liberal,
inúmeros pensadores iniciaram a proposição de idéias divergentes daquelas pregadas pelo
Estado liberal, idéias contra aquilo que ofendia a dignidade do homem. Eis que surge o
socialismo em suas mais diferentes vertentes como, por exemplo, o socialismo utópico,
socialismo de Estado, e o socialismo marxista.
Os trabalhadores tinham reclamações legitimas contra o capitalismo do
laissez-faire à medida que ele se desenvolvia em suas primeiras décadas. Em
meados de 1800, o socialismo utópico expressou a consciência conturbada
da humanidade. O socialismo marxista ofereceu uma dissecação teórica
complexa da sociedade contemporânea que expôs e exagerou seus supostos
males.
22
As idéias socialista-marxistas acabaram por incentivar o povo russo a realizar algo até
então impensável ou mesmo utópico, a Revolução Bolchevic de 1917 que destituiu a família
imperial Romanov e conduziu os trabalhadores ao poder.
21
BRUE, Stanley L. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo:
Pioneira Thomson Leraning, 2005. p. 150.
22
Ibid., p. 155.
25
Perante as idéias socialistas, o Estado liberal passa por uma transformação
superestrutural surgindo o Estado social que conserva os ideais capitalistas, porém, com
características de intervenção estatal.
Para Paulo Bonavides, o Estado social seria, por conseguinte, meio caminho andado,
importando, pelo menos da parte da burguesia, o reconhecimento de direitos do proletariado
23
.
O estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural
por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e
diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do estado
proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva
sua adesão á ordem capitalista, principio cardeal a que não renuncia
24
.
Passou-se, então, a defender o intervencionismo estatal no campo econômico e social,
acabando-se com a igualdade formal, presente no Estado liberal pela igualdade material com
meta na justiça social.
O Estado social e seus direitos acabaram por ser positivados no plano superior das leis
com a promulgação das Constituições do México de 1917, e da Constituição Alemã de 1919
(Weimar). Surgem os direitos humanos de segunda geração, os direitos humanos sociais.
No Brasil, a primeira Constituição a prever em seu texto os direitos sociais foi a de
1934, época do governo de Getúlio Vargas que consagrou os direitos trabalhistas.
O caminho histórico que transformou o Estado liberal, garantidor dos direitos
humanos individuais mínimos, no Estado social, garantidor dos direitos sociais, direitos de
segunda geração, decorreu das obras de inúmeros pensadores preocupados com as indignas
condições do homem, conforme se verifica a seguir.
1.5 Os pensadores do Estado social
Inúmeros foram os pensadores socialistas que influenciaram a criação do Estado
social, podendo-se citar dentre eles: Karl Heinrich Marx, Henri Comte. de Saint-Simon,
Auguste Comte, Emile Durkheim, John Stuart Mill.
23
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 185.
24
Ibid., p. 184.
26
Vários outros pensadores socialistas poderiam ser citados, porém, adotaram como
critério aqueles de maior destaque tanto no campo social como na esfera econômica. O mais
lido de todos os autores socialistas sem, dúvida alguma, é Karl Marx, pensador que inspira até
os idos de hoje milhares e milhares de trabalhadores espalhados por todo o planeta, sem
esquecer-se de outros diversos movimentos sociais.
Utilizando de suas obras, sendo as mais conhecidas Manifesto do Partido Comunista,
esta escrita a quatro mãos com Engels, e Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx pregava
uma reforma social drástica, pois sua objeção ao capitalismo e, conseqüentemente ao Estado
liberal, era moral. Para ele, a classe operária deveria se unir e antecipar algo que era
inevitável, a revolução social contra o Estado burguês.
O socialismo marxista ou “científico” baseia-se em uma teoria de valor do
trabalho e uma teoria de exploração dos assalariados pelos capitalistas.
Embora Marx e Engels desprezassem o capitalismo com entusiasmos, eles
respeitavam o grande aumento na produtividade e a produção resultantes
dele. [...]
25
O caráter social é algo que impregna também todo o pensamento de Augusto Comte
que diferentemente de Marx, acreditava que a reforma social seria viável desde que realizada
uma reorganização social, e não por meio da revolução.
Comte, em sua obra “Reorganizar a Sociedade”, mesmo concordando que a sociedade
foi se depurando gradualmente, desde suas origens, eliminando mazelas seculares, superando
sistemas inadequados de gerir o social, afirma que a sociedade de sua época chegou a uma
encruzilhada em que só restam duas alternativas: ou se extingue ou se reorganiza
26
.
Não é assim que se progride nem pode progredir a sociedade. A pretensão de
construir, de um só lance, em alguns meses, ou mesmo em poucos anos, toda
a economia de um sistema social em seu desenvolvimento integral e
definitivo, é uma quimera extravagante, absolutamente incompatível com a
fraqueza do espírito humano.
25
BRUE, Stanley. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo:
Editora Thomson, 2005. p. 155.
26
COMTE, Augusto. Reorganizar a sociedade. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. São Paulo: Editora
Escala 2005. p. 13.
27
A proposta de Comte baseava-se em estudos das leis da sociedade, estabelecendo-se
sistemas de idéias científicas propulsoras da reorganização da estrutura social vigente na
época, possibilitando a conciliação de interesses sociais e de desenvolvimento de riquezas.
Como escreve Ana Maria Frazão de Azevedo Lopes, as influências do pensamento de
Comte já se faziam sentir em meados do século XIX, o que explicaria as tentativas de Mill em
conciliar liberdade individual com a justiça social
27
. Apesar das influencias indicadas por Ana
Maria Frazão de Azevedo Lopes, não se pode esquecer que Mill foi discípulo de Jeremy
Bentham, segundo a história, maior inspirador de seus estudos.
[...] O estado social e, ao mesmo tempo, tão natural, tão necessário e tão
habitual para o homem que, exceto em algumas circunstâncias incomuns ou
por um esforço de abstração voluntária, ele jamais se concebe de outra
maneira que não como membro de um conjunto; e esta associação é fixada
cada vez mais à medida que a espécie humana se afasta do estado de
independência selvagem
28
.
Apesar de Mill considerar o Estado social como algo natural, seus esforços são nítidos
na tentativa de encontrar o equilíbrio entre as garantias individuais e os interesses sociais, uma
vez que, segundo o referido autor, o exercício da liberdade jamais poderia causar danos
sociais.
A liberdade do individuo deve ser limitada até este ponto; ele não deve
tornar-se um estorvo para outras pessoas. Mas, se ele se abstém de molestar
outros naquilo que lhes diz respeito, e apenas age de acordo com sua própria
inclinação e juízo em coisas que dizem respeito a ele próprio, as mesmas
razões que demonstram que a opinião deveria ser livre, também provam que
ele deveria ter permissão, sem molestar, de pôr suas opiniões em prática á
sua própria casta.[...]
29
.
Assim, denota-se que o surgimento do Estado social é decorrente da degradação
natural do Estado liberal, causada pelo desvirtuamento das liberdades individuais e pela
submissão aos interesses do capitalismo.
27
LOPES, Ana Maria Frazão. Empresa e propriedade: Função social e abuso de poder econômico. São Paulo:
Quarter Latin do Brasil, 2006. p. 101.
28
BENTHAN, Jeremy. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de Reinaldo
Guarany. São Paulo: Martins fontes, 2002. p. 370.
29
MILL, John Stuart. Os grandes filósofos do direito. Organizador Clarence Morris. Tradução de Reinaldo
Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 392.
28
1.6 O Estado social e a propriedade
Com a evolução natural do direito, que possui como dever máximo e desafiador, o
acompanhamento da evolução social sob pena de se tornar ineficaz ao seu fim, surgiu corrente
contra a absoluta força da propriedade e do homem individual, aclamando-se primeiro a
destituição da propriedade privada em decorrência da propriedade estatal.
O paradigma do Estado social foi lentamente construído a partir da década de 30 do
século XIX, através de movimentos em defesa da classe e dos interesses operários.
Em meados do século XIX, Marx e Engels negaram totalmente o conceito de
propriedade privada, principalmente a agrária e a todos os outros bens de produção
30
. Marx,
aliás, apostava no comunismo que permitiria “a eliminação positiva da propriedade privada
como auto-alienação humana e, desta forma, a real apropriação da essência humana pelo e
para o homem”
31
.
Segundo Ana Frazão de Azevedo Lopes, o comunismo surgiu como uma forma de
suplantar a auto-alienação e assegurar a plenitude do homem. Para o comunismo, a sociedade
burguesa ancorada e legitimada pelo Estado liberal, longe de ter abolido diferenças,
estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de lutar no lugar das
antigas
32
.
Numa marcha adiante às idéias marxistas, como um peso mediano fazendo força de
contra ponto às idéias socialistas e liberais, surge idéia de que para superar a crise social
existente, estabelecida pelo Estado liberal, seria necessária uma reforma social.
Tal passo foi dado na segunda metade do século XIX e início do século XX, na esteira
do pensamento de Augusto Comte, pai do positivismo sociológico, segundo o qual a ciência
deveria se basear exclusivamente nos fatos positivos observados e identificados pelas leis
causais
33
. Segundo Ana Frazão de Azevedo Lopes, Comte propôs resolver a crise do mundo
30
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
31
MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002.
p. 138.
32
LOPES, Ana Frazão de Azevedo Lopes. Empresa e propriedade: função social e abuso de poder econômico.
São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 91.
33
COMTE, Auguste. Coleção grandes cientistas sociais. Organizador José Albertino Rodrigues. São Paulo:
Ática, 1989.
29
moderno por meio do estudo das leis da sociedade, a partir das quais se poderia estabelecer
um sistema de idéias científicas que presidiria a reorganização social
34
.
Seguindo na esteira de Comte, importante lembrar do pensamento de Leon Duguit
para quem a propriedade nada mais era do que produto momentâneo da evolução social,
sendo o direito do proprietário limitado pela missão social que lhe incumbe
35
. Aliás, para
Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, a Leon Duguit é devida a difusão do termo função
social da propriedade
36
.
Com a concepção da propriedade direito natural, fica-se ao mesmo tempo na
impossibilidade de limitar o exercício do direito de propriedade. A
propriedade individual deve ser compreendida como um fato contingente,
produto momentâneo da evolução social; e o direito do proprietário, como
justificado e ao mesmo tempo limitado pela missão social que lhe incumbe
em conseqüência da situação particular em que se encontra
37
.
Os pensamentos sociais acima citados influenciaram a legislação moderna de
inúmeros países, dentre estes o próprio Brasil que, desde 1934, traz no corpo de suas
constituições o aspecto funcional. Porém, a partir de 1988, com a promulgação da
Constituição Federal da República Federativa do Brasil, passou a disciplinar o princípio da
função social como direito individual fundamental, como primado da ordem econômica e
social e como instrumento da política agrícola, fundiária e da reforma agrária.
Com o advento da Carta Magna de 1988, ganha relevo a questão da função
social na cena jurídica. As discussões doutrinárias passam a focar o tema a
partir de sua base constitucional. De fato a Constituição Federal, ao adotar o
princípio da função social, retomou a discussão da finalidade social do
próprio direito
38
.
A partir de 1988 o ordenamento pátrio positivou no plano máximo das leis a função
social disciplinando o direito de propriedade e seu dever para com a função social, o que mais
34
COMTE, Auguste. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Organizador José Albertino Rodrigues. São Paulo:
Ática, 1989.
35
DUGUIT, Leon. Fundamentos de direito. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003.
36
TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Questões agrárias: julgados comentados e pareceres.
Organizador Juvelino José Strozake. São Paulo: Método, 2002. p. 120.
37
Ibid., p. 22.
38
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função social e função ética da empresa. ARGUMENTUM
Revista de Direito. Universidade de Marília. Vol. 04. Marília: UNIMAR, 2004. p. 36.
30
tarde, a partir de sua base, por força hierárquica, influenciou várias leis infraconstitucionais,
conforme mais adiante será exposto.
31
2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO BRASIL E SEU
DESENVOLVIMENTO
2.1 Evolução da propriedade e de seu conceito no Brasil
Antes de tratar da propriedade no Brasil, para se buscar uma maior compreensão de
sua evolução, é necessário rever a origem da propriedade rural no mundo, haja vista que por
meio da compreensão do sistema como um todo, entender-se-á parte dele, no caso o Brasil, de
forma mais clara.
Nota-se, inclusive, que apesar da propriedade da terra possuir elevada idade no país é
igualmente jovem ao Brasil, uma vez que o conceito de propriedade privada chegou até aqui
junto com as caravelas. Antes disso, a propriedade privada jamais existiu na sociedade
silvícola até então dominante.
Pois bem, retornando ao plano mundial, enquanto o homem encontrava-se no estado
de natureza, vivendo em pequenos grupos, como nômades que migravam de região a região
em busca de frutos, caça, água e clima favorável para sua sobrevivência não havia
propriedade individual, tudo pertencia a todos segundo suas habilidades, necessidades e
competências. Os bens de valores materiais, necessários à sobrevivência dos indivíduos
pertencentes aos pequenos grupos, eram coletivos, delimitados em razão das necessidades de
subsistência de seus exploradores.
Passados anos, o aumento demográfico da população forçou enorme evolução social
uma vez que o homem, diante de suas novas necessidades e da dificuldade em locomover-se
em busca de alimentos, caça e clima favorável, organizou-se em grandes grupos, aprendeu a
dominar técnicas de cultivo de alimentos vegetais em geral, a domesticar animais, o que
acabou por fixá-lo em determinadas regiões. Surgem então as primeiras Polis.
Em Israel a partir da fixação dos hebreus na Palestina por volta do século
XIV a.C. nômades se transformam em agricultores, a propriedade se tornou
hereditária, perpétua e inviolável, sendo que a partir de Salomão desaparece
a vida primitiva em sua simplicidade original. A propriedade começa a ser
acumulada
39
.
39
TEIZEN Jr., Augusto Geraldo. A função social no código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 42.
32
A propriedade individual da terra surge da sua ligação com a família decorrente da
sepultura familiar. Todos os membros da família possuíam o direito de serem sepultados na
sede base de sua família, formando o vínculo indissolúvel entre a família e a terra. Os
espíritos dos ascendentes enterrados na propriedade eram elevados à categoria de Deuses por
seus descendentes.
Emana desses fatos o caráter da propriedade. A sepultura estabelece o
vínculo indissolúvel da família com a terra, ou seja, a propriedade. Os deuses
domésticos, o lar, e os manes conferiam a cada família o seu direito sobre a
terra. A propriedade privada era uma instituição sem a qual não podia passar
a religião doméstica. Isolando-se o domínio e a sepultura, a vida em comum
tornava-se impossível
40
.
Sem se aprofundar muito ao tema, que aqui apenas possui a pretensão de trazer ao
leitor uma perspectiva rasa dos momentos históricos fundamentais da propriedade da terra no
mundo, importante trazer à lume o período medieval e a inserção da propriedade privada na
época.
Durante este período a propriedade privada sofre mutações e surgem disputas de
proprietários para o mesmo bem. Surgem as figuras do Estado, do senhor feudal e do vassalo.
A propriedade, durante a Idade Média, assume grande relevo e faz sentir o surgimento,
segundo Dallari, de duas soberanias: a do proprietário de terras e a do príncipe
41
. Também é
na idade média que a igreja católica inicia o acúmulo de propriedade. Neste período é que
Portugal, precisamente no ano de 1375 edita a primeira lei referente à posse de terra em solo
lusitano.
Na Idade Média, época em que foi editada a primeira lei relativa à posse de
terra em Portugal, no ano de 1375, pelo Rei D. Fernando, lei esta que
integrou, mas tarde, as Ordenações do Reino as Afonsina, de 1446, as
Manuelinas, de 1511-1512, e as Filipinas, de 1603 as supracitadas três
forças que gravitam em torno da propriedade são o domínio eminente, do
Estado, o domínio direto, do senhor, e, finalmente, o domínio útil, do
vassalo.
42
40
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Lisboa: Clássica, 1945. p. 86.
41
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direito de propriedade com função social. Preleções no curso de pós-graduação,
1985.
42
FOSTER, Germano de Rezende. A privatização das terras rurais. Barueri: Manoele, 2003. p. 05.
33
Passada a idade patrimonial advém o capitalismo que acaba por restaurar a
individualidade da propriedade privada, afastando as três figuras anteriormente descritas do
Estado, senhor e vassalo
43
.
Surge a Renascença, a era da navegação e dos grandes descobrimentos que fomentou o
comércio mundial, a primeira era da globalização que possibilita a exploração de terras nas
Américas, dentre elas o Brasil, que passaria a ser explorado por seu descobridor, Portugal.
Portugal aproveitando-se de suas conquistas territoriais advindas das grandes
descobertas navais passa a explorar suas novas terras, dentre elas, as terras brasileiras que
foram apossadas por Portugal em 1500.
Ocorre, porém, que mesmo diante de excelentes terras, naquela época o reinado de
Portugal, demonstrando visão limitada, não esboçou qualquer interesse de exploração das
terras brasilis, preocupando-se exclusivamente com a exploração de comércio na Índia.
A Metrópole apenas voltou suas atenções ao novo mundo quando percebeu o interesse
de países europeus rivais em suas terras. O fato perdurou por 30 (trinta) anos, tempo em que a
exploração da colônia permaneceu inerte.
Ai Portugal despertou de seu sono econômico e olhou a terra a ser
desbravada. Ao longo dos primeiros trinta anos conhece-se apenas um caso
de concessão de terra legitimada por decisão régia: é o da então denominada
Ilha de São João Fernando de Noronha -, doada em 1504 ao lusitano
Fernão de Noronha, para nela lançar gado e produzir, sujeito ao pagamento
dos dízimos, consoante se vê dos Anais Pernanbucanos.
44
Outros autores, por sua vez, destacam que o início de desbravamento das terras da
colônia iniciou-se por meio das feitorias, entrepostos fortificados que negociavam com os
nativos, recolhia e armazenavam produtos extraídos das terras nacionais para serem enviados
à Corte Portuguesa. Das feitorias portuguesas podem-se destacar duas: a de Cabo Frio, datada
de 1511 e a de Pernambuco, datada de 1516.
[...] as feitorias tiveram inegável importância econômica no Brasil e também
foram fundamentais para a definição do modelo de ocupação das terras
43
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação do direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992. p. 22.
44
PORTO, José da Costa. O sistema sesmarial do Brasil. 2. ed., Brasília: Unb, 1977. p. 23.
34
brasileiro. Duas foram a mais importantes: a primeira, em 1511, em Cabo
Frio, e a segunda, em 1516, em Pernambuco
45
.
Deve ser destacado que as feitorias, segundo Sandra Vial, não possuíam efetiva
distribuição de terras, possuindo caráter eminentemente militar e comercial
46
.
No momento seguinte, as feitorias que não obtiveram grandes êxitos em razão da
natureza diversa da distribuição das terras, conforme acima transcrito, preocupado com as
invasões estrangeiras, a Coroa Portuguesa inicia nova fase na ocupação e exploração das
terras brasileiras mediante a doação de grandes porções de terras. O território da Colônia foi
divido de forma setentrional em capitanias hereditárias.
Em 1532, D. João decidiu fazer, através da implementação das capitanias
hereditárias, a demarcação das novas terras desde Pernambuco até o Rio da
Prata. Este processo de colonização estava vinculado às doações de terra,
sendo que os critérios para tal distribuição não foram igualitários (como não
são ainda hoje), mas a forma jurídica encontrada para a divisão e distribuição
das terras da costa e do interior brasileiro. [...] o Brasil foi dividido em 15
faixas horizontais, que foram doadas a quem pudesse, por conta própria,
ocupar terras, explora-las e governa-las em nome da Coroa
47
.
Competia aos Capitães à distribuição de sesmarias entre os moradores, que além de se
obrigarem ao pagamento do dízimo possuíam o dever de aproveitamento da semanária dentro
de um prazo de cinco anos sob pena de perda da terra e aplicação de multa.
Como se vê, portanto, longe de ser, nos primeiros tempos, a sesmaria uma
apropriação da terra de forma ampla, irrestrita ou definitiva, deveria ser
cumprida a obrigação de produção, do amanho (sic) da terra, embora aquela
pudesse ser alienada a terceiros, sob condições idênticas
48
.
Há aqui evidente sentido funcional na distribuição das terras uma vez que era exigida a
obrigação de produção na terra distribuída sob as penas da lei vigente. Claro que não se pode
falar em função social como a vigente nos tempos de hoje, porém trata-se de gênese da
45
VIAL, Sandra Regina Martini. Propriedade da terra: análise sociojurídica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora 2003. p. 159.
46
Ibid., p. 161.
47
Ibid., p. 161/163.
48
FOSTER, Germano de Rezende. A privatização das terras rurais. Barueri: Manoele, 2003. p. 27.
35
funcionalização que possui requisito exclusivamente econômico. Ou seja, um rascunho do
inciso I do Artigo 186 da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Em 1759, as Capitanias foram extintas, porém, acabaram por influenciar o estilo de
propriedade rural do país até os dias de hoje
49
.
[...] o regime das capitanias foi em princípio caracteristicamente feudal. Não
gozavam os donatários de nenhum direito sobre a terra, vedando-se-lhes
mesmo expressamente a posse de mais de dez léguas de terra. [...] Cabia-
lhes, contudo um direito eminente, quase soberano, sobre todo o território da
capitania, e que se expressa por vários tributos
50
.
A experiência demonstrou que as sesmarias causam desordens o que acabou por
determinar a Resolução n. 76 do Reino que no ano de 1822 proibiu a distribuição e doação de
terras através do sistema das sesmarias
51
. Interessante de ser esclarecido que até aquele ano,
todas as terras, exceto as doadas em sesmarias, faziam parte da Coroa Portuguesa, conforme
assim determinava a Resolução n. 17 de julho de 1822: “Fique o suplicante na posse das
terras que tem cultivado e suspendam-se todas as sesmarias até a convocação da Assembléia
Constituinte e Legislativa”.
52
Em 1824 é promulgada a primeira Constituição Federal brasileira, a Constituição
Imperial garantidora a todos os cidadãos o direito à propriedade em toda a sua plenitude,
conforme é verificado pela simples análise do inciso XXII do Artigo 179 daquele
ordenamento.
Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos
Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a
propriedade, são garantidos pela Constituição do Império pela maneira
seguinte:
XXII. É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o
bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade
do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os
casos, em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se
determinar a indenização
53
.
49
VIAL, Sandra Regina Martini. Propriedade da terra: análise sociojurídica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2003
50
PRADO Jr., Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. 3. ed., São Paulo, Brasiliense, 196 p. 13.
51
Ibid.,. p. 175.
52
Resolução de 17 de julho de 1822.
53
BRASIL. Constituição política do império do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br >. Acesso
em: 19 fev. 2008.
36
evidente gene dos ideários liberais anteriormente tratados. Os reflexos da queda da
bastilha se fizeram presentes na primeira Constituição do Brasil uma vez que são garantidos
no primeiro texto superior os direitos de primeira geração: liberdade, igualdade, e
propriedade. O Artigo em questão ainda traz em seu corpo os princípios da legalidade e o
princípio do devido processo legal. A desapropriação da propriedade privada por interesse
público também se faz presente no texto constitucional sob exame; porém, desde que
respeitando o direito à justa indenização o que, na verdade, é principio garantidor da
propriedade privada.
