Download PDF
ads:
18
UNIVERSIDADE FLUMINENSE - UFF
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
UMA MESTRA DA PALAVRA:
Ética, memória, poética e (com)paixão
na obra de Célia Linhares
por
ADRIANNE OGÊDA GUEDES
RIO DE JANEIRO
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
19
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - UFF
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
UMA MESTRA DA PALAVRA:
Ética, memória, poética ou (com)paixão
na obra de Célia Linhares
por
ADRIANNE OGÊDA GUEDES
Tese apresentada como exigência parcial para
a obtenção do grau de Doutora em Educação
da Universidade Federal Fluminense, sob a
orientação da Profª Drª Iduina Mont’Alverne
Chaves.
RIO DE JANEIRO
2008
ads:
20
FOLHA DE APROVAÇÃO
Adrianne Ogêda Guedes
UMA MESTRA DA PALAVRA:
Ética, memória, poética ou (com)paixão
na obra de Célia Linhares
Rio de Janeiro, 17 de abril de 2008.
Aprovada por:
_________________________________
Iduina Mont’Alverne Chaves (UFF- Presidente)
_______________________________________
Maria Cecília Sanchez Teixeira (USP)
_______________________________________
Denice Bárbara Catani (USP)
_______________________________________
Valdelúcia Alves da Costa (UFF)
________________________________________
Waldeck Carneiro da Silva (UFF)
21
Para minha mãe Eny, e Moacyr e Aguiléa Ogêda, meus avós maternos, (in
memorian), raízes.
22
Agradeço,
A todos os depoentes que colaboraram fundamentalmente com esse trabalho: Ana
Heckert, Andréia Reis, Balina Belo, Bruna Molissani, Clarice Nunes, Dagmar Canella,
Dorothy Pritchard, Eliana Yunes, Estela Scheivar, Heloisa de Oliveira Santos Villela, Inês
Bragança, Isabel Reis, Jésus de Alvarenga Bastos, Raimundo Palhano, Lúcia Fidalgo, Luís
Sangenis, Maria de Jesus Gaspar Leite, Mônica Sally, Mônica Corbucci, Ney Luiz Teixeira de
Almeida, Patrícia Porto, Ramofly Bicalho dos Santos, Rosane Marendino, Tereza Calomeni,
Rose Clair Matela, Thereza Pflueger, Valdelúcia Alves da Costa e Waldeck Carneiro da
Silva,
As bolsistas Juliana Pessanha e Verônica Costa, pelos compartilhamentos no vasculhar de
uma estrada comum a nossos interesses,
A UFF pela bolsa CAPES que viabilizou essa pesquisa,
A Isabela da secretaria do programa de doutorado da UFF, sempre solícita e atenciosa,
A Selene Beviláqua Chaves Afonso, que com sua escuta sensível, arguta e atenta tem me
ajudado nas travessias,
Aos colegas que fazem parte do grupo de orientandos da professora Iduina Chaves: Bruna
Molissani, Eduardo Menezes, Jacyana Guaraná, Patrícia Porto e Tânia Ninhary que foram
parceiros muito importantes ao longo de meu doutorado, escutando as idéias quando elas
ainda estavam nascendo,
A José Linhares que com sua simpatia, boa vontade e erudição, me ajudou na pesquisa
histórica desta tese,
A Iduina Mont’Alverne Chaves, por tudo e muito mais. Pela parceria atenta e entusiasmada
com que me brindou ao longo desse trabalho, fazendo dessa caminhada, uma experiência
nada solitária,
A Gabriela Paschoal e Luang Dachar, que com sensibilidade e criatividade deram seus
toques de arte a esse trabalho,
E por fim, a própria Célia Linhares, que se mostrou sempre disponível as minhas muitas
solicitações, abrindo sua casa e sua vida com singular receptividade e afetuosidade.
A Daniela, presença sempre amiga, com quem troquei impressões, sentimentos e dúvidas
nesses quatro anos e que sempre tinha uma palavra cúmplice e bem vinda,
A Maria José, pelo apoio e cuidado tão necessário nesses tempos corridos,
A querida Márcia Ahrends que me ajudou a “colocar” o corpo no lugar pós tese,
A minha família, Glauco, Miatã e Isabella por fazerem parte da minha vida e estarem por
perto, fazendo tudo ter um sentido muito maior,
Aos meus sogros Maria e Kleber, com quem sempre pude contar,
Ao Glauco muito especialmente, pelo carinho com que me acolheu nos momentos mais
difíceis e nos de partilha da alegria de criar. Também pelos jogos de frescobol que me
ajudavam muitas vezes a me preocupar apenas em acertar a bola.
23
SUMÁRIO
Resumo
Abstract
Introdução
Capítulo 1: Década de 60, os Inícios
1.1 - Movimento popular e políticas públicas: tensões e conquistas dos anos 60.
1.1.1 Movimento estudantil e organização dos empresários: o arrefecimento da
Pedagogia Nova.
1.1.2 A reforma universitária no final da década
1.2 Entre o dia e a noite: Incertezas e confianças
1. 3 – Trilhas do pensamento pedagógico que se construía... 87
1.4 A voz dos parceiros: Dorothy Pritchard, Memórias de uma rádio-educadora.
1.5 O levedo está fermentando: marcando a trilha para continuar a caminhada.
Capítulo 2: Década de 70, medos e ousadias.
2.1 “Segurança e desenvolvimento(?!)”: a desnacionalização do Brasil 112
2.2 De mala e cuia: Chegada ao Rio de Janeiro
2.3 Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente. 131
2.4 Trilhas do pensamento pedagógico ... 137
2.4.1 artigo: “O poder das expectativas e o self” (1972) 142
2.4.2 Introdução à ontologia da criatividade (ensaio de filosofia educacional sob a
metodologia fenomenológica) – Tese de Livre docência. 1974 145
2.4.3 Ambigüidade, androgenia e crise – 1974.
24
2.4.4 Mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense: docência e
pesquisa em perspectiva. 1978 156
2.5.1 A voz dos parceiros: Balina Belo, memórias de uma professora de didática.
2.5.2 A voz dos parceiros: Jésus de Alvarenga Bastos,de aluno à colega, memórias de
muitas parcerias. 175
2.6 Pedra e semente: A Saga do herói, aventura de estar vivo. 190
Capítulo 3: Década de 80: Firmeza e esperança
196
3.1 Abertura política: O povo volta às ruas.
3.2 Mais firme na trilha. 204
3.3 Trilhas do pensamento pedagógico ... 213
3.3.1 Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina 216
3.3.2 A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/ Falklands (1982)
219
3.3.3 A educação e suas relações com as Identidades Culturais na América Latina
(1983). 221
3.3.4 La identidad cultural y el processo de educacion en la América Latina tesis de
Doctorado em Ciências de la Educación, Universidad Nacional de Buenos Aires (1983).
3.3.5 A Interdisciplinaridade na Psicopedagogia (1986).
225
3.3.6 Os protagonistas da Pedagogia Escolar: Suas convergências e divergências
(1987)
3.3.7 A escola e seus profissionais: tradições e contradições (1988) 227
3.4 A voz dos parceiros: Heloisa de Oliveira Santos Villela, aprendendo a viver com
Célia, memórias de um encontro de fortalecimento e confiança 236
3.4 A voz dos parceiros: Waldeck memórias de um homem político 255
3.5 Mestra-mãe
Capítulo 4: de 90 aos dias atuais: início de um novo século, novos tempos?!
4.1 Novas idéias, velhas raízes.
4.2 Novos rumos, novos ares: tempo de recomeços.
4 . 3 Parte I: Trilhas do pensamento, anos 90.
25
4.3.1 A Crise do Político na Educação: a imposição da estratégia como
espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos na construção
ética. Tese para Concurso de Professor Titular de Política Educacional (1993
)
292
4.3.2 Tecnologias inteligentes x juventude desempregada: desafios da história. (1995)
4.3.3 Sujeitos Históricos: seus lugares na Escola e na Formação de Professores. (1996)
4.3.4 Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na escola
pública. (1997)
301
4.3.5
Terremotos na pedagogia: perspectivas da formação de professores
. 303
4.3.6 Escola Balaia – Um convite ao Debate para a Reinvenção de Caxias. (1999)
4.3.7 O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: A presença de Paulo Freire. (1997)
4.3.8 Medos e Violências nas Escolas: E a educação com isso? (1999) 321
4.3.9 Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos. 1998 321
4.4 Voz dos parceiros PARTE I: anos 90.
4.4.1 A voz dos parceiros: Clarice Nunes, uma parceria de confiança. 323
4.4.2 A voz dos parceiros: Valdelúcia, memórias de vôos em parceria: 329
4.4.3 A voz dos parceiros: Inês Bragança, memórias do convite para um piquenique-
pedagógico
4. 5. Parte II: Trilhas do pensamento, anos 2000.
4.5.1 Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento?
Memórias e Projetos do Magistério no Brasil. (2001)
4.5.2 De uma cultura de paz e justiça social: movimentos instituintes em escolas
públicas como processos de formação docente.
4.5.3 Liberdade: uma busca nossa de cada dia. (2003). 350
4.5.4. Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo Freire.
(2003)
4.5.5 Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços
contemporâneos. (2003).
4.5.6 Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem? (2004).
4.5.7 Movimentos instituintes na educação pública.
4. 6. Parte II: A Voz dos Parceiros, anos 2000. 461
4.6.1 A voz dos parceiros, anos 2000: Maria de Jesus Gaspar Leite, Sonhando com um
futuro para a escola: de mãos dadas com Célia.
26
4.6.2 A voz dos parceiros: Ney Luiz, lembranças de um encontro que trouxe
mudanças.
4.6.3 A voz dos parceiros: Ramofly.
4.7 Outras vozes: depoimentos.
4.8 Tempo de tecelagem
FECHAMENTO/ ABERTURA: Uma mestra da palavra: ética, memória,
poética e com-paixão OU (com)paixão na obra de Célia Linhares.
Referências bibliográficas
27
RESUMO
IDENTIFICAÇÃO:
GUEDES, Adrianne Ogêda: Uma mestra da palavra: Ética, memória, poética e
(com)paixão na obra de lia Linhares. Orientadora: Iduina Mont’Alverne Braun
Chaves. UFF, Niterói-RJ, 1704/2008. Tese (Doutorado em Educação), 405 páginas.
Campos de confluência: Políticas Públicas, Movimentos Instituintes e Educação.
Linha de pesquisa: Formação de Profissionais da Educação. Projeto de pesquisa:
Política de formação de professores: a cultura das licenciaturas na UFF.
Este trabalho situa-se no âmbito das pesquisas narrativas, focalizando as experiências
dos sujeitos, na interface com o estudo dos contextos mais amplos em que transcorrem.
Buscou-se compreender as marcas significativas do pensamento educacional/pedagógico da
educadora maranhense Célia Linhares, cuja trajetória profissional teve como lócus principal a
Universidade Federal Fluminense no período que vai de 1970 a 2000. A tese estuda a sua
produção escrita com vistas a: apreender as idéias força, a forma como elas foram se
construindo e se constituindo ao longo do tempo, a presença das questões que circulavam nos
diferentes tempos históricos vividos por ela e a potencialidade de seu estilo de escrita. A
escolha da obra/vida desta professora, se deu em virtude da significativa contribuição à
educação brasileira, sobretudo no campo das políticas públicas para formação de professores,
tema ligado ao campo de confluência Políticas blicas, Movimentos Instituintes e Educação,
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Outro
critério importante para este estudo foi a expressiva obra da referida professora, que nos
permitiu articular seus textos, à sua história profissional e à sua pratica pedagógica. Os
estudos da complexidade, que têm como patrono Edgar Morin, permeiam o método, as
análises e as reflexões tecidas ao longo dessa tese. Entrevistas foram realizadas com a
professora Célia Linhares e com pessoas com as quais trabalhou e conviveu em diferentes
épocas de sua vida. Além disto, foi feito o estudo do pensamento pedagógico brasileiro desde
a década de 60 e das relações entre a educação, o contexto mais amplo brasileiro e a inserção
política e pedagógica da professora Célia Linhares, buscando evocar as interdependências
entre educação, política, economia e demais aspectos do nosso contexto sócio-político e
cultural. Este trabalho nos leva a concluir que a obra dessa educadora ressalta a necessidade
de agirmos contra a barbárie, convocando a educação a constituir-se como promotora da
solidariedade, do sentimento de pertença no exercício da escuta e do diálogo, no acolhimento
e no estabelecimento de relações pautadas pelo amor e pelo afeto. Os princípios da
emancipação pela autonomia dos sujeitos, da dignidade e da cidadania como aprendizagem
escolar são nucleares no ideário pedagógico da professora Célia Linhares Mestra do Amor,
que se deixa contaminar pela verdade do outro, não impondo a sua própria.
Palavras-chave: Formação de professores, História da Educação e Pesquisa
Narrativa.
28
ABSTRACT
This work lies in the scope of searches narratives, focusing on the experiences of
the subject, at the interface with the study of broader contexts in which they
occur. Thus, it was possible to understand through trajectories, methods and
processes of life, involving personal choice, experiences and strategies of the
teachers and students face the tensions of a time that never ceases to change. In
summary, this study searches to understand the marks of thought significant
educational/teaching of the professor Célia Linhares, especially through the study
of their written production with a view to: seize the ‘ideas strength’, the way they
were building and forming over time, the apresentation of the issues that
circulated in different historical times lived by her and singularity of her style of
writing. The choice of the work/life of this teacher, happened because of the
significant contribution to the Brazilian education, especially in the field of public
policy for training of teachers, a theme linked to the research group called ‘Public
Policies, Movements Instituints and Education, linked to the Post Graduate
Program in Education of the Universidade Federal Fluminense. Another important
criterion for this study was the expressive writing works of the teacher in study,
which allowed the thorough knowledge of their texts, its history and its
professional pedagogical practice. The studies of the complexity, by Edgar Morin,
permeate the method, analysis and reflections woven throughout this thesis.
Interviews were conducted with with the professor Célia and with many of her
peers, people with whom she worked and lived at different times of her was made
a study of of the brazilian pedagogical thought since the decade of 60 and the
relationships between education, the broader context of Brazil and the insertion
of professor Celia Linhares in this movement of interdependence between
education, politics, economy and other aspects of our the socio-political and
cultural context. Her work emphasizes the need to act against barbarism, calling
education to constitute itself as a promoter of solidarity, a sense of belonging to
students, in the exercise of listening and dialogue and in the admission and the
establishment of relations guided by love and affection. The principles of
emancipation through autonomy of the subjects, dignity and citizenship as school
learning are core ideas in the teaching of professor Célia Linhares, Master of Love,
which makes contaminate the truth of the other, not imposing her own.
29
INTRODUÇÃO
“Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de
partida”.
(Eduardo Galeano in As Palavras Andantes, 1994)
“Não se pode pensar sem alicerces. Que é o imbecil, senão aquele que
não dispõe da segurança proporcionada por um sólido cajado?”
(Michel Mafessoli, 2004)
“(...) É que a sociedade está voltada para o consumo. Não nos foi
possível descobrir e vivenciar, com intensidade, que todo real é uma
fantasia que ganhou corpo. pela fantasia acrescentamos. Somos
sempre levados a acreditar que a fantasia é um exercício menor.
Parece-me que estamos mais preocupados com a qualidade dos preços
do que com a qualidade dos valores. Por muito tempo fomos
induzidos à crença de que consumir é mais prazeroso que criar”.
(Bartolomeu Campos de Queirós Jornal da Unicamp, nº293 27 de
junho a 7 de julho de 2000)
Alicerces. Introduzir um trabalho é, de certo modo, além de apresentá-lo, explicitar
sobre quais alicerces me sustento/sustentei para construir essa tese. Mostrar o “cajado” que
me acompanha no qual me apoio na aventura de escrever e me inscrever. É o momento de
expor mais um pouco pois que o corpo da tese o faz, e muito a pesquisadora que sou
(ou que vou sendo): que questões me mobilizam e encorajam, como compreendo a ciência,
quais são as referências teóricas e metodológicas que me orientam e animam. Na esperança
que essa introdução não seja apenas um desfile protocolar de teorias com vistas a cumprir a
exigência formal de um trabalho acadêmico, prefiro pensar que vou contar uma história. A
história dessa tese e da experiência de autoria que vivi. A história de meus alicerces.
Eu sempre gostei de histórias. Sou filha de uma professora-atriz, Eny Ribeiro, que
abandonou o teatro em função de, entre outras questões, a não aceitação de sua família. Moça
de família simples e conservadora que via com olhos desconfiados o mundo do teatro, não
era coisa de uma mulher decente”, pensavam. Eny então enterrou fotos, recortes de jornal e
lembranças no fundo dos armários escuros de seu closet. Os figurinos das muitas peças de que
participou, colocou dentro de um enorme baú de madeira e deixou-o dentro de um outro
armário escuro, o do meu quarto. Eu lembro de que eram escuros os armários, como me
pareciam escuras as memórias daquele sonho do teatro que me encantava tanto. A mim me
interessava desenterrar esses sonhos. Pouco se falava sobre esse tempo do teatro, pouco se
30
falava de passagens do passado (ou pelo menos, das que eu gostaria de conhecer mais). Mas
havia brechas, em que escapavam cores no meio do breu. Uma delas, quando o baú se abria e
eu mergulhava dentro dele, com minha amiga de toda a vida, Verônica Gerchman, recriando
incontáveis mundos. Outra, quando minha mãe deixava sua veia teatral escoar nas histórias
que contava e nos trabalhos que desenvolveu como diretora de escolas públicas. Eram peças
de fantoches, festas culturais, danças, um mundo de eventos com os jovens dos subúrbios
cariocas. Eu assistia e participava de tudo aquilo, acompanhando o caminho que a arte
ocupava agora na vida de minha mãe. Uma professora-atriz, uma atriz-professora. A mim
interessa revirar baús e closets, pescando sonhos. E o fazia.
Nas histórias dramatizadas no meu quarto com Verônica, envoltas nas fantasias as
vestidas e as criadas mesmo sendo ainda uma criança, conseguia perceber a força e
potência de saúde que advinham da criação. Verônica morava com sua e e pouco convivia
com o pai. Em nossas brincadeiras, na grande maioria das vezes, era ela quem encarnava os
personagens masculinos. Lembro que reconheci um dia, pela primeira vez, as conexões entre
o que vivíamos fora daquele quarto e nossos jogos dramáticos e narrativos. Certo dia,
encantada após ter andado no novo carro esporte de seu pai, após um dos raros fins de semana
passados com ele, Verônica se sentou na cama anunciando: “Esse é o meu novo carro
esporte! Vamos passear!”. Sua expressão era de contentamento. Naquele espaço da fantasia,
da história inventada, elaborávamos desejos, sonhos, faltas e o nosso próprio crescimento.
Brincamos assim durante muitos e muitos anos. Até o momento em que nossos sonhos não
couberam mais naquele quarto e naquele baú.
De meus tempos de menina, me lembro também de prestar muita atenção nas pessoas.
No jeito que falavam, como caminhavam, suas histórias e idiossincrasias. Eu poderia passar
muito tempo as observando e notava detalhes. Diante do espelho, era comum também, com
maquiagens, perucas e fantasias, encarnar muitos personagens diferentes. Brincava com
sotaques e expressões, inventava histórias, me transformando em gentes diferentes, vivendo
outras vidas. Ainda o faço em casa, não mais para o espelho mas para divertimento de minha
família.
31
Na adolescência e nos tempos de universidade, me deliciava com a leitura dos textos
biográficos, autobiográficos e mesmo dos romances que traziam histórias de vidas e
trajetórias. “Devorava” autobiografias e biografias. Histórias como as de O Diário de Anne
Frank
1
”, Christiane F.
2
, Feliz Ano Velho
3
de Marcelo Rubens Paiva, “Com licença eu
vou à luta
4
de Eliane Maciel, Mahatma Gandhi
5
, Charles Chaplin
6
, Isadora Duncan
7
, Liv
Ulman
8
, Olga
9
de Fernando Morais, são algumas que sem esforço me vêm à lembrança e
que povoaram meu universo.
Posso lembrar detalhes que me marcaram em cada um desses livros. De Christiane F.
lembro da perplexidade em conhecer a trajetória de alguém que, com apenas 13 anos, vivia
num submundo assustador e que conseguiu, de alguma forma, sair dele. Tão distante dos 13
anos que vivi. De Eliane Maciel, tocava-me sua coragem de enfrentar uma família
conservadora em que se sentia oprimida e fazer escolhas dissonantes, para minhas crises com
as autoridades, típicas de adolescente, Eliane era uma cúmplice. De Mahatma Gandhi a
admiração por sua tenacidade em empreender uma luta pacífica. Com Charles Chaplin
surpreendi-me ao conhecer aspectos de sua origem, da mãe com problemas mentais, da
extrema pobreza, da capacidade de se recriar em meio a tanta miséria. Com Isadora Duncan a
liberdade de ser mulher, vivendo e fazendo escolhas, num tempo em que o destino das
mulheres era traçado com linhas duras e inflexíveis. De sua dança-livre uma de minhas
paixões –, de pés descalços, vestimentas leves, explorando novas possibilidades de
movimento. Mobilizava-me as experiências daqueles personagens reais, seus sofrimentos,
encruzilhadas, abismos, esperanças, valores, amores. Através da leitura e, em particular, da
leitura de textos literários, a partir do mundo transfigurado em arte”, que é a obra literária,
ia compreendendo melhor o mundo em que vivemos, o outro e a mim mesma (Ando, 2006).
1 Editora Record, 1990.
2 “Eu Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída” de Kai Hermann e Horst Rieck, Editora Bertrand, 1984.
3 Editora Brasiliense, 1982.
4 “Com licença eu vou à luta: é ilegal ser menor?”, de Eliane Maciel, Editora Codecri, 1983.
5 GANDHI, Mohandas K. Autobiografia: Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade. São Paulo: Palas Atenas, 1999.
6 “Histórias da minha vida” de Charles Chaplin, Editora José Olympio, 1965.
7 “Fragmentos autobiográficos” de Isadora Duncan, Editora L, P&M, 1985.
8 “Mutações”, Liv Ullmann, Editora Círculo do Livro, SP/ 1985.
9 Editora Alfa-Omega, 1986.
32
As histórias romanceadas também me interessavam (e ainda interessam), tais como a
trilogia
10
de Noah Gordon: “O Físico”, “Xamã” e “A escolha da Doutora Cole”. Nela
conhecemos a saga de uma família desde o século XI, em que de gerações em gerações, nasce
um membro com especial dom de cura. É fascinante acompanhar o movimento histórico, a
própria invenção da medicina desde seus primórdios, as mudanças de valores, de cenários, de
ambientes culturais. Lembro também de “Todos os homens são mortais
11
de Simone de
Beauvoir, que conta a história de um homem imortal, narrada pelo próprio personagem
ficcional em sua jornada sem fim numa vida que não tem a morte como horizonte.
Imortalidade que tem peso de danação pura e simplesnas próprias palavras de Beauvoir,
pois que o impede de compreender a efemeridade da vida.
adulta outras tantas descobertas têm me alimentando e não raro, incluo textos de
gênero biográfico em meu trabalho como professora formadora de professores.
Algumas de minhas leituras parecem até algo estranhas, “vergonhosas”
12
como nos
diz Lygia Bojunga em suas memórias de leitura, mas que revelam esse leitor que somos todos
nós, em busca se sentidos e humanidade, como que procurando cúmplices para o próprio ato
de viver. Reconheço, no entanto, que minhas escolhas foram movidas por essa curiosidade em
conhecer o outro em sua diferença. Ao aproximar-me desse estranho outro, debruço-me sobre
os sentidos que ele foi dando a sua vida, os porquês de suas escolhas, os encontros e
desencontros que viveu. Conheço um outro tempo que não vivi, partilho de sentimentos e
sentidos que não são os meus. Vou me encontrando a mim mesma nessas leituras, seja pela
absoluta ou relativa diferença, seja pelas semelhanças e convergências. Vale citar alguns
desses livros, como exercício mesmo de explicitar o que foi me afetando nessa aproximação
que os textos biográficos possibilitam.
Sem organizar de forma cronológica as leituras que desejo sublinhar, começo com
algumas das tais escolhas “embaraçosas” (como aquela revista de trivialidades que a gente,
10 Editora Rocco, 2000.
11 Editora Nova Fronteira, 1983.
12 Em suas memórias de leitura no livro “Livro” de Lygia Bojunga Nunes, a autora faz uma divertida menção a uma de suas
“paixões literárias” de juventude, das quais não tem nenhum orgulho em declarar: “(...) Um dia eu chafurdei (a palavra é bem
essa: cha-fur-dar) num caso meio vergonhoso da minha vida de leitora. É o tal caso que eu disse que ia contar o milagre, mas
não ia dar o nome do santo. Não vou nem contar se o santo é brasileiro ou não. Também não interessa. O que interessa é que
foi esse caso – bem negativo, por sinal – que me deu a fantástica dimensão dessa coisa que a gente é. A gente: nós todos aqui:
leitores (BOJUNGA NUNES in Livro, um encontro com Lygia Bojunga, 1988: 17,18).
33
por vergonha, escondido ou o misterioso autor de uma literatura sem novidade, por quem
Lygia se apaixonou). A biografia de Kelly Slater
13
, livro escolhido por minha filha quando
tinha quatorze anos, em 2007 nas férias de verão, é uma dessas. Slatter é um jovem campeão
de surf, que narra em sua biografia a infância e os vários episódios vividos em cima de uma
prancha, apresentando seus ídolos do surf, sua relação com a liberdade, o risco e buscando o
sentido que o moveu a conquistar tantos títulos nesse esporte. Passagens de uma vida passada
nas ondas, a recomendação de sua mãe é um emblema: “Quando pegávamos resfriado, em vez
de nos levar ao médico, minha mãe nos mandava surfar (SLATER, 2005,p.58)”. Li também o
livro de “Abílio Diniz
14
”, empresário brasileiro, que embora não seja exatamente uma
biografia, evoca vários aspectos pessoais. Diniz fala de sua rotina, de suas experiências
familiares, do que acredita que sejam os valores mais caros em sua vida. Aparentemente,
Abílio representa a absoluta diferença de escolhas e caminhos com relação aos meus, e isso
acende minha curiosidade. Instigava-me reconhecer no perfil daquele business-man, que
passou por experiências como a de um seqüestro, um interesse pelo movimento, pela
manutenção da saúde, aparentemente algo tão diferente da idéia pré-formada que eu tinha de
alguém que se dedicava integralmente a vida empresarial. Queria entender o sentido que
ocupava em sua vida, tão talhada pela idéia de sucesso”, essa dimensão do corpo. Convite a
olhar para além das idéias pré-concebidas e reconhecer convergências na diferença.
Assim também foi ler a autobiografia de Danuza Leão
15
, num livro em que desfilam
personalidades do campo das artes em vários cenários cariocas, sobretudo numa Copacabana
glamorousa em sua época de ouro, ou seja, aparentemente a pura familiaridade, carioca e
copacabanense que sou. No entanto, quanta diferença reconheço na forma como Danuza
traçou sua vida, viveu a maternidade e os relacionamentos. Outros tempos também de um Rio
de Janeiro que não conheci em que a rua parecia franqueada ao povo, as grandes salas de
cinema ainda não tinham sido substituídas por prédios, A confeitaria Colombo reinava na
avenida principal do bairro. Tempo de boemia e encontro social (o tempo ainda “não era
dinheiro”). Uma viagem para a vida da elite cultural carioca das décadas de 60 e 70.
13 GAIA Editora, 2005.
14 “Caminhos e escolhas” de Abílio Diniz, Editora Elsevier, 2007.
15 “Quase tudo”, Companhia das Letras, 2005.
34
Fechando o ciclo das estranhezas (serão mesmo estranhas?), o livro A semente da vitória
16
”,
do preparador físico Nuno Cobra, surgiu no meu caminho, combinando com a fase de
corredora que vivi em 2006 (uma professora e doutoranda que, entre leituras, escritas e
planejamentos de aulas, buscava na corrida não perder de vista sua corporeidade). Afora o
tom prescritivo ao estilo da literatura de “auto-ajuda”, Cobra apresenta uma visão da
preparação física interessante que ressoou em mim. Ele faz uma crítica a idéia corrente de que
o bom treinamento é aquele que implica em dor muscular e leva a exaustão. Critica também
termos como “malhar o corpo”, tão em voga na atual cultura fitness, por associar a um
maltrato. O autor ressalta a necessidade de integrar às dimensões do corpo, mente e emoção.
Sugere atenção ao próprio movimento, cuidado consigo. Os depoimentos daqueles que
treinaram com ele, dão notícias de mudanças que não se limitaram apenas ao físico, mas que
envolveram a própria autoconfiança e uma relação mais integrada com suas próprias vidas. É
curioso conhecer caminhos tão distantes dos meus e reconhecer a sua legitimidade. A
semelhança na diferença, a diferença na semelhança.
Outras leituras fisgaram-me pela sintonia maior com a minha própria vida e também
pelas temáticas ligadas aos meus interesses mais caros. Bartolomeu Campos de Queirós é um
exemplo, em suas memórias de menino no livro Por parte de Pai
17
”. Ele nos conta, dentre
outras preciosas histórias, como deixou de fazer xixi na cama. Seu avô, com quem morou
grande parte da infância, tinha o hábito de escrever nas paredes as coisas mais importantes
que aconteciam na pequena cidade mineira em que moravam. Parede viva, verdadeiro e
exótico patrimônio cultural da família. Certo dia, o avô ameaçou o menino Bartolomeu de
escrever na parede que ela ainda fazia xixi na cama. Ameaça que surtiu prontamente o efeito
desejado, revelando o estatuto de poder que a escrita ganhava na vida de Bartolomeu e a
referência fundamental daquele avô-historiador. “Eu mesmo parei de urinar na cama
quando meu avô ameaçou escrever na parede. O medo me curou. Leitura era coisa séria e
escrever mais ainda. Escrever era não apagar nunca mais. O pior é que, depois de ler,
ninguém esquece, se for coisa de interesse.” (QUEIRÓS, 1995, p.14). O artigo memorialista
16 Editora SENAC, 2005.
17 Editora RHJ, 1995.
35
de Vitória Líbia B. de Faria, Memórias de leitura e Educação Infantil
18
”, traz também a
presença da memória de infância na construção do vínculo com a leitura. Nele, Vitória narra
as delícias de uma infância passada no interior em que os serões literários congregavam
leitores de todas as idades em volta de um pai contador de histórias, forjando a leitora voraz
que ela se tornaria. Sempre havia os que não sabiam ler convencionalmente, outros que
liam fluentemente e os que liam com certa dificuldade. Essa heterogeneidade não impedia
nenhum de s de participar ativamente dos atos de leitura. O desejo de decifrar aquilo que
os livros diziam e de ser admitido no mundo da leitura misturava-se com a admiração pela
figura paterna” (Faria, 2004, p. 50). Conta também que ao entrar na escola e ter suas
experiências de leitura ignoradas, sentiu fundo o abismo entre escola e vida.
Quero ainda citar mais algumas leituras que me tocaram de modo especial. “Língua
Absolvida
19
de Elias Canetti é uma delas. Livro autobiográfico traz as memórias de infância
de Canetti, vividas na Bulgária e em outros países da Europa. Narrativa riquíssima em que o
autor rememora miudezas de suas experiências com outras culturas, com a literatura, com
outras línguas e a sua convivência com seus pais e familiares. Dentre elas, tocou-me
especialmente o vínculo de Elias-menino com seu pai, que faleceu muito jovem, com 31 anos.
O pai presenteava-o constantemente com livros. Sempre que Elias finalizava a leitura de um,
prontamente outro chegava para ocupar seu lugar. A discussão sobre as leituras era um
espaço de encontro e afeto entre pai e filho. Canetti lembra que não raras vezes dedicava-se a
ler os livros com avidez por saber que a noite viveria a delícia de poder contar a seu pai suas
impressões sobre o que lera. Troca que o alimentava e pela qual aguardava com entusiasmo.
Comentava com meu pai cada um dos livros que lia. Às vezes ficava tão excitado, que ele
tinha que me acalmar. Mas nunca me disse, à maneira dos adultos, que os contos eram
mentira; sou-lhe especialmente grato por isso; talvez ainda hoje eu os considere verdadeiros.
(...) Os livros e as conversas com meu pai sobre eles se tornaram a coisa mais importante do
mundo, para mim.” (CANETTI, 2000, p. 50-51).
18 FARIA, Vitória Líbia Barreto de. “Memórias de leitura e educação infantil”. In: JUNQUEIRA, Renata (Org.). Caminhos
para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004.
19 Editora Companhia das Letras, 2000.
36
“Retratos
20
de Roseana Kligerman Murray é também uma leitura que me tocou
especialmente, essa mais pela capacidade da singeleza de seus textos, mesclados com
imagens, de capturar meu coração a cada leitura. São páginas que misturam fotos em preto e
branco de entes queridos ladeadas por pequenos textos traduzindo impressões e sentimentos
da autora por eles. A avó em cabelos muito brancos, curtos e lisos. Pouco cabelo. A pele é
toda enrugada. Parece que está virando árvore. O corpo também é pequeno. Ela toda
parece um pássaro. (...) Os olhos pousados em coisas distantes, invisíveis navios, alguma
terra do lado de lá?” (MURRAY, 1998). Para mim, que tenho tanta curiosidade em
compreender como é mesmo então que se formam esses laços de prazer e sentido com a
cultura, especialmente com a leitura e a escrita, reafirmei com Vitória Líbia e os serões
literários, com Bartolomeu de Queirós e as paredes de seu avô, com Elias Canetti e as
conversas com seu pai e com os delicados poemas amorosos de Roseana Murray, dentre
outros, as interconexões entre conhecimento, literatura e vínculo afetivo. Pista importante
para pensar a formação do leitor e do escritor
21
, tema de meu profundo interesse.
Sem me demorar nos detalhes, que de tão gostosos me convidam a entrega, o posso
deixar de mencionar outros livros e autores, que por motivos semelhantes e outros mais,
muito me agradaram. Como e por que ler os clássicos
22
de Ana Maria Machado,
Infância
23
de Graciliano Ramos, Felicidade Clandestina
24
de Clarice Lispector, Quase
20 Retratos, editora Minguilim, 1998.
21 A esse respeito vale citar o livro “Teia de autores” de Pedro Benjamin e Tânia Dauster, da editora Autêntica, 2001, fruto
de pesquisa sobre a formação do escritor. Os autores entrevistaram vários escritores de literatura perguntando sobre as
influências que consideravam mais marcantes para que se tornassem leitores e escritores. Impressiona saber da quase
inexistente referência à escola como uma influência. De modo geral, surge sempre a figura de um familiar ou algum amigo
especial. Sobre a formação do leitor produzi em co-autoria com Adriana Hoffman o artigo “Formação de professores leitores
em um projeto de extensão universitária no curso de Pedagogia: um relato de experiência”, nele discutimos a formação de
professores numa perspectiva cultural, defendendo que para ser um formador de leitores uma das tarefas do docente
que se amar a literatura, como ensinar a gostar daquilo que não se gosta? Esse artigo foi publicado na Revista Educere et
Educare vol. 2 N. 3 jan./jun. 2007.
22 Ana Maria Machado defende que os clássicos são na verdade os livros de que não nos esquecemos. Comenta vários de
seus clássicos e discute as relações entre formação de leitores e a escolha literária adequada à infância. Editora Objetiva,
2002.
23 Nesse livro, Graciliano narra experiências de uma infância muito peculiar. Nela a leitura é introduzida com dureza, parte
de uma educação marcada por extrema rigidez. Editora Record, 1995.
24 Clarice é Clarice, “irresumível” (se tal palavra existisse...). É uma experiência sensorial ler Clarice. Nesse livro, destaco
“Menino a bico de pena”, que narra com delicadeza e sensibilidade o mundo de experiências de um menino-bebê. Esse já tive
a oportunidade de ler em cursos de professores de creche e rendeu boas discussões sobre esse universo tão misterioso e
interessante que é o homem no começo de sua vida. Editora Rocco, 2000.
37
memória
25
” de Carlos Heitor Cony, “Meus demônios
26
” de Edgar Morin. Todos os livros que,
de diversas formas, resgatavam memórias de diferentes períodos da vida, ensinando-me a
viver
27
.
Preciso ainda citar uma paixão antiga, que se renova sempre. A literatura para
crianças. Como Ana Maria Machado, Ricardo de Azevedo e Bartolomeu Campos de
Queirós
28
, de certo modo também estranho essa categoria “literatura infantil”, por isso utilizo
a nomenclatura literatura para crianças. O complemento “infantil” pode fazer pensar numa
literatura menor o que, efetivamente, ela não o é. Mas ainda assim, acredito que uma
especificidade temática e uma forma estilística que é afeita ao universo da infância e que
muitos adultos - sorte a deles -, conseguem encontrar nessa forma um sentido especial, se
tornando leitores desse tipo de literatura. Posso dizer que sou um desses adultos de sorte.
Dentre esse universo da produção literária para crianças, que tem crescido cada vez
mais, quero destacar a que para mim é a escritora maior, a premiadíssima Lygia Bojunga
Nunes
29
. Lygia é a primeira escritora brasileira que traz em seu universo literário o mundo
interno da criança, encontrando uma forma toda própria de traduzir os sentimentos infantis.
Na literatura de Lygia, a infância não é mitificada, não é idealizada como momento de puro
encantamento, de alegria e felicidade. Ela traz uma infância que sofre, que tem solidão, que
vive perdas, que lida com a morte, com a separação, com o medo. Raquel, a menina da Bolsa
Amarela, foi um dos primeiros personagens que conheci, ela revela bem essa criança de
Lygia:
“Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os
nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu
25 Cony as voltas com um pacote que lhe chega de seu falecido pai, revê histórias e sentimentos relativos a seu pai. Um
convite a emoção. Editora Companhia das Letras, 1994.
26 Editora Bertrand Brasil, 1997. Morin conta aqui os caminhos que trilhou durante um bom período de sua vida intelectual,
relatando o vínculo com o conhecimento e os estudos que desenvolveu.
27 Não resisti a referência. “Harold e Maude: Ensina-me a viver” livro de Colin Higgins (editora Record, 1986) foi uma
leitura que marcou meu tempo de adolescente. A história de amor entre um conturbado e lúgubre jovem, obcecado pela morte
e uma vivaz mulher septuagenária realçava a capacidade de se encantar e se usufruir da vida. Essa história rendeu uma bela
versão cinematográfica dirigida por Hal Ashby em 1972 e uma montagem teatral brasileira em 1982 com a dama do teatro
Henriette Morrineau e o então desconhecido Diogo Vilela. Eu vi o filme e a peça!
28 Participei dos dois penúltimos Congressos de Leitura (COLE) em 2003 e 2005 e tive a oportunidade de ouvir Ricardo
Azevedo e suas impressões sobre a literatura para crianças. Ana Maria Machado e Bartolomeu também abordam a questão da
especificidade da literatura infantil em diversos artigos que li em revistas especializadas.
29 pouco mais de dois anos Lygia criou a editora Casa Lygia Bojunga para editar exclusivamente seus livros, passando a
ter o controle maior de sua própria obra. O site www.casalygiabojunga.com.br merece uma visita, pois aborda todos os seus
livros, projetos, sonhos e prêmios.
38
deixei vazio, esperando uma coisa bem magra para esconder lá dentro. (...)
Abri um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro
zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso
de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava muito grande,
foi um custo pro botão fechar). Pronto! a arrumação tinha ficado legal.
Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara
delas.” (A Bolsa Amarela, editora Casa Lygia Bojunga, 2006)
Seus livros sempre me causaram um impacto profundo. Em outubro de 2006, em uma
das poucas oportunidades em que Lygia, tímida para falar em público, recebeu em uma
biblioteca um grupo de crianças para conversar sobre um de seus livros, eu estava lá. Vivemos
um momento inesquecível. Eu, do alto de meus mais de trinta anos, estava a sua frente,
esperando calmamente numa fila repleta de crianças a minha vez de receber um autógrafo.
Quando enfim, me vi diante dela, os olhos marejaram e mostrei a minha coleção completa de
suas obras, muitas amarelecidas com o tempo. Confessei que sempre que encontrava seus
livros em sebos, resgatava-os. Impossível deixá-los na poeira, sem ninguém para lê-los.
Não sei que mágica se deu, mas o dom da palavra se fez e consegui dizer a Lygia o que ela
significava para mim, como eu tinha vivido tão perto daqueles personagens todos que ela
havia criado, como os sentia meus amigos. Pensei... bom, ou ela vai me achar uma daquelas
clássicas “fãs loucas” de filme ou eu consegui mostrar a ela um pouco da força que sua obra
tem de alcançar o outro. Lygia, também com os olhos embaçados me disse: É tão estranho
conhecer alguém que conhece tanto a gente...”, com um sorriso e sem muitas palavras
faladas, usou as escritas, terreno onde transita tão bem e fez uma dedicatória especial em cada
um dos mais de 8 livros que levei. Eis uma delas: “Adrianne, fiquei emocionada de me saber
tão presente na tua vida. Gostaria muito de continuar freqüentando teus momentos de
quietude”. Que delícia! Lygia sempre foi para mim livro-casa, para me referir ao belo texto
“Livro” em que ela aborda sua relação com os livros e as palavras:
Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram
casa e comida.
Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede,
deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia
telhado.
E quando a casinha ficava pronta eu me espremia dentro pra brincar de
morar em livro.
De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes).
Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente
ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir
39
novas casas. por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha
imaginação.
Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda
cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-
céu, era só escolher e pronto, o livro me dava.
Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que – no
meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida; quanto mais eu
buscava no livro, mais ele me dava.
Mas, como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de
alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra em algum lugar uma criança
juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar. (Livro, um encontro
com Lygia Bojunga Nunes, 1988)
Bom, estarei eu já me perdendo em meio as histórias? Creio que não. Pois não é justo
de histórias que quero falar?! Das histórias que nos formam, que nos interpenetram e dos
rumos que tomamos em nossas trajetórias pessoais?! Afinal, não é a narrativa a arte
primordial dos seres humanos e, para sermos, não temos que nos narrar?! (MONTERO,
2004)
Perdas, desafios, amores, rompimentos, acontecimentos... todo o caldo de
experiências que eram retratadas nesses livros que mencionei me motivavam e instigavam. O
que me ensinaram/ensinam? Sempre me instigou o que temos de parecido, nós humanos,
todos, o que aprendemos e trocamos com nossas semelhanças; e o que temos de diferente,
singular, cujo sentido nos parece tão pessoal, tão único, tão nosso.
Talvez essa tenha sido a força motriz que sempre me fez olhar com tanta curiosidade
os trajetos do outro, descritos em livros, filmes, músicas e outras narrativas. Talvez tenha sido
esse o sentido, agora me referindo especialmente aos caminhos da produção dessa tese, que
me mantinha escutando com vivo interesse durante tantas horas as histórias de meus
entrevistados, num tempo sem tempo, sem relógio, sem pressa.
Singularidades, coletividades marcam nossas trajetórias. As influências que nos
formam não são matemáticas, isto é, não basta que se junte uma família assim, com umas
tantas experiências assadas que teremos, certamente, um sujeito dessa ou daquela forma. Há
mistérios nessa composição que instigam a curiosidade. Talvez só possamos falar desse
40
mistério, que é como nos humanizamos, se contarmos com a idéia da complexidade
30
(MORIN) para nos acompanhar nessa empreitada. Se integrarmos a subjetividade como
substrato para nossas interpretações, se tomarmos o erro, a margem de dúvida, o inesperado
como companheiros de trabalho. A dimensão objetiva não fica de fora, importante lembrar.
Ela nos traz dimensões mais amplas, que dizem respeito às pressões de ordem social, política,
econômica e cultural que se mesclam no que nos compõe. Mas essa não é uma leitura
suficiente. Não conta. Não esgota o mistério (que não é esgotável). É então esse olhar que
admite a complexidade do real, a dimensão subjetiva como parte dos fenômenos, um de meus
alicerces. Nesse sentido, introduz-se aqui uma concepção de ciência que incorpora o
complexo, o subjetivo, o erro, o imponderável. Leva-nos a um entendimento do mundo que,
mais do que controlado, precisa ser compreendido, contemplado, como nos diz Santos:
“A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como
limitação técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave
do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser
contemplado. (...) A criação científica no paradigma emergente assume-se
como próxima da criação literária ou artística... “ (Santos, 1987)
Nesse ponto, outras histórias são convidadas a entrar. As histórias de como alguns dos
estudos fundamentais para essa tese entraram na minha vida, ou melhor, como nos
encontramos. Estudos como os da complexidade, da memória, da mestria na formação do
professor, da pesquisa (auto)biográfica e narrativa, dentre outros. Penso que nossa relação
30 Apesar de de página, o conceito de complexidade é central em minha tese. Escolho, nesse momento, colocá-lo aqui
apenas para não romper o fluxo da narrativa. Mais a frente ainda o retomarei com maior destaque. O conceito de
complexidade com o qual trabalho referencia-se na obra de Edgar Morin. O debate sobre a complexidade é algo
razoavelmente recente no cenário da filosofia e das ciências, traz uma dimensão de ciência que se contrapõe a hegemonia que
a racionalidade vem ocupando desde a modernidade. Morin traz o sentido de abertura que tal conceito evoca, colocando a
luz sobre outros aspectos, esquecidos pela racionalidade clássica, sem com isso desqualificá-la. Aponta para a insuficiência
da lógica racional e abre novas perspectivas que nos permitem ampliar o entendimento dos fenômenos humanos. A
complexidade e em cheque os “pilares da certeza” que fundamentam o pensamento científico clássico, de cujos
pressupostos decorre o pensamento simplificador. Tal pensamento concebe objetos simples que obedecem a leis gerais,
que produz um saber anônimo, que não inclui o contexto e todo o complexo, ignora o singular, o concreto, a existência, o
sujeito, a afetividade, os desejos, as finalidades, a consciência. O ser humano, a vida, os cosmos são submetidos às leis
deterministas triviais, em que é possível prever os efeitos de qualquer causa conhecida. O conhecimento é controlável,
esquadrinhável, obediente às regras e leis ordenadas. É nas brechas da crise do pensamento simplificador que a complexidade
se funda. Segundo Morin, a complexidade é antes de tudo um “esforço para conceber o desafio inevitável que o real lança ao
nosso espírito”. Ela pretende não se constituir como alternativa a perspectiva simplificadora do conhecimento, mas sim,
compreender o real numa dimensão mais ampliada, reconhecendo nele aquilo que não se comporta nas definições
simplificadoras. (MORIN, 1982, GUEDES, 2001)
41
com os conceitos e teorias passam por essa dimensão do encontro. É Lopes
31
quem me ajuda
a melhor traduzir essa idéia:
“Achei anotado em mim – quando? – em um livro de Nietzche: o que nos faz
aproximar de um autor ou de autores, e não aproximar de outro, o está
nele, mas em nós mesmos. Essa aproximação, porém, tem um lado perverso.
É alguma coisa em latência e inominável que nos aproxima. Ao chegarmos
nele, encontramos a expressão daquilo que se queria dizer, mas nesse ponto
não podemos mais dizer, pois esse outro já disse, ele já o fez. (...)
Achamos em nós mesmos a verdade do que ouvimos e que não sabíamos que
lá estava, de sorte que somos levados a amar aquele que no-la fez ouvir; pois
ele não nos mostrou seus bens, mas os nossos” (LOPES, 2003, p.11)
“(...) Os livros e autores são mais do que ferramentas de trabalho. Parecem-
se com incenso, que perfuma e perfumando faz companhia. (...) Bourdieu diz
que Quem procura acha”. Mais afeita ao Tao, diria que não procuro. Acho.
(LOPES, op.cit, p. 11)
Assim foi com os livros que citei e com os estudos que subsidiaram essa tese. Meus
alicerces. Referências que perfumaram e fizeram companhia, assim como Lopes recebi
transfusão de signos, de palavras, de frases...
A, mencionada, teoria da complexidade foi um deles. Edgar Morin e os estudos da
complexidade entraram em minha vida em 1999 aproximadamente, quando uma de minhas
professoras do curso de pós-graduação que fiz na UNRIO
32
, apresentou-nos o autor. Na
época, soube que Morin era estudado por alguns professores do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Fui então participar de um
encontro voltado aos candidatos para a pós-graduação daquele ano. Assistindo a apresentação
das linhas de pesquisa do referido programa, escutei a professora Iduina Mont’Alverne
Chaves apresentar seu trabalho e mencionar Morin com uma referência importante para ela.
Após trocarmos algumas palavras, decidi naquele momento me candidatar ao Mestrado sob
sua orientação. Ai começou uma intensa história de criação entre nós, Iduina e eu, permeada
por troca, afeto, instigação, alegria. E também por necessários momentos de desencontro,
31 A introdução de seu livro “Da sagrada missão pedagógica”foi uma leitura que me entusiasmou dado o seu tom literário e
narrativo, quebrando com os cânones acadêmicos tradicionais. Foi um incentivo a firmar-me na convicção que é possível
escrever de forma narrativa sem perder o rigor científico.
32 Formação em Docentes do Nível superior.
42
estranhamento e dúvida. Mas sempre, sempre sustentados por um amor, confiança e
admiração mútuos.
Foi com Iduina a meu lado que mergulhei nos estudos da complexidade. Para mim,
eles abriam a possibilidade de compreender a pesquisa científica numa dimensão ampliada
que critica a razão produtivista e a racionalização modernas que lidam com categorias
redutoras da totalidade. O paradigma da complexidade busca a integração entre o diverso,
compreende o saber como unificado, apontando para a perspectiva de comunicação e
imbricação entre os diversos saberes. Valoriza aspectos como a singularidade, o entorno, o
cotidiano, o vivido, o pessoal, a ambigüidade, dentre outros.
uma busca, na perspectiva da complexidade, de restaurar a totalidade do sujeito,
compreendendo as relações entre os diferentes aspectos que, por vezes, são ambíguos,
concorrentes, contraditórios na vida humana. A criatividade é valorizada, a subjetividade, a
iniciativa, o micro, a complementaridade, a convergência. Desta forma, mais do que tentar
superar os elementos que fazem parte da complexidade da vida e do real (como no paradigma
clássico), esse paradigma busca compreender a vida em sua inteireza. Numa visão holística,
considera o imaginário e a utopia como fatores instituintes na sociedade, recusando uma
ordem que aniquila a paixão, o desejo, o olhar, a escuta. Se essas categorias não são novas no
campo educacional, apenas recentemente tem sido lidas e analisadas com maior abertura e
simpatia (MORIN, 1998,1999, 2000; MONT’ALVERNE CHAVES, 1998, 1999, 2000;
GUEDES, 2000, 2002).
O pensamento complexo contribui para pensar a complexidade como um dado da
realidade, o real em seu processo permanente de transformação, de criação e recriação,
construção e reconstrução, na contramão de uma visão dualista, que divide a realidade entre
verdade/mentira, certo/errado, bom/mau.
Esse tem sido um alicerce fundamental em minhas pesquisas desde o mestrado. Um
belo encontro em que ressoou forte a compreensão de uma ciência que valoriza o singular, o
micro, a emoção, a arte. Que não parcelariza a realidade para compreendê-la, mas reconhece a
necessidade de considerar os fenômenos em conjunto.
A escolha pelo tema de minha pesquisa de doutorado nasceu das questões evocadas
em minha dissertação de mestrado, "Cultura e ideário pedagógico do Curso de Pedagogia
UFF/ Niterói", orientada pela professora Iduina Mont’Alverne Chaves e concluída em 2002.
Pesquisando a formação de professores do curso de Pedagogia da referida universidade,
entrevistei muitos estudantes sobre suas impressões a respeito da Formação que viviam na
43
UFF, tanto os que estavam cursando os primeiros períodos, quanto os que estavam concluindo
ou próximos de concluir o curso.
Um dos aspectos que me chamou atenção nos depoimentos dos estudantes tinha a ver
com o papel do mestre em suas trajetórias. Alguns faziam referência a contribuição especial
de um ou outro professor que havia despertado especial interesse por algum assunto ou
fortalecido sua autoconfiança. Esse é na verdade um assunto que sempre mobilizou minha
curiosidade e interesse e que se acirrou naquele momento. O que faz com que alguns
professores marquem de forma tão especial e outros não? Como nos tornamos “bons
professores”? E o que é, afinal, ser um bom professor? Filmes
33
, livros
34
, histórias sobre
mestres que impactavam seus estudantes sempre contaram com minha audiência interessada e
sensível.
Nesse sentido, mais recentemente, a leitura de “O mestre ignorante, cinco lições sobre
a emancipação intelectual” de Jacques Rancière e “Professores para quê? Para uma Pedagogia
33 “Escritores da Liberdade” dirigido por Richard La Gravenese e lançado em 2007 é um desses filmes que me tocaram de
modo especial. Baseado em fatos reais, narra a trajetória de uma professora de Inglês que vive sua primeira experiência como
docente numa escola dos subúrbios americanos. A ela é destinada uma turma de “integração”, que bem as moldes brasileiros,
de integrada tem mesmo o nome. A hostilidade entre os diferentes grupos é explícita. A professora encontra um ponto de
acesso aos seus alunos, dando voz à eles que contando suas próprias histórias, e ouvindo as dos outros, descobrem o poder
da tolerância e reconhecem-se em meio às supostas diferenças. Outros como “A sociedade dos poetas mortos”de Peter Weil,
(EUA, 1989), “Ao mestre com carinho” de James Clawel (EUA, 1967), “A escola da vida” de Willian Dear (EUA, 2005),
“Quando tudo começa” de Bartrand Tavernier (França, 1999), “Nenhum a menos” de Zhang Yimou (China, 1998), “O
carteiro e o poeta” dirigido por Michael Radford em 1994 e “Música do Coração” de Wes Craven (1999) são alguns de meus
cult movies queridos que narram experiências de professores. Muitos deles utilizei em meus cursos de graduação, pós-
graduação e formação continuada, sempre rendendo excelentes debates e reflexões.
34 Muitos desses livros conheci por ocasião de minha pós-graduação na UNIRIO,mestrado e doutorado na UFF. Para citar
apenas alguns dos livros que abordam o papel do professor e pesquisam sua prática que tive a oportunidade de conhecer
melhor, destaco “O bom professor e sua prática” de Maria Isabel Cunha (Papirus, 1989) onde a autora procura desvendar o
que seria o “bom professor”, investigando seu cotidiano, sua prática e metodologia. “Cartografias do trabalho docente”
organizado por Corinta Geraldi, Dario Fiorentini e Elisabete Pereira (Mercado das Letras, 1998) apresenta uma coletânea de
artigos que discutem a prática dos professores, tomando-a como objeto de pesquisa. O livro “Da figura do Mestre” de
Marlene Dozol (editora da Universidade de São Paulo, 2003) em que a autora explora as categorias filosóficas valiosas à
compreensão do tema, selecionando autoridade, formação e sedução como formas de ver a interação entre mestre e aluno.
“Ofício de Mestre” de Miguel Arroyo (editora Vozes, 2000) em que o autor resgata imagens sobre o ofício do mestre. “O
lugar social do professor” (ed. Quartet, 1998) e “O professor invisível: imaginário, trabalho docente e vocação” (Ed. Quartet,
2003) ambos de Rodolfo Pereira. O primeiro pesquisa a desvalorização atual do magistério, buscando suas origens e o
segundo resgata a idéia de vocação, buscando confrontar o preconceito que ela provoca. “Meu professor inesquecível”
organizado por Fanny Abramovich (ed. Gente, 1997) que traz depoimentos de onze escritores contemporâneos sobre seus
professores inesquecíveis. “Da sagrada missão pedagógica”, de Eliane Marta Teixeira Lopes (ed. São Francisco, 2003),
resultado de uma extensa pesquisa da autora em diversos materiais (livros, jornais, panfletos) com vistas a compreender
como a idéia da missão de mestre tem sido transmitida e, por fim, ‘O mestre ignorante, cinco lições sobre a emancipação
intelectual” de Jacques Ranciére (ed. Autêntica, 2005) que aborda a tarefa singular da emancipação intelectual como um dos
desafios da mestria e “Professores para quê?” de Georges Gusdorf da e editora Martins Fontes, 2003. Autores como Tardiff,
Nóvoa, Catani, Gusdorf, dentre outros, exploram também aspectos relativos ao ser professor e a sua prática e são preciosas
referências para mim. Leituras que me instigam.
44
da pedagogia” de Georges Gusdorf, tem sido referências instigantes para pensar o papel do
mestre e os aspectos que conferem mestria a alguém. Mobiliza-me a idéia central das obras
desses autores que indica a promoção da autonomia intelectual do “discípulo” como uma das
tarefas do verdadeiro mestre.
Estudar no doutorado a trajetória de uma professora nos pareceu, a mim e a minha
orientadora, um caminho rico para explorar, dentre outras questões, esse papel do mestre.
Inicialmente, essa era uma questão nuclear. Escolhemos então para nosso estudo a obra/vida
da professora Célia Linhares, pela significativa contribuição que tem dado à educação
brasileira, sobretudo no campo das políticas públicas para formação de professores, tema
ligado ao campo de confluência ao qual pertencemos na UFF (Políticas Públicas, Movimentos
Instituintes e Educação). Era também um critério importante para a escolha da professora a
ser pesquisada, que ela tivesse uma expressiva obra escrita. Queríamos trabalhar com a
possibilidade de pesquisarmos seus textos, sua história profissional e sua prática pedagógica,
utilizando a pesquisa narrativa e entrevistas semi-estruturadas.
Este estudo buscou, assim, compreender as marcas significativas do pensamento
educacional/pedagógico de Célia Linhares, especialmente, através do estudo de sua produção
escrita com vistas a apreender as idéias força, a forma como elas foram se construindo e se
constituindo ao longo do tempo, a presença das questões que circulavam nos diferentes
tempos históricos vividos por ela, e a potencialidade de seu estilo de escrita. Selecionamos os
textos produzidos desde a década de 60 até os dias de hoje, entrevistas com Célia Linhares e
algumas pessoas que fizeram parte de sua trajetória, seus pares, como chamamos. Esses
materiais foram fontes preciosas para apreensão de seu ideário pedagógico.
Em 2006 fiz o primeiro grupo de entrevistas mais curtas com orientandos e ex-
orientandos de Célia e duas entrevistas longas com ela própria. Estava então preparando
minha qualificação e esse foi um primeiro material de pesquisa de campo que reuni.
Posteriormente, em 2007, realizei mais duas entrevistas semi-estruturadas longas com Célia
Linhares, José Linhares e nove com outros de seus parceiros. Além dessas entrevistas,
mantive contato freqüente com Célia Linhares via e-mail, e com alguns dos entrevistados,
expondo dúvidas e solicitando a eles que esclarecessem alguns aspectos de seu pensamento
e/ou de suas experiências que eu necessitava compreender melhor. Foi também intenso o
envio de materiais para leitura por parte de Célia, enriquecendo a investigação bibliográfica.
Ao iniciar a pesquisa, lembro que outras questões de estudo e interesse foram
surgindo e o papel do mestre, que era central, foi se integrando a outros aspectos que se
manifestaram com força evidente. Uma temática que surgiu, em função dos elementos do
45
campo que traçamos, foi a da Memória. Passagens de um longo tempo passado foram
rememoradas pelos entrevistados. Pareceu-nos, assim, oportuna a necessidade de
revisitar/aprofundar meus estudos a respeito do assunto.
Ecléa Bosi foi então uma parceira importante nesse momento. Em seus instigantes
livros “Memória e sociedade
35
e “O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia social
36
travei contato com seus estudos da memória e com sua visão de uma História que inclui
aspectos do comportamento, do quotidiano. Para Bosi, a história tradicional, a que
estudamos na escola” (2004, p. 13) não aborda o passado recente e faz parecer aos estudantes
que ela é uma sucessão unilinear de lutas de classes ou de tomadas de poder por diferentes
forças. Fica fora dessa história etapista e linear, como se fosse de menor importância, os
aspectos do quotidiano, os microcomportamentos, fundamentais para Psicologia Social. Bosi
resgata tais aspectos, compreendendo que eles traduzem muito de um tempo vivido,
ampliando nosso conhecimento a respeito dos valores, da cultura, dos sentidos próprios de
diferentes momentos históricos. Considera que a memória oral é um instrumento precioso
para construirmos a crônica do quotidiano afirmando que:
A história que se apóia unicamente em documentos oficiais, não pode dar
conta das paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. A
literatura conhece esta prática pelo menos desde o Romantismo: Victor
Hugo faz surgir Notre Dame de Paris num quadro popular medieval que a
história oficial havia desprezado. (Bosi, 2004, p. 15)
A autora afirma também que “Do vínculo com o passado se extrai a força para a
formação da identidade (p. 16) e ainda “Quando se trata de história recente, feliz o
pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e reconstituir comportamentos e
sensibilidades de uma época!” (p. 16-17). Idéias que fortaleceram minha confiança na escolha
dos caminhos de minha pesquisa de campo, reconhecendo na possibilidade de ter de Célia
Linhares, vivos testemunhos de sua trajetória no mundo da educação.
Interessava-me compreender como a memória se constitui. Expressariam o passado tal
como ele foi ou, de outro modo, ao lembrarmos, recriamos o passado a partir do que somos no
35 Companhia das letras, 2003.
36 Ateliê editorial, 2004.
46
presente? Porque algumas coisas são lembradas, outras esquecidas? Eram questionamentos
que guiaram meus estudos e curiosidades sobre o tema. Com o próprio ato de rememorar,
vamos reconstituindo sentidos à luz de um tempo vivido, que os atualiza e recria, a partir de
novas relações entre fatos e vivências, esquecendo algumas passagens da própria história,
lembrando mais vivamente de outras, como nos diz Bosi (2003). A autora, em sua pesquisa
sobre as lembranças de velhos, relata a alegria de alguns dos entrevistados com a
oportunidade de relembrar a própria trajetória, narrando a vida para um escutador atento e
interessado. Alguns depoimentos citados por Bosi ilustram esse sentimento: Vejo, hoje a
minha voz está mais forte que ontem, não me canso a todo instante. Parece que estou
rejuvenescendo enquanto recordo (Sr. Ariosto), Agradeço por estar recordando e
burilando meu espírito(Dna. Risoleta) (Bosi, 2003, p. 38). Como que se o próprio ato de
narrar a vida reavivasse o sentido da mesma para cada um dos entrevistados, tarefa de auto-
aperfeiçoamento, uma reconquista. Os depoimentos recolhidos por Bosi assinalam o direito a
narrar a própria vida como algo que permite uma reafirmação de valor da história pessoal. A
escuta atenta do pesquisador funcionando com um espelho, fortalecedor do reflexo positivo da
própria existência. Célia, em suas reflexões sobre a memória, afirma algo que ressoa com as
pesquisas de Bosi.
Partindo dos lugares empoeirados onde a escola, com freqüência, tem depositado uma
versão da memória, como um equipamento reprodutor, Célia interroga o que queremos
construir, conquistar, quando reelaboramos o discurso da memória escolar.
“Na trajetória milenar desta palavra, vamos encontrá-la como alimento da
poesia e da própria verdade. Na Grécia arcaica, a memória em que apoiavam
os poetas fornecia-lhe uma vidência de tal ordem divinizada, que por si
mesma estava dotada de uma eficácia capaz de instalar um mundo
simbólico-religioso identificado com o próprio real. O aedo sabia o futuro
porque tinha acesso ao passado. Tão ligada estava a memória a um
movimento de criação coletiva que para Homero versejar era lembrar que ele
fazia relatando a epopéia do seu povo e reafirmando seu projeto de polis
como dignidade épica. Platão
37
, em suas recorrentes discussões sobre a
retórica, a persuasão e o conhecimento, invocou a palavra de Sócrates para
37 PLATÃO, FEDRO, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, p121.
47
estremecer o prestígio, como que era tratado o alfabeto com suas
possibilidades de escrita.”
38
A memória, ao ser escutada, é desalienadora afirma Bosi (op.cit.)
pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a figura do
consumidor atual. Perspectiva que aponta para a função social da memória e o enriquecimento
possível, para as novas gerações, do partilhamento de memórias, em que saberes diversos se
comunicam.
A autora ressalta, ainda, que a memória é um cabedal infinito do qual registramos
um fragmento. Era freqüente no contato com seus entrevistados, que as mais vivas
recordações aflorassem depois da entrevista, na hora do cafezinho, na escada, no jardim, ou
na despedida da entrevistadora. A lembrança puxava mais lembranças e seria preciso um
escutador infinito...
“(...) Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são
lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais
nós estivemos envolvidos, e com objetos que nós vimos. É porque, em
realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam
lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e
em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem." (BOSI, 2003)
Em seus estudos, Bosi destaca, em especial as enunciações de Halbwachs que
identifica os quadros sociais da memória, retirando o foco adstrito ao mundo da pessoa e
ampliando para a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo
depende de suas relações com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com
a profissão, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo.
A autora chama atenção para a afirmação de Halbwachs sobre o apoio da memória
autobiográfica na memória histórica, ressaltando que toda história de nossa vida faz parte da
história geral.
As situações que vivemos e as outras pessoas afetam, provocam, impulsionam nossa
memória. Cada memória individual é assim um ponto de vista sobre a memória coletiva, que
38 LINHARES, Célia. A Escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio de Janeiro, Editora Agir, 1997, ed.
P.120/121 .
48
muda conforme o lugar que ocupamos e as relações que mantemos com outros meios.
Lembrar, sublinha Bosi, não é de fato reviver uma memória conservada, intacta, pelo
contrário, lembrar é ato de refazer, reconstruir, repensar, com as imagens e idéias de hoje, as
experiências do passado.
Portanto, o passado “tal como foi” na verdade não existiria, pois ao lançarmos um
olhar atualizado para o vivido, ressignificamos as experiências à luz do presente, de quem
somos hoje, de todo o cabedal de vivências que se seguiram à que teve curso no passado. Os
materiais que estão agora à disposição no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual, afetam as lembranças, a reconstroem. Não somos os mesmos de ontem,
nossas idéias, percepções, valores alteraram-se, e com isso, nossa organização do vivido
também é afetada. Assim a memória da pessoa está intrinsecamente ligada à memória do
grupo, e esta última à esfera maior da tradição (BOSI, 2003).
A linguagem seria o instrumento socializador da memória, afirma Bosi, aproximando
no mesmo espaço histórico e cultural a imagem lembrada e as imagens da vigília atual. As
categorias que a linguagem atualiza acompanham nossa vida psíquica tanto na vigília quanto
no sonho. As convenções verbais produzidas em sociedade constituem o quadro ao mesmo
tempo mais elementar e mais estável da memória coletiva. Os estudos sobre a memória,
apontam, para Bosi, a biografia e a autobiografia como possíveis caminhos metodológicos
para se conhecer a forma predominante de memória de um dado indivíduo. A narração da
própria vida é, segundo a autora, o testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de
lembrar, é a sua memória.
O que temos, portanto é a impossibilidade de reviver o passado tal e qual. Lembrar o
que vivemos na infância, por exemplo, é uma reconstrução que sofre influências múltiplas,
dentre elas o que ouvimos os outros dizerem sobre nossas lembranças. O passado sofre uma
“desfiguração” ao ser reconstruído, ao ser manejado pelas idéias e pelos ideais presentes de
quem rememora. Isso sublinha o caráter não só pessoal, mas familiar, grupal, social, da
memória.
Novamente reencontro aproximações entre o pensamento de Célia e de Bosi, quando
uma e outra recusam aprisionar a memória em esquemas positivistas e massificadores.
“A memória com que Benjamin trabalha e que nós valorizamos, se constitui
de um tecido fagulhante, as reminiscências, ‘que relampejam nos momentos
de pergio.” (Célia, entrevista, 2007)
49
Portanto, Célia evoca a forma com que a memória se faz presente, sempre em
movimentos afetados pela vida e carregados de assombros e de surpresas. Essa também é
uma marca trazida por Bosi em seus estudos sobre a memória e que diz respeito à forma como
a recordação aflora e suas conexões com o ponto de vista cultural e ideológico do grupo em
que o sujeito está inserido. No filme “Quem somos nós”
39
, um dos cientistas que comenta
questões sobre a física quântica, traz uma lenda que ilustra bem tal conceito sobre o modo
como recordamos: “Os povos indígenas da América do Sul provavelmente não viam as
caravelas dos colonizadores se aproximando, pois aquele tipo de embarcação não fazia parte
de nada que eles conhecessem. Assim, eles não tinham o conceito da coisa que possibilitasse
o reconhecimento das caravelas. Foi preciso que um xamã, intrigado com o movimento
inquieto do mar, se pusesse a contemplar o oceano até, enfim, conseguir enxergar as
embarcações”. De fato, essa lenda nos aponta para o fato de que para compreendermos uma
dada realidade, é necessário que ela, de alguma forma, repercuta em conhecimentos prévios/
convenções que construímos em nossa história.
Com relação à memória, dessa forma a questão da convencionalização nos leva a
considerar também a relação existente entre o ato de lembrar e o relevo existencial e social do
fato recordado para o sujeito que recorda. O que é lembrado estaria condicionado pelo
interesse social que o fato tem para o sujeito.
Das contribuições de Bosi em seus estudos sobre a memória o que podemos destacar
como mais relevante para esta pesquisa, é a idéia da inerência da vida atual ao processo de
reconstrução do passado, bem como as relações entre memória, formação cultural e vínculos
grupais e sociais. Somos marcados pela história e nossa memória está entranhada pela
cultura, pela tradição, pelas ideologias dos diferentes momentos históricos de que
participamos. Reconheço, assim, o aspecto social da memória, que ela é construída na
articulação entre aspectos individuais e sociais, que se modifica à medida que as experiências
do indivíduo se ampliam, de certo modo, remodelando-as. A partir dos princípios sobre
memória essa pesquisa se conduziu.
39 Direção de William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente e
Roteiro de William Arntz, Betsy Chasse e Matthew Hoffman.
50
Para mim, tais conceitos se materializaram muito claramente, não apenas ao
acompanhar o rememorar de meus entrevistados mas em mim mesma, a medida em que fui
mergulhando nas memórias dos outros a respeito de tempos e experiências que conhecia de
forma distante. Não raro, os próprios entrevistados surpreendiam-se com a emoção que o
rememorar provocava neles, bem como com a força com que lembranças que pareciam tão
distantes no tempo surgiam. A situação que vivi com uma de nossas entrevistadas, Dorothy
Pritchard, exemplifica muito bem essa questão. Ela começou nossa conversa desconfiando de
sua própria memória, sou pessoa de pouca memória”, dizia. No entanto, a quantidade de
detalhes que foram sendo descortinados, e a vivacidade com que ela me relatava os mesmos,
expressavam que, mais do que um relato factual, ela vivia por meio do próprio ato de
rememorar, um revivificação das experiências, uma leitura atualizada que não seria possível
ser feita na própria época da experiência em si.
Em “sugestões para um jovem pesquisador” de Bosi (2004) encontro uma advertência
que me tocou de modo especial, pois traduziu um sentimento que me acompanhou na maior
parte das entrevistas que realizei. Bosi recomenda que a entrevista seja realizada na casa do
depoente, pois assim estaremos mergulhados na sua atmosfera familiar e beneficiados pela
sua hospitalidade (2004, p. 59). Diz também que a entrevista ideal é aquela que permite
formação de laços de amizade, responsabilidade pelo outro, da qualidade desse vínculo,
afirma a autora, vai depender a qualidade da entrevista. Narrador e ouvinte irão participar
de uma aventura comum e provarão, no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o
ouvinte pelo o que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de
rememorar quanto o das pessoas ditas importantes.” (2004, p.60-61). Bosi continua,
afirmando que ambos sairão transformados pela convivência, dotada de uma qualidade única
de atenção.
Para citar alguns dos momentos inesquecíveis vividos em minha pesquisa de campo,
lembro da diversão em acompanhar Dorothy Pritchard assando pães de queijo, colocando um
timer próximo a nós duas e me confidenciando que invariavelmente esquecia as coisas no
forno - culinária, dizia, não é bem o meu forte. Das experiências que me contou com as
danças circulares e as aulas de cavaquinho que aquela jovem senhora vivia com entusiasmo.
Sentia-me aberta aquele contato, para mim prazeroso e instigante. Lembro-me também da
emoção ao partilhar com Balina Belo de sua busca em vários cadernos antigos por uma de
suas poesias. A tal poesia não encontramos, mas ela leu várias, para meu contentamento. Das
tardes na casa de Célia, entre lanchinhos e causos contados por José, seu marido, num
ambiente que tanto comunicava sobre a própria vida e história daquela família: livros em
51
todos os lugares e um empenho eterno em catalogá-los e organizá-los, nas fotos dos filhos nas
paredes, nos brinquedos dos netos em cantos da sala, na sala-escritório com enorme arquivo
de todo o processo ligado ao desaparecimento de Rui Frazão Soares, irmão de Célia. Em
nossas conversas, sinto que havia um sentimento de amizade que permitia a eles que me
contassem suas vidas conversando desarmados (BOSI, 2004, p. 60).
Esses encontros porque foram, efetivamente, entrevistas-encontros mobilizaram-
me por inteiro. O que eu sabia sobre passagens da história recente brasileira, como o golpe
militar, a ditadura, o AI-5, transformaram-se em muito mais do que informações conhecidas
racionalmente em livros e artigos diversos. Aproximando-me daquelas pessoas e de suas
experiências reais, acontecimentos passados se presentificaram para mim também, integrando
à minha forma de hoje compreendê-los à dimensão de uma verdadeira experiência, vivida
através da história oral que meus entrevistados me narraram. Vivi na pele o que Benjamim e a
própria Célia Linhares preconizam com tanta confiança, o poder da narrativa e da experiência
de tirar a história da dura vida enclausurada nos fatos lineares, contadas por apenas um
ângulo. A história me encharcou por inteiro. Senti-me grávida de história. E como toda
grávida que conheço, passei a ver por onde andava outras grávidas (não é assim quando
estamos esperando um filho? Não nos parece que aumenta a quantidade de mulheres na
mesma condição que a nossa por onde andamos?).
Nos tempos de produção dessa tese, minha escuta e sensibilidade foram tocados por
esse universo de experiências que passou a me habitar. Passei a reconhecer nas novas leituras
que fazia, nos filmes que via e nos estudos para a tese que fui dando continuidade, ligações
com aquele universo de experiências. Também aconteceu a releitura de alguns textos, como
os da própria Célia, e compreendê-los de uma outra forma, o que não me era possível quando
da primeira leitura. Não basta dizer que me sentia “sabendo mais” sobre diversos fatos
históricos. Eu não apenas sabia mais, mas sabia de uma forma diferente, que envolvia minha
emoção, minha sensibilidade, meu interesse, que tinha se acendido mais vivamente. O que é
de interesse não se esquece”, nos dizia Queirós. De fato, aquele universo passou a ser de meu
interesse. Como não reconhecer nesse mergulho, que passa pela experiência de narrar ao outro
a própria vida e história, um caminho fascinante para pensarmos na formação do professor?
52
Para exemplificar esse sentido integrado que o conhecimento histórico, via narrativas
e estudos passou a ter para mim, posso citar alguns filmes que assisti e a intensidade de
sentimentos e relações que pude fazer hoje. Um deles menciono ao longo da tese, se intitula
“A vida dos outros
40
”. O filme conta a história real do sistema de observação alemão oriental
durante o período da Guerra Fria. Nos anos 80, o Ministro da Cultura se interessa por uma
atriz casada com um conhecido dramaturgo. Acusados de serem traidores do comunismo,
passam a ser observados por um agente do serviço secreto, a Stasi. O agente em questão, um
homem simples, cuja vida solitária se resume a servir o Estado, envolve-se intensamente com
a vida dos artistas que passa a acompanhar diariamente. Emociona-se com a música que
escutam, com as peças que encenam e lêem em voz alta, com os momentos de amor e medo
que o casal compartilha e então passa a protegê-los. O algoz vira cúmplice pois foi tocado
pela arte, pelo sensível, pelo humano. O filme trata com extrema delicadeza e humanidade o
esforço de seus protagonistas para extrair a dignidade de suas regradas vidas durante esse
período pré-queda do muro de Berlim. Reportei-me às histórias que alguns de meus
entrevistados narraram a respeito da ditadura brasileira, das tensões permanentes, do medo de
estarem sendo espreitados e, sobretudo, das ambigüidades presentes nas relações de força
entre perseguidos e perseguidores.
Outro filme, Batismo de Sangue”, dirigido por Helvécio Ratton e lançado em 2006,
baseado no livro de Frei Beto, traz a história verídica do engajamento de alguns freis
beneditinos na resistência à ditadura no fim dos anos 60. Freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando
e Ivo passam a apoiar o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos
Marighella, ficando na mira das autoridades policiais. Capturados a mando do General Fleury,
sofrem torturas até denunciarem o ponto de encontro com Marighella, o que ocasionou seu
assassinato pelas forças da ditadura. “A tortura quebra o homem”, frase dita por um dos
personagens. Quebra por que diante da dor, do limite humano, somos levados a trairmos a nós
mesmos, esfacelando-nos, cindindo-nos. A experiência de cisão leva Frei Tito a perturbação
mental e conseqüente suicídio. As cenas de tortura do filme foram para mim impossíveis de
assistir na integra tão reais me pareciam. A dor, a injustiça, a perplexidade diante da
40 Filme produzido pela Alemanha em 2007, com direção e roteiro de Florian Henckel Von Donnersmarck.
53
capacidade humana de destruição me tomaram. Foi-me impossível não lembrar a todo o
momento de Rui Frazão, de Célia Linhares, dos anos 60 e 70 que agora fazem parte de mim
também. Na linha de filmes brasileiros, “Zuzu Angel” de Sérgio Rezende, reporta-se a
temática semelhante a do filme de Ratton. Narra a história, também verídica, da luta de Zuzu
em busca de seu filho desaparecido, Stuart. Ele é preso, torturado e assassinado pelos agentes
do Centro de informações da Aeronáutica, sendo dado como desaparecido político. Inicia-se
então o périplo de Zuzu, denunciando as torturas e morte de seu filho. Suas manifestações
ecoaram no Brasil, no exterior e em sua moda. Assim como em “Batismo” fui capturada pelas
emoções do filme e pela temática que sentia agora tão próxima.
“A culpa é de Fidel”, filme francês dirigido por Julie Gravas em 2007, foi outro que vi
recentemente e que me tocou de modo especial. Narra a história da menina Anna de 9 anos
que sua vida se modificar inteiramente em virtude do engajamento político de seus pais
com a causa Chilena. Novos valores, novos hábitos passam a fazer parte da vida da família.
Toda aquela mudança é vista pelo olhar da criança que busca compreender os sentidos que
passam a orientar a família, sentindo os efeitos de escolhas que não são as dela em sua vida
cotidiana. Os adultos, hora compartilham com ela alguns de seus sentidos, hora deixam-na no
vazio sem compreender o que se passa. E ela vai fazendo um esforço hercúleo para encontrar
um lugar no meio das mudanças, coisa que o faz concretamente, elegendo um canto do
armário como seu, construindo um pequeno continente de segurança. Também aqui me tocou
esse movimento que é o nosso de buscar sentidos e de como muitas vezes, arrastamos filhos,
familiares e amigos nas escolhas que vamos fazendo. Algumas com impactos tão decisivos na
vida de todos. Escolhas que, no caso das crianças, parecem tão distantes de suas necessidades
e entendimentos...
Esses são alguns exemplos. Conhecer a história pela voz de quem a viveu, a retirou
para mim do frio campo da informação factual para introduzi-la no campo da experiência, da
sensação. Essa minha renovada escuta e abertura para ouvir e conhecer de novo elementos
relativos a outros tempos históricos de meu país e do mundo, se estendeu para a forma como
passei a apreciar as músicas (revisitando o movimento Tropicalista e conhecendo-o melhor,
ouvindo Beatles, Bob Dylan e outros), os movimentos populares daqui e do mundo (o
movimento negro americano e seus líderes, o movimento armorial, maio de 68 na França, as
Balaiadas Maranhenses, dentre outros), a produção artística e cultural (as artes plásticas e seu
movimento de renovação nos anos 80, o movimento teatral da época da ditadura e do período
de democratização, o cinema, a imprensa na voz dos irreverentes criadores do Pasquim).
Dispersava-me (no ótimo sentido da palavra) lendo depoimentos de ex-exilados políticos,
54
como o de Heloneida Stuart (concedido em 1999 para o Centro de Pesquisa e documentação
de História Contemporânea do Brasil CPDOC da Fundação Getúlio Vargas), pesquisando
personalidades das épocas estudadas, ouvindo músicas, lendo sobre movimentos artísticos e
culturais. Numa curiosidade que fazia crescer no contato com meus entrevistados e com os
textos de Célia. Como que se assim eu pudesse sentir o mundo com eles, me tornando mais
porosa às suas experiências. Esse mergulho na história, que se deu via música, literatura,
cinema me levou a necessitar compor na tese um panorama, ainda que breve e geral, dos
principais movimentos das décadas que enfoquei, ambientando os capítulos em seu contexto
histórico. Descobri depois, mesmo sem saber, que segui o conselho de Lucien Febvre (1977)
de que:
Para fazer história virem resolutamente as costas ao passado e antes demais
vivam. Envolvam-se na vida. Na vida intelectual, sem dúvida, em toda a sua
variedade. Historiadores, sejam geógrafos. Sejam também juristas e
sociólogos e psicólogos: não fechem os olhos ao grande movimento que, à
vossa frente, transforma a uma velocidade vertiginosa, as ciências do
universo físico. Mas vivam também uma vida prática. (...) É preciso que a
história deixe de vos parecer como uma necrópole adormecida, onde só
passam sombras despojadas de substância. É preciso que no velho palácio
onde ela dorme, vocês penetrem animados da luta, ainda cobertos de poeira
do combate, do sangue coagulado do monstro vencido, e que, abrindo as
janelas de par em par, avivando as luzes e restabelecendo o barulho,
despertem com a vossa própria vida, a vossa vida quente e jovem, a vida
enregelada da Princesa adormecida... (Lucien Febvre in Combates pela
História, 1977, p. 56)
Como meu foco era compreender o trajeto de Célia Linhares e a construção de seu
pensamento pedagógico, era fundamental também contextualizar os diversos momentos
históricos que atravessou, com que tensões e idéias dialogou. Para tanto foi preciso abordar o
pensamento pedagógico brasileiro ao longo das décadas de 60 até os dias de hoje. O encontro
com o livro recém lançado por Demerval Saviani, “História das Idéias pedagógicas no
Brasil”, lançado em 2007, foi fundamental, pois apesar de ter recorrido a Otaíza Romanelli,
Maria Lúcia Aranha e outros, sentia falta de mais subsídios. Com Saviani, pude trazer para
esse trabalho uma visão mais ampla do movimento social e as conexões entre o pensamento
pedagógico brasileiro e aspectos da economia e política que se interpenetravam.
Pela natureza de meu trabalho, que congrega tantas vozes, que mergulha em aspectos
da cultura, da arte, da literatura é na pesquisa narrativa e nos estudos sobre as práticas
autobiográficas na formação de professores que encontrei, também, um caminho teórico-
55
metodológico interessante. Narrativa que é conteúdo e forma, que convida a construir uma
escrita em que se congregam muitas vozes, rompendo alguns cânones (LOPES, 2003).
Os estudos de Catani, Bueno e Sousa (2003), em sintonia com os da francesa Marie-
Christine Josso (2004) dentre outros, foram referência fundamental para compreender a
relevância das práticas autobiográficas e biográficas na formação de professores. Catani,
Bueno e Sousa (2003), afirmam que no imaginário social, as professoras não têm história
porque repetem. Repetem o que aprenderam, repetem cursos, programas, conhecimentos,
práticas, durante as décadas de sua carreira profissional. Para as autoras, tal perspectiva faz
com que as professoras não sejam em geral sujeitos de memória. Portanto, considerar a voz
dos professores nas pesquisas biográficas e autobiográficas é possibilitar a evocação da
própria história, valorizando a experiência humana e reconhecendo uma inestimável
riqueza para o conhecimento. Contar histórias é dar voz ao sujeito. Uma voz comumente
reprimida na nossa escola, seja de nível básico ou superior. Dar voz a Célia e seus pares era
portanto, agir no sentido de valorizar suas trajetórias, compreender seus percursos.
Desse modo, o processo de dar sentido/significado, através do narrar-se, pode ser visto
como emancipatório, pois consiste em uma forma de dar expressão à experiência pessoal.
Nessa perspectiva, afirmo a escolha das Pesquisas narrativas em minha tese. É Iduina
Mont’Alverne Chaves (1999) quem explicita o sentido desse tipo de pesquisa. A autora
afirma que as histórias de professores têm um lugar especial no estudo do ensino e da
formação/educação dos mestres, pois uma vez contada uma história, ela se torna peça da
história, uma peça aberta à interpretação.
As pesquisas narrativas, afirma Mont’Alverne Chaves, tais como as histórias de vida e
os relatos autobiográficos trabalhados por Catani e outros, têm se constituído como estratégias
privilegiadas para se estudar as práticas e as carreiras de professores. Para Nóvoa a formação
é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida (Nóvoa, 1988, p. 116).
Somando-se aos esforços de reconceitualizar a formação de professores, de acordo com as
perspectivas contemporâneas de pesquisa e de valorizar a subjetividade, estas perspectivas
buscam dar voz aos mestres, permitindo que eles se ouçam e se façam ouvir. Trata-se de
buscar formas através das quais o sentido se constitui, valorizando a experiência e a
subjetividade.
A concepção de formação subjacente a essas teorias postula que as práticas docentes
encontram-se enraizadas em contextos e histórias individuais, que antecedem, até mesmo, a
entrada na escola, estendendo-se a partir daí por todo o percurso de vida escolar e
56
profissional, em contraposição a idéia de que ela se daria a partir do momento em que os
alunos e professores entram em contato com as teorias pedagógicas nos centros de formação.
Schön, Pèrez, Sacristán (apud Catani et all, 2003) observam que o discurso
pedagógico é prescritivo por excelência. Este caráter, segundo os autores, é contraproducente
para a experiência dos professores, tendo em vista que as prescrições acabam por impor e por
exigir dos docentes uma conduta ética e uma competência prática que raramente eles podem
realizar. Tal imposição leva a um modo equivocado de se compreender as relações entre
teoria e prática na atividade docente, vistas em geral de modo unívoco e linear. Tal equívoco
acaba por gerar tensões no professor, pois ao invés de fazê-lo refletir sobre seu trabalho e sua
formação, exigem um modelamento que gera desestímulo e insatisfação profissional. A
percepção da educação como “campo de aplicação de teorias” levou a idéia de que o olhar
sobre a experiência passada é no mínimo inútil, porque se refere ao ultrapassado, e no
máximo pernicioso, porque sem bases científicas. Nesse sentido, reforçam a idéia de que
textos de biográficos poderiam instigar a espaços de reflexão na formação de professores.
A respeito do ato de narrar próprios das pesquisas narrativas - vemos com
Benjamim (1994) que as experiências narrativas têm se tornado cada vez mais raras na
contemporaneidade, em função de um tempo que relevo a velocidade das informações, ao
consumo em detrimento da experiência e da convivência.
O narrador não está presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo
distante, e que se distancia ainda mais. (...) É a experiência de que a arte de
narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente. Quando se pede a um grupo que alguém narre
alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de
uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de
intercambiar experiências (Benjamim, 1994: 197-8)
Portanto, as pesquisas narrativas buscam abrir espaço para que a experiência dos
sujeitos seja contada e interpretada, possibilitando que àqueles que têm acesso a ela possam
também refletir sobre a sua própria trajetória à luz da trajetória do outro. Além disso,
contribuem para pensar/ponderar sobre as questões e problemas educacionais, ao trazer via
bio-história, aspectos da trajetória profissional e de seus contextos à tona. Vale acrescentar
que ao desenvolver de modo sistemático a prática de escrita e análise sobre os relatos, com os
professores, este tipo de estudo configura um tipo de pesquisa de colaboração, à medida que
os professores envolvidos nesse processo se tornam simultaneamente tema e sujeitos da
pesquisa (MONT’ALVERNE CHAVES, 1999).
57
A narrativa é contemporânea – pois está relacionada ao aqui e ao agora – e ao mesmo
tempo histórica pois traz a dimensão da tradição, do enraizamento no passado, capturando-
o, preservando-o e atualizando-o. Ao narrar a própria história, outras histórias podem ser
criadas. As histórias individuais de professores, por exemplo, podem levar outros professores
a relembrarem suas próprias histórias e a fazerem relações nos planos individuais e coletivos.
Para Mont’Alverne Chaves (op.cit.) a pesquisa narrativa é uma ampla categoria para
uma variedade de práticas de pesquisas contemporâneas que incluem a coleta e a análise de
autobiografias, biografias, histórias de vida, relatos pessoais, narrativas pessoais, narrativas de
entrevistas, documentos de vida, histórias orais, auto-etnografia, etnopsicologia, memória
popular, etc. A pesquisa narrativa é claramente interdisciplinar, incluindo elementos de
estudos literários, históricos, antropológicos, sociológicos, psicológicos e culturais. As
ciências sociais, têm saído desde a década de 70, aproximadamente, de um modelo
marcadamente tradicional positivista para uma postura interpretativa: tornando-se o
significado seu foco central.
A autora afirma ainda que o estudo das narrativas possibilita também que aspectos da
vida social e cultural do contexto onde vivem os narradores sejam revelados. Essa
perspectiva se apóia numa concepção de conhecimento que reconhece que as diferentes
situações vividas pelos professores ao longo de suas histórias, marcam a sua narrativa, pois ao
recontarem suas experiências estão na verdade realizando uma recriação permanente,
influenciada pelo momento vivido. Contar histórias é o que nós pesquisadores fazemos ao
organizarmos as narrativas dos professores. Tal perspectiva aponta as narrativas como
fenômeno e método (Mont´Alverne Chaves, 1999).
A narrativa, como fenômeno e como método, assume um papel central no
desenvolvimento pessoal e profissional. Por meio do contar, escrever e ouvir histórias de vida
as suas e as dos outros é possível ultrapassar barreiras culturais, descobrir a força da
identidade e a integridade do outro e ainda, aprofundar a compreensão de suas perspectivas e
possibilidades. Além disso, as narrativas interessam-se em construir e comunicar significados
de vida.
A narrativa apresenta características multifuncionais. Faz uso de materiais pessoais,
tais como estórias de vida, testemunhos, exemplos, conversas e escritos pessoais. Ela convida
à reflexão e requer do pesquisador o exame do contexto onde se situa a pesquisa e suas
implicações mais amplas.
O pesquisador trabalha não apenas com aquilo que é dito, mas também com os não
ditos, presentes nas “entrelinhas”, dentro do contexto no qual a vida é vivida e o contexto da
58
entrevista no qual as palavras são faladas para representar aquela vida. Mont’Alverne Chaves
(1999) afirma que “O uso metodológico da narrativa traz os pesquisadores ao contato com
questões metodológicas, epistemológicas, ontológicas, numa perspectiva multidisciplinar,
com suporte da antropologia e da literatura”.
No entanto, para que as histórias narradas contribuam efetivamente para a formação
de professores é preciso, como nos aponta Mont’Alverne Chaves (op.cit.), que elas sejam
genuínas e provoquem união, sejam evocativas, convidem à reflexão e sejam passíveis de
interpretação. A autenticidade, a reflexão, a reinterpretação elevam, como nos diz a autora, a
história “para além do reino da conversa inútil”.
O reconhecimento das potencialidades educativas do trabalho com os relatos de
formação apóia-se na idéia de que a espécie de reflexão favorecida pela reconstituição da
história individual de relações e experiências com o conhecimento, a escola, a leitura e a
escrita permite reinterpretações férteis de si próprio e de processos e práticas de ensinar.
Estas são as premissas que sustentam às pesquisas que usam narrativas e que lhes
conferem qualificação e riqueza. Acredito que elas se constituem em oportunidades de
investigar a formação de modo que a teoria e a prática se façam presentes de modo
indissociável. Viver a história e entender as nossas próprias narrativas poderá ser o melhor
exercício de construção do conhecimento sobre este tema.
É importante também que eu fale um pouco sobre algumas escolhas quanto a forma da
escrita desse trabalho. Procuro não interromper fluxos, por isso lanço mão dos pés de página.
Por vezes, o excesso de informações que não dizem respeito diretamente ao que se está
abordando pode funcionar como “arame farpado” no texto, dificultando sua leitura. Nessa
introdução busquei evitar isso, sem no entanto, deixar de explicitar algumas relações que
considerei pertinentes e acrescentar referências sobre os livros, filmes e outros que mencionei
e que considero, enriqueceram a leitura e ampliaram a compreensão desse texto.
No caso dos pés de página ao longo dos capítulos da tese, o motivo é também não
interromper fluxos, mas passa por uma reflexão que fui fazendo a medida em que escrevia.
Percebi que muitas das informações de rodapé poderiam até ser dispensáveis para o
leitor/avaliador. No entanto, elas estavam ali pois tinham me ajudado a compreender melhor
esse trabalho. Como exemplo, pesquisei um pouco sobre autores mencionados por Célia que
não conhecia suficientemente. Para mim foi muito importante me aprofundar um pouco mais,
me permitiu caminhar com maior clareza em meus estudos. Mas de fato, não são informações
de corpo de texto. São quase que pequenos desvios, estradas paralelas que peguei, para alargar
59
as questões que ali se apresentam, para fornecer mais subsídios para a leitura e o
entendimento do trabalho. Nunca para atrapalhar, isso pretendi.
Também me foi difícil tratar Célia Linhares, nos momentos em que citei suas obras ou
mesmo algum trecho de suas entrevistas, pelo sobrenome, seguindo as regras de citação de
fontes bibliográficas. Foi preciso usar seu primeiro nome dada a proximidade com ela, sua
presença tão viva e tão pessoal nesse trabalho.
Outra questão que fui me dando conta ao longo da tese foi o uso alternado de “eu” e
“nós”. Bem sei que vez por outra utilizo a primeira pessoa do singular, para em seguida lançar
mão da primeira pessoa do plural. Não foi um descuido, um escape, um deslize. Foi mesmo
um sentimento que me acompanhou durante a produção dessa tese. Senti-me muito
acompanhada. Tantas vozes a meu lado... dos entrevistados, de Iduina e da própria Célia.
Essas últimas, interlocutoras permanentes. Iduina, mais do que interlocutora, quase o meu
grilo falante (conhecemos todos a história do Pinóquio?!), a me amparar nos abismos,
dúvidas, angústias, alegrias do artesanato da escrita da tese. No entanto, ainda que tão
acompanhada e nada solitária, tem algo de muito pessoal nessa construção. Escolhas que,
ainda que muito partilhadas e tomadas em conjunto com Iduina, sinto como singulares em
determinados momentos. Portanto, peço a licença acadêmica para mesclar, deixar que os eu e
nós se misturem nessa tessitura. Lembrando que onde está escrito eu, leia-se nós; e aonde esta
escrito nós, leia-se eu. Constituídos que somos pelos muitos outros que nos habitam, nem por
isso deixamos de ser um eu singular. Impossível separar carne e sangue. Sou nós, sou eu.
Esse trabalho está organizado em quatro capítulos, cada qual dedicado a uma década,
a partir dos anos 60. Dividido por décadas apenas como forma de organização textual, pois é
importante ressaltar que não compreendemos a história de forma linear. Abordamos da década
de 60 até os dias atuais. Todos os capítulos têm uma estrutura semelhante. Começamos
apresentando, o panorama geral da década em questão. Num segundo momento, focalizamos
o pensamento pedagógico brasileiro do período, destacando as relações de força que se
estabeleciam no país. Em seguida, situamos a vida de Célia na época, trazendo aspectos
ligados às suas experiências profissionais, familiares e outras peculiaridades. Na parte final
apresentamos as idéias marcantes expressas nas obras de Célia Linhares realizadas no período
enfocado, seguidas pelas narrativas desenvolvidas a partir das entrevistas com parceiros
ligados a esta década. No fechamento do capítulo, fazemos uma síntese das idéias de Célia na
década em questão.
O primeiro intitula-se “Década de 60, os inícios”. Nele abordamos a emergência dos
movimentos populares e as tensões entre as diferentes forças que lutavam pela hegemonia.
60
Destacamos o movimento estudantil e o fortalecimento do empresariado e seu poder de
interferência nas políticas sociais, aliados com as forças militares. No campo da educação,
destacamos o surgimento da Pedagogia Nova e a reforma universitária. Anísio Teixeira e
Paulo Freire aparecem em destaque com suas contribuições para a educação. Abordamos
também os principais acontecimentos na vida de Célia Linhares, que incluiram o início de sua
atuação como docente e a experiência na Rádio Educadora do Maranhão. Além disso,
trazemos as entrevistas com seus pares, fechando o capítulo com as principais idéias da
professora Célia Linhares, no campo da educação, nesse período
O capítulo dois, “Década de 70, medos e ousadias”, época considerada o “auge da
ditadura”. Abordamos a política de “Segurança e desenvolvimento” liderada pelo
empresariado e o processo de desnacionalização do Brasil com a abertura para o comércio
internacional. Com relação à trajetória de Célia, é o período de sua imigração para o Rio de
Janeiro e sua entrada na Universidade Federal Fluminense. Período em que viveu a perda de
seu irmão Rui Frazão, o que a marcou fortemente. Nessa parte do capítulo, apresentamos as
principais idéias presentes nas produções escritas de Célia e as narrativas desenvolvidas a
partir dos depoimentos de seus pares, bem como o fechamento do capítulo com as idéias
centrais de Célia Linhares em 70. Compõe, também, essa parte do trabalho a apresentação das
principais idéias presentes nas produções escritas de Célia nessa época e as narrativas
desenvolvidas a partir dos depoimentos de seus pares, bem como o fechamento com as idéias
centrais de Célia Linhares em 70.
O terceiro capítulo intitula-se “Década de 80, firmeza e esperança”. Os anos 80
representaram um momento de transição e de abertura política. Para Célia, período fértil em
que finaliza seu doutorado e vai se firmando profissionalmente.
Por fim, o quarto e último capítulo “De 90 aos dias atuais: início de um novo século,
novos tempos?!”, aborda um período de intensa produção textual e de ampliação de sua
atuação como pesquisadora. A tese se encerra com as Considerações Finais, nas quais
apresentamos o ideário pedagógico de Célia Linhares.
Para mim, a produção dessa tese foi a oportunidade de fazer um mergulho instigante
na própria história recente de nosso país, reconhecendo as relações que se interpenetram entre
educação, economia, política e sociedade. Além de ter a chance de compreender a bela
trajetória de Célia e de seus pares na busca da construção de uma vida guiada pelo desejo de
contribuir para uma educação de qualidade para nosso país. A vida de uma professora.
61
CAPÍTULO 1
Década de 60, os Inícios
Give peace a chance
John Lenon
Let me tell you now
Ev'rybody's talking about
Revolution, evolution, masturbation,
flagellation, regulation, integrations,
meditations, United Nations,
Congratulations.
All we are saying is give peace a chance
41
Nas palavras de Lenon, em sua conclamação pela paz, evidencia-se uma forte
característica dos anos 60: a manifestação popular, em variados âmbitos. Marcada por
tensões entre movimentos e interesses contraditórios, cresce nessa década o movimento
popular em prol de uma sociedade mais igualitária e includente, por outro lado, as ações de
coação a tais movimentos começam a tomar corpo, oriundas dos segmentos conservadores e
ditatoriais. É também um período de inquietação e mudança dos comportamentos e valores,
no Brasil e nos demais países.
No mundo, o americano Neil Armstrong pisa na lua pela primeira vez, dando início à
corrida espacial, seguido de perto pelas conquistas da Rússia; a Revolução sexual, com a
invenção da pílula anticoncepcional, ganha relevo; incrementa-se o movimento feminista na
luta pelos direitos da mulher; nos EUA o movimento negro se organiza e fortalece, tendo em
várias lideranças carismáticas seus representantes; expressam-se os protestos da juventude
contra o endurecimento dos governos. A Igreja, na figura do Papa João XXII abre o Concílio
Vaticano II, revolucionando a Igreja Católica que, dentre outras ações, incorpora os leigos em
suas iniciativas, agora mais antenadas à realidade social em que vive. Surge o movimento dos
41 Deixe-me te dizer/ todo mundo fala sobre revolução, evolução, masturbação, flagelação, regulação, integração, meditação,
Nações Unidas, meditação, Congratulação/ tudo que nós estamos dizendo é “dê uma chance a paz(John Lenon Give a
peace a chance) – tradução livre.
62
hippies, com suas roupas coloridas, drogas e sua bandeira do “Paz e Amor”, protestando
contra a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã. Na América Latina, a Revolução Cubana leva
Fidel Castro ao poder. Nas artes, a música dos Beatles, Rollings Stones, Bob Dylan e um rock
de protesto ocupam o cenário musical, que vai ganhando um sentido revolucionário e
contestador.
No Brasil, Brasília é inaugurada, a nova capital do país. Jânio Quadros sucede
Juscelino Kubitschek na presidência, renunciando sete meses depois e sendo substituído pelo
seu vice-presidente, João Goulart. Em 1964, o golpe militar depõe Goulart, instituindo uma
ditadura militar que daria início a tempos sombrios.
Nas Artes Plásticas, a exposição “Nova Objetividade”, no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro, onde Hélio Oiticica apresentou pela primeira vez sua instalação Tropicália”,
daria origem ao movimento de mesmo nome, que ganharia força na Música Popular Brasileira
através de artistas como Caetano Veloso, Nara Leão, Gilberto Gil, Torquato Neto e outros.
Ainda sobre as Artes Plásticas, Ruberns Gerchman
42
, Roberto Magalhães, Carlos Vergara e
Antonio Dias seriam os protagonistas da passagem de uma arte mais acadêmica, o
concretismo, para uma arte mais acessível, com influência de elementos do pop, do cotidiano
e de questões sociais, desviando da abstração e dando origem a chamada “nova figuração”
(VELASCO, 2008).
Uma das obras de Gerchman, “É proibido dobrar a esquerda” (veja reprodução na
próxima página), início a um período de sua produção artística conhecida como fase
negra’, a obra parece denunciar o clima de ‘caça as bruxas” que se instalaria no país após o
golpe militar de 1964. O quadro sugere uma atmosfera de tensão e nervosismo; de uma
aglomeração humana pretensamente contida pelos frágeis limites de uma situação autoritária
(PELEGRINI, 2007).
42 Vale aqui uma homenagem a Rubens Gerchman, que faleceu recentemente (29/01/2008). Artista carioca, sua produção
gráfica dos anos 1960, caracterizou-se “por seu extremo vigor narrativo: por sua vontade de informar, de comunicar-se, com
os milhares de Joãos, Marias e anônimos, seja da classe média ou do subúrbio carioca, mas que compartilham das mesmas
alegrias e angústias, dos mesmos ídolos, símbolos sexuais ou sonhos de consumo. Como uma tentativa de refletir sobre as
conseqüências alienantes dos processos de comunicação de massa no mundo contemporâneo”. (PELEGRINI, 2007)
63
No campo das comunicações e entretenimento, a TV Globo é inaugurada e a televisão
passa a se tornar meio de comunicação de massa.
É sobre esse cenário em ebulição que trataremos nesse capítulo. Na primeira parte, em
“Movimento popular e políticas públicas: tensões e conquistas dos anos 60”, “Movimento
estudantil e organização dos empresários: o arrefecimento da Pedagogia Nova” e “A reforma
universitária do final da década”, traçamos um panorama das principais questões dos anos 60,
dando destaque aos aspectos ligados à educação e sua relação com o contexto social mais
amplo. A contribuição de Anísio Teixeira e Paulo Freire é ressaltada a partir de algumas das
iniciativas e movimentos educacionais em que estiveram envolvidos. Trago também aspectos
sobre o movimento das artes, tendo em vista compreendermos o imbricamento entre as
diversas expressões e as idéias-força que então circulavam. Conhecer um pouco do que
acontecia nesse campo, sem a pretensão de esgotar ou mesmo fazer uma pesquisa mais ampla,
confere um colorido especial a essa parte, resgatando e instigando curiosidades e expressões
singulares daquele tempo e alargando nossa percepção, via sensibilização estética, sobre o que
acontecia nos anos 60.
A atividade artística é entendida como um caminho de contato com o universo e
conosco mesmo. Evocar o que se produzia na época possibilita captar o momento em questão,
via sensibilidade, sentimentos, emoções, relacionando uma ordem de impressões que ampliam
nossa visão sobre determinada realidade (CANCLINI, 1980).
Na segunda parte, “Entre o dia e a noite: incertezas e confianças”, trazemos as
experiências que tiveram curso na vida de Célia nesse período, em que teve início sua
profissão docente e a formação de sua família com José Linhares. Aqui se expressa a forma
como as questões do período se evidenciam em sua trajetória: Como Célia lia e participava
64
dos acontecimentos, de que forma eles impactavam sua vida e a de seus familiares, os
movimentos dos quais ela tomou parte e como esse caldo de experiências pessoais e culturais
foi sendo vivido e elaborado por ela em seu tempo, constituindo-a em sua trajetória de vida. A
produção da professora Célia era, na época, eminentemente de caráter oral, via rádio,
docência e encontros com os grupos culturais e movimentos políticos dos quais fazia parte.
Mas, havia uma exceção. Célia escreveu textos que reuniu em apostilas para um Curso de
Formação de Professores, veiculados na Rádio Educadora e com a subvenção da Secretaria
Municipal de São Luís. Mas esses textos sumiram nos vendavais que varreram aquela Rádio e
que dilaceraram o país, depois do golpe de 64.
43
Mas isso será narrado depois.
Em nossas entrevistas, realizadas com a professora Célia e seus pares, as lembranças
foram sendo convidadas a emergir à medida que eu trazia perguntas sobre as experiências de
cada década. No caso dos anos 60, tendo em vista termos pouco material escrito por ela, Célia
resgatou aspectos desse período e produziu, em 2007, um texto intitulado “Coisas Findas?”
(mimeo), retomando as idéias que a orientavam naqueles tempos (autores, tendências,
reflexões) e suas vivências (trabalhos, projetos, vida). Seu marido, José Linhares, foi
importante colaborador no rememorar da história vivida por eles e fragmentos da entrevista
que ele nos concedeu, também fazem parte desse trabalho. Basicamente, esses foram os
materiais utilizados nessa parte do capítulo.
Em seguida, em “Trilhas do pensamento pedagógico”, reunimos as principais idéias
de Célia, expressas em suas experiências profissionais e militantes (o texto referido
anteriormente, “Coisas findas?”, foi uma referência importante). Por fim, em “Voz dos
parceiros”, é o momento de “escutarmos”, numa escuta sensível, Dorothy Pritchard. Abrimos
nova janela para revisitar Célia e a década em questão pelo olhar do outro, numa dimensão
que amplia nossa compreensão a respeito, não apenas da trajetória de Célia e de seu
pensamento, mas também que nos permite conhecer esse outro a quem damos voz, como um
ator no processo de reelaboração do vivido. Movimento de reconstrução que traz, nos fios do
passado, aspectos do presente.
43 - LINHARES, Célia e NUNES, Clarice. Trajetórias de Magistério: Memórias e Lutas pela Reinvenção da Escola Pública.
Rio de Janeiro, Editora Quartet, 2000, p.34/35.
65
Fechamos o capítulo com um apanhado de questões mais marcantes da década, com
enfoque no pensamento de Célia. Tal apanhado, vai constituindo a trilha maior, marcando o
trajeto de uma vida em seu palmilhar.
1.1 - Movimento popular e políticas blicas: tensões e conquistas dos anos
60
O nacionalismo é, fundamentalmente, a tomada de consciência pela nação de sua
existência, de sua personalidade e dos interesses dos seus filhos (Anísio Teixeira,
1976, P.320).
PLANTIO
Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.
Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.
Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.
(...)
Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
66
cava.
(Mario Chamie in Lavra, Lavra
44
,1962)
Anísio Teixeira
45
e a poesia de Mario Chamie abrem esse texto evocando perspectivas
marcantes da década de 60: a nova concepção de nacionalismo em elaboração, os distintos
movimentos e idéias a respeito do desenvolvimento de uma nação que se industrializava e a
voz das esferas das artes, da cultura e da educação que tematizavam as questões em ebulição.
No campo da educação, foco de nosso trabalho, a década de 60 caracterizou-se pela
crise da pedagogia nova e a articulação da pedagogia tecnicista (SAVIANI, 2007). Foi uma
década de contradições, expressas por meio das múltiplas posições, em vários campos da
atividade política, econômica e cultural, com ideologias que se opunham numa tensão
constante. Movimentos de abertura e de ação popular tiveram curso, influenciando o campo
da cultura e a sociedade de forma mais ampla.
Nas artes o Tropicalismo constituía-se em importante movimento que tinha como
objeto a realidade brasileira, associado às lutas por mudanças e traduzindo desejos de um
povo que buscava a expressão de sua voz e sua vez. Além da música popular, o teatro, a
literatura e as artes plásticas, sem esquecermos o cinema, estarão marcados pelo mesmo
tensionamento presente no cenário de contradições e diferentes ideologias circulantes
(HOHLFELDT, 1999).
Nas políticas públicas têm destaque, após 13 anos de intensas discussões, a
promulgação da nossa primeira Lei de Diretrizes e bases, em dezembro de 1961 (Lei n. 4.024)
que entraria em vigor em 1962, fruto dos debates mais amplos com relação à organização do
ensino. No rastro da vigência da lei, se instala o Conselho Federal de Educação (CFE) que
tem em sua composição Anísio Teixeira. Foi também Anísio Teixeira quem cuidou em 1962
44 Mário Chamie (1933) instaurou com seu livro “Lavra Lavra” o chamado “poema-práxis” (em 1962). Nome importante na
história da vanguarda a partir do final da década de 50, foi também Secretario Municipal de Cultura de São Paulo, criando a
Pinacoteca de São Paulo, Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural de São Paulo.
45 Anísio Spínola Teixeira (1900-1971), advogado, intelectual, educador e escritor brasileiro é uma personalidade central na
História da educação no Brasil. Difundiu nas décadas de 1920 e 1930 os pressupostos da Escola Nova, que valorizavam no
processo educativo o desenvolvimento do intelecto e da capacidade de julgamente em detrimento da memorização. Exerceu
diversos cargos executivos e foi um dos mais destacados signatários do Manifesto da Escola Nova. Defendida com vigor o
ensino público, gratuito, laico e obrigatório. Fundou a Universidade de Brasília no início dos anos 60.(NUNES, Clarice.
Anísio Spínola Teixeira in FÁVERO e BRITTO, Jader de Medeiros (orgs.), Dicionário de educadores do Brasil, 2002)
67
do Plano Nacional de Educação, homologado pelo ministro Darcy Ribeiro
46
(SAVIANI,
2007).
É importante retomar alguns aspectos da presença central de Anísio Teixeira na
educação brasileira. Personalidade atuante da educação, não apenas ao longo das décadas de
50 e 60, mas também no movimento de renovação educacional da década de 30. Anísio foi
uma figura predominante desse movimento, consolidado pelo "Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova". Tal manifesto expressava a visão de um grupo da elite intelectual brasileira,
os renovadores. Eles afirmavam a necessidade de que o Estado organizasse um plano geral de
educação, defendendo a bandeira de uma escola pública, laica, obrigatória e gratuita.
Propunham uma escola integral e única, em oposição à escola existente, chamada de
"tradicional". Tais idéias, cunhadas nas décadas anteriores, estavam em curso durante a
década de 60 e influenciavam os movimentos políticos e sociais.
Com relação a primeira LDB 4.024 é importante ressaltar que ainda que não tenha
contemplado todas as necessidades do Brasil, constituiu-se, nas palavras do próprio Anísio
Teixeira, numa “meia-vitória”, tendo em vista que sua promulgação representou uma
conquista de caráter descentralizador. Desde 1920 os renovadores aspiravam e defendiam
uma maior autonomia dos estados e a diversificação e descentralização do ensino, aspectos
que foram consagrados na LDB. Apesar disso, as concessões feitas a iniciativa privada iam
contra um outro aspecto defendido pelos renovadores, que era o da construção de um sólido
sistema público de ensino.
No campo mais amplo da problemática do desenvolvimento nacional, uma nova
conotação política se emprestava ao conceito de nacionalismo presente até então. Tal conceito
estava anteriormente ligado a uma exaltação do civismo, do nacionalismo e do patriotismo,
agora se configurava numa perspectiva internacionalista, o nacionalismo-desenvolvimentista.
46 Darcy Ribeiro (1922-1997) destacou-se especialmente por seus trabalhos nas áreas de educação, sociologia e
antropologia. Foi um dos responsáveis, ao lado de Anísio Teixeira, pela criação da Universidade de Brasília no início dos
anos 60. Durante o primeiro governo de Leonel Brizoloa no Rio de Janeiro (1983-1987) ele criou, planejou e dirigiu a
implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs), projeto pedagógico de assistência em tempo integral a
crianças, que incluia atividades recreativas e culturais além do ensino formal (projeto que fora idealizado por Anísio
Teixeira).Darcy Ribeiro também foi Ministro-Chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de
Janeiro de 1983 a 1987 e exerceu o mandato de Senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte. (MAURÍCIO, Lúcia
Veloso. Darcy Riberio in FÁVERO E BRITTO(ORGS.) Dicionário de Educadores do Brasil, 2002)
68
Essa nova concepção era fruto de uma visão de desenvolvimento do país que se disseminava
ao longo da década de 50 e nos primeiros anos da década de 60. A visão ideológica que a
caracterizava era de viés progressista, industrialista, modernizadora, correspondente a uma
“burguesia que se queria esclarecida” (SAVIANI, 2007, P. 311).
Anísio Teixeira postulava que o processo de industrialização do país era marcado por
uma liderança eclética, representada pela elite aristocrática e pela classe média, que possuíam
visões distintas com relação ao papel da educação nesse processo. Para ele, a industrialização
brasileira era uma realidade que caminhava a despeito da educação e esta poderia avançar
quando as forças da classe média democrática que davam maior valor à educação - viessem
a exercer maior influência. Anísio acreditava que faltava à nação a consciência de que ela se
fazia moderna. A idéia de consciência emerge nesse momento, sendo posteriormente
retomada por outros educadores, com destaque a Paulo Freire. Tal consciência, na concepção
de Anísio, seria atingida com a escola, lugar de estudo e do conhecimento do Brasil, capaz
de mostrar o caminho para emancipação nacional.
As idéias de desenvolvimento nacional, aliadas à política populista
47
da época,
incitavam à mobilização popular. Os dirigentes dependiam do voto do povo para obter êxito
no processo eleitoral. O direito ao voto estava condicionado à alfabetização, o que levou então
os governantes a organizar campanhas, programas e movimentos de alfabetização de jovens e
adultos, dirigidos aos contingentes urbanos e a população rural.
Em decorrência desse movimento surgiram várias campanhas ministeriais com o foco
no ensino que se estenderam de 1940 a 1963. Tais campanhas consideravam a educação
popular abrangendo a instrução pública (educação elementar destinada às crianças e adultos).
O Movimento de Educação de Base (MEB), criado em 1961, possuía em suas origens essas
mesmas características. Tratava-se de um movimento de responsabilidade da Igreja católica,
dirigido pela Conferência nacional de bispos do Brasil (CNBB), mas cuja concepção e
execução foram confiadas a leigos. Estes, porém, distanciaram-se dos objetivos de catequese,
imprimindo ao movimento um caráter maior de conscientização e politização do povo. É essa
47 WEFFORT (1989) define o populismo como uma forma de governo que envolve algumas particularidades. Surge quando
uma massificação de amplas camadas da sociedade que desvincula os indivíduos de seus quadros de origem e os reúne na
massa, relacionados entre si por uma sociabilidade periférica e mecânica, quando uma perda da representatividade e da
exemplaridade da classe dirigente. Quando há a presença de um líder dotado de carisma de massas.
69
característica que irá marcar os rios movimentos surgidos no início da década de 1960 para
os quais o conceito de educação popular assumirá conotação diversa daquela que prevalecera
nas décadas precedentes.
Anteriormente, na Primeira República, a expressão “educação popular”, estava
associada à instrução elementar que se intentava generalizar para toda a população do país,
mediante a implantação das escolas primárias. Esse era o entendimento que sustentava a
mobilização e implantação da expansão das escolas primárias e das campanhas de
alfabetização de adultos.
Assumindo outra significação, o movimento que ganha força na primeira metade dos
anos de 1960, surge da preocupação com a participação política das massas a partir da tomada
de consciência da realidade brasileira. A educação ganha caráter de instrumento de
conscientização. A expressão “educação popular” agora tem sentido de educação para o povo,
pelo povo e para o povo, contrapondo-se ao significado que a precedia, criticado como
educação das elites e dos grupos dirigentes para o povo, com objetivos de controlá-lo,
manipulá-lo e ajustá-lo à ordem estabelecida.
A ressignificação do conceito de educação popular está ligada às análises e discussões
sobre a realidade brasileira desenvolvidas, dentre outros, pelos pensadores cristãos marxistas
no pós-guerra europeu; pelas mudanças que o espírito do Concílio Vaticano II introduzia na
doutrina Social da Igreja. Das iniciativas que tiveram curso na época destacam-se os Centros
Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de Cultura Popular (MCPs) e o Movimento de
Educação de Base (MEB), anteriormente citado. Todos esses movimentos tinham em comum
a valorização da cultura do povo (que consideravam a autêntica cultura nacional), o objetivo
de transformação das estruturas sociais, a identificação com a visão ideológica nacionalista
que preconizava a libertação do país dos laços de dependência com o exterior.
Os CPCs
48
tinham a arte como enfoque principal e o CPC da União Nacional dos
Estudantes (UNE) como referência. Multiplicaram-se por todo o país. Acreditavam que a
48 Dramaturgos como Augusto Boal, que dirigiu em 1956 o Teatro da Arena fundado em 1953 em o Paulo, na época um
jovem diretor egresso dos Estados Unidos, onde conviveu com a dramaturgia de Arthur Miller; Gianfrancesco Guarnieri
(Eles não usam black-tie; 1958), Oduvaldo Vianna Filho, dentre outros, integrar-se-iam ao CPC da UNE, desenvolvendo uma
obra de intensa denúncia ideológica, tornando-se nomes referenciais de toda a dramaturgia brasileira ao longo das duas
próximas décadas, ainda que alguns deles tenham experimentado o exílio (HOLFELDT, 1999).
70
cultura popular estava ligada diretamente à ão política, pois constituía-se em expressão
autêntica da consciência e dos interesses e necessidades do povo, preparando-o para a
revolução.
Os MCPs originaram-se do MCP criado em 1960 em Recife. O objetivo principal era
conscientizar o povo por meio de uma educação genuinamente brasileira, bem como
aproximar pela sua prática, a intelectualidade da população. O intelectual deveria aprender
com o povo, numa atitude não assistencialista. As idéias de Paulo Freire cunharam-se em
meio às experiências nos MCPs. Em Natal, a campanha “De no chão também se aprende a
ler
49
” teve grande força.
O MEB teve intensa penetração no meio rural, apoiando a sindicalização dessa área.
Tendo em vista o fato de ser um movimento da Igreja, sobreviveu ao golpe militar. As escolas
radiofônicas constituíam-se a base de operação do MEB, que se difundiu em cerca de 500
municípios. Tratava-se de uma iniciativa patrocinada pela Igreja Católica e sustentada
financeiramente pelo governo federal. Seus efeitos, cujas características podiam ser
percebidas a partir do segundo ano de atuação, trouxeram conseqüências não previstas, tanto
para o governo quanto para a Igreja. As ações do MEB acabaram por transformar as
condições de vida da população e daqueles que atuavam como agentes pedagógicos,
fortalecendo um movimento contra-hegemônico dirigido pelas classes subalternas. Tais
impactos forjaram os embriões da “Igreja popular” e de todo movimento mais radical
católico.
Paulo Freire, educador que marcou fortemente a década de 60 e cuja contribuição é
atemporal, cunhou a concepção que foi mais difundida no país e no exterior, que expressa a
orientação seguida pelos movimentos de educação da época, em que integra-se a dimensão
política à educação. A conscientização do povo é o objetivo central. Em 1960 Freire
participou no MCP de Recife, como diretor da Divisão de Pesquisa. Além de ter na mesma
década assumido a direção do Serviço de Extensão cultural da Universidade de Recife (onde
49 Com acentuada ênfase na dimensão política da educação, em Natal, no ano de 1961, o prefeito Djalma Maranhão criou a
Campanha de alfabetização "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler"; Em 1961 a Prefeitura Municipal de Natal, no Rio
Grande do Norte, inicia uma campanha de alfabetização. Orientada didaticamente por Paulo Freire, propunha-se a alfabetizar
em 40 horas adultos analfabetos. A experiência teve início na cidade de Angicos, no Estado do Rio Grande do Norte, e, logo
depois, na cidade de Tiriri, no Estado de Pernambuco (GERMANO, 1997).
71
lecionava desde 1959) e em 1963 figurado como membro do Conselho de Educação de
Pernambuco.
O êxito e repercussão da experiência de Freire com a alfabetização conduziram-no de
Recife para postos de âmbito nacional. Designado para presidir a Comissão Nacional de
Cultura Popular instituída pela portaria do ministro Paulo de Tarso em 1963, foi chamado
também a assumir a coordenação do Plano Nacional de Alfabetização, criado na passagem de
1963 para 1964. O golpe militar em 1964 interrompeu essa iniciativa, assim como toda a
mobilização que vinha sendo feita em torno da cultura popular e da educação popular.
As principais idéias de Freire giravam em torno da aposta na educação como o espaço
promotor da conscientização do homem e da mulher. Freire acreditava que a sociedade da
época, cujo processo de industrialização e urbanização trazia novas dimensões para a vida
social, levava a uma emersão do povo na vida política. Em função disso, o que ele chamava
de consciência gica, própria de uma sociedade fechada (anterior ao período de urbanização
e industrialização) passava a uma consciência transitivo-ingênua. Para que essa consciência
ingênua se tornasse crítica era fundamental um trabalho educativo voltado intencionalmente
para esse objetivo. Para Freire, éramos inexperientes democraticamente em função da forma
como havia ocorrido a colonização no Brasil, marcada pela centralização.
Freire criticava a educação dominante que em sua visão era marcada pelo gosto da
“palavra oca” (SAVIANI, op.cit, p.321), era assistencializadora e não comunicava
efetivamente. Postulava a necessidade de uma educação voltada para a passagem da
transitividade ingênua à transitividade crítica, para a decisão, para a responsabilidade social e
política.
As linhas mestras da concepção de Freire afirmam que o processo educativo, para
efetivamente ter força instrumental como agente de mudanças sociais, precisa ter uma relação
de organicidade com a contextura da sociedade a que se aplica. Essa relação de organicidade
implica um conhecimento crítico da realidade para que assim a educação possa se integrar
com ela e não a ela se sobrepor.
Chamava a atenção para nossa situação de economia complementar, comandada pelo
comércio exterior, de formas antidemocráticas. Acreditava que vivíamos uma transição para
uma economia de mercado, com o predomínio de um capitalismo emergente e para formas
mais democráticas.
Para ele, o processo de industrialização do país, fazia com que a emersão de seu povo
fosse mais vigorosa, fazendo-o passar de uma posição de mero expectador para posições mais
participantes. A educação para o povo deveria significar uma abertura do homem, pela qual,
72
mais lucidamente, este veja seus problemas. Posição que implica libertação do homem de suas
limitações, pela consciência de suas limitações.
Para Freire, o clima cultural da época, em plena elaboração, exigia o exercício da
participação e da decisão do homem nacional, fundamental para nosso acontecer histórico,
por esse motivo a democracia seria necessária, garantindo lugar para um intenso trabalho de
educação extra-escolar para desenvolvê-la.
É importante salientar que mais do que um método para ensinar a ler e a escrever,
Freire reúne em sua proposta uma visão de homem, sociedade e educação que está na base de
seu projeto educacional, fundamental para o entendimento do mesmo. A escuta e valorização
da realidade e da cultura do povo são marcas centrais de sua forma de compreender o ensino.
1.1.1 Movimento estudantil e organização dos empresários: o arrefecimento
da Pedagogia Nova.
Um outro importante movimento que merece destaque é a mobilização dos
universitários em 1968, que teve como culminância a tomada pelos alunos, de várias escolas
superiores, em demonstrações de resistência à reforma universitária, que remodelava a
Universidade Brasileira sob a gerência de assessores dos EEUU. Mas também, não como
negar que os tempos redesenhavam os lugares juvenis e estudantis, tão bem exemplificados
pelo movimento de maio de 1968,
50
na França. Nas reivindicações da reforma universitária,
feitas pelo movimento estudantil, também ressoavam matrizes da concepção humanista
moderna.
O clima do Concílio Vaticano II e o advento da “teologia da libertação” conduziram a
uma radicalização político-social da pedagogia católica-brasileira, que havia passado por
uma renovação metodológica. Os educadores católicos engajavam-se nos processos de
50 Em Maio de 1968 ocorreu uma greve geral na França que adquiriu significado e proporções revolucionárias. Esse
movimento teve início com uma série de greves estudantis em algumas universidades e escolas de ensino secundário em
Paris, após confrontos com a administração e a polícia. À tentativa de contenção das greves com ações policiais levou ao
acirramento do conflito culminando numa greve geral de estudantes e em greves com ocupações de fábricas em toda a
França, às quais aderiram dez milhões de trabalhadores, aproximadamente dois terços dos trabalhadores franceses. Liderada
por adeptos das idéias esquerdistas, comunistas ou anarquistas, muitos viram na situação a oportunidade de confrontar os
valores da sociedade de então.
73
desenvolvimento e libertação da população (os “oprimidos”). Surgia uma parcela do
movimento católico, impulsionada pelo arejamento propiciado pelo Concílio Vaticano II,
realizado em 1959 e 1965, que buscava a formulação de uma ideologia revolucionária
inspirada no Cristianismo. A Ação Popular (AP), a mais típica dessa tendência, foi criada em
1963, cujas opções fundamentais que assumiu buscavam responder aos desafios da realidade
brasileira, a partir de uma análise realista do processo social e do momento histórico que
vivíamos.
