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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
-
UNIMAR
FACULDADE DE DIREITO
GILBERTO FERREIRA DA ROCHA
A UTILIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO PARA QUESTIONAR E
OBRIGAR A ADMINISTRAÇÃO A DESENVOLVER POLÍTICAS
PÚBLICAS
MARÍLIA
2008
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GILBERTO FERREIRA DA ROCHA
A UTILIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO PARA QUESTIONAR E OBRIGAR A
ADMINISTRAÇÃO A DESENVOLVER POLÍTICAS PÚBLICAS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Direito da Universidade de Marília, como exigência
parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Direito, sob
a orientação do Prof. Dr. RUY DE JESUS MARÇAL
CARNEIRO.
MARÍLIA
2008
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GILBERTO FERREIRA DA ROCHA
A UTILIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO PARA QUESTIONAR E OBRIGAR A
ADMINISTRAÇÃO A DESENVOLVER POLÍTICAS PÚBLICAS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília,
área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social,
sob orientação do Prof. Dr. RUY DE JESUS MARÇAL CARNEIRO.
Aprovado pela Banca Examinadora em:
06
/
06
/
2008
_____________________________________________________
Prof. Dr. RUY DE JESUS MARÇAL CARNEIRO
Orientador
_____________________________________________________
Prof.
Dr.
LOURIVAL JOSÉ DE OLIVEIRA
_________________________________
____________________
Prof
(a).
Dr
a.
TÂNIA LOBO MUNIZ
A UTILIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO PARA QUESTIONAR E OBRIGAR A
ADMINISTRAÇÃO A DESENVOLVER POLÍTICAS PÚBLICAS
RESUMO
Esta dissertação preconiza a utilização do Judiciário para cobrar, por meio de ações judiciais,
a implementação de políticas públicas sociais tendentes à realização dos objetivos
constitucionais do Estado brasileiro, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, sem que
isto implique em qualquer ofensa ao princípio da separação dos poderes ou à
discricionariedade administrativa, não servindo, como argumento para afastar o controle
judicial das políticas públicas, a chamada “reserva do possível”. O propósito, então, é de
repensar o papel político do Judiciário num Estado Democrático Social de Direito, onde o
Poder Público, aqui entendido como Executivo e Legislativo, tem fracassado na tarefa de
garantir o gozo e fruição dos “direitos fundamentais sociais” consagrados na Constituição
Federal e que demandam uma prestação positiva do Estado. Defen
de
-se que, por meio de
ações judiciais, seria possível, por exemplo, fazer com que o Administrador Público crie
vagas no ensino de primeiro grau, que construa creche para crianças de zero a seis anos, que
melhore o transporte coletivo, amplie a distribuição de remédios e serviços de saúde aos
carentes, entre outras providências. Nessa ordem de idéias impõe-se uma mudança de
paradigma a fim de que os estudiosos do Direito, sobretudo os magistrados, deixem de lado a
postura meramente positivista calcada na doutrina do Estado Liberal, atrelada à doutrina
constitucional tradicionalista, passando a adotar uma interpretação constitucional, de cunho
mais aberto e principiológico, consentânea com a realidade brasileira, com vistas à produção
da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido, buscando atingir,
dessa forma, por meio da atividade jurisdicional, os fundamentos e objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, previstos nos Arts. e da Constituição Federal,
especialme
nte a dignidade da pessoa humana e a erradicação da pobreza, da marginalização, e
a redução das desigualdades sociais e regionais. Nesse desiderato, releva anotar que o tema é
tão importante como complexo, de modo que, buscar-
se
no decorrer do presente t
rabalho
enfocar os pontos cruciais da questão e chamar a atenção para um dos maiores desafios da
atualidade, qual seja, o de conferir efetividade e aplicabilidade imediata aos “direitos
fundamentais”, de acordo com o § do Art. da Constituição Federal, para a concretização
plena dos direitos sociais prestacionais, por meio de políticas públicas vinculantes não só para
o Legislador e para o Administrador, mas também para o Judiciário, que em última análise é o
guardião da Constituição Federal.
Palavra
s-
chave: Judiciário
;
políticas públicas
;
reserva do possível
;
separação dos Poderes.
THE MANAGEMENT OF THE JUDICIARY TO QUESTION AND COMPEL THE
ADMINISTRATION IN ORDER TO DEVELOP PUBLIC POLICIES
ABSTRACT
This dissertation proclaims the usage of the Judiciary to demand through judiciary actions the
insertion of social public policies tending to the accomplishment of constitutional goals in the
Brazilian government, above all the dignity of a human being, and we must be aware not to
lead it to an offense for the separation of powers principle or even for the discretionary
administration, which may not be an argument to repel the judiciary control of public policies,
called “reservation principle”. Thus, we proposed a discussion on the political role played by
the Judiciary in a Social and Democratic State of Rights, in which the Public Power,
understood here as the Legislative and Executive, have been failing when they have not been
achieving the tasks of assuring a total possession of the “fundamental social rights”,
guaranteed in the Constitution, which demands a positive resignation from the State. People
say that, through judiciary actions, it would be possible, for example, to have the creation of
vacancy in Elementary Schools by the Public Administrator, as well as the construction for
children rating from 0 to 6 years-old; an improvement in collective transportation; to
empower the spread of medicines and medical services for those who doesn´t have financial
conditions, among other propositions. Inside of this order of ideas, a change in the paradigm
is claimed, so the Law experts, especially magistrates, must leave pure positivist ideas behind,
which were based on the Theory of the Liberal State, but linked to the Constitutional
Doctrine, adopting then a constitutional interpretation, much more free and based on
principles, adequate to the Brazilian quotidian, aiming the production of a constitutional
solution which will fit to the problem that has to be solved, thus, trying to reach through the
juris
dictional activity the fundaments and most important objectives in the Brazilian Republic,
which are in the 1
st
and 3
rd
Articles of the Constitution, especially the dignity of human beings
and the eradication of poverty, of marginalization and the reduction of social and regional
inequalities. With such a will, it is relevant to see that the subject is very important, as well as
complex; so, we will try throughout the development of this research to focus the crucial
elements of this question and emphasize one of the biggest challenges nowadays, which is to
give effectiveness and immediate applicability to “fundamental rights”, according to 1
st
§ of
the 5
th
Article in the Constitution, to a fulfillment of the social rights, through linking public
policies not only for the legislator, but also for the administrator and Judiciary, which is the
guardian of the Constitution.
Key
-words:
Judiciary; public policies;
reservation principle;
separation of powers.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
.............................
......................................................................................... 06
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS
.......................................................................................
1
2
1.1. Aspectos históricos.....................
....................................................................................
16
1.2 Direitos Fundamentais na Constituição de 1988.............................................................
25
1.3 Direitos Sociais na Constituição de 1988.....
...................................................................
38
1.4 A questão da eficácia dos Direitos Fundamentais...........................................................
46
2. POLÍTICAS PÚBLICAS E CONCRETIZAÇÃO DA ORDEM
CONSTITUCIONAL
SOCIAL
................................................................................
5
5
2.1 Conceitos possíveis de Políticas Públicas......................................................................
5
9
2.2 Os direitos dos cidadãos e as pre
stações positivas do Estado.........................................
6
3
2.3 Os Direitos Sociais coletivos e as Políticas Públicas......................................................
6
8
2.4 A responsabilidade da Administração pelo não cumprimento das Políticas Públicas da
ordem social constitucional.....................................................................................
........ 7
2
2.5 A discricionariedade mínima da Administração na implementação das Políticas Públicas
constitucionais.......
.........................................................................................
................. 8
2
2.6 A chamada politização do Judiciário e a judicialização da Política................................
87
3. O PAPEL DO JUDICIÁRIO E O ACESSO À
JUSTIÇA
............
............................... 9
7
3.1 O Princípio da independência dos Poderes.....................................................................
107
3.2 Orçamento e finanças públicas
o princípio da reserva do possível. ..........
..................
113
3.3 Instrumentos jurídicos para concretização das Políticas Públicas. ................................
1
21
CONCLUSÃO
.....................................................................................................................130
REFERÊNCIAS
..................................................................................................................
134
INTRODUÇÃO
A Assembléia Nacional Constituinte, institui um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar,
o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada
n
a harmonia social e comprometida, na ordem interna
e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, conforme enuncia o preâmbulo da
Constituição Federal de 1988 que, embora não faça parte do Texto Constitucional, deve ser
observado como elemento de interpretação e integração, pois por meio dele é possível extrair
as grandes finalidades da Constituição Federal.
No contexto e circunstâncias em que foi promulgada, após mais de vinte anos de
ditadura militar, em meio às manifestações e mobilizações de verdadeiras multidões
capitaneadas por artistas, intelectuais, políticos, todos engajados no movimento “diretas já”,
com significativa participação dos meios de comunicação de massa, a Constituição de 1988
inegavelmente gerou grande expectativa no povo brasileiro, com a renovação das esperanças
nos idea
is republicanos de liberdade e igualdade e de uma sociedade mais fraterna e solidária.
De fato, a atual Constituição, adjetivada de “cidadã”, é reconhecidamente uma das mais
avançadas do planeta quando se fala em Estado Democrático Social de Direito.
Oco
rre que passados quase vinte anos de sua promulgação, apesar de assegurar
formalmente os direitos sociais e individuais, tendo como fundamento a dignidade da pessoa
humana e como objetivo a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das
desiguald
ades sociais, o que se tem observado na prática é que a Constituição da República
pouco tem contribuído para o melhoramento da qualidade de vida da população, sobretudo em
função da própria ineficiência do Estado brasileiro de prover os serviços públicos básicos e
essenciais, como saúde, educação, saneamento básico e assistência social, para a grande
maioria do povo.
Diante desse quadro, em que se verifica um descompasso entre os direitos
fundamentais sociais consagrados pela Constituição Federal e as ações ou, no mais das vezes,
as omissões do Poder Público quanto ao desenvolvimento de políticas públicas aptas a
concretizarem o mandamento constitucional, é que ganha relevância uma dupla série de
questões jurídicas a serem enfrentadas: Em primeiro lugar,
trata
-
se de saber se os cidadãos em
7
geral têm ou não o direito de exigir, judicialmente, a execução concreta de serviços públicos.
Em segundo lugar, trata-se de saber se e como o Judiciário pode provocar a execução de tais
políticas, no bojo de uma ação judicial, visando suprir a incúria dos outros Poderes.
Além disso, outro fator que igualmente contribuiu para a escolha do tema decorre da
verificação do grande interesse despertado não nos constitucionalistas modernos e
membros da academia, de visão mais arejada, conscientes do papel que desempenham na
sociedade, mas também de políticos, representantes da sociedade civil organizada e dos
operadores do Direito, especialmente da magistratura, carreira da qual este pesquisador tem a
honra de fazer parte, que cada vez mais tem se deparado com tão tormentosa e desafiadora
questão.
Mas, diante da problemática ora apresentada à discussão, algumas indagações e
inquietações vêm à mente: será que diante da concepção tripartida de poder, concebida por
Montesquieu
como princípio de organização do Estado constitucional, o Judiciário teria
legitimidade para julgar questões políticas de competência dos Poderes Legislativo e
Executivo, cuja legitimidade política decorre da democracia representativa, obrigando-os a
ideal
izar, criar e executar políticas públicas previstas na Constituição, em prol da sociedade
civil?
E o Judiciário, que não tem como atividade típica gerir e administrar os recursos
públicos, não podendo influir espontaneamente na lei orçamentária de iniciativa do Executivo
e de competência do Legislativo, poderia determinar a implementação de políticas públicas
que demandam gastos de dinheiro público e, portanto, dependeriam da disponibilidade
financeira do Estado? E, caso o Judiciário se mantivesse preso a métodos formais da teoria
jurídica tradicional, indiferente às evoluções e transformações sociais, qual seria a garantia da
população de que seus direitos sociais básicos e fundamentais consagrados na Constituição
Federal seriam colocados à disposição pel
o Poder Público?
Na medida em que se depara com tais indagações e questionamentos é que o
profissional do Direito se instigado a estudar com maior profundidade o assunto e,
conseqüentemente, se debruçar não só sobre questões de natureza jurídica, mas
também
históricas, humanitárias, filosóficas e sociológicas, a fim de melhor entender e compreender o
8
fenômeno social concreto, sua origem, suas conseqüências e, assim, procurar eventuais
possibilidades de solução diante do ordenamento jurídico existente.
Em razão disso, o presente estudo se propõe a investigar os argumentos dos que
defendem e dos que rejeitam a idéia do controle judicial das políticas públicas, sobretudo em
razão do aparente confronto com o princípio da separação dos Poderes consagrado no Art.
da Constituição Federal e com a discricionariedade do Legislador e do Administrador,
traduzida pelo binômio conveniência-oportunidade, mas não de forma exauriente, que o
tema é complexo e composto por inúmeros desdobramentos, os quais, cada um de per si,
comportaria uma dissertação, e sim de modo conjuntural e sistêmico, sem que isto implique,
de maneira alguma, no refúgio confortável da neutralidade, que no decorrer da pesquisa
haverá uma evidente tomada de posição entre o “substancialismo” e o “procedimentalismo”
constitucionais.
Neste contexto, o objetivo principal deste ensaio é discutir o papel do Judiciário num
Estado do Bem
-Estar Social, que tem por objetivos a construção de uma sociedade mais justa,
igual e solidária, assim como a erradicação da pobreza, da marginalização, bem como da
redução das desigualdades sociais e regionais, repensando conceitos e dogmas jurídicos que
no cenário atual, talvez não mais se coadunariam com os anseios de uma sociedade que tem
clamado por justiça social e pela melhoria das condições de vida, perseguindo uma existência
digna voltada para o bem
-
estar geral.
A par disso, importa registrar que em decorrência de uma série de razões históricas,
políticas, econômicas, sociais e culturais, o Brasil ainda está distante de implementar
efetivamente os princípios fundamentais consagrados na atual Constituição, pondo-se aí,
talvez, o maior dos desafios a ser enfrentado pela presente geração.
Desse modo, conhecer e discutir meios eficazes para garantir a implementação efetiva
dos direitos fundamentais do povo brasileiro, com ênfase na atuação do Judiciário, sob o
prisma de garantidor de direitos, pode constituir tarefa de fundamental importância, sobretudo
porque os princípios constitucionais podem representar, conforme adiante se verá, poderosa
arma para o definitivo sucesso da transformação democrática em curso.
9
Assim, delineados o tema, os problemas, as hipóteses mais importantes, os objetivos,
além da justificativa da pesquisa, cumpre assinalar que no primeiro capítulo serão abordados
os elementos históricos, os quais se mostram de fundamental importância para a compreensão
de todo o processo evolutivo dos direitos do homem, onde se procurará demonstrar que o
Direito sempre permeou movimentos sociais de ca
da período histórico.
Num passo seguinte, ainda no primeiro capítulo, os direitos fundamentais serão objeto
de análise circunstanciada, abordando-se as subdivisões, gerações ou dimensões, principais
características, inovações num contexto comparativo com as Constituições que antecederam a
de 1988, pontuando-se algumas críticas doutrinárias. Após delinear o desdobramento de
direitos fundamentais de defesa e à prestações, proceder
-
se
-
á um corte metodológico dando
-
se
ênfase aos direitos sociais que demandam uma postura positiva por parte Estado. Por conta
disso, o primeiro capítulo também cuidará dos fatores relacionados aos direitos sociais, tais
como sua posição de destaque na atual Constituição, o princípio da igualdade, as leis
existentes e que discipli
nam as políticas públicas sociais.
Também no primeiro capítulo, será analisada a questão da eficácia dos direitos
fundamentais, com breve alusão acerca dos conceitos e conteúdos da validade, eficácia e
aplicabilidade, anotando-se, na seqüência, as três posições existentes na doutrina pátria a
respeito da aplicabilidade das normas constitucionais tidas por “programáticas”, ocasião em
que se adotará, nesta dissertação, uma daquelas posições, a qual marcará todo o seu
desenrolar.
As políticas públicas, assim como a concretização da ordem constitucional social,
permearão a discussão do segundo capítulo. Num primeiro momento, procurar-
se
fazer uma
breve digressão histórica sobre o surgimento dos direitos sociais, recuperando a discussão
acerca do princípio da igualdade com o propósito de melhor compreender como surgiram as
políticas públicas. A seguir, serão analisados os conceitos possíveis de políticas públicas,
partindo
-se de um conceito de política, abordando-se, na seqüência, os direitos dos cidadãos e
as
prestações positivas do Estado, assim como os direitos sociais e as políticas públicas.
Nesta senda, se procurará verificar as circunstancias contextuais que tornaram as
políticas blicas, ligadas ao florescimento do modelo de Estado do Bem-Estar Social, zona
de atrito e embates entre integrantes dos três Poderes, onde se discutirá, com base em lições
10
doutrinárias, o conceito de discricionariedade e, por via reflexa, a possibilidade da
responsabilização da Administração Pública pelo não cumprimento das políticas públicas
constitucionais, intentando aclarar as noções de legalidade, legitimidade e
constitucionalidade, chegando-se ao tema da discricionariedade mínima do Administrador
Público na atual conjuntura constitucional, assinalando-se que as dúvidas acerca dessa
discricionariedade deverão ser dirimidas pelo Judiciário.
Em decorrência lógica disso, o Judiciário passará a ser objeto de abordagem ainda no
apagar das luzes do segundo capítulo, onde se procurará enfatizar as diversas facetas dos
fenômenos
denominados de “politização do Judiciário” e “judicialização da Política”.
Por fim, no terceiro e último capítulo será aprofundada a discussão acerca da atuação
do Poder Judiciário, pretendendo-se, com isso, delinear seu papel na sociedade, desde o
surg
imento dos direitos sociais e das ações coletivas no cenário internacional, e mais
especificamente no Brasil, a partir da Constituição de 1988, quando passou a ocupar a posição
de intérprete máximo do Texto Constitucional, intentando retratar seu ressurgimento como
“Poder independente” perante a sociedade civil de modo geral.
Neste cenário, o acesso à Justiça será abordado, procurando relacioná-lo com os
direitos fundamentais tendentes à concretização dos valores e princípios consagrados pela
Constituição
brasileira, tecendo comentário acerca do papel
d
o juiz na consecução do acesso à
Justiça, sem se esquecer de anotar as três ondas de acesso mencionadas por Cappelletti e
Garth, na famosa obra “Acesso à Justiça”, trazendo-as para a realidade nacional, tenci
onando
uma abordagem mais profunda da terceira onda, que cuida da nova estrutura do Poder
Judiciário e os novos procedimentos, procurando ilustrá-la com exemplos oriundos do
Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em seguida, se intentará esboçar uma concepção operativa do princípio da separação
dos Poderes, em face da distinção de poderes e funções, que podem
ser
típicas ou atípicas,
recorrendo
-se aos constitucionalistas modernos para procurar uma melhor adequação daquele
princípio aos comandos constitucionais que vinculam tanto o Executivo e o Legislativo, como
o Judiciário.
11
A partir de então, ainda no terceiro capítulo, serão observadas algumas dificuldades
acerca do controle judicial das políticas públicas, enfrentando-se a questão orçamentária, com
enfoque
mais detalhado da teoria alemã batizada
por
José Joaquim Gomes Canotilho, como
“reserva do possível”, confrontando-a com o papel do Judiciário e, em última análise, com os
valores e princípios consagrados pela Constituição brasileira que tem por objetivo maior a
dignidade da pessoa humana.
Por fim, serão introduzidas considerações acerca dos instrumentos jurídicos que
potencialmente podem ser utilizados para eventual concretização de políticas públicas, com
especial destaque para a ação civil pública, que tem sido mais largamente utilizada na
tentativa de assegurar maior efetividade aos princípios do regime democrático, bem como aos
direitos e garantias fundamentais, a fim de que as diretrizes constitucionais não resultem em
mera garantia formal.
Desta
feita, como essas questões suscitam debates, se intentará no final desta
dissertação, ter uma visão geral e panorâmica acerca da possibilidade e viabilidade do
exercício do controle judicial das políticas públicas.
12
1. DIREITOS FUNDA
MENTAIS
No que se refere à terminologia e ao conceito de “direitos fundamentais”, que se
destacar, de início, que tanto na doutrina como no direito positivo constitucional ou
internacional, são amplamente utilizadas as expressões “direitos humanos”
,
“direitos do
homem”
,
“direitos subjetivos públicos”
,
“liberdades públicas”
,
“liberdades fundamentais” e
“direitos humanos fundamentais”, como expressões sinônimas, de modo que evidentemente
não há um consenso quanto à terminologia empregada.
A propósito, Paulo Bonavides faz a seguinte indagação: podem as expressões direitos
humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser usadas indiferentemente? E
responde:
temos visto nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura
jurídica, ocorre
ndo
, porém, o emprego mais freqüente de direitos humanos e direitos do
homem entre os autores anglo-americanos e latinos, em coerência, aliás, com a tradição e a
História, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita à preferência
d
os publicistas alemães.
1
Assim como ocorre com textos constitucionais alienígenas, a Constituição brasileira
não foge à regra, pois também apresenta diversidade semântica utilizando termos diversos ao
referir
-se aos direitos fundamentais. É o que se
extr
ai
, por exemplo, d
o
inciso II
2
,
do Art.
qu
e
utiliza a expressão direitos humanos; da epígrafe do Título II
3
e do § 1º
4
do Art. 5º
,
onde
se
emprega a expressão direitos e garantias fundamentais
;
do inciso LXXI
5
, do Art. 5º, qu
e
usa a expressão
direito
s e liberdades
constitucionais
e
d
o
inciso IV
6
, do § 4º, do Art 60,
que
emprega a expressão
direitos e garantias individuais
.
Na doutrina, comumente
se
di
stingue
a express
ão
direitos fundamentais
de
direitos
humanos
sob a seguinte explicação. O termo
“direitos fundamentais
se aplica aos direitos do
1
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
, 18ed.,
São Paulo
:
Malheiros,
2006, p.560.
2
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios
:
[...] II
prevalência dos direitos humanos;
3
Título II
Dos
D
ireitos e
G
arantias
F
undamentais
.
4
§ 1º
As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
5
LXXI
conceder-
se
-
á
mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o
exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania;
6
§ do Art. 60 Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [
...
] IV os direitos e
garantias individuais.
13
ser humano, reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de
determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos” guardaria relação com os
documentos de direito interna
cional
, independentemente de sua vinculação com determinada
ordem constitucional
, de acordo com a lição de
José Joaquim Gomes
Canotilho
.
7
Todavia, cumpre relembrar que no tocante ao uso da expressão
“direitos
fundamentais”
, o constituinte inspirou-
se
principalmente
na Lei Fundamental da Alemanha e
na Constituição Portuguesa de 1976, rompendo com toda uma tradição do direito
constitucional positivo até então existente no Brasil, conforme
aduz
Ingo Wolfgang Sarlet.
8
Assim, levando-se em conta os esclarecimentos de Paulo Bonavides, e atento à epígrafe do
Título II
9
da Constituição da República
, coerente se mostra
à
utilização da expressão
“direitos
fundamentais”
, no âmbito do Direito Constitucional pátrio.
Acerca do conceito de “direitos fundamentais”, há que se pontuar que inúmeros e
diferenciados são os conceitos, sobretudo porque a ampliação e transformação dos direitos
fundamentais do homem, no evolver histórico, dificulta definir-lhe um conceito sintético,
conforme assinala José Afonso da Silva, que após analisar as diversas terminologias
existentes
, conclu
i
:
Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a
este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a
concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento
jurídico, é reservada a designar, no vel do direito positivo, aquelas
prerrogativas e instituições que ele concretizam em garantias de uma
convivência digna, livre e igual de todas as pessoas
.
10
Numa concepção abrangente, criar e manter os pressupostos de uma vida na liberdade
e na dignidade humana é aquilo que almeja os direitos fundamentais, ao passo que numa visão
mais específica, os direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica
como tais, de acordo com Konra
d
Hesse
,
citado por Paulo Bonavides
.
11
7
CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra:
Almedina,
2002,
p.
393.
8
SARLET, Ingo Wolfgang
.
A eficácia dos direitos fundamentais
.
8ed., Livraria do Advogado, 2007,
p
34.
9
Título II
Dos
D
ireitos e
G
arantias
F
undamentais
.
10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ed., São Paulo: Malheiros,1992,pp.161 e
163.
11
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucio
nal
.
18ed
.,
São Paulo
:
Malheiros,
2006, p.560.
14
Conforme explica o mesmo autor, Carl Schmitt vinculado a uma concepção do Estado
de Direito l
iberal,
sustenta
que
os direitos fundamentais propriamente ditos são, na essência,
os direitos do homem livre e isolado, direitos que possui em face do Estado. Numa acepção
estrita são unicamente os direitos da liberdade, da pessoa particular, correspondendo de um
lado ao conceito de Estado burguês de Direito, referente a uma liberdade, em princípio
ilimitada diante de um poder estatal de intervenção, em princípio limitado, mensurável e
controlável
.
12
Nas palavras d
e
Alexandre de Moraes, o
importante
é realçar que os direitos
humanos
fundamentais rel
a
cionam
-
se diretamente com a garantia de não
-
ingerência do Estado na esfera
individual e a consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por
parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível
de direito consuetudinário ou mesmo tratados e convenções internacionais, acrescentando que
a previsão desses direitos coloca-se em elevada posição hermenêutica em relação aos demais
direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características:
imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade,
efetividade, interdependência e complementariedade.
13
Após analisar com percuciência a questão terminológica, e na seqüência optar pelo
princípio da dignidade humana como principal vetor para identificação dos típicos direitos
fu
ndamentais (vida, liberdade e igualdade), seja numa dimensão subjetiva, provendo as
pessoas de bens e posições jurídicas favoráveis e invocáveis perante o Estado e terceiros, seja
numa dimensão objetiva, servindo como parâmetro conformador do modelo de
Est
ado
,
Dirley
da Cunha Júnior conclui que um conceito constitucionalmente adequado para os direitos
fundamentais é o seguinte:
Os direitos fundamentais são todas aquelas posições jurídicas favoráveis às
pessoas que explicitam, direta ou indiretamente, o princípio da dignidade
humana, que se encontram reconhecidas no texto da Constituição formal
(fundamentalidade formal) ou que, por seu conteúdo e importância, são
admitidas e equiparadas, pela própria Constituição, aos direitos que esta
formalmente reconhece, embora dela não façam parte (fundamentalidade
material). Entretanto, fica a depender da ordem constitucional concreta de
cada Estado, uma vez que, o que é fundamental para certo Estado, pode não
ser para outro. Desse modo e sem embargo de sua necessária
12
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
.
18ed.
, São Paulo: Malheiros, 2006, p
.561
.
13
MORAES, Alexandre de.
Constituição do Brasil interpretada
. 7
e
d.
,
São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 95
.
15
fundamentalidade formal e material, os direitos fundamentais devem ser
entendidos, em última análise, como reivindicações indeclináveis que
correspondem a valores fundamentais consensualmente reconhecidos no
âmbito de determinada sociedade, ou mesmo no plano universal.Tais
valores condizem com a liberdade, igualdade e solidariedade, tendo, por
base, o princípio da suprema dignidade da pessoa humana. As normas que
os consagram – denominadas “norma de direito fundamental” – são da
espécie “normas-
princípios”,
que expressam mandados de otimização
,
distinguindo
-
se
das normas-regras que, menos abstratas e menos genéricas,
descrevem uma hipótese fática e prevêem as conseqüências jurídicas de sua
ocorrência. São, portanto, os princípios jurídico-
constitucionais
especiais
que conferem densidade semântica, vale dizer, concretizam o
princípio
jurídico
-
constitucional geral do respeito à dignidade humana
, já sendo este,
acentue
-se, desdobramento ou concretização geral do princípio jurídico-
constitucional estruturante do Estado Democrático de Direito. Nessa
per
spectiva, os direitos fundamentais representam a base de legitimação e
justificação do Estado e do sistema jurídico nacional, na medida em que
vinculam, como normas que são, toda atuação estatal, impondo-
se
-lhe o
dever sobranceiro de proteger a vida humana no seu nível atual de
dignidade, buscando realizar, em última instância, a felicidade humana.
14
Segundo Perez Luño, ‘existe um estreito nexo de interdependência genético e
funcional entre Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito
exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao passo que estes exigem e
implicam, para sua realização, o reconhecimento e a garantia do Estado de Direito
’.
15
Nesta trilha,
conclui
-se que os direitos fundamentais passaram a integrar, ao lado da
definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do
Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal,
mas também elemento nuclear da Constituição material. Consagrada, pois, a íntima
vinculação entre as idéias de Constituição, Estado de Direito e
d
ireitos
f
undamentais, de modo
que estes últimos podem ser considerados como pré-requisitos do Estado Democrático de
Direito.
14
CUNHA J
ÚNIO
R, D
irley
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004, p.155-
156.
15
PE
REZ LUÑO, Antônio Enrique.
Los Derechos Fundamentales
.
6
e
d.
,
1995, Madrid
:
Tecnos, p.19.
16
1
.1. Aspectos históricos
Ainda que de forma sintética, importante destacar alguns momentos históricos da
humanidade
, que antecederam e influenciaram o reconhecimento, em nível de direito
constitucional positivo
,
dos direitos fundam
entais no final do
S
éculo XVIII
.
No período que antecedeu a Revolução Francesa, o Estado e a soberania implicavam
na antítese da liberdade individual. Havia um descontentamento geral com aquela realidade
,
que a sociedade ansiava por mais liberdade em todos os
sentidos
. O Estado era
monopolizador do Poder, da soberania e de
tentor
da coação incondicionada, tornando-se, em
determinados momentos, algo semelhante à criatura que, na imagem bíblica
,
se volta contra o
criador. Daí o zelo doutrinário da filosofia jusnaturalista em criar uma técnica de liberdade,
traduzida na limitação de poder e formulação de meios que possibil
itassem
deter o
extravasamento
na irresponsabilidade do grande devorador, o implacável
Leviatã
, co
nforme
explica Paulo Bonavides.
16
Dito de outro modo, surgiu a necessidade de se formular
mecanismos político
-jurídicos que pudessem frear o poder do Estado absolutista, garantindo a
liberdade de expressão, na qual estava contida a de religião.
Neste contexto
,
a
classe burguesa
que
ao longo
do tempo, primeiro com
o desempenho
da atividade comercial e depois com a indu
stria
l,
havia
alcançado
sucesso e prosperidade
,
acumulando
riqueza e, conseqüentemente, poder econômico, estava alijada de qualquer
possibilidade de participação no P
oder
e
statal
,
concentrado
nas mãos dos nobres, com viés
absolutista
e totalitário. Enfim, uma casta de pessoas que, por hereditariedade e em razão de
títulos que ostentavam, se perpetuavam no P
oder,
geralmente por meio de governos
monárquicos ou oligárquicos, não permitindo qualquer influência, ingerência ou participação
das demais classes sociais nas decisões governamentais, além de usar de meios coativos para
tolher a liberdade
das pessoas
.
Assim,
influenciad
a diretamente pelo pensamento jusnaturalista e sua concepção de
que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e
inalienáveis, os chamados “direitos fundamentais”, de modo especial os valores da dignidade
da pessoa humana, da liberdade e da igualdade, a burguesia, com forte apoio dos camponeses
16
BONAVIDES, Paulo.
Do Estado Liberal ao Estado Social
.
7ed., 2tir
., São Paulo: Malheiros, 2004. p. 41.
17
e do
proletariado,
deflagr
ou
a Revolução Francesa de 1789, de transcendental importância
para a humanidade, pois representou um daqueles momentos decisivos, pelo menos
simbolicamente, que assinal
ou
o fim de uma época e o início de outra, ou seja, representou o
atestado de óbito do antigo regime constituído pela Monarquia e pelos privilégios feudais.
A
burguesia, classe dominada, transmudou
-
se para classe dominante
, apoderando
-
se do Poder
.
A despeito disso, conforme assinala Perez Luño, o processo de elaboração dos direitos
humanos, tais como reconhecidos nas primeiras declarações do Século XVIII, foi
acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma progressiva recepção de direitos,
liberdades e deveres individuais que podem ser considerados os antecedentes dos direitos
fundamentais. É na Inglaterra, da Idade Média, mais especificamente no Século XIII, que
encontra
-
se
o principal documento referido por todos que se dedicam ao estudo da evolução
dos direitos humanos. Trata
-
se da
Magna C
harta Libertatum
, pacto firmado em 1215 pelo Rei
João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses. Este documento, inobstante tenha apenas
servido para garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em princípio, a
população do acesso aos “direitos” consagrados no pacto, serviu como ponto de referência
para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo
legal e a garantia da propriedade. Todavia, em que pese possa ser considerado o mais
importan
te documento da época, a Magna Charta não foi nem o único, nem o primeiro,
destacando
-se, nos Séculos XII e XIII, as cartas de franquia e os
forais
outorgados pelos
reis portugueses e espanhóis.
17
Também de capital importância para a evolução que conduziu ao nascimento dos
direitos fundamentais, consoante assinala Ingo Wolfgang
Sarlet
, foi a Reforma Protestante
que levou à reivindicação e ao gradativo reconhecimento da liberdade de opção religiosa e de
culto em diversos países da Europa, como foi o caso do Édito de Nantes, promulgado por
Henrique IV da França, em 1598, e depois revogado por Luís XIV, em 1685. Nesta senda, não
como desconsiderar a contribuição da Reforma e das conseqüentes guerras religiosas na
consolidação dos modernos Estados nacionais e do absolutismo monárquico, por sua vez
precondição para as revoluç
ões
burgues
a
s do
S
éculo XVIII
.
18
17
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique.
Los Derechos Fundamentales
. 6ed. Madrid, Tecnos, 1995, p .33
-
34
18
SARLET, Ingo Wolfgang.
A eficácia dos direitos fundamentais
.
8ed., Livraria do Advogado, 2007,
p.50.
18
Sintetizando
algumas das diversas teorias existentes naquele período histórico,
Luiza
Cristina Fonseca Frischeisen
aduz
que foi a partir do Século XVI, que passaram a ser
formados os conceitos de nação, de soberania popular (legitimidade), de poder constituinte
originário e derivado, de mandatos representativos,
da
separação dos poderes, dos direitos e
garantias individuais, nos moldes até hoje aceitos. F
ormam
-se ainda as justificativas teóricas
pelas quais os homens resolveram instituir regras de convívio e, embora detentores da
liberdade individual e da soberania popular, abriram mão de parte dessa liberdade, para
conviver em sociedade. Evidentemente, várias foram as teorias elaboradas, resultando em
modelos de governos monárquicos absolutistas (Jean Bodin, Seis Livros da República 1576
e Thomas Hobbes, O Leviatã 1651) e outros que defendiam a monarquia constitucional
(John Loke, Dois Tratados Sobre o Governo Civil 1680). n
o
Século XVIII, as
preocupações dos teóricos
voltaram
-se para os fundamentos da soberania popular com
Ro
u
sseau
(O Contrato Social 1762) e, como conseqüência, surge a idéia de Poder
Const
ituinte como fundamento de legi
ti
mi
dade
da Constituição (Sieyès, A Constituição
Burguesa, O que é Terceiro Estado?
-
1789).
19
Muito se discute, no âmbito doutrinário, acerca da paternidade dos direitos
fundamentais, disputada entre a Declaração de Direitos do povo da Virgínia, de 1776 e a
Declar
ação
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de
1789
, no
tocante
ao fato
da primeira ter influenciado a
segunda
, e qual das duas, em seus conteúdos, é política ou
eticamente superior à outra.
Todavia,
o certo é que tanto uma como outra tinham como característica comum a
inspiração jusnaturalista, reconhecendo ao ser humano direitos naturais inalienáveis,
invioláveis e imprescritíveis, direitos de todos os homens e não apenas de uma casta ou elite
,
havendo, segundo a doutrina, uma inequívoca relação de reciprocidade no que se refere à
influência exercida por uma declaração de direitos sobre a outra, se mostrando desnecessária
para os fins deste estudo uma análise da intensidade desta influência mútua, assim como um
maior
aprofundamento
nesta dis
cussão
,
invocando
-
se
, aqui, a lição de
Norberto
Bobbio:
Deixemos aos historiadores a disputa sobre a relação entre as duas
declarações. Apesar da influência até mesmo imediata que a revolução das
treze colônias teve na Europa, bem como a rápida formação no Velho
19
FRISCHEISEN, Luiz
a
Cristina
Fonseca. Políticas Públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
.
São Paulo:
Max Limonad,
2000,
pp
. 21
e
22.
19
Continente do mito americano, o fato é que foi a Revolução Francesa que
constituiu, por cerca de dois séculos, o modelo ideal para todos os que
combateram pela emancipação e pela libertação do próprio povo. Foram os
princípios de 1789 que constituíram, bem ou mal, um ponto de referência
obrigatório para os amigos e para os inimigos da liberdade, princípios
invocados pelos primeiros e execrados pelos segundos
.
20
O que é importante assinalar
é
que
a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão,
de
26 de agosto de 1789, de maior conteúdo democrático e social,
incorporou
definitivamente ao constitucionalismo os conceitos de soberania popular, divisão de poderes e
garantia de direitos individuais, ao estabelecer, em seu Art. 16 que: “A sociedade em que
não
esteja assegurada a garantia dos direitos e nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição”,
de modo que foi decisiva para o processo de constitucionalização e
reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas Constituições do
S
éc
ulo XIX.