Inspirada nesse texto, reiterado pela Constituição francesa, de 1791, nossa
primeira Carta magna, a Constituição Política do Império do Brasil, jurada
por D. Pedro I para observar e fazer observar, em 25 de março de 1824, no
que diz respeito ao direito de propriedade em seu artigo 179, sob o título
“Das Disposições Gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros”, estabeleceu a inviolabilidade dos direitos civis e
políticos dos cidadãos brasileiros, que teria por base a liberdade, a segurança
individual e a propriedade por ela garantida.
Em 1850, sob os efeitos da Constituição Federal Imperial de 1824, é editada a Lei das
Terras, Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, regulamentada pelo Decreto n. 1318 de 30 de
janeiro de 1854.
A chamada Lei das Terras, de 1850, encerrou formalmente, mas não
resolveu o regime de posses no País, tal como era praticado. Ela proibiu a
ocupação de terras devolutas, se admitindo compras a dinheiro. Permitiu
ainda a reavaliação das sesmarias que se mantivessem cultivadas ou com
princípios de cultura e morada habitual do sesmeiro, concessionário ou
representante. Ao tentar corrigir os inconvenientes do regime de sesmarias, a
lei visava também a uma consolidação formal das posses
54
.
Todas as outras formas de aquisição de terras, até então comuns, acabaram por se
tornarem impossíveis juridicamente, restando o acesso à terra apenas aos abastados, às elites.
Os imigrantes também tiveram o acesso à propriedade da terra dificultado, haja vista que a
Lei permitia a aquisição de terra por imigrantes com residência no Brasil por mais de 3
(três) anos.
54
INCRA – Evolução da estrutura agrária do Brasil. Brasília, 1987. p. 21.
37
Com a proclamação da República em 1888 a Constituição Imperial se fez substituir
pela primeira Constituição da República, datada de 24 de fevereiro de 1891, portanto,
aproximadamente 3 (três) anos após a fundação da República do Brasil.
A Constituição em questão possuiu como marco jurídico agrário a transferência das
terras de uso público da União para os Estados, assim como as terras devolutas.
Art. 64. Pertencem aos Estados às minas e terras devolutas situadas nos seus
respectivos territórios, cabendo à União somente a porção de território que
for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções
militares e estradas de ferro federais
55
.
Referida Constituição também possuía como espírito os ideais liberais inseridos na
Constituição revogada, restando garantido os direitos individuais e a propriedade, conforme
esclarece Olavo Acyr de Lima Rocha.
Essa Constituição republicana, em matéria de direito de propriedade não
discrepou do liberalismo consagrado na Carta Imperial. Assim é que, na
Seção II, sob o artigo 72, foi lançado que a Constituição assegurava a
brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade
56
.
Em 1916 entra em vigor o Código Civil brasileiro que estabelece uma série de Artigos
específicos sobre a propriedade individual como, por exemplo, do Artigo 43 ao Artigo 64 que
tratam das espécies de bens; do Artigo 485 ao Artigo 523 que disciplinam a posse; do Artigo
524 ao Artigo 591 que tratam da propriedade em geral.
A lei em questão, tomada por forte influência do Código Civil francês napoleônico
tratava a propriedade com base nos ideários liberais, sendo esta um direito inviolável
pertencente ao proprietário que, por sua vez, dela poderia usar, gozar, fruir, dispor e
reivindicar.
A Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 propulsoras da
atividade estatal nas questões sociais inspiraram a promulgação da Constituição Federal
55
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br >. Acesso
em: 19 fev. 2008.
56
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação do direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992. p. 32/33
38
brasileira de 18 de julho de 1934 que emergiu como peso para re-equilibrar a harmonia social
deteriorada pela avassaladora relação entre o capital e o trabalho.
A desagregação provocada pelas massas proletárias às condensações sociais
anteriores e os problemas emergentes com a nova estrutura econômico-
social, notadamente os problemas dos trabalhadores assalariados interferindo
na sociedade e no Estado, trouxeram como conseqüência uma evolução
conceitual no que concerne à liberdade e à propriedade. Emergiram então as
chamadas questões sociais. O Estado, sob pena de submergir, teve que
assumir um novo posicionamento a fim de restabelecer pontos de equilíbrio
e resguardar a segurança e a harmonia social. Nessa tarefa mediadora entre o
individualismo egoístico e as aspirações dos assalariados em luta pelo
reconhecimento de seus direitos contra a opressão econômica resultante do
novo contexto teve que opor limitações à liberdade e, por conseqüência a
propriedade
57
.
O Artigo 113 da referida Constituição preconizou o direito inviolável à liberdade, à
segurança individual e à propriedade. Porém, no seu item 17 ressalva que o direito inviolável
à propriedade jamais poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma da
lei. Surge a funcionalidade social da propriedade no Brasil.
O golpe militar de 10 de novembro de 1937 apesar de constituir o Estado Novo,
mediante a outorga da Constituição Polaca, em nada inovou quanto à disciplina constitucional
propriedade agrária, pelo contrário serviu de retrocesso, uma vez que nada disciplinou acerca
da vinculação da propriedade ao interesse social.
Com o mundo arrasado pelos efeitos da segunda grande guerra mundial, com o fim do
fascismo de Benito Mussolini e o nazismo de Adolf Hitler emerge, em 1946, Constituição
Federal da redemocratização nacional.
Esta constituição nasceu em um contexto pós-guerra e foi de inegável
importância para a redemocratização do país e a reafirmação do
constitucionalismo. A base para a formação da Constituição foi buscada nas
anteriores Cartas Constitucionais, mas refletiu o momento de turbulência e
que foi elaborada, sendo, por isso, muitas vezes contraditória
58
.
57
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação do direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992. p.32/33
58
VIAL, Sandra Regina Martini. Propriedade da terra: análise sociojurídica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2003. p. 189.
39
O Estado de Direito é restabelecido em 18 de setembro de 1946 com a promulgação da
Constituição Federal que assegurou, no seu Artigo 141, a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Adiante, no
parágrafo 16 do mesmo Artigo, restou garantido o direito de propriedade, salvo em caso de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública. o Artigo 147 condiciona o uso da
propriedade ao bem-estar social.
Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos seguintes termos:
§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação
por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia
e justa indenização em dinheiro.
Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei
poderá, com observância com observância do disposto no Artigo 141,
parágrafo 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade a todos
59
.
Para o fim de regular os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais no
que tange à execução da reforma agrária e à promoção da política agrícola, foi editada aos 30
de novembro de 1964 a Lei n. 4.504, o Estatuto da Terra que até os dias de hoje encontra-se
em vigor, uma vez que recepcionado pela Constituição de 1988.
Não se pode deixar de citar o período sobre a vigência do Ato Institucional n. 5 (AI5)
período onde foi editado o Ato Complementar n. 45 datado de 30 de janeiro de 1969 que
condicionou o acesso à propriedade da terra à defesa e integridade da nação pelos
proprietários.
A partir dos anos 80 a política nacional foi-se abrindo, os militares aos poucos foram
perdendo a força e a nação não concebia mais o ideário autocrático, o que levou a campanha
das diretas às ruas de todo o país.
A luta pelas diretas acabou por materializar a ruptura do antigo Estado autocrático e
trazer a tona o novo Estado brasileiro, o Estado Democrático de Direito, erigido sob as bases
da Constituição de 1988 que disciplinava o direito à propriedade e sua vinculação com o
cumprimento da função social, o que será objeto da seção 2.2 a seguir.
59
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br >. Acesso
em: 19 fev. 2008.
40
Os princípios consagrados e positivados na Constituição de 1988 referentes à
propriedade e sua função social acabaram por irradiar reflexos no Código Civil de 2002 além
de outras leis esparsas conforme será analisado adiante.
2.2 A função social no direito brasileiro
Como visto acima, toda a idéia de propriedade privada e seus direitos inerentes
advieram ao país por meio dos textos legais lusitanos como, por exemplo, as ordenações
Filipinas e as Manoelinas. Estas, por sua vez, influenciaram a própria Carta Imperial de 1822
que estabelecia no Artigo 179, inciso XXII a garantia ao direito de propriedade em toda a sua
plenitude.
Mesmo com a evolução social propagada no final do século XIX e início do século
XX e com o surgimento das Constituições Mexicana (1917) e de Weimar de 1919 o
ordenamento pátrio se mostrou insensível às mudanças lá estabelecidas.
Os raios de renovação emanados e propagados pela funcionalização do direito e da
propriedade não encontravam ressonância numa sociedade paternalista, latifundiária e com
cultura coronelista, herança das capitanias hereditárias e das sesmarias. O país, naquela época,
vivia a denominada política do “café com leite” o que evidencia de forma latente o apego que
a sociedade da época possuía sobre a propriedade rural. Naquela época, sob a égide do Código
Civil de 1916, não se concebia outra idéia que não a do direito de utilização e proteção da
propriedade de forma absoluta.
Apenas em 1934 os ideários propagados na Constituição Mexicana e na Constituição
de Weimar produziram efeito junto ao ordenamento constitucional pátrio e acabaram por
influenciar a confecção do Artigo 113 n. 17 daquele ordenamento que preconizava a
impossibilidade de utilização da propriedade contra interesse social ou coletivo.
É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o
interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação
por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante
prévia e justa indenização. Em caso de perigo eminente, como guerra ou
comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade
41
particular até onde o bem público exija ressalvado o direito de indenização
ulterior
60
.
Pela primeira vez na história constitucional nacional menção de barreira social
contra o exercício, uso, gozo, e defesa plenos da propriedade privada. Surgiu a gênese da
função social da propriedade no texto constitucional nacional, mesmo que o texto maior
remetesse à lei inferior a regulamentação daquele Artigo superior.
A Constituição de 1937 não trouxe em seus Artigos qualquer menção a respeito da
função social da propriedade. Somente em 1946 é que a propriedade privada voltou a estar
vinculada ao bem estar social. Ressurge a idéia de vinculação da propriedade ao interesse
social conforme pode ser verificado por meio do Artigo 147:
O uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A lei poderá
com observância no art. 141, parágrafo 16, promover a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade a todos
61
.
Apesar da menção expressa nos textos constitucionais, acima expostos, quanto à
obrigatoriedade ao exercício do direito de propriedade estar atrelado ao atendimento do bem-
estar social, como bem assevera Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Caroline Dias
Andreotti, o certo é que a norma foi considerada constitucional programática de eficácia
limitada sem efetividade ou eficácia social
62
.
As Constituições de 1934 e 1946 trouxeram em seus corpos, de forma programática
limitada, as primeiras menções da vinculação da propriedade privada ao interesse social.
Mesmo possuindo eficácia limitada e de não constar a expressão função social, não se pode
negar que os dois textos constitucionais (1934/1946) foram o ponto inicial da funcionalização
da propriedade no país.
Os dois textos constitucionais devem ser mencionados como o ninho da função social
no ordenamento máximo do País pelo fato de haver entre ambos um hiato provocado pelo
retrocesso político de 1937. Ou seja, os textos definem o surgimento da vinculação da
60
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br >. Acesso
em: 19 fev. 2008.
61
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br >. Acesso
em: 19 fev. 2008.
62
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Função social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007. p. 14.
42
propriedade privada ao interesse social e o seu ressurgimento após abolição pelo texto
constitucional de 1937.
A Constituição Federal de 1946, apesar de possuir eficácia limitada, acabou por
provocar a edição de duas leis federais infraconstitucionais que adotaram em seus textos, pela
primeira vez, a expressão função social.
Em 1964 foi sancionada a Lei n. 4.504/64. Trata-se do Estatuto da Terra que garante a
oportunidade de acesso à terra desde que condicionada à sua função social, conforme
estabelece o seu Artigo 2º; por outro lado determina, por meio do parágrafo 2º, alínea “b” que
o Poder Público zele para que a propriedade da terra desempenhe sua função social
63
.
Mais adiante, o Artigo 12 da referida Lei impõe à propriedade privada da terra uma
função social intrínseca e condiciona seu uso ao bem-estar coletivo. Por seu turno, o Artigo
seguinte (Artigo 13) determina que o poder público promova a extinção das terras que são
contrárias à função social. O Estatuto da Terra traz mecanismo de desestimulo ao exercício do
direito de propriedade contrário à função social e econômica da terra, conforme seu Artigo 47.
Evidente que a função social tratada pela Lei n. 4.504 possui conceito, definição e
aplicabilidade limitada ao direito agrário, ao direito de propriedade da terra. Não há
vinculação ampla da função social às demais áreas do direito, o que somente veio a ocorrer
com a edição do Código Florestal (Lei n. 4.771/65).
O Código Florestal datado de 1965, por meio do parágrafo do Artigo 16, veio
antecipar, mesmo que de forma superficial, a inclusão dos aspectos ambientais como
integrantes da função social da propriedade rural, conforme é verificada na atual Constituição
Federal precisamente no inciso II do Artigo 186.
Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as
situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não
sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica,
são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva
legal, no mínimo:
§ A localização da reserva legal deve ser aprovada pelo órgão ambiental
estadual competente ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal
ou outra instituição devidamente habilitada, devendo ser considerados, no
63
BRASIL. Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispões sobre o Estatuto da Terra e outras
providencias. Disponível em: <http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
43
processo de aprovação, a função social da propriedade, e os seguintes
critérios e instrumentos, quando houver
64
:
Nesse ponto, o princípio da função social ultrapassou os limites do direito agrário,
rompendo sua membrana para invadir o campo do direito ambiental. Por meio da Lei n.
4.771/65 o princípio da função social criou verdadeira simbiose entre o direito de propriedade
agrária e o direito ambiental o que serviu de inspiração e parâmetro para a idealização e
confecção dos requisitos constitucionais condicionantes da função social da propriedade rural
atuais, nos termos do Artigo 186 da CF/88.
A promulgação da Constituição Federal de 1967 e, em seguida, sua Emenda de n. 1 de
1969, trouxeram a função social como condicionante a toda ordem constitucional econômica e
social
65
66
. Ou seja, houve sensível ruptura de paradigma uma vez que a função social deixou
de ser vista como condicionante exclusiva da propriedade imobiliária rural atuando como
vinculadora de princípios junto à ordem econômica e social. O antigo limite de
funcionalização imposto pelos ordenamentos pretéritos foi ultrapassado, passando a função
social, como princípio, a irradiar valores a toda ordem econômica, inclusive a terra, já
considerada como importante meio de produção.
Melhor exemplo da inserção da função social no âmbito econômico foi demonstrado
quase uma década após a promulgação da Constituição Federal de 1967, com a edição da Lei
das Sociedades Anônimas, Lei n. 6.404/76 que condicionava o poder do acionista controlador
com a finalidade de fazer a companhia realizar o seu objetivo e cumprir a função social,
conforme se depreende pela análise dos Artigos 116 e 154 da referida lei.
Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica,
ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle
comum, que:
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de
fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os
que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e
interesses deve lealmente respeitar e atender.
64
BRASIL. Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em:
<http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
65
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br >. Acesso em: 19 fev. 2008.
66
BRASIL. Constituição (1967) Emenda Constitucional n. 1 de 17 de outubro de 1969. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br >. Acesso em: 19 fev. 2008.
44
Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto
lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as
exigências do bem público e da função social da empresa
67
.
Passado o regime de exceção, com a ruptura social provocada pelo movimento popular
das “diretas já”, a sociedade brasileira, por meio de seus representantes constituintes,
promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) que elencou a
propriedade privada e a função social desta como direito fundamental (Art. 5º, incisos XXII e
XXIII), bem como, primado dos pilares da Ordem Econômica (Art. 170, incisos II e III).
Os princípios constitucionais acima expostos (propriedade privada e função social),
por serem amplos e albergarem todo e qualquer tipo de propriedade, bem como por lastrearem
a ordem econômica e social acabaram irradiando luzes por todos os ramos do direito. A
Constituição Federal foi o porto de onde a função social partiu para espalhar seus tentáculos.
O primeiro texto de lei infraconstitucional publicado após a Constituição Federal a
trazer em seu corpo o conceito de função social foi a Lei n. 8.906/94 que regula e disciplina a
atividade econômica dos profissionais advogados, o Estatuto da Ordem dos Advogados do
Brasil.
O referido estatuto, em seu Artigo informa que o profissional advogado em seu
ministério privado presta serviço público e exerce a função social, uma vez que é atividade,
segundo a lei, a serviço do interesse social: “Art. 2º. O advogado é indispensável à
administração da justiça. § 1º. No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e
exerce função social”
68
.
Passados dois anos da edição do Estatuto do Advogado, em 1996 foi editada a Lei n.
9.279/96 que alterava o Artigo da Lei nº. 5.648, de 11 de dezembro de 1970, que passou a
conter a seguinte redação:
Art. 2º. O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as
normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função
social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à
67
BRASIL. Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as sociedades por ações. Disponível em:
<http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
68
BRASIL. Lei n. 8.906, de 04 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos
Advogados do Brasil - OAB. Disponível em: <http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
45
conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados,
convênios e acordos sobre propriedade industrial
69
.
Nota-se que a Constituição de 1988 acabou por influenciar a alteração do conceito de
propriedade industrial o que de fato é obra dos princípios sociais da ordem econômica.
Da mesma forma, a atividade econômica nacional se viu atingida pela funcionalização
do direito quando da publicação da lei das telecomunicações, Lei n. 9.472/97 que traz em seu
Artigo a obrigatoriedade da observância nas relações econômicas, do princípio da função
social da propriedade.
Art. 5º. Na disciplina das relações econômicas no setor de telecomunicações
observar-se-ão, em especial, os princípios constitucionais da soberania
nacional, função social da propriedade, liberdade de iniciativa, livre
concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais e
sociais, repressão ao abuso do poder econômico e continuidade do serviço
prestado no regime público
70
.
A mesma lei traz em seu Artigo 127, inciso VIII o dever de o serviço privado garantir
o cumprimento da função social e, por sua vez, o Artigo 146 do mesmo ordenamento, traz que
o direito de propriedade sobre as redes elétricas está condicionado ao dever de cumprimento
de sua função social.
É evidente que uma vez elevada ao patamar de princípio constitucional da ordem
econômica, bem como possuir força de direito constitucional individual, a função social
posicionou-se no direito nacional com relativo destaque, irrigando a edição das futuras leis
disciplinadoras da atividade econômica.
As relações privadas definitivamente foram atingidas pela função social com a
publicação da Lei n. 10.406/2002, o novo Código Civil brasileiro que trouxe expressamente
em seu corpo de texto o dever de indenizar (responsabilidade civil) o titular de direito que, ao
exercê-lo, excede os limites impostos pelo fim econômico e social, nos termos do Artigo
187
71
.
69
BRASIL. Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996. Regulam direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial. Disponível em: <http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
70
BRASIL. Lei n. 9.472, de 16 de julho de 1997. Dispões sobre a organização dos serviços de telecomunicações.
Disponível em: <http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
71
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
46
Mais adiante é vista no mesmo ordenamento civil a imposição de limitação no direito
de contratar (direito das obrigações), condicionando referido direito à função social do
contrato, conforme preconiza o Artigo 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão
e nos limites da função social do contrato
72
”.
É de suma importância lembrar que o novo ordenamento civil apenas e tão somente
validará os negócios e atos jurídicos privados que respeitarem os preceitos de ordem pública
para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Art. 2035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos
antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis
anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a
vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver
sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de
ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a
função social da propriedade e dos contratos
73
.
A transformação social do direito privado, influenciada pela Constituição de 1988 é
claramente percebida com o advento da Lei n. 11.101/2005, nova lei de falência, instituidora
da recuperação judicial com objetivo de promover a preservação da empresa e sua função
social.
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da
situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a
manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos
interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua
função social e o estímulo à atividade econômica
74
.
Este vôo de pássaro pelo ordenamento pátrio traz o posicionamento da função social
no país desde os primórdios até os dias atuais, o que força a uma melhor compreensão do
instituto.
72
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
73
Op. Cit.
74
BRASIL. Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência
do empresário e da sociedade empresária.. Disponível em: <http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em:
20 jan. 2008.
47
2.3 Os direitos humanos fundamentais e o do direito de propriedade
Ao trazer em pauta o assunto acerca dos direitos humanos fundamentais se faz
necessário, antes mesmo de se traçar uma linha temporal, a definição que melhor conceitua o
tema.
Apesar das inúmeras tentativas de definição dos direitos humanos fundamentais, de
maneira sóbria, José Afonso da Silva, entende que em razão da ampliação e a transformação
dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico dificulta definir um conceito
preciso
75
.
Em razão da dificuldade de definição do tema é que, na doutrina pátria encontra-se
conceituação e definição aberta e vaga como aquela trazida por Alexandre Moraes
76
, para
quem a previsão dos direitos humanos direciona-se basicamente para a proteção da dignidade
humana em seu sentido mais amplo, incluindo-se, o direito de propriedade.
Por sua vez, dignidade da pessoa humana, no entendimento de José Afonso Silva, é
um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida e, acrescenta-se, o direito à propriedade
77
.
A propriedade privada sempre foi anseio do homem e é essencial para a sua fixação no
planeta, por isso é elevada à categoria dos direitos fundamentais. Ao propiciar ao homem os
meios de subsistir e expandir seus territórios, a propriedade da terra estabeleceu relação de
vida e morte para com o homem.
Tal relação (homem e propriedade) acompanhou o homem em sua jornada histórica de
povoamento do planeta e, quando da primeira positivação dos direitos humanos, precisamente
no Artigo 17, foi reconhecida como essencial para a plenitude da existência digna.
O que visa ao consagrar a proteção dos direitos humanos é garantir a todos,
os direitos mais elementares da vida; a liberdade, a dignidade e a
sobrevivência, impossibilitando que o Estado interfira na vida particular do
indivíduo, além de exigir deste último uma ação no sentido de não permitir
que as pessoas também não se ofendam umas com as outras
78
.
75
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 55.
76
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006, p. 7.
77
SILVA, José Afonso. Op. Cit. p. 38.
78
RIBEIRO, Marcus Vinícius. Direitos humanos e fundamentais. Campinas: Russell, 2007. p. 16.
48
A concepção do direito de propriedade como princípio e direito fundamental foi
albergado pela Constituição Federal de 1988, porém, de forma relativa afastando-se do
exercício de propriedade absoluto concebido no antigo Estado liberal.
Adotou a Constituição Federal de 1988 o conceito de propriedade funcionalizada
voltada para o bem estar social de forma a ser garantida e protegida contra abusos de terceiros
e abusos do próprio proprietário. Assim, como dito no capítulo anterior, a propriedade
privada foi funcionalizada, passando a estar condicionada ao seu uso social.
A Constituição Federal de 1988 ao albergar os ideários da proteção à dignidade da
pessoa humana (Art. 1º) e aos direitos fundamentais (Art. 5º) assegurou o direito de
propriedade condicionado à função social (Art. 5º XXII e XXIII).
Interessante, nesse ponto, que o poder constituinte obteve sucesso em conjugar direitos
humanos de primeira geração (individuais) com direitos humanos de segunda geração
(sociais). Com extrema maestria, através de incisos consecutivos do Artigo (incisos XXII e
XXIII), o constituinte mesclou princípio condicionante do capitalismo (a propriedade) com
princípio socialista (função social).