Destacaram-se a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Estudantil
Católica (JEC), grupos católicos derivados de organismos integrantes da Ação Católica que
lançaram-se em programas de educação popular, especialmente de alfabetização de adultos.
Esse movimento de radicalização das idéias renovadoras no campo pedagógico
expressou-se não apenas pelos intensos movimentos de educação popular e na pedagogia da
libertação, antes analisados; mas também, pela pedagogia tecnicista que surgia em paralelo,
sinalizando que sobrevinha a crise da pedagogia nova.
Saviani (op.cit.) atribui o arrefecimento do entusiasmo pela pedagogia nova em
função dos avanços tecnológicos e suas conseqüências nos processos de comunicação e dos
efeitos da guerra fria
51
. Ressalte-se, também, a influência da expansão dos meios de
comunicação de massa que reforçou a idéia de que não se devia depositar tantas esperanças
educativas na escola. Ganhava força o entendimento de que a escola não era o único e nem
mesmo o principal espaço educativo. Tais perspectivas pareciam corroborar com um
desinvestimento na educação.
Com respeito a Guerra fria, o lançamento do Sputnik pela União Soviética em 1956,
saindo à frente dos Estados Unidos na corrida espacial, provocou uma onda de
questionamentos à educação nova. O êxito científico e tecnológico dos russos contradizia a
difundida propaganda ocidental que visava convencer que a educação na Rússia possuía viés
autoritário e antidemocrático, sendo inferior a dos EUA. Associou-se o sucesso russo a uma
provável formação científica mais sólida do que a do Ocidente. Reforçaram-se, assim,
51 A Guerra Fria diz respeito aos esforços dos Estados Unidos, principal potência capitalista, para garantir seu controle e
poderio, iniciada desde a década de 50 após a ameaça da Revolução Cubana, o objetivo era afastar qualquer vestígio de
influência comunista nos países de economia dependente e manter-se soberana.
74
argumentos que acusavam as escolas americanas de darem pouca importância aos conteúdos
ensinados às crianças.
É importante ressaltar que no Brasil, à medida que se ampliava a mobilização popular,
com as Ligas Camponesas no meio rural, os sindicatos de operários nas cidades, as
organizações de estudantes secundaristas e universitários e os movimentos de cultura e
educação popular, mobilizou-se também a classe empresarial. O Instituto de Ação
Democrática (IBAD), primeira organização empresarial voltada para a ação política é um dos
fortes movimentos dessa categoria. Sua finalidade era combater o comunismo e o chamado
estilo populista de Juscelino
52
.
O IBAD, era financiado por grandes empresas nacionais e internacionais,
especialmente norte-americanas. Tinha papel influente nos bastidores da política, com ações
que se caracterizavam por intensa propaganda. Financiava candidatos para as eleições
legislativas e para os governos estaduais. Em 1963, em função da ação de deputados não
comprometidos com o instituto, este foi fechado por determinação da Justiça.
A outra investida dos empresários foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES), fundado em 1961 que permaneceu em atividade até 1971, quando se auto-dissolveu.
Envolvia empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo, articulados com empresários
multinacionais e com a escola Superior de Guerra (ESG).
Suas ações ideológico, social e político-militar desenvolviam a doutrinação por meio
da guerra psicológica, fazendo uso dos meios de comunicação em massa como o rádio, a
televisão, cartuns e filmes em articulação com órgãos da imprensa, entidades sindicais dos
industriais e entidades de representações femininas, agindo no meio estudantil, entre os
trabalhadores da indústria, junto aos camponeses, nos partidos e no Congresso, visando
desagregar, em todos esses domínios, as organizações que assumiam a defesa dos interesses
populares. Articulou-se com o IBAD na esfera ideológico-social.
52 Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902 1976), conhecido como JK, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961.
Construiu em torno de si uma aura de simpatia e confiança entre os brasileiros. a grande ênfase de seu governo era a
industrialização. A finalidade das metas juscelinistas era a "valorização do homem", cujo objetivo poderia ser atingido a
partir da industrialização e a atenção as necessidades infra-estruturais. Os ganhos sociais, em sua perspectiva, seriam
conseqüências dos avanços. "com especial atenção para as necessidades infra-estruturais". (CUNHA, 2002)
75
O IPES era financiado por grandes empresas nacionais e multinacionais e para realizar
suas atividades se estruturava em setores de trabalho, sendo o educacional um deles. Dentre
suas ações ligadas à educação, destaca-se a organização de dois grandes eventos, cujo
objetivo era influir legislativamente e formar opinião: o “Simpósio sobre a reforma da
educação” em 1964 e o Fórum “A educação que nos convém”. No Simpósio, o objetivo era
discutir as linhas mestras de uma política educacional que viabilizasse o pido
desenvolvimento econômico e social do país. Um documento para orientar os debates foi
produzido cujo conteúdo girava em torno do vetor do desenvolvimento econômico,
considerando os investimentos no ensino como destinados a assegurar o aumento da
produtividade na escola. Na perspectiva desse grupo, o ensino Médio teria como objetivo a
preparação dos profissionais necessários ao desenvolvimento econômico e social do país de
acordo com diagnóstico da demanda efetiva de mão-de-obra qualificada. Ao ensino superior
eram atribuídas as funções de formar mão-de-obra especializada requerida pelas empresas e
preparar quadros dirigentes do país. As orientações gerais traduzidas nos objetivos indicados e
a referência a aspectos específicos como a profissionalização do ensino médio, a integração
dos cursos superiores de formação tecnológica com as empresas e a precedência dos
Ministérios de Planejamento sobre o da Educação na planificação educacional são elementos
propostos por esse grupo que integrarão as reformas de ensino do governo militar.
No Fórum “A educação que nos convém”, se explicitavam ainda mais claramente os
aspectos constitutivos da visão pedagógica que prevaleceria na década seguinte. O Fórum
exerceu pressão junto ao Estado, apontando para algumas questões cujo sentido geral é
traduzido pela ênfase nos elementos dispostas pela teoria do capital humano
53
; na educação
como formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos
parâmetros da ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o
trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio de formar, mediante
53 Theodore W. Schultz, professor do departamento de economia da Universidade de Chicago, foi o principal formulador da
idéia de capital humano. Esta liga-se a preocupação de explicar os ganhos da produtividade gerados pelo fator humano. O
trabalho humano, sendo qualificado por meio da educação, seria um dos principais instrumentos para a ampliação da
produtividade econômica, e, portanto, das taxas de lucro do capital. Aplicada ao campo educacional, a idéia de capital
humano gerou uma concepção tecnicista sobre o ensino e sobre a organização da educação. No Brasil, a publicação de seu
livro “O capital humano” em 1967, fortalece as idéias tecnicistas que então se fermentavam.(Saviani, 2007)
76
habilitações profissionais a mão-de-obra técnica requerida pelo mercado de trabalho; na
diversificação do ensino superior, introduzindo-se cursos de curta duração voltados par ao
atendimento da demanda de profissionais qualificados; no destaque conferido à utilização dos
meios de comunicação de massa e novas tecnologias como recursos pedagógicos; na
valorização do planejamento como caminho para a racionalização dos investimentos e
aumento de sua produtividade ; na proposta de criação e um amplo programa de alfabetização
centrado nas ações das comunidades locais. Eis a concepção pedagógica articulada pelo
IPES, que veio a ser incorporada nas reformas educativas instituídas pela lei da reforma
universitária, pela lei relativa ao ensino de 1º e 2º graus e pela criação do Movimento
Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL).
Os empresários ligados ao IPES articulavam-se com os colegas americanos, contando
inclusive com sua colaboração financeira também no planejamento e na execução
orçamentária da educação. Assim, estreitou-se a relação com os Estados Unidos, realizando-
se acordos de financiamento da educação brasileira com a intermediação da Agência dos
Estados Unidos para o desenvolvimento Internacional
54
(USAID). Muitos professores
brasileiros fizeram cursos em universidades nos Estados Unidos e no Brasil foram realizados
cursos supervisionados por técnicos americanos (entre 1959 e 1964). Pedagogicamente a
perspectiva que orientava a execução dos programas americanos pode ser definida como
tecnicista aonde evidenciava-se a ênfase nos todos e técnicas de ensino, na projeção de
filmes didáticos confeccionados nos Estados Unidos e na valorização dos recursos
audiovisuais.
Vimos então nessa parte que tomavam corpo movimentos de matrizes ideológicas
opostas, ancorados em concepções de educação igualmente distintas. Tais forças viviam um
constante embate e configuravam o cenário da época. Será esse ambiente de contradições
54 As ações que compunham a ajuda internacional para a educação brasileira partiam do pressuposto que nosso
“subdesenvolvimento” era uma fase anterior ao período de desenvolvimento (nos moldes dos países desenvolvidos).
Atribuíam nosso “atraso” a elementos ligados a uma sociedade tida como tradicional, tais como a predominância do setor
agrário sobre o industrial, a presença política de grupos sociais oligárquicos e tradicionais na estrutura do poder. Tal teoria do
subdesenvolvimento era tendenciosa e inconsistente, tendo em vista que ofereciam uma interpretação parcial e distorcida do
país, com o objetivo de propor estratégias de ação que modificassem os hábitos de consumo, de ação e de pensamento das
populações dos países “em atraso”, como forma de colocá-los em consonância com o estágio de desenvolvimento dos países
“mais avançados”. O problema do subdesenvolvimento era tratado como um problema técnico, que seria resolvido com
planejamento. Daí a superioridade do planejamento sobre a ação planejada. Os problemas dos investimentos educacionais
estariam ligados à falta de planos concretos, à falta de preparo de pessoal e coisas que tais (ROMANELLI, 1999).
77
entre aspectos da política e do modelo econômico, que influenciavam nos projetos para a
educação, que permeará toda a década de 60, continuando a ecoar em 70. Disso trataremos no
próximo capítulo.
1.1.2 A reforma universitária no final da década
A Reforma universitária foi realizada em função das pressões constantes das
tendências modernizadoras que partiam do interior do País, dos Estados Unidos, dos
organismos econômicos, educacionais e culturais internacionais. A rebelião estudantil era
uma ameaça às mudanças almejadas, o que fazia com que a reforma universitária se dirigisse
a uma dupla direção. Por um lado, modernizaria o sistema de ensino superior e, por outro,
controlaria as inovações expressas nas demandas estudantis. Reforma que, portanto, atendia
sobretudo aos interesses do desenvolvimento econômico, apontado pelas forças internas e
externas interessadas na modernização.
As posições assumidas pela reforma foram pautadas pelos dirigentes americanos da
Agência Internacional para o Desenvolvimento
55
(AID). O papel assumido pela ajuda
internacional é preponderante nessa década (se estendendo ainda nas futuras). A AID
privilegia o ensino superior tendo em vista sua função de redefinição da situação dos
indivíduos na estrutura social. (ROMANELLI, 1999)
Valnir Chagas
56
foi uma figura emblemática do final dessa década (e sobretudo nos
anos 70), integrando o grupo de trabalho
57
para elaborar o projeto de reforma universitária,
que veio a converter-se na Lei n.5.540, promulgada em 1968.
55 É importante ressaltar que a educação é compreendida pela AID como um caminho para consolidar uma nova ideologia
que se sintoniza com uma determinada idéia de modernidade e de desenvolvimento, exposta por nós em outro comentário
de rodapé. No caso da expansão econômica que se pretendia e da conseqüente concepção ideológica que daria condições à
ela, vemos, sobretudo na segunda metade da década de 60, crescer a demanda por recursos humanos de vários níveis de
qualificação e também por remanejamento das forças na estrutura do poder. Vejamos que a modernização é utilizada como
ideologia de justificação, necessitando aumentar as oportunidades educacionais em determinada direção. No fim das contas,
as mudanças que ocorrem nessa época não trazem reestruturações efetivas, apenas mantém-se uma estrutura, que, ainda que
amplie quantitativamente a oferta de vagas no ensino, continua garantindo que parte da população fique sem acesso a esferas
mais altas de formação, garantindo uma mão-de-obra de baixa escolaridade, necessária para a estrutura capitalista moderna.
(ROMANELLI, 1999)
56 Valnir Cavalcante Chagas (1921 2006), cearense de Morada Nova, organizou o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI), dirigindo-o de 1948 a 1953). Foi professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará
entre 1960 e 1974, quando passou a lecionar na Universidade de Brasília, onde permaneceu até 1991. Foi membro do
Conselho Federal de Educação (1962 a 1976), elaborou praticamente todos os pareceres importantes relativos às reformas do
78
A Lei 5540/68, ancorava-se em uma política de desenvolvimentismo, eficiência,
produtividade, por um lado e controle repressão de outro. A idéia da profissionalização
expressa na proposta de cursos de curta duração bem como a existência de cursos técnicos,
traz também nas entrelinhas a necessidade de uma mão-de-obra barata de meros executantes e
não pesquisadores, mantendo nossa dependência em relação aos países desenvolvidos
(ARANHA, 1989).
Em linhas gerais, a lei introduzia diversas modificações na LDB (no que se referia ao
ensino Superior). Extinguia a cátedra
58
, fez a unificação do vestibular e aglutinou as
faculdades em universidades, concentrando recursos materiais e humanos, com o foco na
eficácia e produtividade. Instituiu também o curso básico para suprir as deficiências do
grau (antiga nomenclatura do atual Ensino Médio) e, no ciclo profissional, estabeleceu os
cursos de curta duração e longa duração. Além disso, desenvolveu também cursos de pós-
graduação, tendo em vista, dentre outras questões, compensar a existência dos cursos de curta
duração.
A administração também é reestruturada, visando sobretudo racionalizar e modernizar
o modelo universitário, integrando cursos e disciplinas. Passa a ser permitido a matrícula por
disciplina, instituindo-se o sistema de créditos, em função de uma nova composição
curricular. Os reitores e diretores não precisavam ser ligados necessariamente ao corpo
docente universitário, bastavam que possuíssem “alto tirocínio da vida pública ou
empresarial” Os cursos foram divididos em departamentos, que congregavam disciplinas
afins, impedindo assim a coexistência de disciplinas idênticas multiplicadas em várias
ensino, ao curso de pedagogia, assim como às licenciaturas e formação de professores, de modo geral. Em 1965 fez
especialização nos Estados Unidos e em 1969 na Inglaterra. Considerava-se discípulo de Anísio Teixeira. (SAVIANI, 2007).
57 A frase entre aspas faz parte do relatório do Grupo de Trabalho (GT) que foi criado em 1968 com o objetivo de estudar a
forma da Universidade brasileira, visando à sua modernização, flexibilidade administrativa e formação de recursos humanos
de alto nível para o desenvolvimento do país. Também foi produzido nesse período o relatório Meira Matos, que junto com o
do GT, teve papel importante no delineamento objetivo da política educacional. É importante ressaltar que tais relatórios
foram precedidos e orientados pelos pensamentos de John Hilliard, diretor do Office of Education and Human resources da
AID e Rudolph Atcon, membro da AID, que assinaram os primeiros acordos do MEC-USAID, orientando programas através
de uma publicação do MEC de 1966, em que se colocavam as linhas gerais de reformulação da Universidade brasileira.
(ROMANELLI, 1999)
58 A cátedra (sg.cadeira magistral/ cadeira pontifícia), que conferia a um professor a prioridade em determinada cadeira era
responsável pela existência de verdadeiros “feudos” dentro dos cursos de formação, acirrando vaidades e fazendo com que os
mesmos recursos fosse utilizados para objetivos semelhantes, como por exemplo, a existência de mais de uma biblioteca sem
a efetiva necessidade. Isso trazia maiores gastos, considerados desnecessários. (ROMANELLI, 1999)
79
secções ou unidades, com isso dando economia à utilização de recursos (ROMANELLI,
op.cit.).
Esta mudança, gerou a perda da autonomia da universidade, resultado do controle
externo de suas decisões tais como a decisão pela escolha do reitor, seleção e nomeação de
pessoal e divisão em departamentos, o que de certa forma fragmentou a antiga unidade. Tal
divisão também desfez grupos estáveis, uma vez que os alunos estavam divididos em função
da matrícula por disciplinas, esfacelando a interação entre as pessoas e desmobilizando
possíveis ações estudantis (ARANHA, op.cit.).
É importante, também, citar medidas anteriores à reforma, que continuaram a vigorar.
Uma delas é o Decreto-Lei 477, de 1969 que liquidou com o protesto estudantil ao proibir
movimentos de greve e agitações de caráter político.
A modernização criou uma complexidade administrativa e uma teia de mecanismos de
controle dentro e fora da Universidade, que segundo Romanelli (op.cit) a tornou mais
conservadora na sua estrutura geral. Em síntese, o que vale a pena sublinharmos é que a
pretensa modernização universitária e controle da aplicação de recursos, acarretaram perda da
autonomia universitária e mais esquemas de controle e dominação, dentro e fora da
Universidade.
Agora vejamos, por onde andava Célia durante todos esses acontecimentos.
1.2 Entre o dia e a noite: Incertezas e confianças
Tive meu primeiro filho aos 22 anos, 9 meses depois de meu casamento.
Também ensinava na escola normal e num ginásio municipal que abrira num
bairro popular: O Luiz Viana. Não faltava às aulas, cuidava do enxoval.
Sonhava com uma vida que se alargava, que me surpreendia e perguntava
pra mim mesma: “Até onde? A qualquer hora o anel que era de vidro, se
quebraria?”.
Conquistar uma autonomia que começava com uma casa que era minha e de
um companheiro apaixonante, que como eu lutava, procurando saídas éticas
para tantas opressões sociais, tantas histórias que também nos envolviam,
era algo imenso, onde cabiam muitas experiências, com suas ambigüidades.
(Célia em entrevista, 2007)
A década de 60 caracterizou-se pelo início de novos papéis na vida de Célia Linhares.
A graduação em Pedagogia na Universidade Federal do Maranhão (1957 1960), as aulas no
ginásio municipal “Luiz Viana”, o início da docência no ensino superior, a assessoria à
Secretaria de Educação Maranhense, direção da Rádio Educadora do Maranhão, obtenção de
80
título de mestrado... novas frentes que se abriam em sua vida profissional que então se
iniciava. Simultaneamente, nascia a Célia mãe e esposa. Seu casamento com José Linhares no
ano de 1959, seria brindado nove meses depois com o nascimento de Mário, primeiro filho,
em 1960.
Sobre a sua formação no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Maranhão,
Célia nos conta que no início as instituições universitárias eram separadas, ligadas à Igreja
que com um fundo específico havia erguido diferentes instituições. No prédio da Pedagogia
também funcionavam os cursos de Filosofia, Ciências e Letras. Célia sempre teve especial
atração por filosofia e o curso atendeu às suas expectativas de estudar esta área de seu
interesse.
Sobre seu casamento com José Linhares, Célia ressalta aspectos do companheiro, com
os quais se irmanava:
Em 1959, casei com José Linhares, então estudante de Direito e eu bacharel
em Pedagogia. Ele era jornalista, colocou-se contra a pena de morte e
defendia o nacionalismo contra as investidas do imperialismo dos Estados
Unidos. Sonhávamos com o petróleo brasileiro jorrando dos fundos dos
mares, para dissolver desigualdades e tiranias. (Célia Linhares em As coisas
findas, 2007)
O convite para a docência no nível superior, em 1960, foi quase um “susto”. Antes
mesmo de concluir o curso na íntegra, foi selecionada para lecionar na própria universidade
em que estudava, tendo em vista suas boas notas e desempenho acadêmico, além da
necessidade da instituição de compor seus quadros. Para a jovem professora de 22 anos
ocupar esse novo lugar era um desafio e tanto, vivido por vezes com alguns sobressaltos:
(...) Numa turma em que eu lecionava, uma de minhas alunas era uma freira
que era diretora de Serviço Social, uma mulher muito alta e poderosa. Eu
com 22 ou 23 anos, via aquela diretora, freira, era minha estudante! Puxa!
Eu tinha tanto medo dela! Veja lá, eu estudava na Universidade Federal do
Maranhão, essa professora que era minha aluna, que estava terminando o
curso universitário, era uma mulher muito mais velha do que eu, muito mais
alta do que eu, muito mais forte do que eu, muito mais segura do que eu, era
poderosa, diretora da comunidade das religiosas, que tinha faculdade de
Serviço Social! Ainda por cima ela era sulista (paulista) e tinha sido formada
pela PUC do Rio em Serviço Social! Ela estava fazendo licenciatura, puxa!
Era um “GIGANTE” na minha frente. Enfim, isso para mim foi um impacto!
(Célia Linhares, entrevista, 2007)
Os três primeiros filhos nasceram, no Maranhão, nos anos 60. Mário, Paulo, Ângela e
Andréia nos Estados Unidos (para onde foram, no final dos anos 60, Célia e José Linhares
81
cursar o mestrado). A maternidade ampliava seu desejo de atuar na educação, enriquecendo
de delicadezas suas experiências afetivo-familiares.
À medida que nossas crianças nasciam fui sentindo como o choro das
crianças repercutia diferente em mim. Queria intervir nas ruas, socorrendo
crianças e minhas aulas passaram a ter uma atmosfera de “O pequeno
príncipe”, de uma delicadeza, com as mensagens da vida, mensagens de
crianças, mesmo quando engravatadas ou de salto alto como professores e
professoras.
Cada filho, cada filha trouxe imensidões de experiências que aumentavam
meu desejo de ensinar, de educar, mesmo me sentindo muito pequena,
despreparada para a proporção gigantesca daquele ofício que ia aprendendo.
Fui percebendo como tinha medo dos erros, como eles me paralisavam e
como nosso mundinho se interligava com muitos mundões, dos quais pouco
sabia. Tinha um sentimento de estranheza diante da vida, do mundo.
Foi nesse período que algumas universidades viraram fundações. Até então havia uma
grande instabilidade financeira para quem trabalhava nas universidades. Célia nos conta que,
como professora horista, chegava a receber seu salário com atrasos de 4 a 5 meses. Como
fundação, a Universidade Federal do Maranhão em 1966-67 uma outra profissionalidade se
impôs. Célia passou a dar aulas não só na Faculdade de Educação, mas também para a
Faculdade de Serviço Social.
Outro eixo significativo de ações da professora, dizia respeito a seu vínculo com a
Secretaria de Educação do Maranhão, no então governo Sarney (que governou o Maranhão
entre os anos de 1966 a 1971). Ela foi convidada por um ex-professor seu, o Professor José
Maria Cabral Marques para assessorar a Secretaria de Educação. Logo, ela projetou ações,
visando incentivar estudos das tradições e culturas indígenas, recuperando aspectos da própria
herança cultural maranhense. Essa atenção às questões culturais, ao resgate da identidade
cultural de um povo, será mais tarde foco de pesquisas de nossa professora. Ressalte-se a sua
sintonia com as questões que se elaboravam na época e que buscavam a valorização da
expressão popular e de suas experiências.
Vendo aquela história da aprendizagem que não caminhava eu tive uma idéia
muito da legal, que eu acho boa até hoje, que foi a de organizar por
emulação o sistema de ensino, para participar de uma grande maratona que
tivesse os índios como foco. Os estudos da cultura indígena, voltados um
pouco para a grandeza de uma categoria étnico-racial que estava sendo
esquecida, que era oprimida.
Ali fizemos uma grande programação que saiu na televisão, muitos
restaurantes passaram a ter nomes indígenas, começou de certa maneira um
aproveitamento desse movimento, aquilo de certa maneira respingou na
82
sociedade. Organizamos uma equipe da universidade, os melhores
professores para me ajudar a organizar as maratonas de trabalho. Era Rosa
Mochel, excelente Professora de Geografia e uma mulher admirável. Ela era
comunista e sabia afirmar-se, respeitando posições diversas, desde que não
ameaçasse a liberdade. Mas ela não era uma exceção. A equipe era formada
de professores de alta qualificação humana, cidadã e profissional. Todos
pensavam com ramificações e com vôos inesperados. Lembro-me de um
professor de história, outro de antropologia. Fomos com os meninos
vencedores da maratona para uma tribo indígena, a dos Canelas. Era tudo tão
precário... Eu tinha vinte e alguns anos e uma responsabilidade imensa,
mesmo compartilhando com a equipe de professoras e professores, mas a
coordenação era minha. A comida que levamos, mas das vezes, repartíamos
com os indígenas a quem estávamos visitando. À noite, eles dançavam nos
homenageando. Lembro que caiu uma chuva muito grande... Os caminhos
ficaram interrompidos. Ficamos isolados. Fomos resgatados de por um
helicóptero! (Célia Linhares, entrevista, 2007)
Os anos 60, como já vimos, eram tempos de efervescência, no Brasil e no mundo. Por
aqui, vale ressaltar, os acontecimentos razoavelmente recentes no cenário político, tais como o
suicídio de Getúlio Vargas (em 1954), a renúncia de Jânio Quadros e a posse, na Presidência
do Brasil, de João Goulart eram emblemáticos das tensões entre as diversas esferas do poder.
As forças da direita, representadas fortemente pelos militares e aliados, mantinham uma
pressão permanente diante do que consideravam mecanismos de poder que estariam sendo
utilizados para favorecer à subversão comunista no Brasil. Tais tensões repercutiam na família
Linhares. É José Linhares quem resgata aspectos centrais que os impactavam na época:
Nos início dos anos 60, o Brasil enfrentava um profundo embaralhamento
institucional, decorrente da renúncia de Jânio Quadros. Havia um forte
movimento contra a posse do vice João Goulart. Os EUA vigiavam a
América Latina, pois a Revolução Cubana representava um sinal
inquestionável de uma caminhada para o socialismo. Na vida de nossos
estudantes e de pessoas que começavam seu percurso profissional,
repercutia a Revolução Cubana, de um lado nos chamando: “isso é
possível!”. Vivíamos um dilema que eram duas alternativas: de um lado os
“Vietcongs”, nos dizendo, “nós podemos jogar fora o Tio Sam”; Cuba
também nos dizia a mesma coisa. No entanto, do outro uma força se
agrandava no Brasil, cortando o nosso caminho, “por o Brasil não vai!”,.
Tudo parecia nos dizer que não havia uma terceira via para nós! Nós
víamos essas duas possibilidades, e para nós a identificação com os pobres,
com os que sofrem, com a nossa história familiar e essa busca de mais
liberdade era muito mais forte.
Tem uma outra coisa muito importante que era a organização dos grupos de
oposição ao poderia americano, no Brasil e no mundo. Aí estavam o fascínio
exercido por Cuba, as resistências do Vietnã e os grupos que se organizavam
aqui.
A igreja conservadora era terrível, no Maranhão ela era fortíssima, os
empresários também se assustavam com possibilidades de maior
compartilhamento dos poderes e se organizavam. Os Institutos de Pesquisa e
83
Estudos Sociais, o IPES, IBADE
59
, fortaleceram a organização do golpe,
partindo de seus interesses econômicos capitalistas.
Sua difusão era tanto maior porque havia uma ideologia muito amedrontada
em relação às mudanças no poder e, ao mesmo tempo, muito coercitiva, com
os que simpatizavam e se alinhavam com os ventos de esperança que se
espalhavam pela sociedade. Circulavam boatos que criavam atos cruentos
dos comunistas. Dramatizavam cenas e contavam casos, confirmando
expressões de pavor que até viraram anedotas, como: “comunistas comem
crianças”. Enfim ser comunista, ser socialista , era identificar-se com
imagens de ferocidade, de pessoas suspeitas, inimigas do Brasil e dos
brasileiros. (José Linhares, entrevista, 2007)
No cenário mundial a guerra fria, dividia o mundo em dois grandes blocos
hegemônicos, liderados pelos Estados Unidos e União Soviética.
No Brasil as reivindicações trabalhistas são percebidas como uma ameaça comunista.
Em função disso os sindicatos sofrem intervenções.
À época, José Linhares tinha uma expressiva militância sindical como presidente do
Sindicato dos Bancários do Maranhão e em razão disso foi escolhido como primeiro delegado
da recém criada delegacia do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB),
em 61, no meio da crise política do país, fazendo com que acompanhasse bem de perto o
movimento de sua categoria. Ele nos conta um pouco do movimento que efervescia na época:
1964 foi um ano de muita ebulição, a renúncia do Jânio Quadros, com a ida
de João Goulart (Jango) ao poder, mesmo que atravessando um contorno, via
parlamentarismo, para ele poder ser aceito. O estopim da crise foi o comício
das Reformas de Base na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964 . O
Jânio tinha renunciado, em 61. Jango assumiu a Presidência do Brasil,
sustentado por uma luta nacional, de extraordinária envergadura, comandada
por Brizola, com o apoio da União Nacional dos Estudantes (UNE), que,
mesmo com alguma distância em relação ao Jango, endossou a Campanha
pela Legalidade.
Militava com os sindicalistas, com o sindicato dos bancários, que era uma
força muito organizada e participava das discussões nacionais. Até havia
sido indicado para delegado do Ministério do Trabalho. Por todas essas
injunções, vim ao comício. Fiquei assustadíssimo com o clima geral do
comício: ali estavam as mais pujantes forças nacionais, os marinheiros, os
sindicalistas, todos num entusiasmo sem limites, era uma confusão. Voltei
com uma sensação de susto, euforia e medo. Achei que aquilo podia não
terminar bem.
59 Esses dois institutos são mencionados no item 1.1 desse capítulo.
84
Houve em seguida, no dia 19 de março, a “marcha da família com Deus pela
liberdade
60
”, organizada pela ala conservadora do clero, com um grande aval
das mulheres de terços na mão, em parceria com as empresas, que temiam
por seus lucros, caso as reformas se realizassem.
de volta ao Maranhão, nós estávamos reunidos, o pessoal de esquerda,
quando a programação no radinho foi suspensa e ouvimos “tropas militares
se deslocam para o Rio de Janeiro, vindas de Juiz de Fora, comandadas pelo
general Mourão Filho!”. Nosso primeiro movimento foi de festa, É a
revolução!”, o Bandeira Tribuzzi, um poeta maranhense, ficou alucinado, “É
a revolução! É a revolução! Vamos nos preparar!”.
Ficamos ouvindo, ai a gente viu que não era o nosso grupo e então nos
preparamos para ser presos. Muito cedo eu fui destituído do IAPB, fui
chamado ao quartel para depor, fiquei alguns dias, foi todo mundo preso,
uma debandada geral, nos encontramos no quartel. Fui destituído do cargo
de presidente do sindicato também, mas logo convidado a lecionar na
universidade (José Linhares, entrevista, 2007)
Os Linhares começavam a sentir chegar mais perto o movimento repressivo, primeiros
sustos que iam vivendo.
Voltando ao cenário mais amplo, lembram da relevância da produção musical da
época, que enunciava os embates que se travavam socialmente. Especialmente na música
popular brasileira, a bossa nova afirmava-se e difundia-se músicas com forte temática de
cunho social. O movimento tropicalista, encabeçado por músicos como Caetano Veloso,
Rogério Duprat, Gilberto Gil, Júlio Medagli, incentivava a universalização da música
brasileira. Caetano, principal expoente, no campo da MPB, da Tropicália, nos brinda com
“Alegria, alegria”, emblemática dos tempos em questão. Destacamos trechos dessa canção
que expressam esse momento:
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...
O sol se reparte em crimes
60 A “Marcha da família com Deus pela liberdade” foi um movimento organizado no início de 1964 com o objetivo de
sensibilizar a opinião pública contra as medidas que vinham sendo adotadas pelo governo João Goulart. Articulou setores da
classe média, temerosos do “perigo comunista” que eram a favor da deposição do presidente da república. O movimento
consistiu em uma série de manifestações organizadas sobretudo pelo clero e entidades femininas. Aconteceu inicialmente em
São Paulo e depois em outros estados do Brasil.No Rio de Janeiro, a marcha levou às ruas cerca de um milhão de pessoas no
dia 2 de abril de 1964.
85
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores
Eu vou...
Por que não, por que não...
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil...
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou...
Por que não, por que não...
(Alegria, alegria de Caetano Veloso)
Célia reporta-se, aos já mencionados anos 60 e, nele destaca a experiência de Angicos
conduzida por Paulo Freire, e as esperanças que essas concepções de educação despertaram, a
presença do MEB no Maranhão, a destruição terrível que se estabeleceu com o golpe de 64,
mas também a força e a potência dos nossos movimentos na América Latina e no mundo.
Também se detém nos acontecimentos que levaram os jovens universitários franceses em
1968 a mostrar sua insatisfação e a levantarem-se por um outro mundo. Voltaremos a isso.
O impacto das teorizações relacionadas à fome de Josué de Castro é também
expressivo, ela nos conta. Para o autor, a fome era um fenômeno universal, do qual nenhum
país escapava. Expressão biológica dos males sociológicos, intimamente ligados às distorções
econômicas, a que dava o nome de subdesenvolvimento. Reporta-se a imagem do “homem
caranguejo”, que sobrevive no lúgrube ambiente dos mangues do Capiberibe, como um
emblema dessa questão.
Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade bia que travei
conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou
espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros
miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi
a minha Sorbonne. A lama dos mangues de Recife, fervilhando de
caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo,
pensando e sentindo como caranguejo.
São seres anfíbios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio
bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo - este leite de lama
86
-, se faziam irmãos de leite dos caranguejos (CASTRO in Geografia da
Fome, 2002).
É, no entanto o Golpe de 64
61
que provoca o maior impacto nessa década, trazendo
para todos os que lutavam por caminhos mais democráticos, uma aterrorizante vulcanização
de medos.
Mas, nenhum impacto pode ser comparado no Brasil ao golpe de 1964, que
silenciou os discursos divergentes, prendendo e matando os que se opunham
ao regime de força, aqui instalado, oficializando a tortura e inaugurando o
desaparecimento político na história brasileira. (Célia Linhares em “As
coisas findas”, 2007)
Em 1966, José Linhares foi convidado para dirigir a Rádio Educadora Rural do
Maranhão, experiência que marcaria a década dele, de Célia, de seus pares e se entrelaçaria
com a de muitos de seus contemporâneos. Embora nunca tivesse realizado algo do tipo,
Linhares foi montando uma equipe, incluindo alguns técnicos e com Célia se engajaram
firmemente no novo projeto. De vocação democrática, a Rádio configurava-se em um espaço
aberto à participação popular. Sua gestão era coletiva, onde se discutiam as pautas e o teor dos
programas por ela veiculados.
Dentro da rádio educadora foi se construindo um clima de debate geral;
havia um empenho de dialogia. Às vezes, quando me lembro, me dou conta
da beleza desse sonho. Bem sei que um tipo de gestão dessas é quase
impossível numa instituição, num regime capitalista. Num regime de
exceção, meu Deus! é quase impossível pensar. Mas é que tudo conspirava
para percebermos, como nunca, a grandeza avassaladora de um autoritarismo
muito feroz, que nos ameaçava, impregnando velhas práticas. Agora vejo
mais claramente, que por causa de tudo isso, tentávamos um tipo de
organização, onde todo mundo pudesse participar. Era um sonho, que nem
sempre conseguíamos, sobretudo, quando a sobrevivência da Rádio perigou.
Então este problema de mantê-la atuante, viva foi nos afligindo e tomando
61 Vale a pena destacar a criação, na mesma época do Golpe de 64, o Serviço Nacional de Informações - SNI, mediante a Lei
nº. 4.341, cujo texto lhe atribuía a função de "superintender e coordenar as atividades de Informações e Contra-Informações,
em particular as que interessem à Segurança Nacional". Diretamente ligado à Presidência da República, o novo órgão
operaria em proveito do Presidente e do Conselho de Segurança Nacional.
87
mais espaços em nossos debates. Mas tentávamos, pois era também um
momento extremo de perigos e precisávamos nos abrigar uns nos outros,
diante de monstros descomunais... Ah! O valor do perigo! Benjamin
reconheceu as fertilizações dos perigos e fez disto um eixo de seu viver e de
seu pensar!
Mas tínhamos nossas concepções estudadas e compartilhadas com os que
convivíamos naquela época. Por isso, acreditávamos que assim,
discutindo a toda hora, iríamos construindo uma radiofonia educadora. Era
essa nossa concepção: se a rádio é educadora, ela tem que educar para dentro
e para fora. (Célia Linhares, em entrevista, 2007)
O importante também é que nós nos misturávamos com toda a equipe leiga,
a equipe que veio de fora, como o Cresus, que era um garotão. Todo mundo.
Tudo nós decidíamos em reunião. (José Linhares, em entrevista, 2007)
A Rádio pertencia à arquidiocese, representada pela figura de Dom Mota. Sempre que
eram chamados por ele para discutir diretrizes da Rádio, levavam o teor da conversa à equipe.
Certa feita, Dom Mota pediu que transmitissem a missa da padroeira da cidade, Nossa
Senhora das Vitórias. Uma das integrantes da equipe, Dorothy Pritchard (a entrevistada desse
capítulo), colocou-se enfaticamente contra, acreditando que a rádio precisava garantir um
espaço laico, aberto ao povo. A equipe posicionou-se apoiando a decisão por não transmitir a
missa, o que, podemos imaginar, desagradou Dom Mota.
É porque a gente achava que a religião não era para ser identificada com um
fanatismo, com um tipo de ritual mecânico, alimentando práticas como as
garantias do céu, pela compra de indulgências, ou ritos semelhantes,
procedimentos contra as quais Lutero e tantos outros se bateram, tanto
tempo e tantos, tantas de nós, ainda se batem. (Célia, entrevista, 2007)
Vemos aqui que embora ligados ao movimento da Igreja, a posição do grupo rompia
com uma idéia de catequese, focalizando em sua prática a atenção às questões do povo. Isso
evidenciava-se no teor dos programas, de cuja elaboração Célia foi uma das responsáveis,
tematizando as questões populares:
Pude participar de muitos programas e sonhos que confluíam com toda a
equipe da Rádio, desde o seu diretor até o faxineiro. Dorothy Pritchard viveu
comigo muitos momentos especiais. Ela era a responsável por um Programa
infantil, em que eu dava opiniões, o Dona Carochinha, que foi uma
maravilha. Eu fazia vários programas, entre os quais, me agrada destacar um
de Formação de Professores. Esse Programa penetrou nos bairros e nas
localidades mais pobres, discutindo a problemática da educação, da escola,
com professores em sua maioria leigos. Eles mandavam perguntas e fizeram
elos intelectuais, curiosos e afetivos, conosco.
88
Alguns, de uma região praiana chamada Raposo, onde a Rádio vinha
contribuindo para a organização de uma cooperativa de pescadores,
mandavam peixes, outros e outras mandavam patos, galinhas e ovos e uma
professora me convidou para que fosse a madrinha de seu filho.
Escrevia textos, que depois reuni num tipo de apostila, que a ditadura
empurrou para os cantos dos perdidos. Mas, ficou essa experiência de
educação à distância, feita com o “gogó”, a cabeça e suas interligações
viscerais que passavam por uma enorme simpatia popular. (Célia Linhares
em entrevista, 2007)
Como vimos, as rádios tiveram grande difusão na época, sobretudo em programas de
cunho educativo. A presença da Igreja e os diversos movimentos e ações populares foram
também expressivos. Interessante observar que algumas idéias que hoje nos parecem tão
contemporâneas, enraízam-se em experiências que vão longe no tempo, como, por
exemplo, esse ensaio de uma educação à distância promovido pela rádio.
Célia estava ligada aos movimentos que se configuravam então, identificando-se com
um projeto de nação que se queria mais justa, em que a educação tinha papel de destaque.
Era tempo dos MCPs e outras associações semelhantes, da vitalidade
expansiva da UNE, da JUC, das ações de Paulo Freire, da poesia de Ferreira
Goulart. Queríamos um outro Brasil e os professores precisavam estar alertas
para contribuir com essa Pátria que crescia dentro e fora de nós, com o sonho
das Reformas de Base: a agrária, a educacional e todas as demais. Com suas
contradições. (Célia Linhares em entrevista, 2007)
Além dos programas mencionados, Célia se lembra de um outro que realizava com
seu marido, que “pescava” as questões que estavam em ebulição na cidade, dando espaço para
discutir sobre elas na Rádio, exercício de olhar reflexiva e criticamente o tempo em que
viviam.
Outro programa que fazia diariamente com meu marido era o
“Amanhecendo com um outro dia”. O Programa era feito ao vivo às 6:30 e
versava sobre questões educacionais, familiares e políticas que sacudiam a
cidade. Essa foi uma idéia do escritor maranhense, padre e romancista (autor
de Maria da Tempestade, Amar e Sofrer, entre outros) João Mohana que teve
uma ressonância nacional e repercutiu na geração inquieta a que
pertencíamos. (Célia em “As Coisas Findas”, 2007)
O clima da Rádio era contagiante. Havia uma provocação no ar, um movimento
crítico diante das injustiças e desigualdades, expressos nos temas dos programas e nos
comentários dos locutores. Célia nos conta que era comum receberem da própria população
notícias sobre situações ligadas às questões cotidianas, de seu trabalho e vida, que na Rádio
89
ganhavam voz e vez. A Rádio queria falar ao pescador, ao homem da terra, à mulher
trabalhadora, tematizando seu universo de experiências e embates.
Quer dizer, a rádio era um circuito vivo de debates e embates, o tempo todo.
Então, quando foi o programa Entre o dia e a noite” que entrava no ar às 18
horas, nossa idéia era realmente fazer um programa na fronteira, entre o
mundo conhecido e o mundo não conhecido que era uma categoria que
organizava muito os movimentos naquela época, “o homem novo, o homem
velho...”. Escolhemos portanto um horário de fronteira. (Célia em entrevista,
2007)
Uma crônica escrita por minha irmã, Yolanda Soares Freire colocou em
dúvida a própria noção de independência, face aos índices de mortalidade e
fome no Brasil e, particularmente, no Nordeste.
O datilógrafo pegou o texto e cada vez que tinha alguma coisa mais aguçada
ele botava em caixa alta: O BRASIL É INDEPENDENTE?!”. Quando o
locutor o apresentou, o fez em tal tom, que injetou no ar uma audifonia
revolucionária. Ai pronto! A leitura dessa matéria teve um impacto brutal!!!
Célia se refere à nova idéia de homem que se elaborava à época, para o qual a
conscientização da realidade social em que se vivia era fundamental (mote central das idéias
de Freire e, guardadas as diferenças de matrizes ideológicos, de Anísio Teixeira).
Embora o clima geral no país fosse de inquietação e, de certo modo, de sobressalto,
para eles, mesmo após a experiência de Linhares, como presidente do Sindicato dos
Bancários, mencionada, não estavam ainda muito claras as possíveis pressões, censuras e
penalizações que poderiam sofrer.
(...) A gente não aquilatava o abismo em que estávamos para cair, a
gente não avaliava muito bem. Não sabíamos bem como era o “pega
pra capá”, a gente não sabia as imensas proporções do que tocávamos,
mas sentíamos que era preciso resistir. (Célia, entrevista 2007)
No entanto, não demoraria para que sentissem de modo mais evidente as pressões. O
programa escrito por Yolanda, ao qual nos referimos anteriormente, cujo conteúdo corajoso
provocaria reações que trariam a dimensão mais aproximada do contexto em que se inseriam.
Yolanda entregou o texto manuscrito na Rádio. O datilógrafo, transcreveu o texto utilizando
caixa alta para as passagens mais contundentes. Lido de modo entusiasmado pelo locutor,
cada trecho em caixa alta era oralizado com veemência. Em seguida , a ação de um
comandante, que fazendo uso de seu poder, deixava bem clara a insatisfação com o conteúdo
do programa. Descobriram então que a Rádio já era vigiada há algum tempo. Anoitecia...
90
Havia mil teorizações, mil debates. O Maranhão tão distante de tudo, que as
palavras, mesmo aquelas que nos traziam mais esperanças eram seguradas
como tábuas de salvação, quase dogmas... Por exemplo, acreditávamos,
apoiando-nos nos nossos mais queridos autores, que a história tinha uma
marcha irreversível! Tudo muito positivista e nós tão desarmados, urgindo
por alguma segurança, alguma proteção, diante de infinitos fantasmas.
Irreversível “coisa” nenhuma! Nós vimos que nada é irreversível. Mesmo
assim, era um movimento muito coletivo que acionava uma certa audácia e
nos dava algum amparo compartilhado por todas e todos nós. (Célia
Linhares em entrevista, 2007)
Mas, o fato era que o Batalhão ( a sede do Exercito no Maranhão) estava na
escuta, com velhas desconfianças, gravando todos os nossos programas. Nós
não sabíamos disso! ”. (José Linhares)
“Logo que a emissão foi concluída os efeitos apareceram como de uma
verdadeira explosão. O exército resolveu fechar a Rádio. O comandante,
pessoalmente, comandou a operação e ao encontrar-se com o locutor bradou
com a voz prepotente e vitoriosa: O Brasil é in-de-pen-den-te, seu
Cresus.”
62
Começava um período de grande tensão. A ameaça constante pairava no ar. O que
levava aquele grupo de jovens a, mesmo diante do risco da exposição, buscar brechas de
resistência?
Era de um lado uma pressão entre resignar-nos com a ditadura, o que jamais
admitimos – pois isso seria agir contra nós, contra nossos sentimentos mais e
mais forjados pelas nossas vidas, sentimentos que nos irmanavam, entre nós
e aos mais pobres, mais sofridos ou andar num terreno absolutamente
cheio de armadilhas e cadafalsos, de medos, muitos medos. Não tinha uma
terceira via até aonde podíamos enxergar e discutir. Eu me lembro que isso
era muito confuso, muito doloroso para todos nós. (Célia Linhares,
entrevista, 2007)
Difundia-se a idéia de que o comunismo era uma força perigosa. Para o senso comum,
um sinônimo de perda de liberdade, um perigo. Célia podia sentir a presença dessa visão na
expressão de pessoas próximas e na interpretação que davam a algumas situações. Célia
lembra, como exemplo dessa questão, do comentário de um parente a respeito da distribuição
dos rádios, realizada pelo MEB e pela própria Rádio Educadora, para facilitar a audiência aos
62 LINHARES, Célia, Caminhos de Medo e Esperança, In: LINHARES, C. E NUNES, C. Trajetórias de Magistério:
Memórias e Lutas pela Invenção da Escola Pública. Rio de Janeiro, Editora Quartet, 2000, p.34
91
cursos ministrados e aos programas pelas populações rurais tão isoladas dos contactos
contemporâneos. O fato é que a Rádio recebeu de uma agência, “Alemanha Católica” – vários
radinhos para serem distribuídos para a população. Tratava-se, como dissemos anteriormente,
de viabilizar o instrumento técnico necessário para que fosse possível acompanhar a
programação da rádio. Esse parente, com sua importância no circuito da minha família, ao
tomar conhecimento de tal iniciativa, disparou: “esse é o comunismo, pois tirou a
liberdade!”.
Foi como se jogasse, com sua autoridade, numa denúncia temível, fixando
um rótulo que me descriminava e me fazia um ser ameaçador e, por isso,
ameaçada. Entendi os processos da Inquisição e como eles me pareceram
inexoráveis! Nos seus olhos faiscavam ódio, poder, triunfo e uma inveja
repressiva. “Olha daí, essa filha de uma viúva, o que ela pensa que é, e que
pode fazer do Brasil. Casada com um comunista, ela e essas pessoas, com
quem eles andam, estão preparando o comunismo, ou a chegada do
comunismo! Eles são socialistas, eles estão educando os filhos deles no
socialismo”. Seu olhar faiscava, seus lábios crispavam e fui confirmando
como se iam produzindo as “pessoas perigosas” que deveriam ser punidas.
Um olhar do “já sei” que relampejava entre vizinhos, colegas e que vão nos
cercando, com implicações de suspeitas. Então corria um sangue frio,
quando colocava meus pequenos no colo e os via começando seus percursos,
com as curvas, algumas herdadas de nós...Eram muitas tensões... (Célia em
entrevista, 2007)
Tensões que ecoavam também na vida fora da Rádio, na preocupação com os filhos,
numa aflição que acompanhava Célia, permanentemente, e que ela não sabia como nomear.
A Rádio fechada, a atitude inibidora do comandante era só o início de pressões
maiores que incidiriam sobre essa emissora e que se avolumavam com o inquérito policial.
Eu e Linhares estávamos assistindo Gandhi no cinema Éden. Eu estava tão
aflita... quando cheguei em casa nosso filho Paulo havia se machucado,
brincando... Nós morávamos num prédio, num conjunto dos Bancários. Hoje
é um tipo de residência popular, mas naquela época era uma coisa de classe
média/média.. Paulo (uns 4 amos) caiu e machucou muito em cima dos
olhos. Íamos levá-lo para o hospital, quando então, soou uma chamada
telefônica. A voz apavorada encheu nossa salinha de assombro e se juntou
com a figura de nosso Paulinho machucado e deitado no sofá. “Doutor
Linhares, a Rádio educadora está cercada!”, e Linhares perguntou, “mas o
que foi?”, “Foi o programa das mulheres!”. A rádio educadora estava
cercada! A Rádio cercada pelas forças militares! Linhares pensou em me
tirar do Brasil, Os temores cresciam... mas como sair?! (Célia Linhares em
entrevista, 2007)
92
Eram tempos difíceis. Mais de um episódio de repressão à Rádio tiveram curso. José
Linhares relembra algumas tensões:
Célia teve uma participação muito grande na Rádio educadora. Foi um
período muito difícil. Para você ter uma idéia, uma vez fui a São Paulo para
comprar uns equipamentos e quando eu voltei, alguém da Rádio educadora
foi me apanhar numa caminhonete. Eu perguntei a ele: “como é que estão as
coisas na rádio?”, e ele disse, “tudo bem!”, que não estava tudo bem, a
Rádio havia sido cercada pelos militares! Uma missa camponesa tinha sido o
estopim da situação. Eu nem sabia pois estava em São Paulo dez dias.
Tinha sido um padre, da hierarquia da Igreja, da ala reacionária,
conservadora que nos denunciou.
Mas, nós chegamos a experiências tão avançadas para a época que me
lembro de celebramos uma missa, em torno da mesa como fez Jesus, fizemos
a missa, consagramos o pão e o vinho e distribuímos como hóstia. (José
Linhares em entrevista, 2007)
A gravidade do movimento ditatorial evidenciava-se. Amigos e conhecidos
começavam a sair do Brasil, a se mudar, a desaparecer dos circuitos ou a se ajustar a outras
oportunidades. Chegavam notícias das torturas. Diante da repressão da ditadura, a Rádio foi
fechada e alguns de seus representantes, presos. Célia foi depor na polícia federal,
conseguindo ser liberada, talvez pela sua própria figura, pelo seu carisma, pela sua
popularidade. Eles sabiam muito de sua trajetória, que era querida na Universidade, que fazia
palestras em bairros, que vivia misturada com as ações populares da Igreja. Disseram que não
havia nada efetivamente que depusesse contra sua idoneidade, mas aconselharam-na a ter
mais cuidado.
O golpe foi muito terrível em 64, mas foi em 68, considerado um golpe
dentro do golpe, e com AI-5
63
que a ditadura mostrou toda a crueldade de
que ela era capaz, aquelas listas nos aeroportos, os subversivos catados, os
opositores sendo presos, punidos e desaparecidos. (Célia Linhares em
entrevista, 2007)
63 O Ato Institucional nº. 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a
expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de
ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes
para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.
(http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/htm/fatos/AI5.htm
acesso em 29 de abril de 2007)
93
Outros episódios de repressão e controle de expressão davam o tom dos ‘novos’
tempos. Em 1968, Célia havia sido escolhida como paraninfa da turma de formandos da
Universidade Federal do Maranhão; ela conta que, na véspera da formatura, recebeu uma
ligação ameaçadora: “olha professora, você vai poder falar se mostrar o seu discurso!”.
Era da parte do tal comando militar que atuava na vigília dos “militantes”. Célia conta que,
apesar dos medos e apreensões, era impossível não reagir diante de afrontas como essa, o que
fez entre sobressaltos e com o coração pulando, também de uma força que ia brotando e
revigorando-a.
Eu era novinha e embora rebelde, nunca fui do tipo de “tirar sangue da
bochecha de ninguém”. Mesmo assim, respondi na mesma hora, “olha, não
tem possibilidade de mostrar o que eu vou ler antes da hora, mas se o senhor
estiver interessado, e escute!”. Não sei nem se eles estavam na hora, mas
quando me chamaram, me levantei e fui. Estava todo mundo com muito
medo.
Embrulhada com este, outras histórias triunfalistas, daquelas que se
desfiam quando vêm o outro, no caso, a outra, prestes a cair. Lembro, por
exemplo, de um episódio que envolveu uma professorinha, que foi minha
professora. Dessas do tipo amável, mas que perscruta, olha, que às vezes
leva e outras tantas traz, que numa ocasião difícil, chegou me advertindo:
“eu te avisei, não disse?!”. O tom era ameaçador; então respondi:
“Professora, a senhora me avisou e, tem mais, eu gravei tudo que a senhora
disse; está tudo gravado!”. Ela mudou de cor, porque viu que aquilo era um
documento; então continuei: “a senhora não avance nessa direção queestá
tudo documentado!”. Mas eu nem tinha feito isso. Na hora me pareceu que
aquilo poderia ser um expediente para travar aquele maquiavelismo dela.
Não sei se conseguimos. (Célia Linhares em entrevista, 2007)
Célia não se reporta a seus atos de enfrentamento como quem relata uma bravura.
Antes, não se furta a comentar o medo que acompanhava suas ações, as dúvidas e
inseguranças que a acompanhavam. No entanto, quando a questionei sobre o que a motivava a
enfrentar, ainda que com tantos receios, as situações que viveu, ela ressalta seu sentimento de
que “não havia outra via”, era o que era preciso ser feito.
Nós sempre tivemos alguma noção do que acontecia, mas fomos vendo que a
gravidade era ainda muito maior, e que ela podia nos tocar muito de perto.
Não parecia para nós que a gente pudesse recuar. Quando levamos o Paulo
para o hospital, no episódio do acidente que relatei, eu lembro de que á ia
chorando; pois é muito doloroso, a gente ter um novelo de relações sociais
que nos envolvem, nos formam e que não sabermos como conviver mais
com tudo aquilo, que no fundo tanto amamos. Estávamos um pouco a mercê
daquela situação que era maior do que nós. Não tínhamos como nos colocar
com clareza e segurança.
94
A experiência na Rádio marcaria significativamente Célia, José e seus companheiros e
companheiras. Nos próximos vôos do casal, ainda seria possível ouvir os ecos da militância
na Rádio.
No ano de 1968, final da década, Célia e José conseguem uma bolsa de mestrado na
Michigan State University, após mais percalços.
No final da década dos 60 obtive o meu mestrado, através de uma bolsa
mediada pela Sudene
64
/USAID
65
e para a qual fomos selecionados, meu
marido e eu, como professores da UFMA. Vejam as ambivalências e
contradições presentes na vida, na história. Foi a Sudene, com seus
convênios com a Usaid que nos selecionou. Por que? Por sermos jovens, de
alguma maneira promissores? Pela nossa liderança em São Luís? (Célia
Linhares em entrevista, 2007)
É importante sublinhar que a aprovação para o mestrado não tinha sido imediata. O
tempo entre os primeiros contatos e a ida efetiva para os EUA foi de mais de um ano. Várias
foram as exigências e os impedimentos que se interpuseram no momento inicial para os dois,
sobretudo para José. Informações sobre suas atuações “subversivas” eram conhecidas por
lá, o que levantava suspeitas sobre ele.
Além da atuação na Rádio e de toda polêmica que ela suscitava, um outro episódio
contribuiu para que José fosse visto com reserva pelo consulado americano. José era professor
de sociologia da Universidade Federal do Maranhão. Certa ocasião ele concedeu uma
entrevista muito polêmica à televisão, que se iniciava em São Luis, a respeito de um
programa, financiado por uma organização americana. Tal programa que estava sendo
implementado consistia na aplicação de dispositivos intra-uterino (DIU), um contraceptivo,
nas mulheres brasileiras, particularmente nas mulheres maranhenses. Linhares colocou-se
francamente contrário a essa iniciativa. Os movimentos de Linhares no Brasil eram do
conhecimento do governo americano que viam com suspeita o jovem professor.
Eu fiz referência na entrevista sobre uma organização americana que estava
esterilizando as mulheres; Já disse também que fiz uma matéria na televisão,
64 Superintendência de desenvolvimento do nordeste.
65 Já mencionado na parte inicial desse capítulo.
95
criticando essa iniciativa, não foi? Encaminharam uma denúncia para o
consulado dos EUA e quando eu fui me apresentar para preparar os papéis
para a viagem, eles disseram, “tem uma denúncia aqui contra você!”.
Eles tinham, têm uma rede forte. Logo mandaram uma notícia que estava
cancelada nossa bolsa. Houve um certo impacto. Por que o cancelamento;
tudo estava pronto. Na época, fazíamos aulas de inglês com uma americana
que nos ajudou. (José Linhares, entrevista, 2007)
Célia, no momento do relato de José, complementa o episódio com ênfase:
Essa senhora, D.Anita colocou-se francamente revoltada contra a suspensão
de nossa bolsa. Lembro, que em certa ocasião, num evento da SUDENE no
Hotel Central de São Luis, ela que lá estava interpelou os gringos e disse:
“onde estão os americanos? Se esse casal não for para o mestrado nos EUA,
em nome da minha cidadania americana eu vou protestar, vou interpor um
recurso!”.
Tudo isso foi ela mesma quem nos disse. E continuou, fazendo um elogio ao
nosso desempenho e aproveitamento em inglês e, ao que segundo ela,
representávamos em São Luís e, ainda, como havia repercutido tudo o que
Linhares dissera na televisão, pelo que Linhares era na cidade. Isso teve um
impacto, os americanos diziam, “nós não estamos dizendo nada com relação
ao futuro, somente ‘at the moment its not possible! Only this, at the
moment!’”, ela disse: “At the moment eu não aceito!”, e fez uma enrolada
forte.(Célia Linhares em entrevista, 2007)
Quando, enfim, conseguiram rumar para os EUA, receberam o aval da universidade
onde lecionavam, mantendo os vínculos institucionais pois se tratava de uma bolsa de estudos
e a instituição tinha interesse em que eles realizassem o mestrado.
A ida da família para os Estados Unidos em 1968 conjugou o desejo de aprimorar os
estudos à necessidade de afastamento do caldeirão de pressões que havia se formado em torno
deles naquele momento. Instalar-se nos EUA e efetivar o vínculo com o mestrado não foi um
processo fácil. Uma numerosa família instalava-se nos Estados Unidos. Além de José, Célia e
os filhos, com eles iam também dona Alice, mãe de Célia, sempre solidária e reforçando os
avanços dos filhos e Bibi, ajudante, amiga que atravessaria as décadas ao lado da família. Era
então a primeira viagem ao exterior para todos eles.
96
Foi uma experiência difícil, não fora pela maravilha de estudar questões
como a “fabricação de desejos” e até do “consentimento de morte”
(antropologia), as relações entre “Eros e Civilização”, com suas
ambigüidades e paradoxos (filosofia), a potência das expectativas
(currículo), educação, desigualdades e burocratização escolar (sociologia),
mas pelo prazer de ver outras culturas em movimento (a negra
66
lutando por
seus espaços e reconhecimentos sociais, a cultura hippie
67
, os resistentes
manifestando-se, lutando, empenhando-se por todos os meios contra à guerra
do Vietnã
68
). Mas além de tudo isto recebi um prêmio da vida, o nascimento
de minha filha Andréa.
Alguns autores que li nesta época, como Max Weber, Marx, Wright Mills,
Marcuse, Mc Luhan, Brokover, Bernard Show, Ângela Davis, até hoje
ressoam em mim. (Célia em “As coisas Findas”, 2007)
Nos EUA, os Linhares tiveram que enfrentar diversas etapas para serem aprovados e
manterem o vínculo com o programa de lá. A partida não estava ganha. Além disso, a
definição do campo de estudos para José Linhares não se deu tranqüilamente, passando pelo
crivo dos avaliadores americanos.
Pais de uma família numerosa, imigrantes e estudantes. Novas lutas para os Linhares.
De início, ficamos dois meses em Washington fazendo um curso de cultura
americana. Linhares queria estudar “PUBLIC administration”, porém eles
propuseram “Business administration”. Eu sei que foi um parto! Eles diziam
que Linhares tinha poucas possibilidades de fazer o mestrado enquanto que a
66 Nessa década ganha força o movimento dos negros nos Estados Unidos pela igualdade racial.
Em 1966, o líder negro do Movimento dos Direitos Civis dos negros, que pregava a não violência, Stokely Carmichael, líder
negro do Movimento dos Direitos Civis dos negros e primeiro ministro honorário dos Panteras Negras, cunhou o termo
“Black Power” para fortalecer a auto-estima negra. Foi também grande crítico da guerra contra o Vietnã. Malcom X é
também um ativista influente à época, um dos maiores defensores da luta pelos direitos dos negros. Martin Luther King,
pastor e ativista político pelo os direitos dos negros ganhou o prêmio Nobel da Paz, sendo assassinado em 1968. Ficou
conhecido pela luta de Não-violência e propagação da Paz. Outro importante movimento da época, foi o dos panteras negras,
partido negro revolucionário estadunidense, fundado em 1966. Originalmente, pretendia patrulhar guetos negros para
proteger os moradores dos atos de brutalidade políciais. Eventualmente, tornaram-se um grupo revolucionário que defendia o
armamento de todos os negros, a libertação dos negros da cadeia, o pagamento de compensação pelos séculos de exploração
branca e isenção de pagamento de impostos e de todas as sanções da chamada “América Branca”. A ala radical defendia a
luta armada. O partido foi desfeito em meados dos anos 80.
67 O movimento hippie foi característico da contracultura, dos anos 60. Os hippies defendiam o amor livre e a não-violência,
protestando contra o nacionalismo e a Guerra do Vietnã.
68 Conflito armado entre 1958 e 1975 no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e do Laos, e bombardeios
(Rolling Thunder) sobre o Vietnã do Norte, a Guerra do Vietnã marcaram a década de 60 em função da atitude insubordinada
dos vietnamitas diane da intromissão dos EUA. O conflito surgiu sob o pretexto americano de um ataque norte-vietnamita
aos seus navios USS Maddox e USS C.Turney Joy enquanto patrulhavam o Golfo de Tonquim, em julho de 1964. Os EUA
pretendiam intervir na política interna do Vietnã. Os americanos temiam que o líder comunista, o vietnamita Ho Chi Minh
vencesse o plesbicito, em função de sua popularidade e liderança (ele havia sido um herói na resistência do Vietnã a
ocupação japonesa e a luta pela independencia da França). Para os Estados Unidos, a vitória de um der comunista poderia
influenciar outros países vizinhos a seguir o exemplo da insubordinação vietnamita (AQUINO, 1989).
97
mim eles diziam que eu tinha todas. O meu mestrado acordado foi filosofia e
sociologia da educação. A gente pensava em ir para os Estados Unidos e se
concatenar com as forças mais revolucionárias, chegando, pensávamos,
iríamos nos concatenar dentro da universidade, com professores
progressistas e fora da universidade com o movimento negro, com a luta
contra o Vietnã. (Célia Linhares em entrevista, 2007)
A vida nos Estados Unidos seguiu até início da década de 70, quando então, a família
retornou ao Brasil, assunto de que trataremos no próximo capítulo.
A dissertação de mestrado de Célia, intitulada “Contemporary Educational Issues
Raised By Mc Luhan, Mills e Marcuse” perdeu-se em meio as muitas mudanças de residência
que ocorreriam nos anos 70, a nosso pedido, Célia produziu um pequeno texto-resumo,
recuperando as questões centrais de que tratou.
A dissertação desenvolveu-se na confluência dos estudos então desenvolvidos nos
Estados Unidos em que se articulavam questões trabalhadas pelo Marxismo e Psicanálise (
Marcuse); aquelas outras que focavam as impregnações privatistas, isolando os indivíduos
dos interesses mais políticos (Mills) e, finalmente, os impactos das tecnologias da
comunicação que estavam criando outros ambientes sociais e planetários, que transformavam
o cenário do mundo num tipo de “aldeia global” (McLuham). (LINHARES, 2008).
Se, o encaminhamento central das questões tratadas estava ligado às possibilidades
críticas presentes na sociedade americana e mundial, Célia também procurava aproximá-las
da realidade brasileira submetida à tiranias de um ditadura que se fortalecia. Mas, talvez o
mais interessante é que todos essas problemáticas confluíam para a questão da ambiência
como conjuntos de equipamentos sociais, com potencial educador. Assim, Célia estudou a
ambiência dos bairros pobres, da juventude hippie, das lutas dos negros, dos chicanos e de
outras minorias étnicas em seus embates com o processo de educação escolar, nelas
percebendo ambivalências relativas às penetrações tecnológicas que iam transformando os
ambientes em arenas ora mais competitivas, ora com maior potencial de compartilhamentos,
trocas e alguns gestos de solidariedade. (LINHARES, 2008).
Estas discussões também tinham seus entrelaces entre a educação e a literatura,
alimentando o diálogo entre as pesquisas educacionais e a obra do ensaísta irlandês Bernard
Shaw, por exemplo. Esse autor, cuja obra o levou ao Prêmio Nobel, teve com My Fair Lady
uma expressiva repercussão, apoiada numa produção hollywoodiana (1964), multiplicando
debates e controvérsias, uma vez que colidia com tendências essencialistas da formação
individual, que atrofiavam as perspectivas educadoras.
98
Shaw mostrava como um professor rigoroso e decidido pôde transformar uma pobre
florista em uma “lady”, provocando várias controvérsias na educação americana que na
ocasião enfrentava grandes embates em que a culpabilização individual era contestada com o
reconhecimento da importância do ambiente, dos condicionamentos para a educação escolar.
A partir dessas questões, nascidas da análise crítica da obra de Shaw, Célia pesquisou
como os estudantes negros “teenagers” eram vulneráveis às expectativas de seu “peer group”,
em consonância ou dissonância com a influência dos “parents and teacher groups”,
ressaltando num caso ou noutro a ambiência social e as diretrizes políticas, hegemônicas na
sociedade.
Década de efervescência política, de começo de uma vida adulta, repleta de
experiências instigantes e também de sustos. Os anos 60 ficariam marcados como tempo de
descoberta. Descoberta da própria potência no exercício de ser mãe, mulher, trabalhadora. Em
“Trilhas”, destacamos algumas das principais idéias pedagógicas que caracterizaram esses
tempos e que se constituiriam em elementos fortes em sua trajetória educacional.
1. 3 – Trilhas do pensamento pedagógico que se construía...
Aqui, apoiadas nos depoimentos e alguns escritos memorialísticos de Célia, faremos
uma retomada de suas idéias, enfocando mais especificamente como ela via o cenário
educacional na década de 60 e de como se posicionava diante dele, elaborando suas formas de
pensar e viver a educação.
Célia nos conta que havia uma certa visão da escola como idílica. Pouco criticada,
seria examinada em suas dimensões de autoritarismo e poder mais para frente, na década de
70, sobretudo com os estudos de Bourdieu, Passeron
69
e Claparède
70
.
69 Pierre Bourdieu (1930), sociólogo francês, dentre outras atividades, dirige com Jean-Claude Passeron o Centro de
Sociologia Européia, que pesquisa problemas da educação e da cultura na sociedade contemporânea. Focalizando a relação
entre o sistema de ensino e o sistema social, sua análise preconiza que a origem social marca de maneira inevitável a carreira
escolar e, depois, profissional, dos indivíduos. É essa origem que produzirá os primeiros fenômenos de seleção, a estatística
das possibilidades de ascensão ao ensino superior, segundo categoria social de origem, mostra o quanto o sistema escolar
elimina um forte contingente de crianças das classes populares. Para Bordieu a cultura das classes favorecidas estaria mais
próxima da cultura da escola e portanto as crianças das classes populares teriam mais dificuldades em ter acesso a esta
(GADOTTI, 1997).
70 Édouard Claparède (1873-1940), psicólogo e pedagogo suíço preconizava que a pedagogia deveria se basear no estudo da
criança. Seu pensamento se baseava em Rousseau. Compreendia que a infância era um conjunto de possibilidades criativas
99
O ideário dos anos 60 é que a escola era magnífica e, por isso, todos a
desejavam. As evasões, as não aprendizagens, os erros eram atribuídos aos
métodos e suas possíveis inadequações, ou então à forma como havia sido
realizado o trabalho pedagógico. A escola seria impecável. É só nos anos 70
quando irrompe na França a discussão sobre a violência simbólica e a carga
ideológica na escola, encabeçados por Bourdieu, Establet
71
, Passeron e
Althusser
72
que alguns malefícios puderam ser discutidos. Então, passou-se
a discutir os perigos que também habitavam a escola, encarando-a como uma
instituição repressiva, opressora e continuadora, reprodutora. Finalmente,
depois de um grande choque em relação à escola, vai-se aprofundando
estudos que mostram a incessante dialética, com suas contradições que nos
percorrem e às nossas instituições. Tudo isso levou algum tempo para entrar
aqui o Brasil. Talvez tenha sido no final dos anos 70, começo dos anos 80...
(Célia em entrevista, 2007)
Na formação superior em Pedagogia é possível dizer que a visão tecnicista
prevalecia
73
, dando valor aos objetivos operacionais, as taxionomias.
Mas, no Maranhão, na década de 50 e 60 entre os livros que formavam os professores
de Pedagogia no Brasil havia uma certa preponderância, nos conta Célia, dentre outros os
manuais didáticos, como as coleções de Theobaldo Miranda Santos
74
.
que não deveria ser abafadas e que todo o ser humano tem necessidade vital de saber, aprender, pesquisar. As brincadeiras,
verdadeiros trabalhos em sua acepção, expressam isso. Crítico de uma escola conteudista, para ele a educação deveria ter
como eixo a ação e não apenas a instrução pela qual a pessoa recebe passivamente os conhecimentos (GADOTTI, 1997).
71 Junto com Bordieu, o também professor de sociologia Roger Establet, criticavam a escola capitalista e desvendaram a
ilusão da escola única, demonstrando que a escola estava atravessada pela divisão da sociedade de classes. Os fins da
educação seriam, portanto, não apenas diferentes, mas antagônicos. Nessa perspectiva, a escola, o professor e o aluno não são
os réus, mas sim as vítimas de uma divisão do trabalho que é responsável pelo fracasso escolar (GADOTTI, 1997).
72 Louis Althusser (1918 1990) foi um filósofo francês de origem Argelina. Suas posições teóricas permaneceram muito
influentes na filosofia marxista. Considerado o primeiro crítico-reprodutivista. A teoria crítico-reprodutivista foi proposta
(em suas várias vertentes) por teóricos franceses de esquerda, identificados com o marxismo, críticos da sociedade capitalista,
defensores do ideário de Maio de 1968. Os crítico-reproduvistas fazem a denúncia do caráter perverso da escola capitalista,
afirmando o caráter de inculcação da ideologia dominante, reproduzindo, assim, as contradições inerentes e necessárias ao
capitalismo. As teorias crítico-reprodutivista enfatizam o aspecto político em detrimento da técnica, sublinhando o caráter
reprodutor da escola. A educação nessa perspectiva, não teria o poder de determinar as relações sociais, sendo apenas
reprodutora dos interesses do capital Apesar das limitações de tal teoria, ela foi responsável pelo avanço da consciência
ingênua dos educadores para uma concepção mais crítica da educação escolar (SAVIANI, 1991).
72O tecnicismo diz respeito a uma visão de educação que privilegia os métodos e técnicas como centrais do processo
educativo, valendo-se dos testes e tecnologias de medição para avaliar e mensurar aprendizagens ((MEC/CENAFOR, 1983,
p. 28).
73O tecnicismo diz respeito a uma visão de educação que privilegia os métodos e técnicas como centrais do processo
educativo, valendo-se dos testes e tecnologias de medição para avaliar e mensurar aprendizagens ((MEC/CENAFOR, 1983,
p. 28).
74 SILVA E CORREIA (2004), em seu artigo sobre os manuais de Pedagogia, Didática, Metodologia e Prática de Ensino
utilizados em cursos de formação de professores, citam que Theobaldo Miranda Santos integra o grupo de autores de manuais
mais citado nos depoimentos de seus entrevistados (professores que se formaram na época pesquisada).
100
Tratava-se de manuais didáticos, cuja tendência era esquemática e reprodutora,
favorecendo pouco a reflexão. Essa não era efetivamente a leitura que encantava a professora.
Mesmo assim, haviam brechas, transcrições de trechos com pensamentos irrequietos que
funcionavam como janelas em que adivinhava e interligava com o que lia fora dali.
Mas, se o tecnicismo prevaleceu nos anos 70, não podemos esquecer também da
prevalência da filosofia tomista
75
em muitos períodos anteriores e em suas convivências e
paralelismos com diferentes fases. Também importa lembrar uma espécie de jesuitismo muito
presente nesses cursos.
Outros autores começavam a ser difundidos no Brasil e a Célia interessavam, de modo
especial, os de abordagem filosófica.
(...) Diria, também, que na década de 60, do século passado, intensifiquei o
prazer em aprender e ensinar. Introdução à Educação, Filosofia da Educação,
História da Educação, todos se entrelaçavam em minha existência política e
militante. Em cada disciplina discutíamos os desdobramentos da LDB/1961,
o pensamento de Fernando de Azevedo
76
, Anísio Teixeira, Lourenço Filho
77
que sobressaiam em seus sonhos e empenhos diante de nossa da realidade
educacional. Eram muito usados os livros de Jacques Maritain enquanto o
pensamento de Teilhard de Chardin, Emanuel Mounier, Jean Paul Sartre,
Simone de Beauvoir, Albert Camus, Miguel de Unamuno y Karl Jaspers,
75 SÃO TOMÁS DE AQUINO (1224 ou 1225-1274), ingressou, contra a vontade de seu pai, na ordem de São Domingos.
Natural de Nápoles, terminou seus estudos em Paris onde conheceu seu mestre Alberto Magno e se tornou professor.
Filósofo, teólogo, reformador de programas de ensino, fundador de escolas superiores, deixou uma vasta obra. Seus
princípios preconizavam a aversão pelo tédio e o despertar a capacidade de admirar, perguntar, como início do autêntico
ensino. (GADOTTI, 1997)
76 Fernando de Azevedo (1894-1974), teve significativa atuação na educação a partir da década de 30. Foi colaborador do
Estado de São Paulo onde levantou extenso inquérito sobre a instrução pública que objetivava a criação da Universidade. Tal
inquérito foi publicado em 1937, incorporando-se a suas obras literárias sob o título de “A educação nas encruzilhadas”. Este
levantamento contribuiu significativamente para a história educacional brasileira. Azevedo acreditava na capacidade de
mudança social por meio da força das idéias. Dentre outras iniciativas, fundou a Associação Brasileira de Educação, em
1924, e deu corpo ao movimento pela reforma do ensino por intermédio das "Conferências de Educação", em 1922 e atuou
nas reformas da educação pública do Rio de Janeiro, sobretudo no ensino primário e normal. Participou de manifestos e de
movimentos como o da Escola Nova (1932) e o da fundação da Universidade de São Paulo, da qual foi um dos planejadores.
Entre 1941/43 foi Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; foi também o primeiro ocupante da cadeira de
Sociologia naquela Universidade. Foi Secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1945) e Secretário da
Educação e Cultura da Prefeitura de São Paulo (1961). (PILETTI, Nelson. Fernando Azevedo. In FÁVERO, Maria de
Lourdes de Albuquerque; BRITTO, Jader de Medeiros (orgs.), 2002.
77 Manoel Bergström Lourenço Filho (1897-1970), professor e intelectual, foi uma das figuras eminentes da Escola Nova
brasileira. Catedrático em Psicologia e Pedagogia (1920) teve importante papel no campo das políticas blicas com suas
idéias sobre o ensino primário e a educação normal. Seu foco era o fazer pedagógico. Foi diretor de gabinete de Francisco
Campos (1931), diretor geral do Departamento Nacional de Educação (nomeado por Gustavo Capanema, em 1937) e diretor
do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938-46). Dedicou-se, sobretudo, à docência e ao estudo de assuntos didático-
pedagógicos. Defendia a articulação existente entre a escola e a vida social.
101
Heidegger, Kiekegaard, Kafka e tantos outros, começavam a se difundir e
serem lidos por mim.(Célia em “As coisas findas”, 2007).
Dentre os autores não brasileiros que Célia cita acima, daremos destaque nesse
capítulo a Pierre Teilhard de Chardin. Seu irmão Rui Frasão
78
, militante perseguido pela
ditadura que viveu na clandestinidade de 1972 a 1974, ano em que desapareceu
79
, havia
apresentado à Célia e a seus colegas da Rádio educadora esse autor, que seria significativo em
seus estudos.
Chardin, jesuíta e paleontologista francês, era sobrinho-neto de Voltaire por parte de
mãe. Nascido em Sarcenat, França em 1881, era filho de pai fazendeiro que colecionava
pedras, o que o levou cedo ao interesse pela Geologia. Com vasta publicação e pesquisa,
começava a ter seus estudos difundidos no Brasil no final da década de 60. Seus escritos
teológicos e filosóficos foram proibidos pela Igreja durante boa parte de sua vida e divulgados
depois de sua morte (TEILHARD, 2006; SEVERINO, 1997).
Orientado por uma concepção evolutiva do desenrolar universal, próximo de uma
visão teológica do cristianismo. Chardin (2006) acreditava que o cérebro humano tendia a
uma complexificação cerebral. Essa complexificação, teria como conseqüência o
aparecimento da consciência de si mesmo, passo necessário para o processo reflexivo do
homem e depois a uma rede mundial de comunicação dos pensamentos humanos, a que ele
chamava de “noosfera”, no coração da qual agiria o "Cristo Evolutor" aquele quem conduz a
Humanidade, de maneira imanente e transcendente, ao mesmo tempo, para o "ponto Ômega"
(Reino de Deus).
Para o autor, a Noosfera não datava da Terra Juvenil onde os primeiros animais
viviam com as plantas, árvores e os oceanos. Somente depois do aparecimento do Homem
sobre a Terra, a Noogênese começaria a existir. O termo Noogênese vem da palavra grega
noos= mente, portanto gênese da mente termo que Chardin empregou para descrever o
nascimento da mente humana. Apenas quando o homem deu “O passo da reflexão”, tornando-
78 A história de Rui Frasão receberá o destaque necessário, sendo apresentada mais detalhadamente no próximo capítulo.
79 A esse respeito foi lançado no ano de 2007 pelo Ministério de Educação do Brasil, produzido pela Comissão Especial
Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o livro “Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos” que traz um levantamento de todos os desaparecidos da época da ditadura no Brasil, incluindo Rui
Frasão.
102
se consciente de si mesmo, começou a pensar de um modo reflexivo e então a Noosfera
começou a existir.
O autor afirma, ainda, que esse pensamento reflexivo do homem faz parte ainda de
uma reflexão primitiva. Por essa razão, Teilhard usou a palavra Noogênese para nomear a
reflexão que em seu desenvolvimento.
A Noosfera seria então o estágio de crescimento da Noogênese, a qual acompanhou
o crescimento do Homem na Natureza e que quando os homens alcançaram a etapa de
Socialização, se alimentou com o pensamento humano, sob as mesmas leis da Evolução.
Teilhard previa duas saídas para a Terra e sua população. Uma que pode-se
considerar otimista e outra pessimista. o Pleroma (palavra empregada por São Paulo) do
Amor de Cristo em Sua glória, ligando os dois pontos - Alfa e Omega -, ou a Entropia, o caos
total, dependendo da utilização, pela Humanidade, do Meio Divino.
Efetivamente a aposta de Chardin consistia em acreditar na capacidade humana de
progredir num rumo evolutivo que permitisse a que nos tornássemos mais compreensivos uns
com os outros, mais abertos frente à Criação, criando maiores vínculos econômicos, sociais e
espirituais em vez de se permitir capitular diante de forças de repulsão e
desintegração.(CHARDIN, 2006)
Célia comenta os aspectos que a atraiam no pensamento de Chardin:
O Teilhard de Chardin falava na complexidade. Ele nos fazia pensar sobre
como mesmo nos momentos de aparente lentidão e de aparente inércia, os
movimentos da vida, da inteligência e da sociedade não param de se
processar. Depois retomo essa idéia como o movimento instituinte,
movimentos que ainda não são visíveis, mas que subterraneamente eles
agem. (...) Nas grandes esferas constitutivas da vida, dos vegetais, dos
animais e do homem, do humano que ele chama de noosfera é que caminha o
homem. É uma concepção dele muito centrada num humano que dialoga
com o cosmos. Teilhard colocou um pensamento instigante para mim. (Célia
Linhares, em entrevista, 2007)
Além de Teilhard, Mounier (ALVES E VANZETTO, 2005; SEVERINO, 1997) foi
outro autor significativo, que à Célia parecia capaz de um pensamento mais instigante. O
filósofo francês Emmanuel Mounier (1905 — 1950), nascido numa família de tradições
cristãs, fundou a raiz do conhecido personalismo influenciando a ideologia da democracia
cristã.
Em sua obra “O personalismo”, Mounier apresenta uma filosofia que concebe um
sujeito livre e sempre imprevisível. Afirma radicalmente “a prioridade da existência sobre a
103
essência, da condição humana sobre a natureza humana” (SEVERINO, P.129, 1997). Fez
parte do grupo de intelectuais que criaram em 1932 a revista Esprit de espírito contestador e
da ruptura com a ordem estabelecida.
As reflexões de Mounier tinham a pessoa como centro. Defendeu a idéia de uma nova
civilização na qual os cristãos e os não crentes pudessem cooperar. Foi forte combatente do
fascismo e do nazismo, considerando que ambos tinham como objetivo o fim da civilização
cristã ocidental.
É possível identificar, nos autores elegidos por Célia, a preocupação com um mundo
que se queria mais justo e fraterno. A esperança numa nova organização social, fruto de uma
ação educativa também se evidenciavam.
Outro foco das preocupações de Célia, como citado, diz respeito à valorização da
cultura nacional. Questão em sintonia com o movimento popular mais amplo, de viés
revolucionário, da década em que vivia. Comenta sobre os embates maranhenses sobre os
livros didáticos a serem utilizados nas escolas básicas, defendendo que estes precisavam
resgatar a cultura e a história do povo.
no Maranhão lutávamos muito para que tivéssemos livro de história, que
contasse a histórica das lutas do Maranhão. Depois, quando eu retomo a
discussão com as escolas Balaia e Cabanas
80
, tomando as lutas populares
como um símbolo da potenciação do sonho, daquilo que não se realizou,
mas também da tenacidade popular, da sua capacidade de resistir e criar.
Em sintonia com seu tempo, Célia revela em suas experiências, estudos e reflexões, a
preocupação em construir uma prática educativa que incluísse a voz dos sujeitos em questão,
valorizando suas experiências, saberes, cultura. Como professora, na Rádio-educadora e nas
outras funções que desempenhava, interessava à Célia constituir relações dialógicas com seus
pares. Os autores com o quais manteve estreito diálogo afirmavam uma compreensão de
mundo que já era forte em Célia, dando a ela maior amplitude e solidez teórica.
80 Célia desenvolve nas décadas seguintes pesquisas sobre algumas experiências em escolas, como a Escola Cabana. Nos
próximos capítulos aprofundaremos esse assunto.
104
Esteve engajada nos movimentos de Igreja, fugindo a uma postura catequética e
sintonizando-se com as possibilidades de difusão de espaços de encontro, escuta e expressão
que esses movimentos propiciavam.
Em seguida, na voz de Dorothy Pritchard, conheceremos e reconheceremos algumas
das experiências citadas por Célia e José (e outras que ela não citou), agora pelo olhar de um
outro. Ao nos aproximarmos dos relatos de Dorothy, aqui transformados em narrativa,
abrimos janelas para a leitura de uma outra pessoa sobre situações compartilhadas com Célia.
Ela traz em seu olhar a sua própria história, experiências e subjetividades. Constituimo-nos,
também, por esses múltiplos olhares. É possível, e este é um dos objetivos dessa tese, que,
como quem utiliza um caleidoscópio, apreciemos as mudanças de cores, cenários, impressões
que esse novo olhar nos traz, bem como vermos confirmadas visões que se irmanam e
reforçam; aspectos de uma mesma experiência partilhada. Vamos a Dorothy!
1.4 A voz dos parceiros:
Dorothy Pritchard, Memórias de uma rádio-educadora
“(...) Uma poesia que me lembre Célia... Eu gosto muito da Aninha do Mato
Grosso. Como é no nome dela?!... ela se chamava de Aninha, mas ela tem um
nome esquisito... Cora Coralina! Tenho dois ou três livros dela. Não sei por que
associo essa poesia à Célia, não sei justificar”.
Acho que pensei na Cora porque ela, assim como Célia, tem o no chão. Mas
não, Célia não tem o pé no chão...afinal ela é uma filósofa! Mas no chão que eu
chamo é por ela estar atenta ao povo, ao Brasil, de estar atenta à injustiça, à
realidade,ao fato de ela querer mudar, de uma maneira simples, não fazendo
agressão, alarde.
(Dorothy Pritchard, 9 de maio de 2007)”.
Cora Coralina - Estas e outras esperanças e certezas. Sonhos de Aninha".
“Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar nas derrotas.
Renunciar as palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
e que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana,
105
Creio na superação dos erros
e angústia do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violência
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.”
A escolha do poema de Cora Coralina, feita por Dorothy, sem que ela saiba muito
como justificar, revela e sublinha muito do que destacamos sobre Célia. Luta, justiça,
esperança, generosidade e confiança são palavras fortes nesse belo poema, traduzem traços
evidentes no pensamento e ação de Célia. As palavras de Cora Coralina nos permitem,
também, compreender mais ainda a visão que Dorothy tem de sua antiga colega de rádio
educadora.
Chego à casa de Dorothy Pritchard, é a primeira entrevista ao vivo
81
de minha
pesquisa. Sei, de antemão, que é parceira da década de 60 de Célia Linhares, que tem
ascendência inglesa, que juntas trabalharam na Rádio educadora de São Luís do Maranhão.
Mais de 40 anos a afastam das experiências vividas na rádio, que lembranças emergiriam?
Embora Dorothy comentasse em alguns momentos da entrevista ter dificuldades em
lembrar de experiência, tão longe no tempo (“eu não sou uma pessoa de muita memória”,
dizia ela), à medida em que ia narrando suas memórias, as lembranças eclodiam, ricas em
detalhes e nuances. Eu, ouvidos e olhos atentos e interessados, acompanhava sua narrativa
viva, me transportava para um Maranhão de outros tempos...
Após nosso encontro continuamos a manter contatos episódicos por e-mail, tirei
dúvidas, fiz novas perguntas e a partir das instigações, Dorothy foi, generosamente, me
fornecendo novos elementos, possibilitando conhecer mais a fundo a época e o contexto a que
81 Vale ressaltar que se trata da primeira entrevista realizada em 2007. Para a qualificação eu havia feito um conjunto de
entrevistas com alguns alunos e ex-alunos de Célia, como citado na introdução.
106
se reportava e a experiência maranhense em si. Como se o fato de “escavucar” o passado
fosse possibilitando um rememorar mais intenso. Talvez, como quer Ecléa Bosi (2003) ao
partilharmos nossas experiências pessoais a um “ouvido disponível”, o que vivemos ganha
uma outra dimensão, ampliando a experiência através da escuta e da palavra de um outro, pois
ganha assim “um cúmplice”.
Na década de 60, época de nossa história, Dorothy era professora da British School,
no Rio de Janeiro, quando conheceu missionários católicos canadenses que, atendendo ao
apelo do Papa para assistir à igrejas onde não havia padres nem bispos, programavam-se para
trabalhar no interior do Maranhão. Passou então a integrar a missão.
Tal iniciativa, fazia parte da abertura da igreja à participação de leigos em suas ações
sociais. Dorothy lembra-se que a impressionou a disponibilidade dos padres canadenses em
vir aprender a língua e os costumes para trabalharem numa das regiões mais pobres do
Brasil. Na missão canadense, ela era considerada uma "missionária leiga", isto é, não ligada
a uma comunidade religiosa. A missão constituía-se em uma “Prelazia”, quer dizer, uma
região que não está sob a jurisdição de um bispo autóctone (brasileiro), mas sob a
responsabilidade de um bispo estrangeiro, diretamente ligado a Roma. As regiões em que a
igreja não possui um bispo brasileiro ficam ligadas a Roma, que envia bispos e padres de
outros países (os missionários).
De início, ao ser convidada para visitar a missão, passou um mês na zona rural
maranhense. Havia uma equipe composta por alguns padres, algumas moças e um rapaz a
serviço da missão A participação de Dorothy estendeu-se por 3 anos aproximadamente. Foi
uma completa reviravolta em sua vida e na de seus companheiros. Tudo era totalmente
diferente das experiências e vivências de até então.
Não havia estradas, só caminhos para cavalos e para os bois que podiam
caminhar na lama. Chegava-se lá unicamente de teco-teco. Na época de
chuva ficava-se ilhado, com os campos todos em volta transformados em
lagos (os igarapés, onde o solo que não absorvia a água da chuva). Viajava-
se de canoa que era empurrada com uma vara comprida. A vegetação crescia
boiando sobre a água e os barqueiros tinham que conhecer bem como passar
entre a folhagem e as cobras nadando. Os mosquitos eram chamados de
"praga" e tínhamos que dormir em rede com mosquiteiros. As despesas
básicas eram pagas pela missão, passagem de avião, teco-teco, uma casa e
uma ajudante. Um pequeno salário para as necessidades. (Dorothy em
entrevista, 2007)
A cada três ou quatro meses os missionários eram aconselhados a ir para a capital, São
Luís, para voltar para a "civilização” e "arejar". Numa dessas ocasiões Dorothy conheceu
107
pessoas que participavam das atividades ligadas ao arcebispado, conheceu também o bispo
auxiliar da região, que era muito progressista e atuante. Esse contato rendeu, para ela o
convite para trabalhar na capital no final de seu compromisso na área rural.
de volta ao Rio de Janeiro aceitou então o convite para ir para São Luís e morar
com um grupo de moças que estavam também a serviço da arquidiocese. As ações abarcavam
alfabetização de adultos (viajando para o interior), movimentos da igreja (com as prostitutas,
com a classe operária), dentre outros. Seu vínculo era voluntário, um contrato da
responsabilidade da arquidiocese para com ela e seus companheiros em troca da
disponibilidade em servir de acordo com as habilidades de cada um.
Dorothy, reportando-se ao clima da época, lembra:
Era uma época pré-golpe, quando havia um grande entusiasmo entre os
jovens de tirar o Brasil do subdesenvolvimento. Os universitários partiam
no Projeto Rondon, isto é, nas férias iam em caravanas organizadas ensinar,
praticar como estagiários as disciplinas que estudavam, fazer teatro, compor
música e canções, criar programas radiofônicos nas regiões mas carentes em
todo o Brasil. A igreja era uma das grandes incentivadoras do movimento de
conscientização. A juventude naquela época era idealista. Este reboliço todo
para a elite era amedrontador. Era o tempo da guerra fria e quando houve o
golpe caíram em cima dos estudantes, e dos movimentos e atividades junto
aos operários e os camponeses. Tudo, diziam, era em prol do comunismo e
de agitação para organizar o povo visando uma revolução popular.
Em São Luís ela não era considerada missionária leiga, pois o arcebispo era brasileiro.
Em 1965, ainda ligada ao trabalho Arquidiocese de São Luís do Maranhão na área da
educação de adultos, conheceu a professora Célia Linhares e José Linhares e foi então que se
deu o início de uma fértil parceria.
Dorothy relata que nas reuniões de planejamento e estudo da realidade do povo
maranhense com o arcebispo e os padres, foi proposta a inauguração da Rádio Educadora do
Maranhão, a cargo de uma equipe de leigos. Célia, José Linhares, o radialista Lauro Leite,
Dorothy e mais alguns colaboradores inauguraram a Rádio Educadora com muito entusiasmo
e dedicação, buscando um diferencial, tratava-se de um projeto popular, segundo ela nos
conta.
Não queríamos uma rádio piegas, nem “religiosa”, mas educadora. O grande
enfoque era ser um serviço para o povo. Muito diferente das outras rádios
que estavam a serviço de interesses particulares. Quase todas vendidas em
função de lucro.
A Rádio Educadora inovou, instituiu uma nova radiofonia no sentido de
estar atenta às necessidades e aos anseios das comunidades. Como não
108
estávamos submissos nem dependentes de um “dono” ou de um patrão,
tínhamos toda liberdade para construirmos uma emissora à nossa maneira.
Nasceu então uma rádio inovadora, participante dos acontecimentos, crítica,
apoiando as iniciativas.
Isto foi possível porque a equipe produtora era unida e democrática”. Não
havia entre nós uma hierarquia rígida. Todos os membros, funcionários e
colaboradores eram valorizados e por isso sentiam que a Rádio era deles.
Todos estavam orgulhosos do seu trabalho e respeitavam e cuidavam das
coisas e do local. Até foi afirmado por um radialista: “esta rádio é decente,
aqui não tem bagunça, posso até trazer minha esposa para cá. Não é como
nas outras rádios.
Nossa narradora chama atenção para o momento específico em que a rádio nascia,
época de um grande movimento de abertura e incentivo para os profissionais de várias áreas e
para as pessoas em geral para debaterem, sugerirem e discutirem os problemas do
desenvolvimento e do progresso, não apenas religioso, mas também social e político.
Era uma época de muita efervescência em todas as áreas da vida e da
sociedade. Os estudantes voltados para a “conscientização”, querendo
contribuir para o desenvolvimento, a Igreja se renovando, desprezando o
latim, as mulheres abandonando o véu, os leigos tendo voz e interferindo em
assuntos reservados ao clero, os trabalhadores se fortalecendo nos sindicatos,
os camponeses se organizando, os padres discutindo a possibilidade de
suspender a obrigação do celibato, e a ditadura se impondo e forçando os
opositores a entrar para a clandestinidade. Um clima de agitação, medo,
disfarce, muita criatividade para driblar a repressão.
Neste clima tínhamos que ter todo cuidado com o que ia para o ar. No entanto,
neste desafi
A programação tentava atingir todas as categorias da sociedade. Havia um
programa para crianças (Dona Carochinha) para os jovens (Barra Limpa)
para os casais, para o campo, para os pescadores, para os professores. Em
vez da hora da “Ave Maria” tínhamos o programa “Entre o Dia e a Noite”.
Havia outros musicais e o noticiário, e todo dia era sagrada a hora do serviço
de recados e avisos para o interior.
Para nós todos, que apenas tínhamos nosso salário mínimo, nosso trabalho
não era encarado como árduo e “trabalhoso”. Era prazeroso, desafiante,
criativo, lúdico, se bem que absorvente e de total dedicação.
Dorothy era responsável por um programa voltado ao público infantil que se chamava
“Dona Carochinha” e que foi pouco a pouco ganhando significativa expressão no Maranhão.
A forma como ela o assumiu e desenvolveu merecem destaque:
Todo dia eu tinha um programa novo, que durava aproximadamente duas
horas. Fui designada para criar e apresentar uma hora diária ao vivo para
crianças. No começo quando eu relutava e ficava ansiosa a Professora Célia
entrava na cabine comigo, improvisando e me dando força até eu me
habituar a arcar com o programa sozinha. Eu não sei por que me chamaram
para fazer um programa infantil, talvez porque soubessem que eu era
109
professora. No princípio, eu disse que o queria, que não sabia o que fazer!
“Eu não sei o que vou fazer lá dentro!”. Célia então, cheia de entusiasmo, me
empurrou para dentro da cabine, insistindo em dizer que eu conseguiria, que
ela ia me ajudar, e entramos pela primeira vez na cabine, nós duas, e ela
dizia: “Olá crianças do Maranhão! Aqui hoje nós temos a Dona
Carochinha!”, e foi assim, falando e me provocando. Eu me lembro muito
dela nesse primeiro dia. Depois disso, eu comecei a criar, eu era muito
criativa! Levei minha flauta, inventei que ela era mágica, contava histórias...
eu estava tão imersa naquilo, aquilo era tão real para mim que sozinha na
cabine eu dançava, morrendo de calor. Aquilo foi crescendo, assim como eu
estava absorvida, as crianças estavam absorvidas também.”
Esse movimento de confiança na capacidade do outro, da presença de um apoio amigo e
ao mesmo tempo capaz de favorecer o despontar da autonomia, eram aspectos da presença de
Célia, na radialista que nascia. Entusiasmo, confiança, parceria. Marcas das experiências que
ia tendo curso na Rádio Educadora. A respeito desse modo peculiar de Célia em se dirigir ao
outro, Dorothy comenta:
A Célia tinha uma maneira de falar, de conciliar as coisas. Ela busca como é
que aquilo vai se resolver, ela tem uma maneira de falar diferente. O que me
impressionava na Célia é como ela falava. O Linhares também. Engraçado, o
Linhares e a Célia se complementavam nessa maneira de tratar as pessoas.
Tinham uma visão educativa da pessoa, uma maneira de ver o outro de
forma que faz ele se sentir melhor, faz o outro crescer. Se algo estava errado,
eles buscavam fazer a pessoa tentar ver como é, compreender o porquê...
Linhares tem um jeito... ele falava com o menino que varria, “Oh fulano!
sente aqui !Isto é um serviço importante. Vocês vêem como está linda a
Rádio! Vejam!” ele falava, não era para engambelar não, ele chamava
mesmo, eu ficava impressionada, eu aprendi muito com a Célia e com o
Linhares essa maneira de tratar as pessoas e era isso... essa era uma atitude
de respeito ao outro, de valorizar o outro, da coisa funcionar junto. Não tinha
um que mandava, tinha discussão com o radialista, porque ele se sentia
aquele que era o profissional, ele era muito bom, agora ele não tinha essa
visão nossa política social
Célia tem uma posição bem firme. Ela tem os princípios que norteiam a
maneira de ela pensar e agir. Agora também tem os cuidados. Ela tinha um
irmão que era perseguido, então ela tinha que tomar cuidado. Todo mundo
também estava um pouco apreensivo, um pouco irritado com as
circunstâncias. Se as coisas estavam fora do controle, você fica preocupado.
A delicadeza de Célia no lidar com o outro aparece nas lembranças de Dorothy. Firme,
conciliadora, respeitosa, entusiasmada, instigadora. É, também, citando as idéias de Paulo
Freire que nossa narradora sublinha essas características de Célia: “Me lembra a idéia de
Paulo Freire: ‘mais importante que o discurso é a atitude’. Era isso, Célia tinha uma coerência
entre o que ela falava e fazia!”.
110
A experiência era nova para quase todos que integravam a rádio. A única exceção era
um dos membros da equipe que era efetivamente radialista. Todos se empenhavam em
construir uma nova concepção de rádio, aberta, democrática na sua gestão e em permanente
diálogo com as questões do povo.
Tudo era novo para nós, até o meio de comunicação era novo, a gente não
era radialista, tanto que depois que acabei o trabalho no Maranhão fui fazer
curso sobre tecnologia da educação na PUC do Rio de Janeiro. Nós tínhamos
o Lauro Leite que era radialista mesmo, ele era muito bom. Tínhamos
também outros técnicos mais operacionais. Nessa época Lauro orientou a
gente na parte de rádio. Queríamos uma rádio diferente mesmo, um serviço
para o povo, queríamos falar para o campo, para as pessoas carentes que
dependiam do rádio porque na época havia um alto índice de analfabetismo e
não havia ainda a TV. A TV foi entrar em São Luís no final de 67 para
68. A rádio foi um marco, tinha piques de horário nobre!
Dorothy diz que não dimensionava tudo o que estava vivendo. Hoje, compreende o
quanto inovadora foi aquela experiência nos idos de 60, reconhece sua singularidade como
espaço que travou um diálogo fecundo com as camadas populares de São Luís,
experimentando um novo modo de fazer política, dando voz às questões dos ouvintes,
adotando princípios éticos que garantiam àquele espaço legitimidade.
Ela era transmitida o dia inteiro. Tinham certos programas que ficaram
muito marcados, muito conhecidos. Na hora que a gente está fazendo não
conseguimos refletir, não sabemos bem o que está acontecendo, nos
empenhamos! Depois, você olha para trás e como foi importante o que
fizemos! Nossa equipe trabalhava junto, era o mesmo ideal. Embora fosse
uma iniciativa da igreja, nós éramos leigos e queríamos manter a rádio como
espaço de liberdade. Nada de ficar rezando a Ave Maria, hora de canto
religioso, nada disso! Vamos fazer uma reflexão, isso sim, a rádio vai ser um
espaço para refletir...
Então aquilo foi muito uma coisa que nós nem sentíamos que estava
crescendo. Célia e eu precisávamos de patrocínio e íamos buscar isso, sem
nunca ter feito algo do tipo, a gente fazia aquilo pela rádio. Para mim era
uma dedicação exclusiva. Só sei que na rádio ali aquilo vibrava!
A respeito da participação de Célia na Rádio e da própria concepção educadora dos
programas por elas elaborados, Dorothy nos conta ainda:
A Profa. Célia era membro entusiasmado e atuante da coordenação da Rádio
Educadora. Propôs um trabalho de grupo onde todos teriam oportunidade de
opinar, e tomar parte nas decisões importantes. Conseguiu que todos que
trabalhavam na Rádio viessem às reuniões regulares, e sentados num grande
círculo, acompanhavam o relato dos fatos ocorridos, ouviam as propostas e
111
eram consultados a respeito de suas tarefas. A própria forma de lidar com os
funcionários era educativa, pois se tornou um exercício de participação.
Relembra também a experiência marcante do programa voltado para professores,
também destacado pela própria Célia:
Ela empreendeu uma tarefa preciosa diretamente com a educação.
Apresentava um programa de Formação de Professores. Teve uma grande
aceitação. Elaborava apostilas e falava diretamente para o campo. A
secretária de educação de um município ficou tão encantada que patrocinou
o programa. Os professores disseram que aquilo era um milagre, que era
uma mágica. Também havia um programa de orientação de uma cooperativa
de pescadores.
Dorothy destaca enfaticamente o caráter inovador da Rádio. Ainda que não se dessem
conta, como ela reflete hoje, da dimensão daquela experiência, reconhece que era algo inédito
no campo da comunicação que estava se fazendo.
A Rádio Educadora nesta época foi um marco e teve uma repercussão muito
grande. Era algo vivo, direto, com linguagem nova, não era uma
massificação. Para a equipe que coordenava era estar sempre diante do
inesperado. O povo reagia, mandava recado, informava e era informado. Um
auditório invisível e, no entanto real e vibrante. Quando começamos a Rádio
a Célia era nova, um de seus filhos tinha 5 anos e o outro 6, ela estava
criando os meninos pequenos ainda!
Dorothy ressalta o espírito combativo da Rádio educadora, que, solidária com as
questões do povo abria seus espaços para apoiar movimentos, denunciar injustiças, dar realce
a múltiplas vozes. Chama atenção para um aspecto importante do período em que atuou na
rádio, a repressão aos movimentos populares, ainda incipiente, ia infiltrando-se no tecido
social, evidenciando-se mais fortemente em fins da década de 60 e início de 70.
Essa época ainda não era o cheio da repressão que foi em 73, 74, 72, que foi
a época pior. Existia uma obsessão de comunismo, qualquer coisa que você
falasse era taxada de comunista, era mal vista, todo mundo tinha cuidado,
todo mundo não queria entrar em certos assuntos, tudo o que fosse
incriminador, vamos dizer, se tivesse um livro que você tinha comprado
sobre a revolução de Cuba, por exemplo, ou qualquer coisa assim, você
rasgava, jogava fora. Havia também o perigo de uma pessoa que você
achava que era sua amiga repetir alguma coisa que você disse e que ela
entendeu mal em algum lugar e depois (a) você ficar visada. Era uma época
assim.
112
Tempos de indefinições, medos e clima ameaçador no ar. Tudo isso refletia no
comportamento das pessoas que passavam a vigiar com maior atenção o que diziam,
pensavam, faziam. Dorothy lembra, também, da presença de Rui que eventualmente visitava a
Rádio. Ela percebia que “havia algo” envolta dele, mas pouco se podia falar sobre o assunto.
O Rui, irmão dela, eu conhecia muito e o admirava. Eu sabia que envolta
dele tinha algum mistério. Ele não se pronunciava em público, era bem
discreto, mas tinha aquela coisa ... A gente sabia que ele tinha sido preso,
que ele tinha sido visado, que ele era uma pessoa que estava sendo vigiada.
Vivíamos aquele clima de não falar as coisas. Na Rádio a gente falava, a
gente denunciava, sim! Estávamos atentas ao que estava acontecendo,
tentando alertar para as pessoas que havia coisas acontecendo, que havia
coisas concretas, reais.
Tínhamos que tomar muitos cuidados, até o próprio radialista não entendia
muito bem essa história das nossas denúncias, ele achava que a gente não
devia falar para a Rádio não ser visada, ele não tinha uma visão crítica. O
que ele queria era uma Rádio que funcionasse, que tivesse tudo direitinho.
Nós também não sabíamos de tudo o que estava acontecendo, estávamos
contra a injustiça! No programa infantil, por exemplo eu ficava falando das
coisas mas bem geral, com metáforas como por exemplo, “O ‘gigante
Miséria’ de onde veio? Por que ele está por aqui?”, Eu inventava as coisas.
No final das histórias, como por exemplo, na Bela adormecida, eu
perguntava: Quem era a Bela Adormecida? Será que a Bela Adormecida não
era o Brasil que estava esperando um príncipe para vir beijá-la para acordar?
Todas as minhas histórias tinham esse diálogo no final. O programa de
criança virou hora nobre, tocava no aeroporto de São Luís, tocava nos bares,
no alto falante da praça, tinha briga porque quando começou as mães
queriam ouvir novela na hora do programa e até mudaram a hora da novela!
Dorothy identifica neste movimento de instigar da Rádio, um olhar crítico diante do
contexto social, histórico e político da época, ecos de um movimento social mais amplo.
Como já mencionado, eram tempos de abertura, de participação popular, de desejos de
mudança. Começava a se difundir, mais amplamente, as idéias de Paulo Freire, com as quais o
programa radiofônico maranhense se sintonizava:
A gente tentava mobilizar, acordar, a grande palavra-chave naquela época
era “conscientização”.
As idéias de Paulo Freire estavam circulando entre as pessoas que tinham
contato. Mas não era essa coisa que é hoje. Ele era uma pessoa inovadora,
foi visado também, mas na época, não tinha o relevo que tem hoje. As coisas
acontecem e vão se solidificando depois.
A Rádio efetivava-se como um espaço político, desde a escolha das parcerias e
entidades patrocinadoras passando por critérios relacionados ao respeito à criança
113
mencionado por Dorothy, dentre outros – até a escolha das questões e assuntos que animavam
os programas. Ela comenta que ia agindo de forma bastante intuitiva, sem dimensionar o
alcance daquele projeto e se descobrindo pouco a pouco um sujeito político:
A visão política foi nascendo aos poucos para mim, através de São Luis,
quando fui à uma reunião dos operários, observei a maneira deles se
posicionarem. Eu tinha uma visão social, mas a visão dos direitos, da
política, foi nascendo.
Mesmo a Rádio não sendo diretamente política, ela era política, pois se a
gente escolhe ou deixa de escolher, se cala ou se fala, é político isso. Havia
uma coisa, todo mundo ali que se conhecia, estava sustentando, estava dando
palpites, estava dizendo, estava trazendo coisas. Eu sentia que era uma
grande novidade a Rádio Educadora. Quando eu dizia que a linguagem era
nova, ela era nova, para falar com professor, quem é que na Rádio falava
com professor?! Para falar com pescador, falar de coisas reais da vida dele,
como é que eles se organizam, os assuntos eram pertinentes e tinham
resposta, a gente perguntava o que vocês querem? E vinha, tinha um retorno.
Não sabíamos disso, estávamos fazendo, a gente estava vivendo, a gente
estava fazendo o que estava na nossa cabeça.
As repercussões mais concretas das políticas de controle autoritárias que começavam
a ganhar força no Brasil começavam a se aproximar da Rádio, culminando em seu fechamento
em 1967 e posterior abertura. Um dos primeiros impactos aconteceu por ocasião de um dos
programas que provocaram “a onça com a vara curta”, relatado por Célia e Linhares e
também significativo para Dorothy:
A polêmica foi com um texto, lido com muita veemência, sobre a
independência do Brasil, “O BRASIL É INDEPENDENTE MESMO?!”. Foi
uma loucura, vieram, fecharam a rádio, chamaram todo mundo para ser
interrogado, os nomes foram para Fortaleza, o bispo foi chamado para
dirimir essa história.
Esse foi o início de tempos marcados pelo medo. Medo do que dizer, de para quem
dizer. Os ecos das perseguições da ditadura aproximavam-se. A esse respeito relembra as
fases mais tensas da ditadura.
Eu não sabia ainda desse medo, medo tive em 73/74, você via o pessoal
“caindo” todo. Naquela época eram os grandes que tinham falado, eram os
deputados que foram levados, eram os estudantes, que eram uma
organização. O MEB foi fechado, outro comia o papel, jogava no lixo,
porque ia ser registrado, tomava o nome de todo mundo. Lá no interior, tudo
era um pretexto para eles irem interrogar, invadir. Eu lembro de nosso
comportamento de muito cuidado. Algumas pessoas da Rádio foram
interrogadas. Eu não fui.
114
(...) Quando você começa a falar que o povo tem seus direitos, organizar o
povo, mostrar que eles tinham seus direitos, ai pronto, estava visado, aí você
era comunista.
74 foi o auge da repressão. Muita gente não sabia de nada, porque ninguém
falava.
Dorothy conta que após essa experiência, continuou trilhando caminhos ligados à
comunicação, buscando no jornalismo e na tecnologia da informação espaços de
aprofundamento nesse campo que tanto a tinha fascinado. No entanto, após experimentar tão
intensamente a possibilidade de desenvolver um trabalho não apenas cooperativo, mas em
estreito diálogo com o povo, decepcionou-se com o que considerou uma perspectiva mais
limitada do trabalho com comunicação.
Na universidade, fui fazer jornalismo, acabei fazendo tecnologia que era
voltado para rádio, televisão, educação à distancia. Eu queria isso e na
PUC que oferecia esse curso mais ligado a esta problemática. Desapontei-me
muito, o era aquilo que eu tinha vivenciado. Eu vi a força do meio de
comunicação, eu vi, a força é devida a uma pessoa que é líder, mas eles
tentam diluir isso agora e você não um líder, você não vê. Quando tem,
ele é fraco e serve ao poder, a Xuxa, por exemplo.
Vemos então a força das experiências que com seu impacto imprimem desejos,
caminhos e perspectivas que continuam a ser trilhadas dentro de nós e em nossas buscas
posteriores, marcando escolhas e apostas.
Dorothy comenta que mesmo que hoje conviva pouco com Célia, tem freqüentemente
contato com a professora, freqüentando momentos sociais e participando de lançamentos de
seus livros. Teve a oportunidade de ler alguns deles, e cita o “Formação de professores:
tradições e contradições” como uma das obras lidas. Pedi portanto que, fechando nossa
entrevista, Dorothy destacasse quais pareciam ser, para ela, as idéias mais centrais do
pensamento pedagógico de Célia Linhares e ela citou:
Sua militância no trabalho intelectual, com uma visão crítica em busca de
respostas inovadoras e alternativas concretas para a realidade brasileira.
Sua preocupação com a adequação da escola ao mundo contemporâneo e
neste sentido a formação do professor tendo que corresponder a esta
necessidade.
Sua filosofia que fundamenta suas idéias, suas propostas, seus argumentos.
A maneira de ver a realidade sob a perspectiva da justiça social. A Prof.ª
Célia sempre foi muito sensível ao problema da desigualdade na sociedade e
que se reflete acentuadamente na educação.
Seu otimismo diante das dificuldades e dos desafios que a realidade
apresenta.
Célia acredita que apesar de não vermos resultados imediatos, que “o
levedo” está fermentando. Seu empenho é movido pela esperança de uma
115
sociedade que amadurece e caminha para uma dimensão mais humanizada,
onde todos terão as mesmas oportunidades de realizar suas potencialidades e
serem reconhecidos e respeitados como cidadãos e membros diferentes, mas
iguais, numa comunidade mais fraterna. A renovação da educação formal e
informal seria um grande veículo propulsor para esta utopia.
Parceira de trabalho e solidária na concepção de atuação educativa da Rádio, Dorothy
realça aspectos centrais de sua experiência com Célia, trazendo, também, as marcas que
permaneceram nela e acompanhando-a pelos caminhos que trilhou posteriormente.
1.5 O levedo está fermentando: marcando a trilha para continuar a
caminhada.
A etimologia da palavra levedura tem origem no termo latino levare com o sentido
de crescer ou fazer crescer, pois as primeiras leveduras descobertas estavam
associadas a processos fermentativos como o de es e de
mostos
(sumo das uvas
frescas antes que passem pelo processo de fermentação) que provocam um
aumento da massa do pão ou do volume do mosto pela liberação de gás e formação
de espuma nos mostos (CUNHA, 1982).
Levare, sentido de crescer, fazer crescer, crescimento ligado aos processos
fermentativos. Para fermentar um pão - e disso sabe quem se aventurou nas artes culinárias
-, é preciso tempo. Antes, no entanto, que se misturar os ingredientes, sovar a massa com
vigor. Após imprimir à matéria a energia necessária para que se dê a alquimia, aí sim,
aguarda-se o tempo indicado, de preferência com a massa coberta, em lugar aquecido, ao
abrigo da luz. O pão caseiro, é bom lembrar, ainda que se repita a mesma receita, nunca sai
exatamente igual. A luz, a temperatura, os ingredientes em questão, o estado de espírito de
quem o faz. Tudo isso, confere ao alimento uma singularidade difícil de se repetir.“O levedo
está fermentando”, nos disse Dorothy. Uma muito boa metáfora para compreendermos a
trajetória de Célia na década de 60. Idéias que se cunhavam em meio a um cenário de
incertezas, tensões e embates e que, lançadas em diferentes direções, iam fermentando pouco
a pouco, ganhando força e forma, entre sustos e medos.
116
Em meio a um panorama social mais amplo em que forças opostas se debatiam, Célia,
irmanada em um dos lados desse embate, ia elaborando pari passu
82
, sua compreensão do
mundo, sua forma de pensar a educação e militar a seu favor.
Por um lado, liderados pelos donos do poder, representados sobretudo pelos militares,
pela ala conservadora da Igreja e por boa parte dos empresários brasileiros (além da presença
das forças advindas dos países de cuja economia dependíamos e seus interesses de mercado)
havia um movimento de viés controlador, que enxergava as manifestações populares e suas
demandas como ameaças do comunismo e riscos de fechamento de um mercado que se queria
aberto.
De outro lado, parte dos educadores, representantes dos trabalhadores, intelectuais e
outros, militavam por espaços de reconhecimento de seus direitos, de expressão de sua voz, de
justiça social, garantida no direito ao trabalho, à condições dignas de exercê-lo e à educação,
considerada como instrumento de ampliação da cidadania. Dois pólos de uma tensão social
que se agrandava.
A predominância e ascendência de um dos pólos sobre o outro se fazia sentir nas
experiências que Célia ia “sentindo na pele”, nos sustos e notícias que chegavam a ela sobre
as ações de repressão e coação aos que “pensavam diferente”. Célia dizia que não tinha a
dimensão exata do que acontecia. Dorothy traz também essa impressão. Parecia como uma
sombra que se projetava sobre ela e seus pares e que, pouco a pouco, revelava sua face
sombria. O golpe de 64 a devida noção do que se passava, confirmando medos e ceifando
sonhos e iniciativas.
O medo acompanhava seus atos. Não é com uma aura de bravura que relata seus
momentos de firme oposição e corajosa rebeldia, pelo contrário confessa o receio e o coração
palpitante (e vacilante) que ali pulsava. Atos que podemos considerar heróicos, porque
envolviam riscos e confrontos, como as denúncias na Rádio, o enfrentamento com o
mensageiro da autoridade de plantão que a telefonou na véspera de seu discurso de paraninfa.
Porém, aqui não temos a figura do herói destemido, que não calcula o tamanho da briga.
Temos sim, um outro herói, que segue, com passos apertados, com olhos nos abismos, mas
82 Termo em latim que significa simultaneamente.
117
que não pode voltar, não uma meia volta. É preciso seguir, nos diz Célia. Não havia uma
“terceira via”.
Recém formada, professora em início de carreira, mãe em suas primeiras viagens,
esposa e dona de casa em estréia. Papéis que ia aprendendo entre encantamentos e sustos. À
medida que as experiências se configuravam, ela também ia entendendo mais quem era, o que
queria. Aqui podemos pensar que, nos fazemos mesmo é em meio ao embate entre as forças
do meio em que vivemos, carregados com nossas experiências, estudos, formação. Vamos
“nos sabendo” à medida que construímos, agimos, realizamos. Como espelhos a nos revelar
nossa própria imagem.
Das idéias que davam solidez e orientação às ações e realizações de Célia, podemos
destacar o diálogo fértil com a filosofia, campo que desde o primeiro contato, Célia antevia
como um espaço de reflexão sobre o mundo que a subsidiaria em sua leitura permanente da
realidade. Na contramão dos estudos correntes da pedagogia da época, é fora dos manuais
prescritivos e pouco afeitos a instigações reflexivas, que ela encontra seus interlocutores.
Nos autores católicos, como Teilhard de Chardin e Mounier, citados por Célia,
reconhecemos uma visão de solidariedade, de esperança que ressoam nela. Não são esses os
grandes encontros teóricos que vivemos? Quando temos a sensação de que ao lermos um
autor, ele traduz percepções, convicções, idéias que, talvez nos faltasse a clareza para elaborar
mais precisamente, mas que já estavam, de alguma forma, em nosso horizonte?! Diálogos que
permitem que elaboremos mais consistentemente nossa forma de pensar, dando concretude e
solidez a nossas idéias?!
Em suas experiências e leituras, Célia na educação uma forma de fazer política.
Ouvir as necessidades do povo, reconhecer o contexto atual, problematizá-lo e construir
espaços de diálogo com as pessoas para tematizar as questões do tempo vivido. Ela viveu isso
na Rádio Educadora, também na sua experiência como assessora na Secretaria de Educação
do Estado do Maranhão e como professora. É importante ressaltar, que seu envolvimento
com a Igreja, via programa da
Célia entendia o reconhecimento da cultura nacional, da cultura do povo como forma
de apropriação do próprio saber, da própria história. É assim que resgata a cultura indígena e
suas tradições em sua passagem pela secretaria de educação maranhense, bem como cria
programas de rádio que trazem as histórias do povo. Uma visão não submissa a uma
mentalidade de país colonizado que confere a tudo o que é estrangeiro mais valor e
superioridade, em detrimento de seus próprios valores e de sua singular história. Disso, ela
tratará com maior profundidade na década de 70, com seu mestrado e os seus
desdobramentos.
118
Célia, com os pés no chão e a cabeça nos (bons) ventos, como tão bem definiu
Dorothy, é uma “filósofa militante”, acredita que o papel do intelectual é se aproximar do
povo, aprendendo com ele, dialogando com a realidade do seu tempo e do seu país. Postura
que era preconizada por alguns de seus contemporâneos, como Paulo Freire, mas que sabemos
ainda hoje, não abraçada, pelos educadores, de forma mais ampla.
Educação e política são compreendidas por ela de forma integrada. A conscientização,
concepção que orientava as práticas mais revolucionárias da época era defendida por Célia
nos muitos espaços em que atuava.
Apesar do estabelecimento do medo e de uma política de repressão às iniciativas e
movimentos populares, Célia mantém seu levedo fermentando. Confia que os tempos trazem
novas fornadas, mantém a mão na “massa”, numa militância filosófica que segue viagem.
Dorothy relacionou à Célia, imagem de um movimento contínuo, veloz, contagiante e,
ao mesmo tempo, dotado de uma certa tranqüilidade:
Uma água correndo em cima das pedras, que não amedronta mas ela é
movimentada e ela espirra para todo lado, assim, bonitinho, e ela faz um
barulhinho, espalhando a água, no rio com pedras, ela vem correndo, ela não
pára não. Vai respingando, molhando as coisas. (Dorothy em entrevista,
2007)
119
CAPÍTULO 2
Década de 70, Medos e ousadias
"ocupar espaço, amigo, eu digo: brechas (...). Eu acredito firme que sem
malandragem não há salvação". (Torquato Neto, 1972)
Nada Será Como Antes
Composição: Milton Nascimento/Ronaldo Bastos, 1972
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
“Ventania em qualquer direção”, entoa a canção de Milton Nascimento. Realmente,
entre ventos e tempestades, para citar Novaes (2005), “nada seria como antes” no Brasil pós
Golpe militar. Os ecos e forças da repressão política, iniciada em 64, se faziam sentir num
povo incitado a não se expressar.
No cenário econômico, o Brasil sentia a repercussão da crise do petróleo
83
vivida
pelos Estados Unidos (EUA). Em 1973, esta crise levou os EUA à recessão, repercutindo nos
demais países de economia periférica. Por aqui, esse acontecimento daria fim ao período
83 O estopim da crise do Petróleo está ligado ao aumento do preço de venda, estabelecido pelos países árabes, quando a
OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) triplica o preço do barril de petróleo, em retaliação ao apoio dos
Estados Unidos às guerras em Israel.
120
conhecido como “Milagre econômico”, denominação dada à época de expressivo crescimento
econômico ocorrido entre 1969 e 1973, instaurando o pensamento ufanista de “Brasil
potência”. Concorria para o clima de euforia a vitória brasileira na Copa do Mundo em 1970
no México.
A Guerra do Vietnã chegava ao fim em 1975, com a derrota dos Estados Unidos e a
reunificação do país. Economias como a do Japão começavam a crescer. As revoluções
comportamentais da década anterior se intensificavam e os movimentos artísticos e culturais
expressavam essa perspectiva (GASPARI, 2002).
Surge o movimento punk, revelando nas indumentárias e atitudes uma ideologia em
que se negava os valores vigentes. A discoteca colocava os jovens para ferver nas pistas de
dança, aos “Embalos de Sábado à noite
84
”. O estilo “Tony Manero”, personagem central do
filme, que de dia levava uma vida sem perspectivas e a noite era um imbatível rei das pistas,
inspirava a juventude, talvez por trazer perspectivas ascensionistas. Afinal, dançar era
possível. No Brasil, Em 1978, a novela “Dancing Day’s”, escrita pelo então iniciante Gilberto
Braga, pegava carona no sucesso do filme. Era a primeira novela que não era produzida a
partir de algum romance consagrado, iniciando assim uma nova fase na teledramaturgia.
“Dancing Day’s” trazia um painel da classe média carioca dos anos 70 e injetava um clima de
alguma esperança num Brasil que vivia o término do Milagre Econômico. Vale destacar a
força que a TV ganhava, disseminando modas e valores na cada que seria conhecida como
a “Década da TV”.
Com relação à arte, o panorama brasileiro era o de busca de estratégias de resistência,
aproveitando as “brechas”, nas quais as expressões artísticas traduziam as insatisfações com o
clima de repressão. A música, na linha de frente, continuava sua tradição engajada. A
afirmação de Wisnik (1979), A música popular é uma rede de recados”, explicita a função
que esta ocupava na cena. Era por meio dessa “rede de recados” que a música mantinha sua
militância.
84 Dirigido pelo americano John Badhan em 1976, “Os embalos de sábado a noite” foi um sucesso estrondoso no Brasil e no
mundo. Tratava da história de um rapaz sem muitas perspectivas que a noite, dançando em uma boate, tornava-se uma
celebridade. Eu mesma fui (ou sou?) do filme e eternamente admiradora de John Travolta, talvez por também eu sentir
que, de certo modo, na dança os limites se alastram.
121
O imaginário da liberdade e democracia se mantinha vivo nas estratégias para burlar a
censura nessa década, conhecida como “Os anos de chumbo”. Artistas como Chico Buarque,
Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, dentre outros, negavam-se a reduzir suas
músicas a artigos de consumo, como preconizava a ideologia que então se configurava
85
. Por
meio de mensagens ambíguas, metáforas e alegorias, nas letras das músicas, nos espetáculos
teatrais, nos filmes e nas obras literárias, a arte convidava a uma leitura nas entrelinhas para
que sua mensagem fosse compreendida. Era necessário desenvolver táticas para atuar nas
brechas do sistema. O mesmo se dava em algumas expressões presentes nos outros campos
das artes (NOVAES, 2005).
O Estado era o mediador da produção cultural e sua intervenção pretendia estabelecer
uma organização empresarial da cultura, aos moldes do capitalismo industrial, urbano e
moderno, com o objetivo de reprimir todo e qualquer ato de rebeldia.
Novaes (op.cit) ressalta que no teatro, grupos como o Núcleo, o Teatro São Pedro,
Teatro União, Olho Vivo, e o irreverente grupo carioca “Asdrúbal trouxe o trombone”,
dirigido por Hamilton Vaz Pereira, buscavam novas formas de militância e viam nas
produções coletivas, a possibilidade de fugir ao isolamento dos jovens, comum naquele
período em que as associações ameaçavam a “paz”. O desejo de ser coletivo nasce como uma
oposição à ideologia dominante.
Na imprensa, um grupo de jornalistas e intelectuais
86
, se reunia no Rio de Janeiro
fundando em 1969 o irreverente jornal “O Pasquim”. Criado num momento tenso do país
constituía-se na chamada imprensa alternativa, influenciando no Brasil a grande imprensa
(BRAGA, 1991; BAHIANA, 2006).
85 Lembremos então, que no modelamento econômico, político e ideológico do Brasil à época, a expansão do poder de
compra da classe média era uma das perspectivas importantes para assentar as bases para uma política de ampliação do
mercado de consumo, afeita as novas diretivas de um país que se abria ao capital internacional. (SAVIANI, 2005)
86 O grupo formado inicialmente era composto por Tarso de Castro, Jaguar, Sérgio Cabral, Luís Carlos Maciel, Claudius e
Carlos Prosperi. Fruto de debates nos bares cariocas a respeito das contingências do momento político do país. O primeiro
número chegou às bancas o apagar das luzes dos anos 60, em plena vigência do AI-5 (26/06/1969), a tiragem de 20 mil
exemplares esgotou-se. O quadro de jornalistas e colaboradores estava sempre mudando e com espantosa regularidade eram
presos. Em 1970, houve a prisão coletiva da trupe em função da capa que reproduzia o quadro de Pedro Américo em que
Pedro I declara a independência do Brasil, que vinha com um balãozinho em que Dom Pedro dizia “eu quero mocotó”
(BAHIANA, 2006).