Nota
-se, assim, que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de
novas liberdades contra velhos poderes,
surgindo de
modo gradual
e progressivo
.
Aliás, c
onforme ensina
Norberto
Bobbio
:
Os direitos do homem constituem uma classe variável, como
demonstra
a
história d
os
últimos séculos. O elenco dos direitos do homem se modificou,
e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja,
dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios
disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.
Direitos que foram declarados absolutos no final do século
(sic)
XVIII,
como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais
limitações nas declarações contemporâneas; direitos que nas declarações do
século
(sic)
XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são
agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. o é
difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no
momento nem sequer podemos imaginar, como o direito de respeitar a vida
também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem
direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época
histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras
épocas e em outras culturas.
21
A conquista de novos direitos fundamentais e a mutação dos conquistados,
ficam
bem evidenciados após a Revolução France
sa
, na passagem da teoria para a prática, pois foi
20
B
OBBIO
, Norberto
.
A era dos direitos. 5tir., Trad.Carlos Nelson Coutinho.Rio de Janeiro:
Campus,
2002,
p
.105.
21
BOBBIO
. o
p. cit., p 38.
20
justamente
naquele momento histórico que os direitos à liberdade, igualdade, fraternidade e
propriedade, idealizados pelos filósofos e pensadores foram postos em prática, que
positivados.
Os direitos do homem ganh
aram
em concretude, mas perde
ram
em
universalidade. Os direitos passaram a ser reconhecidos e protegidos pelo Estado.
Contudo, n
a
esfera privada, na concepção liberal
burguesa,
cada
pessoa
conseguia seus
próprios
bens
materiais
, conforto e dinhe
iro
, de acordo com suas habilidades e capacidades individuais
.
O
individualismo se instalou no seio da sociedade e no campo econômico e social aplicava-
se
o
velho adágio
popular do
cada um por si e Deus para todos
”.
O Estado, na concepção liberal, não interferia na Economia nem tampouco em outros
assuntos de interesse predominantemente privado. Era a figura do Estado-mínimo, que
respeita
va a liberdade dos indivíduos, garantindo-
lhes
a segurança e o direito à propriedade
em
caráter quase que
absoluto.
Hav
ia uma indiscriminada exploração do
trabalho pelo capital
,
de modo que os ricos ficavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, sem
qualquer interferência estatal. Neste contexto, a igualdade que constituíra um dos pilares da
Revolução France
sa restou
abalada
pela irrestrita liberdade no campo econômico e social.
À
burguesia
,
que
se apoder
ou
do controle político da sociedade, nesse primeiro Estado
de Direito p
ós
-r
evolução
f
rancesa
, não mais interessa
va
manter na prática a universalidade
dos
princípios revolucionários, como característica comum a todos os homens. Sustenta
va
m
tais princípios, apenas de maneira formal, como um discurso demag
ógico
, porque na prática
conserva
va
m, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe. Em out
ras palavras,
é o liberalismo burguês que, ancorado nos princípios da liberdade e da igualdade, passou a
privilegiar a propriedade material, a atividade produtiva, em detrimento da mão-
de
-
obra
e da
classe proletária, que foi
despudoradamente
explorada e vi
lipendiada
. Em uma frase, a
burguesia fez da doutrina de uma classe a doutrina de todas as classes.
Consoante destacado por
Antônio Carlos Wolkmer:
O liberalismo surgiu como uma nova visão global do mundo
constituída
pelos valores, crenças e interesses de uma classe social emergente (a
burguesia) na sua luta histórica contra a dominação do feudalismo
aristocrático fundiário, entre os séculos XVII e XVIII, no continente
europeu. Assim, o Liberalismo torna-se a expressão de uma idéia
individualista voltada basicamente para a noção de liberdade total que está
presente em todos os aspectos da realidade, desde o filosófico até o social, o
21
econômico, o político, o religioso, etc. Em seus primórdios o Liberalismo se
constitui na bandeira revolucionária que a burguesia capitalista (apoiada
pelos camponeses e pelas camadas sociais exploradas) utiliza contra o
Antigo Regime Absolutista. Acontece que, no início, o Liberalismo assumiu
uma forma revolucionária marcada pela “liberdade, igualdade e
fraternidade
”, em que favorecia tanto os interesses individuais da burguesia
enriquecida quanto aos de seus aliados economicamente menos favorecidos.
Mais tarde, contudo, quando o capitalismo começa a passar à fase
industrial, a burguesia (a elite burguesa), assumindo o poder político e
consolidando seu controle econômico, começa “a aplicar na prática,
somente aspectos da teoria liberal” que mais lhe interessam, denegando a
distribuição social da riqueza e excluindo o povo do acesso ao governo.
22
Na
Revolução Industrial do S
écu
lo XIX, acontecimento histórico que representou o
deslocamento das atenções da economia agrícola para as fábricas,
ocorreu
uma significativa
expansão
da atividade fabril
e
do
transporte marítimo. A industrialização da Grã-
Bretanha
resultou na primeira forç
a trabalhista de atividades desempenhadas nas fábricas e na formação
de relações de trabalho iníquas, em desfavor dos contratados para a mão-
de
-
obra.
A classe
trabalhadora se viu numa situação de penúria, ou mesmo de miséria. O trabalho era uma
mercadoria
como outra qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura. A máquina reduzia a
necessidade de mão-
de
-obra, gerando a massa dos desempregados e, portanto, baixos salários.
Além da elevada e descomunal jornada de trabalho semanal, mulheres e crianças também
eram arrebanhadas para trabalhar
em condições insalubres
.
Na Europa, a França, a Bélgica e a
Alemanha seguiram os mesmos passos, na massificação da produção, assim como os norte-
americanos.
Co
nforme
explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a marginalização da classe
operária, como que excluída dos benefícios da sociedade, vivendo em condições subumanas e
sem dignidade, provocou, em reação, o surgimento de uma hostilidade dessa classe contra os
“ricos”, contra os “poderosos”, que favorece o recrutamento de ativistas revolucionários,
inclusive terroristas. E na fórmula marxista a luta de classes. Tal situação era uma ameaça
gravíssima à estabilidade das instituições liberais, portanto, à continuidade do processo de
desenvolvimento econômico. Urgia superá
-
la e
isto suscitou uma batalha intelectual e política.
Assim, f
ace
às objeções violentas das demais classes sociais, sobretudo da classe operária,
a
primeira fase do constitucionalismo burguês
sucumbe.
23
22
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.
121.
23
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 9ed., São Paulo: Saraiva, 2007,
p.43
.
22
N
o
Século XIX, o Liberalismo avança para uma idéia mais democrática da
participação de todos na vontade estatal. Do princípio liberal chega-se ao princípio
democrático. Do governo de uma classe, ao governo de todas as classes. A burguesia defendia
o princípio da representação, mas em termos, ou seja, com privilégios e discriminações. O
direito de voto era restrito
a
determinadas pessoas, o
chamado
voto censitário. Novos embates
se seguiram, com derramamento de sangue, e somente em 1848, o sufrágio passou a ser
universal
em
França. Decorrente de uma revolução de f
or
te
conotação social, a Constituição
francesa de 1848 constitui-se no principal documento da evolução dos direitos fundamentais
para a consagração dos direitos econômicos, culturais e sociais, como o direito ao ensino
primário, à educação profissional e à
igualdade de relações entre patrão e empregado.
no Século XX, a Constituição mexicana de 1917 foi a primeira a atribuir aos
direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, juntamente com as liberdades
individuais e os direitos políticos. A importância desse precedente histórico deve ser
salientada, pois na Europa a consciência de que direitos humanos têm também uma dimensão
social veio a se afirmar após a grande guerra de 1914-1918, que encerrou de fato o “longo
Século XIX”; nos Estados Unidos, a extensão dos direitos humanos ao campo
soci
o
econômico ainda é largamente contestada
, conforme esclarece Fábio Konder Comparato,
que
registra
:
A Constituição de Weimar, em 1919, trilhou a mesma via da carta mexicana, e
todas as convenções aprovadas pela então recém-criada Organização Internacional do
Trabalho, na Conferência de Washington do mesmo ano de 1919, regularam matérias que já
constavam da Constituição mexicana: a limitação da jornada de trabalho, o desemprego, a
proteção da maternidade, a idade mínima de admissão de empregados nas fábricas e o
trabalho noturno dos menores na indústria.
24
O
último
autor
citado
assinala ainda, na seqüência, que entre a Constituição mexicana
e a de Weimar eclode a revolução russa, um acontecimento decisivo na evolução da
humanidade no Século XX. O Congresso p
an
-russo dos
Societes
, de d
eputados
o
perários,
soldados e c
amp
oneses, reunido em Moscou, adotou em janeiro de 1918, portanto, antes do
término da
Guerra Mundial, a Declaração do Povo Trabalhador e Explorado. Nesse
documento são afirmadas e levadas às últimas conseqüências, agora com apoio da doutrina
24
COMPARATO, Fábio Konder
.
A afirmação histórica dos direitos humanos. 5ed., São Paulo: Saraiva,2007,
p.178.
23
marxista, várias medidas constantes da Constituição mexicana, tanto no campo
socioeconômico quanto no político.
Conforme se
depreende
do exposto, o Direito
sempre
permeia
movimentos sociais de
cada período histórico, não tendo
, por certo,
ficado imune
às
Revoluç
ões
Industrial
e Operária
de 1
8
48
,
em
França
e, desse modo, as Constituições passaram a incorporar não só os direitos e
garantias individuais, mas também os direitos sociais. Dito de outra forma, em cada período
histórico, os legisladores constituintes incorporaram nas Leis Fundamentais aquilo que no
período correspondente se consagrou como a mais generosa expressão do ideário da época.
Num passo segu
inte,
houve a exigência de que tais direitos fossem garantidos, por ações
estatais, seja de intervenção direta, seja de controle e fiscalização, para que o direito à
igualdade de oportunidades fosse realmente exercido.
Nesta senda,
Paulo Bonavides
afirma
que
:
Deixou a igualdade de ser a igualdade jurídica do liberalismo para se
converter na igualdade da nova forma de Estado. Tem tamanha força na
doutrina constitucional vigente que vincula o legislador, tanto o que faz a lei
ordinária nos Estados membros e na órbita federal como aquele que no
círculo das autonomias estaduais emenda a Constituição ou formula o
próprio estatuto básico da unidade federada. Na presente fase da doutrina, já
não se trata em rigor, como assinalou Leibnholz, de igualdade
perante
a
lei, mas de uma igualdade
feita
pela lei, uma igualdade
através
da lei.
25
Seguindo o curso da história, após a Guerra Mundial e as experiências dos regimes
ditatoriais, constatou-se que não bastava constitucionalizar os direitos fundamentais,
so
bretudo os sociais, para garantir e assegurar que o regime fosse o democrático. Era
necessário que a Constituição do Estado estabelecesse e garantisse mecanismos de
participação popular, sem qualquer discriminação, bem como instrumentos de manutenção do
pr
ocesso democrático e respeito à Lei Maior.
Nessa concepção, o Estado Democrático de Direito é aquele fundado na soberania
popular, manifestada em eleições livres, que aprofunda seus mecanismos de participação,
além do exercício do voto, incorporando e garantindo os direitos fundamentais individuais,
25
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
.
18ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 376.
24
coletivos
, sociais, econômicos e culturais, sendo o Poder exercido em consonância com a
Constituição
, tendo
como objetivo a promoção do bem
-
estar social e a justiça social.
Diante do exposto, conclui-se que a compreensão histórica dos direitos fundamentais
exerce um papel deveras importante, pois permite entender que os “direitos do homem”, não
surgiram do acaso, mas sim de experiências de confronto, ora de sedimentação, ora de crise, e
a descoberta de novos percursos e novos avanços. Assim, após mapear as origens dos direitos
fundamentais, pode-se constatar que tais direitos, por mais fundamentais que sejam, são
históricos, pois nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
li
berdades contra velhos poderes, evoluindo de modo gradativo e perene, acompanhando o
processo histórico, as lutas sociais e os contrastes de regimes políticos, assim como os
progressos científicos, tecnológicos e econômico.
Nessa perspectiva
,
vale a pena deixar aqui registrado a percuciente reflexão de
Norberto
Bobbio, no sentido de que ‘o problema fundamental em relação aos direitos do
homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema
não filosófico, mas político
’.
26
Esse é justamente o ponto nodal e crítico a ser enfrentado no decorrer desta
dissertação
, que trilhará o caminho do “substancialismo” constitucional, defendendo a plena e
imediata aplicabilidade dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Fed
eral
,
conforme, aliás, prevê, o § do seu Art. 5º,
27
como única forma de assegurar a efetividade
dos valores e princípios do Estado Social e Democrático de Direito, a fim concretizar o
princípio jurídico-constitucional geral do respeito à dignidade humana, buscando realizar, em
última
análise
, a felicidade
do ser humano.
26
B
OBBIO
, Norberto
.
A era dos direitos. 5tir.,Trad.Carlos Nelson Coutinho.Rio de Janeiro:
Campus,
2002,
p
.43.
27
§ 1º
do Art.5º: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
25
1.1. Direitos
F
undamentais na Constituição de 1988
À guisa de introdução, vale a pena destacar que na história constitucional brasileira, as
Constituições de 1824 e 1891 foram liberais, ao passo que as Constituições de 1934, 1946,
1967 e 1988 podem ser consideradas como Constituições sociais.
A
atual
Constituição trouxe em seu Título II os direitos e garantias fundamentais,
subdividindo
-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos (Art.5º), direitos sociais
(Arts.
a 11), direitos de nacionalidade (Arts. 12 e 13), direitos políticos (Arts. 14 a 16) e
direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos (Art.17).
Vários doutrinadores diferenciam direitos de garantias fundamentais.
Conforme
destaca Alexandre de Moraes, a distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito
pátrio, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as
que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que
são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as
garantias, ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a
fixação da garantia com a declaração de direito
.
28
José Afonso da Silva alerta para que sejam evitados os equívocos de uma leitura
apressada do
T
exto
C
onstitucional. É que muitas vezes o constituinte, ao dispor sobre direitos,
valeu
-se da forma redacional própria para enunciar garantias, como por exemplo, no inciso
XXII do Art. 5º, em que se lê: “É garantido o direito de propriedade”. Desta feita, para a
diferenciação entre direitos e garantias, durante a interpretação do texto da Constituição,
deve
-se focar no conteúdo jurídico da norma, se declaratório ou assecuratório, e não na forma
redacional utilizada.
29
A despeito dessa diferenciação, o certo é que
os
direitos e garantias fundamentais
constituem um amplo catálogo de dispositivos, onde estão reunidos os direitos de defesa do
indivíduo perante o Estado, os direitos políticos, os relativos à nacionalidade e os direitos
28
MORAES, Alexandre de
.
Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional. 7e
d.
,
Atlas,
2007,
p.103
.
29
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo
.
9ed., São Paulo:Malheiros, 1992, p.170.
26
sociais, dentre outros. São direitos inerentes à condição humana, instituídos com a finalidade
precípua de proteger a dignidade
d
a pessoa
humana, em todas suas
gerações
ou dimensões
.
Calha aqui enfatiza
r
que “gerações” dos direitos
demonstram
a ordem cronológica do
reconhecimento e
positivação
dos direitos fundamentais, que
foram
proclama
dos
grad
ativamente
na proporção das carências do ser humano surgidas em
razão
da
alteração
das
condições sociais. Portanto, é importante sempre ter em mente que o reconhecimento dos
direitos fundamentais, no evoluir histórico, se deu de forma gradual e progressiva,
com
caráter complementar ou cumu
lativo
.
Aliás, ao tratar das gerações de direitos fundamentais, Manoel Gonçalves Ferreira
Filho,
sustenta que, na verdade, o que aparece no final do Século XVIII não constitui senão a
primeira geração dos direitos fundamentais: as liberdades públicas. A segunda virá logo após
a primeira Guerra Mundial, com o fito de complementá-la: são os direitos sociais. A terceira,
ainda, não plenamente reconhecida, é a dos
direitos de solidariedade
.
30
Assinale
-
se
que as três gerações de direitos, na concepção de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, est
ão
embasadas nos três princípios
cardeais
da Revolução Francesa, quais
seja
m
, liberdade, igualdade e fraternidade
.
Para Willis Santiago Guerra Filho, a primeira geração é aquela em que aparecem as
chamadas liberdades políticas, “direitos de liberdade”, que são direitos e garantias dos
indivíduos a que o Estado omita-se de interferir em uma sua esfera juridicamente intangível.
Com a segunda geração surgem os direitos sociais a prestações pelo Estado para suprir
carências da coletividade. na terceira geração concebe-se direitos cujo sujeito não é mais o
indivíduo nem a coletividade, mas sim o próprio gênero humano, como é o caso do direito à
higidez do meio ambiente e do direito dos povos em desenvolvimento.
31
Apesar disso, se fala tranqüilamente em direitos de quarta geração ou dimensão
.
Paulo Bonavides é um dos que falam dessa quarta dimensão de direitos fundamentais, como
30
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.
Direitos humanos fundamentais
. 9ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.6.
31
GUERRA FILHO
,
Willis Santiago.
Proces
so constitucional e direitos fundamentais
. 5ed., RCS, 2007, p. 43
.
27
sendo aqueles decorrentes do fenômeno da globalização da política neoliberal, assim como da
evoluç
ão e da contínua transformação da personalidade do ser humano.
32
Conforme aponta Dirley da Cunha Junior, as gerações dos direitos revelam a ordem
cronológica do reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais, que se proclamam
gradualmente na propor
ção das carências do ser humano, nascidas em função da mudança das
condições sociais. A dizer, o desenvolvimento da técnica, a transformação das condições
econômicas e sociais, a ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de
comunicação poderão causar substanciais alterações na organização da vida humana e das
relações sociais a propiciar o surgimento de novas carências, suscitando novas reivindicações
de liberdade e de poder.
33
No que se refere à terminologia, c
umpre
aqui anotar
,
que
fundada
s críticas vêm sendo
endereçadas contra o termo “gerações” ao argumento de que ele é equí
voc
o por deixar
transparecer a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, ou seja,
que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, de modo que quem prefira
o termo “dimensões” dos direitos fundamentais que melhor
retrataria
o caráter de um processo
cumulativo e de complementariedade daqueles direitos, embora, vale enfatizar, não haja
dissenso no tocante ao conteúdo das respectiv
as “dimensões” e “gerações
de direitos.
A este propósito, calha à fiveleta, a lição de Willis Santiago Guerra Filho,
afiançando
que
ao invés de “gerações” é melhor se falar em dimensões de direitos fundamentais”, não
apenas pelo preciosismo de que gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das
mais novas. Mais import
ant
e é que os direitos “gestados” em uma geração, quando aparecem
em uma ordem jurídica que trás direitos de geração sucessiva, assumem uma outra
dimensão, pois os direitos de
geração mais recente tornam
-
se um pressuposto para entendê
-
los
de forma mais adequada e, conseqüentemente, também para melhor realizá-los. Assim, por
exemplo, o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda
dimensão dos direitos fundamentais, pode ser exercido observando-se sua função social, e
com o aparecimento da terceira dimensão, observando
-
se igualmente sua função ambiental.
34
32
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
. 18ed.
, São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 571 e ss.
33
CUNHA J
ÚNIOR
, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.198.
34
GUERRA FILHO
,
Willis Santiago.
Processo constitucional e direitos fundamentais
. 5ed., RCS, 2007, p. 43
.
28
Destarte, r
efletindo
sobre tal linha de argumentação
,
extrai
-
se
que além do caráter
cumulativo e complementar, a teoria dimensional também afirma a unidade e indivisibilidade
dos direitos fundamentais. Em razão disso é que esta dissertação
opta
por perfilhar, na esteira
da mais moderna doutrina, pela expressão
dimensões
dos direitos fundamentais para
designar não as diversas fases de evolução desses direitos, como também para identificar
os meios com base nos quais se deve compreendê
-los e conciliá-
los nas hipóteses de conflitos
,
como
pode acontecer
, entre o direito de propriedade (primeira
dimensão) e o direito ambiental
(de terceira dimensão).
Em arremate, p
ode
-se afirmar, assim,
que
os direitos fundamentais de primeira
dimensão são os direitos individuais e políticos, e decorrem do princípio da liberdade; os de
segunda dimensão são os d
ire
itos sociais, econômicos e
culturais
e encontram eco no
princípio da igualdade, os de terceira
dimensão
o direito à paz, de propriedade sobre o
patrimônio comum da humanidade, ao desenvolvimento econômico, ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado,
à
comunicação
e nasceram do direito de fraternidade; e os de
quarta dimensão
o
direito à democracia, à informação e ao pluralismo, os quais
decorre
m d
o
fenômeno d
a globalização, assim como das dimensões antecedentes
.
Noutro enfoque, é
importante
ressaltar
algumas das características dos direitos
fundamentais, dentre as quais
pode
-
se
citar
a universalidade,
a
inalienabilidade,
a
imprescritibilidade,
a
irrenunciabilidade,
a
limitabilidade,
a
concorrência,
a
proibição de
retrocesso e
a
constitucionalização
.
De acordo com o magistério de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes
Junior, a
universalidade
implica dizer que os direitos fundamentais não estão circunscritos a
uma determinada categoria ou classe de pessoas. Contudo, não são absolutos, mas sim
limitáveis
(princípio da limitabilidade)
,
que às vezes podem chocar-
se
entre si. Ocorre que,
antevendo essas colisões, como no caso da propriedade privada e da desapropriação,
o
co
nstituinte se antecipou
e
equacionou o problema ao fixar a prévia e justa indenização.
35
Quando
não equacionados pelo constituinte
, o
Estado
-
juiz
poderá
ser chamado
par
a analisar o
caso concreto, decidindo com base na razoabilidade e na ponderação, como ocorre, por
35
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 6ed., São
Paulo: Saraiva, 2002, p.
82 e 83.
29
exemplo,
com o direito à informação e o de privacidade, ou entre o direito de opinião e o
direito à honra
.
A inalienabilidade consiste no fato de que os direitos fundamentais são intransferíveis
e inegociáveis, que não se encontram à disposição de seu titular. Imprescritíveis porque
podem ser sempre exigíveis, não passíveis de prescrição e i
rrenunciáveis
porque seu titular
deles não pode dispor, embora possa deixar de exercê-los. Concorrentes porque podem ser
exercidos cumulativamente. Sendo os direitos fundamentais o resultado de um processo
evolutivo, marcado por lutas, revoluções e conquistas em favor de sua afirmação, não podem
ser
suprimidos, abolidos ou enfraquecidos. Daí a proibição de retrocesso. Por fim, a
constitucionalização decorre do fato de que os direitos fundamentais são anteriores e
superiores ao
Estado e, conseqüentemente anteriores e superiores a qualquer positivação que a
eles se intente, pelo simples fato de serem inerentes à condição humana.
Enveredando perfunctoriamente num contexto comparativo entre a
atual
Constituição
e o direito constitucional positivo anterior,
detecta
-
se
inovações de significativa importância
no que se refere aos direitos fundamentais.
A primeira delas é de cunho topográfico, que positivou os referidos direitos logo no
início de suas disposições (Título II)
36
, ao contrário das Constituições anteriores. Outra
inovação foi a previsão dos direitos sociais em C
apítulo
37
próprio dos direitos fundamentais.
A ampliação do catálogo de direitos fundamentais expressos, assim como a cláusula de
abertura (§ do Art. 5º)
38
ta
mbém consistiu relevante inovação. Também passou à categoria
de cláusula pétrea (§ 4º, Art. 60)
39
. Mas, entre as inovações, a que mais se destaca é a prevista
no § do Art.
40
, que determina a aplicabilidade imediata de todas as normas definidoras
de direitos e garantias fundamentais.
Pode
-se afirmar, sem sombra de dúvidas que, pela
primeira vez na história do constitucionalismo
brasileiro
, a matéria foi tratada com a merecida
e justa
relevância.
36
Título II
– D
os
D
ireitos e
G
arantias
F
undamentais
.
Arts. 5º a 17.
37
Capítulo II (dos direitos sociais
Arts. 6º a 11
), do Título II (dos direitos e garantias fundamentais)
.
38
§ 2º, do Art. 5º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.
39
§ do Art. 60 Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...]
IV
- os direitos e
garantias individuais.
40
§1º do Art. 5º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
30
Outro fato importante e digno de nota é que o processo de elaboração da
atual
Constituição
brasileira
foi resultado do processo de redemocratização do País, após vinte
e um
anos de ditadura
militar
, de
modo
que
ela
foi objeto de uma
ampla
discussão
,
sem precedentes
na história nacional, tendo sido dada uma atenção especial e merecida aos direitos
fundamentais.
Neste cenário, cumpre destacar que houve uma
forte
reação do c
onstituinte
, assim
como
das forças sociais e políticas, contra as restrições até então vigentes no tocante às
liberdades públicas
, restando
evidenciada a preocupação
em
deixar consignados
os
direitos
fundamentais
,
até
que de certa forma
redundante
e desnecessária, como ocorreu com
o
princípio d
a
igualdade (“
caput
41
e inciso I
42
, do Art. 5º)
.
Não bastava para o constituinte a
garantia genérica de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza
(“
caput
),
pois julgava necessário delinear especificamente que homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, para não se deixar pairar a melhor dúvida dessa igualdade (inciso I),
tamanha
era
a preocupação e o cuidado de não oportunizar mais nenhum retrocesso da N
ação
no tocante aos direitos fundamentais.
A propósito, não por outra razão
,
que os direitos
fundamentais
foram incluídos no rol
d
as
chamadas cláusulas pétreas da Co
nstituição
(Art. 60, §4º)
43
, não sendo passíveis
de
reforma
,
quer
para a
subtração,
quer para a redução. Patente, pois, a impossibilidade de
retrocesso
no que tange aos direitos fundamentais, tão caros à sociedade
brasileira
e que
foram
re
adquiridos com a redemocratização do País, após mais de duas décadas de ditadura
militar
.
Todavia, obviamente pode haver
o
acréscimo de novos direitos fundamentais no rol
daqueles existentes, como de fato ocorreu por meio da Emenda Constitucional
26
, de 14
de fevereiro de
2000
44
, que incluiu o direito a moradia no Art. (dos direitos sociais) e
posteriormente
pela Emenda Constitucional 45/2004, de 08 de dezembro de
2004,
a
41
Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos
ternos seguintes:
42
I
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
43
§ do Art. 60 Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV- os direitos e
garantias individuais.
44
Art. O art.
(sic)
da
Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. São direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
31
chamada
reforma do Judiciário,
que
acrescentou
o
inciso LXXVIII
45
a
o
A
rt. 5º, assegurando a
todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação, assim como a inclusão de um §
46
no Art.
prevendo a possibilidade de aprovação, com status de e
menda
constitucional, de tratados em
matéria de direitos humanos.
De outro lado, dentre as várias características atribuídas à Constituição
brasileira
, pelo
menos
três delas podem ser consideradas como extensivas ao T
ítulo
47
dos direitos
fundamentais
. Seu caráter analítico (grande número de artigos e incisos), seu pluralismo (
no
sentido de conciliar reivindicações nem sempre afinadas entre si, fruto de várias posições
sociais
, econômicas e políticas que foram acolhidas pelo constituinte) e seu forte cunho
programático e dirigente (grande número de dispositivos dependentes de regulamentação
legislativa, estabelecendo programas e diretrizes a serem perseguidas e implementadas pelos
P
oderes
P
úblicos)
.
No campo dos direitos fundamentais, houve certa mitigação no tocante ao seu
conte
údo programático, em razão do contido no § 1º
48
do Art. 5º, da Constituição Federal que
prevê a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais. Contudo,
não pode deixar de ser dito que não existe consenso acerca do alcance desse dispositivo legal,
que
merecerá maior atenção
no
decorrer desta dissertação, sobremodo no tópico alusivo à
efetividade dos direitos fundamentais.
Repise
-
se que
, topograficamente, os direitos fundamentais mereceram uma posição de
destaque no T
exto
C
onstitu
cional, que consagrados nos primeiros dispositivos (Art. ao
Art. 17), com evidente reconhecimento de que constituem parâmetro hermenêutico de valores
de toda a ordem constitucional, mesmo porque estão umbilicalmente ligados ao princípio da
dignidade
da pessoa humana
.
45
LXXVIII
a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
46
§ Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos, dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.
47
Título II
– D
os
D
ireitos e
G
arantias
F
undamentais.
48
§1º do Art. 5º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
32
Neste extenso rol, que consagra direitos individuais, coletivos, sociais, dos
trabalhadores, de cidadania, representatividade direta e partidos políticos
,
são contemplad
a
s
as
várias dimensões dos direitos fundamentais,
assinalad
as em linhas anteriores,
revelando,
desse modo, estar em perfeita sintonia não com a Declaração Universal dos Direitos
do
Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, mas também com a Constituição francesa de
18
48
e
com os principais pactos internacionais.
Apesar desses significativos avanços, Ingo Wolfgang Sar
let
adverte que a falta de
rigor científico e de uma técnica legislativa adequada, sobretudo no
tocante
à terminologia
empregada,
pode ser apontada como uma das principais fraquezas do catálogo dos di
reitos
fundamentais e da atual Constituição, revelando contradições, ausência de tratamento lógico
na matéria, ensejando problemas de ordem hermenêutica.
49
É o caso, por exemplo,
d
o Art. 6º
50
que
e
nuncia genericamente os direitos sociais básicos, sem qualquer explicitação sobre o seu
conteúdo, que deverá ser buscado nos Títulos da Ordem Econômica e Financeira
51
e
da
O
rdem
S
ocial
52
, suscitando dúvida sobre quais dispositivos situados fora do Título II
53
que
efetivamente integram os direitos fundamentais sociais. Outra crítica refere-
se
à inserção de
dispositivos de duvidosa fundamentalidade que, por certo, não precisariam constar do rol dos
direitos fundamentais como, por exemplo, os incisos XLII
54
e XLIII
55
do Art. 5º, os quais são
normas de natureza penal e poder
iam ser submetidos ao legislador infraconstitucional.
O
referido
autor
ressalta
ainda
que a despeito da existência de alguns pontos passíveis
de crítica e ajustes
,
pode
-se afirmar, sem medo de errar, que os direitos fundamentais estão
vivenciando o seu m
elhor momento na
história do constitucionalismo pátrio, ao menos no que
diz respeito com seu reconhecimento pela ordem jurídica positiva interna e pelo
49
SARLET, Ingo Wolfgang.
A eficácia dos direitos f
undamentais
. 8
e
d.
,
Livraria do Ad
vogado, 2007. p. 81.
50
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma des
ta Constituição.
51
Título VII
Da Ordem Econômica e Financeira (Arts. 170 a 192).
52
Título VIII
Da Ordem Social
(Arts. 193 a 232).
53
Título II
– D
os
Direitos e Garantias Fundamentais (Arts. 5º a 17). Capítulo II - Dos Direitos Sociais (Arts. 6º a
11)
54
XLII
a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei;
55
XLIII
- A lei considerará crimes inafiançáveis de g
ra
ça ou a
nistia
a
prática da tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os
mandantes, os executores e os que, podendo evitá
-
los, se omitirem;
33
instrumentário que se colocou à disposição dos
estudiosos
do Direito, inclusive no que
concerne
à
s possi
bilidades de efetivação sem precedentes no ordenamento nacional.
56
Numa outra perspectiva,
é
inviável e inaceitável a concepção de que os direitos
fundamentais formam um sistema em separado e fechado no contexto da
atual
Constituição,
pois o §
57
do Art. deixa claro o conceito materialmente aberto e flexível de direitos
fundamentais
receptivo a novos conteúdos e desenvolvimentos, indicando a existência de
outros direitos fundamentais positivados em outras partes do T
exto
Constitucional, sobretudo
no
s
Títulos
que cuidam da O
rdem
E
conômica
58
e S
ocial
59
, assim como na parte
organizacional.
Com efeito,
conforme assinalam
Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes
Júnior
60
os direitos fundamentais não são aqueles enumerados pelo Título II
61
da
Con
stituição, mas todos os que contenham as características assinaladas anteriormente,
integrando ou
não
,
à parte reservada aos direitos fundamentais no T
exto
C
onstitucional.
Exemplo t
ípico
e recorrente é o
do
direito à saúde. Cuida-se de direito fundament
al
reconhecido expressamente
pelo
Art. ,
62
do Título II, da Constituição Federal e melhor
explicitado
pelos
Arts.
196
63
e 197
64
que, em decorrência de uma interpretação sistemática
,
conduz
a conclusão de que estes dois últimos dispositivos também gozam do
status
d
o
primeiro
, inclusive sendo incluídos no rol das cláusulas pétreas. O mesmo ocorre com o
princípio da anterioridade tributária (Art.150,
III, b)
65
, na parte relativa às limitações do poder
56
SARLET, Ingo Wolfgang.
A eficácia dos direitos fundamentais
. 8
e
d.
,
Livraria do Ad
vogado, 2007,p. 82
57
§ 2º, do Art. 5º Os direitos e garantias expressos nesta Constituiç
ão não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.
58
Título VII
Da Ordem E
conômica e Financeira (Arts. 170 a 192).
59
Título VIII
Da Ordem Social
(Arts. 193 a 232).
60
Araújo, Luiz Alberto David
;
Nunes Júnior, Vidal Serrano.
Curso de Direito Constitucional. 6ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 85 e 86.
61
Título II
– D
os
Di
reit
os e Garantias Fundamentais (Arts. 5º a 17).
62
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Consti
tuição.
63
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas públicas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoç
ão, proteção e recuperação.
64
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos
da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através
de
terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
65
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, aos
Distrito Federal e aos Municípios: [...] III cobrar tributos: [...] b) no mesmo exercício financeiro em que haja
sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.
34
de tributar decorrente do direito de propriedade, garantido no inciso XXII
66
do Art. da
C
onstituição
, consoante reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal
na
ação direta de
inconstitucionalidade
(ADI)
939
, alusiva à Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de
1993
.
Não pode deixar de ser dito que um certo grau de coerência interna é algo inerente à
noção de sistema, de modo que é possível falar em unidade do sistema dos direitos
fundamentais. Todavia, consiste numa unidade relativa, fruto da convivência marcada pela
necessidade de harmonizações de posições jurídicas muitas vezes conflitantes entre si, uma
vez que correspondentes a valores fundamentais distintos, ligados a situações historicamente
localizadas, as quais inobstante sejam resultado de uma luta histórica pela afirmação do
princípio da dignidade da pessoa humana, que constituiu o núcleo essencial de todas as
reivi
n
dicações
e do qual constituem explicitações de maior ou menor grau, não podem, neste
contexto,
conforme adverte José Carlos Vieira de Andrade, ser deduzidas diretamente de um
valor único
(unicitário)
que assim se dividiria em frações de soma igual à unidade
.
67
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, verifica-se que, além de no mínimo uma
relativa unidade de conteúdo (ou, se quiser, do reconhecimento de certos elementos comuns),
o princí
pio da aplicação imediata da
s
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais,
bem como sua proteção reforçada contra a ação erosiva do legisla
dor
, podem ser considerados
elementos identificadores da existência de um sistema de direitos fundamentais também no
direito constitucional pátrio, caracterizado por sua abertura e autonomia relativa no âmbito do
próprio sistema constitucional que integra
.
68
Segundo o mesmo autor, os direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas
posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional
positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integradas ao
texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes
constituíd
os (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado,
66
Art. 5º,
inciso
XXII
é garantido o direito de propriedade
.
67
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976
. Coimbra
:
Almedina, 1998
, p
p
.108
-
10
9
68
SARLET, Ingo Wolfgan
g
.
A eficácia dos direitos fundamentais
. 8
e
d. Livraria do Advogado
,
2007. p. 87.
35
possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na
Constituição formal.
69
Destarte, há a constatação, pela doutrina pátria, de que os direitos fundamentais
integram um sistema no âmbito da Constituição com base no argumento de que
eles
são, em
verdade, concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, consagrado
expressamente n
a
Lei Fundamental,
mais precisamente
no A
rt. 1º, inciso III.
No tocante à classificação dos direitos fundamentais na Constituição
brasileira,
existe
na doutrina várias propostas de classificação. José Afonso da Silva classifica tais direitos em
cinco grupos: 1
)
direitos fundamentais do homem-i
ndivíduo
, por meio dos quais se reconhece
a autonomia aos indivíduos, reconhecidos como direitos individuais (Art. 5º); 2-
)
direitos
fundamentais do homem-membro de uma coletividade, que correspondem aos chamados
direitos coletivos (Art. 5º); 3-
)
direitos
fundamentais do homem-
social
, que constituem os
denominados direitos sociais e culturais (A
rt.6º);
4-
)
direitos fundamentais do homem-
nacional
, que dizem respeito aos direitos de nacionalidade
(
A
rt. 12);
5-
)
direitos fundamentais
do homem
-
cidadão
, que sã
o os direitos políticos (
A
rt.14).