Dois círculos paralelos e separados a propriedade e a função social – com a
promulgação da Constituição Federal de 1988 passaram a interceder um no outro em algum
ponto (sua utilização), garantindo assim, que o direito individual de propriedade continue a
ser protegido contra os abusos do Estado e de terceiros e, ao mesmo tempo, garantindo a
sociedade que esta mesma propriedade individual sirva aos interesses de todos.
A constitucionalização dos direitos humanos da propriedade e da função social em
1988 trouxe plena positivação de direitos para a concretização dos direitos humanos e do
Estado Democrático de Direito.
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou
mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a
partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder
Judiciário para a concretização da democracia. Ressalte-se que a proteção
judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e
o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na Constituição
Federal e no ordenamento jurídico em geral
79
.
79
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006, p. 6.
49
A propriedade que cumpre a função social estará constitucionalmente protegida como
forma da promoção da dignidade da pessoa humana. O direito de propriedade,
constitucionalmente consagrado, garante que dela ninguém poderá ser privado
arbitrariamente, pois somente a necessidade, utilidade pública ou o interesse social permitirão
a desapropriação. Dessa forma, a Constituição adotou a moderna concepção de direito de
propriedade, pois, ao mesmo tempo em que consagrou como direito fundamental, deixou de
caracterizá-lo como incondicional e absoluto
80
.
2.4 A ordem econômica e a função social da propriedade
Como bem define Eros Roberto Grau, a ordem econômica é “o conjunto de normas
que define, institucionalmente, um determinado modo de produção econômica”
81
.
Sendo o direito elemento constitutivo do modo de produção que não se pode
reproduzir senão pela forma do direito
82
, necessário se faz à regulamentação dos meios de
produção através de um conjunto de regras e princípios que estabeleçam e reflitam a vontade
social de “como” produzir para que se atinjam os objetivos de determinada sociedade.
Diante disso, a Constituição Federal possui capítulo específico acerca da ordem
econômica para atingir os objetivos do Estado através dos meios de produção. Apesar da
Constituição Federal em vigor possuir em seu corpo de texto um capítulo todo dedicado à
Ordem Econômica e Social, este como uma parcela da ordem jurídica, não é de agora que o
tema faz parte das discussões constitucionais do país
83
.
Nossas constituições anteriores, salvo a de 1937, como acima relembrei,
dispunham sobre a ‘ordem econômica e social’, cuidando, a de 1988, de duas
ordens, uma ‘econômica’, outra social
84
.
Desde a primeira Constituição da República, as Normas Superiores trazem em seu
texto alguma menção a assuntos de ordem econômica. Tanto o é que, a Constituição de 1891
80
Op. Cit. p. 170.
81
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Melhoramentos, 2007. p. 72.
82
Op. Cit. p. 72.
83
Op. Cit. p. 67.
84
Op. Cit. p. 70.
50
instituía em seu Artigo 72, parágrafo 24 a garantia ao livre exercício de qualquer profissão
moral, intelectual e industrial, o que muito se assemelha ao caput do Artigo 170 da
Constituição Federal de 1988.
A Constituição Federal de 1934 foi a primeira Constituição a tratar especificamente da
Ordem Econômica estabelecendo em seu Artigo 115: “A ordem econômica deve ser
organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que
possibilite a todos uma existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade
econômica”
85
.
Antes de 1930, a preocupação pela ordem social e econômica no Brasil era
mínima. Foi somente depois da revolução que o legislador constituinte
debateu a matéria, de modo que a Constituição de 1934 sofreu influencia da
Constituição alemã de 1919 e criou um capítulo especial com o título “Da
Ordem Econômica e Social”
86
.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1946 trouxe em seu Artigo 145 a ordem
econômica organizada conforme os princípios da justiça social conciliada com a liberdade de
iniciativa e valorização do trabalho humano. Seguindo os passos da CF/46, a Carta de 1967
fixou na ordem econômica os mesmos princípios anteriormente estabelecidos.
Do breve relato acima transcrito acerca do histórico constitucional de ordem
econômica constata-se que a partir de 1946 o Ordenamento Maior nacional concebe a
economia de forma a contemplar não só o progresso financeiro e o capital, mas sim, mediante
o desenvolvimento do homem e da justiça social.
Não há como dissociar a economia, em decorrência de uma ordem econômica fundada
na valorização do trabalho humano, na justiça social e na existência digna, de sua função
social.
A partir de 1946, como dito em capítulos anteriores, a função social passa a irradiar
valores às relações de trabalho, capital e meios de produção, conforme preconiza o texto
constitucional em vigor.
85
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br >. Acesso
em: 19 fev. 2008.
86
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva
1995.
51
Em decorrência da atual Constituição Federal se percebeu a importância da ordem
econômica inserida no corpo normativo superior, como forma do cumprimento dos objetivos
estabelecidos no Artigo 3º do mesmo diploma.
Os princípios da ordem econômica possuem força valorativa auxiliar à Republica
Federativa do Brasil na busca da construção de uma sociedade justa, livre e solidária,
garantindo o desenvolvimento nacional de forma a erradicar a pobreza, a marginalização e as
desigualdades sociais e regionais, promovendo-se, assim, o bem de todos, sem exceção.
Entre os inúmeros princípios estabelecidos na ordem econômica constitucional, todos
perfilados no Artigo 170, encontram-se a propriedade privada e a sua função social.
Para Canotilho, a propriedade privada e a sua função social estabelecida nos incisos II
e III do Artigo 170 da Constituição Federal são princípios constitucionais impositivos,
afetados pela dupla função, como instrumental e como objetivo específico a ser alcançado
(princípio dirigente)
87
.
A função social da propriedade pressupõe a própria propriedade privada, pois sem a
existência desta, não que se falar da outra. Aliás, não que se falar em regime capitalista
sem a existência segura do direito de propriedade em sua forma ampla, o que inviabilizaria a
troca de capitais.
A propriedade é garantia constitucional de direito individual e requisito básico do
capitalismo que cumpre a função individual de subsistência.
Tem-se, pois, de acordo com a orientação capitalista seguida pelo
constituinte, o princípio do respeito à propriedade privada, especialmente
dos bens de produção, propriedade sobre a qual se funda o capitalismo,
temperado, contudo, de acordo com o inciso IV, pela necessária observância
à sua função social, a ser igualmente aplicada à propriedade dos bens de
produção
88
.
A propriedade afirmada no texto constitucional no inciso II do Artigo 170 é um
conjunto de institutos jurídicos relacionados a distintos tipos de bens que viabilizam a troca de
capitais e promovem o desenvolvimento econômico do país.
87
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra (Portugal):
Coimbra Editora, 2001.
88
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2006. p. 150.
52
A propriedade privada é elemento consectário do regime capitalista, em que
a produção é determinada por aquele que detém o poder de realizá-la e dela
desfrutar como melhor lhe aprouver
89
.
Por sua vez, a função social estabelecida no inciso III do Artigo 170 impinge à
propriedade dotada de função social, um fim capaz de promover os objetivos elencados no
próprio caput do Artigo 170.
Neste contexto insere-se a propriedade privada rural que é meio de produção vital para
a economia de qualquer Estado, pois é fonte de trabalho, divisas, promoção social,
distribuição de renda, que acabam por promover a existência digna de determinada
coletividade.
A propriedade rural, que se centra na propriedade da terra, com sua natureza
de bem de produção, tem como utilidade natural a produção de bens
necessários à sobrevivência humana
90
.
A propriedade rural como meio de produção agrária, inserida no contexto da atividade
econômica de uma nação, encontra-se vinculada à função social. O poder constituinte garantiu
o direito da propriedade rural e seus frutos com a condicionante de que a produção desta
atenda os ditames da função social.
89
MARSHALL, Carla. Direito constitucional: aspectos constitucionais do Direito econômico. Rio de janeiro:
Forense Universitária, 2007. p. 147.
90
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 744.
53
3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL
3.1 Função social da propriedade rural no texto constitucional vigente
As idéias de funcionalização da propriedade privada de Karl Renner, Leon Duguit e
Auguste Comte foram absorvidas, no início do século passado, pelos poderes constituintes
responsáveis pela confecção das Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919).
Pela primeira vez na história, a função social da propriedade passa a fazer parte
integrante do texto constitucional o que acabou por influenciar, posteriormente, diversas
constituições ocidentais, dentre elas as constituições brasileiras de 1934, 1946, 1967 e 1988.
A vigente Constituição estabeleceu novo Estado, fundado na dignidade da pessoa
humana (Artigo 1º, III) - significa não somente um mero princípio da ordem jurídica, mas o é
também da ordem política, social, econômica e cultural - e com objetivo fundamental (Artigo
3º) voltado à realização da justiça social
91
.
Como instrumento promotor da dignidade da pessoa humana e da justiça social a
Constituição Federal de 1988 trouxe inserido em seu texto final a positivação do princípio da
função social da propriedade como garantia fundamental, como princípio da ordem
econômica e como elemento da política urbana, agrícola, fundiária e da reforma agrária.
A primeira aparição do princípio da função social no texto constitucional de 1988 dá-
se no título II dos Direitos e Garantias Fundamentais, precisamente no inciso XXIII do Artigo
5º.
Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social
92
Não é por acaso que o princípio em questão está inserido como título dos direitos
fundamentais, pois como bem analisado no capítulo anterior, a propriedade funcionalizada,
91
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 38.
92
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006.
54
utilizada de forma a contemplar os objetivos e fundamentos do Estado brasileiro em prol de
toda a sociedade é garantida pelo mesmo Estado.
O cidadão detentor da propriedade cumpridora de sua função social é sujeito investido
de direito constitucional assecuratório do exercício dessa propriedade contra o próprio Estado
e contra a investidura arbitrária de terceiros.
O princípio da função social, conjugado com o princípio da propriedade privada,
ambos como princípios fundamentais individuais e coletivos, asseguram a promoção da
dignidade da pessoa humana de forma individual e coletiva, haja vista que garantem o
exercício do direito de propriedade de forma a contemplar não o proprietário, mas também
toda a sociedade.
Como dito anteriormente, o poder constituinte obteve sucesso em conjugar direitos
humanos de primeira geração (individuais) com direitos humanos de segunda geração
(sociais) mesclando princípios condicionantes do capitalismo (a propriedade) com princípio
socialista (função social). A Constituição Federal de 1988 garantiu ao cidadão o direito
individual de propriedade protegido contra os abusos do Estado e de terceiros e, ao mesmo
tempo, garantiu à sociedade que a propriedade individual sirva aos seus interesses.
O tulo VII da Constituição Federal de 1988, através do Artigo 170, fundamenta a
ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa com o fim de
assegurar para todos existência digna conforme os ditames da justiça social observado, dentre
outros, o princípio da função social.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III - função social da propriedade.
93
A prioridade ao trabalho humano é garantia de intervenção estatal na economia
capitalista para fazer valer os fundamentos da República.
[...] embora capitalista, a ordem econômica prioridade aos valores do
trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado.
Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem sentido de
93
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006.
55
orientar a intervenção do Estado na economia, a fim de fazer valer os valores
sociais do trabalho, que, ao lado da livre iniciativa, constitui um dos
fundamentos não da ordem econômica, mas da própria República
Federativa do Brasil (Art. 1º IV)
94
.
Uma das formas para que o Estado intervenha na economia é por meio da aplicação do
princípio da função social da propriedade, uma vez que, como unidade de produção, que não
cumpra com sua função social não estará valorizando o trabalho humano e,
consequentemente, não estará promovendo a justiça social. Ou seja, a função social como
princípio da Ordem Constitucional Econômica passa a ser instrumento de consecução
assecuratória da existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Não obstante o texto constitucional trazer em seu corpo a inserção da função social
nos dois capítulos acima vistos, preocupou-se o constituinte em inserir o princípio no capítulo
II do Título VII que trata da política urbana. Precisamente o Artigo 182 e seu parágrafo
estabelecem que o poder público municipal tenha por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade a fim de garantir o bem-estar de seus
habitantes.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, têm por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor
95
.
Traçando um comparativo com os outros Artigos constitucionais acima transcritos
resta evidente que o princípio da função social é instrumento constitucional promotor do bem-
estar social quer seja como instrumento de direito e garantia fundamental (Art. 5º, XXIII),
quer seja como princípio norteador da ordem econômica (Art. 170, III), quer seja como
princípio orientador da política urbana.
Em todos os casos analisados fica patente a posição instrumentalizadora que o
princípio da função social possui na busca da dignidade da pessoa humana e do bem-estar
94
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 709.
95
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva 2006.
56
social. Trata-se de ferramenta poderosa nas mãos do Estado e do cidadão para que se efetivem
os objetivos constitucionais descritos no Artigo 3º do texto Maior.
Acerca do tema objeto do presente estudo, o poder constituinte deixou para a parte
final do texto constitucional os Artigos específicos disciplinadores da função social da
propriedade rural, uma vez que a terra possui extrema relevância social o que lhe propiciou
capítulo próprio na Constituição Federal de 1988 (Capítulo III do Título VII).
A importância estratégica da propriedade da terra não se resume à pacificação dos
conflitos sociais existentes no Brasil desde as épocas das sesmarias, pois se investida da
função social, também se torna estratégica aos assuntos relacionados à segurança alimentar,
desemprego, distribuição de renda, meio ambiente entre outros.
De forma correta, o poder constituinte reconheceu na propriedade rural, investida do
princípio da função social, veículo auxiliar do Estado na busca dos objetivos fundamentais da
República.
O legislador constituinte determinou como forma para a promoção da dignidade da
pessoa humana e dos objetivos fundamentais da República a necessidade de ampla
distribuição de terras por meio de uma eficiente reforma agrária.
Entretanto, seria um contra censo o Estado desapropriar por interesse social, para fins
da reforma agrária, propriedades rurais que estivessem efetivamente investidas do
cumprimento da sua função social. Ora, se o cumprimento da função social da propriedade
rural efetivamente realiza o bem-estar social e auxilia o Estado na busca dos objetivos
fundamentais da República, não razão para desapropriação, uma vez que esta última não
prestará serviço mais relevante do que aquele realizado pelo proprietário cumpridor da
função social da propriedade rural.
Em decorrência disso, confeccionaram-se os Artigos 184, 185 e 186 da CF/88 que,
além de estabelecerem diretrizes para a desapropriação por interesse social para fins da
reforma agrária, também emitem comando protetor da propriedade privada, uma vez que
garantem a justa indenização e vedam a desapropriação da pequena propriedade e a
propriedade cumpridora da função social.
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de
reforma agrária, o imóvel rural que o esteja cumprindo sua função social,
mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com
cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos,
57
a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em
lei.
96
O Artigo 184 da Constituição de 1988 determina à União o dever de desapropriar, por
interesse social, para fins da reforma agrária, o imóvel rural descumpridor da função social,
mediante justa indenização.
Encontra-se no Artigo em questão, a ordem constitucional direcionada à União para
que, em determinado caso, cumpra com a efetiva desapropriação, mediante justa indenização,
o que, de fato, tolhe do governante a possibilidade da opção de recusa em cumprir com a
desapropriação. Trata-se de critério objetivo inserido pelo poder constituinte como forma de
tornar a propriedade funcionalizada uma política de Estado auxiliadora na busca dos objetivos
fundamentais da República.
É importante ressaltar a perfeita harmonia existente entre o Artigo 184 acima
transcrito e os incisos XXII e XXIII do Artigo 5º e incisos II e III do Artigo 170 decorrente do
expresso respeito à propriedade privada (direito fundamental individual de primeira geração),
uma vez que o Artigo 184 afasta a possibilidade de desapropriação da propriedade rural
cumpridora da função social e, em caso contrário, garante a justa e prévia indenização.
Os princípios liberais do direito de propriedade também são respeitados no Artigo 185
da Constituição Federal em razão de que nesse dispositivo, ordem expressa proibitiva de
desapropriação por interesse social para os fins da reforma agrária da pequena e média
propriedade privada, assim definida em lei, desde que única ao seu proprietário, bem como da
propriedade produtiva.
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu
proprietário não possua outra;
II - a propriedade produtiva.
97
No ano de 1993 a legislação infraconstitucional (Lei n. 8.629/93) definiu e conceituou
o imóvel rural de pequeno e médio porte. Fixou o primeiro como aquele detentor de área
compreendida de 1 (um) a 4 (quatro) módulos fiscais; por sua vez o imóvel de médio porte foi
96
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006.
97
Op. Cit.
58
legalmente fixado como sendo aquele possuidor de área superior a 4 (quatro) módulos fiscais
até o limite de 15 (quinze) módulos fiscais.
Art. 4º. Para os efeitos desta Lei, conceituam-se:
I - Imóvel Rural - o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua
localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola,
pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial;
II - Pequena Propriedade - o imóvel rural:
a) de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais;
III - Média Propriedade - o imóvel rural:
a) de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais
98
A proteção dada à pequena e média propriedade rural contra a possibilidade de
desapropriação para fins da reforma agrária decorre do incentivo à agricultura familiar
produtiva e capaz de fixar, com dignidade humana, o homem e sua família numa porção de
terra garantidora de trabalho adequado e sustento compatível com as necessidades humanas
básicas, evitando-se o êxodo rural e a superpopulação urbana resultantes de gravíssimos
problemas sociais.
Logo o constituinte visualizou na pequena e média propriedade rural instrumento
capaz de auxiliar na busca dos objetivos fundamentais da República o que torna sua
desapropriação afronta ao Artigo 1º e ao Artigo 3º da Constituição Federal 1988.
Interessante de ser debatido o inciso II do Artigo 185, uma vez que estranhamente
veda a desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária da propriedade rural
simplesmente produtiva o que vai de encontro com as determinações dos Artigos 1º, 3º, 5º,
XXII e XXIII, 170 II e III, 184 e 186 do mesmo ordenamento constitucional.
No mesmo plano hierárquico, com mesma data e mesma especificidade,
dispositivos constitucionais conflitantes, sendo um que determina a desapropriação por
interesse social para fins da reforma agrária do imóvel rural que não cumpra, de forma
simultânea, os requisitos da função social definida no Artigo 186 da Constituição Federal
(Art. 184); e, de outra borda, outro dispositivo que veda aludida desapropriação pelo simples
critério da existência ou não do cumprimento de índices economicistas de produtividade (Art.
185, II) passível de solução através da interpretação sistemática.
98
BRASIL. Lei n. 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Dispões sobre a regulamentação dos dispositivos
constitucionais relativos à reforma agrária. Disponível em: <http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em
20 jan. 2008.
59
Tércio Sampaio Ferraz Jr. citado por Maria Helena Diniz traz em seus ensinamentos,
de forma precisa, o conflito de normas:
A oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou
parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito
normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência
ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de
um ordenamento dado
99
.
Utilizando das felizes palavras de Joaquim Modesto Pinto Junior e Valdez Adriani
Farias, não resta dúvida que a celeuma posta se resolve através da interpretação sistemática,
considerando o ordenamento jurídico Constitucional como um todo informado por princípios
explícitos e implícitos, e que a integração isolada de uma norma pode deturpar seu verdadeiro
significado, até mesmo podendo resultar num sentido que possa ir contra os fins da ordem
jurídica
100
.
A interpretação do inciso II do Artigo 185 deve ser realizada de forma a propiciar o
alcance dos objetivos fundamentais da República, garantindo a todos existência digna e
justiça social.
Por meio de uma análise sistemática da Constituição Federal (Art. 1º, Art. XXII e
XXIII, Art. 170 II e III, Art. 184, Art. 186 e Art. 225), verifica-se que o espírito do texto
albergou a evolução do direito no tempo, contemplando os fatores sociais aclamados por
Comte e Duguit; aliás, trata-se de Constituição instituidora do Estado Democrático de Direito
que possui como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.
Aceitar como válida a norma impeditiva da desapropriação, o Artigo 185 II da
Constituição Federal, e considerar como único requisito válido da função social o aspecto
econômico, relegando para o ostracismo os demais requisitos intrínsecos do Artigo 186 da
Constituição Federal que contemplam os valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV e Art. 7º), os
valores ambientais (Art. 225), entre outros, inúmeros que são protegidos pela Lei Maior, é
rasgar a própria Constituição Federal e negar a existência do Estado democrático e de direito.
99
FERRAZ JR., Tércio Sampaio, Apud, DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva 2005, p.
19.
100
PINTO JUNIOR, Joaquim Modesto e FARIAS Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões
ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de estudos agrários e desenvolvimento rural, 2005, p. 17.
60
Como se vê, a Constituição conteúdo positivo à função social,
condicionando a legitimidade do domínio ao atendimento, pelo titular, de
valores sociais e existenciais não proprietários, notadamente no que
concerne às relações de trabalho e ao meio ambiente
101
.
Analisando o confronto em questão, Marcelo Dias Varella alerta que:
[...] Logo, ao se considerar como princípio a suficiência apenas do primeiro
requisito para o cumprimento da função social como excludentes dos
demais, conclui-se que os outros três incisos (Art. 186 II, III e IV) não teriam
qualquer utilidade, embora presentes no texto constitucional, não poderiam
servir de critério para averiguação do cumprimento da função social da
propriedade e por conseqüência da realização de desapropriação com fins de
reforma agrária
102
.
O texto constitucional que fixa a forma de cumprimento da função social (Art. 186),
descrevendo todos os requisitos que devem ser atingidos, possui em sua redação o advérbio
de modo SIMULTANEAMENTE, que acaba por exigir o cumprimento CONJUNTO de todos
os requisitos da função social sob pena de atrair a desapropriação estabelecida no Artigo 184
da Norma Maior.
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores
103
.
Pensar de forma contrária, ou seja, de que o Artigo 185 II possui prevalência sobre os
demais Artigos é o mesmo que anular todo o Artigo 186 e o caput do Artigo 184. É conceituar
o cumprimento da função social diversamente como feito logo acima, descrevendo-a de forma
101
TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Questões agrárias: julgados comentados e pareceres.
Organizador Juvelino José Strozake. São Paulo: Método, 2002. p. 125.
102
VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos conflitos
sociais. São Paulo: LED, 1998. p. 251.
103
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006.
61
simplória como índice de produtividade pré-definido por lei, o que nos remete, conforme visto
anteriormente, aos idos das sesmarias período quando só era exigida a produtividade.
Com efeito, verificado o que seria a antinomia, partir-se-ia para a aplicação
dos critérios antes aventados para solucioná-la. Assim, em se optando pela
prevalência do Art. 185, inciso II, o uso dessa técnica faria com que fossem
anulados todo o Art. 186 e o caput do Art. 184 da Constituição Federal,
conforme os critérios para solução de antinomias reais propostos por
Bobbio
104
.
Não se pode confundir função social com aproveitamento econômico, uma vez que o
aproveitamento econômico é apenas um dos requisitos da função social materializado pela
produtividade (Art. 186 I), devendo este requisito ser associado, segundo Tepedino e
Schreiber, à promoção de valores consagrados pela Constituição nos princípios e objetivos
fundamentais da República
105
.
Ao se solucionar o conflito posto verifica-se que são requisitos da função social
aqueles descritos nos incisos do Artigo 186 da Constituição Federal que, se não cumpridos de
forma simultânea, nos termos da legislação infraconstitucional, darão azo à possibilidade de
desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária, não se valendo um único
requisito como meio impeditivo da desapropriação descrita no Artigo 184 do mesmo
ordenamento.