122
Com relação ao cinema, a Empresa Brasileira de Filmes, a Embrafilme
87
, criada em
1969 e remodelada em 1975, privilegiava a questão do filme histórico pelo qual o governo
manifestava interesse. A declarada não definição governamental da perspectiva ideológica a
ser seguida deu margem a que projetos que dialogassem com o momento em que se vivia
fossem subsidiados. Por outro lado, temos a TV concorrendo com os objetivos do governo,
criando uma imagem de um Brasil marcado pela euforia consumista das classes médias, um
país moderno, em busca de desenvolvimento.
No Recife, em 1970, nascia o Movimento Armorial, movimento cultural e artístico
liderado por Ariano Suassuna. Nascido no coração do Nordeste”, os artistas armoriais
expressavam um estreito contato com o mundo rural e suas tradições. Suas expressões, no
campo das artes plásticas, da música, do teatro e da literatura desenvolviam-se apoiadas no
imaginário popular, criando uma nova linguagem artística, uma nova arte brasileira. A relação
com a cultura oral e popular nordestina brasileira, não limitava a arte armorial a um
regionalismo, ou nacionalismo estreito, pelo contrário, incentivava uma verdadeira viagem
dentro das culturas brasileiras e universais (LINS e VICTOR, 2007).
“É um mundo de reis, cangaceiros, loucos, bispos, heróis, diabos, juízes de
togas negras e vermelhas, dançarinos, palhaços, pícaros, valentões falsos e
verdadeiros, com máscara de couro ou tatuada no rosto, de guerreiros
brancos, negros, vermelhos e mestiços, de reis magos e pastores, onde se
ouve a corneta do diabo, onde brilha a estrela do Cristo, cachorro de Deus.
Será um mundo apalhaçado, violento e que parecerá mesmo, aos olhos dos
refinados, elementar, pouco interior e pouco profundo” (Ariano Suassuna).
É nesse panorama geral que se inscreve a década de 70, período que enfocaremos
nesse capítulo. A primeira parte, “Segurança e desenvolvimento(?!) a desnacionalização do
Brasil” aborda o cenário brasileiro, os principais acontecimentos e forças presentes na época,
com destaque às questões ligadas à educação. Em seguida, em “De mala e cuia: Chegada ao
Rio de Janeiro” e “Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente” trazemos as
principais experiências de Célia, sua imigração para o Rio de Janeiro, os novos espaços de
87 Embrafilme foi uma empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos, criada através do
decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, como Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima. Foi extinta no início
da década de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo de Fernando Collor.
123
atuação que conquistou e a irreparável perda de seu irmão, Rui Frazão Soares, pelas forças da
ditadura. As entrevistas que Célia nos concedeu e alguns artigos sobre a época, lançados
recentemente
88
constituem as fontes dessa parte do trabalho.
Adiante, em “Trilhas do pensamento pedagógico”, abrimos com algumas idéias e
autores mais presentes nos estudos de Célia, bem como, fazemos uma breve retomada do
panorama das idéias pedagógicas da época. Compõe, também, essa parte do trabalho a
apresentação das principais idéias presentes nas produções escritas de Célia nessa época. O
objetivo dessa parte é destacar aspectos de seu pensamento pedagógico e apontar para
características do estilo de escrita que Célia vai desenvolvendo. Em “Voz dos parceiros”,
incluem-se as narrativas desenvolvidas a partir dos depoimentos dos professores Balina Belo
e Jésus de Alvarenga Bastos. Para fechar o capítulo, “Pedra e semente: a saga do herói,
aventura de estar vivo”, destacamos as idéias-força da década apresentada. Sigamos viagem.
2.1 “Segurança e desenvolvimento(?!)”: a desnacionalização do Brasil
“O que está bom para os Estados Unidos, está bom para o Brasil”
(Pronunciamento à imprensa, após retornar de viagem aos EUA, do General Juracy
Magalhães, embaixador do Brasil nos EUA, ministro da Justiça entre 1966 e 1967, ministro
das Relações Exteriores)
Previsão do tempo:
Tempo negro.
Temperatura sufocante.
O ar está irrespirável.
O país está sendo varrido por fortes ventos.
Máx.: 38º, em Brasília. Mín.:5º, nas Laranjeiras.
(Publicado no Jornal do Brasil, no dia seguinte à decretação do AI-5)
88 Destaco especialmente a mencionada publicação feita em 2007 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos” (MEC, 2007) e o artigo, também de 2007, de Otávio Luiz Machado, “Rui Frazão Soares:
a militância na EEP”, que faz parte do livro organizado por ele e pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco,
Michel Zaidan Filho, sobre o Movimento estudantil brasileiro e a educação superior.
124
Cálice
Chico Buarque (1978)
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
(...) Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Chico Buarque em “Cálice”, evoca o forte movimento de repressão à expressão
popular e às idéias discordantes da ideologia dominante que caracterizou a segunda metade da
década de 60 e boa parte dos anos 70.
É na continuidade dos conflitos iniciados nos anos 60 que entramos nessa nova
década. Após o golpe e todas as conseqüências que dele decorreram no campo das forças e
ideologias circulantes, o cenário era de mudança e coação às expressões populares e rebeldes.
Com efeito, por tratar-se de um processo histórico, não propriamente um marco inicial,
mas sim, uma série de acontecimentos e modificações no conjunto de forças e idéias presentes
na sociedade da época, que vão gerando mudanças, em um fluxo contínuo.
Nesse sentido, para compreendermos as principais questões dos anos 70 e seus
desenlaces, é necessário retomarmos aqui, movimentos que iam se configurando na década
anterior, já analisados em linhas gerais, neste capítulo dois.
É possível dizer que no período de 1930 a 1964, mantinha-se certo equilíbrio entre
uma política de tendência populista e uma economia, com seu modelo de expansão da
indústria, apesar da contradição que ensejavam. A expansão industrial apontava para uma
desnacionalização, expressa na abertura do mercado ao capital estrangeiro e às empresas
125
internacionais (sobretudo americanas), frutificando num mercado interdependente que não
combinava com as expectativas de uma política nacionalista, própria do populismo. Tendo em
vista a importância do papel do Estado nas condições mínimas necessárias para a expansão
inicial da indústria, o empresariado tolerou, em certa medida, o nacionalismo. Militares e
empresários apoiaram até determinado momento, o poder público em defesa de uma ideologia
de cunho nacionalista, em meio às tensões permanentes (ARANHA, 1989; FRANCISCO
FILHO, 2004; ROMANELLI, 1999; SAVIANI, 2007).
Com a penetração mais intensa do capital estrangeiro, que levava à expansão
econômica, o aparente equilíbrio rompeu-se. Não era mais possível que empresários e
militares coincidissem seus interesses com a política das massas e os apelos do nacionalismo
dos governos de viés populista. Assim, os rumos do desenvolvimento se definiram numa
orientação da política e da economia de forma que os obstáculos que se interpunham à
inserção definitiva do capital internacional fossem removidos. O movimento de 64, com o
Golpe de estado e as iniciativas de inibição aos movimentos dissonantes de sua concepção
ideológica, expressava essa orientação.
A criação e preservação das condições políticas e sociais para que a economia se
expandisse no sentido desejado, definia as funções do Estado que se expressavam em um
reforço do executivo e no remanejamento das forças na estrutura do poder; no aumento do
controle feito pelo Conselho de Segurança Nacional; na centralização e modernização da
administração pública e na cessação do protesto social.
A idéia de modernização se colocava como expressão do capitalismo internacional,
que compreendia uma melhor integração dos países periféricos no mercado mundial, como
era o caso do Brasil, e, ao mesmo tempo, o reforço de sua situação de periferia desse mercado.
Com a modernização, mecanismos de controle mais eficiente foram acionados, tanto no setor
da administração pública, quanto no da administração privada, pois compartimentalizavam-se
a produção e o trabalho, eliminando ou reduzindo os perigos da integração social dos
trabalhadores e a visão crítica do conjunto do sistema produtivo. Externamente, a
modernização assegurava não só a expansão de mercados, mas aumentava também a distância
entre os centros criadores de ciência e tecnologia e os países consumidores. A intenção era
aumentar os mercados de consumo dos produtos criados pelos países de economia central,
sobretudo os Estados Unidos. Nesse sentido, modernizar era, para o Brasil, sinônimo de
dominação e controle externo, impedindo um desenvolvimento autônomo (SAVIANI, 2007).
Com relação à educação, o regime percebeu que era necessário serem adotadas
medidas que adequassem o sistema educativo ao modelo de desenvolvimento econômico que
126
se intensificava no Brasil, importando o modelo organizacional das empresas para o campo da
educação. Guiados pela concepção de modernização, nos moldes dos chamados países
desenvolvidos, de aplicação racional de recursos e eficiência, os movimentos voltados para a
educação orientavam-se pela ênfase nos aspectos técnicos, sobretudo com relação ao
planejamento de metas e planos de educação. As leituras e estudos sobre os problemas
educacionais não incluíam, em regra geral, a reflexão sobre o contexto social mais amplo;
focalizando-se em aspectos isolados do comportamento humano e das questões de cunho
técnico como citado acima. A expressão “pedagogia tecnicista” sintetiza a orientação
pedagógica que então se configurava (ROMANELLI, 1999; SAVIANI, 2007).
O governo perseguia o objetivo de desenvolvimento econômico com segurança. A
educação e a baixa produtividade do sistema de ensino eram vistas como entraves para a
modernização do país (SAVIANI, 2007). Os índices de evasão e repetência e o atendimento
insuficiente da população em idade escolar, além do índice de analfabetismo, que nos 60 e 70
era praticamente o mesmo, 39,4% e 33,6% respectivamente, caracterizavam o panorama
educacional (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 114).
Estudos que focalizavam aspectos do comportamento humano e as taxionomias
ganhavam força em detrimento das concepções de consciência, tão presentes nos anos 60.
Tais estudos se caracterizavam por uma perspectiva que visava a “utilidade” operacional,
expressa na possibilidade observável das ações do comportamento e não nos subjetivos atos
de consciência. As idéias de Skinner
89
, com a publicação de “Ciência e comportamento
humano” foram muito difundidas nessa década, bem como os estudos de Bloom
90
e seus
colaboradores. Seus dois volumes de “Taxionomia dos objetivos educacionais”, publicados
em 1972, empenhavam-se em transpor as classificações de animais e plantas para o campo
educacional, no espírito do behaviorismo. A ênfase era pesquisar a forma de o humano reagir
89 Burrhus Frederik Skinner (1904- 1990), psicólogo americano, conduziou trabalhos em psicologia experimental, ficando
conhecido como principal teórico do Behavorismo, uma abordagem que busca entender o comportamento em função das
interrelações entre história filogenética e ambiental do indivíduo. Advogava também o uso de técnicas para a modificação de
comportamento, condicionando-o com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da sociedade (CAMPOS, 2006).
90 Benjamin S. Bloon (1913-1999) preconizava com sua Taxonomia cognitiva, que as operações cognitivas podem ser
classificadas em seis níveis de complexidade crescente. Cada nível dependeria da capacidade do aluno em desenvolver-se no
nível precedente. Bloom se interessava em propor uma ferramenta prática e útil que fosse coerente com as características dos
processos mentais superiores, segundo se considerava na época (EISNER, 2000).
127
ao meio ambiente e ao meio natural, ou seja, seu comportamento, com vistas a produção de
um conhecimento “útil” e aplicável (SAVIANI, op.cit.).
A incorporação das idéias pedagógicas tecnicistas no sistema de ensino se deu em
virtude das iniciativas de reforma, tais como a do ensino superior, exposta no capítulo dois e a
Lei 5692/71. Esta última, dentre outras modificações, ampliou a obrigatoriedade escolar de
quatro para oito anos, aglutinando, com isso, o antigo primário com o ginasial e suprimiu os
exames de admissão, responsáveis pela seletividade. Foi também extinta a separação entre
escola secundária e escola técnica, que era criada a escola única profissionalizante. O
supletivo, para os que não conseguiram concluir os estudos regulares, foi reestruturado
(ARANHA, 1989).
As integrações acima mencionadas com a lei 5692/71, obedeciam aos princípios de
continuidade, procurando garantir a passagem de uma série para outra, desde o grau até o
grau; e terminalidade, o que significava que ao terminar cada um dos níveis, o aluno
estaria capacitado para ingressar no mercado como força de trabalho, se necessário.
Para Aranha (op.cit.) a reforma, apesar de ter trazido algumas vantagens, como a
extensão da obrigatoriedade do grau e a superação formal da seletividade, efetivamente
configurou-se como um fracasso, trazendo prejuízos para a educação brasileira. A autora
analisa que, embora a obrigatoriedade tenha se estendido, os recursos materiais e humanos
não atendiam à demanda. Além disso, a perspectiva da profissionalização não se efetivou de
fato, pois faltavam professores especializados e infra-estrutura adequados, fazendo com que
fossem implementados os cursos de instalação mais barata. Vale ressaltar que para as escolas
destinadas às elites, era comum que estratégias para “burlar” a obrigatoriedade de ensino
profissionalizante fossem adotadas e o foco continuasse sendo um ensino propedêutico, ao
passo que para as escolas de classe popular, nem um nem outro ficavam garantidos. Cisão que
mantinha as desigualdades e descompassos educacionais.
Outras críticas à Lei são propostas por ARANHA (op.cit.), valendo para esse trabalho
destacar a que sublinha o caráter tecnocrático dessa reforma, segundo o qual a eficiência e a
produtividade têm validade por si só, terminando por se sobreporem aos valores pedagógicos.
Educação, ensino e escola passam a ser vistos como investimento, a busca era pela
produtividade, racionalização, operacionalização e plena utilização dos recursos.
Consoante com a Pedagogia tecnicista cujo elemento mais importante era a
organização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno uma posição secundária na
dinâmica educativa, relegados a “executores de um processo cuja concepção, planejamento,
coordenação e controle passam a ficar a cargo de especialistas habilitados, neutros, objetivos,
128
imparciais” (SAVIANI, 2007, p. 380). A essa teoria pedagógica correspondeu uma
reorganização das escolas que passaram por um intenso processo de burocratização, em que
se apostava na planificação para que o processo se racionalizasse.
Com relação à pós-graduação, esta foi instalada também no regime militar segundo as
mesmas coordenadas da visão tecnocrática dominante. O objetivo da pós-graduação era
formar quadros de alto-nível no campo científico e tecnológico, para impulsionar o
desenvolvimento do país. Sua organização baseou-se na experiência americana dos EUA,
conforme os Pareceres do Conselho Federal da Educação de Newton Sucupira que
conceituaram e regulamentaram a pós-graduação (Parecer CFE n.997/65 e CFE.77/69). Foram
esses pareceres que desencadearam a instalação dos programas e cursos nas principais
universidades do país durante os anos de 1970 (SAVIANI, 2007).
Saviani (op.cit.) nos conta que, apesar de inspirada no modelo americano, a pós-
graduação foi muito influenciada pela experiência européia, particularmente da Europa
continental, cuja ênfase recaia mais nos aspectos teóricos. Essa influência se deu graças a
formação dos professores que compunham os programas.
Foi na pós-graduação que surgiram os estudos empenhados em fazer a crítica da
educação dominante, pondo em evidência as funções reais da política educacional encobertas
pelo discurso político-pedagógico oficial. Tais estudos críticos, podem ser agrupados sob a
denominação de “tendência crítico-reprodutivista”, que postulavam não ser possível
compreender a educação sem que se pensasse em seus condicionantes sociais. Focalizavam-se
em explicar a problemática educacional, “remetendo-a a seus determinantes objetivos, isto é,
a estrutura socioeconômica que condiciona a forma de manifestação do fenômeno educativo”
(SAVIANI, op. cit., p. 391). Autores como Bourdieu, Passeron, Althusser, Baudelot e
Establet, já referidos no capítulo anterior deste trabalho, figuram entre os principais teóricos
dessa linha.
A título de retomada, vale lembrar, em linhas gerais, a partir de Saviani (op.cit.), os
aspectos principais da produção desses autores, expressos em suas críticas à escola e à
sociedade. Bourdieu e Passeron, com o conceito de violência simbólica, alertam para a ilusão
de uma escola neutra, apontando para os mecanismos de reprodução das relações existentes
presentes nas instituições educativas. Reconhecem a ação pedagógica como imposição
arbitrária da cultura (também arbitrária) das classes dominantes aos grupos das classes
dominadas.
Althusser, em sua teoria sobre as escolas como aparelhos ideológicos de Estado,
analisa a reprodução das condições de produção que implicam a reprodução das forças
129
produtivas e das relações de produção existentes. Distingue, no Estado, os aparelhos
repressivos, que funcionam pela violência, e os aparelhos ideológicos, que funcionam pela
ideologia e repressão. No capitalismo, diz Althusser, o aparelho ideológico de Estado escolar
se converteu em aparelho ideológico dominante, assim, a escola é um instrumento de
reprodução das relações de produção capitalista. Baudelot e Establet compreendem a escola
como inculcadora da ideologia burguesa, o que o faz de duas formas, pela inculcação explícita
da ideologia burguesa e pelo recalcamento, sujeição e disfarce da ideologia proletária. A
escola seria, portanto, um aparelho ideológico da burguesia.
Sob inspiração desses teóricos, afirma Saviani (op.cit.), muitos intelectuais brasileiros
mobilizaram-se na denúncia da utilização da educação por parte dos setores dominantes e no
mecanismo autoritário de inculcação da ideologia dos grupos do poder.
As teorias crítico-reprodutivas desempenharam um papel muito importante nos anos
70, sobretudo em sua segunda metade. Suas análises constituíram-se em instrumentos teóricos
para que fosse possível municiar-se para questionar à política educacional do regime militar,
criando assim um estofo para se produzissem críticas em artigos, dissertações de mestrado e
teses de doutorado.
Sem desconsiderar o fundamental papel de tais teorias crítico-reprodutivistas para a
educação, a crítica que foi se constituindo a respeito delas devia-se ao fato de terem se
restringido ao reconhecimento dos impasses da escola, sem, contudo apresentarem
possibilidades de mudança. Foi no rastro de um desejo de alternativas e saídas para a escola
que se percebeu a insuficiência de tais teorias. (SAVIANI, op.cit.).
No jogo de forças sociais, as críticas à ditadura também apertavam o cerco. O final da
década chega com um esgotado governo militar. A pressão aumentava por todos os lados.
Movimentos que clamavam por eleições diretas, por assembléia constituinte, pela Anistia
91
dos brasileiros que viviam no exterior por conta da ditadura, ganhavam força. O governo
91 O Comitê Brasileiro pela Anistia era integrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de
Imprensa (ABI) e a Confederação Nacional dos Bispos (CNBB). Sua criação foi fruto dos constantes movimentos de
resistência e de denúncia dos crimes da ditadura foi desenvolvido principalmente pelos grupos de familiares dos atingidos e
pela União Brasileira de Mães, entidade civil cassada em 1969 (BRASIL. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007).
130
militar iria perdurar até 1985, mas as forças de oposição começam a se fazerem mais
evidentes (FRANCISCO FILHO, 2004).
É, portanto, em linhas gerais, esse o cenário dos anos 70, em que coabitam visões
tecnicistas e, simultaneamente, emergem as críticas a tais concepções. É também quando,
entre “ventos e tempestades”, retomando a idéia que abre esse capítulo, ensejam-se
movimentos contra a ditadura.
2.2 De mala e cuia: Chegada ao Rio de Janeiro
No início da década de 70, os Linhares voltam ao Brasil, diretamente para o
Maranhão. Recém titulados mestres, Célia e José retomariam o trabalho na Universidade
Federal Maranhense.
Eram agora um sexteto. Na chegada, no aeroporto, encontraram cartazes à procura
dos dissidentes políticos. Sinais da chegada de tempos ainda mais duros. A perseguição aos
opositores do governo se acirrava. O mencionado AI 5, ato institucional do governo de
1968, autorizava a uma verdadeira “caça às bruxas”. Constituía-se uma ditadura que prendia e
matava, cerceando a liberdade democrática e instituindo a violência política.
Se por um lado a ditadura inibia com a prisão e a morte qualquer movimento
considerado de oposição, anunciava a doutrina de segurança e desenvolvimento. Havia uma
apologia ao ufanismo, nos relata Ridenti
92
, em suas lembranças do AI-5, que se fazia sentir
pelas canções irradiadas pelas rádios brasileiras: “Eu te amo meu Brasil, eu te amo, meu
coração é verde amarelo, branco e azul anil...”, "esse é um país que vai pra frente, uou, uou,
uou, uou, uou!"; e ainda pelos slogans afixados nos carros: "Brasil, ame-o ou deixe-o",
"Brasil, conte comigo" (RINDETTI, 1998).
Célia relembra sua chegada ao Brasil e o clima de medo que pairava no ar:
No ano de 70 ficamos no Maranhão, em 71 voltamos para cá. O golpe foi
muito terrível em 64, mas foi em 68, considerado um golpe dentro do golpe,
com o AI-5, que a ditadura mostrou toda a crueldade de que ela era capaz.
92 Professor da Universidade de Campinas (UNICAMP).
131
Aquelas listas nos aeroportos, os subversivos catados, os opositores sendo
presos, punidos e desaparecidos, foi terrível. Nós soubemos de tudo isso,
chegamos ao Maranhão e vimos toda essa situação, dificílima. Quando nós
voltamos a situação era absolutamente outra, para muito pior. (Célia, em
entrevista, 2007).
Célia e José Linhares perceberam que não podiam permanecer no Maranhão por
muito tempo. O cerco se aproximava, evidenciado pelo números de perseguidos políticos que
pediam ajuda contra diferentes formas da repressão. Era claro que havia uma vigilância
permanente de seus passos e sentiam-se em risco. Além disso, as notícias de amigos e
conhecidos que “caiam
93
” não paravam de chegar.
(...) Eram muitos os jovens que estavam na luta revolucionária que nos
procuravam: precisamos da ajuda de vocês, estamos sendo
perseguidos, estamos com medo!”(Célia Linhares, entrevista, 2007)
O medo era um sentimento que os acompanhava desde os primeiros episódios de
repressão sofridos na Rádio Educadora, até os percalços para conseguirem efetivamente
cursar o mestrado. O cerco parecia se fechar cada vez mais. Relembram ainda dos sustos
permanentes vividos ainda nos Estados Unidos no final da década de 60:
Quando chegamos nos EUA trouxemos conosco nossos medos e
encontramos fábricas de outros. Chegamos naquela sociedade policial,
àqueles carros sempre girando com aquelas luzes, “será que vieram nos
buscar?! Será que eles souberam o que a gente fez?” . Éramos assaltadas,
assaltados por esses sustos.
Quando nós retornamos ao Maranhão, voltamos a dar aula, os esquemas de
fiscalização estavam todos em ação, nos cursos tínhamos os estudantes
inscritos e tínhamos os penetras, com aquelas bolsinhas e os gravadores:
eram os espiões, com seus esquemas. Eu ainda me lembro de me manter
permanentemente me sentindo fiscalizada. A gente alugou uma casa longe
do centro, no “Tirirical”, próximo do aeroporto de São Luís. Quando nós
saíamos tinha um homem de óculos escuros na porta, de óculos escuros,
mesmo quando era noite. Ali, não era para ter nenhum transeunte, era o
subúrbio do subúrbio, perto do aeroporto! (Célia, em entrevista, 2007)
93 O termo “cair” é uma expressão popular muito utilizada para se referir àqueles que eram capturados pela repressão. Nesse
trabalho, ao longo das entrevistas, tanto Dorothy quanto Célia fizeram uso desse termo, por isso o mantenho em meu texto.
132
Lembremos então que à época o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) dedicava-se a
monitorar todos os comportamentos considerados suspeitos
94
. Era impossível continuar
vivendo sob a égide do medo. A família então decidiu imigrar para o Rio de Janeiro. Sem
nenhuma perspectiva profissional concreta, com quatro filhos e uma caminhonete rural, se
puseram na estrada.
Então nós vimos que era muito difícil, aquele cerco, aquele cerco...
sobretudo no sentido de que não podíamos continuar com tanto medo. As
pessoas caindo, a gente se solidarizando com os que caiam... Mas sabíamos
nosso endereço e roteiro estava todo fichado... Resolvemos ir para o Rio,
numa caminhonete rural, com os 4 filhos, com Bibi e Vilma (duas amigas
ajudantes que acompanharam a família), com Andréa pequenininha no meu
colo. Fizemos essa viagem, nos perdemos nos caminhos porque as estradas
eram péssimas. Entramos em uma que era quase assim uma estrada de onça,
subindo, descendo, com quatro crianças. Viemos com a cara e a coragem.
Para nós o maior atrativo do Rio de Janeiro era ficarmos incógnitos. (Célia,
em entrevista, 2007)
Chegando ao Rio de Janeiro, num primeiro momento Célia lecionou na Universidade
Santa Úrsula, ensinava “Introdução à educação” e “Currículos e Programas”.
Tinha medo. Muito medo. Medo do Rio, tão diferente de São Luís onde tudo
me parecia familiar. Medo da repressão que me assustava, quando qualquer
olhar mais perscrutador me seguia, dentro ou fora da sala de aula. (Célia
Linhares, entrevista, 2007)
Não demorou muito para que fosse procurar uma conhecida maranhense, Eulina
Fontoura, que a recomendou entrar em contato com Paulo de Almeida Campos, da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Ali iniciaria sua contribuição na UFF que já perdura
94 Fazer uma tese é mergulhar em estudos e reflexões que passam a nos habitar. Assim, muito do que tenho vivido e o que
penso, sinto e reflito a partir disso, se entrelaça à produção de minha tese. É por isso que acho interessante mencionar um
belíssimo filme que vi recentemente, que possui ligação com essa passagem de Célia, num convite a quem venha a ler esse
trabalho. Trata-se do filme alemão em cartaz no Brasil nesse ano de 2008 (na Alemanha foi lançado em 2006) intitulado “A
vida dos outros”. Dirigido Florian Henckel von Donnersmarck, o filme se passa na Berlim Oriental de 1984 que busca
assegurar seu poder através de um cruel sistema de controle e vigilância sobre os cidadãos, na forma da Stasi, como é
conhecida a polícia secreta. O agente da Stasi, Gerd Wiesler, recebe o encargo de coletar evidências contra o bem-sucedido
dramaturgo Georg Dreyman e sua namorada, a atriz Christa-Maria Sieland. Wiesler, no entanto, envolve-se com os
acontecimentos e a vida daqueles que observa e silenciosamente, burla a própria missão de vigiar, em cumplicidade com
aqueles a quem devia denunciar.
133
37 anos. Na ocasião, já estavam processando a instalação de um curso de Mestrado na referida
Universidade. Na época poucos, muito poucos tinham o título de mestre no Brasil, como
Célia, o que abriu as portas para seu trabalho.
(...) O professor Paulo de Almeida campos da UFF viu meu currículo e se
surpreendeu com a minha modéstia. “Você é tão nova e tem uma titulação de
que o Brasil precisa tanto, você tem o Master Degree em Filosofia e
Sociologia da Educação pela Michigan State University! Vamos precisar de
você!”. Então ele me apresentou para Austa Gurgel e Terezinha Lankenau
que coordenava o Mestrado em sua esfera acadêmica e Hilda Faria, que
como diretora da Faculdade era quem assumia as responsabilidades
administrativas daquele Mestrado que então se iniciava. (Célia Linhares,
entrevista, 2007)
Célia entrou para a UFF como bolsista, sem vínculo empregatício, proferindo
conferências. Percebia que suas falas mobilizavam interesses nas pessoas, que talvez
reconhecessem que ela trazia coisas novas, reflexões instigantes e, num curto espaço de
tempo, foi contratada como auxiliar de ensino. Para isso precisava passar por um atestado de
idoneidade ideológica, exigência para a assunção de cargos públicos naqueles tempos de
controle e vigília. Suas conferências abordavam autores com os quais havia travado contato
em seu mestrado nos EUA.
Comecei fazendo conferências em que tratei de questões epistemológicas
(Foucault e Bachelard); tecnológicas e culturais (Mc Luhan95 e Marcuse);
tendências educacionais ( Brokover, Skinner, Piaget
96
e
Rogers
97
).
Em seguida foi indicada para coordenadora geral do mestrado. Havia insistente
pressão por parte do MEC/CAPES
98
, para que o Curso de Mestrado da UFF se transformasse
95 Herbert Marshall Mc Luhan (1911-1980), ex-professor de literatura inglesa no Canadá, professor em várias universidades
dos EUA, é uma importante autoridade mundial em comunicação de massa. Compreendia que o homem estava imerso numa
complexa rede de comunicações na era da eletrônica, da cibernética, da automação, o que afetava sua visão e sua experiência
de mundo, de si mesmo e dos outros. (GADOTTI, 1997)
96 Jean Piaget (1896-1980), psicólogo suíço, tornou-se conhecido graças a seus estudos sobre os processos de construção do
pensamento nas crianças. De acordo com Piaget o papel da ação é fundamental na construção do conhecimento pois a
característica essencial do pensamento lógico é ser operatório, ou seja, prolongar a ação interiorizando-a. Crítica a escola
tradicional que considera não contribuir para formar inteligências inventivas e críticas. (GADOTTI, 1997)
97 Carl Ransom Rogers (1902-1987), psicólogo norte-americano especializou-se em problemas infantis na Universidade de
Columbia em Nova York. Seu método terapêutico, conhecido como não diretivo, preconizava que o aconselhamento tem
como finalidade a eliminação da inconsciência entre o autoconceito e a experiência pessoal, que acreditava ser a raiz dos
problemas psicológicos do ser humano. Tal perspectiva ajudaria no amadurecimento emocional, na aquisição da autonomia e
nas possibilidades de auto-realizar-se. Rogers transporia para a educação sua concepção terapêutica. (GADOTTI, 1997)
134
em uma especialização. O credenciamento do curso seria um esforço significativo que Célia
empreenderia com vários professores, em sua coordenação.
Eu não tinha “uma liga”, um trânsito” na instituição, além de eu ser muito
nova. Da minha perspectiva de uma jovem professora, o ambiente me
parecia contraditório, com algumas simpatias, mas também com figuras
muito autoritárias. E eu no meio daquilo. Mas então, convivendo fui
construindo relações profissionais e com confiança naquela instituição.
Coordenava o Mestrado.
Primeiro a coordenação funcionava no gabinete de direção da Faculdade.
Depois conseguimos uma sala onde passamos a coordenar. Ali ficávamos
todos: a coordenação, os professores do Mestrado e a secretaria.
Pouco a pouco fomos ampliando espaços para o Mestrado que nascia, junto à
CAPES, por exemplo, lutando e conseguindo de certa maneira, alguns
reconhecimentos para o Curso, o que nos possibilitou, por exemplo, sairmos
do veredicto de que devíamos aceitar o lugar de uma especialização. A
direção da CAPES era de Darci Closs. descendente de alemães, que era uma
autoridade e tinha toda uma vinculação com os países anglo-saxões:
Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra, sobretudo Alemanha. (Célia
Linhares, entrevista, 2007)
A tarefa de credenciar o mestrado não foi fácil. A diretiva da Coordenação de
aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior (CAPES) de que não seria necessário abrir
mais um curso de mestrado justificava-se pelo fato de que a Universidade Federal do Rio de
Janeiro
99
e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
100
o tinham. A política à
época era de não multiplicar esforços semelhantes. Mas o grupo da UFF mobilizou-se,
defendendo a abertura e credenciamento do curso em Niterói.
Diziam que havia o curso do PUC e da UFRJ trabalhando como Mestrado. Lutei
muito para compor um curso que pudesse ser credenciado. Contratei professores como Balina
Bello Lima , Paulo Mota, Paulo Reis Vieira. A CAPES sugeriu que contratasse professores
doutores estrangeiros e me encaminhou alguns currículos. Assim vieram professores tais
98 A coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, foi criada em 11 de julho de 1951, pelo Decreto nº.
29.741, com o objetivo de "assegurar a existência de pessoal especializado em quantidade e qualidade suficientes para
atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do país". (fonte:
http://www.capes.gov.br/)
99 O programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro criado em 1972 completou 35 anos
em 2007. (fonte oral: professora do curso de pós da UFRJ Patrícia Corsino)
100 O programa de pós-graduação em educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro foi criado no final de
1965. (BIANCHETTI E FÁVERO, 2005).
135
como Frederic Turk, que havia trabalhado na UNESCO
101
, no Chile e outros dois, cujos
nomes que já se foram, pois sua passagem foi curta e minha memória já não é uma maravilha.
Conseguimos credenciar o Mestrado, com um explícito reconhecimento dos consultores da
CAPES à coordenação pela sua competência e tenacidade. Nessa ocasião o vice-coordenador
era o Antônio Puhl, com quem contei sempre com um apoio dedicadíssimo. (“As coisas
findas”, Célia Linhares, 2007)
O processo de credenciamento exigiu grande empenho de Célia e de seus
colaboradores. Exigências burocráticas, organização de documentos e uma série de tarefas
que ocuparam muito de seu tempo e investimento nos primeiros anos da década de 70. Na
publicação do Relatório da universidade de 1974/1978, que trazia as principais metas
alcançadas naquele triênio, encontramos na dedicatória do então reitor Geraldo Sebastião
Tavares Cardoso a tradução do mencionado reconhecimento pela contribuição de Célia
naquele período:
À Professora Célia Linhares o meu agradecimento e a minha admiração pela
excepcional capacidade de realizar e de amar que põe em seu trabalho admirável a frente da Pós-
Graduação em Educação
.” (20/08/1978)
101 Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura.
136
Vale destacar um episódio acontecido em meio a esse processo de credenciamento,
que deixa claro a insegurança que havia no ar. Em um dos dias em que a comissão da CAPES
visitava o Programa para fins de credenciamento, a Faculdade recebeu uma ligação que dava
notícias de uma ameaça de bomba no prédio em que se encontrava. O ambiente de medo fazia
parte do contexto daquele momento.
Na época do credenciamento, eu passei uma ou duas noites dormindo na
UFF para fechar os trabalhos, que implicavam em coletâneas de papeis
infindáveis. Balina Belo Lima, Austa Gurgel, Maria Wanda Maul e Maria
Helena Paes Faria emprestaram uma colaboração muito grande. Foram
excessivamente solidárias com o Mestrado e comigo que o coordenava.
Maria Helena pernoitou comigo, me ajudando. Entre todos e todas nós da
Faculdade circulou uma vontade de apoiar o Mestrado pelo muito que ele
significa. As exceções não chegaram a empanar o brilho desses movimentos
que confluíram.
Tinha um vigilante no prédio em que trabalhávamos e quando eu recebi a
comissão da CAPES para apresentar o Programa, telefonaram falando: “No
prédio da Faculdade de Educação tem uma bomba que vai explodir”. Todos
se mobilizaram. A Direção chamou a polícia. Foi um susto terrível! (Célia
Linhares, entrevista, 2007)
Sustos de uma época em que o clima era de ameaças. Voltando ao credenciamento do
curso, mencionamos que o parecer de reconhecimento do mesmo, ressaltava o trabalho da
137
equipe responsável, valorizando, também, a qualidade do corpo docente, dos livros
selecionados, etc. De fato, havia sido um empenho coletivo liderado por Célia.
No parecer de reconhecimento do curso saiu um elogio para nós, dizendo
que além das condições serem favoráveis - os livros, o corpo docente - que a
coordenação tinha um absoluto compromisso com esse curso que o ajudava a
vingar. Algumas pessoas foram muito importantes nesse processo, algumas
citei. A presença da professora Balina, o de Antonio Puhl foram também
uma parceria muito próxima... Wanda Maul foi uma pessoa muito amiga.
Com ela traduzi o livro “A loucura dos outros”, de Bruno Bettelheim
102
.
Mas, o certo é que cada um, de sua maneira, todos e todas que constituíam o
corpo docente e a própria Faculdade com sua direção e professores, que na
época eram Fátima Pinto e Lúcia Molina Trajano da Costa, cerraram fileiras
com o objetivo comum de fazer o Nosso Mestrado reconhecido oficialmente.
Nesta frente de luta por reconhecimento, institucionalização e difusão da pós-
graduação, Célia conseguiu três bolsas de doutorado na Europa. Abriu então uma seleção para
os professores interessados. Jésus de Alvarenga Bastos e Cósimo de Ávila, ambos mestres
pela Universidade Federal Fluminense, foram os candidatos selecionados à época, que
voltaram como docentes do Programa. Mais tarde, Jésus foi sucessor de Célia na coordenação
do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.
A defesa de sua tese de livre-docência em 1976, intitulada “Introdução a ontologia da
criatividade
103
”, foi uma passagem marcante dessa década. Em sua tese, Célia trabalha com a
concepção de que os estudos da criatividade são fundamentais para a compreensão da
educação, entendida como projeto existencial. Fundamental na conquista do homem de sua
própria expressão e originalidade, à educação caberia, em sua proposição, assumir a
concepção de criatividade como necessidade vital para a plenificação do ser.
Na época essa produção de Livre-Docência tinha um peso semelhante – ou até mesmo
superior, nos diz Célia – às teses de doutorado. Com a diferença de que era feita sem
102 Bruno Bettelheim (1903-1990), psicólogo de origem judaica, especializou-se em psicanálise, ficando conhecido
mundialmente em função de seus trabalhos sobre autismo infantil. Uma de suas obras mais célebres, The uses of
Enchantement (Psicanálise dos contos de fadas ), sublinha a importância que os "contos de fadas" têm no desenvolvimento
emocional das crianças.
103 Em “Trilhas do pensamento pedagógico”, nesse mesmo capítulo, dedicaremos um espaço maior para apresentar as idéias
centrais dessa tese. Aqui a mencionamos brevemente apenas para contextualizar essa produção.
138
orientador. A essa altura Célia contava com relativo reconhecimento dentro da
universidade, tanto por parte dos alunos de graduação e pós-graduação, quanto de seus pares.
O processo de livre-docência foi uma experiência árida, tendo em vista a devolutiva
por parte da banca de avaliação, cuja concepção mais tradicional levou a uma inquisição dura
da tese de Célia.
Na docência universitária, pós-graduada e a graduada ao mesmo tempo, eu
fiz uma tese de livre-docência e fui para esse concurso que foi cheio de
lances. Ouvi do membro e presidente da banca que havia conseguido
conciliar o facismo como o comunismo, posto que me apoiava no
pensamento de Heidegger para elaborar questões vivas na educação.
No final, a banca me aprovou. Mas embora tenha sido dura, foi uma
experiência que me fortaleceu. Alguns professores e muitos estudantes se
manifestaram. Sei que chorei dois dias sem parar, com aquilo ressoando
nos meus ouvidos. Linhares dizia: “Sai disso, s podemos educar os filhos
com o que ganho!”, eu não ganhava quase nada, mas eu sentia que era
importante continuar ali.
Aprendi muito. E essa experiência, mesmo com suas cicatrizes, é sempre
valiosa para minha prática pedagógica!
Após esta experiência vivida em sua defesa, Célia lembra que o reconhecimento de
alguns professores e o apóio dos estudantes encheu-a de renovado ânimo. O fato também de
sua tese ter alcançado algum reconhecimento por parte de alguns interlocutores, mesmo de
matrizes ideológicas diferentes das suas, também a revigorou. Mas sobretudo foi se
ampliando com as aprendizagens que tudo isso lhe proporcionou.
Foi lindíssimo quando voltei a dar aulas - eu era professora do mestrado- me
deram flores, me deram presentes, confirmando minha trilha. Foi
importantíssimo ter recebido “tapas na cara”, ter ouvido admoestações
desrespeitosas, respondido com a força e a fraqueza que me constituíam, mas
ter me reconstituído, aprendendo comigo, com os outros, com a vida. Mas
foi muito duro. Apesar de ouvir que minha tese era de uma comunista e
fascista, alguns membros da banca perceberam o meu pensamento, com suas
fagulhas. Alguns disseram que ali não tinha uma pessoa que reproduzia:
“professora, esse seu pensamento, acha que pode vigorar na educação?!”,
elogiaram também meu trabalho, disseram: “Você, numa época de
materialismos, tem uma mística atuante!”.
Não era a primeira vez que Célia se via diante da difícil situação que era expor um
pensamento divergente diante de pessoas que ocupavam postos de poder. Essa era uma
experiência com a qual deparava-se desde seu início profissional. De um lado a dureza desses
episódios, “tapas na cara”, ameaças e enfrentamentos que iam ferindo e ao mesmo tempo
139
possibilitando uma permanente reconstituição. De outro lado, por outras fontes jorravam
manifestações de reconhecimento, confirmando e fortalecendo sua confiança nos caminhos
trilhados. Caindo, reerguendo-se, aliando-se com alguns, diferindo de outros, ela ia
demarcando algumas fronteiras. Não sem alguns arranhões. Mas o que parecia prevalecer era
uma confiança no caminho que trilhava.
Se na vida profissional Célia vivia experiências de construção, embates, afirmações,
na vida em família seus horizontes se alargavam, literalmente. A mudança de residência em
74 trazia a perspectiva de mais espaço, os filhos cresciam. Saíram então do apartamento
alugado em Copacabana onde moravam para a Ilha da Gigóia, na Barra da Tijuca. A casa era
pequena e ia sendo construída aos poucos para ir abrigando sua família numerosa e crescida.
O acesso a ela era feito por uma pequena embarcação que atravessava a ilha, um charme,
proporcional às dificuldades de uma família em que todos precisavam ir e vir para o
continente, várias vezes por dia. Mas, havia uma outra atmosfera de aventura que passava a
colorir a vida da trupe.
Os perigos cresciam enquanto a ditadura agonizava. É preciso dedicar um tópico
especialmente para trazer uma passagem das mais significativas da década, que marcará a
trajetória de Célia radicalmente ao longo de todos os anos subseqüentes. O desaparecimento e
morte de seu irmão Rui. Esse será assunto a ser desenvolvido em nosso próximo capítulo,
mais adiante, sob o título: “Uma passagem tenebrosa- ausência sempre presente”.
Voltando às experiências profissionais de Célia, é importante citar uma outra atuação
marcante em sua trajetória. Sua participação na fundação da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)
104
, em 1976, o que fez junto com outros
representantes dos programas de pós-graduação da área de Educação brasileira. Célia foi da
primeira diretoria: a secretária adjunta. Em 1979, a Associação consolidou-se como
sociedade civil e independente, admitindo sócios institucionais (os Programas de Pós-
Graduação em Educação) e cios individuais (professores, pesquisadores e estudantes de
pós-graduação em educação).A finalidade dessa Associação era/é o desenvolvimento e
104 A ANPED é uma sociedade civil, sem fins lucrativos cujo objetivo e divulgar e difundir as pesquisas realizadas nos
cursos de s-graduação em educação do Brasil e das pesquisas desenvolvidas pelas universidades. (fonte:
http://www.anped.org.br/acesso : 1/10/2007)
140
consolidação do ensino de pós-graduação e da pesquisa na área da Educação no Brasil,
constituindo-se num significativo fórum de debates das questões científicas e políticas da
área, referência para acompanhamento da produção brasileira no campo educacional e uma
importante ponte de conexões com eixos expressivos do pensamento mundial desta esfera.
A participação nesse movimento foi um “arejamento” para Célia. A UFF era um
espaço em que, apesar de ser palco de muitas conquistas e aprendizados, tinha também seus
limites
105
. Diferente do que sentia nos encontros coletivos para pensar a ANPED. parecia
haver um espaço mais acolhedor para as diferentes contribuições, isso a animava!. Quando
fui nos anos 70 para ANPED fiquei mais satisfeita, as pessoas falavam, se ouvia, havia
troca. Os problemas políticos apareciam, encontrava e escutava os que narravam seus
sofrimentos na ditadura. Esse tipo de papo não tínhamos na UFF, nem havia contado que
tinha um irmão desaparecido”. (Célia Linhares, entrevista, 2007)
Outro movimento marcante neste período de coordenação do mestrado foi sua viagem
à Alemanha para representar a pós-graduação num Seminário Internacional e falar sobre o que
representava para o Brasil nossa Pós-graduação em Educação. A marca da coordenação de
Célia era sem dúvida o movimento de ampliação e difusão do programa de pós da UFF,
tornando-o mais conhecido nacional e internacionalmente, lutando contra uma tendência mais
fechada que parecia haver na universidade.
Nessa década Célia também traduziu dois livros que trouxe de seus tempos de Estados
Unidos. “Dibs: em busca de si mesmo” (que traz o caso de uma criança autista e o bem
sucedido tratamento que a resgata para o convívio social) de Virginia M. Axline e o, já citado,
“A Loucura dos Outros de Bruno Bettelheim (que trata de uma escola para crianças com
graves patologias). A Escola era dirigida pelo próprio B. Betheilleim, famoso psicanalista,
que havia sobrevivido aos campos de concentração nazista. Esta última tradução,
105 Trago aqui uma curiosa observação a respeito do ambiente acadêmico, escrita pelo professor e médico Julio Voltarelli
quando era editor da Revista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. No editorial da revista ele comenta sobre a leitura
de um artigo do “Estado de São Paulo”, na época de seu mestrado, nos idos anos 70, intitulado “O mundo acadêmico pode
ser uma selva”. O artigo, ele nos conta, “descrevia a frustração de um profissional norte-americano que havia se transferido
da empresa privada para a universidade e nesta havia encontrado um jogo de poder e um clima de intrigas tão ou mais
intensos que em seu emprego anterior. Sua expectativa era de que as decisões universitárias sempre se pautassem pela ética e
racionalidade, condizentes com o ideal acadêmico da busca da verdade a qualquer custo, contrastando com o ideal do lucro a
qualquer preço na iniciativa privada”. (VOLTARELLI, 1998)
141
compartilhada com Maria Wanda Maul de Andrade, foi editada pela AGIR. No caso do livro
DIB’s, é curioso acrescentar que ele foi muito utilizado pelos cursos de psicologia durante os
anos 80. Foi assim que tive contato com ele em minha graduação em Psicologia na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando nem sonhava em conhecer Célia (menos
ainda em mergulhar em sua obra). Na época ele foi uma referência para estudantes de
psicologia pois trazia descrições das sessões terapêuticas do menino Dib, muito
saborosamente descritas. Ainda hoje pode ser encontrado como parte das indicações
bibliográficas em alguns cursos de psicologia.
A década de 70 foi um tempo de novos empreendimentos, abertura de novos campos
de atuação e trabalho. Foi também um período em que Célia começava a intensificar sua
produção escrita.
Partindo para novos desafios, logo no início da década de 80, após ajudar a consolidar
a posição do Jésus Bastos como coordenador do Programa de Pós-graduação da UFF, Célia
sairia do Brasil para fazer seu doutorado na Universidad Nacional de Buenos Aires.
Linhares recebeu um convite para trabalhar na Argentina. Linhares foi antes
e, logo fui com as meninas. Fiz o meu doutorado. E foi interessante, porque
para mim a América- latinidade era uma dimensão do meu trabalho e eu
aproveitei para explorar essa questão, mergulhando por lá. Na Argentina
havia uma burocracia muito grande, a admissão como estudante de
doutorado me exigiu muito esforço, muito empenho burocrático, traduções,
traduções, traduções. Mas também haviam muitas censuras, controles e
desaparecimentos políticos, produzidos pela ditadura! O clima era de terror.
Fui me submetendo aos exames que me foram exigidos: história da
Argentina, literatura da Argentina, proficiência em espanhol. Aprendi
muito, até sobre a resistência das Mães de Maio. Bem sabia que os
problemas de cerceamento político, de torturas e de desaparecimentos
tinham usinas de fabricação nos interesses capitalistas e que os EEUU era
uma das sedes. Quem podia esquecer o assassinado do Presidente Allende?
Ou da cruenta e selvagem Operação Condor? (Célia Linhares, entrevista,
2007)
Célia sabia que os problemas do Brasil eram também problemas da América Latina e
que as torturas eram costuradas com fios que vinham do mundo capitalista, de uma de suas
mais importantes sedes, os EEUU, por exemplo. A operação Condor é um retrato vivo dessas
coligações macabras. Por tudo isso, os anos 70 correm quebrados, seu fluxo se interrompe.
Vamos tratar sobre isso, no item 2.3 Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente. É
sobre esse acontecimento que trataremos a seguir.
142
2. 3. Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente.
Antígona julgava que não haveria suplício maior do que aquele: ver os
dois irmãos matarem um ao outro. Mas enganava-se. Um garrote de
dor estrangulou seu peito já ferido ao ouvir do novo soberano,
Creonte, que apenas um deles, Etéocles, seria enterrado com honras,
enquanto Polinice, deveria ficar onde caiu, para servir de banquete aos
abutres. Desafiando a ordem real, quebrou as unhas e rasgou a pele
dos dedos cavando a terra com as próprias mãos. Depois de sepultar o
corpo, suspirou. A alma daquele que amara não seria mais obrigada a
vagar impenitente durante um século às margens do Rio dos Mortos.
(SÓFOCLES, 1999)
Memória
(Carlos Drummond de Andrade)
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais
que lindas,
essas ficarão
AUSÊNCIA
(Carlos Drummond de Andrade)
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Tal qual Antígona, sem poder enterrar seu irmão, Célia viveria a partir de 1974,
junto com sua família, a busca por Rui, desaparecido pelas forças da ditadura. Busca que
culminaria na confirmação de sua morte. Seu corpo nunca seria encontrado. Tempos
sombrios.
143
Ausência sempre presente, tal como nos diz Drummond nos poemas que epigrafam
esse texto, o desaparecimento e perda de Rui marcariam definitivamente Célia e seus
familiares, acompanhando-os sem tréguas e, animando-os a lutar pelo alargamento da vida e
com ela da participação de todos no Brasil e no mundo.
Rui Frasão Soares era o quinto irmão na família de Célia, aquele que ainda um bebê
de colo, havia viajado de navio com a família Soares na primeira imigração para o Rio de
Janeiro. Imigração que estava ligada a embates vividos no Maranhão pelo pai de Célia.
Também essa passagem já era um prenúncio do movimento divergente e combativo dos
Soares.
Tendo em vista a falta de infra-estrutura da educação superior em seu estado natal,
Rui partiu para Recife para ingressar na Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP) e esta
oportunidade de estudo e vida foi viabilizada pela solidariedade de Adhemar e Anna Maria,
seus irmãos que na ocasião exerciam funções profissionais no IPASE. Nos anos 60, Rui era
um jovem estudante de engenharia. Na época havia uma auto-concepção profissional que
instigava a uma intervenção social dos profissionais em muitas áreas, para além das técnicas
que a acompanhava (MACHADO, 2007). Para Rui a perspectiva de se tornar engenheiro
apontava para a possibilidade mais ampla de se ligar ao campo social e político da sociedade.
À época havia duas forças políticas principais que disputavam a hegemonia do
movimento estudantil da EEP, a Juventude Universitária Católica (JUC) e o Partido
Comunista Brasileiro (PCB). Rui definiu-se pela JUC, fazendo parte do grupo de Dom
Hélder
106
.
Quando o golpe foi perpetrado Rui continuou sua militância, interligando ações
estudantis aos movimentos do campo. Uma das principais lutas políticas que marcaram a
atuação de Rui, neste período, consistiu na tentativa de barrar a transferência da sede da EEP
da Rua do Hospício para o bairro de Engenho do Meio. Essa transferência era entendida pelos
estudantes como uma tentativa de isolá-los em um prédio distante do povo e das ruas. Rui era
então o representante dos estudantes na Congregação da EEP.
106 Religioso cearense, destacou-se internacionalmente quando ocupava a arquidiocese de Olinda e Recife, ao sair
constantemente em defesa dos direitos humanos, durante o regime militar brasileiro instalado em 1964. (PILETTI, 1997)
144
Os movimentos estudantis sofreram intervenções nos diretórios, ameaças e prisões de
alguns de seus líderes. Em 1965 Rui seria preso e torturado com choques, de tal intensidade,
que teve alguns de seus dentes quebrados.
No último ano de seu curso, tendo em vista seu bom desempenho acadêmico, Rui foi
selecionado para fazer um estágio na Companhia Siderúrgica Nacional, no Estado do Rio de
Janeiro. No entanto, ao sair do prédio da EEP foi preso, novamente torturado e isolado.
Após a soltura, em 1965, Rui foi participar de um Seminário na Universidade de
Harvard nos Estados Unidos, e durante a Assembléia das Organizações Nacionais Unidas
(ONU
107
), aproveitou a oportunidade para denunciar a repressão ao movimento estudantil no
Brasil e as torturas que ele e colegas haviam sofrido.
Ao voltar ao Brasil, Rui retornou ao Maranhão, seu estado natal, abandonando os
estudos. Não havia condições para a continuidade do curso de engenharia. Ele era ainda
perseguido e respondia a processos da Justiça Militar.
Assumiu então um cargo num concurso público, sendo nomeado auditor federal numa
cidade do interior chamada Vianna, nas proximidades de Pindaré-Mirim. se engajou nas
atividades do Movimento de Educação de Base, ligado à Igreja Católica, junto à população
camponesa da região. Nessa época, Rui estudava a obra de Teilhard de Chardin, autor que
comentamos no capítulo anterior, cuja confiança no processo evolutivo da humanidade
animava Rui (BRASIL/ Secretaria Especial dos direitos humanos, 2007). Lá, ele se
confrontou com a aristocracia rural, continuando a lidar com novas frentes de luta pela justiça.
A partir de 1967, quando tinha se tornado militante da Ação Popular, destacou-se
na orientação política junto ao movimento dos trabalhadores do rio Pindaré. Essa luta foi se
ampliando até gerar um grave conflito armado, em julho de 1968, quando um dos principais
líderes do movimento camponês, Manoel Conceição, foi baleado e detido, tendo de amputar
uma perna por falta de atendimento médico na prisão.
107 Fundada após a Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas é uma instituição internacional formada por 192
Estados soberanos. Seu objetivo é manter a paz e a segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as nações,
promover progresso social, melhores padrões de vida e direitos humanos. Os membros são unidos em torno da Carta da
ONU, um tratado internacional que enuncia os direitos e deveres dos membros da comunidade internacional.
(site oficial da ONU: <http://www.onu-brasil.org.br>acesso em 14/ 11/2007.
145
Em 1968, Rui Frazão casou-se com Felícia Moraes, com quem teve o filho Henrique,
em 1972. Com a repressão generalizada que se abateu sobre o trabalho camponês
desenvolvido pela Ação Popular
108
no interior do Maranhão, Rui teve de passar à vida
clandestina, adotando a identidade de Luís Antônio Silva Soares. Na disputa interna vivida
por essa organização entre 1971 e 1972, Rui Frazão alinhou-se na ala que optou pelo ingresso
no Partido Comunista Brasileiro (PcdoB). Residia, então, em Juazeiro da Bahia, na margem
direita do rio São Franciso, em frente à Petrolina (PE). Fez um curso de técnico de rádio e
televisão e, com Felícia, negociava artigos de artesanato.
Na manhã do dia 27/05/1974, Rui foi preso na feira de Petrolina, por três policiais
armados de revólveres que o agrediram, ameaçaram de morte, algemaram e o jogaram no
porta-malas de uma viatura preta, da Polícia Federal. Conseguiu gritar para uma colega
feirante, um pedido de alerta à sua esposa: “-Avisa Licinha!”. Os policiais retornaram mais
tarde para recolher as mercadorias e até a lona da barraca de Rui. A feirante lia perguntou
aos policiais para onde o tinham levado, recebendo como resposta que não era para se meter
porque “a boca era quente”.
Após o desaparecimento de Rui, sua esposa escreveu à Folha de São Paulo e a
diferentes órgãos da imprensa brasileira, mesmo sabendo que corria perigos com essa atitude.
A mãe de Rui, Alice, também escreveu uma carta a Armando Falcão, o então ministro da
justiça, que havia sido colega de seu marido no Instituto Nacional do Sal. Além disso, viajou
para Recife, procurou os altos comandos militares em busca de notícias de seu filho. A
resposta que recebia era desanimadora e inconsistente: “ninguém sabia de nada.”
Em setembro de 1974, o militante Alanir Cardoso foi preso em Pernambuco. Os
agentes apresentaram a ele uma foto de Rui, de perfil, que havia sido feita no cárcere, e
108
A organização clandestina denominada Ação Popular Marxista Leninista (APML), formada em 1962 em Belo Horizonte,
surgiu da transformação da Ação Popular (grupo de orientação católica), em agremiação de diretrizes marxistas. Compunham
essa organização grupos de operários e estudantes ligados à Igreja Católica: a Juventude Operária Católica (JOC) e a
Juventude Estudantil Católica (JEC). MORAES (1989) afirma que a existência desses grupos se deve a uma tendência
reformista e modernizadora do Papa João XXII e das Encíclicas Mater e Magistra e Pacem in Terris que preconizavam o
ecumenismo e a independência das instituições religiosas em relação ao poder estabelecido. No entanto, essa orientação não
agradava alguns setores da própria instituição católica que não via com bons olhos o envolvimento de seus membros na luta
pela reforma agrária e a conseqüente aproximação com as “camadas subalternas”. Desse modo, em função dos setores
conservadores da igreja, esta voltou a se alinhar com as classes dominantes. Isso fez com que a AP rompesse com a igreja.
(MORAES:1989)
146
afirmaram: “O comprido virou presunto”. (BRASIL/ Secretaria Especial dos direitos
humanos, 2007)
Felícia e Henrique, moveram uma ação judicial que responsabilizava a União pelo
desaparecimento de Rui, tendo como testemunha um ex-companheiro, que havia sido
torturado até falar sobre a localização de Rui. Em 26/03/1991 essa ação foi vencedora, e a
União foi responsabilizada pela prisão, morte e ocultação de cadáver de Rui Frasão Soares,
condenada a pagar uma indenização de 6,5 milhões de reais à família, o que nunca se realizou.
O corpo de Rui nunca foi encontrado.
Hoje, seu nome batizou, em vários estados, ruas, praças e escolas, e integra a lista de
desaparecidos políticos anexa à Lei nº. 9.140/95 (BRASIL/ Secretaria Especial dos direitos
humanos, 2007).
José Linhares e Célia relembram a presença de Rui e esse momento de impacto que
tocou a todos. Pelas palavras de Célia podemos conhecer um pouco mais sobre quem foi Rui,
e com José, dimensionar os acontecimentos da época, o impacto para a família. Hoje este
episódio está documentado e divulgado em textos como os que consultamos nessa parte do
trabalho.
Quando o Rui foi para clandestinidade foi muito difícil. Ele foi preso pela
primeira vez em Olinda, eu fui até lá com Dona Alice, mãe de Célia,
procurávamos saber de Rui, ficamos num hotelzinho chamado Nassau.
Naquela época um rapaz chamado Raimundo, de quem nós éramos muito
amigos, era procurado pelo exército (que seria assassinado brutalmente pela
ditadura um pouco mais tarde). Quando eu fui com dona Alice eu fiz um
contato com Raimundo e eu o convidei para o jantar. Nós estávamos
jantando quando apareceu na televisão uma imagem do próprio Raimundo
com o chamado: “Procura-se este terrorista, dá-se &&&&??? mil!” e era ele,
o Raimundo, que estava ali, na minha frente. O meu sangue acabou, fiquei
sem sangue. (José Linhares, entrevista, 2007) (...)
Rui tinha uma imensa empatia com os pobres. ninguém gostava tanto deles
quanto Rui. Nas coisas grandes e pequenas Rui enxergava seus dramas,
grandezas, misérias. Quando ele chegava em casa - naquela ocasião ele
era membro da JUC-, se referia às moças que vinham do interior para
trabalhar na casa de minha mãe dizendo: “mamãe, todos somos filhos de
Deus, imagina a dor que as mães não sentem de deixar essas mocinhas virem
para São Luis?!”. Quando ele foi preso, as pessoas disseram: “eu salvei o
meu filho por causa de seu Luís que era o codinome dele ele chegou e
encontrou meu filho doente, há muitos dias eu pedia ao médico para vir aqui,
então seu Rui chegou e pegou o meu filho de 14 anos no colo e atravessou a
cidade, levou-o ao posto de saúde e disse: eu saio com o menino
atendido!” (Célia Linhares, entrevista, 2007)
147
Célia retoma também as batalhas judiciais, destaca a figura de sua e e a luta que
travou em busca do filho:
Mas, sempre os anos 70 representarão uma passagem tenebrosa. Em 1974
Rui foi aprisionado em uma feira de Petrolina e a despeito de muitas batalhas
judiciais, presenciais, feitas com o heroísmo de minha mãe, de Felícia de
todos nós irmãs e irmãos e tantas amigas e amigos e, mesmo com algumas
repercussões no exterior (Sartre escreveu sobre o desaparecimento de Rui) e
no Brasil (Marcio Moreira Alves denunciou a barbárie de uma ditadura
terrorista que seqüestrava a inteligência brasileira), nada conseguimos saber.
A dor e uma procura sem esperança sempre se faz presente, aumentando a
falta e as indefinições de uma saudade que cresce enquanto o tempo vai
arrastando consigo um tipo de emudecimento das testemunhas daquele
tempo de tão inomináveis acontecimentos. (Célia Linhares, “As coisas
findas”, 2007)
Todas as obras de Célia passam, a partir desse momento, a de alguma forma se
inspirar na vida e presença de Rui. Apesar do abismo em que essa situação a jogou, Célia
transmuta a dor em ação. A temática da memória, como aspecto fundamental para apropriação
do presente passa a habitar sua produção teórica. Lembrar, resgatar o movimento daqueles
que lutaram por um Brasil melhor, é um pensamento que, tal como uma bússola, orienta suas
ações e produções a partir de então.
Rui passou a ser emblema, escudo, memória lembrada a cada dia. A luta de Rui foi o
tempo todo em função de um país mais livre e justo, essa foi sua aposta. Célia, num tributo
contínuo a essa aposta do irmão não deixa que o esquecimento se instale. Vai cunhando
conceitos, que se entranham na sua forma de fazer política, pensar a formação de professores,
compreender nosso papel em sua dimensão mais ampla, que apontam para esses valores, caros
a Rui e a ela.
São muitas as dedicatórias a ele diretas ou indiretas que encontramos em seus
livros. também os artigos dedicados a homenageá-lo como “30 anos sem Rio Frazão
Soares?” (in ZAIDAN FILHO E MACHADO, orgs, 2007). Algumas dedicatórias se
estendem à sua esposa de ontem e sua viúva de hoje.
O tom é de uma saudade, que se faz reconhecimento, portanto, não de lamúria, mas de
chamamento, de convite a revisitar o passado, nele mergulhando para olhar mais claramente o
hoje e o amanhã. Transcrevo algumas delas para conhecermos/sentirmos um pouco a forma
como Célia vai elaborando sua perda:
- Para meu irmão Rui Frazão Soares, que, até o último momento de sua vida, afirmou, com o
seu silêncio, sua convicção que também é a nossa: VENCEREMOS!. (em “A escola e seus
profissionais”, 1997)
148
- Para Alice Frazão Soares, representando as mulheres caxienses que nas escolas, em casa,
nas ruas, no mundo do trabalho não desistem da preparação do futuro. (em “Escola Balaia”,
1999).
- Trago em mim um HOMEM GRANDE – vivo, enterrado em meu coração, que não me deixa
esquecer o passado: Rui. Trago em mim um menino que cresce – dentro e fora do meu
coração que não me deixa descrer do futuro: DANILO. (EM “a Crise do Político na
Educação, a imposição da estratégia: espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos
históricos na construção ética”, 1993)
- Este livro é um tributo àqueles que na escola e fora dela compartilham “achados e
perdidos” de nossas políticas –sempre mestiças – como uma forma de concretizar sonhos e
saberes plurais, expressando e intrumentalizando a afirmação da vida contra as opressões.
De todas as ordens” (em “Políticas do Conhecimento, velhos contos, novas contas”, 1999)
- A Rui Frazão Soares. Há trinta anos te fizeram silenciar brutalmente, esconderam seu
corpo, mas jamais poderão reduzir teu clamor pela vida, nem teu afeto – uma imensidão –
pela humanidade, muito menos teu zelo, cuidado e admiração pela tenacidade ética dos
oprimidos-, fortalecendo sonhos e projetos de Liberdade, Justiça e Educação que dignificam
São Luís, teu berço, e o Brasil, teu horizonte mais próximo de esperanças. (em “Formação
continuada de professores: comunidade científica e poética, uma busca de São Luís do
Maranhão”, 2004)
Até aqui vimos que a década de 70 trouxe acontecimentos de grande impacto e
intensidade para Célia. Conquistas e crescimento profissional em sua experiência de
construção do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e participação na criação da
ANPED (dentre outras mencionadas); mudanças de residência; conclusão de sua tese de livre-
docência, entre embates e reconhecimentos e a dura perda de seu irmão, que tanto a marcaria.
Adiante, apresentamos as principais idéias expressas em algumas das produções
escritas de Célia nesse período. Antes de adentrar em suas obras, fazemos no início do
próximo item, uma breve síntese das questões que interessavam Célia, destacando aspectos do
pensamento de alguns autores que a marcaram, apreendidos a partir das entrevistas que ela
nos concedeu. O propósito aqui é destacar as idéias mais fortes que iam compondo seu
pensamento pedagógico e observar características relativas ao estilo de sua escrita à época.
2.4 Trilhas do pensamento pedagógico ...
É na década de 70 que Célia incrementa mais amplamente sua produção escrita,
provavelmente por se tratar de um período em que participava ativamente da organização e
credenciamento do programa de pós-graduação da UFF, estabelecendo um diálogo ainda mais
estreito com a docência e a pesquisa. É também relevante considerar que a tradição de
publicação no Brasil também se intensifica mais notadamente nessa época.
149
Sobre o lugar que a escrita vai ganhando em sua vida e o próprio processo de
construção de seu estilo, Célia comenta:
Tenho de profissão universitária 48 anos. Essa profissão foi me fabricando o
tempo todo. Cada passo foi um passo, mas num passo se faz muitos
movimentos e em meio às curvas e sinuosidades foi se construindo uma
outra subjetividade, deslocando interesses, abrasando paixões, ameaçando
com desânimos. Acho que me imaginava tendo um amadurecimento mais
tranqüilo.
Sobre a escrita, de início escrever era muito difícil pois eu tinha vozes muito
autoritárias dentro de mim, vozes da escola, do certo e errado, impossível e
possível, modelos de escrita e de fala muito idealizados; essas fronteiras
eram muito demarcadas e muito exigentes, à medida que foi passando o
tempo eu fui me autorizando a relaxar mais, a experimentar mais, a me
encantar mais, a ter mais prazer.
Fiz análise, com Carlos Alberto Silva e fiquei deslumbrada com o poder das
palavras, narrando e reconstruindo minha vida, nossas vidas, ampliando o
mundo de liberdades! Também foi bom viver num tempo de tantas
tecnologias, assim, por exemplo, o computador me ajudou. Não que não
perceba a faca de dois gumes que essas tecnologias representam, mas o
computador vem ma ajudando. Há em mim a sensação que estamos todos em
oficinas abertas e que temos laços com muita gente e embates também.
Quando trabalho até mais tarde, é animador ver chegar e-mails de
madrugada, pessoas que como eu estão, estavam escrevendo. (Célia em
entrevista, maio 2007)
É então nesse movimento de “autorizar-se” que Célia vai se constituindo uma
escritora, ampliando assim a difusão de seu pensamento.
No cenário mais amplo do pensamento educacio
movimento crítico se estruturava, liderado pelos, já mencionados autores, Bourdieu, Establet,
Passeron e Althusser.
Os programas de pós-graduação eram os espaços por excelência aonde se discutiam as
questões da escola (SAVIANI, 2007). Célia nos conta que nunca foi muito capturada pela
tendência tecnicista, que com seus objetivos operacionais e as taxonomias lhe pareciam
abordagens conservadores (Célia Linhares, em entrevista, 2007). Eram outros os autores e
temas que mobilizavam seu interesse, a maioria do campo da filosofia, sua seara. Foucault
110
,
109 Em “Segurança e desenvolvimento(?!): a desnacionalização do Brasil”, item do início desse capítulo, analisamos a
entrada do tecnicismo no Brasil e as relações político-ideológicas que a ambientaram. Na mesma parte, apresentamos as
teorias críticas à Pedagogia Tecnicista. Aqui retomamos mais brevemente com o intuito de contextualizar o assunto em pauta.
110 O francês Michel Foucault (1926 - 1984), foi filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no
Collége de France (1970 a 1984). Foucault trabalha especialmente com o tema do poder. Em sua perspectiva, o poder não se
150
os intelectuais da Escola de Frankfurt
111
, Heidegger, Paulo Freire, Gramsci
112
, Bachelard e
Dewey
113
são citados em destaque por ela. Algumas idéias mobilizam especialmente o
interesse de Célia em seus estudos.
Em Heidegger, autor significativo em sua tese de livre docência, em cujo pensamento
se apoiara para elaborar uma ontologia da criatividade. Chamava sua atenção seu conceito de
linguagem, afirmando como tantos outros pensadores também o fizeram, partindo de outros
portos, sermos constituídos de linguagem. A crítica do autor sobre a “tagarelice” também a
instiga. Sobre ele Célia comenta:
Em Heidegger me interessava muito sua concepção de linguagem. Para ele,
nós somos feitos de linguagem. Ele afirmara, que o falar não pode dispensar
um exercício de auscultar o Ser. Sem isso, a fala desliza, facilmente, para os
exercícios de tagarelice.
localiza numa instituição ou no Estado, trata-se de uma relação de forças, estando portanto em toda parte e não apenas em
uma instância. Somos atravessados pelo poder e não é possível compreender o humano sem levar em consideração essa
dependência. Com relação ao conceito moderno de razão, Foucault, o amplia, pulverizando-a. Assim, “distribuindo-a em
múltiplos lugares para mostrar seu caráter contingente, histórico, construído e, desse modo, poder aplicá-la em múltiplas
situações, deduzi-la de diferentes circunstâncias”. Coloca em xeque a idéia iluminista da razão, unificadora e totalitária.
(VEIGA-NETO, p.27 e 28, 2004).
111 Autores de diferentes origens intelectuais e influências teóricas reuniram-se, a partir de 1923, em Frankfurt,
empreendendo uma crítica contundente do tempo em que viviam. Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse,
dentre outros, foram alguns dos pensadores que participaram do círculo frankfurtiano. Em suas idéias, traduziam a desilusão
de grande parte dos intelectuais com respeito às transformações do mundo contemporâneo. (MATOS, 1993)
112O italiano Antonio Gramsci (1891 1937), Político, filósofo, cientista político e comunista, envolveu-se ainda jovem
com os movimentos sindicais das classes operárias, na época em que estudava literatura na Universidade de Turim. Foi
também nessa época que integrou o Partido Comunista, tornando-se seu líder. Atuou como jornalista, escrevendo sobretudo
para jornais políticos. Foi preso político durante muitos anos. Seu conhecido trabalho “Cadernos do Cárcere” (mais de trinta
cadernos de análise histórica e filosófica) foi escrito durante o período em que esteve na prisão. Nesses cadernos expõe os
pilares de seu pensamento. Alguns conceitos merecem destaque para esse trabalho, tais como o da Hegemonia cultural,
entendida como meio de manipulação do Estado capitalista e a necessidade de educar os trabalhadores para encorajar o
surgimento de intelectuais dentro da classe trabalhadora.
Gramsci reputava à cooptação ideológica, por meio de uma cultura hegemônica, a manutenção do controle capitalista por
parte dos burgueses. Desse modo, os valores da burguesia tornavam-se “senso comum”, difundidos socialmente como
parâmetro para todos. Sua idéia de "Senso comum" entendia-a como construção mental realizada por cada indivíduo, grupo,
e classe a partir das idéias recebidas e de seus projetos. Gramsci acreditava que “todos os homens são filósofos”, pensar era
para ele, uma condição humana, própria da existência da linguagem. (BARATTA, 2004)
113 John Dewey (1859-1952), filósofo americano, concebia que a filosofia e a educação não poderiam desligar-se uma da
outra. Um dos traços mais marcantes de sua obra é o cruzamento indissociável entre o filosófico e o político. Critica a
centralização da estrutura educacional, “através da qual o professor estabelece uma relação de dependência em relação à
administração e vai se degradando até converter-se em um mero receptor de ordens” (BELTRÁN, 2003, p.52). Acredita na
necessidade de que haja iniciativa intelectual no magistério, aonde sejam garantidas oportunidades de discussão e decisão,
numa perspectiva democrática. (BELTRÁN, op.cit.)
151
Fazermos uma escuta, sem suposições e expectativas prévias! Não era a
escuta do outro, mas o que o Ser tem a nos dizer. Interessava-o conhecer
como é que é essa pulsão de vida, o que pode nos comunicar o silêncio, o
não dito. Isso foi algo que me pareceu muito importante.
Ali na tese de Livre Docência, também uma idéia chave que me parece
fundamental, e que eu reitero hoje utilizando outros termos, como os
“movimentos instituintes”. Trata-se de pensar a criatividade não como um
exercício de final de cartilha, nem de final de capítulo, um faz tudo ... e
“você?! qual é a sua criatividade?!”.
O fenômeno criativo, como chamei, criador, como direi agora, não é uma
coisa bitolada e previsível. O processo de criação, que eu trabalho em minha
tese é de movimento incessante de diferir, de criar, como uma necessidade
ontológica, histórica, nós fazemos permanentemente num trabalho complexo
de criação em que, longe dos essencialismos, nos alicerçamos uns nos
outros.
Por tudo isto, não posso ter uma previsão certeira, do tipo encomendável do
que será criado. Toda essa concepção se aproxima também do trabalho de
Norbert Elias que vai rompendo com as idéias e práticas que sustentaram
crenças em sujeitos onipotentes e em forças de vontade descomunais, para
acompanhar os movimentos que vão se complexificando na história e que
produzindo interdependências trazem também surpresas, frustrações de
planos e expectativas.
Assim, os inesperados não significam que a história seja um vale-tudo, nem
que devemos deixar de nos esforçar nas direções que nos parecem mais
corretas, mas o que eles sublinham é que os avanços históricos com a
humanidade se recria, se reinventa não é algo manipulável, controlável.
Naquela tese dos anos 70, vou na contra-mão desses determinismos e
mecanicismos controladores de uma expectativa que reíficam a vida e a vida
social, que fazem de um ditador o dono do Brasil, prendendo, torturando,
matando ou deixando viver.
Procurava contestar tudo isto, afirmando uma orientação mais larga, por isso
em dialogo com a mitologia, a poesia – ainda como uma conexão com
Heidegger- mas também com a filosofia oriental, contrapondo-me às
arrogâncias do cientificismo de que o Brasil estava impregnado e,
finalmente, me aproximando dos contos populares e infantis. O patinho
feio”, por exemplo, que aborda a dificuldade de conviver com a diferença.
(Célia Linhares, em entrevista, 2007)
Célia estudou Foucault, esteve presente quando ele fez uma série de conferências na
PUC em 1973. Célia destaca a metodologia de Foucault quando ele vai se afastando de
esquemas excludentes, como ciência e ideologia para pesquisar, historicamente, a partir dos
movimentos diacrônicos e sincrônicos. Também lhe agrada o tratamento que ao poder por
acompanhá-lo em movimentos capilares, negando-lhe uma residência fixada em espaços
especiais, para surpreendê-lo em relações sociais tensas que vão nos produzindo e à história.
Em Bachelard, interessa-a a idéia das rupturas epistemológicas, do salto
epistemológico, do cuidado com o que nos possa parecer evidente, pois o trabalho científico
supõe uma elaboração que vai contra uma crença geral, por superá-la, tornando-a mais
152
complexa. Eram assuntos dos quais pouco se falava no Brasil, nos diz Célia. Era uma
discussão mais propriamente européia.
Célia comenta que as idéias difundidas pela escola de Frankfurt, que ganhavam força
nos EUA, traziam questões que ainda eram muito novas para o Brasil, mesmo nos programas
de pós-graduação em educação.
Eu comecei a me interessar e estudar alguns autores da escola de Frankfurt,
tais como Adorno e Marcuse. O livro “Eros e Civilizácion”, que era do
Marcuse, foi muito significativo. Esses estudos traziam questões que ainda
estavam muito fora dos esquemas do que falavam no Mestrado. Nos Estados
Unidos se estudava muito o Dewey mas aqui no Brasil ele era muito
combatido. (Célia, entrevista, 2007)
Célia reconhece também a presença de Paulo Freire, que começa a aparecer com
visibilidade e potência, e Gramsci. Percebe nesses autores a entrada mais forte de um
pensamento crítico no Brasil, somando-se aos já mencionados Bourdieu e Althusser.
Certamente que não temos como objetivo abordar a fundo o pensamento de cada um
dos autores mencionados, tarefa hercúlea a qual essa tese não se pretende. Trata-se sim de
construir um cenário do momento histórico em que Célia vive, aproximando-nos das questões
que circulam e, sobretudo, captando os aspectos que a mobilizam centralmente nos estudos
que faz. O objetivo é alargar o entendimento do pensamento de Célia, buscando nas fontes nas
quais mergulha, pistas significativas.
A seguir apresentamos as principais idéias de quatro produções escritas de Célia. Na
primeira, “O poder das expectativas do self” (1972), ela aborda a influência das expectativas
que temos com relação ao outro sobre seu comportamento, dando ênfase as conseqüências
para a educação dessa questão; a segunda é sua tese de Livre-Docência intitulada Introdução
à ontologia da criatividade” (1974), onde defende que a criação é imanente ao ser humano,
entendendo que a finalidade educativa precisa estar conectada ao estímulo do processo
criador.
A terceira produção apresentada intitula-se “Ambigüidade, androgenia e crise”
(1974), seu foco é refletir sobre a especificidade do Ser humano, compreendendo a
ambigüidade como uma dimensão que nos constitui. Por fim, na quarta, “Mestrado em
Educação na Universidade Federal Fluminense: docência e pesquisa em perspectiva”, escrito
em 1978, texto de cunho informativo, ela apresenta informações sobre a história da criação do
Mestrado em Educação da UFF, elucidando as concepções teóricas que o fundaram. Vamos a
eles.
153
2.4.1 artigo: “O poder das expectativas e o self” (1972)
“Se uma multiplicidade infinita de caminhos nos quais as pessoas
encontram a satisfação de suas buscas de auto-realização, de saúde, enfim de
felicidade, por que não cultivar uma atitude de otimista expectativa, plena de
respeito pelo caminho próprio em que cada pessoa busca a si mesmo?”
(LINHARES, 1972)
Escrito quase 37 anos atrás, o artigo “O poder das expectativas e o self” (1972),
publicado na Revista da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, traz
reflexões que podemos considerar bem atuais acerca do papel das expectativas que temos em
relação ao outro e do efeito que estas exercem na relação professor-estudante.
Observando o estilo de escrita de Célia nesse momento, se cotejarmos com outros
textos de sua autoria produzidos nos anos subseqüentes, sua característica forma poética de
escrita, ainda parece tímida. De fato, lembremos que, como citamos, ela mesma reconhece
que De início era muito difícil escrever, pois eu tinha vozes muito autoritárias dentro de
mim, vozes da escola
114
, de certo e errado, impossível e possível, essas fronteiras eram muito
demarcadas e muito exigentes” (Célia Linhares em entrevista, 2007).
Trata-se de um texto mais formal, o que é coerente com aquele momento de vida de
Célia e com o próprio contexto da época. Uma mulher jovem, coordenadora e professora do
curso de mestrado, no começo de sua vida universitária, ganhando espaços de visibilidade e
reconhecimento. Claro é que não se pode esquecer de todo o ambiente sócio-histórico, em que
a sombra da repressão ideológica pairava sobre todas as cabeças e pensamentos e que, no caso
114 Durante os anos 2006 e 2007 trabalhei como formadora do Programa de Formação Inicial para professores em exercício
na Educação Infantil (PROINFANTIL/MEC). Um dos instrumentos utilizados por esse programa é o Memorial de Formação
(sobre o qual escrevi um texto de apoio, ainda no prelo). Destaco dessa experiência, em que viajei para alguns estados do país
trabalhando, dentre outras questões, a da expressão escrita, um comentário que ouvia constantemente dos formadores de
professores. A grande maioria, considerava uma das maiores dificuldades do Programa o desenvolvimento da escrita, não
apenas de seus estudantes (professores em formação), mas também da sua própria. Muitos atribuíam às experiências
escolares os receios de exposição, de errar, de arriscar. Nas memórias evocadas pelos professores, não raro surge a escola
como um espaço que intimidou a expressão, reprimindo o erro e consolidando uma postura repetidora e retraída em seus
alunos. Para muitos, a escrita era um desafio abismal.
Cabe refletir, temos sido convidados nas escolas que freqüentamos, a descobrir nosso próprio estilo? Ou, de outro modo,
temos sido estimulados muito mais a nos conformarmos aos padrões? De que forma é possível conhecer os padrões o que
considero importante na formação escolar -, sem com isso reprimir as iniciativas de buscar novas formas de expressão e
criação? O quanto a escola, ao devolver os estudantes uma visão de suas produções enquanto erros, vai contribuindo para que
nos desencorajemos a criar, a pensar, a experimentar?!
154
de Célia, mais do que sombras, tinha atravessado concretamente sua vida. Refiro-me não
apenas ao episódio de Rui, mas a toda a experiência vivida na época da Rádio Educadora e na
própria história de sua família.
Em “O poder das expectativas e o self” Célia aborda questões que se confrontam com
o pensamento hegemônico da época. Vale lembrar que na década de 70 no Brasil, tendo em
vista a tendência tecnicista, testes como os de QI
115
(quociente de inteligência) eram
reconhecidos como referência confiável para avaliação dos estudantes. As questões
contextuais tinham menos evidência e focalizava-se nos aspectos do comportamento,
observáveis e quantificáveis (SAVIANI, 2007). É expressivo que Célia já esteja sintonizada
com a crítica que se enuncia em algumas esferas do campo educacional, atentando para o
estigma que testes desse tipo acabam produzindo na educação, dada às suas limitações para a
compreensão das dimensões mais amplas do humano.
Em seu artigo, ela chama atenção para a contribuição crítica de Henry Deuer, que em
1971 denunciava ao mundo os testes destinados a medir o QI como “monstruosidades
psicológicas”, que aferiam apenas o nível de aprendizagem e aculturações das normas
dominantes em uma sociedade em determinada época.
O artigo busca refletir sobre o papel e o poder das expectativas que temos sobre o
outro de agirem como fatores de influência na construção do auto-conceito (self)
116
, refletindo
sobre qual seria a importância do grupo social na formação do mesmo.
115 O psicólogo francês Alfred Binet (1857 - 1911) foi o primeiro a conceber, em 1905, um teste psicométrico para medir a
inteligência. Seu objetivo era descobrir as razões dos problemas escolares de algumas crianças com vistas a ajudá-las. Seus
testes foram adaptados por psicólogos norte-americanos e ingleses. Estes misturavam preocupações com eugenia à idéia de
que a inteligência poderia ser quantificada. GOLD (1999) chama atenção para o fato de que o quociente de inteligência,
respaldado muitas vezes por uma idéia de determininsmo biológico, tem sido usado, em diferentes momentos históricos, para
corroborar idéias como a da hieraquização das raças humanas e a da superioridade do homem branco ocidental. Na verdade, a
utilização dos testes para esse fim apenas serviu, ao longo da história, como forma de confirmação de uma mentalidade
ocidental enraizada, sobretudo entre os detentores do poder. No Brasil, os testes euro-americanos chegam por volta das
décadas de 60/ 70, quando já estão sofrendo críticas nos países de primeiro mundo. A concepção de medição da inteligência
desconsiderava aspectos sociais. (GOULD, 1999)
116 O conceito de Self está ligado a idéia de “Si-mesmo”, como centro da personalidade. No conceito Junguiano, do self
emana todo o potencial energético de que a psique dispõe, sendo responsável por ordenar os processos psíquicos. Nas
palavras de Jung: O Si-mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua
individualidade, com ou contra sua vontade. A dinâmica desse processo é o instinto, que vigia para que tudo o que pertence
a uma vida individual figure ali, exatamente, com ou sem a concordância do sujeito, quer tenha consciência do que
acontece, quer não.(Ballone, GJ - Carl Gustav Jung, in. PsiqWeb, internet, disponível em http://www.psiqweb.med.br/
,
revisto em 2005. acesso em 20/11/2007.
155
Célia lança mão de exemplos como os do fenômeno religioso ou dos boatos
circulantes em uma bolsa de valores, capazes de influenciar as atitudes e pensamentos de
muitas pessoas. No terreno da medicina, sintomas como alergias, úlceras dentre outros
revelam, formas inconscientes de expectativa de tornar-se objeto de piedade, amor ou de se
auto destruir, cita a autora.
Menciona também os estudos de Martin Orne (1959) sobre as conseqüências da
expectativa em duas turmas de estudantes de Introdução à Psicologia, que após assistirem a
uma palestra de hipnose seguida de uma demonstração, reagiram em um experimento
posterior de modo semelhante ao que haviam presenciado na palestra.
Com a antropologia e o estudo dos possíveis efeitos psicológicos do magicismo, Célia
cita estudos realizados sobre os povos ditos “primitivos”. O medo da morte que acomete
àquele que viola um tabu, por exemplo, é seguido muitas vezes por reações físicas, relativas à
expectativa negativa, geradora de um profundo sentimento de medo.
No campo da Psicologia animal, Célia Linhares cita experiências diversas, concluindo
que a pessoa que treina ou trabalha com o animal, serve como diretriz para a busca da
realização ou confirmação do pressentido. Se o treinador espera que o animal que esta
treinando seja inferior, este reage morosamente, ao contrário, quando está convicto de que
seus animais são geneticamente superiores, a reação destes confirma esta superioridade.
Célia faz referência às demonstrações parapsicológicas como, por exemplo, a do Pe.
Quevedo
117
, que localiza num auditório diferentes objetos escondidos. Percebe-se que, de fato,
os guias que dão as mãos para ele, por confiar nos poderes do demonstrador, acabam
induzindo com seu toque a direção correta dos objetos.
No campo da sociologia refere-se às pesquisas de Norman Alexander Jr. e Ernest
Campbell sobre “a influência do grupo de companheiros nas aspirações e realizações
educacionais de 1401 rapazes ginasianos”. Os pesquisadores concluem que um grupo aspira ir
à universidade, por exemplo, quando seu grupo de referência planeja ir também.
117 Oscar González Quevedo, espanhol radicado no Brasil na década de 50, é um padre jesuíta e para- psicólogo. Costuma
aparecer na mídia e ministrar cursos de parapsicologia.
156
No caso das expectativas dos educadores, Christopher Jenks, outro autor citado por
Célia, relaciona a expectativa com relação às raças da sociedade americana e o
comportamento de grupos minoritários. Afirma que tanto cor da pele quanto os dados do QI
influenciam educadores e administradores a rotular as pessoas e esperar pelo seu provável
fracasso.
Abordando a questão da expectativa no processo educacional, Célia considera fatores
sociais, tais como alimentação insuficiente, moradia precária, indigência de afeto, para
compreender as dificuldades escolares das crianças oriundas das camadas populares, de baixo
nível econômico.
Célia critica algumas pesquisas americanas, que fundamentam a estratificação da
posição das crianças na escola pelas diferenças sociais das crianças das classes populares.
Para ela, essa perspectiva acaba por produzir uma diferenciação, solidificando um lugar fixo
de menos valia para as crianças pobres.
Finaliza seu artigo convidando o leitor a refletir sobre os objetivos educacionais,
focalizados em acolher a diferença e promover espaços de felicidade. Sua bela citação final,
propõe que ao invés dos QIs, utilizemos os QFs quocientes de felicidade -, traduz sua
preocupação com uma dimensão da educação que inclui um olhar mais amplo para o humano,
envolvendo o afeto como uma perspectiva fundamental. Fechemos com ela:
“Na verdade, a evidência dos fatos mostrada pelo dia-a-dia prova
sobejamente que é tempo de parar a competitiva luta em busca de
QIs mais e mais altos. É sintomática de uma nova época a substituição
do termo QI por QF (quociente de felicidade) que muito mais se
aproxima dos verdadeiros objetivos educacionais”.
2.4.2 Introdução à ontologia da criatividade (ensaio de filosofia educacional sob
a metodologia fenomenológica) – Tese de Livre docência. 1974
“A criatividade está implícita em todas as teorias do humano como mais
profundo nascedouro do processo de existir como pessoa, irrepetível e
original.” (LINHARES, 1974, página 97)
“Importa, no trabalho educativo, não a repetição seriada, que
prioritariamente preocupa a produção em massa, mas o encontro das
relações profundas estruturadas pelo ser pessoal que possibilita ao
157
homem conhecimento de sua originalidade própria e desvelamento
desta unicidade em ação criativa.” (LINHARES, 1974, pág. 133)
Em sua tese de livre-docência, intitulada “Introdução a ontologia da criatividade”,
realizada em 1974, Célia enfatiza a importância dos estudos da criatividade para a
compreensão do projeto existencial humano e, conseqüentemente, do processo da educação.
Partindo da análise de uma série de conceitos sobre a criatividade, a partir de autores
como Edward Bono, Alice Miel, Maria Helena Novaes, Paul Torrance, Carl Rogers, dentre
outros, ela conclui por defini-la como um processo dialético, plenificador do Ser e revelador
do ser humano. No homem, o fenômeno da criatividade emergiria pelo exercício da
autoconsciência da responsabilidade pelo seu projeto existencial (p. 145).
Célia inclui a presença do outro no processo de criar, considerando a vivência em
grupo como constituidora do eu. Para tanto, reporta-se a definição do processo criativo de
Morris Stein, importante investigador da teoria da criatividade, ao afirmar que o processo
criativo está ligado à vivência grupal (LINHARES, 1974, p.8).
Penso que aqui se evidencia uma concepção que se presentificará ao longo da
trajetória de Célia, agregando-se à sua compreensão do humano. A idéia de criação é tomada
como auto-criação e também como efeito da relação com o outro, constituída no encontro, na
vivência do grupo. Crio e ao criar me constituo humano e me conecto com os outros. Desse
modo, destaca-se a idéia de que resultado da criatividade não apresenta, portanto um produto
da individualidade, pois está ligada à necessidade de partilhar, e resulta de outras
contribuições que se reordenam numa nova organização. A citação abaixo clarifica essa idéia:
“Como um ser em relação, o existente humano emerge como criador,
a partir de uma vivência grupal rica de contribuições de diferentes
pessoas”. O próprio eu é descoberto ao impacto do tu e do encontro
com este. (LINHARES, 1974, página 8)
“O homem feito para o amor, une-se pela criatividade a toda a raça
humana. Na infinitude do criar e do Amar, o homem caminha na
história, dialeticamente, gastando a matéria em favor da consciência.”
(LINHARES, 1974, página 48).
Nesse processo criador, Célia considera a linguagem como fundamental, pois será via
linguagem que o fenômeno criativo eclodirá. Aqui Célia trata de um tema bastante caro à sua
obra. A linguagem como constituidora do ser. Reporta-se a Foucault, a Heidegger dentre
158
outros e destaca a idéia heideggeriana da linguagem como morada do ser (CÉLIA
LINHARES, 1974, p. 32 a 37).
Por diferentes aspectos patenteou-se a irreversível sistêmica que liga o
ser da criatividade ao da linguagem, identificando-os como
reveladores da existência humana, expressão da infinita doação do Ser
(LINHARES, 1974, p. 37).
Pesquisa também as raízes histórias da mitologia, sublinhando a função criativa da
atividade mítica. Célia comenta sobre a profundidade mítica buscada por alguns filósofos que
não se contentaram com uma racionalidade pragmática ou tecnocrática, buscando “a grandeza
de penetração indutoras da acuidade perceptiva, reveladoras das estruturas fundamentais da
existência humana”. (LINHARES, 1974, p. 99)
O mito é uma história sagrada e verdadeira que se refere às realidades e
prende-se sobretudo ao relato de criações. Os começos, as modificações
renovadoras expressam, segundo Mircea Eliade, o assumir do eterno no
tempo.” (LINHARES, p.93)
É possível reconhecer, na afirmação de Célia sobre a insuficiência de um tipo de
racionalidade para compreensão do mundo, sua crítica a um modelo de ciência que privilegia
uma racionalidade estreita em detrimento de outras dimensões humanas. Lembremos que à
época, a visão hegemônica ainda era fortemente marcada por uma concepção dicotomizante
do conhecimento, o que nos permite reconhecer que fecundava ali um pensamento divergente
e insurreto.
Aqui, vale buscarmos em Morin, autor de referência nessa tese, em seus estudos da
complexidade, idéias que se afinam com as que Célia vai cunhando. No tocante à
compreensão de outras dimensões para além da racionalidade, vemos pontos de grande
convergência entre o pensamento de Célia e a complexidade Moriniana.
Para Morin (1999) “a consciência da complexidade” leva a uma tomada de
consciência da indispensável mudança de paradigma nas ciências, partindo de uma visão
simplificadora, unidimensional, parcelarizada, para um conhecimento multidimensional,
integrador, complexo. Para este autor, a visão racionalista age separando eu/mundo,
natureza/cultura, corpo/alma, inteligência/emoção, desprezando assim os sentimentos, as
emoções, a imaginação considerados hostis ao pensamento racional. Tudo o que não se
159
adequa a essa lógica tecnicista, matematizável, não ocupa lugar de validade (MORIN, 1999;
GUEDES, 2001).
Por trás dessa lógica, uma outra gica mais estrutural vigora. O diferente é
escamoteado como o não racionalizável, fora dos padrões impostos pela tecnoburocracia
vigente.
Nesse sentido, vemos que Célia se aproxima desse pensar complexo, integrador,
que considera/acolhe outras formas de linguagem e de conhecimento como fontes
significativas em seu trabalho. Em sua tese, inclui e legitima a mitologia; a filosofia oriental,
citando o filósofo indiano Sri Aurobindo, em sua compreensão da importância do exercício de
não conduzir o pensamento; o teatro, com a idéia de Bertolt Bretch, sobre o não-sentir como
fuga do projeto existencial; a literatura, trazendo Marina Colassanti e seu texto “Eu sei, mas
não devia”
118
, relacionando-o com a perspectiva da valoração do espaço físico como elemento
ampliador do espaço vital; dentre outros autores e idéias de campos variados do
conhecimento. Faz também referências a episódios acontecidos na vida cotidiana,
relacionando-os com os conceitos que apresenta.
Outro enfoque de sua tese, diz respeito à relação entre educação e criação. Célia
estabelece comparações entre o fenômeno criador e educativo, preconizando que a missão
educativa supõe uma estimulação da criatividade. Afirma que para assumir a criatividade no
processo educativo é necessário, da parte do educador, uma capacidade emancipadora
fecundante de sua própria autonomia e da autodeterminação dos seus alunos. Em última
análise, a finalidade primeira, tanto da educação, quanto da criatividade, é a expressão do Ser,
pelo assumir do projeto existencial.
Célia destaca o conceito da necessidade de independência do processo criativo,
citando para isso Paulo Torrance
119
(1963), afirmando que o processo de autonomização
118 Aqui coloco apenas um pequeno trecho do texto de Marina, para ampliar o entendimento da reflexão que Célia propõe:
“A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas do corredor. E
porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir
de todo as cortinas. (...)” (Marina Colassanti in "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.)
119 O educador Paul Torrance contribuiu, desde a década de 60 até estudos mais recentes que deram continuidade a seu
pensamento, para pensar o conceito de criatividade. Este autor recebeu grande influência da abordagem cognitivista de
Guilford, nos seus primeiros trabalhos, ao tentar construir testes para se avaliar a criatividade verbal e figurativa (Torrance,
1966).
160
compreende a aceitação dos erros como parte integrante da aceitação dos novos
comportamentos. “Da confiança de poder escolher o seu caminho decorre a coragem de
empreendimentos criativos.” (LINHARES, 1974, página 11). Aqui também surge um ponto
sempre defendido por Célia: a formação de professores e a concepção que a orienta,
preconizando a necessidade de se levar em conta a autonomia intelectual do professor. Tal
perspectiva se contrapõe a uma política de formação que deu origem a algumas experiências
em nosso país, cuja ênfase paternalista colocava o professor num lugar passivo, baixando
pacotes de mudanças inquestionáveis e orientações “modernas” (SAVIANI, 2007).
Outro autor com o qual dialoga em sua tese é Emmanuel Mounier, especialmente com
uma de suas obras, “O Personalismo”. Para ele, ser pessoa é ser criativo, nos diz Célia,
revelando a sua originalidade tanto na cotidianidade, como na vida artística.
Para Mounier, criatividade é processo e produto. Compreender o fenômeno criativo
implica pensar essas duas instâncias não dicotomicamente. Aqui, Célia faz um paralelo entre
outros aparentes paradoxos tais como o novo e o velho; fluxo motivados do mundo subjetivo
e objetivo; entre o pensamento divergente e convergente; a contemplação e a ação; o racional
e o irracional; o pensamento lógico e a intuição. Pensar essas dimensões de forma não
dicotômica é algo pouco usual para a época. Nesse aspecto, podemos reconhecer também,
convergência com as idéias sobre o pensamento complexo de Morin. Para Morin, o
pensamento complexo não dicotomiza, mas compreende de forma integrada aspectos
aparentemente opostos.
Para Célia, a criatividade seria então esse processo dialético e plenificador do ser e
conseqüentemente revelador da unicidade existencial humana. Em sua tese, a criatividade
aparece em sua dimensão mais ampla, reportando-se ao próprio viver humano, a forma como
o homem vai percebendo o mundo e fazendo escolhas, tomando decisões. Nessa dimensão o
erro é visto como força, impulso diante da vida. “Percebendo o mundo, impulsionado pela
preocupação e interpretando suas possibilidades, cada decisão do ser humano é um ato de
criatividade.” (página 59)
“A criatividade não é o fruto exclusivo do processo intelectual mas, este
como todos os componentes do projeto existencial humano vinculam-se a
uma totalidade onde o sentir, pensar e o agir fundem-se numa expressão de
existência.” (página 67)
É possível pensar que a reflexão e estudo sobre as relações entre criatividade e
expressão do Ser, tenham instigado Célia a ousar-se ainda mais em sua escrita. Em suas
escritas dos anos 80, e mesmo algumas do final de 70, podemos ver que seu próprio processo
161
criativo está mais evidente. A escolha das palavras e o convite das metáforas que passam a se
presentificar em suas obras, nos revelam tal perspectiva. A respeito da metáfora, figura de
linguagem da qual lançará mão com freqüência posteriormente, ela comenta em sua tese,
nos dando pistas de uma perspectiva que passará a incorporar progressivamente em suas
escritas:
“A natureza da metáfora, definida como o traço em que a significação
natural de um signo é substituída por outro, em virtude de relação de
semelhança subentendida, evidencia que qualquer explicitação
significativa implica em percepções e sensações. Assim, qualquer
expressão tica, lingüística ou artística serão possíveis se
precedidas da apreensão gnica, onde sujeito e objeto mutuamente
influenciam-se numa relação interacional”. (LINHARES, 1974,
página 96)
Nessa citação, percebemos que ela antevê a rede de significados que o uso de
metáforas evoca, em que se incluem “percepções e sensações”, favorecendo a que o leitor e o
autor, no caso da escrita, interrelacionam-se na construção de sentidos.
Também nessa citação fica mais claro, como Célia entende as inter-relações entre
sujeitos e objetos, que ainda hoje perdura como uma polarização de antagonismos em muitas
produções educacionais e sociais.
Em sua tese evidencia alguns dos pilares que sustentam a ação de Célia em sua
militância pela formação de professores: a criatividade, a criação, como processos humanos
fundamentais para a autoconstrução do ser. Como mencionado, ela compreende que a
criação nos conecta ao outro, pois é ao criar, e conseqüentemente expressar via linguagem
minha criação, que me ligo àquele ao qual me revelo. A criação é, portanto, um processo
humanizante.
“Todo efeito da criatividade é vivenciado como uma necessidade de
comunicação” (página 49)
Conclui sua tese assumindo que a criatividade é imanente do ser humano,
manifestando-se cotidianamente no existir. A criatividade supõe a conquista pelo homem de
sua integração cósmica com o aprofundamento de sua originalidade pessoal. É uma dimensão
que precisa ser abraçada pela educação.
162
2.4.3 Ambigüidade, androgenia e crise – 1974.
“O homem é uma abertura na escuridão; é uma fronteira que participa da luz,
mas continua imerso na sombra. O homem é um ser exposto a
ambigüidades”.(LINHARES, 1974, p.6)
Neste pequeno livro institucional, produzido a partir de uma palestra proferida na
Universidade Santa Úrsula em 1974 (onde Célia lecionava Introdução à Educação e
Currículos e Programas), a principal questão de seu texto é pensar o que é o homem, para
tanto, Célia lança mão da filosofia. Apresenta a idéia de que o homem, por constituir-se como
uma abertura, “está exposto à vivência da ambigüidade” (CÉLIA LINHARES, 1974, p. 5).
Dada sua infinitude de possibilidades de expressão, o homem não se esgotaria num único
conceito, afirma Célia, e poderíamos defini-lo, justamente pela sua indefinibilidade e
“imprevisibilidade surpreendente e auto-criadora”(LINHARES, 1974, p.4).
Muitas vezes, nos diz Célia, ambigüamente, o homem busca separar o ordinário do
extraordinário. Quer fugir do dia a dia, para experenciar o encontro do extraordinário a
dádiva do Ser-, ou quer submeter-se à ditadura da rotina, renunciando a procura da harmonia
do Ser.
Para ilustrar esse que seria o drama humano, Célia evoca o mito de Sísiphos. O
lendário rei Sisiphos de Corinto, é punido pelo deus da morte com a condenação de realizar
uma tarefa que nunca finda: ele deve carregar uma pedra até o topo da montanha, porém,
assim que chega próximo ao topo, a pedra rola até as fraldas da montanha. Assim como
Sísiphos, o homem vive o seu drama à medida que busca a plenitude de seu Ser, porém sem
nunca alcançá-la com sua percepção. Mas isso não o impede de tentar, nos diz Célia,
consistindo nesse “humilde e audacioso esforço, o heroísmo do homem” (LINHARES, 1974,
p. 8).
Para aproximar-se do Ser e, ao clareá-lo, clarear-se, é preciso que o homem vivencie o
desafio de usar o ordinário e com ele descobrir o extraordinário, bem como mergulhar na
rotina sem escravizar-se a ela. Reporta-se a obra do genial artista plástico Juarez Machado,
brasileiro, radicado em Paris desde 1986, que trabalha sobre a temática do homem em sua
busca do Ser, pela substituição do que o simboliza.
Abaixo incluo um de seus desenhos que não faz parte do texto de Célia - que nos
traz essa dimensão da obra do artista, em que o dramático e o cômico se tecem
reciprocamente. Podemos pensar, observando a expressão do homem que Juarez retrata, que
163
sua decepção com aquilo que recebe (seu presente, sua busca pela verdade talvez...), revela
essa perplexidade do homem A que Célia se refere. A procura do homem pelo extraordinário
que nunca chega/chegará ao fim.
No desenho do artista, vemos que o conteúdo do presente não se encaixa nas
expectativas de seu personagem. Esta seria a contradição básica do humano, viver o cotidiano
originário, buscando o extraordinário. Para Célia, é na vivência dialética dos opostos e da
ambigüidade que o homem poderá harmonizar os dois pólos (alegria/tristeza, morte/vida).
(LINHARES, 1974, p.13)
164
Juarez Machado – 1974 – extraído do site do artista: http://www.jmachado.com/en
Célia retoma aqui a questão da linguagem para definir o que é o homem. Interessa-se,
sobretudo, em explorar a idéia de que a linguagem constitui o humano. Para tanto, cita
Heidegger, filósofo com o qual dialoga extensamente nessa década. Do autor, destaca a
concepção de linguagem, em sua afirmação de que “A linguagem é a casa do Ser”. Questões
que já expomos no resumo da tese de livre-docência de Célia.
Entende que o homem integra racional e irracional. Célia afirma que a racionalidade
do homem, no seu processo dialético, apóia-se em premissas e atitudes fundamentadas,
freqüentemente, por razões inconscientes Paradoxalmente, o irracional expressa-se por uma
logicidade específica (LINHARES, 1974, p. 13).
Célia retoma aqui os estudos dos mitos, afirmando que estes nos revelam o quanto a
ambigüidade, como a dificuldade em distinguir os contrários, tem preocupado o homem. “Os
pólos opostos e intrinsecamente relacionados em que oscila o pêndulo decisório humano
foram separados por uma correspondência mitológica”, nos diz Célia. (pg. 14).
Com relação ao conceito de androgenia, Célia afirma que no mundo ocidental
procurou-se definir o masculino e o feminino atribuindo papéis radicalmente estruturados para
um e para outro, tendência que vem sendo contestada na contemporaneidade.
“Dentro de cada ser humano mora, não somente, o princípio
masculino e feminino, mas a vida e a morte, o princípio da atividade e
de passividade, o apego à rotina e o fascínio do extraordinário, a
165
sedução do novo e o conformismo do habitual, uma existência finita
dentro de um anseio infinito do Ser” (LINHARES, 1974, p. 22).
Remete-se ao taoísmo, filosofia oriental, que trabalha com o princípio da integração
entre os opostos, e que formaria o “tao”, traduzido como caminho da vida e harmonia
universal. Princípio feminino, o yin e o princípio masculino, yang, equilibrar-se-iam no tao.
Traz também a mitologia grega, citando a figura de Andrógino e as informações do
campo da história, que compreendiam os andróginos como seres primitivos, habitantes de um
longínquo país africano, caracterizados pela integração de dois corpos, duas faces e uma
cabeça, os quais divididos pelos deuses ao meio, originaram os dois sexos.
Célia reporta-se a Platão, que evoca a narração mítica ao referir aos princípios
masculino e feminino. O ser total, o andrógino, era de tal modo poderoso, que os deuses
decidiram por cindi-los, pois assim sua energia seria canalizada para a procurar de seu
elemento. Cita também a Bíblia, no relato da criação do gênero humano por Deus. Traz ainda
o misticismo cabalístico com sua interpretação de que Deus seria andrógino, em cuja
existência absoluta coexiste a masculinidade e a feminilidade. Destaca em Freud sua
compreensão da sexualidade, em que é possível também encontrar um alerta à androgenia em
potencial, quando afirma que a bissexualidade é originalmente presente em crianças.
Teilhard de Chardin, outra referência citada, afirma que a vivência da integração do
masculino e do feminino seria necessária para o efetivo entendimento do ser humano. De
Jung, menciona na sua busca da alma humana, seu entendimento de que o inconsciente
coletivo é andrógino por natureza. No inconsciente pessoal cada homem vive com o feminino
(anima) e cada mulher com o masculino (animus). Numa relação homem-mulher, além
daquele que acontece no plano consciente, outro que corresponderia ao inconsciente, no
plano de anima e animus.
O conhecimento dialogante do ser humano com os diversos aspectos de sua
personalidade permite a que ele se perceba participante do feminino e a mulher do masculino.
Vivenciando essa androgenia em seu próprio ser, é possível que o homem e a mulher
empreendam um processo de equilibração dos quatro vértices do quadrilátero proposto por
Jung. O não desenvolvimento significante da vivência andrógina faz com que se desenvolva
uma dependência patológica.
Por fim, finaliza seu artigo relacionando ambigüidade e crise a partir da idéia de que a
crise seria o movimento necessário para a ultrapassagem, provisória, da ambigüidade. É ela
que possibilita as rupturas epistemológicas. A partir do conceito de tipos de crise em relação
com a educação proposto por Brameld (estética, intelectual, ética, biológica, social,
166
psicológica e religiosa), afirma que a crise esconde um aspecto inaceito, uma ambigüidade
não resolvida de cada ser humano que por ela passa. Seria marcada por angústias, riscos,
incomensurabilidade temporal. A aproximação da crise, cheia de promessas de redenção e
síntese, e também plena de riscos e ameaças, induziria o homem a uma variedade de
alternativas decisórias: exterminá-la, por conta da ansiedade; deixar-se levar pelo desespero;
anestesiar-se (com a bebida, a diversão, a droga, etc) ou por um caminho diferente, “o ser
humano assume atravessar a crise abrindo os olhos da consciência, criticando, tentando
entender cada novo aspecto que na crise emerge, buscando a alegria da Verdade e dores que o
parto, que o seu próprio parto lhe traz”. (LINHARES, 1974, p. 25)
“Na realidade, nada conforma mais do que a honestidade, a
envergadura do ser humano de assumir a Verdade. A sua fuga é
incomoda, porque demissionária do humano.
Qualquer que seja a Verdade, é bem mais digna de ser ouvida que a
mais requintada e sofisticada mentira. Aquela liberta, esta estiola;
aquela enobrece, esta envergonha.” (LINHARES, 1974, pág. 26).
Dessa visão filosófica da postura do homem diante da crise, decorre a proposição
acerca da postura do educador, nem omisso, nem paternalista, mas confiante, alimentada por
uma expectativa positiva em relação às possibilidades do educando. Vemos também o apreço
ao que ela chama de verdade e honestidade, bem mais digna de ser ouvida que a mais
requintada e sofisticada mentira”.
O importante para o homem não é chegar a nenhum lugar, não é o
produto de seu trabalho, mas é sobretudo a procura de si, incessante,
persistente e reveladora: a fidelidade à sua missão, o compromisso ao
seu destino de homem, que é mister encontrar no âmago do seu existir
pessoal e que ele descobre referenciando-se no Ser.
(...) Com este ponto referencial, o diálogo com as ambigüidades,
caldeadas na crise, é altamente integrador.
Então, o homem aprende a vivenciar as inusitadas alegrias do navegar,
pela clarificação do seu ofício de ser gente.
Percebe que navegar no azul imprevisível da sua infinita missão, é
preciso. Viver na rotina mecânica, em que a sobrevivência é
garantida, não é preciso. Neste sentido, “Navegar é preciso. Viver não
é Preciso” (LINHARES, 1974, p. 29)
Vemos a presença da mitologia, da arte, das perspectivas orientalistas em seu artigo.
Confiança nas possibilidades do educando, concepção de que é na busca permanente do
homem que consiste seu heroísmo e não tanto no provável ponto de chegada.
167
2.4.4 Mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense: docência e
pesquisa em perspectiva. 1978
No artigo “O mestrado em educação na universidade Federal Fluminense – uma
experiência brasileira do pós-graduação”, publicado pela Revista de Educação da
Universidade Federal Fluminense” em 1978, Célia Linhares reflete sobre a Universidade
Brasileira revelando os acontecimentos que levaram ao surgimento da pós-graduação no
Brasil, trazendo aspectos de sua experiência como coordenadora do Mestrado em Educação
na UFF. É um texto de caráter informativo, situando o leitor quanto às condições e contexto
que deram origem ao programa de pós-graduação da UFF e de suas bases epistemológicas.
Afirma o papel da pesquisa na Universidade, como uma vocação que precisa ser
contemplada simultaneamente ao objetivo de propiciar acesso ao saber socialmente relevante
manifesto pelo conhecimento científico aplicado e pela prática tecnológica esclarecida e
consciente.
Célia se remete ao termo “Creative scholarship”, cunhado nas experiências de
universidades americanas e presente nos pareceres sobre o funcionamento da pós-graduação
brasileiras. Tal conceito referia-se ao desenvolvimento sistemático da pós-graduação nos
Estados Unidos que deixava de ser uma instituição apenas ensinante e formadora de
profissionais para dedicar-se às atividades de pesquisa científica e tecnológica. Isto é, tratava-
se de pensar em uma universidade destinada não somente à transmissão do saber
constituído, mas voltada para a elaboração de novos conhecimentos mediante a atividade de
pesquisa criadora.
Neste sentido, a pós-graduação constitui-se como espaço privilegiado na medida em
que reafirma a sua própria identidade, satisfazendo as finalidades que lhe são atribuídas.
A Universidade reflete os elementos estruturais presentes na sociedade, afirma Célia.
Desse modo, a tecnologia da comunicação social que ganhava força na década de 70, tornou-
se uma das principais fontes da educação informal e difusora, também, da educação formal.
Este fator estimulou o crescimento da demanda pela universidade na medida em que a
tecnologia comunicacional foi responsável por criar um mito em torno da educação, que fez
da universidade o agente propulsor de qualificação da força de trabalho e de promoção do
crescimento social, cultural, político e econômico” (LINHARES, 1978, p.36).
Célia afirma que apesar dessa valorização em torno da educação, a pós-graduação só
foi de fato implementada no país devido ao aumento de número de ingressantes na
Universidade no período de investimento industrial. Tendo em vista que não havia até este
168
momento um sistema formal de preparação docente, o Ministério da Educação e Cultura e o
Conselho Federal de Educação criaram em 1965, através do Parecer nº. 977/65, os cursos de
pós-graduação, visando entre outras questões, “formar professorado competente para atender
as demandas da expansão quantitativa deste nível de ensino” e “estimular o desenvolvimento
de pesquisa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores” (LINHARES,
1978, p.37).
O Rio de Janeiro, por ser uma das cidades de grande concentração populacional
acabou por sendo um dos espaços urbanos mais florescente para a germinação da pós-
graduação brasileira.
Célia nos informa que, de início, existiam duas áreas de concentração no Curso de
Mestrado em Educação da UFF: Administração dos Sistemas Educacionais e Métodos e
Técnicas de Ensino. Mais tarde, surgiu também a área de Psicopedagogia.
O princípio básico do Mestrado em Educação da UFF era o de valorizar, no processo
educativo, o ser humano na sua completude existencial.
As turmas iniciais eram constituídas pelos próprios professores da graduação da
Faculdade de Educação da UFF, pelos docentes de outras universidades e também por
planejadores e técnicos da educação.
Para apoiar os alunos do pós-graduação, existia um Programa de “Complementação
Pedagógica” no qual estes poderiam contar com a ajuda de um profissional para atendê-los
individualmente, visando suprir as áreas que considerassem deficientes do processo de
ensino-aprendizagem.
Em 1976 houve uma ampliação do Curso de Mestrado da UFF que passou a oferecer
vagas para professores de 14 Estados brasileiros. Todos as três áreas de concentração
confluíam numa área básica a de fundamentação antropológica e filosófica da educação. Célia
destaca também que o Mestrado em Educação da UFF privilegiava a interdisciplinaridade,
oferecendo uma multiplicidade de métodos e descobertas nas mais diferentes áreas do saber.
Ainda sobre o Mestrado, Célia ressalta que existiam grandes dificuldades de ordem
material e de recursos humanos o que acarretava algumas limitações às pesquisas que estavam
sendo elaboradas.
169
Nas referências bibliográficas de que Célia lança mão para produção deste artigo,
citam os brasileiros Dumerval Trigueiro
120
e Newton Sucupira, ambos envolvidos com as
reflexões sobre os cursos de nível superior na década de 60/70. Célia nos conta que,
Trigueiro e Sucupira foram conselheiros de Ensino Superior, juntamente com Alceu
Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Antonio Ferreira de Almeida Júnior, Clovis Salgado, José
Barreto Filho, Maurício Rocha e Silva, Rubens Maciel e Valnir Chagas - na época do ministro
da Educação do Governo Castelo Branco, convocados para definir a regulamentação dos
cursos de pós-graduação nas universidades brasileiras (Parecer 977, de 1965).
Edgar Morin (1975) e Gaston Bachelard (1968) também figuram em suas referências,
dando notícias de um olhar para o fazer da ciência que se amplia. Célia afirma a sua
compreensão moriniana de educação que visa o fragmentar o conhecimento, assumindo a
complexidade como parte dos fenômenos. Para tanto privilegia a interdisciplinaridade como
antídoto da pulverização fragmentária a que estão expostas as conquistas da ciência
moderna, impregnadas que estão ainda do determinismo analítico cartesiano.” (Célia
Linhares, 1974, página 47).
Vale ressaltar que ambos terão maior difusão no Brasil no fim dos anos 80, início
dos anos 90.
Finalizamos aqui a apresentação das obras escritas de Célia desta década de 70. É
possível reconhecer no conjunto dos trabalhos aqui resumidos e comentados, uma visão de
conhecimento que inclui dimensões do afeto, da sensibilidade, do necessário encontro com o
outro na autoconstituição do Ser e na própria construção do saber.
Na recusa às concepções medidoras e hierarquizadoras do homem, como vimos em
seu artigo sobre os testes de QI; na valorização da criação como movimento que caracteriza o
humano e na força da linguagem como forma de humanização e expressão, Célia lança um
120 Dumerval Bartolomeu Trigueiro Mendes (1927-1987) canalizou seus esforços para o universo acadêmico ao longo de
sua atuação em diversos cargos políticos e, principalmente, como professor e pesquisador na pós-graduação brasileira. Atuou
como docente-pesquisador no período que se estendeu de 1970 a 1987. Em setembro de 1969, em pleno regime militar, foi
atingido pelo Ato Institucional nº. 5 (AI-5), que o aposentou compulsoriamente de todas as funções públicas. Durante cerca
de dez anos não exerceu qualquer atividade pública. Somente em 1980 foi reintegrado como técnico do MEC e professor
universitário. Nesse período, dedicou a maior parte de seu tempo aos mestrados de educação do Instituto de Estudos
Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas(IESAE-FGV) e da PUC - Rio. (FÁVERO, Osmar, 2002 e FÁVERO,
Maria de Lourdes, 2005).
170
olhar que compreende a educação como espaço de criação, de comunicação, de mútuo
reconhecimento entre professor e estudante, de crescimento e autonomia. Para ela, educar é
cunhar projetos de existência, em que precisam caber o afeto, o reconhecimento e a
valorização do outro.
A seguir, as narrativas construídas a partir da voz dos parceiros Balina Belo e Jésus de
Alvarenga Bastos nos abrem novos olhares.
2.5.1 A voz dos parceiros: Balina Belo
Balina Belo: memórias de uma professora de didática
C
ompletaste meio século
E
rguendo ao mundo
L
eve e soberana
I
déias que tivestes que
A
fogar na juventude
L
evanta-te agora
I
nteira contra este
N
ada em que
H
abita o teu país
A
rrasado de miséria e injustiça
R
eserva na meia idade
E
sta grata ousadia dos teus vinte anos
S
audosos mais sempre vivos em ti.
(Balina Belo, por ocasião do aniversário de Célia Linhares em 2/08/1987)
Balina e Célia se conheceram em 1974. Nessa época Célia estava às voltas com a
organização do programa de pós-graduação na UFF e selecionava professores qualificados
para compor o quadro docente. Era necessário que tivessem mestrado, o que era o caso da
professora Balina Belo.
O convite tomou Balina de surpresa, estava envolvida com a condução de família que
ia constituindo. Filhos pequenos, demandas familiares, a fizeram receber reticentemente o
convite.
Eu não a conhecia e ela me telefonou pedindo por favor que eu fosse
dar aulas de Didática do ensino superior no mestrado da UFF e eu
disse logo que não poderia ir porque meus filhos eram muito
171
pequenos, eram quatro! Não sei por indicação de quem ela me
chamou, ela não me conhecia. A professora Célia me deu um
telefonema insistente, eu dizia por que não podia ir, explicando
minhas razões, e ela dizia que precisava de mim, pois faltava um
professor de didática do ensino superior, e era preciso alguém com
mestrado em métodos e técnicas para dar este curso. Parece que
alguém que viria da América para essa função não veio ou estava
interdita, qualquer coisa assim... Sei que ela insistiu tanto e de uma
maneira tão bonita que eu acabei dizendo “vou, vou apenas por esse
semestre para que você resolva o seu problema”, depois eu voltarei a
minha vida antiga. (Balina, entrevista em 2007)
Essa insistência apaixonada, motivada pelo envolvimento com a organização do
mestrado, contagiou a professora Balina, que cedendo aos apelos de Célia, integrou-se ao
programa de pós-graduação da UFF. Embora tenha entrado com idéia de ficar
temporariamente, acabou incorporando-se definitivamente à equipe, trabalhando durante
dezoito anos na UFF. Balina nos conta que essa incorporação estava relacionada ao clima que
encontrou na universidade, em que sentia seu trabalho valorizado. A presença de Célia e a
amizade que passaram a travar foram, também, aspectos fundamentais nessa permanência.
E, assim, fui como professora visitante: foi assim que entrei na UFF,
professora especialista visitante. Quando eu cheguei, ela foi me
apresentar aos alunos e imediatamente eu senti por ela uma grande
simpatia, usou palavras muito bonitas para me apresentar a todos, nos
desejou, a mim e aos alunos um sucesso, um bom curso. Ela não foi
em cima dos títulos que eu tivesse ou não tivesse, eu vi que ela
valorizava o contato humano. (Balina, entrevista 2007)
Depois de um tempo, Balina foi contratada e também convidada por Célia para ser
sub-coordenadora do programa. As memórias do tempo de criação do mestrado trazem
lembranças do investimento potente de Célia no curso.
Ela era coordenadora do mestrado e eu passei a ajudá-la como sub-
coordenadora. Nessa época Célia morava numa ilha na barra e era
muito distante de Niterói, mesmo assim sempre chegava cedo em
Niterói para inventar um Mestrado que ainda não existia. Isso para
mim é inesquecível, como é que de nada se faz tudo quando se quer!
Eu vi esse milagre pedagógico e pensava “esse Mestrado ainda o
existe, ela chega e ele funciona, e cresce, cada dia melhor”, foi essa
impressão que tive dela.
Do nada fazer tudo ... e rápido! Era um idealismo, não esse idealismo
tolo desse sonho que não vai para frente, era uma pessoa que tinha
realmente as asas voltadas para o céu, mas tinha os pés no chão, e com
isso ela construía tudo. Era uma alma cantante, afinadíssima! Talvez
172
você estranhe um pouco a minha linguagem, de uma linha poética.
(Balina, entrevista 2007)
Capacidade de construção, empenho e vitalidade. Movimento que podemos
reconhecer nos tempos da rádio educadora e em outras tantas passagens de sua infância e
início de vida profissional. Nesse engajamento apaixonado, Célia ia carreando parceiros,
contagiando-os com suas propostas, convidando-os a serem também eles autores e parte deles.
Autoconstrução e co-construção permanentes, criação móvel e dinâmica, nunca solitária,
sempre partejada.
Chama atenção também esse caminho poético que a palavra de Balina nos traz e nesse
sentido sua parelha com a narrativa celiana. Lirismo, metáfora, poesia. Essa é uma marca que
habita a vida de Célia desde tenra idade e que, pouco a pouco, vai ganhando força também em
sua vida profissional. Na expressão oral, esta dimensão poética já é uma realidade, Podemos
perceber pelo relato de seus pares. Nos textos escritos, vai se esboçando, como comentei,
nessa década em que ela avança na produção teórico-acadêmica, ainda que timidamente,
fortalecendo-se. O encontro com pensadores que abraçam a criação e a poética como
princípios norteadores do existir humano, tais como os mencionados no item anterior a
esse, no resumo comentado de sua tese e de seus artigos (“Trilhas do pensamento
pedagógico”. Mounier, Heidegger, Bachelard, dentre outros, parecem ir dando à Célia
respaldo para o pleno exercício de sua poética.
A esse respeito, Balina afirma que “é um lirismo que nos acompanha, isso nos fez
grandes amigas e eu sou uma grande admiradora dela. Acho que ela parece uma deusa criando
do nada, como Deus teria feito”. (Balina, 2007)
E acrescenta também sobre as críticas a Célia, de que ela possa ter notícia:
Quanto ao zum zum que havia por lá, nem Cristo agradou a todos.
Dizia-se que Célia era prolixa, que era tão prolixa que às vezes
escondia um grande conteúdo atrás da prolixidade
121
, eu não concordo
121 Acredito que a crítica que atribui à Célia prolixidade, pode estar ligada a uma forma de expressão, tanto escrita quanto
oral, que lhe é característica. Célia faz vôos, as questões puxam umas às outras. Acompanhar sua fala é, muitas vezes,
mergulhar num fluxo de relações e intrincamentos em que não existe uma trilha reta. São desvios, paradas para apreciar a
paisagem, fluxos. Portanto, penso que pelo fato dos textos de Célia não serem lineares, lhe seja feita essa crítica. Ela, com
muita freqüência abre um leque de questões para abordar o tema a que se propõem enfocar em seus artigos. Remete-se a arte,
173
com isso. Eu acho que cada um tem seu estilo, e o estilo revela o que a
pessoa é, eu sempre achei muito conteúdo em seu estilo. Ela sempre
teve muita facilidade de dizer o que pensava, na hora que queria, ela
falava muito bem de improviso, não é para qualquer um. (Balina,
entrevista, 2007)
Balina foi uma grande parceira no processo de credenciamento do curso de pós-
graduação da UFF, envolvendo-se com toda a parte burocrática necessária, apoiando Célia
nessa empreitada. Nos conta que identificava nas ações de Célia o que ela chamou de
“idealismo concreto”, isto é, aquele que ultrapassa a idéia abstrata, mas engaja-se, de algum
modo, a construção de possibilidades efetivas, realizando idéias, dando forma a projetos.
