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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
LEANDRO DE PROENÇA LOPES
ESPIRITUALIDADE E PEDAGOGIA DO DESEJO:
UM DIÁLOGO ENTRE PAULO FREIRE E RENÉ GIRARD
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
L881e Lopes, Leandro de Proença
Espiritualidade e pedagogia do desejo : um diálogo entre
Paulo Freire e René Girard / Leandro de Proença Lopes. o
Bernardo do Campo, 2008.
113fl.
Bibliografia
Dissertação (Mestrado) Universidade Metodista de São
Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de
Pós-Graduação em Ciências da Religião.
Orientação de : Jung Mo Sung
1. Espiritualidade 2. Freire, Paulo, 1921-1997 Crítica e
interpretação 3. Girard, René 4. Educação (Desejo) I. Jung
Mo Sung II. Título.
CDD 268.4
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LEANDRO DE PROENÇA LOPES
ESPIRITUALIDADE E PEDAGOGIA DO DESEJO:
UM DIÁLOGO ENTRE PAULO FREIRE E RENÉ GIRARD
Dissertação apresentada em cumprimento
às exigências do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião para
obtenção do grau de Mestre.
Área de Concentração: Práxis Religiosa e
Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Jung Mo Sung.
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2008
Dedico este trabalho
Aos meus pais
Antônio Sérgio e Rosa Maria,
que me ensinaram os primeiros passos.
Essa realização é, em grande parte,
fruto dos seus esforços e dedicação.
Ao Carlos (em memória) e à Iolanda,
responsáveis por uma família tão bonita,
que me acolheu com muito amor e carinho.
À Paula,
Amor da vida,
e à Gabriela,
presentes de Deus,
que dão encanto e alegria à minha vida!
Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Dr. Jung Mo Sung, a quem eu dei bastante trabalho...
mais que um orientador, sempre presente e solícito,
compartilhando sua convicção de colocar o labor acadêmico
em favor de um mundo mais humano;
Aos funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
UMESP, em especial à Damares,
o Prof. Dr. Geoval, Prof. Dr. Ronaldo, Prof. Dr. James, Prof. Dr. Rui, cujas aulas foram
muito importantes para minha formação;
À Paula e à Gabi,
Por sua compreensão e apoio nesses tempos de labuta...
A toda a minha família,
Ao
Sérgio, Rosa, Jeff e Binho
Aos amigos Ricardo, Renato e Ruthe,
companheiros desde os tempos de graduação
A todos os amigos queridos,
que de muitas maneiras me ajudaram a realizar este trabalho
Ao Paulo, tio e mestre,
que fez a revisão desse texto
À Natália,
que me auxiliou nas traduções
À Capes, ao IEPG e á fundação Mary Speers,
que, em momentos diferentes, me ajudaram com bolsa de estudos.
À Igreja Presbiteriana Independente do Brasil,
que me acolhe na vivência da minha fé
Ao Deus-conosco,
Seu amor é fonte de motivação e sentido de vida!
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos
do mundo. E disse-lhe o Diabo: Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi
entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe: Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu
Deus e só a Ele servirás. (Lc 4.5-8)
[...]
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
Exercer a profissão
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
[...]
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
[...]
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
Loucura! gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
Mentira! disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
[...]
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Vinícius de Moraes
LOPES, Leandro de Proença. Espiritualidade e Pedagogia do Desejo: um diálogo
entre Paulo Freire e René Girard. 2008. Orientador: Jung Mo Sung
Resumo
A exploração e a manipulação do desejo são algumas das principais marcas da
cultura de consumo. Nas sociedades em que predomina essa cultura, o consumo
aparece como critério de humanização, e o sentido da vida o núcleo ético-mítico
em torno do qual a sociedade se organiza é a busca de acumulação de riqueza
para se consumir cada vez mais. Alguns estudos têm demonstrado os aspectos
sagrados dessa cultura, que se tornou uma verdadeira religião da vida cotidiana,
com suas devoções, espiritualidades, mitos e ritos. Da mesma forma, alguns
estudos vêm demonstrando como essa cultura determina os projetos
pedagógicos. Esses estudos não são acidentais, pois religião e educação são
elementos fundamentais na origem e na manutenção de qualquer cultura e
sociedade humanas. Todavia, podem ser também elementos de transformação.
Paulo Freire acena com o interesse pela criação de uma Pedagogia do Desejo,
compreendendo que este tema é de fundamental importância na luta pela
superação da exclusão social, o que infelizmente não teve tempo de formulá-la. A
obra de René Girard reforça a tese de que a religião é um processo fundamental
para as sociedades humanas, considerando sua real função na origem da cultura.
Segundo Girard, a religião é a educadora da humanidade no processo de
humanização e socialização. E sua característica mais notável é justamente a de
educar o desejo, pois, devido a sua natureza mimética, constantemente é gerador
de violência. Nas pesquisas sobre as relações entre Religião/Teologia e
Educação, recentemente tem sido realizado o estudo dos pressupostos teológicos
e espirituais das propostas educacionais. Há muitos pontos de convergência entre
Paulo Freire e René Girard, alguns até complementares. O diálogo entre esses
dois autores se mostra muito profícuo na discussão do tema do desejo em relação
com a espiritualidade e a educação. Este trabalho é uma tentativa de buscar
elementos que favoreçam a elaboração de uma Pedagogia do Desejo a partir das
contribuições das Ciências da Religião.
Palavras-chave: desejo, desejo mimético, espiritualidade, educação.
LOPES, Leandro de Proença. Spirituality and Desire Pedagogy: a dialog between
Paulo Freire and René Girard. 2008. Adviser: Jung Mo Sung.
Abstract
The exploration and the manipulation of desire are some of the main brand of
consumption culture. In the societies where predominate this culture, the
consumption appears as a humanization criterion, and the meaning of life the
ethical-mythical core, around in which society organize itself its the wealth
accumulation seek to consume more. Some researches have been demonstrating
the holy aspects of this culture, which became a real religion of the everyday life,
with its devotions, spiritualities, myths, and rituals. At this same aspect, some
studies have been demonstrating how this culture determines the pedagogic
projects. Theses arent accidentals studies, because religion and education are
essential elements in the origin and upkeep of any culture and human society.
However it could also be transformation elements. Paulo Freire emphasize with
interest in a Desire Pedagogy creation, and comprehend that the desire theme is
extremely important in the improvement fight of social exclusion. But unfortunately
he hadnt time to couch such pedagogy. The René Girard work reinforces the
thesis that religion is an essential process for the human societies, considering the
real function in the culture origin. According to Girard, religion is the humanity
educationalist in the humanization and socialization process. And his most notable
characteristic is exactly to educate the desire, because, due its mimetic nature, is
constantly the violence generator. In the research of relations between Religion/
Theology and Education, recently has been accomplished the presupposed
theologies and spiritual studies of the educational offers. Even thought that Paulo
Freire and René Girard are at different areas, with different projects, there is lots of
convergences aspects between them, some even complementary. The dialog
between these two authors shows it very profitable in the theme of desire
discussion in relation with the spirituality and education. This work is a try to
search elements that promote the elaboration of a Desire Pedagogy starting with
the contribution of the Religion Science.
Keywords: desire, mimetic desire, spirituality, education.
LOPES, Leandro de Proença. Espiritualidad y Pedagogía do Deseo: un diálogo
entre Paulo Freire y René Girard. 2008. Orientador: Jung Mo Sung
Resumen
La exploración y manipulación del deseo son algunas de las principales marcas
de la cultura del consumo. En las sociedades en que predomina esa cultura, el
consumo aparece como criterio de humanización, y el sentido de la vida el
núcleo ético-mítico en torno del cual la sociedad se organiza es la busca de
acumulación de riqueza para se consumir cada vez más. Algunos estudios tienen
demostrado los aspectos sagrados de esa cultura, que se torno una verdadera
religión de la vida cotidiana, con sus devociones, espiritualidades, mitos y ritos.
De la misma forma, algunos estudios vienen demostrando cómo esa cultura
determina los proyectos pedagógicos. Eses estudios no son accidentales, pues
religión y educación son elementos fundamentales en la origen y la manutención
de cualquier cultura y sociedad humanas. Sin embargo, pueden ser también
elementos de transformación. Paulo Freire demuestra el interés por la creación de
una Pedagogía del Deseo y comprende que el tema del deseo es de fundamental
importancia en la lucha por superación de la exclusión social, pero infelizmente no
tuvo tiempo de formular tal pedagogía. La obra de René Girard refuerza la tesis
de que la religión es un proceso fundamental para las sociedades humanas,
considerando su real función en la origen de la cultura. Según Girard, la religión
es la educadora de la humanidad en el proceso de humanización y socialización.
Y su característica más notable es justamente la de educar el deseo, pues, debido
su naturaleza mimética, constantemente es generador de violencia. En las
pesquisas de las relaciones entre Religión/Teología y Educación, recientemente
ha sido realizado lo estudio de los presupuestos teológicos y espirituales de las
propuestas educacionales. Hay muchos pontos de convergencia entre Paulo
Freire y René Girard, algunos a complementares. El diálogo entre eses dos
autores se muestra muy proficuo en la discusión de lo tema del deseo en relación
con la espiritualidad y la educación. Esto trabajo es una tentativa de buscar
elementos que favorezcan la elaboración de una Pedagogía del deseo desde las
contribuciones de las Ciencias de la Religión.
Palabras-clave: deseo, deseo mimético, espiritualidad, educación.
Sumário
Introdução 11
I. Paulo Freire e a Pedagogia do Desejo 17
1. A necessidade de uma Pedagogia do Desejo 18
2. A antropologia de Paulo Freire 23
3. A vocação para a liberdade 34
4. Considerações sobre o desejo para uma Pedagogia do
oprimido 39
II. A religião como educadora do desejo 44
1. Desejo mimético e violência 47
2. A gênese do religioso: a violência e o sagrado 57
3. Dos mitos à tradição judaico-cristã 64
III. Religião e educação do desejo 72
1. Educação e desejo como categoria antropológica em Paulo
Freire e René Girard 74
2. Mito e realidade 84
2.1. A superação do mito em René Girard e Paulo Freire 88
3. Educação do desejo, condição humana e liberdade 94
4. Desejo mimético, conversão espiritual e autonomia 99
Conclusão 104
Referências bibliográficas 113
Introdução
A questão central que orientou a minha pesquisa é: Quais as contribuições
de Paulo Freire e René Girard para a constituição de uma Pedagogia do Desejo?
O ponto de partida para esta pesquisa foi um depoimento de Paulo Freire colhido
no dia 24 de abril de 1997 e publicado num livro organizado por Ana Maria Araújo
Freire. Nesse depoimento, Paulo Freire revela seu interesse pela criação de uma
Pedagogia do Desejo. Esse interesse de Freire pode causar estranheza em
algumas pessoas não acostumadas a relacionar subjetividade e políticas de
libertação. De qualquer forma, uma pergunta inevitável a ser respondida neste
trabalho é: a Pedagogia do Desejo se apresenta, em Paulo Freire, como ruptura
ou como continuidade de seu tema principal a Pedagogia do Oprimido? Neste
mesmo depoimento Freire já nos orienta na tarefa de respondermos a essa
questão, pois superar um entendimento fatalista da história necessariamente
significa descobrir o papel da consciência, da subjetividade na história (FREIRE,
2001, p.37).
Nessa perspectiva, a necessidade de uma pedagogia do desejo se justifica
na medida em que caracteriza a própria natureza da educação: a de contribuir
para a realização da vocação humana para a humanização (a redundância é
inevitável...). Longe de considerar que é desejo natural das pessoas transformar a
realidade desumanizante, Freire considera necessário refletir sobre as origens
dos desejos (FREIRE, 2001, p.37), na tentativa, pedagógica, de desconstruir
desejos desumanizantes. Hugo Assmann e Jung Mo Sung contribuem para a
justificação do tema:
O reconhecimento do papel do desejo, medo e emoções no
campo do conhecimento e, o mais importante, na multiplicação
dos riscos de erro, nos obriga a tomarmos em sério o tema do
desejo no campo da educação e na discussão sobre a
sensibilidade social solidária. A solução pretendida por muitos, no
passado e ainda hoje, de eliminar esse risco recalcando a
afetividade não é possível, pois o desenvolvimento da inteligência
é inseparável do mundo da afetividade, tanto no mundo mamífero,
quanto mais no mundo humano. Sem curiosidade, paixão,
interesses e desejos, as pesquisas filosóficas ou científicas não
teriam como avançar, nem o processo de aprendência
(ASSMANN, SUNG, 2003, p.166-7).
Podemos observar que o desejo ocupa um lugar privilegiado no campo do
conhecimento, da educação e do processo de aprendência. A despeito disso,
apenas recentemente tem sido considerada a sua importância.
Outra questão que pode causar estranheza em algumas pessoas é o da
própria natureza deste trabalho, pois trata-se de uma pesquisa realizada na área
de Ciências da Religião. É inevitável o questionamento sobre a pertinência da
proposta de contribuição da espiritualidade para a formulação da pedagogia do
desejo: ainda tem sentido falar em espiritualidade, educação e desejo, fazendo
referência aos autores de tradições religiosas em particular o cristianismo ,
após a tese de que o mundo moderno é um mundo desencantado e secularizado,
onde a religião não teria mais espaço significativo?
A relação do tema da espiritualidade com o da educação, mais
especificamente com Paulo Freire, pode parecer obtusa para as pessoas que não
estão acostumadas a relacioná-lo com políticas de libertação. Também tratarei
dessa questão neste trabalho, se contradição entre estes temas. De qualquer
forma, já aponto aqui algumas pistas.
Em primeiro lugar, devemos considerar que as contradições existem a
partir das definições que se atribuem aos conceitos. Assim, é preciso indicar,
desde já, o sentido de espiritualidade que estamos usando aqui. Rafael Yus
define a espiritualidade como estado de conexão de toda a vida, de experiência
de ser, de sensibilidade e compaixão, de diversão e esperança, de sentido de
reverência e de contemplação diante dos mistérios do universo, assim como do
significado e do sentido da vida (YUS, 2002, p.22). Se admitirmos essa definição,
devemos concluir que nenhum processo de secularização seria suficiente para
eliminar a espiritualidade enquanto característica antropológica. Isso nos ajuda a
desfazer a confusão de que as críticas às instituições religiosas e a determinados
tipos de religiões, ritos, mitos e espiritualidades muito necessárias devem se
caracterizar como uma crítica absoluta a todas as dimensões da religiosidade.
Se a religião perdeu espaço político, ela não se esvaziou da existência
humana. Quando tudo parecia anunciar os funerais de Deus e o fim da religião, o
mundo foi invadido por uma infinidade de novos deuses e demônios, e um novo
fervor religioso [...] encheu os espaços profanos do mundo que se proclamava
secularizado (ALVES, 1988, p.36). Segundo Edgar Morin, O mito perdeu seus
hábitos tradicionais e introduziu-se na esfera aparentemente laica das
sociedades: o mito moderno [...] Infiltra-se nas ideologias, dá-lhes energia e força
de possessão (MORIN, 2002, p.106). Esses novos deuses e demônios e novas
formas de expressão do mito sustentam as visões de mundo e os sentidos da
vida que se tornaram dominantes em nossa sociedade.
Por isso, Jung Mo Sung chama a atenção para a importância do estudo da
religião em relação com outras áreas:
devemos reconhecer que, para uma crítica teórica pertinente das
fés e das esperanças que fundam visões de mundo e políticas
econômicas, as teorias sociais modernas nem sempre são
suficientes. Penso que um diálogo entre ciências sociais e
humanas com a teologia pode ser bastante frutífero; o que implica
em uma abordagem transdisciplinar, para além das regras e
fronteiras estabelecidas pelas ciências modernas
(SUNG, 2002b,
p.14).
Assim, o diálogo entre ciências sociais e humanas com a teologia
(entendida aqui como uma hermenêutica da história) torna-se imprescindível para
dar conta da complexidade humana e das relações interpessoais e sociais que
caracterizam o contexto atual.
Desta forma, caminhamos na direção de justificar a relação de
espiritualidade e educação no estudo da proposta de uma Pedagogia do Desejo.
Mas ainda ficaria a questão se essa relação se justifica na abordagem do
pensamento de Paulo Freire.
Uma primeira consideração é a própria crítica contundente e exaustiva de
Freire às ideologias fatalistas da história que resultam numa idéia de que a
realidade, representada atualmente pela política neoliberal, é estática, sendo,
portanto, impossível transformá-la. Se as suspeitas indicadas acima se
comprovarem, essa ideologia é fruto de determinados tipos de espiritualidades e
mitos que a sustentam. Ora, da mesma forma então a proposta de transformação
também deve conter pressupostos espirituais. Jardilino propõe uma leitura
teológica da obra de Freire, e constata que:
podemos saltar da antropologia para a pedagogia e desta para a
teologização da obra de Freire. É claro que ele não é teólogo; o
que fazemos é um esforço de compreendê-lo nesta perspectiva,
uma vez que foi molhado também pelas águas do cristianismo,
na forte cultura cristã do Nordeste brasileiro. É possível perceber
que o esforço humano de buscar, pela consciência, a libertação,
tem um valor transcendente. A tarefa, que cabe ao homem, de
criar e recriar o mundo só é possível numa visão cristã do Deus
criador, que se fez limitado pelo ato de amor ao homem, e ao
invés de realizar toda a obra, lança o desafio à criatura: a tarefa
permanente de recriação do mundo. Todavia esse desafio
pressupõe, de imediato, novas condições: a superação da
alienação (que em teologia pode ser traduzido como pecado) e a
busca ininterrupta de sua humanização/libertação
(JARDILINO,
2003, p.72).
Acredito que essa breve argumentação sustenta a opção pela análise do
tema do desejo na relação entre espiritualidade e educação a partir da
abordagem do pensamento de Paulo Freire. Todavia, obviamente, a leitura de
Freire não é suficiente para este estudo. É necessário o diálogo com um (ou mais)
autor específico da área das ciências da religião. Para isso, o autor escolhido foi o
crítico literário e antropólogo francês René Girard.
O que justifica esta escolha é a análise que Girard faz da religião e do
desejo. Sua obra é, sem dúvida, original e provocante. Seu profundo senso de
realidade chocou mesmo muitos de seus leitores. Girard considera o desejo uma
característica essencial do ser humano e enfatiza a sua natureza mimética: um
objeto não é desejável por si mesmo, mas porque outra pessoa o deseja. Ou seja,
o desejo não é autônomo, mas é imitação. A convergência de dois ou mais
desejos para um mesmo objeto constitui um obstáculo para aqueles que querem
possuí-lo. Essa característica mimética é freqüentemente causadora de
rivalidades e conflitos entre as pessoas, encerrando-as num ciclo de violência que
só se resolve através do mecanismo do bode expiatório.
A tese de Girard é que a religião se origina de uma solução para a violência
intracomunitária através do mecanismo do bode expiatório. A grande contribuição
de Girard para este trabalho é a sua análise sobre a função real da religião. Para
ele, a religião é um processo pedagógico fundamental para comunidades e
sociedades humanas, aparecendo como a educadora por excelência da
humanidade, no sentido etimológico de educação, pois permite que as pessoas
escapem de sua violência e confere-lhes todas as instituições e todos os
pensamentos que definem sua humanidade (GIRARD, 1990, p.373).
A teoria do desejo mimético de Girard contribui decisivamente para uma
solução que Freire considera fundamental para o processo de libertação: a
superação da contradição entre opressores e oprimidos. Freqüentemente é
desconsiderado o perigo de as esquerdas nas suas pedagogias, teologias e
lutas de libertação reproduzirem mimeticamente o mecanismo do bode
expiatório. Por isso Freire alerta para o desejo mimético dos oprimidos quererem
se tornar opressores.
Outras convergências sustentam o diálogo entre esses dois autores, dentre
elas, o comum interesse na superação de realidades desumanizantes bem como
nos processos de humanização. Esse comum interesse surge de um ponto de
partida comum: o das vítimas no pensamento de René Girard e o dos
opressores no pensamento de Paulo Freire. Podemos dizer que a obra desses
dois autores é construída em defesa das vítimas e dos oprimidos e na tentativa de
buscar a sua salvação/libertação. Assim, ambos compartilham do tema dos
oprimidos/vítimas como orientador de sua hermenêutica antropológica, teológica e
pedagógica.
Isso explica um traço biográfico comum, também, entre esses dois autores:
a sua relação com o cristianismo. Tanto em Girard como em Freire, nem a
trajetória intelectual e nem a atividade acadêmica foram obstáculos à sua fé. Pelo
contrário, sua fé está presente em suas obras e podemos percebê-la
profundamente relacionada com os seus temas. Podemos estabelecer uma
relação dialética entre e atividade intelectual nesses dois pensadores: ao
mesmo tempo em que sua fé é um dos componentes que orienta sua atividade
intelectual, ela reforça e alimenta a sua espiritualidade. Ottmar John nos ajuda a
entender essa relação:
Na pobreza o reino de Deus não pode ser identificado com as
coisas deste mundo, nelas apenas pode ser entendido o caráter
da precariedade. Por isso a pobreza é provocação e motivo para a
esperança na libertação. Porque todas as pessoas que vivem na
pobreza têm toda a razão de esperar em Deus, o justamente
elas autoridades do desejo de libertação e de salvação,
autoridades na fé. Se isso é verdade, então não se pode
entender o Deus cristão sem os pobres, sem os desprotegidos,
sem os desprezados, ou brevemente, sem os necessitados. Um
Deus separado dos pobres pode ser tudo menos o Deus revelado
(OTTMAR, 1988, p.143)
A convergência de Girard e Freire não apenas justifica o diálogo com eles,
mas chega até a provocá-lo. Desta forma, este trabalho é também marcado pela
opção em favor dos oprimidos e das vítimas que caracteriza a obra desses dois
autores. Já como uma primeira resposta à questão colocada no início, a
espiritualidade e a educação do desejo, à luz de Freire e Girard, se caracterizam
na luta por libertação.
I. Paulo Freire e a Pedagogia do Desejo
Neste primeiro capítulo analisaremos o lugar do desejo no pensamento de
Paulo Freire. Queremos verificar se há em seu pensamento elementos suficientes
para justificar a necessidade de uma pedagogia do desejo e também para a
constituição dessa Pedagogia. Para isso, analisaremos a antropologia de Freire.
Essa análise nos permitirá perceber se Freire tem uma compreensão do desejo
como característica essencialmente humana que, como tal, deve ser considerado
no processo de humanização.
Após essa análise, consideraremos dois temas centrais na prática
pedagógica de Paulo Freire: a vocação para a liberdade e a pedagogia do
oprimido. Vamos analisá-los, em primeiro lugar, porque qualquer análise sobre o
pensamento de Freire deve levar em consideração esses temas. Além disso,
pretendo analisar se esses temas abrem espaço para uma Pedagogia do Desejo,
sem que este tema precise encontrar um espaço forçado no pensamento de
Freire. Esse caminho evitará que nos distanciemos dos aspectos centrais da
pedagogia freireana, evitando que o seu interesse pela criação de uma pedagogia
do desejo seja visto simplesmente como um adendo tardio à sua proposta
pedagógica e não como uma decorrência lógica do seu pensamento.
1. A necessidade de uma Pedagogia do Desejo
Interesso-me pela criação de uma pedagogia do desejo. Como
educadores progressistas, uma de nossas maiores tarefas parece
dizer respeito a como gerar nas pessoas sonhos políticos, anseios
políticos, desejos políticos. A mim, como educador, é impossível
construir os anseios do outro ou da outra. Essa tarefa cabe a ele
ou a ela, não a mim. De que modo podemos encontrar alternativas
de trabalho que propiciem em contexto favorável para que isso
ocorra? [...] Superar um entendimento fatalista da história
necessariamente significa descobrir o papel da consciência, da
subjetividade na história
(FREIRE, 2001b, p.37).
Pelo que me consta, Paulo Freire falou apenas uma vez, explicitamente,
em Pedagogia do Desejo. Foi justamente no texto citado, numa entrevista
concedida em 1997, ano de sua morte. Todavia, isso não quer dizer que Paulo
Freire estaria mudando os rumos de seu pensamento ou de sua proposta
pedagógica. O interesse pela Pedagogia do Desejo não se apresenta como um
rompimento com a Pedagogia do Oprimido. Muito pelo contrário, é a luz desta sua
proposta pedagógica que o tornou mundialmente conhecido que deve ser
entendido o seu interesse pelo tema do desejo. Aliás, qualquer consideração que
se faça sobre o pensamento de Paulo Freire deve pressupor a Pedagogia do
Oprimido. No prefácio à Educação e Atualidade Brasileira, primeira obra de Freire,
José Eustáquio Romão reforça esse argumento:
Mais uma vez, estamos ratificando a idéia de que Paulo Freire
sempre re-escreveu o que havia escrito antes, numa inseparável
re-elaboração e re-escritura dialética da mesma obra, atualizando-
a permanentemente, de acordo com os novos contextos em que
procurava inserir-se de forma critica
(FREIRE, 2001a, p.xii e
xiv).