3.2 Conceito de função social da propriedade rural
Uma vez localizado no ordenamento constitucional pátrio o princípio da função social
da propriedade rural, neste ponto se faz necessária uma precisa conceituação deste princípio
para que se possa visualizá-lo, caracterizá-lo e dimensioná-lo, inclusive quanto às suas
repercussões.
O direito de propriedade, aliás, encontra-se assegurado ao indivíduo em quase que a
totalidade das leis do mundo e, na maioria dos casos, condicionado à função social que lhe é
inerente.
104
PINTO JUNIOR, Joaquim Modesto e FARIAS Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões
ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de estudos agrários e desenvolvimento rural, 2005. p. 18.
105
Op. Cit. 126 p.
62
Nesse sentido, conforme verificado acima, a Constituição de 1988 garante, por meio
de seus Artigos e incisos, o direito de propriedade rural; porém, o faz de forma relativa e
condicional ao cumprimento da sua função social.
[...] da mesma forma que é conferido um direito subjetivo para o proprietário
reclamar a garantia da relação de propriedade, é atribuído ao Estado e à
coletividade o direito subjetivo público para exigir do sujeito proprietário a
realização de determinadas ações, a fim de que a relação de propriedade
mantenha sua validade no mundo jurídico.
106
.
Segundo Teizen Junior o texto constitucional inclui a propriedade privada como um
dos princípios da ordem econômica e ditames da justiça social, ao lado da função social da
propriedade. Considerada como princípio próprio (Art. 170, incs. II e III)
107
.
Apesar de alguns autores entenderem que o termo função social da propriedade é vago
e indeterminado, o que reflete o pensamento míope e minoritário, senão quase que extinto,
inúmeros pensadores vêm definindo o instituto de forma clara e precisa.
Comparato ensina que a Constituição Federal em pelo menos dois de seus dispositivos
(Art. 182, parágrafo e 4º, e Art. 186), a função social da propriedade é apresentada como
imposição do dever positivo de uma adequada utilização dos bens, em proveito da
coletividade e que o Estado exerce papel decisivo e insubstituível na aplicação normativa
108
.
Antônio C. Vivanco, citado por Grace Virginia Ribeiro de Magalhães Tanajura, assim
define o instituto da função social da propriedade:
A função social é não mais nem menos que o reconhecimento de todo titular
de domínio, de que por ser um membro da comunidade tem direitos e
obrigações com relação aos demais membros dela, de maneira que se pode
cegar a ser titular do domínio, tem a obrigação de cumplir com o directo dos
demais sujeitos, que consiste em não realizar ato algum que possa impedir
ou obstruir o bem dos referidos sujeitos, ou seja, da comunidade.
109
.
106
DERANI, Cristiane. A propriedade na constituição de 1988 e o conteúdo da função social. Revista de Direito
Ambiental. 27 volume. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 59.
107
Op. Cit. p. 142.
108
COMPARATO, Fabio Konder. Estado, empresa e função social. RT, São Paulo: RT, n. 732, p. 38-46, out.
1996.
109
VIVANCO, Antônio C., 1967, Apud TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da
propriedade rural: com destaque para a terra no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2000. p. 24.
63
Já Antônio José de Mattos Neto ensina que “a função social é paradigma que congrega
duas atribuições: a social propriamente dita e a econômica. Ambos os aspectos o social e o
econômico – fazem parte do conceito função social da propriedade
”110
.
Ambos os doutrinadores acima são enfáticos ao trazerem para dentro do princípio da
função social, a obrigação social e, não somente a obrigação econômica e produtiva. Ou seja,
o princípio da função social da propriedade rural visa o bem estar coletivo no sentido mais
amplo que se possa dar a palavra, relegando ao segundo plano o interesse individual.
No entendimento de Luciano de Souza Godoy:
A propriedade agrária, como corpo, tem na função social sua alma. Se a lei
reconhece o direito de propriedade como legítimo, e assim deve ser como é
da tradição de nosso sistema, também condiciona ao atendimento de sua
função social. Visa não o interesse individual do titular, mas também ao
interesse coletivo, que suporta e tutela o direito de propriedade. A
propriedade agrária como bem de produção, destinada à atividade agrária,
cumpre função social quando produz de forma adequada, respeita as relações
de trabalho e também observa os ditames de preservação e conservação do
meio ambiente
111
.
Destacam-se, assim, fazendo coro as palavras de Cristiane Lisita Passos
112
, três
princípios a serem cumpridos pelo proprietário rural no que tange a função social do imóvel
rural: o ecológico, o social e o econômico.
Segundo Tepedino e Schreiber, a doutrina italiana soube conceituar a função social
não como categoria oposta ao direito subjetivo, mas como um elemento capaz de alterar-lhe a
estrutura, atuando como critério de valoração do exercício do direito
113
.
Diante da conceituação acima transcrita, torna-se evidente que há cumprimento da
função social da propriedade rural, de forma ampla e genérica, quando se cumpre com a
legislação fundiária, agrária, ambiental, trabalhista, tributária e civil.
Função social da propriedade rural nada mais é do que a função/obrigação
constitucional que a propriedade rural tem de, na forma da legislação em vigor, promover o
110
MATTOS NETO, Antonio de. Função ética da propriedade imobiliária no novo código civil. Direito Agrário
Contemporâneo. Coordenação de Lucas de Abreu Barros e Cristiane Lisita Passos. Belo Horizonte: Del Rey,
2004. p. 78.
111
GODOY, Luciano de Souza. Direito Agrário Constitucional: o regime de propriedade. São Paulo: Atlas,
1998.
112
PASSOS, Cristiane Lisita. Op. Cit. p. 45.
113
Op. Cit. p. 120.
64
crescimento econômico e social de todos aqueles que dela dependam respeitando-se o meio
ambiente e as relações de trabalho.
Indo ao encontro de toda definição doutrinária acima posta, no plano superior
hierárquico das normas nacionais, a Constituição Federal de 1988, definição dos requisitos
primários da função social definidos no Artigo 186 da Constituição Federal como sendo:
aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de
trabalho; exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Não como afastar do cumprimento da função social da propriedade rural questões
sociais e econômicas; ou seja, deve o proprietário da terra exercer sua atividade de forma que
garanta o desenvolvimento econômico e social de sua região. E não isso, além do dever de
promoção do desenvolvimento social e econômico, o proprietário da terra tem por obrigação
proteger sua região com o exercício responsável da propriedade rural, social e ambiental.
Como será visto mais adiante, as formas responsáveis de exercício da propriedade
rural, como meio protetivo econômico e social da região onde se localiza o imóvel é através
do cumprimento das determinações das leis infraconstitucionais.
3.3 Função social da propriedade rural no texto infraconstitucional
O Estatuto da Terra, Lei n. 4.504 de 30 de novembro de 1964, por meio dos seus
Artigos 2º, 12, 13, e 47 fez menção ao dever de cumprimento da função social da propriedade
rural. Da mesma forma, referência da função social da propriedade rural no corpo de texto
da Lei n. 4.771/65 (Código Florestal). Porém, apenas e tão somente com o advento da Lei n.
8.629 de 25 de fevereiro de 1993 é que houve a positivação da definição da função social da
propriedade rural.
A positivação infraconstitucional do princípio da função social da propriedade rural
decorreu da edição da Lei n. 8.629 de 25 de fevereiro de 1993 que dispõe, segundo seu Artigo
1º, sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária,
previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.
65
A Lei em questão, por meio do Artigo 2º, regulamenta o Artigo 184 da Constituição
Federal, determinando que a propriedade rural que não cumprir a função social prevista no
Artigo 9º do mesmo ordenamento é passível de desapropriação para fins da reforma agrária.
O inciso I do Artigo 185 da Constituição Federal de 1988 é regulamentado, como
visto anteriormente, através do Artigo da Lei n. 8.629/93 que define a pequena e média
propriedade rural insuscetível de desapropriação rural. O Artigo em questão define a pequena
propriedade rural, aquela com área entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais e, a propriedade
rural média como aquela contendo área superior a 4 (quatro) até 15 (quinze) módulos fiscais.
Apenas a tulo de esclarecimento, pois o assunto pode suscitar dúvidas e indagações,
um módulo fiscal é definido nos termos previstos no Artigo do Decreto nº. 84.685, de 6 de
maio de 1980 combinados com o Artigo 1º da Instrução Normativa INCRA n. 11 de 4 de abril
de 2003.
Art. O Módulo Fiscal expresso em hectares será fixado para cada
município de conformidade com os fatores constantes do art. do Decreto
nº. 84.685, de 6 de maio de 1980.
§ Será considerado predominante o tipo de exploração especificado na
alínea a do art. do Decreto nº. 84.685, de 6 de maio de 1980, que ocorrer
no maior número de imóveis.
§ Para atender ao disposto nas alíneas b, c e d do art. do referido
Decreto, será utilizado o módulo médio por tipo de exploração constante da
Tabela III - Dimensão do Módulo por Categoria e Tipo de Exploração, da
Instrução Especial INCRA nº. 5-A, de 6 de junho de 1973, calculado para
cada imóvel.
§ 3º A fixação do Módulo Fiscal de cada município levará em conta, ainda, a
existência de condições geográficas específicas que limitem o uso
permanente e racional da terra, em regiões com:
a) terras periodicamente alagáveis;
b) fortes limitações físicas ambientais; e.
c) cobertura de vegetação natural de interesse para a preservação,
conservação e proteção ambiental.
114
Paulo Torminn Borges definiu o um módulo fiscal como “a área de terra que trabalha
direta e pessoalmente por uma família de composição média, com auxílio apenas eventual de
114
BRASIL. Decreto n. 84.685, de 06 de maio de 1980. Disponível em:
<http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
66
terceiros revela necessária para a subsistência e ao mesmo tempo suficiente como
sustentáculo ao progresso social e econômico da referida família”
115
.
Retornando à pedra de toque, o Artigo da Lei n. 8.629/93 regulamenta e define a
propriedade produtiva indicada no inciso II do Artigo 185 da Constituição Federal como
sendo aquela que explorada econômica e racionalmente, atinge simultaneamente, graus de
utilização da terra (índice igual ou superior a 80%) e de eficiência na exploração (índice igual
ou superior a 100%), segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
Mas é o Artigo da Lei 8.629/93 que trata de forma direta sobre o princípio da
função social da propriedade rural estabelecendo critérios objetivos de seu cumprimento. O
referido dispositivo legal encontra-se ligado diretamente com o Art. 186 da Constituição
Federal, o regulamentando de forma a definir como cumprida a função social da propriedade
rural quando atendidos, de forma simultânea, os aproveitamento racional e adequado; a
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; a
observância das disposições que regulam as relações de trabalho e, por fim, a exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
os parágrafos do Artigo acima tratado vêm a definir cada um dos requisitos da
função social da propriedade rural; porém, como serão objeto de capítulos abaixo, neste
momento apenas são dignos de menção sem maiores detalhes.
A lei em questão (8.629/93) define os procedimentos adotados pelo Estado em caso do
não cumprimento da função social da propriedade rural.
Sobre referida lei o agrarista Antônio Moura Borgues escreve:
[...] obriga os proprietários rurais a exercer o ius proprietatis segundo as
regras da lei, ou seja, explorar a propriedade imóvel rural de modo racional e
adequado, com a finalidade de torná-la produtiva, tanto para o próprio bem
estar, como de sua família e de seus empregados, consequentemente da
sociedade, respeitando ainda o meio ambiente e os recursos naturais
116
.
Evidente que a legislação acima descrita é especial ao tema, ou seja, é específica ao
ramo do direito agrário. Porém, o Código Civil de 2002, Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de
2002, também trouxe em seu corpo alguns aspectos da função social da propriedade.
115
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos de Direito agrário. São Paulo: Saraiva 1998. p. 57.
116
BORGES, Antônio Moura. Curso completo de Direito agrário. Leme: EDIJUR, 2005. p. 50.
67
Mesmo sob pena de redundância, pois tratado na página 45 do presente trabalho,
importante repisar que a Lei n. 10.406/2002 trata de forma genérica acerca da função social da
propriedade como um todo, e não de forma específica da função social da propriedade rural.
Porém, de forma implícita verifica-se ao analisar o Parágrafo 1º do Artigo 1.228
daquele Código Civil que os requisitos da função social da propriedade rural se fizeram
presentes na Seção I, Capítulo I, Título III que trata sobre o direito de propriedade em geral.
O comando imperativo do Parágrafo em questão é claro e preciso ao determinar que o
direito de propriedade deva ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas
e sociais de modo que sejam preservados a flora, a fauna e o equilíbrio econômico.
Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha.
§ O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas.
117
evidente harmonia entre o Parágrafo em apreço da Lei Geral e os Artigos
constitucionais e infraconstitucionais específicos analisados, uma vez que não há
possibilidade de exercer o direito de propriedade em consonância com as finalidades
econômicas, sociais e ambientais sem respeitar os incisos do Artigo 186 da Constituição
Federal de 1988 conjugado juntamente com o Artigo 9º da Lei n. 8.629/93.
Mesmo que a expressão função social da propriedade não esteja inserida no corpo do
Artigo 1.228 e seu Parágrafo Único, como acima é destacado, todos os requisitos da função
social da propriedade rural ali se encontram o que harmoniza, como dito, a legislação civil
geral ao texto Constitucional e infraconstitucional específico.
Por derradeiro, ao tratar do tema, para que não paire maiores equívocos, importante
ressaltar que, além do Artigo retro mencionado, a Lei n. 10.406/2002 ainda trata da função
social, isso de forma genérica e não especifica ao tema da propriedade agrária, nos Artigos
187, 421, e 2.035, Parágrafo Único. Sendo que o Artigo 187 trata da responsabilidade civil, o
117
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<http://www.iob.com.br/jurissinteseiob>. Acesso em: 20 jan. 2008.
68
Artigo 421 do direito das obrigações contratuais e, por fim, o Artigo 2.035 e seu Parágrafo
Único tratam das disposições finais e transitórias.
Assim, com a positivação infraconstitucional do princípio da função social da
propriedade rural, definindo-se critérios práticos para apuração do seu cumprimento, bem
como definindo o procedimento para realização da desapropriação por interesse social para
fins da reforma agrária, o Estado brasileiro obteve instrumento adequado necessário para
buscar, através da função social da propriedade da terra, os objetivos fundamentais da
República e a materialização da dignidade da pessoa humana no campo.
3.4 Requisitos condicionantes da função social da propriedade rural
Conforme acima exposto, o texto de lei constitucional (Art. 186 da Constituição
Federal) e infraconstitucional (Art. da Lei 8.629/93 e Art. da Lei 4.504/64) estabeleceu
condicionantes objetivos como requisitos para o cumprimento integral da função social da
propriedade rural.
Para que a função social da propriedade rural seja cumprida se faz necessário que a
exploração da terra se dê nos termos econômicos, ambientais e sociais definidos em lei.
Portanto, não meios de cumprimento da função social de forma parcial ou
inacabada como, por exemplo, atendimento aos índices econômicos e desatendimento aos
critérios ambientais e sociais.
O ordenamento pátrio não concebe a idéia de produtividade com devastação
ambiental, ou de produtividade com exploração do trabalho indigno ou inseguro.
Os incisos do Artigo 186 da Constituição Federal contemplam direitos sociais (direitos
humanos sociais e econômicos de segunda geração) e direitos ambientais (direitos humanos
difusos de terceira geração) também expressos no próprio corpo da Constituição Federal por
meio de outros Artigos. Os incisos do Artigo 186 criam uma zona de inter-relação entre
diversos ramos de direito de modo que, conjugados de forma sistemática, respeitando-se a
unidade da Constituição, contemplam a busca incansável pelos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, expressos com a positivação do Artigo da Constituição
Federal de 1988.
69
O cumprimento dos requisitos da função social deve possuir como ponto de partida o
Artigo 186 da Constituição Federal que servirá de lente pela qual o operador de direito deverá
interpretar quaisquer outros Artigos infraconstitucionais.
Acerca dos requisitos do princípio função social da propriedade rural, Darcy Walmor
Zibetti os fundamenta como partes de uma teoria tridimensional da função social da terra
118
.
Oportuno discordar do referido autor, pois a idéia de dimensão exige o conceito de níveis,
tamanhos e importância, o que não é o caso.
Os requisitos do princípio da função social da propriedade rural estabelecidos no texto
constitucional e infraconstitucional encontram-se perfilados em níveis de idêntica importância
na busca de seus objetivos fundamentais, jamais podendo ser aceita qualquer idéia
tridimensional.
E por estarem no mesmo nível de importância os requisitos do Artigo 186 da
Constituição Federal de 1988, possuem três as finalidades expressas: uma finalidade de ordem
econômica; uma outra finalidade de ordem social; e uma finalidade de ordem ecológica.
Examinando, pois, o mencionado art. 186 da Constituição Federal de 1988,
serão três as finalidades da norma que se pode aduzir do espírito mesmo dos
patamares de exigência: uma finalidade de ordem econômica, especialmente
consagrada no inciso I que, revela a preocupação com a produção e a
produtividade; uma outra finalidade de ordem social, especialmente
consagrada no inciso III, que demonstra o cuidado com a segurança advinda
das relações de trabalhistas; e por derradeiro uma finalidade de ordem
ecológica, especialmente consagrada no inciso II, que claramente determina
a obrigação de se proteger o meio ambiente
119
.
Por mais rigorosos que possam parecer os requisitos da função social da propriedade
rural, esta apenas e tão somente estará cumprida se a propriedade rural atender, de forma
conjunta, as determinações expressas nos incisos do Artigo 186, ou seja, se atender as
finalidades ecológica, trabalhista e social.
A seguir serão expostos os requisitos da função social da propriedade rural, porém de
forma breve, para não perder de foco o presente tema ligado diretamente com o inciso III do
Artigo 186 da Constituição Federal.
118
ZIBETTI, Darcy Walmor. Teoria tridimensional da função da terra no espaço rural. Curitiba: Juruá, 2006. p.
49.
119
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Atividade agrária e proteção ambiental: simbiose possível.
São Paulo: Cultural Paulista, 1997. p. 107.
70
3.4.1 Aproveitamento racional e adequado (Art. 186 I da CF)
Em março de 2002 a Organização das Nações Unidas enviou ao Brasil missão especial
para assuntos do Direito Humano à Alimentação Humana representada por Jean Ziegler,
Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação Adequada. O extrato da missão
apresentou, em janeiro de 2003, relatório que expôs as principais constatações e
recomendações em relação à realização do Direito Humano à Alimentação Adequada no
Brasil, apontando como um dos fatores para a consumação de violações ao DHAA o modelo
de desenvolvimento concentrador de terras, riqueza e renda
120
.
A propriedade agrária é bem de produção e possui finalidade meio de produção de
alimentos e matérias primas em quantidades razoáveis à sua localização, topografia e clima.
Não é admissível pensar em propriedade agrária que não realize sua missão maior que é a
produção de acordo com suas possibilidades naturais.
A propriedade ociosa é meio de criação de instabilidade social e se torna nefasta aos
objetivos fundamentais da República, pois inibe o desenvolvimento social adequado e seguro.
Não é por outra razão que o poder constituinte assegurou no texto da Lei Maior a
proteção à produtividade agrária, como forma da promoção social e efetivação da dignidade
da pessoa humana.
O inciso I do Artigo 186 da Constituição Federal encontra-se perfeitamente harmônico
com os Artigos 1º, 3º, , 6º, 193 e 196 do mesmo texto legal. Da mesma forma, encontra-se
harmônico com os Artigos da Lei n. 8.629/93 e 4.504/64.
O Estado somente poderá garantir aos seus cidadãos dignidade humana, erradicação da
pobreza, igualdade social, bem-estar social, direito à vida, direito à saúde, proteção à infância
e aos desamparados se houver produção e distribuição de alimentos para todos.
Assim, a propriedade privada rural se torna vital à segurança alimentar do nosso país
não podendo servir como meio de especulação financeira em detrimento da miséria social.
A produção além de ser estimulada e exigida conforme determinam os Artigos de lei
acima expostos deve, segundo o legislador constituinte, ser realizada de forma racional e
adequada segundo técnicas que contemplem a dignidade do trabalho e respeitem o meio
ambiente. Por esta razão a produtividade deve ser racional e adequada.
120
VALENTE, Flávio Luiz Schieck. Direitos Humanos no Brasil: a evolução da promoção da realização do
direito humano à alimentação adequada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 313.
71
A função social da propriedade agrária na América latina tem como
fundamento no fato de que os bens agrários, por sua natureza de bens de
produção, devem ser adequadamente explorados. Em virtude deste princípio
a propriedade passa a definir-se como ativa e a produção e produtividade da
terra se impulsionam mediante os seguintes requisitos: o dever de cultivo de
todas as áreas rurais com capacidade produtiva, o dever de cultivo direto da
empresa agrária, a prioridade de uso agrícola da terra cultivável e os critérios
e eficiência e racionalidade. Com ela se busca superar a idéia da propriedade
privada concebida com mercadoria, convertida em capital produtor de renda,
tenente a mera especulação para tomar uma nova concepção considerando o
rendimento dela com vista a produtividade
121
.
Os critérios estabelecidos para a produtividade da propriedade da terra encontram-se,
há anos, no centro dos debates acerca da função social da propriedade rural em decorrência da
falsa interpretação dada ao Artigo 185, II da Constituição Federal.
A falsa conceituação de que somente a propriedade rural improdutiva seria passível de
desapropriação para fins da reforma agrária acalorou debates entre as partes integrantes dos
conflitos agrários: Movimentos Sociais, Proprietários, INCRA e Judiciário.
O aproveitamento racional e adequado da terra, que, no Estatuto da Terra corresponde
ao requisito níveis satisfatórios de produtividade, é mensurado objetivamente pelos graus de
utilização (GUT) e de eficiência na exploração (GEE), fixados em 80% ou mais para o
primeiro, e 100% ou mais para o segundo.
É evidente que o primeiro requisito da função social da propriedade rural possui
caráter objetivo calcado nos índices de produtividade previamente estabelecidos em lei que, se
não cumpridos, ensejarão a aplicação do Artigo 184 da Constituição Federal.
Diante desta equação: índices de produtividade, objetivos estipulados por meio de
normas positivadas e a desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária de
apenas e tão somente propriedade que não cumprisse objetivamente os graus de utilização
(GUT) e de eficiência na exploração (GEE). Foi relegado para segundo plano o interesse das
partes envolvidas pelos demais requisitos do princípio da função social da propriedade rural.
Diz-se isso uma vez que todos os setores envolvidos na questão insistem, apesar da
Constituição Federal e seu Artigo 186 existirem há mais de 19 (dezenove) anos, em minimizar
121
ZELEDÓN, Antonio Zeledón. Teoria general e institutos de Derecho agrário. Buenos Aires: Astrea, 1990. p.
191.
72
a discussão quanto função social da propriedade e, o direito ou não à desapropriação, quando
do cumprimento ou não dos índices de produtividade.
Ao invés de existir debate mais amplo sobre o tema, abrangendo todos os requisitos de
cumprimento da função social dispostos, como visto, nos incisos do Artigo 186 da
Constituição Federal, todas as partes continuam discutindo o direito estabelecido no Artigo
184 da Constituição Federal pelo viés exclusivo da produtividade, relegando os demais
requisitos.