70
Com base numa tipologia dos direitos fundamentais que também leva em conta o seu
objeto, Manoel Gonçalves Ferreira Filho diferencia quatro espécies de direitos: 1-
)
liberdades
, que são poderes de fazer; seu objeto, portanto, são ações (fazeres) ou omissões
(não
-fazeres). Por exemplo, a liberdade de ir e vir, ou o direito de greve; 2-
)
direitos de
crédito
, que são poderes de reclamar alguma coisa; seu objeto são contraprestações positivas
em geral prestações de serviços. Por exemplo, o direito ao trabalho, a educação, a saúde;
3-
)
direitos de situação que são poderes de exigir um
status
. Seu objeto é a situação a ser
preservada ou restabelecida como, por exemplo, o direito ao meio ambiente sadio e, de modo
geral
, os direitos de terceira geração; 4-
)
direitos
-
garantia
, que se subdividem em direitos
garantia
-limite (são os direitos a um não fazer, como de não sofrer censura) e direitos a
garantias
-instrumentais (são direitos de ação e seu objeto é uma prestação judicial, como o
direito ao mandado de segurança e habeas corpus). O autor formula, ainda, outra
classificação, agora levando em conta o titular dos direitos fundamentais em quatro espécies:
69
SARLET, Ingo Wolfgan
g
.
A eficácia dos direitos fundamentais
. 8
e
d. Livraria do Advogado
,
2007
,
p.
91
.
70
SILVA, José Afonso
da Silva.
Curso de Direito Constitucional Positivo
. 9ed.
,
Malheiros, 1992, p
.
167
-
16
8.
36
1) os direitos individuais; 2-) os direitos de grupos; 3-) os direitos co
letivos;
4-) os direitos
difusos.
71
Por sua vez, Dirley da Cunha Júnior adere à proposta classificatória elaborada por
Ingo
Wolfgang
Sarlet que, tendo por critério as diversas funções exercidas pelos direitos
fundamentais
,
teria chegado
a uma classificação
constitucionalmente adequada e que se ajusta
ao direito constitucional pátrio.
72
Segundo
Ingo Wolfgang Sarlet, que segue orientação de Robert Alexy, os direitos
fundamentais classificam
-
se em dois grandes grupos:
1
)
os direitos fundamentais como direito
de defesa (que se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos
limitação de intervenção estatal – Art. 5º, Art. 7º XIII, VIV, XXIX, XXX, XXXIII e XXXIV,
Art. e Art.
)
e, 2
)
os direitos fundamentais como direitos a prestações (que implicam
numa postura ativa do Estado, no sentido de que se encontra obrigado a colocar à disposição
dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material) que, por sua vez, se subdivide em:
2.
1) direitos a prestações em sentido amplo
(compreenden
do os direitos à proteção e os
direitos à participação na organização e procedimento) e
2.
2) direitos a prestações em sentido
estrito
(direitos a prestações materiais sociais ou simplesmente direitos sociais)
.
73
Delineadas
estas
três
posições, anote-se que para efeito deste
trabalho
,
se
mostra mais
adequada
a adoção d
a
terceira
,
ou seja, a de Ingo Wolfgang Sarlet,
pois
é a
quela
que mais se
afina
com
o
objeto d
esta
dissertação que
ora
investiga a possibilidade de questionamento das
políticas públicas de cunho social frente ao Judiciário, em caso de ação ou omissão do P
oder
P
úblico
, abordando mais especificamente
os
direitos a prestações materiais sociais em sentido
estrito
, mencionados no item
2.2
do parágrafo anterior
.
Ainda
, tendo-se em mente as classificações dos direitos fundamentais e suas
dimensões, com base na lição de Celso Lafer pode-se afirmar que a inevitável tensão entre
direitos de liberdade (defesa) e direitos sociais (a prestações) não se encontra sujeita a uma
dialética do antagonismo, mas da mútua complementação, porquanto ambas as categorias de
71
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9ed., São Paulo: Saraiva,
2007,
p.103
.
72
CUNHA NIOR, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público
.
São Paulo: Saraiva, 2004,
p.249.
73
SARLET, Ingo Wolfgan
g
.
A eficácia dos direitos fundamentais
. 8
e
d.
,
Livraria do Advogado.
2007. p.196.
37
direitos fundamentais se baseiam na concepção de que a dignidade da pessoa humana apenas
se poderá afirmar mediante a existência de maior liberdade e menos privilégios para todos.
74
Cabe
relembrar uma
vez mais que os direitos fundamentais a prestações enquadram-
se
no âmbito dos direitos de segunda dimensão, decorrente do princípio da igualdade,
correspondendo à evolução do Estado de Direito liberal burguês para o Estado Democrático e
Social de Direito, tendo sido incorporado à maior parte das Constituições do segundo s-
guerra.
Conforme
assinala
Ingo Wolfgang Sarlet, no constitucionalismo pátrio, em que pese a
tímida previsão de direitos a prestações sociais na
Carta
de 1824, foi a C
onstituição
de 1934
,
inspirada, principalmente, nas Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), que
inaugurou a fase do constitucionalismo social no Brasil, passando a integrar os direitos
fundamentais da segunda dimensão ao direito constitucional positivo.
75
Assim, num espectro mais amplo, restou demonstrado que o constitucionalismo
sempre exigiu que o Estado se organizasse em função do homem, que constitui sua finalidade.
Ou seja, o Estado como instrumento e o homem como fim. Assim, os direitos fundamentais
constitue
m o núcleo essencial do ordenamento jurídico-constitucional e a espinha dorsal do
Estado Democrático de Direito, cuja finalidade é a realização e promoção dos direitos
fundamentais, que, em última análise, correspondem à realização e concretização da própr
ia
Constituição.
Do mesmo modo
, vislumbra
-
se
também
que os direitos fundamentais, como valor
es
axiológico
s e principiológicos conformadores de toda a ordem constitucional
,
decorrentes do
princípio da dignidade da pessoa humana, possuem inúmeros desdobramentos e perspectivas,
até mesmo diante de sua multifuncionalidade. De qualquer
forma
, entende-se que o
s
conceitos, noções, terminologias,
classificações,
comparações e inovações até aqui
expostos
servirão de base para
a compreensão dos demais assuntos qu
e a seguir serão
abordados
.
74
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. 6reimp., São Paulo: Companhia das Letras, 2006,
p.13
0.
75
SARLET, Ingo Wolfgang
.
A eficácia dos direitos fundamentais. 8e
d.
, Livraria do Advogado. 2007. pp.217-
218.
38
Conforme já assinalado em linhas anteriores, a fim de não alargar demasiadamente a
pesquisa
de molde a perder o foco principal, é que doravante haverá um corte metodol
ógico
dando
-
se
ênfase
aos direitos sociais
que,
dentre
dire
itos fundamentais já listados, é aquele
que
mai
s interessa ao desenvolvimento desta dissertação, sobretudo na sua vertente
estrit
a, de
cunho prestacionaista e que demandam uma postura positiva por parte
do
Estado.
1.
3
Direitos
S
ociais
na Constituição de
1988
O novo T
exto
Constitucional conduz
iu
os direitos sociais básicos a uma posição de
destaque no ordenamento jurídico nunca antes conhecida nas Constituições anteriores, a partir
de 1934.
Assim
se afirma porque no Brasil foi a partir da Constituição de 1934 que se passou a
inscrever um Título sobre a O
rdem
Econômica e Social, sob a influência da Constituição
mexicana de 1917 e da Constituição alede Weimar de 1919, o que continuou com as
Constituições posteriores.
Conforme ensina José Afonso da Silva, os direitos sociais nessas Constituições, saíam
do
Capítulo da O
rdem
Social que sempre estivera misturada com a O
rdem
E
conômica.
76
A
atual
Constituição
traz um Capítulo próprio D
os
D
ireitos
Sociais (Cap.II do Tít. II)
77
e, bem
distanciado deste, um T
ítul
o especial sobre a O
rdem
Social (Tít. VIII)
78
, mas não ocorre uma
separação radical, como se os direitos sociais não fossem algo ínsito na ordem social.
O Capítulo II do Título II da Constituição Federal, que arrola os chamados direitos
sociais, pode ser dividido em três partes. Na primeira
79
, a indicação genérica dos direitos
sociais; na segunda
80
, estão enumerados os direitos individuais dos trabalhadores urbanos,
76
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo
. 9ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 257.
77
Título II
Dos Direitos e Gara
ntias Fundamentais: Capítulo II
Dos Direitos Sociais (Arts. 6º a 11).
78
Título VIII
Da Ordem Social
(Arts. 193 a 232).
79
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à m
aternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
80
Art. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social: Incisos I a XXXIV e parágrafo único.
39
rurais e domésticos; e, na terceira
81
, estão disciplinados os direitos coletivos desses
trabalhadores.
O
Art. da Constituição consagra, de forma genérica, os direitos sociais, que são
também direitos fundamentais, quais sejam, a educação, o trabalho, o lazer, a segurança e
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, aos
quais a Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000,
82
acrescentou o direito a
moradia.
Conforme assevera Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ‘tal dispositivo formula,
entretanto, mera enunciação exemplificativa
’.
83
O
Art.
84
da Constituição declina direitos sociais especificamente em favor dos
trabalhadores, dentre outros: seguro-desemprego, o fundo de garantia
por
tempo de serviço, o
salário mínimo, piso salarial, o décimo terceiro salário, a participação nos lucros, a jornada
semana
l de quarenta e quatro horas de trabalho, repouso semanal remunerado, a licença
gestante com duração de cento e vinte dias, a licença-paternidade, o reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de trabalho.
Nos Arts. 8º a 11
85
,
são
preconizados os direitos coletivos dos trabalhadores, que
são
a
liberdade associação profissional ou sindical, o direito de greve, direito de substituição
processual, direito de participação laboral e direito de representação na empresa.
Os direitos sociais básicos decorrem do principio da igualdade e são, por natureza,
viabili
z
adores da dignidade da pessoa humana, que nos ordenamentos democráticos do Estado
S
ocial,
compõe a medula axiológica da Constituição
,
de acordo com a lição de
Paulo
Bonavides
, que
salienta
:
‘a igualdade se converte no valor mais alto de todo o sistema
81
Arts. 8º a
11.
82
Art. 1º O art. da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. São direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistênci
a aos desamparados, na forma desta Constituição.
83
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9e
d.
, São Paulo: Saraiva, 2007,
p.105
.
84
Art. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social: Incisos I a XXXIV e
P
arágrafo único.
85
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: Incisos I a VIII e Parágrafo único.
Art.9º è assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e
sobre os interesses que devem por meio dele defender.
Art.10. É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em
que seus interesses profissionais ou previdenciári
os sejam objeto de discussão e deliberação.
Art. 11. Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a
finalidade exclusiva de promover
-
lhes o entendimento direito com os empregadores.
40
constitucional, tornando-se o critério magno e imperativo de interpretação da Constituição em
matéria de direitos sociais’
.
Mais adiante o mesmo autor
registra
que
estes direitos f
ormam
a
espinha dorsal do Estado social brasileiro na última versão que lhe é dada por uma
constituinte republicana.
86
Assinalado, dessa forma, a importância dos direitos sociais no ordenamento jurídico
constitucional
,
conv
êm
ressaltar, num passo seguinte
,
que o
traço característico d
esses
direitos
é a sua dimensão positiva, dado que objeti
vam
não
mais obstar as investidas do Estado no
âmbito das liberdades individuais, mas sim, exigir do Estado a sua intervenção para atender as
crescentes necessidades do indivíduo. São direitos de crédito porque, por meio deles, o ser
humano passa ser credor das prestações sociais estatais, assumindo o Estado, nessa relação, a
posição de devedor. Conforme destacado por Dirley da Cunha Júnior, ‘estes direitos
fundamentais sociais não estão destinados a garantir a liberdade
frente
ao Estado e a proteção
contra
o Est
ado
, mas são pretensões do indivíduo ou do grupo
ante
o Estado
’.
87
No mesmo sentido, a lição de Andreas Joachim Krell, para quem ‘os direitos
fundamentais não são
direitos
contra
o Estado, mas sim direitos
através
do Estado, exigindo
do
P
oder
Público certas prestações materiais. São os direitos fundamentais do homem-
social
dentro de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalência aos
inte
resses coletivos antes que aos individuais
’.
88
Na concepção de
Mauro Capelletti:
Tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção
ativa
do estado, freqüentemente prolongada no tempo. Diversamente dos
direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não
permita sua violação, os direitos sociais – como o direito à assistência
médica e social, à habitação, ao trabalho não podem ser simplesmente
atribuídos ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação
do
estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e
econômicas, para, enfim, promover a realização dos programas sociais,
fundamentos desses direitos e das expectativas por eles legitimadas.
89
86
BONAVID
ES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
.
18
e
d.
, São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 374
.
87
CUNHA J
ÚNIOR
, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
206
.
88
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha
.
Fabris Editor, 2002,
p. 19
.
89
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Fabris Editor, 1993
,
p.41
.
41
Neste diapasão, tem-se que os direitos sociais, como direitos fundamentais de segunda
geração, são aqueles que reclamam do Estado um papel prestacional, de minoração das
desigualdades sociais. Em outras palavras, são direitos que dependem, para sua eficácia, de
uma ação concreta do Estado, mediante leis, atos administrativos e criação real de instalações
de serviços públicos, por meio das chamadas “políticas públicas sociais” (de educação, saúde,
assistência, previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo dos direitos
constitucionalm
ente assegurados
.
José Afonso da Silva assinala que
:
Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem,
são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que
tendem a realizar a igualação de situações sociais desiguais. São, portanto,
direitos que se conexionam com o direito de igualdade. Valem como
pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam
condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que,
por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo
da liberdade.
90
De acordo com o que sustenta Ingo Wolfgang Sarlet, na esfera dos direitos
fundamentais
à prestaç
ão
, que tem por objeto uma conduta positiva por parte do destinatário,
consistente, em regra, numa prestação de natureza fática ou normativa, a necessidade de
‘cimentar juridicamente’ o estatuto jurídico-constitucional dos direitos sociais, econômicos e
culturais
.
91
Numa outra passagem, o referido autor assinala que é precisamente em função do
objeto precípuo destes direitos, da forma mediante a qual costumam ser positivados
(normalmente como normas definidoras de fins e tarefas do Estado ou imposições legiferantes
de maior ou menor concretude) que se travam as mais acirradas controvérsias envolvendo o
problema de sua aplicabilidade, eficácia e efetividade, salientando,
que
os direitos sociais,
quase sempre, necessitam de concretização legislativa, dependendo, além disso, da
s
circunstâncias de natureza socioeconômica, razão pela qual tendem a ser positivados de
90
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo
. 9ed., São Paulo: Malh
eiros, 1992, p. 258.
91
SARLET, Ingo Wolfgan
g
.
A eficácia dos direitos fundamentais
. 8
e
d.
,
Livraria do Advogado
, 2007, p.296.
42
maneira vaga e aberta, deixando ao Legislador a indispensável liberdade de conformação na
sua tarefa concretizadora.
92
Nesta senda, Andreas J
oachim
Krell observa que
a
Constituição confere ao L
egislador
uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito
social deve ser assegurado, o chamado “livre espaço de conformação”. Essa função
legislativa seria degradada se entendida como mera função executiva da Constituição. Num
sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas
para receber diversas concretizações consoante às alternativas periodicamente escolhidas pelo
eleitorado.
93
Não se pode
deixa
r de assinalar, no entanto, conforme adverte Ingo Wolfgang Sarlet,
que boa parte dos direitos fundamentais sociais consagrados na
atual
Constituição foram
objeto de concretização pelo Legislador (não importando, por ora, se de forma satisfatória ou
não)
, não havendo dúvidas de que o particular é nos termos da legislação concretizadora
titular de direito subjetivo à presta
ção contemplado na Constituição
.
94
Com efeito, a forma de implementação, assim como o detalhamento
dos
direitos
sociais constitui a ordem social constitucional, basicamente moldada nos Arts. 193 a 2
32
da
Constituição
, a ser implementada por meio de políticas blicas estabelecidas, na maior
parte, por legislação infraconstitucional que segue os ditames constitucionais, compreendend
o
as
seguintes
disposições:
1-
)
S
eguridade social
:
A
rt
s
. 19
4 a 204 da Constituição Federal.
-
S
aúde: Leis nº 8.080/90 e nº 8.142/9
0
(Sistema Único de Saúde
-
SUS
).
- Previdência social: Leis 8.212/90 e
8.213/90 (Custeio e Benefícios
Previdenciários)
-
Assistência social: que contém disposições às pessoas portadoras deficiência e idosos
que não podem se manter por si e por suas famílias: Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da
Assistência Social) e Lei nº 8.909/94 (Lei das Filantropias)
.
92
SARLET
, Ingo Wolfgang
.
A eficácia dos direitos fundamentais. 8e
d.
, Livraria do Advogado, 2007, pp. 296 e
306.
93
KRELL, Andreas J
oachim.
Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha
.
Fabris Editor, 2002,
p.22.
94
SARLET
. Op. cit., p.319.
43
2-
)
E
ducação
:
A
rts
. 205 a 214 da Constituição e Leis 9.394/96 (Diretrizes e Base),
alterada pela Lei nº 10.793/03; 9.424/96 (Fundo de valorização ao magistério – FUNDEF)
e
, nº 10.172/01 (Plano Nacional de Educação
).
3-
)
C
ultura
:
Arts.
215 e 216 da Constituição e Lei 8.313/91 dispõe sobre
incentivos fiscais
à cultura
PRONAC.
4
)
D
esporto
:
A
rt
. 21
7
da Constituição
Lei nº 9.615/98
.
5-
)
C
iência e
T
ec
nol
ogia
:
A
rt
s.
218 e 219
da Constituição
Lei nº 9.257/96 (Conselho
Nacional de Ciência e Tecnologia
.
6-
)
C
omunic
ação social: A
rts
. 220 a 224 da Constituição Leis 9.472/97 e
9.612/98
.
7-) Meio ambiente
:
Art.
225 da Constituição Lei 9.605/98 (Proteção ao meio
ambiente)
.
8-
)
Família, criança e adolescente e ao idoso
Arts.
226 a 230 da Constituição - Le
i
8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei 8.842/94 (Política Nacional do
Idoso) e Lei 10.173/01 (concede prioridade de tramitação aos procedimentos judiciais em
que figura como parte pessoa com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos;
e,
Lei
10.741/03 (Estatuto do Idoso)
.
9-
)
Í
ndios
– A
rt
s
. 231 e 232
da Constituição e
Lei nº 6
.
001/73 (Estatuto do Índio)
.
Mister destacar, também, que
fora do
Títu
lo da
O
rdem
S
ocial
95
,
mas ainda no corpo da
Constituição, existem direitos socia
is
inseridos no
T
ítulo da
O
rdem
E
conômica e
F
inanceira
,
96
dispositivos relativos às políticas urbanas,
97
fundiária e da reforma agrária
98
e aos direitos do
consumidor
99
e nas Disposições Constitucionais
Gerais
Transitórias
, o Art. 68
100
que trata dos
direitos das comunidades remanescentes dos quilombos e Art. 244
101
, que dispõe sobre o
direito de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência.
95
Título VIII
Da Ordem Social
Arts. 193 a 232.
96
Título VII
Da Ordem Econômica e Financeira
Arts. 170 a 192.
97
Capítulo II
Da Política Urbana
Arts. 182 e 183.
98
Capítulo III
Da Política Agrícola e fundiária e da reforma agrária
Arts. 184 a 191.
99
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...] V
defesa do consumidor.
§ do Art. 173. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados, à eliminação
da co
ncorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
100
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir
-
lhe os títulos respectivos.
101
Art. 244. A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de
transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência,
conforme o disposto no art. 227, § 2º.
44
Note
-se que, embora o Art.
102
da Constituição Federal não se refira aos direitos
sobre o meio ambiente
103
ou dos cons
umidores, certo é que esses também são direitos sociais.
A despeito da existência da legislação infraconstitucional acima
mencionada
, é
possível reconhecer-se um direito subjetivo com base tão-somente no direito constitucional,
que é justamente onde se encontra o fundamento de validade de todos os direitos sociais,
decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana. Dito de outro modo, os direitos
fundamentais sociais podem ser imediatamente invocados, ainda que haja falta ou
insuficiência da lei.
Al
iás, não raras vezes, o Estado deixa de implementar políticas públicas de cunho
social escudando-se no argumento de que não dispõe de meios financeiras para tanto, que
possui outras prioridades baseadas em seu plano de governo
,
de visão partidarista, em
detrimento da política de Estado
consagrada
na Constituição Federal. Neste cenário é que o
cidadão,
aqui entendido não apenas como titular de direitos políticos, mas como todo e
qualquer pessoa titular de direitos e credora de prestações estatais, integrante da vida social,
política e econômica do Estado, busca a via judicial
,
para
obter o acesso as prestações em
razão de uma exclusão arbitrária do benefício
perseguido
.
Nessa perspectiva, Andreas J
oachim
Krell aduz que, em princípio, o Poder Judiciário
o deve intervir na esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de
conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e
prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo
L
egislador, da incumbência constitucional
, mas
na seqüência
sentencia
:
§ do Art. 227. A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de
fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de
deficiência.
102
Art. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
103
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...] VI
defesa do meio ambiente.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as
presentes e futuras gerações.
45
No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto
dog
m
a da
separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos
e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes
Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um
cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais.
104
De outra parte, é natural que a eficácia dos direitos fundamentais a prestaç
ões
materiais depende dos recursos públicos disponíveis, bem como de uma atuação do
Legislador ordinário para a concretização do conteúdo dos direitos sociais. Assim, a
ssume
relevância
o princípio da separação de P
oderes,
bem
como o postulado da “reserva d
o
possível
,
porquanto
segundo alguns autores seria ilegítima a conformação daquele conteúdo
pelo Judiciário,
assim
como
haveria que se
contornar
e equacionar
o limite fático representado
pelo esgotamento dos recursos o
u da capacidade dos entes estatais
.
Nesta mesma linha de raciocínio existe uma dupla série de questões jurídicas a serem
enfrentadas: Em primeiro lugar, trata-se de saber se os cidadãos em geral têm ou não o direito
de exigir, judicialmente, a execução concreta de serviços públicos. Em seg
undo lugar, trata
-
se
de saber se e como o Judiciário pode provocar a execução de tais políticas. Tais questões
serão analisadas
no decorrer desta dissertação
.
Enfim, sintetizando a abordagem temática deste tópico, restringiu-se a pesquisa aos
direitos soc
iais consagrados não só no Art. 6º
105
da atual Constituição, mas também em outras
disposições constitucionais, assinalando-se que os direitos sociais básicos decorrem do
principio da igualdade e são, por natureza, viabilizadores da dignidade da pessoa humana
,
tendo como traço característico a dimensão positiva, dado que objetivam exigir do Estado a
sua intervenção para atender as necessidades do indivíduo ou da coletividade. Por meio deles,
o ser humano passou ser credor das prestações sociais estatais, assumindo o Estado, nessa
relação, a posição de devedor. Restou destacado que tais direitos sociais podem ser
imediatamente invocados, ainda que haja falta ou insuficiência da lei integradora das políticas
públicas.
104
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha
.
Fabris Editor, 2002,
p.22.
105
Art. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
46
Assim, num passo seguinte,
indaga
-
se:
em que medida os direitos
sociais
a prestações
se encontram em condições de, por força do disposto no Art. 5
º
§ 1º,
106
da C
onstituição
Federal
, serem diretamente aplicáveis e ger
arem
sua plena eficácia jurídica? Na busca de tal
resposta é que se passa a abordagem do tema referente à eficácia dos direitos fundamentais
sociais.
1.4
A
questão da
eficácia
dos
D
ireitos
Fundamentais
S
ociais
.
À guisa de introdução,
cumpre
anotar os conceitos de validade, eficácia e
aplicabilidade, fazendo-se alusão ao conteúdo essencial de cada uma dessas categorias. Para
tanto, invoca
-
se aqui o magistério de Flávia Piovesan, para quem:
107
A categoria da validade está relacionada ao enfoque estritamente jurídico. Como
observa Kelsen, a validade opera no mundo do dever ser, correspondendo ao processo de
produção normativa, isto é, norma jurídica válida é aquela que foi produzida em
conformidade com os ditames do ordenamento jurídico.
Já a categoria da eficácia está relacionada seja ao enfoque jurídico
eficácia jurídica
-
,
seja ao enfoque social - eficácia social -. A eficácia jurídica identifica-se com a capacidade de
produção de efeitos normativos no âmbito da ordem jurídica, ou seja, designa a qualidade da
norma de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos. Compreendida sob o prisma
sociológico à idéia da norma estar sendo efetivamente observada e respeitada no mundo dos
fatos.
Por fim, se a eficácia jurídica está relacionada com a potencialidade normativa e a
eficácia social está relacionada com o cumprimento efetivo da norma no mundo fático, o
conceito de aplicabilidade identifica-se com o conceito de eficácia jurídica. A aplicabilidade
corresponde à noção de realizabilidade normativa ou executoriedade das diferentes normas
em vigor. Isto é, a aplicabilidade está relacionada com a possibilidade de aplicação da norma.
106
§ 1º
, do Art. 5º:
As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
107
PIOVESAN, Flávia.
Proteção judicial contra omissões legislativas
.
2ed
., São Paulo: RT,
2003,
p.
60.
47
José Afonso da Silva, em sua obra i
ntitulada
“Aplicabilidade das normas
constitucionais
”, cuida da eficácia jurídica dos direitos sociais. Ele centra-se na idéia de que
todas as normas constitucionais são dotadas de aplicabilidade. Todavia, variável é o grau de
aplicabilidade por elas apresentado, classificando-as em normas de eficácia plena, eficácia
contida (mais restringíveis por lei ordinária) e, as mais interessantes para esta dissertação, as
norm
as de eficácia limitada. Estas últimas estão subdivididas em “normas declamatórias de
princípios, institutos ou organizativos e de princípios programáticos”.
108
Importante destacar,
por oportuno, que
segundo Andreas Joachim Krell,
e
sse sistema
é
o mais bem
aceito por parte
dos tribunais brasileiros.
109
Feita esta breve
digressão
acerca
dos conceitos e conteúdos de validade, eficácia e
aplicabilidade, impende, na seqüência, analisar o problema da eficácia das normas
constitucionais ditas programáticas.
Nes
ta senda, sempre se apresentou tormentosa a problemática da aplicabilidade das
chamadas “normas programáticas”. A esse respeito, ilustrativa é a manifestação de Norberto
Bobbio ao enfrentar o tema da aplicação das normas constitucionais programáticas, que
consagram um amplo universo de direitos fundamentais.
Assever
ou
Norberto
Bobbio
que
:
O campo dos direitos do homem ou, mais precisamente, das normas que
declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem – aparece,
certamente como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da
norma e sua efetiva aplicação. Essa defasagem é ainda mais intensa
precisamente no campo dos direitos sociais. Tanto é assim que, na
Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram
chamadas pudicamente de “programáticas”. Será que nos perguntamos
alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou
permitem
hic et nunc, mas ordenam, proíbem e permitem num futuro
indefinido e sem um prazo de carência claramente delimitado? E
,
sobretudo, nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses
que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva
proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja
obrigação de executar o “programa” é apenas uma obrigação moral ou, no
máximo política, pode ainda ser chamado corretamente de direito?
110
108
SILVA, José Afonso.
Aplicabil
idade das normas constitucionais. 9ed., São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 16 e
65.
109
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.
Fabris
Editor
. 2002,
p.39.
110
BOBBIO. Norberto.
A era dos direitos
. trad
:
Carlos Nelson
Coutinho. 9ed.
,
5tir.
,
Campus, 2004, p. 92.
48
Eros Roberto Grau revela existir um caráter reacionário nas normas programáticas,
pois
,
Nelas se erige não apenas um obstáculo à funcionalidade do Direito, mas,
sobretudo, ao poder de reivindicação das forças sociais. O que teria a
sociedade civil a reivindicar está contemplado na Constituição. Não se
dando conta, no entanto, da inocuidade da contemplação desses ‘direitos
sem garantias’, a sociedade civil acomoda-se, alentada e entorpecida pela
perspectiva de que esses mesmos direitos
um dia venham a ser realizados.
111
Contudo, em outra passagem, Eros
Roberto
Grau
reconhece ser a Constituição, toda
ela, norma jurídica e, como tal, todos os direitos nela contemplados têm aplicação direta,
vinculando tanto o Judiciário quanto o Executivo como o Legislativo. Nestas condições, as
normas programáticas, sobretudo as atributivas de direitos sociais e econômicos, devem ser
entendidas como diretamente aplicáveis e imediatamente vinculantes do Legislativo, do
Executivo e do Judiciário.
112
Flávia Piovesan acredita que a programaticidade das Constituições de se combinar
com sua efetividade, sob pena de debilitar o constitucionalismo, abrindo campo às mais
gra
ves transgressões jurídicas. A programaticidade sem juridicidade poderá, enfim, converter-
se formal e materialmente no maior obstáculo à construção constitucional de um verdadeiro
Estado de Direito. A História registra que, fora da Constituição, nasce apenas o arbítrio,
incompatível
com o fortalecimento das sociedades democráticas.
113
Destarte,
no tocante à eficácia das normas ditas programáticas, os doutrinadores
acima
mencionados
revelam
uma
grande
preocupação com o fato da doutrina constitucionalista
tra
dicional não consentir que os cidadãos as invoquem imediatamente, pedindo aos
t
ribunais o
seu cumprimento por si só, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas
constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativa que de verd
adeiros
direitos subjetivos.
Esse entendimento da doutrina tradicional decorre da visão de que ampla margem
de discricionariedade do Legislador em revestir de plena eficácia as normas programáticas,
111
GRAU, Eros Roberto. A Constituição brasileira e as normas programáticas. Revista de Direito
Constitucional e Ciência Política
n
.4.
Rio de Janeiro
:
Forense,
1985.
p. 42
.
112
GRAU
. Op. cit.,
p. 43.
113
PIOVESAN,
Flávia.
Proteção judicial contra omissões legislativas
. 2ed.,
São Paulo:
R
T, 2003, p. 73.
49
cabendo a ele a opção acerca da ponderação do tempo e dos meios para se alcançar à eficácia
daquelas normas. Também nesta concepção tradicionalista, que se garantir a
discricionariedade do A
dministrador
Público no tocante à implementação e execução de
políticas públicas de cunho social, com fulcro nos juízos de conveniência e oportunidade, no
plano de governo e na
D
emocracia representativa.
Avesso a esta doutrina constitucionalista tradicional, Andreas J
oachim
Krell afirma
que
a negação de qualquer tipo de obrigação a ser assumida na base dos
d
ireitos
f
undamentais
sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros
direitos
. E
mais adiante aponta que
:
“Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os
princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e
obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões constitucionais
”.
114
Pois bem.
No tocante a aplicabilidade das normas constitucionais à luz da Constituição
brasileira
, cumpre
destacar
, por primeiro, a inovadora disposição do § do Art. ,
estabelecendo
que
“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”
. Não consenso na doutrina pátria acerca do significado e alcance da disposição
em apreço.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho se posiciona no sentido da não-
aplicabilidade
imediata ao assinalar que:
A intenção que a ditou é compreensível e louvável: evitar que essas normas
fiquem letra morta por falta de regulamentação. Mas o constituinte não se
apercebeu que as normas têm aplicabilidade imediata quando são completas
na sua hipótese e no seu dispositivo. Ou seja, quando a condição de seu
mandamento não possui lacuna, e quando esse mandamento é claro e
determinado. Do contrário ela não é auto-executável pela natureza das
coisas.
115
Ingo Wolfgang Sarlet, por sua vez, advoga que todas as normas consagradoras de
direitos fundamentais são dotadas de eficácia e, em certa medida, diretamente aplicáveis já ao
nível da Constituição e independentemente de intermediação legislativa, assinalando que as
114
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha, Fabris Editor, 2002,
p.23.
115
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9
ed
,
São Paulo: Saraiva, 2007,
p.102.
50
normas de direitos fundamentais são direta (imediatamente) aplicáveis na medida de sua
eficácia, o que não impede que se possa falar de uma dimensão “programática” dos direitos
fundamentais.
116
Nada obstante, o referido autor alerta que a necessidade de interpretação legislativa
dos direitos sociais prestacionais de cunho programático justifica-se apenas (se é que tal
argumento pode assumir feição absoluta) pela circunstância de que se cuida de um problema
de natureza competencial, porquanto a realização destes direitos depende da disponibilidade
dos meios, bem como - em muitos casos - de progressiva implementação e execução de
políticas públicas na esfera socioeconômica.
117
Co
nforme
se extrai da argumentação supra,
Ingo
Wolfgang
Sarlet, assim como José
Afonso da Silva
118
e Celso Ribeiro Barros
119
, procuram uma solução intermediária que, a um
tempo, não neutralize o princípio em apreço nem o superestime, haja vista que, muito
embora se aplique a todas as normas de direito fundamental (direitos de defesa e direitos de
prestação), casos em que não se tem como dispensar uma concretização por parte do
L
egislador (alguns direitos sociais).
De outra parte,
Eros Roberto Grau
,
120
Flávia Piovezan
121
e Luis Roberto Barroso,
para
citar apenas alguns dos que e
nfrentaram
o tema, de maneira aguda, defendem a imediata
aplicabilidade dos direitos fundamentais
, independentemente de intermediação legislativa.
Este último autor
salienta
que, ainda que se afirme ser de pouca lógica o princípio em
causa, que prevê que as normas constitucionais são aplicáveis, o que é óbvio, haja vista que a
Constituição existe para ser aplicada, “parece bem a sua inclusão no Texto, diante de uma
prática que reiteradamente nega tal evidência. Por certo, a competência para aplicá-las, se
descumpridas por seus destinatários, de ser do Poder Judiciário.
122
E mais: a ausência de
116
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8ed., Livraria do Advogado, 2007, p
p.311
-
312.
117
SARLET.
Op. cit.,
p. 310
.
118
SILVA, José Afonso.
Aplicabilidade das normas constitucionais
.
3
ed.
, São Paulo:
Malheiros, 1998, p.165
.
119
BASTOS, Celso Ribeiro.
Comentários à Constituição do Brasil
.
vol. II
.
São Paulo:
Saraiva,
1989,
p.393
.
120
GRAU, Eros Roberto. A Constituição brasileira e as normas programáticas. Revista de Direito
Constitucional
e Ciência Política
n
.
4, Rio de Janeiro
:
Forense,
1985.
p. 43
.
121
PIOVESAN, Flávia.
Proteção Judicial contra omissões legislativas
. 2ed.,
São Paulo:
RT, 2003, p. 73.
122
BARROSO, Luis Roberto Barroso. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira
. 2
ed.
,
Rio de Janeiro:
Renovar,
1993
, p.14
1/143.
51
lei integradora, quando não inviabilize integralmente a aplicação do preceito constitucional,
não é empecilho à sua concretização pelo juiz, mesmo à luz do direito positivo vigente,
consoante se extrai do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil
[
...
].
123
Trilhando o caminho tendente à aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais
consagrado no § do Art.
124
, da Constituição Federal, em consonância com os últimos
três autores citados,
Dirley
da
Cunha Júnior sustenta que em caso de descumprimento, por
omissão, de algum direito fundamental ou de lacuna legislativa impeditiva de sua fruição,
deve e pode o Judiciário valendo-se de um autêntico dever-
pode
r de controle das omissões
do
P
oder
P
úblico
desde logo e em processo de qualquer natureza, aplicar diretamente o
preceito definidor do direito em questão, emprestando ao direito fundamental desfrute
imediato, independentemente de qualquer providência de natureza legislativa ou
administrativa.
125
Mais adiante o referido autor assevera que o sistema jurídico brasileiro autoriza a
qualquer órgão do Poder Judiciário remover lacunas indesejadas, colmatando-as e
suprimindo
-as com base na analogia, nos costumes, nos princípios gerais de direito, e por
meio de uma interpretação criativa e concretizante, inexistindo, nesse caso, qualquer afronta
ao tão reverenciado princípio da separação dos
P
oderes.
126
É certo que a atividade de interpretação judiciária seja e tenha sido inevitavelmente,
em alguma medida, criativa do Direito. Contudo, é inegável
que
essa maior criatividade
jurisdicional no Brasil constitui típico fenômeno que passou a tomar maior visibilidade a
partir da
atual
Constituição
, por conta de uma inter
pretação à luz dos seus princípios
.
Não se ignora a existência de normas constitucionais
de
cunho programático que num
Estado Social de Direito prestam-se a fixar programas, finalidades e tarefas a serem
implementadas pelos órgãos políticos e que reclamam uma concretização legislativa
tendo,
portanto, uma eficácia limitada. Mas nem por isso, essas normas são destituídas de aplicação
123
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios
gerais do direito.
124
§ 1º
, do Art. 5º:
As
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
125
CUNHA JÚNIOR. Dirley da
.
Controle judicial das omissões do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.268.
126
CUNHA J
ÚNIOR. Op. cit., p
. 270
.
52
imediata.
Apenas exigem um esforço maior de complementação por parte dos órgãos do
Judiciário, no exercício de sua atividade de garantia e efetivação dos direitos fundamentais.
Entendimento diverso conduziria à frustração do que se proclamou enfaticamente no Texto
Constitucional e, em linguagem popular, “seria tirar com uma das mãos o que se foi dado pela
outra”.