Certamente algumas pessoas poderão dizer que a proposta de uma
Pedagogia do Desejo estaria muito distante do pensamento de Paulo Freire,
ainda mais à luz da Pedagogia do Oprimido. De fato, o educador italiano Cesare
Florio La Rocca (2001), que desenvolveu em Salvador o Projeto Axé e denomina
sua proposta justamente de Pedagogia do Desejo, relata que se baseia
principalmente em Jean Piaget e Paulo Freire para a elaboração desta pedagogia,
mas que para isso precisou, de certa forma, ultrapassá-los, pois faltou um pouco
de psicanálise para ambos
1
.
Todavia este é um pressuposto nosso Paulo Freire não estava alheio
às contribuições da psicanálise, e nem mesmo à importância do tema do desejo
no processo de libertação. Aliás, o que justifica o tratamento do tema do desejo é
justamente a libertação das pessoas.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e
negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do
mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o
impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade,
a do subjetivismo, que implica em homens sem mundo
(FREIRE,
1987, p.37).
É o tema da libertação das pessoas que nos conduz à necessidade de uma
Pedagogia do Desejo. Para vermos isso mais claramente, precisamos encontrar
em Paulo Freire elementos que justifiquem essa necessidade. Podemos encontrar
em sua antropologia os elementos que justificam a necessidade da Pedagogia do
Desejo. Freire considera a diferença fundamental entre os seres humanos e os
animais o fato de que animais são seres da acomodação e do ajustamento, que
aderem a uma realidade pronta, enquanto os seres humanos, por sua capacidade
crítica e criativa, se integram ao seu contexto, situados histórica e culturalmente,
interagem com a realidade, transformando-a. Assim, compreende o homem
como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente
movimento de busca do ser mais (FREIRE, 1987, p.72). Essa busca de ser mais
é a busca por humanização e explica a própria natureza da educação:
[A educação] problematizadora parte exatamente do caráter
histórico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo é que os
reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados,
inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica
também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos
outros animais, que são apenas inacabados, mas não são
históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência
de sua inconclusão. se encontram as raízes da educação
mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na
inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que
1
La ROCCA, Cesare Florio. Plantando axé: uma proposta pedagógica. São Paulo: Ed. Cortez,
2001
seja a educação um quefazer permanente. Permanente, na razão
da inconclusão dos homens e do devenir da realidade
(FREIRE,
1987, p.72-3).
A compreensão do ser humano como um ser inacabado, inconcluso e
consciente disso justifica a prática educativa, mas também fundamenta os
processos de humanização, na medida que justifica a transformação da realidade.
Em Educação Como Prática de Liberdade, Paulo Freire, refletindo sobre a
capacidade de transformar a realidade como uma conseqüência de uma
característica essencialmente humana, a integração, considera que
Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno,
está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado
pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem
renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir
(FREIRE, 1980b, p.51).
Para Paulo Freire, essa é uma contradição da modernidade, pois ao perder
a sua capacidade de decidir, as pessoas perdem também, sem o saber, a sua
liberdade. Freire cita Erich Fromm para demonstrar que essa contradição tem
relação com o desejo:
Ele se tornou livre dos vínculos externos que o impediram de fazer
e pensar o que acha adequado. Teria liberdade de agir segundo
sua própria vontade, caso soubesse o que quer, pensa e sente,
porém não sabe. Conforma-se com autoridades anônimas e adota
um ego que não é dele. Quanto mais faz isto, tanto mais
impotente se sente e tanto mais obrigado fica a conformar-se. A
despeito de uma casca de otimismo e iniciativa, o homem
moderno é dominado por um sentimento entranhado de
impotência, que o faz encarar as catástrofes que se aproximam
como se estivesse paralisado
(FROMM, 1980, p.203).
Erich Fromm está falando do homem moderno, mas bem que essas
palavras poderiam ser aplicadas também aos oprimidos, que sem saber o que
desejar, adotam um ego que não é seu, desejam ser iguais aos opressores.
Educar o desejo se torna, assim, uma tarefa importante no processo de
libertação. Em tese de doutoramento, Flander Calixto, considerando a proposta
de alfabetização de Paulo Freire, demonstra a importância do desejo neste
processo de libertação:
Uma alfabetização, na dimensão política, requer uma passagem
da consciência transitiva, ainda frágil, à consciência transitivo-
crítica, que objetiva a leitura do mundo, para visar ao
desvendamento da realidade e para aproximar o sujeito da
implicação ao seu desejo uma das fases importantes do
processo de transformação social
(CALIXTO, 2007, p.72).
O ser humano é um ser desejante. Seria muito bom se desejasse
naturalmente a liberdade... Mas o fato é que o desejo é muitas vezes educado
justamente para não desejá-la. Em linguagem de Paulo Freire, as pessoas são
domesticadas. Já em Educação e atualidade brasileira, Paulo Freire considera
esse fenômeno:
A dialogação mais ampla do homem com o homem e do homem
com a sua circunstância as respostas cada vez em círculos mais
amplos a estímulos diferentes que, forçosamente, deviam se fazer
fatores de postura cada vez mais legítimas do homem diante do
homem, como dele diante do seu mundo, perdem o sentido de
sua autenticidade, sacrificadas por formas domesticadoras do
homem. É a massificação. A propaganda é uma dessas formas.
Aldous Huxley
2
propõe, como antídoto à sua ação domesticadora,
educação em que haja lugar destinado ao que ele chama de arte
de dissociar idéias, porque se fossem criando no homem atitudes
mentais que lhe permitissem resguardar-se de seus efeitos. Não
só resguardar-se deles, mas suportá-los, diremos nós. Atitudes
mentais que o colocassem em posição conscientemente crítica
dos estímulos a que responderia, desta maneira, menos
passionalmente
(FREIRE, 2001a, p.36).
A propaganda é uma das formas, dentre outras, de domesticar o homem,
ou seja, educar o desejo para torná-lo passivo em processos alienadores. Assim,
educar o desejo não se mostra como uma opção, pois ele já é educado... Trata-se
de assumir a necessidade de educar o desejo para uma ação fundamental nos
processos de libertação.
Segundo o que vimos até aqui, já temos condições de afirmar que a
Pedagogia do Desejo, no pensamento de Paulo Freire, adquire importância na
educação como para a prática de liberdade. Vamos, a seguir, aprofundar melhor
os elementos no pensamento de Freire que contribuem para a constituição dessa
pedagogia do desejo. Analisaremos agora a antropologia de Freire para
2
HUXLEY, Aldous. El fin y los médios. 2.ed. Buenos Aires, Sudamericana, 1944.
descobrirmos se o tema do desejo é um tema recente em sua obra ou se está
presente, implicitamente, desde o começo. Assim teremos condições de conferir
da melhor maneira possível o lugar do desejo no pensamento de Paulo Freire.
2. A antropologia de Paulo Freire
A experiência nos ensina que nem todo óbvio é tão óbvio quanto
parece. Assim, é com uma obviedade que começamos este
trabalho: toda prática educativa envolve uma postura teórica por
parte do educador. Esta postura, em si mesma, implica as vezes
mais, as vezes menos explicitamente numa concepção dos
seres humanos e do mundo. E não poderia deixar de ser assim. É
que o processo de orientação dos seres humanos no mundo
envolve não apenas a associação de imagens sensoriais, como
entre os animais, mas, sobretudo, pensamento-linguagem;
envolve desejo, trabalho-ação transformadora sobre o mundo, de
que resulta o conhecimento do mundo transformado. Este
processo de orientação dos seres humanos no mundo não pode
ser compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramente
subjetivista; de outro, de um ângulo objetivista mecanicista. Na
verdade, esta orientação no mundo pode ser realmente
compreendida na unidade dialética entre subjetividade e
objetividade. Assim entendida, a orientação no mundo põe a
questão das finalidades da ação ao vel da percepção crítica da
realidade
(FREIRE, 1987, p.35).
Hugo Assmann, na mesma linha da citação de Paulo Freire acima,
argumenta que mudanças de paradigmas devem ser discutidas a partir do
questionamento da subjacente visão do ser humano. Tanto mais na educação,
onde o cerne antropológico, explícito ou tácito, pré-define os conceitos de
aprendizagem que se propiciarão (ASSMANN, 1993, p.45). Desta forma, não
podemos propor uma nova abordagem pedagógica, a partir do pensamento de
Freire, sem considerar a sua idéia de ser humano.
Freire não chega a expor, sistematicamente, a sua idéia de ser humano.
Todavia, seu método de alfabetização pressupõe essa idéia de fato, uma
antropologia do ser humano a partir da qual constrói suas proposta e prática
pedagógicas. Podemos encontrar essa antropologia espalhada em toda a sua
obra, fundamentando seu pensamento. Assim, mesmo que Freire não a tenha
exposto de forma sistemática, essa ontologia do humano pode ser construída com
ele, a partir de sua obra.
Freire considera a ess
ência dos seres humanos a partir das suas
características que os distinguem dos animais. Já em Educação como prática de
liberdade encontramos, logo no primeiro parágrafo, a consideração de uma
dessas características: os seres humanos são seres de relações, enquanto os
animais são seres de contatos.
O conceito de relações, da esfera puramente humana, guarda em
si, como veremos, conotações de pluralidade, de transcendência,
de criticidade, de conseqüência e de temporalidade. As relações
que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais,
impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal
de características que as distinguem totalmente dos puros
contatos, típicos da outra esfera animal. Entendemos que, para o
homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele,
possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de
que o homem, ser de relações e não de contatos, não apenas
está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de
sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é
(FREIRE, 1980b, p.47).
Para Freire, o conceito de relações não constitui apenas uma característica
que diferencia os seres humanos dos animais, mas trata-se de uma característica
que se torna uma categoria fundamental para a elaboração de sua idéia de ser
humano. Luisa Álvarez Cervantes, que pretende justamente pesquisar La
ontología de lo humano del primer Freire, reforça esse argumento: Y en torno al
concepto de relaciones, Freire teje su propuesta fundamental de lo humano,
relaciones no sólo reviste la idea de concepto relativo a la explicación de lo
humano, sino que en esta obra es utilizado como categoría de explicación y
fundamento del ser humano (CERVANTES, 2005, p.51).
Segundo Freire, as relações humanas guardam em si conotações de
pluralidade, transcendência, criticidade, conseqüência e temporalidade. São
essas conotações que tornam peculiares essas relações. Elas possuem uma
conotação de pluralidade porque exigem das pessoas respostas diferentes a
desafios diferentes. As pessoas precisam responder aos desafios que suas
relações impõem, e esses desafios são plurais, uma vez que as próprias relações
não são uniformes. Além disso, as pessoas têm a capacidade de apresentar
diferentes respostas a um mesmo desafio, ou desafios semelhantes, e isso
também é uma característica humana. Característica proveniente da capacidade
de conhecer, avaliar e escolher. As respostas humanas aos desafios que suas
relações impõem nunca estarão prontas, mas sempre por construir-se, e isso
guarda a conotação de pluralidade que caracteriza as relações humanas.
No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de
responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se.
Age. Faz tudo isso com a certeza de quem usa uma ferramenta,
com a consciência de quem está diante de algo que o desafia.
Nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso
mesmo, uma pluralidade na própria singularidade
(FREIRE,
1980b, p.48).
Essa conotação de pluralidade exige a complementação da conotação de
criticidade, pois, uma vez que são muitas as possibilidades de respostas aos
desafios impostos por suas relações, as pessoas precisam fazer uma escolha. É
necessário um conhecimento crítico da realidade para poder fazer a melhor
escolha. O conhecimento crítico permite a análise da ampla possibilidade de
respostas aos desafios, e também fornece critérios que permitem dizer qual é a
melhor resposta. A conotação de criticidade, aliás, garante a possibilidade do
conhecimento. Todo conhecimento é crítico, ou então não é conhecimento. Na
perspectiva de Paulo Freire, na esfera das relações, a captação dos dados
objetivos da realidade, que garante aos seres humanos a capacidade cognitiva, é
naturalmente crítica, por isso, reflexiva e não reflexa, como seria na esfera dos
contatos (FREIRE, 1980, p.48).
A capacidade de conhecer conduz os seres humanos ao conhecimento de
sua própria condição, a saber, sua condição finita. É o ser humano, à semelhança
de todos os seres vivos, limitado, incompleto, finito. Mas a diferença fundamental
é a consciência que os seres humanos têm desta condição. As pessoas são
conhecedoras das suas limitações, da sua incompletude, da sua finitude.
Limitado, incompleto, finito, os seres humanos se aventuram numa eterna busca
por plenitude; todavia, sabedores de sua condição, têm a consciência de que
essa condição não pode ser superada. Isso possibilita à esfera das relações
humanas a conotação de transcendência. Todavia, é preciso esclarecer que a
capacidade de transcender não é a capacidade de ultrapassar os limites da
condição humana. Ao contrário, a condição humana é necessária para a
capacidade de transcendência. A sua transcendência está na raiz da condição
humana e na consciência que têm dessa condição.
A sua transcendência, acrescente-se, não é um dado apenas de
sua qualidade espiritual no sentido em que a estuda Erick
Kahler. Não é resultado exclusivo da transitividade de sua
consciência, que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí,
reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um eu de um
não eu. A sua transcendência está também, para nós, na raiz de
sua finitude. Na consciência que tem desta finitude
.
Do ser
inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu
Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais se de
dominação ou de domesticação, mas sempre de libertação. D
que a Religião religare que encarna este sentido
transcendental das relações do homem, jamais deva ser um
instrumento de sua alienação. Exatamente porque, ser finito e
indigente, tem o homem na sua transcendência, pelo amor, o seu
retorno à sua fonte, que o liberta
(FREIRE, 1980b, p.48).
Na sua transcendência, os seres humanos não se livram de sua condição,
não saem do seu mundo, o que seria um dos aspectos de sua alienação.
Paradoxalmente, ao transcender, os seres humanos se inserem de forma mais
radical na sua realidade, pois, se a transcendência é fruto de sua capacidade
cognitiva e crítica, essa mesma capacidade conduz o ser humano à descoberta
de sua temporalidade.
No ato de discernir [conotação de criticidade], porque existe e não
só vive, se acha a raiz, por outro lado, da descoberta de sua
temporalidade, que ele começa a fazer precisamente quando,
varando o tempo, de certa forma então unidimensional, atinge o
ontem, reconhece o hoje e descobre o amanhã
(FREIRE, 1980b,
p.48-9).
A descoberta da temporalidade não se caracteriza, obviamente, como a
descoberta do tempo, senão como a capacidade de discernimento da
dimensionalidade do tempo. Sem essa capacidade, os seres humanos estariam
presos a um tempo, a um perpétuo presente, que não poderia ser diferente do
passado e nem do futuro. Deste tempo o ser humano nunca teria consciência.
Mas, por sua capacidade de discernir a dimensionalidade do tempo, o ser
humano chega à consciência de sua historicidade. Assim, O homem existe
existere no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque
não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga,
emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se (FREIRE, 1980b, p.49).
Ao fazer esta emersão do tempo, o ser humano, discernindo sua
temporalidade, confere às suas relações uma conotação de conseqüência, pois
essas relações não se esgotam em mera passividade. Não se reduzindo tão-
somente a uma das dimensões de que participa a natural e a cultural da
primeira, pelo seu aspecto biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o
homem pode ser eminentemente interferidor (FREIRE, 1980b, p.49).
Distinguindo-se dos animais, que são seres da acomodação e do ajustamento,
aderindo a uma realidade pronta, os seres humanos são seres da integração. Da
mesma forma que têm a consciência de sua condição de incompletude, os seres
humanos reconhecem a realidade como inacabada. Desta forma, procuram atuar
sobre a realidade para transformá-la.
Sua ingerência, senão quando distorcida e acidentalmente, não
lhe permite ser um simples espectador, a quem não fosse lícito
interferir sobre a realidade para modificá-la. Herdando a
experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às
condições de ser contexto, respondendo a seus desafios,
objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se
o homem num domínio que lhe é exclusivo o da História e o da
Cultura
(FREIRE, 1980b, p.49).
Esta conotação de conseqüência permite a Paulo Freire insistir num de
seus temas principais: é a integração, e não a acomodação, uma atividade da
órbita essencialmente humana
3
. Mais do que adaptar-se à realidade,
característica geral dos seres vivos, os seres humanos têm a capacidade de
transformá-la. O caminho que percorremos até aqui, seguindo a proposta de forjar
com Paulo Freire a sua ontologia do humano, chegamos neste conceito
fundamental, da integração. Assim, transformar a realidade não é somente uma
possibilidade oriunda de uma capacidade humana, mas trata-se de um dos
aspectos da própria essência do ser humano. Essa é uma das principais marcas
da liberdade. Os seres humanos deixam de se integrar quando não realizam suas
capacidades impressas no conceito de suas relações. Quando isso acontece,
perdem sua liberdade.
3
Veremos mais à frente a importância deste conceito para o tratamento do tema do desejo na
obra de Paulo Freire.
Como vimos até agora, o conceito de relações ocupa, no pensamento de
Paulo Freire, uma categoria de explicação de sua ontologia do humano. A partir
das conotações que o envolvem, percebemos características que tornam este
conceito um princípio essencial do ser humano.
Ainda outro princípio destas relações, fundamental para a explicação do
humano, são os términos dessas relações, com que os seres humanos se
relacionam. Segundo Freire, os términos das relações humanas se inscrevem em
três categorias: com os outros, com o Criador e com o mundo entendendo o
mundo como realidade social e também como a natureza. É fundamental
entender que essas relações são interligadas, interdependentes. Não podem ser
compreendidas separadamente uma das outras. Só haverá liberdade nas suas
relações com os outros a medida que suas relações com o Criador e com o
mundo também forem de liberdade, e assim por diante. Somente assim essas
relações mantêm por si mesmas um conteúdo humano.
O conceito de relações nos remete a outro conceito para a explicação do
humano, o de abertura. O ser humano é um ser aberto, e por isso um ser de
relações:
É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de
relações e não de contatos, não apenas está no mundo, mas
com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à
realidade, que o faz ser o ente de relações que é
(FREIRE,
1980b, p.47).
Por ser aberto, o ser humano tem a capacidade de captar os dados
objetivos da realidade e refletir sobre eles. Sua abertura implica na consciência
que tem sobre a realidade que o cerca e sobre si mesmo. Na consciência de sua
condição de limitado, indigente, finito, inacabado. É a sua abertura frente à
realidade que permite suas relações, precisamente porque confere a essas
relações as conotações de pluralidade, criticidade, transcendência, temporalidade
e conseqüência.
Duas são as dimensões do ser humano frente à realidade: a natural e a
cultural. Essas dimensões marcam os modos pelos quais participarão da
realidade. A dimensão natural é conseqüência de sua natureza biológica, e é
característica dessa dimensão a esfera dos contatos, guiados pelas necessidades
fisiológicas, pelo instinto, enfim, pelas respostas reflexas. Nisto são as pessoas
semelhantes aos outros seres vivos. Mas se distinguem precisamente porque,
conscientes dessa condição, são abertos à realidade. Essa abertura confere aos
seres humanos a dimensão cultural. Por serem abertos, os seres humanos são
fazedores de Cultura e de História. Pela dimensão natural os seres humanos
podem viver. Mas a dimensão cultural permite aos seres humanos existir
4
. A
dimensão cultural é resultado da essência do ser humano de ser aberto. Por
serem abertos, os seres humanos são seres de relações. Por serem abertos, são
também transitivos.
O conceito de ser transitivo é inspirado na gramática. Ora, os verbos
transitivos são aqueles que pedem complementação. Os seres humanos como
seres inacabados também pedem uma complementação. Por isso o termo
transitivo se caracteriza também como uma permanente transição. Transição de
um estado para outro. Transição de uma realidade para outra. Cabe ressaltar que
a transitividade, por ser da essência humana, é, por isso mesmo, uma
característica permanente. Cervantes compreende bem essa característica:
La conciencia crítica es propia del hombre como un ser de
relaciones, dado que la conciencia crítica es un proceso en el cual
el hombre pasa de la percepción de la realidad a su conocimiento.
Este conocimiento, cada vez más acertado, es resultado de la
transitividad de la conciencia y, por ello, la conciencia crítica es
resultado y proceso al mismo tiempo. Este proceso hacia la
conciencia crítica es la conciencia transitiva crítica, característica
de las relaciones del hombre con el mundo y resultado de su estar
siendo, como ser transformador
(CERVANTES, 2005, p.60).
A consciência crítica é resultado da transitividade do ser humano. E da
mesma forma que a consciência crítica é resultado e processo ao mesmo tempo,
qualquer transição que possam as pessoas produzir, será, por definição,
transitória. Resultado de uma ação transformadora e ao mesmo tempo processo
4
Reproduzo aqui uma nota de Paulo Freire sobre este conceito existencialista: Existir ultrapassa
viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. E é essa capacidade ou
possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria
etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não no simples viver.
Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é
individual, contudo só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles
(FREIRE, 1980b, p.48-9). Freire ainda recomenda a leitura de Jaspers: Origen y metas de la
historia e razão e anti-razão de nosso tempo.
de uma ação libertadora. Porque os seres humanos são essencialmente
transitivos.
Evidentemente essa característica essencial não garante, sozinha, a
transformação e a libertação das pessoas. O ser humano, como ser transitivo,
necessita de complementação para realizar sua tarefa transformadora. A
responsabilidade é essa necessidade fundamental, pois sem responsabilidade
não há compromisso, sem o qual não há ação transformadora. É exatamente por
isso que a responsabilidade é um dado existencial. Daí não poder ser ela
incorporada ao homem intelectualmente, mas vivencialmente (FREIRE, 1980b,
p.66)
5
.
Uma consciência crítica é condição para o ser humano captar e refletir
sobre os temas fundamentais de seu tempo, a saber, aqueles que vão exigir sua
responsabilidade e compromisso, ao mesmo tempo em que vão orientar a sua
ação transformadora. Sem consciência crítica, sem responsabilidade e sem
compromisso, os seres humanos se tornam seres intransitivos. Todavia, a
intransitividade não é uma característica essencial do ser humano, senão um
estado de uma consciência confundida, quando estão confusos os dados de sua
existência, sem nunca anular, porém, suas características essenciais. Segundo
Paulo Freire:
É evidente que o conceito de intransitividade não corresponde a
um fechamento do homem dentro dele mesmo, esmagado, se
assim o fosse, por um tempo e um espaço todo-poderosos. O
homem, qualquer que seja o seu estado, é um ser aberto. O que
pretendemos significar com a consciência intransitiva é a
limitação de sua esfera de apreensão. É a sua impermeabilidade a
desafios situados fora da órbita vegetativa. Neste sentido e
neste sentido, é que a intransitividade representa um quase
incompromisso do homem com a existência
(FREIRE, 1980b,
p.68).
Do que vimos até aqui, concluímos que os princípios antropológicos no
pensamento de Paulo Freire são:
5
Aqui Paulo Freire critica, de uma só vez, duas características da educação bancária: roubar às
pessoas condições à consecução da responsabilidade; e a transmissão de conteúdos que
podem ser incorporados vivencialmente (FREIRE, 1980b, p.65-68). Nessas páginas Paulo Freire
não se refere explicitamente à educação bancária, mas está em todo tempo criticando o modelo
de educação existente em contradição com a proposta de uma educação libertadora.
- o ser humano é um ser de relações;
- o ser humano é um ser aberto;
- o ser humano é um ser transitivo.
Todavia, é preciso não cometer o erro de considerar essas conclusões
meras abstrações. Já em Educação e atualidade brasileira, primeiro livro de Paulo
Freire, ele adianta a sua ontologia do humano. E no prefácio da obra, Romão
esclarece:
Na introdução, ele adianta sua concepção de homem, como ser
de relações, aberto, transitivo. E quando pensamos que está
tratando de uma mera abstração, ele recupera a dimensão da
historicidade e, dialeticamente, explicita-o como potencial sujeito
(condicionado) de sua própria história
(José Eustáquio Romão,
in FREIRE, 2001a, p. xxxvi).
Obviamente alguém pode argumentar que tais considerações sobre a
antropologia de Paulo Freire conduziriam naturalmente o homem à sua libertação.
Todavia não devemos nos esquecer que Paulo Freire não deixa de considerar,
em nenhum momento, a condição humana. Como tal, esta é uma condição que
não se pode superar. Tentar superá-la seria alienação. Aprender a conviver com
ela é condição para a libertação
6
.
Não se trata de admitir que essas características essenciais do ser humano
o conduzam necessariamente à sua libertação; mas elas possibilitam essa
libertação. Por isso, o ser humano não é algo pronto. A incompletude também é
uma característica antropológica. O ser humano se torna humano quando se
humaniza. Humanizar-se é, ao mesmo tempo, resultado e processo. Processo
permanente. Finalizado esse processo, paradoxalmente, o ser humano se
desumaniza. Esse conceito é paradoxal porque o ser humano, ainda que esteja
desumanizado, continua sendo ser humano. Ou seja, não perde suas
características essenciais. Se não fosse assim, estas o seriam características
essenciais do humano. Assim, igual à humanização, a desumanização é, ao
mesmo tempo, resultado e processo.
6
ver MORIN, 2005, p.88-92
Tanto a humanização como a desumanização são resultados da abertura e
da transitividade como características fundamentais do ser humano. Essas
características conduzem as pessoas a um movimento, a uma ão. O resultado
desse movimento pode ser tanto a sua humanização quanto a sua
desumanização. Então, tanto a humanização quanto a desumanização são
viabilidades ontológicas do ser humano.
Ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem num
permanente movimento de busca. Humanização e
desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto,
objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos
e conscientes de sua inconclusão
(FREIRE, 1987, p.30).
Todavia, precisamos reconhecer a desumanização, não apenas como
viabilidade ontológica, mas como realidade histórica (FREIRE, 1987, p.30). É a
dramaticidade da hora atual (FREIRE, 1987, p.29) que nos leva a reconhecer a
realidade histórica como desumanizadora. Este reconhecimento é fundamentado
em dados concretos e objetivos da existência humana. É uma constatação
existencial, mas que está longe de ser abstrata. É preciso diferenciar aqui o
sentimento de insatisfação frente a uma realidade inacabada, e a desumanização
como realidade histórica. Pois não devemos identificar a existência humana como
naturalmente oprimida, ou seja, a desumanização como única viabilidade
ontológica. É evidente que mesmo numa sociedade sem classes as pessoas
morrem antes da hora, mas isso não é uma realidade desumanizada,
simplesmente é uma característica da condição humana. Uma realidade
desumanizada é quando as pessoas morrem antes da hora devido a condições
sócio-históricas. Uma realidade desumanizada é resultado da ação e das
interações humanas.
Mas não devemos concluir que toda a realidade histórica tem sido de
desumanização. Não podemos ignorar avanços e transformações humanizadoras
ao longo da história humana. Mas não nos deixemos levar a generalizações e
nem a uma abordagem mais ampla do que a que temos condições de fazer no
momento. Nos ateremos somente à dramaticidade da hora atual. Freire se
concentra na realidade dos países sub-desenvolvidos para reconhecer a
desumanização como realidade histórica. Todavia, é a partir desta dolorosa
constatação que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade a de sua
humanização, pois, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o
que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada
na própria negação (FREIRE, 1987, p.30).
Chegamos, assim, à conclusão máxima a que nos conduz a antropologia
de Paulo Freire: a vocação para a Liberdade. Vamos analisar agora no que
consiste essa vocação para a liberdade.
3. A vocação para a liberdade
No primeiro momento, o da pedagogia do oprimido, objeto da
análise deste capítulo, estamos em face do problema da
consciência oprimida e da consciência opressora; dos homens
opressores e dos homens oprimidos, em uma situação concreta
de opressão. Em face do problema de seu comportamento, de sua
visão do mundo, de sua ética. Da dualidade dos oprimidos. E é
como seres duais, contraditórios, divididos, que temos de encará-
los. A situação de opressão em que se formam, em que
realizam sua existência, os constitui nesta dualidade, na qual se
encontram proibidos de ser. Basta, porém, que homens estejam
sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que
tal proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência.
Violência real, não importa que, muitas vezes, adocicada pela
falsa generosidade a que nos referimos, porque fere a ontológica
e histórica vocação dos homens a do ser mais
(FREIRE, 1987,
p.37).
Não podemos simplesmente partir do pressuposto que a liberdade é
desejada, naturalmente, por todos. Podemos elocubrar que existe uma situação
existencial comum, em que nascem a idéia, a necessidade e o desejo da
liberdade, que é, justamente, a privação da liberdade. O que nos possibilita
compreender o conceito de liberdade é a sua antítese, a falta de liberdade, sua
privação. Vamos a esta outra citação de Paulo Freire, certamente um trecho
fundamental na pedagogia do oprimido e em toda a sua obra.
Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora
atual, se propõem a si mesmos como problema. [...] O problema
de sua humanização, apesar de sempre dever haver sido, de um
ponto de vista axiológico, o seu problema central, assume, hoje,
caráter de preocupação iniludível. Constatar esta preocupação
implica, indiscutivelmente, reconhecer a desumanização, não
apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade
histórica. É também, e talvez, sobretudo, a partir desta dolorosa
constatação que os homens se perguntam sobre a outra
viabilidade a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua
inconclusão, os inscrevem num permanente movimento de busca.
Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto
real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como
seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. Mas se
ambas são possibilidades, a primeira nos parece ser o que
chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas
também afirmada na própria negação. [...] A desumanização [...] é
distorção possível na história, mas não vocação histórica.
(FREIRE, 1987, p.29-30).
A liberdade é um tema existencial. Tem a ver com situações concretas da
vida, e não devemos nunca cair no risco de definições abstratas e etéreas que
pouco dizem à existência humana. Nem todas as definições conceituais seriam
suficientes para explicar a liberdade a alguém privado dela. Mas é justamente
essa privação que possibilita que se deseje a liberdade. Afinal, desejamos aquilo
que não temos. Mas pouco sabemos sobre o que não possuímos e o que
perdemos. Pelo contrário, conhecemos bem o que temos, o que vivemos.
Conhecemos, afinal, a situação de privação da liberdade.
Mas, o que nos permite, afinal, atribuir ao presente a situação de falta de
liberdade? Do que somos privados? Não podemos começar afirmando que somos
privados de liberdade, se nem bem conseguimos defini-la. Mas podemos
facilmente apontar o que nos falta. E o fato de nos sentirmos privados de algo nos
torna insatisfeitos com o tempo presente. Somos insatisfeitos por que
gostaríamos que o mundo fosse diferente, que as coisas fossem diferentes.
Estaríamos satisfeitos se o mundo fosse mais humanizado. Mas não é isso o que
acontece. Não é uma conseqüência natural que o mundo nos proporcione essa
situação de humanização, de nos sentirmos em casa.
O mundo natural não nos permite uma simples adaptação ao meio
ambiente. Necessitamos de mais que uma simples conformação. Não podemos
nos dar ao luxo da conformidade à realidade do mundo natural. É uma questão de
sobrevivência: sem soluções mais elaboradas na tarefa de sobreviver no mundo
natural, morreríamos. A natureza não nos presenteia com o conforto. Este deve
ser adquirido, com muito custo às vezes. Suprir as necessidades básicas como
moradia, vestuário e alimentação, por exemplo exige, mais do que uma simples
adaptação, uma interação com o meio ambiente. Por isso o mundo histórico, o
mundo construído pelo ser humano, é um mundo bem diferente do mundo natural,
da natureza.
E esse é o mundo em que nascemos: o mundo histórico. Nascemos num
mundo pronto. Devemos considerá-lo pronto a partir do fato de que oferece
condições suficientes para a sobrevivência humana nas suas necessidades
básicas. A sobrevivência nesse mundo não depende das interações a serem
feitas com o mundo natural. Todavia, essa característica de um mundo pronto não
esgota a imensa possibilidade de interações com o mundo natural, que nunca se
esgotam. Essas interações, mesmo que não sejam necessárias para a
sobrevivência, nunca cessam, e não deixam de se apresentar como necessárias.
Ou seja, nascemos num mundo pronto, mas não num mundo acabado.
E essa é a diferença entre o mundo natural e o mundo histórico. Se o
mundo natural exige de nós mais do que adaptação, o mundo histórico nos
apresenta uma dupla possibilidade: adaptação e interação. E é essa peculiaridade
que nos permite a discussão sobre a liberdade, pois, como diz Ernani Maria Fiori,
A hominização não é adaptação: o homem não se naturaliza, humaniza o
mundo. A hominização não é processo biológico, mas também história
(FREIRE, 1987, p.14). A transformação da realidade não é apenas uma
capacidade e uma possibilidade do ser humano, mas uma exigência, uma vez
que é resultado de sua consciência crítica. Os seres humanos, no interminável
processo de sua humanização, deverão estar engajados com uma práxis
transformadora para que esse processo não seja interrompido.
Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje
normalizado. Para o critico, a transformação permanente da
realidade, para a permanente humanização dos homens. Para o
pensar crítico, diria Pierre Furter, a meta não será mais eliminar
os riscos da temporalidade, agarrando-se ao espaço garantido,
mas temporalizar o espaço. O universo não se revela a mim (diz
ainda Furter) no espaço, impondo-me uma presença maciça a que
só posso me adaptar, mas com um campo, um domínio, que vai
tomando forma na medida de minha ação
(FREIRE, 1987, 83).
Na possibilidade de interação com o mundo histórico, existe a possibilidade
da liberdade. A transformação da realidade é resultado de uma consciência
crítica, e a ação de uma consciência crítica é resultado da liberdade.
Todavia, somente existe uma possibilidade de transformação
fundamentada em uma necessidade de mudança. Interação é mudança.
Adaptação é continuidade. Não havendo nada que necessite ser mudado,
extingue-se a necessidade de interagir. Então, a pergunta que se deve fazer é:
quem tem a necessidade de mudar? Mudar o quê? Somente as pessoas
insatisfeitas sentem a necessidade e/ou o desejo de mudança. Insatisfeitas com a
injustiça, com a opressão, com a miséria, etc. Situações assim provocam a
necessidade e o desejo de mudança.
A insatisfação com a realidade é a constatação da desumanização. Essa
insatisfação é gerada pela privação de valores que promovem a humanização. E
por desejarmos a nossa humanização, caminhamos em busca desses valores. A
conquista desses valores exige nossa interação com o mundo histórico, para
transformá-lo, para torná-lo mais humano. E é justamente nisso que consiste a
liberdade, a nossa vocação para a liberdade.
Liberdade para mudar o que é dado, o que está pronto. o aceitar um
mundo que nos priva de nossa humanização, mas liberdade para caminhar em
direção a um outro mundo possível, um mundo mais humano. A possibilidade da
liberdade é a possibilidade de mudar um mundo que não nos acolhe, um mundo
no qual não nos sentimos em casa.
É evidente que somente o desejo de mudar a realidade presente não é
suficiente para que isso ocorra. É preciso também acreditar que essa mudança é,
além de necessária, possível. Não é apenas a possível satisfação com a
realidade atual que impede o caminho em direção à mudança, mas também a
conformidade, a aceitação de que esta situação é inevitável. Uma consciência
oprimida é toda consciência domesticada pela situação de opressão em que se
encontra.
A consciência oprimida é desprovida desses dois elementos: esperança e
poder. Não possui qualquer futuro. O futuro pertence ao seu senhor. A ação, por
conseguinte, não cria um novo futuro, pois tal consciência está sempre dominada
pelo opressor. Mas não devemos ignorar o fato de que uma consciência
domesticada é ao mesmo tempo um desejo domesticado. Devemos atentar para
a implicação do desejo no processo de libertação. Pois esperança do novo é ao
mesmo tempo desejo do novo. O poder para realizar a ação transformadora
somente implicará numa ação de fato se houver o desejo de tal transformação.
Assim, a consciência oprimida é ao mesmo tempo e inseparavelmente um desejo
oprimido. Por isso a necessidade de conscientização:
a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera
espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma
esfera crítica na qual a realidade se como objeto cognoscível e
na qual o homem assume uma posição epistemológica
(FREIRE,
1980a, p.26).
Mas por isso também há a necessidade de uma pedagogia do desejo. A
liberdade exige três atitudes: insatisfação, esperança e ação transformadora.
Insatisfação com a realidade presente; esperança de que essa realidade seja
mudada; e ação que possibilite essa mudança. Mas essas três atitudes não
estarão nunca dissociadas do desejo.
4. Considerações sobre o desejo para uma Pedagogia do oprimido
Certamente, uma das grandes contribuições do pensamento de Paulo
Freire tenha sido o diagnóstico de que não existe neutralidade na educação (essa
contribuição se estende a todas as áreas da vida). A opção pela neutralidade já
caracteriza uma tomada de posição, já denota uma posição política. Dessa forma,
desfaz-se qualquer pretensão de uma educação que se pretenda neutra, ou seja,
que não assuma posições políticas pela transformação da sociedade ou pela
manutenção do status quo, pela libertação dos homens e mulheres ou pela sua
domesticação e opressão.
Podemos dizer isso de outra forma. Duas são as dimensões da prática
educativa. A primeira diz respeito aos meios e a segunda diz respeito aos fins. O
primeiro aspecto trata do como a educação acontece, as técnicas de que faz uso,
os instrumentos que usa, concretos ou teóricos, e depende de eficácia. Mas esse
como pressupõe uma complementação, explícita ou implícita: por que e para que
se educa? A primeira pergunta é mais abrangente, e diz respeito ao fundamento
das práticas educativas, fundada na incompletude ontológica dos seres humanos.
A educação é, assim, uma das formas pelas quais os seres humanos se
complementam, se humanizam. O para que da educação deve estar sempre em
relação com o seu porque. A educação existe por que os seres humanos têm a
necessidade de se humanizar, e existe para essa humanização. O sentido da
educação está intrinsecamente ligado ao sentido da vida.
Mas se é certo que a educação pressupõe um sentido que a oriente, esse
sentido não será sempre a humanização das pessoas. Atualmente as discussões
em torno do sentido da vida e do sentido da educação o estão na moda.
Essas discussões não estão em evidência e, conseqüentemente, participar delas
é andar na contra-mão dos interesses dominantes em nossa sociedade
7
. Isso
indica que o discurso dominante em nossa sociedade sobre o sentido da vida e
da educação o amplamente aceitos. A nossa sociedade está dominada pela
cultura de consumo, que estabelece o consumo como critério de humanização
7
Uma atitude profética
levando à conclusão, portanto, de que o sentido da vida é consumir
8
. Assim, se
educa para formar consumidores e profissionais qualificados para a manutenção
das sociedades de consumo.
Porém, um sentido para a vida apenas se sustenta com uma
espiritualidade que seduza e motive. Obviamente existem outros fatores que
envolvem a sedução e a motivação para um sentido de vida, mas é certo que a
espiritualidade
9
, não sendo o único fator, é imprescindível.
A constituição de uma Pedagogia do Desejo deve considerar o tema da
espiritualidade, na medida em que esta diz respeito à , num sentido
antropológico mais amplo, como um componente indispensável de toda a
existência humana, um princípio cognoscitivo que orienta a nossa educabilidade.
Concluímos anteriormente que o ser humano é vocacionado para a
liberdade. Por uma lógica de definição de termos, não é difícil concluir que o ser
humano é vocacionado para a humanização. Temos defendido a idéia, segundo o
argumento de Freire, de que educação deve ser entendida como um elemento
fundamental nesse processo de humanização.
Todavia, causa estranheza que haja tantos obstáculos nos processos de
libertação e humanização. Faz-se necessário distinguir que nem toda educação
nos auxilia na realização da nossa vocação de ser mais, de nos tornarmos
humanos. Por isso, Paulo Freire explicita as distinções de uma educação
problematizadora de concepções e práticas “‘bancárias, imobilistas, fixistas’”
(FREIRE, 1987, p.72). Se podemos falar de uma vocação humana para a
8
Jung Mo Sung analisa as nuances do sentido da vida nas sociedades de consumo, bem como o
caráter religioso que constitui esse sentido: Após a crise dos anos 70 do século passado, o
capitalismo conseguiu impor um novo sentido para a sociedade e para o sistema educacional.
Esse sentido tem a ver com a complexa relação entre o neoliberalismo, o fim do bloco socialista, a
cultura de consumo, a cultura midiática, as filosofias e artes pós-modernas, a globalização
econômica e a mundialização da cultura (SUNG, 2006, p.46). Essa complexa relação culmina na
idéia básica de que o sentido último da vida é consumir o que se deseja ou o que a mídia lhe
indica como o caminho para ser reconhecido na sociedade e para a sua humanização (SUNG,
2006, p.84).
9
A espiritualidade é considerada aqui em seu sentido antropológico mais amplo, como um
componente indispensável uma dimensão de toda a existência humana (SEGUNDO, 1995,
p.31). Edgar Morin chama a atenção para o fato de que Sempre há, por toda parte no planeta, a
força motriz dos mitos e das religiões (MORIN, 2002, p.216), e de que não apenas possuímos as
idéias e os mitos, mas também somos possuídos por eles (MORIN, 2006 p.53). A consideração
dessa dimensão humana essencial serviu de questionamento para a Teologia, que agora tende a
superar uma visão estática da História e da sociedade. Na responsabilidade pela participação na
História e pela realização própria, temos uma indicação de que a Teologia deve evoluir na direção
de uma antropologia teológica (BRITO, 1995, p.61).
humanização, temos que reconhecer que essa vocação nem sempre é entendida
e assumida, que há concepções que a distorcem, e que mesmo pessoas que
compreendem fazer uma opção por segurança frente ao medo de assumir a
liberdade que caracteriza a realização dessa vocação. Pois assumir a vocação
humana implica num movimento em direção à transformação da realidade, rumo à
construção de um futuro mais humano. Contra essa vocação, temos concepções
e práticas imobilistas, fixistas, que pretendem perpetuar o presente. Paulo
Freire denuncia essas concepções:
As ideologias fatalistas são, por isso mesmo, negadoras das
gentes, das mulheres e dos homens. Seres programados para
aprender e que necessitam do amanhã como o peixe da água,
mulheres e homens tornam-se seres roubados se se-lhes nega a
condição de partícipes da produção do amanhã
(FREIRE,
2001b, p.86).
Essa contradição entre a vocação humana de partícipes do amanhã e as
tentativas de perpetuação do presente nos mostra um conflito que não é tão
simples de ser superado. As ideologias fatalistas não são simples de serem
ultrapassadas, e nos cabe questionar as razões por que isso acontece. A despeito
de todos os argumentos possíveis e plausíveis que poderiam motivar fortemente o
desejo de transformação da realidade, esses argumentos parecem ser
insuficientes frente à idéia de que a realidade não pode ser transformada, pois
existe nas nossas sociedades uma idéia da inevitabilidade das desigualdades e
exclusões sociais. (SUNG, 2002b, p.95).
Um dos motivos que permitem tamanha aceitação da inevitabilidade de
mudança das condições atuais reside no fato de que tal ordem não seja eleita a
melhor entre outras disponíveis, mas a única possível. A tese de que o
capitalismo, com sua ideologia neoliberal, representa o único mundo possível
parece ser amplamente aceita. A não existência de alternativas para as condições
atuais significa que a única possibilidade que resta é a perpetuação do presente,
que significa a negação do futuro, o que, por sua vez, significa a negação da
humanidade.
Há uma expressão que se aplica àqueles que não têm perspectivas de se
integrar ao sistema neoliberal. Diz-se, deles, que não têm futuro. E aqueles que,
como se costuma dizer, não têm futuro, têm poucas possibilidades para formar o
advento de um outro futuro coletivo (BORDIEU, 1979, p.8). Mas mesmo aqueles
que, nessa lógica, têm futuro, têm poucas possibilidades para formar o advento
de um outro futuro coletivo, pois estarão comprometidos com a manutenção do
presente. Ora, se o que nos caracteriza como seres humanos é o fato de que
somos seres de integração e transformação, ao invés de seres da acomodação e
do ajustamento, ao aderirem e se ocuparem da manutenção de um mundo pronto,
negamos nossa própria humanidade.
Sem vislumbrar a possibilidade de transformação da realidade, resta a
única tarefa de sua manutenção. Todavia, os que se sentem desconfortáveis
procuram, de fato, uma mudança. Mas não se trata de uma mudança substancial.
Em linguagem de Paulo Freire, os oprimidos desejam se tornar opressores:
É que, quase sempre, num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na
luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou
subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra
condicionada pela contradição vivida na situação concreta,
existencial, em que se formam. O seu ideal é, realmente, ser
homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que
sempre estiveram e cuja superação o está clara, é ser
opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade
(FREIRE, 1987, p.32).
Aqui encontramos, em Paulo Freire, o principal argumento para uma
pedagogia do desejo. Pois o desejo subjaz a toda essa discussão realizada até
aqui. Devemos considerar que se trata de desejar a transformação da realidade,
bem como a sua manutenção, trata-se de desejar se manter ou se tornar
opressor. A educação do desejo diz respeito, assim, às possibilidades de se
desejar para além do que existe, para além dessa realidade na qual estamos
inseridos. Esse desejo nos motivaria a buscar nossa própria humanização. O que
impede esse desejo, no pensamento de Paulo Freire, é o modelo de ser humano
que se aceita como modelo dominante: o opressor.
Seu ideal é serem homens, mas, para eles, serem homens é
serem opressores. Este é seu modelo de humanidade. [...] Isto
não quer dizer necessariamente que os oprimidos não tenham
consciência de que são pisados. Mas o estar imersos na realidade
opressiva impede-lhes uma percepção clara de si mesmos
enquanto oprimidos. A este nível, sua percepção de si mesmos
como contrários ao opressor não significa ainda que se
comprometam numa luta para superar a contradição: um pólo não
aspira à sua libertação, mas à sua identificação com o pólo oposto
(FREIRE, 1980a, p. 57-8).
Há um modelo de humanidade a ser imitado. Aqui temos um ponto de
aproximação entre o pensamento de Paulo Freire e René Girard, com sua teoria
do desejo mimético. Com essa teoria, ele pretende explicar como funciona o
desejo humano, e quais as suas implicações. No próximo capítulo, vamos analisar
o pensamento de René Girard buscando elementos para a constituição de uma
Pedagogia do Desejo a partir de sua relação com o que vimos em Paulo Freire.
II. A religião como educadora do desejo
A tima expiatória, mãe do rito, aparece como a educadora por
excelência da humanidade, no sentido etimológico de educação.
O rito faz sair pouco a pouco os homens do sagrado; permite que
eles escapem de sua violência, afasta-os dela, confere-lhes todas
as instituições e todos os pensamentos que definem sua
humanidade
(GIRARD, 1990, p.373).
Ao analisarmos a consideração do tema do desejo no pensamento de
Paulo Freire, nos deparamos com um dos principais obstáculos à luta pela
libertação: o desejo dos oprimidos de imitar os opressores. A leitura de René
Girard, neste ponto, é de grande importância. A principal contribuição de Girard
sobre o tema do desejo e educação é a sua noção de desejo mimético.
Girard pontua o início de sua trajetória intelectual e de sua teoria a partir do
estudo literário. De fato, sua teoria do desejo mimético praticamente não encontra
fundamento no campo científico. Todavia, sua teoria não se caracteriza como
uma descoberta do desejo mimético. Girard apenas elaborou uma teoria
científica de uma idéia que aprende de clássicos da literatura, em primeiro lugar, e
depois de textos das mais variadas tradições religiosas.
Em sua primeira obra, Mensonge romantique et verité romanesque, dedica-
se ao estudo dos romances de Cervantes, Stendhal, Flaubert, Dostoievski e
Proust (em outras obras, Girard também dedicará bastante espaço para o estudo
de Shakespeare). Nesta obra Girard formulará um dos conceitos-chave de sua
teoria: o de desejo mimético, contra a mentira romântica que supõe a
autonomia do sujeito. Conseqüência da modernidade, o romantismo postula a
idéia de um sujeito radicalmente autônomo e independente, com idéias e desejos
únicos. A teoria do desejo mimético põe em cheque esta idéia, concluindo que o
desejo sempre foi mimético, imitativo
10
. A autonomia do sujeito foi somente uma
ilusão, o desejo humano continua mimético. Grandes clássicos da literatura o
confirmam.
Apenas esse primeiro dado, de que René Girard começa a desenvolver
sua teoria científica a partir de sua leitura de romances, traz grandes
10
Considerarmos com mais calma a teoria do desejo mimético mais à frente
implicações para o estudo acadêmico e pedagógico. Segundo Morin, precisamos
reconhecer os limites da razão e dos processos formais de aprendizagem e
valorizar a arte e a cultura como escolas da vida.
Literatura, poesia, cinema, psicologia, filosofia deveriam convergir
para tornar-se escolas da compreensão. A ética da compreensão
humana constitui, sem dúvida, uma exigência chave de nossos
tempos de incompreensão entre estranhos, mas também entre
membros de uma mesma sociedade, de uma mesma família,
entre parceiros de um casal, entre filhos e pais
(MORIN, 2006,
p.51).
Não seria exagero dizer que a atividade acadêmica de Girard é movida por
essa ética da compreensão humana. De fato, ele pretende uma compreensão do
humano, em tudo o que lhe é característico, buscando uma origem comum para a
cultura, a sociedade e as instituições humanas. Para isso, ele parte da
consideração deste traço antropológico fundamental: o desejo mimético.
Considerando o desejo mimético um traço fundamental do ser humano,
Girard precisa considerar também quais são as suas implicações. O desejo
mimético consiste na imitação do desejo. O ser humano é livre para desejar, e é
impulsionado para desejar. Porém não sabe o que desejar. Mas a indicação de
que um objeto é desejado por alguém indica que tal objeto é digno de ser
desejado. Assim, o ser humano imita os desejos de outro. Obviamente, um objeto
desejado por duas ou mais pessoas não pode pertencer a todos que o desejem. É
inevitável a disputa daqueles que desejam o mesmo objeto. O conflito é a
conseqüência direta do desejo mimético.
Assim, o desejo e a violência são traços fundamentais de sua antropologia.
Todavia, não há como evitar o paradoxo: Os elementos que constituem o humano
se tornam os elementos que podem causar a sua própria destruição.
Para manter sua intuição antropológica, Girard precisou compreender
como foi possível a sobrevivência humana na sua origem, ou seja, como a
espécie humana conseguiu conviver com sua tendência
11
à violência e evitar a
11
Veremos a seguir que não se trata de um instinto de violência. A tendência à violência é uma
conseqüência da natureza mimética do desejo, que também deve ser diferenciado de instinto. A
ênfase de Girard em diferenciar desejo e violência de instinto é, a meu ver, uma forma de enfatizar
a responsabilidade humana na violência. Esse argumento reforça a possibilidade e a necessidade
sua destruição. E ele consegue essa compreensão na análise dos ritos e dos
mitos. Para ele, a origem dos ritos e dos mitos é a solução encontrada pela
comunidade humana para evitar os efeitos desastrosos de sua violência. A origem
da religião se explica pela análise da violência e do sagrado. Nessa perspectiva a
religião, na origem da cultura, é a educadora do desejo. Ou seja, educa a
humanidade para conviver com seu desejo mimético.