Os próprios interessados na reforma agrária, ao invés de trazerem à discussão todos os
aspectos da função social, conforme acima expostos, continuam a cometer o erro histórico de
apenas e tão somente discutir os requisitos econômicos da produtividade da propriedade rural
passível de desapropriação.
Tal fato é de fácil visualização por meio de simples leitura da entrevista concedida por
um dos lideres do MSLT (Movimento de Libertação dos Sem Terra) ao jornal Folha de São
Paulo:
Integrantes do MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra) invadiram
entre a noite de segunda-feira e a madrugada de anteontem uma fazenda na
região de Prata (653 km de Belo Horizonte). De acordo com Ismael Costa,
da coordenação nacional do movimento, aproximadamente 450 pessoas
entraram na fazenda Barreiro. "A área é improdutiva. Tem cerca de 800
alqueires e só umas 30 vacas", disse ele. Costa relatou que, desde o início
do ano, o MLST ocupou 12 fazendas no Estado. A Polícia Militar informou
que o clima era tranqüilo na fazenda na tarde de ontem. A reportagem não
conseguiu localizar o proprietário da fazenda
122
.
Aliás, o mais famoso líder do MST, João Pedro Stédile, em entrevista à Rádio Mundo
Real disse:
Toda a área econômica ficou neoliberal. Nesse cenário, quase todos os
movimentos sociais, tiveram pontos positivos e negativos. No campo
específico da Reforma Agrária o nosso balanço é negativo porque as
medidas que o governo tomou ao longo de quatro anos beneficiaram muito
mais o agro negócio do que a Reforma Agrária de maneira que nós não
conseguimos avançar em nada. O governo não teve coragem sequer de
atualizar os índices de produtividade que medem se uma fazenda pode ou
não ser desapropriada. Os índices usados atualmente são do censo do Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) de 1975. No
conjunto da política agrícola do governo continuou-se privilegiando a
122
JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. Banco de Notícias. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u89680.shtml>. Acesso em: 22 fev. 2007.
73
agricultura para exportação. A agricultura brasileira deve em primeiro lugar
cumprir a sua função primordial que é produzir alimentos saudáveis e
baratos para o povo brasileiro que, infelizmente, continua faminto ou se
alimentando aquém das necessidades básicas nutricionais
123
.
Da mesma forma, mas aí com toda razão, pois defendem seus interesses, os produtores
rurais também possuem o errôneo hábito de discutirem exclusivamente o aspecto econômico
da função social, ou seja, os índices de produtividade.
Um grupo de 150 integrantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) invadiu
na manhã de ontem a Fazenda Santa Maria, em Santa Maria do Oeste, a 350
quilômetros de Curitiba. De acordo com a Polícia Militar, não houve
confronto. Os invasores são excedentes de assentamentos da região. A
proprietária, Neide Alves Torres, entraria ontem na Justiça com um pedido
de reintegração de posse. Ainda segundo a PM, 30% dos 190 alqueires é área
de preservação e o restante é usado para agricultura e pecuária, mas a
fazenda estaria penhorada, por causa de dívidas
124
.
Como se não bastasse o erro crasso cometido pelas duas principais partes interessadas
no tema, o órgão federal competente para promover a reforma agrária no país também comete
o mesmo pecadilho o que acaba por prejudicar a própria reforma agrária, haja vista que este
órgão apenas considera passível de desapropriação para fins da reforma agrária a propriedade
rural improdutiva.
Cerca de 60 famílias invadiram, neste fim de semana, a fazenda Garrote, no
município de Brejo da Madre de Deus (214 km de Recife), região agreste do
Estado. [...]
O movimento reivindica a propriedade --de 1.800 hectares-- para a reforma
agrária, sob a alegação de que ela é improdutiva.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), no entanto,
diz ter feito uma vistoria no mês passado na qual a declarou produtiva. A
Justiça chegou, inclusive, a conceder a reintegração de posse ao proprietário,
que não foi localizado ontem pela reportagem. [...]
125
123
RÁDIO MUNDO REAL. Banco de Entrevistas. Disponível em:
<http://www.radiomundoreal.fm/rmr/?q=pt/node/10476>. Acesso em: 22 fev. 2007.
124
UNIÃO DEMOCRÁTICA RURALISTA. Banco de Notícias. Disponível em: <http://
http://www.udr.org.br/invasao5.htm>. Acesso: em 22 fev. 2007.
125
JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. Banco de Notícias. Disponível em: <http://
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u68585.shtml>. Acesso em: 22 fev. 2007.
74
Por fim, compete tecer considerações quanto à visão dos Tribunais Superiores sobre o
tema da função social (Art. 186 CF/88) e à desapropriação de terras para fins da reforma
agrária (Art. 184 CF/88).
Necessário lembrar que o judiciário se, ainda não se manifestou através de seu órgão
máximo acerca do assunto, deve-se pelo fato de não ter sido provocado pelas partes
interessadas, ante a sua natureza inerte.
Porém, houve de forma tímida, por parte do STF, a seguinte decisão proferida na ADI
n. 2213 de relatoria do Ministro Celso de Mello:
ADI 2.213/DF Relator (a): Min. CELSO DE MELLO Publicação: DJ
DATA-23-04-04 [...] - O direito de propriedade não se reveste de caráter
absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que,
descumprida a função social que lhe é inerente (CF 5. XXIII), legitimar-se-á
a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para
esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados pela própria
constituição da República. [...], pois só se tem por atendida a função social
que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do
domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra
labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar
a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais
que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e
aqueles que cultivam a propriedade [...]
126
A discussão equivocada em torno exclusivamente da produtividade da terra, por todas
as partes envolvidas no problema acaba por provocar distorções sem precedentes
prejudicando, principalmente, a própria reforma agrária.
Tanto é assim, que ao invés dos setores interessados exigirem o cumprimento do
Artigo 186 da Constituição Federal, levantando, assim, inúmeras propriedades rurais que não
cumprem os demais requisitos da função social, preferem reivindicar a atualização dos índices
de produtividade, o que seria desnecessário se o INCRA cumprisse o Artigo 186 da
Constituição Federal.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) avalia
que a possibilidade de avançar mais a reforma agrária no Brasil não é culpa
ou vontade do governo Lula. Segundo o diretor de Políticas Agrárias e
Meio Ambiente da Contag, Paulo Caralo, o poder Judiciário e a
126
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.213. Relator Ministro Celso
de Mello. 28 de fevereiro de 2005. Disponível em: <http\\www.stf.org.br>. Acesso em: 19 fev. 2008.
75
desatualização dos índices de produtividade são entraves. “Percebemos que
não é vontade do presidente Lula, foram feitas centenas de
desapropriações, mas o latifúndio entra na Justiça e infelizmente o Judiciário
reintegração de posse para o fazendeiro. Foram várias terras
desapropriadas pelo governo federal e o Incra perdeu para o proprietário
depois do termo de reintegração de posse”, explicou. Caralo ainda enfatiza a
ausência da atualização dos índices de produtividade também é um
problema. Os atuais números foram estabelecidos em 1980, a partir de dados
estatísticos de 1975. Com a atualização dos índices, a expectativa destacada
pelos movimentos sociais é a de que propriedades rurais consideradas
atualmente produtivas se revelem aptas a ser desapropriadas para a reforma
agrária em regiões de alto nível de conflito fundiário, como o Sul e o
Nordeste
127
.
Se a Contag se ativesse ao Artigo 186 da Constituição Federal conforme aqui exposto
e, pelas vias legítimas de direito, pressionasse o INCRA para que este órgão cumprisse com
os ditames constitucionais, não haveria qualquer necessidade de debates políticos desgastantes
quanto à atualização dos índices de produtividade.
Cumprindo-se a lei (Art. 186 da CF/88), haverá terras suficientes no Brasil para
desapropriação para fins da reforma agrária, restando aos proprietários de aludidas terras o
direito dever de cumprir, de forma integral e simultânea, com a função social da propriedade
rural.
3.4.2 Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente (Art. 186 II da CF)
O inciso II do Artigo 186 da Constituição Federal contempla os princípios de direitos
humanos de terceira geração, ou seja, aqueles que, segundo Celso Lafer, citado por Alexandre
de Moraes, transcendem a esfera dos indivíduos considerados em sua expressão singular, e
recaindo, exclusivamente, nos grupos primários e nas grandes formações sociais
128
.
Em decorrência da relevância que o meio ambiente apresenta à saúde e à própria vida
no planeta, o inciso em comento encontra-se em perfeita consonância com os Artigos 1º, ,
5º, 6º, 170, 193, 196 e 225 da Constituição Federal. Não como se admitir uma propriedade
rural produtiva, no ponto de vista econômico-produtivo, que agrida o meio ambiente, pois
127
AGÊNCIA DE NOTÍCIAS BRASIL. BANCO DE NOTÍCIAS. Disponível em
<http://www.agenciabrasil.gov.br/no. 2007-01-30.3570568294/view>. Acesso em: 22 fev. 2007.
128
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006. p. 28.
76
apesar de garantir a segurança alimentar trará conseqüências danosas para a toda a sociedade,
impedindo-se a concretização dos objetivos fundamentais da República (Art. 3º da CF).
A propriedade rural que desrespeita, com sua produção, o meio ambiente, bem de uso
comum do povo, desrespeita a dignidade da pessoa humana (Art. 1º); o bem estar de todos
(Art. 3º); à vida (Art. 5º); à saúde, infância e ao lazer (Art. 6º e Art. 196); à ordem social (Art.
193); e, por final o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum e
essencial à sadia qualidade de vida (Art. 225). Torna-se nociva à própria agricultura nacional,
pois esta é parte do ciclo biológico, elemento essencial da atividade agrária.
Verifica-se, inclusive, que a norma aqui em questão absorve inúmeros princípios do
direito ambiental como, por exemplo, o princípio da equidade no acesso aos recursos naturais
que deve orientar a fruição ou uso da água, do ar e do solo no sentido de serem observadas as
necessidades presentes, e não futuras.
Dentre as formas de acesso aos bens ambientais destacam-se pelo menos
três: acesso visando ao consumo do bem (captação de água, caça, pesca),
acesso causando poluição (acesso à água ou ar para lançamento de
poluentes; acesso ao ar para a emissão de sons) e acesso para a contemplação
da paisagem
129
.
Há, também, consonância com o princípio do poluidor pagador, uma vez que a
propriedade poluidora, que se utiliza gratuitamente do meio ambiente para nele lançar
poluentes, invade o direito de todos, consagrado no Artigo 225 da Constituição Federal,
possuir meio ambiente ecologicamente equilibrado.
O inciso II do Artigo 186 também atua como forma de prevenção (princípio ambiental
da precaução), uma vez que interpretado conjuntamente com o Artigo 184 da Constituição
Federal determina, em caso de dano ao meio ambiente, a desapropriação da propriedade rural
poluidora por interesse social para fins da reforma agrária.
O poder constituinte ao positivar o inciso II do Artigo 186 da Constituição Federal
buscou não garantir a produtividade agrária do presente, mas também a produtividade
agrária das gerações futuras. A produtividade agrária futura somente estará assegurada se
preservados os recursos naturais necessários ao desempenho da agropecuária como água, solo
e ar.
129
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 2001. p. 45.
77
Trata-se, como bem definiu J. Cretella Jr. do binômio utilização/preservação. Pois a
utilização do meio ambiente e dos recursos naturais é indispensável para que se possa
consumar a produção agrícola no país. E mais, sem a utilização dos recursos naturais, não
meios da propriedade rural cumprir com os índices de produtividade estabelecidos no inciso I
do Artigo 186 e na legislação infraconstitucional. Porém, a utilização dos recursos naturais e
do meio ambiente deve ser precedida da responsável preservação ambiental como garantia da
eterna produção de alimentos e perpetuação da segurança alimentar do povo brasileiro.
Por um lado a utilização dos recursos naturais oferecidos pela natureza ou
recursos naturais disponíveis rios, riachos, lagos, lagunas, quedas, fontes
minerais, nascentes -, empregados para o cumprimento da função social, em
toda sua plenitude, por outro lado, o controle nesse emprego é ditado pela
preservação do meio ambiente. Utilização, mas ao mesmo tempo
preservação
130
.
O inciso II do Artigo 186 encontra-se em perfeita comunhão com o inciso I do mesmo
dispositivo Constitucional, uma vez que a propriedade rural deverá, para efeitos do
cumprimento da sua função social, atingir os índices de produtividade respeitando e
preservando o meio ambiente e os recursos naturais. O legislador pátrio atrelou esses
requisitos (inciso I e II do Art. 186) de tal forma que é impossível o cumprimento da função
social por meio da produtividade degradante ou da preservação improdutiva.
A lei infraconstitucional – Lei n. 8.629/93 - considera adequada a utilização dos
recursos naturais disponíveis, desde que respeitada a vocação natural da terra de modo a
garantir o potencial da produtividade, preservando-se as características próprias do meio
natural e da qualidade dos recursos ambientais.
O Segundo requisito, que diz respeito à observância das disposições que se
desdobra em dois a adequada utilização dos recursos naturais e a
preservação do meio ambiente -, exige o respeito à vocação natural da terra,
com vistas à manutenção tanto do potencial produtivo do imóvel como das
características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos
ambientais, para o equilíbrio ecológico da propriedade e, ainda, a saúde e
qualidade de vida das comunidades vizinhas
131
.
130
CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1993. 8 v. p. 4256.
131
ARAUJO Jr., Vicente Gonçalves de. Direito agrário. Belo Horizonte: Inédita, 2002. p. 25.
78
A atividade rural, mediante a norma constitucional expressa, deve frear as aspirações
econômicas que consumam, de forma irresponsável, com os recursos naturais disponíveis à
determinada região, sob pena de colocar em risco a própria sobrevivência do homem pela
extinção destes recursos naturais.
Nas palavras de Celso Ribeiro de Bastos, não como negar que mesmo uma
produção superabundante não pode servir de pretexto para que se descumpram disposições
relativas à preservação do meio ambiente
132
.
Porém, o doutrinador acima possui entendimento divergente e crítico à sanção
estabelecida no Artigo 184 da Constituição Federal de 1988 em caso de descumprimento do
inciso II do Artigo 186 do mesmo texto Constitucional. Para Celso Ribeiro de Bastos, a
proteção do meio ambiente deve ser atingida por meios sancionatórios mais adequados do que
a desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária, haja vista que, segundo ele,
o dever de preservação ambiental não se restringe ao próprio proprietário rural
133
.
Infelizmente por mais consideração que possa merecer o professor Celso Ribeiro de
Bastos, seu entendimento é equivocado, pois, como visto anteriormente, a desapropriação por
interesse social para fins da reforma agrária não se trata de sanção por ilícito ambiental. Este
ilícito será objeto de apreciação no âmbito administrativo, judicial civil e criminal. Aqui, no
caso da desapropriação, há sanção pelo descumprimento da função social da propriedade rural
a quem não é permitida o direito de prejudicar a produção agropecuária das futuras gerações,
comprometendo a materialização dos objetivos fundamentais da República. Ou seja, ao
degradar o meio ambiente, a propriedade rural incluindo-se o seu proprietário comete um
ilícito ambiental passível de punições administrativas, cíveis e criminais e, um ilícito social
pelo descumprimento da sua função social.
Porém, adverte-se que não será qualquer infração ou ilícito ambiental que contemplará
a aplicação do Artigo 184 da Constituição Federal desapropriação por interesse social para
fins da reforma agrária. Ao contrário do inciso I do Artigo 186 (produtividade), o requisito
ambiental da função social da propriedade rural não possui elementos objetivos de
mensuração e valoração, o que dificulta a sua aplicação.
132
BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva
1990. p. 289.
133
Idem Ibidem.
79
No caso do descumprimento dos índices econômicos da produtividade, previamente
estipulados, a propriedade rural, por se enquadrar na tipificação legal como descumpridora da
função social, conforme anteriormente visto, torna-se susceptível de desapropriação.
Entretanto, no caso em questão, infração ambiental, deverá o aplicador da lei, por
ausência de critérios objetivos previamente estabelecidos por lei, valorar e dimensionar os
danos ambientais decorrentes da atividade produtiva agrária, sopesando-o com o lídimo
direito individual de propriedade.
A aplicação do inciso II do Artigo 186 torna-se subjetiva a realidade fática do seu
momento, devendo o aplicador do direito efetuar o balance entre os princípios em conflito:
meio ambiente ecologicamente equilibrado versus direito individual da propriedade privada
para então, somente depois, concluir pela aplicação ou não do Artigo 184 da Constituição
Federal.
O dano ambiental provocado pela atividade agrária deverá ser de tamanha proporção
que prejudique de forma razoável o meio ambiente ecologicamente equilibrado a ponto de
comprometer a concretização dos objetivos fundamentais da República, bem como a
dignidade humana representada no direito à saúde e à vida.
Do contrário, tratando-se de dano ambiental de pequeno potencial ofensivo que não
apresente comprometimento ao ecossistema, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
às futuras produções agrárias, à saúde e à vida, a aplicação do Artigo 184 da Constituição
Federal tornar-se-á inviável, prevalecendo, neste caso, o direito individual da propriedade
rural sem prejuízo de aplicação das sanções ambientais administrativas, e judiciais cíveis e
criminais.
3.4.3 Observância das disposições que regulam as relações do trabalho (Art. 186 III da
CF)
O liberalismo e as práticas liberais acabaram por promover a primeira revolução
industrial que apesar de elevar consideravelmente os índices de produtividade e produção das
80
nações, de forma inversa, trouxe riqueza para poucos que, naquela época, segundo Leo
Huberman, mais de 1.000.000 (um milhão) de pessoas passavam fome
134
.
Apesar dos avanços econômicos trazidos pelo liberalismo e pela revolução industrial,
a classe trabalhadora da época encontrava-se abaixo da linha da pobreza, vivendo em
condições degradantes.
Os trabalhadores da época trabalhavam até 16 (dezesseis) horas por dia, retornando à
noite para seus lares, na verdade, buracos miseráveis, insalubres sem as mínimas condições de
conforto, segurança e higiene. Sequer em condições de abrigar animais.
No dia a dia de trabalho, enquanto desempenhavam suas funções por mais de 16
(dezesseis) horas ininterruptas, conforme acima exposto, em razão das máquinas a vapor e das
caldeiras alimentadas por carvão, os trabalhadores executavam suas tarefas em ambientes com
temperaturas superiores a 29º (vinte e nove graus) Celsius, sem direito a água.
A exploração do homem pelo homem torna-se cruel, alcançando mulheres e
crianças, cujo esforço é completamente desvalorizado, sua dignidade passa a
ser diminuída de forma atroz. De um lado, esquecidos da fraternidade, uma
das bandeiras sustentadas no século anterior, os homens formam poderosas
fábricas, absorvendo as pequenas e médias oficinas concorrentes, e, do
outro, enfileiram-se centenas de miseráveis, todos falidos que permanecem
ao redor das fábricas em busca de um posto de trabalho, disputado de forma
desesperadora
135
.
A relação homem-máquina era injusta, pois os capitalistas da época valorizavam as
máquinas em detrimento do ser humano, já que as primeiras representavam seus
investimentos. Somente havia valorização do trabalho mecânico, pois era investimento caro e
facilmente desvalorizado, haja vista que na época, os avanços tecnológicos proporcionavam a
criação de novos e novos mecanismos de produção. Por sua vez, o trabalho humano era
barato, pois facilmente eram compradas as forças de trabalho de mulheres e crianças.
A princípio, os donos de fábricas compravam o trabalho das crianças pobres,
nos orfanatos; mais tarde, como os salários do pai operário e da mãe operária
134
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1998. p. 176.
135
GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Direito do trabalho e dignidade da pessoa humana, no contexto da
globalização econômica. São Paulo: LTr, 2005. p. 78.
81
não eram suficientes para manter a família, também as crianças que tinham
casa foram obrigadas a trabalhar nas fábricas e minas
136
.
Diante de tamanha aberração, iniciou-se processo natural de reclamações formais
dirigidas aos juízes e parlamentares da época. Porém, sem qualquer efeito prático, haja vista
que os juízes eram os próprios patrões e, os parlamentares, eleitos por estes, o que dificultava
a aplicação das tímidas leis já existentes na época.
O cenário acima pintado forçou a uma única saída, a organização dos trabalhadores na
busca de condições dignas de vida. Primeiro, lutaram pelo direito de voto, pois somente assim
poderiam escolher os parlamentares responsáveis pelas leis. Depois, alinharam-se com o
movimento cartista na reivindicação do sufrágio universal para os homens, pagamento aos
membros eleitos da câmara dos comuns, parlamentos anuais, nenhuma restrição de
propriedade para os candidatos, sufrágio secreto e igualdade dos distritos eleitorais.
Excetuando os parlamentos anuais, todas as reivindicações dos trabalhadores cartistas foram
conquistadas.
Gradualmente, através das conquistas obtidas inicialmente pelo movimento cartista,
fortalecido pela participação dos trabalhadores, o Estado passou a ter uma participação mais
efetiva na economia, regulamentando as relações de trabalho, como por exemplo, com a
edição da Trade Union (1871) que tornou lícita a atuação dos sindicatos, a Conspiracy and
Protection of Property Act (1875) que permitiu as paralisações operárias pacíficas
137
.
Outros direitos sociais do trabalho também foram reforçados graças ao papel assumido
pela Igreja Católica por meio da Encíclica Rerum Novarum de 1891. A Encíclica de Leão XIII
(Rerum Novarum) torna-se importante ao presente tema, pois aborda em seu texto não a
importância da proteção ao trabalho humano, mas, também, aborda a importância da
funcionalização do direito de propriedade. Ou seja, 97 (noventa e sete) anos antes da
promulgação da Constituição Federal de 1988, com o advento do Artigo 186 (que conjuga o
direito do trabalho humano e a funcionalização da propriedade agrária), a Encíclica Papal
explorava o tema.
138
136
GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Direito do trabalho e dignidade da pessoa humana, no contexto da
globalização econômica. São Paulo: LTr, 2005. p.178.
137
SILVA, Paulo Henrique Tavares. Valorização do trabalho como princípio Constitucional da ordem
econômica brasileira: Interpretação Crítica e Possibilidade de Efetivação. Curitiba: Juruá, 2003. p. 71.
138
GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Direito do trabalho e dignidade da pessoa humana, no contexto da
globalização econômica. São Paulo: LTr, 2005. p.71.
82
Não se pode negar que as grandes conquistas dos trabalhadores se deram em razão de
sua própria organização com a criação de sindicatos representativos de suas respectivas
categorias. A degradante situação social somente foi possível graças ao ideário liberal e o
liberalismo. O sistema político liberal tornou-se terreno fértil para o crescimento do
capitalismo e da exploração do trabalho conforme acima transcrito o que forçou, de forma
natural, o surgimento de movimentos sociais buscando a humanização do capitalismo.
Decorrência lógica dos movimentos sociais da época (Socialismo) redundou na
concepção intervencionista do Estado - surgimento dos direitos humanos de segunda geração
- positivados pela primeira vez nas constituições de 1917 (Constituição do México) e 1919
(Constituição de Weimar).
139
No Brasil, a revolução Industrial somente veio a florescer com aproximadamente um
século de atraso, aproximadamente por volta de 1880, graças à conjunção de vários fatores
como, por exemplo, a abolição da escravidão, o ingresso de mão de obra imigrante e
especializada, desenvolvimento das infra-estruturas urbanas e das estradas de ferro e o forte
acúmulo de capitais proveniente da cafeicultura.