(...) Chegou a hora de nós fazermos aquele Mestrado ser reconhecido,
foi uma trabalheira danada, ela chegava cedo e eu também e às vezes
ficávamos até dez e meia da noite, às vezes eu saia e ela ficava e ai
eu vi o que é um idealismo, mas um idealismo concreto, um idealismo
de construção, um idealismo de fé, uma guerreira da paz! Tivemos
muitas dificuldades, mas os obstáculos não a impediam de nada, era
sempre um incentivo, “nós vamos vencer, nós vamos vencer”, e nós
vencemos. Ela, conseguiu com muita garra e com muita fé, não digo
em Deus, mas no próprio trabalho, no próprio pessoal, com quem ela
podia contar, e muito determinada para dar a cada uma a tarefa que
poderia ser feita por aquela pessoa, isso não é cil. Você escolher o
papel bom para que aquela pessoa faça bem é difícil, pois se voder
ao outro uma tarefa que ele não é capaz de fazer, vai tudo para o
“brejo”. (Balina, entrevista, 2007)
Assim como nas memórias de Dorothy, aparece forte na narrativa de Balina esse
movimento agregador de Célia, que confiando na potência do outro, abre efetivo espaço para
sua atuação e colaboração. Capacidade de descentrar seu poder, dando ao outro funções
possíveis, afirmando sua confiança na capacidade de seus pares. Uma força, de guerreira,
guerreira de paz, como nos diz Balina, mas que não necessita da fraqueza do outro para se
a poesia, a filosofia. Coloca em cena exemplos de situações, aspectos ligados ao momento em que vive. Seus textos, ou boa
parte deles, quase que acompanham o próprio movimento do pensamento, em que conectam-se referências, autores,
exemplos extraídos da vida. Por vezes, ao fim da leitura de seus textos, nos perguntamos: “mas qual era exatamente o ponto
central?”. Arrisco a dizer que ela foge do ponto central, ela convida a uma leitura que é, em si, uma experiência de
pensamento em que não se entra para retirar dali uma idéia só, acabada e utilitária. Entra-se em seus textos para com eles
produzir pensamentos, fazer relações, construir sentidos. Acredito também que esse movimento se solidifica com o passar do
tempo, tornando a viagem cada vez mais prazerosa e fluida, pois sua escrita vai se firmando, sua confiança na escolha que
faz, no estilo que assume, evidencia-se.
174
firmar. Nesse aspecto, lembremos da lição que Joseph Jacotot tira de sua experiência
lecionando literatura francesa para estudantes holandeses (no livro de Jacques Ranciére, “O
mestre ignorante”, 2005). Jacotot aponta para a necessidade que o mito pedagógico tem de,
para se firmar, estabelecer posições dicotômicas entre professor e estudante, delegando ao
primeiro o lugar daquele que sabe, e ao segundo o lugar da ignorância. Para se fortalecer
nesse lugar, o mestre arrogante precisa que o outro seja aquele que não sabe, e é a sua
ignorância que orienta a ação do professor, a quem cabe “iluminar” o caminho do outro.
Podemos aqui nos remeter ao próprio sentido etimológico da palavra “aluno”, isto é, “aquele
que não tem luz”. Lugar de impotência e fragilidade.
Célia exercitou o oposto do mestre arrogante, desde suas primeiras experiências como
professora, essa dinâmica na relação com seus pares, sejam colegas, seja equipe da rádio
educadora, seja corpo docente da pós-graduação que criou na década de 70, seja com seus
alunos. Ela autoriza o outro no seu lugar de potência. Ela instiga e anima o outro para que
este, sentindo-se convocado e incentivado a ocupar um lugar, responda ao convite que ela faz
com o seu melhor.
Lembro-me de uma passagem deliciosa e emblemática que vivi, que guarda relações
com esse aspecto em destaque: a forma como Célia vai construindo seus lugares profissionais.
Sendo eu professora de Educação Infantil e diretora pedagógica de uma pequena instituição
que trabalhava com esse segmento, estava sempre muito em contato com crianças de 0 a 6
anos. Uma delas, acompanhei desde seu primeiro ano. Como a leitura e a escrita faziam parte
diariamente de nossa “vida” na escola, era comum que as crianças fossem descobrindo como
ler de forma bem tranqüila, tendo em vista o uso social e significativo do ler e do escrever que
orientava nossa prática. Uma dessas crianças, com aproximadamente 4 para 5 anos, pegou-se
lendo um cartaz da sala. Surpresas, criança e professora, ao ser inquirida sobre como sabia ler,
a criança respondeu, “não sei, acho que aprendi sozinha!”. Certamente ela vivenciou inúmeras
situações na escola em que a leitura foi objeto de reflexões textos escritos coletivamente,
leitura de receitas dos alimentos que preparávamos para muitos eventos, produção de bilhetes
e convites para pais e amigos, etc . No entanto, tais situações foram vividas numa concepção
didática que incluía a experiência, o prazer, o sentido e, portanto, sentida como práticas
culturais e não situações artificiais de aprendizagem da língua.
Esse exemplo, colhido de meus percursos profissionais queridos, vêem a tona para
apontar para essa dimensão do ser mestre. Mestre não é aquele que controla o quê e como o
outro vai aprender, e que precisa ter garantindo na fala do outro a “autoria” daquele
aprendizado, como que para reforçar num movimento auto centrado, o seu lugar de poder e de
175
detentor do conhecimento. Mestre é aquele que desperta no outro a confiança no seu próprio
potencial, na sua capacidade que, para Rancière e Jacotot é humana, de aprender, de
compreender, de desvendar com sua inteligência, vários novos campos (RANCIÈRE, 2005).
Balina, em seu depoimento sobre Célia, sublinha esse movimento construtor e
idealista de Célia (tomando aqui “idealismo” como produção de idéias e projetos que ganham
vida). Foi significativo para Balina o impacto de ter acompanhado e participado da criação do
programa de pós-graduação da UFF e essa experiência, que vem a tona em diversos
momentos de nossa conversa, traduz vários aspectos de sua impressão sobre a ão de Célia
no mundo.
Ela é antes de tudo uma construtora pedagógica, com alicerces muito
profundos da filosofia, porque nessa época ela era professora de
filosofia além de coordenar o mestrado. Mestrado que não era
reconhecido mas que ela batalhou para ser reconhecido.
O Mestrado quando eu entrei era recente, estavam lá como meus
alunos os professores da casa que precisavam ainda tirar o título, não
havia ainda ninguém defendido tese, eu acompanhei a defesa das
primeiras teses. Isso foi também um acontecimento, um grande
registro, o início de algo que veio do nada e que ela construiu. Ela não
construiu sozinha, mas ela conseguiu contagiar a equipe com o sonho
dela, isso é muito importante. E não era sonho puro, era sonho
possível, utopia concreta. Vamos fazer porque queremos! (Balina, em
entrevista 2007)
A professora também atuava na UFRJ há alguns anos. Lá, sentia-se menos valorizada,
bem como ali sentia uma tendência maior à conservação pedagógica. A entrada na UFF foi
também um descobrimento de si mesma, a possibilidade de encontrar espaço para
experimentar formas novas de trabalhar, engajar-se a um curso que se estruturava e que
contava com o entusiasmo de profissionais como Célia e alguns de seus pares para essa
estruturação. Em tudo essa nova experiência que Balina vivia permitia também seu próprio
renascimento.
Nesse sentido, é oportuno retomar algumas idéias que Célia publica nessa década,
para refletir sobre o quanto as respostas que damos ao mundo estão ligadas também àquilo
que esperam de nós. Lembremos que Célia, em seu texto “O poder das expectativas e o self”
(1972), mostra a sua preocupação com os testes de inteligência, que circulavam com razoável
credibilidade à época e discute a relação entre as expectativas que temos com relação ao outro
e a influência desta na formação do auto-conceito.
176
Isso parece evidenciar que as formulações teóricas de Célia alimentavam-se de suas
experiências, nascendo desse circuito vida-reflexão-estudo-vida. Efetivamente, Balina
percebia que o fato de estar num novo espaço que a via de forma diferenciada, fortalecia sua
autoconfiança, favorecendo o seu envolvimento em novos projetos.
(...) Eu não vou esquecer nunca isso, porque na UFRJ eu encontrava o
contrário, um tipo de mesmice que se repetia diariamente, um acomodar-se
como quem tivesse feito o seu nome e não precisasse de mais nada. Na
UFRJ, eu era vista como louca, enquanto que na UFF eu fui vista como
alguém. Vê a diferença?! Então eu fui recebida na UFF e criticada na UFRJ.
Mas quando a UFRJ viu que a UFF estava me dando uma oportunidade e me
valorizando, quis dar também. Eu trabalhava na UFRJ, na graduação e a
UFF me deu a pós. Então a UFRJ passou a telefonar para lá para me oferecer
o que nunca tinha oferecido antes, a ponto de eu dizer, para o então
secretário, “se o telefone tocar não me chame, eu ainda não cheguei, hoje
não é o meu dia!”. Tinha que mentir para ficar livre dos telefonemas da
UFRJ. Ciúme intelectual entre irmãs! Eu achei um absurdo! Nem sei se
Célia soube disso. Achei isso tão pequeno da parte da UFRJ, eu trabalhava
quase 30 anos e, de repente, a UFF me descobriu?! De repente eu
deixei de ser “pedra de escambo” para ser “quem prestava” dentro da UFRJ
por causa da UFF. Então a carreira que demorei 30 anos para percorrer na
UFRJ, percorri na UFF em poucos anos. (Balina em entrevista, 2007)
Balina comenta também sobre o contexto sócio-político da época, situando a
universidade:
Nós estávamos ainda no tempo da ditadura, me parece que em cada sala
havia um olheiro e uma vez eu reprovei um olheiro, ele não estudou nada
(risos) e nem eu sabia que ele era olheiro, afinal ele não estava para
estudar mesmo. Como eu tenho sempre uma linguagem muito figurada, ele
nunca entendeu o que eu disse, era um medíocre lá qualquer que batia
palmas até quando eu fazia alguma crítica a ditadura, e eu fazia, que em
linguagem figurada, compreendeu?! Mas depois, isso foi amainando com o
tempo (Balina, em entrevista, 2007)
À época, Célia fundou um centro de convivência, um espaço no qual a equipe pudesse
se confraternizar. Contagiados pelo movimento de construção imprimido pelas ações de Célia,
o clima que reinava era de amizade e entusiasmo.
O que sempre se manteve foi uma amizade entre os que trabalhavam
juntos, parecia que o ideal percorria e contaminava a todos, havia um centro
de convivência, eu acho que foi fundado pela própria Célia, era muito
interessante porque a gente se encontrava, comia alguma coisa, falava sobre
a vida... Havia muito trabalho, tanto que eu inventei o verbo “uffar” mas
havia uma atmosfera de prazer, era muito agradável ir para lá. (Balina em
entrevista, 2007).
177
Balina comenta que “(...) é claro que o tempo não pára, a vida não pára e tudo foi
mudando e eu pude acompanhar o trabalho de Célia até 1992”.
A passagem de Balina através do concurso de livre-docência merece ser comentada,
pois traz para nós aspectos da história da própria universidade e dos caminhos que percorreu.
aposentada, Balina fez concurso para UFF novamente. Era uma forma de garantir um
rendimento salarial maior, perspectiva importante para a profissão docente. Na época Balina
aproveitava uma reformulação legal do presidente Collor, não precisando fazer concurso para
entrar na universidade. Nestas condições decidiu fazer a Livre-docência.
Eu fiz então um concurso para UFF, mais foi de livre-docência, ou seja, não
foi para entrar na UFF, eu fui aproveitada pelo Collor que mudou as regras
do jogo e tornou estatutário os professores, uma vez beneficiada pela lei
do Collor, eu resolvi fazer a livre-docência. Eu o podia sair do Brasil para
doutorar-me. A Livre-docência tinha mais valor que o doutorado, pois na
época, diziam que iam reprovar a todos, eu não sabia, mas também se
soubesse não faria diferença. Eu sou de responder a desafios. lia também
é igual, desafiou, ela responde. Naquela ternura dela, naquela maciez dela. E
ela também tem uma linguagem muito bonita, ela fala com muita fluência.
(Balina em entrevista, 2007)
O concurso acontecia num movimento de “moralização” do título de Livre-docência,
pois, como Balina nos conta, o que antes era feito era reconhecido como “livre-indecência”
tendo em vista o pouco rigor com que os professores que eram das universidades eram
avaliados. Em função disso, eram produzidas, muitas vezes, teses com pouco
aprofundamento, quase que para uma ação burocrática de oficialização da função do
candidato na universidade. Em função dessa “moralização”, o concurso tinha a promessa de
ser mais rigoroso, o que afastou um bom contingente de professores. Balina nos conta que se
inscreveram sete candidatos para o concurso, sendo quatro de Niterói e três do Rio de Janeiro.
Os quatro de Niterói desistiram “pois souberam que ira ser um massacre” (palavras de
Balina), os três do Rio de Janeiro fizeram o concurso, dentre eles, a professora Balina.
A razão do massacre é que antes havia uma livre-docência que havia sido
considerada livre-indecência, não havia uma exigência equivalente ao valor
do título, então eles queriam moralizar aquela situação, porque na Unicamp
se fazia livre-docência depois do doutorado. Eu peguei a última lei que
permitiu que se fizesse livre-docência sem doutorado. (Balina em entrevista,
2007)
178
Nessa época Célia estava fazendo doutorado em Buenos Aires. Balina sentia sua falta
diariamente. Nos conta que Célia elogiou sua atuação quando de sua ausência, dizendo que
ela tinha conseguido segurar a universidade.
Ela fez uma falta enorme ao programa. Eu sentia a falta dela diariamente,
ela disse “foi você que conseguiu segurar isso aqui!”. Não fui eu sozinha,
mas eu ajudei, inspirada nela, contagiada por ela, em homenagem a ela. Ela
tinha livre-docência, mas ela foi fazer doutorado fora, depois ela fez o
concurso, ou seja, é inatacável. É realmente uma guerreira da paz. (Balina
em entrevista, 2007)
Guerreira, imagem que aparece novamente nos depoimentos dos pares de Célia.
Dorothy, Balina ... aqui, acompanhando a imagem da guerreira, seu aparente oposto é
colocado, “paz”. Guerra, paz, pólos opostos? Talvez aqui possamos pensar na guerra como
movimento de busca, que compreende esforços, reconstruções, tomadas de posição.
Guerreira, como aquela que “luta por uma causa”.
Célia, em seu movimento de contágio e de investimento no potencial do outro, instiga
Balina a orientar a produção das dissertações. Era uma atividade nova para ela, o que num
primeiro momento a assustou.
um episódio que eu quero ressaltar: na UFF não havia ainda nenhum
orientador de tese, a área de métodos e técnicas não tinha ninguém para
orientar nada. Célia, numa reunião me entregou seis orientandos, eu disse,
“mas por que você está fazendo isso, eu nunca orientei ninguém”, e ela disse
“nunca orientou? Mas você pode! E é por isso que estou dando seis!”.
Comecei com seis e dei conta do recado, não sei como. Mas foi bom.
Quando alguém que você sente que é do bem, acredita em você, a sua
tendência é responder a altura, foi um voto de coragem dela, eu não podia
nem dizer não, porque não havia outra pessoa, ou eu ou ninguém e o
mestrado precisava continuar, ela já o tinha inventado, ela agora estava
aprimorando-o. (Balina, entrevista, 2007)
Sobre o pensamento pedagógico de Célia, Balina reconhece como ponto forte o
engajamento político com uma marca significativa, refletido na prática.
Eu nunca fui aluna dela, mas pelo o que ela dizia em nossas conversas, nas
palestras, entendo que ela é uma pedagoga engajada, politicamente engajada,
interessadíssima na inclusão, no exercício democrático da cidadania. Ela não
estava ali para inglês ver, estava ali para valer, essa inclusão que ela pregava
e que ela perseguia é algo que ainda hoje não aconteceu, mas eu tenho
certeza que ela está batalhando para que aconteça um dia. Tudo aqui demora
muito, é tudo lento, começou mal, de cima para baixo, repetindo
179
modelinhos, fazendo transplantes de métodos que não se adequavam, que
não eram da nossa realidade, perdeu-se muito tempo com tudo isso. Essa
escola inclusiva, eu espero que ela aconteça para os meus netos, porque para
os meus filhos, ela não aconteceu.
Célia é inclusiva, ela é também de um pluralismo sadio, com pluralismo
sadio eu não quero dizer que ela é eclética, porque eclético faz a bagunça. O
pluralismo faz associações, tira o melhor de cada fonte e percebe o fio
condutor do conhecimento, que é um só. Complexidade também une, quando
você divide você diminui, ela não dividia, ela incluía. E incluía com
harmonia. (Balina em entrevista, 2007)
Entendo que esse aspecto não dogmático de Célia, que permite que ela dialogue com
abordagens distintas do conhecimento e possa reconhecer aspectos com os quais se identifica
é uma marca de sua trajetória. A expressão dessa perspectiva pode ser percebia nas inúmeras
publicações que ela faz com diferentes parceiros ao longo das décadas seguintes (80/90/2000)
quando se amplia sua produção textual. O fato de encontramos mais textos escritos em
diálogo com diferentes pessoas e menos livros individuais, parece revelar o gosto pelo
diálogo, pela associação, pelo ser coletivo.
A receptividade é uma marca da presença de Célia e de sua capacidade e interesse em
estar e se relacionar com seus pares, nos diz Balina:
Um lado que sempre foi elogiado nela era sua receptividade a quem
chegasse, aqueles que vinham para analisar o programa, os que vinham
procurar o programa, todos. Ela era altamente receptiva. Ela se abastecia de
humanidade para lidar com gregos e troianos, isso é grandeza. Agora nunca
perdeu o sentido crítico, a crítica é oportuna. você vai dizer, “você é
muito amiga, a gente vai ter que dividir por dois o que você está dizendo”,
mas eu te digo, não precisa não, eu sou amiga mas eu tenho objetividade. Eu
estou falando de alguém que conheço e admiro, mas não conheço e admiro a
toa não. (Balina em entrevista, 2007)
Balina presenciou momentos bem distintos da vida no programa de pós-graduação da
UFF. Um primeiro, quando ele foi constituído, onde ela era um elemento importante para a
certificação de mestre de parte dos professores da casa; e outros, dentre eles, vale destacar, em
especial, o final da década de 80, quando Célia volta de seu doutoramento e encontra o
programa modificado, pois a ele foram integrados novos professores.
Lançando um olhar crítico para uma tendência que permeou a cada de 80 na Pós-
Gradução – e que vamos trazer por estar presente em sua narrativa Balina sublinha a
presença de uma forte ideologia de matriz marxista, que por vezes parecia ser excludente.
180
Na UFF, na década de 80 para 90, entrou muita gente boa, gente competente,
mas entrou também um pessoal viciado numa ideologia única, ou seja, num
reducionismo do pensamento. Uma coisa é você querer a inclusão, você
querer a cidadania como um exercício de todos, outra coisa é você querer
um único modelo político totalitário, que só valoriza a parte econômica e não
valoriza o indivíduo, nem o homem, nem as personalidades. Célia ao chegar
deve ter encontrado isso, mas ela o deixou de ser quem era, ela continuou
a guerra da paz. Eu estava junto ainda. Primeiro a sensação é de que o
buraco foi preenchido. Ela continuou a ser a mesma, claro que ela voltou
maior, ninguém faz um doutorado sem crescer, mas voltou com a fidelidade
as linhas de pensamento que sempre teve. (Balina, em entrevista, 2007)
É importante sublinhar nessa passagem, a visão que Balina traz sobre a forma de lutar
de Célia. Também aqui é possível perceber novamente um posicionamento singular de Célia
diante de situações de conflito, de divergência. Ainda que se mantenha em sua posição, ela
não tira sangue das bochechas de ninguém(palavras de Célia, de que constantemente me
lembro, ditas em uma nossa conversa informal em 2007). As posições são marcadas, de forma
que nos parece clara e firme. Ela se faz escutar, porém busca o caminho da delicadeza para
isso. Marcas de uma militância cristã? Ousadia de marcar posição, coabitando a humana
necessidade de proteção que o medo gera?
Medos e ousadias, idéias que nos parecem, numa leitura mais senso-comum,
irreconciliáveis: como ousar com medo?! Porém, não será o medo que nos humaniza? Que
nos a dimensão de sermos feitos de carne e sangue?! Que nos faz sentir até aonde a “faca
entra”?!
Não chegou a haver embate porque ela tem uma sabedoria, ela sabe a quem
dizer o quê e quando, ela tem uma diplomacia linda. Isso pode ser lido por
alguém como falsidade, mas isso é sabedoria, se o outro não é capaz de
entender por que você vai falar? Eu tenho um pensamento que diz o
seguinte, “se o outro não é capaz de ver, não adianta você mostrar”, é isso
com os filhos também, então o que você faz? Você vai mostrando por
aproximação, até que ela possa ver o que você gostaria que ela visse. Não é
sabedoria? Estratégica, mas não é falsidade. (Balina, em entrevista, 2007)
Nossa conversa pareceu uma viagem ao túnel do tempo. Afastada da docência
alguns anos, era nítido que à medida que as experiências vividas eram evocadas Balina ia
revivendo o calor de suas experiências na UFF. Sua fala solta e fluente, temperava-se com
uma entonação viva, com força e ênfase, ia discorrendo suas lembranças. A mim, esses
momentos sempre emocionam de modo especial. Me sinto colhendo delicadezas, em campo
repleto de muitas e diferentes espécies de plantas.
181
Em sua fala, ficava claro que a memória atualizava-se e “esquentava” sua narrativa,
detalhes eram lembrados e relatados saborosamente. Disse que hoje se arrepende de ter se
aposentado e que entende as doenças que a acometem como uma “indigestão intelectual”(que
termo interessante esse!). A docência era o espaço de troca e criação, de instigação ao
pensamento, de “escoamento” das idéias. O lugar do trabalho, na identidade de todos nós,
aponta para esse depositário de um sentido permanente de pertencer a algo, de produzir
diariamente, de vivenciar confrontos, desafios, embates que nos levam a uma produção
permanente. “As minhas aulas eram um escoamento de idéias e trocas com meus alunos”, diz
ela com saudade.
Outro assunto que entabulei dizia respeito dos textos escritos de Célia. Sobre isso
Balina comenta que, mesmo aposentada, acompanha a produção da colega, comparecendo aos
lançamentos e lendo as publicações que lhe caem as mãos.
Eu tenho aqui essa obra de Célia
122
, que ela organizou com uma pessoa que
não conheço quem é. Identifico aqui toda essa beleza de estilo, toda
coerência possível, toda essa concatenação de idéias e esta progressão
paulatina que, às vezes você tem a impressão de que não vai ser concluído, e
é. De maneira que tanto na escrita quanto na fala eu acho que ela é brilhante.
E como pessoa, inatacável. (Balina, em entrevista, 2007)
Pedi a ela que destacasse um episódio que considerou mais marcante em seu contato
com Célia. Para Balina, o fato de Célia ter apostado nela, para orientar dissertações, mesmo
sem qualquer experiência, foi muito significativo. Por considerar um desafio novo e
instigante, a confiança de Célia foi uma surpresa e um “empurrão” para experimentar esse
novo lugar. Injeção de autoconfiança, estímulo encorajador para o crescimento e o risco do
novo.
O fato que mais me marcou foi esse desafio que ela me deu, com certeza
absoluta de que eu daria conta. Nenhuma tese que eu orientei foi recebia
com alguma restrição. (Balina em entrevista, 2007)
122 Ela se referia ao livro escrito com Clarice Nunes, “Trajetórias de Magistério: memórias e lutas pela reinvenção da escola
pública”, de 2000.
182
Em sua experiência como orientadora, lembra de algumas estratégias e preocupações
que caracterizavam sua atuação. Era comum que sugerisse aos mestrandos gravarem a própria
fala, como forma de ajudá-los a desenvolver seus textos, pois muitas vezes é mais fácil para
alguns expor oralmente suas idéias. Os cuidados com a língua eram também muito presentes
em sua forma de orientar, atribuindo isso ao fato de vir das letras.
Minha primeira formatura foi em Letras neolatinas, depois eu descobri que
eu poderia ajudar mais o meu país, mudando de área para a pedagogia. As
Letras me ajudaram muito nessa transição. Naquele tempo havia prova de
inglês e francês e havia uma prova escrita. Quem escrevia bem e estudava,
não tinha como perder. Aquilo me ajudou porque a minha cultura geral
forrou a Pedagogia, alicerçou a Pedagogia, e consegui ser uma grande aluna
no curso de mestrado da PUC, apesar de não ser da Pedagogia. (Balina em
entrevista, 2007)
A respeito das idéias fortes que identifica no pensamento de Célia, a professora
destaca a inclusão, o engajamento político, o acolhimento, a pluralidade e a persistência.
os que desistem, Célia insiste, persiste mesmo quando o ambiente lhe é
desfavorável. Ela tem um embasamento filosófico muito grande, passeia por
esse pessoal de uma maneira muito elegante, é muito bem forrada no que faz
e sabe muito bem porque ela diz isso ou aquilo, com quem ela aprendeu.
Tudo submetido a seu filtro pessoal interno, é isso que admiro nela. Algumas
pessoas repetem as idéias dos outros, as idéias alheias passam pelo filtro de
Célia e saem diferentes, e saem com a marca, Célia Linhares. (Balina em
entrevista, 2007)
Essa originalidade e capacidade de dialogar com certa liberdade pelos conceitos e
autores com que se depara, revelam uma atitude intelectual que se mantém ativa, num
processo de permanente criação e recriação, que transmuta as teorias em algo pessoal, pois
passa pela própria experiência. Essa atitude intelectual, que ela efetivamente pratica como
pensadora, produtora de conhecimento e docente, é defendida por ela em muitos de seus
textos sobre a formação docente escritos, tanto nessa década de 70 (ainda de forma
incipiente), quanto nas décadas seguintes, quando essa idéia ganha mais força. Neles, uma
insistência numa visão de professor como intelectual autônomo, que dialoga com seu tempo,
que não se submete passivamente aos ditames da moda e das orientações vindas de cima para
baixo. Um professor que processa os conhecimentos, que os compara as suas próprias
experiências, significando-as a partir delas.
Sobre seu texto escrito, Balina vê semelhanças entre sua escrita, sua expressão oral e a
forma como seu pensamento se expressa. Seu texto não é linear, sistemático: “É muito
183
harmonioso, as pessoas estão acostumadas com textos mais duros, mais didáticos
123
, o texto
dela não é assim”. (Balina, em entrevista, 2007)
Sendo Balina uma professora de didática, é muito interessante conhecer suas
ponderações sobre a contribuição dessa área com a Educação de forma mais ampla: “Eu fui
professora de didática e eu penso que quando a didática ajuda, ela serve, quando não ajuda
jogue fora pela janela!” (Balina em entrevista, 2007)
Balina também relatou curiosas situações vividas na UFRJ, como por exemplo,
quando montou uma feira livre em sala de aula, trabalhando várias questões e, alguém que por
ali passava, chamou o diretor, alarmado com a aparente “bagunça” daquela atividade. O então
diretor foi na mesma hora, “entrou, sentou e saiu maravilhado!” (Balina, em entrevista,
2007).
Ele era o diretor do Colégio de Aplicação nessa época. Na UFF também
aconteceu que eu estava com uma vela acesa, era uma aula de revisão da
disciplina, passou um contínuo e foi falar com a direção, “a professora
estava fazendo macumba na sala dela!”, a vela era uma simbologia para
iluminar, quando acabava a aula eu apagava a vela. Eu chamava isso de
dinâmicas de didática. (Balina, em entrevista, 2007)
Balina lembra ainda do diálogo que Célia travava com as experiências das escolas
públicas, interessada nessa parceria entre a universidade e a educação praticada nas
instituições que atendiam às classes populares. Reconhece nesse ponto a importância da
produção de Célia para a educação de forma mais ampla.
Eu acho fundamental a contribuição de Célia para a educação brasileira.
Uma pedra sem a qual não se pode continuar, uma pedra-exemplo e não uma
pedra- obstáculo. Para isso temos que voltar a inclusão que ela pretende e
busca, que ela faz. Havia um projeto na UFF em que jovens professoras da
escola pública vinham receber aulas de mestrado, participavam de estudo
dirigido. Era um entrelaçamento único entre o morro e a academia.
(Balina,em entrevista, 2007)
123 Note-se aqui que Balina utiliza o termo didático a determinadas produções cuja organização e estilos são lineares,
organizadas de forma mais sistemática. Acreditamos que diferentes formas de pensar a didática e, nessa perspectiva,
poderíamos pensar numa didática ao estilo Célia, tal como já mencionamos no início dessa narrativa, ao discutirmos a crítica
que atribui à Célia prolixidade.
184
Perguntei a Balina se ela, especialmente por conviver na década de 70, quando então
Célia teve seu querido irmão desaparecido, percebia de alguma forma, o que estava
acontecendo no âmbito pessoal.
Eu demorei muito tempo para descobrir que ela carregava uma dor imensa
da perda do irmão. Ele foi reabilitado e se tornou nome de rua e eu fui a essa
sessão. Eu nunca consegui nem perceber nada, então é uma pessoa que é
capaz de esmagar o próprio sentimento para construir outros sentimentos,
isso é um benefício para ela sem dúvida, mas não é por ela que ela faz, é
para os próximos. (Balina, em entrevista, 2007)
Talvez não seja exatamente um “esmagamento do próprio sentimento”, mas uma
transmutação do mesmo. Como se, alimentada pelo exemplo do irmão em sua vida militante,
Célia se tomasse de energia para construir, incessantemente, espaços de troca, partilha,
crescimento. Como quem reage diante da perda com ímpeto de homenagear a vida que falta.
Uma deliciosa descoberta no contato com Balina foi sua vertente poética. Em busca
de um texto que havia produzido para Célia, ela trouxe vários de seus cadernos de poemas e
fomos folheando e lendo alguns deles, encontrando preciosidades como uma dedicatória de
Célia em uma contra-capa antiga, acrósticos vários e outras preciosidades. Por que não
publicizar uma produção tão vasta e bela?, eu perguntei. Não faço strip-tease da almame
diz Balina. Mas ali estávamos numa gostosa strip-tease de alma, num desnudamento que a
memória trazia, expondo emoções, lembranças, saudades.
Não encontramos as poesias que ela procurava no dia da entrevista, a exceção do
acróstico que abre essa narrativa. No entanto, no dia seguinte, recebo um telefonema de
Balina, que continuando seu revirar do passado, ditou-me as duas poesias que se seguem,
como emblemáticas de sua visão de Célia.
Para mim, as poesias foram surpresas, das que uma pesquisadora não prevê encontrar,
mas que, em encontrando, precisa parar para apreciar, sentir, se deixar tocar pela experiência
que ela traz. E, mergulhando na paisagem que se descortina, pescar significados, fazer pontes.
Nas poesias abaixo é possível reconhecer as idéias sobre Célia que Balina nos trouxe.
Não apenas diretamente, no que diz respeito ao pensamento de Célia, mas também sobre
temáticas que lhe são caras: A abertura de Célia para matrizes diversos, na pluralidade de
leituras e reflexões que estabelece; a presença do medo, da violência, de um país cerceador e
ameaçador; a presença da massa/povo.
185
Estas são apenas algumas relações possíveis, dentre as tantas que a leitura direta do
poema nos traz. Em parênteses, coloco as observações de Balina sobre os poemas e o motivo
de tê-los escolhido. Fecho a narrativa de Balina com sua voz presente em suas poesias.
Receita Livre (lembra a personalidade dela, da paz, de mudar o que não está bem, de ampliar
espaços, de abrir fronteiras, escalar montanhas)
No quadrado dos teus dias
Traça círculos abertos
Na rotina do teu desenho
Inventa matizes diversos.
E se não cabes no quadro
Violenta as molduras
Espraia-te nas paredes
Fura tetos, quebra telhas,
Veste asas, volta alto
E vai completar-se no espaço.
(Pg. 93 do livro Ampla didática, edição de 1994. UFF).
Desgoverno (Célia gostou muito quando ouviu)
A pátria apodreceu
do aborto de todas as promessas
Desfuturou-se
o país do futuro
retalhado por fraudes e desvios
violentado por temporais de traições
Sacudido por terremotos e inundações.
O ex-paraíso continental
Se fez hospital de infecção nuclear
Decisões importantes
Se vincularam a troca de favores
E ao rodízio de cargos
Crimes sem castigo forjaram novas leis
Saúde, Educação, Família, Segurança,
Tudo se mafiou
Assassinou-se a Poesia
Violentaram-se
as esperanças do amanhã
186
repousadas que foram
em pilastras carcomidas.
“Criança, jovem, ancião não vereis nenhum país como este”!
Aqui, as soluções
já nascem perdidas!
Aqui, os caminhos
surgem impedidos!
E respostas, sempre atrasadas,
Erguem-se contaminadas!
Em meio a tanto ranço
fechemos para balanço
e convoquemos o POVO!
27/01/1988
2.5.2 A voz dos parceiros: Jésus de Alvarenga Bastos,
Jésus : de aluno à colega, memórias de muitas parcerias.
uma poesia de Cecília Meireles que me remete à Célia. Célia
sempre mandava coisas muito bonitas para mim. Lembra aquela
festividade que ele fez no Museu no ano passado após o acidente?! Eu
dei a ela um livro de Cecília Meireles que eu achava a cara dela...
(Jésus de Alvarenga Bastos, em entrevista, 2007).
Motivo
(Cecília Meireles)
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
187
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
O professor Jésus de Alvarenga Bastos tem uma longa trajetória dentro e fora da
Universidade Federal Fluminense, tendo assumido diferentes funções além da docência. Tem
também atuado em âmbitos externos, foi Vice-presidente do Conselho Superior da FAPERJ e
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFF. Atualmente, integra a Diretoria Nacional da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) e é professor da
Faculdade de Educação da UFF.
Embora seu contato com a professora Célia tenha atravessado muitas décadas, foi na
de 70 que se conheceram. É por isso que incluo sua narrativa nesse capítulo, sem, contudo,
me limitar a destacar os depoimentos relativos ao período em questão, deixando fluir
comentários que se reportam as décadas subseqüentes. Foi na própria sede da ANPED que
conversamos, numa agradável tarde de 2007.
Jésus teve a oportunidade de ser aluno de Célia no programa de mestrado da UFF.
Primeiro vou falar do encontro com a professora Célia. Eu vou definir
assim, por qüinqüênio, começando com o período de 70 a 75. Conheci
Célia em dois momentos, um como colega e outro como aluno. Eu me
candidatei em 1972 ao mestrado em educação da UFF no qual ela
lecionava. À época, ela ainda não era coordenadora. Fui também
professor na Universidade Santa Ùrsula, quando ela também
trabalhava lá. (Jésus em entrevista, 2007).
Jésus foi aluno de Célia no curso de filosofia do Mestrado. As memórias que tem
dessa época destacam aspectos singulares da atuação docente de Célia, que dizem respeito a
afetividade que permeava sua relação com os alunos e a visão comprometida com o papel do
docente que ela defendia (e praticava) em suas aulas.
Na década de 70 ela estava envolvida na estruturação do programa de pós-
graduação da UFF na qual ela ajudou e teve um papel importantíssimo, então
eu entrei como aluno do mestrado e fui ser aluno dela de filosofia. O que ela
me passou deixou marcas extremamente importante em termos de valores
188
que eu considero fundamentais. Primeiro lugar, o valor de que um mestre
precisa ser competente, para ser competente ele precisa conhecer filosofia. A
filosofia traria o embasamento e fundamento dos valores que o educador
deveria passar na educação. Isso foi um encontro extremamente importante,
eu jovem vendo uma professora que passava aquela visão da docência...
Uma outra característica da Célia que sempre me marcou muito e talvez essa
seja uma dimensão muito própria dela, é que ela abre espaço para uma
relação que transcende simplesmente uma relação professor-aluno, passa a
ser uma relação de amizade, em que entra também um dado importante na
relação professor-aluno que é o afeto. (Jésus, entrevista 2007)
Jésus destaca a influência de Célia em sua compreensão sobre a docência, que inclui a
centralidade da formação filosófica e o entendimento da mesma como base, estofo
fundamental. Nas palavras de Jésus, além da perspectiva filosófica, Célia incluía a dimensão
do afeto, expressa na sua forma peculiar de se relacionar com os estudantes.
Podemos pensar que, para além de, “Uma dimensão muito própria dela”, como afirma
Jésus, Célia assume uma prática filosófica que se contrapõe a uma visão mais positivista da
filosofia, hegemônica naqueles tempos. Uma postura marginal para a época, que nos revela a
germinação de um pensamento que integra dimensões que vão para além da racionalidade
pura. Hoje, tais perspectivas têm sido mais difundidas. É relevante sublinhar o pensamento
divergente de Célia naqueles tempos.
Severino
124 (
1992) nos ajuda a compreender a questão que expomos acima em sua
reflexão sobre uma nova concepção filosófica atual. Para o autor, a filosofia brasileira vem
tomando uma nova orientação do filosofar, que embora nunca tenha estado de fora do
pensamento ocidental, ocupava lugar marginal, sobretudo no ambiente acadêmico brasileiro,
cuja expressão escolástica ou positivista teve forte predomínio. Severino chama essa nova
orientação de arqueogenealogia, cujo fundamento consiste na ampliação do território da
reflexão filosófica para além do universo da razão pura.
Não se trata de uma escola ou doutrina, nos alerta Severino. Trata-se sim, de uma
perspectiva de abordagem da realidade humana menos preocupada em dar a ela uma
explicação. Esta enseja um projeto que consiste na busca de um certo sentido para o existir
124 Em seu texto “Sob as asas do desejo”, Joaquim Severino aprofunda a discussão da orientação filosófica que chama de
arqueogenealogia, trazendo uma análise dos principais pensadores que a forjaram. Aqui, trazemos alguns elementos no
diálogo com Jésus, sem, no entanto, nos estendermos na apresentação completa do assunto, assim privilegiando não
interromper a narrativa, mas também, de certo modo, enriquecê-la com essa breve reflexão.
189
humano, que deseja se “aproximar do homem por meio da discussão das condições de sua
existência na trama concreta e imediata do seu modo de ser humano no mundo da cultura”
(SEVERINO, 1999: 2).
Nessa perspectiva, a da arqueogenealogia, faz-se necessário resgatar uma nova
subjetividade em que o sujeito não é apenas a razão pura, mas sim uma sensibilidade
desejante. Passa-se a levar em conta uma economia geral do desejo e de suas expressões
concretas, superando-se a economia da razão pura. Revaloriza-se os signos, símbolos,
metáforas, experiências indivisíveis, como formas legítimas de compreensão do humano, bem
como a inventividade da imaginação, as narrativas míticas, os aforismos, a linguagem ético-
literária, os discursos singulares. Percebemos que tal orientação, converge com a expressão de
Célia, evidenciando-se na forma como atua nos espaços institucionais, nas questões que
privilegia em seus textos escritos. O olhar de seus pares reafirma tal perspectiva.
Voltando a refletir sobre as memórias de Jésus em seu depoimento, percebemos que,
para o estudante de pós-graduação, as reflexões vivenciadas nas aulas de filosofia de Célia,
traziam uma abertura de pensamento que diferia do contexto mais amplo, introduzindo uma
visão de educação que extrapolava positivismos e determinismos. Jésus lembra também do
cenário político e social dos anos 70, um tempo marcante em função dos inúmeros
acontecimentos e a peculiar rigidez do pensamento que circulava no país.
A questão da filosofia me marcou muito porque era exatamente na
década de 70, época marcante, em que circulava a idéia de “Brasil
Grande”. O Presidente da República era então o Médici
125
. Era uma
época em que nós tínhamos uma situação extremamente rígida em
termos de pensamento no país, rígida, fechada, e a Célia abria
caminhos para gente extremamente importantes, nos quais entrava a
dimensão que não era a material. Naquela época, a ênfase era o
desenvolvimento econômico, a teoria do capital humano e toda uma
teoria da economia da educação e ela vinha com os fundamentos da
125 EMÍLIO GARRASTAZU MÉDICI (1905-1985), militar, nascido na cidade de Bagé, foi Tenente do 12° Regimento de
Cavalaria na própria cidade em que nasceu. Apoiou a Revolução de 1930 e, em 1932, aliou-se às forças que lutaram contra a
Revolução Constitucionalista de São Paulo. Foi também comandante da Academia Militar das Agulhas Negras. Apoiou o
golpe de 1964 que depôs o presidente João Goulart. Foi chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) em 1967 e
comandante do III Exército, no Rio Grande do Sul, em 1969. Com o afastamento de Costa e Silva, teve seu nome indicado
pelo Alto Comando do Exército à sucessão presidencial. Através de eleição indireta, passou a exercer o cargo de presidente
da República em 30 de outubro de 1969.
190
educação, ela vinha com toda essa linha dos fundamentos, de valores.
(Jésus, entrevista 2007)
O governo do general Emílio Garrastazu Médici, que foi do período de 1969 a 1974, é
considerado o mais duro e repressivo da época, conhecido, como mencionamos, como “Os
anos de chumbo”. A repressão à luta armada crescia e uma severa política de censura era
colocada em execução, envolvendo todos os meios de comunicação e expressões artísticas.
Foi também com a posse do presidente Médici que entrou em vigor a emenda
constitucional 1 que se denominou "Constituição da República Federativa do Brasil" e
incorporou as medidas de exceção previstas no ato institucional n°5 (AI-5) (já mencionada no
início desse capítulo). Efetivamente foi um período marcado pela repressão política, a
censura aos meios de comunicação e pelas denúncias de tortura aos presos políticos.
Na área econômica assistia-se a uma conjuntura internacional favorável, era o tempo
do chamado "milagre brasileiro", mencionado pelo professor Jésus como o tempo do “Brasil
grande”.
Em meio a esse cenário político de repressão aos pensamentos divergentes, os espaços
que promoviam oportunidades de refletir criticamente sobre tudo o que acontecia no país,
constituíam-se em riscos. Como esses riscos eram vividos? Quais os confrontos que eles
implicavam?
Acho interessante que Célia mesmo com sua doçura, plantava na gente
germes revolucionários. Nós na UFF não podíamos nos reunir, nós nos
reuníamos fora da UFF. Éramos então um grupo de professores, de várias
unidades da UFF, mas que nascia da educação. Fomos a um colégio e
pedimos uma sala para, todos os sábados, estudarmos juntos, pois isso na
UFF não podíamos fazer. Isso era década de 70. Recordo-me de um livro
chamado “Uma pedagogia para o homem”, escrito por um francês, que tinha
sido professor da Universidade Federal do Maranhão e que era muito ligado
à realidade social e política. O nome dele era Roberto Etienne segundo
dizem ele foi morto pela revolução, que em Paris onde foi passar férias,
aconteceu um acidente e ele morreu. Por causa desse livro eu tive que ir na
época, na assessoria de segurança da UFF para explicar que o livro não era
comunista. Essas coisas que quando a gente conta isso, parece difícil de
acreditar. Eu por exemplo, de 70 a 75, tinha sempre que arrumar atestado de
idoneidade ideológica, a cada 6 meses comparecia ao DOP´s, na Praça da
República e ao Forum de Niterói. De 72 a 75, eu tenho os atestados. Eu
sempre tive uma curiosidade de saber aonde é que estão essas fichas, dos
professores que eram fichados. Eu certamente não fui fichado, pois quem era
fichado não recebia bolsa de estudos. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)
191
Jésus comenta que Célia instigava à reflexão, ao pensamento crítico. Sua forma de
conduzir as aulas ia provocando nos alunos um exercício do pensar no contexto em que se
vivia.
Acho interessante que Célia fazia um processo de reflexão que nos levava a
isso, a pensar criticamente no que estávamos vivendo, sem levar ao que eu
chamaria assim, de confronto, ela fazia uma condução muito sábia. (Jésus
Bastos, em entrevista, 2007)
Jésus destaca essa “sabedoria” como uma marca das atuações de Célia, não somente
como professora, mas na lida com as instâncias burocráticas quando da organização do
Programa de Mestrado. Uma sabedoria que consistia em marcar posições, envolver aqueles
com os quais trabalhava nos processos em curso. Mobilizar e agregar.
Uma das características que observo na Célia - e eu diria isso a ela hoje
como uma pessoa que já está na chamada “feliz-idade”, (que é uma idade um
pouco mais avançada) -, é que ela teve uma sabedoria desde o início como
docente. A maneira como ela conduziu a turma, como ela conduziu o
mestrado, aquela concretização do mestrado, a parte burocrática de papéis,
da negociação que era necessária com a reitoria com outros departamentos e
outros professores, ela fez isso de uma maneira muito sábia. Vou dar um
exemplo concreto. Ela colocou todos, alunos do mestrado, participando na
estruturação, ajudando para que aquilo se realizasse. Era uma ação que tinha
a ver com a coordenação, com os professores, mas também tinha muito a ver
com os alunos. Ela criou um sistema de participação discente que era uma
sabedoria na época, basta lembrar que nessa década, nós alunos não
podíamos fazer reuniões na universidade. Dizer isso pode até parecer uma
coisa estranha, mas nós tínhamos que terminar a aula e ir embora. Era uma
época de controle muito grande das questões de ideologia, qualquer tipo de
reunião era reprimida, e ela teve a sabedoria de incluir oficialmente a
participação de alunos. Acho que isso é um exemplo muito concreto da
sabedoria dela, uma sabedoria que vinha pela parte teórica, dos fundamentos
e uma teoria concreta, que vinha de prática de vida, de história de vida que
naquela época ela construía. (Jésus, entrevista 2007)
Jésus destaca também uma das ações significativas de Célia em sua atuação como
coordenadora da pós, que consistiu no investimento em fazer pontes entre a UFF e outras
instituições de ensino e pesquisa, ampliando redes de troca e diálogo. Foi esse movimento de
abertura que possibilitou ao programa as bolsas de estudos para doutorados fora do país. Jésus
foi um dos primeiros professores a usufruir dessas bolsas, realizando seu doutorado em Paris
V.
192
Pessoalmente, eu tinha uma vontade muito grande de fazer meus estudos
fora e achava muito inviável que a educação pudesse ter bolsa. Célia
provocava, ia criando pontes de tal maneira que acaram saindo as bolsas.
Não saiu para mim não, saiu também para mais quatro pessoas. Eram
bolsas para o exterior, para a Faculdade de Educação. A prioridade era
conceder aos professores que poderiam trabalhar no Mestrado. Eu fui para
França, experiência que marcou muito minha vida. Se olhar essa negociação
como foi feita, a Célia foi uma peça chave para isso, para viabilizar essa
bolsa aqui no Brasil e a licença na universidade para que eu pudesse ir.
Nessa época eu era professor da UFF em regime de 12 horas. Naquela
época era diferente, o professor novo, primeiro entrava em regime de 12
horas, se ele tivesse um bom desempenho, depois de alguns anos, ele ia para
24 horas e, depois de uns bons anos, ele poderia ir para 40 horas em
dedicação exclusiva. Eu acho que é interessante resgatar essas questões
históricas. Nesse momento, Célia e eu temos uma certa proximidade de
idade, eu estou escrevendo meus 30 anos na Universidade Brasileira e esse
qüinqüênio me marcou muito, foi de 70 a 75. (Jésus, entrevista 2007)
Jésus, assim como a professora Balina, percebia que havia um entusiasmo e
engajamento maior por parte da equipe docente com o curso à época. Refletindo sobre
algumas características próprias da década de 70, comenta:
Era um outro momento, nós não tínhamos o processo de informatização que
se tem hoje. Havia também um ambiente interessante, que era importante,
todo mundo ajudava a melhorar a Faculdade de Educação, havia assim mais
empenho, mais alma, mais ânimo, “vamos, essa Faculdade vai ser
importante!”, Célia passava isso muito pra gente. (Jésus Bastos, em
entrevista, 2007)
Mais uma vez a capacidade de valorização e investimento no outro é reconhecida por
um de seus pares como uma marca da interação de Célia. Presença vitalizante:
E eu acho que outro lado da sabedoria dela, no qual eu fui contemplado, era
sua capacidade de identificar pessoas que tinham potencial, e ela lutava
junto! Eu fui para o meu doutorado, algum tempo depois ela ia para
Argentina fazer seu doutorado - na verdade oficializar o doutorado, pois
sempre considerei ela uma pessoa de notório saber -, e eu fiquei no lugar
dela na coordenação do curso. Acho isso interessante porque ela teve uma
visão, que no caso se concretizou não só em mim, de quem eram os pares e
do que era o futuro da Faculdade. Educação não é algo de um dia para o
outro, é “petit a petit”, de vagarzinho e olhando o futuro, acho que isso é
importante. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)
Jésus comenta também sobre a passagem, de professor do curso a coordenador e de
como Célia acompanhou e apoiou esse momento. Menciona ainda os processos de avaliação
dos cursos de pós-graduação e, novamente, a criação da ANPED, com mais detalhamento:
193
No encontro que nós tivemos antes da viagem dela para o doutorado, ela me
fez um relatório da situação de todo o curso, me deu dicas de várias coisas
que administrativamente nomeei como minha primeira função na
Universidade. No início de 79 eu retornei de meu doutorado e em julho do
mesmo ano, assumi a coordenação, praticamente seis meses depois do meu
retorno. Ai entrava a década de 80, com todo o processo de abertura e um
movimento muito importante no qual a ANPED, essa associação, na qual
hoje eu sou secretário, ganha maior expressão. Ela foi criada em 1977 e a
Célia teve papel enorme nessa criação. À época eu estava fora, Célia é uma
das sócias fundadoras e sempre manifestou sua consideração com essa
associação: “veja isso com muito carinho porque isso é importante para a
melhoria da pós-graduação na área de educação”, ela me dizia. Em 1977, em
função de uma dinâmica nova da pós-graduação, induzida pela CAPES, a
ANPED foi criada. Foram criadas também outras associações. Em 78-79
começava uma certa autonomia da ANPED, nós queríamos ser autônomos,
então começou um processo nessa direção com relação aos órgãos
governamentais. Célia teve um papel fundamental nisso.
Entrou também um processo de avaliação dos cursos de pós-graduação em
educação, já na década de 80 e eu fui uma das pessoas encarregadas de fazer
a avaliação das pós-graduações do Brasil inteiro, eu era de equipe da CAPES
para avaliar esses cursos todos. Isso fez com que –veja a sabedoria induzida
dela eu ficasse por dentro do assunto, conhecendo aonde é que estavam os
bons cursos, o que é que os bons cursos faziam. Então eu fui construindo
uma história, que não foi uma história isolada, mas que teve muito o apoio
da Célia dentro da universidade, em que eu tive negociações extremamente
importantes para o curso nas quais Célia me deu respaldo. (Jésus, entrevista
2007)
Estratégias políticas que implicavam envolver parceiros, conhecer os meandros e
enredamentos que estruturavam o sistema universitário de pós-graduação, para ampliar a
visão sobre o mesmo. Jésus chama a esse movimento de Célia de “sabedoria induzida”, a
sabedoria de fazer parcerias, ganhar espaços, não apenas para si mesma, mas para outros, de
modo a ampliar a rede de conhecimentos e possibilidades de atuação.
Posteriormente, Jésus recebeu novos convites que o afastaram da docência,
colocando-o em contato direto com instâncias ligadas à pesquisa e a esferas mais amplas da
universidade. Seu enraizamento com a Faculdade de Educação fazia com que sempre
buscasse um espaço especial para ela nesses novos lugares que ocupava.
Em 82 fui chamado para ser diretor convidado do Centro de Estudos Sociais
Aplicados que é o Centro que envolve a faculdade de Educação, Economia,
Direito, Serviço Social, na UFF. Esse centro atualmente, por decisão
estatutária, está sendo extinto, mas, na época, ele era uma mini reitoria e o
reitor queria que eu fosse diretor. Eu negociei com ele, “eu aceito ser diretor
desde que eu possa priorizar o único curso desse Centro que tem condições
de ficar muito bom, que é o da educação, eu aceito para priorizar isso!”.
194
Quando eu assumi, o reitor tinha o compromisso com a Faculdade de
Educação para termos novos professores e a Célia foi fundamental nisso
também, até nos convites, nos nomes que vieram a compor o quadro da Pós-
Graduação. Isso foi mais ou menos em 82, não tenho a data precisa. Fiquei
de 82 a 86 nesse centro. Eu sabia das necessidades da Pós. Na época, a
avaliação era por letras, A, B, C, D e E, então nós saímos primeiro do D,
para o C, do C para o B, depois do B para o A, nesse período até 86. Eu tinha
conhecido os caminhos para se chegar a ser A. Isso foi foco importante.
Depois foi um outro momento, em que eu saí da faculdade, mas nunca
deixei a Pós. Eu trabalhava com Administração dos sistemas educacionais.
(Jésus, entrevista 2007).
É interessante conhecer esse caminho que se trilha fora das salas de aula, que trata das
políticas mais amplas que orientam e balizam o funcionamento dos cursos na universidade.
Lugares em que se faz a política educacional institucional, que implica, não como ser de
outro modo, na própria estrutura dos cursos e na docência.
Jésus comenta ainda sobre uma outra atitude de Célia que foi muito importante em sua
formação. Apoiando seus interesses, Célia ajudou-o a fazer escolhas que foram muito
significativas para ele.
Eu tive uma situação provocada pela Célia, que uma dimensão do raio de
influência dela como profissional e como docente. Eu fazia o meu Mestrado
e na época haviam três áreas de concentração. Célia era a coordenadora e
meu foco era a administração, mas eu gostava das outras disciplinas, então
ela se virou para mim e disse “porque você não faz as três áreas?!”. Eu fiz
todas as disciplinas de todas as áreas, que o diploma sairia em uma
área. Naquela época, tinha uma área chamada Psicopedagogia, uma área de
Administração dos Sistemas Educacionais e uma área que seria Métodos e
Técnicas de Ensino, nome mais próximo da Didática. Essa foi uma abertura
importante para mim. Eu trabalhei com pessoas muito preciosas. Minha
formação foi ganhando um contorno de totalidades, não de corte, mas de
totalidades, de visão mais ampla isso foi influência de Célia. Isso me
ajudou extremamente na minha vida e inclusive no meu desempenho
pessoal. (Jésus, entrevista 2007)
A sugestão de Célia convidava a fugir dos especialismos limitantes e restritivos,
incentivando Jésus a conhecer outras discussões do campo da educação, oportunizando
experiências que não teriam sido vividas se ele não tivesse se permitido conhecer abordagens
diversas das que, até então, conhecia mais de perto. Célia trazia um paradigma que incluía a
abertura ao aparentemente diferente, convidando à ampliação de leituras. Visão que não
fragmentava o conhecimento em áreas rigidamente limitadas, mas que provocava o diálogo
entre elas.
195
Eu vou citar uma experiência que influenciou muito minha vida. Fui fazer
Psicopedagogia, então fiz uma disciplina chamada Laboratório de
Sensibilidade”. Essa disciplina trabalhava as relações, foi extremamente
difícil para mim. Eu era mais focado com a questão da administração e
trabalhar com a sensibilidade, de sentir o outro, perceber o outro... era algo
muito novo.
Isso me ajudou num momento pessoal extremamente importante porque
forneceu novos paradigmas. Eu tinha uma visão mais restrita, pensava que
alguns paradigmas eram a verdade, isso começou a cair, esse foi um
momento importante para mim! Célia sem dúvida opinou, cheguei a ela e
comentei: Célia, eu estou sentindo necessidade de uma terapia”,. Aquela
experiência no laboratório estava mexendo muito comigo! Entrei na terapia
depois que acabei a disciplina do Laboratório de Sensibilidade. Essa
disciplina foi dada por uma professora convidada na época, Terezinha
Lorena, ela trabalhava uma dinâmica de grupo de encontro, a base do
modelo Rogeriano. Isso ajudou extremamente na minha vida, porque me
ajudou a sair de um modelo paradigmático e entrar num outro modelo mais
flexível, de ver o outro. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)
Esse exercício de olhar para as múltiplas dimensões do conhecimento e da vida é algo
que marca a produção escrita de Célia, já evidente nas dos anos 70, perspectiva que se
intensificará nos anos subseqüentes. Essa abertura ao diferente aparece como algo que faz
parte de sua forma de lidar com o outro, como nos revelam as narrativas e depoimentos que
compõem essa tese. Entendendo que por vezes, as divergências ideológicas são vividas como
fonte de muitos autoritarismos, Célia defende um diálogo permanente com a diferença.
Uma passagem da vida de Jésus é emblemática desse movimento de abertura que ele
vive e no qual Célia foi um amparo importante:
Eu tinha um colega da UFF, que o era da Faculdade de Educação, e ele
era um colega muito alternativo, andava com aquelas bolsas de couro da
feira de Ipanema, cabelão grande. Nós tivemos momentos extremamente
difíceis em que ele me atacou e eu ataquei forte. Me recordo que ele falou
uma coisa que era exatamente a minha figura, “Jésus, você é um jovem
velho”, e eu falei e “você é um velho que quer ser jovem”. Nós acabamos
nos tornando grandes amigos. Nessa época, Célia me falou uma coisa muito
interessante, eu estava grilado com aquilo e ela me disse, “Jésus, você sabe o
que é encontro? Encontro é como se dois navios batessem um no outro,
pronto, se encontraram!”, ela viu o lado positivo dessa situação. E com esse
meu colega, nasceu uma amizade, das melhores amizades que eu tive na
minha vida. lia tinha esse tipo de abertura que você podia conversar com
ela. Eu dizia “estou brigando muito com esse Marcos Valdemar, estamos
batendo de frente um com o outro!”. Ela me ajudou a desconstrução de
certas situações, para você ver como é que o processo não é construído de
um dia para o outro! (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)
196
Vivendo mudanças paradigmáticas, Jésus ia experimentando novas aberturas, diálogo
com diferenças. Mudanças que iam influenciando sua docência. “Petit a petit” como ele nos
diz.
Todas essas experiências me modificaram muito, quando eu fui para França,
com influências fortes de um novo momento que eu vivia, eu estabelecia
diálogo com meus alunos, coisa que eu não tinha num tempo anterior, eu era
bastante rígido. Vou dar uma situação concreta, na sala de aula o professor é
que sabe e o aluno é que tem que aprender, depois inverteu a situação, é um
aprendizado junto, conjunto. Eu acho que Célia tinha essa visão que as
coisas se constroem e não é de um dia para o outro, em educação nunca é de
um dia para o outro, é um processo. (Jésus, entrevista, 2007)
Jésus reconhece essa mudança que foi se dando em sua forma de ser professor e de se
relacionar com o conhecimento. A experiência do doutorado foi outra etapa muito
significativa em sua trajetória, quando travou contato com uma abordagem européia sobre seu
tema de estudos, desconstruindo um modelo americano que até então orientava suas
pesquisas.
(...) Eu aprendi administração como a ciência da eficácia, produtividade,
eficiência, era isso que eu tinha aprendido aqui com as teorias americanas e a
teoria do custo-benefício. Na França, eu aprendi que administração tem uma
finalidade e uma ação, que visam a realização da pessoa humana naquele
contexto. Ou seja, muda o foco completamente. Isso foi uma paulada na
minha cabeça, não é?! Era uma maneira de viver e de ver a administração, o
que é a gestão, mais humanizada. É a visão francesa da gestão. Isso ai foi
uma outra pancada que eu tive na minha vida. Eu joguei meu projeto inicial
no lixo, literalmente. Eu fui então, após mergulhar nos estudos,
transformando minha forma de pensar. Eu lembro que meu orientador me
perguntava, “Jésus, você vai ser um técnico do Ministério ou você vai ser um
pesquisador, um docente da universidade?!, custo é projeto para técnico, não
é projeto para você, você tem que ser uma semente, para semear outras
sementes, para essa água nascer no Brasil, que bom que você conseguiu
isso, ver que era outro o caminho!”. Meu orientador me deu uma pilha de
livros. Em um mês e meio eu li esses livros todos. Apresentei o projeto que
tratava dos planos existentes para a educação brasileira, analisando o que era
planejado e o que era realizado. Na decalagem entre o que se propõem e o
que se realiza. (Jésus, entrevista 2007)
Para o professor que ia se formando em meio a tantas “pancadas na cabeça”, para usar
sua expressão, o curso de Pedagogia ficou como um espaço caro para ele, e pelo qual nutre
especial afeto. Ainda que atuando em outros locais, a identidade professor da Faculdade de
Educação da UFF tem um peso e representatividade especial em sua trajetória.
197
Lankenau foi a primeira Coordenadora da Pós-graduação em Educação da
UFF, depois foi a Célia e em seguida eu. E eu fui da segunda turma do curso
de Mestrado da UFF. Existem algumas coisas que eu chamo de meus amores
institucionais. Eu até recusei um convite no Governo de Estado porque eu
acho importante esse meu trabalho aqui na Anped. São dois os meus amores
institucionais, um é a UFF e outro a ANPED. O curso de pós-graduação da
UFF me marcou e o impulso que foi dado na época em que atuei na parte
administrativa foi extremamente importante. Me marcou muito pois foi
notável o meu crescimento, pois eu fui mudando, abrindo espaços. (Jésus,
em entrevista 2007)
Uma passagem da década de 90, relacionada a Célia, é lembrada por Jésus como algo
muito desagradável que o tocou de modo especial. Trata-se da eleição para a direção para o
Centro de Estudos Sociais Aplicados quando, apoiada por muitos colegas, Célia concorreu
para substituir Jésus. Uma manobra política interna fez com que ela perdesse. Foi um
momento muito delicado (que voltará a ser mencionado nos próximos capítulos).
Acho importante dizer uma coisa que foi extremamente surpresa e chata na
vida nossa na Faculdade de Educação. Eu fui diretor de centro por indicação
e para minha substituição o procedimento já era eleição. Célia, estimulada
por colegas, se candidatou e perdeu pouquinha coisa para um outro senhor,
que num jogo político interno, foi meu substituto. (Jésus Bastos, em
entrevista, 2007)
Ainda puxando os fios das marcas da presença de Célia em sua vida e formação, Jésus
lembra, mais uma vez, das aulas de filosofia, reconhecendo que muitas questões que
emergiram nessas aulas influenciaram na escolha espiritual que fez posteriormente, ao se
tornar budista.
Hoje eu sou praticante budista, Célia não sabe disso não. As origens dessa
escolha vieram das aulas de filosofia, quando ela tratava em sala de aula das
“grandes filosofias” e falava das filosofias orientais, budismo, taoísmo,
Confúcio, até chegar ao “Teilhard de Chardin”. Eu me recordo muito disso e
hoje em dia faço um elo, como eu fui chegando nisso. Eu não sou budista,
sou um praticante e um estudioso disso, tenho muitos questionamentos.
(Jésus Bastos, em entrevista, 2007)
Lembrando das mudanças que ocorreram no programa da pós-graduação da UFF,
após a mudança dos quadros docentes, aproximadamente ao longo da década de 80, Jésus
comenta algo a que Balina também havia se referido: a entrada de uma tendência que
privilegiava um pensamento único, excluindo todo aquele que divergia. Jésus sublinha a
hostilidade que acompanhava essa tendência.
198
Começou a entrar todo um processo dialético, toda a visão marxista e eu
acho que naquele momento foi até positivo. Nós vivemos em todas as
instituições um excesso de burocracia e cobranças, e a internet trouxe uma
situação que a pessoa não tem mais hora de trabalho, as pessoas são
estressadas. Eu acho que, por exemplo, um dos valores que nós tínhamos
naquele período, eu gostaria que pudesse ser vivido hoje. Todo esse processo
que se passa na universidade é um equívoco, nós estamos descontruindo. Ter
posições diferentes é normal, mas as hostilidades decorrentes das
divergências são um equívoco! O que marcou muito fortemente a década de
70, aquele momento de construção do programa, foi um forte espírito de
colaboração, eu vejo em pequenos detalhes que isso hoje não existe. Veja,
por exemplo, não é pelo fato de ser o Jésus, mas eu sou o sus, eu sou uma
pessoa extremamente demandada, então eu não posso estar em todas as
atividades. Outro dia eu pedi a dezesseis colegas para que um deles me
substituísse numa aula de graduação. Quatro me responderam, doze nem
sequer responderam, era para coordenar uma atividade. Isso, por exemplo,
eu conseguia num piscar de olhos antigamente, era um espírito de
colaboração. Hoje é um estresse de cobranças, de relatórios. Isso é algo
que a faculdade pode voltar a ter. Eu acho difícil essa questão da
colaboração, isso eu não vejo na Faculdade não, eu vejo nas
universidades, há um baixo astral. (Jésus, entrevista 2007)
Estarão as relações atuais mais premidas por uma velocidade, que as cobranças
burocráticas e carreiristas nos colocam? Acirrou-se a perspectiva individualista, aonde “salve-
se quem puder” parece ser o lema? Ressalte-se a complexificação das exigências a que os
professores universitários precisam atender, que tem feito crescer. Exigências que
envolvem um sem número de relatórios, textos, artigos e tais, marcadas por uma lógica da
produtividade que atropela, muitas vezes, o tempo da criação, da reflexão, do encontro e da
troca. Questões que merecem reflexão.
A respeito de como vê as mudanças no pensamento de Célia, tendo em vista que Jésus
a acompanhou desde a década de 70 até os dias de hoje, ele comenta, dentre outros aspectos, a
intensificação de sua atuação na escola básica a partir dos anos 90:
Eu acho que o trabalho de Célia, teve um crescimento enorme na relação
professor-aluno, na relação com os colegas, e ela tem aprofundado a leitura
da obra de Paulo Freire, a questão da participação, da pesquisa participativa,
muito da história de vida. Vejo um crescimento da Célia enorme. Quando
você os escritos dela de 70 e da cada de 90, você que ela tem muito
da situação concreta, da realidade da vida, da escola. Isso acho que foi um
crescimento dela. Certamente as pessoas hoje a vêem de uma forma mais
total, mais plena do que eu vi quando fui aluno dela. (Jésus Bastos, em
entrevista, 2007)
Perguntei a Jésus, como fiz com os demais entrevistados, como percebia a forma
própria de Célia lidar nos momentos de embate institucionais, que podemos imaginar não
199
serem pouco usuais. Mais uma vez surge a imagem de firmeza aliada a delicadeza, algo que
ela efetivamente professa.
Era extremamente firme e doce nos momentos de embate, a Célia tem essa
característica. Ela fala de uma forma doce, mas firme. Dentro da estrutura da
universidade havia embates, ela com aquela característica dela de ser
extremamente educada, dizia as coisas com a maior firmeza. O efeito disso
era percebido no dia seguinte, as pessoas acabavam recebendo e acolhendo,
não vou dizer sem responder não, mas ela conseguia tocar as pessoas,
algumas diziam: “a Célia quebrou a gente”.
Os embates tinham relação com a questão da qualidade acadêmica, a questão
da visão de mundo, Célia lutava para que a Faculdade de Educação não fosse
uma coisa doméstica, mas sim nacional e internacional. Isso foi um embate
muito forte dentro da Universidade, pois havia coisas muito domésticas, a
visão era Niterói, Niterói, e quando muito um pouquinho do Estado do Rio.
Célia abria fronteiras, primeiro nacionais, estado do RJ, estado inteiro, Brasil
e depois internacional. Foi uma bandeira, ela sempre foi muito firme e acho
que houveram momentos muito difíceis. Recordo-me de uma vez, em uma
banca de livre-docência, nós íamos recusar um trabalho, era um trabalho
pequenininho, inexpressivo. Depois quem foi para banca elogiou o tal
trabalho pela capacidade de síntese, e a gente achou aquilo um horror. As
pessoas jogaram pesado conosco, comigo e com Célia. O trabalho era um
“resumosinho” de um livro. Outras questões foram também muito duras,
como os embates para credenciamento do curso, recredenciamento do curso,
em que Célia foi muito firme, e ao mesmo tempo, com a delicadeza que lhe é
peculiar, ela falava todas as coisas que tinha que falar com as pessoas.
(Jésus, entrevista 2007)
Esse semear com a palavra parece ser uma forma/ estilo forte na presença e atuação de
Célia. Lançando mão de uma palavra que é marcada pela intensidade da poesia, pela
abrangência de um pensamento que inclui dimensões mais amplas, Célia alcança o outro com
sua palavra-semente, tocando-o.
Com relação ao pensamento pedagógico de Célia Linhares Jésus destaca a questão da
díade professor-aluno, desse movimento que é o do mestre-aprendiz e do aprendiz-mestre:
A idéia do encontro, da construção conjunta professor aluno. Eu vejo na
Célia uma renovação e atualização de Paulo Freire, nesse encontro com a
realidade, da conscientização, da pesquisa participativa. Os livros dela
demonstram esse lado freireano, acho que esse é ponto marcante. (Jésus, em
entrevista 2007).
A respeito do estilo de escrita de Célia, assim como Balina, Jésus destaca sua forma
poética. Forma que, assim como a poesia, provoca reflexões. Enraizada nas questões
200
contemporâneas, comprometida com o contexto educacional do país, faz da poesia uma forma
de afetar, ampliar o pensamento daquele que a lê:
A Célia é uma poetisa, ela tem uma maneira extremamente agradável de
escrever. Algumas pessoas a acham sofisticada, eu acho que ela é uma
poetisa que utiliza o conteúdo da educação para desenvolver o lado poético
dela. Ela transita, o conteúdo extremamente importante, e ela põe uma casa
bonita, elegante, gostosa. Eu sou fã dela. (Jésus, em entrevista, 2007).
Sobre a contribuição desse pensamento nas políticas públicas de modo mais amplo,
Jésus destaca sua preocupação em difundir o trabalho da UFF, alargando fronteiras, buscando
parcerias e redes de troca. Destaca também seu enraizamento com a questão da escola
pública, que defende como prioridade, intensificando a ligação universidade-escola:
A Célia é uma pessoa que saiu do Maranhão e veio para o Rio de Janeiro.
Plantou suas raízes na UFF. Célia para mim foi primeiro uma descoberta
como aluno e depois como colega. Gostaria de destacar a dimensão nacional
dela, essa idéia que ela defende de que uma universidade tem que ter uma
dimensão nacional. Depois a contribuição dela para as políticas públicas que
se estreitou quando ela começou a trabalhar com as políticas públicas para a
escola básica, formação de professores. Ela pegou o que ela tinha de
academia e foi para a realidade, aonde as coisas acontecem. Tanto na escola
básica, quanto na formação de professores - quando eu falo a escola básica,
eu falo de todo o ensino fundamental. Foi grande contribuição dela para a
política pública, tanto é que quando eu trato da reunião em Caxambu, as
pessoas falam no nome dela. Ela é uma referência.
Ela foi muito importante para a fundação da ANPED. Extremamente
incentivadora da ANPED. Ela sempre foi batalhadora para a construção
dessa instituição, então eu acho que ela tem um marco nessa história, ela
ajudou a ter uma visibilidade nacional e até internacional. temos escritos
para a reunião desse ano cerca de 26 estrangeiros. São sempre os primeiros a
se inscreverem. Por ai vai a dimensão da Célia.
Em 2002 ou 2003 eu fui fazer uma avaliação dos investimentos de pesquisa
em educação em Portugal, fiquei um mês, eu e mais cinco professores da
comunidade européia, e eu acho interessante, porque nisso ai você encontra
os colegas que lêem os outros colegas. Temos alguns professores que são
lidos e Célia é um deles. Acho que nunca dei esse retorno a ela. Essa
difusão da obra dela, é bom ver essa necessidade que o mundo tem hoje,
desse intercâmbio. Necessidade e riqueza. Em mais de um lugar ouvi falar
do nome dela.
Essa foi uma visão que Célia passou muito para a UFF, a UFF é de Niterói
para o Brasil e para o mundo. Nós falávamos, que, nós que morávamos do
outro lado da ponte, pensávamos mais assim do que propriamente em
Niterói. uma tendência mais provinciana do que o Rio. (Jésus Bastos, em
entrevista, 2007)
201
Célia é uma referência, nos diz Jésus. Referência para seus alunos e ex-alunos, para
pesquisadores no Brasil
126
e de outras localidades. Para Jésus, uma mestra semeadora e
competente, que instigou no jovem estudante de pós-graduação a coragem para ousar novos
comportamentos e reflexões, inaugurando mudanças paradigmáticas em sua vida. Mestre
amorosa, que amparou a trajetória de mudanças vividas por Jésus, oferecendo-lhe palavras-
sementes ao longo de seu percurso.
2.6 Pedra e semente: A Saga do herói, aventura de estar vivo.
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois
os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é
conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do
herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos
um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós
mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro
da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós,
estaremos na companhia do mundo todo (Joseph Campbell, 1990).
Educação pela pedra
(João Cabral de Melo Neto)
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
[pela de dicção ela começa as aulas].
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra [de fora para dentro,
Cartilha muda], para quem soletrá-la.
126 Destaco aqui que o nome de Célia Linhares foi incluído na disciplina Educação Brasileira que aborda o pensamento
pedagógico brasileiro na contemporaneidade do curso de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
A iniciativa da professora Profa. Dra. Regina Helena Silva Simões teve início em 2007 e alguns trabalhos tem sido
produzidos pelos alunos do referido curso.
202
Outra educação pela pedra: no Sertão
[de dentro para fora, e pré-didática].
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
Poesia Necessária
Manuel Rui
Produzir na palavra
É semear e colher
É cumprir na escrita
A produção.
(...)
Produzir na palavra
É cantar no poema
Todas as raízes
Deste chão
Capturada pelo convite de Joseph Campbell (1949; 1999), recorro à Mitologia e as
infinitas revelações que os mitos evocam. Para o autor, mitologia é poesia e a linguagem
poética é muito flexível. A mitologia é algo metafórico. Os mitos nos servem, ele afirma,
primariamente, para fornecer instruções fundamentais à vida. Acedo a esse convite, pelo
sentido que encontro em buscar nos mitos, relações com as questões que desejo fazer emergir
nesse momento.
Começo apelando ao mito do herói e a sua saga. Campbell nos diz que a figura mítica
do herói é a de alguém, que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo. Ao perder-se,
doar-se a algum objetivo mais elevado, ou a outrem, o herói deixa de pensar prioritariamente
em si e em sua auto-preservação. Provação suprema. Assim, nessa entrega, opera-se uma
transformação de consciência verdadeiramente heróica. Da vida sacrificada do herói, nasce
uma nova vida, um novo caminho de ser, de vir a ser. O herói humanizado, por meio do qual é
203
cumprido o destino do mundo. Por ora, fiquemos com essas imagens do herói, aquele que se
transforma e que vive um sacrifício do qual nasce o novo (CAMPBELL, 1949, 1999).
O herói pode ter “mil faces”
127
. A face que evoco é a de um herói humanizado, aquele
ao qual podemos nos mirar – bons espelhos. Esse herói é uma pessoa vitalista, nos diz
CAMPBELL (1999), que “sempre traz uma influência vitalizadora”. (...) (1999: 158). O herói
a que me refiro, não tem poderes supra-humanos, não voa, não possui artefatos mágicos. Ele é
qualquer um de nós, potencialmente aptos a responder aos desafios vitais. Sua proeza não é
propriamente física, como a daquele que pratica um ato de coragem durante uma batalha.
Embora envolva coragem, o heroísmo a que me reporto, envolve também medo. Esse herói
humanizado realiza a proeza de fazer escolhas, de manter-se fiel a sua consciência. Escuta
àquilo que o move, que consubstancia a experiência de estar vivo, de modo, que nossa própria
vida e nossas ações, tenham ressonância no interior de nosso ser e da nossa realidade mais
íntimos. Um tipo de proeza, a desse herói, que é de um tempo espiritual, na qual o herói
aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma
mensagem” (CAMPBELL, 1999: p.131).
“Medo e ousadia”
128
habitam esse herói. O herói precisa convencer-se de que a sombra
existe e que dela pode retirar sua força. Deve entrar em acordo com o seu poder destrutivo se
quiser estar suficientemente preparado para vencer o dragão, precisa antes subjugar e
assimilar a sombra. O domínio sobre o medo propicia coragem à vida.
Quero falar dessa mensagem que o herói traz ao retornar de seu périplo e também da
jornada empreendida por quem a trouxe. Quero falar da jornada de quem recebeu tal
mensagem e, em a recebendo, transformou-a em semente. Que espalhou, e espalha. Quero
falar da mensagem e da força que ela traz, do quanto ela oferece um guia para por em ação as
próprias energias daquele que a recebeu, confirmando sua própria força na construção de seu
caminho/ jornada pessoal. Mensagem que é fogo e fio.
127 Reporto-me ao título do livro “O herói de mil faces” de Joseph Campbell, que se refere as diversas mitologias e religiões,
buscando em suas semelhanças, os mitos do herói (CAMPBELL, 1949).
128 Título que dei esse capítulo muito antes de pensar esse final. Pistas, impactos que o material que reuni me trouxe,
expressas nos pensamentos e sentimentos que emergiram durante a pesquisa.
204
Mensagem que é fogo: o roubo do fogo é um tema mítico universal. É freqüente que
um animal ou pássaro ardiloso roubem o fogo e o passem a diante. Às vezes, os animais se
deixam queimar pelas chamas, à medida que o fogo vai sendo passado. Dizem que as cores
variadas dos pássaros se devem a esse chamuscar no fogo. O valor do fogo consiste em sua
capacidade de iluminar e aquecer. Em uma floresta, à noite, é ele quem manterá os animais a
distância, revelará caminhos e abrigos. (CAMPBELL, op.cit.)
Mensagem que é fio: refiro-me ao fio de Ariadne, aquele que permitiu a Teseu
encontrar a saída do terrível Labirinto do Minotauro
129
. Fio que é guia, bússola. Simples fio de
um novelo de lã. Labirinto que é a própria vida, em suas curvas, encruzilhadas, corredores,
cuja saída não se pode ver em estando dentro dele.
Quero também falar das jornadas do herói até que encontre a mensagem. Do abismo,
da entrada na barriga da baleia
130
e de como, ao sair de lá, o viajante sai transformado. Na
história bíblica, Jonas é engolido pela baleia. Entre os movimentos de digestão do enorme
animal, ele se mantém constrito. O medo o jogou ao mar, o medo o levou à barriga da baleia.
Do medo ele renasceu, transformou-se, digeriu suas experiências. Voltou fortalecido.
O herói em sua jornada é movido por algo, ele não é apenas o aventureiro. O motivo
básico da jornada universal do herói é abandonar determinada condição e encontrar a fonte da
vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura. Périplo espiritual, no interior de nós
mesmos. Jornada que leva a transformação. “A consciência se transforma pelas próprias
provações ou revelações iluminadas”, nos diz CAMPBEL (1999).
129 A história do Labirinto do Minotauro faz parte da mitologia grega. Sintetizo-a aqui para que possamos captar a imagem
do fio e do labirinto que evoco. Houve uma época, que os atenienses eram obrigados a pagar um tributo ao rei Minos. A cada
ano eles deviam enviar sete rapazes e sete moças para alimentarem o Minotauro, furioso animal, metade homem, metade
touro, que vivia encerrado no labirinto. O labirinto era repleto de corredores, curvas, caminhos e encruzilhadas, onde uma
pessoa se perdia, jamais conseguindo encontrar a saída depois de transpor a sua entrada. O jovem Teseu, pretendendo dar fim
àquela situação, ofereceu-se como voluntário para entrar no Labirinto, após receber do oráculo a informação de que, se
amparado pelo amor, ele conseguiria sair bem sucedido da provação. Ariadne, filha do rei Minos, apaixonou-se por Teseu. E
combinou com ele um meio de encontrar a saída do terrível Labirinto. O meio era simples: apenas um novelo de lã. Ariadne
ficaria à entrada do palácio, segurando o novelo que Teseu iria desenrolando à medida que fosse avançando pelo labirinto.
Para voltar ao ponto de partida, teria, apenas, que ir seguindo o fio que Ariadne seguraria firmemente.
130 Faço referência a história bíblica “Jonas e a baleia”. Jonas, profeta que viveu muitos séculos antes de Cristo, foi mandado
por Deus a uma cidade chamada Nínive, para levar conselhos e ensinamentos ao povo. Assustado com a empreitada Jonas
ficou com medo e fugiu no barco de alguns pescadores. Porém uma forte tempestade lançou-o ao mar. A tempestade passou,
mas uma baleia imensa engoliu Jonas. Jonas foi devolvido a uma praia, são e salvo, depois três dias na barriga da baleia,
rezando e se arrependendo.
205
Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma
nova era, de uma nova religião, uma nova cidade,
uma nova modalidade
de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em
busca da idéia-semente, a
idéia germinal que tenha a potencialidade de
fazer aflorar aquele algo novo. (CAMPBELL, 1999, p.145)
A mensagem, idéia-semente, fertiliza outros caminhos, outras jornadas. Inaugura
novas sagas, fornece estofo, luz, companhia a outros, que como o herói em sua saga,
empreendem as suas próprias.
Todas essas diferentes mitologias apresentam o mesmo esforço essencial.
Você deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais
profundo, mais distante ou mais alto. Então atinge aquilo que faltava à sua
consciência, no mundo anteriormente habitado. Ai surge o problema,
permanecer ali, deixando o mundo ruir, ou retornar com a dádiva, tentando
ser fiel a ela ao mesmo tempo em que reingressa no seu mundo social. Não é
uma tarefa das mais fáceis. (CAMPBELL, 1999: 137)
Rui e Célia travaram/ travam suas sagas heróicas. Rui sacrifica a vida, em nome do
que acreditava. Célia, tomando nas mãos a “mensagem” do irmão-herói, mensagem que é
fogo e é fio, transmuta a dor e a perda em uma nova forma de viver, ainda mais vitalizada. É
preciso que o sacrifício não tenha sido em vão. É preciso avivar a chama da mensagem-fogo,
é preciso desenrolar o fio de Ariadne, sempre.
A jornada de Rui, motivada por uma militância fraterna, por uma atenção aos que o
rodeavam e por seu interesse pelo povo, tem profunda ressonância em Célia. Como um herói,
Rui colocou sua própria auto-preservação num plano de importância inferior. O apelo que
falava mais alto para ele, estava ligado à agir em prol da justiça, da igualdade, do direito dos
que viviam em condições de pobreza e abandono. Movia-se pelo amor ao outro, pela
compaixão
131
.
A perda de Rui poderia ter deixado o mundo de Célia ruir, desencantada com a perda,
humanamente desesperançada com a vitória da força bruta sobre a vida e sobre a luta pela
131 A palavra compaixão, nos diz CAMPBELL (1999), quer dizer sofrer com, implica reconhecer que sofrimento é vida e se
solarizar com o sofrimento do outro.
206
justiça travada por seu irmão. Porém, na saga da heroína, a perda é o ápice, é o ponto de
retorno, que traz a mensagem-fogo-semente-fio. Da experiência dolorosa, abismo de trevas,
Célia sai compreendendo mais a respeito dela própria, daquilo que a move e a guia em sua
própria saga. Da morte, renascimentos. Diante da morte, a coisa a fazer é trazer vida ao
mundo, e a única maneira de fazer isso é descobrir, em você mesmo, onde está a vida e
manter-se vivo. Vital.
Não se pode dizer que uma vida seja inútil porque acaba no túmulo.
um verso inspirado, em um dos poemas de Pindaro, em que ele celebra um
jovem que acabava de vencer a luta livre, nos jogos Píticos. Píndaro escreve:
“criaturas de um dia, o que é qualquer uma delas? O que não é? O homem
não é senão o sonho de uma sombra. No entanto, quando surge, como uma
dádiva do céu, um lampejo do sol, pousa sobre os homens uma luz radiante
e, oh! Uma vida benigna”. (CAMPBELL, op.cit., p. 144)
É com experiência de morte-vida, luta e esperança, que Célia vai palmilhando sua
própria história, confirmando convicções e escolhas. Transforma a mensagem, idéia-semente,
em uma ão permanente de semeadura. Aqui e ali. Célia age como uma Semente para
semear outras sementes”
132
, usando sua “palavra-semente”. Mais do que germinar em
terrenos férteis, cultiva o potencial poder que seus pares possuem de, também eles, semearem.
Papel do mestre, como nos disse Jésus.
A ação de Célia se constitui no dia-a-dia, nas relações que vai travando com
estudantes e colegas, nas associações, nos espaços de coletividade. A defesa do papel do
professor e da educação se evidenciam. Pensa numa educação da pedra, nas palavras de
Balina: Eu acho fundamental a contribuição de Célia para a educação brasileira. Uma
pedra sem a qual não se pode continuar. Uma pedra-exemplo e não uma pedra-obstáculo”.
É João Cabral de Melo Neto, na epígrafe desse texto, que amplia nosso entendimento da
educação da pedra. Educação conectada ao contexto do país que vivemos, interessada em
entender os enlaces entre fracasso escolar, pobreza, política e formação de professores.
E é com essa mensagem-semente, que é fogo e que é fio, que Célia inaugura um
caminho renovado, revitalizado. Continuemos a saga/ trilha.
132 Trecho extraído da entrevista de Jésus Bastos, desse mesmo capítulo.
207
CAPÍTULO 3
DÉCADA DE 80: FIRMEZA E ESPERANÇA.
Que País é Este
Legião Urbana133
Composição: Renato Russo
Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse?
No Amazonas, no Araguaia iá, iá,
Na Baixada Fluminense
Mato grosso, Minas Gerais e no
Nordeste tudo em paz
Na morte o meu descanso, mas o
Sangue anda solto
Manchando os papéis e documentos fiéis
Ao descanso do patrão
Que país é esse?
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão
Que país é esse?
Que país é esse?
A música que abre esse capítulo, de autoria de Renato Russo, deixa antever o clima de
expressão das insatisfações por parte do povo que permeou a cada de 80. Período de maior
133 O grupo “Legião Urbana”, formado em 1983, teve grande repercussão na década de 80. Suas músicas revelavam uma
juventude farta de um sistema opressor e injusto. O grupo Legião era um dos representantes de um rock nacional que
incrementava-se com grupos como Capital Inicial, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Barão Vermelho,
Blitz, dentre outros. O álbum que levou o nome da música “Que país é esse” alcançou sucesso nas rádios, marcando uma fase
do grupo conhecida como “furiosa”.
208
abertura política, os anos 80 se caracterizaram pelo fortalecimento do movimento popular que
ganhava novos espaços de expressão, apesar das persistentes iniciativas intimidatórias das
forças militares ainda no poder. Um exemplo significativo da participação da sociedade civil
foi, dentre outros, o movimento das “Diretas Já!”, ao qual nos referiremos mais adiante.
É comum que se faça referência aos anos 80 como “A década perdida”, graças a
estagnação econômica vivida pela América Latina em função da retração da produção
industrial e de um menor crescimento da economia como um todo. No Brasil, a década de 80
trouxe o final do ciclo de expansão que tinha tido sua culminância, no período do “milagre
econômico” (RODRIGUES, 1992; SAVIANI, 2007).
No mundo, a queda do Muro de Berlim em novembro de 1989, decorrente do
esgotamento das práticas socialistas e comunistas européias, aconteceua força de picaretas
(RODRIGUES, 1992, p. 8). Abria-se simbolicamente o caminho para a reunificação do país,
dividido desde a Segunda Guerra Mundial. Esse acontecimento do final da década reavivou a
discussão sobre os caminhos dos socialismos, servindo como munição para aqueles que
acreditavam na falência do corpo filosófico desenvolvido por Marx no século XIX.
Nos países pobres, afirma Rodrigues (op.cit.), o grau de internacionalização alcançado
pela economia expressava a relação de dependência econômica que se consolidava. No Brasil,
se solidificava um modelo capitalista dependente e o regime político era diretamente regido
pelas burguesias das “nações emergentes”, cúmplices e principais beneficiárias de sua
acelerada modernização.
A eficácia dos regimes socialistas era questionada no que se referia à igualdade de
direitos e à livre expressão, bem como a ineficiência da centralização e disciplinas exigidas
pelas organizações partidárias, especialmente as de esquerda. Esses questionamentos deram
espaço tanto para um combate raivoso, como para uma maior discussão dos sistemas
filosóficos que haviam orientado o ideal transformador de gerações, como o marxismo.
Rostoldo (2006) nos conta que, no campo das artes, a emblemática mostra “Como vai
você, Geração 80?”, é realizada em julho de 1984 no Parque Lage do Rio de Janeiro,
coordenada pelo artista plástico Luís Áquila. A mostra integra 123 jovens artistas muitos
dos quais se destacam hoje no cenário brasileiro das artes plásticas - do eixo Rio-São Paulo,
aglutinando várias tendências. Movimento que oxigenou as artes naquele período, por
integrar trabalhos muito dissonantes de forma harmônica. Muitos desses artistas eram “filhos
da ‘revolução’”, ou seja, haviam nascido pouco antes do golpe militar e cresceram no regime
ditatorial. Viveram no início dos anos 80 o movimento de lutas pela abertura política, a favor
das questões dos negros, das mulheres, dos homossexuais, da casa própria, do corpo, etc.
209
A AIDS (do inglês Acquired Immunodeficiency Syndromese disseminava),
transformando-se numa verdadeira epidemia. Tal fenômeno fez surgir um crescente
conservadorismo com relação à política do corpo. Apenas em 1985 a AIDS começou a ser
considerada um caso de saúde pública. (ROSTOLDO, 2006)
Na literatura, ainda, a autora sublinha que houve uma “virada do verão 80”. As
chamadas “memórias de exílio/ poesia na prisão” surgem como um novo gênero que retratava
os anos de chumbo em livros como “O que é isso companheiro?” de Fernando Gabeira, dentre
outros, traduzindo experiências que haviam sido vivenciadas no silêncio.
A autora analisa também o cinema dos anos 80, afirmando que, apesar da crise
econômica e dos problemas com a censura, a produção cinematográfica brasileira manteve
sua tradição de abordar grandes temáticas nacionais. Questões políticas, lutas, greves dos
trabalhadores, luta armada, tortura, repressão, manifestações pelas eleições diretas para
presidente e a transição política foram os temas contemplados. Tratava-se de repensar as
relações com o Estado e identificar possibilidades de atuação diante dos altos custos da
produção e do mercado reduzido. Acrescente-se que o videocassete se disseminava, roubando
o público das salas de projeção. Produções importantes do período merecem ser destacadas,
avivando nossa memória: A idade da Terra
134
(1980); Bonitinha, mas Ordinária
135
(1981);
Pixote, a Lei do Mais Fraco
136
(1981); PFrente Brasil
137
(1983); Eles Não Usam Black-
Tie
138
(1981); Memórias do Cárcere
139
(1984); Eu Sei Que Vou Te Amar
140
(1986); A Hora
da Estrela
141
(1985); Com Licença, Eu Vou à Luta
142
(1985); O Homem da Capa Preta
143
(1986); Ópera do Malandro
144
(1986); A Marvada Carne
145
(1985); Brás Cubas
146
(1985),
dentre outros.
134 Produzido por Glauber Rocha.
135 Dirigido por Braz Chediak.
136 Direção de Hector Babenco.
137 Direção de Roberto Farias.
138 Direção de Leon HIrzman.
139 Direção de Nelson Pereira dos Santos.
140 Direção de Arnaldo Jabor.
141 Direção de Suzana Amaral.
142 Direção de Lui Farias.
143 Direção de Sérgio Rezende.
144 Direção de Rui Guerra.
145 Direção de André Klotzel.
146 Direção de Júlio Bressane.
210
A música foi, também, um importante instrumento de contestação e reivindicação
nessa década. Movida pelo rock ela destilava o inconformismo com a situação política e
social do país (ROSTOLDO, 2006).
Esse capítulo está assim organizado: Em “Abertura política: o povo volta às ruas”,
apresentamos mais detalhadamente o cenário político da década. Em seguida, “Aberturas e
fechamentos” traz as experiências de Célia e um levantamento de algumas idéias que
circulavam nesse período. A próxima parte, “Trilhas do pensamento pedagógico” tem como
objetivo abordar as principais idéias presentes nas obras escritas por ela nos anos 80. Por fim,
chega a vez de “Voz dos parceiros”, com as narrativas produzidas a partir das entrevistas de
Heloisa Villela e Waldeck Carneiro da Silva. Em “Mestra, Mestra-mãe” fechamos o capítulo
com as idéias e imagens mais expressivas dos anos 80.
3.1 Abertura política: O povo volta às ruas.
sombras
derrubam
sombras
quando a treva
está madura
sombras
o vento leva
sombra
nenhuma
dura
(Leminski in “Distraídos venceremos”, 2006)
Rodrigues (1992) afirma que podemos considerar o início da abertura política no
Brasil a partir do governo Geisel (1974-79), período considerado de falência do referido
“milagre econômico brasileiro”. A liberalização do País interessava à burguesia, fortalecida
que estava agora pela consolidação do capitalismo que a ditadura havia possibilitado. Segura,
uma vez que acreditava que a “subversão” da esquerda havia sido dominada pelo imenso
aparelho repressivo montado após 1964, a burguesia começava a não sentir-se tão ameaçada
com as expressões populares.
A frase do presidente João Figueiredo revela a postura ambígua que caracterizou essa
“abertura”, fruto de um regime autoritário: É para abrir mesmo. Quem quiser que não abra,
eu prendo e arrebento” (RODRIGUES, 1992).
211
Na questão da abertura havia uma concordância entre militares, burguesia e a maioria
dos políticos, de que era preciso haver controle da distensão política. Aqueles que foram
chamados de desaparecidos políticos legaram aos seus contemporâneos e sucessores a herança
de seu exercício ético, indelével e pujante, por que realizado quando as palavras e as ações
democráticas estavam ameaçadoramente proibidas.
Por isso, eles, não se constituíram como um fator fundamental para a conquista da
abertura, mas ressoavam na força e pressão exercidas pelos movimentos sociais. Greves,
organizações de bairros, entidades profissionais uniam-se na busca do reconhecimento de seus
direitos. No entanto, essa pressão não foi suficiente para garantir a condução realmente
democrática do País, nos diz Rodrigues (op.cit.), o que exigiria reformas profundas nos
mecanismos de decisão política, como a criação de canais efetivos de participação para as
classes trabalhadoras.
A campanha das “diretas já”, como nos referimos anteriormente, revelou a
potencialidade de mobilização popular, porém essa foi sendo gradativamente limitada ao voto
e às manifestações públicas. “Ao povo o seu lugar” diria a maioria dos políticos e a burguesia.
Com relação às pressões populares, um fato marcante foi a presença dos trabalhadores
em greve, na área rural e nas áreas industriais. Movimento grevista que foi fortemente atacado
com um esquema repressivo do qual resultaram prisões e intervenções em sindicatos.
A greve do Abc paulista se destacou, não apenas pelas novas formas de condução
adotadas pelo movimento comandos de greve eleitos, finalizavam uma estrutura de
representação que se iniciava nos locais de trabalho –, mas, também, pelo amplo apoio que
obteve da população e de instituições, como a Igreja e a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB).
A anistia de 1979, que possibilitou o retorno dos exilados ao País, reforçada pela
intensa movimentação social, provocaram reações de extrema direita. O episódio do
Riocentro, ocorrido no Rio de Janeiro em abril de 1981 a dimensão dessa reação. Durante
o show comemorativo ao Dia do Trabalho, duas bombas que estavam sob o poder dos
militares, explodiram “acidentalmente”, antes do tempo previsto, abortando parte de seu
efeito letal, pois ainda produziu vítimas. Esse episódio fez parte do conjunto de atentados
promovidos por grupos de militares “linha dura”. O objetivo era criar um clima de terror pelo
qual a esquerda seria responsabilizada. No caso do acontecimento do Riocentro, o fato acabou
mobilizando a opinião pública e reforçando o apoio dos empresários ao projeto de abertura do
governo Figueiredo (RODRIGUES, op.cit.).
212
Os caminhos adotados para a abertura implicavam o restabelecimento de alguns
aspectos institucionais básicos, afirma Rodrigues. Nesse sentido, tiveram importância a
reforma partidária realizada no final de 1979 da qual resultaram partidos bem mais
definidos quanto aos interesses de grupos e segmentos de classe que representavam - e o
retorno das eleições diretas para governador, aprovado pelo Congresso em novembro de 1980.
No início de 1982 foi concedido registro ao Partido dos Trabalhadores (PT) que,
originado das experiências da luta dos metalúrgicos do ABC paulista, representava uma opção
socialista em torno da qual se agrupavam setores da classe operária, dos intelectuais e dos
sindicalistas.
Em novembro de 1983 os governadores do Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB) na Declaração de Poços de Caldas, reafirmaram seu empenho em
promover uma campanha suprapartidária em favor das eleições diretas. O PT, por sua vez,
promoveu em São Paulo uma manifestação pública com a mesma finalidade.
A campanha pelas diretas tinha como objetivo pressionar no sentido de sua aprovação.
Ela tomou corpo em meados de 1983. Um, dois, três, quatro, mil, queremos eleger o
presidente do Brasil”, entoava a população mobilizada.
O país vivia, portanto, um momento efervescente de mudança em que a população se
organizava, participando mais efetivamente dos destinos do País, buscando intervir
diretamente em seus rumos.
Rodrigues (op.cit.) ressalta que, embora o país vivenciasse essa efervescência,
convivia e ainda hoje convive, com grandes contrastes sociais e econômicos, fruto de um
modelo de sociedade extremamente excludente, em que a maioria da população não tinha/tem
acesso aos bens sociais básicos, como a educação, a saúde, o saneamento básico e a habitação.
Emblemático desses novos tempos merece destaque o fato do primeiro presidente
não militar/civil ocupar este posto após muitos anos de hegemonia dos militares. Apesar de
indireta, a eleição de Tancredo foi recebida com entusiasmo pela maioria dos brasileiros.
Tancredo faleceu antes de assumir a presidência e em 22 de Abril, Sarney, seu vice, foi
investido oficialmente no cargo. Governou até 1990.
A Constituição Federal de 1988 foi uma importante conquista da década, assegurando
garantias constitucionais, com o objetivo de dar maior garantia aos direitos fundamentais. A
Carta Magna de 1988 qualificou como crimes inafiançáveis a tortura e as ações armadas
contra o estado democrático e a ordem constitucional. Foi também determinada a eleição
direta para os cargos de Presidente da República, Governador de Estado (e do Distrito
Federal), Prefeito, Deputado, Senador e Vereador. Além disso, a Constituição retirou a
213
restrição à sindicalização de funcionários públicos, favorecendo a organização popular
(FRANCISCO FILHO, 2004; SAVIANI, 1991e 2007).
No campo educacional da década de 80, a concepção tecnicista que orientava a
educação brasileira era mais amplamente criticada, dando espaço para perspectivas que
consideravam o caráter sócio-histórico da educação e da formação do educador. Surgiam
então as alternativas pedagógicas de caráter contra-hegemônico, buscando ultrapassar a mera
crítica da educação vigente. Para a formação do professor, se preconizava a necessária
compreensão da realidade de seu tempo tendo em vista o desenvolvimento da consciência
crítica e a construção de condições que possibilitassem a interferir e transformar a situação da
escola, da educação e da sociedade.
A Pedagogia crítica, ligada às teorias crítico-reprodutivistas mencionadas no capítulo
anterior, mostraram o papel reprodutor da educação a serviço do poder e da ideologia
dominante e começavam a se difundir. Nesse contexto, a busca de alternativas intensificou-se,
surgindo concepções pedagógicas que buscavam conduzir a educação numa linha libertadora,
articulada com os interesses populares, com os interesses democráticos, com a
democratização do país. Para Saviani (1991), teríamos quatro grupos de pedagogias que se
articulariam na época. Uma ligada a Educação Popular cuja matriz principal era Paulo Freire.
Seu enfoque era a inclusão nas práticas escolares de espaços de discussão e reflexão sobre o
contexto social e seus problemas; as Pedagogias da Prática, corrente de expressão mais
anarquista; a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, proposta elaborada pelo professor
Libâneo que considerava o chamado “saber elaborado” pouco valorizado na pedagogia
libertadora e, portanto, considerava fundamental valorizá-lo e, por fim, a pedagogia
Histórico-Crítica, que surgiu concomitantemente com a pedagogia Crítico-Social dos
Conteúdos.
Nacionalmente, ganham força movimentos de educadores em defesa da formação do
professor e da construção teórica e prática de uma concepção de base comum nacional,
entendendo-a como instrumento de luta contra a degradação da profissão. Dentre esses
movimentos, citamos a Associação Nacional de Educação (Andes), Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) que tendo sido fundada em 1976, teve em
Célia uma de suas sócias fundadoras e membro de sua primeira diretoria como ‘Secretária
Adjunta’, o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) criados no final da década de
70. Em 1983, é criada a Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do
Educador (CONARCFE) matriz da qual foi constituída a Associação Nacional pela
Formação de Profissionais da Educação (ANFOPE), num e noutro movimentos, Célia
214
participou vivamente, ajudando em seus processos de institucionalização e compondo suas
diretorias. Essas organizações associativas contribuíram com a construção coletiva de uma
concepção sócio-histórica de educador em contraposição ao caráter tecnicista e conteúdista
que caracterizava as políticas de formação de professores para a escola básica em nosso
país” (SAVIANI, 2007; FREITAS, 1999).
As Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), organizadas pelas associações
ANDES, CEDES e ANPED, realizadas nos anos 1982, 1984, 1988 e 1991, mobilizaram
professores e pesquisadores na produção, discussão e divulgação de diagnósticos, análises,
críticas e formulação de propostas para a construção de uma escola pública de qualidade
(SAVIANI, 2007, P. 402). Em 1984, a CBE realizou-se em Niterói, sediada na UFF e Célia
coordenou uma das mesas polêmicas, além de outras participações.
Saviani realça que houve, também, nesse período uma significativa ampliação da
produção acadêmico-científica, divulgada por cerca de sessenta revistas de educação surgidas
nesse período e por grande quantidade de livros. As editoras grandes criaram coleções de
educação, e editoras especializadas na área foram abertas. Essa organização e aumento da
produção Científica educacional favoreceu ao reconhecimento da comunidade científica
representada pelas agências federais de fomento à pesquisa e ao ensino, tais como o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), a CAPES e a Financiadora de Estudos e
Projetos (FINEP). O mesmo aconteceu com as fundações de apoio à pesquisa dos diferentes
estados, incrementando a pesquisa educacional no País.
É nesse cenário de abertura democrática, organização e mobilização de educadores e
demais mudanças, conquistas e transições que Célia volta ao Brasil após seu doutorado na
Universidad Nacional de Buenos Aires. Década em que intensifica sua atuação como
pesquisadora, estreitando os laços entre academia e escola básica, bem como se amplia sua
produção textual, fruto de suas experiências, estudos e pesquisas. Na volta ao Brasil, retorna à
UFF e a pós-graduação, cujo quadro de professores havia se modificado durante o período de
sua ausência. Em suas palavras, década em que se sente mais firme para os novos desafios que
se apresentam.
215
3.2 Mais firme na trilha.
"O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da
gente é coragem". (Guimarães Rosa)
José havia sido designado pela diretoria do Banco Real para montar um grupo
financeiro em Buenos Aires, seguindo primeiramente sozinho e organizando a estrutura para a
ida da família, ou melhor, de parte dela. Célia
147
, Ângela e Andréa seguiram para Argentina.
Mário e Paulo, já tendo ingressado recentemente na Universidade, ficaram com Bibi no
Brasil.
As meninas foram matriculadas numa escola bilíngüe de espanhol e inglês,
adaptaram-se com tranqüilidade à vida na Argentina, fazendo logo amizades. Célia fez seus
primeiros contatos na Universidad Nacional de Buenos Aires onde faria seu doutorado em
Instituto de Filosofia Ciências e Letras, na área de Ciências da Educação, sendo aceita
mediante um processo de múltiplos exames e revalidações.
Em 1983 Célia defenderia sua tese intitulada “La Identidad cultural y el processo de
educación en la América Latina”.
De volta ao Brasil em 1983, Célia retomava suas atividades na UFF e José, após pedir
aposentadoria, lançava-se num novo empreendimento, abrindo uma agência de viagens
culturais, a ARGOS.
No Brasil Célia iniciou mais estreitamente seu vínculo com o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), tornando-se pesquisadora. Em suas
pesquisas evidencia-se uma clara vinculação entre as questões da escola pública e da
democracia, discutindo as sinuosidades da transição na formação de professores, incluindo
nesta pesquisa comparações com a Argentina e o Uruguai.
Com uma maior abertura para o campo da pesquisa, Célia pôde investigar questões
como: o discurso pedagógico: sua elaboração retórica e sua legitimidade; a relação entre o
Mestrado e a Escola Básica; A formação de professores nas sociedades em transição para a
147 Ao afastar-se da coordenação da pós-graduação da UFF, Célia deixa em seu lugar o professor Jésus Alvarenga.
216
democracia e a Autonomia Universitária e a formação docente para os trabalhadores. Tratava-
se de refletir sobre a formação sob diferentes aspectos e os rumos que esta tomava diante dos
novos tempos.
Nos anos 80, me fiz pesquisadora do CNPq, desde então até agora tenho
mantido vínculos de pesquisadora, com alguns pequenos intervalos. Muitos
de meus estudos dos anos 90 foram frutos desse momento mais democrático.
Uma de minhas pesquisas investigava o significado da democratização,
buscando compreender como ela convivia com um lastro da ditadura que não
havia sido arrebentado e com novas concepções de política que rompiam
com as idéias de múltiplas ações em que nos entretecemos e nos
influenciamos e as diretrizes de Estado. Pensávamos as políticas que
circulavam como ações intersticiais, como movimentos micro-políticos, que
dispensavam tanto “residências” fixas, para o poder como esquemas de
imposição e coerção, versus vitimação. Então, neste período, volto a estudar
Foucault. (Célia em entrevista, 2007).
Célia, em diálogo com Foucault, parte da concepção de micro-política ou, na
expressão do próprio Foucault, da microfísica dos poderes em jogo nas sociedades modernas.
É assim que analisa em suas pesquisas a trama de poderes que circulam em todas as
instâncias, em sua capilaridade, abrangendo instituições e atingindo a todos os indivíduos
(SAMPAIO, 1994). Tal perspectiva indica a presença do poder nas múltiplas relações
humanas e nas instituições. Exemplifica como essa temática se fez presente em uma de suas
pesquisas:
Desenvolvi a pesquisa “América Latina e a transição democrática: Brasil,
Argentina, Uruguai” e uma outra sobre como se constitui a validação e a
legitimação dos discursos pedagógicos. Um tema que acho de uma grande
atualidade ainda. Afinal, por que você escreve uma matéria e ela pouco
ressoa, quase não sai da gaveta e uma outra pessoa escreve quase o mesmo e
seu trabalho repercute tornando-se um instrumento potente para pensar,
intervindo na sociedade? Por que alguns discursos emplacam e outros não?
Claro que além das condições de circulação, condições fortemente políticas,
também condições internas ao próprio discurso, que além de políticas
carregam critérios epistemológicos, também sempre em movimento. Foi
uma pesquisa muito interessante. Nessa pesquisa chamou-me atenção as
discussões do Bachelard sobre quando é que uma ciência consegue superar o
discurso anterior por encantá-lo e transcendê-lo. (Célia Linhares, entrevista,
2007).
Interessante observar que essa é uma questão muito próxima das experiências de Célia
com o conhecimento. Ela pesquisava nos anos 60 e 70 alguns temas e autores de menor
circulação na academia. Além disso, vivia também em sua experiência na pós-graduação da
217
UFF, um momento em que se instalavam outros modelos hegemônicos, com os que confluía,
mesmo com suas distinções (o que foi mencionado por Balina e Jésus nas narrativas dos
capítulos que antecedem a esse).
É oportuno que ela se interessasse, então, em refletir/ compreender melhor essas
condições que validam alguns discursos e outros não. Essa idéia também fundamentou sua
pesquisa sobre as disciplinas da graduação e da pós-graduação. Na graduação, Célia
considerava que havia pouca ênfase nas disciplinas de fundamentos, que possibilitasse a
construção de bases teóricas aos pedagogos. Muitas vezes, se faziam críticas a um
determinado autor, sem o devido conhecimento de suas idéias.
O pessoal saía da graduação da pedagogia e, mesmo sem entender,
minimamente, o pensamento de Rousseau, de Descartes ou Dewey, por
exemplo, mas, mesmo assim, já saiam distribuindo críticas. (Célia Linhares,
entrevista 2007)
Reconheço nas inquietações que deram origem a essa pesquisa, uma questão de fundo
que é muito cara à Célia: a autonomia intelectual do professor. Conhecer os fundamentos de
um autor e de seu pensamento estimulando que o estudante, não simplesmente repita uma
formulação crítica de outrem, mas possa forjar as suas próprias. As preocupações que
orientam suas pesquisas deixam claro a força de sua concepção de autonomia, como um
princípio fundamental na formação do professor, no seu pensamento pedagógico.
A relação entre o Mestrado e a Escola Básica também é um foco desta pesquisadora que
defende um envolvimento recíproco, um intercâmbio permanente entre essas duas instâncias.
Célia considerava que havia um divórcio entre a escola experimentada e vivida e a pesquisa
acadêmica. Para pesquisar esse isolamento e como ele se dava, investigou o perfil daqueles
que procuravam o mestrado e as dissertações e teses produzidas no sudeste cujo tema era a
escola. Intitulada “Mestrado e educação na escola básica”, essa investigação envolveu as
professores e estudantes do Mestrado (tais como, Balina Belo, Teresinha Lankenau, Sheilah
Kelnner, Lúcia Molina e tantas outras, bem como as mestrandas Heloisa Vilella, Terezinha,
etc) A culminância da pesquisa foi feita com um encontro que reabria a investigação em outro
nível, integrando professores do Sistema Público de Ensino do Sudeste com as Professoras
pesquisadoras que haviam orientado o mais expressivo contingente de dissertações naquela
última década, representadas, algumas vezes, pelas suas ex-orientandas. A idéia era que essas
duas instâncias Mestrado e Escola Básica pudessem trocar e se ouvir. Uma fértil
oportunidade de diálogo.
218
Professoras da periferia de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte
vieram para o Encontro e ficaram três dias conosco. Nós as hospedamos nos
hotéis. Elas discutiram as dissertações, seus processos, seus achados e as
linguagens com que as pesquisas eram redigidas. Levantaram questões,
mostraram as complexidades da educação escolar. Foi uma oportunidade e
tanta de trocas de experiências, de aproximação, em que muitas histórias do
cotidiano das professoras e das pesquisadoras foram relatadas. (Célia
Linhares, entrevista 2007)
Célia relembra dos casos e contos dessa ocasião. Uma história contada por uma
professora, a tocou de modo especial. Dizia respeito a uma das alunas da tal professora, uma
menina de nove anos, vinda do nordeste, “adotada
148
por uma família, após ter sido
anteriormente rejeitada por outras duas. A menina, a despeito dos esforços, não conseguia
aprender. A professora então empreendeu um investimento redobrado, fazendo com que a
menina, enfim, conseguisse apropriar-se da leitura e da escrita. De posse da palavra, de posse
da possibilidade de ser menina, ser jovem, descolando-se do papel servil que ocupava fora da
escola, arriscou-se em poetizar. Palavra que resgatava na menina-poeta a possibilidade de se
dizer, de voltar a reconhecer a menina que era.
Uma das primeiras produções da menina foi feita em homenagem a um
namoradinho: “Na rua, onde moro,/Não preciso candeeiro./O brilho do olhar
do Gil / Alumia o mundo inteiro”. Ali ela estava com 9, 10 anos, na
pré-adolescência, namorando, e aprendendo a ler não os livros, mas o
mundo com seus afetos. A professora trouxe a escritas da menina,
comprovando o processo de aprendizagem. (Célia Linhares, em entrevista,
2007)
Célia interessava-se em dar voz aos professores, conhecer de perto suas experiências e
expectativas e estreitar os laços entre pesquisadores e professores. Sua visão de pesquisa
retirava-a das mãos de uma elite intelectualizada, desinteressada pelos problemas cotidianos
da escola. Rompia também com a idéia de que na universidade se produziam as “verdades”
148 Uma situação muito comum até hoje em várias regiões do país, é que as famílias empobrecidas entreguem suas filhas
ainda bem pequenas para trabalharem nas casas das famílias abastadas. Essa prática, uma verdadeira “escravidão” moderna,
traduz o dilema de nosso país. Se é muito ruim pensar numa criança tão jovem trabalhando, sem direito ao estudo, a própria
família e ao brincar, a outra alternativa que muitas vezes lhe resta também não é alvissareira: passar fome numa família sem
recursos.
219
para que os professores, meros aplicadores das teorias produzidas na academia, as utilizassem
na sala de aula.
A crítica à visão de professor reprodutivista ganha força especialmente nas décadas de
80 e 90 e tem sido bastante enfatizada na área da formação do profissional em educação. Célia
sintonizava com essa crítica, preconizando o investimento na formação de um professor
crítico, que refletisse sobre seu trabalho, atuando como um investigador permanente de sua
prática.
Célia reporta-se também a um encontro muito importante, que acabou transformando-
se em congresso, dada a repercussão que teve. Nele, Florestan Fernandes
149
fez a abertura.
No final dos anos 80 fizemos outro encontro, I Encontro Estadual Pró-
formação do Educador, com o tema,“A formação do educador na construção
da democracia”. Este Encontro representava uma expansão e um
revigoramento da CONARCFE, na qual exercia a Coordenação Estadual do
Rio de Janeiro. Florestan Fernandes fez a conferência de abertura, o
Coordenador Nacional e Regional eram respectivamente Luís Carlos de
Freitas e Antônio Carlos Ronca, que participaram ativamente deste nosso
Encontro. A organização foi primorosa, com representantes de cada uma das
Universidades Públicas e as principais particulares, além delas os sindicatos
de professores estiveram todo o tempo conosco. Novamente uma intensa
rede de solidariedade se formou em torno da realização do Encontro,
sustentada por professoras como Regina Leite Garcia, Lea da Cruz,
Felisberta da Trindade, Martha Hees e tantos outros que os lugares para
participar do Encontro, logo se esgotaram e foi necessário buscarmos outros
espaços para a duplicação das atividades.
149 Florestan Fernandes (1920-1995) foi um importante sociólogo. Nascido em São Paulo, sua infância foi marcada pela
pobreza e pelo trabalho precoce, o que o impediu freqüentar a escola regularmente. mais velho retomou os estudos,
conciliando trabalho e estudo. Licenciou-se em Ciências Sociais na USP. Por intermédio de um de seus professores, após a
conclusão do curso, começou a escrever no jornal O Estado de São Paulo, depois na Revista Sociologia e na Folha da Manhã,
o que lhe trouxe prestígio e notoriedade. Em 1944 começou a lecionar na USP, na cadeira de Sociologia II com Fernando
Azevedo. Concomitante aos estudos e trabalhos na Universidade, Florestan se envolveu nas lutas clandestinas contra o
Estado, entrando em 1942 no movimento trotskista de extrema esquerda. Em suas pesquisas, embrenhou-se no conhecimento
da sociedade brasileira e sua formação, aproximando-se do universo indígena e da histórias dos negros no Brasil. A partir da
década de 60, respondendo a um apelo social que convocava as elites intelectuais a atuar mais diretamente nos movimentos
populares, Florestan passa nuclear seu trabalho em direção a uma sociologia aplicada, comprometida com as mudanças
sociais, engajando-se no movimento de defesa da escola pública, do qual foi uma liderança combativa. Após o golpe militar,
em 1969, por força do AI-5, Florestan foi aposentado compulsoriamente. Após esse período ele auto-exilou-se, passando a
atuar como professore de Sociologia na Universidade de Toronto, de 1970 a 1972. A partir de 1977 foi contratado pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 1987 começou a atuar como Deputado Federal pelo Partido dos
Trabalhadores, reeleito em 1991, ficando do cargo até 1994. Acreditava que o papel das ciências sociais era o de contribuir
com a educação, pois nela residia a possibilidade de diminuir as desigualdades. Defendia que a LDB deveria privilegiar a
garantia da escola pública, laica, gratuita, universal e de boa qualidade. (MAZA, Débora in FÁVERO E BRITO, 2002).
220
Nessa época também nos articulamos com uma uruguaia que tinha nos
ajudado na pesquisa sobre a transição da democracia no Uruguai, a
Professora Emma Massera. Ela também falou neste Encontro, narrando as
curvas, as dificuldades, deslizes e as conquistas da Democracia na Educação
Uruguaia. Temos guardado esses documentos no Centro de Referência de
Experiências Instituintes na FEUFF.. (Célia Linhares, entrevista, 2007)
O clima que antecedeu ao encontro foi permeado por muitas tensões. Às vésperas
houve um atentado de graves proporções na Companhia Siderúrgica Nacional, nos conta
Célia. Niemeyer
150
havia projetado um monumento em homenagem aos operários
perseguidos e dizimados pela ditadura. Tal iniciativa desagradara às forças conservadoras que
ainda se debatiam pelo poder. Os professores estavam em greve e as tensões estavam
crescendo!
Nesse contexto de tensões, o encontro representou um espaço de reafirmação do
desejo democrático contra as forças opressoras que se manifestavam nos episódios que
eclodiam. “Nós abrimos com Florestan Fernandes discursando sobre ‘Formação de
professores para a construção da democracia’, contando sua vida, as tentativas de cooptação
que sua geração de moços de origem pobre sofriam quando ascendiam, o que era raro, à
universidade. Olha, é difícil um evento que chame tanta gente, tanta gente interessada, com
olhos brilhando pelo que tudo ali representava!”. (Célia Linhares, entrevista, 2007)
Esse encontro foi precedido de uma organização esmerada, cujo planejamento,
envolveu, três meses antes, encontros quinzenais com os professores de diferentes municípios,
tendo em vista a definição dos temas de maior interesse. No encontro propriamente dito
houve também espaço de divulgação das experiências inovadoras, hoje nomeadas por Célia
como “instituintes”. Para o encontro foram convidados todos os professores do município do
Rio e de Niterói, mas também dos demais municípios que compõem o Estado do Rio de
150 O premiado arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer (1907), cujo centenário foi festejado no Brasil em 2007, desenvolveu
vários projetos arquitetônicos que fazem parte do cenário brasileiro e mundial. Dentre eles, a construção de Brasília é um dos
mais significativos. Foi do Partido comunista brasileiro de 1945 até 1990. Em sua atuação, sempre esteve envolvido em
projetos que de alguma forma contribuíssem para os países nos quais trabalho. Com o golpe militar teve suas oportunidades
de trabalho reduzidas. Na expressão de um dos ministros da época, “lugar de arquiteto comunista é em Moscou”, o que fez
como que ele se instalasse em Paris em 1967. Uma de suas frases dão a dimensão do homem que Niemeyer é: “Sempre
acrescentei nas minhas palestras que não dava à arquitetura maior importância e não havia nada de desprezível nessas
palavras. Comparava-a a outras coisas ligadas à vida e ao homem, referia-me à luta política, à colaboração que todos nós
devemos à sociedade, aos nossos irmãos mais desfavoráveis. O que se compara à luta por um mundo melhor, sem classes,
todos iguais ?” (Oscar Niemeyer, http://www.niemeyer.org.br – acesso em 20/12/2007.)
221
Janeiro. Lado a lado foram convidadas todas as possíveis instituições formadoras de
professores em nível superior. As discussões versaram sobre o que se desejava para a
formação de professores que deveria estar presente na Lei de Diretrizes e Bases que então se
discutia.
Nem era Congresso, mas tomou porte de Congresso. Imagine que até
deputados telefonavam aqui para casa pedindo para eu conceder uma
inscrição para uma amiga professora. Foram 800 professores! Na véspera
houve esse problema na Siderúrgica Nacional, um atentado das forças de
direita contra os trabalhadores e uma greve de professores com uma tensão
altíssima que parecia pronta a explodir. Imagina a tensão! Muita gente
querendo entrar no teatro, a procura e a insistência crescendo e movimentos
imprevisíveis, também eclodindo. Violência que era contra os trabalhadores,
contra supostamente os comunistas e socialistas, contra o movimento de
agregar, era isso. (Célia Linhares, entrevista, 2007)
Outro foco de atuação muito importante para Célia nos anos 80 foi a sua participação
na criação da ANFOPE e da ANPED, cuja intensidade das trocas e debates entre os
organizadores reavivava esperanças e confiança na capacidade associativa. Em outra frente de
atuação, participou a convite da professora Cecília Coimbra, da formação do grupo Tortura
Nunca Mais.
151
.
Na Educação, os debates em torno da formação do professor ampliavam-se
com as reuniões da SBPC
152
, SBF
153
, ABQ
154
, ANPED
155
, CBEs e até
dispunha de um movimento nacional representado pela CONARCFE
156
, que
em 1990 passou a organizar-se como ANFOPE.” (Célia Linhares, 2000, p.
65)
151 O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram
situações de tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos. Socialmente, tem assumido
um importante compromisso na luta pelos direitos humanos, pelo esclarecimento das circunstâncias de morte e
desaparecimento de militantes políticos, pelo resgate da memória histórica, pelo afastamento imediato de cargos públicos das
pessoas envolvidas com a tortura, pela formação de uma consciência ética, convicto de que estas são condições
indispensáveis na luta hoje contra a impunidade e pela justiça. http://www.torturanuncamais-rj.org.br/sa/default.asp
152 Sociedade Brasileira para o progresso da ciência.
153 Sociedade Brasileira de Física.
154 Associação brasileira de Química.
155 Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação.
156 Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do Educador.
222
A participação nesses espaços mais amplos de discussão e luta pelos direitos humanos
e pela formação de professores trouxe para Célia um sentido maior de pertencimento e maior
capacidade de pronunciar-se, como uma forma de inscrever-se na vida e nas suas histórias.
Quando fui nos anos 70 para ANPED fiquei satisfeita, por ter encontrado lá
um fluxo de vida, com uma multiplicidade de grupos e interesses que
debatiam, que conflitava e que também, confluíam. Gostei. Senti que a vida
estava me fortalecendo com convites de participação, ouvia e compartilhava
de conversas. Assisti, por exemplo, observei e admirei Luís Antônio Cunha,
de quem já havia escutado um pronunciamento corajoso, conversando
solidariamente com pessoas que foram ou ainda eram perseguidas. Na UFF,
embora tenha e tivesse muitas pessoas amigáveis, confiáveis, queridas, mas,
também, como em todas as instituições, havia pessoas hostis, que eu, de
perto ou de longe, já identificava seu comportamento, seu discurso, como
alinhados à ditadura. Eu era tão apavorada que nem falava de público sobre
minhas experiências anteriores e sobre Rui, meu irmão desaparecido!
Quando voltei da Argentina confirmei algumas conversas que havia tido
com Jésus e encontrei um grupo que trouxeram uma viva contribuição ao
nosso Programa. reencontrei Luis Antônio Cunha que com Nilda Alves,
Estela Abreu e Menga Lüdke dinamizaram nosso Programa trazendo
debates, realizando eventos, estimulando nossa participação em diferentes
espaços. A contribuição de cada um deles, de per si, mas também como um
conjunto que entraram juntos, numa época em que a Ditadura enfraquecia,
confrontada com movimentos de democratização e com uma crise
econômica mundial teve um imenso e um benéfico impacto. Foi uma
contribuição muito valorosa. (Célia Linhares, entrevista, 2007)
Célia não se furtou a comentar um episódio marcante nessa década: sua candidatura
para ocupar um cargo político dentro da Universidade e a posterior derrota nas eleições. Ela
conta que sua candidatura foi, vivamente, apoiada, tanto pelos antigos companheiros e
companheiras, como pelos que então entraram e, que, nesta oportunidade estavam
acrescidos por Gaudêncio Frigotto e por Regina Leita Garcia. Esse fato, comentado por Jésus
de Alvarenga Bastos, Heloisa Villela e Waldeck C. da Silva, a dimensão do entusiasmo de
Célia diante de novos desafios e, ao mesmo tempo, de sua capacidade de lidar com os
desapontamentos, de modo a não deixar que estes abalassem sua tenacidade. Assim como no
episódio da defesa de sua tese de livre-docência, quando se sentiu hostilizada, essa foi uma
outra ocasião em que se viu envolta em uma situação de dureza. Parafraseando Guimarães
Rosa, que epigrafa esse texto, a vida “queria coragem”, Célia respondeu a isso.
223
Nos anos 80 eu fui candidata à Direção do Centro de Estudos Sociais
Aplicados (CES). Primeiro, um grupo de peso de colegas me lançou, como
candidata ao Conselho de Ensino e Pesquisa. Como tive uma boa votação,
ficamos todas e todos animados e aceitei sair como candidata à Direção do
Centro de Estudos Sociais. Bem que achei que as forças opostas iam travar
nosso lado. Mas achei bacana sonhar conjuntamente com tanta gente boa de
quem eu gostava muito e realizar uma gestão que ampliasse a democracia
com práticas universitárias que superassem os sectarismos, através de
exercícios interdisciplinares. Sonhamos alto. Colegas, estudantes, filhas de
estudantes todos e todas de nosso grupo em prestavam seu apóio, com
entusiasmo. Lembro, por exemplo, de Ismênia Martins, Jorge Guimarães,
Aidyl Preis, que haviam sido candidatos a reitor naqueles dias e que
apoiaram nossa candidatura, ativamente. Na Faculdade de Educação, a
adesão dos colegas se expressavam de mil maneiras. Lembro de Teresinha
Lankenau e da Nilda Alves puxando os meros para encerrar uma tômbola
que foi promovida pelo nosso Grupo. Mas, se começasse a citá-los, seria um
elenco de episódios animadores promovidos por cada um dos professores e
estudantes. Cecília Coimbra, Ruth ----, Cláudio Considera também atuaram
em espaços que nem cheguei a trabalhar. Mas não posso deixar de recordar
como Heloisa Vilella, se fazia acompanhar de sua filhinha caçula, Helga,
que rapidamente brincava, com uma fita na cabecinha linda, de ser o
mascote da campanha. E nunca vi mascote tão bel! Foi uma empolgação,
viajando para Campos, sendo recebida pela Teresa Cristina Calomeni,
professora da UFF lá e como Helô, fazia o mestrado sob minha orientação,
Os Colégios Universitários ganharam a possibilidade do voto paritário dos
estudantes e os Colégios Universitários votaram com a outra chapa. Enfim,
também como uma mulher entendi a dificuldade que teria para ganhar.
Muita gente dizia, ah, à uma mulher... eu tenho medo de dar a direção do
CES”. Aqui na Universidade eu ganhei entre os professores, estudantes e
funcionários, mas nos colégios universitários eu não ganhei.
Tinha tido tantos sonhos, falava e sentia que Educação. Direito, Serviço
Social, Economia e Administração e educação se aproximavam, quando
perdi, senti um frio me percorrendo. Queria que o sonho acontecesse, O
CES, como uma instância interdisciplinar. Acreditamos juntas e juntos e não
foi assim tão fácil esquecer tudo.