Neste capítulo vamos analisar o pensamento de René Girard a partir da
perspectiva da religião como um processo pedagógico.
de uma educação do desejo, uma vez que um instinto não pode ser mudado, ou seja, não há
possibilidade de se educar o instinto.
1. Desejo mimético e violência
À luz desta revelação [da relação entre desejo mimético e
violência], mesmo os estágios precoces da crise sacrificial
mostram-se dominados secretamente pela violência. [...] Em
outros termos, é a violência que valoriza os objetos do desejo. [...]
Em certo sentido, não nada de mais banal que esta primazia
da violência no desejo. Quando é possível observá-la, nós a
nomeamos sadismo, masoquismo, etc. Vemos um fenômeno
patológico, um desvio em relação a uma norma alheia à violência,
acreditando que exista um desejo normal e natural, um desejo não
violento do qual a maioria dos homens não se afasta em demasia.
Se a crise sacrificial é um fenômeno universal, pode-se afirmar
que estas opiniões são errôneas. No paroxismo desta crise, a
violência é ao mesmo tempo o instrumento, o objeto e o sujeito
universal de todos os desejos (GIRARD, 1990, p.178-9).
Já que estamos tratando de mimesis, vou imitar a trajetória de René Girard
e começar com uma referência à literatura. Milan Kundera registra uma conversa
com o professor Avenarius, em A imortalidade, em que este lhe revela seu mais
recente projeto de pesquisa: perguntar às pessoas se preferem dormir
secretamente com Rita Hayworth ou mostrar-se em público com ela (KUNDERA,
1990, p.337). Antes mesmo de iniciar tal projeto, o professor Avenarius já sabe
que todos os homens fingirão querer dormir com ela. Mas a despeito disto, ele
está certo que todos, se pudessem responder sinceramente, se não fosse uma
situação hipotética, prefeririam um passeio na praça. Aqui o objeto de desejo não
é desejado por si mesmo, mas por ser o objeto de desejo de outros. Mais ainda: o
objeto de desejo perde seu fascínio quando está para ser usado para provocar a
admiração dos outros. A posse do objeto de desejo não teria como objetivo este
objeto, mas mostrar aos outros que se possui algo que todos desejam mas que
somente uma pessoa o possui. Não é difícil imaginar as conseqüências
conflituosas de tal desejo e de sua realização. A cena descrita é reveladora, e
engrossa os argumentos de Girard sobre a natureza mimética do desejo. E já
aponta também para a relação entre desejo e violência.
Para citar mais uma vez um texto da literatura, eu não poderia deixar de
citar uma cena antológica de um grande autor brasileiro, Machado de Assis. René
Girard bem que poderia tê-lo usado na mesma perspectiva de sua análise de
grandes gênios da literatura. Desconfio que Machado de Assis possui uma boa
compreensão do mecanismo mimético. De qualquer forma, o desejo mimético é
postulado em suas obras. Vamos à cena, trata-se de um encontro entre Brás
Cubas e Prudêncio. Este era escravo de Brás Cubas, mas havia adquirido sua
liberdade. O protagonista do romance presencia uma cena que chama sua
atenção:
era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se
atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: _ Não,
perdão, meu senhor; meu senhor, perdão! Mas o primeiro não
fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada
nova. [..] Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das
pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança,
montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre,
dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar,
folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele
se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto
juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do
maroto!
12
(ASSIS, 1999. p.131-2).
Esta cena foi de grande importância para mim na compreensão do conceito
freireano do opressor hospedado no oprimido
13
. Ela também é reveladora, e põe
em evidência a dimensão da violência no desejo mimético. Trata-se de um
escravo, Prudêncio, que desejava sua liberdade. Após obtê-la, é revelado o
verdadeiro impulso que o motiva a desejar a liberdade: parecer-se o mais possível
com seu dono! Livre, Prudêncio se encarrega de possuir seu próprio escravo e de
tratá-lo da pior maneira da que era tratado quando escravo. O desejo de imitação
pretende saciar-se com a violência.
Já estou adiantando alguns elementos da teoria de Girard sobre o desejo
mimético. Vamos considerá-la agora.
Como já indicamos, o percurso de Girard começa pela compreensão do
desejo mimético. Com essa compreensão, vem a conclusão de que desejo e
violência são inseparáveis. Esta será a posição de Girard em sua primeira obra, já
citada, e também em A violência e o sagrado, obra em que apresenta sua
primeira formulação de sua teoria antropológica. Mas Girard abre novas
perspectivas em Eu via Satanás cair do céu como um raio e também em Um
12
ASSIS, Machado de. (1881). Memórias póstumas de Brás Cubas. p. 131-2
13
No terceiro capítulo colocaremos em diálogo Paulo Freire e René Girard, então discutiremos
este conceito
longo argumento do princípio ao fim. Neste último livro, ele mesmo faz essa
consideração:
No início, enfatizei principalmente a mímesis competitiva e
conflituosa. Fiz isso porque foi por meio da análise de romances
nos quais a representação de relações conflituosas é essencial
que comecei a compreender o mecanismo mimético. Em meu
trabalho, predomina a mesis , por assim dizer; porém, a
mímesis boa é bem mais importante, estou de acordo. Sem esta
última, não haveria mente humana, não haveria educação, nem
transmissão de cultura (GIRARD, 2000, p.100).
A análise da mímesis boa virá com o estudo da tradição judaico-cristã.
Porém, trataremos disso mais adiante. No momento é preciso considerar a
mímesis má. Como a consideração da mímesis boa vem numa progressão,
podemos considerar que ela será melhor compreendida nessa mesma
progressão. o poderíamos entendê-la satisfatoriamente sem essa progressão.
Não é errado considerar que sem a mímesis não teremos uma boa
compreensão da mímesis boa. Por isso é necessário começar pela relação entre
desejo e violência. Seguindo a argumentação de Girard:
Não obstante, é preciso enfatizar a mímesis , pois sua
realidade continua despercebida e é sempre negligenciada,
tomada erroneamente por comportamento não mimético, até
mesmo negada pela maioria dos pesquisadores e estudiosos
(GIRARD, 2000, p.100).
A primeira consideração a se fazer sobre o desejo é enfatizar a diferença
entre desejo e instinto. Instinto é o conceito que Girard vai usar para classificar as
necessidades humanas. Às vezes essa idéia aparecerá com outras
classificações, como desejos primários, necessidades naturais ou apetites,
enfim, enfatizando o fundamento biológico dos instintos. A característica principal
dos instintos é que eles são predeterminados, com o objetivo de suprir a
sobrevivência pessoal e garantir a sobrevivência da espécie. No domínio dos
instintos não nenhuma característica essencialmente humana. Nisto não
diferença entre os seres humanos e os outros seres vivos.
É preciso não confundir desejo e instinto, mesmo que às vezes algumas
semelhanças possam gerar algumas confusões. Por exemplo, a comida e a
bebida, que são necessidades vitais, são exploradas nas sociedades de
consumo, em que, através das propagandas, há vários modelos mostrando o que
está na moda comer e beber. Mas certamente alguém só poderá se permitir o
luxo de imitar os modelos da propaganda quando não estiver em situação de
carência, quando sua sobrevivência não estiver ameaçada. Em situações de
carência, as pessoas não recorrem ao desejo mimético, mas visam somente
atender suas necessidades vitais. O premiado documentário A ilha das flores
mostra que em situações de carência as pessoas se sujeitam a comer a comida
que sobra dos porcos. Algumas voltas em lugares de extrema pobreza também
mostrarão algo parecido. A caracterização do desejo de consumir como
necessidade é uma invenção da sociedade de consumo, que visa garantir a sua
própria sobrevivência
14
.
A principal diferença entre instinto e desejo é que os instintos são
predeterminados, como já dissemos. Não resultam de uma escolha livre, são
estranhos ao tema da liberdade, mas pertencem ao domínio das necessidades
vitais. Mas uma vez saciadas as necessidades básicas, os seres humanos estão
livres para desejar, porém sem saber o que desejar. Como não são guiados por
nenhum instinto na escolha concreta dos objetos de desejo, precisam de algum
critério externo que diga o que é digno de ser desejado. Este é o dado bom do
desejo. Ele é a primeira característica essencialmente humana.
Se os nossos desejos não fossem miméticos, fixar-se-iam para
sempre em objetos predeterminados, seriam uma forma particular
de instinto. Os homens não seriam capazes de mudar de desejo
mais do que as vacas num prado. Sem desejo mimético não
haveria liberdade nem humanidade. O desejo mimético é
intrinsecamente bom. O homem é uma criatura que perdeu parte
do seu instinto animal para aceder àquilo que se chama desejo.
Uma vez satisfeitas as suas necessidades naturais, os homens
desejam intrinsecamente, mas não sabem exatamente o quê, pois
nenhum instinto os guia. Não têm desejo próprio. Para desejarmos
verdadeiramente, temos de recorrer aos homens que estão à
nossa volta, temos de lhes imitar os desejos
(GIRARD, 1999,
p.32).
14
Girard fala da aproximação de alguns instintos e desejo. Ele menciona a intuição, não
aprofundada, de Darwin na análise do instinto sexual nos animais, o instinto que mais se aproxima
do desejo. De qualquer forma, Girard ressalta a importância de não confundir instinto e desejo. Ver
GIRARD, 2000, p.90-2.
Essa citação de Eu via Satanás cair do céu como um raio é uma das
primeiras vezes que Girard se referiu ao desejo mimético como intrinsecamente
bom. De fato, ele não pretende fazer um julgamento de valor sobre a natureza do
desejo mimético, mas quando diz que em seu trabalho predomina a mímesis
má, está se referindo às praticamente inevitáveis relações entre desejo e
violência. Aqui o desejo mimético aparece como bom não pela possibilidade de
romper essa relação, mas por ser o elemento que confere às pessoas a sua
humanidade. O desejo mimético surge, assim, como um paradoxo: ao mesmo
tempo em que é determinante para a humanização, também traz conseqüências
que ameaçam a sobrevivência. Vejamos uma definição parecida com a última,
mas retirada de A violência e o sagrado, em que Girard acentua com mais ênfase
a natureza violenta do desejo:
Ao mostrar o homem como um ser que sabe perfeitamente o que
deseja, ou, se aparentemente não o sabe, como um ser que
sempre tem um inconsciente que sabe por ele, os teóricos
modernos talvez tenham negligenciado um domínio onde a
incerteza humana é mais flagrante. Uma vez que seus desejos
primários estejam satisfeitos, e às vezes mesmo antes, o homem
deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o quê, pois é
o ser que ele deseja, um ser do qual se sente privado e do qual
algum outro parece-lhe ser dotado. O sujeito espera que este
outro diga-lhe o que é necessário desejar para adquirir este ser.
Se o modelo, aparentemente já dotado de um ser superior, deseja
algo, só pode se tratar de um objeto capaz de conferir uma
plenitude de ser ainda mais total. Não é através de palavras, mas
de seu próprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto
sumamente desejável. Retomamos uma idéia antiga, cujas
implicações, no entanto, talvez sejam mal conhecidas: o desejo é
essencialmente mimético, ele imita exatamente um desejo
modelo; ele elege o mesmo objeto que este modelo (GIRARD,
1990, p.179-80)
.
Girard critica os teóricos modernos por ignorarem a natureza mimética do
desejo. Ao não reconhecerem o desejo mimético, permanecerão ignorantes
também das suas implicações, não sendo capazes de entender a violência. A
importância que Girard atribui a essa compreensão é devido ao fato de ser ela a
porta de entrada para a sua teoria. É preciso compreender a natureza mimética
do desejo para uma boa compreensão da violência, sempre presente e
incompreendida na existência humana.
O ser humano deseja intensamente porque se sente privado do ser. Esta é
uma privação que nem toda a satisfação de seus instintos pode saciar. Trata-se
de um vazio, em linguagem lacaniana, um imenso e eterno vazio
15
. O sujeito, ao
se sentir privado de tal ser, tem a impressão de que o outro é dotado dele. Assim,
o outro pode indicar a forma de adquirir este ser. O sujeito, sendo alguém que
deseja intensamente, sem saber, porém, o que desejar, acredita estar aí a causa
do sentimento de privação. É necessário saber desejar para adquirir o ser do qual
se sente privado. O outro, que deseja, parece, assim, indicar o que deve ser
desejado, como algo capaz de conferir plenitude. Assim surge o desejo mimético.
O desejo é uma busca de plenitude, mas precisa de um modelo que lhe indique o
que deve ser desejado. Se soubesse exatamente o que desejar, esse desejo não
seria mais que uma forma particular de instinto.
A primeira relação do desejo é imitativa, e a conseqüência inevitável desta
é a relação competitiva do desejo. Por imitar o desejo do outro, uma
convergência de dois desejos sobre um mesmo objeto. Assim, a competição
conflituosa é inevitável, pois Dois desejos que convergem para um mesmo objeto
constituem um obstáculo recíproco. Qualquer mimesis relacionada ao desejo
conduz necessariamente ao conflito (GIRARD, 1990, p.180).
Essa relação conflituosa é complexa na dinâmica das relações sociais,
porém não é difícil de ser compreendida e explicada. Girard enfatiza que a causa
das rivalidades são ignoradas porque as semelhanças invocam uma idéia de
harmonia (GIRARD, 1990, p.181). Considera-se positiva a semelhança dos
gostos, o fato de que duas pessoas apreciem as mesas coisas; todavia a
semelhança de desejos ignora o fato de que o desejo precisa saciar-se de alguma
forma. A convergência de dois desejos para um mesmo objeto provoca o conflito,
pois um mesmo objeto não pode pertencer às duas pessoas que o desejam ao
mesmo tempo. Esses conflitos tendem ainda a se estender, pois a relação pode
15
Essa é uma linguagem muito comum, resultado de algumas correntes existencialistas, dizer que
somos dotados de um vazio. Essa linguagem, tornada vulgar, ganha inúmeras aplicações em tom
de ditados populares. Talvez a mais comum seja a que afirma que se trata de um vazio que
somente Deus pode preencher. Esse pensamento, mesmo tornado popular, não deixa de ter
origem em formulações teóricas. A compreensão de Deus a partir deste vazio existencial é o ponto
de partida para muitas formulações. Tomando o pensamente de Girard a partir desta perspectiva,
as implicações de sua teoria nos levam a formular que o preenchimento deste vazio se associa à
idolatria. Assumi-lo existencialmente, por outro lado, como algo que nada pode preencher, é um
bom começo para uma boa formulação teológica.
deixar de ser triangular para envolver mais pessoas, sucessivamente. A
conseqüência é lógica, pois se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto
de desejo, os observadores deste conflito só podem concluir que se trata de um
objeto muito digno de ser desejado, e passam a desejá-lo também. Assim,
aumentam a relação conflituosa. Aqui temos uma primeira indicação do
contágio mimético e da voracidade da violência que se desencadeia e nunca se
sacia.
É preciso enfatizar o fato de que a violência é uma conseqüência imediata
do desejo mimético. Não devemos considerá-la como um fato acidental, assim
como não podemos considerar acidental a convergência de dois desejos para um
mesmo objeto. Neste caso, o objeto de desejo seria o deflagrador da violência, e
seria também o responsável por despertar o desejo. Mas estamos insistindo que a
natureza do desejo é o mimetismo. Devemos evitar a interpretação dos conflitos a
partir dos objetos.
A rivalidade não é o fruto da convergência acidental de dois
desejos para o mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o
próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival designa-o
sujeito como desejá-lo. O rival é o modelo do sujeito, não tanto no
plano superficial das maneiras de ser, das idéias, etc., quanto no
plano mais essencial do desejo
(GIRARD, 1990, p.180).
Os papéis que caracterizam o princípio da relação mimética são de modelo
e discípulo. Com a rivalidade que surge, esses papéis se transformam em rival e
sujeito, para usar os termos de Girard. No princípio, modelo e discípulo não
reconhecem essa transição de papéis, ou seja, não reconhecem o surgimento da
rivalidade recíproca. O modelo, mesmo encorajando a imitação do desejo, o que
se pode considerar como um fato positivo, em termos de vaidade, se surpreende
com a concorrência que surge com a convergência do desejo, e interpreta essa
concorrência como uma traição do discípulo. O discípulo, por sua vez, interpreta
na concorrência uma censura e uma humilhação, pois o modelo não o
consideraria digno de possuir tal objeto de desejo. Essa relação de modelo e
discípulo é característica das relações humanas. Mas é necessário compreendê-
la bem: um discípulo escolhe um modelo por considerá-lo dotado de um ser do
qual ele, o discípulo, se sente privado. Todavia essa sensação de privação é uma
característica essencial humana que, mesmo aquele que serve de modelo numa
determina relação partilha. O papel de modelo não é definitivo. Alguém que serve
de modelo numa relação certamente terá seus próprios modelos em outras
relações. Do mesmo modo, a relação entre modelo e discípulo não é fixa. Pode
se transformar. O próprio discípulo pode servir de modelo ao seu próprio modelo.
Evidentemente, a posição de discípulo é a única essencial. É através dela que
deve ser definida a situação humana fundamental (GIRARD, 1990, p.181).
Essa relação de modelo e discípulo não tarda a se transformar numa
relação conflituosa, de rivalidade e sujeito, que tem inicio na própria contradição
que a caracteriza. O imperativo à imitação acompanha sempre, inevitável e
paradoxalmente, o imperativo à não imitação; pois mesmo que a imitação seja
lisonjeira num primeiro momento, a concorrência conseqüente ameaça a posse
do objeto de desejo. Assim, o modelo percebe que a não imitação não colocaria
em risco a satisfação de seu desejo. A relação de concorrência é interpretada
pelo discípulo como uma condenação por parte do modelo. Esta condenação
parecerá injusta e absurda, mas será ao mesmo tempo confusa, pois o discípulo
não deixará de considerar a autoridade do modelo, e, assim, se questionar se
essa condenação não seria justificável. O não reconhecimento da rivalidade
recíproca e as confusões que cercam os conflitos tendem a alimentar a violência.
Há aqui um processo que se alimenta de si mesmo e que se
exacerba e simplifica incessantemente. Sempre que o discípulo
acredita encontrar o ser diante dele, esforça-se por atingi-lo,
desejando o que o outro lhe designa; e inexoravelmente ele
encontra a violência do desejo adverso. Por um processo de
abreviação ao mesmo tempo lógico e demente, ele se convence
rapidamente que a própria violência é o signo mais seguro do ser
que sempre se esquiva. A partir de então, violência e desejo
permanecem ligados
(GIRARD, 1990, p.182-3).
O desejo mimético é o detonador das relações conflituosas, e ele tende
mesmo a desaparecer conforme o desenvolvimento da violência. Melhor dizendo,
o desejo não desaparece, mas o desejo do objeto que gera o conflito dá lugar ao
desejo de violência. O objeto de desejo inicial desaparece e lugar à violência,
ou seja, a violência torna-se o objeto de desejo. Mais ainda, conforme os conflitos
atinjam o nível da crise, a violência é ao mesmo tempo o instrumento, o objeto e
o sujeito universal de todos os desejos (GIRARD, 1990, p.179).
Da mesma forma que insistimos na necessidade de diferenciar desejo de
instinto, convém ressaltar que a violência não se explica em termos de instinto.
Girard chama a atenção para o fato de que animais são individualmente dotados
de mecanismos reguladores da violência que favorecem a perpetuação da
espécie. Podemos observar que tais mecanismos impedem quase sempre que os
combates, nestes casos, levem à morte. Somente em referência a tais
mecanismos, é legítimo utilizar a palavra instinto (GIRARD, 1990, p.179). Tal não
é o caso do que acontece com seres humanos.
A idéia
de
um instinto [...] não passa de uma posição tica de
recuo, um combate de retaguarda da ilusão ancestral que
impulsiona os homens a colocar sua violência fora deles mesmos,
transformando-a em um deus, um destino, ou um instinto, pelo
qual eles não são mais responsáveis e que os governa de fora.
Trata-se, mais uma vez, de não encarar a violência, de encontrar
uma nova escapatória, de arranjar, em circunstâncias cada vez
mais aleatórias, uma solução sacrificial alternativa
(GIRARD,
1990, 179).
Associar violência a um instinto nos impediria de compreender a sua
origem, bem como as suas implicações e seus desenvolvimentos. Gerada pelo
desejo mimético, a rivalidade recíproca gera os conflitos que desencadeiam um
ciclo de violência, um processo que se alimenta de si mesmo, como observou
Girard. As rivalidades recíprocas e as relações conflituosas, ao mesmo tempo em
que são alimentadas pela violência, a alimentam cada vez mais. A violência se
mostra com uma voracidade insaciável e tende a ganhar proporções cada vez
maiores à medida que vai contagiando cada vez mais e mais pessoas, fenômeno
que Girard denomina de contágio mimético. Esse contágio mimético instaura o
caos, a crise da violência.
A esta altura, convém ressaltar que, embora o desejo mimético seja uma
característica essencialmente humana e as suas implicações sejam fenômenos
universais, estamos tratando aqui justamente do processo de humanização, que
não ocorre dissociado do processo de socialização. Não como ignorar que as
conseqüências dos desejos e das rivalidades miméticas, do contágio mimético da
violência, e da crise mimética que então se instauram têm efeitos devastadores.
Surgem questionamentos inevitáveis, tais como: como foi possível a socialização
se considerarmos a inevitabilidade desse caos? Como foi possível que os seres
humanos criassem uma sociedade humana a partir de um processo
essencialmente humano que conduziria à sua própria destruição? Teria sido
necessário um mecanismo que impedisse os efeitos catastróficos e aniquiladores
desse caos instaurado. O simples fato de existirmos hoje revela que de fato esse
mecanismo foi criado, assim como revela também a sua eficácia. Esse
mecanismo nos conduz à gênese da religião. É o que veremos a seguir.
2. A gênese do religioso: a violência e o sagrado
A presença do religioso na origem de todas as sociedades
humanas é indubitável e fundamental. De todas as instituições
sociais, o religioso é a única à qual a ciência nunca conseguiu
atribuir um objeto real, uma verdadeira função. Afirmamos,
portanto, que o religioso possui como objeto o mecanismo da
vítima expiatória; sua função é perpetuar ou renovar os efeitos
deste mecanismo, ou seja, manter a violência fora da comunidade
(GIRARD, 1990, p.119).
A constatação da presença da violência, dos sacrifícios, dos ritos, dos
mitos e da religião em todas as sociedades primitivas é consensual entre
etnólogos e antropólogos. As divergências surgem nas compreensões e
explicações desses fenômenos. René Girard reconhece a originalidade de sua
teoria ao afirmar a dificuldade da ciência em atribuir uma verdadeira função à
religião. Não é comum também que se relacionem esses fenômenos citados de
forma tão interdependentes em sua relação com a violência. E a tese de Girard é
justamente a de atribuir uma função real à religião a partir de sua relação com a
violência.
Vimos como a violência se desencadeia a partir do desejo mimético. Um
ciclo de violência poderia alcançar proporções desastrosas a ponto de ameaçar a
própria existência humana se as pessoas não encontrassem uma maneira de
frear esse ciclo. Esse mecanismo encontrado é a origem da religião e,
conseqüentemente, possibilita o surgimento da cultura, da sociedade e das
instituições humanas. Daí a afirmação de Girard de que A presença do religioso
na origem de todas as sociedades humanas é indubitável e fundamental
(GIRARD, 1990, p.119). O fato de ser indubitável não pede explicações e não
exige argumentação frente ao grande número de provas. Mas dizer que se trata
de uma presença fundamental exige, ao menos, uma elucidação sobre o papel da
religião no processo de humanização. Segundo Girard, a religião é fundamental
justamente por sua função de evitar que a violência ganhasse proporções
desastrosas e ameaçadoras.
Podemos estabelecer, de forma bastante simplificada, apenas para fins
didáticos, uma seqüência do desenvolvimento dos fenômenos até a gênese do
religioso: o desejo mimético provoca as rivalidades recíprocas, que iniciam um
ciclo de violência, que é apaziguado pelo sacrifício, que origina o rito e o mito.
Precisamos tomar em sentido muito concreto os efeitos do ciclo da
violência. A violência, levada até as últimas conseqüências, termina sempre no
assassinato. O assassinato poderia, enfim, saciar a voracidade da violência. Mas
o assassinato não traz nenhuma garantia de r fim à violência, pois ele não
elimina outras rivalidades. Devemos considerar ainda que o assassinato, quase
sempre, exige uma vingança. O assassinato poderia saciar a violência, mas, ao
contrário, ele a instiga ainda mais. Pois cada assassinato exigirá uma vingança,
sucessivamente, num ciclo interminável. Segundo Girard, é aqui que devemos
compreender a origem do sacrifício: É preciso encontrar as relações conflituais
simultaneamente dissimuladas e apaziguadas pelo sacrifício e por sua teologia
(GIRARD, 1990, p.20).
Qual é a teologia do sacrifício? Há também aqui consenso na compreensão
do sacrifício como um ato substitutivo. O sacrifício efetua uma substituição de
alguém que o mereceria pela vítima sacrificial. A questão que se coloca é: qual é
a substituição que o sacrifício promove? Segundo Girard, devemos responder
essa questão em duas etapas: o primeiro sacrifício; e o rito sacrificial.
O sacrifício é um ato coletivo. Mas consideremos a crise do ciclo de
violência. Esse ciclo atinge o nível da crise no momento em que todos estão
envolvidos pela violência. Todos estão contra todos e a sobrevivência de todos
está ameaçada. Mas o sacrifício, como um ato coletivo, não será possível se o
grupo estiver dividido. É necessário que o grupo esteja unido para a realização do
sacrifício. E isso é possível por uma estranha transição do todos-contra-todos
para o todos-contra-um. A ameaça do aniquilamento e a insaciedade da violência
conduzem o grupo a canalizar toda a sua violência contra uma única pessoa.
Assim, a violência de todos-contra-todos se concentra na violência de todos-
contra-um. O todos-contra-um é a primeira e paliativa alternativa encontrada para
evitar os males catastróficos da violência. É preciso interpretar o sacrifício como
violência alternativa (GIRARD, 1990, p.20). Assim, a vítima escolhida para o
sacrifício está substituindo não um indivíduo, mas todo o grupo. É a comunidade
inteira que o sacrifício protege de sua própria violência.
Mas qual é a garantia de que o sacrifico irá de fato apaziguar a violência?
Pois o próprio sacrifício é um ato violento, um assassinato, por assim dizer.
Observemos as características das vítimas sacrificiais. Segundo Girard, o
principal critério para a escolha das vítimas é a sua não integração à sociedade
(GIRARD, 1990, p.26). É necessário que a tima se identifique o menos possível
com as pessoas da comunidade, e a razão disto é diferenciar o ximo possível
o sacrifício de um assassinato. Pois o assassinato exigiria vingança, e o ciclo de
violência continuaria. A vítima do sacrifício, por sua, vez, deverá ser uma que não
exija a vingança. Por isso encontramos no leque das vítimas sacrificiais os grupos
de pessoas que mais destoam do comum da sociedade: doentes, aleijados,
crianças, prisioneiros, etc. (GIRARD, 1990, p.25). Girard analisa que mesmo os
animais têm essa função, pois devem ser considerados num duplo aspecto, a
partir de suas semelhanças e de suas diferenças com as pessoas (GIRARD,
1990, p.15). Mesmo os reis, que também não escaparam de serem escolhidos,
devem ser considerados a partir de sua posição que o distingue das outras
pessoas da sociedade (GIRARD, 1990, p.26).
E tanto menos se identificará o sacrifício violento quanto mais ele for
entendido como um ato de justiça. Deve-se acreditar na culpabilidade da vítima. A
vítima é efetivamente considerada culpada pela crise que toma conta do grupo. A
característica de não integração à sociedade contribui para a crença na culpa da
vítima, pois as suas diferenças em relação ao comum do grupo, por não serem
bem compreendidas, são tidas como prováveis explicações para a o motivo de a
vítima causar a crise. Quanto mais se acreditar na culpa da vítima, tanto melhor
serão os efeitos do sacrifício. Não por acaso as acusações contra as vítimas
sacrificiais beiram o exagero, tornando notória sua inverossimilhança. E quanto
maior se acreditar ser a culpa da vítima, mais eficazes serão os efeitos catárticos
do sacrifício.
O sacrifício é, assim, o assassinato que não exige vingança, que apazigua,
mesmo que paliativamente, a violência. A interpretação do sacrifício a partir de
sua relação com a violência é esclarecedora, segundo Girard:
Se o sacrif
ício mostra-se como uma violência criminosa, não há,
em contrapartida, violência que não possa ser descrita em termos
de sacrifício [...]. Este fato é tão evidente que salientá-lo pode
parecer ridículo. Mas isto não é inútil, pois quando se trata do
sacrifício, as maiores evidências não possuem apelo algum.
Desde que se decidiu transformá-lo em uma instituição
essencialmente ou até mesmo puramente simbólica,
praticamente qualquer coisa pode ser dita sobre ele. O tema
presta-se maravilhosamente a um certo tipo de reflexão irreal.
um mistério do sacrifício. As piedades do humanismo clássico
adormecem nossa curiosidade, mas a familiaridade com antigos
autores desperta-a. Hoje, o mistério continua tão impenetrável
quanto sempre. Na maneira com a qual os modernos o manejam
não se sabe o que predomina: se a indiferença, a distração, ou
uma espécie de secreta prudência. aqui um segundo mistério,
ou ele é o mesmo? Por que, por exemplo, ninguém se pergunta
sobre as relações entre o sacrifício e a violência? (GIRARD, 1990,
p.13-14).
O sacrifício tem origem na violência, e usa da violência para apaziguar a
própria violência. A vítima sacrificial, no primeiro sacrifício substitui toda a
comunidade. Apaziguada a violência, a comunidade reconhece a paz perdida
pelas rivalidades recíprocas e pelo ciclo de violência. O sacrifício desempenha,
assim, a função de afastar a violência. Todavia, seus efeitos não duram para
sempre, e chegará novamente o momento em que a comunidade se deparará
com um novo caos, uma nova crise violenta. As pessoas continuam a desejar,
esse desejo continuará a ser mimético, o desejo mimético continuará a provocar
rivalidades recíprocas, essas rivalidades ocasionarão conflitos, esses conflitos se
estenderão, a violência será novamente desencadeada, ocasionando uma nova
crise.
Mas desta vez o grupo terá a memória da primeira resolução para a crise
da violência. E acreditará que, repetindo o primeiro sacrifício, conseguirá
novamente afastar a ameaça da violência. Assim nasce o rito, na repetição do
primeiro sacrifício. Para garantir a eficácia da repetição do primeiro sacrifício, a
comunidade tentará reproduzi-lo da maneira mais semelhante possível. E como
não é possível se dirigir à mesma vítima do primeiro sacrifício, a vítima escolhida
terá a função de substituir a primeira vítima.
Temos, assim, a origem do rito a partir da repetição dos rituais de sacrifício.
Essa interpretação do sacrifício a partir da sua relação com a violência e da sua
função de proteger dos efeitos da violência é segundo Girard uma abordagem
essencial, que nos faz perceber o quão comum ele é à existência humana em
todos os seus aspectos:
Sacrifícios são oferecidos em nome dos mais variados objetos ou
empreendimentos, principalmente a partir do momento em que o
caráter social da instituição começa a desaparecer. No entanto, há
um denominador comum da eficácia sacrificial, tão mais visível e
preponderante quanto mais viva for a instituição. Este
denominador é a violência intestina: as desavenças, as
rivalidades, os ciúmes, as disputas entre os próximos, que o
sacrifício pretende inicialmente eliminar; a harmonia da
comunidade que ele restaura, a unidade social que ele reforça.
Todo o resto decorre disto. Se abordarmos o sacrifício através
deste aspecto essencial, através desta via real da violência que se
abre diante de nós, perceberemos claramente que ele não é
estranho a nenhum outro aspecto da existência humana, nem
mesmo à prosperidade material. É verdade que quando os
homens se desentendem, nem por isso o sol deixa de brilhar e a
chuva de cair, mas os campos são menos bem cultivados, com
prejuízo das colheitas
(GIRARD, 1990, p.21).
Obviamente o rito sacrificial não poderá ser considerado satisfatório a partir
de sua função se considerarmos que ele, efetivamente, não elimina a violência.
De fato, não a elimina definitivamente e nem mesmo no momento do próprio ato
do sacrifício. Por isso, devemos entender o rito sacrificial como um ritual de
purificação da violência, da boa violência, se a podemos chamar assim, aquela
praticada para apaziguar os efeitos da violência , aquela que ameaça a
sobrevivência da sociedade.
O rito pretende, assim, tolerar uma violência a do sacrifício na tentativa
de extirpar qualquer forma de violência intolerável. Não intolerável segundo
alguma forma de moralidade, mas a partir do ponto de vista da sobrevivência da
sociedade. O rito dissimula a violência, tornando-a tolerável. Todavia, o rito não
purifica qualquer tipo de violência, mas somente uma violência específica e bem
definida, aquela praticada no sacrifício.
É preciso não perder de vista que estamos tratando de uma teoria sobre a
gênese do religioso, que é também a gênese da cultura, da sociedade e das
instituições humanas. Estamos nos referindo aqui às sociedades primitivas, sem
nenhum recurso, como por exemplo, um sistema judiciário, para evitar os efeitos
catastróficos da violência. Nessas sociedades, o caráter paliativo dos ritos
sacrificiais deve ser considerado como uma tentativa de prevenção. Não uma
prevenção da violência, mas dos seus efeitos destrutivos. Assim, a dissimulação
da violência nos sacrifícios rituais deve ser interpretada a partir da sua natureza
preventiva.
Nestas sociedades, os males que a violência pode causar são tão
grandes e os remédios tão aleatórios, que a ênfase é colocada na
prevenção. E o domínio do preventivo é primordialmente o
domínio religioso. A prevenção religiosa pode ter um caráter
violento. A violência e o sagrado o inseparáveis. A utilização
ardilosa de certas propriedades da violência, em especial de sua
capacidade de deslocar-se de um objeto a outro, dissimula-se por
trás do rígido aparato do sacrifício ritual (GIRARD, 1990, p.33).
Devemos compreender bem o caráter preventivo do rito em sua relação
com a violência. A função do rito é purificar a violência, dissimulando-a sobre
vítimas que não possam ser vingadas (GIRARD, 1990, p.53). Esse é o segredo
de sua eficácia na tarefa de apaziguar a violência. Mas Como o segredo de sua
eficácia escapa-lhe, o ritual tenta compreender sua própria operação no nível de
substâncias e de objetos capazes de fornecer pontos de referência simbólicos
(GIRARD, 1990, p.53).
Esses pontos de referências simbólicos serão a base para a construção
dos mitos. Os mitos devem ser compreendidos nesse gradativo processo de
tentativa de apaziguar a violência. O mito é versão única e indiscutível da crise já
passada (GIRARD, 1990, p.108). Não se trata, porém, de uma intenção pura e
simples de narrar a crônica da superação da crise. Trata-se de rememorar,
sempre e de novo, todos os eventos que envolveram o surgimento da crise e a
sua superação. A função do mito é justificar e operacionalizar o rito. O mito
rememora a origem do rito e a sua eficácia.
Obviamente não podemos encontrar esses elementos explícitos no mito.
Permanece aí a necessidade de uma interpretação do recalcado do mito, aliás,
uma necessidade que sempre houve. Segundo Girard, o verdadeiro recalcado do
mito é a rememoração do sacrifício ritual. A violência se dissimula sob os temas
visíveis dos mitos, se afasta e se oculta pelo mecanismo da vítima expiatória
(GIRARD, 1990, p.109). Para realizar plenamente a sua função, o mito deve
também, necessariamente, ocultar o principal segredo do mecanismo da vítima
expiatória: a inocência da vítima. Assim, a função do mito também é, de certa
forma, silenciar a vítima, alimentando a crença na sua culpa.
Temos aqui, de forma simplificada e direta, os principais argumentos de
Girard para a origem da religião e para sua presença fundamental na origem de
todas as sociedades humanas. Segundo Girard, a incapacidade de atribuir à
religião uma função real e concreta deve-se à recusa de se analisá-la em sua
relação com a violência. Devemos reconhecer essa estreita relação entre a
violência e o sagrado.
O jogo do sagrado e o jogo da violência são apenas um. Sem
dúvida, o pensamento etnológico dispõe-se a reconhecer, no seio
do sagrado, a presença de tudo o que pode ser recoberto pelo
termo violência. Mas ela acrescentará imediatamente que
também, no sagrado, algo de diferente e mesmo contrário à
violência. tanto a ordem quanto a desordem, tanto a paz
quanto a guerra, tanto a criação quanto a destruição. Parece
haver no sagrado tantas coisas heterogêneas, opostas e
contraditórias, que os especialistas desistiram de compreender a
confusão: desistiram de dar uma definição relativamente simples
do sagrado. A identificação da violência fundadora conduz a uma
definição extremamente simples e esta definição não é ilusória;
ela revela a unidade sem escamotear a complexidade, permitindo
organizar todos os elementos do sagrado em uma totalidade
inteligível
(GIRARD, 1990, p.314-5).
Se considerarmos essa relação, não apenas teremos uma hipótese
bastante coerente e plausível sobre a gênese do religioso, mas teremos também
elementos para uma boa compreensão da dinâmica da violência, na atualidade,
bem como elementos que nos indiquem caminhos para a sua superação. Vimos
até aqui como a religião, em seu nascimento, apenas conseguiu desempenhar
uma função paliativa, e por isso insatisfatória, de apaziguar os efeitos da
violência. Veremos a seguir como a tradição judaico-cristã representou a tentativa
de superar a violência.
3. Dos mitos à tradição judaico-cristã
Apenas os textos bíblicos e evangélicos permitem vencer esta
ilusão [a da culpa da vítima] porque os próprios autores a
ultrapassaram. Quer na Bíblia hebraica quer na Paixão, dão
representações, exatas no essencial, de fenômenos de multidão
muito análogos aos dos mitos. Inicialmente, seduzidos e
enganados pelo contágio mimético, tal como os autores dos mitos,
os autores bíblicos e evangélicos foram, finalmente,
desenganados. Esta experiência única torna-os capazes de
aperceber, por detrás do contágio mimético que os
desencaminhou juntamente com o resto da multidão, a inocência
da vítima
(GIRARD, 1999, p.17).
Para apresentarmos a teoria de Girard sobre a gênese da religião, nos
apoiamos essencialmente em A violência e o sagrado. Neste livro, Girard
investiga exaustivamente os variados mitos e ritos para formular uma hipótese
sobre o nascimento e desenvolvimento da religião primitiva. Como citamos
anteriormente, o próprio Girard considera que num primeiro período sendo A
violência e o sagrado a sua principal obra desse período predomina em seu
trabalho uma análise da mímesis competitiva e conflituosa, a mímesis . Ela
será considerada não somente por provocar competições e conflitos, mas
também por prender as pessoas à lógica da violência, tornando necessário que
se recorra à violência como uma medida preventiva aos próprios efeitos da
violência, como vimos anteriormente. Porém, a mímesis boa é bem mais
importante, estou de acordo. Sem esta última, não haveria mente humana, não
haveria educação, nem transmissão de cultura (GIRARD, 2000, p.100).
Todavia, a boa mímesis existe apenas em sua relação com a , ou
seja, ela não representa uma superação da mímesis má, não significa uma
superação da violência, mas acena para a possibilidade de sua superação.
Assim, superar a violência é uma possibilidade concreta na existência humana,
porém, sem excluir a violência do seu lugar comum nessa existência.
Isso quer dizer que esse primeiro período de Girard exigiu um
complemento. De fato, isso aconteceu com Eu via Satanás cair do céu como um
raio. Este livro é uma análise de como a tradição judaico-cristã compreendeu a
necessidade de superar os mitos e a possibilidade de superar a violência. Em A
violência e o sagrado, na conclusão, Girard indica que as implicações de sua
teoria do mecanismo da vítima expiatória o conduzem a ampliá-la em direção ao
judaico-cristão e à totalidade da cultura (GIRARD, 1990, p.377).
A superação dos mitos pelo judaico-cristão se deve a um
desmascaramento dos mitos, o que é possível por uma compreensão muito
lúcida do desejo mimético e de suas implicações, bem como pela descoberta da
inocência da vítima. Essa compreensão e essa descoberta conduzem a uma
tomada de posição em favor e em defesa das vítimas.
Todavia, compreenderemos melhor a tradição judaico-cristã se não a
consideramos simplesmente como um rompimento dos mitos, mas como sua
superação. O surgimento do judaico-cristão só foi possível porque, digamos
assim, o ciclo mimético preparou o solo em que se deu o seu nascimento.
Devemos compreender o religioso como uma revelação pedagógica que conduz a
humanidade à superação da violência
16
. Neste processo, os mitos são uma etapa
fundamental, pois o mecanismo do bode expiatório precede qualquer espécie de
ordem cultural e permite o desenvolvimento de uma ordem cultural.
A pergunta é: de que modo? E a resposta está no rito: graças a
ele, uma ordem cultural pode desenvolver-se. O rito equivale a
uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode
expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução
de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e
sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de
situação. O rito vira a instituição reguladora das crises
(GIRARD,
2000, p.96).
O sagrado arcaico cumpre sua função quando atua nesse processo
pedagógico, conduzindo à sua própria superação. Todavia, quando tenta
perpetuar-se, sacraliza a violência, deixando de considerá-la em seu caráter
preventivo para divinizá-la. A isso os evangelhos denominam Satanás: a
sacralização do sacrifício expiatório. Quando livre entre os homens, o sagrado
arcaico é satânico; mas não as religiões arcaicas, uma vez que tentam manter
esse sagrado violento fora da comunidade (GIRARD, 2000, p.215).
A sacralização da violência corresponde, nos Evangelhos, à divinização de
Satanás. Os evangelhos denominarão Satanás às investidas de perpetuação do
ciclo mimético, no qual a humanidade é enganada a acreditar na necessidade
16
Essa questão será retomada no terceiro capítulo.
da violência como uma solução para as crises. Mesmo a despeito da tentativa de
superar a violência, o ciclo mimético perpetua o engano da dependência da
violência. E consegue isso justamente por se acreditar que será mesmo um
mecanismo eficiente para eliminar a violência.
Os exorcismos são uma maneira de expulsar os demônios. Os exorcismos
são necessários quando a convivência com os demônios são insuportáveis, ou
seja, quando a violência atinge seus níveis mais nocivos. Assim, os exorcismos
expulsariam Satanás e o engano da dependência do ciclo mimético. Todavia,
porque novos exorcismos são sempre necessários? O que aconteceria, por
exemplo, se fosse possível que o próprio Satanás fosse capaz de exorcizar-se?
Não é o que acontece com a expulsão da violência pela própria violência? Não é
isso também que torna possível a perpetuação do ciclo mimético? Segundo
Girard, o texto essencial a respeito da expulsão satânica de Satanás é a resposta
de Jesus às pessoas que o acusam de expulsar Satanás por Belzebu, o príncipe
dos demônios:
Como pode Satanás expulsar Satanás? Se um reino se dividir
contra si mesmo, tal reino não pode perdurar; e, se uma casa se
dividir contra si mesma, tal casa não pode subsistir. Se, portanto,
Satanás se levanta contra si próprio, está dividido, e não poderá
subsistir; é o seu fim
(Mc 3,23-26).
Essa postura em relação ao ciclo mimético é uma tomada de posição
conseqüente, em primeiro lugar, da compreensão do desejo mimético e de suas
conseqüências. Girard considera que um exame atento mostra que existe, na
Bíblia e nos Evangelhos, uma concepção original e desconhecida do desejo e de
seus conflitos (GIRARD, 1999, p.23). Girard atribui uma importância decisiva ao
décimo mandamento. Na verdade, a segunda metade do decálogo é inteiramente
consagrada à proibição da violência contra o próximo. Esses mandamentos
proíbem as violências mais graves, por ordem decrescente de sua gravidade:
Não matarás.
Não adulterarás.
Não roubaras.
Não dirás falso testemunho contra o teu próximo
. (Êx 20.13-16).
O décimo mandamento, por sua vez, encerra essa lista de proibições das
violências, revelando a sua causa:
Não cobiçaras a casa de teu próximo. Não cobiçarás a mulher do
teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi,
nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu
próximo
(Êx 20.17).
Ao invés de proibir uma ação violenta, o décimo mandamento proíbe um
desejo, revelando, assim, uma lúcida compreensão da origem dos conflitos e das
violências: o desejo mimético.
O que o décimo mandamento esboça, sem o definir de maneira
explícita, é uma revolução copérnica na inteligência do desejo.
Julga-se que o desejo possa ser objetivo ou subjetivo, mas, na
realidade, baseia-se num outro que valoriza os objetos, o terceiro
que está mais perto, o próximo. Para se manter a paz entre os
homens, há que definir a proibição em função desta atroz
constatação: o próximo é o modelo dos nossos desejos. É a isto
que chamo o desejo mimético
(GIRARD, 1999, p.26).
Todavia, é preciso considerar que essa revolução na inteligência do
desejo que o décimo mandamento revela apenas esboça uma solução para as
conseqüências do desejo mimético. Pois a proibição contida no décimo
mandamento apenas inibe manifestações mais evidentes do desejo mimético.
Mas não consegue, sem dúvida, eliminá-lo da existência humana. Pelo contrário,
as proibições têm, constantemente, um efeito colateral: acabam por provocar o
interesse naquilo que proíbem. O apóstolo Paulo tem uma boa percepção desse
fenômeno. Novamente, devemos considerar a lei em seu aspecto pedagógico:
Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não
teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não
teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás.
Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em
mim toda a sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o
pecado
(Rm 7.7-8).
Assim, a tradi
ção judaica, a exemplo dos mitos, mas superando-os, deve
ser compreendida também em seu caráter preventivo. Não apresentam, ainda,
uma solução para a violência, mas apontam na sua direção.
A superação dos mitos pela Bíblia Hebraica, e mesmo pelos Evangelhos,
aliás, se pela adesão inicial ao próprio mito. Os autores bíblicos o
inicialmente seduzidos e enganados pelo contágio mimético. Girard demonstra
que as representações dos fenômenos de multidão descritos na blia são
análogas aos mitos. A Paixão o revela claramente quando Jesus é acusado
culpado pela unanimidade. Os próprios discípulos inicialmente aderem ao
contágio mimético.
Todavia, os textos da Bíblia Hebraica, nesta perspectiva, são escritos a
partir do ponto de vista das vítimas, mesmo que não se possa fazer muito por
elas... Mas os Evangelhos, em que um grupo de seguidores proclama a inocência
de Cristo, anunciando a sua ressurreição, superam definitivamente os mitos. Se a
tradição judaica supera os mitos apenas em parte, não superando totalmente a
violência, ela anuncia a solução definitiva encontrada pelos Evangelhos.
A revolução que o décimo mandamento anuncia e prepara
desenvolve-se nos Evangelhos. Se Jesus nunca fala em termos
de proibições e sempre em termos de modelos e de imitação, é
porque leva até ao fim a lição do décimo mandamento. Não é por
narcisismo que nos recomenda que o imitemos, é para nos afastar
das rivalidades miméticas
(GIRARD, 1999, p.30).
A compreensão de que o desejo é essencialmente mimético deve ser
considerada na tentativa de superar a violência. Ora, se necessitamos de
modelos para imitar-lhes o desejo, melhor será se os desejos desses modelos
nos afastarem das rivalidades miméticas e abrirem a possibilidade para práticas
solidárias. É justamente por isso que Jesus cumpre a lei, não quando não fala
mais em termos de proibições, mas em termos de modelo e de imitação. Não é
difícil concluir no que deve consistir a nossa imitação de Jesus. Obviamente,
Não pode ser sobre os seus modos ou hábitos pessoais: nunca
isso é dito nos Evangelhos. Jesus também não propõe uma regra
de vida ascética no sentido de Thomas Kempis e da sua célebre
Imitação de Jesus Cristo, por muito admirável que esta obra seja.
O que Jesus nos convida a imitar é o seu próprio desejo, é o
impulso que o guia a ele, Jesus, em direção ao objetivo que fixou
para si: parecer-se tanto quanto possível com Deus Pai. O convite
para imitar o desejo de Jesus pode parecer paradoxal, pois Jesus
não pretende possuir um desejo próprio, um desejo muito seu.
Contrariamente ao que nós próprios fazemos, Jesus não pretende
ser ele próprio, não se vangloria de apenas obedecer ao próprio
desejo. O seu propósito é tornar-se a imagem perfeita de Deus.
Assim, consagra todas as suas forças à imitação do Pai. Ao
convidar-nos para o imitarmos, convida-nos para imitarmos a sua
própria imitação
(GIRARD, 1999, p.30).
Jesus nos fornece, assim, através de seu modelo, um desejo que nos livra
das rivalidades recíprocas e dos conflitos violentos, uma vez que o desejo não
recai sobre objetos que exigem competições. O objeto do desejo de Jesus não é
um objeto cuja posse anula as possibilidades de ser compartilhado com os outros.
Ao contrário, a posse desse objeto de desejo exige que ele seja compartilhado
com os outros. O apresentaremos de forma mais esclarecedora se o definirmos
como a Bíblia o faz: o Reino de Deus. O Reino de Deus é uma exigência de que
as relações conflituosas e violentas dêem lugar a relações de solidariedade.
Ao apresentar Jesus como modelo para os desejos humanos, os
Evangelhos reconhecem a natureza mimética do desejo e apresentam a solução
para as conseqüências violentas das más imitações, ou da mímesis má, como
Girard define. Os evangelhos descobrem a mímesis boa, e apostam nela como
solução para a violência. É importante enfatizar que a tradição judaico-cristã não
supera o desejo mimético que é uma característica essencialmente humana,
mas o assume como uma forma de propor alternativas para as conseqüências da
violência. Os evangelhos, poderíamos dizer, assumem a condição humana,
17
escolhendo o melhor modelo para que imitemos seu desejo. E escolhem a Jesus
e a Deus como os melhores modelos, pois
nem o Pai nem o Filho desejam de uma forma ávida, egoísta.
Deus ilumina quer os maus quer os bons. aos homens sem
contar, sem marcar entre eles a mínima diferença. Deixa que as
más ervas cresçam juntamente com as boas aao momento da
colheita. Se imitarmos o desinteresse divino, nunca a armadilha
das rivalidades miméticas nos apanhará. É por esta razão que
Jesus diz também: Pedi e ser-vos-á dado...
(GIRARD, 1999,
p.30-1).
17
Essa afirmação sobre se assumir a condição humana vem ao encontro da necessidade que
Edgar Morin enfatiza de se educar a condição humana (MORIN, 2005, p.88-92), que é uma
condição de limitações e contradições. Todavia, por uma definição de termos, existe a
possibilidade de humanização ao se assumir a condição humana. Negá-la conduz
necessariamente à desumanização.
Os evangelhos apresentam dois tipos ideais de modelos a terem imitados
os seus desejos: Jesus e Satanás. Qualquer que seja o modelo que se tenha para
imitar-lhe o desejo, esse modelo se identificará com um desses modelos:
incentivará a violência ou a inibirá. Mas mesmo os evangelhos reconhecem a
forte atração que Satanás, como modelo de imitação de desejo, exerce sobre as
pessoas. Podemos dizer, sem exagero, que é uma tendência natural que as
pessoas se deixem seduzir, a princípio, por Satanás. O relato da Paixão, citado
nessa sua característica, evidencia isto: no princípio a adesão ao ciclo mimético
através da acusação unânime contra Jesus, seduz até os seus amigos mais
íntimos. Será necessário reconhecer-se envolvido nesse mecanismo mimético,
para poder mudar de modelo de desejo e escapar das armadilhas da violência. É
exatamente disso que se trata a conversão espiritual. Ela é, no fundo, uma
mudança de desejo, ou seja, uma mudança de modelo para a imitação do desejo.
Girard enfatiza que essa conversão nos livra do mecanismo mimético:
Há dois modelos fundamentais: Cristo e Satanás. Portanto,
acredito que a liberdade seja um ato de conversão. Do contrário, é
uma completa ilusão. Por isso, Paulo diz que estamos
acorrentados, mas somos livres. Somos livres, porque nos
convertemos, eis tudo: através da conversão, livramo-nos do
mecanismo do bode expiatório (GIRARD, 2000, p.214).
A conversão tal qual se explica aqui evidencia a sua dimensão pedagógica.
Nessa perspectiva, não como separar conversão e educação do desejo. Pois
educar o desejo não é nada mais do que educar as pessoas para a conversão, no
sentido antropológico em que a estamos tratando aqui. E ao mesmo tempo, numa
relação dialética, a educação do desejo, como processo, pressupõe essa
conversão.
Para reforçarmos nossa argumentação sobre a educação do desejo,
tomemos como evento paradigmático o próprio relato da tentação de Jesus. O
que a tentação de Jesus esclarece sobre o assunto? Ela evidencia, talvez em
primeiro lugar, a divergência fundamental dos dois modelos fundamentais:
Satanás e Jesus. São dois modelos inconciliáveis. Há que se escolher apenas
um.
Certamente, a partir da perspectiva desses dois modelos ideais, o relato da
tentação de Jesus também se apresenta como um argumento definitivo sobre a
necessidade de se educar o desejo. Tomemos a tentação em seu sentido mais
simples. Ninguém pode ser tentado em algo para o qual não convirja o seu desejo
(ninguém nunca será tentado a comer pedra, a menos que ela seja transformada
em pão...). Nesse sentido, o relato da tentação nos mostra que o próprio Jesus foi
tentado a imitar os desejos de Satanás. Nesta perspectiva, a tentação é uma
dimensão debochada da lei: nos revela nossos desejos mais perigosos e os
instigam fortemente. Todavia, não obstante a sua presença ameaçadora, no
domínio da liberdade que também nos caracteriza, nosso desejo pode ser
educado. É isso o que demonstra a resistência de Jesus à tentação.
III. Religião e Pedagogia do Desejo
Nos capítulos anteriores nós analisamos o pensamento de Paulo Freire e
René Girard a partir de suas considerações sobre o desejo como categoria
antropológica e sobre as implicações do desejo em projetos de humanização.
No primeiro capítulo nós analisamos a idéia de ser humano de Paulo
Freire, que fundamenta a sua conclusão de que o ser humano é vocacionado à
humanização. Vimos também que o tratamento do tema do desejo em Freire é
recente, e aparece apenas como consideração de proposta de uma pedagogia
que ele não chegou a desenvolver. Todavia, como é característico de Paulo
Freire, vimos que a análise deste tema deve ser feita em relação com o principal
eixo de toda a sua obra: a Pedagogia do Oprimido. Assim, a Pedagogia do
Desejo, a partir do pensamento de Paulo Freire, seria uma etapa no processo de
libertação e humanização.
No capítulo dois nós fizemos uma abordagem geral da teoria de René
Girard. Em Girard o tema do desejo é explícito e é de fundamental importância.
Vimos que em Girard o desejo aparece como um elemento decisivo no processo
de humanização, mas que, todavia, a sua natureza mimética implica em violência,
ameaçando a socialização e a existência de sociedades humanas. Segundo
Girard, a origem da religião está diretamente ligada às soluções encontradas pela
humanidade para evitar os efeitos devastadores da violência. A religião surge
como educadora da humanidade: através do mecanismo do bode expiatório e dos
ritos e mitos que o sustentam, as religiões primitivas educaram a humanidade
para canalizar sua violência na vítima sacrificial e livrar-se, assim, das
conseqüências catastróficas da violência. Vimos também que as soluções
propostas através de suas formulações religiosas foram gradativamente
preventivas. Todavia, a tradição judaico-cristã descobriu a inocência da vítima
expiatória, o que possibilitou uma boa compreensão do mecanismo do bode
expiatório e do desejo mimético. Assim, as religiões primitivas educaram a
humanidade para conviver com a violência sem que esta ameaçasse a
estabilidade social e a própria sobrevivência. A novidade da tradição judaico-cristã
é que, com a sua compreensão do mecanismo mimético, a religião passou a
educar o desejo das pessoas.
Vamos agora, no terceiro capítulo, aprofundar alguns temas do que vimos
anteriormente, na tentativa de formular elementos que contribuam, a partir das
Ciências da Religião, para a constituição de uma Pedagogia do Desejo. Faremos
isso aprofundando alguns pontos de contato entre o pensamento de Paulo Freire
e René Girard. Em primeiro lugar, vamos analisar o desejo como categoria
antropológica no pensamento desses dois autores. Depois, vamos analisar o
conceito de mito, destacando a convergência de Freire e Girard na compreensão
do mito e suas propostas de superá-lo. Por último, tentaremos estabelecer alguns
critérios que nos ajudem a estabelecer a relação entre educação do desejo e
humanização.
1. Educação e desejo como categoria antropológica em Paulo Freire e René
Girard
Vimos anteriormente os princípios antropológicos de Paulo Freire. Os seres
humanos são: seres de relações; seres abertos; seres transitivos. Essas não são
apenas categorias explicativas, mas são também categorias definidoras dos seres
humanos. Para Paulo Freire, o ser humano é inacabado. Ele fala de uma
incompletude ontológica. É essa incompletude que insere o ser humano num
permanente movimento de busca do ser mais (FREIRE, 1987, p.72-5). Trata-se
de uma busca permanente, pois nunca cessa. Todavia, é nessa busca que o ser
humano se humaniza. E essas categorias que citamos acima, ao mesmo tempo
em que possibilitam essa busca do ser mais, possibilitam o próprio ser mais.
Essas categorias antropológicas o ao mesmo tempo a origem e os meios pelos
quais o ser humano busca ser mais.
Esse conceito de incompletude ontológica se relaciona com o conceito de
desejo intrínseco de René Girard. Ele não usa essa expressão, mas ela explica
bem a origem do desejo e a sua definição como categoria antropológica. Segundo
Girard, o desejo é uma característica essencialmente humana. Todavia o fato de
o ser humano desejar intrinsecamente e intensamente permanece sem maiores
explicações. É preciso ressaltar também que a única possibilidade de falar do
desejo como característica essencialmente humana é enfatizando a sua natureza
mimética.
Se os nossos desejos não fossem miméticos, fixar-se-iam para
sempre em objetos predeterminados, seriam uma forma particular
de instinto. Os homens não seriam capazes de mudar de desejo
mais do que as vacas num prado. Sem desejo mimético não
haveria liberdade nem humanidade. O desejo mimético é
intrinsecamente bom. O homem é uma criatura que perdeu parte
do seu instinto animal para aceder àquilo que se chama desejo.
Uma vez satisfeitas as suas necessidades naturais, os homens
desejam intrinsecamente, mas não sabem exatamente o quê, pois
nenhum instinto os guia. Não têm desejo próprio. Para desejarmos
verdadeiramente, temos de recorrer aos homens que estão à
nossa volta, temos de lhes imitar os desejos
(GIRARD, 1999,
p.32).
O ser humano tem um apetite insaciável. A saciedade das necessidades
vitais não sacia esse apetite, pois uma vez satisfeitas as suas necessidade
naturais, os seres humanos continuam desejando intrinsecamente. Mas o que
explica esse desejo intrínseco e intenso? O conceito de incompletude ontológica
explica e fundamenta esse desejo. E a idéia de busca do ser mais de Freire se
relaciona com o conceito de desejo intrínseco de Girard.
Com isso fica mais clara a idéia que sustentamos no primeiro capítulo de
que o desejo também aparece como uma categoria na antropologia de Paulo
Freire, embora ele não tenha tratado esse conceito de forma explícita. Todavia,
como vimos, as categorias antropológicas que elabora os seres humanos são
seres de relações, abertos e intransitivos apesar de sempre presentes, podem
estar anuladas em situações de desumanização. Situações de desumanização
anulam o movimento do ser mais.
É nesse sentido que devemos entender a proposta de conscientização de
Freire. A conscientização é justamente a compreensão da viabilidade histórica
desumanizante e a possibilidade de humanização. Educação e conscientização
são inseparáveis. Pois a educação tem origem na inconclusão dos seres
humanos e na consciência que tenham dessa inconclusão.
Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas
inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem
inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. se
encontram as raízes da educação mesma, como manifestação
exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na
consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer
permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e
do devenir da realidade
(FREIRE, 1987, p.73).
.
Ora, só faz sentido falar em conscientização se se admite que essa
consciência de inconclusão não seja algo natural. Também deve se admitir a
necessidade de consciência das situações desumanizantes que anulam o
movimento do ser mais e a necessidade de consciência desse movimento do ser
mais como humanizante. Por isso Freire relaciona imobilismo à desumanização e
mudança à humanização. O imobilismo é a manutenção das condições
desumanizantes presentes, ignorando a incompletude ontológica. Já a mudança
o estado permanente de mudança, devemos enfatizar mantém a consciência
dessa incompletude.
[...] Enquanto a concepção bancária ênfase à permanência, a
concepção problematizadora reforça a mudança. Deste modo, a
prática bancária, implicando o imobilismo a que fizemos
referência, se faz reacionária, enquanto a concepção
problematizadora, que, não aceitando um presente bem-
comportado, não aceita igualmente um futuro pré-dado,
enraizando-se no presente dinâmico, se faz revolucionária. A
educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é
futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal,
esperançosa
(FREIRE, 1987, p.73).
É importante enfatizar aqui a relação que Freire faz de educação bancária
e imobilismo, bem como de educação problematizadora
18
e mudança. Em
primeiro lugar, isso se deve à compreensão de que nem o imobilismo e nem a
mudança são condições naturais ou aleatórias, mas resultado de projetos e
práticas orientados por um sentido que as orienta, processo a que damos o nome
de educação. Sendo assim, a educação nunca é neutra. Educar implica numa
escolha. Escolha entre o imobilismo ou a mudança. Ora, toda a escolha
pressupõe desejo. Podemos concluir, então, que toda educação implica,
necessariamente, numa educação do desejo. Ainda mais se considerarmos que a
opção pela educação bancária ou problematizadora, que desejam o imobilismo ou
a mudança, respectivamente, somente sesuficiente à medida que for capaz de
fazer desejar o imobilismo ou a mudança. Aqui temos a primeira dimensão da
Pedagogia do Desejo que estamos formulando: educar para se desejar o
imobilismo ou a mudança.
É justamente neste contexto que surge o interesse de Paulo Freire por uma
Pedagogia do Desejo. Obviamente, educar o desejo não é gerar tal ou qual tipo
de desejo. Mas propiciar contextos favoráveis para que os desejos possam ser
gerados (FREIRE, 2001, p.37). Freire expressa seu desejo a partir do exemplo do
trabalho com pessoas que vivem nas ruas:
18
Educação problematizadora porque não compreende a viabilidade histórica de desumanização
como fatalismo, ou seja, como algo dado e insuperável. Problematizar o presente é compreender
as condições desumanizantes como problemas a serem superados. Não se trata de criar
problemas onde eles não existam, mas de identificar como problemas condições que podem e
devem ser superadas.
No entanto, em todos os contextos, nas ações e em maneiras de
falar, interesso-me por encontrar formas de criar um contexto em
que as pessoas que vivem nas ruas possam reconstruir seus
anseios e seus desejos desejo de recomeçar, ou de começar a
ser de maneiras diferentes. Interesso-me pela criação de uma
pedagogia do desejo. Como educadores progressistas, uma de
nossas maiores tarefas parece dizer respeito a como gerar nas
pessoas sonhos políticos, anseios políticos, desejos políticos. A
mim, como educador, é impossível construir os anseios do outro
ou da outra. Essa tarefa cabe a ele ou a ela, não a mim. De que
modo podemos encontrar alternativas de trabalho que propiciem
um contexto favorável para que isso ocorra?
(FREIRE, 2001,
p.37).
E logo a seguir Freire relaciona a educação do desejo à opção pelo
imobilismo ou pela mudança:
Ao buscar desenvolver uma pedagogia do desejo, estou
interessado em explorar possibilidades que tornem claro que estar
nas ruas não é um evento natural, mas sim um evento social,
histórico, político, econômico. Estou interessado em explorar os
motivos de se estar nas ruas. Esse tipo de investigação nos levará
a algumas descobertas. Pode-se descobrir que as pessoas não
moram nas ruas porque querem. Ou ainda, ela podem perceber
que realmente querem ficar nas ruas, mas então passam a
engajar-se em outro questionamento, procurando descobrir por
que querem as coisas assim, buscando as origens de tal desejo.
Neste tipo de busca, de procura por razões, preparamo-nos, e aos
outros, para superar uma compreensão fatalista de nossas
situações, de nossos contextos. Superar um entendimento
fatalista da história necessariamente significa descobrir o papel da
consciência, da subjetividade na história
(FREIRE, 2001, p.37).
Aqui fica mais claro o que deduzimos anteriormente: a opção pelo
imobilismo ou pela mudança pressupõe um desejo. Mesmo que se desconheça
as origens ou a razão de tais desejos, esses desejos não são frutos do acaso,
mas foram educados. E se a procura pelas razões do desejo nos leva a superar
uma compreensão fatalista da história, concluímos que na perspectiva de Freire,
a educação do desejo implica em educar para que se deseje a mudança. Se a
educação não é neutra, a sua opção está bem clara desde o início. Assim,
consciência e desejo não devem ser tratados como opostos ou contraditórios.
Ambos não se excluem, mas se complementam. Conscientizar implica,
necessariamente, em educar o desejo. Disto podemos concluir também que o
desejo assume posição de categoria antropológica no pensamento de Paulo
Freire. O ser humano é ser de relações, um ser aberto, um ser transitivo, um ser
consciente e um ser desejante.
Todavia, devemos considerar que, se a educação do desejo, na
perspectiva de Paulo Freire, implica em desejo de mudança, nem toda a mudança
conduz a humanização. Ora, não é exagero supor que qualquer pessoa que se
encontra em uma situação desumanizante deseje uma mudança. Assim, quando
Freire cita que uma pessoa pode até descobrir-se querendo morar na rua, mas
que deve buscar as razões de tal desejo, ela está considerando que no fundo não
se deseja morar na rua, mas que não se considera nenhuma outra possibilidade.
Desta forma, a educação do desejo implica em explorar as suas possibilidades
reais e históricas. A falta de esperança na possibilidade da mudança deve ser
considerada como resultado de uma educação que fez opção pelo imobilismo.
Podemos considerar aqui a ênfase que René Girard à distinção entre desejo e
instinto. O instinto é pré-programado. O desejo é livre. Por ser livre, podemos
buscar e encontrar as suas razões.
Todavia, ainda julgamos necessário enfatizar que, na perspectiva de Paulo
Freire, nem toda a mudança implica em humanização. Freire situa essa discussão
na contradição entre opressores e oprimidos. Nessa relação, os oprimidos são
aqueles que sentem diretamente o desejo de mudança. Em casos extremos, não
se trata de desejo de mudança, mas de necessidade de mudança. Todavia,
quando se ignora o conceito antropológico de Paulo Freire de relações pode-se
distorcer o sentido de mudança que humaniza, distorcendo a própria vocação
histórica do ser mais: Essa busca do ser mais, porém, não pode realizar-se no
isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires,
daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e
oprimidos (FREIRE, 1987, p.75).
A importância de se considerar o conceito de relações como categoria
antropológica permite a possibilidade da superação da contradição entre
oprimidos e opressores, no pensamento de Paulo Freire. Mas podemos
considerar que possibilita também a descoberta da inocência das vítimas,
percebida na análise de Girard. Ora, o que permite que as vítimas sejam
sacrificadas seja a crença de que não sejam importantes para aqueles que as
sacrificam. Por mais que elas sejam importantes no mecanismo do bode
expiatório, as vítimas não são consideradas a partir do próprio prejuízo que
trazem à humanidade daqueles que as sacrificam. Assim, a ênfase de Freire na
superação da contradição entre opressores e oprimidos bem pode ser entendida
na perspectiva da superação entre sacrificadores e vítimas.
Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros
sejam. Esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no
individualismo conduz ao ser mais egoísta, forma de ser menos.
De desumanização. Não que não seja fundamental repitamos
ter para ser
19
. Precisamente porque é, não pode o ter de alguns
converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o
poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua
escassez de poder
(FREIRE, 1987, p.75).
O desejo de mudança implica, necessariamente, na superação dessa
contradição, para que possa se resultar em humanização. Paulo Freire chama a
atenção para o fato que, no caso dos oprimidos, desejar a mudança querendo ser
igual aos opressores somente perpetua a contradição da situação de que se
querem ver livres. Ao desejarem ser igual aos opressores, os oprimidos não
desejam mais que o imobilismo. Esse desejo também é fruto dessa contradição
em que estão inseridos.
É que, quase sempre, num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na
luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou
subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra
condicionada pela contradição vivida na situação concreta,
existencial, em que se formam. O seu ideal é, realmente, ser
homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que
sempre estiveram e cuja superação o está clara, é ser
opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade
(FREIRE, 1987, p.32).
Aqui se situa um problema que pode ser melhor compreendido a partir da
teoria do desejo mimético de Girard. Segundo Paulo Freire, o desejo de
humanização não é fundamentalmente o problema, pois não é difícil que se
19
Mantivemos aqui a referência ao ter, na citação de Paulo Freire em relação com o pensamento
de René Girard, pois esse tema também tem importância na análise do desejo mimético, um vez
que a posse do objeto de desejo é deflagrador da violência que se instaura.
deseje a humanização. O problema existe a partir do testemunho de humanidade
que se tenha. A questão é referente ao modelo. Trata-se do desejo mimético.
Segundo a análise de René Girard sobre as origens da sociedade, da
cultura e das instituições humanas, a educação do desejo surge com a
compreensão do desejo mimético e do mecanismo do bode expiatório.
Como já vimos, em Girard o desejo aparece como uma característica
essencialmente humana. O desejo humaniza por livrar o ser humano da tirania
do instinto, conferindo liberdade. Fundado na incompletude ontológica do ser
humano, o desejo é intrínseco e intenso. O ser humano deseja intrinsecamente,
porém sem saber o que desejar. Por isso precisa de um modelo que lhe indique o
que desejar. A necessidade de um modelo é o intrínseca quanto o próprio
desejo. Essa é a natureza mimética do desejo. Girard advertiu para que não
consideremos o desejo mimético como algo ruim. Ao contrário, é justamente por
ser mimético que o desejo se situa no campo da liberdade. Por ser mimético, o
desejo não se dirige a objetos pré-determinados, mas confere a possibilidade de
escolha.
Todavia, a sua natureza mimética é causadora de rivalidades e violência.
Girard não se interessou somente em analisar a natureza mimética do desejo,
mas em analisar o processo de humanização em sua origem. Podemos dizer que
a pergunta que guiou a pesquisa de Girard é: se o desejo é mimético, e se ele
gera violência, como foi possível evitar as conseqüências da violência nas
sociedades primitivas, quando não havia ainda mecanismos reguladores da
violência? A resposta encontrada por Girard foi o mecanismo do bode expiatório,
explicado no capítulo segundo. Quando a violência atinge níveis catastróficos e
ameaça a sobrevivência do grupo, uma vítima é escolhida unanimemente entre o
grupo, considerada culpada pelo caos que se instaurou. Todos se voltam, então,
contra a vítima e a sacrificam. A morte da vítima tem um extraordinário efeito
catártico. Todos descarregam sua violência contra a vítima. Com isso, devolvem a
paz ao grupo. A eficiência desse mecanismo faz com que ele seja sempre
repetido em tempos de crise. Esse é o mecanismo do bode expiatório, e segundo
Girard, está na origem da cultura humana:
Acho que os três pilares da cultura humana são: o interdito (não
fazer o que a vítima fez para destruir-nos)
20
, o rito (fazer o que a
vítima fez para salvar-nos)
21
e o mito (recordar, sempre de novo,
tudo isso. Basicamente, todas as instituições humanas podem ser
derivadas desse processo
(ASMMANN, 1991, p.53).
A análise do mecanismo do bode expiatório, a partir de sua eficiência em
solucionar o caos e evitar os efeitos catastróficos da violência, permite a René
Girard falar em educação. Para ele, o mito aparece como o educador das
sociedades primitivas:
A vítima expiatória, mãe do rito, aparece como a educadora por
excelência da humanidade, no sentido etimológico de educação.
O rito faz sair pouco a pouco os homens do sagrado; permite que
eles escapem de sua violência, afasta-os dela, confere-lhe se
todas as instituições e todos os pensamentos que definem sua
humanidade
(GIRARD, 1990, p.373).
Todavia, é preciso considerar a importância do mito a partir de seu aspecto
pedagógico. A solução apresentada pelo mecanismo da vítima expiatória é
preventiva. Não soluciona o problema da violência, mas procura evitar as suas
conseqüências. O mito teve uma função real e fundamental nas sociedades
primitivas. Ele preservou essas sociedades de sua própria violência. Mas o
caráter preventivo do mito aponta para uma solução que o ultrapasse. Girard
chama a atenção para o fato de que o mito teve uma importante função no
amadurecimento da humanidade. Mas podemos considerar que a insistência
numa solução preventiva, perpetuando o mecanismo do sacrifício vitimário, seria
anti-pedagógico, pois seria um obstáculo à evolução da humanidade.
A tradição judaico-cristã foi responsável por essa evolução, continuando o
processo pedagógico iniciado com o mito. A descoberta da inocência da vítima
implicou numa tomada de posição em favor das vítimas. A conseqüência foi a
elaboração de uma nova solução: a educação do desejo.
20
Trata-se da acusação unânime contra a vítima. Para que o mecanismo seja eficiente é preciso
que se acredite na culpa da vítima. Por isso é necessário que a acusação seja unânime. Para isso,
as acusações contra a vítima são as mais absurdas possíveis, como o parricídio e o incesto.
Com isso, procura-se evitar que se cometam na sociedade tais atos, pois eles poderiam causar
novamente o caos.
21
Trata-se do sacrifício vitimário. Não se trata de fazer exatamente o que a vítima fez, mas de
reproduzir o que foi feito a ela.
Essa elaboração teve inicio com a tradição judaica. A compreensão da
natureza mimética do desejo possibilitou a descoberta da origem da violência. O
desejo mimético é a origem dos conflitos e dos ciclos de violência, e não a vítima.
Assim, a solução encontrada de novo preventivamente foi a proibição do
desejo mimético, como vimos anteriormente (décimo mandamento). Todavia,
seria necessária uma solução que considerasse o desejo intrínseco e sua
natureza mimética. Ou seja, o ímpeto para o desejo e a sua natureza mimética
são elementos da condição humana, uma categoria antropológica. Essa
elaboração iniciada pela tradição judaica teve continuidade com o cristianismo,
que pôde finalmente formular um projeto de educação do desejo.
Se o desejo é intrínseco e mimético, a educação do desejo deve partir
dessa premissa. A tradição judaico-cristã assumiu a possibilidade de que nem
toda a imitação deva necessariamente ser geradora de conflitos. Se as rivalidades
surgem na competição pelo objeto para o qual convergem os desejos, um objeto
de desejo que não seja objeto de disputa evita qualquer conflito. Esse tipo de
imitação é a boa imitação a que se refere Girard. Obviamente, essa boa
imitação não é uma descoberta da tradição judaico-cristã. Sem ela, aliás, não
haveria mente humana, não haveria educação, nem transmissão de cultura
(GIRARD, 2000, p.100). Todavia, a tradição judaico-cristã racionalizou a boa
imitação, transformando-a, através do conceito de conversão, no elemento central
da educação do desejo.
O desejo de Jesus, como desejo do Reino de Deus, nos livra das
armadilhas das rivalidades miméticas. Tomar Jesus como modelo de nossos
desejos é um meio concreto de resistir ao mecanismo mimético. Em outras
palavras, trata-se de conversão. A conversão
Implica escolher Cristo ou alguém semelhante a Cristo como
modelo de nossos desejos. E implica ver a si mesmo como
inserido nesse processo desde o início, em lugar de assumir a
seguinte posição: Não quero imitar Jesus, pois sou senhor de
mim mesmo tenho meus próprios desejos. Converter-se é
descobrir que, sem saber, sempre tivemos imitando os modelos
errados, modelos que nos levam ao círculo vicioso dos
escândalos e da frustração perpétua ao círculo mimético, pois.
(GIRARD, 2000, p.214).
A conversão espiritual se torna, assim, no meio pelo qual o desejo deve ser
educado. A educação do desejo proposta pela tradição judaico-cristã permitiu a
superação do mecanismo do bode expiatório sustentado pelo mito. Assim,
segundo a análise de Re Girard, após o mito terem cumprido seu papel de
educar a humanidade para evitar as conseqüências devastadoras da violência,
eles devem ser superados pela educação do desejo. Visto a partir de seu aspecto
pedagógico, o mito são considerados necessários. Mas, após a formulação de
uma educação do desejo, o mito deve ser superado. A tentativa de perpetuar,
com o mito, o mecanismo do bode expiatório será considerada, na linguagem da
tradição cristã, como demoníaca. Paulo Freire também faz uma análise
semelhante do mito, considerando a necessidade de superá-lo. A compreensão
de Girard e de Freire do mito é peculiar, na medida em que se diferencia do senso
comum e também do que é comumente aceito pelos estudiosos. Todavia, esses
dois autores convergem em suas compreensões do mito e em suas propostas de
superá-lo.
2. Mito e realidade
Sobre a análise do mito, quero citar uma breve experiência que tive como
professor de filosofia no ensino médio da rede pública do estado de São Paulo.
Nesta experiência, me chamou bastante a atenção o conteúdo programático dos
programas a que tive acesso. A grande maioria desses programas iniciava com
uma abordagem do mito para depois tratar de sua superação pela filosofia. Nessa
perspectiva o mito era considerado fruto da ignorância de mentes ainda não
iluminadas pela razão filosófica. Eu não tive a oportunidade de aprofundar essa
análise, limitando minha pesquisa somente a alguns livros didáticos e aos
programas de professores a que tive acesso. Obviamente, em função disso, não
cabe aqui uma crítica ao ensino de filosofia na rede pública, e nem aos
pressupostos de tal proposta educacional, mesmo com a suspeita de que seja
predominante
22
. Quero apenas chamar a atenção para o fato de que essa
abordagem reforça a noção de mito presente no senso comum, de que o mito é
mentira.
O principal argumento na crítica ao mito se constrói em função de sua
linguagem metafórica e analógica. Essa crítica surge em função do postulado
pelas ciências modernas de que a linguagem analítico-experimental deveria ser a
única aceitável. Esse tipo de linguagem caracteriza-se por seu aspecto funcional:
separa, divide, mede, calcula e pretende ser racional e objetiva (SUNG, 2006,
p.52). Trata-se de uma linguagem muito útil para o aspecto da técnica, muito
importante para a vida humana. Graças à técnica, dispomos de meios que nos
permitem chegar ao fim a que nos propomos. Por sua eficiência e precisão, as
ciências modernas consideraram-na muito superior à linguagem metafórica e
analógica, por abordar as contradições e confusões que caracterizam a condição
e as relações humanas. Esse tipo de linguagem, metafórica e analógica, havia
sido predominante até a modernidade. Assim, os saberes que a utilizavam
principalmente a religião detinham o poder de postular o sentido da vida.
Questões que dizem respeito ao sentido da vida, as quais podemos encontrar em
22
Tal análise certamente merece um estudo mais aprofundado. De qualquer forma, reforça o
lamento de Morin sobre a inexistência de uma noologia, destinada ao âmbito do imaginário, dos
mitos, dos deuses, das idéias, ou seja, a noosfera (MORIN, 2006, p.53).
qualquer época e sociedade, como: de onde viemos? para onde vamos?, por
exemplo, sempre foram respondidas pelas religiões.
Todavia, a predominância das ciências modernas e do uso da linguagem
analítico-experimental impulsionou o processo de secularização, que caracterizou
a perda de poder das religiões e relegou os saberes que fazem uso da linguagem
metafórica e analógica ao status de crenças e ignorâncias. Assim, as ciências
modernas, por meio da linguagem analítico-experimental, não se limitaram
apenas ao domínio da técnica, mas procuraram responder também às questões
sobre o sentido da vida. Isso nos levou a duas conclusões: as questões sobre o
sentido da vida são intrínsecas às pessoas; a linguagem analítco-experimental
não conta de responder esse tipo de questão. Assim, a própria ciência teve
que abandonar essa pretensão e reconhecer que não se pode fazer ciência sem
utilizar metáforas e analogias (SUNG, 2006, p.52). Jung Mo Sung ainda enfatiza
que a
presença de metáforas nos discursos científicos e na linguagem
não-científica em geral não é um por acaso, nem pela falta de
uma maior precisão formal. Isto porque, como dizem G. Lakoff e
M. Johnson, a metáfora não éuma questão de linguagem, isto
é, de meras palavras, mas pelo contrário, o processo de
pensamento humano é em grande parte metafórico e o sistema
conceitual humano é estruturado e definido metaforicamente
(SUNG, 2006, p.52).
Ainda que as ciências modernas façam uso da linguagem metafórico-
simbólica para expressar algumas de suas questões, essa linguagem permanece
mais familiar às religiões, à poesia e aos mitos. Isso porque este é um tipo de
linguagem que liga, associa, conecta, desenvolve campos de evocação
buscando significações contextuais e por isso tende a exprimir a afetividade e
subjetividade e é a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da
nossa própria existência (SUNG, 2006, p.52). Assim, podemos dizer que as
ciências modernas, ao fazerem uso dessa linguagem metafórico-simbólica,
adentram o campo o campo do mito.
É de fundamental importância a compreensão de conceitos com a verdade,
mito e ciência a partir deste conceito de linguagem, pois isso nos permite uma
melhor compreensão do mito, diferente da definição vulgar de fantasia e mentira.
Na interpretação que estamos analisando, o mito não se opõe à verdade.
Mircea Eliade nos ajuda nessa tarefa. Para ele, o mito é uma realidade
cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em
perspectivas múltiplas e complementares (ELIADE, 2000, p.12). Assim,
o mito é considerado como uma história sagrada, e portanto uma
história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. O mito
cosmogônico é verdadeiro porque a existência do mundo está
para o provar, o mito da origem da morte é também verdadeiro
porque a mortalidade do homem prova-o. [...] E pelo fato de o mito
relatar as gestas dos seres sobrenaturais e manifestações dos
seus poderes sagrados, ele torna-se o modelo exemplar de todas
as atividades humanas significativas
(ELIADE, 2000, p.13).
Todavia, essa interpretação do mito não nos ajuda somente na análise dos
mitos antigos. De grande importância também não é apenas o fato de que muitos
mitos antigos sobrevivem após a modernidade, mas o fato que mesmo após o
Iluminismo a humanidade não deixou de produzir seus mitos e de conviver com
eles. Podemos considerar que o mito é uma necessidade humana. Como diz
Eliade, o mito adapta-se a novos contextos e novas condições sociais, mas ele
não pode ser extirpado (ELIADE, 1972, 152).
Nesse mesmo sentido, Edgar Morin diz que
a aventura do mito começa igualmente com as origens do Homo
sapiens; inscreveu-se nas grandes religiões ecumênicas e,
depois, metamorfoseou-se, nos tempos contemporâneos, em
aventuras da ideologia. O mito perdeu seus hábitos tradicionais e
introduziu-se na esfera aparentemente laica das sociedades: o
mito moderno pode, ao contrário do antigo, dispensar deus e até
mesmo a narrativa. [...] Infiltra-se nas ideologias, dá-lhes energia e
força de possessão. às idéias abstratas uma vida, um caráter
providencial quase divino
(MORIN, 2002, p.106).
Certamente nós não poderemos ignorar o fato de que os processos de
secularização e desencantamento do mundo se caracterizam pela perda de poder
político das instituições religiosas, como detentoras das respostas sobre o sentido
da vida. Todavia, as críticas feitas à religião confundiram certos tipos de
expressões e instituições religiosas com o caráter absoluto da religião,
concentrando esforços numa crítica absoluta a todos os tipos de mitos, religiões,
espiritualidades ou encantamentos. Mas, nos adverte Morin,
sempre há, por toda a parte no planeta, a força motriz dos mitos e
das religiões. [...] O ser humano não pode viver sem mito e será
novamente possuído por antigos ou inéditos. Esperemos que o
sejam utilizados a serviço de novas opressões e de novas
mentiras
(MORIN, 2002, p.216).
Assim, a questão não é se somos a favor ou contra mitos, espiritualidades
e religiões; mas que tipo de mitos, religiões e espiritualidades aceitamos e
rejeitamos (SUNG, 2006, p.86). É nesse sentido que Edgar Morin fala da
necessidade da noologia, destinada ao âmbito do imaginário, dos mitos, dos
deuses, das idéias (MORIN, 2006, p.53). A criação de uma ciência assim
contribuiria para uma educação que ajudasse na escolha dos mitos, religiões e
espiritualidades que contribuam para a humanização.
Essa interpretação de mito aqui será muito útil na análise que iremos fazer
agora do conceito de mito em René Girard e Paulo Freire e suas convergentes
considerações sobre a necessidade de superar o mito.
2.1. A superação do mito em René Girard e Paulo Freire
No segundo capítulo nós vimos como, na análise de Girard, a tradição
judaico-cristã supera o mito. Girard analisa o mito a partir de sua função religiosa,
nas sociedades primitivas, de ensinar o mecanismo do bode expiatório.
Obviamente, para garantir a eficiência desse mecanismo, essa aprendizagem
deveria dissimulá-lo. O mito esconde o mecanismo do bode expiatório que quer
ensinar. E esse é justamente o segredo dessa aprendizagem. Pois as pessoas
precisavam acreditar na culpa da vítima e no seu sacrifício como único meio para
devolver a paz à comunidade nos tempos de crise. Além do mais, o mito
confortava as pessoas fornecendo uma explicação para a crise instaurada. Mais
ainda, o mito funcionava como um mecanismo que regulava a ordem social, pois
determinava quais ações e atitudes poderiam ameaçar a ordem social. Assim, o
mito se caracteriza como a primeira instituição humana, responsável por educar e
regular a ordem social.
Devemos, porém, reconhecer a importância do mito a partir do seu aspecto
pedagógico. Assim, só podemos admitir o seu lugar e a sua importância nas
sociedades que não estavam ainda preparadas para formular outras soluções
para as crises sociais. É por isso que René Girard afirma que quando livre entre
os homens, o sagrado arcaico é satânico; mas não as religiões arcaicas, uma
vez que tentam manter esse sagrado violento fora da comunidade (GIRARD,
2000, p.215). Ou seja, os mitos têm a sua importância, considerado o seu aspecto
pedagógico de educar a humanidade a conviver com sua própria violência até que
ela tenha condições de superá-la.
A tradição judaico-cristã foi responsável pela superação do mito. A
descoberta da inocência da tima e a compreensão do mecanismo mimético
forçaram uma opção, ou pela continuidade do mecanismo vitimário ou pela defesa
das vítimas. A tradição judaico-cristã fez opção pelas vítimas, elaborando uma
educação do desejo que pudesse fazer frente ao mecanismo mimético na solução
das crises sociais.
Todavia, cabe analisar aqui em que consiste realmente a diferen
ça dos
textos da tradição judaico-cristã em relação aos mitos. O próprio Girard aponta
para as semelhanças, concluindo que os autores bíblicos, quer na Bíblia hebraica
quer na Paixão, dão representações, exatas no essencial, de fenômenos de
multidão muito análogos aos dos mitos (GIRARD, 1999, p.17). A diferença dos
textos da tradição judaico-cristã para os mitos não está na linguagem, não está na
estrutura, não está na dinâmica e nem nas representações. A diferença
fundamental está no objetivo desses dois tipos de texto: enquanto o mito quer
dissimular o mecanismo mimético, com a finalidade de garantir a sua reprodução,
os textos da tradição judaico-cristã pretendem desmascarar o mecanismo
mimético e proclamar a inocência da vítima.
Desta forma, a proposta judaico-cristã de educar o desejo se apresenta
como a primeira elaboração de uma noologia. Ou seja, forneceu elementos para
possibilitar a escolha entre os dois tipos de mitos existentes: aquele que
dissimulava o mecanismo mimético ou aquele que proclamava a inocência da
vítima. Obviamente, para que pudesse possibilitar tal escolha, foi preciso,
justamente, formular uma proposta alternativa ao mecanismo do bode expiatório,
no caso, a educação do desejo.
Algo semelhante acontece com a análise que Paulo Freire faz dos mitos.
Segundo Freire, o mito dissimula a realidade, impedindo que se tenha uma
percepção clara dela. Nesse sentido, sua proposta de conscientização é, no
fundo, uma proposta de desmitologização.
Na medida, porém, em que a consciência dos homens está
condicionada pela realidade, e conscientização é, antes de tudo,
um esforço para livrar os homens dos obstáculos que os impedem
de ter uma clara percepção da realidade. Neste sentido, a
conscientização produz a repulsa dos mitos culturais que alteram
a consciência dos homens e os transformam em seres ambíguos
(FREIRE, 1980a, p.48).
Ao impedir uma clara percepção da realidade, o mito impede que a
realidade seja transformada. O mito condiciona a se aceitar a realidade presente
como a única possível, se tornando, assim, num dos principais instrumentos de
manutenção da realidade. Este é exatamente o problema do mito: O indubitável é
que toda esta mitificação, através da escola ou não, termina por obstaculizar a
capacidade crítica dos homens, em favor da preservação do status quo’”
(FREIRE, 1982, p.84). Assim, a crítica de Paulo Freire ao mito se caracteriza por
sua crítica à realidade presente, no caso, uma realidade de grande exclusão
social. E, da mesma forma que a tradição judaico-cristã, ele atribui um caráter
demoníaco ao mito. Num de seus trechos mais agressivos, Freire ataca as
forças que impedem a verdadeira libertação das pessoas, as mesmas forças que
produzem os mitos:
Nunca pensou, contudo, o Autor, ingenuamente, que a defesa e a
prática de uma educação assim, que respeitasse no homem a sua
ontológica vocação de ser sujeito, pudesse ser aceita por aquelas
forças, cujo interesse básico estava na alienação do homem e da
sociedade brasileira. Na manutenção desta alienação. Daí que
coerentemente se arregimentassem usando todas as armas
contra qualquer tentativa de aclaramento das consciências, vista
sempre como séria ameaça a seus privilégios. É bem verdade
que, ao fazerem isto, ontem e amanhã, ali ou em qualquer parte,
estas forças distorcem sempre a realidade e insistem em aparecer
como defensores do Homem, de sua dignidade, de sua liberdade,
apontando os esforços de verdadeira libertação como perigosa
subversão, como massificação, como lavagem cerebral tudo
isso produto de demônios, inimigos do homem e da civilização
ocidental cristã. Na verdade, elas é que massificam, na medida
em que domesticam e endemoniadamente se apoderam das
camadas mais ingênuas da sociedade. Na medida em que deixam
em cada homem a sombra da opressão que o esmaga. Expulsar
esta sombra pela conscientização é uma das fundamentais tarefas
de uma educação realmente libertadora e por isto respeitadora do
homem como pessoa
(FREIRE, 1980b, p.44-5).
Todavia, é preciso considerar também que Paulo Freire não faz uma crítica
abrangente ao mito. Freire não é dado a abstrações, e delimita precisamente o
tipo de mito que julga necessário eliminar. Sua crítica é bem dirigida. Freire se
refere ao mito como instrumento de dominação e opressão, como instrumento de
manutenção do status quo. Nessa perspectiva, ele identifica quais são os mitos
que sustentam a ingênua percepção de que as coisas estão do jeito que devem
estar, os mitos que dizem que os opressores devem continuar sendo opressores,
e estão certos ao -lo, e os mitos que dizem que os oprimidos devem continuar
sendo oprimidos, estando certo ao se resignarem a sê-lo.
Os mitos que sustentam a posição dos opressores são: O mito de sua
superioridade, o mito de sua pureza de alma, o mito de suas virtudes, o mito de
seu saber, o mito de que sua tarefa é salvar os pobres (FREIRE, 1982, p.86). Da
mesma forma, os mitos que sustentam a posição dos oprimidos são: O mito da
inferioridade do povo, o mito de sua impureza, não só espiritual, mas física, o mito
de sua ignorância absoluta (FREIRE, 1982, p.86).
Freire ainda fala de mitos da cultura dominante (FREIRE, 1982, p.41),
como o mito do consumo (FREIRE, 1982, p. 68) ou mito da neutralidade
(FREIRE, 1982, p.111), e mais:
O mito [...] de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade.
De que todos são livres para trabalhar onde queiram. [...] O mito
de que esta ordem respeita os direitos da pessoa humana [...]. O
mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar
a ser empresários mais ainda, o mito de que o homem que
vende, pelas ruas, gritando: doce de banana e goiaba é um
empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do
direito de todos à educação [...]. O mito da igualdade de classe [...]
O mito do heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras
da ordem que encarna a civilização ocidental e cristã, Que elas
defendem da barbárie materialista. O mito de sua caridade, de
sua generosidade, quando o que fazem, enquanto classe, é
assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda que, no
plano das nações, mereceu segura advertência de João XXIII. O
mito de que as elites dominadoras, no reconhecimento de seus
deveres, são as promotoras do povo, devendo este, num gesto
de gratidão, aceitar a sua palavra e conformar-se com ela. O mito
de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da
propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da
pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam
apenas os opressores. O mito da operosidade dos opressores e o
da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O mito da
inferioridade ontológica destes e o da superioridade daqueles
(FREIRE, 1987, p.79).
Freire critica ainda os meios pelos quais esses mitos são divulgados. Os
mitos a que se refere e os quais critica, cuja introjeção pelas massas populares
oprimidas é básica para a sua conquista, são levados a elas pela propaganda
bem organizada, pelos slogans, cujos veículos são sempre os chamados
meios de comunicação com as massas (FREIRE, 1987, p.79)
23
.
Todavia, o projeto de libertação proposto por Paulo Freire faz uso da
linguagem metafórico-simbólica. Ele encontra justamente na tradição judaico-
cristã conceitos-chave no pensamento de Paulo Freire, como profetismo, páscoa
e ressurreição.
23
Esses meios de comunicação, que o verdade não são comunicação, mas depósitos de
conteúdos alienantes (FREIRE, 1987, p.79) são também meios de exploração e manipulação do
desejo.
A educação para a liberdade deve ser profética: A educação
problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí
que seja profética e, como tal, esperançosa (FREIRE, 1987, p.73). Profecia e
esperança são elementos fundamentais na tarefa de transformação da realidade,
pois, ao criticar a realidade presente, deve também apontar para uma nova
realidade. Nesta tarefa, são imprescindíveis
Profetismo e esperança que resultam do caráter utópico de tal
forma de ação, tomando-se a utopia como a unidade,
inquebrantável entre a denúncia e o anúncio. Denúncia de uma
realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os
homens possam ser mais. Anúncio e denúncia não são, porém,
palavras vazias, mas compromisso histórico
(FREIRE, 1987,
p.73).
A educação libertadora exige também uma paixão, uma experiência da
profunda significação da Páscoa. Indispensavelmente, este aprendizado requer,
como condição sine qua, que eles [os educadores] façam realmente sua Páscoa.
Isto é, que morram como elitistas para renascerem como revolucionários, por
mais humilde que seja sua tarefa como tais (FREIRE, 1982, p.76).
Todavia, esses conceitos, forjados na luta por libertação dos homens e das
mulheres, podem também ser usados com interesses opressores. Paulo Freire
chama a atenção para o fato de se evitar que isso aconteça. A Páscoa não pode
ser somente uma data comemorativa esvaziada de sua profunda significação.
Isso também é manipulação e condicionamento. Na realidade, os
verdadeiramente engajados na luta pela libertação
Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a
mudança de sua consciência, tem realmente de ser existenciada.
A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, mas
práxis, compromisso histórico. A Páscoa na verbalização é morte
sem ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica, a
Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar-
se na Páscoa, eminentemente biofílica, não pode ser aceita pela
visão burguesa do mundo, essencialmente necrofílica, por isso
mesmo estática
(FREIRE, 1982, p.87)
Assim, a proposta pedag
ógica de Paulo Freire também se caracteriza
como uma espécie de noologia, ou seja, implica na rejeição dos mitos que são
usados na manutenção de uma realidade desumanizante, mas sem deixar de
fazer uso de uma linguagem mítico-simbólica no anúncio de uma realidade mais
humana.
Desta forma, compreendemos a proposta de superação do mito tanto em
René Girard como em Paulo Freire como a necessidade de superar os mitos que
geram desumanização.
3. Educação do desejo, condição humana e liberdade
Ao analisarmos a necessidade de transformação da realidade, devemos
considerar o fato de que muitas críticas contra as propostas de transformação se
constroem sobre o argumento de que tais propostas são inviáveis. Assim, mesmo
que a realidade presente não seja a melhor em termos ideais, ela é apresentada
como a melhor possível. Essa é uma das principais idéias que sustentam e
mantêm, por exemplo, a exclusão social. Quando se acredita na inevitabilidade da
exclusão social não faz nenhum sentido lutar para superá-la.
Não por acaso o sentido vulgar de utopia seja o de algo impossível. O
conceito de utopia surge, justamente, com Thomas Morus, como proposta de uma
ordem social mais humana. Mas raramente hoje em dia encontramos a palavra
utopia relacionada à transformação social. Apresentar essa relação pode causar
estranheza em muitas pessoas. Mas, desta forma, sempre que se fala de
transformação da realidade social em termos utópicos e só se pode falar de
transformação em termos utópicos fica a impressão de que se está propondo
algo impossível.
Isso acontece porque qualquer proposta de transformação é
fundamentalmente um fruto do desejo. A proposta de transformação implica em
uma realidade que ainda não existe. Implica em desejar para além do que existe.
Implica em imaginação. A imaginação é livre dos limites da realidade do tempo
presente. Por isso possibilita que se deseje para além do que existe. A
imaginação tem um papel fundamental na aprendizagem criativa. É também uma
das principais forças que impulsionam os desejos de transformação.
Mas, entendamos bem, a imaginação e o desejo o elementos
fundamentais numa etapa necessária das propostas de transformação; porém,
não podem pretender ser a própria proposta. Mas sabemos, desde crianças, que
a imaginação é livre dos limites que caracterizam a condição humana. Propostas
assim, por mais belas e sedutoras que pareçam, tendem a ser absurdas e
inviáveis. Desta forma, o é difícil que tais propostas sejam facilmente
descartadas. E com tais propostas, se descarta também a imaginação e o desejo
de transformação, pois são considerados, necessariamente, obsoletos e inviáveis.
Todavia, a imaginação inseparável do desejo é também intrínseca ao ser
humano. Ela não pode ser extirpada. Mas pode ser condicionada, manipulada. A
domesticação da imaginação se torna mesmo um dos principais instrumentos na
manutenção da realidade desumanizante. Sobre isso, Rubem Alves diz:
O triunfo do poder não é coisa fácil [devido à resistência dos
oprimidos]. A resistência pode ser dobrada pela força bruta.
[Todavia] a longo prazo, o controle da imaginação é muito mais
efetivo do que o uso da violência. O escravo deve aprender a
amar o seu senhor. Assim, ele o obedecerá voluntariamente. Se
os seus valores e pensamentos puderem ser tornados
coincidentes ao de seu amo, obedecê-lo equivalerá a ser livre.
Quando isso ocorre percebemos o ato de dominação como uma
expressão de piedade
(ALVES, 1987, p.43-4).
Ao considerar as propostas de transformação como inviáveis, os projetos
de dominação condicionam o desejo e a imaginação aos limites do que já existe.
Isso inviabiliza, definitivamente, qualquer possibilidade de transformação,
representando um desafio incontornável para as propostas de libertação. Esse
desafio deve ser superado pela educação do desejo, e se traduz da seguinte
forma: como libertar o desejo para imaginar além do que existe e fazer com que
esse desejo não resulte em propostas inviáveis?
Não é por acaso que o livro em que se encontra a entrevista de Paulo
Freire na qual ele expressa o interesse pela criação de uma Pedagogia do Desejo
recebe o título de Pedagogia dos sonhos possíveis. Um conceito fundamental na
obra de Freire, inseparável de utopia e esperança, é o do inédito viável. Segundo
Freire, as situações-limite tendem a gerar um fatalismo que considera inviável
qualquer possibilidade real de transformação.
Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se
no conhecimento do que Goldman chama de consciência real
(efetiva) e consciência máxima possível
24
. [] Daí que, ao vel
da consciência real, os homens se encontrem limitados na
possibilidade de perceber mais além das situações-limites, o que
chamamos de inédito viável. Por isto é que, para nós, o inédito
viável, [que não pode ser apreendido no nível da consciência
real ou efetiva] se concretiza na ação editanda, cuja viabilidade
antes não era percebida. Há uma relação entre o inédito viável e
24
Real consciousness is the result of the multiple obstacles and desviations that the different
factors of empirical reality put into opposition and submit for realization by this potential
consciousness (Lucien Goldman, The human Sciences and Philosophy. Londres, The Chancer
Press, 1969, p. 118), em FREIRE, 1987, p.61.
a consciência real e entre a ação editanda e a consciência
máxima possível. A consciência possível (Goldman) parece
poder identificar-se com o que Nicolai chama de soluções
praticáveis despercebidas (nosso inédito viável), em oposição
às soluções praticáveis percebidas e às soluções efetivamente
realizadas, que correspondem a, consciência real (ou efetiva)
de Goldman
(FREIRE, 1987, p.61).
Desejar para além do que existe (condição necessária no processo de
transformação) implica, necessariamente, em respeitar os limites da condição
humana para que constitua, efetivamente, um processo de humanização e
libertação. O relato da tentação de Jesus, citado, permite uma melhor
compreensão disso. A primeira tentação de Jesus é justamente a de transformar
pedra em pão (Mt 4.3). Esta seria uma solução perfeita num lugar onde muitas
pedras e muita fome! Todavia, devemos nos perguntar (como adverte Jung Mo
Sung) por que este desejo um desejo bem-intencionado, diga-se de passagem
foi colocado como tentação na boca do diabo. Sung responde: porque é um
desejo que nega as diferenças entre pedra e pão, isto é, um desejo de uma
solução gica capaz de conformar o mundo com os nossos desejos (SUNG,
2002b, p.176). Em outras palavras, é um desejo que nega a condição humana.
Cabem aqui algumas considerações sobre a teoria do desejo mimético de
René Girard. Acredito que não como negar a realidade da natureza mimética
do desejo. Pelo menos não encontrei, em minha pesquisa, ninguém que
questione tal teoria. Porém, as críticas à Girard não são contestadoras do desejo
mimético, mas procuram encontrar uma alternativa ao desejo mimético: um tipo
de desejo que não faça menção à tendência humana para os conflitos e para a
violência. No diálogo de Girard com teólogos da libertação apareceu a
reivindicação de tal tipo de desejo
25
. Leonardo Boff buscou a formulação do
conceito de unidade primordial para definir tal desejo, uma experiência de
“‘união stica da pessoa com o resto da humanidade e com o mundo
(ASSMANN, 1991, p.57).
Na mesma linha proposta por Boff, Luis Carlos Susin busca a formulação
de um desejo pericorético:
25
Esses desentendimentos se explicam, em parte, pelo fato de Girard não ter ainda publicado
obras em que supera a inevitabilidade das conseqüências violentas do desejo mimético
(predominante em A violência e o sagrado), como em Eu via Satanás cair do u como um raio,
publicado em 1999.
Falar do desejo mimético é falar do pecado original. Pergunto: não
existe também, no ser humano, uma realidade mais fundamental?
[...] Não existe um desejo mais fundamental? Vou inventar um
nome para esse desejo: desejo pericorético. Não seria o desejo
mimético uma perversão de um desejo autêntico, mais original
que o desejo mimético, que eu tomaria da teologia trinitária,
chamando-o desejo pericorético?
(ASSMANN, 1991, p.50).
Girard não deixa de reconhecer tal tipo de experiência, mas enfatiza a
necessidade de se questionar se ela existe como um âmbito independente, um
nível autônomo da liberdade, ou se está fundamentalmente imerso no desejo
mimético. E conclui: Ainda é necessário que me provem que aquilo que você diz
é capaz de resistir ao mundo e de sustentar-se contra ele, sem ter que recortar os
seus sonhos, sobretudo no plano organizacional (ASSMANN, 1991, p.57).
Julio de Santa Ana fala de liberdade numa perspectiva que, acredito, se
aproxima mais do pensamento de Girard:
Eu reconheço que o desejo mimético é uma realidade. [...] Mas
creio que, junto ao desejo mimético, existe no ser humano, e não
apenas no Messias, o que poderíamos chamar a chama do
Espírito Santo. O Espírito Santo é quem transforma Jesus em
Messias. Leva-o ao deserto, Ele tem as tentações e define sua
vida segundo o Espírito, isto é, segundo a liberdade. E a liberdade
não é mimética. [...] Há algo mais, que a violência não pode
conter, que não se esgota nela. [...] E isto se chama a liberdade,
ou seja, o Espírito Santo
(ASSMANN, 1991, 48-9).
É preciso chamar a atenção para o fato de que a insistência de Girard em
enfatizar a realidade do desejo mimético consiste em aceitar a condição humana.
Nessa perspectiva, certamente a liberdade é a alternativa às conseqüências
violentas do desejo mimético, como enfatizou Julio de Santa Ana. Mas em que
consiste a liberdade? Para Girard, a liberdade é a conversão. Segundo ele,
O desejo mimético, como eu o vejo, deixa aberta a possibilidade
de conversão. [...] O desejo mimético deve ser considerado como
uma espécie de ascese pessoal. Esta é uma das coisas
importantes que queria dizer-lhes: toda a análise do desejo
mimético está a serviço da conversão. Não se trata
necessariamente da conversão cristã, obviamente
(ASSMANN,
1991, p.73-4).
Liberdade é conversão. A liberdade que temos é a de imitar Jesus, ou
alguém como Jesus (GIRARD, 2000, p.214). A liberdade, nesta perspectiva,
reconhece e respeita a condição humana, pois a conversão implica em aceitar a
natureza mimética de nosso desejo.
4. Desejo mimético, conversão espiritual e autonomia
Reconhecer a realidade do desejo mimético é fundamental para uma
educação do desejo que se pretenda libertadora. Pois só pode existir liberdade no
reconhecimento e na aceitação da condição humana. Negar essa condição
mesmo que seja através dos sonhos mais belos possíveis se configura numa
outra forma de alienação e opressão.
26
Todavia, reconhecer o desejo mimético não deve nos levar ao desespero
de pensar que não solução para a violência humana. Devemos considerar
que no desejo mimético existe uma abertura (ASSMANN, 1991, p.74). É nessa
abertura que se encontra o esforço de Girard em buscar uma solução para o
problema da relação entre desejo mimético e violência. Ele diz que toda a análise
do desejo mimético está a serviço da conversão. Na minha análise da literatura
descubro que, nas grandes obras, o desejo mimético se encaminha sempre para
um desafio, uma espécie de conversão. Porém, Não se trata necessariamente
de conversão cristã, obviamente (ASSMANN, 1991, p.74). Trata-se de um
conceito que abrange a experiência humana em sua totalidade, e por isso
acessível a qualquer pessoa em qualquer tempo e lugar. Girard chama a atenção
para essa compreensão:
Como lhes dizia, o modelo, a forma de conversão individual está
presente em obras que não têm nenhuma caráter confessional
cristão. Ela se encontra lá porque a renúncia ao desejo mimético é
a renúncia a um tipo de eu, um eu que nós consideramos como
verdadeiramente individual, mas que não é. Trata-se, pois, da
morte do homem velho, no sentido paulino
(ASSMANN, 1991,
p.74).
Muito embora o conceito de conversão permita uma abertura para um tipo
de experiência que o se limita a nenhuma instituição religiosa, pessoas críticas
a instituições religiosas ou que tenham problemas com a religião podem
apresentar alguma resistência a essa proposta. Girard cita um episódio em que
26
Segundo Edgar Morin, educar para a condição humana é um dos sete saberes necessários para
à educação do futuro, visto que em nenhum lugar é ensinado o que é a condição humana, ou
seja, nossa identidade de ser humano . Todavia, essa constatação de Morin diz respeito somente
aos espaços pedagógicos formais. As leituras que fazem Simone Weil e René Girard, por
exemplo, dos Evangelhos consistem na consideração de que estes são uma teoria antropológica.
essa resistência aparece: Lembro-me, agora, de Lucien Goldman que é
marxista, que foi, aliás, o primeiro marxista a interessar-se pelo desejo mimético
essa tendência a uma conversão final era um assunto que o inquietava muito
(ASSMANN, 1991, p.74).
Portanto, é preciso ressaltar que o sentido de espiritualidade trabalhado
aqui, muito embora esteja permeado dos símbolos da tradição judaico-cristã, não
se restringe às experiências vividas no seio desta tradição. Trata-se de uma
espiritualidade num sentido antropológico, uma categoria antropológica que
abrange uma experiência comum a toda a humanidade.
O tema da conversão espiritual, na perspectiva da teoria mimética, também
precisa vencer outro tipo de resistência: a questão da autonomia. Pois a
conversão implica na imitação de um tipo ideal de modelo (representado pelos
evangelhos na pessoa de Jesus) cujos desejos nos afastem da violência e nos
conduzam à solidariedade. A questão inevitável é: como fica o problema da
construção da autonomia na perspectiva do desejo mimético? Mas é necessário
questionarmos, também, qual sentido de autonomia é necessário nos processos
de libertação.
No prefácio à Pedagogia da autonomia, de Paulo Freire, Edina Castro de
Oliveira chama a atenção para as distorções deste conceito:
Nesse contexto em que o ideário neoliberal incorpora, dentre
outras, a categoria da autonomia, é preciso também atentar para a
força de seu discurso ideológico e para as inversões que pode
operar no pensamento e na prática pedagógica ao estimular o
individualismo e a competitividade. Como contraponto,
denunciando o mal estar que vem sendo produzido pela ética do
mercado, Freire, anuncia a solidariedade enquanto compromisso
histórico de homens e mulheres, como uma das formas de luta
capazes de promover e instaurar a ética universal do ser
humano. Essa dimensão utópica tem na pedagogia da autonomia
uma de suas possibilidades
(FREIRE, 1996, p.7).
Na perspectiva neoliberal, o sentido de autonomia estimula o individualismo
e a competitividade. Nessa perspectiva, a autonomia é incentivada, porém,
resultando sempre em desumanização. Uma das etapas do mecanismo mimético,
segundo Girard, é a perda de autonomia. Isso acontece quando, ao imitar os
desejos de um modelo, passa-se a querer ser igual ao próprio modelo. Segundo
Girard, os mitos explicam esse momento com o tema dos gêmeos. Esse tipo de
imitação elimina as diferenças saudáveis entre as pessoas e incentiva mais
ainda as rivalidades e os conflitos. Obviamente, trata-se de uma imitação
patológica. Assim, quando a imitação se caracteriza com o querer ser igual ao
modelo, ela resulta em perda de autonomia.
Todavia precisamos reconhecer que na perspectiva do bom desejo
mimético, a que se refere Girard, a imitação consiste na imitação do desejo do
modelo. Na conversão cristã, por exemplo, O que Jesus nos convida a imitar é o
seu próprio desejo (GIRARD, 1999, p.30). A imitação do bom desejo mimético
não apaga as diferenças existentes em relação ao modelo, não significando perda
de autonomia. Conseqüentemente, também não resulta na negação da alteridade.
Pois a alteridade será negada quando se considerar o outro como um rival a ser
superado. É nesse sentido que Emmanuel Lévinas irá criticar o sentido de
autonomia dominante na filosofia ocidental, do que resulta o sentido criticado por
Edina Castro de Oliveira citada há pouco. Diz Lévinas:
A filosofia ocidental coincide com aquele desvelamento do Outro,
em que, manifestando-se como ser, o Outro perde a sua
alteridade. Desde a infância, a filosofia sofre de horror pelo Outro
que permanece Outro, sofre de uma insuperável alergia. Por isso,
é essencialmente uma filosofia do ser: a compreensão do ser é a
sua última palavra e a estrutura fundamental do homem. Por esta
razão, torna-se filosofia da imanência ou da autonomia, ateísmo.
O Deus dos filósofos, de Aristóteles até Leibniz, passando pelo
Deus dos escolásticos, é um Deus adequado à razão, um Deus
objeto de compreensão, incapaz de perturbar a autonomia de
consciência que reencontra sozinha o seu caminho através de
todas as suas aventuras, que retorna para casa como Ulisses, o
qual, através de todas as suas peregrinações, não faz senão ir
para a ilha natal. Na filosofia que nos é transmitida, não o
pensamento teórico, mas todo o movimento espontâneo da
consciência é reconduzido a esse retorno a si mesmo (
LÉVINAS,
1991, p.27).
Uma autonomia que incentive a competição e a rivalidade, que negue as
diferenças e a alteridade, é criticada tanto por Paulo Freire quanto por René
Girard. Desta forma, caminhamos para a conclusão de que não contradição
entre a Pedagogia da Autonomia proposta por Freire e a proposta de conversão
espiritual proposta por Girard.
A autonomia proposta por Freire é a coragem de desejar a transformação
da realidade. A autonomia é necessária, pois sem ela não seremos diferentes
daqueles que se empenham em manter a realidade tal qual está. Em Freire, a
heteronomia significa ser igual ao opressor, o modelo dominante. Por isso, na
Pedagogia da autonomia, ele enfatiza a relação entre autonomia e
responsabilidade. Trata-se da responsabilidade pela mudança:
Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da
miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no
discurso cínico e morno, que fala da impossibilidade de mudar
porque a realidade é mesmo assim. O discurso da acomodação
ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de
que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da
adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da
humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir.
A adaptação a situações negadoras da humanização pode ser
aceita como conseqüência da experiência dominadora, ou como
exercício de resistência, como tática na luta política. Dou a
impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para bem
lutar, quando puder, contra a negação de mim mesmo
(FREIRE,
1996, p.30).
No fundo, a heteronomia significa a imitação do opressor. Trata-se de uma
imitação, por assim dizer, pois é desumanizante. Mas deveríamos concluir,
por isso, que toda a imitação é ruim? Ou ainda: em projetos de humanização,
deveríamos renunciar a qualquer tipo de imitação?
Jung Mo Sung trata desse tema ao indicar que as proposta de
humanização devem responder à pergunta: qual é o modelo de ser humano, a
utopia do ser humano, que devemos usar como critério de discernimento entre a
humanização e a desumanização? (SUNG, 2006, p.149).
Se a heteronomia é conseqüência da imitação de um modelo o opressor
esse modelo é justamente o critério para se caracterizar a desumanização. Isso
nos conduz ao outro lado dessa questão: a autonomia deverá, então, consistir na
imitação de um modelo que seja o critério para caracterizar a humanização.
Assim, Jung Mo Sung analisa, como exemplo, o método pedagógico proposto por
Philippe Perrenoud para o ensino da solidariedade. Segundo Sung,
Assim como Leonardo Boff que propôs São Francisco modelo de
ser humano para que as pessoas desejassem assumir a causa da
ecologia e dos pobres, Perrenoud também propõem o mesmo
caminho de apresentar as histórias das pessoas que viveram
intensamente a solidariedade como modelo de ser humano
(SUNG, 2006, p.150).
Jung Mo Sung faz essa referência a Perrenoud apenas para enfocar o
método pedagógico proposto por ele para dar valor, sentido e fascínio/encanto a
algo que é espiritual [a solidariedade] (SUNG, 2006, p.150).
Podemos concluir, assim, que a autonomia, tal como é entendida aqui,
consiste na renúncia à imitação de modelos que são critérios de desumanização,
ao mesmo tempo em que consiste na imitação de modelos que são critérios de
humanização. Em outras palavras, trata-se de deixar de imitar maus modelos
para imitar bons modelos. Ou ainda, trata-se da conversão espiritual:
[a conversão] Implica escolher Cristo ou alguém semelhante a
Cristo como modelo de nossos desejos. E implica ver a si mesmo
como inserido nesse processo desde o início, em lugar de assumir
a seguinte posição: Não quero imitar Jesus, pois sou senhor de
mim mesmo tenho meus próprios desejos. Converter-se é
descobrir que, sem saber, sempre tivemos imitando os modelos
errados, modelos que nos levam ao círculo vicioso dos
escândalos e da frustração perpétua ao círculo mimético, pois
(GIRARD, 2000, p.214).
Conclusão
Uma obra que é um verdadeiro divisor de águas na maneira de se fazer
teologia e no estudo da relação entre religião e educação é O dogma que liberta
de Juan Luis Segundo. Embora, para os ouvidos protestantes, a palavra dogma
seja cercada de preconceitos, ele está se referindo à Revelação de Deus. Ele diz
que:
A revelação divina não é um depósito de informações corretas,
mas um processo pedagógico verdadeiro. A revelação que Deus
faz de si próprio e do homem não consiste em acumular
informações corretas a esse respeito. É um processo, um
crescimento em humanidade, e nele o homem não aprende
coisas. Aprende a aprender. Exatamente como em toda a
pedagogia: guia-se uma criança (essa é a etimologia da palavra)
para que aprenda a buscar a verdade usando da experiência e,
nessa, de seus próprios equívocos e erros
(SEGUNDO, 2000,
p.405).
Acredito que esta seja a melhor definição para estabelecer a relação entre
religião e educação e para estudar os pressupostos teológicos/espirituais das
propostas pedagógicas libertadoras, pois ela implica na compreensão da
Revelação e da teologia como uma pedagogia para uma vida mais humana.
Há aqui uma relação com Paulo Freire, pois para ele uma educação
opressora consiste justamente no depósito de informações pelos educadores nos
educandos. Este é o sentido de educação bancária. Da mesma forma, uma
Revelação que consista num depósito de informações corretas se constituirá,
necessariamente, um instrumento de opressão. Esta também é a conclusão de
Jung Mo Sung, ao analisar este mesmo trecho de Segundo:
Se a revelação de Deus é um processo pedagógico, então a
teologia não pode ser uma sistematização de verdades
formuladas a priori, seja sobre Deus em si, seja sobre o processo
de libertação dos pobres. Ao invés disso, deve ser um
discernimento crítico dos processos de criação dos ídolos, seja no
interior das religiões e Igrejas, seja na economia ou política, e uma
reflexão que vai sinalizando e possibilitando melhores leituras dos
processos de humanização que ocorrem nos diversos espaços
das nossas vidas e sociedades. Em outras palavras, uma
hermenêutica da história
(SUNG, 2002b, p.37).
Temos também aqui uma relação com René Girard. Sua obra nos
apresenta, de fato, uma leitura da religião como um processo pedagógico. Nesta
perspectiva ele apresenta sua análise da origem e do desenvolvimento da
religião, rumo à libertação da humanidade. Assim, mesmo o mecanismo do bode
expiatório, considerado como processo pedagógico, dever ser analisado a partir
de sua função de manter o sagrado violento fora da comunidade (GIRARD, 2000,
215). Mesmo assim, o recurso ao mecanismo sacrificial é legitimado, no início,
como busca de liberdade, pois o único modo de tornar o homem livre era por
meio da religião, e, a princípio, por meio de uma religião necessariamente ilusória,
ao menos em parte, uma vez que o homem ainda não estava preparado para uma
plena revelação da verdade (GIRARD, 2000, p.216).
Obviamente, essa religião ilusória foi necessária, pois preparou a
humanidade para a Revelação que mostrou que misericórdia é melhor que
sacrifício para trazer a paz às sociedades e conferir liberdade à humanidade.
Na análise de Girard, a Revelação substituiu o mecanismo do bode
expiatório pela educação do desejo, que em linguagem cristã recebe o nome de
conversão. Como vimos antes, segundo Girard:
[a conversão] Implica escolher Cristo ou alguém semelhante a
Cristo como modelo de nossos desejos. E implica ver a si mesmo
como inserido nesse processo desde o início, em lugar de assumir
a seguinte posição: Não quero imitar Jesus, pois sou senhor de
mim mesmo tenho meus próprios desejos. Converter-se é
descobrir que, sem saber, sempre tivemos imitando os modelos
errados, modelos que nos levam ao círculo vicioso dos
escândalos e da frustração perpétua ao círculo mimético, pois
(GIRARD, 2000, p.214).
Desta forma, a Revelação é um processo pedagógico que humaniza e que
liberta. Esta perspectiva nos aproximou de Paulo Freire. Para ele o sentido da
educação é a busca por humanização. Segundo Freire, por estarmos sendo este
ser dado à aventura e à paixão de conhecer, para o que se faz indispensável a
liberdade é que vimos nos vocacionando para a humanização e que temos, na
desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação (FREIRE, 1994,
p.99). Freire faz questão de esclarecer que a humanização deve ser entendida
como um processo pedagógico. Ou seja, não se trata de um conceito formulado
abstratamente, que possa se constituir numa informação à guisa de educação
bancária. Quando isso acontece, não deixa de ser uma prática de opressão e
desumanização. Por isso, Freire diz que:
É importante insistir em que, ao falar do ser mais ou da
humanização como vocação ontológica do ser humano, não estou
caindo em nenhuma posição fundamentalista, de resto, sempre
conservadora. Daí que insista também em que esta vocação, em
vez de ser algo a priori da história é, pelo contrário, algo que se
vem constituindo na história. Por outro lado, a briga por ela, os
meios de levá-la a cabo, históricos também, além de variar de
espaço-tempo a espaço-tempo, demandam, indiscutivelmente, a
assunção de uma utopia. [...] O sonho é assim uma exigência ou
uma condição que se vem fazendo permanentemente na história
que fazemos e que nos faz e re-faz
(FREIRE, 1994, p.99).
Todavia, ao falarmos, com Freire de vocação para a humanização,
precisamos discutir em que consiste a humanização. Freire reconhece que num
primeiro momento, os oprimidos, ao buscar humanizar-se, tendem a se tornar
opressores também. Isto porque o modelo de humanidade que têm é o modelo do
opressor: O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na
contradição em que sempre estiveram e cuja superação não está clara, é ser
opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade (FREIRE, 1987, p.32).
Essa constatação de Freire nos aproximou do conceito de conversão
proposta por Girard, conversão como descoberta de imitação de modelos errados
(o opressor), e a imitação de bons modelos. Pois falar em humanização consiste
em responder à pergunta: Qual é o modelo de ser humano, a utopia do ser
humano, que devemos usar como critério de discernimento entre a humanização
e a desumanização? (SUNG, 2006, p149). A educação do desejo implica em
conversão!
Essa análise sobre espiritualidade e Pedagogia do Desejo nos conduz a
um desafio imposto pela dramaticidade da hora atual, nos dizeres de Paulo
Freire. A partir da análise proposta aqui, um dos principais fatores para a
constatação da desumanização como realidade histórica é a atual crise de
modelos. Essa característica pode ser observada tanto nos espaços religiosos
quanto nos espaços pedagógicos. Para citar apenas dois exemplos:
Os recentes templos católicos têm substituído os vitrais que exibiam figuras
dos santos por desenhos abstratos. Mas se não encontramos mais modelos de
conduta ética e valores morais nos vitrais das igrejas, podemos encontrar nos
outdoors espalhados pelas cidades modelos de padrão de consumo. Os vitrais
metamorfosearam-se em outdoors... Além disso, encontramos em vários lugares
padres e pastores e outros tipos de sacerdotes que mais se parecem com ícones
popstars; que chamam a atenção para si, mas de modo totalmente diferente do
que faz o apóstolo Paulo, por exemplo: imitem-me, porque eu imito a Cristo.
Permitam-me também o relato de uma experiência pessoal. Numa escola
em que eu trabalhei, a mãe de um aluno procurou, certa vez, um professor,
colega meu, para reclamar que seu filho comentava o fato de ouvir muitos
palavrões seus do professor em sala de aula. A primeira atitude de meu
colega foi defender-se dizendo que tal informação não era verdadeira. Mas na sua
argumentação acabou soltando alguns palavrões, deixando escapar que, de
fato, se tratava de um hábito seu. Ao perceber que essa argumentação não
funcionaria mais, apelou para outra, dizendo que a sua função era a de transmitir
conhecimento e não a de educar, no sentido de ensinar valores éticos e morais.
Até hoje esse fato me inspira uma série de reflexões. Comecei a observar que se
trata de uma opinião, consciente ou inconscientemente, bastante difundida. Trata-
se, no fundo, de uma recusa a ser modelo, no sentido pedagógico. A
conseqüência é que as crianças e adolescentes aprendem muito mais com a
televisão do que nas salas de aula...
Obviamente esses dois exemplos merecem uma análise mais aprofundada.
Gostaria de chamar a atenção apenas para essa crise de modelos (é provável
que alguém que ouça essa expressão, pense que estou me referindo às
passarelas...), constatação que conclama pela ascensão de modelos. Lembro-me
do filme Deus é brasileiro. O filme conta a estória de que Deus resolve tirar férias
para descansar um pouco, afinal, Deus também é gente! Mas para isso, Ele
precisar encontrar alguém para ficar em seu lugar. Ele encontra essa pessoa em
terras longínquas do Brasil, um homem comprometido com lutas sociais e causas
nobres, enfim, considerado a melhor pessoa para tal tarefa. O problema é que
Deus não consegue convencê-lo a assumir este compromisso, pois, no final das
contas, o cara era um ateu!
Trata-se de um paradoxo muito divertido, e que nos ajuda a indicar
soluções para essa crise de modelos. Precisamos de bons modelos, é fato, mas
esses não precisam ser santos, podem até ser ateus: basta que tenham bons
desejos.
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