Os reflexos danosos da revolução industrial inglesa, acima descrita, também foram
vivenciados no Brasil em virtude da grande massa de trabalhadores disponíveis, oriunda das
lavouras, incluindo-se, nessa massa, mulheres e crianças.
A agitação social atingiu patamares elevados por volta de 1917 e 1920 em decorrência
do agravamento das condições salariais, reflexos da crise econômica mundial provocada pela
eclosão da primeira grande guerra mundial.
Ainda sob os reflexos econômicos e sociais provocados pela primeira grande guerra
mundial, a Revolução de 1930 provocou a quebra do paradigma liberal, com o advento das
práticas intervencionistas estatais.
A Constituição de Weimar, como explanado neste trabalho, influenciou a
Constituição de 1934 na seara trabalhista, positivando o pluralismo sindical. Porém, a Carta
de 1937, inspirada, como vista, na Constituição Polonesa e na Carta di Lavoro italiana,
para alguns, adotou o modelo corporativista e influenciou a legislação trabalhista pátria até os
dias de hoje, como, por exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho, datada de de maio
de 1943.
139
Op. Cit. p. 73.
83
Os princípios fundamentais positivados nos textos constitucionais acima, acabaram
por influenciar a confecção da Constituição Federal de 1988 que agrupa segundo José Afonso
Silva
140
, direitos fundamentais do homem como individuo (Art. 5º); direitos fundamentais do
homem membro de uma coletividade (Art. 5º); direitos fundamentais do homem social (Art.
e Art.193); direitos fundamentais do homem nacional e direitos fundamentais do homem
cidadão (Art. 14 ao Art. 17).
A realidade normativa constitucional atual, que é o objeto do presente estudo, registra
a valorização do trabalho humano como fundamento da República (Art. IV); como direito
do homem como indivíduo (Art. XIII); como direito e garantia individual social (Art. 7º) e
coletivo social (Art. e Art. 9º); como fundamento da ordem econômica (Art. 170) e como
base da ordem social (Art. 193). Ou seja, a valorização do trabalho humano encontra-se
disciplinada em todos os grupos de direitos fundamentais do homem existentes na
Constituição Federal.
Nas palavras de José Afonso da Silva trata-se de fundamento da República e da ordem
econômica por tratar-se de matéria-prima dos direitos sociais, por constituírem a função de
criar riquezas, de promover a sociedade de bens e serviços e, enquanto atividade social,
fornecer à pessoa humana bases de sua autonomia e condições de vida digna, materializados
através da livre escolha do trabalho pelo trabalhador
141
.
O trabalho sem as condições mínimas que promova a independência e a dignidade do
trabalhador como homem, não possui valor superior àquele concedido pelos antigos que o
considerava algo inferior ao ócio, à vida contemplativa e à atividade militar, ou seja, algo
degradante.
Por tais razões que a proteção ao trabalho humano não é fundamento da República
(Art. 1º), mas também é direito individual e coletivo social, consagrado na positivação do
Artigo da Constituição Federal de 1988, como forma de proteção da dignidade da pessoa
humana. É, também, princípio impositivo, vinculando os fins da atividade econômica do país
(Art. 170). Logo, segundo as palavras de Eros Roberto Grau, “o exercício de qualquer parcela
da atividade econômica de modo não adequado àquela promoção expressará violação do
princípio duplamente contemplado na Constituição
142
”.
140
SILVA, José Afonso. Curso de Direito constitucional positivo. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1991. p.
163.
141
Op. Cit. p. 321.
142
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 222.
84
A proteção ao trabalho como garantia individual e coletiva é inicialmente contemplada
nos incisos XIII e XVII do referido Artigo 170 que garantem o livre exercício do trabalho,
atendidas as qualificações profissionais, e a liberdade de associações o que era vedado,
segundo Huberman, na Inglaterra da primeira Revolução Industrial, como forma de barreira à
organização dos trabalhadores e consequentemente à melhoria da qualidade do trabalho
humano
143
.
. Para o presente estudo é importante esclarecer que o Artigo 7º, com o advento da
Emenda Constitucional n. 28 de 25 de maio de 2000 é de vital importância, pois assegura aos
trabalhadores rurais os mesmos direitos constitucionais assegurados aos trabalhadores
urbanos.
Os direitos sociais trabalhistas individuais e coletivos assegurados na Constituição de
1998 a todos os trabalhadores urbanos e rurais podem ser encontrados nos Artigos e da
Constituição Federal e, por meio deles é fácil a constatação que o legislador constituinte
positivou direitos individuais sociais do trabalho garantidores da impossibilidade de regressão
nas relações trabalhistas àquelas condições descritas por Huberman quando da primeira
revolução industrial
144
.
Dos 34 (trinta e quatro) incisos que seguem o Artigo 7º da Constituição Federal
verifica-se a existência de 08 (oito) incisos direcionados à proteção da remuneração do
trabalhador (IV, V, VI, VII, IX, X, XVI, XXIII) o que caracteriza a preocupação contra o
trabalho escravo, sub-remunerado e indigno. Nas palavras de José Afonso da Silva, o sistema
de salário constitui fundamental exigência para o estabelecimento de condições dignas de
trabalho
145
.
É evidente, também, preocupação do legislador constituinte em face do excesso de
jornada de trabalho, uma vez que 04 (quatro) incisos disciplinam o tema evitando-se abusos
contra o trabalhador e o exercício de atividades em condições degradantes e desumanas com
jornadas excessivas.
Por sua vez cabe destacar também a preocupação do constituinte para com as
condições de segurança dos trabalhadores (XXII, XXIII e XVIII) como forma de garantia da
143
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Guanabara,
1998. p. 191.
144
Op. Cit. p. 191.
145
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 191.
85
vida, saúde e condições dignas de trabalho que se constituem como objetivo dos direitos dos
trabalhadores.
O trabalho humano também é, sem dúvida alguma, fator de produção e como tal
encontra-se inserido na ordem econômica constitucional, por meio da positivação do Artigo
170 que estabelece o trabalho humano como um de seus fundamentos.
São várias as razões que levaram o poder constituinte a fundamentar a ordem
econômica no primado do trabalho humano, dentre elas, segundo Lafayete Josué Petter, a
proteção ao subemprego, a proteção ao desemprego estrutural, à erradicação do trabalho
informal e do trabalho degradante
146
.
Ou seja, a ordem econômica não permite que a produtividade da República Federativa
do Brasil se sobreponha à valorização do trabalho humano, como forma de se alcançar os
objetivos expressos no Artigo 3º da Lei Maior.
Segundo Lafayete Josué Petter, a opção constitucional pela valorização do trabalho
humano traz conseqüências como o descarte de interpretações de disposições constitucionais
que menoscabem as formas de ganho com trabalho, isto é, que valorizem o não trabalho; o
descarte de interpretações contundentes a considerar as verbas pecuniárias decorrentes do
esforço físico e/ou intelectual do trabalhador como caridade que se faz a quem, quando e
como quer; e o descarte de quaisquer exegeses que fomentem o agravamento das
desigualdades no seio da sociedade brasileira
147
.
Seguindo a diretriz protetora dos direitos sociais, o poder constituinte introduziu no
corpo do texto constitucional poderoso instrumento promotor da dignidade do trabalho
humano no campo, ou seja, instrumento capaz de efetivar, nas relações trabalhistas rurais, o
primado da dignidade da pessoa humana.
Apesar de a doutrina nacional trazer, quase que em sua totalidade, como tais fontes
constitucionais promotoras do trabalho humano o sistema de seguridade social (Art. 194 ao
Art. 204) e a busca do pleno emprego (Art. 170 VIII) e conjunto de normas protetoras do
emprego (Art. 7º), não menção ao Artigo 186 III que, se efetivamente aplicado pelos
operadores do direito transformar-se-á em poderosa arma efetivadora da dignidade do
trabalho humano e do Artigo 1º e Artigo 3º da Constituição Federal.
146
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica: significado e o alcance do art. 170
da Constituição Federal. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2005. p. 157.
147
Op. Cit. p. 157.
86
Sem prejuízo do princípio da livre iniciativa, da propriedade privada, da defesa ao
meio ambiente entre outros, a atividade econômica agrária deverá se desenvolver de forma a
respeitar as normas protetoras das relações do trabalho rural como forma de promover e
valorizar o trabalho humano garantido constitucionalmente nos Artigos 1º, 3º, 5º, XIII e XVII,
6º, 7º, VIII e IX, 170 VIII, 193.
Caso não haja respeito às obrigações trabalhistas rurais, de forma a ameaçar a
dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho humano e o próprio trabalho, estará
infringindo não as leis reguladoras do trabalho agrário (Lei n. 5.889/73), mas todo o corpo
constitucional, conforme preconiza o inciso III do Artigo 186.
Com relação à observância das disposições que regulam as relações de
trabalho, a Lei n. 8.629/93 fixa que devem ser respeitadas as leis trabalhistas,
os contratos coletivos de trabalho e os contratos de parceria e arrendamento
rural.
148
.
Acerca da atividade agrária, o legislador constituinte, como pode ser percebido, não se
preocupou somente com o solo, os recursos naturais, a segurança alimentar; preocupou-se,
também, com o trabalhador agrário e com o trabalho agrário, o que de fato acabou por
determinar a confecção do inciso III do Artigo 186 que estabelece a observância das
disposições reguladoras das relações de trabalho.
A Constituição Federal em seu Artigo 186, inciso III determina que haja observância
das disposições que regulam as relações de trabalho, isto é, pertinentes às legislações
trabalhistas, previdenciária e tributária, para que ocorra o atendimento do comando
constitucional, do vetor da função social da propriedade imobiliária agrária, garantidor da
dignidade do trabalho humano agrário. Sem o respeito à dignidade do trabalho humano e ao
próprio trabalho não se justifica, nos termos da Constituição Federal de 1988, a garantia da
propriedade rural privada.
Ou seja, não propriedade que cumpra sua função social se não respeita os ditames
que orientam as relações de trabalho e que garantem a dignidade do trabalho humano.
Portanto, neste caso, aludida propriedade é passível de desapropriação para fins da reforma
agrária (Art. 184).
148
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São Paulo: LTr,
2000. p. 69.
87
Trata-se de instrumento de proteção dos direitos humanos que dão ensejo na busca do
aprimoramento da ordem jurídica, passando o direito a exercer papel de transformador da
sociedade.
O inciso III do Artigo 186 da Constituição Federal de 1988 acaba por conjugar de
forma homogênea dois dos mais importantes institutos sociais: o trabalho e a produção
agrária. Não como existir produção agrária que atenda aos requisitos da função social se
ofensiva às relações do trabalho no campo; como também não propriedade cumpridora da
função social que atenda as determinações laborais rurais sem, contudo, produzir riquezas.
Ao dono da terra como trabalhador rural incumbe, pois, todas as obrigações
que se situam na área trabalhista, desde, é obvio, pagamento de salários,
horas extras, férias, bem como aquelas decorrentes das mais recentes
conquistas feitas pelos trabalhadores e que agora se estendem ao trabalhador
rural
149
.
Como bem fixou o Professor Lourival José Oliveira, o direito do trabalho não pode ser
estudado sem levar em consideração os variados modos de produção que trouxeram uma
gama de variações na organização produtiva, tendo como conseqüência as diversas formas
com que o homem se relacionou com seu meio. Nestes termos, deverá o proprietário agrário,
considerando o meio de sua produção, devidamente adaptada à sua realidade regional, sem
perder o norte da dignidade do trabalho humano, cumprir com as normas protetoras das
relações empregatícias do campo
150
.
Apesar de incidir diretamente na política agrária, o inciso III do Artigo 186 é poderoso
instrumento protetor do trabalho e do próprio trabalhador contra as exigências decorrentes da
globalização, de interligação das atividades produtivas na esfera mundial, na busca incessante
do lucro e produtividade econômica.
Segundo Dinaura Godinho Pimentel Gomes, a Constituição Federal brasileira adota o
sistema econômico, fundado na iniciativa privada, e não só reconhece o direito de propriedade
como inscreve a propriedade e a função social da propriedade privada como princípios da
ordem econômica.
151
Provém, daí a assertiva de toda e qualquer propriedade privada,
149
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 291.
150
OLIVEIRA, Lourival José. Do trabalho terceirizado: possibilidade de cumprimento da sua função social na
nova dinâmica empresarial. ARGUMENTUM Revista de Direito. Universidade de Marília. Vol. 04. Marília:
UNIMAR, 2004. p. 102.
151
GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Op. Cit. p. 123.
88
incluindo-se a propriedade agrária como meio de produção, se legitimar se cumprir uma
função dirigida à justiça social.
Por seu turno, a justiça social é alcançada pela propriedade agrária privada quando
atende aos requisitos expressos nos incisos do Artigo 186 da Constituição Federal, dentre eles
as disposições que regulam as relações de trabalho.
Outro importante aspecto a ser examinado diz respeito a quais disposições das relações
do trabalho que, se não observadas, ensejarão a aplicação das determinações do Artigo 184 da
Constituição Federal.
Apesar de alguns autores, como por exemplo, Luciano de Souza Godoy
152
, e José
Afonso Silva
153
, considerarem que qualquer infração às disposições das relações do trabalho
poderá ensejar a aplicação da desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária,
pede-se vênia para discordar.
Quando se quiser provar o não atendimento do Artigo 186, inciso III, há que
se verificar na Justiça do Trabalho o volume de demandas, se foram
procedentes ou não, e ainda testemunhos dos que trabalham em determinada
propriedade
154
.
No caso em questão, a infração às disposições que regulamentam as relações de
trabalho, por ausência de critérios objetivos previamente estabelecidos por lei, deverá ser
aquela a ameaçar a consecução da dignidade da pessoa humana, dos objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil e do próprio emprego em si.
As simples infrações passíveis de multas aplicadas pelo Ministério do Trabalho e
Emprego por meio de suas delegacias e, de restituição de valores pecuniários determinados
por sentenças judiciais transitadas em julgado não possuem força suficiente para relegar em
segundo plano o princípio fundamental da propriedade privada.
Apenas as infrações às disposições que regulam as relações do trabalho capazes de
rebaixar o homem à mínima condição de dignidade humana é que autorizarão a aplicação do
enunciado 184 do diploma Constitucional, pois, haverá infração não somente às disposições
trabalhistas, mas a todo o corpo normativo Constitucional.
152
GODOY, Luciano de Souza. Direito Agrário Constitucional: o regime de propriedade. São Paulo: Atlas,
1998.
153
SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007.
154
GODOY, Luciano de Souza. Op. Cit. p. 73.
89
A aplicação do inciso III do Artigo 186 não pode ser exercida de forma fria, ao da
letra, pois é subjetiva a realidade fática do seu momento, devendo, como anteriormente
explicitado, o aplicador do direito efetuar o balance entre os princípios em conflito: direito
individual e coletivo social da dignidade do trabalho humano versus direito individual da
propriedade privada, para então concluir pela aplicação ou não do Artigo 184 da Constituição
Federal. Oportuno trazer as lições de Eros Grau
155
:
[...] cumpre também observar que não se manifesta jamais antinomia jurídica
entre os princípios e regras jurídicas. Estas viu-se operam a concreção
daqueles. Assim, quando em confronto dois princípios, um prevalece sobre o
outro, as regras que dão concreção ao que foi desprezado são afastadas; não
se a sua aplicação a determinada hipótese, ainda que permaneçam
integradas, validamente no ordenamento jurídico.
Assim, os princípios constitucionais passam a caracterizar o próprio espírito das
constituições, e como farol em noites de tormenta, devem iluminar e guiar a leitura de todas
as questões jurídicas que devem passar pelo necessário processo da filtragem constitucional
axiológica.
Écio Oto Ramos Duarte explica que o modelo do neoconstitucionalismo traz uma
visão universal do direito constitucional, sustentáculo de todo o sistema jurídico:
Esse modelo jurídico apresenta uma visão universalista do direito
constitucional, a qual representa uma dimensão axiológica do jurídico, em
que os valores não são simplesmente expressões de um ponto de vista, mas a
expressão de um ideal moral universal. Nesse modelo, a Constituição o é
somente norma de autorização e limite do direito infraconstitucional; esta
apresenta um conteúdo que sustenta todo o sistema jurídico
156
.
Partindo-se dessa visão, do dever do intérprete e aplicador da lei em sopesar princípios
para definir qual o bem maior tutelado pela Constituição Federal, não se pode aceitar a
restrição constitucional ou infraconstitucional quando se busca garantir ou restabelecer o
direito fundamental da dignidade do trabalho humano violado ou na eminência de ser violado.
Acerca do assunto, oportuno trazer a baila o entendimento de Alexandre de Moraes:
155
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 91.
156
DUARTE, Écio Oto Ramos. e POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces
da teoria do Direito em tempos de interpretação moral da Constituição. Landy Editora. São Paulo: 2006. p. 81.
90
O conflito entre direitos e bens constitucionalmente protegidos resulta do
fato de a Constituição proteger certos bens jurídicos (saúde pública,
segurança, liberdade de imprensa, integridade territorial, defesa nacional,
família, idosos, índios, etc.), que podem vir a envolver-se numa relação de
conflito ou colisão. Para solucionar-se esse conflito, compatibilizando-se as
normas constitucionais, a fim de que todas tenham aplicabilidade, a doutrina
aponta diversas regras de hermenêutica constitucional em auxílio ao
interprete
157
.
Assim, o dano ao trabalho humano provocado pela atividade agrária deverá ser de
tamanha proporção que comprometa todo o ordenamento constitucional a ponto de interferir
na concretização dos objetivos fundamentais da República, bem como a dignidade humana
representada no direito à saúde, à vida e à segurança.
Do contrário, tratando-se de infração as disposições legais do trabalho com pequeno
potencial ofensivo, ou seja, infrações ao ordenamento trabalhista que não apresentem
comprometimento à dignidade do homem, à saúde e à vida do trabalhador, deverão apenas ser
aplicadas, por meio das Delegacias Regionais do Trabalho e do Ministério Público Federal do
Trabalho, às penalidades previstas no mesmo ordenamento especial.
Enfim, nos casos de pequenas infrações trabalhistas que não exponham em risco o
trabalhador, o trabalho, a dignidade humana, a vida e a saúde, não será viável a aplicação do
Artigo 184 da Constituição Federal, prevalecendo, neste caso, o direito individual da
propriedade rural.
3.4.4 Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (Art.
186 IV da CF)
Ao percorrer a doutrina pátria acerca da melhor definição do inciso IV do Artigo 186,
verificou-se a ausência de conceituação precisa do tema. A dificuldade decorre, inclusive, da
redação dada ao inciso IV que determina a exploração da terra de forma a favorecer o bem-
estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Por seu conteúdo vago, de caráter exclusivamente axiológico, o inciso aqui debatido
foi alvo de críticas de inúmeros doutrinadores, dentre eles, Celso Ribeiro de Bastos.
157
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Editora Atlas. 15. Edição. São Paulo: 2004. p. 38.
91
O inciso padece, sem duvida, de falta redacional, uma vez que jamais se
poderia supor o bem-estar dos proprietários. Esta é tarefa que deflui
naturalmente da condição de dono, presumidamente mais vantajosa que a do
empregado. O que se pode dizer é que o preceito necessita de um pequeno
torneamento redacional para que possa corresponder ao seu verdadeiro
sentido: exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários sem prejuízo
de bem-estar dos trabalhadores. Se entendido desta forma, dele pelo menos
poderá extrair-se um espírito de conciliação e de harmonia que seria aquele a
presidir as relações sociais no campo
158
.
Diferentemente de Celso Ribeiro de Bastos, José Cretella Junior possui entendimento
de que a norma detém clareza meridiana e revela grande alcance social, pois determina a
exploração agrária de forma a favorecer o bem-estar dos proprietários e dos empregados
159
.
Com a tipificação do inciso IV do Artigo 186 o legislador constituinte buscou garantir
a fixação do homem ao campo, evitando-se o êxodo rural ocorrido na década de 1970 que
causou inúmeros problemas sociais nas cidades e, também, no próprio campo.
O bem-estar social de proprietários e trabalhadores rurais se torna vital para que o
campo realize as transformações impostas pelos objetivos fundamentais da República e para a
efetivação da dignidade da pessoa humana.
A falta de condições de bem-estar e de progresso social e econômico faz com que o
rurícola abandone a terra, emigrando para as zonas urbanas, em busca de melhores condições
de vida, ou seja, um produtor ineficaz. Sem o bem-estar de proprietários e trabalhadores não
produção e, conseqüentemente, não cumprimento dos requisitos econômicos da função
social.
O inciso IV do Artigo 186 da Constituição Federal, diferencia-se dos demais incisos já
analisados, pois diversamente daqueles, além de estabelecer responsabilidade ao proprietário
agrário, também estabelece responsabilidade ao Estado, tornando-o agente promotor da
função social da propriedade rural, uma vez que a ele (Estado) cabe a tarefa de propiciar a
todos os que exerçam a atividade agrária as condições mínimas de bem-estar e de progresso
social por meio da implantação de políticas agrárias públicas como, por exemplo, seguro de
safra, fomentos, assistências técnica e tecnológica, controle fito e zoossanitário, entre outros.
158
BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva
1990. p. 293.
159
CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1993. v. 8. p. 4264.
92
É indispensável, pois, que o Estado propicie a todos os que exercem a
atividade agrária condições de bem-estar e de progresso social e econômico,
para que permaneçam na terra e, com isso, haja produção agrária e seu
aumento.
Mas, é preciso, também, que os proprietários de imóveis rurais, que sejam
produtores, isto é, que explorem os seus imóveis, procurem dar bem-estar e
progresso social e econômico a si, a seus familiares e aos empregados e seus
familiares
160
.
Além do comando imperativo destinado ao Estado, conforme verificado acima, o
inciso sob estudo também determina ao proprietário agrário o dever de favorecer o bem-estar
dos trabalhadores rurais, entendidos como empregados e parceiros agrários. Ou seja, a
atividade rural desenvolvida pelo proprietário agrário deverá ser segura e promotora da
pacificação social.
O parágrafo do Artigo da Lei n. 8.629 de 25 de fevereiro de 1993 define a
exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais como a que
objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas
de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
O dilema que se apresenta é estabelecer como o proprietário agrário, de forma
objetiva, irá desenvolver sua atividade agrária de forma segura e como pacificadora social.
Antes de promover o bem-estar dos empregados, deverá o empregador ser assistido
pelo Estado de forma que seja possível, por meio das políticas públicas agrárias, desenvolver
sua atividade de forma segura, do ponto de vista econômico e técnico, conforme determina a
primeira parte do inciso IV do Artigo 186.
No que tange a sua responsabilidade, o empregador agrário deverá, para desenvolver
sua atividade de forma segura, observar os ditames estabelecidos na NR - 31 (Norma
Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura,
Exploração Florestal e Aqüicultura), aprovada através da Portaria MTE n. 86, de 03 de março
de 2005.
31.1.1 Esta Norma Regulamentadora tem por objetivo estabelecer os
preceitos a serem observados na organização e no ambiente de trabalho, de
forma a tornar compatível o planejamento e o desenvolvimento das
160
LIMA, Rafael Augusto de Mendonça. Direito agrário. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 57.