Mas depois que fui caindo na real, fui vendo que se ganhasse iria me animar
muito para esse lado e minhas conversas, minhas aulas, minha liberdade do
dia a dia que tanto prezo como professora. Foi maravilhoso ter vivido inteira
essa empolgação com tantas e tantos amigos e, sobretudo, com o apoio de
meu marido e filhos. Mas pude também sentir de perto os redemoinhos de
que são feitos eeses lugares. Foi uma vacina, uma doce vacina. Nunca mais
aceitei concorrer a cargos eletivos. Insistiram muito para eu ser candidata a
Diretora da Faculdade, vários candidatos a reitor me convidaram a ser vice e
eu não quis. Mergulhei na pesquisa... (Célia Linhares, entrevista, 2007).
É interessante tomarmos conhecimento de um episódio como este que envolveu
diferentes instâncias e pessoas e com isso ter, ainda, a oportunidade de conhecê-los a partir de
pontos de vista distintos, como os dos entrevistados nessa tese. Podemos assim, não
ampliar a compreensão sobre as formas com que Célia foi construindo seu percurso e
enfrentou dilemas e percalços (e com que idéias sustentou suas posições e se recompôs nesses
224
momentos), mas também compreendermos os meandros da vida institucional e como o
percebidos pelos sujeitos que dela fazem parte. Amplia assim nossa capacidade de visão sobre
o fato.
Ainda sobre os anos 80, Célia destaca o lançamento do livro “A escola e seus
profissionais”, obra marcante em sua bibliografia que reúne as idéias que ela foi consolidando
ao longo de sua trajetória. Sente que vai ganhando mais visibilidade e reconhecimento. Firma-
se num lugar construído passo a passo.
No próximo item, apresentamos as principais idéias de algumas das obras que Célia
escreveu nessa década.
3.3 Trilhas do pensamento pedagógico ...
Boa parte das produções textuais dessa época estão ligadas, de alguma forma, a seus
estudos de doutoramento em que as questões da América Latina passaram a ter para Célia,
com suas múltiplas conexões. O foco no fortalecimento da identidade cultural, na crítica a
uma mentalidade colonizada de desapreço à própria cultura e na própria noção de “latino-
americanidade” perpassava essa produção.
Período de intensa produção escrita, tendo em vista não apenas as muitas parcerias
que estabelece e afina, mas também o incremento de sua atividade como pesquisadora e a
necessária e desejada divulgação das pesquisas em andamento.
No primeiro artigo, “Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina”,
escrito em 1981, Célia trata das correspondências e limites entre a realidade e a imaginação,
indagando até onde a humanidade pode se mover para fazer do mundo que temos o mundo
que queremos.
Nestes percursos, aborda, dentre outras, a questão da imaginação e sua vinculação com
a ciência, defendendo a idéia da imaginação como um processo criador, inseparável da
realidade, mas também um instrumento para sua separação, capaz de forjar novas
possibilidades para a educação. Resgata a idéia de utopia, como um caminho ainda não
percorrido, ignoto mas fecundo, para a construção de futuros possíveis. Critica as ideologias e
idéias fantasiosas que, não oprimem a educação,mas a distraem, impedindo que se
desenvolvam processos mais conectados com as possibilidades concretas da educação escolar,
em sintonia com as demandas dos distintos grupos sociais que a demandam.
No segundo artigo, “A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/
Falklands”, escrito em 1982, Célia discute a questão do dogmatismo da ciência e de seu
225
correspondente pedagógico, o autoritarismo docente. Entende que essas duas expressões
desvirtuam ciência e docência de seu papel e função principal. Ao impor uma verdade
inquestionável, como um dogma científico, trai o princípio de provisoriedade dos
conhecimentos sobre o mundo, típico da ciência. O autoritarismo docente impediria ao aluno
a vivência do processo reflexivo autônomo, traindo assim, também, a função do professor de
exercer uma autoridade cujo propósito precisa estar conectado ao desenvolvimento de um
sujeito crítico, capaz de refletir por conta própria.
A partir dessas idéias, Célia analisa a atuação da escola Argentina na questão da crise
das Malvinas, sublinhando o caráter de inculcação ideológica que a escola assumiu na
ocasião, forjando um ideário patriótico e plantando dogmas de alta densidade afetiva,
orientados pelos ideais das classes dominantes e dos interesses imediatistas dos ocupantes
arbitrários do poder. Célia confronta assim os aspectos históricos que levaram a crise das
Malvinas/Falklands, com questionamentos sobre o papel desempenhado pela escola diante de
tal fato, relacionando educação e sociedade. Fecha o texto ressaltando sua esperança numa
escola que assuma seu papel formativo, crítico, desenvolvendo ações que contribuam para a
formação de sujeitos críticos e autônomos, cujo conhecimento da ciência inclua movimentos
permanentes com que possam se aproximar da realidade, ajudando a superá-la.
O terceiro artigo “A educação e suas relações com as identidades culturais na América
Latina”, em 1983, discute a relação entre a Identidade Cultural (IC) oficial e a Identidade
Cultural oficiosa na América Latina e como as relações entre ambas repercutem no processo
educativo. Ressalta as relações de imposição da primeira sobre a segunda, considerando
também a possibilidade de resistência. Sublinha o papel da escola como inculcaldora de
valores alinhados com a IC oficial e elitista e a possibilidade de, paradoxalmente, poder
contribuir para a transformação social via apropriação do saber por parte dos segmentos
populares.
O quarto texto é a sua tese de doutorado “La identidad cultural y el proceso de
educación em la América Latina”, concluída em 1983. Nesse trabalho Célia põe em foco as
relações entre a identidade cultural latino-americana e o sistema educativo, percebendo as
influências entre essas duas instâncias e fazendo a crítica a um sistema educativo que não se
baseia na estrutura cultural e vital de seu país.
No quinto texto, o artigo “A interdisciplinariedade na psicopedagogia” publicado em
1986, Célia defende um conceito de interdisciplinaridade na psicopedagogia que se paute na
articulação entre os fenômenos psicológicos em cumplicidade com a dinâmica das relações
226
sociais, políticas, econômicas e culturais. Critica concepções que fragmentam o sujeito e a
visão da escola, e afirma a urgência epistemológica e ética que tal questão enseja.
“Os protagonistas da pedagogia escolar: suas convergências e divergênciasé o sexto
texto. Editado em 1987, tem como foco a reflexão sobre a convergência dos diferentes atores
escolares em prol de uma transformação pedagógica. Nesse sentido, mais importante do que
as diferentes funções que ocupam os sujeitos é a construção de um projeto coletivo, para uma
escola com e para o povo.
O livro “A Escola e seus profissionais: Tradições e Contradições” publicado, em 1989
é composto de textos produzidos para diferentes encontros em que Célia participou,
realizados ao longo dos anos 80. Versam sobre a questão da formação e atuação dos
profissionais da educação escolar. Trata-se de um livro muito significativo no conjunto de
obras de Célia, sistematizando suas principais concepções pedagógicas.
É dividido em cinco capítulos. No primeiro, Quem é esse, o pedagogo?”, escrito em
1984, Célia discute a formação desse profissional, incluindo a dimensão sociológica,
epistemológica e pedagógica. Defende para esse pedagogo uma sólida formação científica e
humana, enraizada na compreensão do contexto social em que vivemos, condição
fundamental para que esse profissional contribua para uma formação mais humana. O
segundo capítulo, Os protagonistas da pedagogia escolar: suas convergências e
divergências”, escrito em 1985, discute o desafio de não fragmentar do trabalho escolar,
diante das diferentes funções e especializações dos profissionais da escola. Compreende a
necessidade de unidade e integração dos esforços, com vistas a contribuir para uma escola que
trabalhe a favor da emancipação das camadas populares do Brasil.
Da educação à intelectualidade pedagógica: trajetória na formação do pedagogo” é
o terceiro capítulo, escrito em 1986. Partindo do conceito de pedagogo como aquele que tem a
capacidade de impregnar de sentido, construído coletivamente, suas atividades educacionais,
Célia defende o intelectual pedagógico como aquele que compreende o contexto social em
que atua, comprometendo-se com uma escola cidadã, não excludente. O quarto capítulo,
“Repensando a escola normal em tempo de constituinte”, defende a gratuidade em todos os
níveis de formação, uma vez que o saber é um direito do homem e que, um cidadão bem
formado traz benefícios mais amplos para a sociedade. Célia acredita também que é dever do
Estado financiar a formação do professor da escola básica na modalidade Normal, tendo em
vista a realidade do país.
O quinto e último capítulo, A formação dos profissionais da escola: recorrências e
controvérsiastem como objetivo estudar diferentes compromissos relativos à formação do
227
pedagogo, localizando as polêmicas da época sobre a formação dos profissionais da escola,
entendendo-as como expressões das contradições enfrentadas e lacunas que marcam, não
essa categoria profissional, mas a própria sociedade brasileira.
No conjunto dessas obras, podemos reconhecer a força que a questão da Identidade
cultural ganha em suas análises. Os textos revelam uma pensadora que não se limita a olhar
apenas em uma direção, mas ousa refletir sobre temas variados, concernentes a escola e a
educação, ressaltando as questões políticas em suas relações com a cultura, a escola e a
epistemologia. Fortalece a sua defesa da escola pública, como um dever do Estado e como
um espaço de afirmação do sujeito, em que autonomia e criticidade são perspectivas sempre
presentes.
Desta maneira, relações múltiplas que concorrem no fenômeno educativo, ora com a
superposição, ora com a articulação de dimensões sociais, econômicas, culturais o
mencionadas em todas as suas reflexões, expressando um olhar que procura integrar mais e
mais instâncias e dimensões. O resgate cultural, da própria história, dos saberes do povo,
orienta sua confiança nos enraizamentos da experiência que precisa, necessariamente,
alimentar-se do passado para projetar futuros possíveis. Idéia que passa a habitar
definitivamente suas obras.
Em seus textos Célia abraça, cada vez com mais intensidade, temas tais como: o
reconhecimento dos saberes dos sujeitos e da vida como fonte de saberes; a crítica às
tendências dogmáticas e autoritárias que se impõem na escola e na sociedade; sua visão de
ciência em sua construção incessante, na busca de conhecimentos e de ultrapassagens de
limites, ressaltando a relatividade da verdade e suas conexões com cada época histórica e,
sobretudo nos movimentos sociais, populares.
Vejamos agora, um por um dos textos apresentados.
3.3.1 Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina (1981)
Neste artigo, publicado na Revista del Instituto de Investigaciones Educativas, Célia
Linhares tem como objetivo principal discutir como a realidade vai sempre sendo recriada,
não se congelando nunca em fatos e atos que dominaram a cena da ciência moderna. Por isso,
indaga desde o início, “quais são os limites entre a imaginação e a realidade?”
Continuando, Célia propõe repensar a ciência para entender a presença da imaginação
no processo científico e na prática educativa na América Latina.
228
Para tanto, ela estabelece primeiramente uma distinção entre a imaginação reprodutora
e a imaginação criativa e afirma que na imaginação reprodutora existe um predomínio dos
estereótipos aceitos pela sociedade. Isso se deve, segundo a autora, ao predomínio da
transmissão conformista cultura, que a massifica de forma reprodutora. Já a imaginação
criadora permite uma liberdade para as construções imaginárias, que perpassam e dialogam
com as ações sociais, possibilitando processos de invenção, que vão rompendo com o até o
momento era conservado e praticado culturalmente, permitindo que novas relações surjam,
sempre em movimentos de criação e re-criação.
De acordo com Célia os processos imaginários estão cheios de relatividade. Um
mesmo feito pode ocasionar distintas imagens geradas por pessoas com diferentes ‘back
grounds’ culturais ou segundo os valores pessoais com que os mesmos feitos são
observados” (p.32).
Em relação aos dogmas produzidos pela ciência na educação, Célia afirma que estes
produzem uma alienação individual e coletiva, contribuindo para um travamento humano,
com graves impossibilidades de decidir e lançar-se na elaboração e enfrentamentos da vida e
de sua expansão permanente. Tal alienação gera, senão uma incapacidade de reflexão, pelo
menos um estreitamento desses processos, refletindo-se na qualidade das análises e relações
com as informações científicas, desencadeando uma dificuldade, tanto por parte do educador
quanto do educando, para os exercícios das aprendizagens escolares e das escolhas e
construção dos caminhos de sua vida.
Procurando entender a importância da imaginação, Célia faz um resgate histórico da
sua instauração desde a modernidade, por Descartes, até a nossa contemporaneidade. Cita a
mediação entre as modalidades sensíveis e abstratas do conhecimento, a emancipação do
homem do domínio dos fatos e dos limites das aparências e o oferecimento do prazer à
existência humana através do exercício criador.
A ampliação da atividade imaginativa compreende desde sonhos e fantasias até o
pensamento simbólico e utópico.
Neste texto Célia trabalha, principalmente, com as noções de fantasias e de pensamento
utópico, procurando distingui-los. Ela afirma que o pensamento utópico é utilizado para se
referir ao uso intencional e consciente da atividade imaginativa de uma maneira que com ele
se possa organizar ações, projetos, com a finalidade de explorar as possibilidades do
presente em projeções futuras, passíveis de concretização ao envolver tanto os aspectos
pessoais como os sociais. Por outra parte, a fantasia se refere à atividade imaginativa
espontânea, sem o controle de uma intencionalidade consciente” (p39).
229
Célia analisa também a importância da atividade imaginativa para a investigação
científica, ou seja, para a produção do conhecimento. Para ela, a atividade imaginativa
funciona como uma veia por onde circula o sangue das possibilidades, o germe de novas
formas de conhecimento, altamente estimulador da curiosidade humana. A imaginação
ofereceu ao homem meios de responder aos riscos que o ameaçavam, dilatando as
possibilidades de sobrevivência e de vida, mas também o prazer e o encantamento
indispensáveis para o surgimento e o exercício das ciências, das artes, das técnicas.
Célia nos alerta para o fato de que no setor educativo as novidades teóricas demoram
muito para se entranharem nos processos de ensino e aprendizagem, enquanto que, na área
das ciências exatas e tecnológicas, as descobertas são absorvidas pelos processos de formação
mais rapidamente. Por tudo isso, ela conclui que as relações entre ciência e educação têm
muito que caminhar.
Neste texto, Célia procura discutir, também algumas variáveis histórico-culturais,
presentes no nascimento da nossa nação, que estimularam o emprego enfático de explorações
fantasiosas, traduzidas em promessas grandiosas que pareciam compensar os vazios e as
ausências de instituições. Assim, alguns pensadores, como Anísio Teixeira identificaram
poderosos abismos entre os valores declarados e a prática educacional.
Portanto é preciso por em prática uma avaliação processual. Nesse sentido, os planos
educativos são tanto mais fantasiosos quanto mais distantes estão da sua realização efetiva.
Para Célia, uma das maneiras de diminuir a esperança de um povo na educação é impondo
metas suficientemente grandiosas para que o esforço por alcançá-las conduza inevitavelmente
à frustração. Por isso, pensa que a proposição de objetivos mais honestamente modestos e
abertos poderia levar a obtenção e a superação das metas desejadas, recompensando os
esforços com a aproximação dos portos demarcados, para novos arranjos e avanços.
Em relação ao poder dos métodos educativos, acredita-se que eles sejam a chave para
eficácia do ensino. Mas, por trás dessa supervalorização dos métodos está a fantasia de uma
educação que insiste em distanciar-se de seus sujeitos e a desvalorizá-los. Para Célia, os
métodos são tanto mais eficazes na medida em que respondem às necessidades do educador e
do educando, em suas realidades históricas. Porém, a América Latina em vez de encontrar
nos novos métodos uma forma de progresso e libertação, assume uma nova forma de
colonialismo: o colonialismo tecnológico” (p.50).
a fantasia da imprescindibilidade dos conteúdos educativos diz respeito à imposição
dos mesmos conteúdos tomados como padrão, às populações geográfica e culturalmente
distintas. Os interesses das comunidades minoritárias em poder não são levados em conta.
230
Neste artigo, Célia dialoga com seu tempo, desmistificando a idéia da supremacia da
ciência, habitando um mundo invulnerável aos erros, e em correspondência com um mundo
que correspondia a sua apreensão unívoca pelo intelecto e, assim descolada das ciladas da
vida e das ambivalências da imaginação. Assim, reconhecendo o processo imaginativo como
eminentemente humano, Célia sublinha a necessidade de uma imaginação criadora, capaz de
forjar indivíduos e sociedades críticas, capazes de propor e negociar suas próprias escolhas.
Por outro lado, Célia resgata a idéia de utopia na educação, compreendendo-a como a
possibilidade humana de, a partir das possibilidades do presente, imaginar outras realidades,
num processo orientado e consciente, com projeções para o futuro. Utopia resgatada como
ação construtiva de desejar e criar.
3.3.2 A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/ Falklands (1982)
Publicado em 1982, na Revista da Faculdade de Educação da UFF, nesse artigo Célia
Linhares discute o importante papel exercido pela escola durante a crise Malvinas/Falklands
para garantir a soberania da Argentina sobre o arquipélago.
Para introduzir o tema, conceitua o dogmatismo científico e, o que seria seu
correspondente pedagógico, o autoritarismo docente. Compreendendo a ciência em seu
genuíno movimento de superação contínua de aproximações do fenômeno, ampliação
permanente de campos de verdade e aceitação provisória das explicações sobre a vida (p.67),
a postura dogmática estaria em dissonância com tal perspectiva. Com relação ao processo
escolar, o autoritarismo docente impediria a própria ação do aluno de auto conhecer-se e
conhecer o mundo de forma autônoma.
Para Célia, ensinar uma verdade científica significa assumir uma postura
fundamentalmente oposta a defender um dogma científico” (p.67). Para ela, o processo
escolar se torna ilegítimo quando a escola procura veicular dados e “fantasias” que ocultam a
realidade. Célia nos alerta também, para o fato de que a autoridade docente perde sua
especificidade quando atua impondo pré-conceitos e pré-juízos que levam os alunos a auto
estranharem-se como ser humano, promovendo a paralisia de sua reflexão, como ação e
pensamento.
Célia vê a questão do autoritarismo docente na América Latina a partir de dois enfoques
principais: Primeiro, revelando-nos que as relações de poder, estruturadoras da ordem social,
são estabelecidas por uma elite elaboradora das normas de convivência que seleciona e
distribui o saber e os bens materiais. Para Célia, essa elite, no que diz respeito ao saber,
231
transfere à escola, como instituição e às professoras, a tarefa de difundir as normas por ela
estabelecidas” (p.68); Segundo, nos despertando para o fato de que as nações latino-
americanas pouco têm investido em programas científico-tecnológicos, por todas as
subalternizações concretizadas. A escola fica longe das ciências e dos impactos de uma
elaboração mais comprometida com nossa realidade.
Visando exemplificar melhor o autoritarismo docente na América Latina, Célia utiliza
o episódio ocorrido no Malvinas/Falklands, recuperando uma conjuntura histórica em que se
deu a crise. De acordo com os aspectos históricos abordados por Célia, percebe-se que as
Ilhas Malvinas sempre constituíram um território muito disputado, principalmente, pela
Argentina e Inglaterra, ambas visando manter a sua hegemonia sobre a região através,
sobretudo, de negociações diplomáticas.
Diante deste contexto, Célia procura nos mostrar como a Argentina manteve a sua
soberania sobre as Malvinas e como a escola acompanhou todo esses trâmites, plantando no
alunado dogmas de alta densidade afetiva, nas diferentes etapas de escolaridade, entrelaçando-
se em graves momentos políticos com atuações de caráter totalitário. Entre suas principais
formas de atuação, pode-se citar: Os ensinamentos escolares que enfatizavam o envolvimento
dos cidadãos na reconquista e na defesa das Malvinas; seus reforços aos meios de
comunicação que veiculavam planos e estratégias militares para retomada do arquipélago e,
além disso, a atuação da escola que enviava cartas dos alunos para os soldados com o intuito
de conscientizá-los da função patriótica que exerciam ao defenderem, sobre quaisquer
circunstâncias, os territórios insulares.
Devido aos aspectos abordados pode-se dizer que Célia imprime uma certa
originalidade a este texto ao confrontar os aspectos históricos que levaram a crise das
Malvinas/Falklands com questionamentos que nos instigam a refletir sobre o papel
desempenhado pela escola diante de tal fato, ampliando a reflexão sobre as interconexões
entre educação e sociedade e vendo de forma crítica o papel do professor e da instituição
escolares as terríveis conseqüência de seu submetimento cego a qualquer instância que se faça
controladora, tal como aconteceu com a Igreja, com o Estado e como vai acontecendo com a
dominação do mercado.
Seu texto possui caráter formativo, informativo e conscientizador que busca revelar as
questões pedagógicas que estão por trás de determinados fatos históricos e sociais. Tudo isso
é tratado por Célia, a partir de um universo vocabular bastante rico, amplo e original, cujos
termos e expressões mais comuns são: unicidade, alunado, custodiar, acalentar.
232
A esperança no papel formativo da escola é ressaltada. A aposta de que os
conhecimentos das dimensões históricos favoreça a uma contextualização do vivido é mais
uma vez afirmada.
3.3.3 A educação e suas relações com as Identidades Culturais na América
Latina (1983).
Neste artigo, publicado na Revista da Faculdade de Educação da UFF em 1983, Célia
Linhares aborda os abismos entre a Identidade Cultural oficial e as Identidades Culturais
oficiosas na América Latina e, as relações entre ambas e sua repercussão no processo
educativo.
De acordo com Célia, as instituições oficiais utilizam variados instrumentos para nos
impor determinadas marcas em cada cultura. O grau dessa imposição, no entanto, pode ser
mais ou menos intenso conforme a representatividade de cada sub cultura na estrutura de
governo assumida pelo Estado e de sua força como movimento social. Porém, Célia ressalta
que qualquer que seja o nível das imposições, é possível constituir grupos de resistência que
não a aceitam.
Nesse processo de relações hegemônicas o Estado utiliza-se da instituição escolar para
reforçar a Identidade Cultural oficial. Para Célia “dado ao seu caráter contraditório, a
educação ao transmitir valores, parâmetros, modelos e informações possibilita várias
combinações e arranjos de conduta, ou seja, distintas formas de organização até aquelas
interpretáveis como desorganização” (p. 126).
Célia nos ajuda afirmando que a expressão “Identidade Cultural” tem sofrido várias
distorções que acabam por retirar-lhe sua especificidade, isto é, o caráter polissêmico que tal
termo carrega.
De acordo com a autora a Identidade Cultural não nos remete a um passado longínquo
e isolado do presente, ela reflete aquilo que acontece em um determinado tempo.
Partindo do pressuposto de que nada existe sem uma identidade que o caracterize,
Célia nos mostra que o processo educativo também possui uma identidade, na medida em que
garante a continuidade de um determinado tipo de sociedade, mas que os processos de
identidade também são feitos de contradições.
A partir do significado dos termos “identidade” e ‘cultura’, Célia chega a uma
definição para a expressão Identidade Cultural. Entendendo-a “como a estrutura de expressão
de cada grupo social, através da qual, ela manifesta suas diferentes cosmovisões e modos de
233
relacionar-se com a vida, tendendo a satisfazer cada vez mais completamente os distintos
aspectos de suas necessidades, na busca de um sentido para sua existência” (p. 130).
Fazendo relações entre a Identidade Cultural oficial (imposta) e as Identidades
Culturais oficiosas (submetidas) Célia não fica, em nenhum momento, indiferente às enormes
desigualdades, pois numa sociedade em que 25 % da população é analfabeta, e onde a
legislação encontra na forma escrita sua maneira mais usual de divulgação, um evidente
conflito entre o exigido pela lei e as reais possibilidades de um amplo segmento da
população” (p.131).
Célia admite que, embora em alguns momentos a Identidade Cultural oficial e a oficiosa
possam parecer separadas, em outros, elas se interpenetram. Cabe ressaltar que a duplicidade
de Identidades Culturais, tal como a vivemos hoje, remonta à conquista da América Latina
quando uma nova cultura se sobrepôs às originárias.
Deste modo, nos alerta, também, para o fato de que a escola, modelada pela
Identidade Cultural oficial, atua distribuindo um saber classificatório que não se fundamenta
nem nos direitos, nem nas diferenças individuais e nem nos talentos pessoais e, sim, na
posição ocupada por cada um na pirâmide social, a despeito do que tanto a pedagogia
meritocrática anuncia e proclama.
Partindo de uma inconformidade com esse tipo de cultura desigual, Célia não aceita
uma escolarização que trancafie as aprendizagens escolares num corredor por onde são
reforçadas as reproduções de uma sociedade concentradora, mas afirma que importa que o
aprender leitura e escrita se possibilite saberes como ações, “onde as classes discriminadas
terão a oportunidade de ler e escrever sobre suas próprias possibilidades de realização,
apropriando-se de diferentes instrumentos que a cultura contemporânea lhes oferece para
seu auto-conhecimento, sua auto- transformação e sua auto-definição” (p. 133).
Através de um estudo sobre os diversos aspectos pedagógicos presente no processo
educativo de variados países da América Latina, Célia nos sublinha modalidades que
expressam como nossa Identidade Cultural oficial age modelando e penetrando em nossas
estruturas produtivas, econômicas, escolares, etc.
Afirma que, ainda que existam barreiras entre a Identidade cultural oficial e as
Identidades Culturais oficiosas, elas não são intransponíveis. Para ela, a Escola Pública pode
ajudar nesse sentido. Para tanto ela precisa ser capaz de veicular um saber que retrate e
interesse aos nossos diferentes grupos, particularizando-os pelo seu auto-conhecimento e
auto-crítica, possibilitando uma articulação de ida-e-volta, onde o entendimento do nosso
possa nos introduzir ao universal e nos levar a contribuir a ele” (p.140).
234
Vale ressaltar que, neste texto, Célia dialoga com seu tempo apontando aspectos sociais,
culturais e escolares de um estudo realizado em vários países latino-americanos. Célia
acredita no poder da educação de “abrir picadas” nas barreiras existentes entre as Identidades
Culturais oficiais e oficiosas. Este assunto é tratado por Célia de uma maneira bastante
peculiar utilizando-se de um estilo textual próprio para trabalhar a relação existente entre
essas Identidades Culturais e a educação. Em relação ao universo vocabular de Célia, é
possível destacar os seguintes termos: assenhorar, interstícios, alunado, animosidade,
brechas, custodiar, grupais e sinistralidade. Tais termos são utilizados, principalmente, para
revelar aspectos da realidade social e do ambiente escolar.
3.3.4 La identidad cultural y el processo de educacion en la América Latina –
tesis de Doctorado em Ciências de la Educación, Universidad Nacional de
Buenos Aires (1983).
As questões que Célia aborda em sua tese de doutorado orientaram muito de sua
pesquisa na década de 80. O objetivo principal dessa tese foi discutir a Identidade cultural
(IC) latino-americana e o caldo de fraturas, como formas de opressões e submissões que a
forjaram, bem como as influências da IC nos rumos desenvolvimento educativo que foi nos
separando por hierarquias e desigualdades que se acumularam.
A falta de atenção, de consciência da identidade cultural latino-americana é para Célia
um dos aspectos que dificultam o desenvolvimento educativo, científico e social da América
Latina. O processo educativo copia os modelos estrangeiros.
Reportando-se à história da constituição de nosso país, dominado e gerido pelos
conquistadores/colonizadores, Célia reflete sobre os valores auto-depreciativos que vão sendo
inculcados via educação ao povo brasileiro. Ser negro, índio, pobre, mestiço é ser menos
valioso, menos importante, é estar fadado a posições sociais de subalternidade. Reconhece
também as estratégias políticas com vistas a facilitar a exploração material e humana
utilizadas no processo de formação religiosa do Brasil-colônia.
Nesta direção, a tese analisa as relações entre a identidade cultural latino-americana e o
sistema educativo, percebendo as influências entre essas duas instâncias. Célia acredita que
um sistema educativo que não se harmoniza como a estrutura vital de seu país enquanto
natureza e com os processos culturais, constitui-se em um processo imposto, uma ordem
artificial que ao fim e ao cabo não resulta em benefício para nenhum dos componentes da
sociedade.
235
Para explorar esse assunto, Célia levanta distintas ordens de questionamentos de ordem
filosófica, pedagógica e sociológica: Indaga-se sobre ao funcionamento das estruturas
escolares de nosso país e das pretensões das mesmas; sobre os grupos étnicos e as classes
sociais que tem acesso à escola e em que medida é garantida a permanência nelas; sobre as
populações (entre rurais e urbanas) que têm maiores possibilidades de uma preparação
profissional; sobre como as classes interdependem do mundo do trabalho e da economia e do
mundo da educação e da escola em nossa região; sobre a linguagem usada pela esfera escolar
e uma série de outras questões. Para Célia a estrutura escolar latino-americana não reflete nem
contribui para a busca e elaboração da identidade cultural de nossos povos. A partir da
reflexão sobre esse problema, faz algumas sugestões e recomendações como tentativa de
busca de solução para o problema da formação da identidade cultural.
Célia define Identidade cultural como tudo aquilo que constitui a peculiaridade de um
povo, expressos pela linguagem. Toma a linguagem de modo mais amplo, onde a língua é
uma das expressões da cultura. Propõe também a consideração dos valores universais que se
expressam de diferentes formas nas diferentes culturas e sub-culturas próprias de cada grupo
social, como o belo, a justiça e etc.
Célia considera a vida, a realidade em seu sentido mais amplo, como a fonte de todos os
saberes e a maneira como os elaboramos indispensável para uma melhor educação que possa
aspirar embeber-se na cultura, em movimento permanentes de crítica e ampliação.Por isso
mesmo, valoriza os saberes populares, reconhecendo interdependências entre a Identidade
Cultural e os saberes de um povo, com suas lógicas e formas específicas de legitimação.
Acredita que por não termos consciência de quem somos, como grupo humano nacional
e regional, bem como do que necessitamos, tomamos como referência as descobertas e
conceitos da ciência e da tecnologia sem nos advertirmos dos sérios prejuízos econômicos e
psicológicos que tal atitude acarreta a nossa gente. Afirma que a falta de uma ciência e
tecnologia endógenas, focadas na identidade cultural de um povo, gera uma produção de
saberes desvinculada das necessidades e gostos populares, que o agride de forma sutil, mas
extremamente violenta e perversa.
Afirma, também, que a defasagem entre a criação e a cultura pode ampliar-se quando
as técnicas que são construídas para responder a um contexto específico são transportadas e
usadas em outro que é distinto. A transferência de modelos de desenvolvimento serviria para
agravar nossos velhos problemas e desenvolver idiossincrasias nocivas ao desenvolvimento
de nossa identidade cultural, que a fratura, produzindo vantagens para aqueles que as
propõem, gerenciam e defendem.
236
Para que os rumos tomados pela educação garantam uma indispensável coesão social e
algum grau de felicidade pessoal que responder às necessidades e aos valores encarnados
pelos subgrupos, constituintes da identidade cultural de um povo. Portanto as metas
educativas são intransferíveis e hão de ser o resultado de um processo de descobrimento e
elaboração do que é um povo, do que quer ser e do que pode realizar. A identidade cultural
deverá representar todos os grupos que constituem a sociedade e sua tradução oficial deverá
manter-se no contato com sua fonte: as necessidades, desejos e valores de seu povo. Sem isso,
sobrevirá a resistência e ressentimento contra versões e práticas falseadoras dessas definições
sociais e populares.
Analisa os processos de colonização da América Latina, identificando as influências
dos países colonizadores e suas culturas. A definição do que devemos produzir através do
interesse estrangeiro pertence a mais arraigada tradição conformista na América Latina. Estes
são portanto aspectos que tem mantido sujeitada a evolução cultural de nosso povo em relação
a seus próprios interesses, afirma Célia.
A partir de um estudo meticuloso da constituição dos países Latino Americanos, pela
reflexão das condições de colonização que perduram garroteando o pensamento como ações
coletivas e, portanto, com larga potência educadora, a tese de Célia, em última análise, lança
um olhar sobre a formação de nossa identidade cultural, propondo que para pensarmos uma
educação a serviço de todos é preciso nos conhecermos melhor, compreendermos tendências
opostas e elaborarmos sistemas de educação que não temam conflitos ao acolher e discutir as
reais necessidades da população.
3.3.5 A Interdisciplinaridade na Psicopedagogia (1986).
Este artigo foi publicado na Revista da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense, em 1986. Nesse texto, Célia contrapõe-se a uma concepção de equipe
multidisciplinar que fragmenta os elementos em partes estanques, ao estilo taylorista,
organizando o trabalho a partir da justa posição de especialistas que garantam a eficiência da
produção.
Para a autora, o conceito de interdisciplinaridade que precisa orientar a composição das
equipes interdisciplinares das escolas, não pode evadir-se de um compromisso com a
totalidade do fenômeno, que no caso das ciências humanas é a própria sociedade, se
revestindo de aspectos éticos que se endereçam a uma intervenção transformadora.
237
Nesse sentido, enfatiza a possível contribuição de uma Psicopedagogia que se oriente
por essa concepção como uma contribuição política capaz de ressoar nas condições de
aprendizagem e de vida de todos os estudantes, principalmente, os das classes populares.
Analisa a importância de considerarmos o contexto social para compreendermos as
dificuldades escolares das classes subalternas, forjando metodologias que qualifiquem e
valorizem a maneira própria de conhecer dos estudantes das classes populares.
Para tanto, é preciso que a escola brasileira conheça melhor as diferentes formas de ver
o mundo e relacionar-se com a vida dos segmentos mais pobres de nossa sociedade, bem
como os aspectos sociais e culturais que afastam as crianças da escola. Célia critica a
atribuição das dificuldades escolares, que podem ser explicadas por todo um contexto, às
debilidades patológicas, despolitizando e separando os fatores sociais que contribuíram para
sua geração e desenvolvimento.
Nesse sentido, a psicopedagogia poderá contribuir para as populações de estudantes
que penetram nossas escolas sem aprender, se articular os fenômenos psicológicos em
cumplicidade com a dinâmica das relações sociais, políticas, econômicas e culturais, ou seja,
com o todo do processo contraditório e conflitante com que se fazem as sociedades,
instigando o entendimento e a intervenção. Urgência que Célia considera epistemológica,
política e ética.
3.3.6 Os protagonistas da Pedagogia Escolar: Suas convergências e divergências
(1987)
Nesse artigo publicado na Revista Educação & Sociedade, em 1987, Célia enfatiza o
papel dos diferentes atores escolares para a transformação pedagógica. Os protagonistas da
pedagogia escolar participam como os demais profissionais ao confirmarem ou transformarem
os seus papéis nesse jogo social, que define a hegemonia política.
Ao questionar quem são os protagonistas da pedagogia escolar, é preciso saber que tipo
de sociedade desejamos, para implementar ões que correspondam à escola que
necessitamos, como um dos pontos de sustentação dessa marcha transformadora.
Os professores, com o trabalho considerado o mais exigente em termos de esforços,
nem sempre obtém o reconhecimento que conseguem o diretor, o orientador e o supervisor.
Ao definir os protagonistas na escola, podemos classificar em duas posições: a da
homogeneização das funções e da hiperespecialização das tarefas pedagógicas.
238
Ao homogeneizar os professores, não nos damos conta que existem diversos veis de
preparação profissional entre estes, que vai desde o que não tem o curso primário completo
até os que têm doutorado. na questão da hiperespecialização é possível percebermos não
a fragmentação do processo educacional, mas a sua tecnificação, que ao especificar as tarefas,
distancia-as uma das outras, além de reduzir o exercício profissional apenas ao cumprimento
de deveres.
O pedagogo escolar, antes de ser orientador, supervisor ou administrador, atuando
profissionalmente, deve ser considerado como um cidadão e participar de atividades que vão
repercutindo em sua forma de encaminhar o processo de aprendizagem, vigiar a sua
correspondência às exigências da ciência e promover sua adequação às necessidades e
expectativas sociais e políticas das maiorias. Esse ator escolar é um intelectual que colabora
com a organização de sua cultura através do seu trabalho dentro e fora da escola.
É preciso atentar para que lado os profissionais da educação vão protagonizar a
pedagogia escolar: para transformação pedagógica, com conseqüências sociais e políticas ou
para o continuísmo?
Nesse sentido, uma prática transformadora precisa integrar os diversos protagonistas
escolares que, embora tenham formações e atribuições distintas, podem e devem cooperar na
construção de um projeto coletivo de escola popular.
3.3.7 A escola e seus profissionais: tradições e contradições (1988, 1997)
O texto que se segue baseia-se na 2ª edição revista e atualizada feita pela autora.
Na apresentação, Célia esclarece seu título: Tradições e contradições. Afirma que uma
das faces da tradição escolar privilegia a escola como lugar para poucos, os ricos e as
chamadas classes intermediárias da sociedade, difundindo vulgarmente a idéia de que
fracasso escolar dos pobres é algo natural, bem como de que a educação escolar, em sua
complexidade maior, não lhes tem serventia. A autora afirma que a exclusão das camadas
populares das escolas vem sendo determinada concreta e historicamente pelos interesses
concentradores de bens e capitais que ainda dominam nossa sociedade, decorrentes de uma
intrincada rede de relações sociais, em permanente elaboração nas diferentes épocas.
A contradição presente na escola é, que se por um lado ampliaram-se as
oportunidades escolares, as escolas por sua vez, não atendem aos reais interesses das classes
239
populares, tendo em vista seus objetivos elitistas. Assim, o que temos é um ensino de
qualidade para alguns e ensino de faz-de-conta para a maioria.
Célia se reporta às contradições presentes na escola, tendo em vista que, se por um
lado a escola pública, como instituição oficial é dirigida pelo governo, representando a classe
dirigente que lhe impõe funções, demarca salários, autoriza programas, por outro, os
profissionais da escola não se dissolvem na obediência cega a essas delimitações e exercem
seu trabalho profissional a partir de uma articulação com a vivência de sua cidadania, assim
como os alunos das classes populares, como maioria que são, representam uma força da maior
importância. Poder dominante e poder latente configura a contradição que ela propõe ser
analisada.
A face hegemônica difundida pela tradição oficial, acumulou teorias e estratégias de
ensino em correspondência a uma concepção de sociedade favorável a sua permanência,
divulgando-a como a única correta para a realização do processo de ensino-aprendizagem.
Aquilo que é tido como o “verdadeiro”, o “certo”, promove a repetição, subtraindo os
movimentos inovadores do presente. Flagrar as contradições é importante pois ajuda a
promover rupturas para construir-se uma pedagogia capaz de abrigar e promover práticas e
teorias sociais que encaminhem a emancipação da sociedade brasileira”.
“A tradição de nossa escola está grávida de contradições que contém germes de
continuidade como as sementes da transformação”.
Nesse período de transição democrática, a problemática da formação do profissional
da escola deve ter um espaço privilegiado de discussão dentro das questões relativas à
pedagogia escolar. Divulgar o que foi discutido em diferentes eventos sobre esse tema é o
objetivo desta publicação, afirma Célia.
No primeiro capítulo, “Quem é esse, o pedagogo?”, Célia aborda a questão da
preparação do pedagogo, defendendo que uma formação que simplifique os fenômenos,
deriva em reduções que estreitam a compreensão e a intervenção da realidade. Portanto,
compreende que a formação do Pedagogo precisa potencializar três dimensões: sociológicas,
epistemológicas e pedagógicas.
Refletir sobre a identidade do pedagogo faz-se necessário, tendo em vista o momento
de transição vivido na década de 80, quando a crítica ao tecnicismo e à concepção
reprodutivista da escola, convocaram a pensar novas alternativas. Faz-se necessário resgatar o
potencial pedagógico-escolar, partindo da compreensão crítica de seus limites
contextualizados e definindo sua função como a de contribuir para a realização da sociedade
humana.
240
A dimensão sociológica diz respeito às relações entre estado e sociedade.
Historicamente, os movimentos de escolarização pública têm sido sustentados pela dinâmica
da reivindicação social, que modela a função de ensino-aprendizagem que compete à escola.
No Brasil, uma série de fatores tem confluído de modo a impedir a participação social no que
diz respeito à escola. Em nossa sociedade, um grupo minoritário definiu e impôs critérios de
convivência social a toda uma maioria e, nesse contexto, a escola fragilizada tem sido
influenciada por teorias transplantadas que muitas vezes não se adequam à realidade social.
A expansão da escola brasileira nas últimas décadas, sem a necessária participação
social, transferiu para dentro da escola a discriminação que antes dominava os processos
seletivos que definiam o acesso ao escolar. Tal discriminação se evidencia via autoritarismo
escolar, que por sua vez, reforça o autoritarismo político, dificultando as tentativas de
participação social na escola. Desse modo, conhecer as demandas das camadas populares, que
têm sido silenciadas por meio de discursos autoritários, é importante para compreendermos o
tipo de educador necessário e desejado por aquelas camadas.
A dimensão epistemológica, trata das influências teóricas que vêm sustentando um
modelo ideal de pedagogo entre nós. uma dupla influência entre os movimentos sociais e
as chamadas ciências humanas onde as expectativas sociais são recortadas pela própria
elaboração científica. Dentre as influências teóricas, temos a tendência da escola tradicional,
do escolanovismo, do tecnicismo pedagógico e das teorias crítico-reprodutivistas.
Para as teorias crítico-reprodutivistas, o desafio que se colocava era o de pensar um
pedagogo cujas características da competência profissional sócio-política e humana
apontassem para novas possibilidades no horizonte pedagógico.
A dimensão pedagógica foi abordada, estudando as relações entre os conceitos da
educação e do que é ser pedagogo e as relações entre os cursos de pedagogia e as
universidades. No caso dos conceitos difundidos pelo ideário escola novista, Célia acredita
que havia até aquela época, uma repercussão nos cursos de Pedagogia, expressa em currículos
que absorviam todas as matérias relacionadas à educação, numa acepção social e pessoal,
como se a educação fosse exclusividade de um setor profissional. Célia problematiza tal
tendência, questionando se o pedagogo seria o educador profissional ou um tipo de educador
com uma função própria. Considerando a complexidade da educação, que envolve a dimensão
sociológica, econômica e psicológica, não seria possível circunscrevê-la a um setor
profissional. Assim, o desafio da educação consistiria em ser concebida como um espaço de
conjunção de toda a sociedade. No que tange às universidades, as ciências pedagógicas e a
241
formação básica do educador deveria constituir a base comum que habilitaria todos os
profissionais de nível universitário para o exercício de educar.
A formação do pedagogo, como a de todos os profissionais, supõe uma estrutura
humana formada pela competência pessoal e política, que o dispõe a comprometer-se com o
processo de humanização, social e pessoalmente. Compromisso humano que legitima a
preparação para o exercício profissional, por implicar em movimentos de escolhas, em
mergulhos nas multiplicidades do social em que seja possível experimentar a esfera da
liberdade, além dos limites burgueses. Supõe também o uso do acervo de informações
socialmente organizadas, em prol do benefício que esta proporcionaria. Nessa perspectiva, a
Universidade prepararia seus profissionais como elementos capazes de compreender as
diferenças culturais e sociais, incentivando aos universitários a perceberem as implicações
ético-epistemológicas do seu campo de saber.
Nesse sentido, que se delimitar mais claramente o campo de conhecimento e a
prática pedagógica do pedagogo, deixando de atribuir a esse profissional a função
“milagreira”, reconhecendo os limites dos poderes da educação. O pedagogo, como um
intelectual, cujo espaço de atuação implica na dimensão teoria e prática como inerentes,
precisaria estar identificado com as funções da escola, além de estar preparado
cientificamente para empreender um processo educativo sistemático e durável.
Por fim, Célia ressalta as perplexidades e encruzilhadas atuais. Dentre eles, o divórcio
teoria e prática aparecem como uma fragilidade da pedagogia. Nesse sentido, a articulação
entre essas duas esferas só será factível, ela afirma, quando uma e outra estiverem referidas ao
contexto sócio-cultural. No caso brasileiro, o fato de importamos teorias inadequadas para
nossa realidade, reflete a dependência de nosso país, reforçando os atrasos para nossa
educação.
Célia sublinha também a necessidade de rever as licenciaturas, evitando a separação
entre o conteúdo e a formação pedagógica. O estágio precisaria, ir confrontando e articulando
o teórico e o prático, constituindo-se como um campo estimulante para a compreensão do
fenômeno educativo e para sua reflexão crítica. também necessidade de uma perspectiva
interdisciplinar, que rompa com a tendência fragmentadora dos especialismos. Fecha seu
artigo discutindo a polêmica da época que consistia na permanência ou não do curso de
Pedagogia. Grupos se dividiam sobre essa questão, parte defendia a especificidade do curso e
sua existência e, outros a extinção do curso e o incremento da Pós-Graduação como o espaço
destinado a todos os graduados que se interessavam por Educação.
242
O segundo capítulo, Os protagonistas da pedagogia escolar: suas convergências e
divergências, discute o desafio de não fragmentação do trabalho escolar, diante das
diferentes funções e especializações dos profissionais da escola. Compreende a necessidade
de unidade e integração dos esforços com vistas a contribuir para uma escola que trabalhe a
favor da emancipação das camadas populares do Brasil.
A escola é protagonizada, ou deveria sê-lo, não apenas por aqueles que atuam em seu
interior (professores, diretores, orientadores, pais, alunos etc.), mas também pelos políticos
profissionais, legisladores e por toda a sociedade ativamente organizada. As tensões entre as
forças e poderes que se cruzam entre as diferentes esferas que protagonizam a escola
traduzem sua complexidade.
Nos distintos momentos históricos das igualmente diversas sociedades, existem
demandas por um determinado tipo de educador, que corresponde aos vazios sociais do
momento e que são capazes de anunciar e implementar os seus projetos. Também se fazem
presentes, movimentos que representam conflito com as tendências mais hegemônicas,
polarizando presente, passado e futuro e ganhando visibilidade na consciência social. Traduz-
se nessa dinâmica, o movimento permanente e contínuo dos diferentes papéis requeridos pela
sociedade em cada época. Nesse sentido, interfere nessa dinâmica a correlação social de
forças que define a posição, sempre provisória, do poder político” (p.50).
Depende, também, dos protagonistas da escola a leitura do momento em que se vive e
o mapeamento de nossos desejos e projetos educacionais. Nesse sentido, cabe ao pedagogo,
coordenar o projeto de escola que deseja e fazer a crítica ao Estado em matéria da educação,
posicionando-se em prol de uma escola para todos, comprometida com o acesso aos bens
culturais da humanidade à toda a sociedade. Assumir esse compromisso é romper com
continuísmos que excluem as camadas populares da escola, numa perspectiva
transformadora. Uma educação que se paute no desejo de transformar, precisa resgatar a
identidade cultural, distorcida pelas condições materiais e simbólicas de vida das populações
empobrecidas, que sem auto-estima vêem dificultado a conquista do conhecimento escolar.
Instigar a participação do homem enquanto cidadão, elucidando leis da natureza e da
convivência social é outra tarefa fundamental dos professores, orientadores, diretores das
escolas.
Os profissionais da escola situam-se em meio às correlações de forças entre as classes
dirigentes e as dirigidas, afirma Célia. Como funcionário, é vigiado e controlado, mas
também, graças a esse vínculo, convive internamente com o sistema e pode, portanto,
contestá-lo a partir de seu interior, com a perspectiva de quem tem o conhecimento de dentro
243
da escola. Colocando-se como cidadão, o professor poderá, portanto, agir politicamente,
conjugando uma prática pedagógica eficiente a uma ação política da mesma qualidade” (p.
52).
Célia considera que uma fragilidade da Pedagogia que pode ser constatada pela
dificuldade em construir e definir seus rumos e seus campos de atuação. Atribui essa
fragilidade ao fato do campo da educação ser muito amplo e também por tudo isso, muito
permeável ao senso comum, com seus clichês, facilitando que as confusões, divergências
penetrem nas matrizes conceituais pedagógicas, dissolvendo suas fronteiras. Defende que é
necessária uma vigilância epistemológica e política para que a Pedagogia, enquanto teoria e
prática, possa estabelecer uma correspondência com os grupos humanos aos quais se destina,
em suas urgências e desejos.
Célia aborda a hierarquia de valoração dos profissionais da escola em que o professor
de sala de aula é o que tem menos prestígio, e o diretor, o orientador e o supervisor obtém
mais reconhecimentos e vantagens.
Problematiza, ainda, os riscos da hiper-especialização que podem fragmentar o
processo educacional, que ao especificar lugares distancia-os, uns dos outros, reduzindo o
exercício profissional ao cumprimento de deveres ditados pelo poder central, dificultando a
construção de um projeto coletivo. O discurso da hiper-especialização pode acabar separando
e aprisionando o profissional numa racionalidade técnica, correndo o risco de ignorar os
problemas conjunturais e estruturais da escola e da sociedade. Ressalta também que, a ênfase
nas tarefas, típica do projeto tecnológico, subtrai da escola sua vinculação com a esfera do
público, cujos espaços de discussão e de convivência social alimentam a escola e delineiam
seu projeto cidadão.
Célia encerra seu artigo propondo a definição do papel do pedagogo como a daquele
que coordena as definições dos rumos e trajetórias para que a aprendizagem escolar se dê,
simultaneamente ensinando e produzindo o saber organizado. Tal manejo supõe a articulação
do saber especifico sobre a escola com o exercício da cidadania; intenção e ação concreta;
teoria e prática.
O capítulo 3 Da educação à intelectualidade pedagógica: trajetória na formação do
pedagogo”, parte do conceito de pedagogo como aquele que tem a capacidade de impregnar
de sentido, construído coletivamente, suas atividades educacionais” (p. 68), Célia define
educação como sendo um processo dotado de intencionalidade, que não é neutra mas está
conectada com o projeto de sociedade com o qual se afina. Defende que, a educação é um ato
político, pois envolve o poder de modelar e alterar condutas humanas. A Pedagogia, ao captar
244
e orientar a educação o faz de acordo com uma direção. Célia defende que se assuma a
direção crítica à organização da sociedade, que para ter conseqüências concretas, exige a
participação coletiva.
Aliada à concepção de intelectual marxiana, que propõe uma saída do filósofo de sua
“torre de marfim”, Célia compreende que não basta à filosofia interpretar o mundo, mas sim
articular teoria e prática, assumidos como pólos interdependentes para continuamente nos
expor-nos ao teste que é a vida, com suas ações e atuações. Traz também a idéia gramsciana
de que todos os homens são filósofos, embora haja limites e características entre essa
“filosofia” espontânea, própria de toda a gente, e a filosofia-ciência, que deve ter seus canais
de comunicação com aquela, mas que a supera, permanentemente.
O intelectual/filósofo percebe-se historicamente à medida que intervêm no conjunto
de relações sociais, não aceitando de fora, mecânica e passivamente, a produção da história.
Nesse sentido, o intelectual é aquele que está comprometido politicamente com o coletivo,
visando a compreensão e a participação na dinâmica social. Participando da massa, o
intelectual orgânico (conceito de Gramsci) elaborará os problemas e princípios vivenciados
pela gente simples, conferindo-lhe maior densidade de conexões, sem perder seus desejos e
objetivos primordiais, afirma Célia.
Com relação à formação da intelectualidade pedagógica brasileira, Célia preconiza
que o pedagogo intelectual conheça sua realidade local, nacional e internacional. Para tanto, é
necessário uma sólida formação histórica, que inclui uma dinâmica crítico-compreensiva.
Além de conhecer os traços de seu povo e suas demandas, é necessário definir a que
necessidades sociais devem se articular, privilegiando aquelas que contribuam para a melhoria
das condições de escolarização da população empobrecida, aliadas a educação pública, de
qualidade. Esta vivência e este conhecimento da historicidade autoconstitutiva de nosso país
mostraria ao intelectual o poder e os limites das tradições acumuladas versus o poder, e as
fronteiras da capacidade interventora do homem, consideradas de forma individual e
coletivamente (p. 77).
É também necessária ao intelectual pedagógico a formação científico-pedagógica,
uma vez que a escola lida com o conhecimento socialmente organizado, patrimônio da
humanidade; a formação pela articulação entre teoria e prática, em que a dimensão trabalho
seja incluída e acompanhada por professores, com vistas a uma permanente reflexão coletiva,
mas também, em que a teoria seja confrontada com a prática e, por fim, à formação da
vontade pedagógico-política, que articula o pedagógico com o sentido social e histórico da
educação, com vistas à transformação social.
245
Célia conclui seu artigo defendendo que a Pedagogia, como teoria e prática da
educação, deve exercer uma dupla vigilância: a epistemológica e a política. A vigilância
epistemologia diz respeito a atenção necessária aos seguintes riscos: 1) o idealismo
pedagógico, em que pelo fato da educação abranger muitas esferas estar exposta a extraviar-
se, se traduzindo por expressões generalizadoras; 2) O mecanismo pedagógico, em que, para
fugir das generalizações, a educação é capturada por uma pedagogia redutora, aprisionada
pelos empirismos, pelo positivismos ou pelos particularismos e 3) Ao fato de que, dada a
extensão da educação, todos tem algo a falar do processo educativo e, como freqüência,
muitos o impõe como conhecimento pedagógico.
Por fim, articulando a vigilância epistemológica e política, a Pedagogia
Contemporânea, compreende um “pedagogo que não se aprisiona no racionalismo teórico da
ciência, mas que o submete e o avalia pelo ajuizamento do coletivo, como fonte legitimadora
maior da intencionalidade pedagógica” (p. 83).
O quarto capítulo, Repensando a escola normal em tempo de constituinte”, discute a
necessidade da gratuidade em todos os níveis de formação, uma vez que o saber é um direito
do homem e que, um cidadão bem formado deve trazer benefícios mais amplos para a
sociedade.
A partir da análise da história do ensino normal no país, Célia problematiza a situação
atual (dos anos 80), em que as indicações legais apontavam a formação de professores para o
ensino primário como responsabilidade dos cursos de Pedagogia, retirando o investimento nos
cursos da modalidade Normal. Célia considera o difícil panorama atual das escolas normais,
em que se soma a uma baixa escolaridade por parte dos professores, a ausência de uma
política salarial justa que incentive o jovem ao ingresso na carreira docente. Ainda assim,
defende que o Estado deveria assumir a obrigação de qualificar as Escolas Normais como um
dos espaços privilegiados de formação dos professores da escola básica, qualificando-o com
pesquisas e atualizando-os com a atenção à realidade do país.
O quinto e último capítulo, A formação dos profissionais da escola: recorrências e
controvérsiastem como objetivo estudar diferentes compromissos relativos à formação do
pedagogo, localizando as polêmicas da época sobre a formação dos profissionais da escola,
entendendo-as como expressões das contradições enfrentadas e lacunas que marcam essa
categoria profissional e a sociedade civil.
Célia relata que a Universidade abandonou durante muitos anos a Escola Básica, em
função de sua preocupação de formar técnicos ajustados ao modelo de “Segurança e
Desenvolvimento Nacional”. Aponta que naquele momento ela voltava a dirigir sua atenção à
246
Escola Básica em função das forças democratizadoras da sociedade, na perspectiva de
contribuir para formar professores que apóiem a transformação de nossa sociedade.
A autora, defende a formação do professor como um dos compromissos nucleares da
Universidade em tempos de reformulação social pós-ditadura, entendendo que a ela deve se
aliar ao compromisso com a pesquisa aplicada, em prol da construção de um pensamento mais
autônomo e independente. Tal autonomia se contrapõe à dependência cultural de nosso país,
afeito a importar modelos e tecnologias. Apesar de a escola ser em parte determinada pelos
fatores econômico-sociais, Célia acredita na importância de que ela se reveste na modelação
dos condicionantes, constituindo-se numa esfera relevante para a transformação social.
Célia relaciona uma série de atividades que estavam em curso na Universidade
brasileira visando reconstruir a ligação entre a Universidade e a formação docente, questão
fundamental para a qualificação da escola básica. Discussões sobre a nova concepção de
pesquisa e extensão e a necessária reformulação dos cursos de formação dos profissionais da
escola animavam os movimentos universitários. Nessa direção, a autora destaca os debates
sobre currículo universitário que se incrementavam naquele período, buscando a saída dos
moldes da ciência positivista ou da metafísica idealista que marcavam a formação.
No Brasil, em função da contradição entre os interesses do Estado e da Sociedade, a
formação do pedagogo enfrentava o desafio de instruir professores a compreender as
injustiças sociais por meio da preparação para o exercício de ensino-aprendizagem como
instrumento de transformação em prol das classes populares. Nesse sentido, era necessário
definir a identidade do curso de formação dos profissionais da educação, questão que era
polêmica naquela época (e que perdura, de certo modo, nos dias de hoje).
Célia discute a identidade do Curso de Pedagogia, considerado por alguns legisladores
como um curso sem conteúdo próprio e, portanto, dispensável. Indicando a necessidade de
integrar a dimensão conteúdo e forma, em que se contemple o estudo da textura do processo
educacional, Célia defendia a necessidade da manutenção do Curso de Pedagogia. Tal
necessidade se justificava, em sua concepção, em função do insuficiente intercâmbio entre as
diferentes áreas do saber e dos conhecimentos pedagógicos, pois havia uma separação entre o
pedagógico e as parcelas conteudístico-metodológicas de cada região dos saber científico.
“ A totalidade do real, em que em última análise se referenciam o ensinar e o
aprender, não se obtém por adição das partes mas pela força de apropriação
pedagógica com objetivos científico-políticos, também claros, que geram
uma interdependência das partes ao todo.” (p. 128)
247
Com relação à dimensão política da formação docente, em integração com a formação
científica, a autora preconizava o indispensável compromisso do professor de transmitir o
acervo de conhecimentos sistematizados e as metodologias científicas. Defendia também, que
tais conhecimentos precisavam ser contextualizados historicamente, possibilitando aos
sujeitos a visão crítica das ciências e a compreensão das inter-relações entre as esferas do
saber e da sociedade. Para Célia, faltava à formação do professor disciplinas que possibilitem
compreensão mais extensiva da realidade nacional e internacional, conhecimentos necessários
para uma prática desalienada.
Discute outras polêmicas da época, como a questão dos especialistas (já mencionada
em artigo anterior, nesse mesmo livro); a necessidade de solucionar o problema das diferenças
regionais, culturais e sociais num modelo de escola unitário, defendendo a articulação dos
projetos com os grupos aos quais se destinam; a questão da formação do professor nos cursos
normais versus nos cursos de Pedagogia, historicizando os movimentos em prol de uma
revitalização dos cursos normais, que considera importantes e necessários no contexto
brasileiro, dentre outras.
Em suma, Célia defende a todo o momento que a formação dos profissionais da
educação precisa necessariamente articular a dimensão política e a competência científica,
não prescindindo de habilitar o professor a analisar e compreender o contexto social e
histórico em que se dão as dinâmicas sociais. Não acredita que a escola seja o espaço da pura
determinação social e econômica, apostando na potencialidade desse espaço em modelar
também a realidade, transformando-a. Aposta na associação dos profissionais da
educação,também em espaços fora da escola, em função de assegurarem direitos e pleitear as
melhorias necessárias para uma educação pública de qualidade. Defesa que faz com ênfase
em todos os seus artigos desse livro e de outros.
3.4 A voz dos parceiros: Heloisa de Oliveira Santos Villela
HELOISA VILLELA: APRENDENDO A VIVER COM CÉLIA,
MEMÓRIAS DE UM ENCONTRO DE FORTALECIMENTO E
CONFIANÇA
Yo soy del sul, chileno
navegante
que volvió
de los mares.
248
No me quedé en las islas,
coronado.
No me quedé sentado
en ningún sueño.
Regresé a trabajar
Sencillamente
com todos los demás
y para todos.
(Pablo Neruda)
Sempre me lembro de Neruda quando penso em Célia. Não sei se é
porque ele é chileno e essa coisa assim latino-americana... Na
apresentação que escrevi para o livro “Trajetórias de magistério”,
sobre os memoriais de Célia e Clarice Nunes, tem um pedacinho de
um poema de Neruda que eu coloquei que fala desse trabalho e sua
importância. Eu a vejo sempre envolvida com o trabalho, indo para
frente, caminhando. Na época me lembrei do Neruda, na época
procurei alguma coisa que tinha a ver com Célia, me lembro que no
final do poema tinha algo assim, “Continuamos a trabalhar com todos
e para todos! acho que isso tem muito a ver, trabalhar com e
trabalhar para. (Heloisa Villela em entrevista, 2007)
Heloisa conheceu Célia Linhares em meados da década de 80 quando estava fazendo
um curso de pós-graduação lato sensu na Faculdade de Educação da UFF. Na época, Célia
estava voltando do doutorado na Argentina.
Para Heloisa era uma retomada aos estudos após algum tempo afastada. Havia
terminado a graduação, tendo sido monitora da faculdade, mas precisou parar um tempo em
função da saúde de uma de suas filhas. O curso funcionava como uma oportunidade de
“reaquecer as baterias” e amadurecer a idéia de um possível mestrado.
Em um Seminário, Célia foi falar sobre sua experiência na Argentina e sobre seu
retorno, de como ela estava vivenciando essa volta para a Faculdade de Educação. Heloisa se
lembra da impressão que Célia causou nela:
A presença dela, sua fala, foi me impressionando de tal maneira ... acho
que, na verdade, eu não estava nem pensando em mestrado, eu estava
fazendo aquele curso sem pensar em grande coisa. Quando eu ouvi a fala de
Célia, aquilo me tocou de uma maneira que eu pensei “eu quero entender do
que essa pessoa está falando, eu quero me aprofundar mais nesses assuntos”.
(Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Com a palestra de Célia, Heloisa identificou a existência de um campo desconhecido
para ela até então, em que havia uma possibilidade de luta por condições melhores para a
249
educação, uma perspectiva democrática de escola e de sociedade e, sobretudo, uma visão
confiante nas possibilidades de atuação dos profissionais da educação.
A fala de Célia me fez pensar sobre a possibilidade de que as pessoas no país
pudessem retomar uma escola que havia aumentado naquele período da
ditadura em termos de número, mas que não tinha qualidade nenhuma! As
pessoas estavam desinteressadas da área da educação, tinha havido um hiato,
um vazio, as pessoas eram mal vistas nos lugares quando você falava que era
pedagogo, “pedagogo, faz o quê?!”. Então aquela fala de Célia me jogou
novamente para um campo que eu tinha escolhido lá atrás na época da
graduação. Eu tinha feito uma faculdade muito fluida, muito conteúdo
teórico; então o curso foi para mim uma continuação do normal e nada mais,
não vi como uma vivencia acadêmica. A fala de Célia me chamou para essas
questões e ai eu tive vontade realmente de aprofundar meus estudos e pensei:
“Vou atrás dessa mulher, quero entrar no mestrado, vou querer saber mais
disso que ela fala, vou querer compreender melhor tudo isso!”.
Muitas coisas que ela falava, não eram de uma linguagem familiar, tinha
uma perspectiva bastante filosófica. Eu estava ali e decidi naquele momento
e foi nesse caminho que fui seguindo. No final desse ano em que conheci
Célia me candidatei para o mestrado e qual não foi minha surpresa quando
cheguei na banca de argüição da entrevista e lá estava Célia Linhares e Nilda
Alves! Eu já sentia aquele bem estar, aquela empatia com Célia muito forte e
no mestrado escolhi, lógico, Célia para ser minha orientadora. (Heloisa
Villela, entrevista, 2007)
Heloisa revela como o mestre pode ter o papel de instigar o desejo de aprender,
impulsionando o estudante para a busca de espaços ainda desconhecidos, onde a curiosidade
antecipa alargamentos de vida, com outras aprendizagens. Nesse sentido, evidencia-se o papel
do envolvimento do mestre com o ensino, do quanto ele transmite seu interesse e com isso
desperta no outro o desejo de também aprender. A esse respeito, é oportuno trazer Morin que
nos diz:
Marx questiona:
“Quem educará os educadores?”
Educar é uma missão. Educar, para além da técnica, é arte.
Educar exige para além da técnica, uma arte.
Exige algo não mencionado em nenhum manual, mas que Platão acusara
como condição ao ensino: o Eros, que é, a um tempo, desejo, prazer e
amor; desejo e prazer de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos
educandos. O Eros permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício
da fruição ligada à doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o
desejo, o prazer e o amor no educando.
Onde não amor, problemas de carreira e de dinheiro para o
professor; e de tédio para os alunos.
A missão supõe, evidentemente, a fé: a na cultura e nas possibilidades
do ser humano.
250
Portanto é missão muito elevada e difícil, uma vez que supõe, ao mesmo
tempo arte, fé e amor. (Edgar Morin, 2000)
Contrariamente a uma idéia muito presente no campo da formação em que se associa
facilidade e fluidez no processo de ensino-aprendizagem com qualidade, Heloisa afirma que
muitas coisas que Célia falava não eram de uma linguagem familiar”. O que Heloisa
encontrou não foi então a “facilidade” de compreensão das perspectivas que Célia abria para a
estudante, mas sim o desafio de aproximação de conceitos novos, um novo campo de
conhecimentos que ela não havia encontrado em sua graduação.
O mestrado foi aproximadamente em 85/86. Terminei em 90. A partir daí
fiz os cursos que Célia oferecia que eram de Filosofia, Tópicos Especiais. Eu
me lembro que ela já trabalhava com Gramsci e Foucault.
As experiências que eu comecei a ter de vida acadêmica, era ela que me
estimulava. Eu era um pouco tímida, medrosa dessa coisa de expor um
trabalho, então houve uma SBPC
157
se não me engano em Curitiba e ela me
estimulou: “você vai escrever!”, e foi a primeira vez que eu tomei contato
com a experiência de escrever resumos. Fomos para Curitiba, na hora de
falar eu estava com aquele medo e ela ali junto me estimulando. Ela sempre
foi uma pessoa totalmente presente na minha vida acadêmica. (Heloisa
Villela, entrevista, 2007)
Mestre que incentiva a produção e o “passo a frente” de seus discípulos e, ao mesmo
tempo, se mantém ao lado, dando apoio e confiança. Tomamos aqui o sentido de discípulo,
como quer Dozol (2003), como aquele que tem uma dependência provisória, que tem um
ponto de partida intelectual e que caminha em direção à autonomia.
Ver seu discípulo avançando não é vivido por todos os mestres da mesma forma. A
independência e autonomia, por vezes, podem assustar ao mestre, que inseguro de seu saber,
no crescimento de seu estudante uma ameaça. O depoimento de Heloisa que destaco a
seguir, sobre os caminhos de sua pesquisa de mestrado, traz bem clara essa perspectiva do
mestre que permite o vôo de seu estudante e compreende seu afastamento como algo
saudável, parte do crescimento e da autonomização deste.
157 Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
251
Na época de delimitar mesmo o tema de minha dissertação eu me decidi por
formação de professores. Célia foi muito bacana no momento em que ela me
disse, olha, você veja o que deseja estudar nesse novo momento.” Bom, eu
estava me sentindo frágil na parte histórica para poder tratar da questão da
Formação, - porque no fundo a dissertação era histórica–, e ela então me
permitiu que eu fizesse uma co-orientação com Ismênia Martins. Célia
viajou e continuei depois com Ilmar Matos, Professor de história e foi muito
tranqüilo, o que eu não vejo acontecer muitas vezes com essa coisa de co-
orientação. Na verdade às vezes nem acontece e quando os alunos pedem ou
precisam, é muito difícil, alguns orientadores não aceitam muito, talvez se
sintam como se tivesse tirando algo deles... e ela foi super tranqüila nesse
ponto e com isso meu trabalho cresceu muito pois teve a visão da história e
também toda essa questão do envolvimento com a educação, da formação do
educador. Pude então conhecer a visão do campo da história com relação à
educação. O processo de profissionalização no século XIX, por exemplo, era
visto pela história de outra forma, como um fato datado que aconteceu mas
não com aquela importância que teve para nós educadores. Com esses dois
aportes eu pude fazer um trabalho muito melhor. Enfim, em toda a minha
carreira, como no concurso para a UFF eu fui estimulada por ela, ajudada.
Então foi realmente uma orientadora de vida, não foi acadêmica,
extrapolou isso, ela foi que me segurou nesses momentos difíceis de decidir,
“Mando essa aula ou aquela? Me aprofundo nesse tema ou naquele?”.
(Heloisa Villela, entrevista, 2007)
A abertura que Célia demonstrou ao acolher as escolhas e necessidades da orientanda,
revela essa sua capacidade de reconhecer que o conhecimento é múltiplo, que não é
propriedade de um só e que, ainda que as vaidades existam, o reconhecimento da necessidade
de troca com outras fontes e profissionais é muito benéfica e ampliador das densidades
discursivas, com que tratamos cientificamente das problemáticas por nós estudadas.
Para Gusdorf (1995), ainda que haja uma relação de dependência entre mestre e
discípulo, essa não é imposta, mas sim consentida de lado a lado. Além disso, trata-se de uma
dependência provisória:
(...) O discípulo confia no mestre para que este o instrua e o conduza
enquanto ele não for capaz de se conduzir a si próprio. A condição de
discípulo é provisória, uma situação passageira que aguarda a habilitação
que tornará o individuo apto a se conduzir a si próprio. (GUSDORF, 1995,
P.81)
O entendimento dessa provisoriedade se traduz numa relação de confiança de parte e
a parte. Para o discípulo, confiança de que o mestre reúne as condições para guiar seu
desenvolvimento durante uma certa etapa da vida e para o mestre, confiança de que o
252
discípulo é capaz de conquistar a autonomia que, fatalmente, o fará avançar em sua trajetória,
modificando a relação inicial de dependência para a de referência (DOZOL, 2003, P. 11).
Célia também aparece na experiência de Heloisa como a “orientadora de vida”,
alguém com quem ela se sentia suficientemente à vontade para contar em momentos diversos
de sua vida acadêmica e da vida fora da universidade. É possível uma proximidade em que a
orientadora Célia se separe da Célia - mulher? A mestranda/ doutoranda da mulher que é?
Justamente pela impossibilidade dessa divisão, a relação com Célia “extrapolou” a meramente
acadêmica.
Nesses momentos todos Célia estava muito presente, foi uma presença assim
que até mistura um pouco com a coisa de uma mãe. Um dos fatos muito
marcantes de que me lembro foi no final da minha dissertação, quando eu
estava ensandecida, aquela loucura e tal, aquele monte de coisa e aparece
Célia em casa. Então estava assim, a minha mãe e Célia (risos). Eu achei
muito interessante porque a minha mãe não podia dar o que Célia podia, que
era a orientação correta naquele momento, como é que eu fechava aquela
dissertação e ao mesmo tempo ela completava com a minha mãe ali aquela
situação. Eu me senti muito amparada pelas duas. Acho que a partir disso
tudo a gente ficou mesmo com uma relação que vai além dessa coisa
acadêmica, eu tenho nela um apoio para todas as horas, uma preocupação
que ela sempre tem comigo depois quando eu entrei para ser professora da
UFF.
No ano de 94 tive um baque muito grande, perdi num intervalo de três meses
pai, mãe e irmão. Nessa parte eu sempre conversava muito com Célia, nas
questões das suas filhas, ela sempre me aconselhando e me ouvindo. Isso era
muito legal eu tinha essa experiência que Célia falasse das meninas, aquele
momento das indecisões que não sabe ainda o que vai fazer. Era uma troca
constante. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Orientadora e mãe, mãe-orientadora. Reportando-nos ao sentido etimológico
158
da
palavra mãe encontramos os termos “origem, fonte, causa”, bem como mulher que dispensa
cuidados maternais”. Continuando a aproximação com os sentidos evocados, chegamos
também à palavra cuidado e a concepção que Boff (1999), inspirado em Heidegger, tem desse
termo. Para o autor, o cuidado é uma necessidade eminentemente humana. Nascemos
158 Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa editora Nova Fronteira 1986.
253
desprovidos de condições de viver sem que nos sejam dispensados cuidados. O cuidado
permeia o crescimento e o desenvolvimento do humano desde seu nascimento até o fim de sua
vida. É via cuidado que nos sentimos amparados, reconhecidos, é quando nos humanizamos.
Cuidados que se expressam das mais diferentes formas e que podem se traduzir por um olhar,
pela escuta atenta e interessada do outro, pela comida oferecida, pela presença física em
momentos diversos de nossa vida.
Célia foi para Heloisa um tipo de professora-amiga-mãe que dispensou cuidados,
fortaleceu a coragem para o enfrentamento do novo universo que a ela se abriu, que a instigou
a descortinar novos desafios e a caminhar com suas próprias pernas. Um tipo de mãe especial,
um tipo de mestre especial.
Acostumada que sou a trabalhar com professores e pais de crianças da Educação Infantil
sai pela primeira vez do ninho de sua mãe e pai para uma creche ou pré-escola, que me era
possível reconhecer aspectos importantes dessa díade família-criança. As crianças que se
mostravam mais seguras em explorar o novo ambiente e mais curiosas em conhecer crianças e
adultos não eram, de um modo geral, as excessivamente protegidas mas sim aquelas que
sentiam a confiança estampada no rosto e na expressão de seus familiares, que para elas
significava “Vá e viva, vá que você vai gostar muito de crescer!” .
Não continuamos precisando encontrar no rosto de nossos mestres essa expressão de
confiança diante do novo que nos aguarda?! Não continuamos a nos assustar se, ao invés da
expressão de confiança, o que encontramos é o reforço de nossos medos e inseguranças?!
A entrada de Heloisa no doutorado afirmou ainda mais essa capacidade por parte de
Célia de estimular o vôo de sua estudante. Dessa vez um o que a levaria a fazer o curso em
outra cidade. Um vôo para mais longe.
Quando chegou o momento de fazer o doutorado eu fui conversar com Célia
e vi o que era melhor para mim. Como era mesmo a questão da história da
educação, a que eu daria continuidade, pedi também a Clarice Nunes que me
desse um apoio e então as duas me ajudaram com todo o projeto, me dando
idéias, bibliografia, etc. Eu compus o projeto e tentei para a Universidade de
São Paulo (USP) e a UFF. Passei aqui para a UFF em primeiro lugar, mas
decidi ir para a USP, passei também e não me arrependo. Eu fui muito
filha da UFF, aquela coisa endógena, ai fui para outro ambiente com outras
pessoas, foi importante para minha formação. (Heloisa Villela, entrevista,
2007)
Heloisa vai reconhecendo as lacunas em sua formação e buscando espaços com os
quais pudesse dialogar ampliando sua compreensão sobre aspectos que haviam sido pouco
254
aprofundados por ela até o momento. Além disso, ousava correr o risco do novo, ampliando
suas experiências acadêmicas, conhecendo outra instituição e novos professores.
Na minha entrada para UFF fiquei muito voltada para a História da
Educação. Cheguei a participar no início do Aleph, do projeto de Célia, mas
eu estava precisando construir mais dentro da História da Educação porque
eu sentia que tinha uma fragilidade teórica nessa área, que era aonde eu
desejava lecionar. Você vê, eu vim da Pedagogia, tinha feito um mestrado
hibrido, da Educação com a História, mas não foi um mestrado na História,
eu estava sentido que precisava me voltar mais para a questão da história.
Nesse tempo que eu era professora, comecei a fazer cursos na História
como ouvinte, fiz cursos com Leandro Konder, com César Onorato, com
Edilberto que fala sobre culo XIX, Margarida Neves que fala de memória,
dentre outros.
Nos concursos que fiz, eu tinha entrado primeiro para Didática, depois teve a
oportunidade de eu passar para a cadeira de História, e nessa passagem
pensei, tenho que me aprofundar mais porque minha formação não é tão
sólida assim para isso e ai comecei a fazer essa batalha. Não é que eu me
afastei, mas eu tomei essa direção com a história. Continuava com essa
interlocução com Célia mais sobre questões do trabalho, mais filosóficas,
sobre as questões política aqui dentro da faculdade. Eu sempre estava
falando com ela. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Pergunto a Heloisa sobre o estilo Célia de orientar. Bem sabemos como esse momento
pode ser vivido com extrema ansiedade por parte do orientando. Certamente é uma relação
delicada a de orientador - orientando. Como estimular a produção sem cobrar de forma tensa?
Quais as necessidades de cada orientando ao longo de seu processo? Como lidar com as
eventuais ansiedades, bloqueios e inseguranças do orientando? Por parte do orientando, como
conciliar as expectativas com relação ao orientador com as possibilidades reais do mesmo? O
quanto tais expectativas são muitas vezes fruto das próprias ansiedades e até, muito
provavelmente, impossíveis de serem correspondidas, tão grandes se colocam? Desejos
diferentes, necessidade de compreensão e aceitação mútua. Uma delicada relação que tem
merecido atenção por parte de alguns pesquisadores.
Na pesquisa “Orientação acadêmica: uma relação de solidão ou de solidariedade?” de
Vianna e Veiga (2007), cujo título merece ser citado dada a instigação que provoca, é
reconhecida a presença de sentimentos alternados de sofrimento e alegria por parte dos
estudantes durante a elaboração de suas dissertações, teses e/ou monografias. Sentimentos
ligados a responsabilidade do orientando em fazer o máximo, as condições, em muitas casos
adversas, de trabalho ou mesmo ao surgimento de problemas pessoais, acadêmicos e
255
profissionais que emergem durante esse período. As autoras identificam, portanto que é diante
do caldo dessas emoções e sentimentos por vezes contraditórios, que uma boa relação
orientador-orientando contribui de forma decisiva para a superação de dificuldades.
Nas palavras de Heloisa, Célia vai pelo caminho da solidariedade.
Ela não era de impor, mas as sugestões eram tão ricas que você queria ler
tudo. Ela tinha uma sensibilidade muito grande para ver porque as coisas, às
vezes, não estavam caminhando, a gente estava patinando naquele ponto,
que faltava um aporte mais filosófico, um aporte teórico que desse uma certa
direção. Então muitas vezes ela dizia: “você está precisando ler isso assim,
assim” e aquilo deslanchava. Essa parte foi muito tranqüila e muito
estimulante. Tranqüila porque não tinham pressões nem constrangimentos
como eu via acontecer com alguns colegas. Via muita coisa triste no
mestrado. No doutorado você já está mais criadinha, mas no mestrado é sua
primeira experiência. [
Heloisa relatou nesse momento uma passagem
em que um professor orientador, negou a seu orientanda informação
sobre um trabalho que ele mesmo havia escrito sobre o assunto que
ela pesquisava. A orientanda não descobriu sozinha e, quando teve a
oportunidade, o professor a cobrou, criticando sua pesquisa. Heloisa
lembra que isso a deixou arrasada
]. Célia não tinha nada disso, é de uma
relação completamente honesta. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Outro aspecto a que Heloisa se referiu e que merece destaque, diz respeito a coerência
entre as atitudes de Célia, seu comportamento de modo geral e aquilo que ela escrevia,
preconizava em seus discursos. Muitas vezes é na universidade que vamos conhecer os
autores de muitos dos textos lidos por nós e não raro nos surpreendemos com a frustração de
uma certa expectativa que construímos a respeito desses autores em função de nosso contato
com sua obra. Heloisa chama de unidade essa coerência entre Célia-autora e Célia-professora.
Sem pretender correr aqui o risco de simplificar as complexas relações imbricadas no que
chamamos “relação teoria e prática”, bem sabemos que os caminhos de integrar nossos
projetos de vida em todas as suas dimensões não é linear, ainda assim é possível compreender
a perspectiva apontada por Heloisa.
Como nos apropriamos daquilo que discursamos? Paulo Freire, nos últimos anos de
vida, em uma de suas palestras que tive o prazer de ver em vídeo, dizia algo que me tocou de
modo especial, pois traduz uma minha busca: Uma das maiores satisfações que sinto hoje é
sentir que estou me tornando o homem que sempre desejei ser”. o é pouco. Muitas vezes o
hiato entre aquilo que projetamos e desejamos ser, seja como professores, pais, orientadores,
amigos, encontra abismos no momento da experiência em que, dadas nossas limitações,
incoerências, medos e outros tais, nos vemos impossibilitados de ser.
256
Novamente sublinho que, acreditando que a incoerência e a ambigüidade são
fenômenos simultâneos e recorrentes, numa perspectiva Moriniana, também não posso deixar
de afirmar que, contrariando o ditado popular do “faça o que eu digo mas não faça o que eu
faço”, minha confiança aposta na busca permanente que empreendemos em fazer o que
dizemos”.
A maior marca de Célia é essa unidade, ela é una, íntegra nas coisas dela,
aliás, vi muita gente falar sobre isso, “estou conhecendo a professora
Célia, ela é exatamente assim como ela escreve!”, é uma coisa, ela é aquilo
mesmo! Não tem falsidade, não tem escapadinha, ela fala e faz tudo o que
ela realmente prega, que ela coloca nos textos. As abordagens teóricas
perpassam a vida dela mesma, com os outros, com relação aos outros. Todo
esse aporte que ela trás para os textos, tem relação com a vida dela e com as
suas relações. Então não tem essa coisa de dizer, “fala tão bonito, mas na
prática...”, com Célia não tem isso de na prática ser diferente, na prática é a
prática mesmo! (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Heloisa foi bolsista de iniciação científica de Célia na pesquisa “Mestrado em
educação e escola básica, um encontro necessário”. O enfoque era pesquisar as produções
desenvolvidas nos mestrados de educação analisando como aqueles estudos haviam ressoado,
ou não, na escola básica.
Nós pegávamos a produção do mestrado em suas várias áreas, investigando
o que propunham. Fazíamos um recorte dos que falavam da escola básica e
quais eram as propostas que tinham avançado. Interessava-nos saber se a
escola básica estava ou o recebendo esse aporte das pesquisas. Falava-se
de métodos de alfabetização e na escola? Ninguém estava discutindo isso!
Essa experiência foi muito interessante porque depois Célia montou um
seminário, convidando professores da rede para escutar as questões que os
mobilizavam. Foi um seminário muito concorrido! Chamamos também as
pesquisadoras, cujos trabalhos havíamos elegido como mais interessantes,
para dialogar com a Escola Básica. A idéia era saber com a escola via as
questões levantadas pelas pesquisas, como elas se conectavam às suas
próprias questões. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Heloisa considera que essa pesquisa foi um marco importante na trajetória acadêmica
de Célia e que desde então ela vem consolidando sua atuação na escola básica, comprometida
com a formação dos professores das escolas públicas.
(...) Surgiu esse campo que ela está até hoje, enfiada lá, na ponta de da
escola. Ela está sempre com projetos que tem que ter ressonância nos
professores, nos alunos, ponte com o concreto que é justamente o que não
257
existe quase na academia, porque geralmente se acha que isso é menos e os
professores que fazem isso, são sempre “menos”. Isso tem essa pecha. E
Célia consegue reunir essas pontas muito bem: uma formação teórica sólida,
tudo o que ela produz, os textos que ela produz e também a parte de estar
na ponta, na escola, falando para professores, se exercitando nesse diálogo,
que é difícil também. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
O compromisso da pesquisa universitária com a educação básica é uma questão que
atravessa a obra de Célia desde então. Ela retoma esse ponto em vários de seus artigos e
livros, bem como seguimento em suas pesquisas a temáticas conectadas à escola.
Compreende essa cisão entre produção intelectual e atuação docente reportando-se a idéia de
razão veiculada pela modernidade.
Com relação as idéias pedagógicas de Célia, Heloisa destaca a investigação sobre o
papel e a prática do pedagogo, citando alguns artigos e publicações que abordam essa questão:
Para mim o que posso destacar muito é essa parte toda que ela veio
estudando que está em um artigo “Quem é esse o pedagogo?”, onde ela
desenvolveu profundamente essas questões do que é a teoria e o que é a
prática do pedagogo. Isso me abriu muito a compreensão sobre a pedagogia
e seu papel. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Heloisa cita ainda essa preocupação sempre presente de que os espaços de formação
estejam impregnados pelas questões oriundas da escola. Nos textos que apresentamos nesse
capítulo essa idéia está presente. Célia defende que é a vida, a realidade mesma que deve
alimentar nossos projetos para a escola. Conhecer os sujeitos e sua cultura, valorizar seus
saberes, considerar o contexto em que vivem e suas peculiares formas de expressão e
aprendizado são dimensões presentes em seus escritos dessa década.
Também gosto muito daquele livro Trad
ições e contradições” que aborda a escola norm
ressonância na escola e vice-versa. Um exemplo dessa preocupação
permanente entre teoria e prática e pesquisa e escola é o livro “A escola
Balaia” que traz o trabalho desenvolvido por ela com as escolas lá do
Maranhão. No livro se evidencia seu movimento de ver aquele tipo de escola
e refletir sobre como se pode ter uma ação, uma prática que seja realmente
includente, que possa ser libertadora. Ela deseja realmente que a educação,
quando existe nesses lugares, seja algo que transcenda, que vá às origens e as
pessoas possam superar sua situação de opressão por um processo interno.
Acho que é muito nessa linha que ela trabalha, de instigar processos internos
e ver como isso se dá. Sua perspectiva é democrática, inclusiva. (Heloisa
Villela, entrevista, 2007)
258
Sobre este livro, que bem retrata um lado épico da verdade, tão ressaltado
por Benjamin, importa atentarmos para o que escreveu sobre este livro o
memorável Barbosa Lima Sobrinho, pouco tempo antes de morrer.
A visão democrática que perpassa a obra de Célia é destacada por Heloisa com
veemência. Ela relaciona as pesquisas em que participou como bolsista e as outras
experiências de que teve notícias, reconhecendo como o foco central a confiança de Célia em
uma escola inclusiva, para todos e feita por todos, democrática, que partisse das demandas do
povo.
Toda essa perspectiva de inclusão está nesses trabalhos que ela faz, tanto
no Maranhão quanto aqui na Baixada Fluminense, quanto no que ela fala
para os alunos, para as pessoas que a ouvem nos muitos encontros de que
toma parte. Sua proposta democrática e inclusiva não é coisa pró-forma que
muitos falam como um conceito vazio, ela vai mesmo para ver como isso
é possível com os professores que a gente tem, com os problemas que a
gente tem, ouvir esses professores, deixar falar, ver quais são os problemas
deles realmente, é muito isso que marca a obra dela, suas reflexões são
sempre a partir dessas questões. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
“A minha experiência de 102 anos de Brasil é, sobretudo uma experiência
marcada pelo amor e pela convicção de que é preciso cultivar este sentimento em
relação à nossa Pátria. Quando menino, certa vez, ao ouvir o hino nacional, ainda
meio adormecido, despertei-me para me colocar de pé. Durante minha vida
pública, sempre considerei que a Nação não pode prescindir de uma construção
permanente que evoque e torne viva nossa memória épica, como um herança de
muito valor que precisa ser conhecida, discutida e trabalhada em suas
significações e sentidos.
Um dos meus livros que mais gosto é “Japão - o capital se faz em casa”que mostra
a importância do país construir-se internamente, assumindo sua autonomia política
e econômica. Hoje, se voltasse a escrevê-lo daria uma ênfase especial à questão
educativa.
Pensar e atuar na educação, vinculando-a à questão da autonomia coletiva é o que
faz a Professora Célia F. S. Linhares no seu livro “Escola Balaia”, apropriando-se
de um passado de lutas para relançá-lo neste solo nordestino e maranhense, como
uma forma de projetar um Brasil mais conhecedor de suas grandezas, mais
solidário com sua gente, mais vigoroso contra as opressões e, por tudo isso, mais
comprometido com o seu futuro.”
259
Uma visão democrática que transcende o discurso, como nos diz Heloisa, que leva
Célia até a escola em busca do diálogo com os professores, abrindo espaços para que suas
questões sejam ouvidas na Universidade. O Seminário organizado a partir da pesquisa sobre o
mestrado e a escola básica, evidenciou esse interesse de Célia em escutar os professores.
Estive uma vez em um encontro com uma escola pública aqui, e pude
observar o trabalho dela durante esse seminário, esse corpo a corpo mesmo!
Não foi um seminário do tipo “Ah temos uma verba e vamos colocar aqui os
professores”, foi um momento de estar conversando e vendo como aquelas
questões que as pesquisas traziam estavam batendo para os professores. Eu
me lembro que muitos grupos de professores continuaram a buscar a
universidade, a querer vir fazer coisas aqui por causa disso, inclusive nessa
época criou-se a possibilidade dos professores da rede cursar as disciplinas
da graduação do curso de Pedagogia como ouvintes. Foram reservadas vagas
para que um percentual de professores da rede pudesse vir cursar duas ou
três disciplinas. Havia todo esse interesse. Depois, mais tarde, isso deu
problema por que começaram a achar que como eles começavam a cursar
muitas disciplinas, podiam requerer algo, então isso não foi a frente, não por
causa da Célia. Na verdade o foi nem mesmo ela que propôs isso, foram
os professores que começaram a procurar, procuraram essa casa porque essa
casa tinha alguma coisa a dizer a eles. Eu acho que Célia foi porta-voz disso.
Foi a oportunidade de se socializar as produções para os professores,
diferente dos espaços restritos de eventos como Anped. (Heloisa Villela,
entrevista, 2007)
Qual o acesso que os professores da escola básica têm, efetivamente, às pesquisas
produzidas no âmbito acadêmico? Os eventos da área de Educação contam, de fato, com os
professores das redes estaduais e municipais? Ainda que me faltem dados estatísticos para
afirmar algo com relação a esse assunto, presumo, como freqüentadora que não. Esses
encontros são freqüentados, em sua maioria, por pesquisadores, mestrandos, doutorandos,
professores universitários envolvidos com pesquisas. Quais seriam então os espaços de
difusão do conhecimento que se produz nas universidades? Quem faz essa mediação?
Também perguntei a Heloisa, tal com o fi
estratégias que Célia desenvolveu em diferentes momentos de sua vida para lidar com as
divergências de idéias e de diferenças de concepções presentes nos ambientes de trabalho.
Tema caro na história da professora que desde muito cedo, quando ainda não era possível a
ela compreender os meandros do mundo adulto, vivenciou momentos difíceis em que pessoas
queridas e próximas (além dela própria), se viram diante de situações de embate. Alguns
deles, como sabemos, com duros desfechos que envolveram perdas, cisões, mudanças de
260
vida para ela e sua família de origem, assim como para ela e a família que formou com José
Linhares. A esse respeito Heloisa nos conta:
Foram muitas situações aqui na faculdade, eu fui representante dos alunos
no colegiado e admirava muito esse estilo dela de sempre falar para
apaziguar, mas não era uma atitude do tipo “vamos botar uma tampa em
cima disso aqui”. Era aquela palavra sábia no momento certo, sempre foi
assim. Sempre houve na UFF divisões, brigas horrorosas ali dentro,
sobretudo no programa de pós. Eu me lembro que quando as coisas estavam
tomando um rumo em que até nós alunos ficávamos desesperados pensando
“o que quê vai acontecer?!”, quando parecia que ia ter uma explosão devido
aos ânimos alterados, Célia pedia a palavra e vinha com aquela clareza,
arrumando as coisas e mostrando os limites do ser humano, os limites da
academia, como que essas coisas podiam ser superadas de outra forma que
não aquela do desentendimento. O que eu sei é que sempre depois da fala de
Célia as coisas começavam a tomar um rumo um pouco mais calmo, mais
organizado, mais humano. “Não adianta a gente ficar se batendo!”, ela dizia,
e falava isso de forma tão convincente... era sempre aquele momento em que
todo mundo parava para ouvir e isso diluía muitos conflitos. Agora tem o
grupo que foi se formando contra tudo que é mais civilizado, contra tudo que
é mais humano, trabalho honesto, esse pessoal que é da outra banda
realmente vem cada vez mais criando problemas, embates com ela, acho que
não reconhecem o valor que o trabalho dela vem tendo. (Heloisa Villela,
entrevista, 2007)
Heloisa lembra ainda de duas passagens delicadas comentadas em outros trechos
desse trabalho: a candidatura de Célia na eleição para o CES e a perda de Rui. Vamos
conhecê-la pelo olhar de Heloísa.
Uma experiência interessante foi quando ela se candidatou para a direção do
Centro de Estudos Sociais (CES) que congrega a Economia, Direito,
Serviço Social e a Educação. A gente se engajou naquela campanha, que foi
muito bem feita. Tivemos a oportunidade de ouvi-la falar em vários lugares,
de estar com ela em muitos momentos. Ela falou nos auditórios de todos os
cursos ligados ao CES, com os outros que estavam sendo candidatos. Ela
estava levando a melhor, estava muito bem, estávamos muito felizes em
como as coisas estavam indo! O duro é que na verdade ela perdeu por uma
rasteira da oposição, eles fizeram o seguinte: foram para as unidades da UFF
em Pinheiral e Bom Jésus, que tem colégios, fazer campanha e prometeram
que iam dar ônibus, camionetes, tudo para os colégios. Esse grupo de
oposição, que não tinha um projeto, queria o poder de qualquer maneira! O
pessoal das escolas votou em peso nesse outro grupo e desequilibrou a
eleição. Aqui em Niterói nós fomos ganhando, ganhando, ganhando, ai
quando abriu a urna dos colégios foi aquela queda e ela perdeu por pouco.
Esse foi um momento que me tocou muito. A forma como ela encarou aquilo
tudo foi uma lição de vida para mim, não foi algo como não estou nem
ligando”, não! Ela ficou chateada, expressou isso, afinal foi uma coisa feia,
uma coisa triste, mas enfim sua atitude foi de tocar para frente, tipo “vamos
261
trabalhar, não vai ser por isso que vamos desanimar!” Ela até nos deu apoio,
a nós que estávamos junto com ela!, “Isso acontece, contra isso a gente não
pode lutar, é uma luta que é desigual!”. Então foi uma lição da forma como
ela continuou trabalhando, já no dia seguinte. Enquanto muitas pessoas
ficam irritadas, amargas, destilando a mágoa pelos caminhos, pelos
corredores, Célia foi trabalhar, foi resolver as coisas da vida dela. (Heloisa
Villela, entrevista, 2007)
Sobre a perda de Rui, Heloisa comenta como esse episódio foi para ela mais uma
aprendizado de vida. Tocou-a acompanhar a forma como Célia lidou com aquela dor e perda,
sem perder a confiança na vida, sem deixar a esperança de lado e “continuar vivendo e
produzindo em favor dos outros”, como o texto abaixo revela.
Eu sempre percebi isso, a perda do irmão, como fazendo parte da vida dela,
essa fatalidade, essa crueldade terrível, essa passagem da família, dela
mesma que também teve que sair do Maranhão. Mas também percebi como
sendo um exemplo de que mesmo com essas adversidades tão graves na vida
é possível se continuar vivendo, é possível se continuar lutando, é possível
se continuar produzindo em favor dos outros. Eu acho que foi muito essa
lição de ver como ela vêm enfrentando esse problema do assassinato de Rui.
A gente sempre acompanhou muito essa questão. Por conta disso eu fui com
ela aos encontros do grupo “Tortura nunca mais”, fiquei tomando
conhecimento de muita coisa que eu não sabia, porque acabamos sabendo
por tabela, por estar muito próxima dela, mas ouvir as pessoas darem os
depoimentos é muito impactante. Fui a algumas reuniões que o grupo fazia
para discutir essas coisas, fui à abertura da rua com o nome de Rui. Enfim,
participei de todos esses movimentos dela em prol da memória, que não era
a memória do irmão. Acho que essa questão da memória do irmão ela
vivenciou ali, intimamente com a família, mas tinha uma preocupação de
mostrar para nação isso que tinha acontecido. Uma coisa é a dor, a coisa
pessoal, familiar, outra coisa é a batalha dela para que não fosse esquecido,
não o Rui, mas eles todos e a situação que ocasionou tantas perdas, o que
tinha acontecido naquele momento histórico.
O exemplo de Célia, bom espelho, “calçou” Heloisa em sua vida pessoal. Ela nos
relata que quando perdeu seu pai, seu irmão e sua mãe, lembrava-se da história de Célia e
pensava que, pelo menos, ela sabia como eles haviam morrido, onde eles estavam. A lição de
que mesmo assim se pode continuar vivendo a acompanhava.
Porque naquele primeiro momento da dor a gente quer sumir, morrer, depois
você vai pensando, “não eu tenho isso para fazer na vida, eu tenho minha
profissão, tenho minhas filhas, tenho meus alunos que estão ali esperando
por mim”, e você vai reelaborando essas perdas e vai vivendo. São perdas
grandes, são coisas trágicas, mas que podem te fazer melhorar e não piorar.
262
Acho que Célia afinou ainda mais a sensibilidade, a percepção, a identidade
com o sofrimento humano, passar por essas questões, para ela foi um
afinamento de vida, o que foi um exemplo para gente, para mim sempre foi
muito! Quando eu estava nesses desesperos eu pensava nela.
Heloisa traz a dimensão da experiência de perda como capaz de forjar em Célia a
sensibilidade para a dor do outro, fortalecendo sua identidade com o sofrimento humano. Para
Heloisa, mesmo com a perda de seu irmão que foi trágica, vítima de um assalto, era muito
mais difícil compreender a situação que a violência da ditadura havia imposto a tantos jovens.
Meu irmão foi uma perda muito trágica e triste, pois foi um assalto com
morte, foi muito duro de lidar. Mas a situação desses meninos que sumiram
por conta de um ideal político, por conta de uma ditadura que faz uma coisa
dessas?! É muito mais difícil de você se conformar com essa situação do que
a que vivi. A morte de meu irmão retrata a precariedade da situação social
que vivemos, é triste mas um contexto social que compreendemos. Mas
entender porque uma ditadura faz uma coisa dessas com seus jovens?!
Porque eles têm um ideal diferente?! É difícil aceitar, vai dizer o que para os
filhos?! ele tem um filho! Então essa situação em relação ao Rui foi para
nós um aprendizado de vida, de como ela levou a vida com essas questões
todas. E de batalha, como ela tem a capacidade de transformar o negativo, o
doloroso em arma de luta para poder passar essa mensagem de vida, de
democracia.
Mestre que funciona como exemplo, que ensina não apenas quando intencionalmente
empreende uma ação docente orientada, mas que, a partir da forma como vive, é um modelo.
Para Arroyo (2000, p. 124) as lembranças dos mestres que tivemos podem ter sido nosso
primeiro aprendizado como professores. Suas imagens nos acompanham como as primeiras
aprendizagens”. Modelos de comportamento, de atitude, de ética. Exemplos para além das
lições planejadas, que escorrem pelos gestos fraternos, pela escuta atenta, pela palavra amiga
e oportuna.
A pesquisa de Cunha (2004) sobre a formação de professores e sobre as características
docentes daqueles que consideramos bons professores, identifica a importância dos modelos
na escolha profissional. Os professores entrevistados pela pesquisa destacam como foram
significativos os exemplos de dedicação aos estudos e à pesquisa e ainda atitudes de
responsabilidade, solidariedade, sensibilidade e sutileza de seus mestre.
As marcas impressas por nossos mestres São marcas permanentes e novas, ou
marcas permanentes que se renovam, que se repetem, se atualizam ou se superam”. Arroyo
(2001, p. 124)
263
Célia para mim, daqui da faculdade, da minha vida profissional, foi a pessoa
que mais marcou que me formou. Disciplinas você tem, mas formação
pessoal, essa formação interna, esse exemplo de
ser
como ela é isso é uma
coisa que me formou muito mais do que qualquer outra coisa. Hoje em dia
eu tenho um jeito de lidar com meus orientandos que tem muito a ver com o
jeito dela. Na vida de professora você tem práticas muito baseadas nos
modelos que você teve. No caso Célia foi para mim esse grande modelo, no
sentido de eu pensar assim “o que Célia faria nessa situação?”, essa coisa
que a gente tem com mãe, quando tenho alguma coisa complicada que não
vai indo bem, eu lembro de Célia, penso como posso tirar o melhor dessas
pessoas e acabo conseguindo.
Pergunto a Heloisa sobre as críticas dirigidas a Célia e seu trabalho. Que notícias ela
tem a esse respeito?
Não tem nada concreto, nada que se diga assim “ah ela fala disso e a gente é
contra isso...”. Bom, se bem que eu acho que deve ter algo ai sim, porque
uma maioria de professores ortodoxos e Célia não é nada ortodoxa. Quando
se falava em Marx ela estava discutindo Foucault, por exemplo, porque
ela tem esse pensamento aberto, ela não está presa a essas amarras, “ah, aqui
a academia é marxista vamos falar só de Marx!”, não! Vamos falar de
Foucault! Vamos falar de Heidegger! Vamos falar de vários autores com as
quais ela dialoga. Ela não exclui, considerando inclusive autores marxistas.
Naquele tempo do mestrado a gente já estava discutindo Bachelard,
Foucault, e Gramsci também, fazendo alguns paralelos, foi assim uma
abertura muito interessante. Acredito que, se houver alguma crítica, talvez
seja alguma coisa por aí. Célia pode, talvez, provocar certa inveja por ela
conseguir conquistar essas adesões, por ter pessoas sempre tão presentes
perto dela. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)
Heloísa comenta ainda da reação de seus alunos quando tem a oportunidade de ouvir
Célia em algum evento. Sua palavra mobiliza, toca, envolve a quem a escuta.
Os jovens que entram, meus alunos que ouviram a Célia falar ficaram apaixonados,
“AH, quem é ela?!”, os jovens têm essa impressão dela. Agora mesmo nesse
seminário do curso de pedagogia, eles adoraram o que ela falou, entendeu?
Com relação à influência mais geral de Célia para a educação no Brasil Heloisa
destaca sua visão democrática de escola e a curiosidade intelectual que a fez dialogar com os
autores diversos, antes mesmo que ficassem mais conhecidos no Brasil. Um olhar a frente,
inovador.
264
Eu acho que a produção dela foi e é um marco nos discursos sobre educação,
sobre a Pedagogia. Acho que num futuro nem tão longínquo, quando as
pessoas fizerem a análise do que foi produzido nesse período, do que a
educação pensou, o pensamento de Célia vai chamar atenção das pessoas
que dirão “nossa, mas essa pessoa já falava sobre isso, ela já pensava
nisso?!”. Eu acho as vezes que está até um pouco avançado para
mediocridade que acontece nos nossos cursos atualmente. Certas questões
que ela coloca, não se pegou bem o sentido real da coisa. Por exemplo, essa
necessidade desse engajamento, os autores que ela busca para tecer seu
pensamento, são coisas novas que ela introduziu em diferentes momentos.
Quando ela falava de Foucault as pessoas não o conheciam, então não
compreendiam bem o que ela estava falando. Hoje ele é mais conhecido, tem
vários seminários sobre Foucault, se você voltar aos textos você vai dizer,
“Pôxa, como ela já estava pensando questões a partir desses posicionamentos
novos!”.
Retomando o que analisamos sobre as idéias de Célia nos anos 60 e 70, é possível
compreender a colocação de Heloisa. Lembremos que questões como a criatividade, a
autonomia do pensamento necessária ao professor, a complexidade da educação estavam
presentes em seus textos naquelas épocas. Vemos que as idéias fermentaram (o levedo ...),
atravessaram por períodos de medos, eclodiram em ousadias e, parecem agora se firmar.
Firmam-se numa proposição dirigida à escola, cunhada em meio a ações coletivas de encontro
e troca. Ações da Filósofa militante.
Então é uma pessoa que está sempre com essa curiosidade intelectual, vendo
na frente. Ela traz suas idéias para construir esse pensamento de uma escola
mais democrática, de uma sociedade que tenha ações, ações de grupos que se
articulem para fazer uma escola de muito boa qualidade para essas multidões
que es ai, nas franjas da sociedade, como ela mesmo fala. Então esse
pensamento todo de Célia me parece muito novo para esse momento, a gente
ainda não acordou bem para ele.
É nessa lida com a diferença que Heloisa reconhece a “mestria” de Célia. Num
movimento inclusivo, respeitoso, ético que permite a que ela dialogue e respeite o diferente.
Eu acho que essa palavra seria assim uma palavra forte: Célia sabe trabalhar
com as diferenças! As pessoas não sabem normalmente trabalhar com as
diferenças, ela sabe, aproveita as diferenças, valoriza aquilo que a diferença
tem de interessante, porque se fosse todo mundo igual... Nós somos pessoas
diferentes, e ela sabe conciliar isso muito bem, aproveitando as diferenças de
cada um. Eu acho que por isso que as pessoas calavam a boca no mestrado,
naquelas situações de reunião da Pós-Graduação das quais te falei e que
presenciei. Célia sabe captar que nós temos um projeto maior. Ela pensa
“vamos dar conta desse projeto e trabalhar essa diferença de uma outra
forma, mas não aqui, dessa forma e nesse momento quando a gente tem tanta
coisa para fazer”.
265
Sobre o estilo de escrita de Célia, Heloisa comenta que seus textos são eruditos sem
ser pedantese que tem utilizando alguns deles com seus alunos para discutir questões como
o papel do pedagogo.
O estilo é muito gostoso de ler, um estilo erudito sem ser pedante, ela fala de
uma forma com erudição, escreve textos que são agradáveis de ler. Eu
conheço uma parte das obras dela. A tese de doutorado, o Tradições e
contradições, o livro da Escola Balaia, alguns textos que eu li do tempo em
que eu era orientanda dela e os que ela tem escrito em coletâneas que são
muito bons. Uso muito aqueles artigos do “Tradições e Contradições” com
meus alunos que abordam a questão do pedagogo e da escola normal. Meus
alunos gostam. Uso nas disciplinas de Pesquisa e Prática Pedagógica,
quando discutimos questões da pedagogia, o que é nossa formação e para
pensar a pesquisa e a identidade do pedagogo. Tem um também que ela
escreveu com a Professora Regina Leite Garcia, numa coletânea quando ela
veio da Inglaterra. Elas fizeram uma entrevista com Chomsky e com outros
pensadores de grande porte, como Michael Young, Michel Apple, dentre
outros. São obras que posso referenciar, que tenho mantido mais contato.
Além de alguns projetos, como o que participei, e o da escola Balaia, que ela
me mostrou e o último também, sobre os movimentos instituintes, que ela
fez nos movimentos do Aleph.
Para Heloisa, Célia é a figura da mestra-mãe, que ampara, instiga, encoraja o passo a
frente do aprendiz. Modelo, exemplo de integridade, de ética, de unidade, como se referiu
Heloisa a coerência entre ação e pensamento evidentes na expressão de Célia. Mestre que
apóia o crescimento, que sustenta a autonomia (e a deseja). Tal como a mãe de uma jovem
mulher, que, entre sustos e prazeres, vibra com sua independência. Independência que, por
vezes, comporta afastamentos. Se suportados, não significarão rompimentos. Apenas o
encontro de novos veios de um rio que não pára de correr.
266
3.4 A voz dos parceiros: Waldeck
WALDECK: MEMÓRIAS DE UM HOMEM POLÍTICO
159
RECEITA LIVRE
No quadrado dos teus dias
traça círculos abertos
Na rotina dos teus desenhos
inventa matizes diversos
E se não cabe no quadro
violenta as molduras,
espraia-te nas paredes,
fura tetos
Quebra telhas
e vai completar-te no espaço
(Balina Belo)
Essa poesia é uma elegia a liberdade. È como sinto Célia, meio que
ela desliza, tem uma certa leveza, tem um certo frescor. (Waldeck
Carneiro, entrevista 2007)
Apesar do relacionamento entre Waldeck e Célia Linhares ter efetivamente se
estreitado na década de 90, incluo sua narrativa nesse capítulo tendo em vista o fato de que
sua vivência na UFF se iniciou na década de 80. Dessa forma, Waldeck traça um panorama
sobre o programa da pós-graduação desse período, e também dos subseqüentes, que nos
159 Aqui se faz necessário ressignificar o sentido com que a palavra “político” é tomada para qualificar Waldeck.
Atualmente, associada a sentidos múltiplos, dada as seguidas decepções que a política e quem a faz em nosso país nos
trazem, tendemos a, muitas vezes, associar “político” a sentidos nem sempre tão qualificados. Aqui, a partir de Hanna
Arendt, assumimos que "
A política baseia-se no fato da pluralidade dos homens
", devendo organizar e
regular o convívio dos diferentes e não dos iguais. Para os antigos gregos não havia distinção entre política e liberdade e as
duas estavam associadas à capacidade do homem de agir em público, que era o local original do político. O homem moderno
não consegue pensar desta maneira pelas desilusões em relação ao político profissional e a atuação desse no poder. Porém,
Arendt, judia, que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial, acreditava na ação do homem e na sua capacidade de "fazer
o improvável e o incalculável". Waldeck é esse homem político, que tem uma visão aguda do contexto mais amplo de nossa
sociedade e sempre buscou espaços de atuação voltados para as políticas públicas. Um bom exemplo de homem político.
267
parece ampliar o conhecimento de seus meandros. Aborda as mudanças que o programa
sofreu, as idéias que circulavam e que se modificaram ao longo dos anos 80 e 90,
especialmente.
Entrevistando Waldeck, hoje Secretário Municipal de Educação de Niterói, descubro
que ele formou-se em Biblioteconomia, entrando logo em seguida para a pós-graduação em
educação na UFF. O mestrado constituía-se para ele em oportunidade de aprofundar
inquietações nascidas em sua graduação.
Fiz o mestrado em educação na Faculdade de Educação da UFF, vindo de
uma espécie de reconversão acadêmica. Eu havia feito uma graduação muito
novo, entrei na universidade muito cedo e meio “desbussolado”. Fiz um
curso de graduação (1981-1985) que não me desafiou muito. Foi um curso
de graduação em biblioteconomia e documentação da UFF, no Instituto de
Arte e Comunicação Social. Apesar de não ter me sentido desafiado, o curso
despertou um interesse muito grande por discutir temas que eu achava
importantes e que não eram absolutamente discutidos na graduação. Um
deles era a questão das bibliotecas escolares e as bibliotecas públicas, sobre
o papel que esses espaços podiam desempenhar no acesso e democratização
dos bens culturais. Eram temas marginalizados no curso, de abordagem
muito residual. Isso me preocupou e comecei a ler por conta própria. No
caso das bibliotecas escolares eu comecei a perceber que seria muito difícil
compreender melhor essa situação, esse tema, sem compreender a questão da
escola mais amplamente e eu pensei que tinha que estudar um pouco a
escola, e então quis fazer o mestrado em educação. Fiz a seleção em 1986 e
entrei na turma de 87, ainda na Faculdade de Educação que funcionava na
Drº Celestino onde tem ali a escola de enfermagem. Eu tinha 21 anos e
estava querendo entender mais a escola pois eu achava que assim poderia
entender melhor a questão da biblioteca escolar.
Waldeck relata que na época, meados de 80, poucos eram os que cursavam o
mestrado. Nesse sentido, vale abordar uma mudança razoavelmente recente com relação a
procura pelos cursos de pós-graduação. Nos últimos 10 anos aproximadamente, vimos correr
aos mestrados e doutorados uma grande quantidade de pessoas, muito em função das
demandas de um mercado de trabalho que cada vez mais se mostra restrito. Cresce também
nos editais dos concursos, exigências de altas titulações. Atualmente, para a grande maioria
dos concursos de professores titulares das universidades estaduais e federais, a titulação
exigida costuma ser a de doutor, a exceção das seleções para professores substitutos e
universidades particulares.
Ronca e Costa (2002) ressaltam que, se aliam à necessidades do mercado questões
como as desordens da economia e o ritmo precipitado das evoluções científicas e técnicas
268
contemporâneas que acabam por determinar uma aceleração geral da demanda por
conhecimentos na sociedade.
Mais do que nunca, a produção de conhecimentos diz respeito à vida de
todas as pessoas. Deve-se reconhecer, no entanto, que uma crescente
dificuldade em se prever o curso atual dos saberes, tal a quantidade de
inovações que chegam cotidianamente. (1999, p. 24)
Os autores chamam atenção ainda ao fato de que se soma a esses as próprias diretivas
da LDB 9394/96
160
, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, também chamada de
Lei Darcy Ribeiro, que abrange todos os veis de ensino, da educação infantil ao ensino
superior. A Lei exige que um terço do quadro docente das instituições de ensino superior
tenha título de mestre ou doutor. Isso, logicamente, ampliou a procura por cursos de mestrado
e doutorado por parte de muitos professores de cursos de graduação, sobretudo das
instituições de ensino superior privadas. Por outro lado, existe também uma tida questão
competitiva e de mercado quando nos referimos ao aumento do número de professores
titulados no ensino superior privado, expresso numa demanda crescente por esse tipo de
profissional.
Waldeck entrou no programa no final da década de 80, quando este passava por uma
transição importante. Reconfigurava-se o quadro de professores. Ele traz uma visão
panorâmica desse processo muito interessante, que nos favorece o entendimento das
mudanças no campo das idéias e da própria vocação da UFF enquanto curso de formação de
professores.
Fui me aproximando da Faculdade de Educação. Naquela época fazer
mestrado era muita coisa, era absolutamente raro e o programa era bem
conceituado. O programa surgiu aproximadamente em 75, ele tinha então 12
anos. A avaliação do programa não era por nota, era por conceito e o
mestrado tinha conceito A junto com a Universidade Federal de Santa Maria,
com a PUC de o Paulo e outras. Enfim, tinham seis programas com nota
mais elevada. Atuando neles haviam alguns nomes mais consagrados e
alguns que estavam começando a se consagrar. O programa sofreu uma
160 No próximo capítulo, que abrange as décadas de 90 até os dias atuais, abordaremos essa lei e o contexto de sua
promulgação.
269
mudança muito grande em meados dos anos 80. De 75 a 85 funcionou com
um corpo de professores num contexto em que a titulação de nível de
doutorado era raríssima. O primeiro programa de doutorado em educação era
o da PUC de São Paulo que começou em 80 com Luis Antonio Cunha,
Neidson Rodrigues, Ezequiel Theodoro da Silva, dentre outros. Muita gente
que lecionava no programa era mestre, ou tinha feito algum curso de pós-
graduação no exterior. Havia muita revalidação de diplomas.
Waldeck traz a tona também questões epistemológicas, ligadas às concepções teóricas
desse novo corpo docente. Identifica que, embora se enraizassem numa visão semelhante,
sobretudo no que diz respeito ao papel da escola e da educação num contexto social de
desigualdade, metodologicamente, havia muitas diferenças. Antes dessa mudança nos quadros
de docentes, Waldeck reconhece que o grupo era influenciado por uma tendência mais
conservadora. Uma abordagem de caráter mais sócio político pouco aparecia.
A avaliação era medida, a abordagem mais avançada da avaliação era a da
psicologia. De um modo geral o que orientava era uma linha muito
tecnicista. A didática era instrumental. Eram pessoas boas que compunham o
programa. Em meados dos anos 80, a Pós começava a receber quadros de
uma nova safra que vai se formando, vai se titulando na área de educação. A
Célia já estava desde os anos 70, ela tinha uma outra vertente filosófica.
Naturalmente, ela não engrossava essa fileira majoritária conservadora, mas
tinha boa relação, era uma pessoa diplomática, afável. Mas foi chegando um
grupo com o qual a Célia passou a ter mais identidade ideológica, de
princípios fundamentais, mas que depois se revelou uma diferença enorme
de método, de trato com as coisas. Um grupo da Nilda Alves, do Gaudêncio
Frigotto, da Regina Leite Garcia um pouquinho depois o do Luis Antonio
Cunha, principalmente. Esses quatro professores, nos anos 80, foram
responsáveis por uma importante reconfiguração do programa de pós-
graduação da UFF. O programa assumia um viés cada vez mais progressista
(e encontrando eco em algumas pessoas de lá, inclusive Célia), mais
sintonizado com a discussão sobre a escola pública, com a educação das
classes populares, com relação à discussão da construção coletiva de
políticas blicas educacionais. O viés era principalmente inspirado num
referencial do materialismo histórico dialético, com diferentes traduções para
ele, mas essa era uma matriz hegemônica e então o programa se
reconfigurou.
Waldeck notícias de uma reconfiguração, já mencionada por Balina, Jésus e
Heloisa, que, trazia novos influxos ao pensamento pedagógico da UFF, mas que em sua forma
de expressão parecia comportar exclusões e hostilidades aos que não partilhavam daquela
perspectiva.
Inclusive teve um certo expurgo, os professores que estavam antes foram
mais ou menos, descaradamente,expurgados, alguns por exigências de maior
270
titulação, que de fato começaram a ser necessárias e eles não tinham (isso
era um pretexto formal para expurgá-los) e por outro por que foram ficando
sem espaço. Outros se acomodaram a esse novo, ou começavam a fingir que
eram materialistas histórico dialéticos ou ficavam sem espaço. Aconteceu
um pouco de tudo. (Waldeck, entrevista, 2007)
A entrada de novos membros em um Programa é sempre acompanhada de
movimentos de estranheza e de reconhecimentos recíprocos que tendem a reorganizar
hierarquias.
Eu fui chegando em 1987, no segundo semestre, percebendo isso. Nilda
Alves era coordenadora do programa, tinha sido a primeira vez que esse
grupo assumiu a coordenação do programa. Nilda é assim uma pessoa de
viés autoritário, muito presente, uma presença muito forte, muito dura no
comando. se percebia que o Programa estava mudando. Essa mudança
trouxe perspectivas interessantes, não sob o ponto de vista teórico-
político, mas também por que eram pessoas muito mais atualizadas em
relação à literatura educacional e a pesquisa educacional. Eles tinham
inserção em pesquisa, o que não era o caso do programa até então, não tinha
essa tradição de ter professor pesquisador, todos eles estavam desenvolvendo
projetos, começando a publicar ou tinham publicado. Luis Antonio
tinha publicado em 75 “Educação e desenvolvimento social no Brasil” que é
um clássico dele, então, estava começando a publicar aquela trilogia sobre o
ensino superior, tinha feito os dois primeiros números. Gaudêncio estava
publicando “Produtividade da escola improdutiva”, primeiro livro dele.
Nilda Alves demorou mais a publicar, isso foi criando um caldo novo,
instigante. (Waldeck, entrevista, 2007)
Curiosamente, Waldeck não foi aluno de Célia na época do mestrado mas a conheceu
em um lançamento de livros, inaugurando uma primeira aproximação mais estreitas das
questões de que ela tratava.
Conheci a Célia na época do mestrado, embora o tenha sido aluno de
Célia, por diferentes circunstâncias. Uma única vez estive na antiga escola
da educação pois ela estava lançando aquele livro “Formação de professores:
tradições e contradições”, ainda aquela primeira edição, capinha preta,
editora Agir, então fui ao auditório, ouvi a fala dela sobre o livro.
(Waldeck, entrevista, 2007)
Nos encontros entre os personagens dessa tese, Waldeck nos conta um pouco sobre o
seu próprio mestrado e sobre sua orientadora, a professora Balina Belo, sublinhando a
semelhança que identifica entre Célia e Balina (a que a própria Balina havia se referido).
São os caminhos que vão se enlaçando a partir das escolhas que fazemos e vão abrindo novas
271
possibilidades. A respeito de sua dissertação, vale a pena destacar a observação que faz de
Balina, nossa entrevistada do capítulo anterior desta tese, bem como as conexões que se
estabelecem entre o jovem pesquisador e os estudos que Célia desenvolvia nessa época.
Eu acabei pesquisando mesmo a biblioteca escolar no Brasil Publiquei em 95
um livro sobre este tema intitulado “A miséria da biblioteca escolar”. Foi
meu primeiro livro. Então acabou que de fato eu fui atingir esse objetivo.
Minha orientadora foi Balina Belo Lima. Aliás, ela tem características muito
semelhantes a Célia, em alguns aspectos.
Vivendo no mestrado o ambiente da Faculdade de Educação, comecei a
perceber que lá era muito forte a discussão da formação de professores. Célia
mesmo foi uma das pessoas que, no início dos anos 90, começou a se
destacar no debate de viés mais nacional. Ela foi sócia fundadora da ANPEd,
e logo que voltou do seu doutorado atuou nos movimentos pró-formação dos
educadores que impregnavam a Comissão Nacional de Reformulação dos
cursos de formação dos educadores (CONARCFE), tendo participado de sua
diretoria, coordenando o Estado do Rio de Janeiro. Depois, ela foi uma das
fundadoras da ANFOPE e membro de sua diretoria.. A Faculdade tinha ai
uma movimentação interessante. Eu me interessei muito por esse tema, ia a
muitos seminários, ouvia gente falar, lia por minha conta. Terminando o
mestrado, fiz o concurso de seleção para professor auxiliar e passei, fiz com
mestrado ainda. Fui me impregnando desse debate sobre a formação de
professores e terminando o mestrado eu sabia que queria me aprofundar
mais nessa discussão. Comecei a ler sobre formação de professores e a
encontrar alguns artigos de Célia. Foi um dos meus primeiros contatos. Sai
do Brasil em 1993, continuava sem grandes contatos com a Célia. Pedi
afastamento da UFF para meu doutoramento. No meio do ano o CNPQ me
deu a resposta e fui para a França.
Curiosamente, foi durante o afastamento do Brasil que Waldeck se aproximou mais
um pouco da obra de Célia, em função de sua pesquisa, para a qual fez uma varredura das
principais publicações brasileiras sobre formação de professores disponíveis até então.
Fui para França e não tive contato com a Célia. Mas como eu estava
afunilando a pesquisa sobre formação de professores fiz, modestamente, -
talvez seja o vício de bibliotecário-, um levantamento bibliográfico muito
exaustivo. O período que eu cobri foi dos anos 70 até o início dos anos 90.
Devo ter deixado passar pouca coisa relevante sobre formação de
professores. Fiz um levantamento muito bom e atualizado para a época,
encontrei alguns textos de Célia, alguns me interessaram mais, outros menos.
Esse foi o primeiro contato maior. (Waldeck, entrevista, 2007)
Esse contato se estreitaria ainda mais quando de sua volta ao Brasil. O cenário era
outro e Waldeck encontraria em Célia uma parceira e aliada de trabalho.
272
Em 1997, recém chegado ao Brasil, de volta ao programa de Pós da UFF, ele
encontraria o corpo docente muito mudado. Waldeck se surpreenderia com a demanda do
grupo para que ele assumisse a chefia departamental. O livro escrito em função de seu
doutorado havia circulado no programa e as pessoas o conheciam. Para ele, o movimento de
cooptá-lo para chefe de departamento vinha num momento difícil, que lhe parecia apressado.
Além da inexperiência com os meandros institucionais, ele ainda voltava a se familiarizar
com o Brasil e sua antiga/nova rotina.
A experiência na França tinha sido muito significativa, Waldeck havia se adaptado
muito bem à vida no país, adorado morar e se engajado em diversas experiências que o
mobilizaram. Voltar era difícil, ele não queria. Porém, o compromisso com o investimento
que havia sido feito nele ecoava forte. Era preciso voltar.
Apesar da discussão sobre a sucessão de chefia departamental ter se intensificado nas
reuniões de colegiado, uma greve interromperia esse processo. O tempo necessário para que
Waldeck, mais ambientado, pudesse examinar a possibilidade de aceitar sua
indicação.Célia então o encorajou, decisivamente.
Mas começamos o ano com uma greve, de março de 98 a julho de 98 e essa
discussão ficou congelada, as chefias departamentais tiveram seus contratos
prorrogados. Em julho, após a greve, os colegas falaram, “Waldeck, você
não vai dizer que está se readaptando ainda, você está aqui quase nove
meses, você é brasileiro pô!”. Houve um movimento pela minha candidatura.
Eu sempre gostei da gestão, eu tinha vivido uma experiência na França na
Casa França-Brasil como conselheiro de administração, enfim, eu falei,
“quer saber, eu acho que vou pegar!”. A Célia foi uma das pessoas que me
encorajaram. (Waldeck, entrevista, 2007)
Essa atitude de Célia, que mesmo sem o conhecer, apostou e confiou em seu trabalho,
os aproximou. Era então o momento de estreitar aquela relação que se iniciava. Novas
perspectivas de parceria se abriam em função da aproximação e encontro de ideais.
Em 98 fizemos um encontro, Célia e eu, decidimos almoçar juntos no Rio,
num restaurante chamado Gioto, na Praia de Botafogo, um restaurante de
massas que eu recomendei por ter trabalhado ali perto. Marcamos uma hora
lá, almoçamos e fomos nos conhecendo, depois fomos na casa dela. Ela me
deu alguns livros e conversamos mais um pouco. Esse almoço foi o encontro
mais marcante que eu tive com Célia, pois sem que nós disséssemos isso,
decidimos ali que íamos trabalhar juntos. Desde então tem sido assim, em
alguns momentos mais perto, outros menos perto, mas desde esse momento
que nós compartilhamos sentimentos, vontades, pontos de vista sobre o
mundo, nos mantivemos sempre próximos. Acho que encontramos muitas
273
identidades, apesar das diferenças de gerações, de formações e tudo o mais.
Esse almoço foi muito longo, com muita contação de histórias, muito
agradável, engraçado. Ficamos juntos em muitas jornadas desde então:
orientando as mesmas pessoas, indicando bolsistas um para o outro,
montando o ALEPH em 1999, fazendo publicações juntos, nas lutas políticas
na faculdade e na universidade, enfim. Temos também muita participação
juntos em eventos, na Anfope, tentando encaminhar posições, articulando
coordenações que não queríamos que caíssem nas mãos de quem
considerávamos muito ruins, então é isso.
Agora estamos juntos novamente, ela está ajudando nessa reta final na
questão do Plano Municipal de Educação de Niterói. Além disso,
estreitaram-se nossas alianças familiares, eu freqüento as festinhas dos netos
dela e ela dos meus filhos, tenho uma amizade muito grande, um carinho
muito grande. (Waldeck, entrevista, 2007)
Esse afeto que se estabeleceu a partir da identidade de projetos e idéias profissionais
estendeu-se às relações familiares. Waldeck fala adiante que tem Célia como uma mestre,
mesmo sem ter sido aluno dela”. Isso nos faz pensar sobre quem são nossos mestres e o quão
múltiplos são os espaços de aprendizagem e formação, para além dos bancos das salas de
aula.