Aliás,
Mauro
Cappelletti
já advertia
que
:
mais cedo ou mais tarde, como confirmou a experiência italiana e de outros
países, os juízes deverão aceitar a realidade da transformada concepção de
direito e da nova função do estado (
sic
), do qual constituem também, afina
l
de contas, “um ramo”. E então será difícil para eles não dar a própria
contribuição
à tentativa do estado (
sic
)
de tornar efetivos tais programas, de
não contribuir, assim, para fornecer concreto conteúdo àquelas “finalidades
e princípios”: o que eles podem fazer controlando e exigindo o
cumprimento do dever do estado (
sic
)
de intervir ativamente na esfera
social, um dever que, por ser prescrito legislativamente, cabe exatamente
aos juízes fazer respeitar.
127
Segundo
Dirley da Cunha Júnior, a ausência de concretização jamais poderá
representar óbice à aplicação imediata das normas de direitos fundamentais pelos juízes e
tribunais, uma vez que o Judiciário, amparado no que dispõe o §
128
, combinado com o
inciso
, XXXV
129
,
ambos do Art. da Constituição Federal, não apenas está investido do
indeclinável dever de garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais, como está
autorizado a remover eventual lacuna decorrente da falta de concretização, podendo se valer,
para tanto, dos meios fornecidos pelo próprio sistema jurídico positivado, que contempla
a
norma do Art. da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual ‘Quando a Lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito’
.
130
Nesse contexto, vale aqui relembrar a afirmação de Norberto Bobbio, para quem
o
problema fundamental em relação aos direitos humanos, hoje, não é o de fundamentá
-
los, mas
127
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Le
gisladores?
Trad: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Fabris Editor, 199
3,
p.42.
128
§ 1º
, do Art. 5º:
As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
129
XXXV
a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou a
meaça a direito.
130
CUNHA J
ÚNIOR
. Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.271.
53
o de protegê-
los
’.
131
Esta reflexão está diretamente ligada à efetividade dos direitos sociais,
sendo que em qualquer abordagem do tema que se incluir necessariamente o
comportamento dos
estudiosos
do
Direito que protagonizam a sua implementação, isto é,
todas as pessoas, autoridades ou organismos públicos, grupos de pressão, operadores sociais,
et
c.
, que de uma forma ou de outra estão envolvidas diretamente com os anseios e angustias
da sociedade civil
.
E, para alcançar a plena efetividade e concretização das normas constitucionais de
cunho social, impõe-se uma mudança paradigmática no comportamento d
aqueles
atores
sociais, sobretudo, dos magistrados, os quais devem
liberta
r-
se
dos valores liberais do Estado
burguês arraigados na doutrina constitucionalista tradicional, para assimilação de uma nova
óptica de interpretação hermenêutica, agora de acordo com os valores e princípios
consagrados pela
atual
Constituição, que inaugurou o Estado de Direito Social e Democrático,
onde se objetiva o bem
-
comum e a dignidade da pessoa humana.
Nesta perspectiva, sustentou-se no decorrer deste tópico que as normas atributivas de
direitos sociais possuem plena eficácia, por força do que dispõe o § ,
132
do Art. da
Constituição Federal, devendo ser entendidas como diretamente aplicáveis e imediatamente
vinculantes ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário, sob pena da Constituição se tornar
ornamental, letra morta e meramente um ideário, despida de força cogente. Advogou-se o
entendimento de que a Constituição reclama efetividade real de suas normas, com
aplicabilidade imediata, pois tal entendimento é aquele mais alinhado com todo o histórico de
luta travada pela humanidade não para a conquista dos direitos fundamentais sociais, mas,
sobretudo
, para a efetivação daqueles direitos que consagram, em última análise, a dignidade
da pessoa humana.
A despeito disso, r
episou
-se que tais direitos sociais dependem, para sua eficácia, de
uma ação concreta do Estado, mediante leis, atos administrativos e criação real de instalações
de serviços públicos, por meio das chamadas “políticas públicas sociais” (de educação, saúde,
assistência, previdência, trabalho, habitação) que facultam o gozo efetivo dos direitos
constitucionalmente assegurados. Tais ações estatais, conforme aduzido, devem ser orientadas
131
B
OBBIO
, Norberto. A era dos direitos. Trad: Carlos Nelson Coutinho. 5tir., Rio de Janeiro: Campus,
2004,
p
.43.
132
§ 1º
, do Art. 5
º:
As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
54
e delimitadas pela ordem social constitucional, que vincula o
Legi
slador e o A
dministrador
Público visando assegurar o efetivo exercício dos direitos sociais para a realização dos
objetivos constitucionais do bem
-
estar e da justiça social.
Em conclusão, não se pode fazer das leis promessas vazias. De nada adianta assegu
rar
direitos se não há, depois, como fazê-
los
serem
respeita
dos
. Em razão disso é que
enfatiza
-
se
que neste
trabalho
a adoção da posição daqueles que pugnam pela aplicação imediata dos
direitos fundamentais, aí incluídos evidentemente os direitos sociais d
e cunho prestacional
.
55
2. POLÍTICAS PÚBLICAS E CONCRETIZAÇÃO DA ORDEM CONSTITUCIONAL
SOCIAL
Na teoria do Estado Liberal clássico, no qual a intervenção estatal é mínima, os
direitos fundamentais são vistos como uma barreira à ação estatal, impondo-se um não-
fazer,
uma postura negativa do
P
oder
P
úblico para que a liberdade
das pessoas possa ser exercitada.
Aliás, conforme anota Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, foi desse modo, como
afirmação do
súdito
contra o Estado absolutista, que a teoria dos direitos individuais (civis e
políticos)
nasceu
.
133
Todavia, a transformação da sociedade, notadamente
,
dos movimentos sociais
ocorridos
no
Século XIX, em razão de novas formas de produção (massifica
da
),
oriundas
da
Revoluç
ão Industrial, a expansão do trabalho assalariado, impulsion
ou
o Estado a garantir
direitos sociais, que visavam o exercício de um mínimo de igualdade entre os cidadãos,
protegendo
, naquele momento histórico, os trabalhadores (classe proletária). Neste cen
ário,
surgem
alguns direitos dos trabalhadores, como os limites à jornada de trabalho, os dias de
descan
s
o semanal, os limites ao trabalho infantil.
Nesta mesma trilha, Eduardo Appio assinala que as políticas públicas surgiram como
resposta a uma necessidade contemporânea decorrente da concentração das massas em
aglomerados urbanos e do processo de industrialização, e registra: Sobre o tema, Truyol y
Serra consigna que as primeiras conseqüências da revolução industrial sob o signo da livre
concorrência haviam dado lugar a condições de trabalho duríssimas e muitas vezes inumanas,
que evidenciavam a insuficiência dos direitos individuais se a democracia política não se
convertia em democracia social
’.
134
Fato importante e que merece ser enfatizado, é que os direitos sociais surgiram em
decorrência dos movimentos revolucionários de 1848, sendo que a Constituição francesa de
1848 previa alguns direitos de natureza social, tais como “o direito ao ensino primário
gratuito, à educação profissional e à igualdade
das relações entre patrão e empregado
.
133
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
.
São Paulo:
Max Limonad, 2000, p. 57
.
134
APPIO, Edua
rdo.
Controle judicial das políticas públicas no Brasil
.
1ed., 4tir., Curitiba:
Juruá, 2007, p. 142
.
56
Contudo, na
transição
do
Século XIX para o Século XX, já não bastava garantir
direitos trabalhistas, pois os movimentos sociais e políticos-
partidários
, que haviam ganhado
força e poder de pressão, pugnavam por uma ação direta e positiva
do
P
oder
Público para
garantir os direitos sociais
, tais como
saúde, educação, habitação e assist
ê
ncia social, de forma
ampla e
indiscriminada
a
todos os cidadãos.
A constitucionalização dos direitos sociais, iniciada pelas Constituições mexicana
(1917) e de Weimar, na Alemanha (1919)
pass
ou
a demandar uma ação positiva do Estado, de
promoção de condições, para que tais direitos p
udessem
efetivamente ser exercidos, gerando
condições de igualdade. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, estas
Constituições
‘são os primeiros sinais expressivos de um ideário novo, de cunho social,
cristalizado nas Cartas Fundamentais
’.
135
Nesse contexto, tem-se que a história testemunhou a metamorfose do modelo do
Estado dos Séculos XVIII e XIX para o modelo do Estado contemporâneo, conforme
ensina
Paulo Bonavides, em sua obra
intitulada
Do Estado Liberal ao Estado Social, duas realidades
distintas e ordenadas por duas Constituições também distintas. Uma, a liberal ou garantia,
limitando o Estado e suas funções, onde o P
oder
Público não podia interferir no exercício das
liberdades, cabendo-lhe apenas resguardá-las. Outra, a dirigente, que amplia o Estado e as
suas funções, em face da qual o P
oder
Público é chamado a intervir ativamente no sentido de
fornecer prestações exigidas pelo indivíduo.
136
Eduardo Appio, citando Cezar Saldanha, assinala que “necessidades sociais nunca
antes sentidas passaram a reclamar ações do P
oder
Público, muitas de natureza prestacional,
atingindo área da vida pessoal e social que estavam fora do âmbito da política”. Desse modo,
a emergência de um Estado-Providência se como resultado de um “processo de extensão e
aprofundamento do Estado
-protetor clássico”, sendo que seu ocaso coincide com a adoção dos
postulados do
neoliberalismo econômico, na forma de “desregulamentação dos mercados, dos
fluxos financeiros e da organização do trabalho, com a conseguinte erosão das funções do
Estado”.
Mais adiante, aponta o referido autor, que o Estado constitucional reclama para si a
135
MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social
. Em:
Revista de
Direito Público
57/58
, vol. 14, pp. 233
-
256.
São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./jun. 1981, p. 235.
136
BONAVIDES, Paulo.
Do Estado Liberal ao Estado Social
.
7ed
, 2tir., São
Paulo
:
Malheiros, 2004.
57
atribuição de agir de forma positiva, alterando as condições materiais originárias de seus
cidadãos, de molde a garantir a igualdade real de oportunidades, por meio da atuação dos
órgãos da Administração Pública.
137
Nesta senda, surge o Estado Democrático de Direito
que
é caracterizado, justamente,
por afirmar, garantir e promover direitos iguais para todos sem discriminação de qualquer
espécie.
De outra parte, os limites gerais da intervenção do Estado na vida dos cidadãos estão
concretizados na forma de direitos e garantias individuais, ou seja, espaços intangíveis à
atuação do Estado, o
s
quais somente podem ser limitados pela própria Constituição.
Na lição de Paulo Bonavides:
O Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-
se de
um
conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em
se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga o Estado, se for o
caso, a prestações positivas; a prover meios, se necessários, para concretizar
comandos normativos de isonomia. Noutro lugar escrevemos que a
isonomia fática é o grau mais alto e talvez mais justo e refinado a que pode
subir o princípio da igualdade numa estrutura normativa de direito
positivo
.
138
De acordo com o entendimento de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, a legitimidade
de uma Constituição e do Estado organizado a partir de suas diretrizes está diretamente
relacionada com a capacidade de produzir, em uma interação da ordem jurídica, política e
social, procedimentos democráticos justos, com atribuição dos direitos de participação e
liberdades básicas, além da satisfação de necessidades essenciais, que possibilitem aos
cidadãos participarem com livre arbítrio das decisões coletivas. E
ntretanto,
as condições de
igualdade precisam ser produzidas. Assim, o conjunto de ações que o Poder Público realiza,
visando o efetivo exercício da liberdade, base de toda a ordem social, constitui as políticas
públicas.
Dito de outra forma, as políticas públicas de desenvolvimento e de inclusão social
surgem para minorar o caos social, e exigem uma efetiva intervenção do Estado visando
sempre equacionar os problemas da sociedade.
139
137
APPIO, Eduardo.Controle judicial das políticas públicas no Brasil. 1ed, 4tir.,Curitiba:
Juruá,
200
7,
p
p.142
e
145.
138
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
. 18ed., São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 378.
139
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, 20
00, p. 58.
58
E políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de proteção social
implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais
visando
a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento
socioeconômico.
Conforme assinalado em linhas anteriores
,
as políticas sociais têm suas
raízes nos movimentos populares do
S
écul
o XIX, voltadas aos conflitos surgidos entre capital e
trabalho, no desenvolvimento das primeiras revoluções industriais.
Cumpre destacar que a Constituição
Federal
estabelece não os direitos sociais, mas
também as linhas gerais (políticas públicas) pelas quais os Legisladores ordinários e
A
dministradores
P
úblicos
devem se pautar para garantir o efetivo exercício de tais direitos (as
normas constitucionais da ordem social). A escolha das diretrizes da política, os objetivos de
determinado programa não são simples princípios de ação, mas são os vetores para a
implementação concreta de certas formas de agir do P
oder
Público, que levarão a certos
resultados.
Nesse panorama constitucional que implica também na renovação das práticas
políticas, o A
dmi
nistrador
e o L
egislador
ordinário
est
ão
vinculados às políticas públicas
estabelecidas na Constituição da República, sendo suas omiss
ões
passíve
is
de
responsabilização, mesmo porque sua margem de discricionariedade é mínima, não
contemplando o não
-fazer.
Assim, políticas públicas
devem
ser entendidas como o "Estado em ação",
implantando um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas a uma prestação
positiva de natureza material ou fática em benefício do indivíduo, para garantir-lhe o mínim
o
existencial proporcionando-lhe, em conseqüência, os recursos materiais indispensáveis para
uma existência digna, como providência reflexa típica de Estado do Bem-Estar Social,
responsável pelo desenvolvimento dos postulados da justiça social, consagrados no
Art.
140
da Constituição Federal
.
140
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I
construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
59
2.1 Conceitos possíveis de
P
olíticas
P
úbicas
Conforme esclarece Fábio Konder Comparato, o conceito de Política, no sentido de
programa de ação, só recentemente entrou a fazer parte das cogitações da teoria jurídica. E a
razão é simples: ele corresponde a uma realidade inexistente ou desimportante, antes da
Revolução Industrial, longo período histórico durante o qual se forjou o conjunto dos
conceitos jurídicos
usados
habitualmente
até os dias atuais.
141
Um dos raros autores contemporâneos a procurar uma elaboração técnica daquele
novo conceito é Ronald Dworkin. Para ele, a Política (
policy
), contraposta a noção de
princípio designa aquela espécie de padrão de conduta (s
tandard
) que assinala uma meta a
alcançar, geralmente uma melhoria em alguma característica econômica, política ou social da
comunidade, ainda que certas metas sejam negativas, pelo fato de implicarem que
determinada característica deve ser protegida contra uma mudança hostil.
142
Tais idéias, conform
e
registra Fábio Konder Comparato, são excessivamente
esquemáticas, impondo-se, assim, uma análise jurídica, de modo a tornar operacional o
conceito de P
olítica
, na tarefa de interpretação do Direito vigente e construção do D
ireito
futuro. O mesmo autor anota que a Política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela
sua finalidade. Os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, são de
natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio. De onde se
segue que o juízo de validade de uma política seja ela empresarial ou governamental não
se confunde nunca com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem. Uma lei,
editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstituciona
l,
sem que esta última o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão da
finalidade por ela perseguida, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais
que vinculam a ação do Estado, sem que nenhum d
os
atos admin
istrativo
s, ou nenhuma das
normas que a regem, sejam, em si mesmos
,
inconstitucionais.
143
141
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de constitucionalidade de políticas públicas. São Paulo:
Re
vista dos Tribunais
-
RT.737, mar./97, 12/22, p.17.
142
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Trad
ução:
Jefferson Luiz Camargo.
2ed.,
Martins Fontes,
2007, p.36
e 141 e ss.
143
COMPARATO. Op. cit, p.
18
.
60
Seguindo
no seu
raciocínio
,
Fábio Konder
Comparato
acrescenta
:
As Constituições do moderno Estado Dirigente impõem, todas, certos
objetivos ao corpo político como um todo
-
órgãos estatais e sociedade civil.
Esses objetivos podem ser gerais ou especiais, estes últimos obviamente
coordenados àqueles. Na Constituição brasileira de 1988, por exemplo, os
objetivos indicados no art.
(sic)
orientam todo o funcionamento do
Estado
e a organização da sociedade. a busca do pleno emprego é uma
finalidade especial da ordem econômica (art. 170, VIII)
(sic)
. No que diz
respeito à política nacional de educação, que deve ser objeto de um plano
plurianual, os seus objetivos específicos estão exp
os
tos no art. 214,
(sic)
e a
eles deve ser acrescida a progressiva extensão dos princípios da
obrigatoriedade e da gratuidade do ensino médio (art. 208, II)
(sic)
. As
finalidades próprias da atividade de assistência social, por sua vez, vêm
declara
das no art. 203
(sic)
.
144
Desse modo, da palavra política surge a idéia de complexo de objetivos, previamente
definidos, relacionados com os meios racionalmente possíveis e adequados para atingi-
los.
Conforme registra José Joaquim Gomes Canotilho, também relacionada com política está a
noção de estratégia de argumentos humanos para a consecução de determinadas
finalidades.
145
Com base em tais noções, pode-se vislumbrar que o conceito de “Política”, não está
muito distante do conceito de “políticas públicas”. Ao revés, o segundo decorre naturalmente
do primeiro, ou seja, “
P
olítica” é o gênero de que “políticas públicas” são espécies.
Maria Paula Dallari Bucci, define políticas públicas sob uma óptica ampliadora, como
sendo a ‘coordenação dos meios à disposição do Estado, harmonizando as atividades estatais
e privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados
’. Mais adiante
anota
que
‘o que de comum em todas essas políticas e suas
acepções, dando sentido ao agrupamento delas sob o mesmo conceito político, é o processo
político de escolha das prioridades para
o
governo
’.
146
Para
Ronaldo Guimarães Gouvêa as políticas públicas consistem em instrumentos
estatais de intervenção na Economia e na vida privada, consoante limitações e imposições
144
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de constitucionalidade de políticas públicas. São Paulo:
Revista dos Tribunais
-
RT.737, mar./97, 12/22
.
p.19.
145
CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito Constitucional
. 4
ed.
,
Coimbra
:
Almedina, 19
89,
p.
39
.
146
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Em: Revista de Informação
Legislativa
-
v
ol
.34, nº 133, jan./mar, 1997, p
p.
91 e 95
.
61
previstas na própria Constituição, visando assegurar as condições necessárias para a
consecução de seus objetivos, o que demanda uma combinação de vontade política e
conhecimento técnico.
147
Eros Roberto Grau, por sua vez, sustenta que a própria legitimidade do Estado Social
está ligada à realização de políticas públicas que caracterizam por todas as formas de
intervenção do Estado (seja como provedor, gerenciador ou fiscalizador).
148
De acordo com Marília Lourido dos Santos,
a
noção de
políticas públicas
centra
-se em
três elementos:
) busca por metas, objetivos ou fins;
) a utilização de meios ou
instrumentos legais e
,
)
a temporalidade, ou seja, o prolongamento no tempo, que implica na
realização de uma atividade e não de um simples ato. Segundo ela, esses elementos
formam
uma noção dinâmica de atividade pela qual pode-se definir políticas públicas simplesmente
como
‘o conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um fim público
determinado
’.
149
É importante deixar aqui registrado que o conceito de política pública, numa
perspectiva
constitucional
, ultrapassa a mera prestação de serviço público. Enfrentando est
a
questão, Maria Paula Dallari Bucci
concluiu:
O dado novo a caracterizar o Estado Social, no qual passam a ter expressão
os direitos dos grupos sociais e os direitos econômicos, é a existência de um
modo de agir dos governos ordenado sob a forma de políticas blicas, um
concei
to mais amplo que o de serviço público, que abrange também as
funções de coordenação e de fiscalização dos agentes públicos e privados.
[
...
] O que há de comum entre todas essas políticas, em suas acepções,
dando sentido ao agrupamento delas sob o mesmo conceito jurídico, é o
processo político de escolha de prioridades para o governo. Essa escolha se
faz tanto em termos objetivos como de procedimentos. Para ilustrar, veja-
se
a política nacional de educação, que externa um conjunto de opções de
governo em matéria de educação, relativas, por exemplo,
à
concentração do
recurso no ensino fundamental, ou à ênfase no ensino profissionalizante e
assim por diante. As políticas instrumentais do setor devem estar
racionalmente coordenadas com a política maior e adotar as suas
147
GOUVÊA, Ronaldo
Guimarães.
Políticas públicas, governabilidade e globalização
.
Revista do Legislativo.
Brasília, nº 25, p
p
.59
-
66
jan./mar. 1999, p
. 63
.
148
GRAU, Eros Roberto. Direito Posto e o Direito Pressuposto
. 6
e
d.
, São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 2
6.
149
SANTOS, Marília Lourido dos. Interpretação constitucional no controle judicial das políticas públicas.
Fabris Editor, 2006, p.
90
.
62
prioridades quanto aos meios, viabilizando a realização das finalidades
da
política principal
.
150
Delineada, assim, a questão conceitual, vislumbra-
se
que a implementação de políticas
públicas não se resume ao campo jurídico
, tendo inequivocamente implicações importantes no
campo econômico
.
Nas palavras de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, qualquer que seja o
modelo sócio-econômico adotado, a política pública do Estado será fundamental e
determinante, pois, mesmo em um Estado que pretende a preponderância do livre mercado e
da iniciativa privada, a política pública relativa à área econômica deverá cuidar para que a
livre concorrência impere, para que não haja inflação, nem descontrole cambial e haja o
crescimento da produção.
151
Destarte
, as normas constitucionais são ao mesmo tempo guia e instrumento do
A
dministrador
, assim como do Legislador ordinário
.
Na esteira do exemplo apresentado por
Maria Paula Bucci
, note
-
se que
no campo da educação, o percentual mínimo
a
ser aplicado no
ensino encontra-se estipulado
no
A
rt.
212
152
da Constituição
Federal
e a política pública
estabelec
ida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de modo que
a
discricionariedade do Administrador estará em escolher a melhor forma de cumprimento da
Constituição e da
legislação infraconstitucional
.
Para efeito de delimitação do objeto de interesse
desta
dissertação
, as políticas
públicas são aquelas voltadas para a concretização da ordem social, que visam à realização
dos objetivos da República. Para isto que se ter em mente que a Constituição define como
princípios fundamentais da República, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa, assim como o pluralismo político
(Art. 1º); estabelecendo como objetivos fundamentais da República, uma sociedade livre,
justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e
a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação
(Art.
3º) e, de último, em Capítulo próprio, enuncia os direitos sociais, abrangendo
150
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo
.
Revista de Informação Legislativa, n
133,
Brasília a.34,
jan/mar
.
1997
, pp. 90 e 95.
151
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério
Público
.
São Paulo:
Max L
imonad, 2000, p. 80.
152
Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a provenien
te de
transferências, na manutenção e desenvolvimento
do ensino.
63
genericamente a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (Art
. 6º).
2.2 Os direitos dos cidadãos a prestações positivas do Estado
De acordo com o magistério de Dirley da Cunha Júnior, com o advento do Estado
S
ocial
ou como preferem alguns denominá-lo, o Estado do Bem-Estar Social ou Estado-
Providência, prestador de serviços, de perfil essencialmente intervencionista que exige a
presença marcante e decisiva do P
oder
Público no domínio das relações socioeconômicas, o
Estado muda de configuração, assumindo renovados papéis e múltiplas funções. O homem
passa a depender do Estado, de quem se exigem prestações positivas. Nasce, com isso, o
direito de exigir do Estado, prestações de ordem econômica, social e cultural. Afloram
direitos de crédito. E neste cenário, não se fala mais em “liberdades públicas”, mas em
“direi
tos fundamentais”. O Estado não mais se resume a defender as liberdades, assumindo
papel mais abrangente, pois além de garantidor das liberdades públicas, passa o ostentar
posição de devedor social, devendo implementar medidas necessárias às soluções da
s
demandas sociais
.
153
Consoante assevera
va
José Joaquim Gomes
Canotilho
, na sua obra “
Constituição
d
irigente e
v
inculação do Legislador
, publicada em 1982
:
A
força dirigente e determinante dos direitos à prestações (econômicos,
sociais e culturais) inverte, desde logo, o objecto clássico da pretensão
jurídica fundada num direito subjectivo: de uma pretensão de omissão
dos
poderes públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de interferir nos
direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibição de omissão
(dir
eito
a exigir que o Estado intervenha activamente no sentido de
assegurar prestações aos cidadãos)
.
(grifo do autor)
154
Importante anotar, contudo, que ultimamente José Joaquim Gomes Canotilho revidou
este seu posicionamento decl
arando
-se agora adepto de um “constitucionalismo moralmente
reflexivo” em virtude do “descrédito de utopias” e da “falência dos códigos dirigentes”, que
causariam a preferência de “modelos regulativos típicos da subsidiariedade”, de “autodireção
153
CUNHA J
ÚNIOR,
Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público
.
São Paulo: Saraiva, 2004,
p.56.
154
CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador.
2ed.
,
Coimbra
:
Coimbra Editora, 2001, p.365.
64
social estatalmente garantida”. O “entulho programático” e as “metanarrativas” da Carta
Portuguesa, segundo ele, impediriam aberturas e alternativas políticas, tornando necessário
“desideologizar” o T
exto
Constitucional, conforme explicitado por Andreas J
oachim
Krel
l.
155
A despeito disso, Flávia Piovesan
assevera
que a Constituição dirigente não
compreende tão somente um “estatuto jurídico político”, mas sim um plano global normativo
do Estado e
da
sociedade. Ao determinar o alargamento da função de direção, coordenação e
planificação estatal, a Constituição d
irigente pressupõe que aos
P
oderes
P
úblicos
– L
egislador
e órgãos de direção política se deve assegurar uma capacidade de ação necessária para o
cumprimento do programa constitucional e das imposições legiferantes. Isto é, a Constituição
dirigente passa a consagrar os programas de atuação de um Estado intervencionista, voltado
ao bem-estar social, ao estabelecer programas, diretrizes e metas para a atividade do Estado
no domínio econômico, social e cultural.
156
A teoria da Constituição d
irigente
desenvolvida por José Joaquim Gomes Canotilho,
em 1982, teve ampla aceitação no Brasil na década de oitenta e influenciou fortemente o
constitucionalismo e a Assembléia Nacional Constituinte que trouxe à lume a
atual
Con
stituição. Pode-se dizer, assim, que a Constituição brasileira é dirigente, mesmo porque
tal traço fica
marcante
quando se observa que ela delineou programas constitucionais, assim
como imposições legiferantes, consagrando um Estado intervencionista,
promo
vedor e
concretizador d
o bem
-
estar social.
Nessa perspectiva, os direitos fundamentais sociais, de segunda dimensão, são de
índole positiva, que dependem de atuação positiva do Estado para serem desfrutados e por
isso encerram poderes de exigir. Não são direitos
contra
o Estado, mas sim direitos por meio
do Estado, exigindo do P
oder
Público certas prestações materiais. São direitos fundamentais
do homem dentro de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando
prevalência os interesses coletivos antes que os individuais.
De outro lado, o princípio da Democracia econômica e social contém uma imposição
obrigatória para os órgãos de direção política (Legislativo e Executivo), no sentido de
155
KRELL, Andr
e
as Joachim.
Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha
.
Fabris Editor,
2002,
p.68
.
156
PIOVESAN, Flávia.
Proteção judicial contra omissões legislativas
. 2ed.
, São Paulo: RT,
200
3, p
p
.39/40.
65
desenvolverem uma atividade econômica e social conformadora e transformadora (políticas
públicas) das estruturas
sócio
-econômicas, construindo condições de igualdade, de forma a
evoluir
-se para uma sociedade democrática, de acordo com o sustentado por
Luiza
Cristina
Fonseca
Frischeisen
, que registra ainda
que
: “
A incorporação dos direitos sociais, econômicos
e culturais ao direito positivo representa direitos de liberdades agora com conteúdo igualitário.
A liberdade, como possibilidade de emancipação, de livre arbítrio, se realiza a partir do
momento em
que todos os cidadãos gozem de um patamar mínimo de igualdade
”.
157
Com efeito, n
o Estado Social de Direito
,
o princípio da isonomia serve à otimização da
liberdade e igualdade, no sentido de igualdade de oportunidades, compreendida aqui como
possibilidade
de exercício efetivo da liberdade. Por isso é que se diz que segundo a Teoria do
Estado Social, o Poder Público tem o dever de transpor as liberdades da Constituição para a
realidade constitucional, de modo que a prestação dos serviços públicos se torna cada vez
mais importantes para o exercício dos direitos sociais (escolas, hospitais, eventos culturais,
comunicações, fornecimento de energia, água, transportes). Conforme adverte Andreas
Joachim Krell, onde o Estado cria essas ofertas para a coletividade, ele deve assegurar a
possibilidade de participação do cidadão. E, caso a legislação não conceder um direito
expresso ao indivíduo de receber uma prestação vital, o cidadão pode recorrer ao direito
fundamental da igualdade em conexão com o princípio do Esta
do Social
.
158
Nesta senda, vem a calhar aqui o exame da teoria do “mínimo existencial”, que tem a
função de atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público em casos de
diminuição da prestação dos serviços sociais básicos que garantem a sua existência digna,
e
que
até hoje foi pouco discutida na doutrina constitucional brasileira e ainda não adotada com
as suas conseqüências
pelas decisões tribunalícias proferidas pelo Poder Judiciário brasileiro
.
De qualquer modo, segundo Andreas J
oachi
m
Krell, o referido “padrão mínimo
social” para sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o
acesso
a uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de
uma moradia. Anota, que o conteúdo concreto desse mínimo, no entanto, variará de País para
157
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
.
São Paulo:
Max L
imonad, 2000, p. 60.
158
KRELL, Andreas Joachim.Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha
.F
abris Editor, 2002,
p.59
-
60.
66
P
aís.
159
Consoante salienta Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, a idéia de mínimo social se
manifesta também nos diversos projetos de leis municipais a uma renda mínima necessária à
inserção na sociedade
.
160
Para Luís Roberto Barroso, este “padrão mínimo” no cumprimento das tarefas estatais
poderia, sem maiores problemas, ser ordenado por parte do Judiciário, o que, segundo ele,
deixa de acontecer devido apenas a motivos ideológicos e não jurídico-
racionais
ou
científicos, anotando
que em diversas situações em que a Constituição ou a Lei utilizam
conceitos vagos e imprecisos, é exatamente ao juiz que cabe integrar, com sua valoração
subjetiva, o comando normativo.
161
Ingo W
olfgang
Sarlet
sustenta
que no caso de negação de prestações de serviços
sociais básicos por parte do Estado, não conseguem convencer os argumentos comuns da falta
de verbas e da ausência da competência do Judiciário para decidir sobre a aplicação dos
recursos públicos, especialmente na área da saúde, o bem maior da vida humana. Para ele, “a
denegação dos serviços essenciais de saúde acaba por se equiparar à aplicação de uma pena de
morte”.
162
Num outro enfoque, Andreas J
oachim
Krell assinala que uma garantia mais efetiva da
prestação dos serviços básicos e da assistência social no Brasil também não levaria a uma
situação de “tutela” ou criação de dependência do cidadão em relação às prestações sociais do
Estado (“assistencialismo”), um perigo que pode existir somente em países com índices
el
evados de desenvolvimento. No entanto, segundo ele, essa visão mais moderna ainda não
representa a linha dominante na doutrina e jurisprudência do Brasil. São justamente os
tribunais superiores que mostraram fortes objeções a ressalvas contra a sua própria
legitimidade a formular ordens concretas contra governos referentes à prestação adequada dos
serviços públicos sociais.
163
159
K
RELL
, Andreas Joachim.Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Fabris Editor, 2002
p.63.
160
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e do
Ministério Púb
lico
. São Paulo:
Max Limonad, 2000, p.68
.
161
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas Normas
,
2ed. Renovar,
199
3
,
p.15
2.
162
SARLET, In
g
o Wolfgang.
A eficácia dos direitos fundamentais
. 8ed.
,
Livraria do Advogado
,
2007, p.346
.
163
KRELL. Op. cit., p.65.
67
Por tudo isso e na esteira da lição de Norberto Bobbio, cuja indignação com o termo
“normas programáticas” foi assinalada em linhas anteriores, não se deve acolher o
argumento de que os direitos sociais são normas programáticas, carentes de efetivação e
concretização e, portanto, caracterizariam mera expectativa de direito. Por certo,
ainda
que
consideradas programáticas, haverá de c
ombiná
-las com efetividade, sob pena de negar
vigência ao Estado Constitucional Democrático de Direito e, sobretudo, à suprema dignidade
da pessoa humana, valor máximo albergado pela
atual
Constituição
.
164
Incumbe ao Estado,
pois,
mediante leis, atos administrativos e a criação real de
instalações de serviços públicos, conforme as circunstâncias,
implementar
as chamadas
“políticas sociais” (de educação, saúde, assistência, previdência, trabalho, habitação) que
facultem o gozo efetivo dos direitos constitucionalmente protegidos.
Assim, resta evidenciado que a realização dos direitos sociais presume a atuação
positiva do Estado, criando um direito dos cidadãos a prestações positivas, e para que tal
direito seja eficaz, necessária se faz a criação de mecanismos para exigir do Legislador e do
A
dministrador
Público
a criação de normas para cumprimento da Constituição,
responsabilizando
-
os
, quer pela atuação falha, quer pela omissão, por meio do mandado de
segurança, da ação popular, da ação civil pública, do mandado de injunção
,
da ação direta de
inconstitucionalidade
e da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Necessário se mostra, portanto, um controle que objetive a efetividade da
Constituição, de modo a reconhecer ao Poder Judiciário o
dever
-
poder
de suprir as
ações
falhas, assim como as omissões inconstitucionais que tanto maculam a supremacia
constitucional e inviabilizam a plena efetivação das políticas públicas de cunho social
consagradas na Constituição Federal.
Ademais, conforme a
dverte Paulo Bonavides:
Contemporaneamente, os direitos sociais básicos, uma vez desatendidos, se
tornam os grandes desestabilizadores das Constituições. Tal acontece,
sobretudo nos países de economia frágil, sempre em crise. Volvidos para o
desenvolvimen
to e o aperfeiçoamento da ordem social, esses direitos se
inserem numa esfera de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre
164
BOBBIO. Norberto.
A era dos direitos
.
Trad.Carlos Nelson Cout
i
nho.5tir,
Rio de Janeiro:
Campus,
2004,
p.92
.
68
precária a obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime.
Alojados na própria Constituição concorrem materialmente para fazê-
la
dinâmica, sujeitando-a ao mesmo passo a graves e periódicas crises de
instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania e as
instituições.
165
Em conclusão, restou assentado que políticas públicas podem ser entendidas como
o
conju
nto organizado de normas e atos tendentes à realização de um fim público determinado
,
afirmando
-
se
que o Estado, ao implementar um projeto de governo, através de programas, de
ações voltadas a uma prestação positiva de natureza material ou fática em benefício do
indivíduo, deve garantir-lhe o ‘mínimo existencial’ proporcionando-lhe, em conseqüência, os
recursos materiais indispensáveis para uma existência digna, como providência reflexa típica
de Estado do Bem-Estar Social, responsável pelo desenvolvimento dos postulados da justiça
social, consagrados no
Art.
166
da Constituição Federal, assinalando-se, n
esse
contexto, que
no Brasil, nem a doutrina, nem os Tribunais se posicionaram acerca da abrangência do
chamado “padrão mínimo social”
.
2.3
O
s
D
ireitos
S
ociais
c
oletivos e as Políticas Públicas
A Constituição
brasileira
tem por fundamento declarado a “cidadania” e a “dignidade
da pessoa humana”, entre outros, e por objetivos fundamentais “construir uma sociedade livre,
justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”.
Diante da grande
carga axiológica ética e moral atribuída a esses princípios e objetivos
constitucionais da República Federativa do Brasil,
houve
, em decorrência, uma ampliação do
catálogo dos direitos fundamentais para nele incluir direitos sociais e econômicos que
im
pôs uma série de programas, tarefas e fins a serem realizados pelo Estado, o que conferiu a
todos os cidadãos, em contrapartida, a prerrogativa de exigir do Ente estatal a concretização
165
BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional
. 18ed.
, São Paulo:
Malheiros, 200
6
, p. 380
.
166
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I
construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
69
desses direitos, além de ter a Constituição estabelecido o princípio da aplicabilidade imediata
das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.
Nesse sentido, Flávia Piovesan
desta
ca
que:
A Constituição de 1988, além de afirmar no art. que “são direitos sociais
a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados”, ainda apresenta uma ordem social com um amplo universo
de normas que enunciam programas, tarefas, diretrizes e fins a serem
perseguidos pelo Estado e pela sociedade. A título de exemplificação,
destacam
-se determinados dispositivos constitucionais constantes da ordem
social, que fixam dentre os deveres do Estado e direitos do cidadão a saúde
(art.196), a educação (art.215), a cultura (art.215), as práticas desportivas
(art.217), a ciência e a tecnologia (art.218), dentre outros. Note-se que
muitas destas normas apresentam eficácia limitada, ou seja, dependem
necessariamente de normatividade ulterior para a plena produção dos efeitos
colimados pelo constituinte, fator que implica em certa abertura do texto
constitucional.
167
É inequívoco
, pois,
que a
atual
Constituição possui uma textura suficientemente aberta
cujos limites para a transformação coincidem com os fins do Estado de Bem-
Estar,
conciliando o capitalismo com a justiça social, pois conforme já anunciado por Eros
Roberto
Grau,
‘há um modelo econômico definido na ordem econômica na Constituição de 1988,
modelo aberto, porém desenhado na afirmação de pontos de proteção contra modificaç
ões
externas, que descrevo como modelo de bem
-
estar
’.