93
atividades da agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e
aqüicultura com a segurança e saúde e meio ambiente do trabalho
161
.
Por sua vez, o desenvolvimento das atividades de forma a evitar conflitos sociais será
exercido com o cumprimento das Convenções Coletivas de Trabalho, especialmente quanto à
observância do piso da categoria como forma de distribuição de renda e satisfação pessoal do
trabalhador, garantindo-se os direitos humanos básicos como digna moradia, saúde,
alimentação e lazer.
Entretanto, da mesma forma como foi observado, quanto ao requisito ambiental da
função social da propriedade (inciso II do Art. 186), no caso em análise, não serão quaisquer
infrações à NR 31 ou às normas convencionais do trabalho que resultarão na aplicação do
Artigo 184 da Constituição Federal, decorrendo, nos termos da norma infraconstitucional, na
desapropriação do imóvel por interesse social para fins da reforma agrária.
A própria NR 31 e, em geral todas as convenções coletivas de trabalho possuem em
seu corpo instrumentos e mecanismos de penalização àqueles que não respeitem ou não
cumpram com as obrigações nelas afixadas. Assim, nos casos de infrações leves que não
comprometam o princípio da dignidade da pessoa humana e não inviabilizem a materialização
dos objetivos fundamentais da república.
Como dito anteriormente, deve o aplicador do direito, por ausência de critérios
objetivos previamente estabelecidos por lei, conforme ocorre no caso do inciso I do Artigo
186, valorar e dimensionar os danos sociais decorrentes da atividade produtiva agrária
sopesando-o com o lídimo direito individual de propriedade para definir se a propriedade
agrária encontra-se passível de desapropriação por interesse social para fins da reforma
agrária.
A aplicação do inciso IV do Artigo 186 torna-se subjetiva a realidade fática do seu
momento, devendo o aplicador do direito efetuar a interpretação do caso in concreto através
da aplicação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, unidade da constituição
federal e razoabilidade para então concluir pela aplicação ou não do Artigo 184 da
Constituição Federal.
O dano social aos trabalhadores provocado pela atividade agrária deverá ser de
tamanha proporção a ponto que comprometa a concretização dos objetivos fundamentais da
161
BRASIL. Portaria MTE n. 86, de 03 de março de 2005. Disponível em: <http\\:www.mtb.gov.br>. Acesso
em: 20 fev. 2008.
94
República, bem como, a dignidade humana representada no direito à saúde e à vida o que,
relegará para segundo plano o direito individual à propriedade.
Do contrário, tratando-se de mera infração à NR 31 e à convenção coletiva de
trabalho, que não apresente comprometimento aos objetivos fundamentais da República, não
será viável a aplicação do Artigo 184 da Constituição Federal, prevalecendo, neste caso, o
direito individual da propriedade rural sem prejuízo de aplicação das sanções administrativas
e judiciais cíveis e criminais.
95
4 A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA COMO REQUISITO CONDICIONANTE DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL
4.1 O descumprimento da legislação trabalhista rural e seus efeitos à propriedade rural
No que tange o cerne do presente trabalho quanto a um dos requisitos da função social
(as disposições que regulam as relações de trabalho), conforme exposto no capítulo anterior, o
descumprimento da legislação trabalhista por parte do empregador proprietário de imóvel
rural, capaz de afetar diretamente a dignidade humana do trabalhador e os valores sociais do
trabalho, dará ensejo à desapropriação do imóvel rural por interesse social para fins da
reforma agrária, nos termos dos Artigos 1º, 3º, XXIII, 7º, 170 III, 184, 185 e 186, todos da
Constituição Federal.
Isto porque a República Federativa do Brasil possui como fundamentos a dignidade da
pessoa humana e os valores sociais do trabalho, constituindo-se em valor supremo, fundante
não da República, mas também da Federação, do País, da Democracia e do Direito. A
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho são valores supremos, base de
toda a sociedade nacional.
Não como se aceitar o exercício de propriedade (uso, gozo, disposição e
reivindicação) contrário aos valores fundantes da sociedade brasileira; exercício que prejudica
e impede a materialização dos objetivos da República (Art. 3º). O exercício do direito de
propriedade contrário às disposições que regulem as relações de trabalho, que macule a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho é danoso não apenas aos próprios
empregados da propriedade rural, mas a toda a sociedade brasileira em geral. É exercício
contrário à própria humanidade.
A sociedade brasileira, por meio do poder constituinte, fixou nas cláusulas superiores à
relativização da propriedade privada, condicionando-a ao cumprimento da função social. A
sociedade não possui interesse em preservar a propriedade individual rural (Art. XXII) que
não atenda aos requisitos da função social. (Art. XXIII, Art.170 V, Art.184 e Art.186);
pois, é exercício de propriedade abusivo, contrário aos valores fundantes da República e,
como tal, nos termos do Artigo 184 da Constituição Federal, deve ser relativizada,
desapropriada por interesse social para fins da reforma agrária.
96
Constitui regra no direito pátrio o fato que a propriedade individual pode ser
extinta por motivo de interesse público, isto é, por necessidade ou utilidade
pública, ou interesse social, o Poder Público impõe a um proprietário a perda
de um bem, mediante indenização
162
.
A desapropriação é terminologia jurídica derivada do verbo DESAPROPRIAR que
significa tirar a propriedade de alguém sobre certa coisa. Significa ato do poder público sob o
vínculo da lei tendente a tirar compulsoriamente a propriedade rural descumpridora do Artigo
186 da Constituição Federal do domínio privado ou particular para incorporá-la ao domínio
público para fins da reforma agrária
163
.
É forma originária de aquisição da propriedade por parte do Poder Público (União)
que nasce de uma relação direta entre o sujeito e a coisa desprezando-se o título anterior.
Entendemos tratar-se de modo originário de aquisição da propriedade,
porque é desprezado o título anterior. O título gerado no procedimento
administrativo ou no processo expropriatório é registrável por força própria.
É dispensável a existência de registro anterior
164
.
Conforme estabelecido no Artigo 17, alínea “a” da Lei Agrária o instituto jurídico da
desapropriação agrária por interesse social para fins da reforma agrária é medida responsável
pela distribuição ou redistribuição de terras que, de um lado, permitirá, caso a caso, o acesso à
propriedade rural aos desprovidos desta e, de outro lado, evitará o abuso do direito de
propriedade, garantido, desta feita, a materialização dos objetivos fundamentais da República.
O conceito legal da desapropriação de imóvel rural, por interesse social para fins da
reforma agrária conforme acima posto é raso e não abrange todas as possibilidades da referida
desapropriação, conforme preceitua a Constituição Federal. Pois a desapropriação por
interesse social para fins da reforma agrária, nos termos dos Artigos 184 e 186 da
Constituição Federal desempenha importante papel também como promotor do
desenvolvimento agrário sustentado (Art. 186 I e II) e promotor do trabalho humano capaz de
desempenhar o desenvolvimento social regional (Art. 186 I, III e IV).
162
ARAÚJO JUNIOR, Vicente Gonçalves de. Direito Agrário: doutrina, jurisprudência e modelos. Belo
Horizonte: Inédita, 2002. p. 103.
163
BORGES, Antônio Moura. Curso completo de Direito agrário. Leme: Edijur, 2005. p. 495.
164
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Vol.v. São Paulo: Atlas, 2004. p. 265.
97
Nas palavras de Hely Lopes Meirelles a desapropriação é a forma conciliadora entre a
garantia da propriedade individual e a função social dessa mesma propriedade que exige usos
compatíveis com o bem-estar da coletividade
165
.
O não cumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho capaz de
afetar a dignidade do trabalho humano e da pessoa humana, bem como os valores sociais do
trabalho atrairá para a propriedade rural infratora, em caso confirmatório mediante vistoria e
avaliação do INCRA, a edição de Decreto desapropriatório sancionado pelo Presidente da
República.
A situação acima descrita ocorreu pela primeira e única vez no ano de 2004, quando a
Fazenda Cabaceiras, situada no Estado do Pará, de propriedade da empresa Jorge Mutran
Exportação e Importação Ltda., foi desapropriada por infração às disposições que regulam as
relações de trabalho, conforme será explanado no item posterior.
166
O Decreto desapropriatório resultará em efeitos imediatos aos dois sujeitos da relação
jurídica: desapropriante e desapropriado. O desapropriante, União, o Decreto desapropriatório
trará a obrigação de pagar indenização de forma prévia, justa e em dinheiro, bem como dar
destino ao bem desapropriado. Por sua vez, o Decreto desapropriatório traz ao desapropriado
(proprietário) a perda do domínio exercido sobre o imóvel rural e o direito de propriedade,
restando-lhe o direito à indenização.
Os efeitos da desapropriação atingem o expropriante e o expropriado. Para o
expropriante, a desapropriação cria a obrigação de pagar indenização, de
forma justa, prévia e em dinheiro, salvo as exceções constitucionalmente
consagradas, e ainda de dar ao bem expropriado a destinação prevista no
decreto declaratório, sob pena de sujeitar-se ao pagamento de perdas e danos
ao proprietário expropriado. Mas em contrapartida, tem o direito de
incorporar ao patrimônio público o bem expropriado.
Para o expropriado, a desapropriação suprime o domínio que exercia sobre o
bem, retirando-lhe, de forma coativa, o direito de propriedade. Resta ao
expropriado o direito à indenização [...]
167
Uma vez sancionado e publicado o Decreto desapropriatório, e não havendo
questionamentos judiciais, poderá ser liquidado o processo desapropriatório na fase
165
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 600.
166
ALMEIDA, Rogério. EcoDebate Cidadania e Meio Ambiente. Banco de Notícias. Disponível em <http:
//www.ecodebate.com.br>. Acessado em 19 fev. 2008.
167
ARIMATÉIA, José Rodrigues. O direito de propriedade: limitações e restrições públicas. São Paulo: Lemos
& Cruz, 2003. p. 131.
98
administrativa, ou extrajudicial. Pois o acordo extrajudicial pressupõe que seja desnecessária a
intervenção do Judiciário.
Porém, se houver resistência por parte do desapropriado, com questionamentos desde
a fase declaratória, a União para emitir-se na posse deverá efetuar a consignação ou depósito
judicial das quantias referentes à avaliação realizada preliminarmente, sendo em dinheiro para
as benfeitorias e em TDA´s (Títulos da Dívida Agrária) para a terra nua, tudo em conta do
Juízo.
Segundo a melhor doutrina, o momento exato que se consumará a desapropriação,
tendo em vista o texto do Artigo XXIV da Constituição Federal, será com o pagamento da
justa indenização
168
.
Esta fase pode ser extrajudicial ou judicial. Extrajudicial, quando o poder
expropriante e o expropriado acordam com relação ao preço [...] A
desapropriação judicial tem lugar quando o expropriante ingressa em juízo
com a propositura da ação expropriatória
169
.
Após a emissão de posse, o desapropriado poderá efetuar o levantamento de 80%
(oitenta por cento) do valor depositado, sem prejuízo do direito de contestar ou discordar do
valor oferecido em razão da avaliação realizada pelo INCRA.
Nota-se que a discussão no processo judicial de desapropriação não se discute mais o
direito ou legalidade da desapropriação, mas apenas e tão somente os valores a serem pagos
pela efetiva desapropriação.
Não cabe mais, nesta fase, ao proprietário de imóvel rural discutir os requisitos e
condicionantes da função social da propriedade rural que acabaram por resultar na edição e
sancionamento do Decreto de desapropriação e conseqüente na declaração de desapropriação
por interesse social para fins da reforma agrária.
A partir deste momento, efetuado o pagamento do justo preço, todos os bens
desapropriados, assim declarados pelo Decreto de desapropriação, passam a integrar o
patrimônio público, abrindo-se o necessário registro imobiliário, incorporando-se ao
168
MELLO, Censo Antonio Bandeira. Curso de Direito administrativo. São Paulo: Melhoramentos, 2004. p.
781.
169
MELLO, Censo Antonio Bandeira. Op. Cit. p. 770.
99
patrimônio da União Federal, ficando à disposição do INCRA para distribuição democrática,
com meta na reforma agrária.
Ao proprietário que se sentir lesado e discordar dos métodos e resultados da vistoria de
desapropriação realizada pelo INCRA, bem como pelo conteúdo do Decreto de
desapropriação restará, sem assim entender e o quiser, acionar o poder judiciário o que lhe é
garantido constitucionalmente.
4.2 O posicionamento dos tribunais brasileiros quanto aos efeitos fundiários decorrentes
do descumprimento da legislação trabalhista
A bacia do Araguaia-Tocantins sempre se notabilizou pela cultura do extrativismo,
primeiro com a borracha na década de 20; posteriormente, com o extrativismo das castanhas
que dominou a região a partir da década de 40 do século passado. Nesta época, aportaram
nesta região alguns membros da família Mutran, descendentes de sírio-libaneses que, em
decorrência da coleta e comércio da castanha, chegaram ao apogeu na década de 1960,
quando se tornaram detentores de aproximadamente 80% (oitenta por cento) dos castanhais da
região
170
.
Durante anos, alguns membros da família Mutran foram acusados da prática de abuso
de violência na região sendo certo que três propriedades da família aparecem nas listas do
trabalho escravo divulgadas nos anos de 2003 e 2004 pelo Ministério Público do Trabalho.
São muitas as acusações de crimes que pesam nas costas do clã dos Mutran.
Assassinatos, corrupção na administração da prefeitura de Marabá,
manutenção de cemitérios clandestinos em “suas” fazendas, submissão de
trabalhadores rurais à condições de trabalho escravo. Nas duas listas já
divulgadas pelo Ministério do Trabalho (MPT), constam três propriedades
da família. As “listas sujas” do trabalho escravo foram divulgadas nos anos
de 2003 e 2004. As propriedades são: Fazenda Cabaceiras, ocupada pelo
MST desde 26 de março de 1999, a Fazenda Peruano, também ocupada pelo
MST em abril de 2004, e a Mutamba, onde o MST ocupou, mas não
conseguiu se manter.
171
170
ALMEIDA, Rogério. EcoDebate Cidadania e Meio Ambiente. Banco de Notícias. Disponível em <http:
//www.ecodebate.com.br>. Acessado em 19 fev. 2008.
171
Op. Cit.
100
Em 30 de julho de 2004 a empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda.
detentora da propriedade rural Fazenda Cabaceiras, aceitou acordo proposto pelo Ministério
Público do Trabalho para pagamento de multa no valor de R$ 1.350.440,00 (um milhão
trezentos e cinqüenta mil quatrocentos e quarenta reais) por ter sido, reiteradamente, autuada
pelo Ministério Público do Trabalho por praticar relações de trabalho análogas à escravidão.
Trata-se de acordo homologado e transitado em julgado que definiu a maior indenização a ser
paga no Brasil por um caso de redução de pessoas a condições análogas a de escravo naquela
época
172
.
O proprietário da fazenda já foi flagrado três vezes, por fiscais do Ministério
do Trabalho, praticando trabalho escravo. Recentemente, o governo federal
publicou uma ‘lista suja’, de propriedades flagradas praticando crime de
trabalho escravo. A fazenda Cabaceiras está contida na lista. Devido a um
processo movido pela Procuradoria do Trabalho, o proprietário foi
condenado, pela Justiça do Trabalho a pagar R$ 1.350.000,00 (um milhão
trezentos e cinqüenta mil reais) de indenização ao Estado, por reincidir no
crime de trabalho escravo
173
.
Apenas para pontuar e enriquecer o trabalho se faz necessário, que por diversas
vezes se fez menção, definir o conceito de trabalho escravo que, as Convenções 29 (1930) e
105 da Organização Internacional do Trabalho (1957), bem como o Artigo 149 do digo
Penal, prontamente atualizado em dezembro de 2003, trazem com muita clareza:
Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto
174
.
E, ainda:
quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho; mantém vigilância ostensiva no
172
ALMEIDA, Rogério. EcoDebate Cidadania e Meio Ambiente. Banco de Notícias. Disponível em <http:
//www.ecodebate.com.br>. Acessado em 19 fev. 2008.
173
PEIXOTO, Luis. A reforma agrária no Brasil: relatório 2004. Campanha Global pela Reforma Agrária.
Honduras: FIAN, 2004. p. 22.
174
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO: Banco de dados. Disponível em:
<http://www.oitbrasil.org.br>. Acesso em 29 jan. 2008.
101
local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho
175
.
A situação encontrada na propriedade rural Fazenda Cabaceiras caracterizava
cristalina infração ao inciso III do Artigo 186 da Constituição Federal o que, conforme
visto anteriormente, autorizava a assinatura do Decreto desapropriatório como de fato
ocorreu.
Após cinco anos de luta, finalmente, o governo federal decretou a
desapropriação da Fazenda. É o primeiro caso de desapropriação de uma
propriedade pelo descumprimento da função social, como prevê o artigo 186
da Constituição Federal do Brasil. Uma reivindicação antiga dos
movimentos sociais
176
.
As condições impostas aos trabalhadores da Fazenda Cabaceiras, conforme relatadas,
eram atentatórias não só àqueles, mas também, a toda sociedade brasileira e ao Estado
brasileiro, pois afrontavam fundamento e objetivo da República Federativa do Brasil.
Diante dos fatos acima narrados, do uso constante de mão de obra em condições
análogas à escravidão, sem respeito à dignidade humana, em 18 de outubro de 2004 foi
assinado Decreto Presidencial de desapropriação da Fazenda Cabaceiras. Trata-se do primeiro
e único Decreto de desapropriação sancionado pelo Chefe do Poder Executivo decorrente da
não observância das disposições que regulam as relações de trabalho que se tem notícia no
país
177
.
O Decreto em questão foi o princípio de uma nova era no direito brasileiro, pois, pela
primeira vez desde a promulgação da Constituição vigente, passados 16 (dezesseis) anos, o
Estado brasileiro, por meio do poder executivo, reconheceu, interpretou e aplicou as
determinações contidas no Artigo 186 da Constituição Federal de forma sistemática em
conformidade com todo o corpo Constitucional, em benefício da sociedade brasileira e da
promoção da dignidade da pessoa humana.
Naquele momento, o Estado brasileiro reconheceu que a função social da propriedade
rural não é cumprida exclusivamente através dos índices econômicos (Artigo 186 I), mas sim,
175
BRASIL. Código Penal. Organizador Antônio Luiz de Toledo Pinto. São Paulo: Saraiva 2007. p. 563.
176
PEIXOTO, Luis. A reforma agrária no Brasil: relatório 2004. Campanha Global pela Reforma Agrária.
Honduras: FIAN, 2004. p. 22.
177
TEIXEIRA, Benedito. Fazenda com trabalho escravo é desapropriada no Pará. Disponível em: <http://
http://www.adital.org.br>. Acesso em: 19 fev. 2008.
102
de forma simultânea, contemplando e conjugando os requisitos econômicos, ambientais,
trabalhistas e sociais. Houve, a efetivação do Artigo 186 da Constituição Federal em sua
plenitude, por meio da interpretação conforme a atual doutrina e em benefício de todos.
Entretanto, o Decreto de desapropriação datado de 18 de outubro de 2004 não
produziu efeitos por muito tempo, uma vez que a empresa proprietária da Fazenda Cabaceiras,
denominada Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda., aos 16 de fevereiro de 2005,
impetrou Mandado de Segurança junto ao Supremo Tribunal Federal contra o ato do
Presidente da República.
O Mandado de Segurança foi distribuído sob o número 25.260, cabendo, naquela
época a relatória ao Ministro Sepúlveda Pertence que, apreciando o pedido liminar do Writ,
em razão das peculiaridades do caso, entendeu por bem deferi-la para o fim de suspender a
eficácia do Decreto de desapropriação de 18 de outubro de 2004 até decisão final.
DECISÃO: Ante as peculiaridades do caso, defiro a liminar para suspender a
eficácia do Decreto de 18 de outubro de 2004 (DOU 19/10/04) que declarou
de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural “Fazenda e
Castanhal Cabaceiras". Requisitem-se informações, após o que reexaminarei
a questão. Brasília, 22 de fevereiro de 2005 Ministro SEPÚLVEDA
PERTENCE - Relator
178·.
A decisão liminar deferida pelo Ministro Sepúlveda Pertence, atualmente aposentado e
substituído naquela relatória pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, acabou por
frustrar a ânsia daqueles que anos almejavam a materialização dos princípios e requisitos
consagrados no Artigo 186 da Constituição Federal.
Apesar de suspenso, o Decreto Presidencial abriu caminho para que novas ações sejam
adotadas no sentido de se impor sanções contra aqueles proprietários de imóveis rurais
descumpridores das normas e disposições que regulam as relações de trabalho capazes de
atentar contra a dignidade da pessoa humana.
De outro turno, apesar de inexistir no país qualquer decisão judicial com expressa
manifestação acerca do tema desapropriação com fundamento na inobservância das leis do
178
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Liminar em Mandado de Segurança n. 25.260. Impetrante Jorge Mutran
Exportação e Importação Ltda. Impetrado Presidente da República. Relator Ministro Menezes Direito. 28 de
fevereiro de 2005. Disponível em: <http\\www.stf.org.br>. Acesso em 19 de fevereiro de 2008.
103
trabalho o futuro próximo nos reserva o pronunciamento do Judiciário que se daatravés
de sua mais elevada Instância, o Supremo Tribunal Federal.
Caso a decisão final do Supremo Tribunal Federal acompanhe a atual doutrina e
confirme a Decreto Presidencial desapropriatório, datado de 18 de outubro de 2004,
reconhecendo como requisito essencial para o cumprimento da função social da propriedade
rural o respeito às disposições que regulam as relações de trabalho, conforme definido no
Artigo 186, III da Constituição Federal, será dado enorme passo na promoção da dignidade do
trabalho humano no campo.
Se reconhecida a possibilidade de desapropriação por interesse social para fins da
reforma agrária lastreada no descumprimento das disposições que regulamentam a relação de
trabalho, conforme acima, o Judiciário por meio da sua Corte mais elevada estará colocando
uma de cal na engavetada Proposta de Emenda Constitucional n. 438/2001 (PEC
438/2001) que apresentada pela primeira vez em 1995, prevê o confisco de terras onde for
comprovada a utilização de mão-de-obra escrava, destinando-as para a reforma agrária.
O reconhecimento do dever de cumprimento simultâneo dos incisos do Artigo 186 da
Constituição Federal evidenciará a desnecessidade de aprovação da PEC 438/2001, pois, o
Supremo Tribunal Federal estará reconhecendo, via de conseqüência, que a Constituição
Federal possui mecanismos para retirar o direito de propriedade daqueles que a exercem de
forma a infringir a dignidade do trabalho humano.
Os fatos que foram tratados no presente tópico são de extrema importância ao tema
objeto da presente dissertação, pois caracterizam marco inicial de uma nova Era na
desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária.
Até então jamais os tribunais brasileiros haviam sido instados a se manifestar acerca
do inciso III do Artigo 186 da Constituição Federal de forma específica, ou seja, jamais havia
ocorrido debate jurídico de direitos intersubjetivos acerca do descumprimento da função
social e suas conseqüências jurídico/administrativas decorrentes da não observância das
disposições legais que regulam as relações de trabalho.