Eu a tenho assim como uma mestra, mesmo sem ter sido aluno dela. Eu tive
um grande mestre, de quem eu fui aluno de verdade que foi o professor Luis
Antônio Cunha, com ele eu aprendi muita coisa, enfim, tive também a Balina
que me incentivou muito no trato com a língua portuguesa, que era algo de
que eu gostava. E sem que tivessem sido minhas professoras a lia e a
Felisberta eu tenho como referências docentes. (Waldeck, entrevista, 2007)
Waldeck evoca, assim como outros entrevistados nessa tese, a imagem de Célia-
mestra. O fato de ele não ter sido seu aluno, faz pensar no que afinal caracteriza um professor
como mestre, que o torna referência e exemplo, imprimindo marcas em nossa trajetória. Pode
se explicar por algo que encontramos nas aulas por ele ministradas? É um conjunto preciso de
ações e procedimentos? o são poucas as pesquisas
161
, algumas de caráter mais prescritivo,
que analisam as qualidades típicas de um bom professor, assunto que mencionamos, mas
161 O precioso livro de Eliane Marta Teixeira Lopes, “Da Sagrada Missão pedagógica”, explora os discursos sobre a tarefa
de ser professor, pesquisando como a missão” de como o professor deve ser tem sido transmitida ao longo da história. A
autora propõe uma leitura nada convencional sobre o assunto, muito instigante, recorrendo à psicanálise, a religião, a
literatura e aos estudos da língua e da palavra.
274
que volta a tona, num oportuno retorno. Acredito que a definição do que é um bom mestre não
cabe em esquemas prescritivos, o que podemos fazer é aproximações com aquilo que é mais
pregnante nos mestres que nos mobilizam. É Freud, em 1914, por ocasião da comemoração
do 50º aniversário da fundação do colégio em que estudara quem diz algo que muitos de nós
poderíamos dizer (LOPES, 2003):
Minha emoção ao reencontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que
antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu
influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas
ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres.
(FREUD, 1976)
Pergunto a Waldeck qual sua impressão sobre o estilo Célia de fazer política. Tendo
em vista a sua convivência com Célia nos espaços da mesma universidade e na lida com
situações de embates e divergências entre os grupos, conhecer sua visão sobre esse tema é
bastante interessante.
No caso da Célia, não no caso de fazer articulações políticas, mas de um
modo geral, ela tem horror à truculência, seus movimentos são sempre feitos
com certo
charme
, com certo cuidado, com certa
elegância
, sem
necessariamente deixar de ter
contundência e firmeza
. Eu vi Célia fazer
duros embates em certas situações, seja academicamente seja em reuniões
em que se discutia candidatura para isso ou para aquilo. Ela era muito firme
mas sabendo a justa medida entre firmeza, deselegância e a virulência. Acho
que isso é uma marca importante, tem
uma certa poesia na ação dela, um
certo lirismo
. A Clarice Nunes fez um livro sobre Anísio Teixeira, a tese de
doutorado dela, chama-se “Anísio Teixeira poesia da ação” e eu sinto um
pouco isso na ação político pedagógico da Célia, tem uma certa poesia, tem
um certo cuidado com o outro, com o ser humano, com a pessoa, isso é uma
marca forte dela não só nas articulações. (Waldeck, entrevista, 2007)
Waldeck associa a forma firme, porém delicada com que Célia lida com os diferentes
espaços políticos a uma preocupação constante que orienta as atitudes da mestra: o respeito ao
outro. O respeito para ela é um dos pilares da educação e é vivido, por Célia, cotidianamente.
É em suas relações que a professora exercita o caminho do diálogo respeitoso, do
275
reconhecimento do outro em sua diferença como algo que faz parte do humano,
compreendendo que a diferença não justifica tratamentos hostis. Um aprendizado dos mais
difíceis.
Em minha atuação em diferentes espaços institucionais
162
e lidando com equipes
igualmente diversas, poderia elencar inúmeras situações de conflitos que vivenciei/ presenciei
entre as pessoas. Nos cursos de graduação, as polêmicas situações geradas por trabalhos em
grupo, quando estudantes hostilizam-se mutuamente; nas escolas, professores que não se
falam amigavelmente, que pouco partilham uns com os outros, se envolvendo igualmente
pouco com a vida coletiva; nas formações, grupos que se dividem, que se criticam
mutuamente e de forma velada, se boicotam. Esses desencontros, carregados de hostilidade,
reportam-nos a um tema discutido acaloradamente nos dias de hoje: a violência escolar,
sobretudo quando nos referimos a escola pública e seus “nós”. Usualmente, a
responsabilidade recai nos alunos e seus ambientes familiares.
Pobreza e marginalidade são associados não é de hoje. Magda Soares, em seu livro
clássico Linguagem e escola uma perspectiva social” (1986) aborda esse assunto,
analisando as relações entre as dificuldades do aprendizado da língua materna e as concepções
que subsidiavam as políticas traçadas para enfrentar tais dificuldades. Concepções que, regra
geral, depositavam na conta da criança e de sua origem social a responsabilidade pelo fracasso
escolar.
Com relação à violência não tem sido diferente. A “culpa” também costuma ser
atribuída ao contexto cultural das famílias de classe popular. Sem querer ignorar o impacto
que situações de miséria e pobreza têm sobre a vida humana, não podemos nos furtar a
examinar outros aspectos imbricados. Um deles diz respeito aos pequenos e sutis atos de
violência cotidianos.
Charlot (2002) lança luz sobre as tensões presentes nas práticas cotidianas da escola,
como por exemplo, nas regras de convivência e nas formas dos professores lidarem com
alunos como possíveis municiadoras de situações de violência. Trata-se, podemos dizer, de
162 Além de ter atuado como professora em diferentes segmentos, da Educação Infantil ao Ensino Superior, exerci também a
função de coordenadora e diretora pedagógica durante muitos anos em uma Instituição de Educação Infantil. Soma-se a essas
experiências, minha atuação como consultora do MEC que me possibilitou atura com diversas equipes de trabalho em vários
estados do Brasil. É desse lugar que trago exemplos desses (tão humanos), desencontros.
276
considerar a violência simbólica, conceito cunhado pelo pensador francês Pierre Bordieu
(1992). Tal conceito descreve o processo pelo qual a classe que domina economicamente
impõe sua cultura aos dominados. Processo que se expressa pelas diferentes máquinas sociais,
como a escola, os meios de comunicação e a família, que agem no sentido de favorecer a
introjeção dos valores e conceitos da classe dominante.
Pensando nas sutis violências do dia-a-dia na escola, poderíamos nos perguntar: de
que forma os próprios professores se tratam mutuamente? Como nos dirigimos aos pais e
familiares dos estudantes (agimos da mesma forma quando lidamos com a classe popular e a
chamada classe média?) E, como os funcionários que ocupam as posições mais baixas das
hierarquias institucionais são tratados? Lembro da curiosa experiência da publicitária
Fernanda da Silva Alves que foi morar um tempo na Austrália e, em função de um inglês
sofrível, conseguiu emprego como faxineira. Ela relata que o uniforme a tornou invisível!
(site da Abril, 2007). No exemplo de Fernanda, se evidencia as sutis relações de exclusão e,
por vezes, de hostilidade, presentes nas relações cotidianas. Relações atravessadas por, dentre
outros elementos, valores e pré-conceitos.
Cabe aqui uma breve digressão que me parece oportuna. Trata-se de refletir sobre a
relação entre ética e violência. Trata-se de pensar sobre a violência que ocorre na vida
institucional, em sua cotidiana virulência, expressas nas alianças excludentes, nas
hostilidades, nos abusos de poder, nos esquemas de exclusão. Nessa perspectiva, pensar um
mestre guiado por uma ética, é levar em conta seu papel de exemplo, referência de
comportamento e atitude. Mestre ético.
Examinando um pouco mais a questão da ética, citamos Tigre (2002) e Osório (1999)
em suas pesquisas sobre a ética que o mundo moderno transmite aos jovens. Para eles, tal
ética não é uma ética de reflexão alicerçada na responsabilidade e sim na ação inspirada no
oportunismo, na qual meios e fins estão confundidos e a violência encontra seu habitat ideal.
Os jovens aprendem a não sacrificar o prazer de hoje pela segurança de amanhã, pois esta
carece de fundamentação num mundo em que o futuro deixou de ser previsível e, quiçá, até
mesmo de se fazer possível; igualmente apreendem que a violência é a única forma de nivelar
privilégios.
Poderíamos considerar tais reflexões para pensar na violência cotidiana presente nas
relações interpessoais das instituições? De que forma interesses políticos, vaidades pessoais,
vão modelando as dinâmicas das relações, tornando-as menos éticas, se tomarmos ética em
sua concepção de respeito ao diferente?
277
Ainda sobre situações de embate que exigiram posicionamentos de Célia, Waldeck se
reporta à ocasião da tese de livre-docência e as situações difíceis que envolveram esse
momento. Não é a toa que muitos dos entrevistados que partilharam daquele momento se
reportam a ele quando perguntados sobre “situações de embate”, de alguma forma o episódio
marcou.
Lembrando desse momento, Waldeck traz reflexões sobre sua orientadora Balina
Belo, figura que esteve próxima de Célia ao longo das décadas de 70 e 80 especialmente e que
também se ressentiu com o episódio da “livre-indecência”, como ambos se referiram. Balina,
personagem dessa tese, aparece aqui nas memórias afetuosas de seu ex-orientando.
Waldeck percebia em Balina, como já citado, traços comuns com Célia.
Eu percebia na Balina e na Célia traços muito comuns embora Célia tenha
avançado mais na carreira acadêmica, científica. Balina teve outro tipo de
carreira universitária, muito bem sucedida. Foi professora universitária da
UFRJ, se aposentou, e depois na UFF, fez um concurso de Livre-Docência.
Hoje esse concurso não existe mais, em algumas universidades ele faz parte
da carreira, nas universidades paulistas. Mas na época, a Livre-Docência era
no Brasil, sobretudo numa época em que doutorado era raridade, um título
altamente valorizado, tanto quanto ou mais que o doutorado. O problema é
que, contradições desse nosso país maravilhoso, a Livre-docência acabou se
transformando em “Livre-Indecência”. Houve casos antológicos de
professores que fizeram vinte e trinta páginas e conseguiram defender como
tese de livre docência, ganhando título de livre-docente, com todas as
prerrogativas que o título conferia. Correspondia ao grau de doutor,
habilitando a lecionar em programa de pós-graduação e a chegar ao nível de
professor titular em universidades.
Waldeck reporta-se também a Balina como precursora de uma crítica a Didática e seu
enquadramento limitante, muito singular para a época. Também reconhece no espírito
insurreta de sua mestra Balina, ressonâncias com Célia.
Em 1982 Balina fez uma tese de livre-docência, na área de didática, campo
forte dela. Ela tinha formação em língua francesa, português-francês, sempre
avançou e se aprofundou no ensino da didática e ela sempre foi uma crítica
insurreta contra aquele modelo bitolante e enquadrador que prevaleceu na
didática desde o início dos anos 80. Ela publicou pela EDUF um livro que se
chama “Ampla didática, crítica ao ensino brasileiro”. Nele ela faz uma
crítica arrasadora e fundamentada ao
status quo
, ao estado da didática
naquele momento, faz uma crítica acadêmica e poética ao mesmo tempo.
Portanto eu vi um pouco dessa característica da Balina, essa abordagem
meio lírica, meio poetizada, muito insurreta, muito apegada a liberdade. Ela
achava que alguns rituais na universidade eram uma quadratura. Na defesa
de Balina, foi um processo que marcou muito, a banca era muito
conservadora, foi gerando uma tensão antológica. (Waldeck, entrevista,
2007)
278
Voltando a Célia, Waldeck ressalta também uma certa jovialidade na forma como ela
se engaja em novos projetos, mantendo um frescor e vigor entusiasmados. Uma vitalidade
contagiante.
Acho também que ela fica muito excitada nas articulações políticas, ela fica
muito agitada, eu falo “vamos Célia, vamos mais de vagar!”, ela tem essa
agitação, meio teen-ager, o que é interessante, isso
vivacidade,
um
vigor, ela é uma senhora de quase 70 anos! São marcas que mantém esse
romantismo, esse lirismo, essa poesia
, tem essa coisa meio menina, essa
meninice, que não é algo forçado que ela joga para parecer mais jovem, de
forma piegas, não, acho que é característica dela mesmo, é autêntico,
genuíno. (Waldeck, entrevista, 2007)
Outro aspecto que merece destaque diz respeito à capacidade de Célia em dialogar
com diversas questões. Na contramão da perspectiva dos especialismos, que por vezes
obnubilam a capacidade que possuímos de pensar o mundo de forma mais ampla e integrada,
a mestra autoriza-se a afirmar seu olhar sobre as questões que a cercam. Não sem que para
isso lance mão de seu referencial teórico. Também aqui, essa abertura de Célia é reconhecida
por outro de seus pares.
Ela tem densidade. É uma pessoa que tem muita erudição, que é capaz de
fazer articulações entre uma questão concreta, cotidiana, sobre uma polêmica
qualquer que a prática política faça emergir e fazer articulação entre isso e o
pensamento de um filósofo que, de repente, ela cita. Ela cita um filósofo, um
conceito, faz costuras, ela tem essa capacidade, eu sempre vi Célia, de um
modo geral, muito respeitada. (Waldeck, entrevista, 2007)
Waldeck dá também a sua própria versão da passagem sobre a candidatura de Célia ao
CES, relatada por Jésus Bastos, Heloisa Villela e pela própria Célia. Vale incluí-la mesmo
assim, pela riqueza de conhecer uma mesma situação sobre diferentes ângulos. Para cada um
que relatou esta história, o acontecimento teve um impacto sutilmente diferente, ainda que
todos tenham destacado a forma elegante e, de certo modo, otimista e positiva com que Célia
enfrentou a situação, bem como a dureza desta experiência.
Célia teve certas frustrações. Nos anos 90 ela teve participação no conselho
universitário da UFF e chegou a haver forte articulação para que ela fosse
diretora do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CES) que é o centro ao
qual está vinculado a Faculdade de Educação, mas ai teve uma
movimentação contra. Célia é genuína e autêntica e tende a não ser matreira.
279
Não que ela seja uma pessoa ingênua, que ingênua ela não é, mas tem umas
articulações políticas que beiram a sacanagem e isso ela não pratica, isso
escapa a ela, ainda bem. Nesse contexto ela foi “sacaneada” mesmo, ela
ficou muito frustrada e tomou uma atitude de não mais se envolver com
política dentro da universidade com o intuito de ocupar espaço propriamente
para ela. Não deixou de se envolver em várias articulações, mas ela mesma
não se colocou mais a disposição para ocupação. (Waldeck, entrevista, 2007)
Ainda sobre as questões que permeiam as obras de Célia e sobre seu estilo de escrita,
Waldeck comenta a presença de um jeito muito singular de compreender a política, que
transcende às discussões partidárias para considerar aspectos mais amplos.
Também tem uma parte interessante dos estudos dela, uma abordagem da
política educacional meio fora de prumo para muitos. Os textos sobre
política educacional de Célia não são textos convencionais sobre o assunto, a
tal ponto que muitos de seus críticos chegam a dizer que ela não discute
política educacional.
Ela entende a política como uma atividade que
antes de tudo é atravessada pelo humano,
pelas contradições do
humano.
É um texto que não se transformou no que boa parte da literatura
sobre política educacional se transformou, beirando o panfletário. FHC
contra pro FHC, Lula contra Lula, você pega hoje vários autores, que
discutem política educacional, alguns até da UFF, e as produções não têm
mais nenhuma diferença essencial em relação aos textos sindicais, como se a
produção acadêmico-científica tivesse perdido sua identidade. Nós não
produzimos textos sindicais, nosso papel é outro, temos o compromisso de
gerar reflexões
sobre
políticas educacionais. Muitas instituições, muitas
pesquisas, se transformaram em trincheiras para atacar ou defender
governos. Obviamente com isso, eu não estou defendendo nenhum tipo de
neutralidade, mas penso que o texto acadêmico precisa cumprir um outro
papel. A construção de Célia certamente não se prestaria a esse formato.
(Waldeck, entrevista, 2007)
Waldeck destaca também a contribuição de Célia para o âmbito mais amplo das
políticas de formação de professores, relembrando alguns de seus movimentos mais
significativos:
Célia participou da ANFOPE. Num primeiro momento ela ajudou a
estruturar o movimento, depois ela passou a participar de maneira menos
estruturante e mais dos debates. Em 78, nós tivemos o I Seminário de
280
Educação Brasileira
163
na UNICAMP que foi o primeiro grande evento
educacional pós-ditadura militar, primeira vez que o campo acadêmico se
reuniu para um evento de dimensão nacional. O evento tinha como tema
central a formação de educadores, como se dizia na época, hoje falamos
mais de formação de profissionais da educação. Um dos encaminhamentos
desse evento foi constituir no Brasil estruturas que viabilizassem o debate
nacional sobre políticas de formação de professores e sobre currículo de
formação de professores. Constituiu-se então, em 80 na I Conferência
Brasileira de Educação em São Paulo, um Comitê Pró-Formação do
Educador. Célia, voltando do seu doutorado em 1983 passou a participar do
movimento Pró-formação do educador, participando da Comissão Nacional
de Reformulação dos Cursos de Formação dos Educadores. Esses
movimentos e comissões foram, durante algum tempo, o grande insumo
para os debates de políticas de formação de professores no Brasil.
Nas faculdades, os primeiros movimentos de mudança curricular que se
esboçavam nos cursos de pedagogia, têm essa inspiração, têm essa
referência. Depois em 83 esse Comitê pró-formador vai se transformar na
Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação dos
Educadores (CONARCFE), isso acontece em Belo Horizonte. Em 89 se
transforma na Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da
Educação, ANFOPE que existe até hoje. A Célia foi fundadora desses
movimentos, nunca presidiu a ANFOPE, mas esteve em várias diretorias.
Ela contribuiu tanto do ponto de vista da organização desses movimentos,
sobretudo nos anos 80, e como intelectual, mais nos anos 90. Participante
muito ativa e presente nesse debate da ANFOPE. (Waldeck, entrevista,
2007)
Waldeck continua, expondo sua avaliação- crítica dos caminhos que a ANFOPE vem
trilhando:
A Anfope também viveu nos anos 90 uma espécie de crise de identidade,
leitura minha, talvez. Às vezes, se parecia mais com um movimento
acadêmico, às vezes se parecia mais com um movimento sindical. Enfim,
isso também afugentou os intelectuais da ANFOPE que vieram buscar uma
reflexão mais acadêmica da formação de professores e não uma trincheira
política contra o neoliberalismo. (Waldeck, entrevista, 2007)
163
Pino nos conta que o Seminário de Educação Brasileira, acontecido na UNICAMP de 20 a 22 de novembro de 1978,
foi o primeiro encontro nacional pós-golpe de 64. O clima político que envolvia o evento a intensificação da luta pela
redemocratização e por reformas em amplos setores da sociedade acabou atraindo 600 professores de todos os Estados.
Havia ainda a esperada volta do educador Paulo Freire do exílio, inclusive como professor da Unicamp. Ele não conseguiu
visto de entrada no país, mas abriu o seminário com um depoimento gravado por telefone. (Jornal da UNICAMP, 2007).
281
Na formação da ANPED, Célia também teve uma importante contribuição, Waldeck
não esquece disso.
Na ANPED ela também contribuiu embora nem sempre participando da
diretoria, mas sobretudo no momento em que a gente estava organizando as
formas de discutir currículo, discutir formação de professores e algumas
formas também de luta acadêmica, de luta política.
Para ele a formação de professores era e é um tema muito caro e relembrando a
atuação de Célia na ANPED revê o seu próprio percurso com relação ao tema
164
, resgatando
movimentos históricos e políticos recentes sobre os parâmetros legais para a formação do
professor da escola Básica. Célia seria sua companheira pela defesa da universidade como
lócus privilegiado da formação do professor:
Estudei muito sobre o tema e comecei a viver isso, participando de eventos,
discretamente. Quando viajei para França me debrucei muito sobre esse
assunto. Minha tese foi sobre a universitarização da formação de professores
no Brasil. Um dos focos era pensar sobre a formação de professores de a
4ª. Foi uma luta muito grande, pois não havia consenso em torno disso. Era
muito forte a tese defendida, principalmente, pelo departamento de Educação
da PUC-Rio, sobre a revitalização da escola normal. Eles achavam que não
tinha que formar professores na universidade, nada de formar no ensino de
educação superior, na Pedagogia. Para eles, o que cabia às universidades
fazer era ajudar a revitalização da escola normal. Esse foi um debate muito
intenso nos anos 80 e que só teve seu desfecho a partir do final dos anos 80 e
início dos anos 90, quando muitos cursos de Pedagogia assumiram de forma
mais ou menos clara a formação de professores de a 4ª e alguns da
Educação Infantil, também no curso de pedagogia. Esse processo a rigor,
se consolida em 2006 com as Diretrizes da Pedagogia, não bem a
possibilidade de que o curso de Pedagogia não forme professores.
Sobre esse assunto, Waldeck escreveu diversos artigos e lançou um livro em 1988, do
qual compartilhou a autoria com Célia intitulado, “Formação dos profissionais da educação, o
novo contexto legal e os labirintos do real”. Parte desse movimento político sobre a legislação
164 Essa é, penso eu, uma das preciosidades dessa pesquisa, a instigação que leva os entrevistados a resgatar a própria
história.
282
da pedagogia foi discutida nessa publicação. Waldeck relembra a força que esse tema passou
a ter em sua militância no campo da educação.
Fiz uma pesquisa de campo em três Universidades no Rio de Janeiro. Fiz
toda uma discussão sobre a trajetória política e histórica do movimento e a
história política em torno da discussão sobre a formação de professores no
Brasil e, ao voltar ao Brasil tive uma participação que foi frenética de 99 a
2004, foi muito intensa. Na ANFOPE também ajudei, coloquei no centro da
cena a FORUNDIR (Fórum de Diretores das Faculdades de Educação), uma
outra entidade nesse debate, que hoje, com a ANFOPE, ANPED E ANPAI,
são as entidades que fazem a discussão sobre a política educacional de
formação de professores. Presidi o Fórum de Diretores durante um bom
período e fui acrescentando o que eu tinha estudado e o que tinha vivido
preliminarmente. Eu sempre fazia menção ao trabalho da Célia e estávamos
juntos em eventos. Nos anos 90 ela também foi a várias reuniões da
ANFOPE, participou, debateu, fazendo parte de todos os movimentos.
(Waldeck, entrevista, 2007)
Waldeck nos dá um vivo relato panorâmico do cenário político da formação de
professores no Brasil das décadas de 80 e 90. Fala como alguém que está por dentro das
dobras dos movimentos.
Pergunto sobre os textos de Célia a que teve acesso e sua impressão sobre eles.
Também aqui Waldeck revela sua prodigiosa memória e comenta sobre o contexto de
produção de algumas das publicações de Célia. Conhecer esse contexto é muito interessante,
pois nos possibilita vislumbrar a vida que cerca aquele pensamento, dando ao mesmo um
sabor de experiência e história.
Esse livro de Célia, A Escola e seus Profissionais: tradições e contradições”
é um livro marcante porque confirma o espaço dela na discussão sobre a
formação de professores no Brasil. Na verdade, é um livro que reúne várias
conferências, palestras e algumas publicações que ela havia feito. É um
livro importante na história desta professora, como uma interlocutora no
debate nacional sobre a formação de professores. Ela tem algumas
publicações menores, mais pidas. Uma com Nilda Alves, publicada em 92
pela editora Cortez, que tem um artigo intitulado “Formação de professores,
pensar e fazer”. Ela tem uma coleção dos anos 90, em que ela reuniu um
grande debate que fizemos no cinema da UFF, eu Gaudêncio e ela e outros.
Fizemos, também, um livro sobre “Reformas educacionais no Brasil e na
Espanha”. um livro que ela escreveu junto com a Clarice Nunes sobre as
memórias docentes, textos produzidos por essas professoras como memorial
para concurso de professor titular. Este é interessante para ver como que ela
mesma narra seu processo de constituição como professora na UFF.
O livro que fiz com ela teve muita circulação no meio educacional. Teve um
papel e tem ainda no debate sobre formação de professores.
283
Percebo também que a partir dos anos 90 Célia passou
a anifestar mais claramente o intere
que me ocorre de memória. (Waldeck, entrevista, 2007)
Em suas memórias, Waldeck vai traçando o panorama político que emoldurava os
diferentes momentos históricos vividos, não apenas na UFF, mas, também, em outras
instâncias no tocante às políticas de Formação de Professores e ao campo das idéias que se
faziam presentes no ambiente acadêmico. Polarizações, divergências de posicionamentos,
disputas, encontros e desencontros. Cenário de ambigüidades, conquistas, recuos. Nesse
movimentado contexto, vivo e em permanente transição, Waldeck destaca a figura de Célia,
em sua firme atuação, compromisso político e vitalidade.
Compromisso e prática políticos, que, nas palavras de Waldeck, eram atravessados
pelo humano, pelas contradições do humano. Engajando-se com jovial entusiasmo nas ações
que julgava importantes.
Firmeza dotada de charme, de delicadeza, de uma certa poesia na ação, um certo
lirismo. Traduzida num cuidado com o outro. Sem ingenuidade, nos diz Waldeck, mas com a
saudável capacidade não fugir do prumo ético, que a sustenta, para enfrentar embates.
3.5 Mestra-mãe
“Cristo nasceu de uma virgem, de acordo com a doutrina católica romana. A
referência simbólica não é ao nascimento físico de Jesus, mas à sua
significação espiritual. Eis aí o que o nascimento virginal representa. Heróis
e semideuses, nascem como seres motivados pela compaixão e não pela
vontade de domínio (...)”(CAMPBELL, 1990)
“Na Índia, existe um sistema de sete centros psicológicos, ao longo da
espinha. Eles representam planos psicológicos de interesse, consciência e
ação. O primeiro se localiza no reto e representa a
alimentação
, função
básica, sustentadora da vida. O segundo centro psicológico é simbolizado
pelos órgãos sexuais, o que significa dizer
a urgência da procriação
. Um
terceiro centro se localiza na altura do umbigo e é o centro da
vontade e do
poder, domínio
e realização,
ou em seu aspecto negativo, conquistar,
subjugar, esmagar, refugar os outros. Essas três funções – alimentação,
procriação e domínio e conquista – são todas de instinto animal.
O quarto centro está a altura do coração e é o da abertura para a
compaixão.
Aqui você transita do campo da ação animal para um campo que é
propriamente humano e espiritual. Em cada um desses centros é imaginada
uma forma simbólica. Na base, aonde se encontra o primeiro centro, o
símbolo é o do lingam e yoni, os órgãos masculino e feminino em
conjunção. No centro do coração, aparecem outras vez esses símbolos, mas
aqui representados em dourado, para simbolizar o nascimento do homem
espiritual a partir do homem animal.” (CAMPBELL, 1990)
284
Mestra, Mestra-mãe. Imagem evocada por Heloisa e Waldeck. e, origem, fonte,
causa. Nascimento, vida, morte. Alimento, proteção, segurança, alguns dos significados
dicionarizados. Que outras imagens estão associadas à Mãe? Idéia que ficou ressoando em
mim, me convidando a explorar, para além do referencial religioso cristão tão arraigado em
minha/nossa civilização ocidental. O que nos dizem as sociedades primitivas e orientais?
Ainda que não exaustiva, essa aproximação instiga e traz sentidos convergentes com as
imagens que emergem nesse capítulo
Na Índia, nas religiões consagradas à Deusa, o feminino representa as formas de
sensibilidade. A Deusa-mãe, que é espaço e tempo, e o mistério para além dela é o mistério
para além de todos os pares de opostos. Assim, não é masculina nem feminina. Tudo está
dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos (CAMPBELL, 1990, p.178). Deuses, que
como nos diz Campbell, somos nós, todos nós. Também na Índia considera-se que existem
sete centros psicológicos ao longo da espinha, referentes a consciência, interesse e ação.
Dentre eles, alguns estão ligados ao instinto animal procriação, vontade, realização e
alimentação e, na altura do coração, se localiza o centro da compaixão, ligado ao homem
espiritual. Compaixão, com-paixão, sofrimento partilhado: participação efetiva no sofrimento
de outra pessoa (1999, p.184). esta o início da humanidade, nos diz Campbell. É na
presença dessa dupla dimensão, animal e espiritual, que nasce o homem espiritual.
Nos diversos sistemas religiosos a figura da Mãe sempre esteve presente. Nas
sociedades primitivas agrárias, especialmente na antiga Mesopotâmia e do Egito, a Grande
Deusa, a Mãe-Terra estava associada à agricultura. Mulher que dá à luz, assim como a terra de
onde se originam as plantas. Mãe que nutre e sustenta. A própria personificação daquilo que
dá origem às formas e as alimenta.
Ser mãe está ligado ao próprio princípio feminino. As imagens associadas a mulher-
mãe remontam a diversas e distintas matrizes enraizadas na cultura ocidental e oriental, como
as que abrem essa parte do capítulo. Grande-Deusa, Deusa Mãe-Terra, Mãe-Céu, Virgem
Maria, Madona...
Mãe é o primeiro continente da criança, vínculo vital sem o qual a vida não floresce.
Calor, alimento, afeto. Reconhecimento, confiança, encorajamento. Célia é essa Mestra-Mãe,
Mulher-Deusa, que nutre, alicerça.
Alimentação, procriação, vontade de realização, sentidos vitais que nos ligam a vida, a
criação de mundos possíveis, ao trabalho, as idéias. Aliados pela compaixão, que no dizer de
285
Campbell (1999, p. 170), evoca o cuidado com o outro, o compartilhamento solidário e
efetivo com nossos pares.
Célia surge pelo olhar de seus pares, como essa mestra que nutre, com idéias, apoio,
encorajamento. Que é capaz de gerar/procriar, numa incessante e vital busca por associações,
encontros e trocas, numa efervescente produção de idéias e projetos. É também mestra cuja
vontade é férrea. Vontade que é férrea e forte, sem, no entanto sucumbir ao possível aspecto
negativo da vontade, que seria o de subjugar, oprimir, tirar sangue das bochechas”, para
usar uma expressão sua tão peculiar (permitam-me, vou repeti-la, incontáveis e incontroláveis
vezes. Não é descuido, é gosto).
Mestra-mãe, que sustenta seus filhos mas também os encoraja a abrir novas “trilhas”.
Nas epopéias, freqüentemente quando o herói nasce, o pai morreu ou esem algum outro
lugar, então o herói tem que partir à procura do pai. Na Odisséia, o filho de Ulisses,
Telêmaco, recebe de Atena a orientação: “Vá encontrar seu pai!”. Simbolicamente, a mãe
nutre, nascemos dela, ela nos educa, acompanha o crescimento até a idade em que devemos
encontrar o pai. O pai, representando aqui o encontro com você mesmo. Com seu próprio
mestre, que escolhe caminhos, que atravessa fronteiras. Descolado fisicamente da e-
origem, o “herói” leva a mãe dentro de si mesmo.
Fiquemos com essa imagem da mestra, que nutre e fortalece e que agora caminha com
mais firmeza, ampliando seus espaços de ação, criando laços e associações em que se
conjugam solidariedade, militância e compromisso com o outro e com a educação.
286
CAPÍTULO 4
De 90 aos dias atuais: início de um novo século, novos tempos?!
Pela Internet
Gilberto Gil
Criar meu web site
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje ...(2x)
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante
Da infomaré
Que leve um oriki
Do meu velho orixá
Ao pôrto de um disquete
De um micro em Taipé...
(...)Que leve meu e-mail lá
Até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque
Para abastecer
Aihê! Aihê! Aihê!...
Eu quero entrar na rêde
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tiétes
De Connecticut...
De Connecticut de acessar
O chefe da Mac
Milícia de Milão
Um hacker mafioso
Acaba de soltar
Um vírus prá atacar
Programas no Japão...
Eu quero entrar na rêde
Prá contactar
Os lares do Nepal
Os bares do Gabão...
Época de muitas transformações em que novas estruturas emergiram
no interior das instituições, entre instituições, nos países e no mundo.
287
A chamada "sociedade global" se delineia cada vez mais,
propulsionada principalmente pela rede telemática que multiplica e
acelera a intercomunicação dos fatos no momento de seus
acontecimentos (ROSETTO, 1997). A popularização do computador
pessoal e do uso da internet, ainda que caibam aqui muitas reflexões
sobre o que tal popularização provou em termos culturais, é inegável
reconhecer, ampliou a circulação da informação, “para o bem e para o
mal”
165
.
A charge de Dan Perjovschi instiga a refletir sobre essa
difusão por vezes indiscriminada, refletindo sobre o estatuto de
“verdade” que alguns veículos de informação ganharam:
Dan Perjovschi
No campo tecnológico de um modo geral, há um crescimento de invenções que
passam a fazer parte da vida cotidiana. Telefone celular, CD, DVD, processadores, redes de
internet cada vez mais velozes, TVs com resoluções refinadas, dentre outras, configuram uma
165 A esse respeito, a instigante charge do artista plástico Dan Perjovschi, traduz o estatuto de aparente “verdade” conferido
a informação circulante na internet, sem que se questione as fontes de origem e os critérios considerados para difusão das
informações que ali se encontram. Na educação, uma situação que tenho, enfrentado como professora universitária,
lamentavelmente, é a enxurrada de alunos que utilizam a internet para seus trabalhos acadêmicos de forma pouco crítica e
reflexiva, por vezes, repetindo sem mudar vírgula, textos inteiros que de extraem. “Para o bem e para o mal”, é nesse
sentido que uso essa expressão. O Artista Plástico Dan Perjovschi (1961) é romeno, seus desenhos aliam a tradição dos
cartoons com uma crítica social marcada pelo humor. Suas instalações revelam uma observação atenta e penetrante dos
contextos políticos, sociais e culturais em que o artista desenvolve os seus projetos. Em 2007, o MOMA abrigou um enorme
mural com seus desenhos que podem ser vistos no próprio site do MOMA
(
http://www.moma.org/exhibitions/exhibitions.php), vale conferir.
288
cultura que incorpora a tecnologia ao modo de vida, num movimento incessante em que,
muito rapidamente, uma nova invenção desponta no mercado, tirando das prateleiras e dos
planos de consumo da população, os “velhos” artigos, que passam a ser “ultrapassados”.
No mundo, o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria foram movimentos
emblemáticos de um período em que a democracia se expandiu. Mas importa perguntar: para
onde se expandiram? A que preço o fizeram? A União Soviética se desfez e os EUA se
tornaram a única grande potência. Países como Taiwan, Chile, África do Sul e Indonésia
saíram de regimes totalitários para governos eleitos.
Na África, inúmeras guerras e o aumento nos casos de AIDS trouxeram uma
significativa diminuição da expectativa de vida, para muitos e graves problemas econômicos.
Guerras como a dos Balcãs, a Guerra do Golfo, dentre outras, refletiam o choque de
civilizações.
Cresce a preocupação de vários segmentos da sociedade com as questões ecológicas,
que confrontam o custo de uma “modernização” que até então, não levava/leva em conta a
necessidade fundamental de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. A
reciclagem e os biodegradáveis se tornam mais difundidos e a pesquisa de soluções
alternativas de energia e tecnologia não agressivas ao ambiente incrementam-se, ainda que a
hegemonia e força de muitas grandes indústrias se mantenha, cuja prioridade lucrativa, regra
geral, desconsidera tais preocupações. O filme de Al Gore, “Uma verdade incoveniente”
esquenta o debate sobre a urgência de tomar as rédeas de um desenvolvimento agressivo,
deixando claros os riscos para a sobrevivência humana do progresso irresponsável.
Nas ciências, as pesquisas genéticas ganham força, a “Ovelha Dolly”, a perspectiva de
clonagem humana e os alimentos genéticamente modificados trazem a tona acirrados debates
sobre os limites entre ciência e natureza, entre ciência e ética. A mortalidade pela AIDS
diminiu com a descoberta de inibidores de protease; figuras públicas divulgam sua condição
de portadores, levando a discussão sobre a doença e favorecendo a diminuição do preconceito
contra o aidético.
Foi também um período marcado pelos conflitos militares entre os Estados Unidos e o
Oriente Médio, desencadeados pelos atentados terroristas do World Trade Center em Nova
York. A tragédia da queda das Torres gêmeas coloca a questão do terrorrismo no centro da
discussão e início (ou continuidade) a uma série de invasões americanas pela “paz”. Outra
fatalidade, O Massacre de Columbine, em que dois estudantes de uma escola no Colorado
mataram 12 colegas e depois se suicidaram, traz à tona a reflexão sobre a violência praticada
289
numa sociedade rica e “desenvolvida”, evidenciando as complexas relações culturais ali
imbricadas. A esse respeito, o filme “Tiros em Columbine” do americano Michael Moore vai
à raiz dos problemas de seu país, apontando para a questão cultural como um fator-chave para
a compreensão do violento panorama social americano.
No Brasil, no campo da arte, uma valorização internacional da cultura brasileira,
expressa no fortalecimento do cinema nacional e na excelente recepção no exterior de nossos
músicos. Lenine, Joice, dentre outros difundem uma sonoridade que ganha cada vez mais
visibilidade. O RAP, do inglês
Rhythm and Poetry
/ritmo e poesia, ganha força como expressão
musical-verbal da cultura Hip Hop, aqui e no mundo. Aborda temas como a violência, a
situação política, sexo e drogas, dentre outros mais prosaicos. No Brasil, esse ritmo se
popularizou com Planet Hemp, Mv Bill e uma profusão de rappers, alguns mais, outros menos
engajados com a denúncia e a crítica social. O funk com sua batida forte e letras de intenso
apelo erótico, sacudiu as cidades, conquistando fãs entre os jovens de todas as classes sociais.
Pilagallo (2006) apresenta o panorama político desde o início dos anos 90. Tivemos
Fernando Collor de Mello na presidência, durante o período de 1990 a 1992, primeiro
presidente da República eleito pelo voto direto após o Regime Militar. Seu governo foi
marcado pela implementação do polêmico Plano Collor, pela abertura do mercado nacional às
importações e pelo início do Programa Nacional de Desestatização. Após acusações de
corrupção, renunciou ao cargo, na tentativa de evitar o processo de impeachment. Itamar
Franco, o vice-presidente, tomou posse, exercendo o cargo de 1992 até 1995. Ao longo de seu
mandato, Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda, pondo em pé o Plano
Real, que alcançou relativo sucesso, garantindo sua eleição para presidente, durantes os anos
de 1995 a 2002.
Após três sucessivas derrotas eleitorais em 1989, 1994 e 1998, Luiz Inácio Lula da
Silva, co-fundador do Partido dos Trabalhadores e nosso atual presidente da República,
assumiu o cargo em 2003. É o primeiro presidente oriundo das classes trabalhadoras e sua
eleição encarnou os desejos de um grande contigente de pessoas esperançosas em ver suas
demandas reconhecidas.
Com relação à educação, a partir da década de 90 tem início um período de
descentramento e desconstrução das idéias das décadas anteriores. As mudanças não
acontecem numa data certa, tampouco são lineares, trata-se, no entanto, nesse estudo, de
lançar um breve olhar panorâmico para o movimento desse período entre a década que
encerra o século XX e o início de um novo século, compreendendo algumas dinâmicas que se
instauram, seus imbricamentos e as marcas que imprimem ao pensamento pedagógico, as
290
relações socioeconômicas e políticas. As “novas idéias” efetivamente circulavam nas
décadas anteriores, mas é nos anos 90 e no início de 2000 que se tornam hegemônicas e, de
certo modo, sofrem remodelações - sobre isso vamos tratar mais à frente -, afeitas aos novos
tempos.
As “velhas idéiaspassam a povoar esses tempos com nova roupagem, remodelando-
se em função de uma estrutura social, política e econômica que modifica as relações de
trabalho, trazendo para a escola e para a sociedade de forma mais ampla, um rol de
expectativas e demandas que sopram para novas direções. Tema de que trataremos no
próximo item.
Esse capítulo está organizado da seguinte forma: “Novas idéias, velhas raízes” situa o
campo das idéias pedagógicas que tem curso no período, relacionando-as com o contexto
social, político e econômico. Em seguida, “Novos rumos, novos ares: tempo de recomeços”,
apresentamos Célia e os caminhos que trilhava. Após esse item, dividimos o restante do
capítulo em duas partes. Em Parte I, incluímos “Trilhas do pensamento: anos 90”, onde
apresentamos as principais idéias dos textos produzidos por Célia na cada de 90, seguida
por “Vozes dos parceiros: anos 90”, com as narrativas produzidas a partir das entrevistas com
as professoras Clarice Nunes, Valdelúcia Alves da Costa e Inês Bragança. Na Parte II,
“Trilhas do pensamento: anos 2000”, com algumas das obras de Célia nesse período, “Voz
dos parceiros: Anos 2000”, com os professores Maria de Jesus Gaspar Leite, Ney Luis
Teixeira de Almeida e Ramofly Bicalho dos Santos e, por fim, “Outras vozes”, trazendo
trechos de depoimentos de outras pessoas que estudaram/ trabalharam ou mesmo conheceram
Célia, que contribuem com relatos de experiências vividas com a mestra e suas impressões
sobre a obra e a vida com/de Célia. São eles: Ana Heckert, Andréia Reis, Bruna Molissani,
Dagmar Canella, Eliana Yunes, Estela Scheivar, Lúcia Fidalgo, Luiz Sangenis, Mônica
Corbucci, Raimundo Palhano, Patrícia Porto, Rosane Marendino, Rose Clair, Thereza
Pflueger e Tereza Cristina Calomeni.
4.1 NOVAS IDÉIAS, VELHAS RAÍZES:
Saviani (2007) afirma que “o final da década de 1980 prenunciava as dificuldades
crescentes enfrentadas pelas correntes pedagógicas ‘de esquerda’ no contexto brasileiro” (pg.
423). O intenso movimento dos educadores, cuja manifestação mais expressiva era dada pelas
bienais Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), entravam em refluxo. A última
conferência, que deveria ser realizada em 1990 e acabou acontecendo em 1991 encerrou uma
291
fase de maior efervescência das idéias pedagógicas no Brasil, em que havia uma certa
organização de caráter mais visível, marcada por definições ideológicas mais precisas e por
adesões mais numerosas.
Os trabalhos apresentados nessa última Conferência foram posteriormente publicados,
integralmente, pela Editora Papirus em cinco volumes, cujos temas foram “Escola básica”,
“Estado e educação”, “Sociedade civil e educação”, “Trabalho e educação” e “Universidade e
educação”.
Para Saviani é no âmbito dos temas “Estado e educação” e “Trabalho e educação” que
podiam se encontrar as análises explicitadoras da nova fase que caracterizou a década de 90.
Em “Estado e educação” a problemática do neoliberalismo aparecia fortemente em diversos
dos trabalhos apresentados. A questão das mudanças das bases produtivas, abordando o
impacto da tecnologia na educação apareceu mais fortemente em “Trabalho e educação”.
Também nos demais temas as problemáticas dos anos 90 apareciam
166
.
O termo “pós-moderno” era muito próprio dessa época, inspirado pela publicação de
Lyotard
167
intitulada “A condição pós-moderna” (de 1979). Se a entrada das máquinas
mecânicas na produção de novos objetos dão o tom do que era considerado “moderno”, o pós-
moderno é ligado ao mundo da comunicação, da informática e das máquinas eletrônicas, na
produção de símbolos.
A idéia da eficiência e eficácia, trabalhada pela psicologia behaviorista, se faz
presente de outra forma nesse momento. Passa a se considerar que a legitimação da pesquisa
e do ensino poderiam ocorrer pelo desempenho, pelas competências que forem capazes de
instaurar.
O neoliberalismo denominava as questões de ordem econômico-políticas, reflexo das
políticas internacionais e das reformas que os organismos internacionais e os intelectuais da
economia que atuavam nos diversos institutos de economia, consideravam necessárias para a
166 Saviani cita vários desses trabalhos fazendo uma varredura bastante abrangente das temáticas
discutidas na época.
167 Jean-François Lyotard, filósofo francês, foi um expressivo pensador na discussão sobre a pós-
modernidade. Autor dos livros como A Fenomenologia, A Condição Pós-Moderna e O Inumano.
292
América Latina. Esse novo pensamento hegemônico convergia em torno de um denominador
comum, “o ataque ao estado regulador e a defesa do retorno ao estado liberal idealizado pelos
clássicos” (FIORI, 1998, P.116 apud SAVIANI, 2007, P. 426). A reordenação empreendida
consistiu, no plano econômico, em elevar ao status de valor universal, políticas como a do
equilíbrio fiscal, a desregulação de mercados, a abertura das economias nacionais e a
privatização dos serviços púbicos. No campo político, a crítica às democracias de massa se
evidenciava.
Na América Latina, as reformas pretendiam em primeira instância empreender um
programa de rigoroso equilíbrio fiscal, por meio de reformas administrativas, trabalhistas e
previdenciárias, fazendo para isso um corte profundo nos gastos públicos. Em segundo lugar,
uma rígida política monetária visando à estabilização e em terceiro lugar a desregulação dos
mercados tanto financeiro como do trabalho, privatização radical e abertura comercial. As
agências internacionais tiveram que, a princípio, impor tais políticas, porém elas foram
gradualmente sendo assumidas pela elite econômica e política dos países latino-americanos.
As idéias pedagógicas passam nesse período por uma mudança expressiva. O fracasso
escolar é assumido em seu próprio discurso, computando na conta do Estado sua decadência,
em função da incapacidade do mesmo de gerir o bem comum. Com isso, também na educação
valoriza-se a iniciativa privada regidas pelas leis do mercado como mais competente para
educar.
Saviani (op.cit.) define quatro categorias que ordenariam as principais idéias
pedagógicas da época, a saber: neoprodutivismo, neo-escolanovismo, neoconstrutivismo e
neotecnicismo. Observemos que o prefixo (neo) nos remete a categorias precedentes às quais
as novas idéias se remetem. Reconfiguradas, refuncionalizadas, mantém, no entanto,
proximidades com essas “velhas categorias”.
A década de 90 funciona numa lógica econômica pautada na satisfação de interesses
privados, “guiada na ênfase nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no
mercado educacional, para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho” (GENTILI,
2002). A idéia do Estado como instância responsável por preparar a mão-de-obra para o
mercado do trabalho é substituída pela do indivíduo, que terá de ser capaz de escolher tendo
em vista adquirir os meios que lhe permitam ser competitivo no mercado de trabalho. Da
escola, agora, não se espera mais o acesso ao emprego, mas apenas a conquista do status de
293
empregabilidade. A educação passa a ser vista como um investimento em capital humano
individual que habilita as pessoas para a competição pelos empregos disponíveis. O acesso
aos níveis mais elevados de educação amplia as possibilidades dos indivíduos de conseguirem
um emprego. No entanto, não há garantias.
Efetivamente, na forma atual de desenvolvimento capitalista não existem empregos
para todos. A economia começa a conviver com altas taxas de desemprego e com um grande
número de pessoas excluídas do processo. Trata-se do crescimento excludente. Aqui, portanto
a teoria do produtivismo que predominou nos anos 60 ganha um novo sentido na década de
90, assumindo a forma de neo-produtivismo.
A ordem econômica atual assenta-se, portanto na exclusão. Não emprego para
todos. Um outro sentido ligado a essa questão diz respeito a crescente automação no processo
produtivo que acaba por dispensar mão-de-obra, estimulando a competição e buscando
maximizar a produtividade, conduzindo à exclusão deliberada de trabalhadores.
Nesse contexto, configura-se, portanto uma “pedagogia da exclusão”. Trata-se de
preparar os sujeitos para, mediante sucessivos cursos se tornarem cada vez mais empregáveis,
visando escapar da exclusão. Caso sejam excluídos, fará parte desse ideário a introjeção da
idéia de que a responsabilidade por isto é deles próprios, uma vez que não se municiaram para
enfrentar o competitivo mercado de trabalho, dadas suas “limitações” pessoais.
Saviani (op.cit.) comenta que um lema também bastante difundido a partir da década
de 90 é o “aprender a aprender”. Essa idéia remeteria ao núcleo escolanovista. A concepção
era de que “mais importante do que aprender algo” era efetivamente aprender a estudar e
buscar conhecimentos, lidar com situações novas. Nessa visão o professor passa a ser não
aquele que ensina, mas o que auxilia o aluno no seu próprio processo de aprendizagem. Vale
ressaltar, que no escolanovismo, o foco incidia sobre a valorização dos processes de
convivência entre as crianças, seus relacionamentos (criança-criança, criança-adulto) e em sua
adaptação à sociedade. Tratava-se de uma concepção cheia de otimismo, próprio do contexto
da década de 60/70 em que a economia em expansão e a industrialização apontavam para
mudanças constantes em direção ao pleno emprego.
Na situação que tratamos aqui, os anos 90, o “aprender a aprender” liga-se à
premência de constante atualização exigida pela necessidade de ampliar a esfera da
empregabilidade. A idéia estava, portanto, associada ao sucesso e a adaptação à sociedade que
exigia novos tipos de raciocínio, novas habilidades comunicativas, etc. Era, portanto um “neo-
294
escolanovismo”, baseado em novas perspectivas para o sujeito e sua formação, nos diz
Saviani.
Essa visão propagou-se amplamente na década de 90 e foi assumida como política do
Estado por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) elaborados por iniciativa do
MEC para servir como referência à montagem dos currículos de todas as escolas do país e que
vigoram até os dias de hoje. Tal inspiração neo-escolanovista delineou as novas idéias que
orientaram reformas educativas em diferentes países e no Brasil em especial, sustentando
práticas educativas que vêm sendo desenvolvidas desde a década de 1990. Práticas que se
espraiam por diferentes espaços, desde escolas a ambientes empresariais, organizações não
governamentais, entidades religiosas e sindicais, academias e clubes esportivos, sem maiores
exigências de precisão conceitual ou rigor teórico.
A Pedagogia das competências e o neoconstrutivismo, bases psicopedagógicas da
educação, ganham força no ideário pedagógico dos anos 90 e 2000, orientando reformas de
ensino em vários países. Saviani utiliza o prefixo neo ao construtivismo postulando que este
também ganha nova formulação nos anos 90, entendido agora como núcleo convergente de
diversas contribuições, que teriam em comum a atividade mental construtiva nos processos de
aquisição de conhecimentos.
O discurso do professor-reflexivo, ainda acompanhando as oportunas aproximações
de Saviani (2007), também se afina com o discurso neo-construtivista (a que o autor chama de
“retórica reformista”), que valoriza os saberes docentes centrados na pragmática da
experiência cotidiana. É possível também fazer uma ligação com a “pedagogia das
competências”. Tais competências aparecem assimiladas aos mecanismos adaptativos do
comportamento humano ao meio material e social. As competências cognitivas entrariam em
cena para a adaptação ao meio natural e material e os mecanismos de adaptação ao meio
social seriam constituídos preponderantemente pelas competências de ordem afetivo-
emocionais.
A pedagogia das competências conecta-se com a pedagogia do aprender a aprender à
medida que ambas têm como foco dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes
permitam ajustar-se às condições da sociedade e às suas demandas. A ênfase é dada à
satisfação individual, sob responsabilidade do próprio sujeito, obscurecendo o compromisso
social da educação.
Nas escolas, introduzir a pedagogia das competências objetivava ajustar os indivíduos
como trabalhadores e cidadãos às demandas de uma sociedade que se organizava
produtivamente de uma nova forma. Tornar o indivíduo produtivo, nessa perspectiva,
295
significava ser capaz de valorizar o capital. Aqui vemos o corolário da pedagogia tecnicista da
década de 70, remodelando-se e ganhando uma conotação que advoga a valorização dos
mecanismos de mercado, o apelo à iniciativa privada e às organizações não-governamentais, a
redução do tamanho do Estado e das iniciativas do setor público. Nesse sentido, as diversas
reformas educativas que foram empreendidas em diferentes países tinham em comum o
empenho em reduzir custos, encargos e investimentos públicos, transferindo-os ou dividindo-
os com a iniciativa privada e as organizações não-governamentais.
Uma outra característica desse neo-tecnicismo mais uma vez enfatizando no prefixo
a remodelação desse conceito é o novo papel que o Estado assume. Diferente do tecnicismo
dos anos 70 que preconizava um controle rígido do processo por parte do Estado, este
processo se flexibiliza e o novo papel que lhe cabe é funcionar como avaliador dos resultados,
visando garantir a eficiência e a produtividade.
Um outro termo, também muito em voga “qualidade total” integra essa
perspectiva produtivista do neo-tecnicismo, sintetizando a busca máxima da educação. Esse
termo liga-se também ao modelo empresarial, em que a frase a “satisfação do ‘cliente’”
expressa o fim que conduz a força de trabalho. A transposição desse conceito para a educação
trouxe a tendência de considerar aqueles que ensinam como prestadores de serviços, os que
aprendem como clientes e a educação como produto que pode ser produzido com qualidade
variável. O método da “qualidade total” garantiria então o máximo de satisfação para seus
“clientes”. O processo de adoção do modelo empresarial na organização e funcionamento das
escolas se disseminou principalmente no nível superior.
Em suma, as idéias pedagógicas que se disseminam na década de 90, que perduram
ainda nos dias de hoje, surgem em função das transformações materiais que marcaram e
influenciaram a organização social, econômica e política do país. Um mercado mais fechado,
a escassez de trabalho e a perspectiva da educação como uma conquista individual para
competir nesse mercado que se apresenta, trouxeram a pedagogia da exclusão. Orientando
essa demanda por adequar-se à nova sociedade, idéias como “aprender a aprender” e
“pedagogia das competências” concorrem visando qualificar os indivíduos para “tentar”
ganhar espaços profissionais. As conseqüências para a educação podem ser sentidas tanto no
que se configura o senso-comum com relação à expectativa sobre a escola, quanto nas muitas
iniciativas de reformas educacionais.
Vejamos por onde andava/anda Célia nesses últimos anos.
296
4.2 Novos rumos, novos ares: tempo de recomeços.
(...)
esperança
esperânsia
experança
esperiência
esperança:
esp
herança
(Élson Froés – Poemas de AD miragens)
No poema de Froés, misturam-se palavras e sentidos que traduzem a trajetória de
Célia. Esperança, ânsia, experiência, herança, espera. Sua vida foi se dando num fluxo em que
esses elementos se fizeram presentes em contextos diversos, com significados também
diversos. Vamos destacar, dentre eles, a esperança, que em sua força propulsora, vai
imprimindo esse jeito de apostar na vida a cada dia, tão próprio de Célia Linhares, com uma
curiosidade, que em suas palavras, “a fazem levantar da cama todos os dias”.
Nos anos 90, após mais de 30 anos de trabalho acadêmico Célia fez sua primeira
aposentadoria. Ao mesmo tempo em que via positivamente a possibilidade de afastamento da
universidade, pela grande atração que a escola pública e o desafio de escrever literariamente
sobre as experiências escolares exerciam sobre ela. Mas, o gosto pelo espaço de convivência
com os estudantes e colegas, o movimento permanente de troca e aprendizado a mobilizavam
muito. Não era algo do qual ela desejasse se distanciar.
Fiquei muito confusa, não via bem como o futuro se delineava em minha frente. Tinha
decepções que me pediam para que me mantivesse fora da Universidade, mas tinha também
muito gosto e atração crescente pelo que cada dia gostava mais, de aprender, ensinando e
ensinar, aprendendo. O desafio se inscrevia em mim, pedindo mais e mais tempo para
dedicar-me a velhos sonhos, como mergulhos mais continuados na escola pública, com que
pensava entranhar-me num tipo de autoria literária em que fosse traduzindo problemas e
esperanças, sonhos e travas, frustrações e surpresas em contos escolares.(LINHARES, “As
coisas findas, elas ficarão?”, mimeo, 2007)
Um novo concurso para a própria UFF, no qual ela se inscreveu na última hora, para a
disciplina “Educação comparada”, fez com que ela se mantivesse na docência, reafirmando
esse como um seu espaço privilegiado de atuação.
297
Em 91 me aposentei, pensava em não trabalhar tanto na Universidade,
abrindo outras frentes. Então, foi instalado um concurso na UFF e outro na
UERJ. Os colegas e amigos me perguntaram por que não me candidataria.
Gaudêncio, depois me contou, que quando em reunião do departamento
falaram que havia me inscrito, já na última hora, rolaram umas palmas.
Assim, acabei entrando na UFF de onde nunca chegara a sair. Foi muito bom
porque em função do concurso tive uma avaliação de cinco professores
daqui e de fora, de São Paulo, de Minas, professores e professoras
acreditados por mim e que valorizaram muito meu desempenho nas provas e
minha trajetória. Isso me encorajou e me organizei para ir fazer o pós-
doutorado, o que fiz, numa “arrancancada” sensacional, pois fui sozinha,
sem meu maridinho e meus filhos, que já estavam independentes. Embora
ele tenha ido me visitar, cada vez que podia, e as minhas filhas estarem, uma
na França, a outra na Alemanha, fazendo seus doutorados, senti que rompia
um ciclo muito antigo e bom, mas que precisava ultrapassar: era uma espécie
de “juntos venceremos, que já praticávamos, desde que meu pai morreu e
que consolidamos um a roda entre todos nós: minha mãe e nós sete. (Célia
Linhares, em entrevista, 2007)
Para os Linhares, os anos 90 foram efetivamente muito ricos. Além do referido
reingresso na própria universidade em que lecionava, Célia viajou para Espanha e Londres
para seu pós-doutoramento, primeiro na Universidad Complutense de Madrid e
posteriormente, na University of London (1992-1993). Primeira viagem longa sem o marido,
a experiência significou para ela a possibilidade de aprendizagens que envolviam mais
autonomia. Para José Linhares, o marco foi a conquista de sua anistia, em 1992, após muitas
lutas.
Foi algo surpreendente que se repetia com recorrência: me ver sozinha sem
Linhares, sem os filhos, sem Bibi, em terras estrangeiras. (Célia em
entrevista, 2007)
Era então a primeira vez, desde 1946, quando seu pai partiu? Ou deste 1959 quando
casou? É difícil e desnecessário precisar. Mas, de repente, Célia fazia tudo sozinha,
administrando sua vida prática, seu tempo, seus rumos, fazendo novos laços e enfrentando a
adaptação aos países novos e seus desafios. Gostosas passagens dessas viagens são lembradas,
evocando memórias de encontros e oportunidades, coincidências e curiosidades:
Quando propus a pesquisa de pós-doutorado e consegui a bolsa, foi um
troféu! Era a primeira saída do Brasil, em que fazia tudo só. Tinha medo de
chegar, de o dinheiro não dar até o fim do mês, essas coisas... eu fiz um
acordo com Deus, “não quero nem que falte dinheiro e nem que eu deixe o
gás da minha casa aberto”, pois sempre tive a Bibi atrás de mim. Mas nada
298
disso aconteceu. A pesquisa foi muito rica em inesperados e quando voltei
também estava mais fortalecida.
Quando eu cheguei à Espanha, inicialmente, não sabia bem onde ficar, tudo
era muito caro. Com a mediação de uma amiga, Maria Helena Leitão, fiquei
na casa da sobrinha do Garcia Lorca.. Lembro-me que ela era surda, ela
tinha uma lâmpada que acendia quando o telefone tocava. A casa era quase
um museu, mas um museu vivo, por onde circulavam memórias de lutas e
resistências, de beleza e de sofrimentos, mas sobretudo de muita dignidade e
criação.. Foi excelente, eu fui em maio e depois em agosto fui para
Inglaterra.
Com relação às experiências acadêmicas e os encontros intelectuais mais
significativos, Célia escreveu um expressivo capítulo
168
no livro que editou com Clarice
Nunes, mas nada pode roubar o prazer de voltar aos anos 90, nas palavras desta nossa
pesquisadora:
Na primeira parte em Madri, meu contato maior foi com o Mariano
Enguita
169
, mas logo fui ampliando meus contactos e conhecendo
investigadores tão instigantes e, até então pouco conhecidos, como Francisco
Varela
170
, explorando e voltando a ler autores do tipo de Foucault, Norbert
Elias
171
e Bourdieu. Conheci também Manuel Castells
172
e seus debates sobre
168 LINHARES, Célia: Caminhos de Medo e Esperança. In, LINHARES, C. e NUNES, Clarice, Trajetórias de
Magistério: memórias e lutas pela invenção da escola pública. Rio de Janeiro, Quartet, 2000, p.23 -87.
169 O professor Mariano Hernandez Enguita é catedrático de Sociologia na Universidade de Salamanca. Enguita
tem se dedicado à investigação na área da Sociologia da Educação, das Organizações e da Cidadania. Para
Enguita, vivemos mudanças “difíceis de entender e que requerem análise”. Acredita que numa sociedade de
mudanças a escola tem um papel fundamental, que enfrenta as transformações das formas de convivência em
sociedade. Neste sentido, afirma, a escola precisa aprender a conviver com as famílias e com as cidades.
170 O biólogo e filósofo chileno, Francisco J. Varela (1946-2001), escreveu sobre os sistemas vivos e a
cognição. Nos anos 70, durante o período em que a biologia da cognição foi formalmente elaborada,
desenvolveu em parceria com Humberto Maturana a teoria da autopoiese. Autopoiesis, termo originariamente de
origem biológica, passou a ser utilizado em áreas como a neurobiologia e a sociologia. Fundido dois termos,
“auto”, que refere-se ao próprio objeto, e “poiese” que tem a ver com reprodução/criação, o termo foi criado para
designar os elementos característicos de um sistema vivo e sua estrutura. A partir daí o conceito avançou para as
considerações sobre o fenômeno da percepção. (MATURANA E VARELA, 2001).
171 O sociólogo alemão Norbert Elias (1897 a 1990), estabeleceu-se na Inglaterra a maior parte de sua vida
adulta. Suas obras focalizavam-se na relação entre poder, comportamento, emoção e conhecimento na História.
Em seu livro mais conhecido, “O processo civilizador”, Elias apresenta seu conceito de civilização, que para ele
“resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais
antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’” (ELIAS, 1995). Elias questiona a crença no
progresso e na ‘civilização’ européia, problematizando a própria definição, assim como a de cidade e cortesia.
Sua sociologia preconiza também os seres humanos são interdependentes e são em grande parte moldados por
figurações sociais que formam uns com os outros. Outra característica importante da sociologia eliasiana diz
299
as tecnologias comunicacionais. Mas também foi muita rica minha
participação em Congressos na própria Espanha, tendo ido a um Congresso
de Educação Comparada na ex Tchecoslováquia. Em Madrid aconteceu uma
das Cúpulas das Nações Ibero-americanas” e, ao seu lado uma outra que
abrigava as organizações dissidentes. Pude de diferentes maneiras atentar,
assistindo partes de uma e outra, graças a contactos interessantes que
consegui fazer.. Depois fui para Londres, onde continuei a pesquisa sobre O
Trabalho do Professor na Construção da Identidade da Escola Pública, onde
pude enfatizar as questões tecnológicas, com M.Young e M. Barnett. Mas
no livro em que Clarice e eu transcrevemos nossos memoriais toda uma
narrativa de talhada de um e outro mergulho em Madri e em Londres.
Talvez, o que não esteja registrado sejam os livros que deste período se
derivaram O primeiro, pela ordem de importância e hierarquia de afetos é o “
Dilemas de um final de séculos: o que pensam os intelectuais” constituído
por entrevistas de grandes intelectuais europeus e estadunidense. Foi uma
produção prazerosa que implicou em viagens, que compartilhamos Regina
Leite Garcia e eu. Foram pensadores como N.Chomsky, A.Lipietz entre
outros que debateram conosco as perspectivas do século XXI, aproximando-
a das realidades brasileiras e latino-americanas. O outro, Da Escola ao
Desemprego,faz parte de uma Coleção, A Escola e as Outras Vozes que
publiquei pela Agir, onde como tradução, esse interessante livro do Eric
Sanchez, professor de economia da Universidad de Valencia, Este é um livro
valioso, não pela inversão desse caminho que ele inverte e problematiza,
mas pelo seu trabalho metodológico fantástico. O Eric me visitou
recentemente, interessado em manter viva as relações entre sua Universidade
e a nossa.
Toda essa fertilidade de contatos e convívio com autores, idéias e espaços de reflexão
foram vividos com entusiasmo crescente por Célia. Simultaneamente, ia enfrentando os
desafios de encontrar residência, sobreviver num clima tão diverso do brasileiro e ir tecendo
novas relações. A ida para Inglaterra, após esse primeiro período em Madrid, foi um novo
desafio. Graças aos laços com amigos brasileiros encontrou acolhimento. A esse respeito ela
conta uma passagem acontecida ainda no Brasil, antes de sua viagem, quando um pedido de
uma de suas ex-orientandas, Tereza Cristina Calomeni a levaria a conhecer uma pessoa
respeito ao desenvolvimento do conhecimento. Para Elias, o conhecimento não é estático tampouco pode ser
entendido em separado da sociedade. Mudanças nos processos de conhecimento afetam a sociedade e vice-versa
(LANDINI, 2005).
172 Sociólogo espanhol, Castells, tornou-se pesquisador da Universidade Aberta da Catalunha em Barcelona em
2001. Em 2003, juntou-se à Universidade da Califórnia Meridional, como professor de Comunicação. Desde a
década de 80 começou a se concentrar no papel das novas tecnologias de informação e comunicação na
reestruturação econômica.
300
especial em sua viagem. Para Célia, essa situação reforça sua impressão da força das palavras
e de como elas podem trazer mudanças, abrir fronteiras.
Eu pensava na ida para Inglaterra com muito medo, eu estava o
apavorada... eu pensava no frio ... Mas algo curioso aconteceu, Antes de
minha saída do Brasil para Madrid eu conversava sobre a viagem com uma
orientanda, muito inteligente e muito amiga que tenho no Brasil, Tereza
Cristina Calomeni. Ela é uma pessoa apaixonada pela filosofia, Ela fez
comigo uma dissertação, trabalhando a arqueologia e a genealogia de
Foucault, depois ela se doutorou na PUC. Pois bem, nessa conversa que
tivemos, Tereza e eu, ela me perguntou, “Célia, tudo bem?!” e eu disse,
“tudo bem Tereza só que eu estou com tanto medo...não tenho ninguém em
Londres”. Ela então disse, “Célia, olha ai esse endereço que vou te dar, eu
vou te levar uma encomenda para tu levares para essa pessoa”. Menina, esse
contato foi muito bom. Era uma jovem senhora de extrema experiência e
sensibilidade: Lúcia Helena Geary. Entrei em contacto com ela, por telefone,
logo que cheguei em Madri e quando cheguei em Londres, ela estava no
aeroporto me esperando! Fui muito bem recebida!
Ainda sobre seus contatos e experiências de viagem, lembra da parceria com Regina
Leite Garcia, dos Museus e do encontro com Michael Young. A parceria com Regina, que
também estava se pós-doutorando, rendeu a produção de um livro de entrevistas “Dilemas de
um final de século: o que pensam os intelectuais”.
No Brasil, nos primeiros anos da década de 90, Célia percebe que seu trabalho vai
ganhando maior visibilidade. Certamente o pós-doutorado concorreu para uma ampliação de
seu raio de ação, novos contatos, novas produções teóricas, novos diálogos que se abriram.
Essa difusão maior de sua produção favoreceu ainda mais a consolidação de seu lugar
como pesquisadora e são férteis os projetos que tem curso nessa época. Algumas de suas
pesquisas: “Experiências instituintes em Escolas públicas e formação Docente: Brasil e
Portugal” (2006); “Experiências instituintes em Educação Pública: memórias e narrações para
formação de professores II” (2003); “Experiências instituintes em Escolas públicas e
formação de professores: pontes com múltiplas mãos (2003); “Experiências instituintes em
Educação Pública: memórias e narrações para formação de professores I (2001-2003);
“Navegantes e internautas 500 anos de aprendizagens a desafiar a formação de professores
desenvolvida em cooperação com a Universidade do Minho (1999-2001); “Destruição e
Reinvenção da Escola Pública: tensões na formação dos professores” (1997-1999) e “Políticas
de Formação de Professores nas Novas Configurações Sociais” (1994-1996).
301
Importante sublinhar que é também nesse momento que ela incrementa sua presença
de forma mais sistemática nos sistemas públicos de ensino, perspectiva que a alimenta
fortemente, aliando sua atuação acadêmica com uma militância na escola, palco de seus
interesses mais imanentes. No final desta década intensifiquei minha presença nos sistemas
públicos de educação, como consultora. Foi 10 para o meu coração”. (Célia em entrevista,
2007)
4 . 3 Parte I: Trilhas do pensamento, anos 90.
Os anos 90 foram de uma intensa produção textual. É interessante observar que Célia
tem muito mais artigos em diversas revistas e coletâneas do que livros individuais. Esses são
poucos. Acaso? Oportunidade? Arrisco reafirmar que, mais do que um acaso, isso reflete seu
gosto pelo diálogo coletivo e sua participação ativa em diferentes espaços de discussão.
Nesse capítulo, assim como nos demais que tratam das outras décadas, ressalto que o
objetivo não é o de fazer uma varredura de toda a sua obra, cujo número é muito extenso.
Pretendemos destacar aquelas que, de alguma forma, trazem as idéias centrais de Célia em
determinados períodos e, portanto, nos permitem uma aproximação do temário de que trata,
de seu estilo e dos autores com o quais foi dialogando privilegiadamente. Conhecer seus
textos é também perceber como ela vai dialogando com o tempo que passa, com as questões
mais amplas da sociedade em suas dimensões políticas, econômicas, ideológicas.
Nessa primeira parte, apresentamos as idéias centrais dos textos dos anos 90. O
primeiro, é a tese para professor titular, escrita em 1993, “A Crise do Político na Educação: a
imposição da estratégia como espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos
na construção ética”. Seu foco é discutir a concepção de política que anima o pensamento de
Célia Linhares.
O segundo, “Tecnologias inteligentes x juventude desempregada”, de 1995,
questiona, tanto a idéia de que a tecnologia constitui uma força tão poderosa que contra ela
não seria possível reagir, como também as ambivalências da tecnologia e de sua falsa
neutralidade.
O terceiro texto, “Sujeitos históricos: seus lugares na escola e na formação de
professores”, produzido em 1996, aborda a necessidade do resgate histórico na elaboração dos
projetos pedagógicos, favorecendo aos sujeitos acederem à palavra e construírem uma escola
em diálogo com a realidade social.
302
“Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores” publicado em
1997 é o quarto texto. Nele, Célia Linhares defende a necessidade de que a aprendizagem
escolar envolva o esforço de descoberta e elaboração própria por parte dos sujeitos, criticando
a concepção de conhecimento como bagagem a ser adquirida. Preconiza que tanto a atuação
do supervisor escolar quanto a formação do professor precisam compreender essa dimensão
do conhecimento, que envolve alegria, sabor e fomento à curiosidade. A autora acredita que a
memória e a narração podem ajudar a redefinir os rumos da escola, por permitirem que os
sujeitos se apropriem de suas próprias histórias. O quinto texto, “Terremotos na pedagogia:
perspectivas da formação de professores”, escrito em 1998, chama a atenção para as variadas
questões que atravessam a Pedagogia, passando pela discussão da dinâmica social, da
valorização da força da coletividade em detrimento do individualismo, da presença do uso da
sedução para a manipulação dos desejos, da violência das injustiças sociais, dentre outras,
traçando um panorama da educação e seus “terremotos”.
“Escola Balaia, um convite para a reinvenção de Caxias”, sexto texto é na verdade um
livro. Escrito em 1999, apresenta o projeto elaborado por Célia para a Educação Municipal de
Caxias. Nele, Célia Linhares sintetiza os princípios que sustentam a escola na qual acredita.
“O pensamento pedagógico crítico: a presença de Paulo Freire” é o sétimo artigo, feito
em 1997. Nele Célia resgata as principais formulações de Freire para pensar uma escola em
que a liberdade é um princípio fundamental.
No oitavo artigo, “Medos e violências nas escolas: e a educação com isso?”, de 1999,
Célia compreende que para lidar com a violência é necessário ouvir e valorizar os desejos dos
estudantes e não apenas punir e corrigir, apostando numa escola que estabeleça uma rede que
fortaleça as pessoas e seus vínculos de interdependência.
O nono e último texto, “Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos” foi escrito
em 1999. A autora critica o abismo entre o que se produz na academia e o que se pratica na
realidade das escolas brasileiras, convocando a pensar a respeito do lugar do intelectual e em
como ele pode, efetivamente, contribuir no combate a ditadura neste período neoliberal.
Linhares defende a necessidade de que as pesquisas das experiências e necessidades sociais.
Vamos a eles.
303
4.3.1 A Crise do Político na Educação: a imposição da estratégia como
espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos na
construção ética. Tese para Concurso de Professor Titular de Política
Educacional (1993
)
Célia Linhares realça em sua tese o caráter essencialmente político da escola moderna,
tendo em vista seu compromisso de desenvolver a racionalidade humana e atuar na
preparação para a cidadania. Escola que, em seus ideais de “igualdade, liberdade e
fraternidade” seria acessível a todos.
Paradoxalmente, sublinha a autora, o projeto da escola de atender a todos se
antagoniza com os interesses econômicos do capitalismo industrial em ascensão e a efetiva
falta de empregos, moradias e demais condições dignas de vida para a população, decorrentes
de um sistema político que se sustenta na desigualdade. Nessa perspectiva, a pseudo-força de
equalização social propugnada pela escola é posta por terra. Deste modo, a promessa que
fazia da escola um instrumento privilegiado de revolução que se propunha formar cidadãos
decaiu, vertigionosamente em valões de baixa visibilidade, em que o exercício prioritário
passa por mecanismos de fabricar ninguéns.
Enquanto a instituição escolar cresce, conquistando dimensões numéricas expressivas,
no entanto, sua identidade se dissolve, afirma Linhares. Outras funções como as de cuidados
de saúde, alimentação, disciplinamento e controle moral ou até policial vão se embaralhando e
substituindo suas funções específicas. Os que atravessam a escola não têm garantias de
emprego, nem do exercício efetivo de participação nem dentro nem fora dela.
Mas todos esses processos que parecem expandir a escola, mas que vão configurando
uma sub-escola se corresponde com uma democracia que cresce ao preço de uma redução,
assombrosamente contrária a tudo que foi sonhado como uma política de todos e para todos,
nos diz Linhares. Afinal, continua nossa autora, a democracia vem sendo apertada por regras
processuais e, assim, atrofiada em decisões de gabinete, que se fazem não somente sem as
classes populares, trabalhadoras, mas contra elas.
Respaldada em autores como Hans Jonnas, Linhares ressalta que no mundo complexo
em que vivemos, o exercício da ética não pode estar fundado apenas na lei moral, mas requer
o domínio do conhecimento. No entanto, o acesso ao conhecimento é obstaculizado numa
política de hierarquização e negação do que é historicamente esperado de escolas, no mundo
contemporâneo: uma aprendizagem política, social, humana e vital que seja vivamente
impregnada de conhecimentos, favorecendo à vida, às relações de amorosidade e respeito
entre os viventes e capacidade de reinvenção da cultura e da educação difundidas. A grande
304
maioria das escolas estão tratadas de maneira a servir mais às diferentes formas de
manipulação do que a um real esclarecimento.
Célia Linhares acredita que, se por um lado todo um aprofundamento das
fragmentações das instituições sociais, que convivem com mecanismos de massificação, por
outro, há também pluralidades e conexões. Assim, forjam-se sujeitos sociais xenofóbicos e ao
serviço de interesses privilegiados, mas também se forjam os que se empenham com
compromisso com a emancipação individual e coletiva, plantando suas lutas num espaço
instituinte de uma nova concepção democrática. Pistas de um outro caminho estão abertas na
sociedade atual.
A escola pública, quando submetida à servidão, volta-se para conformação e
servilismo, nos mais altos níveis. Seu projeto deveria estar voltado a conter a barbárie, o caos.
Porém, para isso é preciso inventar, participando, forjando projetos que envolvam fazer
ressoar o poder de uma racionalidade política maior contra a força policial, realça a autora.
Concluindo este pensamento, Linhares afirma que A escola ao invés de (...) um
instrumento privilegiado da revolução que se propunha formar um povo de ‘alguéns’ –
cidadãos que iriam vencer na vida’ passa a puro mecanismo de formar ninguéns, com
único enraizamento na mesma luta titânica pela sobrevivência.” (p.4).
Célia Linhares indica que a complexidade atual do mundo de hoje, em que a divisão e
hierarquização da escola e o controle e manipulação dos conhecimentos obstaculizam o
próprio acesso ao conhecimento de grande parte do povo brasileiro. Precisamos constituir
uma identidade, sintonizando-se com compromissos éticos de construir uma sociedade com
sujeitos capazes de instituir um tempo novo, no qual a solidariedade encontre expressão
nos sistemas políticos e no cotidiano social(p.6). Uma escola cuja (...) luta é travada contra a
mediocrização e a pausteurização do ser formatado na repetição e na subserviência.” (p. 6).
Célia Linhares chama atenção para os movimentos instituintes de sujeitos históricos,
que ensaiam projetos de escola e que, por representarem ameaça, são reconhecidos muitas
vezes como agentes da barbárie. Potencialmente criativo, singularmente revolucionário (...)
representam uma ameaça à ordem empresarial. Ei-los, portanto, assimilados, de pronto, à
barbárie – quando a rigor, indicam pistas para um novo tipo de democracia.” (p.8).
Em sua tese, a autora toma o Político como espaço de emancipação dos sujeitos,
implicando não na defesa do constituído, mas, antes, na permanente busca de criação de
valores; esfera de atuações éticas, em que os sujeitos, ao se constituírem a si mesmos
enquanto indivíduos e coletivos vão-se libertando de processos de opressão”. (p.8) Linhares
afirma que compreender a política como espaço de interlocução de sujeitos, exige a eleição de
305
categorias de análise que apontam para a reformulação do próprio exercício do pensamento, a
fim de que o conhecimento possa se encarnar na realidade que reflete e que projeta, instalando
na sociedade novas aberturas.
O objetivo central de sua tese é estudar os extravios políticos de nosso país, revendo
contradições que caracterizam a passagem da transição para a democracia, investigando de
que forma as políticas públicas para a educação mais das vezes reforçam desigualdades que
marcam nossa trajetória.
Nesse sentido, Linhares busca o desocultamento do político e a construção do sentido
com que a política educacional poderá se orientar como um espaço ético, em prol de uma
educação contra a subalternação, que responda aos interesses de um povo que precisa
constituir-se como cidadão. Perspectiva que vai contra a tendência concentradora de
conhecimento, afirma Linhares, presentes no trabalho, na escola e na ideologia dominante. A
autora busca pistas de construção de saberes que sirvam para despertar o potencial criador
dos sujeitos coletivos do conhecimento, embasar a exploração permanente de novas vias que
finalmente introduzam à prática do político, como, antes de tudo um exercício ético” (p.10).
Célia critica uma idéia de política concebida apenas como um campo de estratégias,
em que:
a plena realização do político se esgota na programação rigorosa, na
administração quantificada das etapas e do recurso aos meios que permitirão
a consecução de objetivos pragmáticos previstos. Para a autora, o campo
político é o da atuação de sujeitos históricos, de interlocutores em trabalho
de construção ética, de participantes que intervêm concretamente na
sociedade, no mundo do trabalho, no mundo da escola e que, por
conseguinte, realizam novas relações e configuram os verdadeiros espaços
de decisão política; vale dizer, daqueles que engendram novas possibilidades
de vida por serem instituintes de novas formas de vida. (...) O que se ganha
com essa perspectiva, é – sobretudo- o firme compromisso com a construção
verdadeiramente democrática da sociedade (p. 13).”
Nessa perspectiva, a política constitui-se como um livre exercício de dialogia,
prática instaurada pela democracia e instituída entre sujeitos engajados na busca de
constante apropriação e redefinição de valores fundamentais como Justiça, a Verdade, o
Bem, o Belo, a Liberdade”(p.15).
Linhares reconhece que no discurso pedagógico-político, muitas intenções elitistas e
conservadoras encontram-se camufladas. Por vezes, expressas numa linguagem manipuladora,
306
encontramos ideologias conservadoras, tal perspectiva tem marcado nosso percurso, como um
obstáculo que a autora sublinha como sendo necessário enfrentar.
Continuando nessa direção, a autora critica as teorias conformistas, que negam ações
instituintes de novas formas de convivência social, afirmando a falta de alternativas diante do
panorama atual, como exemplo cita a teoria do “fim da história” de Fukuyama. “Arautos do
pânico”, nas palavras de Célia Linhares. Célia insiste em reunir evidências de que:
“o sonho de liberdade e de solidariedade não consegue ser substituído pelo
desvario da competição e da servidão ilimitadas, ou pela promessa ilusória
das recompensas reservadas aos bons tarefeiros; de que o controle da opinião
pública não consegue destituir a busca de um sentido histórico da
experiência social; de que o agenciamento planificado dos desejos
consumistas jamais esgotam a paixão humana de criar o novo. (p. 17).
A respeito do campo da Política Educacional, Linhares afirma que, ainda que muitos
avanços tenham sido proclamados como conquistas na ampliação e melhorias da educação,
estes tem sido demarcado por ênfase no que vêm de cima, atos do governo, decisões do MEC
etc. Para grande parte de nossos professores, é apenas essa política que referencia suas
práticas, expressas nos documentos e parâmetros produzidos pelos sistemas. Linhares
reconhece que, embora o movimento que se coloca na linha de frente do diálogo com tais
instâncias se mantenha ativo, por meio das organizações dos professores, é preciso ainda
garantir mais e mais a voz do professor na esfera política.
Célia Linhares ressalta também a necessidade de que não se registre apenas a história
oficial, mas que se valorize a memória popular de lutas pela escola pública. Nessa direção,
Linhares sinaliza a necessidade de que professores se apropriem de seus saberes e
conhecimentos, que tem ficado muitas vezes relegado aos especialistas.
Na conclusão de sua tese, a autora afirma a necessidade de que a Política Educacional
Brasileira seja conduzida e partilhada por sujeitos, num processo de identificação recíproca.
Ela reconhece que o momento atual é repleto de ameaças, riscos, contradições e
possibilidades, em função da emergência de sujeitos históricos que articulam eticamente seus
desejos individuais aos coletivos e vice- verso. Reconhece também que não é possível
resolver problemas que são comuns a todos por meio de iniciativas isoladas, como por
exemplo, as situações como a questão ecológica, a problemática da saúde, do
emprego/desemprego, e da escola, da escola pública sem a qual a democracia perde suas
pilastras de sustentação e seus fluxos de construção.
307
Afirma que o verdadeiro legislador é a sociedade como sujeito coletivo e que projetos
de lei, como a Lei de Diretrizes e Bases, só ganharão densidade e expressão política se
referido a esta exigência ética que emerge de toda a sociedade. O caráter verdadeiramente
concreto das leis, continua Linhares, vem do próprio processo de sua elaboração, ao
conjugar realidade e utopia no exercício da invenção e da simbolização coletiva e individual.
(p. 177)”.
Tal projeto de participação social não exclui riscos e o apresenta garantias, pois são
inerentes ao próprio processo instituinte, sublinha Linhares.
Célia finaliza seu trabalho relembrando o "impeachmeant" de Collor, que evidenciou
um país indignado diante dos que “insistem em nos roubar o futuro”, e convida: “Vamos tirar
o Brasil a limpo?” (p. 178).
4.3.2 Tecnologias inteligentes x juventude desempregada: desafios da história.
(1995)
Publicado em 1995 na revista Tecnologia Educacional, o artigo, “Tecnologias
inteligente x juventude desempregada: desafios da história, inicia discutindo as imagens
antagônicas com que a tecnologia vem sendo identificada, que atribui seus efeitos a uma força
tão grande que nos impediria de reagir a ela, como que submetidos inexoravelmente a sua
soberania.
Os argumentos que se entrelaçam a essa imagem associam, segundo nossa articulista,
a busca de soluções imediatistas aos “destroços das vidas perdidas” pelo desemprego, fome,
negação à terra, à moradia, à saúde”, eximindo os governantes de suas responsabilidades ao
debitar as catástrofes cotidianas, na conta do progresso inevitável das tecnologias.
Políticas, econômicas, sócio-educacionais e comunicacionais, em nome da
modernização investem e exacerbam a imagem do aprendiz de feiticeiro, ou seja, aquele que
para roubar o segredo do mestre desencadeia forças que não é capaz de compreender e
controlar.
São argumentos desses tipos que vestem e potencializam imagens que contribuem
para que os impactos tecnológicos, não sejam aceitos como óbvios e evidentes,mas que
conjugando fatos e ficção científica vão protegendo com um signo de quase sacralidade e,
portanto, indiscutíveis.
308
Célia Linhares põe em discussão o fato de que a ciência, cuja promessa era a
libertação e a vitória sobre o terror do desconhecido, passou a escravizar e pressionar com
suas criações àqueles que, supostamente, teria libertado.
Célia discute o imaginário político relacionado às tecnologias inteligentes. Cita
imagens de repercussão recorrentes entre nós, que poderiam ser organizadas como otimistas e
pessimistas.
As otimistas atribuem à tecnologia uma capacidade ilimitada de organização e
eficiência que, comparativamente fazem os seres humanos parecerem obsoletos. Essas
imagens carreiam um apoio popular aos altos investimentos em programas de “modernização”
da escola (computadores, televisores, dvds etc.), mesmo em detrimento do aperfeiçoamento
docente. Divulga-se que, nessa perspectiva, a partir de uma educação compreensiva, com
estímulo à capacidade criadora e à iniciativa própria, o espaço para a participação da classe
trabalhadora estaria garantido.
Para as pessimistas, as máquinas seriam as vilãs da espoliação e penúria da classe
trabalhadora. Célia comenta em rodapé os estudos de alguns autores, destacando Marx,
Braverman, Harrt, e Enric Sanchis, que refazem o percurso da produção humana, desde o
artesanato até a automatização, ressaltando que esta concorreu para a destituição do
trabalhador e do controle de seu trabalho. Levando ao limite extremo esta hipótese, o
trabalhador passaria a realizar, cada vez mais, tipos de trabalho autômato, reduzindo seu
trabalho a uma vigilância e operação do maquinário.
A autora situa a questão sobre autonomia e neutralidade tecnológica no interior das
discussões da Filosofia Política e da Teoria do Conhecimento, problematizando assim uma
visão de que tecnologia seria neutra, que dependeria do uso de que dela se faz. Para Célia é
possível que o conhecimento mais divulgado das relações entre tecnologia e política ainda não
tenha se aproximado de um tipo interacionismo cognoscitivo que nos permita entender e valor
categorias marxianas, “como o trabalho morto”.
Lançando mão da poesia de Chico Buarque, “Morena de Angola”, Célia afirma que,
assim como a morena que “não sabe se mexe o chocalho ou se o chocalho é que mexe com
ela”, nós também usamos a tecnologia e por ela somos usados, constituídos, numa perspectiva
interacionista cognoscitiva.
Chama atenção a ligação de Célia para as questões atuais, não do cenário social e
político, mas também para os conceitos e estudos contemporâneos. De Vygotsky, as questões
atuais relativas à tecnologia, de Chico Buarque a Amacord, ela está sempre atenta ao
movimento de produção cultural e de conhecimento que circula no mundo. Não
309
impedimento em convidar atores de diferentes campos para o diálogo. Músicos, cineastas,
poetas, educadores habitam seus textos.
A questão da solidariedade, tão presente na obra de Célia, surge nesse artigo associada
à necessária apropriação de uma esfera pública constituída com responsabilidade e
conhecimentos científicos, amplamente difundidos e apropriados sob a meta da solidariedade
(p. 31). A solidariedade implica, assim, uma dimensão política, envolvendo, no caso da
tecnologia, o reconhecimento das relações entre estas, a sociedade e o trabalho, com o
máximo de responsabilidade social.
Célia insiste na importância da memória e do risco de perder o presente e o futuro
quando não olhamos o passado. Os impasses que ela identifica não a paralisam, também não
sinalizam exclusivamente aspectos críticos em seus textos. Seu Interesse é cotejar distintas
faces das questões em debate, reconhece necessárias reflexões, busca caminhos, sem
“demonizar” nem “sacralizar” idéias, conceitos e pontos de vista. O contraditório, a
ambigüidade, as divergências fazem parte dos aspectos que explora nos diversos temas que
abraça.
4.3.3 Sujeitos Históricos: seus lugares na Escola e na Formação de Professores.
(1996)
“Uma educação escolar que não atinge os sujeitos históricos obstrui nossa
participação nacional nesse processo de interdependência da cultura e da
economia, que nos vem sendo imposto num circuito homogeneizador e
opressivo”. (1996, p. 140)
No artigo “Sujeitos históricos: seus lugares na Escola e na Formação de professores”,
publicado em 1996 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Célia aborda a chamada
crise de escola pública, refletindo sobre a construção histórica de valores e significados
comuns que interferem na elaboração do projeto pedagógico, relacionando tais questões com
a crescente exclusão social, para ela principal entrave da educação. Não será qualquer escola
que pode fazer frente a esta crise, afirma Célia Linhares. É necessário que a escola permita
310
aos sujeitos aceder à palavra, desnaturalizando iniqüidades com que fizemos nossa história e
elaborando projetos coletivos e individuais, isto é, sonhando com outros mundos.
Célia cita Roberto da Matta
173
, antropólogo brasileiro cuja obra ganhou maior
visibilidade na década de 90. Da Matta, explorando em um de seus artigos a expressão
popular muito comum “Sabe com quem está falando?!”, traz a baila a questão do o
escalonamento de privilégios muito comum em nossa estrutura social.
Com relação às questões entre escolaridade e violência envolvendo a criminalidade é
possível levantar hipóteses de que, regra geral, os que tem os níveis mais altos de
escolaridade, com concentração nas classes dirigentes não se isentam de comandar crimes
contra à humanidade, porém a imagem de malfeitor, ladrão ou deliqüente é mais facilmente
atribuida aos pobres, negros, mestiços e gays. A estes é empurrada toda a culpa dos problemas
da sociedade como a violência urbana, o desemprego, epidemias, entre outros. Portanto aos
triunfos da escola de mercado, destinada aos herdeiros das classes dirigentes, se pode
contrapor os infortúnios da escola mínima , também chamada de sub-escola, mantidas para
preparar as “formigas” que engrossarão as filas dos que disputam uma vaga no mundo dos
empregos e que muitas vezes são catapultados para os lugares de sobrantes.
O conformismo da sociedade com a negação escolar é grave porque vai fazendo a
permanência de uma opção de escola que marca a sociedade brasileira: uma escola fraturada e
distanciada em suas partes por abismos que não param de se aprofundar. A escola tem se
mostrado arrogante, pedante, distante da realidade social, dos pais e de seus alunos, sobretudo
os mais pobres. Isso tudo para não admitir seu próprio e incômodo vazio.
Enquanto a sociedade brasileira não assumir a escola como questão fundamental,
escreve Célia, vamos continuar sem direção para o sistema de produção e para o sistema
173 Roberto Da Matta, antropólogo brasileiro é hoje considerado um nome importante nas Ciências Sociais brasileiras.
Realizou pesquisas etnológicas entre os índios Gaviões e Apinayé. Foi pioneiro nos estudos de rituais e festivais em
sociedades industriais, tendo investigado o Brasil como sociedade e sistema cultural, pesquisando o carnaval, o futebol, a
música, a comida, a cidadania, a mulher, dentre outras peculiaridades de nossa cultura. Estudioso dos dilemas e contradições
brasileiros, além de antropólogo, atua como professor, colunista de jornal e produtor de TV.
Em seu original trabalho sobre a conhecida e ameaçadora pergunta: “Você sabe com quem está falando?”, Da Matta marca
uma clara distinção entre indivíduo e pessoa. Os seres humanos, diz ele, que se sentem autorizados a se dirigir dessa forma
aos outros, colocam-se na posição de pessoas: são titulares de direito, são alguém no contexto social. Os seres humanos a
quem tal pergunta é dirigida são, para as pessoas, meros indivíduos, mais um na multidão, um número.
311
político. As instituições escolares têm se tornado um tipo de confinamento onde a única
vantagem seria ocupar as crianças, transmitindo-lhes um “saber sem sabor”.
A escola estaria funcionando como uma usina de moer sonhos e fibras de sujeitos”,
que os professores apenas transmitem o conhecimento para fazer dos seus alunos seres
“educados”. Desta maneira que vem sendo ensinado, o conhecimento atrofia o pensamento e
amordaça a voz, e desta forma o saber se torna amargo.
Paulo Freire é citado, destacando sua concepção de conhecimento que entende que
quando a curiosidade é sua força motriz, inserimo-nos num nível de prazer que não significa
facilidade e conforto. Esse é um ponto muito importante a ser ressaltado. Pois Célia, quando
defende a idéia do “saber com sabor” não faz uma ode ao conhecimento como puro deleite,
pois compreende os processos de aprender como desafios que exigem investimento por parte
daqueles que aprendem e dos que ensinam, porém inclui desejo, curiosidade, interação, como
dimensões significativas desse processo.
No fim de seu artigo Célia faz uma breve biografia da escola, chamando atenção para
o fato de que nos anos 70 ocorreu uma alarmante evasão dos alunos. Nos anos 80, deu-se uma
evasão dos professores (que continua aumentando) e que nos anos 90, a violência urbana se
intensificou, com situações extremas como as que ocorrerram em várias escolas do Rio de
Janeiro em que as quadrilhas decidiam sobre o fechamento da escola, e os crimes e mortes
convivem e agravam os problemas já existentes na escola.
Célia acredita que para se redefinir os rumos da escola, seria necessário, entre tantas
outras providências que lhe garantam uma sustentação, entranhá-la de memória e narração,
que lhe propicie exercícios continuados de ir significando e ressignificando sua prática e,
assim, reinventado outros lugares para a escola. Este entramento “poderia fazer a escola
recriar-se como uma comunidade narrativa em que a biografia de cada instituição escolar
servisse de fio condutor, para que professores e alunos fossem tomando contacto com as lutas
desde a instalação da escola e com aquelas que vão incrementando o seu desenvolvimento”(p.
161).
Célia portanto, defende que para enfrentar a crise é necessário pensar numa escola que
favoreça aos sujeitos o incessante exercício de pronunciarem a sua palavra, na qual a
curiosidade seja alimentada num processo de conhecimento vivido com sabor e liberdade.
312
4.3.4 Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na
escola pública. (1997)
O artigo “Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na escola
pública” foi escrito em 1997 e publicado no livro “Nove olhares sobre a supervisão”,
organizado por Celestino Alves e May Rangel. Célia inicia seu texto citando o escritor Robert
Krutz que aponta que o colapso da modernidade vai arrastando um esgotamento de sonhos, de
expectativas, de esperanças com que se alimentou a vida social.
A escola parece agora não ter espaços para os sonhos de universalidade, interação
com processos de democratização, ampliação de direitos civis e políticos e participação
cidadã, afirma Célia. Para sobreviver, a escola cedeu aos apelos capitalistas, imposições
burocráticas, tecnicistas, imediatistas, particularistas, abdicando de perspectivas utópicas.
Célia afirma que a aprendizagem escolar implica transmissões e aquisições que são
consolidadas mediante práticas que mobilizem o esforço e o empenho do estudante na
descoberta e na elaboração própria.
Não podemos perder de vista que são os projetos, portanto as referências que
ultrapassam o presente, que dão sentido e organização à experiência escolar. Alerta, ainda,
para os riscos de uma asfixia no presente, pois mergulhados no sonho, podemos escapar da
realidade para melhor enfrentá-la; mas riscos também se exagerarmos esta opção, tal
como, ao prolongarmos, ou melhor,radicalizarmos ausências da trama histórica, acabarmos
por perdê-la. Sonhar impede que o hoje nos asfixie, nos projeto para o amanhã. Célia trata
portanto de uma idéia de sonho fortalecedora e não escapista, no que se irmana como o
conceito freireano de utopia, “Sonho possível”, lastreado por uma ação transformadora da
realidade.
Refletindo especificamente sobre a função da supervisão na escola, tema central de
seu artigo, Célia faz uma alerta sobre o risco de que a divisão das funções técnicas, dentro da
escola, traga enfraquecimento do sentido coletivo da educação. A divisão na escola brasileira
só tem sentido se usada para fortalecer o trabalho.
um processo sutil de exclusão, presente no próprio processo de inclusão, que vai
demitindo e amortecendo alunos e professores: o engessamento dos sujeitos na escola, sua
paulatina reificação, sua redução a objetos repetidores. Isto é, ainda que incluído na escola, as
práticas educativas, quanto não envolvem a criação e o fomento à curiosidade, acabam por
gerar uma desapropriação do sujeito de seus próprios recursos, gerando exclusão.
313
Para abordar a questão do sujeito e a questão do conhecimento escolar Célia analisa a
busca da verdade e do sujeito da verdade, reportando-se à Grécia de Péricles (IV a. C.),
passando pelos conceitos dos sofistas (“O Homem é a medida das coisas” Protágoras).
Sublinha os antagonismos entre os sofistas que afirmavam ser o conhecimento relativo e os
filósofos que acreditavam na existência da VERDADE.
Ressalte-se que é muito usual na obra de Célia seu mergulho na história para
compreender questões atuais, aspecto que é coerente com sua visão, repetida em diversos de
seus trabalhos, de que apropriar-se da história é fundamental para que se possa efetivamente
compreender melhor o presente. Esse é, de fato, um caminho que ela nos convoca a fazer em
muitos de seus escritos.
Célia levanta uma série de interrogações e reflexões sobre o conhecimento e suas
dimensões tais como: o que é conhecer, para que procuramos conhecer, como entender a
curiosidade que move o desejo de conhecer, quais as relações entre conhecimento e poder,
quais as suas dimensões éticas e como o desejo de conhecer abre caminhos de descoberta,
potencializadores da ação humana.
O capitalismo industrial reforça a concepção de conhecimento como bagagem, algo
que devemos adquirir. Para a grande maioria dos professores a concepção interacionista não
ultrapassa a esfera cerebrina.
A idéia de bagagem como concepção de conhecimento carrega a idéia de uma
neutralidade do conhecimento, de promessas de um progresso sem limites, investimento em
projetos onipotentes de domínio da natureza, para um possível e sempre transferido benefício
da humanidade como um todo, foram marcos no desenvolvimento modernos dessa concepção.
Com a complexidade social, que implica mediações e afastamentos entre os que
produzem conhecimentos e os grupos que os absorvem e os consomem, o retorno à filosofia
aparece como urgência para desfetichizar as ciências sociais.
É preciso discutir as relações entre conhecimento e verdade, defende a autora, assim
podemos argüir os programas escolares, refletindo sobre os critérios que os definem e os
sujeitos que tem a autoridade para fazê-lo. Célia nos instiga a refletir sobre a conexão entre os
programas escolares e as questões sociais, bem como sobre o compromisso dos mesmos com
os “projetos de esperança que animaram a história”(p. 76).
Afirma que a elaboração de conhecimentos se faz num campo de batalhas onde os
interesses de classe e de grupos se confrontam em conflitos abertos ou camuflados.
314
A ciência e a filosofia não são captação de essência mas sim produção histórica, que
envolve processos de racionalização e abstração e que, portanto não pode prescindir da prática
social, da ação coletiva. As certezas absolutas são um mito ultrapassado.
As verdades e os conhecimentos são produzidos socialmente, dentre das lutas nas
quais as condições da existência são engendradas.
Na gina 81 está explícita a concepção de conhecimento da autora, que afirma a
alegria, o fomento à curiosidade, a leveza e o sabor como aspectos indissociáveis do ato de
conhecer.
A memória e a narração podem ajudar a redefinir os rumos da escola. A partir das
narrativas os sujeitos se apropriam da história, projetam, se organizam. Conceito sempre
presente nos escritos de Célia, o resgate da história está ligado à possibilidade de refletir sobre
os próprios caminhos do futuro.
4.3.5 Terremotos na pedagogia: perspectivas da formação de professores.
O artigo “Terremotos da pedagogia: perspectivas da formação de professores” foi
publicado em 1998 no livro Formação dos profissionais da educação: o novo contexto legal e
os labirintos do real, organizado por Waldeck Carneiro da Silva Niterói: EdUFF, 1998.
Produzido em função de uma aula inaugural realizada sob a forma de uma mesa com a
participação de uns 5 professores, Célia iniciou sua fala reafirmando a importância dos rituais
escolares, como veículos capazes de apoiar o esforço coletivo de ressignificar as experiências
vividas pelos sujeitos pedagógicos. Nesse sentido, a aula inaugural constitui-se em um espaço
de narrar vicissitudes do aprender e ensinar e elaborar questões e caminhos esperançosos.
Chama atenção para as vozes que sintonizam com o esforço de combater as
desigualdades e injustiças que variam suas formas de excludência dos sujeitos: negações de
empregos, hierarquização dos saberes, coisificando os que aprendem e ensinam pelas
renúncias de suas singularidades e diferenças.
Cita Norbert Elias em sua compreensão da dinâmica social. Esta se complexifica com
o avanço da civilização, escreve Célia, constituindo-se em um tecido de interdependências
que envolvem indivíduos e organismos sociais produzindo uma “ordem sui generis”, uma
ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão dos indivíduos que a
compõem. Essa valorização da força política, dos fios que nos tecem e com os quais nos
tecemos e aos nossos coletivos é uma tônica do pensamento pedagógico de Célia.
315
Apoiando-se em Elias, nossa articulista afirma que a história não se faz nem através
do acaso, nem através de uma gica única e muito menos daquela que é comandada pela
eficácia dos planejamentos. A vida transborda, transborda sem parar e não pára de nos
surpreender, nos diz Célia.
Ressalta que as imposições e o uso da força se articulam e se complementam com a
manipulação dos desejos.
Chama atenção para a necessidade de analisar as novas reformas educacionais
considerando os subterrâneos das decisões políticas e econômicas que fazem confrontar a
pluralidade com a homogeneização sob a provocação de mutações da própria cultura.
Reafirma, assim, que os processos sociais deviam ser compreendidos como uma síntese de
alta complexidade, em que é impossível dicotomizar as relações econômicas daquelas que
chamamos de culturais, com suas elaborações de significados, símbolos e valores, nutridos
por afetos e emoções.
As reformas educacionais que desembarcaram em nossos portos, tão abertos a novas
conquistas e colonizações, vêm sancionadas como sinais de tempos globalizados.
Célia reconhece que uma demanda por educação escolar. As classes dirigentes
passaram a entendê-la e proclamá-las como uma sustentação para o exercício da política e da
economia. As classes subalternizadas também intensificam seu apelo à escola como chave de
participação social. Há uma unanimidade em relação à importância da escola.
No entanto é necessário reconhecer que uma diferença entre a escola freqüentada
pelo pobre e a pelo rico. Escolas nimas um pouco de conhecimento, o “suficiente” -
para as classes populares em que a aprendizagem difundida é a da própria desvalia dos
sujeitos pedagógicos e as escolas de mercado, destinadas às elites, primando por oferecer
aprendizagens e conhecimentos e habilidades requeridas para o sucesso e para a competição.
Política tomada desde suas origens na Grécia como uma construção que implica não
a constituição de um coletivo e de um público como um exercício de uma razão que não
dispensa a ética.
infinitas possibilidades de autonomia pedagógica que podem ser exploradas
contribuindo para a reinvenção dos processos escolares.
Ao invés de lamentarmos as pasmaceiras da escola e da universidade, contrapondo-as
às denúncias raivosas, contra o sistema e aos que estão nos cargos de poder, que acabam por
nos fazer abstrair e subtrair a nós próprios como sujeitos, Célia entende que é importante
visitar o aquém e o além desta problemática, feita com saturações de histórias. Nesse sentido,
ressalta novamente o papel do rememorar e narrar, como uma reapropriação viva de um lugar
316
de espera amorosa, tal como Penélope
174
do clássico “Odisséia”, criadora, criativa. Caminho
de invenção de novos lugares para nós e nossos projetos escolares.
Célia reflete sobre o solo em que a LDB vinha sendo plantada, reportando-se a
acontecimentos emblemáticos que ajudariam a discernir sobre os paradoxos e contradições
precipitados pela lei Darcy Ribeiro (lei nº. 9394).
Cita aspectos da precariedade do panorama da escola de hoje: a questão da saída dos
professores da rede estadual no Rio de Janeiro (48 por dia letivo); o fechamento de unidades
escolares; a instalação de esquema de dias de aulas alternados; a admissão de professores
substitutos sem concurso e sem direitos trabalhistas e com formação precária e o advento da
TV Escola, compreendido como uma panacéia.
Com relação às universidades, destaca que, contraditoriamente, na lei aparece a
exigência de habilitação em nível superior para os professores, mas a universidade vem sendo
atacada com um orçamento constrangido, poucos profissionais para muitas demandas,
congelamento de salários, redução de prazos para os trabalhos acadêmicos, bem como de
bolsas e similares tipos de subvenção.
Enfatiza a necessidade de acadêmicos capazes de pensar em atuar política e
eticamente para ultrapassar as barreiras das reproduções e dogmas, nos ajudando a definir
nosso lugar como uma nação entre as nações.
Denuncia as penetrações velozes e a contaminação da lógica utilitária e privatista que
faz do mercado e do lucro os grandes deuses, contra os quais qualquer sonho ou utopia é tido
como demonstração de irracionalidade e convite à desordem e ao caos.
Critica a visão fatalista, preconizada pelos “príncipes da sociologia” que reverberam
que todos têm que aceitar uma sociedade sem empregos e sem lugar, entregando-nos às
urgências e miopias do hoje, como tarefeiros da subserviência.
Cita a Reforma universitária de 68 que retirou o curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, passando para um curso isolado na Faculdade de Educação.
174 No poema clássico “A Odisséia”, Penélope é a esposa do guerreiro Ulisses, que aguarda o retorno de seu marido tecendo
uma enorme rede. Compromete-se com seus novos pretendentes a desposar um deles ao término de seu trabalho, porém,
esperançosa de reencontrar seu amado marido, passa as noites a desfazer as rendas que faz durante o dia. Metáfora da espera
amorosa e esperançosa, da resistência estratégica e silenciosa.
317
Comenta, também, que em 1971 com a reforma do e graus, o curso Normal degradou-se
pala falta de clareza definitória de sua própria funcionalidade e lugar.
Enfatiza que para a sociologia, uma sociedade quando se modifica, modifica suas
escolas. Portanto, refletir sobre as mudanças na escola e na sociedade é fundamental para que
se possa projetar mudanças desejadas.
Reflete sobre o estatuto da Pedagogia, que tomada como um espaço de aplicação das
outras teorias, acaba por dotar-se de uma certa fragilidade, gerando dependências dos centros
de poder.
Para ela é impossível para a Pedagogia ater-se a um centro pois tenta apreender
conceitualmente um processo tão diverso e plural como é a educação, que de tão extensivo
abarca todas as dimensões humanas. Preconiza que o curso de Pedagogia deveria chamar a si
as questões teóricas relacionadas com a formação humana, confluindo com Arroyo. Não
tenho dúvidas de que a escola vem agrandando sua especificidade no que se refere aos
processos de conhecimento, isolando-os da vida e nesse caminho vem subalternizando a
própria educação”(p. 27).
Chamando atenção para os abismos entre ciências e existências, Célia evoca um
poema de Drummond para, novamente, enfatizar as Memórias como necessárias para
reinvenção da escola. Vale incluí-lo:
“Os homens pedem carne.
Fogo.
Sapatos.
As leis não bastam
Os lírios não nascem das leis”.
(Carlos Drummond de Andrade)
É preciso conhecer as leis para fazê-las crescer e alimentar os direitos já constituídos e
esticá-las para acolher aqueles que vão se constituindo como tal. Por isso não podemos nos
descuidar das palavras com que cada lei é tecida.
Sublinha a importância do uso das palavras pois no uso “inocente” das mesmas
operam-se requalificações perigosas dos conceitos. “Flexibilidade” vem sendo empregada
como auto-regulação, conectada com ideologias que dão supremacia ao mercado. À
“autonomia” os legisladores emprestam significados que tendem a liberar crescentemente o
Estado de suas responsabilidades econômico-financeiras, acrescentando mais uma tarefa às
318
instituições escolares: a busca de apoios perigosos que acabam por comercializar as
finalidades da própria instituição.
Em suma, para realçar aspectos distintos que permitem refletir sobre os “terremotos
da pedagogia, Célia destaca as questões legais e o panorama social mais amplo, refletindo
sobre as inter-relações entre essas dimensões.
4.3.6 Escola Balaia – Um convite ao Debate para a Reinvenção de Caxias.
(1999)
Seu livro “Escola Balaia um convite ao debate para reinvenção de Caxias”,
publicado pela Prefeitura Municipal de Caxias em 1999, é resultado do trabalho de assessoria
que prestou nessa época à Prefeitura de Caxias, apoiando a reestruturação das escolas
municipais.
É oportuno comentar, mais uma vez, que os textos de Célia não são lineares. Isto é,
embora o título, como se espera usualmente aponte um tema central, Célia aborda muitos e
diferentes assuntos, tecendo idéias e conjugando sentidos. Retomo esse aspecto de seu estilo
por estarmos agora apresentando um dos livros que escreveu sozinha. Isto é, ele não está em
nenhuma coletânea, isso permite uma visão interessante sobre aspectos de sua produção
textual. Nessa perspectiva, a de sua permanente intertextualidade, reforça a concepção teórica
de Vygotsky que salienta que a palavra sozinha não é suficiente para produção do sentido. É
preciso compreender o contexto mais amplo daquele que a enuncia e as relações que produz.
O sentido está então ligado às conexões singulares que aquele que diz estabelece entre
diferentes idéias.
Célia tampouco “receitas” para a prática, embora aqui se trate de um texto que
pretende balizar a educação do Município de Caxias. Sua preocupação é em abordar aspectos
filosóficos que podem nortear a prática. Coerente com sua defesa da autonomia, interessa-se
mais em promover reflexões acerca dos fundamentos da educação. Para instigar a reflexão
sobre as conseqüências para a prática de suas colocações, Célia se utiliza de perguntas que
acompanham todo o seu texto. Essas sim, apontando para questões bem concretas,
desdobramentos significativos dos temas abordados.
Outra peculiaridade de seus textos e esse não é diferente nesse sentido– são os pés
de página que indicam caminhos para o aprofundamento das questões tratadas, abrindo um
leque de autores com os quais ela trava diálogo. Sublinhe-se que tal diálogo não exclui
autores que trazem abordagens distintas e que numa visão radical talvez não pudessem sentar
319
“na mesma mesa”. Marx, Morin, Norbert Elias transitam em fértil diálogo em suas obras,
sobretudo as datadas dos anos 90. Nos pés de página refere-se, também, a outras produções
suas sobre aquele tema, indicando uma recursividade em sua obra.
À época da escrita de “A Escola Balaia” Célia Linhares era consultora da Secretaria
de Educação de Caxias. Nesse livro ela sintetiza o sentido filosófico e político do trabalho que
se propõe a desenvolver pela educação municipal de Caxias, mapeando o contexto local,
situando o que considera as temáticas mais candentes na educação brasileira e caxiense em
particular.
Ela inicia contextualizando a realidade de Caxias, trazendo aspectos de sua história e
analisando sua realidade e futuro imediato.
O livro se divide em 6 partes. A introduz os temas tratados no livro; a 2ª,
“S
INTONIZANDO COM UTOPIAS QUE NÃO ENVELHECEM
”, apresenta reflexões sobre a educação
de forma mais ampla e os desafios de projetar mudanças, onde enfatiza as relações entre
memória e história e reflete sobre o panorama da educação Caxiense; a “D
ECIFRANDO
DESEJOS E NECESSIDADES SOCIAIS
”,
dedica-se a captar na “leiturada realidade caxiense as
verdadeiras demandas de mudança; a 4ª, “T
RADUZINDO PISTAS DE ATUAÇÃO PARA AS ESCOLAS
MUNICIPAIS DE
C
AXIAS
valendo-se da metáfora pedagógica do “balaio” Célia discorre sobre
aspectos que reputa indispensáveis para o trabalho nas escolas, estabelecendo alguns
princípios a partir desse exercício metafórico; por fim, na e última parte, P
-
PROPOSTA
PARA A
E
SCOLA
B
ALAIA DE
C
AXIAS
”,
sintetiza sua proposta para o Município.
Na introdução Célia discorre sobre o sentido de escolher um novo caminho para a
educação de Caxias, apontando para a vinculação entre esse novo sentido com “as antigas
tradições populares impregnadas de valores de solidariedade e justiça” (p. 21). Ressalta,
ainda, que é fundamental que os sujeitos se reconheçam nos projetos políticos-pedagógicos.
Esse tema, da necessária e fundamental autonomia do professor, aparece em muitas obras de
Célia sublinhando a força que essa questão ganha em seu ideário (p. 21).
Também na introdução e nas epígrafes, a presença da poesia e da literatura está
garantida, como em quase todas as obras que tive oportunidade de travar contato, evocando
sentidos em sintonia com os temas enfocados. É assim que Saramago, Clarice Lispector
dentre outros povoam as páginas dos livros em diálogo com o texto e suas idéias (“O destino
dos lugares é como uma carta fechada à espera do gesto único que um dia dará a conhecer”
– José Saramago em Évora: patrimônio da humanidade. Évora, Litografia, Tejo, 1997).
320
Célia retrata o panorama da situação escolar, enfatizando a contradição que consiste
em, por um lado termos hoje um contingente maior freqüentando a escola e, por outro, termos
a quase unanimidade nacional voltando-se contra ela, denunciando a sua inoperância”.
Trata-se, como ela enfatiza, de uma relação ambígua com a educação escolar, “uma relação
de amor e ódio” (p. 22).
Reconhecendo “a alta tensão, entre as necessidades que urgem e frustrações que se
arrastam em nossa formação social e educacional” ela propõe que insistamos em penetrar,
para exercermos a responsabilidade política dos que pensam e fazem a educação, como um
empenho permanente na luta contra as opressões(p. 22) Tal perspectiva aponta para seu
entendimento de que ser educador é uma militância, envolve um sentido político de
posicionamento e de enfrentamento diante das situações de desigualdade e injustiça social.
Podemos dizer que essa é uma idéia que perpassa toda a sua obra apontando para a educação
como espaço de luta.
Na seqüência comenta que a crítica à escola pública tem gerado ações autoritárias, de
controle dos professores, sempre responsabilizados pelo dito “fracasso escolar” (kits
tecnológicos, cursos de treinamento e reciclagem dos professores). Vale ressaltar aqui a
crítica que faz com relação à terminologia utilizada como referência aos espaços de formação,
tais como “reciclagem”, que revelam sentidos pejorativos e equivocados. Tal visão crítica não
leva em conta que a escola foi “alvejada no período ditatorial, para ir fabricando uma quase
‘unanimidade’ – ainda que meio camuflada de que seriam as professoras e os professores os
responsáveis por essa situação.” (p. 23). Ou seja, à situação crítica da escola se atribui ao fato
dos professores serem supostamente mal formados, mal pagos e mal controlados. Ela
pergunta então: Um e outro procedimento poderiam ser configurados como uma cassação
branca das vozes e dos pensamentos dos professores? Uma violência à autonomia do
professor?” (p. 23).
Novamente a questão da autonomia vem à tona, dessa vez a partir da leitura crítica
com relação a como socialmente se compreende as dificuldades da escola, revelando que é
preciso compreender as razões que efetivamente produzem o fracasso e não mascará-lo
fazendo do professor o vilão. Nesse sentido vale ressaltar que tal prática foi ganhando espaço
no Brasil desde a década de 70 quando então a idéia de “deficiência cultural”, importada
tardiamente dos Estados Unidos, responsabilizava os estudantes pobres por suas dificuldades
em aprender nas escolas modeladas para as crianças de classe média (Soares, 1989). A culpa,
321
oscilando entre a criança pobre, o professor mal formado e as condições da escola, têm tirado
o foco do fato de que, na base do fracasso escolar temos uma sociedade fortemente
hierarquizada que dificulta o acesso a população empobrecida, bem como nega seu saber e
sua cultura.
Célia aponta para uma dupla questão. A escola, apesar de seus dilemas, não é o espaço
da desesperança. Ela afirma que “a escola é querida, é acreditada, é demandada, como um
bem indispensável e um direito que precisa ser exercido por todos. A escola é considerada
majoritariamente, como uma instituição que acena com a possibilidade de contribuir para
refundirmos os significados sociais, numa perspectiva de maior liberdade e solidariedade.” (p.
25). Mesmo identificando uma crítica aguda diante de todas as dificuldades e dilemas da
educação no Brasil, Célia não é fatalista”, isto é, ela não acredita que o existem caminhos
possíveis. Nesse sentido, comunga da esperança freireana, uma esperança sem ingenuidade,
uma utopia possível. É com Quintana que ela epigrafa esse capítulo, reforçando sua
concepção de utopia.
“Se as coisas são impossíveis ... ora! Não é motivo para não querê-las! Que
triste os caminhos se não fora a Mágica presença das estrelas! (Mário
Quintana)
Nesse sentido é possível encontrar claramente sua irmandade com Paulo Freire. Trago
para dialogar com as idéias de Célia um pequeno trecho de “Pedagogia da Esperança”:
“(...) É a compreensão da história em cujas tramas o livro procura entender o
de que fala, é a recusa a posições dogmáticas sectárias, é o gosto da luta
permanente, gerando esperança, sem a qual a luta fenece. É a oposição
nele embutida contra os neoliberalismos que temem o sono, não o
impossível, pois que esse não deve ser sonhado, mas o sonho que se faz
possível, em nome das adaptações fáceis às ruindades do mundo capitalista”
(Freire, 1992: p.180)
Em “S
INTONIZANDO COM UTOPIAS QUE NÃO ENVELHECEM
”, Célia abre
o capítulo indicando o sentido de construção de projetos que imaginam outros mundos
possíveis. Se não o fazemos estaremos destinados a uma trilha de tarefeiros, míopes que só
enxergam a lista das obrigações e deveres imediatos, cumpridores apavorados de tarefas da
sobrevivência, incapazes de vislumbrar o fluxo do tempo histórico.” (p. 33)
322
Reconhecer e conhecer o movimento histórico é para a autora fundamental para que
sejamos sujeitos críticos, possamos efetivamente nos apropriar do presente e projetar o futuro.
Por isso penso uma educação como uma ponte por onde trafegam as cargas do passado
com seus tesouros e entulhos que vão sendo reapropriados pelos trabalhos do presente,
movidos por necessidades, sonhos e esperanças, para reencaminhá-los ao futuro. É graças a
este trabalho de afirmação dos desejos que a história caminha, com suas contradições”. (p.
33).
Sublinha que embora tenhamos nas últimas décadas assistido a um aumento da
matrícula escolar no Brasil, esta é acompanhada de um enfraquecimento da escola. Este
enfraquecimento está relacionado ao deslocamento da capacidade de ensino-aprendizagem, a
medida que a escola foi acolhendo segmentos da população até então discriminados
socialmente. Para tanto Célia apresenta dados estatísticos sobre crescimento e a “destruição da
escola pública” (como o pequeno índice das crianças que conseguem concluir o ensino
fundamental).
Abordando especificamente a situação da educação no Município de Caxias, Célia
comenta que além do crescimento da oferta de matrículas e de professores, o interesse de
alunos e professores no processo escolar é impressionante. A questão central para Célia é o
desafio de ampliar a escola questionando a possibilidade de promover uma aprendizagem
mais qualificada, maior interesse social, maior aprofundamento no patrimônio cultural da
humanidade e com instigação do potencial criador. Defende que o ensino-aprendizagem se faz
mais vigoroso e duradouro quando um projeto endossado pela comunidade o sustenta, quando
há atenção às atividades dos alunos e professores.
Em sua esperança por uma escola melhor Célia não deixa de ressaltar que o desprezo
pela educação pública, traduzido pelos baixos salários dos professores e péssimas condições
de trabalho com que muitas escolas são mantidas, são problemas significativos. Nesse
sentido, denuncia problemas desse tipo em Caxias e também ressalta gestos de “um tempo
mais promissor” (concurso público para professor, reformas em prédios escolares, cuidados
com a merenda, dentre outros). Evoca passagens da história de Caxias e dados de sua
distribuição rural 70% das terras nas mãos de 1% de proprietários rurais. Ressalta que o
apoio e estímulo social para aprender e ensinar na escola não são processos espontâneos,
323
mas construídos política e economicamente.” Mais uma vez apontando para o movimento
social como alavanca de mudanças e revelando um olhar que, sem deixar de indicar pontos
críticos da situação retratada, busca olhar para as brechas e espaços de construção existentes.
Ressalta-se aqui também o papel político da memória, como capaz de favorecer aos homens
apropriarem-se de sua própria histórica, tomando conhecimento de projetos, fatos, aspectos
gerais do contexto social em que vivem e, com isso, possibilitar uma visão crítica do hoje e
projetar um possível amanhã.
Ao pensar nas mudanças para a educação Caxiense Célia confronta os caminhos da
aprendizagem, reforçando questões como a afetividade e a solidariedade como fundamentais.
Mais uma vez, tece relações entre memória, narrações, história, referindo-se a distinção feita
por Walter Benjamin entre “o mundo veloz da informação e o mundo fértil das narrações”
para valorizar as memórias que se respaldam em lutas honrosas, que alimentam o orgulho,
espelhando a humanidade de nossos antepassados que souberam ampliar a vida, como seus
legados de liberdade(p. 48). Benjamin é um autor com quem dialoga fertilmente em sua
obra dos anos 90. Destaca de sua contribuição o papel da narração como possibilidade de
construção da subjetividade, do tornar-se sujeito. Para Célia os espaços de narração são
fundamentais para a construção individual e coletiva. Via narração histórias são partilhadas,
sentidos são comungados. Este espaço encontra-se cada vez mais exíguo no mundo
contemporâneo quando a cultura da superficialidade dos contatos e de outras tantas mazelas
que os tempos de um capitalismo massacrante trazem.
Ressalta a necessária retomada das histórias Caxienses, suas tradições épico-culturais,
favorecendo a que seus habitantes possam reconhecer-se, ganhando assim respeito e
credibilidade, apropriando-se de sua história. Nesse sentido, conhecer a própria história,
retomar as tradições e sabedorias de seu contexto social são movimentos ligados a perspectiva
da cidadania, daquele que toma nas mãos o seu lugar na sociedade, se reconhecendo com
sujeito de direitos, de valor, dignificando-se.
Termina essa parte inicial desejando que a Escola Balaia possa ser este “sistema de
irrigação a estimular a capacidade de rememorar e projetar um futuro em que Caxias possa
definir com autonomia seu lugar neste Brasil feito de complexidade e interdependências, que
se intercruzam com outras relações polarizadas neste momento de tantas globalizações” (p.
49) Sublinhe-se, mais uma vez, o destaque da autora para as questões da MEMÓRIA,
AUTONOMIA, HISTÓRIA. Vale também chamar atenção para a metáfora de que ela se vale
324
para pensar seu projeto. “Sistema de irrigação”, água que remete ao simbolismo
bachelardiano de movimento, de origem. A água, como afirma Bachelard um símbolo
materno, pelo seu movimento rítmico, que embala, que sentimentalmente nos transporta para
as origens", para as estruturas arcaicas pré-uterinas. Nesse sentido, pensar em uma água que
irriga é pensar na perspectiva de movimento, nascimento, identidade (Bachelard, 1989).
Em “DECIFRANDO DESEJOS E NECESSIDADES SOCIAIS”, Célia realiza uma
leitura ampla do contexto de Caxias a fim de reconhecer as necessidades sociais efetivas. Esse
movimento revela a preocupação dela em que empreendimentos como os que ela encabeça, o
de prestar consultoria à um município, precisa obrigatoriamente dialogar com as demandas
reais daqueles a quem se dirige. Movimento que revela uma postura anti-autoritária e crítica
com relação a inúmeros projetos e/ou experiências de formação que partem do princípio de
conhecer do que o outro precisa. Célia não acredita nisso e faz o exercício de olhar para
muitos aspectos de Caxias a fim de perceber sua situação atual, suas marcas histórias, seus
entraves, suas necessidades.
É assim que ela observa na arquitetura, nas tradições locais, na sabedoria popular, nas
lendas, na história e em seus fatos e personagens significativos elementos importantes a serem
considerados. Levanta também aspectos quantitativos relativos aos avanços no atendimento às
crianças pela escola blica, nas iniciativas de contratação de professores e no nível de
escolaridade dos mesmos.
Aponta também aspectos com a questão da banalização da violência, o
encarceramento, da problemática dos jovens sem empregos, do abuso do trabalho infantil e do
desaparecimento das experiências de narração, Teria secado este rio de narrações ou
simplesmente a sintonia maciça se deslocou para os programas globais e sentimentais da
TC?” (p. 56), ela pergunta.
Finaliza esta parte de seu livro enfatizando que o momento de Caxias é oportuno para
realizar uma escola que se articule econômica e culturalmente.
Em
TRADUZINDO PISTAS DE ATUAÇÃO PARA AS ESCOLAS MUNICIPAIS CAXIENSES
,
num exercício de diálogo com a metáfora do Balaio ela propõe alguns possíveis
“desdobramentos” da palavra, entrelaçados uns aos outros que materializam idéias, conceitos
e pensamentos sobre a concepção escolar que anima sua proposta para Caxias:
I Histórias rememoradas: remetendo-se as Balaiadas revolta histórica ocorrida no
Maranhão e que é emblemática das lutas contra as desigualdades sociais, aponta para o
sentido de instigação ao rememorar, às narrações como forma de compreender os sentidos
ocultos nos diferentes movimentos sociais e históricos.
325
II Trabalho manual x trabalho intelectual: O balaio que envolve simultaneamente
“as mãos que trabalham, realizando o modelo guardado na mente do artesão. (p. 70).
Propõe que a escola atente para essa dupla dimensão que tem sido vista dissociadamente.
III – Retomada das tradições: a cestaria é uma produção artesanal que remete a
tradições antigas, de rias origens. Nessa direção Célia pensa a presença da tradição na
escola, instigando a que ela seja revista, despida de sua dimensão conformista e dogmática
mas que possa resgatar a perspectiva do conhecimento popular criador.
IV Memória e criação: O balaio envolve um trabalho de recuperação feito pela
memória e ao mesmo tempo a possibilidade de criação. Célia destaca em várias de suas obras
a importância do espaço da criação humana como possibilidade de reinvenção. Diz que “Na
rememoração os acontecimentos são reinterpretados à luz dos projetos que os evocam. A
histórica e a escola se fazem instituintes quando bebem do passado, animados e
comprometidos com o futuro. (...) Olhar para ontem com os olhos no amanhã.” (página 71) O
movimento instituinte, pensamento que ganha força em sua obra a partir dos anos 90/ 2000
aponta para a possibilidade de renovação da escola.