168
Em função disso, conforme assinala Marília Lourido dos Santos, se mostra importante
conhecer os modos de densificação e concretização das normas constitucionais a fim de se
assegurar a higidez dos fins e valores plasmados nas mesmas. É nestas que estão consagrados
os direitos fundamentais, dentre os quais encontram-se os direitos sociais, cuja nota
característica é justamente a demanda por prestações positivas do Estado, que por sua vez, se
efetiva por meio das políticas públicas. Logo, as políticas públicas constituem uma forma de
concretização de normas constitucionais de significativa relevância
.
169
167
PIOVESAN, Flávia.
Proteção judicial contra omissões legislativas
. 2ed.
, São Paulo:
RT, 2003, p. 45.
168
GRAU, Eros Roberto.
A ordem econômica na
Constituição de 1988
. 3
ed.
,
São Paulo Malheiros,
1997
,p.3
10.
169
SANTOS, Marília Lourido. Interpretação constitucional no controle judicial das políticas públicas.
Fabris
Editor, 2006, pp. 86 e 87.
70
Mais adiante a referida autora assinala que o fato das políticas públicas terem
embasamento constitucional direto resume a questão do controle judicial, basicamente, ao
nível constitucional, onde os fins e valores que buscam resguardar encontram-se positivados
com a dignidade de cláusula pétrea. [
...
] a partir de tais lineamentos conceituais, nota-se que
as políticas públicas constituem linhas de ação coletiva
que concretizam os direitos
fundamentais declarados e garantidos na Constituição. [
...
] As diversas políticas púbicas se
espraiam por diferentes setores, tais como a economia, a área social, o meio ambiente, a
ciência e tecnologia, dentre outras, todas particularmente ligadas aos direitos e garantias
fundamentais, sendo que tais políticas públicas se expressam através de um conjunto de
princípios, diretrizes, objetivos e normas, de caráter permanente e abrangente, que orientam a
atuação do
P
oder
P
úblico em uma determinada área.
170
(grifo nosso)
Importa
, pois, que as diretrizes e metas sociais inseridas no T
exto
Constitucional não
acabem deixando de ser implementadas pelo “governante de plantão”, torna
ndo
-se meras
garantias formais, que funcionem apenas como um anteparo às r
eivindicações
sociais, sem
que de fato sejam realizadas pelo Estado, cujo zelo está sob a incumbência dos Poderes
instituídos
.
171
Anota ainda
,
a
última
autora
citada,
que:
Ao Legislativo cabe o papel central de definição das políticas públicas,
mediante a especificação das diretrizes constitucionais. E tal papel decorre da
democracia e da separação dos poderes, já que o Legislativo é encarregado de
dar expressão à soberania popular. Mas quando a liberdade e igualdade
formais da lei deixam de legitimar o poder, essa legitimidade poderá passar a
se fundar basicamente na realização de finalidades públicas concretizadas
programaticamente, isto é, na adoção de políticas públicas, o que se pelo
Executivo, que assim passa a ter maior destaque, afetando a harmonia e o
equilíbrio entre os poderes
.
[...]
Tudo isso ressalta a importância do exercício
de um controle judicial mais substancial das atividades de concretização das
normas constitucionais, não podendo permanecer alheias a esse controle as
políticas públicas, pelo significado para a normatividade constitucional e pela
importância para o desenvolvimento e progresso da sociedade brasileira como
um todo
.
172
170
SANTOS, Marília Lourido. Interpretação constitucional no controle judicial das políticas públicas.
Fabris
Editor, 2006,
p.87
.
171
SANTOS.
Op. cit.,
p. 88.
172
SANTOS.
Op.
cit.
,
pp.
88
/89.
71
Nessa perspectiva, e
mbora
tenha havido a positivação de várias políticas públicas
atinentes aos direitos sociais, conforme assinalado anteriormente, o certo é que alguns desses
direitos reclamam concretização positiva do P
oder
Público, o que evidencia certa abertura do
T
exto
C
on
stitucional, revelando-se como um programa de ação aberto para o futuro.
De
acordo com Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, a despeito dessa abertura, inclusive com a
possibilidade de adequação e conformação legislativa que atenda as transformações sociais
em curso, o certo é que em razão das leis ordinárias já editadas, que criaram
mecanismos para
aplicabilidade de
determinadas
políticas públicas, é que se afirma que a função de
implementação dessas políticas, hoje, cabe muito mais aos A
dministradores
Públi
cos
do que
aos
L
egisladores
.
173
Segundo
José Reinaldo de Lima Lopes, as políticas agrupam-se também em gêneros
diversos:
1) as políticas sociais, de prestação de serviços essenciais e públicos (tais como
saúde, educação, segurança e justiça, etc.); 2) as políticas sociais
compensatórias
(tais como a
previdência e assistência social, seguro desemprego, etc)
;
3) as políticas de
fomento
(créditos,
incentivos, preços mínimos, desenvolvimento industrial, tecnológico, agrícola, etc); 4) as
reformas de base
(ref
orma urbana, agrária, etc) e
,
5) políticas de estabilização monetária, e
outras mais específicas ou genéricas. Em seguida,
aponta
que:
Em todas elas colocam-se diversas questões relativas aos princípios
democráticos: qual o grau de transparência ou de sigilo que se requer em
cada caso, qual a previsibilidade de que se pode dispor, qual o impacto que
se pode causar, qual o sentido da política, verificados seus beneficiários a
curto, médio e longo prazo? Qual a responsabilidade do Estado na
implementação da política pública? Responsabiliza-se por prejuízos
causados a indivíduos singulares ou não? Responsabiliza-se pelo insucesso,
ou seja, pelo resultado da política, ou apenas pelos meios? Os membros dos
poderes públicos, Executivo, Legislativo e Judiciário, podem ser
politicamente responsabilizados pela não implementação de políticas
públicas? Podem ser responsabilizados politicamente ou civilmente pela
distorção ou desvio de políticas públicas?
174
Desenhado tal
panorama
, chega-
se
à responsabilidade dos A
dministradores
Públicos
pelo não cumprimento das políticas públicas necessárias para a implementação da ordem
173
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
.
São Paulo:
Max L
imonad, 2000, p. 83.
174
LOPES, José Reinaldo de Lima.
Direito Subjetivo e Direitos Sociais: O dilema do Judiciário no Estado Social
de Direito.
Em:
Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça.
(o
rg,
) José Eduardo Faria. 1ed. 4tir. São Paulo:
Malheiros
, 2005,
pp 113
-
143
,
p. 133.
72
constitucional social, da discricionariedade do Administrador e o posicionamento do
Judiciário frente a tais questões.
2.4
A
r
esponsabilidade
da Adm
inistração
pelo n
ão
c
umprimento
das Políticas Públicas
da Ordem Social Constitucional.
Inicialmente entende-se oportuno trazer à
baila
a definição de ato administrativo,
assim como a noção de perfeição, validade e eficácia dos atos administrativos, indic
ando
algumas hipóteses que conduziriam à invalidade e ineficácia daqueles.
Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua ato administrativo como declaração do
Estado (ou de quem lhe faça às vezes como, por exemplo, um concessionário de serviço
público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas
complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade
por órgão jurisdicional
.
Registra
que, entretanto, pode haver alguma hipótese excepcional na
qual a Constituição regule de maneira inteiramente
vinculada
um dado comportamento
administrativo
obrigatório
.
Em casos desta ordem poderá, então, haver ato administrativo
imediatamente infraconstitucional, pois a ausência de lei, da qual o ato seria providência
jurídica de caráter complementar, não lhe obstará à expedição.
175
Invocando
-se ainda o magistério
Celso Antônio Bandeira de Mello, há que se assinalar
os conceitos de perfeição, validade e eficácia do ato administrativo. Para o referido
autor
:
O ato administrativo é
perfeito
quando esgotadas as fases necessárias à sua
produção. Portanto, o ato perfeito é o que completou o ciclo necessário à
sua formação. Perfeição, pois, é a situação do ato cujo processo está
concluído.O ato administrativo é
válido
quando foi expedido em absoluta
conformidade com as exigências do sistema normativo. Vale dizer, quando
se encontra adequado aos requisitos estabelecidos pela ordem jurídica.
Validade, por isto, é a adequação do ato às exigências normativas. O ato
administrativo é eficaz quando está disponível para a produção de seus
efeitos próprios; ou seja, quando o desencadear de seus efeitos típicos não
se encontra dependente de qualquer evento posterior, como condição
suspensiva, termo inicial ou ato controlador a cargo de outra autoridade.
175
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24ed., São Paulo:
Malheiros,
2007,
p
.
374
73
Eficácia, então, é a situação atual de disponibilidade para produção de seus
efeitos típicos, próprios, do ato.
176
Com base na combinação desses três
conceitos
, Celso Antônio Bandeira de Melo
formul
ou
quatro hipóteses possíveis que podem conduzir à validade, invalidade ou ineficácia
do ato administrativo,
as quais estão
assim delineadas:
1)
perfeito, válido e eficaz quando, concluído o seu ciclo de formação,
encontra
-se plenamente ajustado às exigências legais e está disponível para
deflagração dos efeitos que lhe são típicos;
2)
perfeito,
inválido
e eficaz
– quando, concluído seu ciclo de formação e
apesar de não se achar conformado às exigências normativas, encontra-
se
produzindo os efeitos que lhe seriam inerentes;
3)
per
feito, válido e
ineficaz
– quando, concluído seu ciclo de formação e
estando adequado aos requisitos de legitimidade, ainda não se encontra
disponível para a eclosão de seus efeitos típicos, por dependentes de um
termo inicial ou de uma condição suspensiva, ou autorização, aprovação ou
homologação, a serem manifestados por uma autoridade controladora;
4)
perfeito,
inválido
e ineficaz quando, esgotado seu ciclo de formação,
sobre encontra-se em desconformidade com a ordem jurídica, seus efeitos,
ainda não podem fluir, por se encontrarem na dependência de algum
acontecimento previsto como necessário para a produção dos efeitos
(condição suspensiva ou termo inicial, ou aprovação ou homologação
dependentes de outro órgão).
177
Superada essa noção básica de ato administrativo, anota-se que tempos se discute,
tanto na doutrina como nas decisões tribunalícias, a responsabilidade da A
dministração
Pública por seus atos comissivos (decorrentes de ação) e, mais recentemente, por seus atos
omissivos.
Cuida
-se do controle dos atos administrativos pelo Judiciário que acaba esbarrando na
discricionariedade da Administração, trazendo à baila a discussão se estaria havendo apenas
controle de legalidade ou invasão do próprio mérito do ato (conveniência e oportunidade), o
que
não seria possível, segundo parte da doutrina, por implicar em violação do princípio da
separação dos
Poderes estampado no Art.
178
da Constituição Federal, ao argumento de que
a vontade do
A
dministrador não poderia ser substituída pela vontade do juiz.
176
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24ed., São Paulo: Malheiros, 2007,
pp. 376
-
377
.
177
MELLO. Op. cit., p.378
178
Art. 2º
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
74
No
tocante
aos atos discricionários, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, aduz que ‘
o
controle judicial é possível, mas terá que respeitar a discricionariedade nos limites em que ela
é assegurada à Administração Pública pela lei’
.
Ou seja, o Judiciário pode
ria
apreciar os
aspectos da legalidade e verificar se a Administração não ultrapassou os limites da
discricionariedade.
179
Neste particular, que se
assinalar
que quando se fala em “poder discricionário”
imagina
-se que o agente público po
ssa
fazer escolhas livres, na suposição que dentre as
alternativas
previstas
pela norma em abstrato, quaisquer delas seria de indiferente aplicação
no caso concreto.
Ocorre, contudo, que é preciso refazer a noção mais corrente de discricionariedade,
para adequá-la ao próprio direito positivo’
,
pois
conforme
explica
Celso Antônio Bandeira de
Mello
o chamado “poder discricionário” tem que ser simplesmente o cumprimento do
dever
de alcançar a finalidade legal. assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado
,
compre
endendo
-se, então, que o que é um dever discricionário
,
ante
s que um “poder”
discricionário
. Uma vez assentido que os chamados poderes são meros veículos instrumentais
para propiciar ao obrigado cumprir o seu dever, ter-
se
da discricionaridade, provav
elmente,
uma visão totalmente distinta daquela que habitualmente se tem.
180
Nesta mesma linha, como bem observou
Miguel
Seabra Fagundes, a atividade
discricionária também se desenvolve subordinada à Lei, mas com um elastério que a própria
Lei lhe outorga em face dos casos concretos. Poder discricionário fora de sujeição à Lei, e
sem ter o fim de realizá
-
la, seria poder arbitrário.
181
Na lição de José Joaquim Gomes
Canotilho
‘o exercício do poder discricionário não
equivale a uma liberdade desvinculada, mas sim uma atuação sempre vinculada a princípios e
normas jurídicas
’.
182
179
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
Direito Administrativo
.
5ed,
São Paulo:
Atlas, 1995, p. 180
.
180
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A Discricionariedade e Controle Judicial. 2ed.,
Malheiros,
2
007
,
p.15
-
16.
181
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário
.
6
ed.
, São Paulo:
Saraiva, 1984
,p.
64/67.
182
CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Constitui
ção dirigente e vinculação do legislador. 2ed., Coimbra:
Coimbra Editora, 2001, p. 233.
75
Em razão disso, a discricionariedade da Administração
Pública
não é, por si só, motivo
de afastamento a priori da revisão judicial de qualquer de seus atos. Por conseguinte, as
cham
adas questões políticas podem dar ensejo a questões jurídicas por afrontarem o direito
positivo
a
o qual
se
há de submeter toda a atividade estatal.
Dito de outro modo, isso implica
reconhecer
que a Administração sempre está
submissa e adstrita à Lei. Logo, como a Constituição é a chamada “Lei das L
eis
”, em última
análise, todo ato praticado pelo Administrador, seja
ele
vinculado ou discricionário, deverá
estar em conformidade com a
Constituição
, sob pena de invalidade por inconstitucionalidade.
Em abono à aludida afirmação, invoca-se aqui o magistério de Celso Antônio
Bandeira de Mello,
para quem:
[
...
]
a
Constituição não é um mero feixe de leis, igual a qualquer outro corpo
de normas. A Constituição, sabidamente, é um corpo de normas qualificado
pela
posição altaneira, suprema, que ocupa no conjunto normativo. É a Lei
das Leis. É a Lei Máxima, à qual todas as demais se subordinam e na qual
todas se fundam. É a lei de mais alta hierarquia. É a lei fundante. É a fonte
de todo o Direito. É a matriz última da validade de qualquer ato jurídico. À
Constituição todos devem obediência: o Legislativo, o Judiciário e o
Executivo, por todos os seus órgãos e agentes, sejam de que escalão forem,
bem como todos os membros da sociedade. Ninguém, no território naciona
l,
escapa ao seu império. Segue-se que sujeito algum, ocupe a posição que
ocupar, pode praticar ato - geral ou individual, abstrato ou concreto em
descompasso com a Constituição, sem que tal ato seja nulo e da mais grave
nulidade, por implicar ofensa ao
regramento de escalão máximo
.
183
Desse modo
,
a despeito a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro acima anotada,
preconiza
-se neste trabalho que nem mesmo o mérito dos atos discricionários pode ser
subtraído
do controle judicial, pois além da competência e da legalidade, sempre será possível
um exame de compatibilidade vertical entre o ato administrativo e a Constituição, pois esta
sempre servirá de norte e balizamento para toda e qualquer ação
da Administração Pública
.
Nes
se
passo
, o que se quer deixar aqui enfatizado, é a possibilidade do controle
judicial dos atos
da
Administração pelo não cumprimento das normas constitucionais da
ordem social,
sobretudo
porque
tais normas são vinculantes para o A
dministrador
Público
e
devem ser aplicadas direta e imediatamente, haja ou não norma infraconstitucional
183
MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social
.
Em:
Revista de
Direito Público
57/58. jan./jun. 1981, pp
-
233
-
256.
São
Paulo
: Revista dos Tribunais, p. 237.
76
regulamentadora, pois tais políticas públicas estão delineadas
pelo
T
exto
C
onstitucional
.
Vale
enfatizar
aqui, que a eficácia social reduzida dos Direitos Fundamentais não se deve a
falta de leis integra
doras
. O problema maior é a não-prestação real dos serviços sociais
básicos pelo Poder Público.
É o caso, por exemplo, da garantia de acesso à creche municipal às crianças de zero a
seis anos de idade, conforme assegurado pelo inciso IV do
A
rt. 208
184
da C
onstituição Federal
que, independentemente da existência de norma infraconstitucional, vincula o A
dministrador
P
úblico
no desempenho de sua
s
funç
ões
, de modo que a questão poderá ser objeto de controle
de constitucionalidade e conformidade pelo Judiciário. Nesse caso específico, o Art. 54,
inciso IV
185
do Estatuto da Criança e do Adolescente, repete a determinação constitucional,
assegurando
, em seu Art. 208, III
186
, os meios para o exercício do direito de ação e respectiva
responsabilização
.
Fábio Konder Co
mparato,
sustenta
não h
aver
dúvidas de que a questão seja de
controle de constitucionalidade, pois, como a ordem social constitucional estipula quais são os
direitos
sociais e em muitos casos estabelece sua forma de exercício, não como evitar a
sua j
udicialização, a partir da omissão do A
dministrador em implementá
-
la.
Ainda n
as palavras de
Fábio Konder
Comparato:
Esclarecida, assim, essa clássica falsa objeção à judicialização das políticas
governamentais, estabeleçamos, desde logo, que o juízo de
constitucionalidade, nessa matéria, tem por objeto o confronto de tais
políticas, não com os objetivos constitucionalmente vinculantes da
atividade de governo, mas também com as regras que estruturam o
desenvolvimento dessa atividade. Na primeira hipótese, por exemplo, uma
política pública econômica voltada exclusivamente para a estabilidade
monetária, interna e externa, pode se revelar incompatível com várias
normas
-objetivo da Constituição, notadamente com a busca do pleno
emprego, inscrita no art. 170, VIII. Na segunda hipótese, o exemplo é, sem
dúvida, o da política municipal de saúde pública, desligada do sistema
nacional único, imposto pelo art. 198 da Constituição. Por outro lado,
importa ter em mente que a inconstitucionalidade de uma política
184
CF,
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [
...
]
IV
– atendimento
em creche e pré
-
escola às crianças de zero a seis anos de idade.
185
ECA, Art. 54. É dever do Estado assegur
ar à criança e ao adolescente:
[
...
] IV – atendimento em creche e pré-
escola às crianças de zero a seis anos de idade.
186
ECA, Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos
assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou oferta irregular: [
...
] III de
atendimento em creche e pré
-
escola às crianças de zero a seis anos de idade.
77
go
vernamental pode ocorrer, não apenas em razão de sua própria finalidade,
mas também por efeito dos meios ou instrumentos escolhidos para a sua
realização
. É o que sucederia, por exemplo, se a política agrícola do
governo federal instituísse alguma espécie de incentivo, suscetível de
favorecer a manutenção de latifúndios improdutivos. Parece óbvio que
haveria, aí, afronta à norma constitucional que impõe a compatibilidade da
reforma agrária com a política agrícola (art.187, § 2º). Tudo isso, quanto à
inconst
itucionalidade comissiva. Impossível, porém, não reconhecer que,
também em matéria de políticas públicas, pode haver inconstitucionalidade
por omissão. Em seu art. 182, § 1º, por exemplo, a Constituição impõe a
todos os municípios com mais de vinte mil habitantes, a elaboração de um
plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e
de expansão urbana”. Seria uma irrisão se os tribunais tivessem que se
quedar inativos diante da omissão das autoridades municipais em dar
cumprimento a no
rma constitucional
.
187
Po
is bem, o que se pretende é
justamente
estabelecer a responsabilidade da
A
dministração
Pública
pel
a sua
ação
falha
ou
pela
omissão no tocante à implementação das
políticas públicas de cunho social consagradas na Constituição Federa
l.
Nessa perspectiva, a fim de delinear as competências de cada função estatal, invoca-
se
o magistério de Ana Paula de Barcellos, para quem as atividades legislativa e jurisdicional
envolvem
naturalmente a aplicação da Constituição e o cumprimento de suas normas. O
L
egisla
dor
cuida de disciplinar os temas mais variados de acordo com os princípios
constitucionais. Ao magistrado, por outro lado, cabe aplicar a Constituição, direta ou
indiretamente, que a incidência de qualquer norma jurídica será precedida do exame de sua
própria constitucionalidade e deve se dar da maneira que melhor realize os fins
constitucionais.
Ocorre que as decisões judiciais produzem, como regra, efeitos apenas
pontuais, entre as partes, e a legislação depende de atos de execução para tornar-
se
realidade
.
188
Nesse contexto, compete à Administração Pública efetivar os comandos gerais
contidos na ordem jurídica e, em particular, garantir e promover os direitos fundamentais em
caráter geral. Para isso será necessário implementar ações e programas dos mais diferentes
tipos e garantir a prestação de determinados serviços, ou seja, a efetivação das políticas
187
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de constitucionalidade de políticas públicas. São Paul
o:
Revista dos Tribunais
-
RT.737, mar./97, 12/22, p.20
-
21.
188
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das p
olíticas
públicas em matéria de d
ireitos
fundamentais: O c
ontrole
p
olítico
-social e o c
ontrole
jurídico no e
spaço
d
emocrático.
pp. 599-635. Em:
A
Constitucionalização do Direito
.
(
Coord
s.)
Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento. Lumen Ju
ris.
2007, p. 604
.
78
públicas. Por meio delas, o Estado poderá, de forma sistemática e abrangente, realizar os fins
previstos na Constituição, sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais cuja
fruição direta dependa de ações e prestações positivas.
É
ine
gável
,
desse modo, que o exercício das três funções estatais (executiva
,
l
egislativ
a e
jurisdicional
)
será
sempre norteado pela Constituição, de
sorte
que os atos da
Administração visando
à
implementação de políticas públicas, não diferem dos demais atos
administrativos, estando vinculados ao princípio da legalidade (e obviamente à
constitucionalidade) e à legitimidade (o interesse público, que é a finalidade de qualquer ato
admin
is
trativo).
Escrevendo sobre a legitimação do poder decisório, Floriano Peixoto de Azevedo
Marques Neto
afirma
que um poder público
ou um poder decisório monopolizado no espaço
público
absoluto e indivisível (ou s
eja
, soberano) só poderá subsistir num contexto de
Estado de Direito [
...
] se apresentando como voltado apenas ao atingimento de objetivos
inerentes a todos os indivíduos. Daí a importância para o Estado Moderno do caráter
universalizante do interesse públ
ico cuja perseguição se erige como razão da sua existência.
189
Antônio Carlos Wolkmer, de sua parte, conclui que a construção crítica de uma
legitimidade democrática que venha fundamentar o Poder político e o Direito justo tem seu
ponto de referência deslocado da antiga lógica de legitimação, calcada na legalidade tecno-
formal para uma legitimidade “instituinte”, formada no justo consenso da comunidade e num
sistema de valores aceitos e comp
ar
tilhados por todos. Mais adiante
aponta
que numa cultura
jurídica
pluralista, democrática e participativa, a legitimidade não se funda na legalidade
positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais instituintes e das necessidades
reconhecidas como “reais”, “justas” e “éticas”.
190
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da finalidade impõe ao
Administrador não somente a finalidade específica de todas as Leis que é o interesse público,
mas também a “finalidade específica abrigada na lei a que
esteja
dando execução”
,
enfatizando que “do ponto de vista jurídico, será de interesse público a solução que haja sido
189
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. Malheiros.
2002,
p.
54.
190
WOLKMER, Antonio Carlo
s.
Ideologia, Estado e Direito
. 4ed.
, São Paulo:
RT, 2003, p
p
. 88
-
89
.
79
adotada pela Constituição ou pelas leis quando editadas em consonância com as diretrizes da
Lei Maior
”.
191
Desta
rte, os atos da Administração deverão seguir, assim, os princípios estabelecidos
no
Art. 37
192
da Constituição Federal, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência. Além disso
,
deverão seguir os princípios implícitos agregados ao
regramento constitucional da Administração Pública: supremacia do interesse público sobre o
privado, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade e responsabilidade do Estado
.
Nesse sentido, Lúcia Valle Figueiredo afirma que:
Na verdade não se vêem diferenças, no que tange à legalidade em sentido
amplo
, dos princípios políticos diretamente subsumidos à Constituição,
como, por exemplo, a decretação do estado de sítio, a declaração de estado
de defesa, ou, ainda, a declaração de políticas econômicas, de outros atos
administrativos. Deveras, o ato político está também inserido no
conceito de
ato admin
is
trativo, pois é norma concreta emanada do Estado debaixo de
legalidade, entendida esta, em termos amplos. Lembremos a concepção
kelsiana: no ápice da pirâmide encontra-se a Constituição, depois as normas
gerais, fundamentos de validade das normas individuais. Os atos políticos
estão diretamente subsumidos ao topo da pirâmide a Constituição.
Portanto, também estão os atos políticos abrigados no conceito de ato
administrativo, pois são normas individuais, susceptíveis de controle pel
o
Poder Judiciário. Apenas a fonte de validade é outra, a Constituição. O ato
administrativo está imediatamente referido na lei, enquanto que o ato
político, embora espécie de ato administrativo, subsume-se à
Constituição.
193
Assim,
na esteira do que sustenta Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, o A
dministrador
está vinculado à Constituição e à implementação das políticas públicas da ordem social (quer
diretamente quer em parceria com a sociedade civil nesse sentido atuando como
fiscalizador)
, estando adstrito às finalidades explicitadas na Constituição, bem como nas leis
integradoras, e não cumpri-las caracteriza omissão, passível de responsabilidade, salientando
que essa obrigação de cumprir as normas constitucionais da ordem social inserem-se no
191
MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Curso de Direito Administrativo
. 24ed.
,
2007,
Malheiros, p
p.
104 e
66
.
192
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, ta
mbé
m o seguinte:
193
FIGUEIREDO. Lucia Valle. O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente
do planejamento
.
Revista Trimestral de Direito Público -
nº11,
pp 05-
20
, São Paulo: Malheiros, jul./set.1995,pp
09/10
.
80
devido
processo legal que deve ser obedecido pela Administração, na implementação das
políticas públicas.
194
Para
alicerçar
sua
afirmação
,
a
última
autora
citada
baseia
-
se
na lição de
Carlos
Roberto de Siqueira Castro para quem o devido processo legal deve ser entendido como
postulado de caráter substantivo (substantive due process), capaz de condicionar, no mérito, a
validade das leis e da generalidade das ações (e omissões) do Poder Público
.
195
Neste
sentido,
conforme ensinam Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos,
que
se
acrescentar que apesar de não expresso na Constituição, o princípio da razoabilidade
ou da proporcionalidade, aqui entendidos como fungíveis, tem seu fundamento nas idéias de
devido processo legal substantivo e na de justiça.
Cuida
-se também de um valioso
instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse blico, por permitir o
controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com
que a norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim
constitucional nela embutido ou decorrente do sistema.
196
Destarte, conforme se verá adiante, a atividade discricionária do P
oder
P
úblico,
modernamente, vem sendo cada vez mais reduzida e delimitada, em decorrência da
consagr
ação de importantes princípios constitucionais conformadores da autuação dos
Poderes, a exemplo dos princípios da indisponibilidade do interesse público, do devido
processo legal, da razoabilidade e proporcionalidade, da moralidade administrativa, da
efici
ência, da obrigatoriedade do desempenho da atividade administrativa, da continuidade do
serviço público, da igualdade, da justiça social, da economicidade, entre outros.
Diante desse novo cenário, defende-se aqui que as políticas públicas determinadas
constitucionalmente não se inserem no âmbito de discricionariedade do P
oder
P
úblico
, a
discricionariedade do
A
dministrador Público
cessa ante o
t
exto explícito da Constituição, cuja
finalidade é a plena satisfação do interesse da coletividade, de modo que existe
sim
a
194
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, p. 91.
195
CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova
Constituição do Brasil
. Rio de Janeiro: Forense
,
1989, p.383.
196
BARROSO, Luís Roberto Barroso; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios do direito brasileiro. p. 33. Disponível em:
http://www.camara. rj.gov.br/
setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf
. Acesso em 22 de jan.
2008.
81
possibilidade de responsabilização da Administração pelo não cumprimento das políticas
públicas consagradas na Constituição Federal
.
Essa possibilidade de responsabilização da Administração
Pública
pela não
implementação
das políticas públicas da ordem constitucional social,
rest
ou
bem sintetizada e
demonstrada por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen,
em cinco pontos,
todos encadeados entre
si,
assim redigidos:
1- as normas constitucionais que estabelecem os direitos sociais são
eficazes e v
inculam a administração para sua implementação;
2- por serem direitos sociais dotados de eficácia, e para alguns
constituindo mesmo direitos fundamentais, que não seriam passíveis de
abolição por emenda constitucional, o seu não reconhecimento possibilita
aos
interessados/legitimados demandarem judicialmente por sua
implementação;
3- a ausência de políticas públicas voltadas para a implementação dos
direitos sociais constituem atos omissivos da Administração e são passíveis
de controle pelo Judiciário, pois existe o juízo de inconstitucionalidade e
ilegalidade na omissão da
A
dministração;
4- o não cumprimento das políticas públicas da ordem social fixadas na
Constituição atenta contra o devido processo legal que deve ser observado
pela
Administração, bem como contra a finalidade
administrativa
, que é
atender o interesse público e
,
5- determinadas políticas públicas dependem da atuação de entes e
instituições prévias (como a adaptação de prédios e transporte coletivos às
necessidades das pessoas portadoras de deficiência), nessa hipótese, a
administração poderá ser responsabilizada por ausência de fiscalização, em
conjunto com o particular.
197
Nessa perspectiva, em que a Constituição vincula o Legislador e o Administra
dor
Públic
o não somente quanto à obediência dos direitos fundamentais, mas também quanto à
elaboração das normas que garantam à coletividade a concretização dos direitos sociais,
impondo uma atuação positiva do Estado, sustentou-
se
, em arremate, a possibilidade de
responsabilização daqueles, pela ação ou omiss
ão
, no caso de falha ou ausência, de ações
tendentes à concretização das aludidas normas constitucionais que devem ser materializadas
por meio das políticas públicas
.
Contudo,
não pode deixar de ser dito que essa
possibilidade
de responsabilização da Administração Pública, por atos comissivos e omissivos, por certo, é
matéria muito controvertida tanto na doutrina como nos t
ribunais
, encontrando forte
resistência na doutrina constitucional tradicional
ista
, que se escuda, grosso modo, no princípio
197
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, p.92
-
93.
82
da separação dos Poderes e na discricionariedade da Administração para rechaçá-la. Assim,
impõe
-se um maior aprofundamento
acerca
do tema referente à discricionariedade da
Administração
no tocante as políticas públicas preconizadas no T
exto
C
onstitucional
.
2.5
A discricionariedade mínima da A
dministração
Pública
na implementação das
P
olíticas
P
úblicas
C
onstitucionais
.
Com apoio no magistério de Luis Roberto Barroso, modernamente tem restado
superada a idéia restrita de vinculação positiva do Administrador à L
ei,
na leitura
convencional da legalidade, pois
ele
pode e deve atuar tendo por fundamento direto a
Constituição e independentemente, em muitos casos, de qualquer manifestação do L
egislador
ordinário.
Segundo o referido autor, “o princípio da legalidade transm
ud
a-
se
, assim, em
princípio da constitucionalidade ou, talvez, em princípio da juridicidade, compreendendo sua
subordinação à Constituição e à
L
ei, nessa ordem”
.
198
A constitucionalização implica, pois, na irradiação dos valores constitucionais pelo
siste
ma jurídico, como um todo. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que a Constituição
protege os direitos fundamentais, incluídos os sociais, e determina a adoção de políticas
públicas aptas a realizá
-
los.
Desse modo, é inequívoco que as normas constitucionais criam vinculação para a
A
dministração
Pública
e para o Legislador, pois a Constituição Federal estabelece claramente
políticas blicas, que na maioria dos casos já foram objeto de regulamentação por
leis
integradoras
, a serem cumpridas para implementação dos direitos estabelecidos no Título da
O
rdem
S
ocial e em outros dispositivos já mencionados anteriormente.
Pois bem, nesta trilha é assente que os atos emanados da Administração no
cumprimento das políticas públicas de cunho social podem ser mencionados como vinculados
e não discricionários, porquanto os limites de atuação do Administrador foram traçados
198
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do
Direito Constitucional no Brasil).
Em:
A Constitucionalização do Direito Fundamentos teóricos e aplicações
específicas
. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, pp.
203
-
249, p. 238.
83
pela Constituição Federal, não deixando, assim, margem para juízos de conveniência e
oportunidade.
Conforme já assinalado, numa visão mais s
implista
,
a discricionariedade é considerada
como uma prerrogativa concedida ao agente público de escolher, dentre várias condutas
possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público. Assim, o
núcleo básico do poder discricio
nário seria o binômio conveniência
-
oportunidade.
Celso Antônio Bandeira de Melo
conceitua a d
iscricionariedade
da seguinte forma:
Discricionariedade, portanto, a margem de liberdade que remanesça ao
Administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade,
um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso
concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à
satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões
da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair
objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente
.
199
Nos atos vinculados, por sua vez, a lei estabelece uma única solução possível diante de
determinada situação
concreta
. Logo, não margem para apreciação subjetiva por parte do
A
dministrador
P
úblico
. Em outras palavras, não a outorga de liberdade para resolver sobre
a conveniência do ato, nem sobre o seu conteúdo, cabendo à Administração somente praticá-
lo, após a constatação da exist
ência dos motivos que o embasarão.
Conforme anotado em linhas anteriores, o A
dministrador
Público está vinculado à
Constituição
, assim como às normas infraconstitucionais dela decorrentes, para a
implementação das políticas públicas relativas à ordem
social constitucional
.
Assim, por exemplo, a ausência de vaga no ensino no ensino fundamental em escola
pública, pela inexistência de estabelecimento de ensino na região, enseja ações individuais e
coletivas, sendo que nestes casos o Judiciário poderá determinar a instalação e
disponibilização de estabelecimento de ensino necessário à resolução do problema
emergencial dos titulares do direito de acesso à educação fundamental gratuita, sobretudo
porque neste caso não discricionariedade do A
dministrador
Público, mas sim vinculação à
Constituição Federal que determina a adoção de políticas públicas efetivas e aptas a assegurar
199
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2ed. Malheiros,
2007,
p.48
.
84
o ensino fundamental a todos, inclusive para os que não tiveram acesso na idade própria, nos
moldes do inciso I do Art. 208
200
e A
rt.
201
. O mesmo raciocínio se aplica às prestações de
saúde que sejam consideradas juridicamente exigíveis. O indivíduo não atendido pode, por
certo, postular seu atendimento, mas também se pode discutir a questão em seu caráter geral –
com maior proveito de modo a assegurar o oferecimento do bem a todos os indivíduos que
dele necessitam.
Aliás, Fábio Konder Comparato afirma que os objetivos gerais e específicos das
Constituições do moderno Estado dirigente são juridicamente vinculantes para todos os
órgã
os do Estado e também para todos os detentores de poder econômico ou social, fora do
Estado.
Mais adiante, o mesmo autor destaca que:
O importante é assinalar, na estrutura do Estado Dirigente, a lei perde a sua
majestade de expressão por excelência da soberania popular, para se tornar
mero instrumento de governo. A grande maioria das leis insere-se, hoje, no
quadro de políticas governamentais, e têm por função não mais a declaração
de direitos e deveres em situações jurídicas permanentes, mas a solução de
questões de conjuntura, ou então o direcionamento, por meio de incentivos
ou desincentivos, das atividades privadas, sobretudo no âmbito empresarial
,
ou ainda a regulação de procedimentos no campo administrativo.
202
Ingo Wolfgang Sarlet destaca que o que importa é a constatação de que os direitos
fundamentais vinculam os órgãos administrativos em todas as suas formas de manifestação e
atividades, na medida em que atuam no interesse público, no sentido de guardião e gestor da
coletividade. E
registra
: No que diz com a relação entre os órgãos da Administração e os
direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da
A
dministração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos
devem executar apenas as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de
forma constitucional, isto é, aplicando-a e interpretando-as em conformidade com os direitos
fundamentais
.
203
200
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I ensino fundamental
obrigatório
e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na
idade própria.
201
Art. . São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à i
nfância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
202
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de constitucionalidade de políticas públicas. São Paulo:
Revista dos Tribunais
RT 737, mar./97, 12/22, p.19.
203
SARLET
,
Ingo Wolfgan
g
.
A
eficácia dos direitos fundamentais
. 8ed.,
Livraria do Advogado,
2007,
p. 393.
85
De outra parte, o A
dministrador
P
úblico
está também adstrito ao princípio da
razoabilidade, pois o efetivo exercício dos direitos sociais não pode ser postergado por sua
inação ou ação que contrarie os ditames constitucionais e legais.
Assinale
-se que em face da
atual
Constituição todo ato omissivo do P
oder
Público que inviabilize a efetividade de uma
norma constitucional está sujeit
o
ao controle de constitucionalidade
pelo Judiciário
.
Aliás, calha aqui uma breve alusão à inconstitucionalidade por omissão que, no dizer
de Flávia Piovesan, é a inconstitucionalidade negativa, que resulta
de
abstenção, inércia ou
silêncio do P
oder
Político que deixa de praticar determinado ato exigido pela Constituição
.
Isto implica dizer que há a omissão inconstitucional quando o dever constitucional de
ação. A inconstitucionalidade
por omissão pressupõe a exigência constitucional de ação.
204
A última autora referida aponta
ainda
a existência de três espécies de
inconstitucionalidade por omissão, as quais se caracterizam: 1) pela falta ou insuficiência de
medidas legislativas; 2) pela falta de adoção de medidas políticas ou de governo e, 3) pela
falta de implementação de medidas administrativas, incluídas as medidas de natureza
regulamentar, ou de outros atos da Administração Pública.
Destarte
, recobrada a noção da inconstitucional
idade por omissão e com base no que já
foi até aqui exposto, pode-
se
afirmar, com apoio na doutrina de
Luiza
Cristina Fonseca
Frischeisen
, que
o
Administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a
oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem
social constitucional, pois tal restou deliberado pelo constituinte e também pelo L
egislador
ordinário
que elaborou as normas de integração.
205
Conforme se depreende da argumentação desenvolvida por Celso Antônio
Bandeira de
Melo, em artigo de sua autoria, intitulado “Eficácia das normas constitucionais sobre justiça
social”,
a discricionariedade na implantação das políticas públicas constitucionais da ordem
social
somente
poder
ia
ser exercida nos espaços, eventualmente não preenchidos pela
Constituição ou pela lei, não podendo valer-se, tampouco, de conceitos normativos tidos
como fluidos ou permeáveis a várias interpretações, pois esses deverão ser preenchidos por
204
PIOVESAN, Flávia.
Proteção Judicial contra omissões legislativas
. 2ed., São Paulo: RT, p. 90.
205
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, p.95.
86
interpretação de acordo com os fundamentos e objetivos da República, estabelecidos na
Constituição.
206
Conforme destacado por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, essa vinculação aos
ditames constitucionais não leva ao “engessamento” da Administração que, diante das
múltiplas demanda da coletividade, necessita ter espaço para implementar as políticas
públicas, em consonância com as diversas realidades sociais existentes em uma mesma
comunidade, mas que devem sempre atender à finalidade constitucional e legal
.
207
Nesta senda, cabe ao Judiciário dar a última palavra sobre os limites da
discricionariedade, porquanto intérprete último do Direito. O próprio conceito de ato
administrativo político deve ser interpretado restritivamente, em virtude da supremacia da
Constituição e da inafastabilidade do controle jurisdicional. Destarte, a pura e simples
invocação da natureza “política” ou “discricionária” de um ato do Estado não é suficiente para
retirá
-
lo da apreciação judiciária.
A Constituição deve ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras,
perm
eável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos
direitos fundamentais desempenham um papel central, de modo que pode-se afirmar que a
margem de discricionariedade do Administrador é mínima, ou porque não dizer, n
enhuma,
que
os limites foram traçados pela própria Constituição. Afirma-se, assim, que
vinculação e não discricionariedade.
Destarte
, as dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas
pelo Judiciário, cabendo ao juiz dar sen
tido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato
administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade
constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional. Ness
a ordem de idéias
é que se most
ra relevante o exame do fenômeno
a “politização do Judiciário
”.
206
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social
.
Em:
Revista
de Direito Público, 57/58,
jan./jun. 1981. pp. 233
-
256. São Paulo: Revista dos Tri
bunais.
207
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, p.96.
87
2.6
A chamada politização do Judiciário e a judicialização da Política
Nas palavras de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, o Estado Social,
produto
de
movimentos sociais do Século XIX, foi também, em grande medida, produto de atividade
legislativa, em uma nova perspectiva da própria função do Direito, que deixava de ser
meramente instrumento de manutenção de uma determinada ordem política e passava a ter
uma função promocional. Após a positivação dos direitos
sociais
, seguiu-se um processo de
positivação de suas garantias, o que lev
ou
a um processo de
judicialização
de tais direitos,
pois que entre aquelas garantias, estava a criação de mecanismos de tutela judicial para o seu
efetivo exer
cício
.
208
Assim,
nes
te enfoque, o termo
judicialização
significa a elaboração de fórmulas
processuais
aptas a viabilizar uma tutela jurisdicional envolvendo um direito material já
positivado
. Em outras palavras, viabilizar a possibilidade de trazer a pretensão de direito
material para ser discutida
no Judiciário
, por meio de um processo
judicial
.
Conforme destaca Celso
Fernandes
Campilongo,
o Judiciário assume um papel
absolutamente fundamental nesse momento. A tendência dos sistemas jurídicos
contem
porâneos é a de criar novas técnicas de garantia de efetividade a sempre novos direitos
vitais. Por isso, com propriedade já se assinalou que “o progresso da Democracia mede-
se
precisamente pela expansão dos direitos e pela sua afirmação em juízo”. E mais
adiante
registra
:
A magistratura ocupa uma posição singular nessa nova engenharia
institucional. Além de suas funções usuais, cabe ao Judiciário controlar a
constitucionalidade e o caráter democrático das regulações sociais. Mais
ainda: o juiz passa a integrar o circuito de negociação política. Garantir as
políticas públicas, impedir o desvirtuamento privatista das ões estatais,
enfrentar o processo de desinstitucionalização dos conflitos apenas para
arrolar algumas hipóteses de trabalho significa atribuir ao magistrado uma
função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva.
[
...
] Assim, o juiz não aparece mais como “o responsável pela tutela de
direitos e das situações subjetivas, mas também como um dos titulares da
distribu
ição de recursos e da construção de equilíbrios entre os interesses
supra
-
individuais”.
209
208
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, 2000, p.97.
209
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico.
Em
Direitos
Humanos, Direitos Sociais e Justiça
.
(org.)
José Eduardo Faria, 1ed. 4tir.
São Paulo: M
alheiros
, 2005
,
p.48
.
88
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, assinala que os direitos sociais, produto típico do
E
stado do
B
em
-E
star
S
ocial, não são, pois, conhecidamente, somente normativos, n
a forma de
um
a priori formal, mas têm um sentido promocional prospectivo, colocando-se como
exigência de implementação. Isto altera a função do Poder Judiciário, ao qual, perante eles ou
perante a sua violação, não cumpre apenas julgar no sentido de estab
elecer o certo ou o errado
com base na lei (responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas
também e sobretudo examinar se o exercício discricionário do poder de legislar conduz à
concretização dos resultados objetivados (responsabilidade finalística do juiz que, de certa
forma, o repolitiza).
210
Numa outra perspectiva,
fala
-se na “judicialização da política”, termo utilizado para
retratar o crescente controle efetuado pelos órgãos judiciários sobre as decisões políticas, que
geralmen
te decorre do constante recurso da minoria ao Tribunal Constitucional, como forma
de solução de seus conflitos com a maioria. É o que se vê quando os partidos políticos
minoritários no Congresso Nacional ou aqueles que fazem oposição ao governo,
trazem
uma
discussão interpretativa
constitucional
para âmbito de cognição do Supremo Tribunal Federal
.
Tal fenômeno
tem
se verificado com freqüência no Brasil, onde partidos políticos têm
pressionado o Judiciário para que ele julgue questões atinentes à
constitucio
nalidade da
formação legislativa, sendo considerado uma conseqüência do controle judicial de
constitucionalidade
.
De qualquer modo, no Brasil, a partir dos anos noventa, se tornou mais expressiva a
visibilidade das decisões e sentenças contra o Executivo no plano econômico, tributário e
previdenciário
, e o Judiciário se apresent
ou
como “poder estatal” independente perante a
opinião pública. A partir dessa notoriedade, tem crescido o anseio popular de controle sobre
as escolhas políticas e,
conseqüentemen
te, a pressão sobre o Judiciário para que adentre no
exame dos atos de governo, não para contrastá-los com a lei, mas
sobretudo
com
a
nova
ordem constitucional, que irradia valores e princípios para
todo o ordenamento jurídico pátrio
.
Certamente um dos fatores preponderantes para o estabelecimento dessa linha de
tensão entre o Judiciário, de um lado, e o Executivo e o Legislativo, de outro, se explica pelo
210
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio.
O Judiciário frente à divisão dos poderes. Um princípio em decadência?
Em:
Revista Trimestral de Direito Público
-
9,
jan./mar. 1995,
pp
-
40
-
48, São Paulo: Malheiros, p. 45.
89
contraste entre a filosofia política da Constituição
brasileira
e a prática política que se
inst
aurou no Brasil por força da
globalização
e dos imperativos do
mercado
sobre a vida
social.
Dito de outro modo, o Estado intervencionista consagrado na Constituição,
em
confronto com o Estado neoliberal,
que
quer se instalar ignorando as conquistas históri
cas,
desprezando valores realizados pela social-democracia, em favor da concepção egoística do
homem
-econômico exaurido na liturgia do “mercado”. Em função disso, não raramente
instaura
-se um desalinhamento entre as ações governamentais e o T
exto
C
onstituc
ional cuja
preservação e tutela é a tarefa maior do Poder Judiciário
.
Nesse
passo
,
Celso
Fernandes
Campilongo,
numa
visão sociológica, situa a questão
em um mundo que convive cada vez mais com a complexidade social e dificuldades no
processo decisório d
e detentores dos Poderes Executivo e Legislativo e
afirma
:
É nesse pano de fundo que ressurge o debate sobre a expansão da função
política dos Tribunais, do Ministério Público e dos operadores jurídicos em
geral: a chamada “politização do judiciário”. O outro lado da medalha vem
representado por um processo de substituição e de delegação do sistema
político (e, no seu interior, particularmente aos Tribunais) de importantes
competências decisórias: a suposta “judicialização da política”. [
...
] Diante
das incertezas do processo decisório político (e dos riscos a ele inerentes), o
Judiciário estaria, cada vez mais, assumindo um papel de revalidador,
legitimador ou instância recursal das decisões políticas.
211
Num outro
texto de sua autoria
,
o mesmo autor
dest
aca
:
A presença do Estado no domínio econômico confere à ordem jurídica um
caráter indisfarçadamente político. A literatura sobre as novas “funções do
direito”
redistributivas, transformadoras, legitimadoras, etc traz
consigo o questionamento a respeito dos novos papéis do juiz. Sem
abandonar a tradicional função de adjudicação da conflituosidade inter-
individual, o magistrado atua, no Estado social, como um garantidor da
estabilidade e da dinâmica institucionais. Os direitos sociais agregam ao
Estado
de Direito um considerável aumento de complexidade. O sistema
legal de garantias liberais era altamente seletivo e permeável a conteúdos
materiais. O modelo jurídico do Estado social é compensatório dos défici
ts
e desvantagens que o próprio ordenamento provoca. Os direitos sociais
lidam com uma seletividade inclusiva. O desafio do Judiciário, no campo
dos direitos sociais era, e continua sendo, conferir eficácia aos programas de
ação do Estado, isto é, às políticas públicas, que nada mais são do que os
dire
itos decorrentes dessa “seletividade inclusiva”.
212
211
CAMPILONGO, Celso Fernandes. A função política dos Tribunais e do Ministério Público. Em: Direito e
Cidadania
-
3, publicação do Instituto de Estudos, Direito e Cidadania
IDEC,
n
ov
./dez
1997.
212
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico.
Em:
Direitos
Hum
anos, Direitos Sociais e Justiça
.
(org.)
José Eduardo Faria, 1ed. 4tir.
São Paulo:
Malheiros
, p.47.
90
Mauro Cappelletti, de sua parte, advertia que mais cedo ou mais tarde os juízes
teriam que aceitar a realidade da transformada concepção de Direito e da nova função do
E
stado
”. Para tal fim, os juízes devem controlar e exigir o cumprimento do dever do Estado
de intervir ativamente na esfera social. Mais adiante, destaca que “é manifesto o caráter
acentuadamente criativo da atividade judiciária de interpretação e de atuação legislativa e dos
direitos
sociais”
.
213
Tem
-
se,
assim
, que
o
fenômeno da
politização do Judiciário
está ligad
o à
imersão do
Judiciário no cenário político, sobretudo porque cabe a ele dar a última e derradeira
palavra,
acerca de questões
constitucionais, que num primeiro momento se apresentam como
políticas,
mas que em verdade, se tornam ju
diciais
e por isso, não escapam ao controle judicial de
constitucionalidade
.
A propósito, calha aqui as palavras de Fábio Konder Comparato, de seguinte teor:
“Afastemos, antes de mais nada, a clássica objeção de que o Judiciário não tem competência,
pelo princípio da divisão de Poderes, para julgar “questões políticas”. O referido autor cita a
lição de Rui Barbosa
, assim redigida
:
no início do regime republicano, quando se ensaiava entre nós o juízo de
constitucionalidade de leis e atos do Poder blico, Rui Barbosa advertia
para o fato de que uma questão política, quando analisada fora dos
tribunais, assume necessariamente um caráter judiciário quando proposta
como objeto de uma demanda. “O effeito da interferência da justiça, muitas
vezes”, escreveu ele, “não consiste senão em
transformar
, pelo aspecto com
que se apresenta o caso, uma questão
políti
c
a
em
judicial
. Mas a attribuição
de declarar inconstitucionaes os actos da legislatura envo
lve,
inevitavelmente, a justiça federal em questões políticas. É,
indubitavelmente, um poder, até certa altura, político, exercido sob as
fórmas judiciaes”.
214
Na mesma trilha, ao tratar da dimensão política da função judicial, Plauto Faraco de
Azevedo
, assinala que para reconhecer a dimensão política da função judicial, tem-se de ter
em mente que se trata de
uma atividade que tem por finalidade alcançar a realização da trama
de princípios, valores, instituições e comportamentos sociais que estão definidos e
213
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Fabris Editor, 1993,
p. 42
.
214
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de constitucionalidade de políticas públicas. São Paulo:
Revista dos Tribunais
-
RT.737, mar./97, pp. 12/22, pp.19
-
20.
91
constituindo uma certa ordem’. E
registra
: Apoiado em excelente análise histórica do Poder
Judiciário, Zaffaroni não tem dúvida em afirmar que a questão judiciária é, antes de tudo,
uma questão política
’.
215
Acresça
-
se
, nesse passo, de acordo com o magistério de José Carlos Vasconcellos dos
Reis,
que ao atuar no sentido de preservação do espírito da Constituição sobretudo aquele
núcleo intangível representado pelos direitos fundamentais – em face das oscilações da
política e do governo, o processo judicial pode ser considerado como um dos meios
institucionais de participação e controle da cidadania sobre o exercício do poder
.
216
Cidadania não mais entendida como adstrita ao exercício dos direitos políticos, mas
sim com o exercício de outras prerrogativas que surgiram como consectário lógico do Estado
Democrático e Social de Direito, ou seja, todo e qualquer direito relacionado à dignidade do
cidadão como sujeito de prestações estatais e à participação ativa na vida social, política e
econômica do Es
tado.
Num outro enfoque da dimensão política do Judiciário,
agora sob a ó
p
tica da limitação
interna do poder como forma de evitar abusos e desvios, Plauto Faraco de Azevedo
assinala
que,
Outro modo
de
conduzir o poder ao direito consiste em limitá-
lo
in
ternamente, repartindo suas funções entre várias instituições e pessoas.
“A este pensamento fundamental de equilíbrio correspondem soluções o
diversas quanto as constituições rígidas, o federalismo, a separação dos
poderes, a responsabilidade ministerial, o sistema bicameral, a subordinação
dos regulamentos às leis, a organização hierárquica da administração e dos
tribunais, a consulta obrigatória de conselhos ou agrupamentos sindicais
[
...
]. Verdade é que a simples distribuição do poder entre vários órgãos não
é suficiente para evitar a falibilidade política. Por isso, também buscando a
divisão de poder, encontrou-se na Jurisdição, particularmente em seu
aspecto constitucional, o aspecto mais seguro de evitar o abuso de poder,
“seja postulando a anulação dos atos incriminados, seja sob a forma de
exceção de recusa de sua aplicação”
.
[
...
] Na medida em que a justiça
controla, ela governa, ao menos de forma negativa, por via de impedimento.
Sendo a lei precisa, o juiz não faz mais do que efetivar a vontade do
legislador. Mas, não havendo regulamentação positiva, ou sendo a regra
positiva de criação jurisprudencial, ou, ainda, quando a regra alude ao poder
215
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalisno. 1ed. 2tir. São Paulo: RT, 1999, p.41-
42.
216
REIS, JoCarlos Vasconcellos dos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003, p.263.
92
de
apreciação do juiz, “verdadeiramente o juiz governa, decidindo, em
última instância, acerca das exigências do bem público, em determinada
matéria”.
217
Trazendo a discussão da politização do Judiciário para um contexto concreto, no
cenário nacional, não há como deixar de abordar o tema alusivo à hipertrofia do Poder
Executivo,
posto que a título de ilustr
ação
,
segundo artigo intitulado “Legislativo subalterno”,
publicado no Jornal “O Estado de São Paulo”,
218
de 02 de janeiro de 2008, no ano de 2007,
numa análise dos projetos aprovados pela Câmara e pelo Senado que se tornaram Leis,
verifica
-
se
primeiro
, que o Executivo comandou inteiramente os trabalhos, tomando a
iniciativa de propor e fazer aprovar 75,8% das Leis, enviando 119 dos 157 projetos
sancionados.
Segundo
, que a metade dos 22,9% projetos sancionados, de iniciativa do
Legislativo (correspondendo a 36 projetos), foi apenas Leis para dar nomes a locais de uso
público ou instituir datas comemorativas.
Neste c
ontexto
, de verdadeira ditadura do
Poder
Executi
vo
em face do Legislativo e da
sociedade civil, a posição do Judiciário baseia-se na preservação e garantia do princípio
democrático, pois atua na salvaguarda dos direitos fundamentais. Assim, o fato de funcionar
como mediador entre os outros dois Poderes, coibindo uma possível preponderância do
Executivo sobre o Legislativo, constitui apenas uma conseqüência desse papel, posto que a
harmonia e independência entre os Poderes constituem valores democráticos
constitucionalmente assegurados pela Constituição da República.
Cabe lembrar que, mesmo na defesa de interesses particulares, o Judiciário tem si
do
chamado
igualmente
a
promover a defesa da Constituição
. A
Constituição
contém normas
que
regulam diretamente os conflitos sociais, influenciando a distribuição de recursos entre grupos
e classes sociais e protegendo direta ou indiretamente seus interesses, os quais, sendo
violados, também fundamentam, o recurso ao
Judiciário
. Assim, inúmeras ações individuais
tem sido aforadas pelos cidadãos, buscando no Judiciário a correta aplicação da Constituição
e o efetivo exercício dos direitos sociais assegurados na mesma, para implantação das
políticas públicas correlacionadas. Do mesmo modo, a defesa dos interesses coletivos tem
sido promovida por meio das ações diretas de inconstitucionalidade e
de
ações civis públicas
,
217
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalisno. 1ed. 2tir. São Paulo: RT, 1999, p
p.
39
-
40
.
218
Legislativo subalter
no
.
Em:
Notas & Informações. Jornal “O Estado de São Paulo”. São Paulo, Caderno I,
p.
A-
3,
02 jan. 2008
Ano 128, edição nº 41714.
93
quase sempre ajuizadas pelo Ministério Público e que tem se mostrado um eficiente
instrumento para a concretização das políticas públicas no âmbito social.
Portanto, o problema não é de substituição do Executivo pelo Judiciário, mas de
cumprimento da Constituição e de interpretação das normas constitucionais e legais e ainda
dos limites da discricionariedade da A
dministração
, conforme assevera Luiza
Cristina
Fonseca
Frischeisen
219
que, na seqüência, invoca a lição de Sérgio de Andréa Ferreira
,
lançada nos seguintes termos
:
Por mais abstrato ou subjetivo que possa parecer um determinado padrão
jurídico, cabe ao juiz dar-lhe sentido no caso concreto e, através disso,
controlar a legitimidade do ato, a discricionariedade lesiva, a omissão, a
ameaça, tudo isso traduzindo uma imensa ampliação dos poder
es
jurisdicionais em relação aos Poderes Públicos. É certo que o juiz não vai
substituir ao legislador, ao administrador, no núcleo do poder discricionário.
Mas não o estará fazendo se verificar que, diante de uma aparente
legalidade extrínseca, na verdade esteja em face de uma grande injustiça, de
um procedimento administrativo desarrazoado, ilógico, contrário à técnica,
à economicidade, à logicidade, que são os parâmetros do controle
jurisdicional, neste campo específico da chamada legitimidade.
220
Val
e enfatizar, por oportuno, que ao lado do princípio fundamental da inafastabilidade
e indeclinabilidade da atividade judicial consagrado no Art. 5º,
inciso
XXXV
221
,
a
Constituição Federal e
stabelece
direitos sociais (metaindividuais) gerais (A
rt.6º)
222
e dos
trabalhadores rurais e urbanos (Art. 7º)
223
e os explicita no Capítulo da O
rdem
S
ocial,
onde
preconiza
também as políticas públicas a serem implementadas (A
rts. 193/23
2)
224
, que podem
ser demandados individualmente ou coletivamente, nessa última hipótese, por i
nstrumentos
219
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São
Paulo: Max Limonad, p.101.
220
FERREIRA, Sérgio de Andréa. A especificidade do controle dos poderes públicos no contexto da função
jurisdicional. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Em: Direito Administrativo e Constitucional.
(org.)
Celso Antônio Ban
deira de Mello. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 584.
221
XXXV
a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
222
Art. . São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
soc
ial, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
.
223
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social: Incisos I a XXXIV e parágrafo ú
nico
.
224
Título VIII
Da Ordem Social
(Arts. 193 a 232).
94
processuais próprios, também assegurados na Constituição, mandado de segurança coletivo e
ação civil pública (
A
rt. 5º, inciso LXX
225
e
A
rt. 129, inciso III
226
).
Observe-
se
, nesse contexto, que houve um processo de
judicialização
das demandas
co
letivas
, que o Judiciário passou a atuar como árbitro de novos conflitos de natureza
coletiva, conflitos de massa e, portanto, políticos.
Assim
, o Judiciário
surgiu
como uma
alternativa para a resolução dos conflitos coletivos, para agregação do tecido social e mesmo
para a adjudicação da cidadania, tema dominante na pauta da facilitação do acesso à Justiça
,
conseqüência natural da positivação pela Constituiç
ão
dos direitos sociais.
Repise
-se que o controle de constitucionalidade exercido quanto às políticas públicas
não pode ser visto como “invasão de competência”, que políticas públicas não podem ser
concebidas como questões puramente políticas e menos ainda como mérito administrativo,
cuja análise deva escapar ao Poder Judiciário, mesmo porque nem as questões políticas, nem
o mérito administrativo,
escapam
ao controle constitucional, conforme
acenado
em linhas
anteriores
e que merecerá um maior aprofundamento mais adiante.
Não se pode perder de vista que a Constituição constituiu o Estado Democrático de
Direito em dois fundamentos relacionados ao indivíduo; cidadania e dignidade da pessoa
humana. A dignidade da pessoa humana é o valor fundamental do indivíduo, ao passo que a
cidadania se refere ao aspecto social.
A cidadania, por sua vez, consoante assinala Paulo Hamilton Siqueira Júnior,
é
inerente à Democracia e à participação política que se exterioriza pelas decisões políticas nos
Município, Estados
Federados
ou na comunidade em que o indivíduo vive. A cidadania
constitui
-
se
, portanto,
um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil e tem como
conseqüência a democratização do acesso à justiça e a participação popular no processo
decisório governamental. O estudo do direito de ação, do acesso ao Judiciário, bem como de
225
LXX
o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no
Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em
funcionamento há pelos menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados.
226
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) III promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos.
95
sua efetividade, ultrapassa os limites meramente jurídicos para alcançar, igualmente, o campo
político
.
227
Mais adiante, ao tratar das formas de execução da cidadania, mais precisamente no
tocante
à atuação jurídica, o
referido
autor afirma que ‘a Constituição Federal criou
instrumentos para o cidadão fiscalizar os negócios do Estado, por intermédio do Poder
Judiciário
. A atuação da cidadania consiste na participação, fiscalização das atividades do
Estado, dentre as quais se inclui a jurisdicional. A efetividade jurisdicional exercida em prol
da cidadania ultrapassa o mundo jurídico, alcançando a esfera política da nação
’.
228
Assim, considerando que no sentido esculpido na Constituição
brasileira,
cidadania é
ter direitos e sua plenitude somente pode ser alcançada com a implementação dos direitos
sociais
, que não existe direito de liberdade de expressão sem o direito à educação e
,
na
esteira
do que afirma Luiza Cristina Fonseca
Frischeisen,
‘não se trata de um juiz legislador
ou da substituição do Executivo pelo Judiciário, mas sim de um juiz intérprete da
Constituição, que deve estar em sintonia com as demandas dos diversos setores da sociedade
em que vive e trabalha. Sendo a Constituição uma opção política, a interpretação de seus
valores, princípios e normas devem incorporar os próprios valores que regem a sociedade’
,
apontando
que
:
Assim s
endo, não há como negar a importante participação do Judiciário para
o efetivo exercício dos direitos fundamentais e, em particular, dos direitos sociais
’.
229
E,
de acordo com o magistério de Tércio Sampaio Ferraz Junior,
pode
-se dizer que
essa atuação do Poder Judiciário, como conseqüência do maior acesso à justiça (direito
fundamental) está incluída em processo mais amplo de aprofundamento do próprio exercício
da cidadania e da
D
emocr
acia, que pressupõe modificações no modelo clássico da divisão dos
poderes.
230
227
SIQUEIRA J
ÚNIOR,
Paulo Hamilton.
Cidadania.
Revista dos Tribunais: São Paulo.RT,ano 94, v.839,p.723-
735, p.727.
228
SIQUEIRA J
ÚNIOR. Op. cit., p.
729
.
229
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
. São Paulo: Max Limonad, pp.103 e 105.
230
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência?
Revista Trimest
ral de Direito Público
nº 9
,
pp. 40
-
48, São Paulo: Malheiros, jan./mar. 1995,
p. 45
96
Destarte, o caráter político do Judiciário, essencial ao jogo democrático, à defesa dos
valores, princípios e objetivos da República Federativa do Brasil, consagrados nos
A
rt
s
. 1º
231
e
232
da Constituição Federal e a sua adaptação à evolução histórica, é incompatível com a
afirmativa de Montesquieu, segundo a qual os juízes não são senão “a boca que pronuncia as
palavras da lei”; seres inanimados que não lhe podem moderar nem
a força nem o rigor
.
Diante das transformações vivenciadas pela sociedade moderna, mais politizada e
organizada que por conta disso, tem procurado cada vez mais a tutela jurisdicional na defesa
de seus interesses fundamentais, sobretudo os direitos sociais de cunho
prestaciona
l
,
consagrados na Constituição Federal, impõe ao Judiciário a assunção de seu papel de agente
político ao lado dos órgãos de cúpula dos outros Poderes, visando impor a execução de
políticas públicas já estabelecidas na Constituição, assim como nas leis ordinárias.
Para
Andr
eas Joa
chi
m Krell, as sentenças obtidas podem constituir importantes veículos para
canalizar em direção aos P
oderes
Políticos as necessidades da agenda pública por meio
da
semântica
dos direitos sociais, e não me
ramente
por intermédio das atividades de
lobby
ou
demandas político
-
partidárias.
233
231
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a
cidadania; III a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repr
esentantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
232
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
233
KRELL, Andréas Joachim.Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Fabris Editor.2002
p.94.
97
3
. O PAPEL DO JUDICIÁRIO E O ACESSO À JUSTIÇA
Conforme
assinalado, a Revolução Industrial provocou amplas e profundas
conseqüências econômicas, sociais e culturais, tendo sido, portanto, a principal responsável
pelo surgimento
do
Estado do B
em
-E
star
e, conseqüentemente, pelo crescimento dos Poderes
Legislativo e Executivo, o primeiro encarregado de positivar os direitos sociais, e o segundo
responsável por impl
ementá
-los e efetivá-
los
.
Característica marcante da aludida R
evolução
foi
a massificação dos processos produtivos, de distribuição e
de
consumo
, que, por certo,
ultrapassou a questão meramente econômica para atingir às relações, comportamentos, os
conflit
os e as exigências
sociais
, culturais e de outra natureza assumindo, seguidamente, um
caráter largamente coletivo antes meramente individual
.
Em
decorrência desse processo de massificação das relações
,
surgiram casos em que
uma ação humana poderia ser prejudicial a vários grupos ou categorias de pessoas, com a
conseqüência de mostrar-se totalmente inadequado o esquema tradicional do processo
judiciário, como litígio entre duas partes. Assim foi que aqueles grupos ou categorias de
pessoas atingidas po
r
violações e prejuízos, ditos de massa, passaram a procurar e
descobrir
meios eficazes de tutela, não apenas no âmbito do processo político (eleição), mas também
do
J
udiciário.
S
urgiram
, então, a “Class actions”
e
“public interest litigation” nos Estados Unidos,
“actions collectives”
e
“Verbandsklagen”
na França, Bélgica e Alemanha e outros lugares,
decorrentes do fenômeno da tutela judiciária dos “interesses difusos”, sendo que tais ações
passaram a ser os símbolos do novo e acentuado papel dos T
ribun
ais
J
udiciários
. A
legitimação para agir na tutela do interesse público em geral, ou de categorias e classes muito
amplas não presentes no processo, foi reconhecida a defensores privados do interesse público.
Contudo,
conforme esclarece Mauro Cappelletti, não se cuidou apenas de expansão
dos poderes processuais, mas também daqueles poderes criativos e de evolução
jurisprudencial do Direito, pois aquelas controvérsias de classe envolviam leis e direitos
sociais.
Neste cenário, é que houve um crescimento do Poder Judiciário, a fim de ter sob
controle os aumentados
P
oderes
L
egislativo e
E
xecutivo
.
234
234
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Fabris Editor, 1993,
p
.5
6-
61
.
98
No Brasil, após a transição para o regime democrático ocorrida em 1985, o Judiciário
abandonou
o comportamento tímido e retraído das décadas anteriores, próprio de um Poder
técnico
e profissional, passando a decidir de modo cada vez mais contundente contra um
Executivo crescentemente intervencionista, tendo sido obrigado a assumir funções inéditas e
por vezes incompatíveis com a estrutura jurídico-política típica do Estado L
iberal
, em que foi
concebido
e moldado
.
De acordo com José Eduardo Faria
:
Ao enfatizarem a importância das funções políticas do direito, valorizando
tanto as leis como os códigos em vigor quanto às teorias jurídicas em
circulação como instrumentos de ação coletiva, magistrados chamaram a
atenção para um fato em si óbvio (mas cujo reconhecimento público, pelo
Judiciário, implicaria a ruptura de seu discurso institucional tradicional): se
a solução judicial de um conflito é em sua essência um a
tributo de poder, na
medida em que pressupõe não apenas critérios fundantes e opções entre
alternativas, implicando também a imposição da escolha feita, toda
interpretação, toda aplicação e todo julgamento de casos concretos sempre
têm uma dimensão política; por conseguinte, a Justiça, por mais que seu
discurso institucional muitas vezes enfatize o contrário, não pode ser, na
prática, um poder exclusivamente técnico, profissional e neutro.
235
Contudo,
foi
a partir da inauguração da nova ordem constituc
ional
,
em 1988,
que
o
Judiciário foi projetado no plano das relações entre o Direito, a Política e a Economia por ter
sido investido da expressiva função constitucional de promoção do controle de todos os atos
dos
demais
Poderes, atuando como instância de
superposição
e
também
como guardião dos
valores e princípios consagrados na Constituição Federal, cujo valor supremo e intangível é a
dignidade da pessoa humana
.
O Judiciário p
assou
, então, a exer
cer
uma
função política pela interpretação das
cláusulas
constitucionais,
podendo reelaborar o significado
daquelas
para permitir que a
Constituição se ajuste às novas circunstâncias históricas e exigências sociais,
conferindo
-
lhe
um sentido de permanente e necessária atualidade
,
de modo a exercer
uma
verdadeira
função
constituinte com o papel de permanente elaboração do
T
exto
C
onstitucional.
235
FARIA, José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais.
Em:
Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça
.
1ed. 4
tir
agem
.
São Paulo:
Malheiros
,
2005. p.56.
99
É inequívoco, assim, que o Judiciário ganhou significativo destaque e importância
diante do alto relevo de seu papel institucional no cenário político nacional. O Supremo
Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário, acabou
desenvolve
ndo
uma jurisprudência
que lhe permite atuar como força moderadora no complexo jogo entre os Poderes da
República, desempenhando o papel de instância de equilíbrio e harmonia destinada a co
mpor
os conflitos institucionais que surgem não apenas entre o Executivo e Legislativo, mas,
também entre estes Poderes e os próprios juízes e tribunais.
Nesse sentido, Marília Lourido dos Santos assinala que o papel do Judiciário na
construção de um projeto democrático necessariamente assenta-se na defesa da Constituição e
de seus princípios, particularmente, num contexto onde o Poder Executivo sobrepõe-se ao
Legislativo. A atuação do Judiciário ganha relevância com o desequilíbrio entre os outros
P
oder
es, entretanto, o incremento da atuação do Judiciário não representa uma alteração dos
titulares da soberania, mas uma transformação da referência política.
236
Numa outra passagem, a referida autora,
aduz
que diante desse quadro, a posição ou
papel do Judiciário baseia-se na preservação ou garantia do princípio democrático, tido não
apenas em seu sentido procedimental, mas substancial, ou seja, em sua relação com a
salvaguarda dos direitos fundamentais. Destarte, funcionar como um mediador entre os outro
s
dois Poderes funções de checks and balan
ces
-, coibindo uma possível preponderância do
Executivo sobre o Legislativo, constituiria apenas uma conseqüência do exercício desse papel,
posto que a harmonia e independência entre os Poderes constituem valores democráticos
constitucionalmente assegurados. Segundo ela, Antoine Garapon, tido como
procedimentalista, identifica o Judiciário como
o guardião das promessas democráticas
’.
237
Além dessas relevantes atribuições do Judiciário, outro fator que lhe confere ainda
mais
projeção e, conseqüentemente, maior responsabilidade, é que ao dispor no inciso
XXXV, do Art. 5º,
que
“a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a
direito”
, a Constituição
Federal
consagrou o princípio da inafastabilidade da jurisdição como
direito fundamental e, portanto, cláusula pétrea nos termos do § do Art. 60
238
, da
236
SANTOS, Marília Lourido dos Santos. Interpretação constitucional no controle judicial das políticas
públicas
.
Fabris Editor. 2006, p.70
.
237
SANTOS.
Op. cit.,
p. 96.
238
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [
...
] § Não será objeto de deliberação a
proposta de emenda tendente a abolir:
[
...
]
IV
os direitos e garantias individuais
.
100
Constituição Federal, assim como o fez recentemente a Emenda Constitucional 45, de 08
de dezembro de 2004, que inseriu o inciso LXXIII
239
, no
Art.
para assegurar ao cidadão
o
tempo razoável de duração do processo
.
Assim,
conforme dito alhures, em princípio, nada escapa à apreciação do Judiciário,
nem os atos políticos, nem tampouco os atos discricionários da A
dministração
Pública, pois
sempre será
possível
uma
confrontação daqueles com
o
T
exto
C
onstitucional
, tendo sempre
como
norte
o compromisso com a dignidade da pessoa humana e, pois, com a plena
efetividade dos comandos constitucionais
.
N
essa
perspectiva de efetividade, os direitos fundamentais devem ser
plenamente
observados e materializados pelo Poder Público por meio de políticas públicas, em
atendimento ao Texto Constitucional. Quando isso não se verifica naturalmente, seja por
omissão do Poder Legislativo, que não exerce sua função quando deveria fazê-lo, seja quando
o Executivo não se desincumbe de suas obrigações, nasce para o Judiciário o dever de fazê
-
lo,
exercendo exatamente a sua própria função, de fazer cumprir as normas
constitucionais
.
As políticas públicas, quase sempre, expre
ssam
-se através de planos e programas
normativos
de ação governamental, que suscitam a possibilidade de controle judicial.
Portanto
,
o Judiciário possui autuação política
,
orientada pelo T
exto
C
onstitucional
,
legitimada
fundamentalmente pela concretização
de objetivos e metas previamente traçadas.
Ocorre que, se de um lado, o Judiciário
ganhou
maior visibilidade e
status
de
Poder
independente,
sobretudo quando passou a
exig
ir
dos demais Poderes, o respeito estrito à
ordem constitucional em nome da certeza jurídica e da segurança do D
ireito,
de outro,
chamou a atenção dos novos protagonistas da vida política, como é o caso dos movimentos
sociais comunitários e corporativos, ou seja, grupos sociais identificados por interesses
comuns
, que passaram a acioná-lo, por meio de instrumentos processuais também garantidos
pela
atual
Constituição, como mandado de segurança coletivo, ação civil pública, ão direta
de inconstitucionalidade, ação popular
e
ação de descumprimento de preceito fundamental
.
239
LXXVIII
a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
101
Destarte, conforme explica José Eduardo Faria, desde que grupos sociais
tradicionalmente alijados do acesso à Justiça descobriram os caminhos dos tribunais,
orientando
-se por expectativas dificilmente amoldáveis às rotinas judiciais, utilizando de
modo inventivo os recursos processuais e explorando todas as possibilidades hermenêuticas
propiciadas por normas de “textura aberta”, como as normas-objetivo, as normas-
programáticas que se caracterizam por conceitos indeterminados, o Judiciário se viu obrigado
a dar respostas para as quais não tinha nem experiência acumulada nem jurisprudência
firmada.
240
Tais fatos acarretaram o dissabor de tornar conhecidos os problemas estruturais e as
mazelas da Justiça brasileira, agravados pelo crescente mero de normas de cunho
programát
ico, resultado da progressiva transformação do Estado Liberal em Estado-
P
rovidência pelo qual passou o País, e a crescente complexidade das novas matérias reguladas
por textos legais que quase nunca conseguiam ser satisfatórios na tarefa de trazê
-
las ao mu
ndo
jurídico.
Com efeito, a formulação legislativa no Brasil, lamentavelmente, nem sempre se
revest
iu
da necessária qualidade jurídica, o que é demonstrado não só pelo elevado número de
ações diretas promovidas perante do Supremo Tribunal Federal, mas, sobretudo, pelas
inúmeras decisões declaratórias de inconstitucionalidade de leis editadas pel
a União e Estados
Federados
. Esse déficit de qualidade jurídica no processo de produção normativa do Estado
se
mostra
preocupante porque afeta a harmonia da Federação, rompe o necessário equilíbrio e
compromete, muitas vezes, direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Assim,
diante dos novos tipos de conflitos
,
dos novos direitos consagrados pela
Constituição
brasileira
,
sobretudo
aqueles
de cunho social pre
stacional,
impõe ao Judiciário
uma mudança de paradigma, deixando para trás o positivismo-normativista para adotar uma
visão multifacetada do Direito, a partir dos valores e princípios constitucionais, a fim de
assegurar
ao
menos a concretização do “padrão mínimo social” para uma existência digna,
tendo sempre como marco os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil.
240
FARIA, José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais.
Em:
Direitos Humanos, Direitos
Sociais e Justiça
.
1ed. 4 tir
agem
.
São Paulo:
Malheiros
, 2005. pp.52
-
53.
102
A despeito das resistências culturai
s,
ideológicas e econômicas, é preciso dar
efetividade às cláusulas constitucionais, que embora impondo ao Estado a execução de
políticas públicas, acabam frustradas pela absoluta inércia – profundamente lesiva aos direitos
dos cidadãos manifestada pelos órgãos competentes do P
oder
P
úblico.
que se estimular,
assim, o “ativismo judicial”, notadamente na implementação concretizadora de políticas
públicas definidas pela própria Constituição que são lamentavelmente descumpridas, por
injustificável inércia, pelos órgãos estatais competentes.
Delineado assim o papel do Judiciário no cenário p
olítico nacional, há que se enfrentar
o tema do acesso à Justiça, porquanto estritamente relacionado à concretização d
os
valores
e
princípios fundamentais
, encartados na Constituição Federal
(art.1º)
241
.
A expressão “acesso à Justiça”, anotam
Mauro
Cappell
etti e Bryant Garth é
reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do
sistema jurídico, o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver
seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a
todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.
Observam, porém que o seu enfoque sobre o acesso à Justiça é primordialmente sobre o
primeiro
aspecto (acessibilidade), sem perderem de vista o segundo. E concluem: ‘
Sem
dúvida, uma premissa básica será a de que justiça social, tal como desejada por nossas
sociedades modernas,
pressupõe
o acesso efetivo
’.
242
Para Horácio Wanderley Rodrigues, é necessário destacar, frente à vagueza do termo
acesso à Justiça, que a ele são atribuídos pela doutrina diferentes sentidos, sendo eles
fundamentalmente dois: o primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e
conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à Justiça e acesso
ao Poder Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça,
compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos
241
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos
: I a soberania; II a
cidadania; III a dignidade da pessoa humana; IV os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o
pluralismo político. Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
el
eitos ou diretamente, nos ternos desta Constituição.
242
CAPPELLETI, Mauro;
GARTH, Bryant.
Acesso à Justiça
.
Trad: Ellen Gracie Northfleet, Fabris Editor, 1988
p.8.
103
fundamentais para o ser humano. E conclui que esse último, por ser mais amplo, engloba no
seu significado o primeiro.
243
Parece evidente que esse significado mais amplo de acesso à Justiça é o que mais se
identifica com a nova ordem constitucional, destacando
-
se, nesse passo, que o acesso somente
se efetivará, em sua plenitude, com juízes vocacionados a fazer justiça, com sensibilidade e
consciência de que o processo possui também um lado perverso que precisa ser dominado,
para que
não
faça, além do necessário, mal à alma
e à saúde
do jurisdicionado.
Nesse
sentido, afirma Paulo César Santos Bezerra que:
No que toca ao acesso à Justiça, a postura do juiz é de suma importância.
Um juiz apenas dogmático, preso às amarras de uma obrigação única de
“julgar conforme a Lei”, sem a percepção de que, apesar disso, nada o
impede de optar por uma interpretação mais sociológica e mais justa, e por
uma tomada de posição mais crítica, pode significar uma barreira
intransponível para os jurisdicionados. O descompasso entre os textos legais
e o contexto sócio-econômico é gritante. A neutralização desse hiato exige,
evidentemente, mudanças radicais na ordem jurídico-positiva. E a tendência
dessas mudanças, no mundo inteiro é no sentido de um enxugamento da
legislação, de uma intermediação judicial, da livre negociação e da au
to
-
solução dos conflitos. Portanto, o juiz preso apenas a textos legais, está
incapacitado para neutralizar esse descompasso.
244
E mais
adiante,
o
referido
autor
arremata:
‘Urge a substituição de uma magistratura
pretensamente neutra e imparcial por uma atuação assumidamente política, o que não
constitui contradição com a postura neutra em relação à solução do conflito. Neutro como
julgador, politicamente assumido como hermeneuta e produtor do
D
ireito
’.
245
Sob um outro prisma,
Mauro
Cappelleti e
Bryant
G
arth
visualizaram e idealizaram três
ondas
que traduzem o acesso à Justiça, sendo a primeira delas a assistência judiciária para os
pobres; a segunda a representação dos interesses difusos e a terceira o acesso à representação
243
RODRIGUES,
Horácio Wanderley. Acesso à justiça no direito processual brasileiro. São Paulo:
Editora
Acadêmica,
1
994,
p.28
.
244
BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à Justiça. Um problema ético-social no plano da realização do
direito
, 2ed.
,
2008. Renovar. pp. 209
-
210
.
245
BEZERRA.
Op. cit., 211
.
104
em juízo, uma concepção mais ampla de acesso à Justiça e um novo enfoque de acesso à
Justiça.
246
Para a ordem jurídica nacional, a mais importante, sem dúvida, é a terceira, por
compreender uma série de medidas, desde a reestruturação do próprio Judiciário, passando
pela simplificação do processo e dos procedimentos, e desaguando num sistema recursal que
não faça da parte vencedora refém da perdedora.
Nesta senda, a primeira onda de acesso à Justiça no ordenamento jurídico brasileiro, a
assistência judiciária gratuita é assegurada por meio da Lei 1.060, de 05 de fevereiro de
1950
, que facilita o acesso à Justiça ao considerar necessitado, para fins legais, “todo aquele
cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de
advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família” (Art. , parágrafo único).
A
assistência judiciária gratuita compreende a isenção de taxas judiciárias, de emolumentos e
custas devidas ao Judiciário, honorários aos peritos e de advogados.
As ações coletivas foram previstas pela
atual
Constituição
, em diversos dispositivos,
ora permitindo que as sociedades associativas, quando expressamente autorizadas, tenham
legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudi
ci
almente (Art. 5º, XXI); ora
concedendo mandado de segurança coletivo a partido político com representação no
Congresso Nacional, ou a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente
constituída e em funcionamento pelos menos um ano, em defesa dos interesses de seus
membros ou associados (Art. LXX, a” e b”); ora dispondo que ao sindicato cabe a
defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões
judiciais ou administrativas; ora reconhecendo ser função institucional do Ministério Púb
lico
promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e
social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (Art. 129, III), e defender
judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas. Além disso, diversas leis
ordinária
s como a Lei nº 7.347/85, dispondo sobre a ação civil pública, e a Lei 8.078/90,
sobre a proteção ao consumidor, disciplinam as ações coletivas, que compreendem inclusive
os interesses difusos, projetando no direito b
rasileiro a segunda onda de acesso à Justiça.
246
CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant.
Acesso à Justiça
.
Trad: Ellen Gracie Northfleet. Fabris Editor, 1988
p.31.
105
A terceira onda de acesso à Justiça, no cenário brasileiro, diz respeito à nova estrutura
do Poder Judiciário e os novos procedimentos. É cediço que a simples alteração de leis
processuais, mesmo com o propósito de desfazer pontos de estrangulamento, não tem o
condão reformar a estrutura do Poder Judiciário
e facilitar, por conseguinte, o acesso à Justiça.
Nesse aspecto, merece realce a instituição dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, pela
Lei 7.244/84, que vieram a ser substituídos pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
pela Lei 9.099/95, embora tivessem podido conviver, por não existir entre ambos qualquer
incompatibilidade. Posteriormente foram instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Cri
minais
no âmbito da Justiça Federal, pela Lei 10.259/01, facilitando o acesso à Justiça, em face
dos
Entes públicos. De para foram promulgadas diversas leis buscando acelerar os
procedimentos, com o advento e incremento das tutelas jurisdicionais diferenciadas, tudo a
fim reduzir o tempo de duração do processo, conferindo mais efetividade às decisões
judiciais.
No Brasil, os obstáculos de acesso à Justiça não se ligam ao problema da assistência
judiciária aos necessitados, configuradora da primeira onda de acesso, e nem à defesa dos
interesses da coletividade, notadamente os interesses difusos configuradora da segunda onda,
mas à estrutura judiciária, à inadequação dos processos e dos procedimentos, e, basicamente,
à dimensão que se ao princípio do duplo grau de jurisdição, para atender à ânsia recursal
do jurisdicionado brasileiro. Não por outra razão que o tempo razoável de duração do
processo foi inserido no inciso LXXVIII
247
do Art. , da Constituição como direito
fundamental, sendo alçado
à cláusula pétrea. Desde há muito se dizia que “Justiça tardia não é
Justiça”.
Para mudar essa situação lastimável que se traduz nos crônicos problemas da
morosidade e congestionamento dos tribunais, os quais ainda estão longe de serem resolvidos,
é
que
tem havido uma comunhão de esforços do Legislativo, Executivo e Judiciário para
alteração de leis processuais obsoletas que, a pretexto de assegurar a segurança jurí
dica,
acabam possibilitando um enorme número de recursos, procrastinando a solução dos
proc
essos, causando muitas vezes o perecimento do direito material e, conseqüentemente, o
descrédito do Judiciário. Portanto, as recentes alterações processuais ocorridas no âmbito do
247
LXXVIII
a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
106
processo civil visando modernizar a legislação, reduzindo o número de recurs
os,
certamente
agilizarão a tramitação das ações
.
Apenas para ilustrar outras iniciativas tendentes a resgatar a credibilidade do Judiciário
diante da realidade social hoje vivenciada, onde o número de ações ajuizadas tem aumentado
ano após ano, indicando a amplitude de acesso ao Judiciário, o Tribunal de Justiça de São
Paulo
contratou uma empresa de consultoria empresarial justamente para identificar os
gargalhos do Judiciário bandeirante, tanto em primeira como em segunda instância, e propor
soluções
visando otimizar e agilizar as rotinas cartorárias, padronizando-as em todas as
comarcas, o que possibilitará maior eficiência na entrega da prestação jurisdicional. Cursos de
capacitação em gestão pública moderna estão sendo ministrados em todo o interior
do Estado,
para juízes e servidores, visando capacitá-los para a implantação do projeto de modernização
do Judiciário
p
aulista, o maior da América Latina.
Concomitantemente, todos os fóruns estão sendo informatizados, com a instalação de
redes, equipamentos e periféricos de informática, de modo que em breve todas as c
omarcas
estarão interligadas por sistema informatizado, eliminando, dessa forma, a necessidade de
expedição material de cartas precatórias, ofícios, planilhas, estatísticas, etc., sobretudo
porque
a certificação digital está em pleno uso, de modo que o magistrado pode assinar
eletronicamente documentos digitais, inclusive suas próprias sentenças, decisões e despachos.
Eliminou
-se o diário oficial de papel e desde outubro de 2007, circula apenas o diário
eletrônico.
O processo sem papel é realidade em alguns fóruns paulistas
,
e esse avanço
tecnológico e processual
tende a se estender de forma rápida,
pois
de acordo com as projeções
da Presidência da Corte bandeirante, dentro de cinco anos, poucas comarcas ainda estarão
manejando autos do processo, em papel.
Tudo isso somado, implica reconhecer que o acesso à Justiça tende a aumentar ainda
mais, sendo estritamente necessário a adoção de medidas processuais que agilizem a entrega
da prestação jurisdicional, desburocratizando e enxugando a quantidade de processos
e
recursos
em andamento, de modo que
possa
sobrar tempo para que o magistrado se
aperfeiçoe, investindo
numa
maior capacitação
intelectual
e, conseqüentemente,
adquira
conhecimen
to
mais aprofundado,
especializando
-se na área em que atua,
tendo
,
desse modo
,
107
m
elhores
condições para se dedicar às questões de maior complexidade e envergadura, onde
não apenas aplicará a subsunção dedutiva com base numa visão positivista normativa, mas
assumirá seu papel político de hermeneuta e criador do direito num processo de interpretação
e efetivação dos comandos constitucionais, para que atinjam os fins sociais e aos imperativos
do bem comum
.
E, o juiz que assim decide, é uma porta aberta para o
acesso à Justiça.
Finalizando, vale anotar a lição de
Mauro
Cappelleti e
Bryant
Garth , para quem
de
fato, o direito de acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de
importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de
direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O
acesso
à Justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o mais básico
dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e
não apenas proclamar os direitos de todos
’.
248
3.1
O princípio da independência dos Poderes
.
Conforme anota Andréas Joachim Krell, em geral, encontra-
se
no Brasil uma
resistência ao controle judicial do mérito dos atos do Poder Público, aos quais se reserva um
amplo espaço de atuação autônoma, discricionária, onde as decisões do órgão ou do agente
público são insindicáveis quan
t
o à conveniência e oportunidade
.
249
Ocorre, contudo, que consoante assina
lado
anteriormente
,
no atual cenário jurídico
pátrio,
inequívoco se mostra a possibilidade e viabilidade do controle judicial das políticas
públicas, porquanto o efetivo exercício dos direitos sociais não pode ser postergado p
ela
inação ou ação
do
A
dminis
trador
P
úblico
que contrarie os ditames constitucionais e legais
,
cabendo ao juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo
(omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional,
no
caso, a concretização da ordem social constitucional.
248
CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant.
Ace
sso à Justiça.Trad:Ellen Gracie Northfleet, Fabris Editor
,1988
p.11
-
12.
249
KRELL, Andréas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Fabris Editor,
2002
,
p.
87.
108
Todavia,
esse controle judicial dos atos dos demais Poderes gera uma linha de tensão
entre o Judiciário, de um lado, e o Executivo e o Legislativo, de outro, pois não raramente
instaura
-se um desalinhamento entre as ações governamentais e o T
exto
Constitucional, cuja
preservação e tutela
é a
tarefa
maior
do Judiciário.
Neste contexto é que surge o argumento de
que
estaria havendo uma “invasão de competência” por parte do Judiciário, malferindo,
desse
modo,
o princípio da
separação
d
e P
oderes, consagrado no
A
rt. 2º
250
da Constituição Federal.
Pois bem. O que se pretende demonstrar neste trabalho é justamente o contrário, ou
seja, que o nenhum
a
fissura no princípio da separação de Poderes quando ocorre o
controle das políticas públicas por parte do Judiciário.
E, para se chegar a esta conclusão, mister distinguir, antes de mais nada, poder de
função.
Segundo
o magistério de Dirley da Cunha Júnior,
o Poder político, como fenômeno sociocultural, é uno e indivisível, uma vez
que a “capacidade de impor” decorrente de seu conceito, não pode ser
fracionada. Embora realidade única, ele manifesta-se por meio de funções,
que são, fundamentalmente, de três ordens, a saber: a executiva, a
legislativa e a judiciária. Essas funções, por muito tempo, houve-
se
concentradas junto a determinado organismo estatal. O fenômeno da
separação dos Poderes não é senão o fenômeno da separação das funções
estatais, que consiste na forma clássica de expressar a necessidade
de
distribuir
e controlar o exercício do Poder político entre distintos órgãos do
Estado.
O que correntemente, embora equivocadamente, se convencionou
chamar de separação de Poderes é, na verdade, a distribuição e divisão de
determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado. Deveras, como
o Poder é uno e incindível, não falar em separação de Poderes, mas, sim,
em separação de funções do Poder político ou simplesmente de separação
de funções estatais. E insiste: Não é o Poder que é divisível, mas, sim, as
funções que o compõem e se manifestam por distintos órgãos do Estado.
251
Na seqüência, o
referido
autor esclarece que a função legislativa ocupa-se em inovar a
ordem jurídica, com a formulação de regras gerais e abstratas. A lei é o resultado típico do
exercício desta função. A função executiva destina-se a gerir os negócios públicos, por meio
de uma atividade denominada
de
administrativa, desenvolvida para dar cumprimento ou
execução, de ofício, ao estabelecido na lei. Finalmente, a função judicial está reservada à
composição dos conflitos de interesses, com a aplicação da lei aos casos controvertidos, cujo
250
Art. 2º.
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre s
i, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
251
CUNHA J
ÚNIOR
Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público
.
São Paulo: Saraiva, 2004, p.
315.
109
propósito
é resguardar o ordenamento jurídico, por meio de decisões individuais e concretas,
derivadas das normas gerais.
252
Ora, pelo que
se extrai do
A
rt. 2º
253
da Constituição Federal, a
separação d
e
Poderes se
assenta na independência e na harmonia entre os órgãos do Poder político. Isso significa que,
nas palavras de José Afonso da Silva, não obstante a independência orgânica - no sentido
de
não haver entre eles qualquer relação de subordinação ou dependência no que tange ao
exercício de suas funções -, a Constituição Federal instituiu o mecanismo de controle mútuo,
onde ‘interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos
,
à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para
evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos
governados
’.
254
No Brasil, esse sistema
de
controle mútuo, fica bem evidenciado em diversos
dispositivos da Constituição Federal que permitem interferências de um Poder no outro,
ensejando um funcionamento harmônico ou uma colaboração recíproca, embora
independente, na tarefa comum, tendo como objetivo o equilíbrio político, a limitação do
Poder e, em conseqüência, a proteção da liberdade e a melhor realização do bem
-
comum
.
Anote
-se, por importante, que na clássica tríplice divisão funcional, as funções
legislativas, executiva e judicial são exercidas, respectiva e
predo
minantemente
, pelos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e são chamadas de típicas. Ocorre, porém,
que
também
existem as
funções
atípicas, que são realizadas, não prioritariamente, mas sim,
subsidiariamente, por aqueles poderes como meios garantidores de sua própria autonomia e
independência.
Exemplificando: A função típica do Judiciário é julgar e as atípicas são o
poder de contratar serviços e pessoal, mediante processo administrativo de licitação e
concurso
público, e editar normas internas, como resoluções, provimentos, comunicados,
portarias regulamentando questões
“interna corporis”
.
Nessa perspectiva,
a
separação de Poderes se assenta na especialização das funções do
Estado, não vedando o exercício, ocasionalmente, de uma determinada função por órgão não-
252
CUNHA J
ÚNIOR
Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público
.
São Paulo: Saraiva, 2004,
p.
31
6.
253
Art. 2º.
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
254
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo
. 9ed., São Paulo:
Malheiros, 1992, p. 101
.
1
especializado, desde que compatível com sua atividade fim.
Desse modo,
a
separação absoluta
entre os Poderes não é impossível, haja vista a unidade do Poder político e a tarefa comum
a todos, mas também indesejada
, pois conduziria a um iso
lamento entre eles
.
A
propósito, vale aqui citar a lição de José Carlos Vasconcellos dos Reis para quem:
Na verdade, a separação absoluta das funções do Estado, com afetação
exclusiva de cada uma delas a uma única espécie de órgãos, além de jamais
ter sido aplicada em lugar nenhum, é completamente irrealizável, do ponto
de vista prático e teórico. Isto porque a atividade dos órgãos e agentes do
Estado se exerce atentando para os fins colimados, e não para a
natureza
do
ato praticado. Cada poder exerce, inevitavelmente, funções
atípicas
- isto é,
funções que lhe não correspondem nominalmente, o que se dá, por
exemplo, quando o poder executivo, ao invés de administrar,
legisla
-
,
havendo, ainda, inúmeros pontos de contato entre as funções de legislar,
admin
istrar e julgar.Além disso, observa-se que a clássica divisão tripartite
dos poderes o corresponde a diferenças verdadeiramente
ontológicas
entre as funções estatais, pois a atividade do Estado se exerce somente em
duas direções fundamentais: uma, no sentido de
criação
ou
modificaçã
o do
Direito (função
normativa
); a outra, no sentido da sua aplicação (função de
execução
), de modo que não haveria diferença de essência entre as funções
executiva e judicial.
255
Atualmente, a doutrina da separação de Poderes, concebida como uma divisão rígida
entre as funções estatais, não se coaduna com o moderno Estado Social Democrático de
Direito e
,
por isso
, deve ser
revista
para melhor ajust
ar
-
se
às novas tendências e exigências do
sistema jurídico, sobretudo em razão de mudanças paradigmáticas anotadas neste trabalho
,
especialmente diante da prevalência do constitucionalismo em face do legalismo, da
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sociais, assim como da vinculabilidade das
políticas públicas sociais consagradas nas normas constitucionais. Aliás, no
constitucionalismo contemporâneo, não se fala em
separação
, mas sim em
equilíbrio
entre os
Poderes.
Nu
ma leitura contextual do princípio da separação de P
oderes
diante do novo cenário
jurídico naciona
l desenhado a partir da Constituição Federal de 1988,
Dirley da Cunha Júnior,
assim se
posiciona
:
255
REIS, José Carlos Vasc
oncellos dos.
As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado
.
Rio de
Janeiro:
Renovar, 2003, p. 239.
111
Como princípio constitucional concreto, o princípio da separação de
Poderes articula-se e concilia-se com outros princípios constitucionais
positivos, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da
aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais,
da inafastabilidade do controle judicial, da conformidade dos atos estatais
com a Constituição, entre outros. Relativamente à Constituição brasileira,
destaca
-se a necessidade de uma renovada compreensão a respeito do
princípio da separação, pressionada pelo fim marcadamente
dirigente
da
nossa
Fundamental Law, que configura um Estado Social do Bem-
Estar,
que trouxe significativas transformações sociais, onde os direitos
fundamentais, sobretudo os sociais, são considerados os pilares ético-
jurídico
-políticos da organização do Estado, do Poder e da Sociedade,
servindo de parâmetros ou vetores guias para a interpretação dos fenômenos
jurídico
-constitucionais. É necessária, portanto, sob as vestes do paradigma
do novo Estado do Bem-Estar Social, uma nova leitura sobre o vetusto
dogma da separação de Poderes, a fim de que ele não produza, com sua
força simbólica - como lamentavelmente tem ocorr
ido
-, um efeito
paralisante
às reivindicações da sociedade moderna, incomparavelmente
mais complexa do que aquela na qual foi originalmente concebido, “para
poder continuar servindo ao seu escopo original de garantir Direitos
Fundamentais contra o arbítri
o e, hoje, também, a omissão estatal”.
256
Nesse diapasão, conforme assevera Andreas Joachim Krell, não parece lícito invocar
regras abstratas e ortodoxas sobre a
s
eparação de Poderes, nem
pensar na subsistência radical
daquilo que no passado sugerira Mon
tesquieu
’, para com isso desprezar a realidade presente e
renunciar a soluções práticas de utilidade geral. E registra: O Estado Social moderno requer
uma reformulação funcional dos Poderes no sentido de uma distribuição que garanta um
sistema eficaz de freios e contrapesos, para que “a separação dos Poderes não se interponha
como véu ideológico que dissimule e inverta a natureza eminentemente política do D
ireito”.
Na medida em que as leis deixam de ser vistas como programas
condicionais
e assumem a
forma de programas
finalísticos
, o esquema
clássico
da divisão dos Poderes perde sua
atualidade.
257
Na lição de José Afonso da Silva, hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez
de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs uma nova visão da
teoria da separação de Poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos L
egislativo
e
Executivo e destes com o Judiciário, tanto que atualmente prefere falar em
colaboração
de
Poderes, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do
256
CUNHA J
ÚNIOR
, Dirley
da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004, pp.
329
-
331.
257
KRELL, Andréas Joach
im.
Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.Fabris Editor,2002
p.
90.
112
Parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as
técnicas da independência
orgânica
e
harmônica dos poderes
.
258
Neste contexto, para Dirley da Cunha Júnior, o dogma da separação de Poderes deve
ser compreendido num terreno onde radicam todas as dimensões de direitos fundamentais, as
quais, para se concretizarem, impetram uma hermenêutica de princípios sujeitos a colidirem,
não havendo, porém, instância mais recorrida para dirimir as colisões nas estruturas
constitucionais do Estado
D
emocrático de Direito do que a jurisdição constitucional
.
259
Andr
e
as Joachim Krell, ancorado em
Rodolfo de Camargo
Mancuso,
assinala que
não
fundamento técnico-jurídico ou argumentação logicamente sustentável que respaldo a
uma pretensa assimilação entre as políticas públicas e os atos exclusivamente políticos ou
puramente discricionários. Dada à indisponibilidade do interesse público, torna-se pequena a
margem de efetiva discrição nos atos e condutas da Administração Pública (liberdade
vigiada)
’.
260
Desse modo
,
o apego exagerado à teoria da separação dos Poderes é resultado de uma
postura conservadora da doutrina constitucional tradicional, que não mais se coaduna com o
moderno Estado Social, que
confere
condições
ao
Judiciário para que ele
assegur
e a
efetividade dos direitos fundamentais, especialmente quando se apresenta
um
quadro de
ameaça ou violação d
aqueles
, cumprindo-lhe a elevada missão de impedir e desfazer as
ofensas que ameaçam e afrontam os dir
eitos fundamentais.
258
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo
. 9ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 100.
259
C
UNHA
J
ÚNIOR
, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
342.
260
K
RELL
, Andreas Joachim.Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.Fabris Editor,2002
p.
91
.
113
3.2
Orçamento e finanças públicas
o princípio da reserva do possível.
A Constituição estabelece como um de seus fins essenciais a garantia e promoção dos
direitos fundamentais, sendo que as políticas públicas constituem o meio pelo qual os fins
constitucionais podem ser realizados de forma sistemática e abrangente. É evidente que as
políticas públicas envolvem gastos. E, como não recursos ilimitados, é preciso priorizar e
escolher em que o dinheiro público disponível será investido. Essas opções, por certo,
recebem a influência direta das opções constitucionais acerca dos fins que devem ser
perseguidos em caráter prioritário.
Dito de outra forma, as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um
tema integralmente reservado à deliberação política. Ao contrário, o ponto recebe import
ante
incidência de normas jurídicas de estatura constitucional. Desse modo, a Constituição vincula
as escolhas em matéria de políticas públicas e o gasto dos recursos públicos
,
poden
do
-
se
afirmar que a definição do conjunto de gastos do Estado é exatamente o momento no qual a
realização dos fins constitucionais poderá e deverá ocorrer.
Conforme ensina José Reinaldo de Lima Lopes
,
Uma política pública, juridicamente, é um complexo de decisões e normas
de natureza variada. Para promover a educação ou a saúde o que deve fazer
o Estado? Quais os limites constitucionais, quais as direções impostas pela
Constituição? A falta de reflexão sobre o complexo de normas que se
entrelaçam pode ser fonte de trágicos mal-entendidos. Comecemos
afirmando que ao Estado não são dadas muitas opções; uma política
de
educação ou saúde, ou preservação de meio ambiente dependerá sempre,
mais ou menos do seguinte: gastos públicos, de curto, médio e longo prazo
e legislação disciplinadora das atividades inseridas em tais campos.[
...
]
Assim, para a compreensão das políticas públicas é essencial compreender-
se o regime das finanças públicas. E para compreender estas últimas é
preciso inseri-las nos princípios constitucionais que estão além dos limites
de tributar. Elas precisam ser inseridas no direito que o Estado recebeu de
planejar não apenas suas contas, mas de planejar o desenvolvimento
nacional que inclui e exige a efetivação de condições de exercício d
os
direitos sociais pelos cidadãos brasileiros. Assim, o Estado não deve
planejar seu orçamento anual, mas também
suas
despesas de capital e
programas de duração continuada
(art. 165, § 1º).
261
261
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: O dilema do Judiciário no Estado Social
de Direito. Em: Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça.
(o
rg
.)
José Eduardo Faria, 1ed. 4tir, São Paulo:
Malheiros,
2005,
pp
.131
/133
.
114
Nesta senda, consoante afirma Andreas Joachim Krell, é que o instrumento do
orçamento público ganha suma importância na questão da realização dos serviços públicos
sociais; quando este não atende aos preceitos da Constituição, ele pode e deve ser corrigido
mediante alteração do orçamento consecutivo, logicamente
com a devida cautela
.
262
Ricardo
Lôbo Torres o orçamento público como ‘documento de quantificação dos
valores éticos, a conta corrente da ponderação dos princípios constitucionais, o plano contábil
da justiça social, o balanço das escolhas dramáticas por políticas públicas em um universo
fechado de recursos financeiros escassos e limitados
’.
263
Para Celso Ribeiro Bastos, o orçamento é uma peça contábil que faz, de uma parte,
uma previsão das despesas a serem realizadas pelo Estado, e, de outra parte, o autoriza a
efetuar a cobrança, sobretudo de impostos e também de outras fontes de recursos, tendo
repercussões econômicas, políticas e jurídicas. Mais adiante registra que a atual Constituição
consagra, além da modalidade de orçamento tradicional ou anual, mais duas: o orçamento
plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, sendo essas modalidades de iniciativa do Poder
Executivo.
264
Andr
eas Joachim Krell, aduz que perante esta caracterização, torna-se ainda mais
lamentável o fato de que no Brasil, não há vinculação legal dos governos de executar os
orçamentos, isto é, os agentes do Poder Executivo nos três níveis federativos não são
obrigados a aplicar os recursos financeiros previstos pela lei orçamentária para determinadas
tarefas e serviços sociais. Como conseqüência, muitos governantes interpretam a aprovação
do Legislativo à sua proposta orçamentária o como
imposição
, mas simples
autorização
para gastar dinheiro nas respectivas áreas. Desse modo, quem analisar essas propostas poderá
“ganhar a impressão de efetiva preocupação do governo com os Direitos Humanos, mas tal
impressão se desfaz quando se verifica quanto foi efetivamente gasto”
.
265
Embora entenda que no Brasil, o orçamento é apenas autorizativo, sendo freqüente a
transferência de recursos entre rubricas e o contingenciamento, Ana Paula de Barcellos
262
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Fabris Edi
tor,
2002,
p.99
.
263
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. Em: Teoria dos Direitos
Fundamentais
. 2ed.,
Rio de Janeiro:
Ed. Renovar,
2001
, p. 2
82
.
264
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional
. 21ed., São Paulo:
Saraiva, 2000, p. 442.
265
K
RELL.
Op. cit., p.100.
115
assevera que o controle não poderá se restringir apenas à fixação abstrata das metas de
orçamento
sob pena de ser inócuo -, mas deverá também afetar a inclusão daquela meta, de
fato, no plano
de execução orçamentária.
266
Destarte, é importante
frisar
que as políticas púbicas encontram seu fundamento de
validade na Constituição Federal, na parte que concerne aos direitos sociais, de sorte que a
formulação de tais políticas blicas não é tarefa exclusiva do Legislativo e do Executivo,
porquanto
sua
observância
pode
e deve ser controlada pelo Judiciário, sobretudo quando
ocorre
falha ou
omissão
na implementação de políticas públicas, bem como dos objetivos
sociais nelas implicados, cabe
ndo
ao Poder Judiciário tomar uma atitude ativa na realização
d
os
fins sociais, através da correição da prestação dos serviços básicos. É inequívoco, pois,
que uma política pública pode ser questionada judicialmente se for contrária a preceitos
constitucionais, e iss
o não é, por óbvio, uma questão meramente política, mas jurídica.
Segundo o magistério de Le
nio
Luiz
Streck, na falta de políticas públicas cumpridoras
das normas-programa da Lei-Maior, “surge o Judiciário como instrumento para o resgate dos
direitos não realizados”. Nessa linha, o autor assume expressamente uma “postura
substanc
ialista”, isto é, a juridicização da política e a politização do jurídico, em detrimento
das “teorias sistêmicas”.
267
De acordo com José Reinaldo de Lima Lopes, uma solução para o problema da
dedicação insuficiente de verbas públicas para a realização de serviços sociais seria a
contestação e o controle das leis orçamentárias do respectivo ente federativo, por ação direta
de inconstitucionalidade (por meio do Ministério Público, Art. 102 da Constituição Federal)
toda vez que contrariem dispositivos constitucionais
.
268
Acrescente
-
se
, nesse passo, que o Ministério Público, assim como os Tribunais de
Contas
poderiam, mediante uma ação mais ativa e eficaz,
contribuir sobremodo
no combate à
266
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das p
olíticas
públicas em matéria de d
ireitos
fundamentais: O c
ontrole
p
olítico
-social e o c
ontrole
jurídico no Espaço Democrático.
Em:
A
Constitucionalização
do Direito
.
(c
oord
s.) Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento. Lumen Juris .
2007, p. 6
17 (nota de rodapé).
267
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 2ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2
000,
p.45.
268
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: O dilema do Judiciário no Estado Social
de Direito. Em: Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça
.
Org
. José Eduardo Faria, 1ed. 4tir, Malheiros,
2005,
p.
13.
116
corrupção,
ao desperdício das verbas públicas, na racionalidade do sistema tributário e n
a
destinação dos recursos orçamentários, o que por certo, redundaria numa maior efetividade
dos direitos sociais, pois o dinheiro público poderia ser melhor
empreg
ado
em políticas
públicas de interesse da população
.
Repise
-se que pelo fato dos direitos sociais prestacionais terem por objeto prestações
do Estado, diretamente vinculadas à destinação, distribuição e redistribuição, bem como a
criação de bens materiai
s,
não se pode desprezar a pertinência da discussão sobre a
dimensão
econ
ô
mica
para implementação das políticas públicas viabilizadoras da fruição e desfrute dos
direitos sociais consagrados na Constituição Federal
.
Conforme assinalado, os recursos são limitados e é preciso fazer escolhas. E, se o
Executivo e o Legislativo não se desincumbem da tarefa de viabilização e efetivação das
políticas públicas conforme assegurado pela Constituição,
surge
à possibilidade de levar a
questão às barras dos Tribuna
is.
Nesse c
ontexto
,
surge
a discussão sobre a chamada “reserva do possível” que foi
desenvolvida na Alemanha, num contexto jurídico e social totalmente diverso da realidade
brasileira, e que apregoa que o reconhecimento dos direitos subjetivos prestacionais depende
da disponibilidade dos respectivos recursos públicos necessários para satisfazerem as
prestações materiais que constituem seu objeto (saúde, educação, assistência, etc). Assim, a
decisão sobre a disponibilidade desses recursos insere-se no espaço discricionário das opções
do governo e do parlamento, através da composição dos orçamentos públicos.
José Joaquim Gomes
Canotilho
vislumbra
a efetivação dos direitos sociais,
econômicos e culturais dentro de
ssa
“reserva do possível” e aponta a sua dependência dos
recursos econômicos. Para ele a elevação do nível da sua realização estaria sempre
condicionada pelo volume de recursos suscetível de ser mobilizado para esse efeito. Nessa
visão, a limitação dos recursos públicos passa a ser considerada verdadeiro limite fático à
efetivação dos direitos sociais prestacionais.
269
269
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6
ed.
, Coimbra
:
Almedina, 2002,
p. 4
79.
117
De acordo com Dirley da Cunha Júnior, a doutrina nacional, lamentavelmente e o
sem equívoco, vem acolhendo comodamente essa criação do direito estrangeiro, aceitando-
a
indiscriminada
mente como obstáculo ao reconhecimento dos direitos originários a
prestações.
270
Neste particular, pertinente se mostra a digressão feita por Andreas J
oachim
Krell,
autor alemão, profundo conhecedor da realidade existente no Brasil, pois aqui vive desde
199
3, que
assim registra
:
Não é à toa que os estudiosos do Direito comparado insistem em lembrar
que conceitos constitucionais transplantados precisam ser interpretados e
aplicados de uma maneira adaptada para as circunstâncias particulares de
um contexto cultural e sócio-econômico diferente, o que exige um máximo
de sensibilidade. O mundo “em desenvolvimento” ou periférico, de que o
Brasil (ainda) faz parte, significa uma realidade específica e sem
precedentes,
à qual o se podem descuidadamente aplicar as teorias
científicas nem posições políticas trasladadas dos países ricos. Assim, a
discussão européia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas
prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode
absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado-
Providência
nunca foi implantado.
271
Ora, num Estado em que o povo carece de um padrão mínimo de prestações sociais
para a sobrevivência, onde milhares de pessoas não têm o que comer, onde inúmeras
crianças e jovens fora da escola, trabalho infantil, trabalho escravo, desnutrição infantil
em
grande escala, onde não saneamento básico e
mínimas
condições de higiene, atendimento
médico precário e deficitário, inclusive com falta de remédios, onde milhares de pessoas
vivem abaixo da linha de pobreza, não se garantindo a mínima dignidade, os direitos sociais
não podem ficar reféns da “reserva do possível”
,
desenvolvida para os padrões de vida e
desenvolvimento de um país rico como a Alemanha, cuja realidade social é
diametralmen
te
oposta à
dos países
periféricos e
em desenvolvimento, como o Brasil
.
Conforme adverte
Dirley da
Cunha Júnior,
Cuida
-se, aqui, de permitir ao Poder Judiciário, na atividade de controle das
omissões do poder público, determinar a redistribuição dos
recursos
270
CUNHA J
ÚNIOR
, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público
.
São Paulo: Saraiva, 2004,
p.307
.
271
KRELL, Andreas Joachim.Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.Fabris Editor,
2002,
p.54.
118
públicos existentes, retirando-os de outras áreas (fomento econômico a
empresas concessionárias ou permissionárias mal administradas; serviço da
dívida; mordomias no tratamento de certas autoridades políticas, como
jatinhos, palácios residenciais, festas pomposas, seguranças desnecessários,
carros de luxo blindados, comitivas desnecessárias em viagens
internacionais, pagamento de diárias excessivas, manutenção de mordomias
a ex-Presidentes da República; gastos com publicidade, etc), para destiná-
lo
s ao atendimento das necessidades vitais do homem, dotando-o das
condições mínimas de existência.
272
Importante assinalar que para alguns dos autores brasileiros que aderiram ao conceito
da “reserva do possível”
,
caberia ao P
oder
Público o ônus da comprovação efetiva da
indisponibilidade total ou parcial de recursos, do não desperdício dos recursos existentes,
assim como a eficiente aplicação dos mesmos
.
Nessa senda, Andreas Joachim Krell destaca que para não precisar negar por completo
a efetividade dos direitos sociais sob o argumento da “reserva do possível”, Gustavo Amaral
recomenda a exigência de que “o Estado demonstre, judicialmente, que tem motivos fáticos
razoáveis para deixar de cumprir, concretamente, a norma constitucional assecuratória de
pr
estações positivas”; “demonstrada a ponderabilidade dessas razões, não poderia o Judiciário
se substituir ao Administrador”
, apontando que:
Nesse contexto, não parece bem escolhido o exemplo trazido pelo autor,
que deveria ficar a critério do Executivo a escolha se trata com os
recursos disponíveis “milhares de doentes vítimas de doenças comuns à
pobreza ou um pequeno mero de doentes terminais de doenças raras ou
de cura improvável”. A resposta coerente na base da principiologia da Carta
de 1988 seria: tratar todos! E se os recursos não são suficientes, deve-
se
retirá
-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço da dívida)
onde sua aplicação não está intimamente ligada aos direitos mais essenciais
do homem; sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área
pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo por que
gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?, etc.
273
É sabido que muitas vezes a “reserva do possível” tem sido utilizada no Brasil como
argu
mento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no
campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social. Desse modo
,
parece difícil que um
Ente
P
úblico não possa conseguir
justificar” sua omissã
o social perante
272
CUNHA J
ÚNIOR
, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.310
.
273
K
RELL
, Andreas Joachim.Direitos sociais e c
ontrole
judicial no Brasil e na Alemanha.Fabris Editor, 2
002,
p.
52.
119
critério de política monetária, estabilidade, contenção de gastos, as exigências financeiras dos
diferentes órgãos (Assembléias Legislativas, Tribunais de Justiça, Tribunais de Contas, etc)
.
Os problemas de “caixa” não podem ser guindados a obstáculos à efetivação dos
direitos fundamentais sociais, pois imaginar que a realização desses direitos depende de
“caixas cheios” do Estado significa reduzir a sua eficácia a
zero
; a subordinação aos
“condicionantes econômicos” relativiza sua universalidade, condenando-os a serem
considerados “direitos de segunda categoria”,
conforme
enfatiza Andreas J
oachim
Krell
274
,
o
que representaria uma violenta frustração da vontade do constituinte e uma desmedida
contradição do modelo do Bem
-
Estar Social,
na li
ção de
Dirley da Cunha Júnior, para quem:
Deveras, trasladar para o direito brasileiro essa limitação da reserva do
possível criada pelo direito alemão, cuja realidade socieconômica e política
do país difere radicalmente da realidade brasileira, é negar esperança àquele
contingente de pessoas que depositou todas as suas expectativas e entregou
seus sonhos à fiel guarda do Estado Social do Bem-Estar. Obstáculos como
esses, transplantados de ordens jurídicas de paradigmas diversos, vem
robustecer a fragrante contradição entre a pretensão normativa dos direitos
sociais e o fracasso do Estado brasileiro como provedor dos serviços
públicos essenciais para a maioria da população. Assim, as discussões
travadas nos chamados países centrais sobre os limites do Estado Social e a
redução de suas prestações, e a contenção dos respectivos direitos
subjetivos a prestações, não podem, em absoluto, ser carreadas para a
realidade brasileira, onde o Estado Providência ainda não foi efetivamente
implantado.
275
Andr
eas J
oac
him
Krell a
ssinala
que fica claro que uma transferência mal refletida do
conceito de “reserva do possível” e do entendimento dos direitos sociais como mandados (e
não legítimos Direitos Fundamentais) constituiria “uma adoção de soluções estrangeiras, nem
sempre coerentes com as verdadeiras necessidades materiais” do país, que, “há muitas
décadas, pode ser observada na elaboração judiciária brasileira”.
276
Do mesmo modo, com apoio na
atual
Constituição, não vinga o entendimento de que
a
“reserva do possível” também obsta a competência do Judiciário para decidir acerca da
distribuição dos recursos públicos orçamentários. Com efeito, não se pode inverter a
hierarquia, tanto em termos jurídico-normativos, quanto em termos axiológicos, quando se
274
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e c
ontrole
judicial no Brasil e na Alemanha.Fabris Editor,
2002
,
p.
5
4.
275
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do p
od
er público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.310
-
311.
276
KRELL.
Op. cit., p. 56
.
120
pretende bloquear qualquer possibilidade de intervenção do Judiciário neste plano, a ponto de
se privilegiar a legislação orçamentária em detrimento de imposições e prioridades
constitucionais.
Em outras palavras, a competência conferida ao
Legislativo
para
elaboração
da lei
orçamentária
, não é absoluta, pois se encontra adstrita à Constituição Federal
,
devendo
observar, assim, as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais sociais que
exigem prioridade na distribuição desses recursos, considerados indispensáveis para a
realização da
s
prestações materiais que constituem o objeto desses direitos.
Para Robert Alexy, a reserva de competência orçamentária do Legislador não é um
princípio absoluto, na medida em que os direitos fundamentais podem ter mais peso e
relevância que razões de ordem político-financeira. Até em tempos de crise econômica, cuja
flexibilidade econômica é necessária, hão de ser garantidos esses direitos sociais mínimos.
277
Destarte, invocando-se o magistério de Dirley da Cunha nior, nem a reserva do
possível nem a reserva de competência orçamentária do Legislador podem ser invocados
como óbices, no direito brasileiro, ao reconhecimento de direitos originários a prestações.
Mais adiante conclui: ‘Não é exagero sustentar que a doutrina da reserva do possível está a
serviço da implantação de um Estado mínimo, onde minguam os serviços públicos que
compete ao Estado do Bem-Estar Social fornecer, exatamente para que as condições materiais
mínimas e necessárias à efetivação dos direitos sociais sejam realizadas. E não sabemos a
quem isso interessa
’.
278
De qualquer sorte, segundo a lição de Andreas J
oachim
Krell
, não podemos admitir
que os Direitos Fundamentais tornem-se, pela inércia do Legislador, ou pela insuficiência
momentânea ou crônica dos fundos estatais “substrato de sonho, letra morta, pretensão
perenemente irrealizada
[
...
]”.
279
277
A
LEXY
, Robert. Teoría de los derechos fundamentales
.
3 reimp. Trad. Ernesto Garzón Valdés.
Madrid:
Centro de Estudios Polític
os y Constitucionales, 200
2
, p. 495.
278
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do p
od
er público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.313.
279
K
RELL
, Andreas Joachim.
Direitos
sociais e c
ontrole
judicial no Brasil e na Alemanha. Fabris Editor,
2002,
p.1
02
.
121
E, justamente para que os
esses
direitos fundamentais, sobremodo os sociais, não
se
tornem mera expectativa de direito, sem data ou época definida para serem cumpridos e
observados pelo Poder Público, é que se tem defendido nesta dissertação a possibilidade de
provocar o
Judiciário
,
por meio de instrumentos processuais hábeis para exigir e cobrar a
implementação de políticas públicas sociais de cunho social de interesse geral, concretizadora
dos princípios e objetivos nacionais
.
3.3
Instrumentos jurídicos
constitucionais
para
concretização das Políticas Públicas
.
Assentadas as premissas teóricas que justificam o controle judicial das políticas
públicas, com possibilidade do Judiciário examinar as ações e omissões do P
oder
Público no
campo dos direitos sociais, de modo a concretizar as normas constitucionais, sobretudo as
definidoras de direitos fundamentais, resta agora uma análise, ainda que perfunctória, sobre a
jurisdição constitucional e instrumentos jurídicos
constitucionais
aptos à
implementação
de
políticas públicas.
Anote
-se que não
a
mínima
possibilidade de se esgotar o tema, por demais amplo e
complexo
e
que
, por certo, comportaria várias teses e di
gressões
,
até porque, havendo
no
direito pátrio
os controles concentrado e difuso de constitucionalidade, em princípio, de modo
incidental, a jurisdição constitucional poderia ser provocada por qualquer ação judicial do
processo de conhecimento, cau
telar, de execução ou sujeita a procedimentos especiais.
Assim,
aqui
se fará uma breve alusão a alguns instrumentos processuais previstos no
próprio
T
exto
Constitucional para a viabilização do aludido controle judicial das políticas
públicas
, com destaque para aqueles pertinentes ao controle difuso de constitucionalidade
,
sobretudo
para
ação civil pública, que tem
se
apresentado como o mais eficiente e completo
meio processual na defesa dos direitos fundamentais
.
À guisa de introdução, vale assinalar que a jurisdição constitucional tem sido alvo de
inúmeras críticas no que concerne a sua legitimidade, notadamente quando se referem
aspectos como os fenômenos de “politização do Judiciário” e de “judicialização da política”,
onde os limites e a legitimidade do controle de constitucionalidade são colocados à prova em
face da tradicional noção de separação de P
oderes
, conforme destacado em linhas
122
anteriores
. Associada a isto vem
à
questão dos instrumentos e mecanismos utilizados no
sentido de se dar efe
tividade a um tal controle.
Nesta perspectiva, somam
-
se teorias pró e contra o assim chamado “ativismo
judicial”,
teorias estas que podem ser enquadradas, para fins de classificação, no binômio
“substancialismo x procedimentalismo”, em cujas fileiras se alinham diversos autores de
diferentes latitudes, ainda que não se intitulem ou filiem expressamente a uma ou outra linha
de pensamento, conforme sustentem ou não um maior ou menor grau de atuação d
os
Tribunais Constitucionais no contexto
D
emocrático.
Ap
esar das críticas contra o chamado “ativismo judicial”, a experiência tem
demonstrado, conforme
adverte
Le
nio
Luiz
Streck,
‘que o Estado Democrático de Direito não
pode funcionar sem uma justiça constitucional, nem os conteúdos essenciais e
principiológico
s da Constituição podem ser realizados sem a atuação da jurisdição
’.
280
É inequívoco
, pois,
na esteira do que sustenta Dirley
da
Cunha Júnior,
que atualmente,
os novos conflitos sociais decorrentes do surgimento da sociedade de massa, tem exigido dos
órgã
os da justiça constitucional uma atuação mais ativa na efetivação das normas
constitucionais
. Neste cenário
,
a
melhor das justificativas da legitimidade da justiça
constitucional e da jurisdição constitucional, como efetivo instrumento de controle judicial
das omissões do P
oder
P
úblico,
é
que o que caracteriza a Democracia não é, propriamente, a
intervenção do povo na feitura das leis hoje mera ficção mas sim, o respeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana cuja guarda e defesa incumbe ao Poder Ju
diciário
.
281
Defendendo esta mesma posição, Dalmo de Abreu Dalari é elucidativo ao afiançar
que:
O juiz recebe do povo, através da Constituição, a legitimação formal de
suas decisões, que muitas vezes afetam de modo extremamente grave a
liberdade, a situação familiar, o patrimônio, a convivência na sociedade e
toda uma gama de interesses fundamentais de uma ou de muitas pessoas.
Essa legitimação deve ser permanentemente complementada pelo povo, o
que ocorre quando, segundo a convecção predominante, os juízes estão
280
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito
.
2ed., Rio de
Janeiro: Fore
nse
, 200
4
, p.
102
.
281
CUNHA JÚNIOR, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.385.
123
cumprindo o seu papel constitucional, protegendo eficazmente os direitos e
decidindo com justiça. Essa legitimação tem especial importância pelos
efeitos políticos e sociais que podem ter as decisões judiciais.
282
Desse modo, o discurso da legitimidade da justiça constitucional, sintetizado nas
várias posições doutrinárias que buscam conciliar a justiça constitucional e a D
emocracia,
reside verdadeiramente na vontade soberana do povo que a institui, através do Poder
Constituinte, para assegurar, de um lado, a força normativa e a supremacia da Constituição e,
de outro, o acesso imediato
a
os direitos fundamentais e a participação política das minorias no
processo democrático.
Num outro enfoque, é i
mportante
pontuar a necessidade de se estender uma abertura e
substancialização dos aspectos procedimentais à jurisdição constitucional, por meio de uma
efetiva participação democrática da sociedade na efetivação dos direitos fundamentais
consagrados na Constituição Federal
,
através
do direito de ação e do princípio do
contraditório
, os quais, ao lado dos princípios da in
declinabilidade
da jurisdição e do devido
processo legal, consubstanciam direitos fundamentais de índole procedimental-
material
.
Ora,
de
nada adiantaria o direito material
consagrad
o na Constituição acaso não houvesse
meios
processuais
para
pleiteá
-
los
frente ao Estado
-
juiz.
Conforme assinala José Reinaldo de Lima Lopes, naturalmente hoje em dia existem
mecanismos processuais, ainda novos para os padrões da tradição jurídica, que possibilitam o
ingresso de substitutos processuais de interesses coletivos
,
especialmente as ações civis
públicas, nas diversas formas de defesa dos consumidores prevista no Código de Defesa do
Consumidor, os mandados de injunção e a ampliação da legitim
idade para propositura da ação
direta de inconstitucionalidade. Mesmo assim, não havendo, ou não aparecendo interessados
na propositura de tais ações, a questão ficará adstrita aos meios individuais de defesa de
interesses, fazendo com que se fragmentem decisões que, a rigor, deveriam atingir toda uma
política.
Mais adiante, acrescenta:
As garantias dos direitos sociais podem, por isso, ser efetivadas hoje por
alguns caminhos que variam em natureza: quando se falar em direito
público subjetivo o cidadão está habilitado a exigir do Estado seja a
prestação direta, seja indenização; quando se tratar de garantia geral os
caminhos serão: por meio do Ministério Público (art. 129 da Constituição
282
DALARI, Dalmo de Abreu. O controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Em: O Poder
Judiciário e a Constituiç
ão
. Coleção Ajuris, 1977, pp. 151
-
183, p.167.
124
Federal), promover a responsabilidade de autoridades que não estejam
dando andamento a políticas e ações definidas em lei (orçamentárias e
programas) e regulamentos ou atos administrativos; as leis orçamentárias,
incluídos os orçamentos da previdência social, poderão ser impugnadas por
ação direta de inconstitucionalidade (art.102,I) toda vez que contrariarem
dispositivos constitucionais, como o artigo 201, e seus parágrafos, ou o art.
212, e sua respectiva hierarquia (lei complementar referida no art. 163 da
Constituição Federal, plano plurianual, lei de diretrizes orça
mentárias,
orçamento anual); responsabilização do Presidente da República
especialmente no caso do art. 85, VI e do art. 167, § 1º.
283
Conforme já assinalado,
não
é pretensão deste trabalho aprofundar no exame da
jurisdição constitucional na modalidade do controle concentrado. Todavia,
cumpre
mencionar
os tipos de ações previstas na Constituição Federal para provocação do controle judicial de
constitucionalidade pela via concentrada e direta
.
Em face de sua nova configuração constitucional, o controle concentrado de
constitucionalidade das leis ou atos normativos estaduais e federais, de competência exclusiva
do Supremo Tribunal Federal, pode ser suscitado, pela via
direta
, por meio das seguintes
ações especiais: (a) ação direta de inconstitucionalidade por ação; (b) ação direta de
inconstitucionalidade por omissão; (c) ação direta de inconstitucionalidade interventiva; (d)
ação declaratória de constitucionalidade de lei ou de ato normativo federal e, (e) argüição de
descumprimento de preceito fundament
al.
Vale destacar, por oportuno, que a Constituição
brasileira
autorizou aos Estados a
instituição de controle concentrado-principal de constitucionalidade de suas leis ou atos
normativos estaduais ou municipais em face de suas Constituições Estaduais, por meio de
ação direta de inconstitucionalidade tanto por ação, como por omissão, de competência
exclusiva dos Tribunais de Justiça, vedando apenas a legitimidade para agir a um único órgão
(A
rt.125, § 2º)
284
.
Tais
ações especiais que suscitam o controle concentrado-principal de
constitucionalidade têm natureza de ação objetiva, que instauram um processo objetivo, por
283
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: O dilema do Judiciário no Estado Social
de Direito. Em Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça
.
Org
. José Eduardo Faria, 1ed. 4
tir,
o Paulo:
Malheiros,
2005,
pp. 134 e 137.
284
Art. 125 [...] § Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos
normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para
agir a um único órgão.
125
meio do qual será dirimida uma questão constitucional. Não se compõe por meio delas,
qualquer conflito de interesse.
Noutro giro, e em conformidade com a proposta deste
trabalho
de sublinhar o controle
difuso, invocando-se o magistério de Dirley da Cunha Júnior, é natural, decerto, que a
jurisdição constitucional subjetiva ou incidental seja provocada normalmente pelas ações
constitucionai
s de garantia, vale dizer, pelos reconhecidos remédios constitucionais, em razão
da celeridade e do rito sumário de seus procedimentos, que são especiais. Esses remédios
constitucionais são movidos, ora individualmente, por quem supostamente titulariza um
direito fundamental, ora coletivamente, por entidades ou órgãos legitimados para atuarem na
condição de substitutos processuais em favor de interesses ou direitos subjetivos assegurados
aos personagens substituídos. Entre os remédios constitucionais mais utilizados no controle
incidental, sobretudo no controle concreto das omissões do P
oder
Público, figuram a
ão
popular, o mandado se segurança e a ação civil pública.
285
Cumpre assinalar que para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a expressão “remédios
const
itucionais” designa os direitos-garantia que servem de instrumento para a efetivação da
tutela, ou proteção, dos direitos fundamentais. Como essa proteção é essencialmente confiada
ao Judiciário, no direito brasileiro, são esses remédios ações especiais pelas quais se emite a
pretensão à tutela de um direito por parte desse Poder.
286
A ação popular está consagrada no inciso LXXIII
287
, do Art. 5º da Constituição
Federal, tendo por objeto de proteção a tutela, para além do patrimônio público, da
moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural. Está
disciplinada na Lei 4.717, de 29 de junho de 1965, que lhe traçou um procedimento
específico e aspectos processuais próprios.
A ação popular constitucional é de natureza desconstitutiva e condenatória, veiculada
num processo de conhecimento. Segundo seu perfil constitucional e legal, constitui forma de
285
CUNHA JÚNIOR, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.447.
286
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
145.
287
LXXIII
– qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da
sucumbência.
126
manifestação direta da soberania popular, em face da qual o próprio povo toma a iniciativa de
defender, preventiva ou corretivamente, a coisa pública, considerada um direito fundamental
da coletividade. Todo cidadão brasileiro, portanto, no gozo de seus direitos políticos, é parte
legítima para ajuizá-la, agindo como substituto processual de toda a população.
Assim,
estrangeiros e pe
ssoas jurídicas não podem propô-
la.
O Ministério Público não pode ser autor,
mas oficia na ação popular como fiscal da lei, ativador das provas e auxiliar do autor popular,
e como substituto e sucessor do autor, em caso de desistência (legitimação ativa su
bsidiária
)
.
Por atos lesivos, podem ser consideradas as ações e as omissões do P
oder
Público lesivas
àqueles bens e valores jurídicos. A sentença fará coisa julgada erga omnes”, exceto se
julgada improcedente por deficiência de provas. Neste caso poderá s
er ajuizada novamente.
O mandado de segurança está consagrado nos incisos LXIX
288
e LXX
289
, do
A
rt. 5º da
Constituição Federal, na modalidade individual e coletiva,
respectivamente,
podendo ter
caráter preventivo ou corretivo. Esse remédio constitucional de
stina
-se especificamente a
proteger direito líquido e certo, individual ou coletivo, violado ou ameaçado de violação por
ato de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições públicas,
praticado ilegalmente ou com abuso de p
oder.
Conforme afiança Dirley da Cunha Júnior, o
ato impugnado pela via do
mandamus
abrange qualquer conduta positiva ou omissiva, de tal
modo que esse remédio constitucional revela-se como um poderoso mecanismo de controle
incidental das omissões do P
oder
Público, nas hipóteses de violação a direito líquido e certo,
decorrente de omissão total ou parcial, normativa ou não-
normativa
, do P
oder
P
úblico.
Assim, por meio dele, o Poder Judiciário pode e deve exercer a jurisdição constitucional
incidental para suprir as omissões inconstitucionais do P
oder
Público, a fim de assegurar a
efetividade e o pleno gozo dos direitos fundamentais
.
290
288
LXIX
conceder-
se
mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por
habeas
corpus
ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuição do Poder Público.
289
LXX
- o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no
Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em
funcionamento há pelos menos um ano, em defesa dos interesses dos interesses de seus membros.
290
CUNHA JÚNIOR, Dirley da
.
Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004,
p.4
50.
127
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a ação civil não é verdadeiramente uma
garantia constitucional, mas faz às vezes de, na hipótese consagrada no inciso III
291
do
A
rt
.
129, da Constituição Federal.
292
Luiza
Cristina Fonseca
Frischeisen
afirma que, a ação civil pública, garantia jurídica
de direito constitucional, constitui instrumento do Ministério Público (em conjunto com o
inquérito civil público e outros procedimentos administrativos) para a defesa do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, encontra-
se
processualmente disciplinada na Lei nº 7.347/85, com as modificações introduzidas pelo
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e Lei 8.884/94 (que dispõe, entre
outras providências, sobre a prevenção e a repressão de infrações econômicas
).
293
De qualquer forma, a ação civil pública vem consagrada pela Constituição F
ederal
como uma das funções institucionais do Ministério Público, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A partir daí,
sucederam
-
se outras leis, dispondo sobre a referida ação coletiva:
a Lei nº 7.853/89, que fixou
como objeto de sua tutela os interesses coletivos e difusos das pessoas portadoras de
deficiência; a Lei 7.913/89, que dispôs sobre a responsabilidade por danos causados aos
investidores no mercado de valores mobiliários; a Lei 8.069/90, mais conhecida como
Estatuto da Criança e do Adolescente, que regulou a proteção judicial dos interesses difusos,
coletivos e individuais assegurados às crianças e aos adolescentes.
Mas foi com
o
advento da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) que a
ação civil pública ganhou contornos mais precisos e teve seu objeto ampliado para abranger,
muito além dos interesses e direitos difusos e coletivos, a categoria dos direitos individuais
homogêneos. A ação civil pública pode ter por objeto a condenação em dinheiro ou o
cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, sendo que a sentença de procedência
proferida em sua sede fará coisa julgada “erga omnes”, limitada, contudo, à competência
territorial do órgão judicial prolator.
Conf
orme adverte Dirley da Cunha Júnior, a sentença de
291
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] III promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos.
292
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.
162.
293
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
.
São Paulo:
Max Limonad,
2000, p.124.
128
improcedência, por deficiência de provas, não fará coisa julgada material, podendo ser
proposta novamente, por outro co
-
legitimado com idêntico fundamento, desde que se valha de
novas provas
.
294
Cumpre destacar, que a ação civil pública tem sido utilizada como meio eficaz de
responsabilização do agente público que, não cumprindo com o seu dever, desrespeita direito
alheio, coletivamente considerado, impondo-lhe uma obrigação de fazer, sobretudo quando se
tr
ata de inobservância dos direitos sociais e implementação das respectivas políticas públicas
.
Nesta senda, ainda de acordo com o explicitado por Dirley da Cunha Júnior, a ação
civil pública, dada a sua destinação constitucional, tem se revelado como um dos mais
importantes e mais completos instrumentos de controle incidental de constitucionalidade na
proteção dos direitos subjetivos. No que concerne ao controle das omissões do P
oder
P
úblico,
essa ação coletiva tem a virtude de propiciar uma atuação judic
ial abrangente no controle para
a implementação das políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos fundamentais,
sobretudo dos direitos sociais. Por meio dela, por exemplo, o Ministério Público pode e até
deve propor ao Judiciário um efetivo controle do P
oder
Público na realização de políticas
públicas determinadas vinculativamente pela Constituição nas áreas sociais (como, por
exemplo, na saúde, educação, previdência, assistência, cultura, criança e adolescente, idoso,
portador de deficiência, me
io ambiente e índio)
295
Consoante assevera Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, o Administrador está
vinculado ao cumprimento das normas da ordem social, à implementação das políticas
públicas necessárias ao afetivo exercício dos direitos sociais, não havendo discricionariedade
na oportunidade e conveniência, estando essa vinculada
à escolha, diante do caso concreto, da
melhor forma de cumprimento da finalidade constitucional e legal, não sendo a omissão uma
escolha possível.
Portanto
, o não-agir (a omissão) ou a ação de forma não razoável para
atingir a finalidade constitucional (desvio de finalidade) que contraria o devido processo legal
que rege as obrigações da Administração em contrapartida aos direitos dos cidadãos às
prestações sociais do Estado, são passíveis de responsabilização e controle judicial através da
ação civil pública. E acrescenta: A ação civil pública é, portanto, o instrumento processual do
294
CUNHA JÚN
IOR
, Dirley da. Controle judicial das omissões do p
od
er público. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
452.
295
CUNHA JÚNIOR.
Op. cit.
,
p. 458
.
129
Ministério Público para juridicizar” a demanda coletiva pela implementação de direitos
assegurad
os pela ordem social constitucional.
296
Desse modo, o exame de constitucionalidade de uma política pública é
questionável
incidentalmente por meio de ação civil pública, assim como a inconstitucionalidade ante uma
abstenção indevida do P
oder
P
úblico
na formulação de políticas públicas consagradas no
T
exto
Constitucional, o que ocorre, por exemplo, quando
,
deixa de ofertar
educação gratuita à
criança e ao adolescente, creche às crianças de zero a seis anos de idade, saúde pública a
todos, assistência aos carentes, possibilidade de integração social ao deficiente, proteção ao
patrimônio histórico e cultural, proteção ao meio ambiente, proteção ao idoso e dema
rcação
das terras indígenas.
Em
suma
, o controle judicial da constitucionalidade das políticas públicas tem por fim
justamente o confronto de tais políticas com os objetivos constitucionalmente vinculantes a
atividade de governo. E a ação civil pública, reitere-se, apresenta-se como um
eficaz
e amplo
remédio para atingir esse desígnio.
Frente ao
expos
to, t
em
-
se
que o constituinte e depois o Legislador ordinário,
coloc
aram
à disposição uma série de instrumentos jurídico-processuais aptos a provocar a
tutela jurisdicional a fim de discutir e questionar as políticas públicas que, de
um
modo ou de
outro, n
ão
atentaram para os fins e objetivos traçados pela
atual
Constituição, sobretudo
para
o princípio da dignidade da pessoa humana.
Se modernamente o Estado deve ser encarado como um implementador de políticas
públicas, de modo a construir uma sociedade mais justa, igual e solidária, que tenha por meta
a erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e
regionais (Art. da CF)
297
,
o cidadão, aqui entendido como
qualquer
pessoa integrante da
sociedade civil, pode perfeitamente, valendo-se dos instrumentos jurídico-
processuais
colocados à sua disposição, cobrar e
exigir dos
A
dministradores
P
úblicos
a implementação de
medidas ou políticas
que permitam uma vida mais digna e justa.
296
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas. A responsabilidade do Administrador e o
Ministério Público
.
São
Paulo: Max Limonad, 2000, p.125
-
127.
297
Art. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça,
sexo, cor, idade ed quaisquer outras formas de discriminação.
130
CONCLUSÃO
Tudo isto exposto, conclui
-
se:
1)
A compreensão histórica dos direitos fundamentais é importante para entender que
os “direitos do homem”, não surgiram do acaso, mas sim de experiências de confronto,
guerras e revoluções, com muito derramamento de sangue e perda de vidas humanas, num
movi
mento de expansão e
afirmação
progressiva, numa sucessão temporal de afirmação
e
sedimentação
de novos direitos fundamentais, o que explica a
s
chamadas
“gerações” ou
“dimensões” de direitos, ou seja, direitos de primeira, segunda e terceira
geração ou
dime
nsão
que contemplaram, respectivamente, os direitos de liberdade, igualdade e fraternidade.
2) Os direitos fundamentais constituem o cleo essencial do ordenamento jurídico-
constitucional e a espinha dorsal do Estado Democrático de Direito, cuja finalidade é a
realização e promoção dos direitos fundamentais, que, em última análise, correspondem à
realização e concretização da própria Constituição.
3) A atual Constituição brasileira conferiu posição de destaque aos direitos
fundamentais
, não pela questão topográfica, que consagrados nos primeiros dispositivos
(Arts. a 14), com evidente reconhecimento de que constituem parâmetro hermenêutico de
valores de toda ordem constitucional, mas também pelo extenso rol d
e
direitos
fundamentais,
guindados
à condição de cláusula pétrea (Art. 60, §, 4º, IV)
,
sendo-
lhes
conferido, ainda,
aplicabilidade imediata (§ 1º, do Art. 5º).
4) Os direitos sociais
,
que integram o rol dos direitos fundamentais, representam uma
garantia constitucional das condições mínimas e indispensáveis para uma existência digna.
Decorrem do princípio da igualdade e possuem como traço característico à dimensão positiva
no sentido de exigir do Estado uma intervenção para atender as necessidades do indivíduo e
da coletividade
,
de modo a
viabilizar a dignidade da pessoa humana
.
5) Por força do § , do Art. da Constituição Federal, todos os direitos
fundamentais, incluídos os sociais, são imediatamente aplicáveis, independentemente da
existência ou não de norma ordinária integradora. Entendimento diverso implicaria em tornar
a
Constituição ornamental, letra morta e meramente um ideário, despida de força cogente
.
131
6) A Constituição é a base da ordem jurídica e o fundamento de sua validade. Como
norma jurídica fundamental, goza do prestígio da supremacia em face de todas as normas do
ordenamento jurídico, o que implica no princípio da constitucionalidade ou da necessária
conformação de todo comportamento, comissivo ou omissivo, dos órgãos do Estado à
Constituição.
7) Se as imposições constitucionais não são realizadas, a supremacia constitucional
fica comprometida e de resto toda a ordem constitucional. Em
decorrência
, os Poderes
constituídos, Legislativo, Executivo e Judiciário, estão vinculados e obrigados a satisfazer os
fins e taref
as impost
o
s pela Constituição
, ou seja, à
s políticas públicas sociais.
8) A Constituição vincula o Legislador e a Administração Pública não somente quanto
à obediência dos direitos fundamentais (incluídos os direitos civis, políticos, culturais e
econômic
os), mas também quanto à elaboração das normas que garantam à coletividade, a
concretização dos direitos sociais, para a consecução dos objetivos da própria República,
previstos no
A
rt. 3º da Constituição Federal.
9) A validade e eficácia das normas da ordem social constitucional, a vinculação e o
dever do Legislador e do Administrador de implementá-las, criam para o Estado obrigação de
atuar
, no sentido de fornecer os meios materiais para o gozo dos direitos de natureza coletiva,
social e difusa,
visando
o efetivo exercício d
e tais
direitos pelos cidadãos.
10)
As ações estatais, exercidas diretamente pela Administração Pública ou por seus
agentes delegados, visando a concretização dos direitos sociais, constituem políticas públicas,
sendo que
a
ordem social constitucional estabelece várias políticas públicas para
o
efetivo
exercício dos direitos sociais.
11) A conduta comissiva falha, assim como omissão no cumprimento das normas
constitucionais da ordem social dão ensejo à responsabilização do Administrador Público
,
assim como do
Legislador, pois tais condutas são inconstitucionais.
12) Na consecução das políticas públicas decorrentes da Constituição Federal, a
margem de discricionariedade do Administrador Público é mínima, e porque não dizer,
132
nenhuma
, pois os limites foram traçados pela própria Constituição. Assim, vinculação e
não discricionariedade.
13) As dúvidas sobre a margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo
Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato
administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade
constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional.
14) Tanto os atos administrativos deficitários, assim como a omi
ssão do Poder Público
na implantação das políticas públicas, delineadas na Constituição Federal, são passíveis de
controle judicial.
15) A atuação do Judiciário no controle de discricionariedade da Administração e de
interpretação das normas constitucionais não implica na usurpação de funções do
Administrador ou do Legislador, pois a ele cumpre a elevada missão de impedir e desfazer as
ofensas que ameaçam e afrontam os direitos fundamentais assegurados pela ordem jurídica
constitucional.
Dito de outro modo, a incumbência constitucional dos juízes é a de concretizar
as normas constitucionais, a partir de uma concepção substancial de
D
emocracia.
16) O fenômeno da “politização do Judiciário” está ligado a sua atuação em questões
constitucionais e decorre da pressão exercida por partidos políticos minoritários no Congresso
Nacional, por organizações não-governamentais, assim como pelo Ministério Público e
entidades de classe, para o controle judicial das escolhas políticas. Nesse passo, é inequívoco
que o Ju
diciário
tem sido instado, por meio de ações judiciais, a adentrar no exame dos atos
de governo, não para contrastá-los com a lei, mas sobretudo com a nova ordem
constitucional.
17) O dogma da separação de Poderes não mais se coaduna com o atual estágio do
Estado Democrático Social de Direito, sobretudo diante da nova ordem constitucional
inaugurada a partir de 1988, de modo que sua revisão se mostra inevitável. Ao invés de falar
em separação de Poderes, deve-se sustentar um equilíbrio entre eles, num contexto no qual o
Poder Judiciário possa exercer uma efetiva atividade de controle dos outros Poderes
,
particularmente quan
d
o estes se apresentem omissos diante das imposições constitucionais.
133
18
)
A figura do juiz neutro e inerte não mais se coaduna com
o atual estágio do Estado
Democrático
Social
de Direito. O chamado “ativismo judicial” deve ser estimulado sobretudo
na implementação concretizadora de políticas públicas definidas pela própria Constituição
e
que lamentavelmente são descumpridas, por injustificável inércia dos órgãos estatais
competentes.
19) Impõe
-se uma mudança paradigmática na postura do Poder Judiciário, por meio da
atuação
concreta
dos magistrados
que
devem
se
libertar dos valores liberais do Estado
burguês arraigados na doutrina constitucionalista tradicional, adotando uma nova óptica de
interpretação hermenêutica, calcada nos valores e princípios constitucionais, que possuem
como vetores máximos o bem-comum e a dignidade da pessoa humana. Em uma frase, a
adoção da “interpretaç
ão principiológica”.
20
) O acesso à Justiça é fundamental para o efetivo exercício dos direitos sociais,
funcionando a prestação jurisdicional como instrumento de garantia de tais direitos. O
Judiciário pode e deve, mediante decisões firmes, exercer seu importante papel no processo
político de realização dos direitos fundamentais sociais.
21) A chamada “reserva do possível”, decorrente de problemas de “caixa” não pode
ser guindada a obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais sociais, sob pena de reduzir a
sua eficácia a zero, além do que, a subordinação aos “condicionantes econômicos” relativiza
sua universalidade, condenando-os a serem considerados “direitos de segunda categoria” o
que representa uma violenta frustração da vontade do constituinte e uma desmedida
contradição do modelo do Bem
-
Estar Social
.
22) A função precípua dos estudiosos do Direito, comprometidos com a efetiva
implantação da ordem social constitucional, é interpretar o Texto Constitucional, sempre
visando a consecução dos objetivos da República Federativa do Brasil; a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional (em especial o
humano), a erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e
regionais e promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
134
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