Fixou-se a partir do Decreto de 18 de outubro de 2004 o entendimento da União,
sujeito ativo e titular do direito/dever de promover desapropriação por interesse social para
fins da reforma agrária, que o descumprimento das disposições que regulam as relações de
trabalho, se ofensivas à dignidade da pessoa humana nos termos já explanados, dará ensejo ao
104
Decreto desapropriatório sancionado pelo Chefe do Poder Executivo e, consequentemente
seus reflexos.
A expressa manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca dos fatos narrados, sem
dúvida alguma, trará à sociedade brasileira, novas perspectivas de distribuição de terras e de
controle na preservação dos direitos individuais e sociais dos trabalhadores rurais.
Haverá o fortalecimento dos instrumentos Constitucionais capazes de materializar os
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
4.3 A competência judicial de apreciação do descumprimento da função social
decorrente da omissão aos preceitos legais trabalhistas de acordo com a Emenda
Constitucional n. 45 de 8 de dezembro de 2004.
O descumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho materializa-se
no desrespeito às normas legais e contratuais coletivas que incidem sobre as relações jurídicas
trabalhistas. Ou seja, o descumprimento das obrigações impostas por lei, convenção ou acordo
coletivo de natureza trabalhista capaz de reduzir a dignidade humana do trabalhador.
Evidente que a condicionante da função social da propriedade rural possui natureza de
direito de trabalho; porém, a sanção prevista no Artigo 184 da Constituição Federal para
aqueles que descumprem as disposições trabalhistas, ao ponto de ferir a dignidade da pessoa
humana, possui natureza jurídica diversa do direito do trabalho; a desapropriação por interesse
social para fins da reforma agrária é, pois, de natureza de direito administrativo,
constitucional e civil, como bem define Silvio de Salvo Venosa
179
.
Disso resulta a indagação: possui a Justiça do Trabalho competência para apreciar
ações de desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária decorrente do
descumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho, descrito no inciso III do
Artigo 186 da Constituição Federal?
Necessário, antes de maiores introspecções, trazer o conceito doutrinário de
competência judicial para que, a partir de sua definição, o trabalho possa evoluir quanto ao
questionamento suscitado.
179
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Vol. V. São Paulo: Atlas, 2004. p. 260.
105
A competência é espécie do gênero jurisdição; é aquela e é parte desta e se divide ou
subdivide-se em razão da natureza da ação, do local, e da pessoa. No entender de Carnelutti,
jurisdição é o poder pertencente a todos os órgãos judiciais em conjunto; enquanto que a
competência é o poder conferido a cada órgão judicial em espécie
180
.
Liebman, por sua vez, define a competência como a quantidade de jurisdição atribuída
em exercício a cada órgão, ou seja, competência seria para o doutrinador uma medida de
jurisdição determinante para cada órgão singular. A competência é parcela da jurisdição
definida em razão da área geopolítica, da pessoa do juristutelado e da matéria apreciada.
Diz-se por isso que a competência é a quantidade de jurisdição atribuída em
exercício a cada órgão, ou seja, a medida de jurisdição’. Ela determina,
portanto, para cada órgão singular, em quais casos, em relação a quais
controvérsias, ele tem o poder de prover e correlativamente delimita em
abstrato o grupo de controvérsias que lhe são atribuídas
181
.
A competência de determinado órgão judicial, é pré-definido através de lei
constitucional estabelecida de forma a respeitar critérios de especialização, territorialidade e
divisão de serviços, conforme preceitua o Capítulo III da Constituição Federal (Artigo 92 e
seguintes).
Competência, portanto, é o poder que tem um órgão jurisdicional de fazer
atuar a jurisdição diante de um caso concreto. Decorre esse poder de uma
delimitação prévia, constitucional e legal, estabelecida segundo critérios de
especialização da justiça, distribuição territorial e divisão de serviço
182
.
No aludido Capitulo III da Constituição Federal, especificamente quanto aos critérios
de especialização, estabeleceu-se por meio dos termos definidos no Artigo 114 a competência
especial à Justiça Federal do Trabalho para processar e julgar ações oriundas das relações de
trabalho, conforme a novel redação promovida pela Emenda Constitucional de n. 45 em
questão.
180
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito processual civil. Traduzido por Hiltomar Martins Oliveira.
São Paulo: Lemos e Cruz, 2004. p. 360.
181
LIEBMAN, Enrico Túlio. Manual de Direito processual civil. Tocantins: Intelectos, 2003. p. 61.
182
GRECO Filho, Vicente. Direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva 2003. p. 170.
106
Antes, porém, de adentrar especificamente no atual Artigo 114 do ordenamento
constitucional, interessante regredir ao passado para buscar as origens da competência
constitucional da Justiça do Trabalho.
No ano de 1934 a Constituição Federal precisamente em seu Artigo 122, apesar de não
utilizar a expressão “competência”, porém, fazia menção que para dirimir questões entre
empregados e empregadores, fica instituída a Justiça do Trabalho. Semelhante redação foi
utilizada na Carta Magna de 1937, precisamente em seu Artigo 139
183
.
Sensível evolução foi notada na Constituição de 1946 que trazia no Artigo 123 que à
Justiça do Trabalho cabia conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre
empregados e empregadores e as demais controvérsias oriundas de relações de trabalho
regidas por legislação especial. Com insignificantes variações de redação o Artigo retro
mencionado foi reproduzido no Artigo 134 da Constituição de 1967 e 142 da Emenda n. 01 de
1969
184
.
Nota-se, assim, que a competência constitucional da Justiça do Trabalho restringia-se
aos litígios entre empregados e empregadores sujeitos da relação de trabalho subordinado com
inclusão de outras relações de trabalho, desde que reguladas por lei especial.
Em 1988 com a promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil
alargou o campo de atuação da Justiça do Trabalho em razão do Artigo 114 que determinou
que os litígios entre trabalhadores e empregados o que acabou por incluir dissídios que
envolvam trabalhadores avulsos, estagiários, membros de cooperativas de trabalho entre
outros. Ou seja, a Justiça do Trabalho, a partir de 1988 não se limitou ao atendimento
exclusivo de sujeitos de um contrato de trabalho, sem prejuízo da definição de trabalho
subordinado determinada pelo Artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, conforme anteriormente mencionado,
abriu-se caminho para a sedimentação do entendimento no sentido de que a competência da
Justiça do Trabalho deveria se estender de forma mais ampla, desprendendo-se das limitações
impostas pela relação de trabalho.
A Emenda Constitucional de nº. 45 veio a satisfazer os doutrinadores, tornando a
Justiça do Trabalho apta a receber toda demanda oriunda de qualquer relação de trabalho,
desde o trabalho subordinado ao trabalho autônomo.
183
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito processual do trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. p. 112.
184
Op. Cit.
107
O acesso à Justiça do Trabalho ultrapassou as barreiras exclusivas dos empregados,
atingindo a todos os demais prestadores de serviços provados, vinculados ao tomador de
serviços por uma relação de natureza contratual.
O legislador constituinte fixou de forma clara e precisa que à Justiça do Trabalho
compete processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho; ou seja, nos termos do
inciso I, julgar a relação jurídica estabelecida entre duas partes bem definidas (prestador do
serviço e o tomador dos serviços de trabalho) com conflitos de interesses intersubjetivos
relativos ao vínculo estabelecido entre ambos. Entendendo-se trabalho como o esforço
decorrente da atividade humana, fator de produção e fim da atividade econômica.
Relação de trabalho é a situação jurídica entre duas pessoas visando à
prestação de serviço. [...] Trabalho é esforço decorrente da atividade humana
visando á produção de uma utilidade. É fator de produção. É o fim da
atividade econômica, tendo por objetivo gerar riquezas. A idéia é de que
toda a matéria trabalhista, envolvendo qualquer tipo de trabalho, seja de
competência da Justiça do Trabalho e não apenas a relação de emprego. A
justiça é do trabalho e não do emprego ou desemprego
185
.
A redação conferida ao Artigo 114, inciso I da Constituição Federal através da edição
da Emenda Constitucional n. 45 de 8 de dezembro de 2004, tornou a expressão ‘relação de
trabalho’ mais ampla do que a antiga expressão ‘ relação de emprego’ e com isso oportunizou
o alargamento da competência da Justiça do Trabalho, adequando-a à dinâmica dos novos
tempos econômicos e à nova realidade mundial.
Maurício Godinho Delgado, ao comentar o inciso I do Artigo 114 da CF/1988,
inserido pela Reforma do Judiciário, trata da questão apontando que:
[...] ao retirar o foco competencial da Justiça do Trabalho da relação entre
trabalhadores e empregadores (embora esta, obviamente, ali continue
incrustada) para a noção genérica e imprecisa de relação de trabalho,
incorpora, quase que explicitamente, o estratagema oficial dos anos 90, do
fim do emprego e do envelhecimento do Direito do Trabalho. A emenda soa
como se o trabalho e o emprego tivessem realmente em extinção, tudo como
senha para a destruição do mais sofisticado sistema de garantias e proteções
para o indivíduo que labora na dinâmica socioeconômica capitalista, que é o
Direito do Trabalho
186
.
185
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito processual do trabalho. São Paulo: Atlas, 2006. p. 103.
186
DELGADO, Maurício Godinho. As duas faces da nova competência da justiça do trabalho. Revista LTr, v.
69, n. 1, jan. 2005. p. 42.
108
Importante fixar que a competência ampliada da Justiça do Trabalho, conforme acima
estabelecido, possui como fundamento as relações de trabalho, sem exceção; porém, referida
ampliação não contemplou em seu texto de lei qualquer tipo de relação jurídica que não as
oriundas do trabalho.
Conforme anteriormente explicitado, a competência da Justiça do Trabalho é espécie
do gênero judiciário, não cabendo à Justiça-exceção o poder de julgamento das relações
jurídicas que fujam à sua natureza. Se fosse diferente, o legislador teria elaborado o texto
legal de forma diversa fazendo constar em seu corpo expressa menção a tal intuito como de
fato fez na execução de débitos fiscais e na cobrança de contribuições previdenciárias,
estipuladas no inciso VIII do Artigo 114 da Constituição Federal.
Antes a Justiça do Trabalho estava restrita à solução de litígios entre
empregados e empregadores e a poucas demandas, quando expressamente
autorizadas: casos da pequena empreitada, dos trabalhadores avulsos e
temporários. Com a ampliação da competência decretada pela Emenda
Constitucional n. 45/2004, esta passou a compreender as ações oriundas da
relação de trabalho, resultantes dos movimentos grevistas, sobre
representação sindical, entre sindicatos, entre estes e trabalhadores, e entre
sindicatos e empregadores; estendeu-a a mandados de segurança, hábeas
corpus e hábeas data; para dirimir conflitos de competência, ações por dano
moral e patrimonial; para ações relativas a penalidades administrativas e
para execução de contribuições sociais decorrentes de relação do trabalho
187
.
Mesmo que estendida a competência da Justiça do Trabalho, esta atenderá as relações
jurídicas individuais e coletivas de trabalho onde possuam como sujeitos da relação (passivo e
ativo) empregados e empregadores ou, melhor definindo, tomadores e prestadores de serviços
laborais. Nas palavras de José Afonso da Silva, as primeiras relações (individuais), porque
fundadas no contrato individual de trabalho, contrato que vincula na relação de emprego
(Artigo I da CF); e as segundas relações (coletivas), porque possuem convenções que
vinculam dois grupos sendo um de empregadores e outro de empregados
188
.
Por sua vez, as normas que regulamentam a desapropriação por interesse social para
fins da reforma agrária, de natureza Constitucional, Administrativa e Civil estabelecem que o
detentor do poder de desapropriação, de praticar os atos concretos para efetuar a
187
GIGLIO, Wagner. CORRÊA, Cláudia Giglio Veltri. Direito processual do trabalho. São Paulo: Saraiva
2005. p. 26.
188
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Melhoramentos, 2007. p. 580.
109
desapropriação de imóvel rural para fins da reforma agrária, ou seja, o sujeito ativo é a União;
de outra borda, o sujeito passivo da desapropriação sempre será o desapropriado que pode ser
pessoa física ou jurídica.
O STF desfez o engano de quem entendia que a desapropriação de
imóveis rurais é sempre de competência da União; somente o é quando o
imóvel rural se destine à reforma agrária. Nesse sentido, decidiu que podem
os Estados e Municípios desapropriar imóveis rurais para fins de utilidade
pública, não, porém, para fins de reforma agrária, privativa da União [...]
Sujeito passivo da desapropriação é o expropriado, que pode ser pessoa
física ou jurídica [...]
189.
Trata-se de relação jurídica estabelecida entre a União, o proprietário do imóvel rural e
o próprio imóvel rural, não havendo vínculo jurídico entre trabalhadores (assim entendido de
forma ampla) e tomadores de serviço a ser tutelado pelo judiciário no caso de desapropriação.
Por meio das partes estabelecidas por direito (sujeito ativo e passivo) verifica-se que a
relação jurídica inter partes foge do âmbito da Justiça do Trabalho, porque, conforme visto
anteriormente, não é relação jurídica oriunda de uma relação de natureza laboral. A afirmativa
é verdadeira, inclusive, quando se trata de desapropriação para fins sociais da reforma agrária
pautada por descumprimento das obrigações trabalhistas, conforme determina o inciso III do
Artigo 186 da Constituição Federal.
Por maior alargamento que se possa visualizar através das interpretações possíveis
acerca do inciso I do Artigo 114 da Constituição Federal, verifica-se sobremaneira, que a
competência da Justiça do Trabalho singe-se às questões de direito laboral inter partes não
podendo, diante disso, ultrapassar seus limites de competência, invadindo a seara
administrativa/constitucional/civil da desapropriação por interesse social para fins da reforma
agrária que possui como partes a União e o proprietário desapropriado e, como objeto de
discussão o direito administrativo e constitucional.
O foro competente para a desapropriação é o da situação do imóvel
expropriado que se processa junto à Justiça Federal porque a competência é
da União de desapropriar, porém, delegada ao INCRA como gestor da
implantação da política agrária
190
.
189
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2003.
190
BORGES, Antônio Moura. Curso completo de Direito agrário. Leme: Edijur, 2005. p. 500.
110
A Justiça do Trabalho não possui competência para apreciação de questões relativas à
desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária, mesmo que aquelas
desapropriações sejam oriundas do descumprimento do inciso III do Artigo 186 da
Constituição Federal, pois haveria extrapolação da competência definida no Artigo 114 da
Constituição Federal.
Como se não bastassem as argumentações acima lançadas, o processo judicial de
desapropriação segue rito especial estabelecido na Lei Complementar n. 76 de 06 de julho de
1993 e, a conjugação dos Artigos 95 do Código de Processo Civil e Artigo 109, I, da
Constituição Federal define o foro competente o da Justiça Federal do local do bem
desapropriado.
No ano de 2007 o Superior Tribunal de Justiça apreciou Recurso Especial onde se
discutiu a competência e a jurisdição para o processamento e julgamento de Ações oriundas
de desapropriação por interesse social para fins da reforma agrária o que gerou a produção da
seguinte ementa:
AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO PROPOSTA PELO INCRA EM VARA
LOCALIZADA NA CAPITAL DO ESTADO POSTERIOR CRIAÇÃO
DE VARA FEDERAL COM JURISDIÇÃO SOBRE MUNICÍPIO DE
LOCALIZAÇÃO DO IMÓVEL OBJETO DA AÇÃO – DESLOCAMENTO
DA COMPETÊNCIA POSSIBILIDADE 1. Da conjugação dos arts. 95
do Código de Processo Civil e 109, I, da Constituição Federal extraem-se
que a existência de Vara Federal com jurisdição sobre imóvel objeto de ação
de desapropriação implica sua competência para julgar o feito, possibilitando
a redistribuição da ação em obediência às regras estabelecidas pelo tribunal
ao qual estejam vinculados os juízos. 2. Recurso conhecido em parte e não
provido
191
.
Apesar da inexistência de competência material da Justiça do Trabalho para
conhecimento, apreciação e julgamento de ações oriundas de desapropriação por interesse
social para fins da reforma agrária, esta Justiça Especializada possui importante papel a ser
exercido na aplicação dos preceitos constitucionais aqui abordados.
Restando reconhecido que o descumprimento das normas que regulam as relações de
trabalho, capaz de ferir a dignidade humana autoriza a desapropriação do imóvel rural por
interesse social para fins da reforma agrária, caberá ao Judiciário Trabalhista, quando obtiver
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 200700639025. Relator Ministro Castro Meira.
18 de setembro de 2007. Disponível em: <http\\www.stj.org.br>. Acesso em: 20 de fev. 2008.
111
informações a respeito do tema, levadas ao seu conhecimento por meio da distribuição de
ações individuais, coletivas, ou por meio do Ministério do Trabalho, informar o órgão
fiscalizador competente, INCRA.
A fiscalização acerca do cumprimento ou não das disposições que regulam as relações
de trabalho somente será exercida através de atuações do órgão competente para tal mister, o
Ministério do Trabalho e a Procuradoria do Trabalho. Diante disso, ao obter conhecimento
sobre determinada situação que afronte o Artigo 186, inciso III da Constituição Federal,
deverá o Judiciário expedir ofícios àqueles órgãos para apuração dos fatos.
Ou seja, em caso de reconhecimento da infração ao inciso III do Artigo 186, por
sentença judicial transitada em julgado, conforme ocorreu com a Fazenda Cabaceiras, deverá
o judiciário informar o teor da decisão ao INCRA.
Torna-se imperioso, para que se efetive a vontade constitucional, que o Poder
Judiciário do Trabalho, quando instado pela parte, cumpra com o seu dever de expedir ofícios
necessários ao Ministério do Trabalho, Procuradoria do Trabalho e INCRA, informando
acerca das decisões judiciais que envolvam propriedades rurais.
De outra facie, caberá aos órgãos oficiados criar banco de dados que administrará as
informações prestadas pelo Poder Judiciário do Trabalho para adoção ou não, dependendo do
caso e do histórico das medidas desapropriatórias cabíveis.
A Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Lei Complementar n. 35 de 1979 determina
em seu Artigo 35, inciso I, o dever do magistrado em fazer cumprir as disposições legais e os
atos de ofício, o que acaba por vinculá-lo ao dever, quando instado pela parte, de informar aos
órgãos competentes (Ministério do Trabalho, Procuradoria do Trabalho e INCRA) acerca do
teor das informações que possui e do teor das sentenças transitadas em julgado.
Mesmo ficando evidente que a Justiça Especializada do Trabalho não possui
competência para apreciação das questões fundiárias desapropriatórias, aquela exerce
importante papel como instrumento de materialização das disposições constitucionais
estabelecidas nos Artigos 1º, 3º, 5º, 7º, 170, 184, 186, 193 da Constituição Federal, uma vez
que possui poder informador através da expedição de ofícios, contendo dados sobre o
cumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho por parte dos proprietários
rurais.
112
CONCLUSÃO
O direito de propriedade elevou-se à categoria de direito humano de primeira geração
com o advento do Estado liberal que garantiu, por sua vez, ao cidadão o direito ilimitado de
uso, gozo, fruição, disposição, proteção e reivindicação da propriedade.
O exagero na aplicação dos direitos individuais sem a observância das diferenças
sociais e materiais existentes entre os cidadãos provocou desigualdades e abuso no exercício
do Direito de propriedade.
Como forma de atenuar as diferenças sociais perpetradas pelos excessos do Estado
liberal surge o Estado social e, como ele, os direitos humanos de segunda geração, ditos
direitos sociais, bem como o conceito de função social.
Ao contrário do Estado liberal, o Estado social defendeu o intervencionismo estatal no
campo econômico e social e a relativização do direito de propriedade individual que passou a
ter finalidade e função social. O direito individual de propriedade privada passou a ser
interpretado e definido de forma limitada à sua missão, devendo cumprir uma função social
para obter a proteção estatal.
A funcionalização do direito, após sucessiva evolução por meio da atividade
legislativa, influenciou a atual Constituição Federal da República Federativa do Brasil que
alçou a função social da propriedade à categoria de cláusula pétrea, direito individual
fundamental.
O texto constitucional contemplou, também, a funcionalização da propriedade rural
como princípio da política agrícola, fundiária e da reforma agrária, para o fim de corrigir
eventuais equívocos na distribuição de terras desde o descobrimento do Brasil.
Mas não isso, o texto constitucional passou a exigir do proprietário rural, a
observância simultânea de inúmeros preceitos (econômicos, ambientais, trabalhistas e
sociais), sem os quais não haverá proteção estatal ao direito de propriedade.
Desta forma, tornou-se obrigação constitucional do proprietário rural, sem o qual não
lhe será seguro pelo Estado o direito de propriedade, garantir que o desenvolvimento da sua
atividade econômica agropecuária não viole os índices de produtividade pré-fixados em lei, o
meio ambiente ecologicamente equilibrado, as disposições que regulam as relações de
113
trabalho de forma a comprometer a dignidade do trabalho humano e os valores sociais do
trabalho.
A ocorrência de violação de qualquer um dos requisitos acima, inclusive as
disposições que regulam as relações de trabalho de forma a comprometer a dignidade do
trabalho humano no campo, acarretará a possibilidade de desapropriação do imóvel rural
infrator por interesse social para fins da reforma agrária, sendo irrelevante se referida
propriedade rural cumpra ou não com os índices de produtividade.
Isto porque a República Federativa do Brasil fundou-se na dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho, constituindo-se valores supremos e base de toda a
sociedade nacional.
A Constituição Federal não contemplou o exercício do direito de propriedade (uso,
gozo, disposição e reivindicação) contrário aos valores fundantes da sociedade brasileira uma
vez que é prejudicial à solidificação dos objetivos fundamentais da República.
O exercício do direito da propriedade rural contrário às disposições que regulam as
relações de trabalho é capaz de macular a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do
trabalho, o que a torna referido exercício danoso não à sociedade brasileira, mas à própria
humanidade.
Disso decorre que para se garantir o direito fundamental individual da propriedade
rural em sua plenitude, nos termos estabelecidos pela Constituição Federal em vigência, o
proprietário rural deverá, quando da realização de sua atividade econômica, respeitar as
disposições que regulam as relações de trabalho promovendo, via de conseqüência, a
dignidade do trabalho humano no campo, bem como, os valores sociais do trabalho.
Conclui-se que o inciso III do Artigo 186 da Constituição Federal transformou o
direito fundamental individual à propriedade em instrumento capaz de auxiliar a
concretização dos objetivos fundamentais da República, uma vez que todo cidadão
proprietário de terras rurais para manter-se como tal (o que é desejo natural) deverá cumprir
com as disposições que regulam as relações de trabalho.
Cumprida as disposições que regulam as relações de trabalho, bem como os demais
requisitos estabelecidos no Artigo 186 da Constituição Federal, estará abonada a dignidade do
trabalho humano e os valores sociais do trabalho o que promoverá, via de conseqüência, não
trabalho do campo, mas também, a construção de uma sociedade mais justa e solidária,
contribuindo para a erradicação da pobreza, da marginalização, e das desigualdades regionais.
114
O cumprimento da função social da propriedade rural colaborará para a fixação do
homem no campo, para a justa distribuição de terras rurais, para a produção de alimentos e o
acesso aos Direitos Humanos à Alimentação Adequada (DHAA), previstos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, bem como garantirá o direito de futuras gerações ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
115
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