V Balaio é uma obra aberta, um “continente traçado”: Como obra aberta pode ser
“preenchido” pelas necessidades e desejos coletivos e individuais, ritmadas pelo tempo
histórico. Essa idéia põe em cena os desejos de aprender, os processos de aprender e seus
caminhos mais efetivos para todos e cada um.
VI Tecendo balaios, narrando vida: Os balaios são feitos geralmente no interior das
casas, diz Célia, coincidindo com momentos de narrativas, em que “ficção e realidade se
interpenetram” (p. 73). Instiga-nos a pensar nas histórias que cada escola lembra, nos
aprendizados advindo das histórias que ouvimos, na vida como espaço de aprendizado. Célia
ressalta em sua obra a necessária atenção aos aprendizados não escolares, atenção que urge
abrir espaços de narrativa no interior das escolas para que possam legitimar-se, socializar-se.
VII Entrelaçamento de tiras de palha e múltiplas relações políticas: relações
políticas, econômicas e culturais influem na escola. Entrelaces que trazem complexidade e
supõem tensões, embates, conflitos e contradições.
VIII - Escola pública e polifonia: O balaio ajudaria a entender a trans e a
interdisciplinariedade, compreendendo a escola como cenário de múltiplos conhecimentos e
saberes.
IX Espaços entre as brechas do balaio e entrada de oxigênio: o oxigênio da escola é
a PALAVRA que precisa ser mais compartilhada, circular para fazer-se forte e compreendida.
Espaços de discussão e diálogo, estímulo ao pronunciar-se favorecem a expressão dos sujeitos
326
e possibilitam que apropriem-se do conhecimento e de si mesmos. A força da palavra na obra
de Célia é contundente. Ela reputa a palavra a possibilidade de autoconstrução e afirmação da
identidade, resgate da própria história, afirmação de si como sujeito de direitos, de valor. No
tocante ao ser professor, a palavra como uma ferramenta crucial no sentido de instigar à
reflexão.
X Leveza do balaio: Célia remete a leveza do balaio e a facilidade com que o
transportamos a questão da agilidade da produção do conhecimento na contemporaneidade,
“sempre em mudança e sempre sendo capaz de transferência”.(página 75). Tal leveza é
também entendida como prazer de aprender, de ser desafiado como sujeito de aprendizagem.
A concepção de aprendizado é destacada como possibilidade de instigação, de prazer, de
busca de sentido. Entrelaça-se com a presença do desejo, da criação, da condição dos
estudantes de escolher, opinar, interferir nos processos de ensino-aprendizagem. Ela destaca,
também, a necessária presença do “saber com sabor” termo que utiliza em alguns de seus
artigos como o mencionado no ponto 4.3.3, da curiosidade.
Após o exercício metafórico, que aborda em síntese aspectos cruciais em seu projeto
de educação, Célia apresenta princípios curriculares norteadores, articuláveis e
complementares uns aos outros:
Princípio da emancipação pela autonomia dos sujeitos:
Este é um princípio dos mais caros no pensamento pedagógico de C. Linhares. Na
verdade ela reputa como “prioridade absoluta” (p. 77) para a educação. A escolarização, em
suas palavras, pode se realizar de duas formas: coisificando/ massificando, formando assim
seres domesticados e submissos, homogeneizados na reprodução das lições de viça(p. 77 e
78) ou para a autonomia, fortalecendo sujeitos, como seres capazes de recriar o mundo,
como solidariedade” (p. 78).
Prossegue fazendo a crítica ao individualismo contemporâneo e ao narcisismo dele
proveniente, movimento que vai contra a construção de laços de coletividade e solidariedade
tão caros a escolarização.
Afirma também que a escola para pobres aonde é recorrente a aprendizagem da
desvalia, levando os indivíduos a uma espécie de invisibilidade social rompida, quando
suas presenças destacam-se nos noticiários policiais (idem) e uma escola para ricos,
cultuando o individualismo e distante da realidade social.
Refletindo sobre a relação entre escola e tecnologia, critica a visão de professor como
aplicador ou mantenedor das tecnologias em funcionamento, afirmando a idéia de que a
educação atual deve participar da apropriação e redirecionamento das racionalidades
327
tecnológicas, contrapondo-se a direção concentracionista do capital e excludente do trabalho
que acirra competições e fomentando uma visão de tecnologia que possa contribuir para um
estilo de produção mais humano,voltado para a riqueza cultural,humana, social, apoiadas por
elos vivos de solidariedade (p. 79).
Propõe que, tendo em vista a tendência contemporânea a desinstitucionalização, em
que se concentram interesses nos próprios desejos e prazeres, formemos sujeitos históricos
coletivos e individuais. Célia reconhece a positividade que um olhar mais individualizado e
crítico com relação as institucionais outrora inquestionáveis é importante porém não prescinde
da devida atenção a coletividade, ao social.
Retoma a contribuição das teorias críticas, movimento próprio da sociologia da
educação nos anos 70, que possibilitou questionar a escola. Cita Bourdieu (violência
simbólica), Althusser (aparelhos ideológicos), Baudelot e Establet (inculcação da ideologia
burguesa em detrimento da proletária) como emblemáticos de tais teorias. Pensa que
redimensionar a escola implica em nem considerá-la “vilã” nem benemerente.
Aponta para a necessidade de os professores partilharem seus problemas, visando
maior autonomia individual e pedagógica. Acredita que atualmente seja mais comum que os
mesmos se isolem em suas salas de aula, trocando muito pouco e se alienando do entorno.
Reputa tal alienação do professorado às contradições sociais, passando pelas
desigualdades econômicas, hierarquização de sexo, desprestígio do professor. Nesse sentido,
afirma que os professores precisam, para serem alimentados como sujeitos, recolocarem-se
no fluxo da vida, apropriando-se de suas vozes e saberes, de seus passados e de seus projetos
pedagógicos para escreverem, com os estudantes, uma outra história de dignidade para a
escola pública brasileira” (p. 82).
A autonomia escolar precisa se alimentar da cultura popular e teórico-tecnológica,
aproximando conhecimento da vida. Nesse sentido critica a aridez do conhecimento escolar,
que se baseia muitas vezes em repetição de conceitos prontos abrindo pouco ou nenhum
para aproximações da terra, da história, da cultura, não recebem a seiva da vida (p. 83).
Conhecimento é visto muitas vezes como bagagem, remetendo a algo externo que precisamos
adquirir. No entanto, é preciso estabelecer uma relação íntima entre conhecimento e nossas
vidas, apropriando-nos dos saberes. Os conteúdos e procedimentos metodológicos precisam
incluir os interesses dos professores e estudantes.
328
A esfera familiar e doméstica é vista como campo fértil de conhecimentos que podem
ser melhor articulados com os escolares, colaborando para a constituição de um projeto
coletivo de educação, envolvendo escola e comunidade.
Mais uma vez Célia retoma a questão da memória e dos projetos compartilhados,
afirmando que sem lembrar o passado, sem concurso das memórias históricas e sem
perspectivas futuras, os sujeitos não crescem.” (p. 86). É interessante, diz Célia, que
processos de rememoração institucional, política envolvam as trajetórias dos alunos e
professores, permitindo que seja dada atenção as próprias histórias de vida.
Nesse sentido, rememorar a própria trajetória e história de vida leva a revisitarmos
nossas cidades e lugarejos, e a “reencontramos as circunstâncias sua materialidade e
simbolismos com que foram forjados canais de opressão ou de liberdade, que habitamos e
que nos habitam” (p. 86).
Numa sugestão prática, Célia indica que “ocupemos pedagogicamente a cidade e todo
o município, com visitas guiadas, recuperando percursos históricos que, como freqüência,
correm paralelos e entrecortados por lendas e ficções de vários matizes.” (idem).
Finaliza a abordagem desse princípio com uma concepção de aprendizagem que
envolve o “saber com sabor” (p. 87), perspectiva que tem também muita força em sua obra.
Aponta para a necessidade de a escola se abrir para um novo padrão de beleza e de
felicidade. Aprender não pode ser sinônimo de sacrifício, embora passe por um esforço do
qual alunos e professores até podem se orgulhar, quando assumido como um desafio
compartilhado que nos faz crescer.” (idem).
Destaca também a importância de estabelecermos vínculos de pertencimento a um
mesmo grupo, o que pode desencadear forças de solidariedade, intensamente
potencializadoras da aprendizagem (idem). A participação de alunos, professores e
comunidade nas reflexões sobre a escola é sugerida como caminho necessário para a
construção de uma escola autônoma e participativa.
Princípio do atendimento da dignidade escolar:
Nesse tópico Célia chama atenção para as violências em suas múltiplas formas que
vão sendo fortalecidas no cotidiano social. Relações em que as crianças e jovens muitas das
vezes são dominados por professores e inspetores em atitudes autoritárias.
Aponta para o desejo de uma escola sem burocratismo e tecnicismo, mas que possa
praticas a inter e a transdisciplinariedade, que aproximem professores e estudantes “aos
processos da vida, de suas vidas, de nossas vidas” (p. 89).
329
No final desse tópico, Célia remete ao simbolismo do uniforme escolar, que traduz o
teor do princípio em questão. Ela diz:
“(...) Nesse entrelaçamento entre a cidade, o município e a escola, o
uniforme dos estudantes tem um especial lugar: oficializando a presença da
escola na cidade e apoiando os estudantes no seu esforço diário de pertencer
a uma categoria que não quer abrir mão de seu futuro e nem do futuro de
Caxias” (p. 93)
Sua ênfase é na importância de reconhecer a educação como espaço de direito e de
formação do cidadão. Entende por cidadão aquele que se apropria de sua história, do valor de
sua terra, que tem seus direitos vitais garantidos – educação, saúde, moradia, respeito.
Nesse sentido, a escola precisa ser o lugar que investe na aprendizagem escolar,
envolvendo todas as forças vivas da sociedade em favor da escola no empenho de desativar
violências” (p. 90). Ressalta que tudo isso não depende da escola sua visão não de escola
redentora – mas não pode dispensar sua ajuda.
Mais uma vez ressalta “o papel da memória, na perspectiva de reeditar acontecimentos
de intenso poder político, econômico e cultural como aqueles vivenciados e registrados
historicamente” (p. 90). Nesse sentido, de apropriação da própria história, propõem que as
crianças conheçam por meio das narrativas as tradições e histórias da cidade, das primeiras
escolas e professoras e professores que ali trabalhavam, que seja compartilhado retratos de
jornais, lembranças da cidade e da escola.
Por fim, Célia aponta para a visão da escola como espaço público e de sua necessária
articulação com outras esferas produtivas econômicas e culturais - , num sentido de
colaboração, como a saúde, a reurbanização, as tecnologias, agronomia, etc. Entrelaçamentos
– termo que ela utiliza para reportar-se a essas relações escola-sociedade - , contribuiriam para
construir “pontes onde por tanto tempo se aprofundaram abismos” (p. 93).
Em “P
-
PROPOSTA PARA A ESCOLA BALAIA DE CAXIAS
Célia faz uma síntese de todas
as questões abordadas ao longo do livro, reafirmando que sua tentativa é a de sistematizar
necessidades e desejos histórico-pedagógicos para provocar e ‘precipitar’, no sentido químico
deste termo.
Investir na escola é “espelhar os interesses e zelos de uma sociedade para com suas
crianças, jovens, adultos e velhos, na busca da compreensão do mundo, da participação da
vida, através da cultura letrada” (p. 90).
330
Reconheço na produção “A escola Balaia” um investimento muito intenso de Célia.
Seja pela própria implicação com a cidade, com a escola pública, seu livro condensa seu
projeto de escola, em que se tecem as idéias nucleares de seu pensamento sobre a função do
conhecimento, da Identidade cultural, dentre outras. Pessoalmente, uma de suas obras que
mais me tocam, seja pela forma como constrói sua proposta com a imagem do balaio, seja
pela generosidade e seriedade com que se esmera em pensar na realidade do Município de
Caxias. Tive dificuldades em resumir, tudo me parecia tão importante... Escutei minha
dificuldade e dei o espaço que considerei devido às idéias essa pequena grande obra.
4.3.7 O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: A presença de Paulo Freire.
(1997)
“O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: a presença de Paulo Freire” foi
publicado pelos Cadernos do Centro de Estudos Sociais (CES), nº. 1, da Universidade Federal
Fluminense em 1997. Nele, Célia ressalta aspectos centrais da obra de Paulo Freire e a
capacidade de seu pensamento em “fecundar a Pedagogia com sementes de esperança”
(p.19).
Célia, dando continuidade a um movimento de escrita em que se apropria mais e mais
de um estilo singular, faz elos que surpreendem pela sua não obviedade, convidando o leitor a
perceber conexões entre os conteúdos a que ela pretende tratar com os diversos campos da
existência. Esse estilo, marcado por uma permanente intertextualidade, confere a suas
produções um ritmo poético e nada linear, como já mencionamos.
Neste artigo em questão, Cartola, Roas Bastos (poeta paraguaio), Erich Fromm e
tantos outros desfilam suas músicas, poesias e idéias, no garimpo poético de Célia, pescadora
que é.
Cheio de idas e vindas, desvios e voltas, seu texto é polifônico. Não é simples, por
exemplo, fazer um “resumo” dos textos de Célia, pois ela nos leva a olhar para tantas
direções, que nos parecem instigantes, que fica difícil encontrar um fio único que orienta seus
textos. Rios caudalosos, com muitos braços. Imagem que surgiu no depoimento de uma de
suas ex-orientandas e que nesse momento parece oportuna para margear essa conversa. O fio
que conduz o texto é mais o mergulho que o tema lhe provoca, sem objetivismos restritivos,
ela permite que a provocação a leve a fazer tantas viagens quantas sua ssola permite. Não
331
se perde, não nos perdemos, pois o que conta é menos o tema específico do texto, que também
importa, é claro; e mais as idéias , sentidos, costuras que vão se tecendo.
Célia destaca a simplicidade de Freire e o sentido inaugural de seu pensamento no
campo da Pedagogia, afirmando que ele traz uma estruturação conceitual singular que enfatiza
a partilha permanente, uma relação amorosa com o saber e o reconhecimento de nossa
incompletude, em contraposição a postura arrogante dos que “sabem-tudo” e que tentam
controlar saberes e poderes.
Ressalta também a importância de Freire para reinventar a escola, compreendendo a
liberdade como um princípio fundamental na prática educativa. A luta de Freire para afirmar a
vida, a existência e a sua busca permanente de liberdade exigiu confrontos com conflitos
históricos acirrados, com interesses econômicos estabelecidos e com uma cultura classista,
exploradora e controladora dos sujeitos das classes menos favorecidas.
Célia chama atenção para o pouco espaço que os currículos universitários dedicam aos
estudos da obra freireana. Em sua crítica da universidade e da produção intelectual, chama
atenção para as contradições presentes mesmo entre aqueles que professam serem inspirados
pelas idéias de freire e suas ações. Para ela, essa contradição parece ter velhas raízes num
tipo de tradição cultural brasileira (...) em que é destacado um desacordo entre palavras
escritas e faladas – e a prática cotidiana em nossa sociedade.” (p.22). Um abismo se
aprofundaria entre essas duas dimensões.
Para Célia, não é suficiente que Freire receba palmas e louvores, mas o que de fato é
necessário é que a convocação maior de pensar e reinventar a escola popular seja atendida.
Essa convocação tem ficado apertada, nos diz Célia, entre os embates de uma política que
alterna a cobrança de resultados com os brilhos do espetáculo.” (p. 21). Nos espaços de
debate, as diversidades e divergências próprias do pensamento são afastadas, preponderando
uma repetição doutrinária e o cumprimento de estratégias com vistas a controlar pensamentos
e ações.
O compromisso com a classe trabalhadora, tônica da obra de Freire, requer um
enfrentamento das estruturas do poder. Em sua obra ecoam as vozes e os desejos dos
oprimidos, alimentando sonhos que nos convidam a desejar um mundo novo, como um
projeto de instituir novas formas de existência social, nos diz Célia concluindo seu artigo.
332
4.3.8 Medos e Violências nas Escolas: E a educação com isso? (1999)
“O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e
quanto maior a força do pulso, mais nos cortamos.” (Mia Couto – citado por Célia Linhares)
Em “Medos e Violências nas Escolas: E a educação com isso?”, artigo de 1999,
publicado pela Revista do SEPE-RJ, Célia aborda a questão da violência, refletindo
inicialmente sobre a importância de compreendermos o sentido do que ela nos diz. Sem a
devida compreensão, afirma Célia, acabamos por fazê-la piorar.
Buscando nas palavras de uma das canções de Gonzaguinha, cuja crítica social o
tom de suas composições, Célia cita o trecho de uma de suas músicas: fazer uma nação,
viver uma nação...”, afirmando a necessidade de se construir uma nação a partir de um
trabalho de frentes múltiplas.
Segundo a autora, para lidar com a violência o adianta punir e corrigir, mas sim
ouvir e valorizar os desejos dos sujeitos.
Célia compreende a educação como uma grande rede, que precisamos ir inventando e
entrelaçando-a com uma rede de interdependências sociais, históricas, etc. Valoriza a
perspectiva da coletividade, como um espaço de fortalecimento, em que a possibilidade de
reinvenção esteja presente. Entendo os sujeitos em sua dupla dimensão individual e coletiva
nos aproximamos de uma sociedade mais abrangente.
Cita Victor Hugo, que há dois séculos atrás afirmou a importância da escola como
esperança para o homem ao escrever que “se não quisermos viver em prisões, precisamos
ampliar as escolas”. Célia se alinha com essa confiança na educação, acreditando que é
necessário levantar a Educação como um movimento instituinte e entendendo-a como
possibilidade para que o ser humano reinvente o futuro e dê dignidade ao presente.
4.3.9 Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos. 1998
“Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos” foi publicado na Revista
Kirikiki,Barcelona, nº. 51, em 1998.
Célia afirma em seu artigo que a ampliação do pensamento pedagógico dos últimos 30
anos se deve a fatores como o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação, o aumento das
matrículas escolares, dentre outros. Com relação aos cursos de pós-graduação, entende que
333
estes podem ser vistos como alicerces para a reinvenção da democracia, rompendo com
tradições estabelecidas com o intuito de construir novos laços instituintes.
Existe um abismo entre a produção acadêmica e a realidade das escolas brasileiras
afirma Célia. Tal abismo nos convoca a pensar a respeito do verdadeiro lugar do intelectual e
em como se situam no combate contra a ditadura neste período neoliberal. Os pesquisadores
da educação, mesmo diante das desigualdades e diferenças sociais, precisam estar sempre se
indagando sobre os problemas educacionais, que são humanos, sociais e políticos. Levanta
diversos questionamentos sobre a forma como os sujeitos sociais e coletivos tem sido tratados
nas pesquisas, dentre elas se teórica e praticamente, os sujeitos pedagógicos têm sido mais
idealizados e estudados do que efetivamente respeitados. Nessa perspectiva, Célia nos aponta
para o fato de que temos dado pouco espaço para os sujeitos pedagógicos individuais e
coletivos. Ela propõe que façamos uma ruptura com esse tipo de prática, promovendo
encontros com os sujeitos e seus projetos elaborados, vividos e compartilhados.
As pesquisas da pós-graduação defendem a escola pública porém, ao mesmo tempo,
denunciam problemas existentes na escola sem considerar as dificuldades concretas existentes
em seu interior. Com isso, ela afirma, lançando mão de um conceito de Bourdieu, que
acabamos impondo imagens e espelhos desanimadores infiltrados de um tipo de ‘fatalismo
econômico’” (p.28)
Célia sugere que compreendamos o significado interior das aprendizagens e
exploremos um pouco mais a nossa prática pedagógica, ampliando o que entendemos como
conhecimento e particularmente como conhecimento escolar.
A respeito das concepções que balizam o exercício do magistério, Célia cita a
pesquisa da Alicia Entel cujos resultados apontam para uma visão dos professores que
identificam o conhecimento como bagagem que deveria ser adquirido em livros a partir de
conhecimentos já estabelecidos.
As concepções de conhecimento que herdamos estão ligadas a múltiplas influências
históricas, culturais e sociais, nos diz Célia. Nossa formação histórica é marcada por uma
herança colonial baseada em relações escravistas e machistas, que geraram uma série de
desigualdades raciais, étnicas, sexuais e religiosas. Apesar disso, foram se criando múltiplas
formas de resistência com forte capacidade inventiva. No entanto, Célia afirma que pouco
conhecemos das batalhas pela liberdade e dos silêncios que falam(p.29) e afirma que isso
deveria ser ensinado nas escolas, e não a usual escolha arbitrária e hierarquizada de
determinados fatos históricos.
334
Não podemos esquecer que, como instrução social, a escola participa dos
problemas de cada tempo em cada sociedade e, portanto, não escapa do jogo
de poderes que tanto acionam sobre ela e atuam em seu interior, sobre os
quais a escola também atual, conformando-os ou tratando de contribuir para
sua alteração. (1998: p. 29)
O conhecimento que temos é marcado pelos fatos históricos e se reflete nos atos
pedagógicos e acadêmicos, nas diretrizes e investigações e nos exercícios de ensino e
aprendizagem.
Citando Adorno
175
, Célia afirma a importância de renovar os pensamentos verdadeiros.
Recorre também a Ivani Fazenda para sublinhar que na produção de conhecimentos é
fundamental que se aproprie da experiência e das necessidades sociais.
4.4 Voz dos parceiros PARTE I: anos 90.
4.4.1 A voz dos parceiros: Clarice Nunes, uma parceria de confiança.
Eu acho que é um companheirismo, é a marca que eu vejo na Célia, me vejo
de mãos dadas com ela. Eu sinto assim, que posso ficar longe de Célia, sem
falar, porque a vida vai carregando a gente assim para e pára pelos
compromissos, mas se eu precisar, ela está lá. Uma âncora, eu sei que vou
recorrer a ela, eu sei que posso falar com ela, eu sei que posso me abrir com
ela. (Clarice Nunes, em entrevista, 2007)
Na verdade Clarice já conhecia Célia Linhares desde a década de 1970, quando,
chegando de São Paulo em 1974 para seu mestrado
176
, deu início a sua atividade docente no
Rio de Janeiro. Já ouvira falar no trabalho de Célia além de comumente encontrá-la em
eventos como as reuniões anuais da ANPED e outros tantos ligados à educação.
175 O alemão Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903 1969), filósofo, sociólgo, musicólogo e compositor alemão
foi membro da Escola de Frankfurt, juntamente com Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Habermas e outros. A filosofia de
Adorno fundamenta-se na perspectiva dialética. Critica a civilização técnica e a sociedade de mercado que persegue apenas o
progresso técnico. O domínio da natureza e do próprio homem derivariam do conceito de razão surgido do iluminismo.
176 Clarice Nunes iniciou seu mestrado em Educação no Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESAE) da
Fundação Getúlio Vargas.
335
Nos conta Clarice que estreitou contato especial com Célia quando de sua defesa de
doutorado, na qual ela esteve presente. O ingresso de Clarice na UFF em 1991 viria a
aproximar ainda mais essas duas trajetórias.
(...) Eu vim trabalhar com ela quando ingressei na UFF, em 1991. Desde o
momento que antecedeu meu concurso, na defesa da minha tese de
doutorado na qual ela esteve presente, havia ali uma afinidade em termos
pessoais, uma atitude de olhar o mundo, olhar a educação que nos
aproximava. Minha entrada na UFF foi um pouco amparada pelos contatos
com a Célia, me dando dicas, me apresentando pessoas, sempre muito gentil,
muito agradável.
Clarice rememora as experiências significativas vividas na UFF, destacando o
processo de reformulação curricular do curso de Pedagogia
177
em 1993, movimento intenso
que envolveu ampla discussão interna na universidade, mobilizando os departamentos e a
comunidade acadêmica. Lembra, também, dos concursos para professores titulares dos quais
ambas participaram. Momentos de efervescência institucional, com enfrentamentos decisivos,
que exigiram posicionamento e tomada de atitudes.
Vivemos muitas experiências marcantes, importantes. No momento em que
eu entrei, nós tivemos toda uma nova discussão sobre o currículo de
pedagogia, nós tivemos toda uma discussão e deliberação sobre a
reestruturação da Faculdade através dos departamentos, tivemos os
concursos para professores titulares, inclusive nós fizemos, Célia e eu, estes
são, por exemplo, três momentos marcantes, sem considerar o momento em
que eu vou para a coordenação do mestrado em educação que para mim é
um momento marcante e posso contar com o apoio da Célia. Nós tivemos
nesses momentos, sobretudo de discussão do curso de Pedagogia e de
reestruturação da faculdade, enfrentamentos bastante decisivos, aonde a
questão que se colocava era a da democracia institucional.
177 A esse respeito dedico um capítulo inteiro em minha dissertação de mestrado intitulada “Cultura e ideário pedagógico do
curso de Pedagogia da UFF Niterói”, defendida em 2002, aonde apresento o Curso de Pedagogia da Universidade Federal
Fluminense, abordando a história de sua criação até o cenário que possibilitou a reformulação curricular em 1993. Avaliações
iniciais da implementação do novo currículo são também citadas.
336
Clarice fala dos impasses e confrontos vividos pelo corpo docente e da tensão dessa
época. Em jogo, estavam interesses que extrapolavam os de natureza mais teórica, pondo as
polaridades políticas em cena e as disputas por poder, peculiares da vida das instituições.
Naquele momento nós nos digladiamos muito como corpo docente
internamente e é claro que essa luta estava atravessada por interesses que
não são interesses teóricos, mas são também interesses partidários,
interesses de distribuição do poder interno na instituição, foram momentos
muito difíceis, em que basicamente no meu caso e no caso de Célia também,
nós lutávamos pela manutenção do Departamento de Fundamentos
Pedagógicos que era consistente. Era importante que não fosse
descaracterizado. Fomos incompreendidas algumas vezes mas mantivemos
nosso ponto de vista, inclusive sobre o processo de condução da
reestruturação. (Clarice Nunes, entrevista, 2007)
Irmanadas no desejo de práticas democráticas de reflexão e decisão dentro da
universidade, Clarice e Célia estiveram lado a lado na defesa de muitas das idéias postas em
cheque. Para Clarice, a luta árdua” foi também muito fortalecedora tendo em vista que
possibilitou a tomada de posição e, conseqüentemente, a boa sensação de não ter se omitido
diante do panorama que se colocava. Nesse processo sentiu-se fortemente apoiada por Célia.
Foi uma luta árdua, seja em assembléia de professores, seja em reunião
interna de departamentos, seja na reverberação que essa luta teve dentro da
universidade (no conselho universitário fora da universidade, junto a outras
instituições). (Clarice Nunes em entrevista, 2007)
A atitude de Célia, de posicionar-se em defesa do espaço democrático, em que todos
tivessem o direito a expor suas idéias e opiniões, permite que tomemos da dimensão da
contribuição de Célia na UFF. Essa é efetivamente uma marca peculiar em sua trajetória, uma
luta sem descanso, que atravessa permanentemente sua reflexão sobre as políticas
educacionais.
Eu acho que isso conta um pouco da importância de Célia e como a gente
nesse processo também afinou a compreensão do que ocorria e como nos
aproximamos, criamos um vínculo maior por conta de tentar defender um
espaço em as pessoas pudessem se posicionar e que não houvesse monopólio
de alguns, que pudéssemos fazer um confronto limpo, sem puxadas de
337
tapete. Eu aprendi muito. Foi duro, mas aprendi muito. (Clarice Nunes,
entrevista, 2007)
Esse momento relatado não era o primeiro em que a força combativa de Célia
era clamada. Em diferentes momentos de sua vida, como vimos até aqui, ela havia
sido provocada a tomar atitudes diante de panoramas de inquietação e divergência.
Seu estilo combativo, mestiço, como ela mesma diz, de “medos” e premências, era
posto a prova. O medo, como diz Célia, acompanhou toda a sua vida como uma
sombra a que não se pode desviar. No entanto, ao lado do medo, uma sensação de
que “não queria se omitir, não desejava recuar” ia impelindo Célia a agir, enfrentar, a
lutar. Contundência e doçura marcam sua forma de enfrentar os impasses. Doçura
que podemos associar a sua forma elegante e cuidadosa de ser, mas que também está
de certo modo, ligada a um tempero que a prudência e o reconhecimento dos perigos
trazem, mesmo quando mestiçadas com os medos. Medos entranhados pelos sustos e
pelas perdas de sua trajetória, atravessadas pelos terrorismos da ditadura. Medos
que contraditoriamente também provocaram um tipo de coragem que a fez diferir
dos prepotentes e arrogantes, enquanto foi aproximando Célia dessa humana
vitalidade que prima por ser frágil e potente.
Eu acho que a Célia leva para a vida pública um comportamento que mesmo
na vida privada eu acredito que ela tenha, que é a suavidade e a firmeza.
Célia é uma pessoa suave, mas ao mesmo tempo é uma pessoa firme. Ela
esta sempre atenta a conseqüência do que defende, a busca da coerência com
aquilo que defende. Ela lida com o enfrentamento com vivacidade, com
presença, com ética, sempre o desejo maior não é da separação, é o da união.
Eu vi na Célia, sempre vejo na Célia, uma liderança que aglutina, não que
divide. Para que você aglutine você tem que ter a humildade, não a
humilhação e olhos para perceber os valores do outro, no quê que o outro
contribui, de que maneira ele contribui e, ao mesmo tempo, qualificar essa
contribuição do outro. (Clarice Nunes, entrevista 2007)
Clarice destaca, também, a abertura ao diálogo e à diferença. Quando afirma que Célia
se interessa mais na união do que na separação, refere-se a capacidade que ela tem em
dialogar com a diferença, entendendo-a não como trincheira, mas como peculiaridade do
humano. Como quer Morin, a visão da complexidade é inclusiva e Célia pratica uma postura
aberta, que inclui e dialoga. Não é o mesmo que dizer que ela é “eclética”, mas sim que ela,
338
ao possuir suas próprias perspectivas teóricas e formas de pensar o mundo, contempla a
diversidade como parte imanente do mesmo. Vocacionada para o encontro com o outro, lida
com tal diversidade com uma curiosidade amorosa.
Clarice se reporta ao que chama de “boa vontade” de Célia, uma disposição para lidar
com os problemas e embates que revela uma flexibilidade para olhar sob a perspectiva do
outro, que favorece a uma visão caleidoscópia:
Poderia dizer que vejo no estilo da Célia uma grande boa vontade. Considero
que muitos de nossos problemas, em qualquer instância e instituições seriam
resolvidos com a boa vontade. Célia tem isso, ela não é uma pessoa que
assume um ponto de vista e se fecha em seu ponto de vista. Ela é capaz de
mudar se convencida a fazê-lo racionalmente, é uma pessoa de confiança,
uma líder que inspira confiança. E uma líder que é capaz de ver além da
frustração momentânea, que às vezes a gente tem nesses processos. Ela tem
ideais. A questão da esperança está sempre colocada, eu acho que isso tudo
faz dela uma liderança muito atraente. Confiável, atraente, humana. (Clarice
Nunes, entrevista, 2007).
A questão da confiança traz uma imagem muito significativa para pensarmos nos elos
que se constroem nos ambientes acadêmicos. Não seria ela, a confiança, o sentimento que
viabiliza a abertura para o outro? Ao confiar, é possível expor, se expor, pois na confiança
residiria a tranqüilidade de se sentir aceito em sua diferença, em sua singularidade. Confiança
que se traduz no companheirismo, na escuta atenta, na reflexão a partir da fala do outro (e na
possibilidade de, em refletindo sobre essa fala, rever a própria posição).
O que realmente me marcou é o companheirismo da Célia. Realmente ela é
uma companheira com quem você pode contar, isso esficando cada vez
mais raro hoje em dia. Então nesses episódios todos, eu sentia que ela era
uma pessoa em quem eu podia contar, acho que isso diz tudo dela, ela é uma
pessoa em quem eu tenho a máxima confiança. A quem eu posso me expor
com toda a abertura, de quem eu posso receber críticas que eu sei que serão
bem vindas, no sentido de que ela me mostra pontos que eu não vi ainda. Eu
acho que é um companheirismo, é a marca que eu vejo na Célia, me vejo de
mãos dadas com ela. Eu sinto assim, que posso ficar longe de Célia, sem
falar, porque a vida vai carregando a gente assim para e pára pelos
compromissos, mas se eu precisar, ela está lá. Uma âncora, eu sei que vou
recorrer a ela, eu sei que posso falar com ela, eu sei que posso me abrir com
ela. (Clarice Nunes, em entrevista, 2007)
339
Clarice sublinha a contribuição de Célia na ANPED. Destaca sua fala poética, densa
de significados e de concepções de mundo, de educação. Célia é bem recebida em muitos
ambientes, ressalta Clarice, algo que, nós que transitamos pelos meios acadêmicos, sabemos
não ser tarefa das mais fáceis, haja visto as vaidades e as diferenças de posição que geram,
com freqüência, hostilidades, rejeições, afastamentos. Mesmo quando combatida, Clarice
percebe que Célia é respeitada. Perguntei para muitos dos entrevistados sobre como viam as
oposições à Célia. Com freqüência essa era uma questão difícil de ser respondida pela grande
maioria (e que portanto, não incluo em todas as narrativas). As respostas traziam essa
dimensão de que ainda que existam/ existissem opositores, Célia de alguma forma sempre
inspirou respeito. Acredito que seja reflexo do respeito que também dirige ao outro e de uma
conduta que mesmo frente a embates tensos e árduos, se manteve sempre ética.
Sua presença na ANPED sempre foi muito marcante, porque a Célia cativa
pela sua fala poética, ao mesmo tempo carregada de significados que não são
apenas poéticos, que são significados de vida, de posicionamento político,
sempre uma pessoa muito bem recebida em vários ambientes e muito
combatida também, não seria diferente, tanto aqui quanto fora. Mas é uma
pessoa que eu acho que consegue despertar o respeito dos opositores.
A respeito das idéias emblemáticas da obra de Célia, ela destaca a concepção de
política e sua estreita relação com a escola.
Tem um alcance do trabalho da professora Célia que eu acho que tem a ver
com a concepção de política que extrapola a universidade, que vai para
outros ambientes institucionais, escolarizados ou não. Célia participa de
movimentos de formação docente, de reorganização de escolas, de
movimentos instituintes. São outros locais onde a produção e pensamento da
Célia circulam concretamente. (Clarice Nunes, em entrevista, 2007)
Sublinha também o movimento permanente de diálogo que Célia estabelece com os
professores, buscando uma efetiva cooperação entre universidade e escola básica. Isso se
reflete em suas pesquisa e textos.
Ela tem escrito muito para professores. As idéias da Célia procuram atingir
esses professores em ação, nas salas de aula. Ela tem atingido não pelos
trabalhos críticos, os artigos, os capítulos de livros, mas também pela
trajetória que ela tem, dentro da escola pública. Creio que essa trajetória fala
muito alto, quando as pessoas lêem os textos da Célia. É alguém que está
falando porque viveu, não apenas porque leu. Então tem esse dado da
experiência pensada, reelaborada, ela faz isso com muita facilidade nos
textos que escreve. Esse é o fio condutor desse contato permanente que os
professores sentem, dessa necessidade que tem dessa Célia, que é não
340
uma intelectual, mas uma intelectual educadora. Eu vejo um pouco por aí.
Enraizada na escola.
Parceria, confiança, ética. Aspectos ressaltados por Clarice em seu contato com Célia.
Uma educadora intelectual, que escreve com vitalidade, fala do lugar da experiência.
Enraizada na escola, Célia mantém um diálogo intenso com as questões que atravessa o
processo educativo brasileiro.
4.4.2 A voz dos parceiros: Valdelúcia, memórias de vôos em parceria:
Três obras me lembram Célia: O livro de Neruda, “Confesso que vivi”. No
início Neruda afirma que naquele livro seu compromisso é com suas
memórias e que, ao narrar as memórias não tem o mesmo compromisso do
memorialista, que descreve com cuidado e rigor o vivido, a proposta dele é
ser um narrador-poeta. Isso me lembra Célia que consegue narrar
poeticamente. Outro livro interessante é o penúltimo de Gabriel Garcia
Márquez, “Viver para contar”, acho que a obra-vida de Célia é muito isso,
aonde ela vai ela está sempre narrando, sempre contando um tanto de sua
própria história de vida que se confunde também com a sua história
profissional. Lembro também do livro, “Fernão Capello Gaivota”, de
Richard Bach em uma passagem mais ou menos assim: “ tanto que
aprender, quero me dedicar a desenvolver meu vôo, e como tenho muito que
aprender, não quero ficar buscando alimento, quero alçar maiores vôos”. A
mãe de Fernão reclamava de que ele não se preocupava em voar para buscar
alimentos, pois ele almejava ir até o horizonte. Essa coisa de poder voar
mais alto, Célia ensina isso, que a gente pode voar mais alto do que muitas
vezes as condições objetivas nos permitem. muito que aprender a voar,
o tempo de voar é aquele.” Célia é um a pessoa que voa, mas que também
permite que outras pessoas possam voar.
“Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos
outros. Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre como
nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas as folhas amarelas
que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado. Minha vida é uma
vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.”.
Valdelúcia conheceu Célia antes mesmo de trabalhar com ela na UFF. Chama
atenção para o reconhecimento da obra, importância política e educacional de Célia
não apenas no Rio de Janeiro, mas também no Maranhão:
341
Antes de começar a trabalhar com a professora Célia Linhares eu a conhecia
pelo conjunto de sua obra, pela importância política e educacional que ela
tem não no Rio de Janeiro, mas também no Maranhão aonde eu também
tenho uma interface com a Universidade Federal e o sistema de ensino, tanto
Estadual quanto Municipal, em São Luís e Imperatriz, onde ela é muito
conhecida. (Valdelúcia, em entrevista, 2007)
Comenta que após seu ingresso na UFF, em 1992, teve a oportunidade de aproximar-
se mais estreitamente de Célia, inicialmente de forma um tanto tímida e cerimoniosa, tendo
em vista a admiração que nutre por ela:
Eu a conheci antes daqui da UFF, fora do Rio de Janeiro, por sua obra. Com
meu ingresso na Faculdade de Educação eu pude me aproximar um pouco
mais dela, mas é interessante destacar que a minha aproximação com Célia
era uma aproximação muito cerimoniosa, até tímida de minha parte. Eu
sempre achei Célia Linhares uma pessoa muito especial, não seria de
maneira simples que eu poderia me aproximar dela. Eu pensava que tinha
que me preparar mais para chegar perto dela. Então, a admirava com certa
distância, mas ao mesmo tempo com uma aproximação subjetiva, amorosa
por gostar do trabalho dela, da maneira dela ser. (Valdelúcia, em entrevista,
2007)
Destaca a elegância e delicadeza da maneira de ser de Célia, ressaltando o respeito
como uma característica marcante de sua forma de se relacionar com o outro. Quando tive
oportunidade de maior aproximação, sempre a achei uma pessoa muito elegante na maneira
de ser, muito respeitosa. Essas são características que se destacam nela”, lembra-se
Valdelúcia.
Valdelúcia nos conta que Célia foi uma pessoa importante para sua inserção na Pós-
graduação na UFF e pelo convite para participar no seu grupo de pesquisa, o Aleph e
incentivando-a a entrar no programa de pós-graduação. Esse movimento acolhedor e
integrador relatado por muitos dos entrevistados, aparece aqui como marca da generosidade e
acolhimento de Célia:
Quando eu voltei do meu doutorado em 2001 ela começou a falar do meu
trabalho aqui, que eu deveria me preparar para entrar no programa, e então
foi a partir desse ano que comecei a me aproximar mais de Célia Linhares e
ela me convidou para fazer parte de seu grupo de pesquisa. Hoje tenho maior
aproximação dela e tenho por ela muita deferência. Eu a admiro e escuto
muito, penso que ela é uma pessoa extremamente generosa. Então é isso, que
percebo nela. Célia é uma pessoa singular e ética.
342
Sobre o grupo de pesquisa Aleph, ela comenta o espaço de troca e de exposição da
diversidade de referenciais teóricos que nele circulam. Multiplicidade e riqueza caracterizam
esse espaço:
O Aleph é um espaço múltiplo e Célia nos dá liberdade para apresentar
nossos referenciais teóricos. É um grupo de pesquisa, de estudos, de
extensão. É um espaço múltiplo, muito rico. Eu comecei a fazer parte em
2004 e para mim tem sido um espaço de formação. A voz dela é sempre o
melhor momento dos encontros. A pauta de discussão não é proposta
fechada a princípio. Célia sempre quer discutir, acolhendo o que todos
querem falar.
Mesmo considerando o reconhecimento e importância na história da formação de
professores e da educação, Valdelúcia destaca a postura sempre curiosa e desejosa de
aprender mais de Célia. Algo que a distingue como mestre em contínuo movimento, pouco
acomodada e arraigada a verdades absolutas:
Isso sempre me chamou atenção em Célia Linhares. Uma pessoa que ocupa
um lugar na história da educação no Brasil, com o conjunto da obra dela e
sempre com a postura de aprendiz, de iniciante, postura sempre respeitosa
com os que estão chegando, os mais novos, professores e estudantes. Todos
nós aprendemos muito com ela. Não é fácil falar de maneira mais objetiva,
pois eu sou aprendiz de Célia Linhares. Quando estamos enfrentando
qualquer situação, penso assim junto com Iduina, “Vamos falar com
Linhares!”, ela sempre nos preciosas orientações com sua sábia
experiência. Assim sempre afirmo “Vamos falar com ela, vamos ouvi-la”.
Sobre passagens marcantes vividas com Célia, Valdelúcia destaca o momento de
ingresso no programa de Pós-graduação em Educação da UFF, quando foi convidada por
Célia a participar com ela de uma disciplina obrigatória, oferecida por cada campo de
confluência do mestrado. Sentir-se integrada, ouvida, encontrar espaço para apresentar seu
trabalho e estabelecer suas primeiras experiências no programa foi algo fortalecedor que
contribuiu para seu desenvolvimento intelectual no novo espaço acadêmico que ocupava na
universidade:
Lembro, dentre tantos momentos, daquele quando ingressei no programa de
pós-graduação em educação. Ingressei em 2003, no segundo semestre,
estávamos vivendo uma greve que se prolongou até 2004, ano de minha
primeira experiência. Célia me convidou a participar junto com ela de uma
disciplina obrigatória que cada campo oferece no mestrado, eu achei isso
grandioso: ela me convidou?! Isso me chamou muito a atenção. No segundo
momento, na disciplina, durante todo o tempo ela tinha sempre o cuidado de
preservar o espaço de minha voz. Outro fato que me chama a atenção é o
quanto Célia é respeitosa com os mestrandos que estão chegando. No
343
primeiro período de aulas ela sempre orienta e apóia os projetos em sua fase
inicial, qualificando-os e prestigiando-os. Em geral, Célia Linhares não fala
que algo está errado, ela aponta, recomenda, ela oferece um livro, indica a
literatura, se disponibiliza. (Valdelúcia, em entrevista, 2007)
A respeito das principais idéias pedagógicas de Célia, Valdelúcia destaca a coerência
sempre presente entre aquilo que ela escreve e a forma como ela vive. Evitando
maniqueísmos que dividem prática e teoria de forma simplista, Valdelúcia destaca a práxis de
Célia como sua marca mais contundente. Desafio de apropriar-se do próprio discurso como
algo que sustenta as ações, escolhas, formas de ser e de agir:
Uma coisa interessante na maneira de Célia ser, escrever e viver é que ela
tem uma coerência que me agrada sobremaneira. O que ela escreve e
desenvolve expressa isso, como na sua pesquisa sobre experiências
instituintes e a possibilidade de não se submeter ao que está instituído, de
por uma formação crítica você poder resistir pelas experiências instituintes.
Às vezes temos acesso a obras de autores de inquestionável valor, mas que a
prática não converge! Não quero reproduzir esse maniqueísmo de que o
“discurso é uma coisa e a prática é outra”, isso não é tão simples mas o
fato é que ela consegue ter o que denomino como práxis coerente. Então,
Célia é no cotidiano do trabalho acadêmico e fora dele de uma coerência
muito forte. Célia é o que escreve, o que fala e o que vive.
Pergunto a Valdelúcia a respeito do estilo combativo de Célia. Ela destaca sua
capacidade de ser contundente e delicada ao mesmo tempo. Na verdade, Valdelúcia
problematiza até a própria questão do embate, chamando atenção para uma atitude dialógica
da parte de Célia, que acaba por transformar, com freqüência, possíveis enfrentamentos em
diálogos:
Ela consegue ser, de maneira revolucionária, coerente e delicada. Ela é
contundente sem perder a ternura. Célia participa dos espaços da pós-
graduação de maneira política nos debates e discussões de maneira ética. No
programa de pós-graduação Célia Linhares consegue marcar seu lugar ao
apresentar suas idéias sem rejeitar o que os demais dizem. É como se ela
dissesse “Estou falando e dizendo do lugar onde estou, mas estou aberta ao
debate. Estou aqui para dizer o que penso, mas eu não estou contra ninguém,
estou discutindo no campo das idéias e falo desse lugar”. Ela é uma
formadora também de pessoas políticas, de educadores políticos. E isso é
uma qualidade humana preciosa e rara!
A questão dos embates não me parece que se aplique nas participações de
Célia, porque ela tem uma maneira de ser, de discutir politicamente que não
permite o embate. Ela é dialógica, respeitosa. Ela se conduz com autonomia,
não abre mão de suas concepções democráticas, é muito respeitosa. Ela sabe
lidar com a diferença, com a diversidade de todos de maneira respeitosa, sem
se confundir.
344
Sobre o significado mais amplo para a educação brasileira da obra de Célia Linhares,
Valdelúcia sublinhou o seu significado político, reconhecendo em Célia uma pessoa
consciente das demandas sociais e políticas atuais. Ela tem uma preocupação com as
questões da história da educação no contexto da história do Brasil. Célia Linhares é
pesquisadora estudiosa da alma do povo e dos pensadores brasileiros”, afirma Valdelúcia.
Ao mesmo tempo em que tem essa ligação estreita com seu país e extrema valorização
de nossa cultura e do conhecimento que produzimos, ela prestigia não apenas os autores
brasileiros, afirma Valdelúcia, mas não deixa de estudar vários estrangeiros, autores clássicos
e contemporâneos.
Valdelúcia ressalta a preocupação política de Célia com relação a formação de
professores, acrescentando que a forma poética de sua expressão alia-se a sua atenção a essa
dimensão, provocando impacto em quem a ouve.
A história de vida de Célia tem uma contribuição importante para a
formação política dos professores. Destaco o aspecto político por ser
considerado uma questão central na formação dos professores. Sua
preocupação com a formação política dos colegas e alunos é aliada à poesia.
Célia tem uma maneira de ser poética, que também é filosófica. Ela
consegue aliar política e rigor teórico com a poesia e filosofia. Para você ter
idéia a respeito disso, conto uma experiência vivida duas semanas. Célia
esteve em minha sala de aula para uma participação na turma do mestrado.
Após sua saída, alguns alunos falaram: -“Como ela é sensível, como afirma a
importância da nossa formação política no curso de mestrado”, que é a
questão central no nosso campo de confluência.
Com relação ao referencial teórico de Célia, Valdelúcia reconhece a sua abertura para
dialogar com diferentes perspectivas. Ela possui seus autores preferidos, isso é evidente em
sua fala, como Walter Benjamin, mas com freqüência convida colegas para participarem de
suas aulas contribuindo com seus referencias, trazendo outros autores para o diálogo,
completa Valdelúcia.
Temos um autor em comum que é Walter Benjamin, mas ela me convida,
por exemplo, para discutir o pensamento de Adorno nas aulas de nossas
disciplinas no mestrado. Ela dialoga muito bem porque, em primeiro lugar,
ela é boa interlocutora, por ser estudiosa. Então, ela nunca nega as idéias de
outros pensadores. Antes, escuta e discute com muito respeito com o
pensamento de diversos autores fazendo contraponto, de forma firme e
elegante, mas sempre dialogando com diferentes pensares.
345
Coerente com a própria concepção de movimento instituinte, Célia se contrapõem ao
pensamento único, engessado. Mantém-se aberta aquilo que emerge, aos novos pensares que
se produzem no fluxo da vida e da produção cultural.
Célia fala sobre a possibilidade das “fagulhas”, afirmando que Buscando
encontramos as fagulhas” nos autores com os quais dialogamos. Sua
erudição contempla uma formação política e filosófica significativa. Célia
está sempre atenta ao seu entorno e para além dele.
É curiosa, com espírito sensível e desenvolvido. Por isso, seu espírito
conserva o frescor e o vigor da infância e juventude. Seus olhos sempre
brilham. Célia é uma menina, no melhor da meninice.
Talvez eu tenha revelado a você muito não revelado à Célia por mim. Talvez
por respeito cerimonioso. Até hoje ainda tenho um tanto de cerimônia ao seu
lado. E gosto disso. Até cultivo mesmo.
Por último, acho interessante uma tese de alguém em vida. Em geral a obra é
estudada após a morte. Parabéns pela iniciativa, sua e de sua orientadora
Prof.ª Iduina, em estudar a vida e a obra de Célia Linhares em vida. Eu faço
questão de estar lá na defesa de sua tese ao lado da Prof.ª Célia Linhares.
Novamente surge a coerência como marca da presença de Célia, convergência entre
obra e vida, fala e escrita, ação e reflexão. Valdelúcia tem em Célia uma referência de mestre
a quem admira, de quem busca conselhos.
4.4.3 A voz dos parceiros: Inês Bragança, memórias do convite para um
piquenique-pedagógico
(...) Tivemos a felicidade de um encontro em Lisboa, Célia e eu, e abaixo
cito o texto que escrevi em meu “livro da vida”, naquela ocasião:
“Após deixar Célia e Sr. Linhares no Hotel, disse a Júnior que momentos
como aqueles, são presentes que a vida nos dá, presentes de uma “vida
estrangeira”. O vazio pela mudança da Lia, pela partida de Denise,
deixaram-me o sentimento de solidão, quase de isolamento, o encontro
com os amigos fez-me sentir, não a intensidade da “companhia” como
também fortalecer o sentido de minha presença aqui e da pesquisa.
Conversamos sobre a vida em Portugal, Caio, a escola portuguesa, dilemas e
caminhos da pesquisa, os principais temas do debate do campo educativo por
aqui e, enfim, as tranças e articulações entre vida e trabalho. As experiências
346
de Célia e Sr. Linhares com quatro filhos em outros países, os desafios
enfrentados e o grande envolvimento na vida e em projetos de futuro,
trouxeram grande inspiração e força. Força que impulsiona o caminho que
tenho trilhado na busca de intensificar meu processo de formação, de ter,
aqui em Portugal, um espaço/tempo de aprofundamento, de diálogo interno e
profundamente coletivo. Lembro a síntese feita por Célia, durante nosso
café, ontem, com referência à Conferência que vai fazer na Universidade do
Minho: se em Benjamin encontramos um tom nostálgico frente à
possibilidade de experiências plenas e partilhadas por meio da narração, ela
afirma a confiança na comunicação humana, na construção coletiva e em um
conhecimento mais humano, poético e sensível. (Inês Bragança em seu Livro
da Vida, 18 de maio de 2005).
A lembrança desse encontro trago como símbolo de dimensões importantes
do caminho de aprendizagem que pude trilhar com as contribuições de Célia:
a importância da afetividade, da comunicação humana como referências
fundamentais de sustentação de nossos projetos e sonhos. (Inês Bragança em
entrevista concedida em 2007)
A proximidade de nosso relacionamento me faz perceber como vida,
pensamento e trabalho se articulam de forma intensa - a mesma amorosidade
e afeto, compromisso e ética que envolvem os relacionamentos pessoais
transbordam em sua elaboração filosófica e política sobre a sociedade e os
processos educativos. Tudo com muito “saber e sabor”. Retomo, então,
como imagem metafórica de seu pensamento e de suas contribuições, o
“piquenique pedagógico”, piquenique como espaço/tempo marcado pelo
encontro, pela partilha de diferentes saberes e sabores, pelo rigor necessário
que envolve toda a preparação e o desenvolvimento, pelo prazer e
afetividade. (Inês Bragança em entrevista concedida em 2007)
Esta narrativa foi produzida a partir de uma entrevista por escrito concedida
por Inês. Inês atendeu a meu convite para conversarmos sobre Célia prontamente.
Por dificuldades em conciliar horários acabamos optando por uma entrevista por
escrito em que enviei a ela o roteiro com algumas questões (em anexo) orientando-a
que ficasse inteiramente à vontade para extrapolar o roteiro e tomar esse convite
como oportunidade de refletir sobre a presença e influência de Célia em sua trajetória
profissional-pessoal. O tom de resgate de memórias é dado desde o início:
Escrevo esse texto como carta, memorial, testamento..., como documento e
registro de aprendizagens construídas em partilha com Célia; professora e
amiga querida que conheci no ano de 1993 e que, a partir de então, tem
acompanhado, de perto, minha trajetória pessoal, acadêmica e profissional.
347
(...) depois da última reunião do ALEPH, voltei para casa pensando em
escrever sobre as experiências com Célia. O convite de Adrianne para
contribuir com seu trabalho sobre o pensamento da professora Célia
confirmou esse desejo. É esse, então, o sentido do presente registro, sentido
que busca na rememoração a força dos caminhos construídos, caminhos que
se abrem e se reconstroem na narrativa.
Inês reflete sobre a rede de experiências que concorrem para a formação do professor,
reconhecendo a importância das relações e pessoas com as quais convivemos. Célia é citada
como “presença inspiradora de reflexões críticas e poéticas sobre a vida”.
A formação, enquanto movimento vital liga-se às nossas experiências,
envolve pessoas, lugares, contextos e, quando retomo o processo vivido nos
últimos anos, a presença da professora Célia é significativa e inspiradora de
reflexões críticas e poéticas sobre a vida, a educação e a formação de
professores.
Após meu retorno de Portugal, a proximidade de seu aniversário e
aposentadoria tem trazido muitas reflexões sobre as aprendizagens que
construí em nossa relação de amizade e de formação (...).
Inês resgata as lembranças de como se conheceram.
Foi por meio de Cipriano, um ex-aluno, por quem Célia sempre demonstrou
especial carinho e atenção, que nos conhecemos. Eu havia concluído o curso
de Pedagogia na UFF, estava cursando a especialização e trabalhava com
Cipriano no Curso de Formação de Professores, do Colégio Cenecista Lara
Vilela. Conversamos sobre a UFF, sobre o curso, sobre Célia... Desejos e
motivações se encontraram, pois eu queria convidá-la para orientar minha
monografia, por outro lado, ela precisava de alguém para ajudar na
organização de materiais de seu escritório178 e, assim, o encontro foi
marcado e iniciamos nossa interlocução. Toda sexta-feira, à tarde, ia para
Botafogo trabalhar em seu escritório. Desse tempo, guardo a presença de
pessoas queridas como Sr. Linhares, Bibi e a mãe de Célia; guardo o carinho
do chá com biscoitos, as conversas, a orientação da monografia...; tempo de
uma menina, ainda, muito tímida, que apesar de, naquela época, não gostar
de chá, o tomava religiosamente sem se manifestar.
No depoimento de Inês, se revela a abertura de Célia com relação a seus estudantes.
Rituais de proximidade e prazeroso convívio vão consolidando essa relação orientando -
orientador, num elo de parceria, de afetuosidade e amizade. Ambiente propício à criação, tal
178 Célia contratou Inês para ajudá-la na organização de seu material, trabalho que contou com uma forma de remuneração
(bolsa financiada por Célia).
348
elo confirma o outro em seu lugar de valor e importância, favorece um estar a vontade que
provavelmente ameniza a tensão, que acompanha uma produção intelectual como a de uma
dissertação/ monografia ou tese. A esse respeito vale lembrar o que afirmam as pesquisadoras
Queixidá Viana e Veiga (2007), já mencionadas nesse trabalho, sobre a relação de orientação:
Para nós, a base da relação deve ser a cumplicidade regulada pelo respeito ao
papel de cada um, pelo cumprimento dos deveres de ambos. Assim, deve
haver uma parceria, na qual as experiências de cada um devem ser
valorizadas.
Para que isso ocorra, o entendimento entre orientador e orientando acontece,
como dizia Freire (1996), por meio do diálogo, pautado no respeito à
autonomia do orientando e à personalidade de cada um, na troca de opiniões.
(QUEIXIDÁ VIANA E VEIGA, 2007)
Célia constrói essa cumplicidade a partir de pequenos rituais com seus pares. Rituais
que envolvem dúvidas, perguntas, curiosidades, prazer em aprender, perspectivas do que vai
se movendo em devires, partilha de afetos, de interesses, enfim, momentos de alegria co-
participados. Não foram poucos os entrevistados que citaram momentos vividos em volta das
mesas de almoço, do chá com biscoitos em sua casa e outros tantos.
Isso nos remete a sala de convivência para professores, espaço que ela criou na época
em que coordenou o programa de pós-graduação na UFF. O quanto experiências como essas,
que favorecem uma convivência amigável e acolhedora concorrem para um bom andamento
também nas relações de trabalho?! Como e por que se divorciam em regra geral, a afetividade
e a racionalidade, como que associando a necessidade de garantir a seriedade de uma relação
de cunho mais profissional, na demarcação de determinadas fronteiras?!
A esse respeito vale citar um texto recente da própria Célia que indica a necessária
dimensão de afetividade que precisa estar envolvida nos processos de ensino-aprendizagem.
“Interessa-nos, sobretudo, ir encontrando com as forças que desestabilizam
velhos esquemas, forças que não dispensam um pensamento apaixonado, que
irrompem, muitas vezes, coladas nas que lhes são opostas, a elas se
contrapondo e que os vão minando, subvertendo aquelas e até vitalizando-as,
em outras direções. Mas também, o contrário vem acontecendo, com as
massificações dos caminhos, que propalam um estilo consumidor, em que a
pressão dos padrões é um argumento de venda e de procedimentos
imbatível”.
Uma frase que se ouve, com grande freqüência, quando reclamamos de algo, é: ‘O
senhor é o primeiro a reclamar’. Vocês nunca ouviram isso? um totalitarismo na vida
cotidiana, que inclui o trabalho intelectual. Não é no trabalho não-intelectual, não é na
fábrica que o totalitarismo está presente. Também no setor de serviços. E a universidade é um
349
exemplo formidável desse totalitarismo. (...) Há, portanto, um novo totalitarismo que, todavia,
se apresenta como um convite a fazer as coisas bem-feitas, ordenadas. É um ritmo infernal
que se impõe”. (Célia Linhares, artigo escrito para o Simpósio do II Congresso Internacional
do Cotidiano” na UFF, 2008)
Ramirez, Oliveira e Tojal (2004), pesquisando o “entre - dois” no processo
monográfico dos cursos de pós-graduação, afirmam que, no que se refere à qualidade
representada pelo processo de orientação, tal processo é calcado no “entre dois”, ou seja,
entre orientador e orientando (não de um para o outro), entre palavras e através do discurso
produzido entre eles. Não se produz conhecimento sem interlocução. Tal perspectiva põe em
cena o encontro com o outro como fundamental nas pesquisas.
(...) O fato é que não se produz conhecimento sem interlocução, qualquer
que seja a representação para isso. Um pesquisador solitário, por exemplo,
envia seu artigo a uma comissão científica e fica a espera do parecer. Está aí
a interlocução. De outro modo, boa parcela dos pesquisadores apresenta e
discute seus temas em ambientes específicos para só depois os submeterem à
publicação, o que significa estarem envolvidos não apenas em um, mas em
vários processos interlocutórios que desafiam o conhecimento, significando
e ressignificando-o, levando-o adiante. (RAMIREZ; OLIVEIRA E TOJAL,
2004)
Essa interlocução, apontada pelos autores, se constrói nessa cumplicidade e parceria
solidária. Não apenas entre orientador e orientando, mas também entre os colegas. Na mesma
pesquisa citada, estudantes de pós-graduação entrevistados afirmam a importância do trabalho
solidário como facilitador e enriquecedor do processo monográfico. A superação de uma
postura solitária é apontada como um caminho necessário para o crescimento de todos. Ainda
sobre a relação orientador-orientando, Mezan (1999) traz oportunas reflexões:
O fato é que se trata de uma relação sui generis, de grande intimidade por
um lado e de necessária distância por outro; às vezes o orientador é o ombro
amigo, às vezes o confidente das divagações do orientando; às vezes precisa
ser firme e restaurar a disciplina da pesquisa mas é sempre o interlocutor
privilegiado, o primeiro leitor de escritos que significam bastante para seus
autores e sobre cujo valor estes têm dúvidas muitas vezes justificadas. O tato
e a capacidade de julgamento são as qualidades requeridas deste
personagem, bem mais do que o conhecimento do assunto específico sobre o
qual versa a pesquisa do orientando, embora este tampouco possa ser
excessivamente pequeno. Tato quer dizer aqui possibilidade de avaliar quais
críticas podem ser ouvidas pelo aluno, e quais outras teriam o efeito de
desestimulá-lo ou de humilhá-lo.
Por todos estes motivos, o trabalho do orientador se desenvolve sempre
sobre uma estreita faixa de manobra. Um bom guia para realizá-lo é manter
em mente que o orientando deve ser auxiliado a desenvolver as suas idéias, a
350
realizar a sua pesquisa, e não aquela que o orientador produziria se estivesse
estudando o mesmo tema. (MEZAN, 1999)
Retomando as memórias de Inês, ela recupera, novamente, a lembrança do momento
em que encontrou Célia pela primeira vez e do impacto que esse encontro gerou.
(...) guardo também, a lembrança de sua participação no concurso para
professora titular, os muitos textos e livros sobre a mesa, a bibliografia que
ajudei a conferir, o envolvimento e a contribuição constantes do Senhor
Linhares na organização dos documentos. A elaboração da tese varando
madrugadas e a força ao longo de todo processo.
Mas preciso dizer que meu primeiro encontro com Célia foi anterior a nossa
apresentação pessoal. Lembro de uma conferência que proferiu no Encontro
Estadual dos Estudantes de Pedagogia, em 1989, quando a Faculdade de
Educação ainda funcionava na Rua Dr. Celestino. Foi uma manhã bonita de
sábado e guardo a memória de sua presença marcante pelo vigor intelectual,
pela alegria que tinha de estar com os estudantes; lembro de suas palavras
iniciais, fazendo referência a um verdadeiro “piquenique pedagógico”,
expressão que, para mim, ficou como marco da alegria que envolve “saber e
sabor” no pensamento e na ação de Célia. Estar, em uma manhã de sábado,
na Faculdade, com os alunos, trazia sentimentos e emoções que envolvem
um “piquenique”, metáfora viva do prazer, do sabor, da partilha coletiva, da
generosidade que traduzem, para ela, a construção do conhecimento.
Muito semelhante ao primeiro encontro de Heloisa Villela com Célia, também Inês
relata que antes mesmo de um conhecimento mais formal, a audiência de uma de suas
palestras provocou o primeiro impacto-convite. Inês destaca uma expressão utilizada por
Célia, evocando a força das palavras, idéia tão cara para Célia: “Piquenique-pedagógico”,
integrando ao pedagógico uma palavra ligada ao campo do lazer, do prazer, da festa e da
alegria. Palavra-convite, metáfora tradutora de uma concepção de conhecimento e de
pedagogia aonde “saber e sabor” encontram-se associados. Outras memórias são evocadas a
respeito de passagens que iam dando notícias dos focos de interesse que Célia cultivava:
Mas lembro, ainda, de sua liderança na organização do I Encontro Estadual
Pró Formação do Educador, realizado no UFF, em maio do mesmo ano.
Naquela época, como estudante de Pedagogia, sentia a importância do
acontecimento, mas não podia ter noção do lugar de marco que aquele
encontro teria para a história da formação de professores no Brasil. Década
de 1980, articulação dos professores/as na luta por uma nova sociedade e nas
tramas que envolviam a escola e a formação docente.
Inês volta a lembrança do primeiro encontro com Célia e das afinidades com relação
aos campos de pesquisa de ambas.
351
Voltando ao nosso primeiro encontro pessoal, levei as questões que
motivavam o desenvolvimento da monografia e ali, na sala de sua casa,
partilhamos um interesse comum pelas articulações entre escola e
universidade, pensamento e prática educativa. Considero esse um fio
condutor importante do pensamento de Célia, suas reflexões tomam como
referência o atravessamento concepção e ação, academia e escola. Hoje, na
liderança do ALEPH, a preocupação com as práticas instituintes acentua,
mais uma vez, centralidade da prática educativa, dos fazeres de
professores/as e alunos/as, nas brechas potentes de revitalização da escola e
da formação docente.
Em destaque a preocupação sempre presente em diversas das obras de Célia com as
relações entre universidade e escola. O interesse em pensar numa formação que qualifique a
prática docente, que ouvidos as experiências pedagógicas e que reflita sobre a contribuição
das pesquisas da pós-graduação e da universidade enquanto lócus de formação do professor,
enquanto espaços que precisam necessariamente alimentar-se do diálogo com o movimento
vivo da escola. Pesquisas menos prescritivas e enunciadoras de “verdades absolutas a serem
seguidas” e mais conectadas com as questões de interesse da vida da escola, seus dilemas,
seus nós, suas demandas.
Inês continua a puxar os fios de sua memória, retomando autores apresentados por
Célia e a forma peculiar com que ela orientava o grupo de orientandos da pós-graduação. O
acolhimento ao diverso, a abertura para perspectivas distintas eram a marca da mediação de
Célia:
Do período de realização do Mestrado, entre 1994-1998, trago a seriedade
de suas aulas, as contribuições das reflexões sobre Walter Benjamin, Norbert
Elias, Passolini; a leitura do livro O queijo e os vermes” de Ginzburg, feita
em uma semana, as discussões filosóficas e políticas... A condução do grupo
de pesquisa, trazia a marca do compromisso com os diferentes processos de
construção do conhecimento, materializados na experiência dos alunos e
colegas que participavam do grupo, bem como pela firmeza e amorosidade
nas palavras e no olhar. Sempre admirei a capacidade de acolhimento e
articulação de uma diversidade de temas de pesquisa. Foi com esse grupo
que desenvolvemos o trabalho acadêmico que considero especialmente
significativo: o Pólo de Memória e Narração
.
A respeito desse trabalho de pesquisa mencionado, Inês relata aspectos de processo de
desenvolvimento do mesmo:
Inicialmente fomos unidos por um projeto comum escrito pela professora
Célia Linhares e submetido ao CNPq. Com a aprovação e financiamento, o
projeto ganhou um caráter de “contrato”. Isso não impediu um processo
onde a construção da pesquisa contasse com a contribuição de cada
participante. Esse trabalho teve como marca a produção coletiva, o
352
conhecimento produzido na rede de interdependência com nossos pares.
Tínhamos o projeto que ao mesmo tempo demarcava limites e se mostrava
aberto à pluralidade das inquietações de cada participante e foi nesta relação
que vimos nosso objeto se construir com seus caminhos metodológicos.
Ainda sobre essa pesquisa, Inês nos relata a dinâmica de trabalho desenvolvida, que
implicou pesquisa empírica dentro de uma escola. Esse diálogo próximo com professores e
instituição tinha como objetivo construir espaços de narrativa para que os professores
pudessem, por meio de suas memórias, reconhecerem-se autores e sujeitos de sua história e de
seu conhecimento. Tratava-se, portanto de uma pesquisa que visava a autonomização e o
fortalecimento dos docentes, valorizando suas práticas, suas experiências por meio da palavra
escrita e narrada. Eixo que articular toda a obra e pensamento pedagógico de Célia.
Este grupo tomou como desafio o trabalho junto a uma escola pública
estadual de Niterói: um CIEP. Desenvolvemos a dissertação tendo o dia-a-
dia desse CIEP como lócus do trabalho empírico da pesquisa, onde
procuramos criar um “Pólo de Memória e Narração”. Essa perspectiva
aponta para a realização concreta de uma interlocução permanente entre o
coletivo e a nossa elaboração do projeto de dissertação.
Tínhamos como objetivo constituir, no cotidiano da escola, mais um espaço
formativo para as professoras, onde o saber pedagógico fosse sendo
construído/reconstruído pela troca de experiências, pelo resgate da história
de vida. Experiência plena, no sentido de uma construção coletiva,
partilhada. Reconstruir a história do CIEP, de seu nome, a história de vida
das professoras, na perspectiva de uma história aberta a um fazer junto.
Resgate histórico do “tempo de agora”, voltar o olhar para o passado,
capturando os lampejos de perigo, as lutas não resolvidas que se
reapresentam no presente. Fazer um movimento de volta a origem,
interrompendo o desenrolar da história para libertar o passado. Dar voz à
professora da escola fundamental, reconhecendo seu saber sobre o ensino.
Diferente da grande maioria das intervenções “sofridas” pela escola (me parece aqui
que a palavra sofrida cai bem...), a pesquisa não tencionava contribuir com estudos de novos
autores, métodos ou qualquer coisa na direção de um cunho mais teórico. O movimento
parecia ser o inverso: a partir da própria experiência e reflexão do corpo docente, construir e
reconstruir o saber que circulava por ali, dando realce e visibilidade a ele.
A proposta do grupo não era desenvolver um “treinamento” ou
“capacitação”, no sentido de estudar textos ou ter palestras sobre o
construtivismo ou qualquer outro assunto. Era possibilitar um movimento
dialético entre teoria e prática a partir da troca de saberes entre as
professoras, que fossem referidos pelos movimentos da memória: pessoal,
profissional, institucional e pela política. Partíamos da concepção que
quanto mais “ligado” a sua vida (o que implica as dimensões
353
mencionadas) tanto melhor poderiam buscar as fontes do enriquecimento do
ensino e da aprendizagem. Partíamos da concepção de formação em que a
ênfase seria o próprio cotidiano como a matéria para a memória e a narração.
Ao colocar canais abertos à história das professoras, entendíamos que uma
nova dinâmica marcada pela ação de sujeitos do conhecimento seria
construída, aliando o prazer ao processo de conhecer o mundo e apreendê-lo
para nele intervir. (Bragança, 1998)
179
A dissertação de Inês se construiu a partir da participação nessa pesquisa,
constituindo-se em uma produção marcada pela coletividade e solidariedade que deu corpo a
essa experiência, reafirmando a força do trabalho partilhado e sua capacidade de produzir um
conhecimento plural.
Assim, pude desenvolver a pesquisa da dissertação em um processo coletivo,
cada componente do grupo deu sua contribuição, no planejamento e no
desenvolvimento do trabalho na escola. Fui reafirmando, assim, em nossas
discussões e na prática de pesquisa, que o conhecimento se faz no grupo, na
partilha. Desse trabalho, ressalto a centralidade da articulação entre
Universidade e escola básica, da memória e da narração, até hoje presentes
como referências importantes em meu caminho de pesquisa.
É muito interessante conhecer os caminhos que os pares de Célia trilharam após esse
período de mais intensa convivência entre eles e reconhecer nesses caminhos as marcas da
presença das experiências partilhadas. É a própria Inês quem reconhece na continuidade de
seu trabalho em outros espaços, o cerne do que foi construído coletivamente no trabalho de
pesquisa de seu mestrado na UFF. “Semente”, como ela mesma diz, trazendo a idéia de
fertilidade e multiplicação dos aprendizados vividos:
Mas a semente plantada por Célia, na coordenação do grupo, floresceu
também na Faculdade de Formação de Professores, em São Gonçalo. Fazia
parte do nosso grupo de pesquisa a Profª. Martha Hees, professora que viveu
conosco a intensidade do trabalho e de nossa inserção no CIEP e foi ela,
juntamente com outras professoras pesquisadoras da FFP, que organizaram o
Núcleo de Pesquisa Vozes da Educação: Memória e História das Escolas de
São Gonçalo. Nos objetivos do trabalho do Núcleo encontramos as sementes
179
BRAGANÇA, I. F. S. (1998). A produção do saber na escola: possibilidades emancipatórias da narração na
formação permanente do educador. Contexto e Educação, v.13, 97 – 124.
354
plantadas: a centralidade da articulação entre Universidade e escola, a
memória e a história das escolas, a formação de professores ancorada no
diálogo e na narração. Posteriormente, fiz concurso público para essa
faculdade e tive a alegria de reencontrar Martha e trabalhar com ela e com
um grupo de professores/as no Núcleo Vozes.
O período de mergulho em minha trajetória como professora universitária
teve também a presença inspiradora de Célia, bem como o acompanhamento
de meu processo no doutoramento, desde os primeiros movimentos: o
retorno ao grupo, os rascunhos de projetos, as primeiras iniciativas, o contato
com a professora Nazaret, a ida para Portugal. Lembro de ter ligado para ela
da estação de comboio de Massamá, logo depois de minha chegada, para dar
as primeiras notícias...
Instigo Inês a destacar as idéias que considera nucleares no pensamento pedagógico
de Célia Linhares, desafio e tanto, ela pondera: As idéias são inúmeras, cada livro, cada
texto, cada artigo, assim como as comunicações nos mais diversificados eventos, consistem
fonte intensa e extensa de reflexão sobre a vida, a sociedade, a escola e a formação de
professores”. Fechamos essa narrativa com o belo olhar panorâmico que Inês lança sobre a
obra de Célia, em que esperança, brechas, ética, escola básica são palavras centrais que ela
pesca, em sintonia com sua mestra e orientadora.
Destaco, então, aquelas que me parecem apresentar ressonância na educação
brasileira. A formação de professores/as apresenta-se como uma
preocupação recorrente em seus trabalhos, nessa reflexão Célia situa a
formação em suas articulações entre os macros movimentos da sociedade e a
capilaridade de seus processos. Seu pensamento crítico traz, assim, a
centralidade dos movimentos da sociedade, da política, da economia e da
cultura, em suas mediações e tensões com as vozes que vêm da escola.
Observo uma perspectiva que enfrenta a racionalidade técnica e busca a
afirmação de outras lógicas, lógicas singulares e instituintes. A formação de
professores coloca-se, tal como vejo em seu pensamento, como filosofia e
política; filosofia, porque sempre prenhe de reflexividade e política, pois
afirma a luta emancipatória. A escola também encontra centralidade em suas
reflexões, escola como lugar de muita reprodução do instituído, mas, de
forma esperançosa, como lugar de brechas, de alternativas, de curiosidades.
Lugar de alunos e alunas, professores e professoras, de múltiplas vozes. Os
trabalhos de Célia sobre os professores/as enfatizam o lugar que ocupam
como sujeitos históricos, a trajetória de luta dos anos de 1980, a organização
de associações, mas traz também as histórias do cotidiano, as histórias de
vida e de luta que se fazem no dia-a-dia. Observo, também, em suas idéias,
uma forte dimensão epistemológica, a busca por uma racionalidade que se
contrapõe às direções e saberes únicos e se coloca na tessitura plural de
homens e mulheres no mundo.
Das experiências partilhadas com Célia e anteriormente sinalizadas, registro
como princípios de seu pensamento e ação: o atravessamento entre reflexão
e ação, a criticidade política e instituinte, a importância da polifonia de vozes
e de experiências na construção do conhecimento, o sentido de partilha e de
355
construção coletiva da vida, a amorosidade e a afetividade aliadas à firmeza
e ao compromisso ético.
O pensamento de Célia dialoga com seu tempo de forma dialética. Se na
década de oitenta sentimos a força das contribuições marxistas e das análises
amplas das relações entre escola e sociedade e, por outro lado, a não
expressão significativa das singularidades, suas reflexões caminharam no
sentido da mediação, em uma abordagem crítica não ortodoxa, acolhendo a
subjetividade e os afetos. Sempre vi em Célia a leitura atenta do seu tempo,
leitura no sentido estrito, acompanhando a construção do pensamento
educacional e político, mas também a leitura do mundo, das imagens, dos
gestos, do cotidiano, leituras que sempre traz para a sala de aula, para os
encontros do grupo de pesquisa e que instigam e convidam a nossa
participação. Um pensamento que se afirma em bases e princípios, mas que
se abre em um permanente refazer dialógico.
4. 5. Parte II: Trilhas do pensamento, anos 2000.
A Verdadeira Dança do Patinho
Composição: (Letra: Bnegão/ Base: Rodriguez e Bnegão)
Eles traçam e destraçam o seu caminho – É a dança – dança do patinho
Eles mandam uma qualquer e tu leva fé direitinho – É a dança – dança do patinho
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA)
Você que assina contrato sem ler
Acha que a O.N.U. se importa com você
Você que acredita no ouro nacional
Chegou a sua hora isso é fenomenal
Você que acredita no que falam na tv
Dá seu dinheiro pro pastor pra fazer sua fé valer (eh, eh…)
E pra você que acredita no velho azul-marinho, essa é sua dança
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)
Você que acredita na mega-sena, toto-bola, raspadinha e na garota de Ipanema
Você que acredita nos caras pintadas, acredita que o Brasil vai tá ganhando com a ALCA
Acreditou em inflação zero, no salário-desemprego
Mas não viu que o governo tava botando no seu …
Parabéns, você é perfeito, foi feito pra isso
Pra dançar a dança, a verdadeira…
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)
Você que toma volta quando quer ficar ligado
Acredita no bicho papão e no aumento de salário
Você que paga seus impostos religiosamente, esperando algum dia uma aposentadoria decente
Você que acredita em alguma punição pros que roubam e colocam no… da população
E pra você que acredita que nunca foi lesado, cante comigo esse hino, esse é o meu recado:
braço em forma de asa, alterna pé e faz biquinho tu entrou na dança
DANÇA DO PATINHO ( A VERDADEIRA!).
356
Abrindo essa parte, que aborda as produções de Célia Linhares nos anos 2000,
trazemos a letra de um HAP brasileiro. Se o cenário dos anos 90 até os dias de hoje foi
apresentado no início do capítulo, nesse momento pelas palavras de “BNegão”, sublinhamos o
clima de insatisfação popular com uma política (econômica, cultural, educacional) em que
muitos de nós nos sentimos como “patos”. Nas manchetes diárias uma profusão de escândalos
envolvendo a corrupção de nossos políticos reforça essa sensação.
As idéias de Célia contidas nos textos dos anos 2000 dialogam com esse cenário. No
primeiro artigo, “Pesquisas Educacionais podem romper com profecias de nascimento?
Memórias e projetos do magistério no Brasil”, de 2001, Célia retoma aspectos da história da
educação no Brasil desde os tempos coloniais para compreender como nasceu em nosso país a
divisão entre aqueles que pensam e aqueles que fazem. Preconiza uma pesquisa que se alie às
questões ligadas a escola que temos, rompendo com elitizações e idealizações. Indica a
palavra e a memória como caminhos de construção de uma escola e de uma sociedade mais
justa e solidária.
O segundo artigo, escrito em 2002, “De uma cultura de paz e justiça social:
movimentos instituintes em escolas públicas como processos de formação docente”, defende
os caminhos do diálogo e do afeto na construção de uma escola não violenta. Preconiza que os
espaços de formação, ao valorizarem as narrativas de vida dos seus profissionais, contribuem
para a construção de uma escola nessa perspectiva da cultura de paz.
O terceiro artigo, “liberdade, uma busca nossa de cada dia”, escrito em 2003 é na
verdade a introdução de um livro que organizou com Maria de Nazaret Trindade sobre Paulo
Freire, escrito em co-autoria com Trindade. Nesse texto introdutório, defendem a palavra,
aspecto central na obra freireana, em sua dimensão constitutiva do ser humano, bem como em
sua possibilidade de intervir na realidade.
“Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo Freire” é o quarto
artigo, também de 2003, do mesmo livro organizado com Trindade. Nele, Célia discute a
transposição de Paulo Freire de suas próprias trajetórias de vida em sua teorização, refletindo
essa dinâmica da criação em que nossas narrativas vão se impregnando com as nossas
múltiplas experiências, imersas no contexto social, histórico e cultural que vivemos.
“Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos” é
o quinto artigo, escrito em 2003. Nele Célia afirma que fomos forjados numa sociedade
constituída numa racionalidade e política que tem a guerra como metáfora, “pilastra onde a
idéia de estado se apoiava e expandia”. Hierarquias, excludências e diferentes ordens de
357
violência permearam nossa história. Para contrapor-nos a essa perspectiva, é preciso fomentar
a curiosidade como uma dimensão ética, instigando o conhecimento como uma aventura
responsável e prazerosa, afirma Célia. Assim é possível construir conhecimentos que nos
fortaleçam como sujeitos históricos, coletivos e individuais, de modo a que possamos
construir novas lógicas e sentidos.
O sexto artigo, de 2004, “Formação continuada de professores: Como? Para quê? Para
quem?”, convida a práticas de convívio e formação permeadas pela solidariedade e
compartilhamento, em contraposição a práticas opressoras e excludentes. Trata-se de um livro
produzido a partir de reflexões sobre a rede educacional maranhense, que aborda, portanto,
questões dirigidas a essa realidade. Defende uma formação que envolva o professor como
sujeito autônomo, incluindo espaços de narrativa, de escrita de sua própria trajetória e que se
beneficie com a presença da poesia como fomentadora da possibilidade de evocar memórias e
sensibilizar.
Por fim, o sétimo e último artigo, “Movimentos instituintes na escola pública”, escrito
em co-autoria com Ana Heckert em 2005, debruça-se inicialmente na explicitação do conceito
de movimento instituinte com a qual trabalham. As autoras o compreendem como aquele que
representa ações alinhadas com uma preocupação com o respeito à vida e à dignificação
humana. As experiências instituintes, afirmam, buscam traduzir sonhos, utopias e lutas para
ampliar a intensidade de saberes. O artigo traz também notícias sobre algumas experiências
instituintes pesquisadas por elas no âmbito do grupo Aleph. Vamos a eles.
4.5.1 Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento?
Memórias e Projetos do Magistério no Brasil. (2001)
“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e
vazio, mas um tempo saturado de agora”. (Benjamim, 1993)
O artigo “Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento?
Memórias e Projetos do Magistério no Brasil” foi incluído no livro “Os lugares dos sujeitos
na pesquisa educacional”, organizado por Célia Linhares, Ivani Fazenda e Vitor Trindade e
publicado em 2001 pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A 2ª edição,
revista e ampliada foi publicada em 2001.
Célia inicia este artigo afirmando que nos tempos atuais abdicamos da definição ou
descobrimento das verdades absolutas.
358
Para compreender aspectos da educação brasileira, desde como nasceu a divisão entre
os que pensam e produzem conhecimentos e os que aplicam, até movimentos mais amplos em
prol da formação e fortalecimento da educação, Célia retoma elementos da história do Brasil,
passando pelo Brasil colônia, Brasil império e o tempo da República. Reporta-se às relações
complementares e antagônicas entre os mestres jesuítas e os meninos língua típicas do Brasil
do tempo colonial, a distância entre as elites do império e as camadas sociais, dentre outras.
No Brasil-colônia, tínhamos os jesuítas como primeiros mestres e a presença dos
menino-língua, curumins que eram “colhidos” pelos jesuítas para viverem nas missões. A
função desses meninos era, pela convivência, aprenderem português com o objetivo de
facilitar a comunicação entre a cultura forânea e a dos nativos; funcionavam como línguas
vivas e encarnadas entre os jesuítas e os índios. O contrário também acontecia, os órfãos
portugueses, trazidos de Portugal eram soltos em comunidades indígenas para a aprendizagem
das línguas e expressões autócnes, com o objetivo de facilitar intercâmbios necessários.
No Brasil Imperial, definições educacionais que ao se contraporem também se
complementam, aprofundam o abismo entre a elite intelectual e as grandes maiorias sociais.
Dentre elas Célia cita a proibição de abrir universidades empurrando os filhos das elites para
Coimbra e a organização das primeiras Escolas Normais.
O Brasil Republicano caracterizava-se pela alternância entre ditadura e democracia, a
institucionalização e desenvolvimento da pesquisa educacional e os momentos de arbítrio.
Célia destaca a criação do Instituto Nacional de estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP) no período ditatorial do Estado Novo e a implantação e desenvolvimento da
pós-graduação em educação em plena ditadura militar iniciada em 1964. O INEP, dirigido por
um período por Anísio Teixeira, após o golpe de 64 foi burocratizado e configurado como
agência de financiamento e pesquisa.
A Pós-Graduação, com mais de 30 anos de existência, tem trajetória rica e
contraditória afirma Célia, alternando movimentos contra a ditadura e ampliações das cisões
entre a produção intelectual e os processos populares de educação e escola, mesmo sob
declarações retóricas que afiançavam o seu oposto.
Célia cita Clarice Nunes em suas reflexões sobre o ensino e a pesquisa no Brasil:
“A pesquisa em educação no Brasil (...) é, portanto, herdeira de uma tradição
que, de um lado, separou o ensino da pesquisa e, de outro, desarticulou o
diálogo entre os educadores e cientistas políticos e sociais. Uma herança (...)
marcada mais por traços conservadores e autoritários do que por
perspectivas democráticas” (Clarice Nunes, 1996).
359
A respeito da relação entre a produção acadêmica das pós-graduações, Célia afirma
que, apesar da quantidade crescente das mesmas, que vêm ultrapassando 10.000 títulos
(ocupamos o lugar segundo as agências financiadoras), um abismo entre tais produções
e realidade escolar brasileira, questão que ela aborda em outros artigos e que retoma aqui com
contundência. Ela nos alerta para a necessidade de assumirmos esse abismo como matéria
prioritária para estudos, pesquisas e reflexões.
Em forma de questionamento, recurso de que se utiliza recorrentemente em seus
textos, num franco movimento de diálogo com o leitor, ela problematiza o lugar dos
intelectuais combatentes da ditadura diante desse período neoliberal. Inquieta-se a respeito da
pouca reflexão sobre as tensões concretas entre as coletividades e as individualidades que
percorrem e constituem os sujeitos e também sobre a idealização prática e teórica dos sujeitos
pedagógicos, pouco estudados e respeitados.
Célia afirma que apesar da defesa da escola pública ser uma unanimidade,
conhecemos muito pouco essa escola. Proclama-se um discurso de denúncia e combate sem
considerar as possibilidades e dificuldades concretas que a constituem. Dessa forma impomos
“imagens e espelhos desanimadores”, infiltrados num tipo de “fatalismo econômico” que
acaba fortalecendo nossos adversários e fazendo-nos percebê-los como invencíveis.
A escola particular é pouco comentada em suas dimensões ético pedagógicas. Pais e
avós apenas nos preocupamos com os códigos de defesa do consumidor, com sua perspectiva
utilitária e individualista, envolvendo-nos pouco com sua dimensão mais ampla.
Destaca os mecanismos de excludências que vêm alargando o espectro dos que
sobram em nossas sociedades que cada vez mais produzem, acumulam, concentram bens,
sofisticando mecanismos de sedução para o agenciamento de desejos.
Afirma a importância da escuta de nossas práticas de ensinar para entendemos nossa
concepção de conhecimento e, particularmente, do conhecimento escolar.
Somos herdeiros das idéias difundidas ao longo da história de nossa civilização. A
Grécia (século IV a.C.) trazia imagens magnificadoras do mundo das idéias, pensadores como
Platão, Sócrates, Aristóteles marcaram e influenciaram nossa forma de pensar o mundo e a
vida.
No Brasil nossa formação histórica modelou a produção, a sistematização e a difusão
do conhecimento. Imposições e coisificações colonialistas, relações escravagistas,
entrelaçadas com formas de patriarcado e patrimonialismo machista, preconceitos raciais e
étnicos, sexuais e religiosos fizeram parte de nossas experiências culturais.
360
Tais autoritarismos e elitismo se conjugaram com a esfera da produção material e
econômica, consolidando-se em estruturas de poder e saber hierarquizadas e fechadas. Tais
questões foram enfrentadas em todas as épocas. Célia alerta para o fato de que precisamos
atentar para o legado ético, para as vozes abafadas dos vencidos. Tais vozes evidenciam a
tenacidade e desejo de participação popular no Brasil. Aqui, como em muitos outros artigos,
Célia dignifica a memória das lutas travadas em nossa história, evocando a necessidade de
reconhecermos e nos reconhecermos nessas passagens.
Com relação à escola, comenta que esta é marcada nos séculos XVI e XVII por um
viés industrial ou republicano, configuração que traz, na concepção de Célia, uma dupla
ruptura com a vida, nas suas dimensões de troca cotidiana e popular, dificultando a
convivência entre gerações, sexos e outros grupos sociais e naquelas outras em que a
mediação da realidade era trabalhada via ciências, filosofias, tecnologias e artes.
Célia discute que uma uniformidade de um saber declamatório, custodiada por
controles políticos que se dão há muitos anos, cerceando atuação, pensamento, pesquisa.
Assim, a separação entre intelectual e manual concorre para firmar esse lugar do valor da
retórica em detrimento da intervenção.
Para escrever e produzir conhecimento é fundamental inscrever-se, apropriar-se de sua
experiência, das necessidades sociais e de seus próprios desejos.
Nessa perspectiva, aponta a memória e a narração como pontes entre esses abismos de
que fala.
Comenta que somos todos inexoravelmente analfabetos em algumas dimensões do
conhecimento e muito ignorantes em relação à vida; precisamos um dos outros para cobrir a
complexidade com a qual o real se reveste, exigindo-se sempre a criação e a recriação de
instrumentos para mediá-lo.
Este reconhecimento, não tem como escopo nem a formação de um professor
consumidor obsessivo de informações, nem muito menos a garantia de uma harmonia, em si
impossível. Conviveremos sempre com a ignorância e o analfabetismo como condição de uma
época como a nossa, afirma. Isso pode nos levar a um exercício de humildade posto que
conviveremos sempre com o que nos falta, com os vazios, com as necessidades como
instigação e cobrança para eticamente superarmos as mesmices e imaginar e criarmos mundos
novos. Este reconhecimento pode nos levar a entender a permanência dos conflitos como
matéria a ser tratada pelo exercício da palavra e não pelo abuso da força.
361
4.5.2 De uma cultura de paz e justiça social: movimentos instituintes em
escolas públicas como processos de formação docente.
As decisões humanas dependem das lembranças do passado e das
expectativas do futuro.
Ilya Prigogine
Publicado em 2002, o artigo “De uma cultura de paz e justiça social: movimentos
instituintes em escolas públicas como processos de formação docente”, faz parte do livro
“Formação de professores: uma crítica à razão e à política hegemônicas”, organizado por
Célia Linhares e Maria Cristina Leal e publicado pela Editora D, P&A.
Nesse artigo Célia faz, logo de início, uma referência à poesia como recurso para
apreender e expressar o movimento da vida, no rastro da descoberta de que não verdade
única e de que o pensamento racionalista e dicotomizante não conta da realidade múltipla.
Nessa perspectiva, sua escrita poética expressa a confiança na mesma como um caminho
metodológico, que ao provocar no leitor uma leitura polissêmica, abre perspectivas amplas de
compreensão.
O compromisso com a justiça e a liberdade é sempre presente em suas reflexões sobre
o papel da escola. Seu olhar crítico com relação a cultura de debitar na conta da escola e dos
professores os ditos “fracassos escolares”, aponta para a necessidade de olhar para a escola
que somos e não a que queremos ser ou que devemos ser. Desse modo, questiona o que ela
chama de um fatalismo econômico que tende a ver a escola criticamente pela sua falta com
relação a um suposto modelo de eficiência e perfeição. Nas brechas do possível Célia instala
sua curiosidade de pesquisadora, atentando para os movimentos que existem e buscam novas
possibilidades de ser e fazer escola.
Enfatiza a idéia de intervenção responsável, que leva em conta a historicidade, a
cultura e contextos da escola.
4.5.3 Liberdade: uma busca nossa de cada dia. (2003).
“... nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.
(Walter Benjamin)
Escrito em co-autoria com Maria de Nazaret Trindade, o artigo “Liberdade: uma
busca nossa de cada dia” introduz o livro organizado também pelas duas autoras e intitulado
362
“Compartilhando o mundo com Paulo Freire”, publicado em 2003 pelo Instituto Paulo Freire/
Editora Cortez em 2003.
Célia destaca o contexto mais amplo em que este livro circulou. Tratava-se do ano da
eleição de Lula, que carregava com o seu partido grandes esperanças nacionais e
internacionais.
Na introdução do livro, Célia e Trindade, afirmam o lugar da palavra e sua capacidade
de transformação. As palavras constituem-se em uma ação interventora. “Somos corpos,
comportamentos e palavras. E quando os corpos se vão, suas ações, suas palavras continuam
ressoando em nós como um convite a movimentos de apropriação, como que fazemos e
refazermos a vida” (p. 14).
Benjamin e sua concepção sobre memória é mencionado, ressaltando sua visão da
rememoração como um exercício ético, que não pode prescindir de uma direção a
“contrapelo”, na busca de sintonizar com desejos de emancipação, ainda não realizados,
contrapondo-se aos continuísmos dos vencedores que se exibem com seus triunfalismos.
Acrescentam as autoras, que é Importante constituir processos educacionais que
valorizem o poder criador da vida humana, inseparável de sua dimensão de responsabilidade.
Interessa, afirmam, “alimentar resistências que ultrapassem um sentido reativo, desdobrando-
se em processos de reinvenção da vida” (p.15).
As palavras são também, reafirmam, instrumentos para religar saberes, pare negociar
conflitos, buscando uma construção de felicidade humana e social. Afirmação de
generosidade, na teorização de Freire, como forma de escaparmos dos procedimentos
devolutivos da violência. A busca das autoras é a de que a educação atinja a todas e todos em
suas inteirezas, possibilitando aos sonhos éticos, ter espaços, com diferentes sujeitos para
fazer dos processos escolares, movimentos permanentes de participação na vida.
Reconhecem, também, em várias tendências instituintes, confluências com a
Pedagogia Freireana, a Biologia do conhecimento, a física das estruturas dissipativas e, enfim,
a ciência da complexidade. Todas investem fortemente na autonomia e nos intercâmbios,
como garantias de uma construção interminável da história, como caminhos para superarmos
fragmentações e hierarquias que nos oprimem.
As autoras fecham o artigo apresentando os textos que compõem o livro, destacando
os aspectos centrais dos mesmos.
363
4.5.4. Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo
Freire. (2003)
Escrito apenas por Célia Linhares, o texto em questão faz parte do mesmo livro
apresentando no item anterior (4.5.3). Nele Célia discute como Paulo Freire, ao transpor suas
trajetórias políticas, pedagógicas e existenciais, vai traduzindo-as nas trajetórias de sua
própria teorização. Isto é, enfatiza como Freire foi forjando suas narrações, alimentando
palavras com uma dinâmica conceitual sem descolá-las das práticas vividas, experimentadas e
acolhidas, estudando o lugar que ele conferiu para memórias e narrações em sua Pedagogia.
Célia ressalta que o movimento de Freire foi o de romper com isolamentos e
separações, tais como as que se evidenciam entre próprios sujeitos e seus objetos de pesquisa;
entre os processos de aprendizagem e ensino e entre teorias e práticas. Freire faz um
permanente convite aos oprimidos a buscarem suas memórias coletivas e individuais
como uma forma de ajudá-los a ler o mundo, avaliando matizes históricas que produzem
opressões e oportunidades de autonomia.
Freire vitalizou memórias épicas, políticas, culturais, que foram oxigenadas, para abrir
espaços a novos enredos e novos lugares, onde os oprimidos pudessem se tornar credores da
vida, da sociedade e da história da qual precisavam e precisam se apropriar, sublinha a autora.
Célia cita um trecho da obra de Freire, destacando que ele insiste em praticar a palavra
como “um conjunto solidário de duas dimensões indicotomizáveis: reflexão e ação. Daí que
toda palavra verdadeira é práxis.” (FREIRE, 1967, apud LINHARES, 2003).
A Comunicação, afirma Célia, é uma busca que se confunde com a elaboração do
sentido da experiência própria e coletiva exigindo de cada sujeito, uma franquia cada vez
mais radical, para recriá-la, recriando-se com ela.
Memórias e narrações têm implicações diretas com o processo de conhecimento da
vida e de elaboração da história e podem, ao alimentar as linguagens, ampliar esperanças e
possibilidades de intervir no mundo. Por isso a problemática das memórias e das narrações
incide no processo educacional-escolar, que apesar das grandes questões que o estremecem,
continua se expandindo mundialmente e exportando o seu modelo para uma série de novas
organizações.
Célia afirma que é necessário juntar o texto escolar ao contexto social, cultural e
histórico. Os opressores sempre organizaram o mundo segundo seus interesses, impregnando
a linguagem com seus valores e hierarquias. Portanto, se a escola popular não está
comprometida em manter e ampliar as excludências, as aprendizagens precisam romper com
364
este tipo de idéias prontas, externas, fabricadas alhures e isoladas das buscas populares, para
se fazer colada aos seus problemas do povo, num empenho de pensá-los e gestá-los, com a
participação a mais ampliada possível.
Nesse sentido, ressalta Célia, as lições de Freire nos trazem “seu legado de memórias
narradas sempre de modo a nos mostrar que estas são drenos e canais que poderão fazê-las
fluir numa direção que amplie o humano na humanidade”. (2003, p. 166)
4.5.5 Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços
contemporâneos. (2003).
“Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos”,
faz parte do livro organizado por Maria dos Anjos Viella cujo título é “Tempos e espaços de
formação”. Foi publicado em 2003 pela Editora Argos de Santa Catarina.
Célia inicia seu artigo afirmando que somos constituídos por uma racionalidade e
política que tem na guerra uma metáfora construída como uma pilastra onde a idéia de estado
se apoiava e se expandia. Afirma que nossa civilização se ergueu através de hierarquias,
excludências, diferentes ordens violência.
Para contrapor a essa perspectiva ela preconiza que é necessário fomentar a
curiosidade como dimensão ética instigando o conhecimento como uma aventura responsável
e prazerosa.
Célia critica as formas de racionalidade e política da escola de hoje e considera a
necessidade de revisá-la. A escola hierarquiza, pelo estudo parcelado de dimensões da vida e
do mundo, organizando os conhecimentos como uma série de seqüências artificiais que
parecem estranhas ao fluxo das aprendizagens vitais. Dessa forma, o conhecimento
assemelha-se mais a um produto do que a um processo, como uma bagagem.
A autonomia da escola é sempre reforçada como foco em Célia Linhares. Critica a
entrada da tecnologia na escola como salvadora, afirmando que apenas a presença das
máquinas não muda concepções e a tendência é a reprodução de comportamentos
familiarizados na sociedade, como os autoritários e os machistas. Dessa forma, confirma-se a
escola como um campo de aplicação, sem portanto, exercícios de pensamento e criação.
uma distância entre a intelectualidade pedagógica e a escola popular. No que se
refere aos professores, a distância entre quem produz conhecimento e quem os “aplica” se
configura como um processo em que o professor não relaciona o conhecimento com sua
365
cultura, sua história e suas experiências. Célia ressalta a importância da conexão do
conhecimento com a história de cada um em diálogo com a cultura.
Precisamos construir saberes e conhecimentos que nos fortaleçam como sujeitos
históricos coletivos e individuais de modo a que não sejam reduzidos a aplicadores ou
mantenedores das tecnologias em funcionamento, mas que possamos nos apropriar e
redirecionar nossas próprias lógicas ou inventar e afirmar outras.
Célia se afina com o pensamento complexo, contrapondo às idéias de cisão entre
racionalidade e imaginário destacando, por exemplo, a idéia de que é preciso olhar para o
improvável. Reporta-se a Morin, Bachelard, Norbert Elias para corroborar esse pensamento
complexo.
A presença da arte e da cultura também aqui se faz presente, permeando a obra de
Célia. Poesia, literatura, cinema, música são citados e com eles ela dialoga. Jorge Luis
Borges, George Méliès, Fritz Lang, dentre outros, agregam às suas reflexões leituras de outras
formas de linguagem, ampliando a visão sobre o tema de que trata. Ao comentar, por
exemplo, o filme “Tempos Modernos” de Chaplin, diz, entre outras coisas, que Carlitos não
abre mão da linguagem poética como uma dimensão participante da comunicação.
Conclui seu artigo, sublinhando a necessidade de organizar nossas práticas
pedagógicas e escolares, políticas, culturais e econômicas, como uma ampliação de debates e
“como um processo de articulação com os movimentos sociais que vêm impregnando com
uma ética de includências e amorosidade seus enfrentamentos contra as desigualdades
crescentes que atingem formas várias de exclusão” (2003, p. 45).
4.5.6 Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem?
(2004).
“Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem?”, foi publicado
em 2004 no livro organizado por Célia Linhares “Formação continuada de professores:
comunidade científica e poética”, pela D,P&A do Rio de Janeiro.
Célia inicia seu artigo fazendo um apelo para que possamos identificar entre nós
outras possibilidades de convívio, afirmando que “os movimentos necessários para forjarmos
outras formas de conviver, produzir, pensar e compartilhar a vida mais solidariamente se
encontram entre nós” (p.16). Célia está se referindo ao fato de que tanto os processos que
sustentam desigualdades e massificações, como outros que favorecem includências (palavra
366
muito peculiar de seu vocabulário) não são isoláveis, mas sim coexistem, formando
intercâmbios permanentes, como “interfaces produtoras de uma mesma realidade” (p.16).
É necessário ressaltar que o livro reflete as ponderações de um grupo de autores sobre
a educação pública de São Luís do Maranhão, estado natal de Célia e aonde tem atuado desde
o início de sua trajetória profissional. Embora levante questões que podem ser generalizadas
para a educação de forma mais ampla, em determinada altura do texto focaliza,
especialmente, na realidade do estado do Maranhão.
Ela reafirma a importância da autoria e da escrita do professor, sem que se prescinda
das teorizações já feitas mas sim fazendo outras com hipóteses ainda abertas, como um
empenho permanente de apropriar-nos e superarmos desafios, os conceitualizando.
Questiona sobre como, para quê, para quem vão se desenvolvendo os diversos tipos de
escola que temos. Afirma que essas não vivem separadas, mas que convivem, sob embates e
com prevalências de escolhas, em nossa realidade cotidiana, histórica.
É preciso, como Freire nos indicou, alerta Célia, ultrapassar os processos de opressão
por reconhecê-los, nomeá-los e a eles resistir, instituindo alternativas, afirmando outras
possibilidades, enfim, concretizando outras experiências. Nessa perspectiva, ela aposta na
necessária tomada de consciência dos muitos processos do contexto histórico, político e
econômico que permeiam nossa existência como forma de construir outros caminhos
possíveis.
Comenta que o objetivo imposto às escolas pelo neoliberalismo é subordiná-las às
questões pontuais e utilitárias, inscritas nos programas de salvação de uma economia
capitalista, que também vive uma gravíssima crise em busca da ampliação de capitais e de
investimentos. Os conhecimentos são reduzidos a mercadorias, passando a ser submetidos ao
mercado num alinhamento servil aos interesses dos “senhores do mundo” (expressão que ela
toma emprestado de Chomsky) e às instituições que os representam (FMI, Banco Mundial,
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, etc). Nessa educação escolar
prevalecem imposições e controles disfarçados ou explícitos que minam a autonomia de
professores e estudantes, fortalecendo tanto os processos concentradores de saberes e poderes
como aqueles outros hierarquizadores de grupos, classes, raças e etnias para estimular uma
competição em que, com cartas previamente marcadas, os mais oprimidos são levados a
culpabilizar-se pelos seus fracassos e pelas exclusões que os penalizam.
Os conhecimentos quando descolados da vida dos estudantes e professores, tornam-se
fetiches que parecem valer por si, tendendo a ver seus valores apregoados e desmesurados
como bagagens externas para cuja obtenção todo esforço seria recompensado, por seus efeitos
367
assombrosos que embora lhes sejam associados e prometidos são também cada vez mais
incertos e improváveis.
Célia chama atenção para a divulgação de estatísticas catastróficas da escola pública
que acaba por nos dar a impressão de que estamos submetidos às velhas “profecias de
Cassandra” (profecias que minam a esperança, mesmo quando não são de todo credíveis).
Questiona sobre os motivos que fazem a escola pública ser alardeada como uma usina de
fracassos e pondera sobre a razão da existência de poucos espaços instituintes reconhecidos
que poderiam abrir possibilidades para uma outra cultura escolar.
A problemática social é aguda, diz Célia desemprego, delinqüência, criminalidade,
trabalho infantil, questões agrárias – é portanto compreensível que a escolaridade seja precária
diante de tudo isso: marcada pelo signo de interrupções que atingem professores e alunos.
O atarefamento do professor segue de mãos dadas com diretrizes de formação que
abastardam qualquer esforço de vincular os saberes escolares à formação social e política do
Brasil.
uma cultura de culpar as próprias vítimas afirma Célia. Os alunos são burros,
incapazes, promíscuos, preguiçosos, desatentos e os professores são despreparados, não
sabem ensinar.
Mais ético do que distribuir culpas é socializar, expandir as discussões da vasta
problemática educacional e escolar como uma das temáticas públicas de mais alta relevância,
afirma a autora. Assim, Célia sustenta, com teorizações compartilhadas e responsabilizações
mais claras poderemos tentar um movimento nacional cujo empenho social gere escolas em
que as aprendizagens possam nos ajudar a sair desse estado de privação, com processos de
publicizar nossos saberes, os conhecimentos e a própria racionalidade política que os sustenta.
Com relação especificamente à educação municipal de São Luís, Célia elenca o que
seriam os traços contraditórios de sua realidade, expondo aspectos da situação maranhense.
Destaca o grande êxodo rural, gerando crescimento vertiginoso, decorrente de
facilidades políticas de empresariamento das terras e da proteção oficial que vem garantindo o
fortalecimento de latifúndios.
A condição de vida nas cidades é precária. Maranhão é um dos estados de mais baixos
níveis de desenvolvimento, com uma das populações rurais das maiores do país, sustentando
uma economia com uma base na produção primária e, portanto, de caráter agrário.
Compreendendo esse contexto mais amplo, Célia segue o resto de seu artigo explicitando seu
projeto para o estado, retomando aspectos da “escola sonhos do futuro”.
368
Célia sublinha a todo o momento a idéia hegemônica que faz parecer que não existem
outras opções de vida que não a que a globalização capitalista propõe, se autoproclamando a
via única e absoluta de expansão e intercâmbio planetário. Isso seria a “ditadura do presente”
que não abriria espaço para outras formas de pensar, para outras brechas e movimentos
instituintes.
Todo trabalho humano quando aprisionado na mesmice produz um intenso
sofrimento. A autonomia do professor tem sido apontada em várias pesquisas com fator
fundamental para o desenvolvimento do trabalho docente. Autonomia que se expressa numa
relação autoral com seu trabalho, criadora e apropriada de seus saberes.
Altos investimentos na formação de professores nem sempre se traduzem em
melhorias em sua atuação, tendo em vista o fato de estarem desapropriados de seus saberes.
Isso se deve a concepção de formação que orienta tais formações, diz Célia.
Nossa racionalidade ainda se caracteriza como fragmentária, dicotômica e
hierarquizada, regendo de forma hegemônica nossa forma de pensar. É a partir da vigência
dessa razão que dicotomiza, que se opera na educação um tipo de separação dos saberes e
conhecimentos da própria vida e, conseqüentemente, da vida dos ensinantes e aprendentes.
Como se os conhecimentos fossem constituintes de uma bagagem a ser carregada e mantida
como algo externo. Célia acredita que é importante rever tal concepção, construindo uma
concepção de conhecimento que inclua a dimensão da experiência e dos saberes populares,
cunhados na própria vida.
Encerra seu artigo defendendo a presença da poesia na formação de professores, como
forma de sensibilizar. Célia aborda a ênfase na leitura de poesia presente em seu projeto de
formação de professores em São Luís, explicando o sentido dessa escolha como um espaço de
resistência às padronizações, trazendo a sensibilidade e apreciação estética como experiências
formadoras. Sua abordagem sobre poesia leva também a idéia de poesia como evocação de
memória, como caminho de lembrar. A poética dá notícias de nossa própria impossibilidade
de captar o mundo por inteiro. Nessa perspectiva, ela possibilita a compreensão de que o
mundo é complexo e é nos espaços de troca coletiva que podemos compor as várias visões e
saberes em prol de uma construção tecida junto.
369
4.5.7 Movimentos instituintes na educação pública.
Escrito em co-autoria com Ana Lúcia Heckert, o artigo Movimentos instituintes na
educação pública foi publicado na Revista Presença Pedagógica, pela editora Dimensão de
Belo Horizonte, em 2005.
As autoras compreendem as experiências instituintes como aquelas que representam
ações políticas, produzidas historicamente, que se endereçam para uma educação e uma
cultura, marcadas pela construção permanente do respeito à vida. Tal construção se
caracteriza também pela dignificação permanente do humano em sua pluralidade ética, numa
afirmação intransigente da igualdade humana, em suas dimensões educacionais e escolares,
políticas, econômicas, sociais e culturais. As experiências instituintes não se encontram
isoladas do que já está instituído, elas coabitam, em litígio.
O artigo traz experiências do ALEPH, destacando as pesquisas-intervenção realizadas
em três sistemas municipais: A Escola Plural em Belo Horizonte, a Escola Cidadã em Porto
Alegre e a Escola Cabana em Belém. O foco são os movimentos instituintes que são tecidos
na escola e que expressam formas insurgentes marcadas por exercícios de resistência, que
interrogam o padronizado e regulado, expandindo o campo das ações educacionais.
A escola pública brasileira, com a ampliação da matrícula nos anos 90, tem se tornado
um organismo assistencial, afirmam as autoras. Ameaçada cotidianamente com a
possibilidade de ser considerada um espaço empobrecido de cultura e conhecimento e um
lugar onde a população infanto-juvenil marcada para sobrar, precisa ser confinada.
Afirmam que a crise que vivemos não é apenas econômico-financeira, mas representa
uma produção da qual não escapa sequer uma das dimensões civilizatórias. A escola como
uma instituição social, vem sendo obrigada a refazer-se e repensar-se para que os saberes e os
trabalhos escolares façam sentido para professores e estudantes, como instrumentos para uma
existência feliz, uma escola e uma sociedade mais emancipável.
As vias que se insinuam para outro tipo de políticas públicas em educação são as que
potencializam a ampliação dos campos de diálogo com as demandas sociais principalmente
daqueles grupos historicamente desqualificados e negligenciados pelas elites dominantes,
defendem Linhares e Heckert.
É necessário partir da escola que somos pois não existem soluções mirabolantes e
técnicas modernas que indicarão pistas para criar outros processos escolares, afirma Célia. É
preciso partir das memórias de resistências, narrativas dos saberes e fazeres dos trabalhadores
370
e estudantes, para fabricar cotidianamente significações que lhes facultem a legitimação de
espaços sociais.
Memória, para Benjamin, na sua dimensão irrequieta, é um dispositivo de
estranhamento do passado e do presente, acentuando virtualidades que não se atualizaram.
As autoras reconhecem que o olhar hoje se dirige para um fatalismo econômico que
entende ainda a escola como uma correia de transmissão das tramas do capitalismo,
minimizando a potência dessas experiências. Pouco conhecemos dos processos instituintes,
afirmam.
uma herança ética a ser contemplada, que se reafirma nas históricas lutas
populares por participação no Brasil e que ainda é silenciada e desqualificada no espaço
escolar. Historicamente, aponta Célia, a escola esteve divorciada da vida – não só com relação
a troca cotidiana e popular mas também com relação as produções das ciências, filosofia, da
tecnologia e da arte.
O interesse das autoras é conhecer como os movimentos instituintes se apropriam da
memória dos sonhos, utopias e lutas para ampliar a intensidade dos saberes. Superar esses
conflitos não é um ato individual, é preciso construções coletivas.
Interessou às autoras identificar como essas experiências instituintes em destaque,
apropriam-se de saberes e fazeres, de aprendizagem e ensino, para entender como se realizam
as aquisições de conhecimento e como elas são fortalecidas pelo respeito aos seus sujeitos
com suas experiências e saberes – e pelos exercícios de compartilhá-los, e de como se
relacionam com o reavivamento de uma memória coletiva.
As autoras avaliam a qualidade das experiências citadas desde que não utilizado o
padrão mercadológico da produção em massa. Destacam na pesquisa sobre tais experiências
instituintes, alguns aspectos que consideram indicativos instigantes, tais como: O processo
escolar mantém os professores permanentemente em equipes de trabalho, que discutem e
decidem sobre questões que vão desde a enturmação dos estudantes até as habilidades e
conhecimentos necessários para cada faixa etária, organizando-as em ciclos em
correspondência às fases da vida. Quebra-se a noção de série e de turmas homogeneizadas. Os
interesses em comum são aglutinadores das diferenças e garantem uma coesão capaz de
sustentar a organicidade dos ciclos.
Há a noção de transdisciplinaridade, indagando acerca da constituição
É decisivo o número de professores por turma, na Escola Plural a proporção é de 1,5
por turma. Nas outras é diferente, depende do ciclo ou ainda está sendo definida. A ampliação
do número de professores permite a constituição de iniciativas de reforço e complementação
necessários à participação desses profissionais em atividades de formação e sua atuação em
371
formas diversificadas de pesquisa na escola, valorizando espaços de discussão e
compartilhamento de experiências no espaço escolar. A participação em seminários, cursos de
formação, aperfeiçoamento e as reflexões elaboradas conjuntamente são possíveis sem
prejuízo das aulas, graças a esse dimensionamento do corpo docente.
Afirmam, ainda, que precisamos formar professores no exercício de religar os saberes,
interligar os saberes da escola com os saberes da vida, como ferramentas de construção de
solidariedades e de encorajamento de processos de singularização, que não podem se deslocar
do empenho para superar desigualdades de todas as ordens.
A pesquisa comprova que embora essa reinvenção da escola sinalize seus
movimentos de concretização, ela não prescinde de movimentos situados tanto no campo
popular e educacional, com suas conjugações com os espaços de gestão oficial, como de
avanços científicos e tecnológicos que abram possibilidades de ampliar conceitos e práticas,
forjando novos discursos e ações.
Sublinham, também, o aspecto da participação dos professores nos rumos da escola
para seu aperfeiçoamento contínuo. Mesmo assim as licenças médicas não parecem menores
do que antes do desenvolvimento dessas experiências.
O incentivo da participação dos familiares e da própria comunidade nos rumos da
escola é destacado. Como exemplo, citam o orçamento participativo. Ressalta-se, ainda, a
busca de aproximação da escola com a vida e a vida social. Concepções permeiam as práticas
e são citadas como o respeito a vida, à diversidade cultural, à produção popular, a
aproximação da escola com as famílias dos estudantes e com a própria comunidade,
revigorando os processos de aprendizagem social ao desenvolverem saberes escolares
conciliados com os desafios da vida.
Fortalecimento do protagonismo dos docentes na elaboração dos programas, no
processo de organização do trabalho, na atenção compartilhada no cotidiano escolar, lendo
suas questões e suas indicações de encaminhamento de problemas, das decisões pedagógicas
colegiadas e, principalmente, da criação de oportunidades para formação permanente. Os
processos democráticos na escola se expressam nas formas da gestão escolar, conectadas às
concepções e práticas epistemológicas que tendem a pluralizar os saberes relacionando-os à
memória das lutas, aos projetos e necessidades populares e no incremento do diálogo e do
debate dos conflitos que irrompem a escola.
Indicam um problema social importante, o da evasão de horizontes de futuro. Nesse
sentido, reconhecem a urgência em captar os mecanismos sociais que “inocentemente” se
instalam e permanecem como se fossem os mais naturais e familiares possíveis, que subtraem
372
os direitos das classes populares. Com a expansão desses processos que minam nossa
capacidade de diferir, criar, também se expande um mundo, cada vez mais desenraizado, sem
vínculos afetivos com a vida, com a sociedade, com a humanidade. Nessa perspectiva, os
sujeitos são empurrados para um cortejo de espetáculos e triunfos, cujo preço é a rendição
progressiva aos processos de reificação do mercado.
Encerram o artigo ressaltando a necessidade de valorizar o movimento instituinte e as
pistas que estes nos trazem para construção de uma educação includente.
4. 6. Parte II: A Voz dos Parceiros, anos 2000.
Neste item, incluem-se as narrativas dos professores Maria de Jesus Gaspar Leite, Ney
Luiz Teixeira de Almeida e Ramofly Bicalho dos Santos.
4.6.1 A voz dos parceiros, anos 2000:
MARIA DE JESUS GASPAR LEITE
SONHANDO COM UM FUTURO PARA A ESCOLA: DE
MÃOS DADAS COM CÉLIA.
Maria de Jesus Gaspar Leite ocupa atualmente o cargo de secretária adjunta da
Secretaria de Educação do Estado do Maranhão. O contato de Maria de Jesus com a
professora Célia se deu quando esta prestou consultoria a Secretaria Municipal do Maranhão,
no programa “Escola Sonhos do Futuro” implementado no período de 2001 a 2004. Maria de
Jesus ocupava a época o cargo de secretária adjunta da Secretaria Municipal de Educação do
Estado do Maranhão, depois assumindo a diretoria do Centro de Formação de Professores,
também no município. Ela comenta que desde então “tenho realizado leituras sobre suas
publicações e a tenho como referência na área de formação docente e pesquisa”. (Maria de
Jesus Gaspar Leite, 2007).
Comenta também sobre os objetivos do projeto mencionado:
O Projeto “Escola Sonhos do Futuro”, desenvolvido junto às escolas
públicas municipais de São Luís, constitui-se em um programa de formação
continuada de professores, cuja proposta é reinventar a escola. Consiste em
utilizar a pesquisa intervenção, criando uma comunidade ampliada de
pesquisa cujo objetivo maior é a apropriação da escola por seus profissionais
de forma mais competente , garantindo aos educandos a construção do
373
conhecimento, instrumentalizando-os para a convivência em sociedade de
forma mais digna e participativa. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista
2007)
Maria de Jesus destaca o entusiasmo de Célia e sua luta permanente por uma educação
pública de qualidade. Enfatiza, também, a valorização dos profissionais da escola e a
necessidade de que estes se apropriem da mesma, com autonomia e confiança em sua própria
potência.
A profa. Célia passa um entusiasmo muito grande para seus alunos, no
sentido de estimular de forma crescente a luta por uma escola pública que
utiliza a pesquisa intervenção como forma de apropriação dessa escola por
seus profissionais, na busca de garantir a aprendizagem de todos. (Maria de
Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)
Sublinha, também, o que denomina de “simplicidade e humildade” de Célia,
reconhecendo que, mesmo com uma cultura expressiva, ela não se utiliza de seus
conhecimentos para se distanciar do outro, julgando-se superior. Ao contrário, coloca-se
sempre muito aberta, interessada e próxima, reconhecendo os múltiplos saberes daqueles com
os quais se relaciona.
Ela se destaca pela sua simplicidade, humildade e acolhimento de todos. A
sua excepcional competência e cultura não são motivos de superioridade. O
caráter humano e científico com que conduz a sua prática educacional
representa motivo de aproximação e de inclusão de todos os educandos na
garantia de proporcionar a construção do conhecimento.
A mestra que, nos últimos tempos, tem influenciado significativamente a
minha vida profissional, de forma a me tornar mais reflexiva e convicta que
o caminho para a escola competente é reinventá-la com seus profissionais e
alunos (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)
Cita algumas das leituras que tem realizado da produção escrita de Célia, tais como
"Escolas Aprendentes e Autonomia Pedagógica”; “Medos e Violências nas Escolas: E a
Educação com isso?”; “Bons Espelhos custam caro”; “Literacia Poética e Educação Política”
e “A Escola e seus profissionais: tradições e contradições”. Sobre o estilo de escrita de Célia
comenta:
A professora Célia tem um estilo de se pronunciar que encanta o leitor. A
forma contundente, real e ao mesmo tempo poética com que aborda a
problemática educacional, revela, na maioria de seus textos, a necessidade de
tratar a educação como um movimento instituinte que busca criar
374
alternativas de alimentar esperanças, reinventando o futuro ao mesmo tempo
em que trabalha o presente potencializando as possibilidades e capacidades
da escola.
Estudar Célia é estudar história, filosofia, dialética. É entender o hoje
passeando pelo passado, bastante perceptível no texto “Escola e seus
Profissionais”. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)
A dimensão da esperança é reconhecida em sua centralidade na obra de Célia, bem
como sua forma poética de escrever. Identifica também o mergulho na história, uma constante
nos escritos, que busca nas raízes de nossa vida cultural o entendimento da atualidade.
Maria de Jesus comenta sobre o lançamento do livro “Compartilhando o Mundo com
Paulo Freire” realizado na Universidade Federal do Maranhão. Chamou-lhe atenção o pedido
de Célia, que incluía a escola pública de Ensino Fundamental, integrando assim produção
acadêmica e escolar, numa fecunda e desejada proximidade.
Me lembro do lançamento do livro “Compartilhando o Mundo com Paulo
Freire”, aqui em São Luís, cujo discurso dela encantou a todos. Aconteceu
na sede da Reitoria da Universidade Federal do Maranhão e, a pedido dela,
transformou-se em uma cerimônia não de autógrafos, mas em um espaço
em que a escola pública de Ensino Fundamental se fez representar por
alunos e professores que apresentaram um belo número artístico da cultura
popular maranhense. A mestra não fala sobre a escola, mas oportuniza
possibilidades para que a mesma revele a sua produção, cultura e arte.
(Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)
Maria de Jesus destaca que um dos aspectos expressivos da contribuição de Célia foi
sua visão da importância de ter a escola como foco central em uma pesquisa intervenção,
escutando-a, valorizando-a, compreendendo suas demandas reais.
A presença da Profa. Célia foi de grande contribuição, pois ela fundamentou
o nosso entendimento de que um programa de formação tem significado
quando a escola é o foco principal e a pesquisa intervenção parece ser a
melhor estratégia para a construção do conhecimento. Com ela,
compreendemos que pesquisa não se faz na academia e que a escola
básica é uma grande fonte produtora de conhecimento. (Maria de Jesus
Gaspar Leite, entrevista 2007)
Simplicidade aliada à erudição, conhecimento compartilhado com generosidade;
valorização dos profissionais da escola e confiança em suas potências; história e memória
como caminhos de apropriação e construção do presente, esses são alguns dos aspectos
375
destacados por Maria de Jesus, que reconhece a contribuição de tais perspectivas para a
educação de um modo geral e, em especial, para a do Maranhão.
4.6.2 A voz dos parceiros:
Ney Luiz - lembranças de um encontro que trouxe mudanças
.
Alguma poesia que te lembre Célia...(entrevistadora)
Célia é uma poesia que precisa ser escrita, e ela seria muito bem escrita se
dois poetas pudessem escrever juntos. Ela é uma mistura de Mario Quintana
com Fernando Pessoa, se os dois se reunissem daria uma boa poesia. Ela é
uma poesia viva e a melhor imagem que eu tenho dela é essa conversa no
telefone, ela falando do acometimento dela, do acidente, de uma forma
poética, sobre a vida, sobre a morte, sobre as esperanças, eu fiquei
impressionado. (Ney Luiz)
Inicio essa narrativa com a associação que Ney fez sobre sua relação com Célia,
evocando o sentimento de afeição que se instalou entre eles muito imediatamente. Como esses
sentimentos se constituem? O que exatamente palavra que realmente não se aplica no que
tange aos sentimentos, mas que deixo aqui para provocar reflexões nos aproxima ou
distancia das pessoas? Afinidades? Bem estar? Acolhimento mútuo? Proximidade de idéias?
Nem sempre... Trago o mote do filme citado por Ney para refletir sobre esse impacto inicial
que temos do outro e que provocamos no outro. No filme, os personagens, que se conhecem
apenas por cartas, aonde compartilham a sensibilidade que a literatura provoca em ambos, traz
personalidades muito distintas. Frank, um londrino, homem sóbrio e sério; Helen, americana,
uma mulher mais irreverente, espirituosa. Diferentes em suas formas de expressão, irmanados
na sensibilidade à literatura. Não seriam essas sensibilidades compartilhadas, em que as
diferenças não nos separam e dicotomizam, unidades de aproximação e afeto? É dessa afeição
que se dá logo de início que Ney nos fala ao se referir ao modo como conheceu Célia
Linhares. Vamos a ela.
Para Ney, conhecer Célia foi retomar uma oportunidade que escapou de suas mãos
quando fez seu mestrado em Educação na UFF, no período de 92 a 96 quando, por limitações
376
de horário, não pode aproveitar o curso na UFF para aproximar-se dos professores que
desejava conhecer. Professor assistente do Departamento de Fundamentos Teórico-Práticos
do Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da UERJ e do Curso de Serviço Social da
Universidade Castelo Branco, Ney ingressou no doutorado em Educação pela UFF em 2007.
Formado em Serviço Social e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
(...) Eu tenho uma formação em Serviço Social e fiz o meu mestrado na UFF
no período de 92 a 96, fui orientado pela professora Maria Cristina Leal. Na
época eu não pude fazer todas as disciplinas que eram do meu interesse
porque eu estava na vice-direção da faculdade de serviço social da UERJ,
então eu podia cursar as disciplinas que coincidiam com a minha
liberação de horários, então eu fiz um mestrado muito capenga, eu não
conheci os principais professores da época. Os professores que eu queria ter
contato como a Célia e o Gaudêncio Frigotto
180
eu não tive oportunidade
naquela ocasião. Então eu fiquei com um grupo muito restrito de formação,
muitas disciplinas de psicologia da educação que não tinha nada a ver com o
que eu queria fazer. A ênfase era muito maior para área da Educação infantil
que não era meu campo de atuação, minha discussão era sobre a
universidade. (Ney Luiz, entrevista em 2007)
Foi o contato com a professora Maria Cristina Leal
181
, por meio de participação
conjunta em uma pesquisa época ela era professora visitante na UERJ), o que aproximou
Ney da professora Célia. Maria Cristina Leal, nos conta Ney, fazia um trabalho de assessoria
através do Instituto Paulo Freire com Célia Linhares em Nova Iguaçu.
Foi ela, Maria Cristina Leal, quem me fez a referência à Célia quando pensei
em fazer o doutorado. Ela achava que a pessoa mais indicada para me
orientar era a professora Célia Linhares por ela fazer essa discussão das
experiências instituintes em educação e que tinha uma interface com outros
campos de atuação profissional. Antes de fazer o contato com a Célia eu
entrei no site do Aleph eu vi que de fato as publicações, os profissionais que
estavam participando tinham formações diferenciadas, e me senti mais
próximo dessa temática. Eu não tinha muita noção do significado desse
180 Gaudêncio Frigotto, formado em filosofia e pedagogia no Rio Grande do Sul, é um dos expressivos educadores
contemporâneos que tem discutido extensamente as relações entre trabalho, educação e sociedade. Crítico ferrenho das
políticas neoliberais. É professor aposentado da Universidade Federal Fluminense e professor titular da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
181 Maria Cristina Leal é doutora em Educação Brasileira (UFRJ) e Professora titular de Sociologia da Educação
(aposentada da UFF).
377
conceito (movimento instituinte), mas me interessei pelo fato de ela lidar
com o campo da educação não de forma restrita, vinculado exclusivamente a
atuação de professores, mas também de outros profissionais. Então li um
texto dela organizado no livro de Ivani Fazenda sobre interdisciplinaridade,
fui lendo a produção da Célia sobre a formação de professores, o próprio
livro que ela organizou com Maria Cristina Leal da crítica a razão
hegemônica, e comecei a me familiarizar com as idéias dela e gostei muito,
achei que seria bem acolhido em termos do meu interesse temático. (Ney
Luiz, entrevista em 2007)
É interessante acompanhar esse interesse que mobilizou Ney. Talvez esse seja um dos
poucos entrevistados que não conheceu Célia primeiro pessoalmente, ou impactou-se com seu
discurso em alguma palestra. Foi seu conhecimento via texto escrito – de seu grupo de
pesquisa (Aleph) e de artigos e produções coletivas que o aproximou de Célia. É, portanto,
um vínculo que inicia pela afinidade de pensamentos e o reconhecimento de que Célia parecia
estar aberta a dialogar com perspectivas diferenciadas, pessoas com formações e enfoques
distintos. Célia-autora e pesquisadora convida Ney a uma aproximação. O contato pessoal,
que ocorreria um pouco mais a frente, traria novas impressões sobre Célia e a parceria que se
iniciava:
(...) Em 2005, foi quando eu a conheci de fato, tive um primeiro encontro.
Ela estava indo para uma reunião, não podia me dar tanta atenção. Em 3, 4
minutos que ela me ouviu eu tive a impressão que ela entendia melhor do
meu projeto do que eu mesmo. Ela me deu algumas sinalizações acerca do
que ela vinha estudando, de Benjamin, de Paulo Freire, de Maturana e um
pouco das questões que ela achava que um projeto deveria conter e eu sai
dali para escrever o projeto. Agendei com ela aquele encontro, e aquele
encontro que muda a vida da gente. Foi uma passagem marcante da nossa
relação porque eu tive impressão que ela me conhecia muito tempo e
tinha uma clareza muito grande sobre o que eu queria, e eu não cheguei com
o projeto escrito, cheguei com idéias. E as orientações dela tem validade até
hoje. (Ney Luiz, entrevista em 2007)
Essa capacidade de escuta de Célia, reconhecida por Ney, a dimensão da abertura
para o outro e da potente reflexão que ela se dispõe a fazer a partir do que é apresentado a ela.
Também eu como pesquisadora experimentei momentos como esse que Ney relata, em que
expus questões para Célia e recebi comentários e observações cuidadosos, que denotavam que
ela havia se comprometido com a questão que havia sido apresentada a ela. Mas uma vez,
surge a imagem do mestre ignorante de Ranciére (2005) que faz da escuta do aprendiz um
exercício intelectual de valorização e reconhecimento do outro. Dimensão educativa
fundamental, que qualifica e fortalece a autoconfiança na capacidade de pensar e criar do
aprendiz. Como é comum que, antes mesmo de ouvirmos o que o outro tem a falar, nos
378
arvoremos a fazer comentários, com o intuito de parecermos inteligentes, mas sabedores. Por
vezes, comentários que pouco ou nada dialogam com o que o outro de fato disse. Penso que a
escuta é um exercício de abertura ao outro dos mais fecundos e generosos.
Ney nos relata novas impressões que foi tendo de Célia, a partir do estreitamento de
seu contato com ela.
Quando eu passei no processo seletivo e eu fui ter o contato com ela, aí é que
eu fui de fato conhecer a Célia e tive a oportunidade de conhecer essa
pessoa o especial que ela é. Eu fiquei com uma impressão muito forte a
respeito do jeito com que ela aborda as questões e o jeito que ela fala. A
impressão que eu tenho é que ela está o tempo todo fazendo uma palestra,
cativando o público e aquilo me chamou a atenção, foi diferente, eu venho
de uma área em que o discurso é muito rígido, muito duro, muito hermético,
e ela ao contrário, tem um discurso cheio de poesia, entremeado de uma
bagagem filosófica densa. (Ney Luiz, entrevista em 2007)
O discurso científico foi e é muito marcado pela idéia de que para ser legítimo precisa
cercar-se de uma certa rigidez e dureza, em que não cabem aspectos de ordem afetiva,
poética. Tais dimensões são associadas ao erro, a desordem, a irracionalidade. Fruto da cisão
entre razão e emoção, ciência e poesia, corpo e mente típicas da modernidade, a que Célia
critica em muitos de seus artigos. Aqui, vale reconhecer que para além da crítica “por dentro”
da própria produção científica com relação à ciência, Célia assume metodologicamente a
poesia e a arte como dimensões da formação. Mais do que tratar abertamente dessa
metodologia o que de fato faz em trechos de alguns de seus artigos ela assume como
forma de discurso tal perspectiva, na forma como fala, escreve, escuta e pensa sua prática
pedagógica.
Uma passagem marcante do ano de 2007 foi o acidente que Célia sofreu. Estava
entrando em um táxi e quando ainda estava colocando uma perna para dentro do veículo, o
motorista deu a partida, arrastando Célia por um pequeno trecho. Como conseqüência,
fraturou perna e bacia, ficando convalescente durante um bom período do ano. Ney relata a
forte impressão que causou nele a forma como Célia lidou com essa situação:
(...) Até o dia que ela sofreu o acidente no ano passado e eu não pude estar
presente numa orientação e eu a telefonei e ela falava comigo do acidente
pelo telefone, assim como se estivesse recitando uma poesia sobre a vida e
sobre a morte para mim. Eu desliguei o telefone e fui falar com minha
esposa, fiquei impressionado com aquilo, foi meu segundo contato com ela,
foi bem no começo, teve o acidente, teve a cirurgia... E eu não tive contato
com ela. Fiquei impactado com a situação e com a forma como ela
379
apresentou a situação, fui convivendo mais com ela e fui entendendo que o
jeito de ela falar, de lidar com as questões da orientação, com as questões
educacionais, com as questões relativas à realidade hoje, não se
diferenciavam da forma escrita para forma falada. Ela é integral nesse
sentido, isso foi um grande encantamento de minha parte, me apaixonei
muito por esse jeito, estranhei no início, mas comecei a prestar atenção. (Ney
Luiz, entrevista em 2007)
Ney percebe em Célia a integração entre vida e obra, mencionada por outros tantos
entrevistados. Usa a palavra “integral”, cujo sentido traduz essa idéia muito bem, trazendo o
sentido de inteiro, inteireza. Sobre a estilística de sua escrita, podemos evocar Nietzsche,
autor referência para Célia, que em “Do ler e escrever”
182
, diz: “escreve com sangue; e
aprenderás que o sangue é espírito”.
A idéia de uma escrita com sangue, isto é, com o espírito, pode ser entendida como
um estar por inteiro, uma conciliação entre as palavras e a vida – entre corpo e alma.
Nietzsche parece afirmar que escrever com sangue é viver cada palavra. Essa relação vital
entre escrita e vida emana da obra de Célia.
Ney comenta que se sentiu acolhido por Célia, escutado e valorizado. Tal
receptividade influenciou sua forma de atuar como docente. Passar pela experiência, como
estudante de doutorado, e reconhecer o impacto da valorização de sua própria voz por Célia,
favoreceu a que ele repensasse aspectos de sua docência.
Fui muito bem recebido por ela, uma pessoa que valoriza acho que isso é
um componente do pensamento pedagógico dela que é valorizar o
interlocutor, o sujeito com quem se dialoga, não importa que seja um
professor universitário, como é o meu caso, mas que ela deve ter com todos
os alunos que ela teve contato, com todos os professores do ensino
fundamental com os quais ela se relaciona e trabalha, com os netos dela...
Ela vive contando histórias fantásticas da relação dela com os netos, então a
pedagogia está entranhada na vida, na alma, na fala da Célia e acho que isso
é ímpar para quem vivencia essa experiência. Eu compartilho muito disso
com meus alunos do Serviço Social, com a minha família, enfatizando a
importância para mim da oportunidade de conhecer uma pessoa que não se
esfacela nesse cotidiano todo recortado que nós temos, onde a gente em casa
é de um jeito, na escola é de outro, no trabalho é de outro. Acho que ela
182 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
380
permeia isso com uma certa unicidade que é muito característica de pessoas
com uma coerência de vida, coerência política e com a bagagem que ela tem.
(Ney Luiz, entrevista, 2007)
A respeito do processo de orientação, Ney comenta as referências mais fortes da
professora e seu estilo de acompanhar a produção do orientando:
Eu percebo que Célia tem duas grandes referências teóricas, políticas,
filosóficas na formação dela. Uma é Benjamin e outra Paulo Freire. Não
posso dizer que são referências de muito tempo mas parecem as mais
marcantes hoje. Ela tem essas influências como se fossem encontros e não
como apropriações, acho que ela encontrou nesses autores possibilidade de
experimentar a vida profissional, a vida afetiva, a vida familiar a partir de
alguns conceitos que esses eles trabalham e a orientação dela é isso. Então
ela consegue com muita facilidade, com muita sensibilidade, trazer situações
que são do cotidiano, por exemplo, as histórias que ela conta da relação com
os netos dela. Como temos orientação sempre as segundas, sempre tem uma
história. E quando ela conta aquelas histórias, eu lembro da relação com
meus filhos, fico impressionado com a sensibilidade. Ela não menciona um
conceito, mas estão todos presentes lá, naquela história, naquela narrativa: o
significado da infância, o processo de socialibilidade, a questão inter-
geracional, então tem uma série de elementos que são de natureza teórica e
que é possível perceber na fala dela embora ela não precise enunciar e ao
mesmo tempo, cada vez que ela discute conceitualmente, trabalha um texto,
dos autores que agente discute, ela começa a abrir, a descortinar
possibilidades daquele conceito na realidade.
Em outros trechos desse trabalho afirmo, no que diz respeito aos textos de Célia, que
ela se “autoriza” em sua escrita a fazer conexões entre diversos conceitos que lhe parecem
afins sem necessariamente fazer um caminho que me parece muito comum nas produções
acadêmicas (e até mesmo, esperado), em que se apresenta alguma teoria para depois refletir
sobre ela. Essa desenvoltura para lidar com a teoria, relacionando-a com a vida, evidencia a
concepção de conhecimento que a anima. Um arcabouço que tem como função ampliar nosso
entendimento da vida e não ser posto em jaulas de ouro. Não é conhecimento para ser
reverenciado como verdade intocável. A aproximação entre vida e teoria, conhecimento e
sabedoria, ciência e vida são perspectivas que sua prática evidencia. Ney nos conta mais sobre
esse ponto:
Isso vai nos envolvendo, nos colocando próximos daquelas referências
teóricas sem ser de uma maneira mecanicista, sem ser no sentido fechado, de
uma identificação do conceito com a realidade, mas do cotejamento da
realidade pelo conceito, como se fosse uma provocação à reflexão. E isso é
muito interessante, porque desperta nos participantes do grupo o resgate de
experiências que possam ser acompanhadas, apreendidas a partir daquelas
381
referências teóricas. Às vezes o conceito não está nem assimilado por nós,
isso leva um tempo. Eu, por exemplo, venho de uma outra área, nunca tinha
estudado o Benjamin, estou há um ano e meio estudando-o, hoje que começo
a entender. Agora é que estou assimilando, porque esse processo não se
esgota.
Acho que isso é que ela revela para gente quando ela fala dos conceitos
abertos, um conceito não enclausura a realidade, ele é instigado pela própria
dinâmica da realidade. Então o processo da orientação é muito rico (agora
ele esta estudando um curso com ela que aborda os autores Benjamin e
“Giorgio Agamben”). Interessante isso, ela tem esse aspecto que é muito
caro a uma tradição intelectual a qual eu me filio, que é a tradição marxista,
que é você poder não fragmentar a relação ente a dinâmica da sociedade e as
suas expressões e construções do cotidiano.
Célia se autoriza a pinçar com desenvoltura e liberdade os conceitos que elege para
dialogar. Nesse sentido, é mesmo como “um encontro”, como nos diz Ney. Um encontro com
autores, idéias, mas que é vivido com porosidade, com proximidade. O autor não é colocado
no pedestal, mas sim convidado a passear pelos seus textos. Isso se evidencia, penso eu, num
estilo que menciona aspectos das teorias de alguns autores para refletir sobre questões
diversas, sem a preocupação em apresentar primeiramente e exaustivamente
183
a concepção
do referido autor.
Outro aspecto ressaltado por Ney, diz respeito ao compromisso de Célia com as
questões da escola, seu engajamento em projetos. Essa dimensão nos integra a ação de Célia
num sentido mais amplo, em que sua forma poética de agir revela-se também política e
filosófica.
Ney destaca a sensibilidade de Célia para perceber aspectos da realidade mais ampla
que ainda não têm uma difusão. Não apenas com relação a novos autores e pensamentos, mas
também a experiências pouco valorizadas, que ela traz para a luz. Sensibilidade que existe em
função de um estofo intelectual, da formação de Célia. “Ela faz isso poeticamente e faz isso
183 Acredito que os textos que, diferentemente dos de Célia, debruçam-se sobre os conceitos de alguns autores, com o intuito
de explicitá-los mais detidamente, são também muito importantes. Não se trata de polarizar preferências e importâncias: “este
é melhor, aquele não tanto...”. Defendo a diversidade de estilos, por provocarem igualmente, diversas leituras. É fundamental
travarmos contato de forma mais estreita com o pensamento dos teóricos que desejamos conhecer. Porém, acredito que
estilos diferentes de textos trazem perspectivas igualmente diferentes. Nesse sentido, o estilo Celiano, convida a fazer pontes,
instigar curiosidades, levantar “a ponta da palavra”. Um estilo que provoca reflexões e abre um leque de possibilidades,
aguçando desejos de aproximação com campos por vezes não percorridos, das artes, das ciências e outras mais.
382
filosófica e politicamente. Eu falo politicamente porque ela não interpreta apenas, ela age, ela
dá assessorias, ela participa, constrói”, nos diz Ney.
A própria pesquisa que ela desenvolve sobre o campo das experiências
instituintes é uma bela intervenção no sentido de buscar, através da sua
inserção acadêmica, uma articulação entre experiências que estão em regiões
muito distantes no país, mas que expressam um movimento que a
sensibilidade intelectual dela ou de pessoas próximas ao que ela faz são
capazes de identificar. Normalmente a gente estuda aquilo que está mais
visível na sociedade, quando o movimento social ganhou maior
notabilidade, maior expressão, e ela percebe isso ainda quando está
germinando. Esse é o olhar especial que ela tem e que é partilhado nessas
experiências de orientação coletiva. Ela tem uma capacidade de ao mesmo
tempo dar conta disso, mostrando para gente como é o processo dela, sem ter
uma conotação de exemplo, mas ao mesmo tempo ir nos envolvendo e
abrindo a possibilidade e a capacidade de a gente fazer o mesmo movimento.
Hoje eu me percebo fazendo isso e acho que tem muito a ver com essa
convivência com a Célia, talvez eu conseguisse fazer isso daqui alguns
anos por outros caminhos, mas com ela foi mais instigante. Foi difícil, mas
também está sendo mais profundo. (Ney Luiz, entrevista, 2007)
Ney reconhece em Célia aspectos de um referencial marxista, pois Célia preocupa-se
com a relação de classes e as tensões entre poderes ai engendradas. No entanto, reconhece que
não é para ela um referencial fechado, ortodoxo.
Ressalta a capacidade de Célia em fazer uma análise que não fragmenta a relação
entre a dinâmica da sociedade e as suas expressões e construções do cotidiano, evidente em
sua ação docente e seu discurso. Ney percebe que Célia tem uma perspectiva plural, que não
pode ser confundida, afirma, com ecletismo. Identifica também uma tendência a filiação ao
marxismo que se fecha a outras perspectivas e Célia como uma crítica enfática aos
dogmatismos enclausurantes, a esse respeito comenta:
Quando falamos da filiação ao marxismo é comum pensarmos num
marxismo muito fechado. Isso não tem nada a ver com Célia. Ela dialoga
com campos mais abertos, a proximidade que ela tem com esse campo tem a
ver com uma perspectiva crítica da sociedade, com uma proposta de
mudança, de transformação social e com todas as possibilidades abertas por
esse campo em termos de vislumbrar possibilidades novas de compreensão
da dinâmica da sociedade. Porém tudo o que tem a ver com essa tradição,
que tem a ver com essa tradição que encerra alguma perspectiva
enclausuramento, de fechamento, de dogmatismo, ela se afasta. Ela tem uma
proximidade, mas tem uma crítica. Ela trilha um caminho que eu identifico
que poucos intelectuais no Brasil fazem. Eu identifico no Leandro Konder,
no Michel Lowy, que é um caminho de ter uma fundamentação, um
enraizamento numa perspectiva crítica mas estar extremamente aberto ao
383
diálogo com outras perspectivas. Então quando você lê um texto de Konder e
Lowy sobre diferentes autores, eles não fazem isso com desdém, ainda que
não seja do campo do conhecimento deles, eles se interessam. Isso é rico na
Célia e é difícil na minha área. No campo da educação e trabalho é onde tem
a ortodoxia marxista. Parece que ler algum autor fora daquele leque significa
que você está vendendo seu pensamento, traindo uma filiação. Ela faz isso
sem representar uma traição e nem uma perspectiva eclética. Ela tem uma
perspectiva plural, que é aberta, que é democrática e que é típica de um
grande intelectual. A influência que ela tem no campo pedagógico é muito
por essa perspectiva, ela resgata para o campo da educação duas questões
que eu vejo que estão continuamente sendo distanciadas que é sua dimensão
filosófica e sua dimensão política.
Ney reconhece que Célia compreende a educação de forma ampliada, que, embora
focalizada na escola básica e na formação de professores, envolve a dimensão mais ampla da
própria vida, transborda”, reportando ao um termo que Célia tanto gosta. Destaca também a
perspectiva política que abrange vida e obra de Célia.
Célia traz para a discussão do que é a educação um forte componente
filosófico, do que é pensar a educação não no seu sentido prático,
pragmático, da construção das experiências cotidianas como uma
profissionalização mais restrita, com uma ênfase muito técnica. Ela alarga
isso, ela “transborda” um termo que ela gosta muito para além da escola,
para além das disciplinas. Para a vida, para a família. Isso é uma coisa que
tenho aprendido e que tem reforçado muito uma concepção de educação que
eu tenho. Outra questão cara a ela é o componente político. Que não importa
que prática seja essa, ela tem uma conotação política que precisa ser
explicitada, conhecida, debatida, instigada. Essas são duas contribuições que
eu vejo que ela traz.
Ney ressalta que identifica que as questões caras à Célia, como as mencionadas no
depoimento acima, não se encontram presentes no campo da educação. Ele se ressente de uma
certa fragmentação entre os conhecimentos, de uma leitura que estabeleça um diálogo mais
interdisciplinar, algo que ele reconhece na produção de Célia.
Vejo que as questões de Célia são preocupações que não estão exatamente
na ordem do dia na produção intelectual na área da educação. Uma coisa que
estranho na área de educação é a fragmentação dos campos do
conhecimento. Como eu tenho uma marca, uma trajetória muito forte no
Serviço Social que é a relação do Serviço Social com a Educação, muitos
alunos do Brasil inteiro me pedem para indicar uma boa publicação na área
de educação. Tenho indicado Célia Linhares pois é para mim a que mais se
aproxima do que eles estão querendo. Por quê? Porque o assistente social
atua em todos os níveis da área e a obra de Célia trava um diálogo mais
amplo.
384
Perguntei a Ney sobre a perda que Célia viveu de seu irmão e como ele via essa
experiência presente em sua obra e vida.
Ela é uma pessoa, que por conta dessa formação bastante filosófica e dessas
experiências que ela reúne de vida, lida de uma maneira não ocidentalizada
com essa relação da vida e da morte. Isso é diferente no nosso meio. A
temática da morte e da finitude humana de vez em quando comparece nas
nossas discussões, nos nossos debates. Até pela própria característica que
envolveu, por exemplo, a morte de Benjamin, ela traz isso de uma forma
muito interessante.
Na seqüência de sua observação sobre a forma como percebe Célia lidar com a
questão da morte, Ney retoma o conceito de experiência instituinte, a reflexão que tal conceito
traz e considera essa, a experiência instituinte, uma das referências mais marcantes do
pensamento pedagógico de Célia para ele:
(...) Eu tenho uma referência forte na minha experiência com a Célia por
conta dessa marca das experiências instituintes. Ela fala que instituinte não é
novo, vivemos numa sociedade que tem um forte apelo para que tudo seja
novo, que é a necessidade de você gerar novos artefatos de consumo, que
podemos consumir mais se as coisas trouxerem alguma novidade. Ela fala
assim com muita propriedade, muito sentimento da vida dela, dos seus 70
anos, sobre parar de trabalhar, continuar trabalhando, continuar trabalhando
sob uma lógica produtivista... mas ao mesmo tempo não se vê também
totalmente distante do trabalho. Esse momento de vida dela me fez pensar a
velhice ela não gosta dessa palavra, ela sempre fala que é muito jovem,
para uma instituinte ela tem uma contradição ai (risos) e eu comecei a
assumir isso, como é bom envelhecer vendo a Célia. Envelhecer mesmo,
saber que envelhecer é constituir experiência, é valorizar o que você
construiu e eu falo para os meus alunos hoje, que o que eu mais gosto na
minha vida é saber que eu estou envelhecendo, que eu estou vivendo, e isso
é um aprendizado muito forte com ela. É lógico que se eu puder chegar aos
70 com a capacidade dela, fantástico! Mas eu percebo assim que eu estou
redescobrindo.
É importante ressaltar que em 2007 Célia esteve às voltas com o processo de
aposentadoria. Em nossas primeiras conversas mais extensas, esse tema mobilizava sua
atenção e percebi nela a dificuldade que essa perspectiva instalava em seu horizonte. Ney
captou essa questão, talvez a por ter sido tematizada nos encontros de doutorado e de
orientação. Hoje, a medida que fomos nos envolvendo e que tantas outras demandas surgiram,
inclusive o acidente de que foi vítima no início do ano de 2007, percebo que não é mais esse
tema o de final de um ciclo e apreensão com o que vique aparece com força em suas
preocupações. De alguma forma, talvez essa tese tenha modestamente contribuído, assim
385
como tantas outras novidades que têm surgido em sua vida nesse novo milênio, como mais
fonte de movimento, de nascimento, de olhar para trás numa perspectiva de ressignificar o
passado, exercício que ela tem aceitado com alegria e companheirismo. O apelo do
movimento tem impactado mais e incentivado seu “frescor adolescente” (Waldeck).
Ney comentou que a experiência com Célia vinha influenciando na sua forma de ser
professor. Hoje, se dando um espaço maior à escuta de seus estudantes. Relata, também, o
trabalho com a terceira idade que está desenvolvendo e reconhece nele, as questões que têm
refletido em seu doutorado:
(...) Eu comecei nesse meio tempo fazer um trabalho com a terceira idade, no
Serviço Social, muito bonito. Ele se orienta pela filosofia de Paulo Freire,
que é também do Benjamin. Isso foi muito inspirado na experiência com a
Célia. São oficinas que a gente chama de “tempo de aprender” e que são
abertas para a comunidade da terceira idade, mas que não só, tem gente de
40, 50 que vai, e nós misturamos com os adolescentes. São oficinas cuja
trajetória é construída a partir dos interesses que eles tenham e que então nós
combinamos como vai ser. São temas como, por exemplo, o conhecimento
da cidade, o lazer, o resgate da trajetória de vida. Eles produzem CDS,
vídeos, cartilhas, produzem vídeo, etc. Ela existe há dois anos e mudou de
curso quando eu entrei no doutorado. Eu tenho um senhor de 80 anos que vai
apresentar a oficina, pega seu papelzinho e vai ler. Eu acho bonito isso,
colocar o desafio que é você estar em um espaço, o espaço de uma
universidade, onde muitos não conseguiram estudar por conta de emprego,
por conta da família, por conta de um machismo muito forte, e essas pessoas
terem a oportunidade de produzir um olhar sobre a própria condição que eles
tem hoje de velhos na sociedade, mas com uma possibilidade de reconstruir
esse lugar com o qual eles estavam familiarizados. Então eles gostam de
falar “eu estudo aqui, essa é a minha universidade, eu não pago para estar
aqui”, está entendendo?! Isso traz um sentido pleno da educação. Quando
estávamos fazendo um seminário eu pensei, puxa não vejo outra pessoa na
minha frente que não Paulo Freire, que trabalhou com a Educação de
Adultos. (Ney Luiz, entrevista, 2007)
4.6.3 A voz dos parceiros: Ramofly.
Um filme, uma poesia, uma música que lembre Célia:
Um filme brasileiro de que gosto muito é Olga Benário. Uma bela mulher,
que enfrentou as dificuldades e impurezas de seu momento histórico,
resistindo bravamente a toda e qualquer forma de violência física e
simbólica. Célia, guardando as devidas proporções, também vem, em seus
textos, palestras e, principalmente, atitudes, enfrentando esses projetos de
educação voltados apenas para o mercado de trabalho, para a exclusão, o
preconceito, a negação da diferença e a conseqüente e exagerada defesa da
supremacia do neoliberalismo na sociedade contemporânea. (Ramofly
Bicalho)
386
Ramofly Bicalho graduou-se em 1999 em História pela UFF, fez seu mestrado em
2003 em educação na mesma universidade e concluiu recentemente, em 2007, seu doutorado
na UNICAMP. Atua na área de formação de jovens e adultos e é professor em universidades
particulares.
Conheceu Célia no mestrado de Educação da UFF, contando com a participação dela
em algumas de suas bancas. Identificou na leitura da professora sobre a obra de Freire uma
afinidade especial, reconhecendo a sua preocupação com a ética e os valores nas relações
educacionais.
As experiências vividas com a professora Célia Linhares giram em torno das
questões educacionais, do seu envolvimento com as leituras de Paulo Freire
e de uma proposta de educação que priorize a autonomia de educadores e
educandos no processo de ensino-aprendizagem. A ética e a preocupação em
lidar com essas questões, talvez tenha sido o que mais me impressionou
positivamente, num mundo tão carente de valores e compromissos.
(Ramofly, entrevista, 2007)
Ramofly responde a meu pedido para que relate uma passagem significativa de seu
contato com Célia. Reporta-se, então, ao momento em que ela tomou parte de sua banca.
Sublinha o cuidado com que Célia abordou os pontos frágeis de seu trabalho e se sentiu
gratificado com essa delicadeza. Bem sabemos, envoltos nesses rituais acadêmicos, que o
convite para que um professor integre a banca examinadora de nossas monografias,
dissertações e teses é cercado de alguns temores. Como esse professor intervirá? Que questões
apontará? Como nosso trabalho, árduo e feito em meio a tensões e dúvidas, será enfim
recebido e lido por um outro? Pessoalmente, já participei de inúmeras defesas de colegas (o
próprio nome é curioso, se nos “defendemos” supõe-se que seremos atacados?!). Não raro
presenciei comentários por vezes muito rígidos, ditos de forma dura. Sentir na pele o olhar do
outro, tão necessário e tão temido, nos a dimensão da delicadeza envolvida na escolha de
quem estará examinando nossas produções. Sobre a experiência de ter Célia como banca
examinadora Ramofly comenta:
Jamais esquecerei a maneira coerente, delicada, responsável e solidária com
que se envolveu e participou na minha banca de doutorado. Em momento
algum, na sua fala, deixou de ser crítica e questionadora. O diferencial é a
maneira como se posiciona. Sabe chamar a nossa atenção para os problemas
de um parágrafo mal formulado e a superficialidade na implementação de
conceitos, sem denegrir a nossa imagem, sem baixar a nossa auto-estima,
387
sem viagens mirabolantes e deslocadas da relação teoria e prática. (Ramofly,
entrevista, 2007)
A respeito do pensamento pedagógico de Célia, Ramofly destaca a presença de uma
esperança por uma escola includente, a preocupação com uma sociedade atravessada por
desigualdades e injustiças:
Vejo em Célia a intensa preocupação com a dialogicidade, os temas
geradores, os círculos de cultura e a relação teoria e prática, tão bem
trabalhada por Paulo Freire e, fundamentalmente, na construção de uma
nova sociedade, onde as injustiças, o analfabetismo, a evasão escolar e tantos
outros problemas possam definitivamente ser superados.
Penso que Célia Linhares nos permite trabalhar vários aspectos de um
eficiente Projeto político-pedagógico, analisando primeiro, as urgências
educacionais sob o viés do coletivo; valorizando a realidade e o cotidiano
das crianças, jovens e adultos; fortalecendo a auto-estima dos envolvidos
nesse processo sempre muito difícil de educar na perspectiva da autonomia e
de fazer lembrar pela poesia, a história de nossas lutas pela terra e pela
justiça. Célia em sua extensa produção convida, a todos nós educadores, para
uma aventura em torno da aprendizagem e do ensino ético, que respeite e
envolva os sujeitos em lições de prazer e esperança. Acredito que a
supremacia e importância dessas sugestões e contribuições ocupam um
espaço de alto nível e sustentabilidade no pensamento e na educação
brasileira.
Sobre as obras escritas de Célia, Ramofly reconhece a presença forte de idéias como a
da necessária autonomia dos sujeitos; da memória como caminho de resgate da experiência e
da valorização da própria história como elemento fundamental para a construção de um
projeto educativo e da identidade cultural. Menciona os textos que teve oportunidade de ler,
destacando os aspectos que considerou essenciais.
tive o privilégio de ler inúmeros textos da professora Célia Linhares,
dentre eles: Os Professores e a reinvenção da escola: Brasil e Espanha; Sem
Terra, mas com educação; Saberes docentes da fragmentação e da
imposição à poesia e à ética; A escola e seus profissionais: Tradições e
contradições; MST: um projeto de Brasil, um projeto de escola. Gosto destes
textos, pois, afirmam que na construção do conhecimento, o envolvimento
dialógico entre educadores e educandos é essencial, as aprendizagens
múltiplas devem ser partilhadas. Aprende-se na relação de gênero
estabelecida, através das memórias de sujeitos com diferentes idades, na
participação e construção dos valores. Célia defende a autonomia do sujeito
para falar e reivindicar, sejam quais forem os seus direitos, sendo
protagonista de sua própria história, articulada aos seus conhecimentos e
vivências.
388
4.7 Outras vozes: depoimentos.
“Os olhos dos alunos são as mais sérias, rigorosas e generosas bancas
examinadoras”
Beatriz Fétizon
No início de 2006 realizei entrevistas com um grupo de dezesseis pessoas das relações
de Célia Linhares. Sendo nove orientandos ou ex-orientandos de Mestrado, três de
Doutorado, uma da graduação em Pedagogia, uma da Secretaria de Educação do Maranhão,
uma do grupo de pesquisa ALEPH e uma dos seus tempos de estudante universitária.
As entrevistas foram realizadas por escrito e tinham como disparador um conjunto de
questões que elaborei, a saber:
1) Qual foi (ou é) o seu vínculo com a professora Célia Linhares? Como ele aconteceu
(você a procurou de modo especial ou a conheceu durante o curso de
graduação/mestrado/doutorado ou outro espaço ?; 2) A partir de seu contato com a prof. CL
destaque quais os aspectos mais chamavam sua atenção na forma como ela estabelecia relação
com seus alunos/orientandos/parceiros? Quais as características que se sobressaíam no modo
como ela mobilizava o grupo, lecionava, orientava?; 3) Se você pudesse definir a presença de
CL em sua vida, como o faria?; 4) Com quais textos da prof. CL travou contato? Comente sua
impressão sobre as idéias da autora que aparecem de forma mais recorrente em seus textos.
Comente também o estilo de seus textos ; 5) De modo mais imediato, quando você lembra na
prof. CL, qual imagem poderia associar a ela? (tente não racionalizar muito a imagem, deixe
que ela venha a tona e me diga qual a primeira imagem que emerge); 6) Relate alguma
passagem marcante/interessante que você viveu com a prof. CL; 7) Relate algo sobre o
projeto no qual você teve a oportunidade de trabalhar com ela, destacando a presença dela no
mesmo.
Os depoimentos revelaram preciosas experiências e impressões vividas entre os
entrevistados e Célia Linhares e lamentamos não incluí-los na integra no anexo desse
trabalho. Nesse momento, interessa-nos destacar delas aspectos relacionados ao que
consideramos ser o núcleo do pensamento pedagógico de Célia Linhares, num exercício que
vai nos conduzindo ao fechamento dessa tese. Para tanto, estabelecemos cinco temas
recorrentes em volta dos quais gravitaram os depoimentos, são eles: Ética; Da Mestra; Da
narrativa poética e da Palavra; da humanização e da solidariedade; do pensamento complexo.
389
Organizaremos assim trechos das entrevistas em que se confirmam tais aspectos, trazendo-os
da forma singular e diversa como foram vividos pelos entrevistados, ampliando e
enriquecendo nossa compreensão da obra/vida de Célia Linhares. Vale dizer que ainda que
separadas, tais categorias são claramente interdependentes.
Ética em Célia Linhares
Tomamos nesse trabalho a ética como a capacidade humana de resistir a barbárie e
crueldade que fazem parte de nossa história e que, como afirma Morin (2007, p. 202) habita
todos nós. Ética que se expressa numa postura diante do mundo que valoriza a solidariedade,
o afetual, a compreensão e luta pela justiça.
É Tereza Cristina Calomeni quem afirma ter presenciado em várias das situações
vividas ao lado de Célia sua defesa da dignidade humana.
De 1985 até hoje, muitas foram as situações expressivas e singulares
vivenciadas ao lado de Célia. Em todas elas, a defesa e o testemunho da
dignidade humana em seu sentido mais inteiro e pleno. (Tereza Cristina
Calomeni).
Ação ética que se expressa num movimento de luta contra o autoritarismo, a
desigualdade social a injustiça, como nos diz Calomeni:
Não por acaso, todas as circunstâncias de que me lembro foram marcantes:
em aulas, textos, discursos, palestras, opiniões, comentários, observações,
conversas informais, em tudo Célia deixava o sinal de uma profissional séria
e dedicada e se distinguia e se expressava como uma pessoa rara. Na
espontânea nobreza do andar, na música da voz, na delicadeza dos gestos, na
firmeza das atitudes, na determinação e na clareza das palavras apareciam --
e aparecem -- o apego à causa da Educação e o compromisso com o ensino;
inscrevia-se e ainda se inscreve -- a inconfundível luta contra o
autoritarismo, a arbitrariedade, a submissão, a subserviência, a injustiça, a
desigualdade social; emergiam -- e ainda emergem --, sempre renovados, o
interesse pela vida, o entusiasmo em face da riqueza da existência, a
disponibilidade para o abrigo do novo, do múltiplo e do diverso, a
obstinação pela pesquisa, a saúde da curiosidade intelectual, nunca perdida;
mostrava-se em cena -- e ainda se mostra -- a sábia percepção de que
convém olhar tudo de todas as maneiras ou a partir de múltiplos ângulos e
perspectivas. Em tudo, a seriedade, a entrega, a dedicação, a acuidade no
trato das questões pedagógicas e o cuidado em examinar os mais diversos
aspectos da Educação. Em tudo, a inquietação e a angústia de quem
reconhece que não é fácil lutar, teimosamente, para impedir o arrefecimento
ou a diluição do mais puro ideal de uma vida mais justa, mais fértil, mais
criativa e mais leve; em tudo, também a ousadia e a expectativa de quem
390
ousa subverter, transgredir, ultrapassar o supostamente último,
inquestionável e definitivo. (Tereza Cristina Calomeni).
Tal perspectiva ética é reconhecida não apenas em seu discurso, mas faz parte das
ações que envolvem o movimento coletivo, como as que tem curso nos grupos de pesquisa
que fomenta. É Matela quem realça esse aspecto do trabalho em coletividade:
Creio que a característica mais marcante da professora para mim é a crença,
a esperança nos pequenos gestos e ações daqueles que têm um compromisso
com uma educação voltada para os valores da liberdade e da justiça social.
Além disso, ressalto o trabalho coletivo desenvolvido no Aleph. (Rose Clair
Matela).
Ética que envolve a propagação de uma cultura da paz, sublinhando a necessária
ampliação das redes de solidariedade, nos diz Pflueger:
Propaga uma cultura de paz e de justiça social que não gera incertezas
mais sejam explicitadas de forma clara superando a cultura de guerra.
Ressalta a necessidade de construir instrumentos instituintes
conseqüências da aproximação uns dos outros e da apropriação das
múltiplas conexões com a vida sem perder a solidariedade. (Thereza
Pfilger).
Da Mestra
Conheci Célia Linhares no mestrado em educação da UFF por volta de 1987,
ela ministrava Filosofia da Educação e ali me chamou atenção o modo
libertário com que lidava com alunos e com as questões da educação.
Estávamos na chamada transição democrática com os movimentos sociais se
reinventando pelo Brasil ao mesmo tempo em que se começava a tornar
público alguns dilemas como a tortura. Célia nos falava nas aulas de filosofia
da criação do grupo Tortura Nunca Mais e nos instigava para outros
pensamentos no campo da filosofia. Em seu programa de disciplina figurava
um autor ainda pouco conhecido no campo da educação, como Michel
Foucault. A dignidade do humano era um tema muito presente nas aulas e
ela abria espaço para dissertações que fugiam ao arcabouço teórico-político
vigente no campo da educação. (Ana Hecket)
Célia na verdade foi um acontecimento em minha vida, no sentido
Deleuziano da palavra. Daquele tipo de mestre que é uma raridade
sempre e mais ainda nos dias atuais. Por que? Sua preocupação não é
com a lógica produtivista e mercantilista da produção de teses em
série. Ao contrário, no lugar de mandar fazer como o mestre faz ou
391
acha que deve ser feito, abre caminhos para novas produções de
sentido. Vou trazer um exemplo: minha tese falaria das resistências e
ela propôs que eu criasse não na forma de análise usando autores
como Deleuze, Foucault e outros, mas que também inovasse na forma
de escrita. Eu fiquei desesperada, pois acostumada que estava com
uma escrita linear não me via escrevendo com intensidades uma tese
de doutorado. Expus para Célia minhas limitações e afirmei
categoricamente que não conseguiria. Ela levantou-se suavemente da
cadeira, talvez por perceber que pela via do convencimento racional
não chegaríamos a lugar nenhum, sorriu-me e disse: tente minha
querida, você é capaz de criar. E foi por isso que a tese pode ser
entremeada com alguma poesia, ou seja, com a expressão das
intensidades vividas no percurso de feitura da tese. As aulas no
doutorado aglutinavam doutorandos, mestrandos e as meninas da
graduação em meio a uma variedade de questões que era infinita. Uma
usina de discussões que trazia muitas inquietações e quando
imaginávamos que ela fecharia com chave de ouro uma discussão
trazendo as contribuições teóricas para ‘iluminar’ nossos trabalhos, o
que ela fazia era abrir com chave de ouro outras trilhas e picadas com
mais questões. A aposta sempre era de que conseguiríamos, mesmo
nos momentos mais difíceis ela estava até segurando literalmente a
mão de cada um de nós, mostrando-nos que era possível fazer nosso
trabalho. Penso que alguns acreditam que nesse pensamento e
nessa prática pouco rigor teórico. Imagina! É justo o contrário. Na
suavidade com que discutia nossos trabalhos ia mostrando nossos
‘nós’ e as vaciladas. Assim íamos percebendo que não aceitaria
qualquer coisa, qualquer discussão, qualquer trabalho requentado;
cobrava rigor ético-político. Nunca nos ofertou um pensamento
mastigado, traduzindo autores, mas os trazia para a aula e/ou
orientação como um desafio para que mergulhássemos nos autores e
deles nos apropriássemos.
Uma tese feita com a orientação de Célia é um exercício de autoria
vivenciado concretamente. Muitos são os bilhetinhos e e-mails que
ainda guardo e que chegavam nas horas mais difíceis seja do trabalho
ou dos dilemas da vida de cada um de nós. Célia exerce nas aulas
aquilo que Freire falava que mestre é aquele que quando ensina
aprende. Um mestre profano, mestre ignorante que se preocupa em
fazer o pensamento/prática fagulhar. Seus alunos são tratados como
aliados, iguais no diverso.
As características que mais chamam atenção é a suavidade, o carinho
e o companheirismo. Mas essa suavidade o dispensa enfrentar
embates com muita firmeza e rigor. Percebia e demorei até para
entender que sua aposta não era ter ao seu lado gente que fala a
mesma língua, mas gente que partilha dos mesmos princípios falando
línguas diferentes. uma ‘cobrança’ permanente de socializar o que
pensa e sabe, de ampliar espaços de discussão, de construir junto. Em
alguns momentos a aula torna-se pura poesia sem deixar de lado as
durezas da vida. Dignidade e poesia são dois componentes que se
destacam em Célia. Impressiona a sua inquietude, estreando sempre e
de novo de um outro jeito. Sempre querendo aprender outra coisa que
392
ajude a realçar os processos instituintes na vida e na escola. É assim
que Célia passa a estudar outros autores, acompanhando seus
orientandos e alunos, mas sem abrir mão de seus princípios e sem se
deixar levar pelas modas de última hora.
(Ana Hecket)
A profa. Célia sempre esteve muito atenta ao modo particular de cada
orientando se expressar. Também, sempre se mostrou solidária não
as demandas acadêmicas de seus colaboradores, bem como uma
preocupação especial com suas dificuldades no âmbito pessoal. Acho
que é isso, a capacidade de externar solidariedade pelos seus outros
sociais, independentes de serem seus orientandos ou não. (Andréia
Reis)
Aprendi muito com ela. Vivi experiências de muita autonomia, de
liberdade, de incentivo. Mais do que influência na minha vida
profissional, com ela, cresci como ser humano. Aprendi a olhar, viver
e sentir o mundo, as pessoas, a educação buscando neles o que de
vivo, pulsante, belo, transformador, mais do que procurando as
fôrmas, os erros, os defeitos. (Bruna Molissani)
os encontros coletivos que Célia proporcionava em suas atividades
acadêmicas se constituíram momentos de grande importância na
minha formação pessoal e profissional. Lá nós exercitávamos a prática
da alteridade e do respeito ao outro mesmo nas divergências. Aprendi
a escutar e ser ouvida, pois Célia tem a capacidade de reunir em torno
dela pessoas que consideram especiais e que atualmente se tornaram
grandes amizades em minha vida. (Dagmar Canella)
O Olhar atento, agudo ao que ouvia e lia se destacava. Ela não dialogava
com papéis, mas com idéias, com projetos, com possibilidades e com a
história que eu lhe apresentava. Ao mesmo tempo que com um
posicionamento muito sério em relação ao que levávamos, sempre investiu
na autonomia do aluno no sentido mais pleno. Afirmava o que percebia
como contribuição ou rota do texto que lhe apresentava e, a partir daí,
sugeria vôos, percursos que sempre eram discutidos, argumentados, seja para
que fossem seguidos, abandonados ou deslocados. A sua generosidade se
dava através do diálogo franco e aprofundado com a produção e, nessa
medida, potencializava o projeto que o aluno apresentava. Por outro lado,
vim a saber pelos colegas do programa que o compartilhamento de textos
que conseguia de outros países, de lançamentos, de materiais que nos seriam
inacessíveis naquele momento, era uma característica considerada pouco
comum entre os professores. (Estela Sheivar)
Nessa aula, valores se fazem matéria. Desperta-se a atenção no sentido
de criar uma ambiência que favoreça o exercício da troca e da agudez
reflexiva, que se entrelaçam fiando com o outro confianças. E são
393
estas que possibilitam o desnudamento de fragilidades e forças,
peculiares ao processo de construção de uma pesquisa; próprias do
viver.
Em algumas aulas tenho ficado quieta por perceber meus olhos
brilharem molhados quando me deparo com uma professora que traz
um conhecimento denso: uma voz de quem estuda, reflete, cria e se
difere não apenas na sua suavidade e cuidado, mas na construção
atenta à voz e silêncios de cada estudante. Professora que costura, que
assinala, que amplia e nos convida – insistente – a fiar e desfiar nosso
bordado. Professora que pacientemente instiga o aluno e aguarda
numa espera dinâmica o momento em que cada um possa colocar
suas indagações. (Isabel Reis)
Agradeço a Célia por conviver com sua generosidade, coerência,
humildade, sabedoria e delicada firmeza que tanto me apontam o que
é essência. Por me possibilitar o aprendizado de escutarmo-nos em
construção de compartilhas e solidariedades políticas e éticas. Por
captar-me em alma, atenta às estéticas que me movem... e em aguda
delicadeza, instigar-me, complementar-me.
Agradeço à professora por possibilitar o fortalecimento do que de
mais precioso em mim, alargando-me comigo mesma e além de mim.
(Isabel Reis)
Célia é a professora mais generosa com seus alunos que conheci. Sua
forma poética de relacionar-se faz com que sua presença seja densa,
crítica e ao mesmo tempo respeitosa e carinhosa. Encontrei abrigo e
acolhimento nos encontros que tive com ela, assim como indicações
precisas e críticas contundentes, que me foram muito úteis. (Mônica
Corbucci).
. Em 1985, de imediato, foi exatamente o que percebi em Célia: no
exercício da docência, no traço de seus planos de cursos, na escolha
dos textos indicados aos alunos, na promoção e na orientação das
discussões em sala, no modo de se relacionar com os alunos e com os
orientandos, nos gestos e nas palavras pronunciadas dentro e fora de
sala de aula, nas escolhas teóricas, na participação da vida acadêmica
e, particularmente, da vida da UFF, em tudo pude registrar o gosto
pelo saber, o prazer da descoberta e, mais que isto, a presença de uma
franca preocupação com o ensino, a força de um comprometimento
visceral com a Educação e, neste caso, o invencível respeito pelo
humano e pela vida. (Tereza Cristina Calomeni).
Da narrativa poética e Da Palavra
Tal como o narrador benjaminiano, Célia faz de sua narrativa poética, seu
olhar na busca pelo instituinte nas relações que englobam não só a educação
mas, os movimentos da própria vida, uma forma de transmitir histórias sejam
394
ficcionais ou não, em que a capacidade de humanização é sempre uma
evidência na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. (Andréia
Reis)
Eu percebo a PALAVRA no trabalho da Profa. Célia Linhares como
instrumento de mediação para toda e qualquer prática educativa.
Mediação para a construção de ações educativas, mediação para
construção de espaços de diálogo a PALAVRA sempre numa
dimensão política.
2) Reportando-se especificamente ao texto escrito de Célia e a forma
como ela se comunica oralmente (seu "texto oral"), o que você pensa
da linguagem que ela utiliza (me refiro aqui ao estilo de sua escrita, as
palavras que seleciona e como constrói seus textos e a forma como
comunica oralmente suas idéias).
Conhecendo a força das PALAVRAS, a professora Célia, busca
cuidadosamente, entrelaçar em seu texto escrito, as experiências que a
“cultura oral-popular” pode acrescer a sua prática educativa. Penso
que ela pretende com isso, construir pontes entre o universo
tipicamente “formal” da escola e o mundo da criatividade e do
imaginário que se fazem circulam no cotidiano da família, da rua, do
meio rural, enfim, nos espaços reconhecidos como extra-escolares.
(Andréia Reis)
Por um momento, lembrei-me de algo que li em uma das obras do
Larrosa que fala a respeito do modo como damos ou recebemos a
palavra. Eu acho que o que diferencia, ou melhor, o que caracteriza
Célia e, portanto, reflete em sua proposta de estudo e de pesquisa, é a
forma como ela a palavra; aberta, porosa, poética, capaz de ser
ressignificada, desfeita, reconfigurada; uma palavra, que ao ser
recebida, se torna instituinte em seus sentidos possíveis, que Célia
não toma a palavra para si ou se apropria dela, Célia doa a palavra
para que esta possa desdobrar-se.
Célia é um patrimônio discretíssimo na pedagogia brasileira. A mim
me encantam suas conexões com a poética, que são exemplares do
modo como pensa a educação. Sucesso! (Eliana Yunes)
Talvez o marcante tom poético e o resgate de cenas afetivas da vida
educacional possam inscrever os seus textos em uma "literatura
menor" na área, nos termos em que Deleuze entende as "práticas
menores". Sim, menor porque não é o que se costuma ouvir, não
corresponde a um modelo pronto que nos ajuda a abrir um livro e a
achar quase que mecanicamente um relato factual, a definição de um
conceito ou a apresentação de um percurso histórico. Não! Nos seus
textos a gente tem que mergulhar, pensar, viajar, sentir e dialogar.
Eles rompem, de alguma maneira, com uma produção maquínica que
nos faz sentir certos, confortáveis, seguros. Célia está sempre nos
395
deslocando, precisamente porque nos coloca no meio da trama e,
como boa leitora de Benjamin, nos retira do lugar dos "outsiders".
(Estela Sheivar)
Como esquecer a importância do cuidado com a linguagem e com a
beleza da simplicidade, capazes de aproximar o texto a muitos, sem no
entanto, esvaziá-lo, linearizá-lo. Penso então, na força da ousadia; do
risco; da disciplina e da criticidade que não nos permitem ser rasos e
inoperantes. (Isabel Reis)
Quando se trata de Célia Linhares, acho que é, sobretudo, a palavra
enquanto metáfora e poiesis - o fazer sentido e o fazer sentir pela
palavra sendo palavra, palavra encarnada. É mais que o uso - é
entrega. Os poetas fazem isso, são artífices da palavra. Na minha rasa
opinião, a Célia faz "sociologia poética", analisa a realidade social
pelo filtro da sensibilidade e da sua própria subjetividade. Célia é uma
intelectual e pelo que conheço do seu pensamento, o encontro entre
objetividade e subjetividade não se de forma harmônica, porque é
dialético prescinde movimentos, de elevações e quedas d'água. Rio é
mar. Utilizando mais uma metáfora e uma imagem desse "manancial
humano" que ela própria é,
pensaria na pororoca, encontro contínuo de
águas distintas, revoltas, inquietantes
- mas sempre encontro. Maranhão
e Rio. Somos maranhenses, eu e a Célia, e por essa mesma identidade
em comum, sei o quanto o simbólico da água, que gira, que entorna,
que se avoluma – em águas doces e salgadas, nos fala profundamente.
(Patrícia Porto).
O pensamento pedagógico de Célia Linhares é um composto que
envolve arquitetura e fundamentos. Na dimensão arquitetural destaco
o engenho e a arte com que constrói, com que elabora sua escritura e o
seu discurso sonoro, o áudio de sua fala.
uma sensação de que a cabeça da autora não descansa nunca, que
se entrega de corpo e alma à paixão pelo ato criador. Quando escreve
ou quando discursa Célia encanta porque compartilha com os outros
uma nova estética do ser, incomum, invulgar, colhida e recolhida a
todo o momento dos materiais da vida, que suas mãos de artista
selecionam e ressignificam como poucos.
O outro composto, o que envolve a dimensão filosófica, teórica e
metodológica, emerge de modo sólido, sem superficialidades e
concessões, vindo associado a uma cultura humanista ampla e
sintetizadora ao mesmo tempo, que dão aos seus escritos o rigor da
ciência e a singularidade da beleza literária. (Palhano).
Célia Linhares me lembra uma “alquimista da palavra”.
Literalmente, Alquimia seria a busca do entendimento da natureza, a
busca da sabedoria, dos grandes conhecimentos. O alquimista é um
andarilho a percorrer as estradas da vida, é um iluminado, um sábio
396
que compreende a simplicidade do nada absoluto. Ela está pautada na
energia espiritual, na alma, no sensível e não somente no
materialismo. Portanto, vejo a Célia fazendo isso com as palavras:
entrelaçando saberes, gerando desejos de busca pela “pedra filosofal”,
captando com uma sensibilidade incrível as realidades e entornos,
utilizando-se de jogos de palavras que lhe são peculiares. Uma
alquimista. (Rosane Marendino).
O texto da Célia tem esse poder de nos mobilizar. Poder esse que nos
tira da sombra e nos oferece a luz. E, assim como nos fala Platão, a
única forma de atravessar para o mundo inteligível é passando pelo
mundo sensível. A Célia faz isso. Seus textos percebem todos os
movimentos minúsculos, entre coisas que não perceberíamos se ela
não estivesse “por perto”. Sua escrita consegue ser simples e
complexa ao mesmo tempo e depois nos deixa a pensar: “-como ela
percebeu isso com tanta sensibilidade???”. Observações ricas,
deduções que vão da emoção à razão, ligados ao cotidiano, aos
pequenos eventos, mas que produzem intensas desvelações. (Rosane
Marendino).
Da solidariedade e da humanização
Tive uma defesa de dissertação bastante conturbada, estava grávida e com
problemas na escola onde trabalhava. Ela foi solidária e atenta. Quase sete
anos depois, ao reencontrá-la, ela não lembrou de mim, mas do nome de
minha filha. Fiquei muito emocionada. (Mônica Corbucci).
Em 1986, ensinando
Filosofia da ciência
numa Faculdade particular
desde o início de 1984, ingressei na UFF como professora. Mais uma
vez, vi Célia torcer por mim, alegre e francamente. Em 1987 e
durante os três anos subseqüentes, convivi com sérios problemas de
saúde em minha família e, com isto, não pude evitar o atraso da
redação do texto da Dissertação. Num gesto de rara solidariedade e
sem abdicar do rigor profissional e acadêmico, Célia foi
excepcionalmente compreensiva e demonstrou, muitas vezes sem
palavras, a confiança que em mim depositava. Finalmente, em 1990,
defendi a Dissertação sobre Foucault. (Tereza Cristina Calomeni).
Conviver com Célia me lembrava e me lembra ainda --
a régua e o
compasso
que me foram concedidos como instrumentos para que eu
pudesse traçar as escolhas, medir os gestos, definir o verbo, desenhar
o silêncio, eleger o terreno, cultivar o solo e me empenhar em
tentativas constantes de compreender o humano, sempre tão rico e, ao
mesmo tempo, tão limitado e precário. Por isto, posso dizer que, num
tempo tão estranho como o nosso, num tempo em que, a cada dia, nos
ronda o cinismo e nos ameaçam o ceticismo e a aridez, num tempo em
397
que, sobre uma retórica vazia e perversa, se edifica um jogo
improdutivo de palavras, num tempo de desconforto e desesperança,
do império da lógica mercantil e do consumismo cego e irrefletido, de
manutenção de desigualdades inaceitáveis e preconceitos perversos,
da diluição da solidez das relações humanas, num tempo da
fugacidade e do efêmero, num tempo em que nos assusta o descaso
com a causa alheia, nada mais consolador do que a certeza da
companhia, do companheirismo e da cumplicidade.
Do pensamento complexo
Também como bolsista, fui aluna da Prof.ª Célia, porque freqüentava suas
aulas no mestrado e no doutorado (outra coisa nada comum entre os
professores de Pós-graduação - levar graduandos para suas aulas). Nesses
espaços, sempre vi a abertura para diferentes pensamentos e formas de ser e
viver, o diálogo, o carinho, o respeito. E nós, bolsistas, tínhamos sempre
tudo isso também. A prof.ª Célia nos incentivava a participar das aulas,
apresentar textos, etc., sempre nos dando a liberdade de escolher. (Bruna
Molissani)
Célia sempre buscou a pluralidade, a diversidade, os diversos olhares
possíveis para a compreensão de um determinado aspecto ou realidade,
portanto suas escolhas de leituras são bastante amplas sem ser incoerente ou
“infiel” ao seu referencial teórico. Quanto ao estilo de seus próprios textos
acho que a palavra que ao mesmo tempo em que sintetiza amplia uma
descrição estética de suas obras é a palavra “Poiesis”. (Dagmar Canella)
Normalmente se chega à academia carregando a experiência que se
quer colocar em análise como se esta fosse acessória ao que parece ser
o eixo dos trabalhos acadêmicos: a análise conceitual. Com Célia não
a possibilidade da experiência pessoal ser acessória; é
absolutamente central e ela vai puxando-a dos exemplos "menores"
para o lugar central de nossos trabalhos. Torna o que seria uma
explicação acessória no coração das análises. Esse exercício de tornar
o afeto o centro dos textos é o que nos afeta em seu trabalho. Ela não
se contenta, não aceita explicações frias, perfeitas, distantes. As
transporta para a sua dimensão humana. Assim, quando eu relatava
alguns fatos deixando-os perdidos de forma quase escondida e
apressada, ela os convocava para que ocupassem o seu devido
território; eram elas que teciam as análises e não o contrário. Lembro-
me de quando depois de muita discussão em relação aos afastamentos
da escola vividos pelos alunos, em função de certas práticas
pedagógicas, descrevia eu um incidente que se repetia a cada ano
quando do fim do ginásio em uma escola: a queima de uniformes e
livros em uma fogueira que se fazia com eles no meio da rua. O que
era "apenas" um exemplo Célia me fez ver a sua potência, o seu
398
significado, a tragédia que podia ser lida nesse fato, em função dos
sentidos pregados pela concepção clássica de escola. Um exemplo, um
relato se tornou um potente analisador, que saiu de sua condição
subalterna para ocupar o lugar que a academia tem negado às vidas.
(Estela Sheivar).
Atenta ao humano por crenças que se mostram vitais para suas veias
de professora, Célia traz os teóricos num pensar que se busca liberto
de dogmas. Em movimentos dinâmicos e sem filiar-se aos teóricos
como partidos aprisionantes, Linhares conversa com eles, consigo
mesma e conosco aprofundando questões com a leveza e a densidade
de uma poesia. Nesse posicionamento fertilizador da professora Célia,
vou me reconhecendo e aos colegas como pensadores complexos que
somos. Aos poucos me encorajo a poder estar nesta casa que se
propõe acolher-nos para que possamos todos inclusive a própria
UFF – crescer em nossa humanidade subjetiva e crítica. (Isabel Reis).
Durante todo o tempo em que acompanho Célia, ainda que à distância,
vejo que nela se mantém presente uma das dimensões daquilo que
antigos gregos chamavam de
parrhesia
: a
coragem de dizer, o falar
francamente,
apesar dos riscos e do perigo
.
Como uma espécie de
tesouro valioso, Célia mantém viva e vigorosa a capacidade de se
indignar diante dos muitos absurdos e abusos que, infelizmente,
desenham o triste traço de nossa era. No entanto, intelectual que o
se encerra nos limites de uma racionalidade abstrata, fria e
desinteressada, mantém, igualmente viva e vigorosa, a convicção de
que, a despeito deste
tempo de homens partidos
, como diz Drummond,
não convém desanimar ou se deixar abater: caso nos alcance o
desânimo, importa resistir para retomar a imperiosa disposição, a
necessária coragem e a insubstituível esperança, por vezes
extraviadas. (Tereza Cristina Calomeni).
Tempo de tecelagem
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das
beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia
passando entre os fios estendidos, enquanto fora a claridade da manhã
desenhava o horizonte. (Maria Colassanti in A Moça tecelã).
O fio é o grande agente que liga todos os estados da existência entre si. Nos
Upanixades, o fio (sutra) liga os mundos e os seres, é ao mesmo tempo
atman (o si mesmo) e prana (o sopro vital). As Moiras são fiandeiras que
tecem os destinos. Tecer é reunir realidades diversas, é criar, fazer sair de si
inéditas configurações, como as aranhas e suas teias. Fiandeiras e tecelãs
abrem e fecham os ciclos individuais, históricos e cósmicos. Láquesis (o
passado), Cloto (o presente), Átropos (o futuro) são as Parcas, as três filhas
399
da Necessidade que fiam e desfiam o tempo e a vida. (Chevalier, Dicionário
dos Símbolos, 1999).
Dos anos 90 até os dias atuais, Célia tem produzido intensamente, numa tecelagem
sem descanso. Em sintonia com o tempo que passa, observa a “modernidade” criticamente,
questionando suas promessas e emblemas. Modernidade que difunde falsas propagandas,
como as de uma ciência que ignora a natureza e suas necessidades; uma tecnologia toda
poderosa, compreendida como sinônimo de pura ascensão; uma “qualidade total” que passa a
ser objetivo e desejo do mundo do trabalho e da escola, dentre outras. Num tempo em que os
interesses econômicos ditam os caminhos da própria educação e permeiam idéias e
instituições (“tempo é dinheiro”, diz o ditado popular).
Nesse contexto Célia Linhares se empenha em retirar os véus que cobrem e encobrem
a realidade por trás da “aparência” da realidade, convidando a refletir sobre outras dimensões
que escapam a visão mais imediata, propagandeada. Defende também a necessidade de
questionarmos o discurso que leva a postura cômoda, afirmando que diante de uma realidade
que não se pode mudar, nada teríamos a fazer. Busca nas memórias das lutas e dos
movimentos contemporâneos, pistas e brechas para construir outros possíveis. Tecnologias
inteligentes e estudantes não? Ciência “neutra”, sem limites éticos? Educação produtiva com
professor sem autonomia? Qualidade total na educação, sem saber com sabor? Políticas que
excluem os sujeitos históricos? , são algumas das inquietações que ela vai ruminando e
provocando a refletir.
É também tempo de espalhar suas teias aqui prosseguindo na metáfora da tecedura/
tessitura de Célia. Suas pesquisas se incrementam, ampliando redes de diálogo com a escola
básica de modo cada vez mais intenso, articula-se com universidades de outros países e
intelectuais estrangeiros, não apenas em seus textos, mas nos eventos de que toma parte e que
empreende.
Para sintetizarmos o movimento dessas últimas décadas, com ênfase no pensamento
pedagógico de Célia Linhares, remetemo-nos ao mito de Arácne que em virtude de seu
enfrentamento à deusa Minerva, recebe como punição passar o resto da vida a tecer, sob a
forma de uma aranha. Tal qual Arácne, Célia tece com um movimento forte de sua lançadeira,
um fio sem fim, construindo um mundo de açores (variados pontos do tear), no enfrentamento
do pensamento único, que desvela as aparências de um tempo cujos valores dados como
imponderáveis, precisam ser questionados. Tal qual Arácne, seu tecer incessante enfrenta os
“deuses” arrogantes. Deuses que se incorporam em valores e idéias que tem se difundido no
400
mundo da educação (e não apenas ele...) com hegemonia. Deuses, todos poderosos, que
fomentam idéias contrárias ao sentido da solidariedade, da afetuosidade, do direito à educação
de qualidade para todos, da justiça, do conhecimento como possibilidade de reconhecimento
da própria identidade rumo a uma cidadania plena.
Mas, retomemos a história de Arácne em mais detalhes, com a qual fechamos esse
capítulo. Envolvidos nas teias das histórias mitológicas, é possível perceber a tecedura de
Célia Linhares, que - e aqui ela se distingue de Arácne -, faz de sua tecedura o próprio
enfrentamento dos deuses.
A origem do mito de Arácne relaciona-se ao fato de que nas indústrias
athenienses, os tecidos constituíam um dos ramos mais importantes. Porém
as fábricas da Ásia, produziam tecidos mais delicados e mais sólidos,
sobrepujando as cidades gregas. Arácne, embora não fosse ilustre pelo
nascimento, tinha grande reputação pelo seu especial talento como tecelã.
Seus belos trabalhos eram conhecidos em todas as cidades da Lídia e até
mesmo as ninfas do Tmolog e do Pactolo abandonavam as águas para lhe
admirar os trabalhos da agulha. Arácne sabia fiar e fazer a lã, embelezando
seus tecidos com as cores do arco-íris. Confiante de seu trabalho, afirmava
que tinha coragem de desafiar a própria Minerva.
A deusa, ofendida com o atrevimento da mortal, assumiu o aspecto de
uma anciã e foi procurá-la. chegando, censurou Arácne pela
incoveniência e pretensão de, em sendo uma simples mortal,
comparar-se à uma deusa. Aracne, ofendida, enfrentou a anciã,
afirmando que estava disposta a desafiar a própria deusa Minerva.
Minerva então reassumi seu verdadeiro aspecto, declarando que
aceitava o desafio.
As duas então passaram a preparar seus trabalhos. Já corre a
lançadeira com incrível rapidez, e o desejo que ambas experimentam
de vencer redobra a atividade. Cada uma delas desenha velhas
histórias, para que o trabalho ficasse ainda mais perfeito. Minerva
representou no seu a disputa mantida com Netuno em torno do nome
que deveria ser usado pela cidade de Atenas. Arácne decidiu por
contar as histórias em versões que certamente desagradariam às
divindades do Olimpo grego, revelando suas intrigas amorosas e
questionando seu pretígio. Porém, o trabalho de Aracne foi executado
com tal delicadeza e tão incrível perfeição que Minerva não pode
descobrir o menor defeito.
Despeitada por ser igualada a uma simples mortal, Minerva rasgou o
tecido da rival, que imediatamente se enforcou de desespero. Minerva,
tomada de piedade, sustentou-a no ar, para impedir que se
estrangulasse, e disse-lhe:
"Viverás, Aracne, mas ficarás para sempre
pendurada desta maneira; será o castigo teu e de toda a tua posteridade."
Ao mesmo tempo, Aracne sentiu que a cabeça e que o corpo lhe
diminuíam de volume; minguadas patas lhe substituíram os braços e
as pernas, e o resto do corpo se transformou num enorme ventre. A
partir de então, as
aranhas
sempre continuaram a fiar, e a indústria
401
humana até hoje não conseguiu igualar a finura dos seus tecidos.
(KURY, 2003).
No mito, ainda que tecendo um belo tapete, as histórias que Arácne conta desvelam
aspectos das divindades que contrariam suas imagens de pura perfeição. Em belos trançados,
impossíves de serem criticados tal a beleza e perfeição, revelam-se aspectos das ambigüidades
dos deuses. Reporto-me aqui a depoimentos como os de Jésus Bastos e Balina Belo, relativos
a década de 70, em que diziam o quanto Célia, em momentos de embate, conseguia lançar
mão da palavra de forma a toca o outro. Ela era respeitada pela sua palavra, era/é uma palavra
que afeta, que inclui, que rasga véus de incompreensão, ainda que fale do que não é fácil
ouvir.
Tecedora de palavras, tecedora de histórias, a tecelã Célia Linhares, “reúne realidades
diversas, cria, faz sair de si inéditas configurações, como as aranhas e suas teias” Fia e desfia
o tempo e a vida, com fios de história, fios das narrativas dos muitos que escuta, fios dos
conhecimentos que enreda. (CHEVALIER, op.cit).
402
FECHAMENTO/ABERTURA:
UMA MESTRA DA PALAVRA: ÉTICA, MEMÓRIA, POÉTICA E COM-
PAIXÃO OU
(COM)PAIXÃO NA OBRA DE CÉLIA LINHARES
As palavras são como peixes abissais que nos mostram um brilho de
escamas em meio às águas pretas. Se elas se soltarem do anzol, o mais
provável é que você não consiga pescá-las de novo. São manhosas as
palavras, e rebeldes, e fugidias. Não gostam de ser domesticadas. Domar
uma palavra (transformá-la em clichê) é acabar com ela. (Montero, 2004)
(...) A literatura é um caminho de conhecimento que precisamos percorrer
carregados de perguntas, não de respostas. (...) escrever é uma maneira de
pensar; e deve ser o pensamento mais limpo, mais livre e rigoroso possível.
(idem)
Acredito que hoje seja necessário dizer: sejamos irmãos porque estamos
perdidos num planeta suburbano, de um sol suburbano, de uma galáxia
periférica, de um mundo desprovido de centro. Mesmo assim, possuímos
plantas, pássaros, flores, assim como a diversidade de vida, as possibilidades
do espírito humano. Doravante aqui residirão nosso único fundamento e
nosso único recurso possíveis. (Morin, 1998b)
Mergulhar na obra/vida de Célia Linhares foi uma aventura intelectual das mais
instigantes. Convidou-me, como mencionei na introdução, a me aproximar de um outro
tempo, o que vivi intensamente, embebendo-me da arte, da cultura, do movimento social e
político expressos nas pesquisas e estudos que fiz e nos depoimentos de meus entrevistados.
Confirmo as palavras de Bosi (2004), de fato “a memória dos velhos desdobra e alarga de tal
maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto com ela o pesquisador e a sociedade
onde se insere” (p. 69). Com a ressalva de que, diferentemente de Bosi que trabalhou apenas
com velhos nas duas obras
184
com que travei contato, escutei pessoas de variadas idades. O
ponto de semelhança é que, independente do fator idade, escutar experiências diferentes da
nossa própria, que nos reportam a outros tempos, outras realidades, formas singulares de ver o
184 “Tempo da Memória”(2003) e “Memórias de velhos” (2004).
403
mundo a partir de outras perspectivas, constitui-se em uma vivência de alargamento de
horizonte, sem dúvida. Para quem pesquisa e para o campo das ciências humanas.
Ainda com Bosi, reafirmo que uma história de vida não é feita para ser arquivada ou
guardada como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu (2004, p. 60).
Talvez o principal mérito dessa obra seja: dar visibilidade a uma trajetória, que se cruza com
tantas outras, que revela tempos, movimentos, história. A história de uma vida, de um país e
no caso de nosso interesse específico, da própria educação seus movimentos, embates,
idéias e caminhos. Uma trajetória que vale a pena ser contada e conhecida, guardada, no
sentido que Antonio Cícero nos indica:
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília
por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordando
por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que pássaros sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que quer guardar.
(Antônio Cícero)
O título desse fechamento/abertura carrega aspectos, princípios, que reconhecemos
como o coração da obra de Célia Linhares: palavra, ética, memória, poética, compaixão,
humanidade, conciliação dos contrários. Idéias força, recorrentes em seus textos escritos, em
sua narrativa oral e nos depoimentos de seus pares. Princípios que orientam seu pensamento
pedagógico e sua prática, como pesquisadora e docente.
A palavra em Célia, para retomar uma de suas metáforas em A escola Balaia”, é
oxigênio que circula por entre as brechas do trançado do balaio (Célia Linhares, 1999).
Palavra que permite a que os sujeitos se reconheçam uns aos outros, que se constituam como
sujeitos que se dizem, cuja autonomia se constrói no próprio ato de narrar-se, forjando o
reconhecimento de si mesmo como sujeito, cidadão, a quem a voz não pode ser silenciada. Na
404
escola, a palavra é o oxigênio, que precisa ser compartilhada e circular entre todos, fazendo-se
compreendia.
Nessa perspectiva, a promoção do diálogo nos espaços educacionais é o que favorece
a que estes sejam espaços de pertencimento incluindo a Educação Infantil, a Escola Básica,
a Universidade e demais segmentos de ensino. Ao reconhecer nestes locais a possibilidade do
diálogo vivo, da escuta da própria vida e história, se reforça a confiança no outro de sua
importância como sujeito, se fortalece a autoconfiança. O estímulo ao pronunciar-se
possibilita assim, a que os sujeitos apropriem-se do conhecimento e de si mesmos. A força da
palavra na obra de Célia é contundente, a ela reputa a possibilidade de autoconstrução e
afirmação da identidade, resgate da própria história, afirmação de si como sujeito de direitos,
de valor.
No tocante ao ser professor, a palavra como uma ferramenta crucial capaz de
instigar à reflexão. Apropriar-se da palavra é fundamental para a construção da autonomia. A
autonomia é outro conceito de relevo para Célia Linhares. Autonomia que se evidencia na
capacidade humana de criar, de gerir nosso próprio cotidiano, de reconhecer caminhos
singulares na tessitura de nosso trajeto e fazer escolhas. Apropriar-se da palavra compreende,
portanto, afirmar a própria capacidade de pensar e agir com autonomia, negando-se a:
“Aceitar uma posição de “formiga” que trabalha sem indagar os porquês,
que agüenta em silencio sua condição de pouca visibilidade e nenhuma
importância social ou treina-se para entrar no rol dos sobrantes da sociedade,
uma vez que o desemprego, as excludências, as concentrações de bens
tendem a permanecer”. (Célia Linhares, 1997, p.34)
O que está em pauta, quando Célia Linhares aborda a questão da autonomia e da
palavra, é a não massificação dos sujeitos, negando a que a escola forme “seres domesticados
e submissos, homogeneizados na produção das lições de vida”(Célia Linhares, 1999, p.77-
78). Aposta, portanto numa educação que não perca de vista “a autonomia, o fortalecimento
dos sujeitos, como seres capazes de recriar o mundo, com solidariedade”(op.cit. 1999, p. 78).
A professora não apenas compreende a palavra como um eixo orientador da profissão
docente, como ela mesma, assume sua própria palavra como uma ferramenta, uma forma
pessoal e singular de pronunciar-se. A palavra de Célia tem força de alcance, de afetar o
outro, entendendo aqui afetar como a capacidade de mobilizar os afetos e de por eles ser
mobilizado, de tocar o outro e por ele ser tocado. Podemos reconhecer tal força de sua palavra
405
não apenas por meio da leitura de seus textos, mas pela forma mesma como ela constrói seu
discurso em aulas e palestras. Sua fala no simples cotidiano, fora das salas de aula e
auditórios, é também prenhe de força e poesia, uma palavra que, ao ser aberta, convida o
outro a se inscrever e que revela seu incessante processo de auto-análise-ética das
experiências vividas e de seu em torno.
Tomo aqui a idéia moriniana de auto-análise. Morin afirma que a auto-análise é um
exercício permanente de auto-observação, que suscita a uma nova consciência de si que nos
permite nos descentrar com relação a nós mesmos, reconhecendo nossos egocentrismos,
carências, lacunas, fraquezas. É também via auto-análise que integramos o olhar do outro em
nosso esforço de autocompreensão. Um trabalho permanente de pensar a si e ao mundo
(Morin, 2007, p. 93-94). Nas entrevistas que realizei com Célia ela revelava um olhar atento
para a atualidade e seus dilemas, sem proferir análises maniqueístas ou simplistas. Sua leitura
trazia com freqüência a presença dos contrários: ao lado do medo a esperança; ao lado da
coragem de enfrentar, o sentimento de fragilidade; ao lado da visão crítica de uma educação
em crise o reconhecimento do valor das experiências instituintes e de seus movimentos que
revelam brechas e caminhos possíveis. Isso atestam os depoentes dessa tese e eu mesma, a
pesquisadora, no contato estreito que travamos ao longo desses anos de meu doutoramento.
Questão que me saltou aos olhos de imediato.
Retomando a idéia da palavra poética de Célia Linhares, vejamos em sua própria fala
o sentido de abertura que ela encarna:
A forma poética sempre transfere para o outro a última palavra, a palavra
fica suspensa, você instiga, você oferece, mas não tem o fechamento do
dogma, do pensamento único. (...) Eu sinto que o que eu falo ressoa. Eu não
tenho nenhum poder formal, mas tenho um poder que é a minha vida. (Célia
Linhares entrevista com a pesquisadora, fevereiro, 2006).
Palavra poética, militante, polifônica. É a própria Célia que, respondendo a minha
curiosidade sobre o tema, traduz essa palavra poética que é forma, método, porque atinge o
outro, alcançando o interlocutor e mobilizando reflexões. Palavra de mestre, que provoca,
aguça, fermenta o desejo de saber mais em seus discípulos. Vale lembrar que tomo aqui a
palavra discípulos no sentido que Rancière (2005) confere ao termo: não aquele que segue
cegamente a um mestre arrogante, mas sim aquele que o toma ao “mestre ignorante” -
como modelo provisório, cujo necessário desprendimento faz parte do desenvolvimento da
própria mestria do discípulo. Célia, apostando na criação e na necessidade de se comunicar do
406
homem, compreende o próprio discurso como algo que não se pretende completo e
totalizante. O discurso é uma instigação a que outros pensamentos e expressões se produzam.
(...) Estou absolutamente convencida de que a arte é essencial, que a
pedagogia precisa ser mais poética, não como uma fuga, porque a poesia não
é uma fuga, mas como um método. Falar, dizer e deixar entreaberto para que
se prossiga. O desejo primordial do ser humano é se comunicar. (Célia
Linhares entrevista com a pesquisadora, fevereiro, 2006).
Em sua concepção, a palavra do mestre é aquela que provoca no outro o desejo de se
inserir no diálogo, o que nos reporta mais uma vez a lição do mestre ignorante de Rancière,
“O mestre interroga, provoca uma palavra, isto é, a manifestação de uma inteligência que se
ignorava a si própria, ou se descuidava.”(2005, p.51). Em Célia Linhares, a instigação é uma
metodologia, sua palavra é aberta, busca indagar. Em seus textos, muito freqüentemente, as
questões são introduzidas por meio de perguntas, que também acompanham o desenho do
texto, num franco movimento de convidar o leitor a se incluir na discussão. Palavra
provocativa, que tange muitos sentidos possíveis. Palavra que não vive sem o outro.
Eu gosto muito de pensar o pensamento apaixonado, sempre irreverente,
sempre dizendo a tua palavra (...). Palavras não são a cereja do bolo, como as
flores de um banquete, como as flores de uma mesa de conferências, “lindas
palavras, palavras poéticas para abrir e fechar o discurso”, a poesia no meu
entendimento não é uma palavra de abertura e fechamento de discurso é uma
metodologia pedagógica, investigativa. Ao narrar eu trago minha experiência
articulada com a experiência do mundo, da vida, dos livros, das teorias, mas
eu não dou o ponto final, a narração como ela está impregnada, grávida da
experiência eu convido meus interlocutores a darem a sua palavra, a sua
contribuição, uma palavra pede sempre uma outra palavra. Uma palavra
puxa a outra. As narrações pedagógicas são tão mais férteis na medida em
que elas convidam para que o outro conte o seu outro conto. (Célia Linhares
entrevista com a pesquisadora, março, 2006).
Célia se contrapõe à idéia que pode ser associada a sua fala poética a um “falar
bonito” pura e simplesmente. Sua fala, reconheço, é entrelaçada com suas teorizações, com
os valores que cunhou ao longo de sua trajetória.
“Muita gente diz, ‘você é uma poeta, fala bonito’, eu odeio isso, eu não sou
uma poeta desconhecendo meu tempo, as teorias de meu tempo, pelo
contrário, eu tenho um diálogo intenso com tudo isso, o desafio da
experiência é ela se passar para um tipo de abstracionismo idealizado. (...)
Tomo a poesia como método de trabalho, em que as palavras ficam
suspensas, eu não dou a última palavra, e mesmo que eu não conte a minha
vida, minha vida es presente na maneira de eu respeitar o outro, de
407
compreender o significado da liberdade.” Célia Linhares entrevista com a
pesquisadora, março, 2006).
Quando Célia se reporta a sua infância, ela reconhece que a palavra era para ela uma
forma de encontrar um lugar em meio a numerosa família, buscando atenção de seus pais.
Primeiro com o pai, tão querido, cuja presença e proximidade eram sempre desejadas. Fazer
poemas e versinhos, escutar a prosa das visitas e, em havendo uma oportunidade, adentrar nas
conversas, ouvir as histórias de todos os que passavam pela sua vida, eram seus prazeres.
Menina de palavras, mulher de palavra. Com a perda de seu pai, a mãe surgia como esperança
de vida, com sua palavra que clamava a sobrevivência, que buscava, tenazmente, construir
com seus filhos o enfrentamento da perda. Pai-poesia, Mãe-prosa, referências
complementares na vida de Célia que, se é uma pensadora capaz de sonhar poeticamente,
enraíza seus sonhos no chão da escola e do mundo, prosaicamente. É Morin quem nos fala da
complementaridade entre prosa e poesia:
(...) Então, podemos compreender a complexidade humana através da
literatura, enquanto que a poesia nos ensina a qualidade poética da vida, essa
qualidade que nós sentimos diante de fatos da realidade. Como, por
exemplo, os espetáculos da natureza: o céu de Brasília que é tão bonito. É
essa poesia que nos dá força e nos ensina a qualidade poética da vida, porque
ela não é somente uma prosa que se deve fazer por obrigação. A vida é viver
poeticamente na paixão, no entusiasmo. Para que isso aconteça devemos
fazer convergir todas as disciplinas conhecidas para identidade e para a
condição humana, ressaltando a noção de homo sapiens; o homem racional e
fazedor de ferramentas, que é, ao mesmo tempo, louco e está entre o delírio e
o equilíbrio no mundo da paixão em que o amor é o cúmulo da loucura e da
sabedoria. O homem não se define somente pelo trabalho, mas pelo jogo.
Não as crianças gostam de jogar, os adultos também gostam e por isso
vemos partidas de futebol. Nós somos homo ludens pois não existe apenas o
homo economicus que vive em função do interesse econômico. Há,
também o homo mitologicus, isto é, vivemos em função de mitos e crenças.
Enfim, o homem prosaico e poético, como dizia Hölderling: “O homem
habita poeticamente na terra, mas também prosaicamente e se a prosa não
existisse, não poderíamos desfrutar da poesia”. (Morin, 2000)
Os acontecimentos de sua vida adulta, sua trajetória, escolha profissional foi firmando
as palavras como um continente de descobertas, de encontros com o outro, artesã de palavras
que era. Em meio a suas experiências, a perda de seu irmão Rui, levaram-na a usar da
ferramenta que tanto a nutria em sua vida, a criar vida a partir da perda e da morte, fazendo do
dizer uma forma permanente de manter as chamas da memória sempre acesas (1993, p.50).
408
(...) É preciso atentar para as ruínas, escondidas sob os monumentos que o
projeto capitalista foi produzindo, de forma a arrancar, das e nas catástrofes,
a reversão do sentido histórico por meio do “despertar dos mortos”, com os
seus sonhos de solidariedade e emancipação soterrados pela corrida do
progresso; e recompor essas imagens do passado, integrando-as,
conscientemente, no processo de construção de uma nova história, nova
autopercepção, nova modalidade de vida. (Célia Linhares, 1993, p. 50)
Célia é uma “catadora de palavras”. Faço aqui uma alusão ao livro “O catador de
pensamentos
185
”. Trata-se da história do senhor Rabuja, que percorre as ruas a procura de
pensamentos, para depois plantá-los e vê-los sair voando, colorindo o céu. Assim, os
pensamentos se renovam e nunca deixam de existir. Assim como o Sr. Rabuja, Célia vive uma
constante semeadura, impedindo que os silêncios deixem as histórias desconhecidas.
O papel que a memória ocupa em sua obra, também bastante nuclear, está ligado a
essa palavra que semeia e impede o esquecimento, mantêm cinzas quentes, chamas acesas,
que faz circular a experiência e convida à partilha. É via narração que mantemos essa
memória atualizada, defende Célia. Uma memória que não é retomada para ser guardada, mas
para promover movimento, alimentando esperanças, relativizando as interdições atuais e
permitindo que possamos aprender com o conhecimento do passado, com vistas a construir
um futuro e um presente. Uma memória que nos humaniza, pois faz com que reconheçamos
as identidades que mantemos com diversas lutas e trajetórias, fortalecendo as nossas próprias
lutas, as nossas próprias trajetórias. Célia a este respeito (re) afirma:
“Por isso penso uma educação como uma ponte por onde trafegam as cargas
do passado com seus tesouros e entulhos que vão sendo reapropriados
pelos trabalhos do presente, movidos por necessidades, sonhos e esperanças,
para reencaminhá-los ao futuro. É graças a este trabalho de afirmação dos
desejos que a história caminha, com suas contradições. (1999, página 33).
Nessa perspectiva, Célia assume uma visão de história não linear, em contrapelo à
oficial. Inquieta-se com o desconhecimento dos saberes daqueles que ficaram a margem, dos
185 De Antonio Boratynski e Monika Feth (ed. Brinque-Book, 2000).
409
“vencidos”, o enorme contingente de negros, indígenas, imigrantes, desaparecidos, Joãos e
Marias que constituíram nossa história, que investiram força de vida, com seus saberes, sua
cultura, no trabalho na terra, na política, no país. Ela compreende que é uma das tarefas da
escola dar voz a essa massa à sombra, conhecendo e re-conhecendo suas lutas, sua cultura,
seus fazeres e saberes. Para tanto, analisa em várias de suas obras a história da própria
educação e da hierarquização secular que a forjou, ampliando a reflexão não para a nossa
própria história brasileira, mas para a do mundo, cujo movimento tem, desde o século das
“luzes”, apagado tudo o que não é a “luz da razão”. Critica tal dimensão que coloca em lados
opostos da balança os saberes valorizados da racionalidade (e todos seus ditames) e os saberes
da vida, da intuição, do afetual. Célia, contrapondo-se a essa visão dicotomizante, lança um
olhar complexo, que reconhece o homem em suas múltiplas dimensões.
O afeto afetar, ser afetado é um elemento também fundamental em sua obra-vida.
Afeto que promove identificações, forjando, portanto, identidades. Afeto que implica o
reconhecimento do outro e da necessidade de importar-se com ele, solidarizando-se com sua
dor e sua alegria. Com paixão, que coloca Célia ao lado dos homens, todos os homens, como
uma cúmplice em suas lutas e seus sofrimentos.
Tal perspectiva está ligada a própria ética que baliza a vida de Célia Linhares, e que se
desdobra em sua forma de compreender a política e a educação. Como Morin (2007)
compreendemos a ética como a resistência à crueldade do mundo e à barbárie humana. Tal
resistência à barbárie humana, no sentido complexo da ética moriniana, reconhece que a
barbárie está dentro do homem. Sem dividir em pólos distintos, bem e mal, Morin afirma que
a crueldade é algo que tem feito parte de nossa história, expressa nos tantos atos de violência,
tais como os extermínios dos índios na América, a criação da escravidão, a utilização de
técnicas modernas como meio de aumentar desmesurada mente seus estragos, as guerras
étnicas e as guerras de religião. Resistir a esse lado humano, ligado à barbárie e a crueldade, é
o desafio da resistência ética. A ética para Morin, é, portanto, a resistência à barbárie que está
em nós, remetendo-nos a tolerância, a compaixão, a mansidão e a misericórdia (2007, p. 200).
É no exercício ético que podemos encontrar esperanças e novas possibilidades de convivência
fraterna e solidária:
Podemos resistir à crueldade do mundo e à crueldade humana pela
solidariedade, pelo amor, pela religação e por comiseração pelas infelizes
vítimas. O combate essencial da ética é a dupla resistência à crueldade do
mundo e à crueldade humana. “É impossível que o mal desapareça”, dizia
410
Sócrates em Teteto. Sim, mas é preciso tentar impedir o seu triunfo. (Morin,
2007, p.193)
Tal concepção moriniana de ética converge com a ética de Célia Linhares. Toda a sua
obra ressalta a necessidade de agirmos contra a barbárie, convocando a educação a constituir-
se como uma promotora da solidariedade, do sentimento de pertença nos estudantes, no
exercício da escuta e do diálogo, no acolhimento e no estabelecimento de relações pautadas
pelo amor e pelo afeto.
Sua visão de ética, deságua no sentido de esperança que defende em suas obras. Para
Célia Linhares, ter esperança e, conseqüentemente, constituir um pensamento utópico exige
engajamento, conhecimento, luta. “As decisões éticas não podem, em muitos casos, prescindir
de conhecimentos”, afirma a autora. (Célia Linhares, 1997, p.17). Para ela, a utopia não é o
sonho trivial, descolado de uma realidade, mas justo o contrário, é o sonho que reconhece que
a realidade tem muitas dimensões, e que historicamente, foram os movimentos inesperados e
considerados impossíveis, que construíram o possível. Para reconhecer na aparente fixidez da
realidade que está dada, as brechas para o surgimento de novos possíveis, é necessário
conhecer criticamente o tempo em que vivemos, desvendando as aparências e as idéias
absolutas e mantendo vigilância permanente. Nesse aspecto, reconhecemos em várias obras de
Célia sua crítica veemente a idéia difundida de que o capitalismo, por exemplo, e todo o modo
de funcionamento social e político que se sintoniza com ele, é algo que “não tem jeito”,
viveríamos “o fim da história”. Célia realça em muitos textos a necessidade de desvelarmos
esses discursos cegos, afirmando que é possível pensar uma nova possibilidade se
compreendemos que o movimento da história é permanente, nutrindo-nos dos exemplos do
passado, nas mudanças que ensejaram e no sentido que possuem de resistência às imposições.
Nessa perspectiva, Célia Linhares convida a tomarmos os “bons espelhos” dos
movimentos e lutas que se insurgiram contra as aparentes “realidades imutáveis”, como
emblemas da capacidade concreta de mudança que podemos perpetrar. Nesse sentido, ética,
esperança e utopia são dimensões interdependentes na obra de Célia Linhares. Morin (2007)
ajuda a alargar a compreensão dessa idéia de utopia como crítica às aparências de uma
realidade contra a qual não se poderia lutar, crítica que também Célia faz. O autor afirma que
a ética complexa é de esperança ligada à desesperança, conservando a esperança quando tudo
parece perdido. Ela não é prisioneira do realismo que ignora o trabalho subterrâneo, minando
o subsolo do presente, a fragilidade do imediato, a incerteza encoberta pela realidade
aparente, rejeita o realismo trivial que se adapta ao imediato, assim como o utopismo trivial
411
que ignora os limites da realidade (2007, p. 198). Para Morin, a ética complexa sabe que
um invisível no real. A esperança apega-se ao inesperado, ela não é certeza, dizer que se tem
esperança é afirmar que existem muitas razões para desesperar. A esperança do possível é
gerada sobre o impossível. (Morin, 2007, 198)
Assim, penso, é a ética de Célia Linhares. Aposta no possível ancorada no
conhecimento da realidade do mundo e do país, fruto de estudo e de visão crítica. Ética que
reconhece os movimentos que emergem na contramão das hegemonias (os movimentos
instituintes) e os valoriza, dando visibilidade a eles nos espaços de pesquisa e na universidade;
que se orienta por uma esperança permanente, que se forjou no reconhecimento e no
conhecimento, na própria carne, da potência destrutiva do homem, na injustiça, na crueldade.
Sua esperança não é ingênua, otimista, pueril. Ela é uma luta contra a morte, ela é a afirmação
da vida e do amor diante da força bruta e da capacidade que temos, todos nós, de nos
hostilizar, de fazer guerras. É uma ética-esperança que sonha outros mundos, que investe na
força do encontro, da solidariedade, da arte, da possibilidade e de tudo que surge daí.
É sua ética-esperança-utopia, que permite a que ela compreenda a possibilidade de
viver mais humanamente (Morin, 2007), assumindo as três dimensões da identidade humana:
a identidade individual, a identidade social e a identidade antropológica, dimensões que nos
permitem nos reconhecer nos laços da coletividade. Viver humanamente, é também viver
poeticamente a vida, numa ética que inclui razão e emoção, incertezas, inquietudes, como
nos diz Morin:
Viver poeticamente (...) acontece a partir de um certo patamar de
participação, na excitação, no prazer, estado que pode ser alcançado na
relação com o outro, na relação comunitária, na relação estética. É vivido
com alegria, embriaguez, comemoração, gozo, volúpia, delícia,
encantamento, fervor, fascinação, beatitude, deslumbramento, adoração,
comunhão, entusiasmo, exaltação, êxtase. Produz satisfação carnal e
espiritual. Leva-nos a alcançar o sagrado, um sentimento que aparece no
apogeu da ética e do poético. O máximo da poesia, o máximo na união da
sabedoria com a loucura, como o máximo da religação, é o amor. A ética
é o amor. Mas é um dever ético proteger a racionalidade no coração do
amor. Amor/racionalidade estão ligados um ao outro, é o amor que nos
ensina a resistir à crueldade do mundo, que nos coragem, permite que
vivamos na incerteza e na inquietude. É resposta para a morte, remédio para
angústia. (Morin, 2007, p.202)
Para despedir-nos, vale relembrar o sonho de escola de Célia Linhares: A escola
Balaia. Nele encarnam-se todas as dimensões que abordamos até aqui. É uma escola de
412
esperança, de compromisso ético, de invenção do possível (utopia), do afeto e do
conhecimento. Retomemos, portanto, aspectos nucleares dos princípios da Escola Balaia:
Princípio da emancipação pela autonomia dos sujeitos, que busca o fortalecimento dos
sujeitos, reconhecendo a necessidade de que a autonomia escolar se alimente da cultura
popular e da teórico-tecnológica, aproximando conhecimento da vida e, ao mesmo tempo,
dando acesso à classe popular aos conhecimentos socialmente organizados. Autonomia que se
estende para a escola que precisa ser participativa e vida, e para o indivíduo, que implica
em participação e fortalecimento dos vínculos da coletividade.
Princípio do atendimento da dignidade escolar, em que Célia chama atenção para as
violências em suas múltiplas formas que vão sendo fortalecidas no cotidiano social,
repudiando-as e conclamando para uma educação mais sensível, que contribua para um estilo
de produção mais humana.
Princípio da cidadania como aprendizagem escolar, em que afirma a importância de
reconhecer a educação como espaço de direito e de formação do cidadão. Entende por cidadão
aquele que se apropria de sua história, do valor de sua terra, que tem seus direitos vitais
garantidos educação, saúde, moradia, respeito. Concebe o conhecimento, o “saber com
sabor” é um direito do cidadão e uma necessidade na construção de indivíduos capazes de
intervir na sociedade de forma potente, plenos de seus saberes. Acredita também nas relações
entre escola e comunidade, como vias de fortalecimento de ambas as instâncias.
Fechar essa tese não foi tarefa das mais fáceis. Quase como se despedir de um amigo
querido que vai se ausentar. Foram anos convivendo com essas idéias, articulando-as com a
minha própria vida e as experiências que, paralelamente, vivi. Tudo me parecia relevante e
construir um texto em que era necessário fazer escolhas foi um desafio. Desafio instigante
pois me permitiu compreender que ainda que Célia tenha uma fértil capacidade de criar e um
pensamento inquieto que discorre e discorreu sobre tantos assuntos, nos muitos textos que li,
o coração de sua obra ficou claro para mim. Tudo o mais, todas as outras reflexões, idéias,
discussões, me parecem nascer dessa mesma fonte: amor, esperança, ética.
Uma Grande Mestra, que lança palavras a seus discípulos e pesca as que eles
proferem, que aposta na autonomia e na potência do outro, reconhecendo seus saberes e suas
diferenças. Uma Mestra que vive permanentemente a própria luta e esforço para cunhar
esperanças, para pensar com sabedoria. Uma sabedoria, que como nos diz Morin, implica na
auto-ética, evitando a baixeza, evitando ceder às pulsões vingativas e maldosas (2007, p. 202).
Para isso, ele nos diz, é preciso muita autocrítica e auto-exame. “A auto-ética é antes de tudo
413
uma ética da compreensão. Devemos compreender que os seres humanos são seres instáveis,
nos quais há possibilidades do melhor e do pior”. (Morin, 1998b, p. 61). Mestra do amor, que
se deixa contaminar pela verdade do outro, não impondo a sua própria, encontrando a sua
própria através da alteridade.
Que essa tese possa constituir-se em, pegando emprestado mais uma vez expressão tão
cara à Célia Linhares, “um bom espelho”, em que possamos, por meio do conhecimento e
compreensão da trajetória de uma Mestra em seus tempos, repensarmos a nossa própria
trajetória, os nossos próprios tempos e concepções sobre educação.
414
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABICAIL, Carlos Augusto (org.). Retrato da Escola no Brasil da CNTE, Brasília, 2004.
ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. "Por entre as trilhas e os temas da Filosofia
da educação entre as décadas de 40 e 90". In: ARAÚJO, Ronaldo M de L. (org.) Pesquisa e
educação no Pará. Belém, EDUFPA, 2003.
ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Bachelard and philosophy. Trans./Form./Ação , Marília, v.
26, n. 2, 2003 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php/. Acesso em: 19 Jan. 2008.
ALVES, Marcos Alexandre ; VANZETO, J. J. . A pessoa e a educação em Emmanuel
Mounier. In: V Simpósio Sul-brasileiro sobre o ensino de filosofia, 2005, Santa Maria/RS. V
Simpósio Sul-brasileiro sobre o ensino de filosofia VII encontro de cursos de filosofia do sul
do Brasil - Filosofia e Ensino: Filosofia na Escola [Cd-rom]. Santa Maria : UNIFRA, 2005.
ANDO, MARTA YUMI. Do texto ao leitor, do leitor ao texto. Um estudo sobre Angélica e O
Abraço de Lygia Bojunga Nunes. Trabalho de Dissertação de Mestrado em Letras,
apresentada à Universidade Estadual de Maringá, 2006.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. São Paulo: Moderna, 1989.
ARENDT, Hannah. O que é política? Bertrand Brasil: 1989.
ARROYO, Miguel. Ofício de Mestre. Petrópolis: Vozes, 2000.
AQUINO, Rubim Santos Leão de, et al. História das sociedades: das sociedades modernas as
sociedades atuais. 18.ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, (1989).
AZANHA, J.M.P. Educação: temas polêmicos. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
BACHELARD, G., A Água e os Sonhos, Martins Fontes, São Paulo, 1989.
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque dos anos 70, lembranças e curiosidades de uma década
muito doida. RJ: Ediouro, 2006.
BARATTA, Giorgio. As rosas e os cadernos, o pensamento dialógico de Antônio Gramsci.
Rio de Janeiro: DO&A, 2004.
BELTRÁN, Francisco. John Dewey, a educação intencional. In CARBONELL, Jaune (orgs.).
Pedagogias do século XX. Porto Alegre: Artmed, 2003.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v.1)
BERGSON, Henri. Matière et mémoire. Paris: PUF, 1959.
BIANCHETTI, Lucídio; FAVERO, Osmar. História e histórias da pós-graduação em
educação no Brasil. Rev. Bras. Educ. , Rio de Janeiro, n. 30, 2005 .
BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras,
2003.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória, ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.
415
BRAGA, José Luiz. O Pasquim e os anos 70: mais prá epa que pra oba. Brasília:
Universidade de Brasília, 1991.
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - -
Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007
BRASIL, MEC, CFE (1965). “Definição dos cursos de pós-graduação”. Documenta, n. 44,
pp. 67-68, (Parecer nº. 977/65, aprovado em 3-12-65.
BUENO, CATANI E SOUSA (orgs.). A vida e o ofício dos professores: formação contínua,
autobiografia e pesquisa em colaboração. São Paulo: Escrituras, 2003.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Atena, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix-Pensamento, 2005.
CAMPOS, Judas Tadeu de. As políticas de formação dos professores paulistas antes, durante
e depois da pedagogia tecnicista. Revista E-Curriculum, São Paulo, v. 1, n. 1, dez. jul.
2005-2006. Disponível em: http://www.pucsp.br/ecurriculum, acesso em: 21/11/2007.
CANCLINI, Nestor Garcia. A socialização da Arte - Teoria e prática na América Latina. São
Paulo: Cultrix, 1980.
CARDIN, F e SICSÚ, João. É Hora de o Brasil Rever Opções de Política. Jornal O Valor. Em
7 de maio de 2004.
http://www.ie.ufrj.br/moeda/pdfs/e_hora_de_o_brasil_rever_opcoes_de_politica_economica.p
df acesso em 17/01/2008.
CATANI, Denice Barbara (et all). História, memória e autobiografia na pesquisa
educacional e na formação in CATANI, Denice Bárbara et all (orgs) Docência, memória e
gênero – estudos sobre formação. São Paulo: ESCRITURAS, 2003.
CALLIGARIS, Contardo. Vidas bem vividas. Artigo da Folha de São Paulo, 31 de maio de
2007.
CAMPOS, Judas Tadeu de. As políticas de formação dos professores paulistas antes, durante
e depois da pedagogia tecnicista. Revista E-Curriculum, São Paulo, v. 1, n. 1, dez. – jul. 2005-
2006. Disponível em: http://www.pucsp.br/ecurriculum, acesso em: 15/01/2008.
CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. 1.ed. Porto, Brasília, 1967.
CASTRO, Josué de. A geografia da fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002 [1946].
DE Souza, Eros. Comportamento humano numa vila global: uma perspectiva pós-moderna
(construtiva) sobre psicologia comunitária do terceiro mundo. Psicologia Reflexão e Crítica,
ano/ vol. 11, número 001. Porto Alegre: Revista da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 1998.
CÍCERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996.
CENAFOR. Reinventando a prática do orientador educacional e do supervisor escolar: a
prática em questão. São Paulo, CENAFOR, 1983.
CHARDIN, Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 2006.
CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa
questão. Sociologias, Porto Alegre, Ano 4, nº. 8, jul./dez. 2002, p. 432-443.
416
CHEVALIER, J. & Gheerbrant, A. Dicionário de Símbolos- mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1999.
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
CUNHA. Maria Isabel da. O bom professor e sua prática. Campinas: Papirus, 1989.
CUNHA, Maria Isabel da. Conta-me agora! As narrativas como alternativas pedagógicas na
pesquisa e no ensino. Revista Faculdade de Educação vol. 23 1-2. São Paulo: Jan/
dezembro de 1997.
Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa.
Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1982.
D'Araujo, Maria Celina. AI-5, o mais duro golpe do regime militar. Disponível em
http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/htm/dhbb_faq.htm. (acesso em 26/09/2007)
DIB, Marco Antônio. O Plano Nacional da Educação (proposta da sociedade): um estudo
mitocrítico. In TEIXEIRA, Maria Cecília S e PORTO, Maria do Rosário S (orgs) Imagens
da Cultura: um outro olhar. São Paulo, CICE/FEUSP,1999.
DURAND, Gilbert. O Imaginário, Ensaio a cerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio
de Janeiro: DIFEL, 1998.
DURHAN, Eunice. A caminho da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São
Paulo: Perspectiva, 1973.EISNER, Elliot W. Perspectivas: revista trimestral de educación
comparada. Paris. UNESCO: Oficina Internacional de Educación),vol. XXX, n° 3, septiembre
2000, págs. 423-432
ELIAS, Norbert. O processo civilizador v. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1995.
ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1995.
FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque; BRITTO, Jader de Medeiros (ORGS.)
Dicionário de educadores no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ MEC-Inep-Compend,
2002.
FAVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Durmeval Trigueiro Mendes e sua contribuição
à pós-graduação em educação. Rev. Bras. Educ., Sept./Dec. 2005, no.30, p.36-46. ISSN 1413-
2478.
FÁVERO, Osmar. Dumerval Bartolomeu Trigueiro Mendes. In FÁVERO, Maria de Lourdes
de Albuquerque; BRITTO, Jader de Medeiros (ORGS.) Dicionário de educadores no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ MEC-Inep-Compend, 2002.
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1977.
FERNANDES, Renata Sieiros. Memórias de Menina. Cad. Cedes vol. 22 56 Abril
Campinas, SP: Abril 2002.
FRANCISCO FILHO, Geraldo. A educação brasileira no contexto histórico. Campinas, SP:
Alínea, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. RJ: Paz & Terra, 1992.
FREITAG, Bárbara. Escola, estado e sociedade. 6. ed. São Paulo: Moraes, 1986.
417
FREITAS, Helena Costa Lopes de. A reforma do Ensino Superior no campo da formação dos
profissionais da educação básica: As políticas educacionais e o movimento dos educadores.
Educação & Sociedade, ano XX, nº. 68, Dezembro/99.
GADOTTI, Moacir. Pensamento pedagógico Brasileiro: São Paulo, Ed. Ática, 1988.
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Práxis: São Paulo: Cortez Editora, 1995.
GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Editora Ática, 1997
GADOTTI, Moacir. Desafios para a era do conhecimento. In Coleção memória da pedagogia
n°6, educação no século XXI: perspectivas e tendências. Rio de Janeiro: Relume, 2006.
GARCIA, Carlos Marcelo. Profissionalização e formação de professores: algumas notas sobre
a sua história, ideologia e potencial. In NÒVOA, Antonio. Os professores e sua formação.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997.
GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Cia. da Letras, 2002.
GENTILI, Pablo (2002). “Três teses sobre relação trabalho e educação em tempos
neoliberais”. In LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Demerval & SANFELICE, José
Luís (orgs.). Capitalismo, trabalho e educação. Campinas, Autores Associados, 2002.
GERALDI, Corinta Maria Grisolla; FIORENTINI, Dario; PEREIRA, Elisabete de A.
(ORGAS.): Cartografias do trabalho docente: professor pesquisador São Paulo: Mercado das
letras, 1998.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GERMANO, José Willington. As quarenta horas de Angicos. Educação e Sociedade, Aug.
1997, vol.18, no.59, p.391-395. ISSN 0101-7330.
GOULD, Stephan Jay. A falsa medida do homem. SP: Martins Fontes, 1999.
GUEDES, Adrianne Ogêda e BARREIROS, Tereza Cristina. Cartas sobre leitura e escrita na
pré-escola ou a formação de narradores: uma paixão nas entrelinhas. In Kramer, Sonia et all
(orgs.)Infância e educação Infantil (Campinas, SP: Papirus, 1999.
GUEDES, Adrianne Ogêda. O professor reflexivo: definindo o papel do educador na
atualidade. Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de pós-
graduação em formação de docentes universitários. Unirio/RJ/2000.
GUEDES, Adrianne Ogêda. “Edgar Morin: pela reforma do ensino e do pensamento”
Cadernos de ensaios e pesquisa da UFF- Niterói/RJ/ 2001.
GUEDES, Adrianne Ogêda. "Cultura e ideário pedagógico do curso de pedagogia UFF/
Niterói". Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre à
Universidade Federal Fluminense. Niterói, UFF, 2002.
GUEDES, Adrianne O. e HOFFMANH, Adriana. Revista. “”Formação de professores leitores
em um projeto de extensão universitária no curso de Pedagogia: um relato de experiência.
Educere et Educare vol. 2 N. 3 jan./jun. 2007.
GUEDES, Adrianne O. Memoriais nos processos de formação. Texto de Apoio do
ProInfantil. MEC, 2007 (no prelo).
GOODSON, Ivor. F. Currículo: teoria e história. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
HEIDEGGER, Martin. "Conferências e escritos filosóficos". Coleção Os Pensadores, São
Paulo, Nova Cultural, 1989.
418
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. RJ: Nova Fronteira, 1964.
KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
KUPERMAN, Esther. Da Cruz à Estrela: A Trajetória da Ação Popular Marxista-Leninista.
Revista Espaço Acadêmico – Ano III – nº 25 – Junho de 2003 – Mensal – ISSN 1519.6186
LANDINI, Tatiana Savoia . A sociologia processual de Norbert Elias. In: IX Simpósio
Internacional Processo Civilizador - Tecnologia e Civilização, 2005, Ponta Grossa - Paraná.
Anais do IX Simpósio Internacional Processo Civilizador, 2005.
LINHARES, Célia. O poder das expectativas e o self. In Revista da Faculdade de Educação.
Vol. 3, julho de 1972. Niterói: EdUFF, 1972.
LINHARES, Célia. Introdução à ontologia da criatividade, ensaio de filosofia educacional sob
a metodologia fenomenológica. Tese de livre docência. Universidade Federal Fluminense,
1974.
LINHARES, Célia. Ambigüidade, androgenia e crise. Rio de Janeiro: Publicação da AUSU
para o I Encontro Regional, 1974.
LINHARES, Célia Soares Frazão. O Mestrado em Educação na Universidade Federal
Fluminense – Uma experiência brasileira de Pós-graduação. In: Revista da Faculdade de
Educação – UFF, Niterói, 1978.
LINHARES, Célia. Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina. In:
Revista del Instituto de Investigaciones Educativas. Ano 7, nº. 33, Buenos Aires, 1981.
LINHARES, Célia Soares Frazão. A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/
Falklands. In: Revista da Faculdade de Educação – UFF, Niterói, 1982.
LINHARES, Célia. La Identidad Cultural y el processo de Educacion em La América Latina.
Tesis de doctorado. Univeridad Nacional de Buenos Aires, Facultad de Filosofía y Letras,
1983.
LINHARES, Célia Soares Frazão. A educação e suas relações com as Identidades Culturais
na América Latina. In: Revista da Faculdade de Educação – UFF, Ano 10, Niterói, 1983.
LINHARES, Célia Frazão. A Interdisciplinaridade na Psicopedagogia. Revista da Faculdade
de Educação da Universidade Federal Fluminense EDUFF. Volume 13, número 1,
Janeiro/Junho 1986, Niterói.
LINHARES, Célia Frazão Soares. Os protagonistas da Pedagogia Escolar: Suas
convergências e divergências. Revista Educação & Sociedade, número 26. Editora Cortez,
Abril / 1987, São Paulo.
LINHARES, Célia. A escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio de Janeiro:
Agir, 1997(impressão) – a apresentação data 1986, o final do livro 1988.
LINHARES, Célia (tradução). Dibs, em busca de si mesmo de Virginia Axline. Rio de
Janeiro: Agir, 1989.
LINHARES, Célia e Villela, Heloisa de Oliveira. . Autonomia pedagógica e material didático.
In Revista Tecnologia Educacional, v.19, jul./agosto de 1991. Rio de Janeiro: SENAI, 1991.
LINHARES, Célia. Tecnologias inteligentes x juventude desempregada: desafios da história.
In Revista Tecnologia Educacional. V.23, n° 126, set/ou 1995. Rio de Janeiro: SENAI, 1995.
419
LINHARES, Célia e Leite Garcia, Regina (orgs.) Dilemas de um final de século: o que
pensam os intelectuais. São Paulo: Cortez, 1996.
LINHARES, Célia. O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: A presença de Paulo Freire.
Cadernos do CES 1 da Universidade Federal Fluminense (Centro de Estudos Sociais). Niterói,
EDUFF, 1997.
LINHARES, Célia. A escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio de Janeiro:
Agir, 1997.
LINHARES, Célia. Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na
escola pública. In Alves da Silva Jr., Celestino e Rangel, May (orgs.) Nove Olhares sobre a
supervisão. Campinhas, SP: Papirus, 1997.
LINHARES, Célia. A escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio de Janeiro:
Agir, 1997.
LINHARES, Célia. Terremotos na pedagogia: perspectivas da formação de professores. In
Carneiro da Silva, Waldeck. Formação dos profissionais da educação: o novo contexto legal e
os labirintos do real. Niterói: EdUFF, 1998.
LINHARES, Célia. Escola Balaia, um convite ao debate para a reinvenção de Caxias.
Caxias/Maranhão: Caburé editora, 1999.
LINHARES, Célia. Narrações compartilhadas na formação dos profissionais da educação in
Mont’Alverne Chaves e Carneiro da Silva (orgs.) Formação de professor: narrando,
refletindo, intervindo. Rio de Janeiro: Quartet: Niterói: Intertexto, 1999.
LINHARES, Célia (org.). Políticas do conhecimento: velhos contos, novas contas. Niterói:
Intertexto, 1999.
LINHARES, Célia. Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos. In: Kikiriki, 51,
diciembre, 1998 / enero – febrero 1999, p. 27-31.
LINHARES, Célia e Nunes, Clarice. Trajetórias de Magistério: memórias e lutas pela
reinvenção da escola pública. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.
LINHARES, Célia. Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento?
Memórias e Projetos do Magistério no Brasil. In LINHARES, Célia; FAZENDA, Ivani e
TRINDADE, Vitor (orgs.). Os lugares dos sujeitos na pesquisa educacional. Campo Grande,
MS: Ed. UFMS, 2001.
LINHARES, Célia (org.). Os professores e a reinvenção da escola: Brasil e Espanha. São
Paulo: Cortez, 2001.
LINHARES, Célia. De uma cultura de paz e justiça social: movimentos instituintes em
escolas públicas como processos de formação docente. In LINHARES, Célia e Leal, Maria
Cristina (orgs.). Formação de professores: uma crítica à razão e à política hegemônicas. Rio
de Janeiro: DP&A, 2002.
LINHARES, Célia. Amacord: relendo uma entrevista de Paschoal Lemme. In LEAL, Maria
Cristina; LIMA, Marília Araújo (orgs.). História e Memória da Escola Nova. Edições Loyola:
São Paulo, 2003.
LINHARES, Célia. Órfãos de guerra? A educação nos labiritnos de tempos e espaços
contemporâneos. In Viella, Maria dos Anjos (org.). Tempos e espaços de formação. Chapecó,
SC: Argos, 2003.
420
LINHARES, Célia (org.) Palavras de Mestres, muito além de Caleidoscópios para professores
e professoras. Rio de Janeiro: Dougraf, 2003.
LINHARES, Célia. Liberdade: uma busca nossa de cada dia. In Linhares, Célia e Trindade,
Nazaret (orgs.). in Compartilhando o mundo com Paulo Freire. São Paulo: Cortez: Instituto
Paulo Freire: 2003.
LINHARES, Célia. Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo Freire.
In Linhares, Célia e Trindade, Nazaret (orgs.). in Compartilhando o mundo com Paulo Freire.
São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire: 2003.
LINHARES, Célia. Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem? In
Linhares, Célia (org.). Formação continuada de professores: comunidade científica e poética.
Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
LINHARES, Célia Frazão Soares . Memórias de Resistência: 30 anos sem Rui Frazão Soares.
Espaço Acadêmico, Universidade de Maringá, 2004.
LINHARES, Célia e Heckert, Ana Lúcia. Movimentos instituintes na educação pública. In
Revista Presença Pedagógica, v.11, n.66, nov./dez.2005. Belo Horizonte:MG: editora
Dimensão, 2005.
LINHARES, Célia. As coisas findas, elas ficarão? Rio de Janeiro, mimeo, 2007.
LINHARES, Célia. Resumo da dissertação de mestrado. Mimeo, 2008.
LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da sagrada missão pedagógica. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2003.
Lüdke, Menga e Cruz, Giseli Barreto da. Aproximando universidade e escola de educação
básica pela pesquisa. Cad. Pesqui., Maio 2005, vol.35, no.125, p.81-109. ISSN 0100-1574.
MACHADO, Otávio Luiz. Rui Frazão Soares: a militância na EEP in ZAIDAM FILHO,
Michel e MACHADO, Otávio Luiz. Movimento estudantil brasileiro e a educação superior.
Recife: Editora Universitária, UFPE, 2007.
MAFFESOLI, M. o Conhecimento Comum. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MATOS, Olgária C.F. A escola de Frankfurt, luzes e sombras do iluminismo. São Paulo:
Moderna, 1993.
MATURANA, H. E VARELA, F. A árvore do conhecimento. São Paulo: Editora Palas
Athena, 2001.
MAZZA, Débora. Florestan Fernandes in FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque;
BRITTO, Jader de Medeiros (Orgs.) Dicionário de educadores no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ/ MEC-Inep-Compend, 2002.
MENDES, Dumerval Trigueiro. Desenvolvimento, tecnocracia e Universidade. In Revista de
Cultura Vozes. Nº. 6, ano 69. Petrópolis, 1975.
MEZAN, Renato. Psicanálise e pós-graduação: notas, exemplos, reflexões. In: Estados gerais
da psicanálise. 1999. (artigo aguardando amplo debate para ser incluído na Revista de
Psicanálise da PUC de São Paulo). Disponível
em:<http://www.geocites.com/HotSprings/Villa/3170/RenatoMezan.htm>. Acesso em 20 de
dezembro de 2007.
MONT’ALVEGNE CHAVES. Paradigma e complexidade: questões relevantes para a
Educação. Palestra proferida durante a abertura do I ERDIPE- Encontro Regional de Didática
421
e Prática de Ensino, realizado na Universidade Estadual Vale do Acaraú- UVA, Sobral- Ce,
em abril de 1999.
MONT’ALVERNE CHAVES, I. & SILVA, W. ( orgs). Formação de professor: narrando,
refletindo, intervindo. Rio de Janeiro, Quartet/ Intertexto, 1999.
MONT’ALVERNE CHAVES, Iduina Vestida de Azul e Branco como manda a tradição:
Cultura e Ritualização na escola. Rio de Janeiro, Editoras Intertexto e Quartet, 2000.
MONT’ALVERNE CHAVES, Iduina. A pesquisa Narrativa: uma forma de evocar imagens
da vida de professores. In: Imagens da Cultura: um outro olhar. São Paulo,
CICE/FEUSP,1999.
MONT’ALVERNE CHAVES, Iduina. Paradigma e complexidade: questões relevantes para a
Educação. In: Formação de Professores: a busca(re)encantamento pela educação. Mimeo,
1998.
MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
MORAES, Denis de. A Esquerda e o Golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
MORIN, E. O enigma do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
MORIN, E. Ciência com Consciência. Trad. De Maria Gabriela B Bragança. Portugal,
Publicações Europa-América, Ltda. , 1982.
MORIN, E. O Método 4 – as idéias. Porto Alegre: Editora Sulina, 1998a.
MORIN, E. Amor, poesia e sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b.
MORIN, E. A inteligência da complexidade. São Paulo: Edição Peirópolis, 1999.
MORIN, E. & LE MOIGNE, Jean- Louis. A inteligência da Consciência. São Paulo:
Peirópolis, 2000.
MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2000.
MORIN, E.; participação de Marcos Terena. Saberes globais e Saberes locais, o olhar
transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.
MORIN, E. Os sete saberes necessários a educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília,
DF: UNESCO, 2000.
MORIN, Edgar. O método 6, ética. Porto Alegre: Sulina, 2007.
NEVES, Josélia. Reflexões sobre a Ciência do Imaginário e as contribuições de Durand: um
olhar iniciante. In Labirinto, Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário da
Universidade Federal de Rondônia, 2000.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra (AFZ). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
NOVAES, Adauto. Os anos 70, ainda sob a tempestade. RJ: Senac-Rio, 2005.
NÓVOA, António (organização). Vida de professores. Portugal, Porto Editora, 1995.
NÓVOA, António (organização). Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1997.
OHLFELDT, Antônio. A fermentação cultural da década brasileira de 60. Revista FAMECOS
– PUCRS. Porto Alegre, nº11, dezembro 1999.
422
OSÓRIO, L. C. Agressividade e violência: o normal e o patológico. Em J. V. T. dos Santos
(Org.), Violência em tempo de globalização (pp. 522-542). São Paulo: Hucitec, 1999.
PELEGRINI, Ana Cláudia Salvato. Rubens Gerchman in A arte do século XX visitando o
MAC na WEB - http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo4/g4/gerchman/ - acesso
em 31/01/2008.
PERISSÉ, Gabriel. Professor do futuro. (verificar de onde é este livro, na verdade peguei num
site esse texto mas seria melhor citar fonte de livro?)
PILAGALLO, Oscar. A História do Brasil no Século 20: 1980-2000. São Paulo: Publifolha,
2006.
PILETTI, N. ; PRAXEDES, W. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia. 1. ed. São
Paulo: Ática, 1997. v. 1. 472 p.
PINO, Ivani. In SUGIMOTO, Luís. Educação e Sociedade chega ao nº. 100. Jornal da
Universidade Estadual de Campinas – 26 de novembro a 2 de dezembro de 2007
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio (tradução de Dora Rocha Flaksman).
Revista Estudos Históricos, Vol.2, n° 3, Rio de Janeiro: 1989.
POUZADOX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
QUIXADÁ VIANA, Cleide Maria Quevedo e VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Orientação
acadêmica: uma relação de solidão ou de solidariedade? Texto publicado na integra no cd-rom
da 30º Reunião Anual da Anped, 2007.
RAMIREZ, F ; OLIVEIRA, Paulo Roberto de ; TOJAL, João Batista Andreotti Gomes . O
entre-dois do processo monográfico nos cursos de pós-graduação em Educação Física: um
estudo a partir do lato-sensu. Conexões, Campinas, v. 2, n. 2, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante, cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. III, São Paulo: Paulus,
1991.
RIDENTI, Marcelo. 30 anos de AI-5, não vamos esquecer. Fundação Perseu Abramo, 1998.
disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article acessado em 20 de
setembro de 2007.
RODRIGUES, Marly. A década de 80, Brasil: quando a multidão voltou às praças. São Paulo:
editora Àtica, 1992.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930/1973).
Petrópolis,RJ: Vozes, 1999.
RONCA, ANTONIO CARLOS CARUSO; COSTA, ROGÉRIO DA. A construção de uma
democracia cognitiva. São Paulo Perspec. , São Paulo, v. 16, n. 4, 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 28 Nov 2007.
Rosetto, Marcia Os Novos Materiais Bibliográficos e a Gestão da Informação: livro eletrônico
e biblioteca eletrônica na América Latina e Caribe. Ciência da Informação, 1997, vol.26, n. 1,
ISSN 0100-1965.
ROSTOLDO, Jadir Peçanha. Expressões culturais e sociedade: o caso do Brasil nos anos
1980. HAOL, Núm. 10 (Primavera, 2006), 37-46.
423
RUI, Mannuel. Poemas em Novembro. Luanda: Ed. Lavra e Oficina, 1976.
SAMPAIO, Laura Fraga de Almeida. A temática Saber/ Poder em Michel Foucault. Cadernos
de Filosofia do Instituto Sedes Sapientiae. Ano I. nº 1, 1994.
SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações. 2. ed. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, 1991.
SAVIANI, Demerval. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores
Associados, 2007.
SCHON, Donald. A formação de professores: novas perspectivas baseadas na investigação
sobre o pensamento do professor. In NÓVOA, Antonio (org.) Os professores e sua formação.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997.
SEMINÉRIO, Franco Lo Presti. "In me-moriam (Lourenço Filho)." Revista arquivos
brasileiros de psicologia aplicada, FGV, vol. 23, n. 3, set. 1970, p. 5-8.
SEVERINO, A. J.
Sob as asas do desejo
In: O alcance politico-educacional do atual discurso
filosófico no Brasil. São Paulo; FEUSP, 1992.
SEVERINO, Antônio Joaquim. A filosofia contemporânea no Brasil, conhecimento, política e
educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
SILVA, Vivian Batista da and CORREIA, António Carlos da Luz. Saberes em viagem nos
manuais pedagógicos (Portugal - Brasil). Cad. Pesqui., Sept./Dec. 2004, vol.34, no.123,
p.613-632. ISSN 0100-1574.
SILVA, Waldeck Carneiro da (org.). Formação dos profissionais da educação, o novo
contexto legal e os labirintos do real. Niterói: EdUFF, 1998.
SOARES, M. B. Linguagem e Escola: Uma Perspectiva Social. SÃO PAULO: ATICA, 1986.
SOFOCLES (tradução de SCHÜLER, Donaldo). ANTIGONA. Porto Alegre: L&PM, 1999
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Educação no Brasil. São Paulo: Nacional, 1976.
TEIXEIRA, M. Cecília S. Imaginário e cultura: A organização do real. Conferência proferida
no I Encontro sobre Imaginário, Cultura e Educação, promovido pelo CICE/FEUSP, de 13 a
15/04/98.
TEIXEIRA, M.Cecíla S. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
TEIXEIRA, M. Cecília S. Discurso pedagógico, mito e ideologia: o imaginário de Paulo
Freire e Anísio Teixeira.Rio de Janeiro: QUARTET, 2000.
TIGRE, Maria das Graças do Espírito Santo. Violência na escola: análise da influencia das
mudanças socioculturais. In: 26ª Reunião Anual da ANPED, 2003, Caxambu.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
VELASCO, Suzana A vida urbana brasileira em tintas pop. Jornal do Brasil, 30 de janeiro de
2008.
VIANA, C.M.Q.Q.L.; VEIGA, I. P. A. Orientação acadêmica: uma relação de solidão ou
solidariedade? In: 30ª Reunião Anual da ANPED, 2007, Caxambu.
VICTOR, Adriana e LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2007.
VIERNE, Simone. Mitocrítica e Mitanálise. In Revue Íris, n°13, 1993, p.43-56. Centre de
Recherche sur L’ Imaginaire da Universidade Stendhal de Grenoble, França, 1993.
424
VOLTARELLI, Júlio. In Editoria da Revista do Hospital das Clínicas e da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto- Universidade de São Paulo, nº. 31: 333-334: 1988.
WARSCHAUER, Cecília. A roda e o registro, uma parceria entre professor, alunos e
conhecimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
____________________ . Rodas em rede, oportunidades formativas na escola e fora dela. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2001
WECHSLER, Solange Muglia. Avaliação multidimensional da criatividade: uma realidade
necessária. Psicol. esc. educ., 1998, vol.2, no.2, p.89-99. ISSN 1413-8557.
WOODS, Peter. Tradução de Maria Isabel Real Fernandes de Sá e Maria João Alvarez
Martins. Investigar a arte de ensinar. Porto/Portugal: Porto Editora, 1999.
WISNIK, José Miguel. O minuto e o milênio ou uma década de cada vez IN: Anos 70:
Música Popular. Rio de Janeiro, Ed. Europa, 1979.
ZEICHNER, Ken. O pensamento prático do professor – A formação do professor como
profissional reflexivo. In NÓVOA, Antonio (org.) Os professores e sua formação. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1997.
Sites consultados:
http://www.anped.org.br/- vários acessos ao longo de 2005, 2006 e 2007.
http://www.capes.gov.br/sobre/historia.html - acesso em 10/10/ 2007.
http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/htm/dhbb_faq.htm - acesso 21/09/07.
http://www.fetecsp.org.br/A%20hist_ria%20dos%20banc_rios.doc – acesso 21/09/07.
http://www.fundaj.gov.br/docs/pe/pe0058.html - acesso em 10/ 09/2007.
http://www.jmachado.com/ - vários acessos em 2007.
http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo4/g4/gerchman/index.html
http://www.niemeyer.org.br – acesso em 20/12/2007.
http://www.onu-brasil.org.br/conheca_onu.php. acesso em 14/ 11/2007.
http://www.pt.org.br – Jornal Eletrônico "Linha Aberta" - acesso em 2/10/2007.
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/sa/default.asp - acesso em 20/10/2007.
http://www.tvebrasil.com.br/noticias/040813_getulio_vargas.asp - acesso 21/09/07.
425
426
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo