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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
Vou te contar
...
As narrativas: das tramas da vida ao ofício docente
Valéria Cristina da Silva
NITERÓI
Junho/2008
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VALÉRIA CRISTINA DA SILVA
Vou te contar
...
As narrativas: das tramas da vida ao ofício docente
Orientadora: Profª Drª Eda Maria de Oliveira Henriques
Niterói
Junho/2008
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Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Educação, Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em
Educação. Área de concentração:
Linguagem, Subjetividade e Cultura.
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VALÉRIA CRISTINA DA SILVA
Vou te contar
...
As narrativas: das tramas da vida ao ofício docente
Niterói
Junho/2008
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Dissertação submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre em Educação.
Área de concentração: Linguagem,
Subjetividade e Cultura.
Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.
Tem países demais, geografias demais.
Desisto.
Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr.
Grisolia,
orgulho da cidade.
E toda gente coleciona
os mesmos pedacinhos de papel.
Agora coleciono cacos de louça
Quebrada há muito tempo.
Cacos novos não servem.
Brancos também não.
Têm de ser coloridos e vetustos,
desenterrados — faço questão — da horta.
Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,
restos de flores não conhecidas.
Tão pouco: só o roxo não delineado,
o carmezim absoluto,
o verde não sabendo
a que xícara serviu.
Mas eu refaço a flor por sua cor,
e é só minha tal flor, se a cor é minha
no caco da tigela.
O caco vem da terra como fruto
a me aguardar, segredo
que morta cozinheira ali depôs
para que um dia eu o desvendasse.
Lavrar, lavrar com mãos impacientes
um ouro desprezado
por todos da família. Bichos pequeninos
fogem de revolvido lar subterrâneo.
Vidros agressivos
ferem os dedos, preço
de descobrimento:
a coleção e seu sinal de sangue;
a coleção e seu risco de tétano;
a coleção que nenhum outro imita.
Escondo-a de José, por que não ria
Nem jogue fora esse museu de sonho.
(Carlos Drummond de Andrade, “Coleção de cacos”)
4
5
À Francisca, minha mãe, que aos 84, borda,
costura e conta suas histórias como ninguém.
AGRADECIMENTOS
À Profª Drª Eda Maria Henriques, minha orientadora, pela parceria dedicada e delicada, pelo
apoio seguro e sereno e pela escuta sensível desde as primeiras palavras dessa história.
Ao Irineu, companheiro, pela infinita paciência nos (muitos) momentos difíceis dessa
caminhada e pela desmedida ajuda, sempre.
Aos meus filhos Pedro e Caio poesia e batucada pela nossa casa em movimento
enquanto o mundo se resumia ao quartinho e ao computador.
Às professoras da Unidade São Cristóvão I do Colégio Pedro II que me confiaram sem
reservas as suas narrativas, como “conchas ressoando”, toda a minha gratidão e admiração.
À minha irmã Lílian que desde sempre me acompanha, pela arte de rir e fazer rir, mesmo nos
momentos de maior aflição.
À Profª Drª Nanci Nóbrega, narradora e ouvinte nos primeiros passos dessa estrada.
Ao professor Eduardo Karol que me ofereceu poucas e boas palavras de estímulo para me
lançar nesta aventura.
Ao Colégio Pedro II pela concessão dos seis meses de afastamento de minhas atividades,
imprescindíveis para a realização desta pesquisa.
6
RESUMO
Esta dissertação é fruto de algumas indagações, suscitadas a partir de minha prática de
professora dos anos iniciais do ensino fundamental, acerca do lugar e da importância das
narrativas no contexto escolar. A pesquisa foi realizada na Unidade São Cristóvão I do
Colégio Pedro II com um grupo de doze professoras que atuam do primeiro ao quinto ano de
escolaridade. Nesse trabalho busco conhecer, por meio das memórias e narrativas dessas
professoras, suas experiências com o ato de narrar ao longo de seus percursos de vida e
trabalho, a fim de compreender de que forma foram constituídas essas relações e o lugar que
destinam às narrativas em suas práticas pedagógicas. Tomando as narrativas como foco da
pesquisa e também como instrumento investigativo, o estudo foi desenvolvido por meio de
entrevistas orais temáticas onde se procurou estabelecer um espaço de rememoração e
reflexão sobre o lugar das narrativas nas trajetórias pessoais e profissionais, notadamente no
contexto institucional do Colégio Pedro II. Para compor a análise, também foram utilizados
dados dos documentos oficiais do Colégio e suas propostas curriculares, visando fazer
sobressair os sentidos atribuídos às narrativas e o valor que é dado às mesmas nas diversas
práticas institucionais que envolvem professores e alunos. O estudo teve como suporte
teórico-metodológico as reflexões de Walter Benjamin acerca da arte de narrar e os conceitos
a esta interligados: a experiência, a temporalidade, a memória e a rememoração como
compromisso ético e político de fazer emergir das ruínas da narrativa novas formas de exercê-
la. Por esse caminho, a pesquisa pretende dar relevo às histórias singulares por meio da voz
das professoras que fazem cotidianamente a história do Colégio Pedro II, ainda que não
tenham espaço de expressão em seus registros oficiais. As reflexões de Mikhail Bakhtin em
sua teoria enunciativa da linguagem acrescentaram importantes contribuições quanto à prática
de pesquisa em si e às relações entre os sujeitos envolvidos neste processo. O estudo
evidenciou uma pluralidade de sentidos atribuídos pelas professoras às narrativas e, a partir
daí, como vão se constituindo múltiplas maneiras de compreender e empreender o ato de
narrar em seu ofício, onde estão entrelaçadas questões de vida pessoal e profissional, além do
próprio contexto institucional.
Palavras-chave: narrativas – experiência - práticas pedagógicas – ensino fundamental
7
ABSTRACT
This dissertation is fruit of some inquiries, raised starting from my practice of teacher of the
years begin of the fundamental teaching, concerning the place and of the importance of the
narratives in the school context. The research was accomplished in the Unit São Cristóvão I of
the School Pedro II with a group of twelve teachers that they act from the first to the fifth year
of education. In that work I look for to know, through the memoirs and those teachers'
narratives, their experiences with the action of narrating along their life courses and work, in
order to understand that it forms were constituted those relationships and the place that destine
to the narratives in their pedagogic practices. Taking the narratives as focus of the research
and also as investigation instrument, the study was developed through thematic oral
interviews where she tried to establish a remembrance space and reflection on the place of the
narratives in the personal and professional paths, especially in the institutional context of the
School Pedro II. To compose the analysis, also data of the official documents of the School
and their proposals were used, seeking to do to stand out the senses attributed to the narratives
and the value that it is given to the same ones in the several institutional practices that they
involve teachers and students. The study had as theoretical-methodological support Walter
Benjamin's reflections concerning the art of narrating and the concepts the this interconnected:
the experience, the time, the memory and the remembrance as ethical and political
commitment of doing to emerge of the ruins of the narrative new forms of exercising her. For
that road, the research intends to give relief to the singular histories through the teachers'
voice that they make the history of the School daily Pedro II, although they don't have
expression space in their official registrations. Mikhail Bakhtin's reflections in his theory of
the language increased important contributions as for the research practice in itself and to the
relationships among the subjects involved in this process. The study evidenced a plurality of
senses attributed by the teachers to the narratives and, since then, as space if constituting
multiple ways to understand and to undertake the action of narrating in her occupation, where
subjects of personal and professional life are interlaced, besides the own institutional context.
Word-key: narrative - experience - pedagogic practices - I teach fundamental
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
Capítulo 1: UM PASSEIO PELO CENÁRIO ............................................................... 19
1.1- Colégio Pedro II: breve histórico ........................................................ 22
1.2- Entre lembrar e esquecer ..................................................................... 27
1.3- Os Pedrinhos em cena ........................................................................ 31
Capítulo 2: CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ......................................... 33
2.1- O encontro com Walter Benjamin ....................................................... 34
2.1.1- Faz de conta que eu era ........................................................... 36
2.1.2- De que fala Benjamin quando diz Experiência? ...................... 37
2.1.3- A mão e a palavra ..................................................................... 41
2.2- O encontro com Bakhtin ...................................................................... 44
Capítulo 3: O RISCO DO BORDADO: uma abordagem metodológica ....................... 53
3.1- História de uma coleção ...................................................................... 55
3.2- Entre o familiar e o estranho ............................................................... 62
3.3- A entrada no campo ............................................................................ 66
3.4- Um olhar sobre os documentos oficiais do CPII ................................ 73
3.4.1- A agulha e o palheiro: as narrativas nos documentos oficiais ........ 80
Capítulo 4: A COLEÇÃO E SUAS HISTÓRIAS ......................................................... 88
4.1- As narradoras: com quem falo de quem falo ...................................... 91
4.2- Janelas e labirintos .............................................................................. 93
4.2.1- Mas é da minha vida que você quer saber? ............................. 95
4.2.2- Qual é de fato o interesse do pesquisador? .................................... 96
4.2.3- Quem liga para isso? ................................................................ 98
4.3- Narrar, rememorar, presentear ............................................................. 102
4.4- Um tempo para lembrar: o vivido e o narrado ..................................... 105
4.5- A ponte, a travessia, o lado de lá ......................................................... 134
Capítulo 5: TEMPOS DE ESCOLA, TEMPOS NA ESCOLA: INTERSEÇÕES E
RUPTURAS ................................................................................................. 147
5.1- Tempos de escola: do percurso de estudante ao ofício docente .......... 147
5.2- Tempos na escola: as narrativas nas salas de aula do CPII ................. 160
Capítulo 6: IMAGENS DA COLEÇÃO ........................................................................ 171
CONSIDERAÇÕES FINAIS: o que as histórias ensinam .............................................. 175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 178
ANEXO: AS NARRATIVAS ......................................................................................... 183
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Vou te contar
...
As narrativas: das tramas da vida ao ofício docente
INTRODUÇÃO
Tem razão o povo quando diz: Quem conta um conto, aumenta um ponto... e não é de
hoje também. em menina ouvia em casa no arremate das conversas, pescando uma
palavra aqui, catando um dito ali, em meio aos muitos que povoavam os encontros adultos ou
faziam companhia aos afazeres cotidianos de uma família exclusivamente feminina, em uma
casa onde muito se tinha para falar, cantar e contar. Fora as da família eram também mulheres
quem freqüentava a casa, as freguesas que chegavam para encomendar, escolher, provar as
roupas e, claro, conversar. O rádio, sempre ligado, ditava a cada hora do dia e conforme a
programação, essa ou aquela atitude: silêncio total para ouvir as notícias e acompanhar os
dramas vividos nas radionovelas, cantar junto com os programas musicais, vinhetas e jingles
das propagandas que sabíamos de cor; morrer de rir com os comediantes que conhecíamos
pela voz.
Nessa atmosfera plena de oralidade circulávamos, entre os tesouros do quintal e os
sabores das palavras, repetidas pelo simples prazer de pronunciar. Apesar de não ousarmos
interferir nas conversas dos mais velhos, não havia ali uma demarcação nítida entre o universo
infantil e o espaço destinado aos adultos, muito menos uma atitude deliberada de ensinamento
por parte destes últimos para com as crianças, em relação aos dizeres e fazeres. Imersos nas
práticas cotidianas, aprendíamos de ouvido (LARROSA, 2004) e por ensaio junto aos adultos,
minha mãe e minhas quatro irmãs mais velhas, o que era preciso saber fazer e dizer. Exceção
feita às primeiras letras que minha mãe fez questão de nos apresentar antes de ingressarmos
na escola, lá pelos sete anos de idade. Não freqüentamos a pré-escola, ou o Jardim de Infância
como se chamava na época, mas, como nos versos de Adélia Prado, minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo. Talvez por ter passado na escola não mais do que três anos de sua
infância, ela teimou e se esmerou em que chegássemos à escola sabendo alguma coisa da
cartilha de onde recitávamos as famílias silábicas, incluindo o emblemático Ivo viu a uva.
10
Meu tempo de infância, então, vivi em uma casa onde pouco se lia, onde não havia
livros enfileirados, nem estantes, e de escritos não muito mais do que os figurinos e cadernos
de medidas que minha mãe, costureira de ofício, recheava de nomes e números anotados com
grafia orgulhosa. Contudo, apesar de abrigar escassos atos de leitura, era uma casa repleta de
histórias. Repetindo a tarefa de tantas mulheres a quem compete o fazer dormir, o agasalho e a
educação dos filhos, minha mãe contava e recontava histórias, nas quais, somente mais tarde
pude perceber, se confundiam os contos da tradição popular às lembranças de sua própria
infância. Narrando enquanto trabalhava na costura, em meio às tarefas cotidianas, à noite
antes de dormir, pela voz e pela memória tecia sentidos em torno de nós.
Voltar a esse tempo não comporta nostalgia, mas desassossego. Aquele que anima e
acende as perguntas que me tenho feito e que se fizeram presentes em minha primeira
iniciativa de empreender uma pesquisa no campo da linguagem: as possibilidades de
aprendizagem que estão contidas no ato de narrar, no qual, inseparável do propósito de
proporcionar prazer aos ouvintes, é capaz de instituir uma via de interação que pressupõe o
engajamento do corpo; quando os gestos, a voz, o olhar, a respiração instauram uma situação
de comunicação ao colocar em evidência a cumplicidade dos sujeitos envolvidos, a inclusão
do outro de forma indissociável, estabelecendo-se assim uma relação mútua de coesão.
Dirigindo-se a todos e a cada ouvinte em particular, o narrador enseja um movimento interior
que ajuda a nomear sentimentos e experiências singulares, propicia a ampliação do repertório
imaginário que, reconhecidamente, aponta para um caminho de aprender. Caminho que
Câmara Cascudo (2000, p.10), em belas palavras sintetizou: Para todos nós é o primeiro leite
intelectual. Assim é que, num movimento pessoal, subjetivo, o gesto de abrir essa janela vem
provocar um olhar curioso que convida a visitar, pelos anseios do presente, um tesouro
guardado no passado.
Sem dúvida olhar para trás é um gesto necessário para quem procura recolher os
rastros de uma história que se deseja ou precisa contar. São esses vestígios que vamos
deixando marcados no caminho resistentes a toda tentativa de apagamento, mesmo quando
essa é uma escolha deliberada em nome da exaltada clareza e transparência dos textos
acadêmicos, lá estão vincados no percurso e, ainda que sejam varridos da escrita, permanecem
inscritos na experiência do pesquisador.
11
Tomando os rastros, e não por acaso também as cicatrizes, como metáforas da
memória (GAGNEBIN, 2006) e considerando a centralidade que este conceito, a partir dos
encontros com os sujeitos da pesquisa, terminou por alcançar neste estudo, o empenho que
farei aqui será oposto ao apagamento. Entretanto, dar visibilidade aos traços deixados ao
longo do caminho percorrido não se apresenta como uma tarefa menos custosa, afinal se os
rastros não são criados segundo uma intencionalidade, recolhê-los e decifrá-los requisita dar
atenção ao processo, nem sempre confortável, de sua produção.
Algumas inquietações estão na raiz desta pesquisa, outras tantas surgiram no seu fazer
e, se não substituíram as primeiras, por certo exigiram um ajuste de foco que se deu
principalmente por meio de uma alteração na abordagem metodológica. Iniciei a pesquisa
tendo como meta investigar o lugar destinado às Narrativas orais nas práticas docentes
voltadas para as séries iniciais do Ensino Fundamental no Colégio Pedro II. Meu interesse se
situava, desde o princípio, em buscar compreender como se na sala de aula a intervenção
pedagógica em relação à oralidade; que tratamento é dispensado a esse aspecto no processo de
ensinar e aprender, focalizando especificamente o gênero narrativo, as histórias que circulam
de boca em boca e que compõem o amplo patrimônio oral disponível na cultura.
Tendo em vista que, ao longo de sua evolução, a escrita vem acumulando a autoridade
de ser considerada o arcabouço da memória e do conhecimento e à oralidade são associadas as
idéias de efemeridade, de imprecisão, de irreversibilidade, algumas indagações se fizeram
presentes: Quem ainda fia e tece a palavra, quem ainda resguarda essa forma artesanal de
comunicação? Se hoje, em poucas famílias ainda se conserva o costume de contar histórias às
crianças, qual é o espaço que o cotidiano escolar reserva para alimentar, pela via da narração,
o imaginário infantil? Além disso, até que ponto a escola se ocupa em garantir a transmissão
às novas gerações do legado que a memória coletiva encerra através das histórias contadas e
recontadas oralmente?
Convivendo hoje em um meio onde a leitura e a escrita são exercícios e exigências
cotidianas e adquirem contornos cada vez mais sofisticados, podemos ter a sensação de que
todas as práticas anteriores ao ler e escrever são como uma “página virada”. Ficaram atrás,
num tempo fora das evidências do nosso presente de virtualidades e formas de comunicação
que prescindem, cada vez mais, da relação concreta e material, da presença, enfim. Entretanto,
para Paul Zumthor (2001), contrapondo-se às teorias que trataram de evidenciar a oposição
12
entre as culturas orais e culturas letradas, tais diferenças devem ser ressaltadas não como meio
de corroborar uma ruptura, mas para mostrar como permanecem em diálogo e constantes
mediações.
Reconheço o quanto tais questões estão relacionadas à minha própria história de vida,
porém, após tantos anos de dedicação aos afazeres que a prática docente exige e estando
envolvida diretamente com as questões que o cotidiano escolar suscita, perguntas e perguntas
têm reclamado respostas. Muitas têm sido alvo de reflexões solitárias, algumas lugar de
intensos debates com meus pares, outras tantas exigiram a urgência de soluções das quais
dependiam a saída dos impasses que diariamente se colocam no ofício de professora das séries
iniciais. Porém, certas indagações são eloqüentes em mostrar que se faz necessário um
tratamento de natureza diversa daqueles experimentados até então e, assim, vieram a se
configurar como um problema de pesquisa e requerer um aprofundamento teórico segundo o
qual se delineou um caminho para abordá-las.
A partir desse estudo, e pelo movimento que os encontros no campo fomentaram, as
perguntas iniciais se desdobraram em novas maneiras de encarar o problema, desaguando na
busca de compreender o que revelam as histórias de vida das professoras sobre suas
experiências de narrativa, os sentidos que atribuem ao ato de narrar e o lugar destinado a essa
prática em seu ofício de ensinar e aprender.
O encontro com as narrativas se desde muito cedo na vida das crianças, seja pela
voz dos adultos que as embalam ao colo, seja por meio das cantigas entoadas junto aos seus
parceiros nos jogos, pelas histórias contadas entre si nas brincadeiras de faz de conta, ou
através das conversas que ocorrem ao seu redor que, dirigidas a elas ou não, vão contribuindo
para o registro da estrutura do relato, bem como com a multiplicidade de sentidos que pode
conter. Imersos nesse mar de histórias, vivemos vidas relatadas, o que faz de nós, seres
humanos, segundo Connely e Clandinin (1995, p.11) organismos contadores de histórias
1
.
Essa abordagem conduz a uma compreensão acerca da constituição da subjetividade
fundada nas relações entre sujeitos e mediada simbolicamente, destacando, assim, o papel
1
É preciso ter em consideração que os autores não se referem a essa competência narrativa como algo imanente
à natureza humana, ou o resultado de uma descoberta espontânea que se em algum momento da vida do
sujeito pela simples imersão social.
13
crucial das interações sociais na construção de sentidos, cuja expressão essencial se concentra
na linguagem. Esse contexto, longe de ser um cenário de simples reprodução, de trocas
mecânicas e limitadas, engendra a formação de sujeitos sociais e edifica percursos e
experiências peculiares, o que nos consente um encontro com a idéia de formação defendida
por Larrosa (2003) e que se apresenta sob o emblema do inacabamento, o vir a ser plural e
criativo. Contrapondo-se ao sentido de con-formidade, a um ideal fixado de antemão, o autor
relaciona a formação à imagem da viagem, da aventura:
Porque leva cada um a si mesmo, na formação não se define
antecipadamente o resultado. A idéia de formação não se entende
teleologicamente, em função de seu fim, em termos de estado final que
seria uma culminação. O processo da formação está pensado, melhor
dizendo, como uma aventura. (LARROSA, op.cit, p. 52)
Esse modo de encarar a formação, no qual não se projeta no horizonte um ponto mais
alto em que esta se encontre por fim estabilizada, saciada ou resolvida, é exigente de
reconhecer nesse percurso não uma cadeia seqüenciada de realizações, façanhas e conquistas,
mas uma travessia plena de recomeços e desdobramentos; a constante escrita e reescrita de si
que, sob a forma de uma narrativa se faz compreender tanto para os sujeitos como para os
outros. Para Larrosa, entre compreensão, autocompreensão e narrativa existe uma conexão de
tal modo evidente que por si é capaz de justificar e reivindicar um lugar “no interior das
práticas sociais mais ou menos institucionalizadas como, por exemplo, as práticas
pedagógicas” (LARROSA, 2002, p. 146).
As idéias de viagem e de abertura são recorrentes em diversos escritos de Walter
Benjamin e é explicitamente anunciada em O Narrador, onde o autor evoca o espírito da
verdadeira narrativa pela sua essência de não-acabamento e amplitude que pode alcançar por
não aspirar a uma verificação imediata, por oferecer ao ouvinte/leitor ocasião de se acercar de
um universo livre de interpretações impostas. A própria palavra experiência, conceito forte na
obra de Benjamin, em alemão Erfahrung, deriva do radical fahr cujo sentido literal é
“percorrer, atravessar uma região durante uma viagem” (GAGNEBIN, 2004, p. 58). Porém,
para o autor essa é uma viagem que se realiza em companhia, tanto que é a partir do
declínio de certo tipo de experiência que o autor elabora o conceito, tendo em vista a
exacerbação dos valores individuais e privados que começam, na modernidade, a tomar o
lugar das referências coletivas.
14
Se cada história narrada propicia a abertura para outras histórias, se a força do narrador
reside no fato de saber contar sem dar explicações definitivas, permitindo que a história
comporte diferentes interpretações, meu intuito inicial foi o de dirigir o foco da pesquisa para
a sala de aula. Pensando-a como espaço privilegiado de se fazer presente esse modo de
interação, na qual cada sujeito envolvido é único, ao mesmo tempo em que participa de uma
experiência coletiva de linguagem, pretendia freqüentar durante um período as salas de aula a
fim de observar e registrar de que modo e por quais motivações as professoras optam, ou não,
por inserir as narrativas em suas práticas. Todavia, logo após começar a levá-lo a efeito, por
caminhos tortuosos que serão mais adiante explicitados, comecei a desconfiar da validade
desse encaminhamento. Percebi que, assim procedendo, não escaparia de repetir os modelos
investigativos pautados na utilização das situações de campo como meio de meramente
confirmar os conhecimentos adquiridos, o que me levou a considerar como um falso problema
aquele que tinha em mente ao dar início à pesquisa.
Pude ver, então, que partindo de uma certeza a importância de se abrir espaço para
as narrativas nas práticas pedagógicas — todo o desenvolvimento da pesquisa estaria a serviço
de uma classificação e julgamento do trabalho docente: este narra, aquele não é narrador;
nesta sala de aula os alunos ouvem e contam histórias, naquela outra predomina a
transmissão de conteúdos.
Do ato mesmo de duvidar do modelo epistemológico no qual se deu minha própria
formação, de indagar sobre as razões que suscitaram a elaboração das perguntas, de me
reconhecer insatisfeita com o já-sabido, me levaram a procurar saídas para a superação das
abordagens que impõem uma cisão entre a vida e o trabalho dos professores. Pela ruptura
então, me encontrava frente a frente com um problema de pesquisa, ou seja, não havia
resultados a serem previstos, muito menos práticas a serem avaliadas e categorizadas. Nesse
ponto do labirinto me auxiliou Nóvoa (2007) a lançar um olhar curioso e, por isso aberto às
surpresas, em direção às experiências de narrativas encerradas na memória e formação das
professoras:
“Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem
de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a
nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a
15
nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu
pessoal.” (NÓVOA, 2007, p.17)
Assim pensando e assim sentindo, me tornei ouvinte das histórias de um grupo de doze
professoras, que, em dado momento de suas histórias de vida, cruzaram seus percursos pelo
trabalho docente na Unidade São Cristóvão I do Colégio Pedro II.
A fim de alcançar uma visão ampla e diversificada dessas histórias, procurei compor
esse grupo reunindo professoras que se encontram em diferentes momentos de suas carreiras e
que se vinculam à Instituição por meio de variados regimes de trabalho: são as que iniciaram
sua atividade docente e passaram a trabalhar no Colégio em 1984, ano da implantação da
Unidade São Cristóvão I, as admitidas em concursos mais recentes, as que ingressaram após
vasta experiência docente em outras Instituições de Ensino públicas e privadas, as que estão às
vésperas da aposentadoria. Fiz questão de incluir, ainda, duas professoras substitutas que
cumprem contrato temporário de trabalho, por considerar importante trazer a palavra de quem
oficialmente está de passagem pela Unidade, de quem aparentemente não deixa rastros por
permanecerem por apenas dois anos, sem direito à renovação do contrato.
Meu intuito é, à medida que passo a me constituir como ouvinte e também como
narradora, registrar a voz dessas professoras que, pelo ato de narrar-se, fazem emergir suas
experiências e memórias na trama que as Narrativas tecem e se entrelaçam em suas trajetórias
pessoais e profissionais, revelando os sentidos que atribuem ao ato de narrar e o lugar que este
ocupa em seu ofício docente.
No primeiro capítulo, o que chamei “Um passeio pelo cenário”, busco situar
brevemente o contexto histórico em que se deu a fundação do Colégio Pedro II, dedicando
atenção às demandas sociais como pano de fundo para as políticas educacionais empreendidas
no período analisado. Lado a lado aos fartos registros da história oficial da instituição,
também os silenciamentos e é sob esse foco que procuro situar a chegada da infância ao
Colégio Pedro II, a partir da implantação do primeiro segmento do Ensino Fundamental, os
chamados Pedrinhos. Ainda nesse eixo, o itinerário do passeio percorre o espaço da Unidade
São Cristóvão I onde, em 1984, foi inaugurado o primeiro Pedrinho. Naquele espaço, pela
primeira vez ocupado pelas crianças, tal denominação passou a fazer sentido e a instituir
sentidos nos discursos, nas relações e nas práticas do Colégio Pedro II. Nessa Unidade
16
trabalham, ou trabalharam, as professoras que aceitaram o convite de participar desta
pesquisa. Nesse cenário, então, onde cruzam vida e trabalho e cotidianamente fazem história,
busquei por meio de suas histórias compreender como e porque na escola algumas narrativas
ganham relevo enquanto outras não encontram espaço de expressão.
No capítulo 2, procuro dar a conhecer os caminhos teóricos e metodológicos que
foram traçados ao longo da pesquisa e os autores que me acompanharam nessa travessia. De
início me dedico a escavar e olhar mais de perto alguns conceitos elaborados por Walter
Benjamin, articulados e desdobrados a partir de sua reflexão sobre o (não) lugar das narrativas
e da experiência no contexto da modernidade. Por esse caminho se revelam também as
primeiras sementes desta pesquisa, colhidas no celeiro das questões que a obra do autor
formula acerca do ato de narrar e germinadas pelas exigências que esse mesmo pensamento
nos confere na contemporaneidade, especialmente no campo da educação: o reconhecimento
do apagamento das experiências e das narrativas em nome da informação e o imperativo ético
e político de se fazer ouvir as vozes esquecidas pela história. Em seguida, apresento uma
reflexão acerca das contribuições de Mikhail Bakhtin e sua teoria enunciativa da linguagem
para a pesquisa em ciências humanas e, especialmente, para este estudo quando, no auge das
inquietações que a entrada no campo inaugura e nos faz vacilar, propiciou um diálogo fértil
sobre o modo de fazer e de dizer a pesquisa.
“O risco do bordado” trata dos caminhos metodológicos que foram se construindo a
cada passo, e por vezes, a cada descompasso da pesquisa. Nesse terceiro capítulo a palavra
“risco” não é tomada em vão, muito menos a imagem do bordado, para a minha história plena
de significações. Quero falar do traçado, do desenho que, no bordado, nunca é perene, quando
as mãos que os fazem cobrir com o colorido e a textura dos fios, cria e recria, arriscando-se,
um contorno novo, uma nova e irrepetível estampa. Nesse capítulo procuro fazer visível o
processo de elaboração da pesquisa como parte integrante que é da produção de
conhecimento, além de justificar minha escolha de nomear com Benjamin de coleção o
resultado e registro das narrativas das professoras. Aqui busco, também, narrar, em três
movimentos, a entrada no campo, com suas pedras no caminho, sem dúvida, mas também com
os modos que se inventa para saltá-las. Com vistas a conhecer e analisar a visão institucional
sobre as narrativas, recorri aos documentos que orientam as práticas pedagógicas na escola. A
leitura do Projeto Político Pedagógico (PPP) do Colégio Pedro II, especialmente a seção
dedicada aos anos iniciais do Ensino Fundamental, se orienta pela busca de compreender o
17
tratamento dispensado às narrativas em cada componente curricular do primeiro segmento do
ensino fundamental: língua portuguesa, matemática, estudos sociais, ciências e literatura.
Oportunamente, durante o período em que a análise estava em curso, o PPP se encontrava em
pleno processo de reformulação. O Departamento de primeiro segmento havia concluído
uma versão preliminar que, após ser submetida à discussão por parte do corpo docente, será
incorporada ao novo PPP cuja publicação está prevista para dezembro de 2008. Assim, ao
incluir na análise esse texto ainda em aberto, foi possível ampliar e atualizar a discussão até a
proposta de fundamentação do trabalho para os próximos anos.
No capítulo 5 as narrativas das professoras são apresentadas segundo o princípio da
coleção descrito no capítulo 3. Não uma ordenação uniforme, mas diferentes
reagrupamentos que atendem aos diversos temas e abordagens propostos pelas próprias
narrativas. Desse modo, ora são entrelaçadas e combinadas, ora são apresentadas
separadamente por autoria. A memória e a rememoração ganham destaque nesse capítulo,
portanto a reflexão que apresento sobre esses conceitos aparece como um apoio de que me
vali para divisar um horizonte de compreensão das narrativas.
O capítulo 6, Imagens da coleção, é o registro de um olhar que se faz a certa distância
por meio da retomada de algumas imagens-síntese que, nas narrativas das professoras,
revelam sentidos acerca do ato de narrar em suas trajetórias de vida e trabalho. Em seguida,
nas considerações finais, apresento uma reflexão sobre essas experiências narrativas,
procurando evidenciar suas implicações para as múltiplas maneiras de compreender e
empreender o ato de narrar na vida e nas práticas pedagógicas. Buscando continuar a dar
atenção ao processo de pesquisa, assinalo as conquistas e limitações do propósito de realizá-la
em colaboração com os sujeitos participantes e o quanto ter recorrido às narrativas como
método investigativo contribuiu para esse fim. Assinalo, ainda, as aprendizagens que esse
percurso investigativo me propiciou, não em relação ao seu fazer, como também para a
minha trajetória de professora.
18
Capítulo 1: UM PASSEIO PELO CENÁRIO
Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço.
Gaston Bachelard
A pesquisa teve seu lugar na Unidade São Cristóvão I do Colégio Pedro II, onde se
iniciou, no ano de 1984, o trabalho com o primeiro segmento do Ensino Fundamental e onde,
doze anos trabalho como professora do chamado Núcleo Comum
2
. Por si um lugar de
memória, posto que nessa Unidade chegaram as crianças para estudar em uma escola
centenária que atravessou parte considerável da História da Educação no Brasil em estreita
relação com os órgãos definidores das políticas públicas desse setor, mas, até então, não havia
dedicado sua atenção à infância e às especificidades inerentes ao fazer pedagógico com essa
faixa etária. Junto com as crianças chegaram os professores e professoras cujo perfil de
formação e atuação pela primeira vez passou a figurar no renomado quadro de profissionais
do Colégio.
Em contrapartida à carência de registros oficiais e até mesmo certa displicência
explicitada pela falta de detalhamento das especificidades do primeiro segmento no Projeto
Político Pedagógico em vigor, foram realizados diversos trabalhos acadêmicos
3
que, a
despeito de não apresentarem como questão inicial a implantação desse segmento no Colégio,
cuidaram de trazer à tona valiosos esclarecimentos a respeito de um processo que apresentou o
desafio de transformar um colégio com longa tradição em determinado segmento de ensino
em um colégio que também pudesse atender à infância.
Minha intenção, porém, é me acercar desse universo por meio das memórias das
professoras-participantes, a fim de conhecer, para além dos registros oficiais, as lembranças
desses sujeitos e de seus percursos, entrelaçados que estão na construção de uma escola;
apreciar, enfim, o padrão invertido da tapeçaria
4
. São lembranças que se referem a trajetórias
pessoais, mas que estão permanentemente embebidas da memória do grupo no qual foi
formada. Por esse caminho busco fazer sobressair os sujeitos em lugar das estruturas e
sistemas, as experiências sobrepondo-se ao instituído.
2
Língua Portuguesa, Matemática, Estudos Sociais e Ciências.
3
Ver referências bibliográficas
4
Em A imagem de Proust”, Walter Benjamin (1994, p.38) apresenta esta bela expressão para demonstrar sua
visão a respeito da finitude do acontecimento vivido em oposição ao caráter ilimitado das lembranças evocadas.
19
Ainda hoje se encontra em atividade um expressivo número de professoras que
naquele efervescente ano de 1984 ingressaram no Colégio e que foram responsáveis pela
elaboração e implantação da proposta pedagógica inaugural. Em São Cristóvão I estudam
cerca de mil alunos do primeiro ao quinto ano, sendo a maior unidade do primeiro segmento,
instalada, desde o início de seu funcionamento, na área destinada em tempos idos ao depósito
de materiais e dormitórios, da época em que vigorava no Colégio o regime de internato. Em
poucas palavras é possível descrever a arquitetura da Unidade São Cristóvão I: é uma escola
em linha reta. Um grande corredor em dois pavimentos, com salas lado a lado, localizado nos
fundos do chamado Complexo
5
que ocupa praticamente um quarteirão inteiro do Campo de
São Cristóvão.
Cabe ressaltar que, desde a sua inauguração, o espaço ocupado pelo primeiro segmento
em São Cristóvão nunca passou pelas reformas estruturais de que necessitaria para atender de
forma conveniente às crianças que ali passam cinco horas de seu dia e para oferecer aos
professores e funcionários técnico-administrativos condições satisfatórias de trabalho. As
condições materiais, portanto, passam longe daquilo que poderíamos definir como um lugar
agradável e convidativo, visto que as intervenções ocorridas se limitaram às adaptações e
ajustes de um prédio que não foi construído originalmente para abrigar uma escola para
crianças. Desse modo, pratica-se cotidianamente (CERTEAU, 2004) um espaço que é
provisório desde a sua ocupação inicial, ou seja, são vinte e três anos de sucessivas
acomodações, realizadas como meio de remediar problemas que se encontram na própria
estrutura da edificação e sua inadequação ao fim a que se destinou.
Por oposição, e dando atenção à linguagem com que nos falam as coisas que estão à
nossa volta, faz lembrar os objetos biográficos mencionados por Bosi (1998), aqueles que vão
se tornando cada vez mais expressivos à medida de seu uso cotidiano: “os metais se
arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as
arestas e se abranda” (Op. cit. p. 441). Como abrandar pelo uso um lugar em permanente
adequação?
São as iniciativas individuais que aparecem como lugar de resistência à aridez reinante
no ambiente. Em busca de tornar a sala de aula um espaço de convivência e pertencimento
5
Compõem esse complexo o prédio ocupado pela Direção Geral, cada um nos quais se localizam as Unidades I,
II e II (respectivamente: primeiro e segundo segmento do Ensino Fundamental e Ensino Médio), as quadras
esportivas, o Teatro Mário Lago, a piscina e o Horto florestal).
20
frente ao tudo igual, desde o mobiliário à arquitetura, não é raro o investimento das
professoras, com seus próprios recursos, em materiais, objetos e arrumações que possam, para
além da estética e funcionalidade, imprimir um traço distintivo do grupo que ali se reúne
diariamente a cada ano letivo. Busca-se, assim, meios de fazer com que o espaço receba a
marca de seu grupo e vice-versa, tendo sido este um aspecto evidenciado na fala de algumas
professoras, notadamente ao se referirem aos cantinhos que são criados nas salas de aula, os
lugares destinados à leitura, ao brincar, ao ouvir histórias, entre outros.
Para Halbwachs (2004), em sua reflexão sobre as relações entre memória e espaço, a
apropriação dos lugares por parte dos sujeitos se na medida em que se estabelece um
vínculo entre pensamentos e movimentos e as imagens exteriores, isto é, que ocorrer a
sedimentação dos hábitos dos indivíduos à materialidade na qual estão inseridos. Assim,
assegurada certa estabilidade e resguardados os elos de significação que, a partir da maneira
segundo a qual se dispõem e se arranjam os objetos e os espaços, os sujeitos estabelecem com
seu entorno material uma vinculação que passa a constituir as memórias coletivas.
A reflexão acerca da disposição espacial referida anteriormente, apesar de não se
colocar em primeiro plano nesse estudo, se fará presente pelas próprias narrativas das
professoras que, não raro, se remetem a esse aspecto como apoio de suas memórias. Outra
recorrência igualmente significativa são as referências ao ingresso no Colégio Pedro II como
um momento marcante em seus percursos profissionais, quando lembram da importância com
que foi tratado esse evento pelas suas famílias e amigos que festejaram como uma conquista
notável; ora por considerarem a dificuldade de aprovação, ora por reconhecerem o Colégio
como um altar de sabedoria, como diz a professora Lia, reproduzindo as palavras de seu pai.
Se essa escola, carregada de história, é o cenário onde em tempos diferentes e por
circunstâncias diversas se cruzaram as histórias de vida dessas professoras, que se
perguntar: que escola é essa? Meu intuito, portanto, é o de contextualizar a instituição na qual
a pesquisa foi desenvolvida. Para tanto pretendo apresentar um breve panorama acerca das
origens do Colégio Pedro II, procurando, assim, levantar o contexto sócio-econômico e
político com vistas a conhecer alguns elementos dessa trajetória e situar nesse caminho a
fundação dos Pedrinhos.
Nesse investimento não ambição de realizar um estudo extensivo a todo o percurso
do Colégio, mas sim buscar na conjuntura de sua fundação alguns indícios para a
21
compreensão de sua singularidade e pensar em que medida essa herança se revela na
atualidade, especialmente no que toca o imaginário social
6
que lhe atribui certa aura de
distinção.
1.1- Colégio Pedro II: breve histórico
A fundação do Colégio Pedro II em 2 de dezembro de 1838 se em meio a um
contexto sócio-político e econômico no qual, a partir da intensificação do mercado interno
alavancado pela mineração, aparece uma nova camada social mais complexa do que aquela
predominante no Período Colonial. Contando quase que exclusivamente com mão de obra
escrava, o modelo agroexportador predominante no período anterior não requeria formação e
diversificação da força de trabalho (FREITAG, 1986).
Segundo Romanelli (2005), no século XIX a educação escolarizada representou uma
via de que se utilizou a camada intermediária em ascensão para se afirmar como classe e
garantir o status que almejava. Na medida em que dependia da classe dominante para
amealhar ocupações mais proeminentes e distanciadas do perfil de trabalho das camadas
inferiores, procurava atender aos padrões da classe dirigente, orientando-se, assim, ao ensino a
ela proporcionado.
A transferência da corte portuguesa para o Brasil demandou em uma série de
iniciativas cujo intuito era a formação de quadros técnicos e administrativos novos. Dentre
elas, a criação de cursos superiores, cujo conteúdo majoritariamente universalista e
humanístico, passou a influenciar diretamente a estrutura do ensino secundário, que se
delineava cada vez mais como uma etapa preparatória ao ensino superior. Nesse contexto, se
acentuou a dedicação em ampliar a oferta de ensino para as elites em geral, ao mesmo tempo
em que se verificavam escassos investimentos na educação popular.
À classe dominante interessava o ingresso de seus filhos nos cursos superiores como
forma de inseri-los nos meios circunscritos que participavam do poder do Estado e o Colégio
Pedro II se constituiu como um equivalente público de um ensino considerado de qualidade
6
Segundo a concepção de Castoriadis ( 1982), o imaginário ultrapassa a racionalidade, desencadeando a
autonomização do simbólico e da instituição que ele significa.
22
junto à elite, em meio ao controle da maioria das instituições de ensino por parte da Igreja
(NUNES, 2000).
Sua localização, a cidade do Rio de Janeiro em condição especial de Município Neutro
e sede da Corte, e a estreita ligação com o regime, a ponto de o Imperador que
significativamente costumava se referir à instituição como “seu colégio” com freqüência
vistoriar pessoalmente as atividades ali desenvolvidas, além de manter um neto matriculado
no Colégio, contribuíram para que passasse a ser encarado como um modelo de instrução
secundária no qual pudessem se espelhar os demais estabelecimentos de ensino. Como sinal
da assiduidade com que o Imperador freqüentava o Colégio, Galvão (2003), baseando-se em
dados coletados em documentos da época, faz referência a um toque diferenciado que se
imprimia à sineta para anunciar a ilustre presença, acrescentando que tais visitas incluíam
desde o acompanhamento de exames finais até vistorias às dependências do Colégio.
Ressalta-se o fato de o Colégio Pedro II ser, na época, a única instituição autorizada a
conferir o grau de bacharel, condição necessária ao ingresso nos cursos superiores. Os alunos
ali formados ingressavam diretamente nos cursos superiores sem exigência de realização de
novas provas, enquanto os alunos oriundos dos demais estabelecimentos de ensino secundário,
tanto públicos quanto particulares, precisavam ser submetidos aos chamados exames
preparatórios, meio de ingresso que perdurou durante todo o Império até a Primeira
República. Nesse período as escolas particulares que pretendessem validar seus exames
necessitavam provar que seus programas se encontravam em consonância com os do Colégio
Pedro II, fato ainda hoje evocado como marca para conferir ao Colégio o status de Colégio
padrão do Brasil
7
.
Através do Ato Adicional de 1834 estabeleceu-se que a competência de legislar sobre
o ensino primário e secundário passaria a ser das províncias. Todavia, o governo imperial se
incumbiu de criar mecanismos de controle da instrução secundária e o fez por meio de
preceitos disciplinadores aos quais deveriam ser submetidos os exames preparatórios. Além
disso, instituiu-se a condição de colégios equiparados ao Colégio Pedro II como meio de
fiscalizar as iniciativas educacionais que intentavam a preparação de seus alunos para o
ingresso aos cursos superiores.
7
Cf. Projeto Político Pedagógico do Colégio Pedro II
23
No tocante ao corpo docente que atuava no Colégio no período acima descrito, que
se considerar a inexistência de instituições destinadas à formação de professores para o ensino
secundário. O trabalho docente era desempenhado por profissionais de diferentes áreas e por
pessoas inseridas nos meios intelectuais da época, como escritores, jornalistas, médicos,
advogados, parlamentares, os letrados, enfim. Muitos professores eram estrangeiros e
submetidos a uma seleção da qual se ocupava o Reitor e o próprio Imperador.
Nomes célebres representam motivo de orgulho que, ainda nos dias de hoje, se expõem
nos quadros de honra ostentados nos corredores do antigo prédio da Marechal Floriano e nas
cátedras que guardam a identificação de seus proprietários, perfiladas no imponente Salão
Nobre da mesma Unidade. Rocha (2000) aponta o fato de ainda se verificar reflexos da
distinção de pertencer ao corpo docente do Colégio Pedro II, relatando o estranhamento de
alguns professores recém contratados diante do clima de solenidade que marcou o seu
ingresso em 1994, numa espécie de rito de entrada que, segundo a autora, tem como
propósito assegurar de algum modo os sentidos de glórias cultivados desde a sua origem.
Aos alunos formados na Instituição não se atribui menos prestígio, ao contrário,
representam um lugar de evidenciar a altivez e demarcar o Colégio como formador de pessoas
“ilustres” da vida nacional. São nomes e fotografias que ocupam, juntamente com os antigos
professores, os quadros de honra do Colégio assim como não deixam de ser citados quando se
deseja destacá-lo como formador de cidadãos brasileiros que honram o nome da Instituição
8
.
Significativo desse sentimento de orgulho e exemplaridade é o trecho do Hino do Colégio,
entoado em diversas oportunidades do cotidiano escolar, inclusive pelos alunos das séries
iniciais
9
:
Estudaram aqui brasileiros
De um enorme e subido valor.
Seu exemplo segui, companheiros
Não deixemos o antigo esplendor.
Alentemos, ardente, a esperança
De buscar, de alcançar, de manter
No Brasil a maior confiança
Que só pode a ciência trazer.
8
Projeto Político Pedagógico do Colégio Pedro II
9
Na Unidade São Cristóvão I (1º segmento do ensino fundamental) são cantados, uma vez por semana, o Hino
Nacional e o do Colégio, finalizando-se a solenidade com a “Tabuada”, um antigo e tradicional grito de guerra
do Colégio.
24
Seguir o exemplo desses ícones do cenário nacional se associa à raiz do significado
que esses modelos assumem em uma sociedade cujo acesso à instrução era escasso e onde os
intelectuais obtiveram relevo inesperado pelo imperativo de se selecionar entre eles os
funcionários, professores, oradores e outros agentes instados a preencher o quadro geral da
administração e da política (ROMANELLI, 2005).
A participação política restrita à classe dominante difundia a idéia de que a nação
brasileira passaria a se configurar como tal a partir do desempenho de suas elites, dando
relevo aos homens ilustrados, aqueles dignos de conduzir ao progresso uma nação ainda
atrelada aos valores e instituições dos colonizadores portugueses, porém interessada em adotar
modelos culturais difundidos na Europa como meio de conferir distinção à elite emergente.
Tendo em vista que uma grande parcela da população se encontrava a priori excluída do
processo de educação formal (PAIVA, 1973), compreende-se o hiato estabelecido entre massa
e elite e o sentimento de autovalorização desta última.
De acordo com a avaliação de Clarice Nunes (2000), a concepção corrente na época de
que através do investimento na formação cultural das classes superiores da sociedade se
chegaria à instrução popular, pode ser uma via de se compreender o investimento maciço,
tanto material quanto humano, no Colégio Pedro II durante o Império, assim como na
República, convivendo com o desenvolvimento precário da instrução popular.
Queiroz Andrade
10
enfatiza a fundação do Colégio Pedro II como um componente
significativo do projeto civilizatório do período imperial, respondendo pela formação das
elites incumbidas de dirigir os rumos do país, além das camadas intermediárias, a quem
competia a sustentação do aparelhamento do Estado. Dentre as atenções e cuidados especiais
conferidos ao Colégio por parte do governo imperial que se incluir o empenho em obter
assentimento daqueles que, por conveniência de classe, estavam interessados na formação de
quadros responsáveis pela difusão da civilização.
O conceito de civilização, tão caro às elites ao definir o homem de cultura, estava
diretamente vinculado ao domínio de uma cultura considerada superior, aquela que distinguia
as nações civilizadas e este era um ideal a ser alcançado. Para tanto a cultura humanística
difundida nas Universidades, seminários e Colégios jesuítas europeus deveria servir de
10
apud Polon (2004, p.87)
25
referência ao ensino destinado às elites nacionais. O trecho abaixo, retirado do Projeto Político
Pedagógico do Colégio Pedro II coloca em evidência esse anseio:
Inaugurado com a presença do Imperador, das princesas, suas irmãs, de todo o
Ministério, do Regente e de outros dignitários do Império, o Colégio foi
organizado segundo os padrões educacionais europeus, espelhando-se na
estrutura do Collège Henri IV, de Paris. O Imperial Colégio Pedro II foi criado
para servir de modelo às “aulas avulsas” e a outros estabelecimentos de ensino
do município da Corte e das Províncias.
A edição do primeiro regimento do Colégio em 1838 determinava estudos simultâneos
e seriados, com inspiração no modelo francês para fazer frente às aulas avulsas, maneira pela
qual até então vinha sendo ministrado o ensino secundário. O próprio termo colégio usado
para denominar a instituição evidencia a vinculação desta com os padrões europeus e o
ingresso à Universidade, tomando-se por base a origem dessa forma escolar na Europa, cujo
princípio era inserir ordem e disciplina junto aos alunos, contando com o apoio das
autoridades universitárias para a sua manutenção.
De acordo com Nunes (2000), a partir da implantação dessa forma escolar o
colégio — inaugura-se uma ordenação que vem substituir a dispersão do ensino,
concentrando-o em um prédio único dividido em salas de aula. A autora ressalta as
implicações dessa organização, que não se reduz ao aspecto espacial, ao contrário, em
decorrência dessa nova configuração se instaura o controle, a racionalização e a planificação
dos estudos, a vigilância dos alunos, a gestão centralizada, o enquadramento da juventude.
11
De acordo com Ariès (1985) o colégio passou de um meio caminho entre a vida leiga
e a vida monástica para tornar-se uma instância indispensável ao acesso à boa educação,
mesmo leiga. Estava a serviço da formação e instrução e para isto se entendia como
necessidade impor uma disciplina rigorosa aos estudantes. O autor aponta a estreita ligação
entre a evolução da instituição escolar a uma evolução paralela do sentimento das idades e da
infância pela sociedade. Declara ainda, e de maneira enfática, que os colégios representaram
um fator preponderante para que a burguesia passasse a dispensar atenção às suas crianças e
estabelecesse diferenciação entre as idades, substituindo uma relativa indiferença para com a
infância, atitude que, aliás, compartilhava com as camadas populares.
11
De acordo com Áries (1981), o estabelecimento de regras rígidas de disciplina marca a passagem da escola
medieval ao colégio moderno cuja finalidade não se fundou somente no ensino, teve na vigilância um dos pilares
de seu projeto.
26
Pelo caminho percorrido neste estudo é possível caracterizar o Colégio Pedro II como
uma instituição que nasceu para atender aos interesses de instrução das elites e seus anseios de
acesso aos estudos universitários. No período imperial se notabilizou pela excelência e vem
merecendo até os dias atuais reconhecimento como uma escola pública de qualidade,
cultivando de algum modo, apesar da crescente precarização do sistema público de educação
básica, a distinção e o sentido de importância no contexto da educação nacional (Galvão,
2003).
Vale destacar, ainda, que até 1984, isto é, 146 anos após a fundação, o Colégio Pedro
II nunca havia se ocupado da educação destinada à infância o que abre um espaço de reflexão
a respeito das implicações que a presença dessa faixa etária e suas singularidades acarretaram
à organização da instituição. Outro fator, não menos expressivo, a se considerar é o ingresso
de um elemento até então ausente do corpo docente do Colégio: o professor (a) das séries
iniciais.
12
1.2- Entre lembrar e esquecer
A revisão da literatura mostrou uma produção abundante de trabalhos que têm como
foco o Colégio Pedro II, sua história, inserção e influência no cenário da Educação brasileira.
Mesmo em pesquisas cujo tema central não se refere à história do Colégio foi possível
localizar informações precisas e ponderações valiosas a esse respeito. Causa admiração, no
entanto, a escassa produção dedicada a analisar especificamente a implantação do 1º segmento
do ensino fundamental e ao trabalho pedagógico ali realizado ao longo de seus 22 anos de
existência.
Uma consulta ao Projeto Político Pedagógico do Colégio Pedro II, publicado em 2002,
no capítulo I, intitulado Escola um espaço de memória confirma-se a dedicação e apreço
que a instituição dedica à sua história, e expõe a centralidade da memória como uma de suas
preocupações culturais e políticas. O texto destina um espaço considerável a celebrar a
história da instituição, exaltando o lugar de destaque que vem ocupando no cenário da
12
Apesar de ter contado com professores do sexo masculino, o trabalho docente nas séries iniciais do Colégio
hoje é exercido exclusivamente por professoras, excetuando-se alguns professores que pertencem ao
Departamento de Música e Educação Física.
27
educação brasileira e narra de forma pormenorizada o percurso do Colégio, desde a sua
fundação. Todavia, no que diz respeito à criação da primeira Unidade do primeiro segmento
do ensino fundamental, o capítulo dedica um único parágrafo onde se limita a citar o ano em
que ocorreu e as séries que passou a receber. Não se encontram referências sobre o ensejo, o
contexto, as condições materiais dessa implantação. Do mesmo modo não alusão às
medidas necessárias à adequação do espaço escolar para receber alunos da faixa etária em
questão nem mesmo no capítulo onde se definem os princípios filosóficos e metodológicos do
primeiro segmento.
Ainda no capítulo referente à memória, o documento aponta de forma vaga e confusa o
que chama de atendimento à clientela, a rigor a menção a este aspecto apenas inclui a
Unidade I
13
ao conjunto de atributos que compõem “Complexo Cultural de São Cristóvão”
14
,
no mesmo nível de relevância em que são enumeradas as bibliotecas e a quadra poliesportiva:
para atender à demanda da clientela, em 1999, o campus da Unidade São
Cristóvão reformula-se, dividindo-se em Unidades Escolares I, II e III, assim
passando a formar o Complexo Cultural de São Cristóvão, com uma quadra
poliesportiva, onde se realizam competições, e três bibliotecas, com um acervo
notável.
Como evidência do zelo que a instituição dedica à preservação e divulgação de sua
História há que se assinalar a existência, desde 1995, do Núcleo de Documentação e Memória
do Colégio Pedro II (NUDOM), criado através de portaria pelo professor Wilson Choeri, à
época diretor geral, que define como meta o resgate, organização e divulgação do acervo
manuscrito, iconográfico e documental da História e Memória do Colégio
15
, contando em sua
equipe com uma bibliotecária, uma museóloga e professores, sob a coordenação da Profª Drª
Vera Lucia Cabana Andrade. Cabe assinalar a inexistência de documentos referentes à
memória dos Pedrinhos no acervo documental e histórico do NUDOM. Seria a sua menor
idade um fator para desconsiderar o Pedrinho como lugar de memória?
13
As Unidades do Colégio estão assim distribuídas: I são as que atendem ao 1º segmento do ensino fundamental,
II ao 2º segmento e III ao ensino médio, seguidas pelo nome do bairro onde estão localizadas.
14
Localiza-se em um amplo espaço vizinho ao Campo de São Cristóvão e abriga as Unidades I, II e III, além de
Teatro Mário Lago, o prédio ocupado pela Direção Geral, quadras esportivas, uma piscina olímpica, bibliotecas,
as salas dos Departamentos Pedagógicos, a sede do Sindicato dos Servidores do Colégio Pedro II, a Associação
de Docentes, etc.
15
Segundo informações contidas na página do Núcleo, disponível em
http://www.cp2centro.net/setores/nudom/nudom.asp?data=13/2/2006%2012:38:32 , acesso em 15/08/06.
28
Em contrapartida à carência de registros oficiais e até mesmo certa displicência
explicitada pela falta de detalhamento das especificidades do Pedrinho no Projeto Político
Pedagógico, pude conhecer trabalhos acadêmicos que, a despeito de não trazerem como
questão inicial a implantação desse segmento, cuidaram de trazer à tona alguns
esclarecimentos acerca desse processo e que apoiaram a análise que passo a fazer a seguir.
Ao construir seu estudo sobre o processo de elaboração do Projeto Político Pedagógico
do Colégio Pedro II, Polon (2004) assinala a insuficiência de dados sobre as primeiras séries
do Ensino Fundamental e, valendo-se de depoimento de uma diretora de Unidade Escolar,
apresenta informações mais detalhadas. Segundo seus registros, a partir da promulgação da
Lei 5692/71 o Colégio Pedro II viveu uma conjuntura de irregularidade pelo fato de não
oferecer o grau completo, posto que atendia a alunos matriculados a partir da série até o
ano do Colegial. Diante disto, a Direção Geral, à época, decidiu suprimir paulatinamente o
primeiro grau, deixando de oferecer vagas nos concursos para a série, fechando uma turma
a cada ano. Em 1978 houve concurso apenas para o 1º ano do 2º grau.
A partir de Pollac (1989) compreende-se a omissão desse período nos registros
oficiais, uma vez que a situação em nada se identifica com o passado de glórias exaltado em
suas memórias, uma espécie de “zona de sombra” que se interpõe ao percurso laureado.
Galvão (2003) em sua pesquisa sobre a prática da jubilação
16
assinala a dificuldade em
encontrar documentos referentes ao assunto nos arquivos da instituição, confirmando a
tendência de se enfatizar as experiências de êxitos, brilho e distinção, num movimento de
veicular uma imagem que a própria instituição tem se dedicado a forjar para si mesma.
No período acima descrito a instituição experimentou um esvaziamento que resultou
do oferecimento de vagas apenas para o grau e, ainda, da migração das famílias de classe
média e média alta para a rede privada de ensino. Pela primeira vez o Colégio Pedro II tornou-
se, segundo as palavras da diretora entrevistada, uma escola para “pessoas pobres e carentes”
e esvaziada, levando-se em conta que poucos alunos dessa camada social alcançavam esse
grau de ensino. De acordo com esse relato, nesse período e perante as circunstâncias expostas,
o Colégio “agonizava”.
16
Expediente que exclui do Colégio os alunos reprovados duas vezes na mesma série.
29
No ano de 1979 assumiu a Direção geral do Pedro II o professor Tito Urbano Silveira,
um parente de João Baptista Figueiredo, o general presidente de então. Uma vez restabelecida
a relação de proximidade com o poder central, o Colégio passou a receber mais verbas e o
Diretor geral passou a empreender mudanças na estrutura administrativa, extinguindo o
sistema de cátedras, criando os Departamentos
17
e a Secretaria de Ensino. Para estar à frente
dos assuntos pedagógicos, assumiu o professor Wilson Choeri, que mais tarde chegou à
direção geral e permaneceu nesse cargo até janeiro de 2008.
Como parte do projeto que visava reerguer a instituição era preciso promover
iniciativas que pudessem povoar o Colégio com bons alunos. Para levar à frente essa intenção,
foi firmado um convênio com a Secretaria Municipal de Educação que previa a transferência
sem concurso de alunos da rede municipal que comprovassem conceitos “A” e “B”. Esse
convênio, porém não teria vida longa, diante das suspeitas de que o processo de indicação
vinha sendo burlado por iniciativas escusas.
Nesse ínterim as condições de trabalho foram alteradas. Os professores do Colégio
foram inseridos no mesmo regime de trabalho e no mesmo plano de carreira dos professores
das universidades federais e passaram a contar com isonomia salarial
18
. Esse conjunto de
medidas estimulou e valorizou a formação e titulação, resultando, à época, em melhoria real
de salários.
1.3- Os Pedrinhos em cena
A partir de então o Colégio foi autorizado pelo MEC a voltar a realizar concursos para
a série e não tardou a implantação do primeiro segmento de ensino pelo Diretor Tito
Urbano. Essa iniciativa foi exeqüível em virtude de ter malogrado um projeto do MEC
17
De acordo com a disciplina em que atuam, os professores são agrupados em Departamentos Pedagógicos. São
16 ao todo, sendo o Departamento de primeiro segmento o que reúne todos os professores dos “Pedrinhos”.
18
A isonomia deixou de existir por efeito das políticas salariais dos governos Collor, Fernando Henrique Cardoso
e Lula cuja prática se apoiou na concessão de gratificações por formação e produtividade (Macedo, 2005).
30
em consonância com a política de acordos com bancos internacionais de criar uma escola
polivalente ocupando um espaço da Unidade São Cristóvão destinado ao depósito de materiais
(Rocha, 2000).
Em 1984 foi realizado o primeiro concurso para a contratação dos professores que
vieram a dar início ao trabalho no primeiro segmento do Colégio Pedro II. De acordo com
Macedo (2005), a escola que os professores aprovados encontraram ao se apresentarem não
passava de um espaço físico adaptado e um projeto, requisito exigido pelo MEC para aprovar
a realização do concurso e a abertura das unidades que foram inauguradas nos anos
subseqüentes
19
. Tal projeto, porém, se restringia a uma listagem de conteúdos e a esses
professores recém concursados, muitos com poucos anos de magistério, foi confiada a
incumbência de, no período de um mês, elaborar um plano de trabalho, incluindo a estrutura
administrativa e pedagógica, para receber os primeiros alunos do Pedrinho.
O quadro político que se desenhou nesse período pós-ditadura militar foi de intensa
mobilização popular e efervescência cultural e política. No campo da educação as aspirações
por mudanças se concentravam na participação ativa com propostas para a nova Constituição
e viu ressurgir o movimento sindical dos professores. Essa conjuntura abasteceu de inspiração
progressista a escrita da prévia do primeiro Plano Geral de Ensino (PGE) (Macedo, 2005,
p.58). Não foi isenta de conflitos a chegada desse grupo ávido por mudanças ao contexto de
uma escola ciosa de sua tradição.
Minha intenção, como mencionado anteriormente, é conhecer essa trajetória através
das narrativas das professoras, tanto daquelas que participaram do projeto ambicioso de por
em funcionamento uma escola ainda por construir, quanto das que ao longo dessa história
passaram a fazer parte do corpo docente da Unidade São Cristóvão I. O investimento de
busca feito até aqui inspira a reafirmar as considerações anteriores de que um percurso a
ser conhecido e reconhecido como integrante da memória do Colégio, sentidos a serem
revelados a partir da inserção da infância no cotidiano do Colégio Pedro II.
19
Unidade Humaitá I em 1985, Unidade Engenho Novo I em 1986 e a Unidade Tijuca I em 1987.
31
Capítulo 2: CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
As Narrativas vêm sendo alvo de inúmeras investigações, desenvolvidas sob a ótica
dos mais diferentes campos do conhecimento. São numerosos os estudos e publicações a
abordar o tema sob perspectivas várias, segundo as quais, em grande parte, se ressalta seu
caráter educativo pelas potencialidades formativas que se abrem, tanto para aquele que narra
32
quanto para seu par inseparável nessa relação: o ouvinte. Em comum entre esses estudos
transparece o fato de que o encontro com as narrativas implica necessariamente em lidar com
e refletir sobre uma rede de conceitos a ela interligados. De sorte que, quando se trata de falar
de narrativas e, mais ainda, de optar por elas como caminho metodológico na pesquisa, se faz
necessário buscar a interlocução com um referencial teórico que permita e oriente tal
articulação.
Penso na interlocução como palavra-chave para definir a relação estabelecida com as
múltiplas vozes que, ao longo desses dois anos de estudo, vieram contribuir na construção e
compreensão de meu objeto de pesquisa, quando as marcas dos passos no percurso
desenharam o quadro teórico e mostraram como e quando certos conceitos seriam produtivos
ao ser submetidos a um empírico que “fervilha em novas possibilidades de compreensão”
(FISCHER, 2002).
Meu encontro com cada um dos autores a quem peço companhia neste estudo se deu
em momentos e circunstâncias diferentes. Se com Walter Benjamin aconteceu por um desvio
que terminou por se revelar decisivo em minha iniciativa de empreender esta pesquisa,
Bakhtin surgiu como resultado de uma busca que o próprio desenvolvimento da investigação
tratou de solicitar. Ponto de partida e travessia. Dois movimentos que não guardam oposição,
antes se cruzam e se completam no itinerário de aprender a ver o que não se mostra de
imediato e, se opto por apresentá-los em diferentes espaços de discussão, é por desejar
recolher os rastros tal como estes foram deixados no caminho, ou seja, cada um a seu tempo,
sem que se perca de vista, todavia, aquilo que em sua essência justifica trazer à cena o
pensamento desses autores: a linguagem como construção humana acontecida na história.
Compartilhando com Benjamin (2000, p.268) “...que o dizer não é apenas a expressão
do pensamento, mas também sua realização”, meu empenho não se dará na direção de
apresentar o pensamento dos autores para uma futura aplicação na análise dos dados, mas de
tornar visível o quanto tais reflexões contribuíram para a própria construção do objeto de
estudo.
Primeiramente proponho um passeio através da paisagem inquietante do pensamento
benjaminiano; de como o autor passou a compor a rede de diálogos que se fez presente na
situação de campo e, agora, na escrita da pesquisa, além das circunstâncias e perspectivas
33
segundo as quais alguns de seus conceitos e proposições permitiram dar sentido e fazer
inteligível, por um certo olhar, a trama de significados que a voz dos participantes pôs em
jogo na pesquisa. Logo após, e seguindo o mesmo princípio de dar a conhecer o processo
dessa experiência teórica, passo à reflexão acerca de alguns conceitos bakhtinianos que se
incorporaram a esta pesquisa “sorrateiramente”, isto é, sem que estivessem desde o início
seguramente anunciados como possibilidade de resposta, mas como a palavra que vem ao
encontro de um silêncio, de uma falta.
2.1- O encontro com Walter Benjamin
O primeiro contato que tive com o pensamento de Walter Benjamin não foi um
encontro marcado. Aconteceu pela leitura de autores
20
que busquei algum tempo, quando
aos desafios que o trabalho diário com crianças suscita, não encontrava respostas nos
referenciais predominantemente psicológicos que recebi ao longo de minha formação de
professora. Procurava referências que pudessem oferecer uma visão sobre a criança para além
da perspectiva do ser em formação que se desenvolve por etapas, de acordo com uma
cronologia determinada.
Foi a infância, então, que me aproximou de Walter Benjamin. A experiência de leitura
de alguns de seus textos, muitas vezes exigente de retomadas e insistência, me levaram mais
tarde a identificá-los, com o auxílio de Roland Barthes (2000), ao texto de fruição:
aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as
bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de
seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise
sua relação com a linguagem (Op. cit., p. 20)
A leitura de Benjamin não faz vacilar as convicções do leitor somente em relação ao
conteúdo dos textos, o desconforto se instala pela própria forma como é elaborada sua escrita.
Nela a descontinuidade não é mera escolha de estilo, mas exigência epistemológica
(MURICY, 1999). São os fragmentos, ensaios e aforismos que querem manifestar a própria
natureza do pensamento quando não se deixam encarcerar em um ritmo linear, que se valem
do desvio, das voltas, recomeços para surpreender a expectativa por uma exposição
20
Me refiro principalmente aos trabalhos de Sonia Kramer e Solange Jobim e Souza, cujas referências se
encontram ao final deste trabalho.
34
demonstrativa, usual nas reflexões filosóficas. Lá se encontra, ainda, um pensamento expresso
por imagens, alegorias que nos abala e impõe retrocessos, ora pelo puro agrado estético, ora
por requisitar um exame mais profundo de seu conteúdo. Para Benjamin, a boa escrita
filosófica é aquela que impele o leitor a deter-se mais no texto:
Incansável, o pensamento começa sempre de novo, e volta sempre,
minuciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável é a mais
autêntica forma de ser da contemplação. Pois ao considerar um mesmo
objeto nos vários extratos de sua significação, ela recebe ao mesmo
tempo um estímulo para o recomeço perpétuo e uma justificação para
a intermitência do seu ritmo (BENJAMIN, apud MURICY, 1999, p.
28).
Benjamin pretende um caminho epistemológico capaz de se contrapor à concepção
fundadora da filosofia moderna, cuja aspiração de legitimação como conhecimento
sistemático determinou sua filiação ao modelo da matemática. Sua proposta afasta-se de uma
estrutura didática, almejando alcançar um modelo estético de conhecimento, uma narrativa
oposta às construções tradicionais da filosofia. Nesse aspecto, dialoga com Nietzsche e sua
crítica veemente ao modelo discursivo científico que desvaloriza a dimensão estética em sua
apresentação (MURICY, 1999).
Penso principalmente na leitura de O Narrador (BENJAMIN, 1994) como capaz de
ilustrar esse estado de crise que poderia ser também chamado de experiência, no sentido que
Benjamin atribui a essa palavra: algo que passa a nos constituir como sujeitos e que clama por
ser comunicado. Essa leitura acendeu indagações que, entrelaçadas à memória de minha
própria infância e de um olhar sobre a infância de meus alunos, resultaram na pesquisa que
ora venho dar a conhecer. Tarefa que se anima com as possibilidades que se abrem pelo ato de
narrar nas (das) práticas pedagógicas, aquelas capazes de instalar e revelar na escola uma via
de pertencimento, de vínculo social e de experiência autêntica que muitas vezes parece não
mais caber no mundo limitado das vivências individuais e isoladas. Na escola, instituição
fundada na razão instrumental, onde e quando, em meio ao fazer cotidiano das salas de aula,
lugar para o exercício da linguagem como expressão, para o enfoque não pragmático,
condicionado ao controle e à transmissão de conteúdos? Que lugar é destinado às narrativas e
de que sentidos estas se revestem no processo de ensinar e aprender?
35
Se pelo tema da infância fui apresentada a Benjamin, se esse é um dos conceitos que
marcaram o encontro que se expressa neste exercício de escrita, faço, então, a opção de
continuar a seguir por essa trilha. Para Benjamin (2002, p. 142), onde as crianças brincam
existe um segredo enterrado. Assim se manifesta uma peculiaridade de sua obra: em sua
análise sobre a infância estão articuladas reflexões sobre a experiência moderna, a natureza e
usos da linguagem, a reconstrução da história, a temporalidade.
Estão presentes nesses escritos uma abordagem filosófica, política e cultural que, além
de oferecer caminhos para uma visão da infância que possam alcançar a sua singularidade e
sua relação com a historicidade, proporcionam um itinerário, diante de uma obra tão
abrangente, à visibilidade de alguns conceitos fundamentais para a compreensão do
pensamento do autor.
2.1.1- Faz de conta que eu era...
21
Esta é uma expressão recorrente onde quer que se encontrem crianças brincando, seja
nos espaços freqüentados por elas, seja na memória de quem cresceu. Por esse mote,
desaparece qualquer linha de demarcação entre o imaginário e o que chamamos de real para
atender, no mesmo instante em que é pronunciado e compartilhado, a uma profunda
necessidade da criança: a de experimentar outras possibilidades de existir para que possa
escolher-se (Held, 1980, p.17).
Que tempo é esse que se manifesta no era, se cruza com o agora e desautoriza
qualquer explicação pela lógica gramatical? Que experiência é essa de ser outro, de ver e
sentir o que me rodeia pelo lugar de alguém que não sou eu? Essas perguntas, entre outras, se
ofereceram como guia para explorar algumas categorias que atravessam a obra de Benjamin e
que se colocaram em pauta, tanto nas escolhas metodológicas, quanto para o quadro teórico no
qual se sustentou a pesquisa. Empreendimento, sem dúvida, exigente de ousadia e reflexão,
como na imagem que abre o ensaio Infância em Berlim por volta de 1900: “Saber orientar-se
numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém que se
21
Com base nos estudos de MACHADO (2004), particularmente na discussão que faz a respeito da forma verbal
“era” como meio de situar o discurso fora das vivências cotidianas.
36
perde numa floresta, requer instrução” (BENJAMIN, 2000, p. 73). Faz de conta que eu era...
remete a questões como a temporalidade, o lugar da imaginação como produtora de
realidades, a experiência, o modo de encarar a relação entre sujeitos que se na pesquisa, o
lembrar e o esquecer.
Tais indicativos representaram valiosos instrumentos de análise que não se colocaram
a priori, mas emergiram com o avançar da pesquisa e, principalmente, pelo contato com o
ambiente e com as experiências que um grupo de professoras do Pedrinho de São Cristóvão
revelaram por meio de suas narrativas.
2.1.2- De que fala Benjamin quando diz Experiência?
Jeanne Marie Gagnebin (2006) aponta o conceito de experiência como central no
pensamento benjaminiano, perpassando toda a sua obra, a começar por um texto escrito na
juventude em 1913 sob o título “Erfahrung”, passando por textos como O Narrador e
Experiência e Pobreza, que ganharão ênfase neste estudo, até as teses de 1940. nos
primeiros escritos, especialmente aquele em que se dedicou a rever criticamente a filosofia de
Kant, aparece a reflexão que ensejava estabelecer o que chama de “totalidade concreta da
experiência”, opondo-se ao conceito Kantiano, este restrito à esfera do conhecimento
científico que se traduz em método, ou seja, o experimento, uma base segura e previsível para
a ciência. Constitutiva dessa perspectiva é a dicotomia entre sujeito e objeto e a concepção de
que pelo controle de um conjunto de regularidades se torna possível conhecer a verdade das
coisas para poder dominá-las.
Para Muricy (1999) é por meio da reflexão sobre a natureza da linguagem que
Benjamin vai construir o conceito de experiência para além da filosofia do sujeito,
incorporando elementos desprezados pela perspectiva iluminista, como a mística, as emoções,
os sentimentos. Distanciando-se da abordagem instrumentalista da linguagem, que a concebe
como meio de transmissão de conteúdos, Benjamin busca sua dimensão expressiva recorrendo
ao modelo de leitura dos textos sagrados, à Cabala, às Runas, para proceder ao resgate da
dimensão mágica e plural da linguagem que o homem veio perdendo à medida que se
estabeleceram as condições modernas de existência. Sua perspectiva, contudo, reconhece
37
algumas permanências dessa relação mágica com a linguagem ao admitir que, apesar de terem
se esgotado em alguns espaços, passam a ocupar outros domínios como a oralidade, a arte e os
símbolos da linguagem escrita.
Em Experiência e Pobreza (Benjamin, 1994), uma parábola introduz a idéia de
experiência sustentada pelo autor. Com a autoridade que lhe confere os muitos anos vida, um
velho em seu leito de morte comunica aos filhos uma experiência que é mais tarde por eles
compreendida como forma de exercer novas práticas sociais. Ao anunciar aos filhos a
existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos, o pai os anima a cavar a região da
plantação, trabalho árduo que não resulta, porém, na descoberta de riquezas escondidas. No
outono seguinte, vêem as vinhas produzirem mais do que qualquer outra da região e percebem
que o pai havia transmitido uma valiosa experiência: a continuidade da palavra transmitida.
Segundo Gagnebin (2006), Benjamin ao narrar essa parábola não tem como meta
transmitir uma moral da história, o que afinal lhe interessa é o seu conteúdo, ou seja, o fato de
que as palavras do pai são ouvidas pelos filhos quando, pelos seus atos, reconhecendo que
algo a ser passado adiante, de geração em geração. Algo que ultrapassa as experiências
individuais e é maior, inclusive, do que a própria existência do pai, responsável pela sua
transmissão.
Dessa pequena e singela história, surgem questões que nos ajudam situar a teoria de
Benjamin sobre a experiência, considerando o modo de vida do mundo moderno como lugar
de abundância de estímulos, porém pobre em experiências fundadas na vida coletiva:
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas
devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis
que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?
Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará,
sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN,
1994. p. 114)
Ao anunciar o declínio da experiência o autor põe em evidência os novos ritmos de
existência que começam a prevalecer a partir das formas de organização social estabelecidas
pela modernidade: a substituição do fazer junto, do trabalho coletivo, da vida compartilhada,
pelo indivíduo isolado e voltado para a satisfação de objetivos pessoais. Nesse contexto,
desaparece também a narrativa tradicional, predominando a informação com seus efeitos tão
imediatos quanto fugidios.
38
Em outra passagem Benjamin assinala: “Uma nova miséria surgiu com esse
monstruoso desenvolvimento da técnica” (Id. p. 115). Registra-se, nesse ponto, a estreita
relação entre a privação da experiência e o modelo da ciência moderna que, ao desprestigiar
os saberes tradicionais, determinou a ruptura entre o sensível e o inteligível, entre o objetivo e
o subjetivo. Se hoje é comum estabelecer uma hierarquia entre o real e o imaginário, o marco
definidor dessa concepção se localiza na primazia da razão instaurada pelo contexto do
Iluminismo e pelo esforço da Ciência moderna em desacreditar a imaginação e seu valor
cognoscitivo.
Se situo a leitura de Walter Benjamin como ponto de partida teórico desta pesquisa,
coloco em pauta, para esse primeiro degrau, especificamente dois ensaios: “Experiência e
pobreza”, de 1933 e “O narrador”, escrito entre 1928 e 1935 como aqueles que provocaram
em mim, professora e herdeira das narrativas que povoaram minha infância, o desconforto
responsável por desencadear uma vontade de procura. São dois textos que se iniciam de
forma muito semelhante para tratar do declínio da experiência, anunciando, como
conseqüência do primeiro, um outro desaparecimento: o das narrativas tradicionais. Como não
ser afetada diante da gravidade de tal afirmativa? Como permanecer em quietude frente a esse
diagnóstico?
Apesar de partirem da mesma constatação, cada um dos ensaios tem desdobramentos
diferentes e não menos inquietantes. Em “Experiência e pobreza”, o autor enfatiza as
transformações que o apagamento da experiência impõe às artes: em oposição à estética do
aconchego, da suavidade, da interioridade, dominantes até então e tão cara ao modo de vida
burguês, ele proclama a cortante aspereza das vanguardas. estão dois materiais cujas
características se chocam e revelam os sentidos dessa ruptura. O vidro em sua transparência e
frieza a obstar a privacidade e o recolhimento, tendo como seu oposto, o veludo da maciez, do
agradável toque, capaz de deixar em sua superfície a marca dos dedos do proprietário
recolhido na privacidade que a textura desse material representa. Nesse ponto Benjamin cita o
conhecido poema de Brecht “Apague os rastros” de forma a destacar o quanto ilusórias e
consoladoras são as chamadas artes “burguesas” ao insistir em manter a imagem da harmonia
em suas formas e representações estéticas, frente à quebra da experiência e da tradição
acarretada pelo modo de vida dos tempos modernos (GAGNEBIN, 2006).
39
Do mesmo modo, em “O narrador”, o autor prenuncia o fim da arte de narrar
relacionado ao declínio da experiência, mas o faz projetando a idéia de uma outra forma de
narração, aquela que emerge das ruínas da narrativa e encontra sua razão de ser em não
permitir que o passado seja esquecido, o que não significa, porém, em conferir ao narrador
uma distinção grandiosa. Ao contrário, como bem chama à atenção Gagnebin (2006), ao
narrador está associada a imagem do trapeiro, aquele que se encarrega em recolher os detritos,
as sobras, os cacos e tudo mais que a sociedade rejeitou e, por isto mesmo, não tem por meta
registrar os grandes feitos.
Essa faceta do narrador passou a interessar sobremaneira a esta pesquisa precisamente
por evocar aquilo que a tradição e memória oficiais não se interessam em recordar: as
professoras que cotidianamente fazem a história do Colégio Pedro II, mas não deixam rastros,
como os nomes ilustres que constam em seus laureados quadros de honra.
Me vem à lembrança a reação de surpresa de algumas professoras ao saber que o teor
das entrevistas seria a narrativa de suas próprias vidas, chegando uma delas a perguntar: Mas
é da minha vida que você quer saber?, eu imaginava que fosse alguma coisa mais intelectual.
Essa fala representa, sim, uma expectativa corrente em relação às pesquisas acadêmicas no
campo da Educação, mas também revela o quanto temos aprendido a reconhecer o valor dos
grandes acontecimentos para a história e olhar para a nossa própria história como algo
destituído importância ou significado, ora por consideramos por demais corriqueira, ora pelo
fato de não haver alguém disposto a ouvi-la.
2.1.3- A mão e a palavra
Ao longo da análise que faz sobre a obra do escritor russo Nikolai Leskov, Walter
Benjamin (1994), em O Narrador, prenuncia o apagamento da arte de narrar e associa a esse
fenômeno o declínio da faculdade humana de intercambiar experiências, de dar e receber
40
conselhos, de ouvir e ser ouvido. No texto escrito em 1936, apresenta questões que ainda nos
pertencem, que reclamam atenção e batem à porta do homem contemporâneo enredado que
está na quantidade avassaladora de informações recebidas aflita e diariamente.
Por seu caráter provisório, pela necessidade de verificação imediata, por encontrar na
plausibilidade sua razão de ser, a informação se opõe ao espírito da narrativa que, mesmo com
o passar do tempo e muitas vezes por isto mesmo, mantém sua força e capacidade de suscitar
sobressaltos e reflexão, ainda que não tenha a pretensão de dar explicações, muito menos
receitas. Benjamin, a despeito de declarar a extinção da arte de narrar, quando expõe o
contexto de origem da narrativa e o contrapõe às condições modernas de existência, abastece
este trabalho com as inquietações necessárias ao desejo e compromisso de empreendê-lo: o
que é pode ser diferente.
Não é de hoje que as histórias são contadas e recontadas. No labirinto do tempo se
perde quem vai buscar as origens daquelas nascidas na tradição oral e que, transmitidas de
geração a geração, de boca em boca, vão compor a textura narrativa da cultura. Em companhia
do pensamento de Walter Benjamin, antes de reclamar o legado que perdemos e não
poderemos jamais voltar a experimentar pelo modo de vida que a contemporaneidade nos
impõe, possibilita um contemplar das narrativas a partir de uma visão arguta que favorece
uma análise para além da demarcação de modalidades e estruturas. Em O Narrador, ao mesmo
tempo em que anuncia enfaticamente o fim da arte de narrar para, a partir dessa constatação,
construir uma enérgica crítica ao capitalismo emergente, o autor nos instiga a refletir sobre os
traços distintivos da verdadeira narrativa, oferecendo, pelo desvio, um itinerário de
compreendê-las em sua essência.
No contexto do trabalho manual e por meio da experiência comunitária que esse modo
de produção possibilita, a rede das narrativas começou a ser trançada. Oposto à produção em
série e à estrutura de trabalho que a industrialização inaugura, o ofício artesanal se realiza no
ritmo requerido pela especificidade de cada coisa produzida e, em cada uma delas, o artesão
imprime os sinais de sua ação. Assim como o vaso carrega as marcas da mão do oleiro que o
produziu, na bela imagem oferecida por Benjamin (1994, p. 205), a narrativa está impregnada
da experiência do narrador, nela se sustenta o curso do que é pronunciado e compartilhado
com sua audiência. Desse modo, ao contarmos uma história estamos, de certa forma, contando
um pouco de nossa própria história ou quando uma mesma história é contada por diferentes
41
narradores, diversos também serão tanto os modos de narrar, quanto as marcas que poderão
inscrever na experiência de seus ouvintes.
Por ter as raízes fincadas na vida comunitária e suas práticas coletivas, a narrativa
envolve narrador e ouvintes em um movimento comum, receptivo a novas experiências e à
alternância de papéis. Sob as circunstâncias das relações assim estabelecidas se firma o senso
prático da narrativa que, nas palavras de Benjamin (1994, p. 200), tem sempre em si, às vezes
de forma latente, uma dimensão utilitária. Quem narra sabe dar conselhos, orientar, transmitir
um saber. À primeira vista esta afirmação soa contraditória pelo caráter de abertura a
diferentes interpretações que a narrativa encerra e pelo modo cotidiano de significarmos a
palavra conselho como uma forma de interferência não solicitada, entretanto é o próprio autor
quem cuida de esclarecer a questão ao afirmar:Aconselhar é menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”
(Ibid, p. 201). A história continua na experiência de quem ouve quando é capaz de despertar
respostas a sentimentos subjetivos, quando ressoa para além de seu conteúdo e se prolonga no
movimento de ouvir e ressignificar.
Benjamin ressalta a desconsideração pelo saber da experiência que separa o
conhecimento da vida humana. uma imensa quantidade de conhecimento objetivo e o
cotidiano escolar se pauta em sua divulgação e no empenho de fazer com que, em sua
passagem pela escola, o indivíduo possa se mover nesse universo de instrumentos. O ato de
narrar se instala nos espaços escolares como um lugar de teimosia quando, apesar das
circunstâncias avessas à sua prática – as urgências dos conteúdos, a falta de tempo ou o tempo
sob vigilância se infiltra e ganha terreno. Nessa perspectiva representa o que Certeau
nomeia de maneiras de utilizar a ordem imposta: “Sem sair do lugar onde tem que viver e que
lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade...”(CERTEAU, 2004, p. 93).
Quem mais se não Sherazade, a bela e teimosa narradora, para incorporar o lugar de
resistência que hoje representam aqueles que se predispõem a narrar e se lançam à caça não
autorizada (Id. Ibid, p.) por entre as malhas das instituições escolares e da generalização da
racionalidade?
Imune aos apelos de um pai atemorizado pela atitude “suicida” da filha, Sherazade se
oferece determinada ao desafio de colocar em prática a estratégia na qual confiava, apesar de
42
conhecer seus riscos: contar histórias ao rei, que noite após noite se vê encantado e aos poucos
vai esquecendo sua loucura e crueldade. Narrar é o mesmo que viver e deixar viver, revelando
o poder sedutor da palavra e da presença, tratando de excitar a imaginação adormecida do
ouvinte enclausurado que está em seu espaço circunscrito, insularidade que em muito se
aproxima do modo de ser e estar na paisagem urbana atual.
Mas o que alimenta a incondicional confiança de Sherazade em um plano tão arriscado
é a certeza de que o prazer de ouvir uma boa história instaura uma situação de identificação
entre narrador e ouvinte, uma união de forças entre eles que é atada pelo fio da narrativa.
Marina Warner no livro Da Fera à Loura ao citar John Berger ilustra o estado de
envolvimento permeado pelo prazer que se estabelece intimamente naquele que se entrega ao
ouvir:
Se você se lembra de ter ouvido histórias quando criança, vai se
lembrar do prazer de ouvir uma história repetida muitas vezes, e vai
se lembrar de que, enquanto ouvia, você se tornava três pessoas.
Acontece uma fusão incrível: você se torna o narrador da história, o
protagonista, e você se lembra de você mesmo ouvindo a história...
(BERGER apud WARNER 1999, p. 247).
Não por acaso, desde a Idade Média, procurou-se imprimir uma moral do uso vocal
(ZUMTHOR, 2001, p.130) no meio monástico, que apresentava como condenável o tom de
voz de convida ao prazer, as modulações amolecidas, tão perigosas para a alma quanto a voz
das sereias. Assim também os “jograis” foram alvo de ferrenha reprovação: “A maior parte
deles é condenável pelo próprio excesso de prazer que assim provocam e pelas ações
pecaminosas às quais induzem” (Id. p.156).
Como poderia malograr o plano astuto de Sherazade concebido sob esses atributos e
onde implícito o convite a uma espécie singular de jogo? Seguindo a trilha da sedutora
narradora e cruzando-a com o que nos ensina Certeau, é possível ajustar o foco e aproximar
ainda mais a atitude de Sherazade com a resistência da arte de narrar em um mundo dominado
pela escrita: é dentro do “campo de visão do inimigo e no espaço por ele controlado” que se
o movimento, vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É
astúcia” (Op.cit., p.101).
43
2.2- O encontro com Bakhtin
Minhas primeiras aproximações com o pensamento de Bakhtin aconteceram mediadas
pela leitura de textos e pesquisas que o traziam como referência teórica na discussão da
questão da linguagem, especialmente em seus desdobramentos para o processo de ensinar e
aprender. Mais tarde, e coincidindo com o início do trabalho de campo, pela leitura
compartilhada e confrontada com uma profícua pluralidade de modos de ver, foi possível
avistar um horizonte de compreensão, tanto na escrita de Bakhtin como na de autores que se
dedicaram a reelaborar seu pensamento em novos textos e novos sentidos.
Nesse encontro das águas, as leituras de Bakhtin mais as indagações que a inserção no
campo sempre impõe ao pesquisador, um diálogo se estabeleceu e este, tal como se apresenta
no pensamento do autor, implicaram em uma atitude responsiva e responsável frente
aos chamamentos que a prática de pesquisa colocou em pauta. Assim, como esteio de alcance
ético e epistemológico, vieram ao encontro deste trabalho dois pilares em que se sustentam o
pensamento bakhtiniano: a relação entre o eu e o outro e a dialogia (GERALDI, 2003), cujo
estudo tributou luzes novas à pesquisa, no que concerne ao seu fazer e ao seu dizer.
Por considerar a pesquisa em Ciências Humanas como uma relação entre sujeitos, a
perspectiva bakhtiniana coloca a interação como fator basilar para os estudos nesse campo. Ao
ajustar seu olhar a partir desse foco, a intervenção do pesquisador se encaminha
necessariamente para uma atitude compreensiva, estabelecida no e pelo encontro com os
textos produzidos pelos participantes. Por esses termos, é preciso levar em conta que o
pesquisador lida, sim, com singularidades, porém, sem perder de vista que estas se encontram
imersas em um contexto histórico-social determinado, no qual tanto se nutrem as
individualidades de seu conteúdo ideológico, quanto a este fornece o alimento de suas
elaborações. Para Bakhtin (2004) a individualidade é de tal modo marcada pelo contexto
social, enquanto este se constitui pelos signos produzidos pelas individualidades, que não é
possível definir, no que diz respeito ao conteúdo ideológico, uma fronteira nítida entre o plano
psíquico e o ideológico. Em suas palavras:
44
Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me
revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro.
Bakhtin
...todo signo ideológico exterior, qualquer que seja a sua natureza,
banha-se nos signos interiores e aí continua a viver, pois a vida do signo
exterior é constituída por um processo sempre renovado de
compreensão, de emoção, de assimilação, isto é, por uma integração
reiterada no contexto interior (BAKHTIN, 2004., p.57).
No interior dessa análise, Bakhtin apresenta uma reflexão acerca do conceito de
individualidade que interessa particularmente a esta pesquisa, cujo material de análise é
abastecido pelas memórias e narrativas de professoras. São essas narrativas a expressão de
suas experiências singulares, trazem consigo as marcas de cada subjetividade ao mesmo
tempo em que dão a conhecer os sujeitos sociais em constante interação com a coletividade na
qual estão imersos.
Se o objetivo da pesquisa é o encontro com o professor-narrador, a partir das relações
construídas com as narrativas ao longo de suas histórias de vida e de trabalho e, ainda, de que
forma essas relações se revelam em suas práticas docentes, convém delinear a noção de
sujeito que será referida aqui. Nesse aspecto a perspectiva dialógica de Bakhtin oferece
preciosas contribuições, frente às abordagens que apontam para a fragmentação entre vida e
trabalho do professor e , que freqüentemente recaem em categorias dicotômicas e excludentes.
Segundo Teixeira (2006), Bakhtin não se ocupou em formular uma teoria do sujeito.
Esse conceito se destaca e se fundamenta na enunciação, concebida pelo autor como lugar em
que o eu se institui por meio do outro e como outro do outro. Assim, a possibilidade de
compreender a subjetividade em Bakhtin está no interior de sua teoria da linguagem, segundo
a qual é na interação verbal que o ser social do indivíduo se constitui e se revela, ressaltando-
se a inter-relação entre alteridade e dialogismo. Para Bakhtin (2003) todo discurso
individual tem sua formação e desenvolvimento fundados na interação constante com os
enunciados individuais dos outros, de modo que a palavra para o falante se apresenta sob três
aspectos:
[...] como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém;
como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros
enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque uma vez
que eu opero com ela em uma situação determinada, ela está
compenetrada em minha expressão (BAKHTIN, 2003, p, 294).
45
Em Marxismo e filosofia da linguagem, a enérgica argumentação do autor incide
primeiramente sobre os mal-entendidos que habitualmente ocorrem ao se confundir o conceito
de indivíduo natural aquele estudado e conhecido pelos biólogos e a individualidade
constantemente embebida no contexto social. Propõe, então, uma delimitação rígida entre
esses conceitos a fim de se superar a noção dicotômica, e fonte de equívocos, que associa o
psiquismo ao individual e a ideologia ao social. Em seguida Bakhtin reafirma o caráter
singular do que nomeia psiquismo que, segundo seu exame, é determinado tanto pela
unicidade do organismo biológico quanto “pela totalidade das condições vitais e sociais em
que esse organismo se encontra colocado” (BAKHTIN, 2004, p. 59). Portanto, o indivíduo
revelado pelo pensamento bakhtiniano é o autor dos conteúdos de sua consciência, o sujeito
possuidor e responsável por seus pensamentos e desejos, capaz de elaborar conhecimentos
acerca da realidade e encontrando no contexto sócio-ideológico a fonte e apoio para a
formação e desenvolvimento desse conjunto de atributos.
O reconhecimento dos sujeitos da investigação sob essa ótica orienta para considerá-
los a partir de sua condição discursiva. Assim, pesquisador e pesquisados como autores de
discursos que são, se encontram inseridos na cadeia viva e ininterrupta da produção e
recepção de significados, o que resulta em definir a pesquisa em ciências humanas como
espaço de diálogo, na medida em que se concretiza como um encontro entre textos e
contextos. Compreendendo o diálogo não em seu sentido estrito de alternância de
enunciados, pela qual os interlocutores expressam sua posição e provocam uma resposta do
outro, cabe seguir o caminho trilhado por Bakhtin (2004) que, por estender o conceito para os
domínios da linguagem em geral, atende às especificidades deste estudo, assim como convém
para tornar mais claras as escolhas que se fizeram necessárias no percurso da pesquisa.
Considerando a centralidade que o conceito de ideologia ocupa na obra de Bakhtin e
de seu Círculo, notadamente na reflexão sobre a constituição da subjetividade aqui destacada,
e levando-se em conta os múltiplos matizes que tal conceito ganha de acordo com o horizonte
teórico em questão, cumpre apresentar um breve esclarecimento acerca do sentido que esse
termo adquire na perspectiva bakhtiniana. É interessante destacar que, apesar de se fazer
presente em todos os textos assinados pelo Círculo, o conceito de ideologia mereceu uma
única definição direta e explícita no texto “O que é a linguagem” de 1930, conforme assinala
46
Miotello (2005). Uma nota de rodapé ao texto citado trata de esclarecer de que modo o
Círculo encara a ideologia:
Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e das
interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro
do homem e se expressa por meio de palavras, desenhos, esquemas ou
outras formas sígnicas (Voloshnov, apud Miotello, 2005, p. 169).
Por essa definição e pelo tratamento dado à questão em outros textos, principalmente
em Marxismo e Filosofia da linguagem, percebe-se um produtivo movimento de reelaboração
da concepção marxista de ideologia, no qual Bakhtin não se furta em apontar suas fragilidades
ao romper, em parte, com as noções de falsa consciência e ocultação da realidade, trazendo à
cena, e colocando a par e passo à Ideologia Oficial, um elemento não previsto pela produção
teórica do marxismo: a Ideologia do Cotidiano. Nestes termos, Bakhtin traz a ideologia para a
concretude da vida que acontece, resgatando-a dos domínios imprecisos da consciência
individual, da natureza ou de esferas transcendentais nos quais os estudos de sua época a
situavam (MIOTELLO, 2005).
A exemplo de como instaura nos estudos da linguagem a sua natureza dialógica, por
isso morada dos encontros imprevistos, do inacabamento, da interação entre oposições, da
palavra permanentemente perpassada pela palavra do outro, Bakhtin põe frente a frente à
Ideologia Oficial aquela gerada no território do incessante porvir. Estabelece, assim uma
relação dialética entre estatutos ideológicos antagônicos, entre a margem forjada pelas
estruturas relativamente estáveis e a outra urdida no jogo e na mobilidade das práticas
culturais da vida cotidiana, destacando-se nestas a interação verbal como lugar privilegiado de
materialização do fenômeno ideológico (Id., Ibidem).
Ciente da relevância dessa discussão, mas considerando que seu aprofundamento
ultrapassaria os limites deste trabalho, recorro à contribuição de Faraco (2003) pela maneira
clara e sucinta, por isto conveniente aos fins que aqui proponho, com que explicita a
abordagem bakhtiniana do conceito de ideologia:
A palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos
produtos do “espírito” humano, naquilo que algumas vezes é chamado
47
por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez
como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas
da consciência social (num vocabulário de sabor mais materialista.
Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo
que engloba a arte, a ciência, a filosofia, a religião, a política, ou seja,
todas as manifestações superestruturais (para usar uma certa
terminologia marxista) (FARACO, 2003, p. 46).
22
Por esse recorte, necessário e oportuno para iluminar as reflexões teóricas a que me
conduziram a prática de pesquisa, é possível observar uma particularidade do pensamento
bakhtiniano que a persistência na leitura, diga-se muitas vezes custosa, me deu a conhecer: a
dinâmica interligação entre as categorias construídas pelo autor e seu Círculo. Não são raras
as referências a este aspecto em diferentes autores que se dedicam ao estudo da obra de
Bakhtin, contudo divisar esse fio de Ariadne pelo encontro com seus próprios escritos, alguns
plenos de fragmentação, rupturas e recomeços, sem dúvida representou uma via de
apropriação produtiva, não para os propósitos imediatos da pesquisa, mas para uma
abertura a possíveis desdobramentos e sentidos, assim como assinala Bakhtin (2003, p.408):
“toda resposta gera uma nova pergunta”.
O ato de reconhecer um sujeito no outro da pesquisa, isto é, alguém que fala assim
como o faz o pesquisador que disserta sobre ele (TODOROV, 2003), implica em considerar os
discursos em uma relação dialógica e, por isto, em orientar o trabalho investigativo tendo a
verdade não como posse de antemão resolvida e fixada, mas como busca. Contudo para
Bakhtin (apud Todorov, Op. cit), a busca pela verdade não se traduz em relativismo, no qual o
autêntico diálogo se torna inútil e tampouco pode se realizar no dogmatismo por excluir a
relação dialógica como princípio. De acordo com Amorim (2004), Bakhtin, ao criticar
explicitamente o relativismo, assim como o faz em relação ao dogmatismo, sustenta a
importância de um pensamento valorado, que não se rende à indiferença e, por isto, expõe a
assinatura de seu autor, o que não significa enfraquecer a “idéia de verdade teórica e
universal” (Id., p. 17) pelo fato evidenciar a singularidade. Assim, considerar a diversidade no
discurso e as múltiplas possibilidades de sentidos nele existentes não deve resultar em abrir-se
mão da análise sobre as desigualdades que estão em sua raiz e que o perpassam, posto que não
22
Destaques do autor.
48
necessariamente simetria nos lugares sociais nos quais são produzidos os discursos e
sentidos (Amorim, 2003).
Diante da oposição entre relativismo e dogmatismo, se faz necessário evidenciar, como
oportunamente o faz Amorim (2004), que as oposições no pensamento de Bakhtin nunca são
colocadas de forma binária ou disjunta, antes o autor se ocupa em defini-las como planos
diferenciados para depois buscar os pontos nos quais se encontrem possíveis articulações.
Ainda segundo a autora, Bakhtin trata a verdade em duas esferas diferentes: a teórica e a da
situação. A primeira, identificada pela palavra russa istina, se refere à verdade das proposições
teóricas. De cunho epistemológico essa é a verdade passível de ser repetida, pretende a
totalização e a universalidade e não impõe ao sujeito nenhuma obrigação, pois ele não a
assina. Para a segunda, a verdade da situação, o autor utiliza a palavra pravda e a relaciona
aos momentos ou atos individuais de pensar, é por isto irrepetível e convoca a assinatura, ou
seja, a responsabilidade por aquilo que o sujeito pensa em dado momento, sob o emblema da
singularidade e do devir. O dever ético de pensar verdadeiramente se associa à
responsabilidade frente àquilo que penso em determinada situação e ali imprimo minha
assinatura.
Mas o que é de fato a assinatura no pensamento de Bakhtin? Por certo é a marca que
identifica o autor e o faz responsável pela obra, mas não só, ou não termina a sua definição
e complexidade. O ato de assinar, simples e corriqueiro em nossas atividades cotidianas,
quando se refere à criação estética e à produção de conhecimento, se reveste de caráter ético,
expõe sua feição valorativa ao definir o lugar singular e único que o autor ocupa em contexto
e momento determinados. Se este lugar que eu ocupo, e a produção que daí advém, não cabe
ser assinado por mais ninguém a não ser por mim mesma, trata-se de, na prática de pesquisa,
assumir e expressar a diferença e tensão entre, pelo menos, dois olhares que não se fundem em
um olhar, por maior que seja a proximidade e identificação entre o pesquisador e os
participantes da pesquisa.
Nesse ponto, as proposições do autor, a despeito de terem sido construídas no âmbito
da criação literária e se referirem especificamente à relação entre autor e personagem,
concorrem para uma fundamentação frutífera desta pesquisa, cujo propósito é compreender o
processo pelo qual foi construída a relação com as narrativas por um grupo de professoras. Se
em muitos momentos, professoras que somos e atuando na mesma instituição, eu me vejo e
reconheço pontos de semelhanças entre a minha trajetória e o que elas trazem para narrar,
49
como escapar às armadilhas da transparência dos discursos; da empatia e identificação, do
inferno do mesmo, nas palavras de Segalen (apud Amorim, 2004, p.18) que por fim deságuam
na impossibilidade de conhecimento do outro? A esta questão a noção de excedente de visão
proposta por Bakhtin (2003) representa um instrumento valioso de ser ter em mãos no
momento de proceder à análise das narrativas, por estabelecer um contorno definido dos
lugares que ocupam os sujeitos na pesquisa.
Para Bakhtin (2003) não existe possibilidade de coincidência entre as situações
efetivamente vivenciáveis de dois homens que se encontram um diante do outro, por maior
que seja a proximidade e a identificação que possa estar em jogo nessa relação. “A identidade
absoluta de meu ´eu´ com o ´eu´ de que falo é tão impossível quanto suspender-se pelos
próprios cabelos” (Bakhtin, apud Amorim, 2006, p. 105). Valendo-se dessa imagem, o autor
corrobora o conceito de exotopia, o lugar sempre exterior ocupado pelo autor, na situação
onde mais poderia gerar dúvidas ou imprecisão em sua aplicação: a escrita confessional ou
autobiográfica. A idéia de base para esse conceito é a de que o outro, a partir de sua posição
fora e diante de mim, não tem acesso àquilo que eu posso ver do que ele vê, ou seja, são dois
mundos diferentes que se “refletem na pupila de nossos olhos” (Bakhtin, 2003, p. 21).
Se não há possibilidade de coincidência entre o meu olhar e o olhar que o outro tem de
si mesmo (Bakhtin, 2003); se de minha posição de autor sempre poderei ver algo que o outro
não pode ver de si, em meio a essa trama de olhares, qual é, então, a tarefa que cabe ao
pesquisador a partir da perspectiva dialógica?
Amorim (2006) aponta a estreita relação existente entre o conceito de exotopia e a
idéia de acabamento, de moldura, a que aspira todo trabalho de objetivação, tanto na produção
artística quanto cognitiva, considerando que a diferença de lugares em que se situam os
sujeitos envolvidos pressupõe atitudes e olhares também distintos frente ao evento ou situação
que, pelo trabalho de investigação, os aproximam. De um lado estão os sujeitos participantes
da pesquisa imersos no incessante devir, no inacabamento que é, segundo Bakhtin (2003), a
própria condição sob qual o viver é possível; diante dele o pesquisador, cujo propósito é muito
bem representado pela imagem, referida por Amorim (2006), do artista que se põe a pintar um
retrato.
50
Seguindo a proposição da autora e exercitando traduzi-la à especificidade desta
pesquisa, assinalo o movimento empreendido de meu lugar de pesquisadora: buscar entender
o que o outro olha e de que modo ele vê, isto é, de que maneira as professoras concebem a
narrativa e como revelam essa concepção no próprio ato de narrar suas experiências. Contudo
entender esse ponto de vista não significa moldar-me a ele. É preciso, então, voltar ao meu
lugar necessariamente exterior e oferecer, como um dom, assim como Bakhtin (2003) o
concebe, meu excedente de visão para completar o horizonte das narradoras, sem perder deste
a sua originalidade. Nas palavras de Bakhtin:
[...] Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver
axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me
no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o
horizonte dele com o excedente de minha de visão que desse meu lugar
se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente
concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu
conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN,
2003, p. 23).
A visão do autor, porém, longe de propor subordinar o indivíduo ao nosso próprio
plano, de reificá-lo ao transformar sua palavra em comportamento, orienta para o tratamento
dialógico como única forma de preservar sua inconclusibilidade e reitera que, nessa
perspectiva não cabe “espiá-lo e escutá-lo às escondidas, forçá-lo a auto-revelar-se” (Op.cit.,
p. 347). Buscar respostas para as inquietações éticas e cuidar de me acercar de uma
abordagem epistemológica que não apague do indivíduo a sua singularidade tem sido, desde
os primeiros contatos com as narrativas das professoras, e por certo mais intensamente a partir
daí, uma constante neste trabalho investigativo. Assim, o registro de como e porquê o
encontro com o pensamento de Bakhtin contribuiu para iluminar esse percurso representa,
além de um exercício fundamental de amadurecimento teórico, um meio de fazer presente no
texto da pesquisa a base segundo a qual esta se delineou.
Capítulo 3: O RISCO DO BORDADO: uma abordagem metodológica
Que podemos cada um de nós fazer sem transformar
nossa inquietude em uma história?
23
23
LARROSA (2003, p. 22)
51
Se para cada navegante uma travessia particular, em comum entre aqueles que se
aventuram ao exercício da escrita, e não por acaso da pesquisa, parece haver o sobressalto de
dar a ler, lançar no mundo o escrito, romper dele o cordão que o faz nossa propriedade,
abrigada do desconhecido que é o leitor. É desordem o que se instala pelo encontro com a
palavra do outro, aquela que o que pensar, o que fazer. No depois vem o recomeço
ou descomeço, que como Barros
24
me apetecia dizer. De fato um momento de corte, de
desapego por certas escolhas e caminhos que, por mais os saibamos provisórios e movediços,
nos amparam ali onde é preciso pronunciar nossa palavra, anunciar nossa intenção.
Do exame do projeto registro a valiosa contribuição de uma análise cuidadosa e
generosamente partilhada pela banca, que resultou em uma interlocução proveitosa, não só em
relação ao conteúdo do projeto, mas no sentido de provocar uma oportuna e necessária
reflexão acerca da atividade de pesquisa propriamente dita. Ali se confirmou uma
compreensão pela via do desafio de urdir caminhos singulares, de se por à disposição de ler os
deslocamentos que a própria investigação trata de estabelecer, como sinais cintilantes de algo
que se procura.
Sob esse olhar se põe em relevo uma história, uma trajetória, evidenciando o processo
como parte integrante da produção de conhecimento e situando o pesquisador como sujeito
em formação que vai construindo um caminho investigativo na medida em que se dão os
encontros, e também os desencontros, que a inserção no campo propicia. O próprio exercício
da pesquisa, então, nos expõe à impossibilidade de se levar adiante a tarefa contando com
prescrições, tomando moldes como esteio permanente e garantido, tendo em vista
exclusivamente os méritos dos resultados, das metas previstas, o arremate, enfim.
Assim, fui convidada a olhar com bons olhos o avesso de meu projeto de pesquisa, a
dar atenção ao que não se mostra de imediato e a suspeitar do que parece por demais
resolvido. Aceitar esse convite implicou, sim, em rever questões e reformular objetivos,
porém esta providência não se restringiu ao âmbito meramente formal. Mais além, ou mais em
profundidade, alguns aspectos reclamaram consideração já a partir dos primeiros contatos com
o campo e, principalmente, no momento da transcrição das duas primeiras entrevistas.
24
O poeta Manoel de Barros no poema VII de “O livro das ignorãnças”.
52
A partir das falas das professoras e examinando minha própria atuação nessas
ocasiões, pude perceber que meu papel ali não poderia se limitar à observação e ao registro
seletivo dos chamados “dados objetivos”. Enquanto me mantivesse aprisionada à perspectiva
de obter informações por meio das entrevistas, correria o risco de perder de vista uma riqueza
de histórias feitas de vida que aquelas professoras traziam para contar. Junto com suas
histórias elas me ofereceram também a oportunidade de ampliar minha compreensão sobre o
lugar do pesquisador para pudesse me constituir verdadeiramente como ouvinte.
Todavia, não se trata aqui de uma opção livre de obstáculos, sustos e tensão. Ao
contrário, diante do inesperado, do imprevisto, muitas vezes desejamos o curso estável ao
risco de nos lançar em águas revoltas, quando, sob a vigilância de chronos
25
, nos espreitam os
prazos e as urgências institucionais. Quantas vezes correndo atrás do tempo que corre, como
Riobaldo
26
, dizemos: Ah, porém, estaquei numa ponta de pensamento, e agudo temi, temi.
Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!
O exercício da escrita e a atividade de pesquisa me apresentaram, sim, uma nova
qualidade de medo, porém pude conhecer também uma nova qualidade de atrevimento e de
teimosia, mais o prazer que daí advém de abrir pela experiência o que vivemos e passa a
nos constituir, na perspectiva benjaminiana uma trilha em meio ao silêncio, tantas vezes
assustador, que a página em branco nos impõe.
3.1- História de uma coleção
Quando criança e pela vida a fora não tive coleções admiráveis nem duradouras: nada
de selos, nenhuma moeda. Minha lembrança do desejo de reunir, guardar, sempre conduz às
coisas corriqueiras encontradas ao acaso nos quintais; os nossos e os alheios, os próximos e os
25
Na perspectiva de AGAMBEN (2005): “... que indica uma duração objetiva, uma quantidade mensurável e
contínua de tempo.”
26
Fala de Riobaldo, personagem eternizado por Guimarães Rosa no livro Grandes Sertões Veredas.
53
distantes. Eram pedrinhas sem valia, cacos de vidro coloridos, depois meia dúzia de conchas
e, moça feita, uma coleção de cactos. Esta, sim, por não se satisfazer com os achados
eventuais, me levou a cometer algumas ousadias próprias do afã de possuir. São peças de uma
história longínqua que se encontram com esta que ora me foi dada a narrar.
Tenho hoje uma coleção de histórias. Histórias de professoras, que uma vez recolhidas,
passei a visitar pela árdua e não menos reveladora tarefa de ouvir e transcrever e que, por
cruzamentos e transversais (BENJAMIN, 2000), me deram a conhecer novos e
surpreendentes itinerários de investigação. Mas por que passei a chamar de coleção o material
que me foi confiado? uma lista de razões, mas todas decorrem de uma primordial: de tal
modo ressoaram em mim a experiência de me tornar, pela pesquisa, ouvinte e também
narradora dessas histórias que parecia insuficiente e desmerecido serem referidas
simplesmente como fonte de dados. Havia ali algo de desafiador que ultrapassava de sentidos
essa alusão e requeria um tratamento que pudesse encerrar uma maneira de olhar, um caminho
a seguir.
O ato de nomear se fazia, então, premente para que se seguisse uma possibilidade de
resposta à pergunta que surgiu assim que as narrativas se acharam guardadas na objetividade
de uma pasta de arquivo: o que fazer com elas? Mais: como proceder, de que cuidados me
valer para que não pusesse em risco de esfacelamento a rede de significados que ali se
estabeleceu? De que forma nomear o que se vê, o que se vive e aos sentidos que daí
decorrem?
Segundo Konder (1999), para Benjamin, no homem, ser lingüístico que é, o ato de
nomear não é arbitrário. Ao exercê-lo ele define o sentido que contém as coisas nomeadas,
mantendo com elas uma relação direta e essencial. Dar um nome significa assumir uma
atitude de conhecer, criar, por meio do sentido compreendido no modo de nomear, certa
maneira de lidar com o nomeado. Como a tarefa de Adão, narrada no mito da Gênesis, de
alcançar as coisas diretamente pela nomeação, a linguagem plena de paraíso que ainda se
conserva na infância e que perdemos a cada vez que a tomamos como mero instrumento a
serviço da comunicação de conteúdos (MURICY, 1999, p. 105).
Portanto, não foi por acaso e menos ainda de imediato que, à procura de alternativas de
análise e horizontes interpretativos, avistei a imagem da coleção. Ao tomar as Narrativas
54
como objeto de estudo e ao buscar em Walter Benjamin o aporte teórico como via de
aprofundar essa compreensão, foi necessário percorrer e apreciar outros aspectos do
pensamento do autor que, como num jogo de armar, requer do leitor a disposição para montar
ele próprio os nexos entre suas partes. No entremeio deu-se o encontro com outras vozes e
novas possibilidades de escuta do pensamento do autor, mediado pelo grupo que se reuniu em
torno da disciplina Memórias e Narrativas em Educação e, ainda, o contato com outros
estudiosos que se dedicaram à análise e ao debate sobre a obra de Benjamin.
A leitura até então solitária impunha limites, consentia não muito mais que sobrevôo,
por vezes acidentado, contudo sempre pleno daquele encanto que não decifra, mas nos faz
adivinhar algo que ainda não somos capazes de identificar. Sabedora de que era preciso
mergulhar mais fundo, busquei, então, a leitura em companhia. Se não posso ainda me
considerar com suficiente fôlego para tais profundidades, é possível levantar a cabeça e
perceber que ali, em meio aos fragmentos, alegorias e inacabamentos, o legado de inspirar
e encorajar a pensar a pesquisa e a produção do texto acadêmico sob perspectivas outras que
não as fórmulas consagradas pelo modelo de ciência em que fui formada.
A figura do colecionador percorre os escritos de Walter Benjamin como testemunha de
um tempo de dispersão em busca da experiência, assim como ali se faz presente seu interesse
pelo universo dos fragmentos, das ruínas, das sobras rejeitadas pela cultura de massa, como
forma de construir uma crítica à modernidade e aos modos de vida que esta começa a
engendrar. Por meio de uma série de objetos cotidianos colhidos na paisagem urbana da
aurora da industrialização, o autor vai compondo de forma aberta sua observação. São
utensílios, brinquedos, anúncios, fotografias, poemas e tantos mais que, retirados de seu
contexto habitual, utilitário e apaziguador, expõem e expressam a acuidade das reflexões de
um pensamento que se dedicou a escovar a contrapelo (BENJAMIN, 1994) tanto a conjuntura
social de seu tempo quanto os cânones da escrita acadêmico-científica.
Livre da pretensão de estruturar um sistema filosófico e abstendo-se de se posicionar
em consonância com dogmas teóricos, o que lhe valeu em sua época e ainda hoje as críticas
mais ferrenhas, sua obra vem contribuir para conceber, sem acanhamento, a pesquisa como
um pensamento que se constrói; que as idas e voltas, tropeços e retornos com os quais
freqüentemente temos que lidar não são indícios de que estamos à deriva, mas à procura.
55
Estão ali também sinais de uma nova compreensão frente ao ato de conhecer e
conhecer-se, tornando-se algo diferente do que se era no início; uma compreensão acerca de
como nos constituímos como sujeitos cognoscentes, para além da pretensão de se chegar à
representação de um suposto mundo real preexistente. Como em Sombras Curtas, onde
Walter Benjamin (2000) nos concede uma perspectiva sobre o conhecimento em que perpassa
a idéia de descontinuidade, presença marcante em sua obra, valiosa para considerar o ato de
conhecer como algo em constante movimento. Não aquele retilíneo, uniforme e orientado ao
acúmulo de saberes, mas o que nos retira o prumo ao abalar certezas e, pela desordem, nos
impele à busca de novas trilhas.
Sinal secreto. Transmite-se oralmente uma frase de Schuler. Todo
conhecimento, disse ele, deve conter um mínimo de contra-senso,
como os antigos padrões de tapete ou de frisos ornamentais, onde
sempre se pode descobrir, nalgum ponto, um desvio insignificante de
seu curso normal. Em outras palavras: o decisivo não é o
prosseguimento de conhecimento em conhecimento, mas o salto que
se em cada um deles. É a marca imperceptível da autenticidade que
os distingue de todos os objetos em série, fabricados segundo um
padrão (BENJAMIN, 2000, p. 264).
Assim, a despeito de escaparem à materialidade das coisas palpáveis, as experiências
vividas, lembradas e narradas a mim por um grupo de professoras se constituíram em uma
coleção e eu, pesquisadora, volto a me ver colecionadora. Não mais aquela da infância que
delegava ao acaso os achados e aquisições, mas ainda a da infância que, no limiar do labirinto
(GAGNEBIN, 2004), arrisca perder-se para inventar novas possibilidades de conhecer. Vejo-
me mais uma vez colecionadora, agora pelo olhar e atitude de quem busca compreender a
complexidade de um objeto de estudo de tal forma inscrito em minha própria história, que me
é consentido afirmar: fui escolhida por ele.
Benjamin foi ele próprio colecionador, tanto na vida quanto em sua filosofia. Livros,
brinquedos e miniaturas fizeram parte de um acervo muitas vezes evocado em vários de seus
escritos, sempre anunciando, seja nas entrelinhas ou explicitamente, a dedicação curiosa e
apaixonada com que se debruçou sobre o tema. Assim o fez nas Passagens, obra que deixou
inacabada, onde aplica o modo de fazer do colecionador ao reunir de maneira tão aberta
documentos, imagens, textos, citações, numa desordem produtiva que alicerça uma construção
textual e de pesquisa que se distancia sobremaneira do padrão acadêmico de seu tempo e não
menos do de nossos dias.
56
Em seu ensaio Desempacotando minha biblioteca (BENJAMIN, 2000) elabora um
discurso sobre o colecionador no qual algumas facetas evidenciadas tomam de surpresa o
observador comum, habituado que está em relacionar e restringir, numa mirada superficial,
essa atividade à idéia de posse, quantificação e classificação. O autor esmiúça a natureza do
colecionador e traz à tona, sim, o prazer de ter e o regozijo por ocasião da conquista do objeto
desejado, mas não só. Desde o contexto em que se a aquisição de cada exemplar até o
relacionamento do colecionador com os objetos reunidos e destes entre si, uma enciclopédia
mágica (Id, Ibid p.228) se compõe e se emoldura pela teia de ressonâncias que constrói.
Para Benjamin a arte de colecionar se refere ao desejo de fazer renascer algo que se
esconde à sombra do esquecimento e é sob o emblema da renovação que se aproxima do
modo infantil de se apropriar das coisas, quando pelo toque e pela nomeação, a criança as
reorganiza conforme princípios inaugurais.
Assim é que nesse território, segundo a análise de Benjamin (2002), toda ordem se
encontra à beira do precipício, posto que é contra a delimitação do típico e classificável que
irrompe a paixão do verdadeiro colecionador e sua vocação anarquista, esta nem sempre
identificável à primeira vista.
Fiel ao objeto e ao que nele de singular, inclusive considerando o passado deste,
imprime uma ordem que é determinada pela própria coleção. A partir dos detalhes e
propriedades de cada exemplar, conexões se revelam, correspondências se manifestam,
semelhanças se destacam para oferecer novas possibilidades de percepção. Entretanto, desde o
momento em que decide e seleciona o quê afinal vai compor o seu acervo, o colecionador
está desenhando um contorno, estabelecendo uma ordem sua ao mundo, quando ao seu modo
organiza seus objetos, apesar de não ceder aos imperativos de um encadeamento traçado a
priori (GAGNEBIN, 2004).
Ao retirar o objeto de suas funções de origem, despojando-o de todo resquício do uso,
libertando-o da servidão da utilidade (BENJAMIN, 2006), o colecionador se opõe à esfera do
consumo para conquistar, por essa posição, a capacidade de lançar sobre as coisas um olhar
que enxerga mais além do que o poderia fazer na condição de proprietário comum. Esse olhar
se distingue por um aspecto que o autor faz questão de por em evidência: para o colecionador
o mundo está presente em cada um de seus objetos (Id, p. 241). Em passagem anterior
57
antecipa essa posição, referendando-a na circunstância de o objeto encontrar-se desligado
de suas funções e utilidades, quando situa a coleção na categoria peculiar da completude.
“Mas que completude é essa?” (Id, p. 238). Essa indagação é o próprio Benjamin quem
enuncia, porém não pertence somente a ele. Do mesmo modo e de forma contundente se soma
às inquietações com as quais o pesquisador convive e não pode se furtar em enfrentá-las,
especialmente quando diante das abordagens que pretendem chegar a uma classificação ou
tipificação da prática docente não encontra respostas satisfatórias. Em busca de edificar um
percurso que não oblitera a heterogeneidade própria e constituinte do ato de ensinar e
aprender, adotar a imagem da coleção tal como Walter Benjamin a concebeu é uma escolha
pela qual se faz perante a necessidade de superar uma suposta cisão entre singularidade e
totalidade.
Seu pensamento, radical e originalmente construído entre os fragmentos e as ruínas,
transpõe tal dicotomia na e pela linguagem, contribuindo assim para o encaminhamento da
pesquisa em direção de compreender o trabalho docente sem renunciar às suas peculiaridades
e, por outro lado, sem abrir mão da perspectiva dos sujeitos históricos, da ação educativa
como prática social e de como as narrativas desses sujeitos se engendram nos contextos de tais
práticas.
Apesar de não ter se ocupado em construir uma teoria sobre a linguagem, permeando
os escritos de Benjamim se encontra uma intensa reflexão acerca de seus usos e funções nas
sociedades pós-capitalistas assim como uma visão sobre a natureza da linguagem que se
antecipa a teorias que vieram a se consolidar mais tarde. Exemplo disto é o que assinala
Gagnebin (1994) a propósito de O Narrador, onde Benjamin prenuncia uma teoria da obra
aberta ao proclamar a multiplicidade de sentidos inscritos na narrativa tradicional, cuja
essência se encontra nas diferentes possibilidades de interpretação, em seu não-acabamento,
na idéia de um texto que chama outro texto.
Outras questões presentes no pensamento de Benjamin confirmam sua originalidade e
antecipação de análises filosóficas que posteriormente vieram à luz. No ensaio “A obra de arte
na época de sua reprodutibilidade técnica”, escrito em 1935, portanto dez anos antes de
Adorno e Hokheimer terem publicado o ensaio sobre a indústria cultural na Dialética do
Esclarecimento, Benjamin denunciava alguns aspectos relativos ao jogo ideológico a que
estavam submetidos os consumidores da produção cultural no século XX (KONDER, 2002).
58
Partindo da idéia de que a linguagem não é exclusividade do homem, entende que esta
está presente em toda a Criação, reconhecendo na linguagem humana uma forma privilegiada
da linguagem em geral por meio da qual as coisas comunicam-se ao homem. Escavar,
encontrar respostas onde não se usa procurá-las são marcas de seu trabalho e em relação à
linguagem mantém o mesmo impulso ao recorrer aos textos sagrados em uma época em que a
lingüística primava pelo estatuto científico com as pesquisas de Saussure e outros.
Recuperar a dimensão estética da linguagem, superar o seu mero uso instrumental,
exercê-la para expressar as experiências, reencontrar o sentido da narrativa, inclusive para os
próprios sujeitos da pesquisa, são convites que sua obra nos faz. Foi neles inspirada que parti
para convidar um grupo de professoras do Colégio Pedro II a contar seus percursos de vida e
trabalho, focalizando a importância da narrativa, os sentidos que esta assume para os
professores e conseqüentemente que lugar ocupa em seu ofício docente.
São esses objetos e a coleção em si alegorias do tempo e da memória. Carregados de
lembranças, contam sua própria história e enredam nela a história de seu dono. Assim, a
perspectiva de Walter Benjamin (2006), a despeito de em Um discurso sobre o colecionador
ter modestamente declarado pretender dar “uma idéia sobre o relacionamento de um
colecionador com seus pertences” (Op. cit. p. 227), não esgota a análise nos limites dessa
atividade. Ao contrário, através dela o discurso do autor avança para além das margens, ao
encontro de uma compreensão acerca da História, do tempo, da memória e também do
esquecimento. São conceitos inextricáveis e fortes em sua obra e junto com as Narrativas,
razão de ser desta pesquisa, vão compor a moldura de análise que, por seu conteúdo e
propriedades, minha própria Coleção de Histórias requisita.
Desde os escritos de sua juventude, Benjamin se opunha à aplicação do modelo
científico para a leitura da história. Nas conhecidas teses sobre o conceito de história são
apresentadas alegorias que propugnam a apreensão do tempo histórico em termos de
intensidade, não de cronologia. Pretendem dar relevo a uma crítica às historiografias oficiais
baseadas na linearidade evolutiva e sua tendência de evocar o passado como uma sucessão
pré-determinada de eventos, onde sobressai a perspectiva dos vencedores. Sua crítica se
dirige tanto à historiografia “burguesa” quanto à “progressista” pela matriz epistemológica em
que ambas estão assentadas, ou seja, uma concepção de tempo “homogêneo e vazio”
59
(BENJAMIN, 1994, p. 229), determinada por um conceito dogmático de progresso sem
qualquer vínculo com a realidade. Para ele o lugar da história é um tempo saturado de
agoras, não a marcha inexorável do progresso, reconhecida como uma norma histórica. Nessa
perspectiva, a história é objeto de construção e precisa se valer de um olhar para o passado
sem conferir distinção entre os grandes e os pequenos acontecimentos: “leva em conta a
verdade de que nada que um dia aconteceu pode ser considerado perdido pela história” (Id. p.
223).
A tarefa da história é estabelecer um vínculo entre o passado, apresentado pelos
historicistas como uma imagem eterna, e o presente. Para orientar esse percurso se faz
necessário dar atenção àquilo que para os outros são desvios, às aparentes insignificâncias, os
acontecimentos usualmente negligenciados pelos historiadores. Benjamin proclama uma
mudança radical na forma de se pensar o tempo como via de construir uma nova concepção de
história (MURICY, 1999). A essência desse pensamento se encontra na ruptura com uma
concepção continuísta do tempo, visto como um desenrolar-se sucessivo e necessário, isto é, o
presente como resultado do processo inexorável que inscreve o passado no ido, no
irrecuperável (Id. p. 226). Nesse sentido, torna-se pertinente pensar como o presente do
Colégio Pedro II está saturado de “passados”, a partir dos quais se deu a implantação dos
Pedrinhos, e se faz uma escola repleta de “agoras” por meio dos múltiplos sentidos
expressados pelas narrativas das professoras.
Em se tratando de evidenciar os vínculos e afinidades que aproximam a coleção e as
narrativas, e, por conseguinte, o colecionador e o narrador, é preciso ter em conta, ainda, um
aspecto que o pensamento benjaminiano aponta como constitutivo da natureza tanto de um
quanto de outro: a transmissibilidade. Ambos se situam na esfera do intercâmbio de
experiências, considerando que a Narrativa almeja ser passada adiante e a coleção guarda
rumores do legado. Herança narrada, pequenos cristais que cintilam ao leve toque, deixando
transparecer o que ainda há pouco esteve guardado, envolto em névoa, mas de fato presente na
vida e em cada dia de trabalho na escola, embora dificilmente encontre oportunidade para
emergir de forma discursiva e explícita nos espaços e tempos institucionais.
Olhar para a sua trajetória e ver que os rastros não se apagam se o que se busca é
recuperar, pela narrativa, a capacidade de tornar comunicáveis as experiências, o que está
guardado porque faz sentido internamente para o sujeito; de reconhecê-las como de
60
importância e interesse não para si mesmo, como também para o outro. O contexto da
transmissibilidade compreende e alia necessariamente o narrador e aquele que o escuta. No
ouvinte a experiência de quem narra vai deixar as marcas, enraizar-se em sua própria
experiência e assim suscitar a continuidade em outras escutas, em novas interpretações. Assim
uma das possibilidades de escuta, entre outras, foi a de evidenciar, ao modo da coleção, alguns
aspectos das narrativas das professoras que foram a mim confiados e que, como passados
saturados de agoras, me ajudaram a pensar e compreender o lugar das narrativas neste tempo,
nesta instituição, neste contexto, neste texto, também como lugar de produção de
conhecimento e aprendizagem.
3.2- Entre o familiar e o estranho
Desde a elaboração do projeto de pesquisa até aqui muitas águas rolaram e junto com
elas algumas certezas e intenções foram levadas na corrente. Dentre as que permaneceram
destaca-se aquela que eu, inicialmente, considerava mais arriscada ao mesmo tempo em que
se apresentava como uma opção tentadora: realizar a pesquisa em meu próprio ambiente de
trabalho. Os riscos que eu adivinhava à época se reportavam à idéia de que o fazer da pesquisa
em ciências humanas exigiria do pesquisador o esforço de desvencilhar-se de pressupostos e
convicções; de evitar evidenciar juízos e preconceitos e, nesse ponto, a intimidade com o
campo poderia se interpor como obstáculo a esse propósito, ou seja, dificultar o
estranhamento necessário ao fazer científico.
Por outro lado, havia o anseio de nortear minha atuação pelo caráter colaborativo do
processo de investigação, isto é, de buscar um contorno no qual os participantes se
reconhecessem como membros da pesquisa (CONNELLY e CLANDININ, 2002), para além
de meros fornecedores de dados e que pudessem, pelo ato de narrar-se, refletir e ponderar
sobre a sua prática. Concebendo, então, a pesquisa como lugar de formação tanto para o
pesquisador quanto para os participantes, persegui uma articulação entre a produção de
conhecimento e as relações que vão sendo tecidas no universo pesquisado, buscando semear
nesse âmbito as discussões e análises a que a pesquisa se propõe: recuperar o valor da
experiência, o sentido das narrativas, das memórias de quem fez e faz a história. Se foi ali,
naquele contexto e naquele convívio que essas reflexões germinaram e tendo em vista que as
61
entrevistas seriam ocasião das professoras narrarem o processo pelo qual se construiu a
relação de cada uma com as narrativas, percebi que a familiaridade poderia ser, não um
problema, mas um recurso, tanto para facilitar o acesso a essas narrativas quanto para deixar
ali uma fagulha de inquietação.
Desse modo, qual um jogo de contrários, as idéias de estranhamento e familiaridade
atravessavam minha prática de pesquisa como uma polarização incômoda e por isso mesmo
provocadora de indagações, cuja extensão alcançava não a investigação em si, mas se
articulavam também com meu trabalho de professora. Se para seguir adiante foi preciso
enfrentá-las, por que então relegá-las aos bastidores da pesquisa? O jogo de intimidade e
distanciamento, esse vai e vem de focalização que nos faculta enxergar o novo, o
surpreendente, o desvio, onde tudo aparenta estabilidade e repetição é o desafio essencial que
permanentemente nos coloca o trabalho docente, enquanto nos mantemos, tantas vezes a duras
penas, vacinados contra a doença da indiferença que na capilaridade das estruturas se
dissemina.
Na encruzilhada entre rotina e ruptura (PAIS, 2003) transitam o professor e o
pesquisador. Muito embora distintos em seus propósitos, ambos sustentam o fazer de seus
ofícios no deslocamento, isto é, na mudança de posição e de olhares sem a qual o habitual
permaneceria sempre o mesmo, esterilizado da possibilidade de reflexão, permeável ao que há
de movimento no ato de ensinar e aprender. Greene (2002) se refere ao professor ao falar
desse necessário exercício de olhar com novos olhos a realidade de cada dia e o sintetiza na
imagem do estrangeiro que regressa à casa após longa temporada fora de seu lugar. Porém a
analogia construída pelo autor poderia do mesmo modo se aplicar à ação do pesquisador,
especialmente considerando a seqüência de sua análise na qual salienta que o estrangeiro, ao
retornar ao seu contexto familiar, se encontra em posição vantajosa em relação aos que ali
permaneceram, pois, desse lugar, pode ver com perplexidade e interrogativamente o mundo
em que se vive.
Tomando como ponto de partida e também como pano de fundo o cinema realizado
pelo diretor iraniano Abbas Kiarostami
27
, Amorim (2004.) segue caminho semelhante,
entretanto sua leitura, por trazer à cena a questão da alteridade, faz sobressair a articulação
27
A despeito de ser pouco conhecido no Brasil por não contar com a exibição de seus filmes nos grandes
circuitos comerciais, Kiarostami é um diretor premiado, prestigiado e reconhecido. Transitar pela fronteira tênue
entre ficção e realidade é uma marca de seus filmes que nunca contam em seu elenco com estrelas conhecidas,
mas é feito por gente da região onde o filme é rodado que praticamente interpretam elas mesmas.
62
estrutural entre esse conceito e a prática de pesquisa, tornando visível a possibilidade de
superação de uma visão dicotômica sem, no entanto, negar a tensão inerente à relação
estranhamento/familiaridade. O cerne do paralelo proposto pela autora entre a atividade de
pesquisa e o cinema de Kiarostami está na relação alteridade/identidade que este último
sempre põe em relevo, seja na temática ou na composição de seus filmes. Por essa razão
funciona de maneira exemplar e especialmente feliz como imagem estética das inquietações
que vigiam o pesquisador acerca de seu lugar, do lugar do outro e das transformações de
ponto de vista que vão ocorrendo mediadas por esse encontro.
Amorim (2004) se vale do jogo de realidade/ficção presente nos filmes do diretor para
dar destaque, na situação de pesquisa, ao lugar do pesquisador como parte do evento
observado, porém sem perder de vista sua posição exotópica, qual seja, aquela em que se
reconhece a não coincidência entre o olhar do investigador e o olhar que o outro tem de si
mesmo. Não coincidência que faz do outro estrangeiro pelo movimento mesmo de pretender
estudá-lo.
Sua reflexão, pautada na concepção bakhtiniana de linguagem, convém como moldura
para a análise das situações que se apresentaram por ocasião da inserção no campo e que, a
meu ver, não podem ser negligenciadas por se constituírem também como dados da pesquisa.
Por compreender a linguagem como construção intersubjetiva e permeada pelos diferentes
lugares que os sujeitos ocupam nas relações sociais, as reflexões bakhtinianas contribuem
para pensar a pesquisa numa perspectiva dialógica, isto é, como relação entre sujeitos mediada
pela linguagem. Assumir essa dimensão significa ter em conta uma busca de compreender os
sujeitos como portadores de uma voz e capazes de construir um conhecimento acerca de sua
realidade, o que os situa na posição de participante ativo do processo de pesquisa.
Amorim propõe colocar a alteridade no lugar da estranheza não como mero
reconhecimento de uma diferença, mas como imperativo de se assumir um verdadeiro
distanciamento que é a própria condição de existência do objeto de pesquisa e por isto
constitutivo do processo de produção de conhecimento. Em suas palavras, a prática de
pesquisa se baseia em um exílio deliberado (Op. cit., p. 26) cujo propósito é a construção de
uma determinada escuta da alteridade por parte do pesquisador. A prática de pesquisa, então,
pressupõe o reconhecimento da alteridade e no campo das ciências humanas essa atitude se
reveste de uma particularidade que é a evidência de se tratar de uma alteridade humana, ou
63
seja, um objeto de estudo que exprime a si mesmo, que produz discurso. Em outras palavras,
não se pode ignorar o fato de que o encontro do pesquisador se com um sujeito que
também fala e produz discurso. Em face dessa evidência, não há como ocultar ou relegar a um
plano secundário a relação nem sempre simétrica e livre de conflitos que atravessa esse
encontro de múltiplos discursos.
Nessa perspectiva, o reconhecimento da alteridade remete a implicações éticas e
epistemológicas inscritas no âmbito do trabalho de campo cuja razão de ser é necessariamente
a busca por um interlocutor e, ainda, na escrita da pesquisa na qual se convive com o
problema do lugar da palavra do outro no texto.
O fato de já trazer um vínculo afetivo e profissional sedimentado na convivência diária
com esses sujeitos se mostrou, sim, como um aspecto facilitador para firmar a relação de
confiança que tal abordagem requer, porém não posso dizer que foi suficiente nem que tenha
ocorrido espontaneamente, como supunha inicialmente. Ao longo do trabalho e após alguns
percalços pude confirmar que por maior que seja a intimidade com os sujeitos, a circunstância
da pesquisa impõe uma alteração recíproca de papéis (AMORIM, 2004), isto é, não somos
os mesmos interlocutores que conversam informalmente na hora do cafezinho, na carona de
volta para casa ou nos encontros fora da escola.
no primeiro convite que fiz a uma professora para participar da pesquisa, sua
sinceridade me pôs em alerta sobre a necessidade de uma reflexão mais fundamentada acerca
dessa relação eu/outro, tanto na esfera do trabalho de campo quanto no momento da passagem
desse encontro para a escrita. Assim que fiz o convite, na hora do recreio, ou seja, numa
situação plena de informalidade, ela respondeu seriamente e para que todos em volta
pudessem ouvir: Não, não quero participar porque vocês vêm, perguntam um monte de
coisas, a gente responde e depois vocês escrevem na dissertação que tudo que a gente faz
está errado”.
28
É certo que logo após ela sorriu e não aceitou participar da pesquisa como
se empenhou em conseguir espaço em sua agenda para conceder a entrevista. Todavia ela
precisava expressar sua opinião e discordância em relação à prática de pesquisa que se
abastece do trabalho docente como meio formular um julgamento do mesmo. De minha parte,
eu precisava ouvir, nãono sentido de despertar para essa diferença de lugar e assumi-la no
28
Reproduzo aqui a fala da professora conforme anotei em meu diário de campo que nessas alturas estava se
inaugurando.
64
interior da responsabilidade ética que requisita, mas também para que buscasse o suporte
teórico para compreender mais ampla e profundamente esse deslocamento.
3.3- A Entrada no campo
Primeiro movimento: corte e costura
A inserção no campo me colocou no início alguns desafios e expectativas, em grande
parte relacionados ao fato de ser o Colégio Pedro II, ao mesmo tempo campo de pesquisa e
meu local de trabalho. Nesse período ainda não havia se concretizado meu afastamento para
estudos, de sorte que a dedicação aos interesses da pesquisa se davam nos poucos intervalos
de tempo disponíveis que o trabalho com minhas dez turmas de Laboratório de Ciências
consentia. A ambigüidade da situação impunha dificuldades tanto no que se referia a assumir
plenamente meu lugar de pesquisadora na escola quanto que fosse reconhecida pelos meus
pares como tal. Não foram raras as circunstâncias em que, nos períodos de dedicação à
pesquisa, precisei tratar de assuntos relacionados ao trabalho, mas era preciso começar e eu
decidi fazê-lo da maneira como era possível naquele momento.
Com o propósito de investigar o lugar destinado às narrativas nas práticas pedagógicas,
o caminho metodológico que vislumbrei na ocasião foi a observação de uma turma do
segundo e outra do quinto ano de escolaridade, tendo como base a perspectiva de proporcionar
à investigação uma compreensão a respeito da mediação do ato de narrar, em situações
distintas e em turmas cujos alunos se encontrassem em diferentes níveis de aquisição da
leitura e escrita. Além de observar as turmas, pretendia realizar entrevistas semi-estruturadas
com algumas professoras a fim de conhecer o que pensam a respeito do lugar das narrativas
orais no contexto de suas aulas, suas motivações, seus propósitos, suas afinidades, memórias e
relações com esse universo ao longo de seu percurso de formação, ou seja, o que se ensina e o
que se aprende pelo ato de narrar.
Assim, com o aval da instituição e com a concordância da professora, passei a
freqüentar, uma vez por semana, uma sala de aula do segundo ano. Nessas oportunidades foi
possível conversar individualmente com algumas crianças e registrar o que pensavam sobre
ouvir histórias na sala de aula, na família, quem era o narrador mais freqüente no dia-a-dia de
65
cada um, suas preferências sobre ouvir histórias contadas ou lidas. A despeito de terem
revelado dados significativos para uma outra pesquisa eu diria pressentia que aqueles
encontros com os alunos me afastavam de meu propósito de focalizar a investigação na prática
das professoras.
Se aproximavam as férias de julho e até então tivemos, eu e a turma, três contatos que
para mim foram eloqüentes em mostrar que o registro das situações de sala de aula não seriam
o caminho mais apropriado para atender aos objetivos da pesquisa. Coincidindo com a
reflexão e avaliação em torno da validade dessa estratégia ocorreu nos fins do mês de julho o
exame do projeto de pesquisa, cujas ponderações e contribuições da banca, como referido
anteriormente, apontaram para um redirecionamento dos objetivos e, a partir daí, requisitaram
uma nova abordagem metodológica.
É importante destacar que, nesse processo, um dado se acrescentou para se confirmar
definitivamente a minha decisão de abandonar o acompanhamento de uma turma como fonte
de dados: se meu propósito era o de buscar o lugar das narrativas nas práticas docentes, como
descartar a possibilidade de o professor se sentir avaliado, ou sob vigilância e passar a
direcionar seu trabalho em função dos interesses da pesquisa? A despeito de nunca ter vivido
essa experiência em meu trabalho docente, no exercício de me colocar na perspectiva da
professora que recebe um pesquisador para observar suas aulas, me vi ainda mais distante e
menos à vontade nessa posição, tanto quanto descrente de, no caso específico do tema que
escolhi abordar, ser este um caminho frutífero. Estaria, então, a carta roubada
29
onde menos
se espera encontrá-la, isto é, no lugar que de tão evidente não nos ocorre iniciar por ali a
procura?
Mantendo o intuito de investigar o lugar das narrativas nas práticas pedagógicas passei
a direcionar meu interesse não mais para a sala de aula, mas para as trajetórias de vida e
trabalho das professoras, buscando as relações e os sentidos que estas construíram com o ato
de narrar e de que maneira estão entrelaçadas com o próprio ofício de ser professor. Para tanto
foi preciso modificar também a abordagem nas entrevistas e, nesse ponto, me auxiliaram
Kramer e Jobim (1996, p. 27) cuja proposta de concebê-las como construção de entrefalas e
entretextos, isto é, como um convite para que as professoras falassem de um interesse comum:
o relato de suas relações com as narrativas.
29
Emprestado do conto “A carta roubada” de Edgar Allan Poe cujo mote é o desafio proposto a um certo
Auguste Dupin de encontrar uma carta comprometedora escondida em um lugar que, de tão evidente, não foi
cogitado pela polícia em sua busca.
66
Por esse caminho, busquei restringir ao máximo minhas intervenções durante os
registros para que, sem interrupções, as idéias e memórias das entrevistadas pudessem fluir e
se manifestar seguindo o fio narrativo que suas próprias lembranças estabelecessem. Essa
intenção, no entanto, foi também lugar de aprendizagem. Lembro que ao transcrever a
primeira entrevista foi possível perceber a importância de permitir que as professoras
navegassem livremente através de suas recordações e o quanto o excesso de intervenções de
minha parte resultaram em uma narrativa entrecortada e mesmo vacilante.
Não satisfeita com esse primeiro registro, resolvi adotar outra estratégia. Ao iniciar
cada uma das entrevistas meu papel era expor em linhas gerais os objetivos da pesquisa e em
seguida solicitar que as professoras narrassem alguns aspectos de percurso de vida e de
professora, a saber: como se tornaram professoras; como se tornaram professoras do Colégio
Pedro II; como se deu a relação com as narrativas na infância, tanto na família quanto na
escola; se houve, quem foi o narrador marcante, aquele que guarda na lembrança e por quê;
como lidam com as narrativas em suas práticas docentes.
Segundo movimento: compositor de destinos
Não cabe descrever as minúcias da longa e exaustiva trajetória que foi preciso
percorrer até chegar à realização das entrevistas. Porém, alguns dados não poderiam
permanecer ocultos por se constituírem, eles mesmos, em lugar de análise do contexto
institucional, bem como da composição do grupo de participantes da pesquisa. Não encontrei
dificuldades ou rejeição por parte da grande maioria das professoras em fazer parte da
pesquisa, pelo contrário, o tema e a dinâmica das entrevistas foram recebidos com surpresa,
sim, mas esta não escondia o interesse e curiosidade das professoras. Sobre este ponto,
registro o fato de ter sido procurada, após a realização das primeiras entrevistas e mesmo
depois de tê-las concluído, por algumas professoras que se ofereceram espontaneamente para
serem incluídas.
De um grupo de vinte professoras a quem fiz o convite, somente duas responderam
negativamente; uma delas foi explícita em dizer que não estava disposta a participar e a outra
67
sugeriu o mesmo, a despeito de não tê-lo feito verbalmente. De fato, os percalços que
enfrentei nesta etapa da pesquisa, não se deveram à adesão das professoras, mas às
dificuldades de encontrar tempo em suas agendas para a realização das entrevistas que
exigiam não mais do que uma hora de disponibilidade. Para que sejam esclarecidas as razões
dos contratempos que surgiram ao se acertar dias e horários para os encontros, é preciso abrir
parênteses para definir a maneira como esse tempo de trabalho é administrado na Unidade São
Cristóvão I
30
.
Atualmente convivem em São Cristóvão I, e em todas as Unidades do Colégio Pedro
II, professores efetivos e também aqueles que cumprem contrato temporário de dois anos
como professor substituto. Para os efetivos diferenciação de regime de trabalho entre
quarenta horas e dedicação exclusiva; dos primeiros se exige cumprir quatro períodos de seis
horas por semana, distribuídos de acordo com a atividade que o professor exerce a cada ano
letivo. Os professores com dedicação exclusiva cumprem um período a mais, dedicado às
atividades de apoio, grupo de estudos e planejamento, o que tradicionalmente acontece às
quintas-feiras pela manhã e à tarde. Aos professores contratados, apesar de constar no contrato
o regime de quarenta horas, se exige o cumprimento do mesmo horário de trabalho da
dedicação exclusiva.
Essa intrincada organização não está posta desde o início do trabalho com o primeiro
segmento no Colégio. Ela foi assim constituída aos poucos e advém de uma história de lutas
dos professores com vistas a equiparar a carga horária do primeiro segmento, os chamados
Pedrinhos, à dos professores do segundo segmento e do ensino médio, o Pedrão. Hoje de uso
corrente entre os alunos e suas famílias, professores e funcionários técnico-administrativos,
essa denominação passou a existir a partir da implantação do primeiro segmento do Ensino
Fundamental no Colégio, ou seja, como aponta Bakhtin (2004, p. 41) “a palavra será sempre o
indicador mais sensível de todas as transformações sociais”.
Por certo a designação Pedrinho/Pedrão guarda sentidos que vão muito além de uma
referência carinhosa à idade dos alunos que estudam em um e outro segmento do Colégio.
Como sempre os diminutivos, quando referidos às coisas da infância, são facas de dois gumes.
Sob a o manto protetor do afeto, quanto de descrédito e desprestígio podem estar ocultados?
30
O que não implica afirmar que exista uma uniformidade em relação a essa questão em todas as Unidades nas
quais se trabalha com o primeiro segmento do Ensino Fundamental, os chamados Pedrinhos: Tijuca I, Engenho
Novo I e Humaitá I.
68
Porém, não se trata de banir da denominação Pedrinho o seu sentido carinhoso, mas de dar
atenção também da moeda o seu reverso.
Mas, é tempo de continuar a falar do tempo, ou da falta deste, na semana de trabalho
das professoras de São Cristóvão I.
Quinta-feira pela manhã e à tarde é o dia dedicado ao planejamento semanal para a
maioria das professoras. As que têm dedicação exclusiva “dobram” nesse dia, permanecendo
na escola de sete às dezoito horas, exercendo as atividades com suas turmas regulares mais
aquelas descritas acima, ou seja, apoio, grupo de estudos e planejamento. Resolvi, então
marcar as entrevistas sempre nesse dia da semana julgando que seria mais fácil encontrar
espaço para as entrevistas em suas agendas. Entretanto, nem tudo transcorreu de maneira
simples como eu previa.
A despeito das professoras passarem onze horas de seu dia na escola, fora o período
em que estão envolvidas nas atividades junto aos seus alunos, muito pouco resta de tempo não
administrado e regulamentado pela escola, seja nos encontros de planejamento com os
coordenadores de área ou de série, seja nos grupos de estudos. Diante desse controle
detalhado, é irrisório o espaço que se tem para dispor do tempo fora da sala de aula de acordo
com a escolha ou necessidades individuais, haja vista o chamado planejamento individual não
passar de dois tempos de aula por semana, ou seja, uma hora e trinta minutos que, inclusive,
deve ser obrigatoriamente cumprido dentro do espaço escolar.
Diante da escassez de tempo, para levar a termo a realização das entrevistas foi preciso
contar com a generosidade de muitas professoras que se dispuseram a chegar mais cedo à
escola ou me receberem em suas casas em seus horários de descanso. Como professora da
escola e ainda sem a liberação para estudos, eu estava submetida ao mesmo regime de
trabalho e cumprindo um horário que me tomava dois dias inteiros por semana em sala de
aula. Assim, não sobrava mais do que os horários de recreio para convidar individualmente as
professoras, interrompendo o lanche, o descanso e a conversa, tentando expor em poucas
palavras o tema e os objetivos da pesquisa.
Muito embora soubesse de antemão que seria uma estratégia exaustiva e demorada,
optei por fazer o convite pessoal e individualmente. Desse modo, pretendia ensejar, desde o
69
primeiro contato, uma situação de disponibilidade de escuta que o próprio tema da pesquisa
busca evocar e dizer que não é possível, mas necessária a interlocução face a face em um
contexto no qual toda sorte de informações, avisos, comunicados, circulam
preponderantemente pela escrita; o preto no branco como garantia e validação do que se
espera dar a conhecer vai acumulando de papéis os murais e as pastas dos professores de
maneira tal que não se pode saber ao certo se vem a ser um remédio para a memória ou um
veneno para o esquecimento (GAGNEBIN, 2005).
Hoje, refletindo sobre tal decisão e à luz do conceito de dialogismo que permeia o
pensamento de Bakhtin, posso ver que ter optado por essa forma de abordagem trouxe como
resultado não o alcance de seu objetivo mais imediato, isto é, obter a adesão das
professoras, mas, além disso, propiciou a abertura de novos caminhos para a pesquisa.
À medida que se davam os contatos, estes certamente se estabeleciam como meio de
fazer chegar aos possíveis participantes os objetivos da pesquisa, mas também como espaço
de interação por meio do qual foram ampliadas e redirecionadas as propostas iniciais, a partir
daquilo que as professoras apresentavam como resposta, dúvidas, intervenções ou
apreciações. O ato mesmo de enunciar a pesquisa de modo compreensível para o outro, e para
cada sujeito de maneira singular, se mostrou como ocasião de sucessivas reelaborações que,
aliado à própria realização das primeiras entrevistas mais as ponderações da banca do exame
de qualificação, vieram produzir uma decisiva mudança de enfoque na investigação,
orientando a busca pelos sentidos das narrativas não somente na prática pedagógica em si,
mas na vida e experiências desses sujeitos.
Por essa via me foi possível, portanto, divisar de modo mais claro os pontos ainda
nebulosos e, por isso, extremamente incômodos nesse processo: o lugar de pesquisadora que
eu precisava assumir nessa interlocução e que não poderia continuar se confundindo com a
minha função de professora da escola, mais a definição do quê eu realmente estava à procura e
por onde, de que outro lugar, começar a proceder essa busca.
Terceiro movimento: ver, ouvir e narrar
70
Quando, a partir de agosto de 2007, me foi concedido pelo Colégio Pedro II o
afastamento de minhas funções para concluir a pesquisa, passei a freqüentar a escola toda
quinta-feira em dois turnos para realizar as entrevistas nos horários de planejamento
individual que cabem às professoras. Vale registrar que em doze anos ininterruptos de
trabalho no Pedro II era essa a primeira vez que me afastava de meu trabalho de professora,
por isso permanecer e transitar por aquele espaço com outros propósitos carecia de
aprendizado.
Olhar, ouvir e praticar aquele espaço (CERTEAU, 2004) por itinerários diferentes
daqueles determinados pela regularidade das tarefas habituais: o barulho do sinal anunciando
o tempo regulamentar de iniciar e finalizar cada atividade, o movimento dos alunos nos
corredores, a correria dos recreios, as paredes forradas de murais e seus papéis esmaecidos.
Tudo parecia igual, tudo transcorria como de costume, porém uma alteração se deu em meu
modo de ver aquele lugar e também na relação com as pessoas com as quais me encontrei por
meio de suas narrativas.
Ao compartilhar de suas lembranças, presenciar o brilho que iluminava os olhares e a
emoção que amaciava o tom de voz no momento em que passavam a contar suas próprias
histórias, pude ver acontecer o ato de recordar em sua essência e cuja etimologia vem clarear
o sentido que aqui está em questão: recordar é trazer de volta ao coração. Ao selecionar em
seu arquivo pessoal as experiências mais significativas para colocá-las na roda, aquele que
narra pode nomear os mais variados propósitos a guiar sua iniciativa, porém efetivamente é no
afeto que consiste a sua urdidura.
Muitas vezes, durante as entrevistas, um detalhe, às vezes uma palavra, outras uma
referência de tempo ou lugar, provocaram em mim a lembrança e um reviver de fatos e
acontecimentos que muito não tinham espaço de expressão. Assim, fui pouco a pouco
construindo nesse fazer junto uma prática de pesquisa que, além de ter me conduzido a uma
reflexão de ordem teórica, trouxe desdobramentos para a minha própria experiência de
professora e de pesquisadora, na medida em que, de uma pergunta que nasceu de minha
história pessoal, a pesquisa foi ganhando colorido, consistência e foco pelas ressonâncias que
as narrativas de que me fiz ouvinte tornaram possíveis.
71
Por conceber meu lugar de ouvinte de tal forma enraizado nesta relação, fiz questão de
eu mesma transcrever cada uma das entrevistas. Por certo um trabalho árduo, mas que trouxe
como prêmio, pelo ato de fazer escrito algo que se materializou em jorros de oralidade, o
alcance de uma escuta sensível e, por isto, disponível a aprender e eticamente transmitir o que
essas histórias têm a ensinar.
Cabe assinalar que para compor uma rede de significados o mais polifônica possível
tornou-se importante inserir um outro tipo de narrativa que permeia as práticas docentes: os
documentos oficiais orientadores do trabalho realizado no Colégio Pedro II. Essa leitura se fez
orientada pelo propósito de compreender o lugar das narrativas no projeto pedagógico
institucional e como o mesmo pode dialogar com as narrativas das professoras. Como
professora da escola tive amplo acesso aos documentos, inclusive à proposta de reformulação
do Projeto Político Pedagógico encaminhada ao debate pelo Departamento de primeiro
segmento.
3.4- Um olhar sobre os documentos oficiais do CPII
O movimento de buscar compreender o lugar destinado às narrativas nas práticas
docentes da Unidade São Cristóvão I do CPII não poderia prescindir de uma análise da
documentação oficial, aquela cujo propósito é orientar a ação pedagógica empreendida nesta e
em todas as Unidades do Colégio. Por essa análise se abre, ainda, a perspectiva de tornar
visível o perfil da instituição no que diz respeito à sua organização e estrutura, aspecto que,
enfatizado na maior parte das narrativas das professoras, ganhou relevo neste estudo como um
importante lugar de produção de significados quanto ao espaço-tempo de ouvir e narrar nesse
contexto.
O material considerado aqui será o que tem por finalidade a definição e orientação do
trabalho pedagógico do Colégio, seus princípios filosóficos e metodológicos e sua proposta
curricular, que a partir de 2002 se reuniu em um extenso documento denominado Projeto
Político Pedagógico
31
do Colégio Pedro II. Embora o interesse da pesquisa se concentre nas
seções dedicadas aos anos iniciais do ensino fundamental, não pude dispensar uma leitura
31
Será referido como PPP daqui em diante.
72
atenta do documento em seu conjunto, por apresentar dados relevantes sobre o Colégio como
um todo. Por certo essa leitura se fez ao sabor dos interesses e peculiaridades da pesquisa, ou
seja, uma leitura orientada pelo objetivo de fazer sobressair do texto o olhar institucional
sobre as narrativas, assim como buscar na trama de sua estrutura os aspectos que ajudam a
vislumbrar e considerar mais um elo na complexa rede de produção de sentidos sobre a
narrativa.
Reconheço que esse recorte implica necessariamente deixar de apreciar determinados
aspectos não menos importantes do documento, inclusive a complexidade do processo de sua
elaboração e o percurso de sua implantação desde 2002. Porém, se nenhuma leitura poderá vir
a ser toda a leitura, se toda escolha, ao mesmo tempo em que ilumina certas veredas, produz
também os não-ditos, os vãos e os silêncios, acredito que a contribuição desse olhar possa se
fazer não pelo que apresenta à discussão, mas também pela abertura a outros caminhos
investigativos.
Publicado pelo Inep em 2002, o PPP se encontra hoje em processo de reformulação,
sobretudo no que se refere à proposta curricular, cujo conteúdo e estrutura vêm sendo alvo de
discussões a cargo das equipes que compõem os dezesseis departamentos pedagógicos do
Colégio. A publicação da versão revista e atualizada está prevista para o final de 2008, o que
define este ano como um momento chave de debate e participação nas discussões com vistas a
incorporar ao documento as mudanças e necessidades que emergem do cotidiano e das
práticas pedagógicas.
Cabe assinalar que esse processo, longe de ser simples e de contemplar a totalidade
dos anseios daqueles que cotidianamente submetem à prática os preceitos definidos pelos
documentos oficiais, comporta as contradições e dificuldades inerentes à negociação de idéias
e opiniões de um grupo amplo e plural como de fato é o corpo docente do CPII. Contudo, sem
negar que tal exercício represente para os professores uma relativa autonomia, esse
reconhecimento não invalida a importância de fazer presente a sua palavra, tanto na
elaboração quanto na implementação do projeto, mesmo diante da possibilidade de ver os
resultados em muito distanciados daquilo que o contato direto e diário com nossos alunos nos
ensina a sonhar e acreditar.
73
Tendo em vista a coincidência do desenvolvimento da pesquisa com o momento em
que o corpo docente reflete sobre o conteúdo do PPP e tem a oportunidade de encaminhar
propostas para a sua reformulação, a análise que aqui pretendo apresentar poderá vir a ser
mais uma dentre as múltiplas vozes a se pronunciar nesse processo. Nesse sentido,
considerando que a articulação da pesquisa acadêmica às demandas sociais é uma das razões
de ser de sua realização, este estudo não se fecha nos limites dos objetivos imediatos da
pesquisa, mas poderá vir a contribuir para o debate, se não em termos de propostas concretas,
pelo menos no sentido de suscitar algumas indagações que ultrapassam a mera seleção de
conteúdos.
No caso específico das séries iniciais do ensino fundamental, ao longo do ano de 2007
alguns encontros foram realizados entre as coordenadoras e orientadoras pedagógicas das
Unidades I com o objetivo de discutir e avaliar as diretrizes que constam no documento em
vigor, culminado na elaboração de uma versão preliminar. Segundo consta em sua
apresentação, esse documento, ainda em aberto, se destina tanto à consulta para o início do
ano letivo de 2008 quanto à análise de suas propostas por parte do corpo docente do
Departamento de Primeiro Segmento do Ensino Fundamental, que poderá encaminhar as
alterações consideradas pertinentes e necessárias a partir de sua aplicação ao longo de 2008.
Como esse é o documento que, apesar de inacabado, atualmente fundamenta o trabalho
nos anos iniciais, pretendo a ele dedicar maior atenção. Porém, algumas referências serão
feitas ao PPP, por isto, para evitar que no texto um e outro se confundam, daqui em diante
passarei a adotar a denominação “PPP/2002” para o documento que ainda fundamenta o
trabalho em todo o CPII e “versão preliminar” para o texto que se refere ao trabalho nos anos
iniciais do ensino fundamental.
Tal imprecisão se explica pela própria estrutura do Colégio que se organiza segundo
uma divisão departamental aos quais estão filiados todo o corpo docente, inclusive aqueles
que exercem funções de direção, coordenação, chefias e assessorias. São 16 departamentos
pedagógicos cujas equipes estão atualmente se dedicando à reformulação do PPP/2002. O
trabalho de reexame do conteúdo desse documento e as propostas encaminhadas é realizado
em separado por cada uma das equipes que compõem os departamentos, de modo que seu
andamento se em tempos e ritmos diferenciados que dependem de fatores como a
freqüência e regularidade de seus encontros. Desta forma, enquanto as discussões se
74
encontram em andamento não intercâmbio entre os grupos nem mesmo no que se refere
aos dados parciais. Ao final do prazo estabelecido para a entrega das propostas, o material
será reunido para compor a nova versão do PPP a ser a ser publicada até o final do ano de
2008.
Cabe esclarecer que, como professora dos anos iniciais tive acesso à versão preliminar,
que chegou às mãos de todo o corpo docente em tempo hábil para fundamentar o
planejamento do ano letivo em cada Unidade e oportunamente para a análise que aqui me
proponho a realizar.
A análise do lugar das narrativas na documentação oficial do CPII se concentrará no
texto da versão preliminar, em razão de ser este o documento que orienta especificamente o
trabalho dos anos iniciais que é o foco da pesquisa. Antes, porém, de iniciar essa reflexão,
alguns esclarecimentos acerca da complexa organização e estrutura do CPII se fazem
necessários para que se justifique a pertinência de algumas questões levantadas.
Os departamentos agregam os professores de acordo com sua formação e,
conseqüentemente, segundo a disciplina em que atua no Colégio, assim registra o PPP/2002.
Porém, ao ser aplicada ao departamento de primeiro segmento, essa lógica suscita certas
ambigüidades, a começar pelo fato de os professores a ele filiados possuírem formação nos
mais diferentes campos do conhecimento, o que de fato não ocorre em cada um dos demais
departamentos pedagógicos do Colégio.
Por seu perfil de formação, a atuação dos professores dos anos iniciais nas diversas
áreas curriculares que compõem esse segmento não estaria necessariamente condicionada ao
critério da formação. Todavia, tomando por referência o caso específico da Unidade São
Cristóvão I, verifica-se que a alocação dos professores muitas vezes se orienta pela
preferência dos mesmos em desempenhar suas funções nas áreas ou atividades que sejam
correspondentes ou estejam mais próximas de sua formação acadêmica. Assim, não é rara a
permanência de alguns professores em determinadas atividades durante muitos anos,
resultando na prática em uma especialização incomum nos quadros das escolas públicas que
atendem aos alunos a partir dos seis anos de idade.
75
Se de um lado essa ocorrência, por garantir a continuidade dos grupos, favorece a
consolidação e a fundamentação do trabalho pela reflexão e pelo estudo dos temas específicos
de cada área, de outro pode resultar em configurações pétreas e em excessiva especialização
que, de certo modo se aproxima daquela praticada no âmbito do chamado “Pedrão” do
ao ano do ensino fundamental mais o ensino médio. Não dúvidas de que certa
manutenção das equipes é desejável como forma de se evitar que seja preciso “começar de
novo” o trabalho a cada ano letivo, porém o que se coloca em discussão é o risco de se
naturalizar a lógica da disciplina e da setorização nos anos iniciais, quando este seria, por
excelência, um lugar propício às práticas transdiciplinares.
Nesse ponto, é interessante observar que a concepção transdisciplinar do trabalho é
apontada na versão preliminar como aquela que fundamenta a ação pedagógica em todo o
CPII. Não são mencionados, no entanto, os limites que a própria estrutura da instituição impõe
à sua concretização ou as iniciativas que se tem em vista para a superação de um modo de
pensar instaurado sob a égide da fragmentação e da descontextualização que na forma de
organização da escola tem seus reflexos mais concretos e evidentes. Para o trabalho
desenvolvido nos anos iniciais, tendo em vista o respeito e atendimento às características
peculiares da faixa etária dos alunos, o texto preconiza a articulação entre os diferentes
componentes curriculares, além de propor o desenvolvimento do trabalho por meio de
atividades lúdicas, concretas e experimentais.
O próprio quadro onde são listados os componentes curriculares dos anos iniciais é
eloqüente em revelar uma contradição decorrente da segmentação referida anteriormente. No
documento os “componentes do currículo”, ou seja, Língua Portuguesa, Literatura, Educação
Artística, Educação Musical, Educação Física, Matemática, Ciências e Estudos Sociais,
trabalhados desde o primeiro até o quinto ano de escolaridade, são descritos em suas
competências e para cada ano de escolaridade. Porém, como nem todos fazem parte do
Departamento de Primeiro Segmento do Ensino Fundamental, as propostas de Educação
Artística, Educação Musical e Educação Física não constam desse texto, pelo fato de serem
discutidas e apreciadas nas reuniões das equipes de seus respectivos departamentos. Desse
modo, o teor das propostas dessas equipes serão conhecidos pelos professores dos anos
iniciais quando incorporadas ao texto final do novo PPP. Por essa dinâmica, confia-se aos
planejamentos das Unidades a tarefa de encontrar conexões entre conteúdos que na origem de
76
suas propostas foram estruturados institucionalmente segundo uma lógica disciplinar, ou seja,
cada qual fechada em sua moldura conceitual específica e diferenciada.
Na versão preliminar aparece a denominação “componente curricular” em substituição
ao termo “disciplina”, utilizado amplamente e sem reservas no texto do PPP/2002, inclusive
quando este se refere aos anos iniciais do ensino fundamental. Algumas indagações emergem
do que parece ser um mero pormenor de natureza lingüística ou, porventura, uma busca pela
adequação à terminologia atualmente em voga no discurso pedagógico. Seria a alteração das
palavras suficiente para modificar também as significações produzidas e reproduzidas por
uma estrutura compartimentalizada como a do CPII?
Por certo muitas outras questões podem a partir daí ser levantadas, contudo dedicar a
elas a atenção aprofundada de que são merecedoras representa um investimento que não
caberia nos limites deste trabalho. Por outro lado, deixá-las em aberto nesse momento em que
o próprio documento se encontra em elaboração pode ser um meio de anunciar a relevância de
se buscar caminhos de superação desse modelo fragmentado, a começar pelo movimento de se
incentivar uma concepção de conhecimento em que os saberes estejam articulados e
contextualizados, não nos discursos, mas sobretudo nas ações e relações instituídas na
escola.
A versão preliminar dos anos iniciais são páginas ainda soltas do novo PPP que vem
por aí. Percorrer essas páginas uma vez e mais outra atualiza, por assim dizer, a sensação de
sobressalto que me invade toda vez que me chega às mãos, geralmente por ocasião do
planejamento anual, o extenso rol de conteúdos que precisam ser trabalhados. Diante do
imperativo e da lista que sempre me parece interminável e que algum tempo incluem
ainda as chamadas competências e habilidades, a expressão recorrente é: não vai dar tempo!
Mas que tempo é esse que reivindico pela constatação de sua falta? Tempo para
cumprir todos os conteúdos listados? Um dia foi assim, mas hoje não mais ou não só.
Lembro que assim era no início de meu trabalho na Unidade São Cristóvão I. O lugar
de minha maior aflição era o sentimento de que não seria capaz de “dar conta” daquela
quantidade avassaladora de conteúdos, principalmente porque não vivia essas urgências e
controle na escola estadual e nem mesmo na outra, particular, onde trabalhava mais de dez
77
anos antes de chegar ao Colégio. No tempo em que iniciei o trabalho no CPII, era comum nos
encontros de planejamento recebermos o “menu” da coordenação, por escrito, passo a passo e
distribuídos cronologicamente, contendo tudo o que não poderia deixar de ser trabalhado em
determinado período. O trabalho era de tal modo explicado, detalhado e determinado que não
me passava pela cabeça a possibilidade de inventar outros caminhos, pois o risco de fazer
aquele arranjo desandar me parecia iminente. Assim pensava, assim cumpria.
Sem contar que nesse tempo ainda estava às voltas de tentar compreender o “modo de
fazer” do Colégio Pedro II. Eram as siglas que povoavam os discursos para mim
verdadeiros enigmas a serem decifrados —, a profusão de materiais didáticos, folhas e mais
folhas que brotavam em meu armário e, hoje posso ver, do mesmo modo se transferiam para
as mesas dos alunos e dali para as suas pastas, muitas, abarrotadas de papéis; eram os diversos
setores cujos nomes e funções se emaranhavam em minhas tentativas de entendimento e,
principalmente, o ritmo acelerado dessa escola que eu perplexa tentava a duras penas
acompanhar. Não posso negar, porém, que, apesar de certo desespero e ansiedade em lidar
com aquela avalanche de informações, de início me admirava o que entendia como
organização da escola e até mesmo o controle minucioso me parecia conveniente em
comparação ao controle nenhum e a tomada de decisões solitárias que me incomodava
sobremaneira na escola estadual de onde eu vinha.
Mas por que razão essa história, a minha, aparece aqui? Antes de mais nada porque
conta um certo modo de ler os documentos oficiais, um modo de percebê-los pelo viés da
regulamentação, da ordem e da conformação, uma leitura devotada e linear cuja meta é a
posse de instrumentos que possam conferir o máximo de segurança à caminhada. Mas é
também nessa história onde encontro indícios de como a questão da escola como espaço de
narrativa começou a ser articulada até se tornar o tema central deste trabalho de investigação.
Sua continuação conta como ao longo de meu percurso no CPII, e, diga-se, pela
intensa interlocução tanto com meus pares quanto com meus alunos, fui aprendendo a
“fabricar” saídas (Certeau, 2004) enquanto a frenética reprodução, que de fato à época era o
retrato de minha prática, começou a mostrar os sinais de seu esgotamento. Essa outra parte da
história, então, é também um outro modo de ler esses documentos, um modo que salta as
garantias do percurso previamente determinado para ousar um gesto de interrupção
(LARROSA, 2004).
78
3.4.1- A agulha e o palheiro: as narrativas nos documentos oficiais
Em sua apresentação o documento não deixa de evocar a “juventude” dos anos iniciais
do ensino fundamental frente à existência secular do CPII, além de registrar o engajamento
desse segmento, desde a sua implantação em 1984, ao compromisso do Colégio de oferecer
aos seus alunos um ensino de qualidade. O texto destaca desse percurso de 24 anos do
Pedrinho a busca constante dos professores pelo estudo e aprimoramento, reconhecendo nesse
empenho as razões de se levar a termo um trabalho pautado em práticas pedagógicas
reflexivas. Ainda que breve, essa apresentação representa um avanço em relação ao texto do
PPP/2002, cuja omissão em relação às especificidades do trabalho desenvolvido no primeiro
segmento, assim como das características peculiares da faixa etária de seus alunos, têm sido
alvo de críticas desde a sua publicação.
A organização do documento obedece a uma ordem que parte do mais geral para
chegar ao mais particular. Após o texto introdutório, são apresentadas as bases teórico-
metodológicas que sustentam o trabalho dos anos iniciais, as justificativas para essas escolhas
e as competências gerais que se pretende desenvolver ao longo dos cinco anos de escolaridade
do ensino fundamental. Em seguida um espaço delimitado para cada componente
curricular, destinado a expor e fundamentar as finalidades de seu ensino, além de definir
“eixos conceituais norteadores”, nos quais se inserem os conteúdos, além das competências e
habilidades correspondentes a cada ano de escolaridade. Cabe registrar que em relação aos
termos “competência” e “habilidade” parece não haver ainda um consenso quanto aos seus
sentidos e aplicação.
Nos quadros referentes a cada ano de escolaridade encontra-se um maior nível de
detalhamento, tanto dos conteúdos quanto das competências/habilidades a eles associadas
distribuídos de acordo com eixos conceituais norteadores que são os mesmos propostos desde
o primeiro até o quinto ano de escolaridade.
Buscar o espaço dedicado às narrativas no documento exigiu uma análise do conteúdo
e das propostas de cada componente curricular e em cada ano de escolaridade. Tendo em vista
79
que se a atividade narradora não é um fim em si mesma, que é mediadora de uma vasta gama
da ação humana, não caberia, portanto, delimitá-la em categorias isoladas como faixa etária ou
campos do conhecimento. Por essa leitura pude observar que, embora na maioria das vezes
não estejam explicitamente registradas, de certa forma as referências às narrativas aparecem
no texto de todos os componentes curriculares que fazem parte do trabalho dos anos iniciais.
Por certo a identificação dessas referências se faz, na maioria dos casos, por inferência
a partir de indícios presentes no texto, principalmente em matemática, ciências e estudos
sociais. Assim, por não estarem suficientemente detalhadas e aprofundadas, ou por se
encontrarem por demais diluídas em meio aos aspectos teórico-metodológicos dos
componentes curriculares, pode-se passar ao largo da importância de se prever no
planejamento o espaço/tempo para que alunos e professores possam exercer a transmissão de
suas experiências por meio das narrativas. Em outras palavras, não no documento um
registro explícito dessa importância ou uma orientação específica nesse sentido, o que se
são referências esparsas e indicações indiretas que nem de longe se comparam ao
detalhamento minucioso dedicado e a outros aspectos do currículo.
No caso de Língua Portuguesa, o documento ressalta as atividades discursivas como
predominantes no trabalho e, nessa perspectiva, propõe a “prática constante de escuta de
textos orais” e a “produção de textos orais e escritos”. Por meio dessas atividades pretende-se
criar oportunidades de análise e reflexão sobre “determinados aspectos, a expansão e a
construção de instrumentos”, visando a ampliação da competência discursiva dos alunos.
Embora repleto de imprecisões e carente de detalhamento, esse trecho dá sinais de que ouvir e
produzir textos orais nas salas de aula se destinam a um uso instrumental, ou seja, estão
voltados para o desenvolvimento de competências específicas do estudo da língua materna.
Não é possível precisar para que gêneros de textos orais se recomenda a “prática constante de
escuta”, podendo ou não as narrativas se incluírem nesse rol. É sabido que nas salas de aula se
há algo que não falta é a “produção de textos orais”, portanto seria oportuna uma atenção mais
cuidadosa a esse aspecto de modo a tornar essa proposta mais clara e menos passível de
equívocos, especialmente considerando que a linguagem oral é um dos eixos conceituais
norteadores do trabalho em Língua Portuguesa.
Nos quadros referentes a cada ano de escolaridade o ato de narrar se insere como uma
das competências relativas ao eixo da linguagem oral e está descrita da seguinte forma:
80
“Narrar fatos e vivências, considerando a temporalidade e a causalidade”. Nesse ponto, duas
questões, aparentemente disjuntas, mas não tanto, merecem atenção. Em primeiro lugar não
deixa de ser curioso o fato de aparecer somente a partir do segundo ano de escolaridade;
depois, não está suficientemente clara a alusão à temporalidade e à causalidade. O que se
depreende daí é que se espera dos alunos, a partir do segundo ano e até o final deste, portanto
aos 7/8 anos de idade, que sejam capazes de “manejar” a temporalidade e a causalidade ao
narrar “fatos e vivências”, ou seja, respeitando uma seqüência lógica e empregando recursos
coesivos de modo a não comprometer a coerência.
Descrito desta forma mais se aproxima da expectativa que se tem em relação ao texto
escrito e produzido por alguém que domina, pelo menos minimamente, a estrutura dessa
forma discursiva. Além do que, é preciso ser ter em conta que no discurso oral, concepção e
produção são praticamente simultâneas e evolui na presença do receptor, não se beneficiando,
assim, das correções, rasuras e revisões das quais a produção escrita pode lançar mão, como
bem define as palavras de Zumthor (2001, p. 165): “o texto oral não tem rascunho”. Sem
contar que, ao se realizar na presença do ouvinte, o corpo faz parte da performance tanto
quanto a voz e isto faz uma grande diferença se considerarmos o ouvinte como um parceiro a
buscar, para além da voz do falante, outros elementos para compor a coesão e a coerência do
texto compartilhado.
Nessa perspectiva seria o caso de se perguntar: de qual temporalidade e de qual
causalidade se fala ou se pretende alcançar? Ao que parece não se leva em conta que tais
aspectos assumem contornos e dimensões diversas no discurso oral e na escritura. Por certo
não se trata aqui de apregoar que na oralidade “tudo vale”, porém nesse trabalho todo cuidado
é pouco para não arriscar resvalar para a domesticação dos discursos, para o apagamento da
competência e habilidade de surpreender, de inaugurar sentidos que na oralidade tem lugar
privilegiado. Recorrendo mais uma vez a Zumthor:
Além dos objetos e dos sentidos aos quais ele se refere, o discurso vocal
remete àquilo que de inomeável. Essa palavra não é a simples
executora da língua, a qual ela jamais completa plenamente, a qual ela
viola, em toda a sua corporeidade, para nosso imprevisível prazer (2001,
p. 165).
81
em matemática, a ousadia da proposta presente na versão preliminar convive com a
timidez em fazer avançar o sentido do verbo contar para além do habitual quantificar e
acolher o narrar. É interessante observar como o texto do documento ensaia, mas não chega a
concretizar essa travessia, pelo menos não de forma explícita. Entretanto, na descrição dos
aspectos teórico-metodológicos algumas pistas anunciam que ali um lugar importante para
as narrativas que, se não se encontra realizado discursivamente, pelo menos insinua essa
concepção.
O documento propõe uma ruptura com as práticas baseadas na reprodução de fórmulas
prontas e na repetição de procedimentos, ressaltando a compreensão e outros aspectos que
uma após outra geração de estudantes aprendeu a considerar como adverso ao universo dos
números e do modo de pensar da matemática. “É preciso que ele [o aluno] se sinta capaz de
imaginar, criticar, criar, construir, dar contra-exemplos, conjecturar, errar e acertar”, diz o
texto.
Quanto à intervenção do professor, fundamentando-se nas contribuições da
etnomatemática, estimula o movimento deste em direção à compreensão dos processos de
pensamento dos alunos e ressalta a importância de se fazer da sala de aula um espaço de
expressão dos “diferentes modos de explicar, de entender e de atuar na realidade”. Na medida
em que eu conto, por exemplo, a minha maneira de resolver um problema e ouço do outro o
seu jeito de chegar a um determinado resultado, ou seja, quando organizo discursivamente tais
procedimentos, muitas e fundamentais operações mentais e relacionais estão em jogo. Então,
por que guardar as narrativas nas entrelinhas da matemática?
No caso de Ciências Naturais e Estudos Sociais a leitura da versão preliminar dos anos
iniciais não escapou ao “jogo de caça-palavras”.
algum tempo muitas pesquisas no campo da educação vêm se dedicando a
investigar a relação entre linguagem e os processos cognitivos e no âmbito do ensino de
ciências naturais, essa vertente vem contribuindo para a compreensão do processo de ensinar e
aprender como uma relação entre sujeitos. Nessa perspectiva, a construção do conhecimento é
mediada pela linguagem e, como apontam Mortimer e Machado (2001, p.109), “o discurso
produzido da interpretação das atividades é no mínimo tão importantes quanto as próprias
atividades realizadas pelos alunos”.
82
A proposta de Ciências Naturais dos anos iniciais, em consonância com essa
concepção, ressalta “a importância dos processos de comunicação na construção do
conhecimento escolar”, orientando o trabalho no sentido de tornar a sala de aula um espaço de
diálogo e de interação “entre os conhecimentos escolares e os saberes cotidianos”. Desse
modo, aos conteúdos, além dos conceitos, se inserem também, e no mesmo nível de
relevância, os procedimentos, valores e atitudes.
Cabe registrar que na Unidade São Cristóvão I todos os alunos, do primeiro ao quinto
ano, participam de atividades desenvolvidas no Laboratório de Ciências em dois tempos de
aula por semana, sob a orientação da professora do próprio laboratório e com o
acompanhamento da professora do Núcleo Comum que, em sala de aula conta com mais dois
tempos de aula dedicados às atividades de Ciências. Diante desse quadro e tendo em vista a
proposta de encaminhar o trabalho a partir de “situações em que os alunos possam dialogar
sobre práticas e teorias envolvidas na solução dos problemas”, é preciso que, na seleção dos
conteúdos, a quantidade não seja preponderante, sob o risco de se apagar as narrativas dos
alunos e professores ou dar a elas atenção somente no caso de sobrar tempo.
São esses os princípios que norteiam também o trabalho em Estudos Sociais. O texto
ressalta a relação dialógica na sala de aula como o meio de propiciar o “estabelecimento das
relações entre a vida cotidiana e a vida escolar, associando as experiências vividas pelo aluno
ao campo conceitual trabalhado na escola”, pretendendo que o trabalho seja desenvolvido com
a participação efetiva dos alunos, “buscando suas experiências anteriores”. Nesse ponto, sem
pretender estender a discussão para minúcias terminológicas, considero necessário cuidar mais
de perto da questão das experiências mencionada no texto.
Por certo orientada pela concepção benjaminiana de experiência, acredito que a
expressão “experiências anteriores” pode dar margens a equívocos que não raro rondam
nossas práticas, arriscando fazer ruir o princípio dialógico que perpassa, como visto, não a
proposta de Estudos Sociais como o documento em seu conjunto. Trata-se do risco de se
resvalar para uma concepção cujo propósito é o de conhecer os saberes dos alunos tendo como
meta a sua substituição pelas concepções da cultura científica. Se a experiência é algo que nos
toca tão profundamente que passa a nos constituir como sujeitos, não é possível considerá-la
83
“anterior”, mas em constante porvir pelo contato com outras experiências que a própria escola
deve ser capaz de propiciar.
No caso de Estudos Sociais, as narrativas, embora em nenhum momento referidas por
este termo, emergem com mais vigor das entrelinhas. O documento propõe textualmente
que os alunos possam ter na escola a oportunidade de conhecer “histórias de outros tempos”
como forma de compreender a si mesmo e a vida coletiva de que faz parte. As “histórias
individuais” são concebidas como integrantes “do que se denomina História Nacional e de
outros lugares”, o que necessariamente orienta o trabalho no sentido de tornar a sala de aula
um espaço onde as narrativas, dos alunos e das professoras, possam estar presentes e em
diálogo com a história oficial.
Por último, e não por acaso, abrem-se os portais da literatura. Não que esteja situada
nesse lugar no documento, não que me interesse supor ou propor uma hierarquização aos
saberes. É que aqui não procuro a agulha no palheiro. Se nas propostas dos demais
componentes curriculares foi preciso me dedicar ao citado jogo de caça-palavras, em
Literatura as narrativas aparecem textualmente registradas, inclusive como parte de um dos
eixos norteadores do trabalho. Mais fácil seria se essa ocorrência dissesse a mim, aliviada:
enfim, encontraste a chave, aqui estão as narrativas que tanto procuravas!
Mas, em se tratando de chaves, como esquecer seu duplo movimento de abrir e fechar,
de conceder e de negar?
Por falar em aberturas, é na proposta de Literatura que pela primeira vez encontro o
questionamento à fragmentação, à hierarquização à linearidade em nome da atenção ao que
pode ser ao mesmo tempo múltiplo e multicor, único é singular, mas nunca livre de tensão e
conflitos.
A proposta do trabalho em Literatura tem em vista “a leitura do texto literário como
forma de construção de sentidos”, considerando as múltiplas interpretações de que é passível a
narrativa ficcional. Prazer e fruição (BARTHES, 2002), relação estética e recriação, paixão e
fantasia são os ingredientes da prática de leitura que se quer experiência lúdica de criação. O
modo de fazer está descrito nas competências que se inserem e se desdobram nos seguintes
eixos norteadores:
84
Livro
Texto: narrativo, poético, dramático.
Segundo o documento, não uma distribuição rígida entre os cinco anos de
escolaridade dos conteúdos, competências e habilidades, ao contrário, estes perpassam o
trabalho em todos os anos, assumindo enfoques diferentes a partir de uma seleção textual,
visando a adequação às diferentes faixas etárias. Acerca das narrativas, assim se pronuncia o
texto:
A narrativa, através de seu enredo e de seus personagens, exerce grande
fascínio sobre as crianças, pois reflete seu mundo, seus problemas,
curiosidades e preocupações, permitindo estabelecer relações com
problemas da atualidade (Colégio Pedro II, 2008, mimeo).
O trabalho em Literatura se dedica ao texto impresso, à formação do leitor literário.
Assim, a narrativa a que se refere é aquela que, embora muitas vezes tenha sua origem na
tradição oral, é veiculada por meio do livro e assinada por um autor e, hoje, em grande parte
também por um ilustrador.
Percebe-se pela leitura do documento que nessa proposta uma preocupação e
compromisso em oferecer aos alunos o contato com a diversidade e qualidade do texto
literário e, por meio desse contato, propiciar uma intimidade com o objeto livro tanto entre os
alunos que iniciam seu percurso na aquisição da leitura e da escrita, quanto para aqueles que
são leitores mais experientes. Assim, desde o primeiro ano as crianças são convidadas
semanalmente a um mergulho nesse universo de múltiplas possibilidades de existência,
“reinventando para si mesmas a sua história naquele momento” (MACHADO, 2004, p. 28).
Ouvir muitas histórias, pegar, abraçar, folhear, sentir os cheiros e as texturas, construir
coisas com os livros. Se a dimensão mágica da linguagem é a matéria prima com que lida
cotidianamente a Literatura, não haverá de ser recorrente a pergunta: será que vai dar tempo?
Em Literatura todo o tempo do mundo pertence às narrativas, à poesia, às palavras brincadas.
Na leitura do documento não há como passar ao largo de uma cisão que salta aos olhos: de um
lado a Literatura com seus ingredientes apetitosos, de outro o Núcleo Comum com suas
85
obrigações inadiáveis. Pão e poesia. Precisamos ainda hoje aprender e ensinar essa velha
dicotomia?
Ler e refletir sobre as propostas desse documento me parece um exercício que não
acaba mais. Um baú meio cheio e meio vazio
32
. Meio cheio porque guarda o resultado de um
trabalho que de simples nada tem. Meio vazio porque espaço para novas vozes e novas
aquisições. De minha parte e do lugar de onde eu olho, quero guardar nesse baú duas
perguntas e um convite: O que fazer, e o que não fazer, com as narrativas dos alunos? E com
as dos professores, então? Vamos a elas...
Capítulo 4: A COLEÇÃO E SUAS HISTÓRIAS
muito o que ouvir nessa coleção de histórias. Muitas também são as possibilidades
de escuta, tantas quantas são cabíveis as escolhas de caminhos para se chegar até elas, aos
32
Expressão emprestada de Gilka Girardello.
86
História de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa
é, em todo o tempo ainda nascente. Ninguém segue uma única
vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens.
Mia Couto, Cada homem é uma raça
diálogos que mantém entre si, à rede de sentidos que encerram. Contudo, vertentes que
podem responder diretamente aos propósitos definidos para a pesquisa: qual o sentido que as
professoras atribuem ao ato de narrar e narrar-se? Como esses sentidos se relacionam ao
processo de ensinar e aprender em um contexto institucional como o do Colégio Pedro II?
Assim, fazer a opção de continuar seguindo por esse caminho, apesar da profusão de temas
revelados pelas entrevistas, significa, sim, deixar à margem algumas questões que mereceriam
espaço de reflexão e aprofundamento. Por outro lado, propicia uma atenção pormenorizada a
alguns aspectos que, ao mesmo tempo em que dão a conhecer os sujeitos da pesquisa como
autores criadores e recriadores de sentidos, se mostram como frutíferos eixos de análise.
Cabe reafirmar que o convite feito a cada uma das professoras foi o de buscar em sua
infância as relações que havia com a narrativa tanto em seu ambiente familiar como na escola,
isto é, que tipo de contato com o ato de narrar se estabeleceu em seu tempo de criança e, se
houve, quem foi nessa trajetória um narrador marcante. Nessas conversas cuidei de não
explicitar a priori uma concepção de narrativa, de modo a consentir a livre abordagem do
tema por parte das professoras, buscando fazer emergir os sentidos que cada uma atribui a
essa palavra, fundados que estão na singularidade de suas próprias experiências. Dando
continuidade à conversa, e com a intenção de inserir o tema das narrativas na esfera da prática
docente, pedi que lembrassem de que maneira ocorreu o ingresso na carreira do magistério,
como passaram a fazer parte do quadro de professores do Colégio Pedro II e também que
contassem de que formas e por quais motivações as narrativas se inserem em suas aulas.
Ao final das primeiras entrevistas, quando a tensão perante o gravador se arrefece,
algumas professoras espontaneamente expressaram como se sentiram ao lembrar e narrar
essas passagens de suas vidas. Desse modo, me ofereceram o ensejo de sugerir esse enfoque
nas entrevistas subseqüentes e acrescentar à pesquisa um eixo de análise que, muito embora
não estivesse previsto inicialmente, se constituiu, como muitas professoras revelaram
textualmente, em um importante espaço de reflexão sobre suas trajetórias e consequentemente
para os propósitos da investigação.
Atribuir novos significados ao vivido, iluminar as dobras do percurso pelo ato de
narrar e narrar-se, despojando do passado a idéia de perenidade e assim poder vislumbrar o
porvir como portas abertas a múltiplas potencialidades a serem inventadas. Pela narrativa
torna-se possível conjugar passado, presente e futuro em termos de intensidade e, por esse
87
exercício, subverter a ordem engendrada pela contemporaneidade que cotidianamente
conspira pelo apagamento das experiências tanto quanto nos impõe perceber o tempo, a
história e as histórias como categorias fixas e consumadas.
Devo dizer que desde o registro das narrativas, passando pela primeira transcrição e
suas necessárias revisões, foram inúmeros os retornos a cada uma delas em particular e
também ao seu conjunto. Esse movimento de distanciamento e aproximação, de atenção aos
pormenores e às totalidades, definiu diferentes modos de leitura, diferentes perspectivas que
revelaram tanto as marcas da singularidade em cada história quanto iluminaram as conexões e
sentidos entre elas compartilhados. Se por um lado cada leitura revelava idéias, lembranças
coletivas e temas recorrentes, por outro era a imagem de um mosaico de múltiplas formas e
coloridos que se apresentava; seja pelo conteúdo carregado das subjetividades das narradoras,
seja pelo cruzamento de muitos fios ou múltiplas vozes que se interpõem e se entrelaçam no
interior das narrativas, ou ainda pela maneira particular de cada uma narrar suas experiências.
O fato de as narrativas terem sido transmitidas oralmente contribui sobremaneira para
potencializar tal diversidade, tendo em vista que esse meio de expressão faculta ao narrador a
fragmentação e a incursão por temas paralelos e transversais, mesmo no caso de ter sido o
discurso previamente alinhavado. Segundo Ong (1998), tanto pela escrita quanto pela
oralidade, o pensamento opera na decomposição do continuum da experiência em segmentos
significativos, porém, ressalta o autor, a escrita tende a apurar a análise ao exigir mais das
palavras individualmente. Isto porque:
Para nos fazer entender sem gestos, sem expressão facial, sem entoação,
sem um ouvinte real, temos que prever cuidadosamente todos os
significados possíveis que uma afirmação possa ter para qualquer leitor
possível, em qualquer situação possível e temos que fazer com que nossa
linguagem funcione de modo a se tornar clara apenas por si, sem nenhum
contexto existencial (ONG, 1996, p. 120).
Na oralidade, a possibilidade de apoiar-se em um amplo conjunto de recursos extra-
verbais de que a escrita não dispõe, permite que o fluxo das palavras acompanhe o fluxo do
pensamento, num encadeamento que não obedece necessariamente a uma exatidão analítica.
88
Não se trata aqui, evidentemente, de propor uma hierarquia de valores entre a
oralidade e a escrita, ou entre a pesquisa que tem em uma ou outra forma de narrativa sua
fonte de dados, mas de ressaltar as peculiaridades com as quais o pesquisador precisa lidar
quando são as narrativas orais o corpus de análise de sua investigação. Nas entrevistas abertas,
ainda que previamente definidos os recortes a serem abordados pelos participantes, nãoum
controle da seqüência narrativa, ao contrário, o que se verifica é o seu livre fluxo pelos fios da
memória dos sujeitos-narradores. Assim sendo, a descontinuidade é a marca mais visível
dessas narrativas, tanto quanto o é da subjetividade humana. Entretanto, frente a frente a essa
descontinuidade, se coloca a linearidade em que se pauta a escrita da pesquisa, exigindo que o
pesquisador busque caminhos para enfrentar essa contradição, sem abdicar do registro das
narrativas no corpo da dissertação e sem deixar se perderem os objetivos da pesquisa ao sabor
dos diferentes temas contemplados, tanto no interior das narrativas individuais quanto na
visão panorâmica de seu conjunto.
Diante de tal desafio, encontro na imagem da coleção, sob a perspectiva benjaminiana,
um meio de sustentar e expressar as escolhas e itinerários que percorri em direção à
compreensão dos sentidos e conexões que emergem das narrativas, de onde partiu a definição
dos eixos orientadores da análise. São agrupamentos e reagrupamentos que nada têm de
aleatórios, ainda que não obedeçam fielmente à ordenação seqüencial ou cronológica das
entrevistas; são trechos das narrativas, aqui compreendidos como “recortes semânticos”
(SOUZA, 2006, p. 82), que se inserem na análise e possibilitam tornar visíveis o quanto se
entrecruzam as vidas narradas pelas professoras ao mesmo tempo em que expressam as
singularidades que marcam essas histórias. Como uma vitrine em movimento, e em
consonância com a própria estrutura movente das narrativas orais, na coleção o todo e as
partes se organizam e se desorganizam, se separam e se aglutinam pela costura da análise que,
como propõe Pérez (2003), se “constitui numa narrativa sobre a narrativa das professoras”
(p.59). Aqui também, ao desenvolver minhas análises, me coloco como ouvinte que narra
experiências comigo compartilhadas por um grupo de doze professoras; que transmite as
narrativas em busca de perceber, compreender e reconstruir significados a partir de um olhar
que registra o que vê do que o outro vê (AMORIM, 2006, b).
4.1- As Narradoras: com quem falo, de quem falo
89
Por escolhas diversas, às vezes nem tanto escolhas, por caminhos semelhantes, por
vezes nem tão suaves, vestidas de azul e branco se tornaram professoras. Chegadas de escolas
estaduais, municipais e particulares e mesmo de escola nenhuma, trazendo ou não experiência
docente, na Unidade São Cristóvão I, onde o Colégio Pedro II começou a aprender a ser
criança, elas cruzaram vida e trabalho, fizeram e fazem a história da instituição enquanto ali
também vão bordando suas próprias histórias cujo desenho, em fragmentos, solavancos e
surpresas, vêm mostrar por meio de suas narrativas. Contá-las ao outro que as ouve, registra e
transmite é também contar para si mesmas. Entre o lembrar e o esquecer, exercem o
movimento essencial da linguagem no qual “as `coisas` só estão presentes por que não estão aí
enquanto tais, mas ditas em sua ausência” (GAGNEBIN, 2004, p. 5).
Não pretendo fazer aqui uma “apresentação dos sujeitos da pesquisa”, recorrendo a
descrições sobre idade, formação, tempo de magistério e outras informações que, a título de
dar a conhecer os participantes, muitas vezes resultam em um quadro burocrático e apático,
algo semelhante às fotografias três por quatro dos documentos: imagem plana e rasa na qual
frequentemente custamos a nos reconhecer, a despeito de ali constar, preto no branco, os
dados que para os devidos fins atestam quem somos.
Reconheço o quanto a forma de participação, o conteúdo das entrevistas e os objetivos
da pesquisa me concedem licença de abrir mão desse recurso, fazendo a opção de confiar às
próprias narrativas o papel de dizer quem são as professoras que responderam sim ao convite
de se tornarem participantes deste trabalho. Uma escolha que, afinada aos caminhos teórico-
metodológicos trilhados, se deu sem maiores questionamentos. Entretanto, tudo muda de
figura quando se trata de revelar no texto da pesquisa os nomes das professoras.
Durante o trabalho de campo, na gravação das entrevistas e em sua transcrição, não
havia dúvidas quanto a esse ponto. Minha intenção de nomeá-las se colocava a par e passo
com o reconhecimento desses sujeitos como autores de suas narrativas e com a perspectiva de
90
Somos caçadores que a si mesmos se azagaiam.
No arremesso certeiro vai sempre um pouco de
quem dispara.
Mia Couto
que pudessem “se ler e se ver” (KRAMER, 2002) no texto. Mesmo acreditando que, por se
tratar de conteúdo biográfico, a opção pelo anonimato dos sujeitos entraria em contradição
com a natureza autoral desses textos; mesmo após consultá-las não ter recebido nenhuma
resposta contrária à divulgação de seus nomes, ao iniciar o processo de análise foi preciso
levar em conta o outro lado da moeda, não menos digno de atenção pelas implicações éticas
que se colocaram em jogo.
Pelo fato de ter sido a escola identificada e pelo teor crítico que em muitas narrativas
emergem em relação a aspectos metodológicos, administrativos e políticos da instituição,
considerei conveniente resguardar a identidade das professoras adotando nomes fictícios.
Desse modo, entendo ser possível preservar também a autonomia e alcance no processo de
análise quando não se corre o risco de precisar omitir passagens que porventura possam
colocá-las em situação delicada perante o contexto institucional.
Teresinha, Rosa, Beatriz, Ana, Lia, Yolanda, Joana, Bárbara, Cecília, Iracema,
Carolina, Madalena: são doze professoras. Doze mulheres. Tantas histórias para contar que
muitas vezes não couberam no gravador, não pelo comprido da conversa que a “memória”
do aparelho era incapaz de guardar de uma vez, mas também por tudo que esta outra
presença não sabe registrar, mas integram, tanto quanto a voz, a narrativa oral: os gestos, os
olhares, os signos rítmicos marcado pelos movimentos do corpo. Doze histórias singulares que
narradas reconstroem significados individuais e resgatam memórias coletivas.
4.2- Janelas e labirintos
Janelas que se abrem para paisagens internas e significativas, labirintos que conduzem
aos recantos iluminados pelas lembranças. Nas narrativas das professoras, ainda que em sua
maioria tenha trilhado a seqüência por mim sugerida, não houve predominância de uma
exposição cronológica de fatos e episódios em linha reta. Ao contrário, ao longo das
entrevistas foi comum a ocorrência de uma lembrança provocar outras, enovelando-se em
voltas, rupturas e recomeços, de maneira que, em certas passagens, ter sido difícil delimitar
com nitidez uma fronteira entre vida, trabalho, presente e passado. Por certo houve referências
a acontecimentos e datas, entretanto, assim como em relação aos lugares e pessoas, estes são
evocados como marcos nos quais se apóiam as lembranças: o ano em que se deu a aprovação
em concursos, a idade com que começaram a trabalhar, a casa da infância, o nascimento dos
91
filhos, as escolas nos bairros distantes em que iniciaram a carreira docente. Ilustrativo desse
aspecto é o trecho da narrativa de Teresinha, como que falando consigo mesma procura
resolver uma dúvida sobre o tempo de trabalho simultâneo no Pedro II e no município do Rio:
Eu me lembro que eu saia daqui [Unidade São Cristóvão I] e ia
para a estação da Leopoldina pra pegar o ônibus pra Campo
Grande. Eu era a primeira passageira em pé...
Como histórias que puxam histórias, por vezes esses deslocamentos inserem imagens,
episódios ou outras narrativas no curso e no ritmo do que se conta. Conjugando cesura e liame
e sem por em risco o fio da meada, vão trazendo para o interior do relato interpolações e
remanejamentos capazes de criar e recriar uma unidade viva e que “só podem ter eficácia e
cumprir sua função na ordem da composição quando trazidos pela voz e sublinhados ou
comentados pelo gesto” (ZUMTHOR, 2001, p. 163). São rupturas autorizadas na e pela
oralidade e, portanto pela presença, por engajar o ouvinte, pelo fio da escuta, na construção da
coerência e coesão do texto. Muitas são as passagens nas narrativas das professoras que
demarcam esses desdobramentos. Apartadas de seu contexto original, para que se façam
compreensíveis por meio da escrita, é necessário lançar mão de comentários ou explicações,
estes dispensáveis na situação de co-presença, como é possível observar nos trechos abaixo:
...os índios dizem que, quando chovendo muito e eles precisam
de um pouco de sol, eles pedem às crianças que, mesmo com chuva,
desenhem um Sol no chão e brinquem em volta, uma coisa assim...
o que meu irmão conseguiu coletar na Bahia era uma coisa
assim, que vem mais da corrente do indígena do que do primitivo
africano, e que dizia o seguinte: as crianças ficavam brincando e
cantando ali em volta do Sol e o Sol ficava com ciúmes: “Que
outro Sol, é esse, para quem as crianças estão cantando e
brincando?”, “Eu sou o Sol”, “vou resolver isso” , e
aparecia. E na hora dele aparecer eles desmanchavam e
continuavam brincando. (Rosa faz um desvio por esta história ao
contar como os provérbios e ditados populares fizeram parte de sua
infância)
92
... eu lembro que eu dormi em Mme Butterfly com cinco anos...
porque Mme Butterfly é enorme, é lindo mas é enorme, eu era
muito pequena. Mas a gente freqüentava, meu pai conheceu minha
mãe no Teatro Municipal, né... então eles tinham... contavam...
faziam questão de irno andar, toda vez que ia ao Teatro ia lá no
andar mostrar onde foi que eles se conheceram, como é que meu
pai fez a proposta à minha mãe, aquela coisa toda... (Beatriz
entremeia essa lembrança ao narrar as circunstâncias em que se deu
seu ingresso no Curso Normal).
São idéias e memórias que correm soltas em seus desvios, retornos e tempos que se
misturam. Permanentemente ameaçado pelo esquecimento, o fio narrativo é entrecortado por
lampejos do presente em busca de iluminar imagens, instantes e sentimentos submersos no
passado, evidenciando um dos aspectos que para Benjamin (1994) caracteriza a narrativa, em
contraposição à História, cuja marcha se dá, segundo o autor, “no interior de um tempo vazio
e homogêneo” (Id., p. 229). Ao percorrer essas narrativas, de ouvido e paralelamente pela
transcrição e sucessivas leituras, sobressai o fato de que assim como não se pautaram em um
desenrolar contínuo e linear, não se encarceraram em respostas lacônicas e exatas, o que
provavelmente poderia ter ocorrido caso a entrevista estivesse estruturada segundo o padrão
pergunta/resposta.
Se é insuficiente atribuir esse resultado unicamente à metodologia adotada, posto que o
próprio conteúdo autobiográfico seja pródigo em estimular tal fluxo narrativo, em grande
parte o situo em uma compreensão de entrevista a partir da qual procurei interferir
verbalmente somente em situações que reclamavam certo esclarecimento. Todavia, como
assinala Ferrarotti (1988), e assim como pude observar nesta pesquisa não cabe definir, muito
menos reivindicar em nome do rigor científico, a situação de entrevista como um monólogo
que se dê frente a um observador impassível. Se o sujeito que narra sua vida, ou aspectos dela,
não o faz dirigindo-se ao gravador, mas a um outro indivíduo que é o pesquisador, este último
se encontra em uma situação de interação, ou seja, não possibilidade de se fazer ausente
nessa relação que é de reciprocidade em sua essência.
De fato não foram raras as ocasiões em que, por me deixar levar ao sabor das
narrativas e por ser tocada por certas lembranças, de minha parte afloravam exclamações,
93
sorrisos e expressões, como enunciados plenos a compor a relação dialógica que ali se
estabeleceu. Por dialógica, entretanto, não significa afirmá-la simétrica e livre de tensões e
expectativas, quando o próprio contexto a situação de pesquisa necessariamente define
uma diferença de lugar enunciativo entre os interlocutores na qual estão envolvidos
preocupações, receios, conflitos, embora nem sempre articulados verbalmente.
4.2.1- Mas é da minha vida que você quer saber?
Nem todas fizeram explicitamente essa pergunta, mas de certo modo ela estava ali
permeando a conversa e, em alguns casos apareceu expressa ao final, quando pedi que as
professoras falassem sobre o ato mesmo de narrar alguns aspectos de suas trajetórias de vida.
Se a surpresa em relação ao conteúdo da entrevista foi uma resposta evidente e recorrente,
cabe explorar mais detidamente esse território em busca dos sentidos que não se mostram à
primeira vista.
Em primeiro plano sobressai o inesperado de fazer parte de uma pesquisa acadêmica
pelo convite de narrar alguns recortes de sua vida, quando a expectativa em relação a essa
participação habitualmente está voltada para temas específicos da ação pedagógica, embora a
investigação baseada em dados biográficos e centrada na narrativa não seja tempos uma
novidade, notadamente no âmbito da pesquisa em Educação. Entretanto, o empenho que farei
aqui será o de “escovar a contrapelo” (Benjamin, 1994) esse modo de lidar com o teor das
entrevistas que, como dito, foi demonstrado por grande parte das professoras. Para tanto penso
em outras perguntas que, enunciadas ou não pelas professoras, podem estar abrigadas no
interior daquela que intitula esta seção, propondo a partir delas orientar a reflexão. Minha
intenção, no entanto, não se encaminha para contemplar toda possibilidade de compreensão,
mas de trazer à cena os sentidos que as próprias narrativas trataram de instigar.
4.2.2- Qual é de fato o interesse do pesquisador quando busca conhecer determinadas
passagens de minha vida?
94
Sobre esse ponto me permito dar a conhecer uma das muitas oportunidades de reflexão
e reelaboração teórico-metodológicas que os encontros no campo proporcionaram ao percurso
desta pesquisa e, especificamente neste caso, se deu por meio de um daqueles desvios
inscritos nas narrativas, referidos e discutidos anteriormente. Trata-se de um trecho da
entrevista concedida pela professora Rosa. Cabe esclarecer que para concluir esta entrevista
foram necessários três encontros. A passagem destacada integra a narrativa feita na última
oportunidade onde foi possível perceber uma intensidade e atitude diferentes daquelas
demonstradas principalmente na primeira vez, tanto no que diz respeito tanto ao conteúdo
quanto aos aspectos extra-verbais como entonação e expressões faciais.
A professora falava com carinho e admiração acerca do quanto de sabedoria e
ensinamento havia em tudo o que dizia uma tia de presença marcante em sua infância e que,
segundo seu relato, a cada duas palavras ela solta três ditados. Ao citar o conhecido “não dar
ponto sem nó”, Rosa se dedica à análise de seu significado contando algumas boas histórias e
pelas tantas, inesperadamente, usa como exemplo uma capa de telefone celular que estava
sobre a mesa:
Sabe aquela coisa? Ah, vou jogar essa capinha de celular fora. Ah
então você pra mim? É o suficiente pra você desconfiar e não
dar... o quê que ela quer fazer com essa capinha de celular??? Deve
ser um lance que eu ainda não saquei... vai que tem alguma coisa
preciosa, você começa, vamos dizer assim, a pesquisar, o que
tem a capinha do celular, não sei quê, não sei quê, não sei quê... na
hora em que você diz: é que esse... gatinho (se refere ao desenho que
enfeita a capa de celular) ali, eu quero transformar em crochê filé
pra botar na colcha do meu sobrinho neto, você: “Ah, bom, então
tudo bem: TOMA.” Mas se eu não digo pra quê que é, o escondido,
né, o que nem todo mundo entende, o que nem todo mundo sabe, o
que é escondido é um grande... então, segura, não solta, né?
Não há pretensão de presumir pela fala da professora uma intenção deliberada em usar
o provérbio, assim como sua explicação e exemplo, como metáfora da situação de pesquisa e
da atitude dos sujeitos em relação aos propósitos da mesma. Porém, naquele dia voltei para
casa levando comigo uma experiência no pleno sentido benjaminiano. Por certo, a situação de
95
campo coloca o pesquisador, conforme salienta Amorim (2004), em uma posição de alerta na
qual tudo o que olha é a partir do ponto de vista de sua questão. Além do que, em uma
entrevista anterior a de Rosa, a professora Carolina havia pontuado sua expectativa quanto
ao compromisso ético do pesquisador em compartilhar com os sujeitos da pesquisa os
resultados do estudo:
Você está fazendo essa entrevista comigo agora e depois, será que
você vai ter oportunidade de dizer Carolina, olha, o meu
resultado foi esse e esse, o quê que você acha?” E eu acho que é
um pouco isso, falta essa troca, um ambiente onde as pesquisas que
eu sei que estão sendo realizadas nesse momento fossem abertas
para todos os professores. “Olha, eu pesquisei sobre isso, é a nossa
realidade”, entendeu? “Nós comprovamos que isso está
acontecendo, o que nós podemos fazer para que isso não aconteça
de novo, quais as melhorias que essa pesquisa pode trazer pro
contexto escolar”.
De duas maneiras diferentes as narrativas instauram a questão das relações que se
deseja ver estabelecidas na situação de pesquisa, apontando, ainda que indiretamente, uma
lacuna a ser preenchida pela construção de um vínculo de confiança e colaboração entre o
pesquisador e aqueles que se dispõem a participar de seu estudo. Esse vínculo, porém, não se
sustenta espontânea e unilateralmente, como é possível perceber na fala das professoras. Antes
pressupõe uma partilha recíproca, na qual cabe ao pesquisador não explicitar com clareza a
finalidade da investigação, mas o empenho em socializar o conhecimento que, afinal, se
produziu a partir do encontro com a palavra do outro.
Seguindo os passos de Walter Benjamin (1994), é preciso levar em conta a dimensão
utilitária que na essência da verdadeira narrativa. Ainda que muitas vezes esse senso
prático não se encontre em destaque, “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (Id., p.
200), o que não significa estar pronto a fornecer respostas categóricas a perguntas precisas,
mas inspirar a continuação de uma história, seja por meio de um ensinamento moral, um
provérbio ou uma sugestão de ordem prática.
96
A continuação da história é possível pelo que nela de inacabamento e pelo
encontro com a incompletude de cada sujeito que a recebe e se vale do conselho segundo suas
urgências, suas lacunas, suas procuras. A “continuação dessa história” inspirada pelas palavras
de Rosa se concretizou em maior empenho de colocar na roda, à disposição das professoras,
os pontos e também os nós de que me vali para compor o desenho de um trabalho cujo
prosseguimento dependia sobretudo de firmar ali um vínculo de confiança. O “conselho”
guardado nessa narrativa adverte que este vínculo não se faz espontaneamente, antes é fruto
amadurecido pelo desejo de acolher e compreender aquilo que os sujeitos oferecem por meio
de suas narrativas, assim como estas se oferecem como locus dessa revelação. Por meio da
narrativa, então, os sujeitos participantes refletem, atribuem sentidos e contribuem para o
próprio processo de pesquisa.
4.2.3- Quem liga pra isso?
Especialmente no momento do convite, a surpresa se traduziu em perguntas ou
afirmações que remetiam à simplicidade de uma história que, por não conter fatos e
acontecimentos grandiosos ou impactantes, não seria merecedora de atenção. Não é de se
estranhar esse sentimento. Aí está o discurso histórico ocupado em lembrar e por em relevo os
grandes feitos, desprezando o anônimo, aqueles que não deixam rastros, como sobras
destituídas de significado. Foi interessante, porém, presenciar a transformação desse
descrédito para com a própria história na satisfação e emoção de narrá-la, tanto pela
possibilidade de revisitar as experiências passadas com os olhos do presente, quanto pela
oportunidade de encontrar tempo e espaço de escuta, conforme evidenciam os registros
abaixo:
Ana:
É bom, é muito bom, é bom voltar assim ao passado, essa memória
é bem legal, é uma coisa que eu faço sempre comigo mesma,
sempre fico lembrando de como eu cheguei até aqui, sempre fico
vendo, é... nossa, o que eu sou hoje, o que aconteceu no passado
pras coisas se desenrolarem e chegarem ao ponto que estão. Mas
eu fiquei feliz em, em... fico com um sentimento de felicidade por
97
estar sendo ouvida, porque... é engraçado, né, não é difícil pra mim
falar, acho que não é difícil pra muitas pessoas, mas ouvir é difícil,
encontrar quem te ouça é muito difícil... é muito difícil. Quem vai
se interessar pela história de como... então, é um sentimento de
felicidade, sabe, de estar... com uma coisa tão simples... o que eu
estou falando aqui é tudo muito simples, pra você é tudo muito
simples. O que eu estou te contando, pra mim isso é... um ato tão
simples mas que está sendo levado tão a sério, né? Porque você
está dando uma importância a isso, você está ouvindo, então o
sentimento que eu tenho é esse.
Lia:
...então foi com muito prazer que eu fiz isso [dar a entrevista] como
também a certeza de que eu possa estar contribuindo pro seu estudo,
o contar a minha vida cheia de emoção, porque eu falei isso e me
emocionei lembrando das coisas. Mesmo assim eu não penso, eu não
pensei, eu nem sabia do que se tratava o teu tema e veio assim a
imagem do meu pai, a minha imagem pequena no colégio, a imagem
que foi crescendo e no que isso tudo virou hoje em dia na pessoa que
eu sou hoje, foi muita emoção...
Iracema:
Eu me senti assim muito à vontade. A princípio eu tava assim meio...
não sei até onde eu posso ir, não sei até onde eu posso falar, não sei
se é isso que ela quer ouvir... mas foi muito legal.
Beatriz:
Eu acho que a coisa da memória, aquilo que eu te falei naquele dia,
hoje eu nem falei nisso, mas naquele dia quando eu tive com ela
sozinha, eu contei da escola que eu trabalhei antes de vir pra cá e eu
mesma não tinha noção de como aquela escola tinha sido tão
importante pra mim... foi com o discurso, na hora que você
organiza, na hora que você organiza a lembrança... porque você
98
conta pedaços, né... eu conversando com meus filhos em casa, eles
costumam dizer assim... a gente senta pra conversar na hora do
almoço... aí eu solto uma: “Porque quando eu trabalhava lá...”, aí o
M. diz assim: “Conhecendo minha mãe parte 5... (risos nossos)...
quanto mais tem pra aparecer que a gente não sabe da sua vida?”,
né? Porque você não conta... você não senta perto de filho e começa
a contar a história...
Yolanda:
Eu adoro falar sobre mim, eu sou leonina! (risos nossos). Falar
sobre mim é a melhor coisa. Eu brilho, meus olhos brilham. Se o
gravador pudesse registrar veria que meus olhos estão brilhando
porque eu adoro... eu adoro... essa parte da minha vida, digamos
assim, eu acho que constituiu a minha personalidade.
Joana:
A gente parar... e hoje a gente corre tanto, nossa vida é uma
correria, uma loucura. A gente sempre ligado, assim antenado em
tantas coisas que a gente tem pra fazer e chega numa tarde como
essa de quinta-feira às quatro horas da tarde, e a gente parar pra
contar da nossa vida desde de trás, traz assim um sossego, uma
calma... relaxa... uma tranqüilidade... é muito gostoso, é muito bom.
Carolina
Olha, quem conta um conto aumenta um ponto... eu acho que eu
contando a minha experiência eu me sinto parte do processo... de
educação nesse país, eu me sinto parte integrante, me sinto
realizada naquilo que faço, mesmo não de forma plena, com
certeza existe muitas coisas que eu preciso alcançar e me
impulsiona a continuar lutando por uma educação de qualidade
nesse país e eu vou ter que ralar muito, passar em concurso,
provavelmente eu quero voltar pro meu Estado porque eu penso
muito em... lá... até Valéria, em tentar fazer algumas coisas que de
repente eu não fiz por não saber, e eu me sinto assim um ser
99
integrante dessa grande luta pela educação nesse país... é isso,
contar essa história é isso.
Teresinha
Muito gostoso. Eu estou me sentindo bem. Estou me sentindo
honesta. Honesta que eu digo é assim, a simplicidade, a
espontaneidade, o que estou fazendo é verdade. Não inventei nada.
Fui franca, fui honesta, gostei, estou à vontade, estou aliviada de
ter (...) satisfeita (...) aliviada de ter cumprido o que você me pediu,
mas satisfeita de achar, de achar, que eu possa ter colaborado,
contribuído para o teu trabalho. o fato de eu achar que pode eu
estou satisfeita, pode até não servir, mas a sensação que eu
tenho é essa. Eu quero outras, não terão outras por aí não?
Iracema
É sempre bom... eu gostei... eu tava falando... essa troca no
individual eu e você... acho que assim (as três juntas) foi muito
mais rico porque a história de vida assim do outro, foi muito legal.
Em alguns momentos eu me prendo... por um lado é bom, por um
lado tem muitas mágoas, eu vou relembrando aquilo... que dói...
assim, muita coisa que não pode ser dita até por questão de tempo
e até não teria muito a ver aqui com o assunto... mas você vai
relembrando não só de coisas de que você falou, mas de coisas...
Todos os registros destacados acima se referem ao final das entrevistas quando as
professoras relataram o sentimento de se fazerem narradoras de si. Brilho nos olhos, emoção,
auto-valorização, compreensão de como o discurso vai reconstituindo e organizando a
memória, satisfação de encontrar tempo para voltar no tempo em meio à vida corrida de tantos
afazeres; a percepção de que mesmo aquilo que não foi dito se fez presente na rememoração.
São impressões que me consentem e encorajam a abrir agora a coleção de histórias usando a
chave da memória. Tomando-a como prática social, cuja expressão fundamental segundo Le
Goff (2003), é o comportamento narrativo, a ação de lembrar como lugar de, reinterpretando-
os, romper os limites entre presente e passado e abrir a possibilidade de pensar o futuro como
algo a ser construído, desobrigado do irremediável.
100
4.3- Narrar, rememorar, presentear
Presentear é oferecer a alguém ou a si mesmo — por que não? — algo significativo, se
fazer presente por meio daquilo que é oferecido. Nesta pesquisa, de diferentes maneiras, esse
sentido se revela nas falas das professoras quando declaram o quanto a narrativa de si
proporcionou um encontro com lembranças muito guardadas, assim como se manifesta na
satisfação de dar a sua contribuição para a investigação. Porém, me interessa estender as
margens desse sentido como forma de contemplar e dar nitidez à concepção de memória que
norteia a análise desses textos. Para tanto, retorno a uma fala da professora Beatriz: quanto
mais tem pra aparecer que a gente não sabe da nossa vida? Ainda que pronunciada de forma
interrogativa, é possível nela inferir o reconhecimento da imprevisibilidade e inacabamento
que acompanham o ato de rememorar e o quanto este está intrinsecamente relacionado ao ato
de narrar.
Memória e narrativa caminham de mãos dadas na pergunta de Beatriz. Presentear,
então, pode ser também trazer à superfície, reinaugurando na e pela narrativa, algo que um dia
foi vivido e que até então se encontrava ausente. Assim, esse fazer presente, fazer aparecer
nas palavras de Beatriz, não é um movimento de mera reprodução de fatos consumados, ou
celebração de acontecimentos idos, mas surpreende justamente pelo fato de instaurar uma
nova maneira de percebê-los.
Gagnebin (2006, p. 54) evoca a “exigência de memória” que perpassa diversos escritos
de Walter Benjamin, ressaltando o imperativo de se considerar as dificuldades que recaem
sobre a possibilidade da narração, da experiência compartilhada, do passar a lembrança
adiante. Embora fragmentado, no comentário que se segue à pergunta, Beatriz toca esse
ponto, se referindo às situações em que conta, sempre por partes, aos filhos algumas
passagens de sua vida: Porque você não conta... você não senta perto de filho e começa a
101
Agora, que desembrulho minhas lembranças eu
aprendo meus muitos idiomas. Nem assim me
entendo. Porque enquanto me descubro, eu mesmo
me anoiteço, fosse haver coisas visíveis em plena
cegueira.
Mia Couto
contar a história. Assim, ao mesmo tempo em que reconhece que quanto mais se conta mais
se descobre o que contar, ela observa não ser freqüente encontrar espaço e tempo de se
dedicar, no dia-a-dia, a esse tipo de narrativa e quando o faz é de maneira entrecortada ou
interrompida. Por outra via, a fala de Ana também remete a essa mesma questão:
...é engraçado, né, não é difícil pra mim falar, acho que não é
difícil pra muitas pessoas, mas ouvir é difícil, encontrar quem te
ouça é muito difícil... é muito difícil.
Aqui a referência não se faz à dificuldade pessoal em narrar, mas à escassez de
ouvintes dispostos e interessados em testemunhar e transmitir a narrativa. Em um trecho
anterior a professora fala sobre o exercício de lembrar que habitualmente faz “consigo
mesma”, mas estabelece uma distinção, atribui um valor diferente, quando essas lembranças
são ouvidas, quando são alvo de interesse do outro que se dispõe a testemunhá-la.
Convém reafirmar que os objetivos deste trabalho não se pautam pela coleta de
informações exatas, isto é, não interessam a precisão ou fatos verificáveis, antes importa
abordar as narrativas dando atenção àquilo que as professoras elegem narrar, a maneira como
percebem os fatos destacados e o ato de narrar em si. Por essa razão cabe recorrer a Benjamin
(1994) em suas teses “Sobre o conceito de história”, por concorrer em ajudar a demarcar o
tratamento dispensado a essas narrativas e por estar diretamente associado ao olhar sobre a
memória que aqui procuro explicitar:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de
fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo (BENJAMIN, 1994, p. 224).
Por essa declaração o autor critica e qualifica como impossível a busca da história, por
ele nomeada de burguesa e historicista, de descrever o passado esmiuçando-o do modo mais
exato possível. Se nos é dado articular o passado no lugar de descrevê-lo tal como ocorreu, a
rememoração, que aqui interessa em sua conexão com a narrativa, se concretiza não na
repetição, nas lembranças reconstituídas e recitadas, mas se faz e se diz pela abertura aos
hiatos, aos fragmentos, à incompletude. Rememorar significa refazer, reconstruir o passado a
partir das imagens, idéias, representações e juízos que se tem à disposição no momento do
102
lembrar, o que por si só, afasta a possibilidade de percebê-lo tal qual ocorreu, como assinala
Bosi (1998, p. 55): “O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade
entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista”.
Nesta reflexão cabe considerar as contribuições que os estudos de Maurice Halbwachs
(2004) trouxeram para a compreensão do caráter social da memória. Na visão do autor,
mesmo em situações em que apenas o indivíduo esteve envolvido, em acontecimentos e fatos
dos quais foi a única testemunha, as lembranças permanecem coletivas porque, “em realidade,
nunca estamos sós (Op.cit, p. 30). Esse olhar revela a mediação dos grupos na construção da
memória individual, tendo em vista que idéias e modos de pensar são constituídos a partir das
relações que se estabelece com os grupos a que pertencemos ou nos quais transitamos ao
longo da vida. Assim, nossas lembranças se compõem pelo encontro mais ou menos intenso
que se dá em meio às diversas memórias daqueles que nos cercam, a “comunidade afetiva” de
que fala Halbwachs.
Lembrar e esquecer são movimentos que não se limitam ao campo das
individualidades, antes alcançam a memória coletiva quando nesta se focalizam as lutas
sociais pelo poder. O poder de determinar que fatos, datas e acontecimentos devem ser
evocados e quais outros devem ser encobertos pelo véu do esquecimento; que narrativas são
merecedoras de registro e atenção e quais são as silenciadas, apagadas, desmerecidas.
4.4- Um tempo para lembrar: o vivido e o narrado
Quando pensei em pedir às professoras que falassem sobre suas relações com as
narrativas em seu tempo de criança, não avistava a gama de riqueza e diversidade de sentidos
que o tema poderia suscitar. A opção de não delimitar um conceito de narrativa no momento
das entrevistas se mostrou fértil de resultados no sentido de abrir espaço na conversa para a
103
... quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma
combinatória de experiências, de informações, de leituras,
de imaginações?
Ítalo Calvino
inclusão de diferentes e imprevisíveis abordagens por parte das professoras, mas não só. De
mão dupla e de cruzamentos se desenhou a estrada. Esses encontros me levaram a perceber,
em cada oportunidade com mais clareza, as múltiplas possibilidades que podem caber no baú
das narrativas, como se me dissessem por trás das palavras: narrativa é isto: você abre a
tampa do baú e não sabe o que vai encontrar.
E assim foi. Ao visitar outras regiões da palavra pela palavra das professoras, pude ver
se desdobrar o conceito que trazia profundamente marcado por minhas próprias relações com
o ato de narrar na infância, ampliando o horizonte de compreensão cada vez que acrescentava
uma nova história à coleção. Essas histórias me contaram muito mais do que seu conteúdo,
muito além do narrado em si. Me disseram da liberdade narrativa onde é possível a
convivência das mais variadas e imprevisíveis experiências, pois, como diz Calvino (2000, p.
138), “cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma
amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as
maneiras possíveis”.
Como no pensamento benjaminiano, aqui narrativas e coleção se articulam pelo tanto
que ambas são passíveis de serem remexidas e reordenadas. Seguindo esse princípio, escolho
e encontro uma ordem a cada passo. Aqui as narrativas serão apresentadas enquanto são
também apresentadas suas autoras, a partir das relações que elas estabeleceram com as
narrativas desde a infância e ao longo da vida. À multiplicidade de que antes falei em
companhia de Calvino (2000), acrescenta-se os mais variados modos de narrar que, embora as
regras da escrita teimem em apagar, acredito ser possível transmitir.
Cecília
Nascida em uma família de imigrantes portugueses, pai e mãe pequenos comerciantes
no município de São Gonçalo quitandeiros, como a professora não abre mão de nomear
Cecília passou a infância em meio às cartas que chegavam de Portugal e aquelas que levavam
para as notícias da vida que corria no Brasil. Essas cartas do tamanho de um bonde, eram
motivo de alegria para a família e um modo de dar a conhecer aos nascidos no Brasil a vida e
os costumes da terra distante, assim como representavam um meio de reviver suas raízes aos
que deixaram para traz:
104
[...] na terrinha tudo que era de mais sagrado, precioso, os
tesouros, não em termos materiais, mas afetivos. Deixou a família,
deixou aquele ambiente, aquela coisa, deixou uma saudade imensa,
deixou um “se”, se eu estivesse lá seria diferente, se, se, se, SE, né. De
repente se ele tivesse ficado lá, de repente nada daquilo tivesse
acontecido tão bem, mas foi muito marcado então por essas
narrativas: como era lá, pelas cartas que a gente recebia, então cada
carta do tamanho de um bonde, três, quatro folhas, do tempo em que
se escrevia cartas porque hoje ninguém mais escreve carta, e eram
cartas longas, cartas que iam que vinham, que eram recebidas com a
maior alegria, que eram lidas para todo mundo: senta aqui e escuta...
daqui a pouco chegava outro e: senta aqui e escuta, para mim,
minha avó que recebia as cartas, ela não era... não sabia ler nem
escrever, então ela dependia sempre de alguém e muitas vezes eu ia ter
que ler a carta para ela, reler a carta e tal.
Senta aqui e escuta. Por esse convite se fazia, em voz alta, a leitura das cartas que
chegavam de Portugal e se compartilhava os tesouros de afetos que de impressos no papel
passavam ao grupo familiar pela voz de quem conhecia os segredos da escrita. A avó que as
recebia não sabia ler nem escrever e, assim, uma outra senha para iniciar esses momentos de
ouvir e lembrar era, não um convite, mas um pedido: lê pra mim?
Cecília não nega que esses momentos eram também de chateação, quando precisava
repetir a leitura de uma mesma carta inúmeras vezes, tanto para a avó em particular quanto na
presença das visitas que chegavam, e não das cartas recentes. As antigas muitas vezes
voltavam à roda:
[...] às vezes eu tinha que reler a carta várias vezes, então era um saco
mesmo, leu uma vez acabou, acabou. Mas pra minha avó tinha que
reler, lembrar e tal. “Ah, essa carta aqui do ano passado que eu
quero ver o que ela escreveu mesmo, entender”... e pra mim aquilo era
chato... hoje eu acho que isso tem um valor assim incrível porque era
105
entender a escrita e a leitura como um espaço afetivo, de relação
afetiva com aquilo tudo, que envolvia todo um carinho, um laço.
Com os olhos de hoje Cecília relê as cartas mais uma vez. O que era tédio para a
menina que não compreendia os intermináveis retornos aos textos por demais conhecidos, se
traduz no momento de lembrar na compreensão de que suas primeiras experiências de leitora
se deram pela via do afeto e dos vínculos familiares que as cartas ajudavam a sustentar.
O convívio com as histórias escritas nos livros se deu após o ingresso na vida escolar e
principalmente mais tarde, na adolescência, quando a mãe começou a comprá-los, a
investir, nas palavras de Cecília. Até a chegada dos livros, tecendo essa rede de memória e
oralidade, além do lugar marcante das cartas, as narrativas se faziam presentes em sua casa
por meio da voz de suas avós. Eram as histórias da tradição popular portuguesa que se
mesclavam às lembranças das práticas cotidianas da comunidade de origem para a qual não
mais voltariam:
[...] enquanto criança a gente não tinha muito a coisa do livro escrito
porque a gente ouvia mais as histórias das minhas duas avós... das
festas, das lendas, assim, narrativas orais no sentido popular mesmo,
os causos que contavam, das aparições no meio do mato que não era o
saci daqui - hoje eu faço a mediação - chamava não sei o quê, era
muito marcante. Tudo, os costumes, como se fazia o pão, como é que
se colhia a azeitona, a cereja... O quê que se cantava nessas ocasiões,
porque a colheita também era um momento festivo...
Da avó paterna ouvia as fórmulas fundadas na oralidade, cuja construção fixa e
rítmica, fundamental como apoio à memorização, eram o único recurso de que se valia para
guardar e transmitir as expressões aprendidas nos tempos de Portugal:
... a minha avó, essa que é a mãe do meu pai, ela gostava muito de...
como ela não sabia escrever, então ela memorizava, sempre
memorizou coisas inteiras, então, quadrinhas, versinhos, poeminhas, e
ela vivia recitando aquelas coisas, nhem nhem nhem, muitos até de
caráter religioso também, então, às vezes era uma quadrinha pra falar
106
de Santo Antônio, às vezes enchia o saco também, vamos falar sério,
mas era assim.
Para quem, como Cecília, contava com as ferramentas e o modo de pensar que o
contato com a escrita instaura, não é de se estranhar o aborrecimento que as infindáveis
repetições causavam, porém, a própria menção a esse sentimento contribui em muito para que
o ouvinte (leitor) de sua narrativa possa captar, ou imaginar, o contexto essencialmente oral
em que conviveu nos seus tempos de infância. No momento em que narra, pelas nuances de
sua voz, pelo ritmo, por suas expressões, não se percebe um tom depreciativo quando se refere
ao nhem nhem nhem das recitações de sua avó, ao contrário, um reconhecimento do valor
dessa experiência que Cecília evidencia também e textualmente em outros trechos de sua
narrativa:
... hoje eu tenho uma paciência incrível pra ouvir isso [as
histórias contadas pelo pai], mesmo que seja uma história repetida
trezentas e cinqüenta vezes, mas eu gosto de ouvir, eu
pergunto, participo, tento valorizar, pros meus sobrinhos, meu
filho, os menores, mostrando: olha só... fazendo inclusive relações,
buscando assim as coisas, valorizando isso porque eu sei que
depois que minha avó morreu, com todo o peso que era ali uma
pessoa idosa, chateando na adolescência, minha avó era uma
pessoa difícil mesmo de se relacionar, depois que ela morreu,
primeiro a avó paterna, depois a avó materna, eu vi o quanto eu
tinha perdido e assim uma pena de não ter registrado, de não ter
filmado, até porque não tinha tantos recursos quanto hoje... hoje é
fácil grava e filmar... porque tinha um valor assim que hoje fica
na memória...
É interessante notar que, mesmo assumindo perante os mais novos uma atitude e
disposição de valorizar os narradores a fim de dar continuidade às narrativas familiares,
Cecília lamenta não tê-los registrado em arquivos externos como filmes e gravação de áudio.
Estar guardado só na memória parece insuficiente e arriscado de perecer.
107
Ainda que tal acervo tenha chegado até ela exclusivamente por meio da voz, da
presença, pelo fluxo da memória e, ainda, de não ter havido nessa longa cadeia de
transmissão, cuja origem se perde no tempo e no espaço, nenhum arquivo de imagem ou de
som, ela é hoje tão capaz de narrá-lo quanto teme a possibilidade de tudo se perder. É de se
notar a presença marcante das duas avós como depositárias das narrativas que povoaram a sua
infância e que Cecília não deseja, como se aplica em ver seguir adiante na memória das
novas gerações. Exemplo desse propósito são os eventos promovidos pela família com a ativa
participação de Cecília que assim me contou por e-mail enviado em resposta a algumas
dúvidas minhas na transcrição de sua entrevista:
Meu avô materno (Benjamin) teve algumas idas e vindas, mas a
chegada definitiva [ao Brasil] foi 50 anos - 14/01/1957 - data
comemorada em janeiro último pela família com saudosa festa,
(organizada pela minha mãe) com direito a petiscos, contos, causos
e versos lusitanos (Pessoa e Camões apareceram, claro...). Mamãe
chegou ao Brasil com 12 anos. Tudo era uma grande novidade.
Eles moravam no interior de Portugal ( na região de Aveiro) e
vieram morar numa cidade grande, que era o Rio naquela
época. Mas note-se que, na região em que eles viviam, havia
algumas fábricas e mini-hidrelétricas, para a produção de energia.
Meu avô trabalhou na fábrica de celulose e teve participação em
uma greve na década de 30, episódio que deve ter influenciado sua
decisão de migrar para o Brasil. A título de curiosidade, saiba que
tal episódio - A greve - será encenado pela família no Natal, uma
"brincadeira bastante séria", a qual a tios, tias, sobrinhos e
sobrinhas têm se dedicado nos últimos tempos. Meus avós - tanto
paternos, quanto maternos - já faleceram. A família de meu pai,
veio vindo aos poucos. Primeiro meu avô, depois um tio, depois
outro tio, depois uma tia que casou e veio com o marido fazer a
vida. Por último, vovó Antônia e papai (pelo menos este não queria
muito vir. Veio pela pressão da família...). Não sei direito a data,
mas, pelos meus cálculos, também foi na década de 50. Papai
era homem feito, com certeza tinha mais de vinte anos de idade.
Também morava em área rural, na região da Beira Alta - Serra da
108
Estrela, onde além das plantações de subsistência e de uvas,
criava-se muitas cabras.
Pelas festas e comemorações Cecília e sua família recordam a trajetória daqueles que,
como tantos emigrantes oriundos das regiões rurais de Portugal, nesse período se
estabeleceram no Rio de Janeiro e aqui se dedicaram principalmente às atividades do
comércio e da indústria. Famílias inteiras partiram para o Brasil em busca de condições
melhores do que aquelas que viviam em Portugal, à época um país controlado por uma
ditadura, cujas aldeias sofriam com a pobreza e os meios urbanos pouco desenvolvidos não
ofereciam alternativas mais promissoras. Reviver os motivos da partida, o contexto da
chegada e as estratégias sociais e culturais que propiciaram a permanência no Brasil é uma
forma de luta contra o esquecimento e faz nascer na família de Cecília novas formas de narrar.
Tão novas quanto embebidas nos costumes, saberes e tradições com que conviveu em sua
infância e que hoje deseja ver presente na infância de seu filho e sobrinhos.
Lembrar e esquecer se conjugam no mesmo trançado que constitui o sujeito e a própria
narrativa, como bem aponta Gagnebin, referindo-se ao retorno repleto de obstáculos de
Ulisses a Ítaca na Odisséia:
Este desvio pelas ilhas de uma narração originária, paradigmática de toda
nossa tradição narrativa, deveria nos indicar que, em redor do continente
da memória, as ilhas e as penínsulas do esquecimento sempre existiram,
talvez até mesmo essa terra tão firme do rememorado pudesse ser uma
terra insular de amplas dimensões (GAGNEBIN, 2004., p. 4).
A autora instiga a pensar a narrativa não pelo movimento de reunião e retomada,
mas também pelo seu avesso: o esquecimento. Mas não apenas o que se traduz em lapso de
memória, também aquele que, por recortes, renúncias e apagamentos, próprios do ato de
rememorar, “opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no
âmago da narração” (Id., p. 3). Assim, por mais que a literatura e a história se dediquem em
lembrar as histórias que a humanidade conta a si mesma, e diga-se os esforços individuais ou
coletivos em busca da garantia dos registros fiéis, a narrativa será sempre atravessada pelo
esquecimento.
109
Lembrar e esquecer como fios complementares e opostos que em seus
entrecruzamentos compõem a textura da narrativa e como tal atravessam a narrativa de
Cecília. Pela rememoração ela reconstrói e reconhece o quanto de afeto e estreitamento dos
laços familiares as narrativas representaram em seu tempo de menina e se dedica à criação de
novas formas de transmissão, se não da exatidão do conteúdo narrado, mas dos sentidos que
essa experiência propiciou.
* * *
Ana
Quando Ana passou a falar de sua infância, logo após contar sua trajetória de
professora, seu rosto se iluminou, parecia mais próxima e mais descontraída quando tomou
outra posição na cadeira e começou:
A prova de que ainda existe uma menina dentro de mim é que se
você olhar na minha mesa de cabeceira hoje, tem um livro do João
Pinheiro Neto que eu estou lendo, que eu estou amando, e tem um
gibi da turma da Mônica, porque eu não largo os gibis.
Para falar da ligação que mantém desde menina, e ainda hoje, com as histórias em
quadrinhos, Ana se reporta à imagem, quase palpável, das manhãs de sábado de sua infância:
Uma coisa que me prendia muito eram os gibis porque meu pai
comprava muito gibi, era praticamente toda semana aquela coisa
do sábado o pai está em casa e ir comprar o pão com o jornal e
com o gibi, então ele fazia isso muito pra mim e pro meu irmão,
então eu tinha... eu lia muito gibi da turma da Mônica, meu
personagem preferido era o Chico Bento, ainda é... e o do meu
irmão era o Tio Patinhas, então cada um... a revista do Chico
Bento pra Ana, a revista do Tio Patinhas pra ele...
110
Hoje é Ana quem vai à banca, mas continua e atualiza o gesto de seu pai quando leva
para casa, junto com o jornal o gibi do Maurício de Souza que em sua cabeceira faz
companhia aos livros.
Refere-se aos pais como leitores assíduos, a mãe devoradora de livros e o pai que lia o
tempo inteiro, da casa da infância se lembra da bibliotecazinha particular. Ainda que com
freqüência presenciasse atos de leitura em sua casa e, nesse ambiente, houvesse um lugar de
destaque para os livros, além da presença constante das revistas em quadrinhos, Ana assim
avalia a participação dos pais em sua formação de leitora:
Quando eu era criança, eu acho que a minha família não tinha
muito conhecimento a respeito do que era incentivar uma boa
leitura, orientar, acho que não tinha muito...
Seria difícil tentar inferir o que Ana considera uma boa leitura e, ainda, o que ela
chama de uma orientação adequada, entretanto sua narrativa revela aspectos interessantes da
dinâmica familiar em relação às escolhas bem definidas que os pais faziam para “distribuição”
dos livros entre o casal de filhos.
... então eles liam muito, que, o que eles traziam pra gente eram
os livros, aqueles tradicionais de contos de fadas... mais pra mim...
eu tenho um irmão. Pro meu irmão eles levavam mais... meu irmão
sempre se interessou por livros científicos... revistas de
curiosidades, que falavam sobre o mundo animal, essas coisas,
sempre foi louco por isso.
Além de uma demarcação nítida entre os livros devorados pelos adultos e aqueles
oferecidos às crianças, sobressai na fala de Ana uma diferenciação entre o universo leitor da
menina e do menino: os contos de fadas tradicionais para Ana e as leituras científicas e
informativas para o irmão, uma distinção que aparece inclusive nas histórias em quadrinhos
que cada um dos filhos ganhava do pai nas manhãs de sábado. Mais adiante, ao justificar essas
escolhas e iniciativas dos pais, Ana aponta certa falta de oportunidades de conviver com uma
diversidade maior de gêneros literários nos seus tempos de criança em comparação à produção
111
atual da literatura infanto-juvenil, que inclusive faz questão de disponibilizar aos seus alunos
na escola:
Então, eu tinha livros, sim, de histórias, mas tinha poucos. As
histórias que o meu pai... os livros que ele, que eu lembro que ele
comprou pra mim eram livros de contos de fadas... até porque eu
acho que naquela época não tinha esses livros maravilhosos que a
gente tem hoje, né? Com essas histórias assim... com essa coisa do
humor, esses livros que eu vejo que e gente traz pro Clube do
Livro
33
das crianças, naquela época não tinha essas produções,
então... se tinha também a gente não tinha acesso, ainda... então
eram esses livros.
Paralelamente às práticas de leitura e ao largo da participação dos adultos, entre os
irmãos se estabeleceu uma relação peculiar com as narrativas. Se o universo leitor de Ana era
tão diferente e distante daquele construído para e pelo irmão, eles criaram um meio lúdico e
original para aproximar essas duas vertentes:
...essa coisa do Narrador, por incrível que pareça, não foi meu pai,
foi meu irmão! Ele é mais velho do que eu três anos... você falou:
“pensa num Narrador marcante”, eu pensei, até ri porque foi o
meu irmão, foi e é. Meu irmão sempre foi assim louco por leitura,
por livros, criança ele começava a se interessar por livros de
ficção científica, ele montou uma coleção de livros, ele lia,
devorava aqueles livros de bolso... acho que ele se sentia muito
solitário nas leituras, porque não eram leituras que meu pai, minha
mãe se interessavam, então acho que quem ele tinha pra
compartilhar essas leituras acabava sendo EU.
Ana ouvinte, seu irmão o narrador. Era assim que as histórias de ficção científica
saiam dos livros para chegar até ela: pela voz de seu irmão. De um lado um leitor solitário e
ávido por compartilhar aventuras, emoções e descobertas, de outro a menina leitora dos contos
33
O Clube de Leitura é um projeto de formação de bibliotecas de classe desenvolvido, há mais de dez anos, em
todas as turmas de São Cristóvão I.
112
de fadas e gibis à disposição de conhecer outros sabores literários. Narrar e brincar se
confundiam nessa convivência, quando as aventuras e personagens das histórias ganhavam
vida nas brincadeiras dos irmãos que incluiam outras crianças da família:
Então, ele comentava muito comigo, coisas de... assim... de
invasões alienígenas e ele trazia muito isso pras nossas
brincadeiras. Nossas brincadeiras eram sempre inspiradas, tinha
as outras crianças da família também, mas toda brincadeira que a
gente fazia elas eram sempre inspiradas nos livros de ficção
científica que meu irmão lia. Por exemplo, uma brincadeira no
quintal, que seria uma guerrinha meninos e meninas, “vamos fazer
uma guerrinha”, mas a guerra tinha... as meninas eram
alienígenas, sim... era uma coisa sempre inspirada nos livros que
ele lia. Então, ele trazia isso muito pra gente e ele trouxe isso muito
pra mim, eu não gosto de ler livros de ficção científica, mas ele era
um Narrador que me fazia... me despertava o interesse pelas
histórias, pelos livros, então eu cheguei várias vezes a ir na
estante dele pegar livros de ficção científica, tentar ler mas não
conseguia por achar chato... era muito chato... era muito legal
quando meu irmão contava, né?. Então, nunca consegui ler
nenhum, várias vezes fui na prateleira e tal, mas quando ele
contava era muito legal. Então, um Narrador marcante foi ele,
começou assim e foi assim a vida inteira, ele sempre se interessou
por leituras, essas leituras, ele sempre foi daquele tipo de: “Você
sabe porque a minhoca...”, esse tipo de pergunta, né? que ele fazia
e deixava a gente curioso. Então eu tive muito essa coisa do gibi,
de ler gibi e essa coisa das Narrativas do meu irmão, foram muito
presentes na minha infância, na adolescência também, ali
aumentou mais ainda, que ele lia muito mais e ele sempre
contava, porque, o que eu falei: quem ele tinha pra compartilhar
essas leituras era eu, né?. Então... foi um Narrador marcante, e é
até hoje.
113
Ana identifica o irmão como aquele que despertou seu gosto pelas histórias, pelos
livros, pela leitura. Foi através dele e das histórias de contar e de brincar que começou a se
aventurar às novas descobertas guardadas na estante. Entretanto, de ler ficção científica ela
não gostava, embora tenha feito algumas tentativas. Leituras iniciadas, mas nunca concluídas
porque o gosto mesmo estava em ouvir seu irmão contar aquelas histórias. O que teria sido
feito desse jogo de ouvir, narrar e brincar de que Ana fala com zelo, se, a exemplo do irmão,
ela passasse também a devorar os livros de ficção científica? Talvez, além de ouvinte, ela
pudesse ser também narradora daquelas histórias e daquelas brincadeiras; quem sabe se
quebraria o encanto, como não raro acontece, de se considerar desnecessário contar histórias
às crianças tão logo elas aprendem a ler sozinhas; quem sabe? Não respostas na narrativa
de Ana, mas se (só) quando ele contava era muito legal, algumas sementes de pensar são
lançadas por essa afirmação.
Seguindo as trilhas de Larrosa (2004), que por sua vez segue as de Maria Zambrano, a
narrativa de Ana aponta para os sentidos passados e perpassados pela oralidade que não nos
chegam por meio da escritura. A palavra pronunciada vem ao nosso encontro, é aquela que
percebemos a nós dirigida, a nós destinada, enquanto a palavra escrita está à espera de nosso
movimento de ir ao seu encontro, segundo nossas perguntas, nossas dúvidas, nossas
inquietações. Nessa espécie de jogo criado e vivido pelos irmãos, não era, propriamente a
leitura daquele gênero literário que tocava o interesse da menina Ana. Por outro lado não
parece ter sido somente a transmissão do “puro em si da coisa narrada” (BENJAMIN, 1994, p.
205) o que movia o irmão narrador a transmiti-las, a despeito de seu anseio de ter com quem
partilhar suas leituras. Os laços que se criaram pelas narrativas entre os irmãos não se
desfizeram à medida que cresceram, mas permanecem até hoje. Tanto que quando se refere ao
irmão como tendo sido um narrador marcante, Ana se apressa em corrigir o pretérito para
conjugar no presente a importância dessa relação.
Lia
A expressão com que Lia inicia o trecho abaixo não deixa dúvidas de que, sinalizada
por mim, a partir daí se dedica a falar especificamente de suas relações com as narrativas na
infância. Porém, como o tema perpassa todo o longo segmento em que narra seu percurso de
114
estudante, sua escolha de ingressar na carreira docente e seu trabalho de professora, incluo
mais adiante outro recorte que julgo pertinente para o desenvolvimento da análise.
Ah, sim... Meu pai contou muitas histórias, meu pai foi um contador
de histórias, porque talvez ele quisesse todo mundo ali perto dele,
então ele juntava a gente e contava muita história... Monteiro
Lobato, a gente tinha a coleção do Monteiro Lobato. E contava
histórias da vida dele, sempre a vida do meu pai foi uma vida cheia
de histórias interessantes, então ele contava da vida dele, do meu
avô, dos meus avós, meus quatro avós, sempre teve muita contação
de histórias, muita narrativa dentro da minha casa. Livro sempre
foi uma coisa que a gente ganhou e a gente contava uns pros
outros, histórias dos livros que a gente lia, entre os irmãos e com
os colegas que vinham na nossa casa, porque a nossa casa sempre
foi cheia de criança, sempre esteve cheia de criança de fora,
porque ele[o pai] não deixava a gente sair pra rua, mas as crianças
vinham, então a gente contava história, sentava todo mundo e
ouvia, lia livro... e tinha... sempre vimos os nossos pais lendo,
então tinha muita coisa assim pra contar, nós repetíamos as
histórias deles, até hoje a gente repete histórias pros nossos
sobrinhos e eles gostam de ouvir a gente contar histórias daquela
época que papai contava...
Ler, escrever e estudar eram práticas valorizadas e incentivadas na casa onde
cresceram Lia e seus seis irmãos. Esse aspecto é lembrado e enfatizado em vários trechos da
narrativa da professora que não esconde seu entusiasmo quando recorda da época em que o
ingresso na escola representou para ela um momento marcante de conhecer e viver as
experiências que existiam para além do portão de casa. Como não permitia que os filhos
brincassem na rua ou na casa dos amigos, uma outra estratégia compensatória para a
interdição era o incentivo do movimento contrário, ou seja, eram os de fora que chegavam
para participar e estabilizar aquele convívio de proteção. Nesse ambiente de práticas de leitura
constantes e compartilhadas entre adultos e crianças, circulavam muitas histórias. Para os
115
livros havia um lugar de destaque em sua casa e as narrativas conhecidas por meio desse
suporte exerciam importante papel na mediação das relações familiares.
Cabe assinalar o lugar significativo da obra de Monteiro Lobato nas lembranças do
tempo de infância de Lia, autor recorrente também nas narrativas da maioria das professoras
que puderam, quando criança, ter acesso aos livros e à literatura. Autor assíduo nas rodas de
leitura que reuniam, além dos irmãos, as crianças da vizinhança, sempre presentes em sua
casa; reinações vividas por meio da leitura, na infância resguardada e circunscrita ao espaço
da casa familiar. Nesse ponto considero oportuno destacar um trecho anterior da narrativa em
que Lia demarca o contexto escolar como aquele em que sua palavra, silenciada ou
despercebida em casa, passou a ser valorizada e merecedora de atenção:
Também teve uma coisa que me marcou muito dentro do colégio
por conta da figura do meu pai que era uma pessoa que quando a
gente fazia qualquer coisa que ele não gostava, a primeira coisa
que ele falava era: Cala a boca! E quando eu cheguei na escola que
as pessoas começaram a... a gostar do que eu escrevia... não posso
te dizer precisamente quando... mas eu me lembro, assim, pelas
minhas redações, eu tirava notas altas, então a minha palavra... pra
mim, eu comecei a ver a importância que as pessoas davam na
escola, então, eu era sempre assim considerada uma das melhores
alunas, tirava nota boa, o colégio pra mim era uma coisa muito boa
e me identificava muito, me sentia bem ali dentro, enquanto em casa
tinha aquela... era tolhida e toda atenção dividida por sete filhos,
na escola eu me sobressaia e isso fez da escola também um local
muito bom pra mim.
Puxando um fio de sentido a partir do universo lobatiano, ouso fazer um paralelo entre
essa passagem da narrativa de Lia e o célebre episódio em que a pílula falante do Doutor
Caramujo opera uma notável reviravolta nos domínios do Sítio do Picapau Amarelo e nas
relações entre os seus personagens: a boneca de pano transforma-se em Emília quando enfim
adquire voz. É ela quem vai imprimir crítica, poesia e transgressão ao ambiente do Sítio, com
seu gênio asneirento por natureza (LOBATO, 1958). Ávida por exercer a linguagem que
começa a dominar, Emília não se furta em indagar, retrucar, desafiar e, é claro, teimar,
116
fazendo jorrar a “fala recolhida” (Id., p.28) que por algum tempo caracterizou a sua mera
condição de boneca de pano. Lia/Emília me põem a pensar em nossas salas de aula, em nossos
alunos, em nosso ofício de professoras e em quantas vozes/narrativas permanecem recolhidas
em nossas escolas por falta de tempo e, sobretudo, por falta de ouvintes.
A narrativa de Lia nos fala de uma infância fortemente marcada pela convivência com
os livros e com as narrativas literárias, fala da escola como território de viver prazerosamente
novas relações e descobertas em contraponto com a vida familiar sob a exacerbada proteção e
vigilância de seu pai. Entretanto, é ao pai a quem Lia atribui o lugar de principal portador das
narrativas herdadas em sua infância, seja porque, leitor incansável, vivia sempre em
companhia dos livros, seja por sua trajetória de vida repleta de histórias interessantes, ou pelo
intuito de trazer os filhos sempre ao seu redor.
É interessante como o ofício do pai e o fato de trabalhar em casa facilitavam, sim, o
olhar vigilante em relação aos filhos, mas, seguindo os passos de Benjamin (1994), por outro
lado favoreciam também sua habilidade e disponibilidade ao ato de narrar. O trabalho do
artífice, minucioso e exigente da paciência e da concentração de quem o exerce; o tempo
caseiro sob o controle do próprio trabalhador, raridade no contexto histórico e social dos
grandes centros urbanos, faz lembrar as atividades vinculadas ao tédio e do quanto estas se
constituem, na belíssima imagem benjaminiana, como o ninho onde são chocados os “ovos da
experiência” (Id., p. 204). Na visão do autor, os viajantes com suas histórias de lugares
longínquos e o trabalhador sedentário com suas narrativas de outros tempos produziram
respectivamente duas famílias de narradores que não se excluem, ao contrário, se
interpenetram e se completam:
Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres na arte de
narrar, foram os artrífices que a aperfeiçoara. No sistema corporativo
associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos
migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário
(BENJAMIN, 1994, p. 199).
Ainda na infância, entremeadas às narrativas literárias, as histórias e passagens da vida
do pai e dos avós, uma vez ouvidas, eram recontadas entre si pelos irmãos e hoje continuam a
fazer parte do repertório de narrativas transmitidas às novas gerações de ouvintes da família.
117
Nessa fonte bebeu Lia. Sua água ela passa adiante no “côncavo das mãos” (BOSI, 1998, p. 90)
para que as histórias, incorporadas na experiência dos mais jovens, possam gerar muitas
outras. Emocionada, Lia finaliza com uma reflexão sobre as relações entre narrativas e
memória:
A narrativa é a gente se reportar à memória. Como tem coisa
guardada dentro da gente, como tem coisa que a gente pode
aprender com o que a gente guardou e nem sabe que estão ali
dentro presas dentro da gente... que vem... na verdade a nossa
fala estrutura e organiza o nosso pensamento. Então a gente está
botando o pensamento, a gente usou o que está guardado mas a
gente está organizando esse pensamento através do que a gente
está falando. Mas ao mesmo tempo está repensando aquilo que a
gente viveu e está com certeza construindo mais alguma coisa lá.
As palavras de Lia orientam para uma compreensão do ato de narrar e narrar-se como
espaço de auto-escuta, de desvelamento e reconstrução das memórias no qual a linguagem
exerce papel fundamental. Nessa perspectiva a narrativa aparece como potencializadora de
reflexão e meta-análise acerca dos processos que a própria narrativa evoca, permitindo ao
sujeito perceber as formas como organiza e interpreta suas experiências.
* * *
Rosa
Por pouco o registro da narrativa de Rosa não foi levado a termo, dada a sucessão de
percalços que ocorreu até a sua finalização e que considero importante relatar para dar crédito
à generosidade e atenção que marcou a participação da professora nesta pesquisa. Do primeiro
encontro, no qual ela contou muito compenetrada seu percurso de professora, nada consegui
transcrever. A gravação estava inaudível devido aos ruídos do ambiente onde estávamos no
momento da entrevista e também por minha falta de habilidade em configurar o gravador.
Como havíamos marcado outro dia para a continuação da entrevista, na segunda
118
oportunidade falei do problema e pedi que Rosa retomasse a narrativa desde o início e não a
partir do ponto em que interrompemos no primeiro encontro.
Não houve continuação nem retomada. Dessa vez Rosa revelou uma outra face de sua
história de professora e um modo de narrar que antes não havia se mostrado. Se no primeiro
encontro se ateve a uma exposição linear de seu percurso, preocupada com a precisão de datas
e seqüência de fatos, no segundo demonstrou estar muito mais à vontade e confiante, tanto
que abriu suas memórias sem reservas, resgatando inclusive uma passagem que marcou
profundamente e durante muito tempo suas relações com a instituição escolar.
Todavia, não terminariam os problemas. Ao tentar abrir o arquivo para iniciar a
transcrição, um comando errado fez apagar todo o conteúdo da gravação. No dia seguinte,
bastante constrangida e me sentindo a mais incompetente das criaturas, contei a Rosa sobre o
“acidente” e arrisquei sugerir que refizéssemos a entrevista em outro dia, mas dessa vez que
ela contasse sobre suas relações com as narrativas na infância. Para minha surpresa e alívio,
ela não aceitou prontamente como se propôs a chegar antes de seu horário no sábado
seguinte quando haveria reunião de pais na escola.
No sábado, às sete em ponto estávamos a postos em uma sala resguardada do barulho e
eu cercada de cuidados com o gravador para que daquela vez não cometesse nenhum erro.
Mas, entrando no espírito da narrativa de Rosa, males que vêm para o bem. Em nossa
conversa naquela manhã de sábado, pude conhecer uma riqueza de experiência que sequer
suspeitava em anos de convivência com Rosa na escola.
Com orgulho, Rosa inicia a conversa assinalando sua ascendência indígena/africana e
suas raízes nordestinas como pano de fundo para o mosaico multicor de tradição oral de que
se nutriu em sua infância:
Então... é... na minha família... eu sou descendente de... atrás...
de africanos e índios, é uma coisa assim que tem uma... uma... o
povo do nordeste sobretudo, quanto maior for a influência, eu
acho, indígena e africana, tem mais essa coisa da oralidade
passando, né? São pessoas que tiveram pouca escolaridade,
pensando... voltando na minha árvore genealógica , vai de
119
nenhuma escolarização, e aí, o que a gente tem? Uma riqueza
muito grande dessa coisa da oralidade.
Em casa, além dos irmãos e da multidão de tios e primos que chegavam, partiam ou
permaneciam, havia aqueles que, mesmo não fazendo parte das relações de parentesco,
conviviam com o grupo familiar e ali deixavam suas marcas. Desses agregados, lembra com
carinho e respeito da Tia Detinha, uma irmã de criação de sua mãe cujo repertório de
provérbios, histórias e parábolas permeou a narrativa de Rosa como mote para as inúmeras
histórias entrelaçadas com que presenteou esta pesquisa:
Eu passei, eu mais do que meus irmãos, vivi muito essa coisa de
inventar histórias, por conta da questão de estar meio que
aprisionada num gesso, por conta da questão da minha bacia torta,
dos meus problemas de constituição óssea, então eu ficava muito
tempo... ficava muito tempo sozinha também, porque era a caçula,
eles iam pra escola e eu ficava sozinha. Eu chorava, queria ir pra
escola de qualquer maneira, eu ficava inventando histórias...
inventava, inventava, inventava... eu era aquela pessoa que ia pra
janela do apartamento e ficava olhando as nuvens pra ver o que
estava montando, que histórias estavam rolando ali e aí... eu não
tinha como escrever... interessante que aqui quando você pega uma
turma de S.I, [primeiro ano] , você estimula neles a noção de que
para não se perder isso, é preciso escrever e eu tinha... quando eu
fui...já estava doida pra aprender a escrever porque eu queria
passar pro papel aquelas histórias que eu inventava porque eu
tinha medo de esquecer. Então, o quê que acontecia, eu ficava
assim seca ouvindo as histórias que as pessoas contavam. As coisas
dos ditados também é uma coisa assim forte, muito rico, né?... eu
disse pro meu irmão, um dia quando eu voltar à Bahia agora...
tem 3 anos que eu não volto, desde que minha mãe faleceu eu não
voltei mais lá... eu falei: “Quando eu voltar à Bahia agora eu vou
querer voltar com mais tempo...e vou querer levar um gravador pra
gravar as coisas que a tia Odetinha fala”... o nome dela é Odete,
ela na verdade é uma agregada, filha de uma empregada antiga,
120
que é uma coisa assim, não chegou a ser uma empregada, era mais
uma agregada porque ela tinha dificuldades... ela tinha uma filha e
foi acolhida por alguém da família de trás e fazia pequenos
serviços e ficava junto, morava junto... e ela teve essa filha
continuou criada como se fosse ir ali, então é irmã de criação
da minha mãe... e ela dizia umas coisas assim fantásticas,
entendeu? Ela mexia com essa coisa... ainda mexe, acho... com
essa coisa de vidência, que é forte[na Bahia], muito mais do que
aqui... aqui é mais pra derrubar, pra tirar marido... essas coisas
assim básicas... aqui as bacanas vão e dizem que nunca foram,
que não sabem, que não sei quê... aquela coisa de trago a pessoa
amada em três dias, que o cara da novela foi... mas eram
coisas mais... quer dizer também isso provavelmente... mas coisas
até mais corriqueiras: saber o quê fazer.
Imobilizado o corpo, restrita a convivência, Rosa narrava para si. As histórias que
ouvia, inventava e presumia acontecer para além da moldura da janela faziam companhia nos
longos períodos em que, os pais no trabalho e os irmãos na escola, a casa ficava vazia de
interlocução. Mas o que é da narrativa sem testemunhas, o que é o narrador sem ouvintes?
Assim como foi para Lia, Rosa adivinhava o ingresso na escola como perspectiva de
ultrapassar o perímetro da casa e, no seu caso, os limites impostos pelo tratamento de saúde
que interditava o acesso à leitura e à escrita que seus irmãos já dominavam.
Para Rosa, em menina, aprender a escrever significava uma maneira segura de registro
tanto das histórias imaginadas por ela quanto daquelas que avidamente ouvia em sua casa.
Hoje de seu lugar de professora, considera importante despertar em seus alunos o
reconhecimento da escrita como garantia e suporte para a memória. Escrever para não
esquecer, gravar para não deixar se perder. Uma preocupação também presente na narrativa de
Cecília que, como Rosa, passou a infância cercada da tradição oral em seu contexto familiar.
Por prezar a fonte na qual alimentaram suas subjetividades, as duas se reportam às formas de
armazenar esses saberes em arquivos que julgam capazes e confiáveis para mantê-los a salvo
do esquecimento, reconhecendo explicitamente a força do mesmo.
121
Porém, não como negar que, a despeito de não terem sido registrados por escrito,
gravações ou filmes, esses veios de oralidade se encontram tão profundamente inscritos em
sua memória a ponto de ter perpassado toda a sua narrativa como uma herança vívida, uma
experiência.
Não é de hoje que a escrita é tomada como metáfora da memória, como rastro
privilegiado e duradouro que os homens julgam deixar de si mesmos (GAGNEBIN, 2006).
Ainda hoje, como aponta a autora, não obstante o espaço privilegiado que socialmente a
imagem tem cada vez mais alcançado sobre o texto, permanecemos nos reportando à escrita
quando buscamos auferir fidelidade ao registro da memória. Por certo, nosso cotidiano está
repleto de circunstâncias em que poder recorrer aos meios externos de armazenamento
disponíveis desde anotações e rabiscos mnemônicos apressados até os arquivos salvos em
meio eletrônico nos concede o conforto do esquecimento. Afinal, quem de nós suportaria
carregar o fardo da impossibilidade ou da incapacidade de esquecer? Entretanto, e pensando
particularmente no potencial da escola como espaço de circulação de narrativas singulares e
daquelas que compõem a tradição oral da cultura, a conservação de certas formas discursivas
na exterioridade da escrita e a restrição de seu acesso pela leitura não seria uma forma de
promover justamente o efeito contrário do que se deseja? Não se trata, é claro, de atualizar a
condenação platônica da escrita e de recusar a função social da escola em promover sua
difusão e de se empenhar na formação de leitores, mas de apontar para o reconhecimento da
importância de se pensar esse contexto também como formação de narradores e ouvintes.
Um outro trecho da narrativa de Rosa nos fala da brincadeira como espaço de ser e de
criar e da face expressiva da linguagem exercida não como meio, mas como essência, nas
fabulações que acompanhavam suas brincadeiras de única menina entre quatro irmãos mais
velhos. Em uma das poucas oportunidades que a Tia Detinha veio da Bahia para visitar a
família no Rio de Janeiro, a brincadeira narrada de Rosa foi lugar de atenção e apreensão:
... ela olhou pra mim e disse: “peraí que ela falando!”. E a
minha mãe não entendeu nada, né? Quando, umas duas ou três
vezes que ela veio ao Rio, isso me chamou a atenção, porque ser a
última de um elenco de cinco filhos... Porque antigamente não se
dava muita bola para o que criança falava. E era muito gozado que
ela dizia assim: E eu estava brincando uma vez, brincando mesmo,
122
sozinha com as minhas bonecas e eles estavam lá conversando e eu
disse uma frase, dentro da minha brincadeira ali que as pessoas se
calaram e vieram me perguntar porque eu tinha dito aquilo... “Mas
eu estou brincando...”.
Sobre essa passagem é preciso sublinhar a religiosidade presente no cotidiano da
família, especialmente da tia que, inseparável de suas contas as guias como são conhecidos
no Rio de Janeiro os colares consagrados às divindades ainda hoje se dedica à vidência.
Rosa ressalta a força dessa prática na Bahia, onde assume feições e funções diferentes
daquelas que no Rio de Janeiro comumente lhes são associadas, principalmente em relação
aos motivos e sentidos das consultas, onde predomina a busca por aconselhamento ou
ensinamento acerca de decisões a tomar:
...coisas até mais corriqueiras: saber o quê fazer. “Vai ser bom pra
mim mudar pra cidade tal? Olha aí...”. Então tinha a coisa de
jogar o búzio, de olhar no copo d´água. Ela trabalha muito, mexe
mais com o copo d´água do que com os búzios.
No episódio da brincadeira, nota-se que o habitual era que as palavras da menina Rosa
passassem despercebidas, rotina que a escuta sensível da tia vem alterar pelo conselho:
“Presta atenção no que essa menina diz”. Havia ali algo cuja importância a família numerosa
e ocupada em seus afazeres não destinava a devida atenção. Tão habituada estava em brincar
sozinha que a mobilização inesperada em torno de suas palavras foi recebida por Rosa como
uma repreensão por alguma falta porventura cometida e que ela não conseguia compreender:
E foi uma situação chata pra mim porque... “Eu fiz uma grande
besteira”. “Mas eu estava aqui, não estava me metendo na
conversa... mas eu não estava nem ouvindo...” e comecei a
chorar... e ela falou: “Vocês tão assustando a criança, não é
assim...”, ela me levou para um canto, ficou conversando,
brincou dali, brincou daqui... “Mas aí, você estava brincando
quando falou aquele negócio, você estava brincando, de quê você
estava brincando mesmo?...” eu falei: “eu não me lembro
direito... eu sei que eu tava ali inventado uns personagens na
123
minha brincadeira de casinha. eu contei a minha brincadeira e
ela ficou assim...”Ahhh, entendi...”, depois ela falou: “Rosália,
depois eu falo com você uma coisa”.
O fato é que depois dessa passagem, a mãe tratou de criar e sugerir situações em que
os meninos pudessem compartilhar suas brincadeiras com a irmã:
“Ah, olha, tem o caminhão, a boneca está se mudando, cadê o
caminhão pra fazer a mudança da boneca?”, e tal, não sei quê...
ela tentou fazer uns ajustes pra tentar integrar na minha
brincadeira de boneca, mas... foi uma coisa assim...
A narrativa de Rosa está repleta de situações e histórias que, a exemplo da parábola do
vinhateiro em Benjamin (1994), encerram o sentido da transmissão de uma experiência e
suscitam a reflexão por parte de quem as recebe. Assim é em relação aos ditados que,
revestidos de caráter educativo ou não, povoavam a linguagem cotidiana da família e
atravessou a maior parte da narrativa de Rosa. Ora ocupada em citar e explicar os sentidos de
um ou de outro, ora ressaltando a perplexidade com que ela em menina os recebia sem
compreendê-los de imediato, embora sabedora de que havia ali uma mensagem a ser
decifrada:
... E as pessoas da minha família recebiam... eu me lembro disso,
que uma vez a gente tava numa festinha de aniversário de um dos
meus primos que voltou pra Bahia e a minha avó materna de
repente chegou um caboclo, eu tomei um susto... ele bateu nas
costas da minha tia e disse assim: “Já falei pra você parar de
dormir com os olhos dos outros, olha o que você 124a fazendo.”
Era alguma bobagem que ela tinha... tava com a intenção de fazer.
O caboclo foi embora, ela ficou assim... cantou parabéns...
mas eu fiquei com aquilo: ”Dormir com os olhos dos outros?, não
combina! Como é que eu posso dormir...” que a pessoa conseguir
entender isso... pra mim foi uma grande alegria, eu ouvia essa
coisa de vez em quando eu não conseguia entender o que é...
“como que é isso, quem é esse outro?... como uma pessoa pode
124
dormir com o olho da outra pessoa?” Estranho, não fazia sentido...
mas tem um outro sentido, né?
È interessante a imagem da entidade que chega, o recado em forma de provérbio
para quem dele precisa, vai embora e a festa segue seu curso. Não permanece para dar
explicações, apenas semeia uma inquietação e se despede. Para cada um dos presentes e de
acordo com suas experiências, o provérbio ressoa de um modo diferente, inclusive para quem,
como Rosa, não era capaz de, naquele momento, compreender seu sentido e seu propósito.
André Jolles (1976) ressalta o caráter conclusivo do provérbio em lugar da intenção
moralizante que frequentemente a ele é atribuído. Segundo o autor, o provérbio é uma espécie
de sentença, quando “se associa empiricamente, e por conclusão, um acontecimento passado a
acontecimentos atuais da mesma espécie” (p. 135). Assim, para usar a própria formulação dos
provérbios, neles sempre uma tranca a ser colocada na porta, mas depois que esta foi
arrombada. Citando Wilhelm Grimm, o autor contribui para tornar mais clara sua insistência
em desassociar os provérbios das lições morais, ressaltando a tendência à retrospecção em
detrimento do caráter didático e prescritivo, ainda que não exclua a sabedoria como uma das
propriedades constantes nos provérbios.
O verdadeiro provérbio popular não nos oferece voluntariamente um
ensinamento. Não é o fruto de meditações solitárias, mas o lampejo de
uma verdade pressentida desde longa data e que encontra por si mesma
sua expressão mais elevada (Grimm, apud Jolles, 1976, p. 135).
Essa concepção dialoga com a visão de Benjamin (1994) para quem os provérbios são
como narrativas condensadas e, como tais, não são portadores de explicações, mas aspiram a
uma “continuação” na experiência de quem os recebe. Em outro trecho de sua narrativa, Rosa,
após citar mais um provérbio do repertório da Tia Detinha, relata o caminho que percorreu
até chegar ao entendimento do mesmo e, como um lampejo que retrocede e ilumina todo o
percurso, passa a fazer parte de seu próprio repertório, de sua própria experiência:
... tem um que ela diz... “A de Palha, Colégio de Baeta”... “Eu
conheço você do tempo da de Palha, Colégio de Baeta...”, e eu
ficava, gente... primeiro que ela falava ultra rápido e eu não
125
entendia as palavras direito... “de Baeta” eu escutava “de baet”...
gente o que é isso? de palha e colégio de baeta”... Depois...
muito tempo depois, é que eu fui sacar a questão... comecei a
estudar de novo a História, eu me dei conta, fui a Anchieta, não
sei quê... eu vi a primeira capelinha, “Ahhh, sei: a Sé, de
palha...” Que a Sé é a primeira igreja a ser construída, e como não
havia... a primeira, faz de qualquer maneira depois... faz com palha
mesmo. O Colégio de baeta, tem a ver com a fundação de São
Paulo, que começou a partir de um colégio que os jesuítas
montaram e que, como era frio, as paredes eram de palha, mas
foram revestidas com cobertores porque era muito frio: Colégio de
baeta... baeta era aquele cobertor vagabundo, né?... Então, uma
coisa mais velha do que a de palha e o colégio de baeta... eu
levei anos da minha vida com cobras na cabeça pra conseguir
entender.
Além dos ditados, as superstições, principalmente aquelas relacionadas à morte,
tiveram lugar em suas lembranças. Assim, ela cita e recita a fórmula que deve acompanhar o
movimento de cada ponto da costura quando esta se faz na roupa vestida por alguém:
Costuro a vida
Não costuro a sorte
Costuro na vida
Não costuro na morte
Enquanto explica a relação da crença com as mortalhas, Rosa lembra das palavras de
sua mãe: Porque ela dizia que, além de dar azar, por conta de perder dinheiro, podia dar o
azar de ficar agourando o fulano de morrer. Como uma história sempre puxa outra:
... não pode dormir com os pés para a porta. A minha cama tem os
pés para porta do quarto... A minha tia foi em casa, ela disse:
“Você vai me desculpar, mas eu vou por os pés para a cabeceira,
vou botar meu na sua cabeça”, virou... “Eu não durmo com
os pés para a porta, nunca...”.
126
E aí... bom, agora você quer que eu pra onde? Eu esqueci... Antes de passar para o
outro tema da entrevista, que nessas alturas ela não lembrava de tão envolvida que estava
em encadear e enlaçar uma história na outra, Rosa fala da importância de dar atenção às coisas
para as quais a ciência não tem explicação e, então, lá vem mais uma história:
Não sei se você lembra... que uns anos atrás houve uma seca no
Norte e bombardearam nuvem, jogaram água e não sei quê e nada
resolvia, e um povo indígena mandou um recado pro povo que
tava passando a seca: “Fiquem tranqüilos que em 3 dias vai
começar a chover, nós vamos começar a dança da chuva por
vocês”. pediu pra mandar uma pessoa de para o
acampamento para a chuva cair no lugar daquela pessoa. Quer
dizer: a pessoa seria a ponte pra ensinar à chuva onde é que ela
tinha que cair, e o povo mandou... Mandaram uma pessoa para
essa aldeia para fazer a dança da chuva, para mandar a chuva
para onde essa pessoa estava morando... E houve um deboche na
mídia, porque o cacique tinha feito e o outro tinha mandado... e em
3 dias choveu que foi uma beleza... que foi uma beleza...
Rosa termina contando o quanto se divertiu mais tarde e logo após ter chovido que foi
uma beleza, com uma charge publicada no jornal satirizando o fracasso das providências que
os homens da razão tomaram para fazer chover.
“Ah, que legal que um chargista fez isso...” Porque é uma coisa
assim: não é da ciência, né? ... e a gente sabe que a ciência que
funciona veio observando a natureza e observando o primitivo...
mesmo... né? Então, você cortar a raiz, você... não pra você
negar a sua raiz.
Assim, depois de tantos transtornos, a entrevista finalmente foi gravada e transcrita o
que me permite dizer: naquele sábado, Rosa só faltou fazer chover.
* * *
127
Beatriz
Beatriz fez parte do único grupo que consegui reunir na escola para fazer uma
entrevista coletiva. Com Madalena e Iracema, que faziam parte da equipe de série de Beatriz
em 2007, suas histórias foram partilhadas e nos renderam momentos de emoção intensa, assim
como rimos muito nesse dia. Na situação de grupo, Beatriz assumiu a contadora de histórias
que é e gosta de ser. Seu modo esfuziante de narrar, seu gosto por acordar palavras e imagens
adormecidas, de inventar expressões e de dar atenção aos pormenores mais inesperados, são
capazes de criar uma atmosfera envolvente dos ouvintes com a narrativa. Muitas vezes Beatriz
nos fez morrer de rir em passagens que seriam trágicas se contadas de outra forma, ou por
outro narrador, como esta que fala da infância do avô materno no Acre:
... meu avô, acho que ele era um visionário porque ele saiu com 17
anos do Acre, deixou uma família com 9 irmãos, aquela miséria
que ele contava de um irmão que morreu de fome, bebê, porque a
mãe não tinha leite e aquela papa de farinha não dava conta e a
outra morreu porque a parteira deixou cair de cabeça na hora que
nasceu, pegou assim e tchibum (risos de todas)... imagina o Acre
cem anos atrás... ele contava isso...
Em outras passagens, repletas de poesia e delicadeza, reinou o silêncio e a
identificação de nós ouvintes com o narrar emocionado de Beatriz se fez visível pelos olhares,
pelos gestos macios, por um respirar junto, como uma recordação em companhia. Assim foi
quando Beatriz, que vivia naquele período o encontro com os guardados da mãe recentemente
falecida, falou das lembranças, e também dos esquecimentos, do pai ao voltar da guerra:
...meu pai que adorava ópera, a maior lembrança que ele trazia da
guerra foram os dois anos que ele ficou na Itália... eu achei agora
nos achados da minha mãe, datilografado assim: “Óperas que eu
assisti durante os dois anos em que eu fiquei na ocupação da
Itália”, com a data e com o teatro que ele foi assistir... porque isso
128
era a coisa... ele não contava nada da guerra, nada. Ele contava
duas coisas da guerra que a gente adorava ouvir: uma eram as
óperas que ele assistiu, o vulcão, que ele pegou, o Etna, e a história
da ida... três histórias..., da ida para guerra que ele contava que o
frio era a pior coisa no porão do navio... e que a gente ficava
procurando entender como é que o porão de navio podia ser tão
frio e depois você cresce e vai entender... o frio, o frio que é ir
pra um país distante, para a guerra, sem saber se volta...
Beatriz e seus irmãos cresceram em um ambiente de intensa e variada atividade
cultural. Nessa efervescência não faltavam os saraus literários freqüentados e promovidos pela
família, as óperas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, os filmes, exposições e peças que
tanto assistiam nos teatros da cidade quanto encenavam no palco construído na casa do
Andaraí onde moravam. As crianças da família desde cedo acompanhavam e tinham
participação ativa nesses eventos. Mesmo antes de aprender a ler Beatriz já declamava poesias
em público nos encontros dedicados à literatura que habitualmente aconteciam tanto em sua
casa quanto em outros espaços por eles freqüentados.
O gosto pela música, pelo teatro, pela literatura e pelas artes em geral cultivado pela
família, Beatriz atribui ao espírito novidadeiro do avô materno, o mesmo que muito jovem
saiu do Acre para tentar a vida no Rio de Janeiro. Aqui passou a trabalhar como contínuo no
Arsenal de Marinha e mais tarde, segundo Beatriz, chegou a ocupar o segundo maior cargo
civil, o que garantiu uma condição financeira confortável para iniciar a única filha no mundo
das artes:
Ele era um cara, eu imagino pela origem dele, que ele saiu de um
lugar que não tinha nada. Então eu acho que o mérito era todo
dele. Então, ele começou a colocar a minha mãe em tudo que ela
queria. Filha única, ele tinha uma situação boa que ele estava no
Arsenal de Marinha... ele levava a minha mãe a exposições de
pintura, levava à Biblioteca Nacional, levava ao Teatro Municipal.
Minha mãe um dia olhou uma mulher tocando piano e disse “Eu
quero tocar aquilo”, uma semana depois tinha um piano dentro de
casa, ele procurou uma professora de piano e botou minha mãe. E
129
minha mãe queria pintar, botou minha mãe pra pintar... então
ela teve isso tudo.
Para Beatriz, sua relação com as narrativas se constituiu mais pelo convívio com essa
agitação cultural em que a família convivia do que propriamente pela oportunidade de ouvir
histórias quando criança. Sua mãe, além de estudar e trabalhar o dia inteiro, sempre esteve
envolvida em inúmeras atividades e era a avó quem se incumbia do cuidado com as crianças e
das tarefas da casa:
...minha lembrança grande das histórias era o sarampo e a
catapora (risos de todas). Quando a gente ficava doente e quando a
gente teve sarampo não deixavam a gente ler, a gente lia, eu e
minha irmã tivemos sarampo uma seguidinha da outra, tudo da
mesma idade... elas não deixavam a gente ler. Eu lembro que a
gente lacrimejava e ela vinha ler aquelas histórias antigas do
Mundo da Criança, tinha a parte de poesia e a Rapunzel... e conta
de novo e ela tinha o serviço da casa pra fazer e a gente: “Ah,
então vou pegar o livro e ler...”, fazia chantagem, tava com
sarampo, com febre não podia ler, ela vinha ler pra gente,
porque ela não tinha assim muito tempo.
A febre. A partir desse título Benjamin (2000) narra em “Infância em Berlim” a
presença reconfortante da mãe contando histórias ao menino adoecido, cujo apetite não se
despertava pelo jantar levado na bandeja de porcelana com suas framboeseiras silvestres. “Em
compensação, lhe apetecia ouvir histórias” (Id, p. 109). Era, então, a febre que chamava a mãe
ao quarto e eram as histórias que o faziam esquecer a dor.
Para Beatriz e sua irmã a catapora e o sarampo roubavam o tempo que a avó dedicava
às tarefas cotidianas para tê-la ali contando as histórias que as meninas já sabiam ler. Mas fora
esses momentos imprevistos, havia o teatro a abastecer de narrativas a sua infância:
...lembro da vivência da gente lendo histórias por conta do teatro,
porque a gente ia ao teatro, a gente ia à ópera, então meu pai
ficava contando, lia aqueles libretos de ópera pra gente e a ópera
130
tem sempre uma história que é uma tragédia maravilhosa, todas
são, um se mata, outro se suicida, quando o cara está chegando o
outro se matou... e aqueles libretos de ópera que a gente
acompanhava.
Mais tarde Beatriz saiu da platéia para conhecer o teatro por dentro. De espectadora
passou a freqüentar os cursos com Maria Clara Machado no Tablado, atuou em diversas peças
montadas pela mãe e fez parte de um grupo de teatro amador no Sesc Tijuca. Chegou a fazer
vestibular para o curso de teatro, mas a mãe, que curiosamente cursava a sua segunda
graduação justo em teatro, a desencorajou e o desejo ficou para trás. Queria ser atriz, mas
enviezou e optou pela literatura, apesar de, em suas palavras, não ter esse apreço de conhecer
os livros.
Em sua casa, era amplo o acesso aos livros. Aos sete anos a irmã havia lido boa
parte da coleção de Monteiro Lobato, mas Beatriz, que não conseguia tal desenvoltura, era
considerada pela família como aquela que não lia:
...eu abri As reinações de Narizinho e eram blocos e blocos de
letras pretas que eu não tinha coragem (risos). Eu não era muito
agitada quando era criança, mas eu era assim sempre de falar
muito, então eu ficava na conversa... eu lia na época da escola, li
no ginásio, li algumas coisas, li o Reinações de Narizinho, li o
Caçadas de Pedrinho, mas não li aquela coleção inteira do
Monteiro Lobato como a minha irmã, não li mesmo
Beatriz fala e diverte a todas do grupo com suas lembranças do critério utilitário em
que também se baseava a família ao oferecer livros para as crianças. Essas leituras eram, na
verdade, prescritas pelo que havia de ensinamento em seu conteúdo, como uma via indireta de
tratar de assuntos que não tinham lugar nas conversas:
Tinha um monte de livro que eu li da Condessa de Segùr, aquele
“Diário de Ana Maria”, “Diário de Denis”, que davam aquilo pra
gente quando não queriam conversar sobre sexo, davam pra gente
(risos de todas)... É!!! Davam aquilo pra gente pra não ter que
131
conversar... a menina falava na tal da regra que eu não sabia
nem o que era, que nunca tinham me explicado, aí: Droga! Tudo de
novo regrado. lia, porque naquela época era assim: era o não
dito e davam o livro pra ler e continuava o não dito, era o mais
ou menos dito (risos)... e ficava por isso mesmo, né?. Então, essas
coisas eram meio que tinha que ler e eu lia...
Apesar de não ser a leitora que se enquadrava nas expectativas da família, Beatriz
optou pela literatura quando entrou para a universidade. Fala de uma professora que no curso
Normal despertou seu interesse pelos textos literários e pelos autores que conheceu ao longo
do curso. Mas ainda estava lá, guardada, a paixão pelo teatro: Depois de muito tempo,
tendo feito literatura, eu me questionei porque que eu fiz literatura, porque o que eu queria
era fazer teatro...
Na universidade, ainda nos tempos da ditadura militar, começou a participar das
atividades da política estudantil e em seguida ingressou no MR8 (Movimento Revolucionário
Oito de Outubro), cujas reuniões clandestinas aconteciam nas madrugadas e em uma época em
que Beatriz trabalhava. Então, era o curso de Letras na universidade, o trabalho, as
atividades do Diretório Acadêmico e as reuniões e tarefas do MR8. Beatriz fala de seu
envolvimento político como uma das faces de suas relações com as narrativas:
A política foi uma coisa... eu acho que tem a ver com a contação de
história também, porque aquilo é uma coisa que organiza muito,
né?. Eu não tenho esse período mal resolvido na minha vida, não,
porque aquela coisa da reunião... aquelas reuniões que a gente
tinha de base, de você discutir as questões, de você aprofundar, de
você ouvir as pessoas... Aquilo... aquilo ensina muito, acho que
ensina mais da política e mais do discurso, de tudo... não sei... eu
achei que foi um momento na minha vida muito interessante...
Mais tempo tivéssemos, mais histórias Beatriz contaria com o mesmo gosto com que
iniciou. Sua narrativa, assim como as demais, aponta para um aspecto que interessa
sobremaneira a esta pesquisa: as relações com as narrativas na infância é apenas a ponta de
132
um novelo, desenrolado e emaranhado pelos encontros que acontecem pela vida a fora com
outros novelos de cores e texturas sem limites.
* * *
4.5- A ponte, a travessia, o lado de lá
Um outro passeio pelo cenário: conhecer a escola pela memória e pela voz de um
grupo de professoras que, convidadas a narrar suas trajetórias de vida e trabalho na instituição,
concedem ao olhar um leque de direções, um feixe de sentidos. Esses que a história oficial não
visita nem registra e que, nos encontros cotidianos premidos pelo tempo regulamentar,
algumas fagulhas teimam em despontar, mas então o sinal tocou, o dever chamou, a fila
andou. Era uma vez expressa o desejo e a necessidade de contar, de se fazer ouvir, mas
também e com freqüência, representa o impedimento, o corte, o fica para depois porque o
tempo urge. Tensão e paradoxo manifestos na reflexão benjaminiana que aponta para o ocaso
na narração ao mesmo tempo em que converge para a rememoração como necessidade ética e
política, por abrir caminhos para uma outra escritura da história (GAGNEBIN, 2004).
Quero iniciar explorando algumas expressões que, recorrentes, marcam a chegada das
professoras ao Colégio e curiosamente não se restringem às narrativas daquelas que
ingressaram na inauguração do primeiro segmento no Pedro II, mas também das que
chegaram em momentos posteriores dessa história, inclusive e de maneira enfática, das
professoras substitutas que fizeram parte desse grupo de narradoras.
No caso de Bárbara, que chegou à Unidade Engenho Novo I três anos após o início do
trabalho do Pedrinho de São Cristóvão, recém formada no Curso Normal do Instituto de
Educação do Rio de Janeiro, inexperiente, de acordo com suas próprias palavras, compreende-
se o sentimento de deslocamento que perpassa o trecho abaixo:
Eu entrei aqui com pessoas que eram diretoras de escolas no
município, quando eu cheguei no Engenho Novo, a primeira
reunião, as pessoas falavam de seus currículos e tudo que eu tinha
133
para dizer era que eu tinha trabalhado seis meses na Vasp. Então,
as pessoas nem investiram muito em mim, não acreditaram.
Esse panorama, entretanto, não se modifica quando se trata de quem trazia anos de
trabalho docente ao ingressar no Colégio. É interessante observar nesses relatos que, muitas
vezes, justamente a passagem por outras escolas, públicas e particulares, é o que faz realçar,
pela comparação, a sensação de estar diante de um mundo novo, de uma escola diferente
daquelas que conheciam. Ainda que algumas professoras se limitem ao reconhecimento dessa
diferença, deixando no ar ou no não-dito por quais aspectos esta se configura, é possível situar
nas narrativas certas pistas que esclarecem as razões dessa perplexidade inicial enquanto
permitem uma compreensão do contexto institucional, não raro referido como uma outra
realidade:
Joana:
Foi muito difícil porque eu vinha de uma realidade, tanto
pedagógica, muito diferenciada, eu tinha o ensino médio, aqui
muitas pessoas tinham a faculdade, até mestrado, então tinha
uma outra visão, tinha um outro olhar, tinha um outro trato,
tinha um outro fazer, e eu ainda estava muito arraigada a
algumas teorias e a alguns posicionamentos do passado,
ultrapassados.
Cabe assinalar que Joana antes de chegar ao CPII, aprovada no primeiro concurso para
o primeiro segmento em 1984, havia trabalhado em escolas particulares, além da rede estadual
de ensino no município de Duque de Caxias onde morava. Segundo seu relato, tomou
conhecimento da existência do CPII bem antes, através dos livros destinados à preparação
para o exame de admissão que, até o início dos anos 70, era a única via de ingresso ao antigo
curso ginasial. Esses livros traziam como exercício questões de prova de diferentes
instituições e, para Joana, aquelas consideradas “fortes” por que para ela sempre foram as
mais difíceis de resolver, eram as do Pedro II. Porém, afirma que sobre o Colégio não tinha
nenhuma informação, apenas se preparava na época para o concurso que viesse, pois como
filha mais velha precisava conseguir um trabalho que lhe desse condições de ajudar
financeiramente a família, o que a remuneração de professora da rede estadual não consentia.
134
...eu não tinha ouvido falar nada do Pedro II, nem sabia onde era o
Pedro II, quantas Unidade havia, não sabia de nada. Eu fiquei
sabendo do concurso pro Colégio Pedro II através da rádio
relógio! Eu ouvindo a rádio relógio, o cara falou: “Estão
abertas as inscrições para o concurso do Colégio Pedro II”, eu
ouvi e vim e me inscrevi e assim, passei.
Nada conhecia sobre o Colégio e por um acaso ficou sabendo da realização do
concurso. Entretanto, como referência à instituição havia as questões “difíceis” do antigo livro
de exercícios em que estudava e que, mesmo indiretamente, contribuíram para compor uma
imagem do Pedro II, a partir da dificuldade de ingresso presumida pelo desafio que
representava para ela resolver aquelas questões. A simplicidade com que descreve e resume
todo o processo entre o ouvir a notícia na rádio-relógio e ser aprovada no concurso parece se
contrapor a essa idéia, todavia, quando se refere à dificuldade que enfrentou ao chegar, ganha
nitidez a imagem de uma escola diferente daquelas pelas quais havia passado, como estudante
e como profissional, principalmente no que diz respeito à formação do quadro de professores
que encontrou no CPII:
Chama a atenção o fato de Joana atribuir as dificuldades com as quais conviveu a uma
carência de sua formação, ainda que tenha sido aprovada, apenas com o ensino médio, em um
concurso no qual entre seus concorrentes havia também graduados e mestres. Mais do que
carência, a professora qualifica como ultrapassados os saberes que trazia ao iniciar o trabalho
no Colégio diante daquele outro trato ali encontrado, apesar de ser nessa época uma
professora em início de carreira, de estar chegando a um setor recém inaugurado do Colégio e
de conviver com outros professores também recentemente contratados, na mesma situação em
que ela se encontrava. De onde viria, então, esse sentimento de menos valor em relação aos
seus saberes, ao seu modo de conduzir o trabalho?
Nesse ponto, sem pretender estender a reflexão para além dos limites deste trabalho,
convém considerar um aspecto que a meu ver, se não é suficiente para responder à pergunta
anterior, pode oferecer dados para uma compreensão mais ampla da questão suscitada pela
fala de Joana. Sendo a área de Educação um “campo minado de dicotomias” (JOBIM e
KRAMER, 1996, p.7), não raro os professores são instados a fazer escolhas nas quais um lado
e outro da moeda, caminhos nem sempre opostos e excludentes, são suficientes para
135
determinar entre seus pares uma marca que com freqüência deságua em disputas impeditivas
ao diálogo.
Nos anos oitenta, com a difusão dos estudos acerca da psicogênese da língua escrita,
quantos professores precisaram decidir, em grande medida sem uma necessária reflexão, entre
“ser tradicional” ou “ser construtivista”? Quanta tensão e insegurança tiveram como fonte essa
ou aquela opção? Do dia para a noite, ou isto ou aquilo, em um contexto no qual a expressão
“valorizar o conhecimento do aluno” passou a ser tão recorrente no discurso pedagógico
quanto, contraditoriamente, era preciso da experiência do professor apagar os rastros, como
forma segura de romper com posicionamentos e teorias do passado e passar a orientar a sua
prática em sintonia com os ares dos novos tempos. Como uma ruptura dessa natureza nunca
se por passe de mágica, seus resultados podem se traduzir em um sentimento de
instabilidade sintetizado com clareza nas palavras de Kramer e Nunes:
... Eu, professora que trabalhava com dificuldades mas que tinha clarezas
e certezas, eu passo a nem bem ter tantas certezas em relação ao que
sabia fazer, porque alguém nega, desconsidera, apaga isso que eu sabia
(Apud JOBIN e KRAMER, 1996, p.80).
Percorrendo as demais narrativas é possível encontrar a expressão desse sentimento e
trazer à cena certos elementos específicos do CPII:
Lia:
Nesse bairro, o Pedro II é um marco, assim como a Quinta da Boa
Vista, o Observatório Nacional, então entrar naquele espaço ali e
ser uma professora a mais ali dentro, era um desafio também pra
mim... entrei aqui muito timidamente no início, vi um grupo de
professores assim que parecia que sabiam tudo, que comandavam
aquela escola, que eram parte da história daquela escola, porque
tinham ajudado a fundar o Pedrinho. Aquele grupo eu admirava,
mas ao mesmo tempo eu me sentia assim pequena diante delas
porque elas sabiam tudo da escola e eu até hoje não sei... até hoje
eu não sei...
136
Cecília:
Como eu tava falando, estranhei muito a diferença que era o Pedro
II, em termos de autonomia do trabalho, assim, muitas coisas
achando maravilhoso, olha, que maravilha, isso aqui é realmente
uma escola, né, uma seriedade aqui, enfim, temos condições.
Mas em outras eu senti uma perda muito grande nessa questão da
autonomia, assim de como a pessoa é tratada... era como se eu
não tivesse experiência nenhuma e me davam tudo por escrito e
ainda liam comigo o que estava escrito e no final ainda
perguntavam: tem alguma dúvida? Era como se eu não soubesse
nada, não conseguisse ter uma estratégia pra dar uma aula, não
conseguisse eu mesma planejar uma aula. Isso pra mim foi muito
complicado porque me fez me encolher e ficar insegura, enfim,
várias outras questões que foram se acumulando que eu acho que
só agora, depois de tanto tempo, que eu fui conseguindo resgatar.
Lia e Cecília foram aprovadas no mesmo concurso em 1994, portanto dez anos após a
inauguração do Pedrinho, depois de um longo período em que a instituição atravessou sem
realizar concursos e em uma época em que ainda não era freqüente, como hoje, o expediente
do contrato temporário para professores substitutos. Mesmo tendo chegado, as duas, ao CPII
após longo período de trabalho em escolas municipais e estaduais, em suas narrativas
transparece um misto de admiração em relação às condições de trabalho e de acanhamento
perante o grupo de professores que ali estavam comandando a escola, segundo as palavras de
Lia.
Nesse ponto sobressai uma diferença significativa entre o CPII e as demais escolas
públicas do Rio de Janeiro nas quais a grande maioria das professoras entrevistadas iniciou
seus percursos profissionais: a estrutura pedagógico-administrativa. Além das coordenadoras
de área Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, Literatura, Artes,
Educação Física e Música fazem parte da equipe as Orientadoras Pedagógicas
34
que
acompanham o trabalho de cada ano de escolaridade
35
e que se revesam nos encontros de
planejamento que acontecem semanalmente. As professoras que compõem essa equipe não
34
Daqui em diante serão referidas como OPs, do modo como são nomeadas no cotidiano da escola.
35
De cada série pela antiga nomenclatura.
137
exercem atividades docentes, dedicam-se exclusivamente à orientação e organização
pedagógica da escola e passam a ocupar essas funções por tempo determinado após uma
consulta à qual todas as professoras da escola têm direito a voto. Por um lado, para as
professoras egressas de escolas municipais e estaduais, poder contar com o apoio de uma
equipe desse porte atesta a seriedade e compromisso da escola em realizar um trabalho bem
fundamentado. Por outro, e principalmente de início, pode representar um lugar de excessiva
especialização e controle, a partir do qual é possível explicar a timidez inicial e o sentimento
de que, estando diante de um grupo que tudo sabe, os saberes e práticas anteriores passem a
ser desconsideradas e até ocultadas.
Não se trata aqui de afirmar que o trabalho da equipe pedagógica se orienta em
autoritariamente desqualificar ou substituir os saberes das professoras, o que seria injusto e
leviano, porém não se pode descartar o impacto que representa, principalmente para quem
chega de outros contextos nos quais muitas vezes o trabalho chega a ser solitário, uma
estrutura de acompanhamento assim instituída. Está claro também que essa feição
institucional não provoca em todas uma resposta idêntica ou que a impressão inicial perdure
ao longo do percurso das professoras no Colégio, muitas nuances entre o encantamento e a
insegurança, entre a admiração e heteronomia, contudo esse é um aspecto que, de uma
maneira ou de outra, foi referido pela maioria das entrevistadas como um lugar que diferencia
o CPII de outras escolas públicas.
Madalena, anos atuando em unidades de Educação Infantil do município do Rio de
Janeiro antes de entrar para o CPII, manifesta sua impressão por meio da comparação entre o
tempo dedicado ao planejamento e acompanhamento do trabalho em sua escola de origem e
aquele que encontrou no Pedro II. Em seu relato a professora define o início do trabalho no
CPII como um período de deslumbramento diante de uma estrutura e organização que nem de
longe poderia se equiparar àquela na qual havia trabalhado anteriormente:
...na verdade, no município, era uma orientadora, você encontrava
com ela a cada quinze dias pra fazer um planejamento, né, isso
porque eu trabalhava numa escola que era privilegiada. Então essa
coisa do acompanhamento pedagógico aqui me maravilhou, eu
gostei... e foi um período de deslumbramento mesmo meu início...
138
Em outro trecho de sua narrativa, Lia aponta o que Madalena deixa em aberto, ou seja,
que a estrutura mencionada sem dúvida provoca inicialmente uma resposta positiva, mas nem
por isto impermeável à crítica, principalmente pelo desconforto de não se perceber autora de
seu trabalho, ao contrário do que ocorria nos tempos de município onde aprender e ensinar se
conjugavam em dimensões ativas em seu ofício.
... eu vejo o Pedro II às vezes, por muito tempo eu o vi, como se eu
tivesse aprendendo aqui dentro, eu tava contribuindo com o que eu
sabia mas eu tava muito mais aprendendo do que ensinando, então
aqui... pode parecer paradoxal pelo que eu falei [referindo-se à
afirmação anterior de que o tempo de trabalho no município foi para
ela uma verdadeira escola] , mas não é... eu digo assim: eu parecia
uma aluna aqui, no município eu tava aprendendo mas eu era a
professora da turma, aqui eu era uma aluna vendo as colegas
trabalhando, eu tava me apossando da filosofia daquele colégio, eu
tava vendo uma estrutura totalmente diferente da que eu vivi,
porque no início eu achava interessante demais e hoje eu já não sei
se é tão interessante como eu vi quando eu cheguei...
As críticas a essa estrutura, que hoje Lia é capaz de expressar, permaneceram
encobertas durante o período em que se sentia estar ainda se apropriando do que nomeia como
filosofia do Colégio, enquanto se colocava como uma aluna observando o trabalho das
colegas. A conquista da autonomia e a reconquista da autoconfiança pela percepção de que,
embora nova na casa, ou talvez por isto mesmo, poderia efetivamente contribuir para o
trabalho pedagógico no Colégio, abriram caminho para que, tanto Lia como outras, pudessem
perceber nessa outra realidade as circunstâncias e encaminhamentos por meio dos quais a
própria autonomia e autoconfiança, imprescindíveis para o trabalho docente como se
depreende dessas falas, pudessem se encontrar de alguma maneira cerceadas.
Independente do tempo na carreira docente, do tempo de trabalho na escola ou do tipo
de vínculo que mantêm com a instituição, a idéia de terem vivido um período de adaptação ao
trabalho no CPII é recorrente nas narrativas das professoras. Suas falas, porém, remetem a
sentidos para esse adaptar-se que não se limitam à conformação ou acomodação ao modelo
instituído, mas fazem sobressair também as saídas que encontram ou produzem para fazer
emergir sua autonomia. Desse modo, é possível compreender essa adaptação não como atitude
139
de absorção passiva de regras e procedimentos, mas como luta pelo direito de exercer a
autoria de seu trabalho. Por essa referência, constante na maior parte das narrativas, é possível
focalizar outros aspectos relevantes para entender essa urdidura, frequentemente mencionada
pelas professoras como estrutura ou organização da escola, das relações que por ela são
determinadas e, a partir daí, buscar compor a moldura do lugar da narrativa nesse contexto.
Aprovada no concurso de 2002, Ana assumiu suas funções no CPII em 2005
quando precisou, principalmente pelas melhores condições salariais que este oferecia, fazer
uma difícil escolha: abrir mão de seu trabalho na sala de leitura de uma escola municipal
onde, segundo seu relato, se encontrou como professora. Enquanto conta o quanto foi penoso
deixar para trás o trabalho no qual conseguiu, apesar das dificuldades, estabelecer importantes
vínculos com seus alunos, com a escola e com a carreira na qual ingressou sem ter sido
propriamente por uma escolha pessoal, vai revelando os aspectos que no CPII significaram
para ela o ingresso em uma outra realidade à qual foi necessário um empenho para adaptar-
se:
...foi difícil me adaptar, é uma escola muito maior, que a gente tem
aqui nessa Unidade São Cristóvão, é um colégio muito grande, com
vários setores, com uma organização totalmente diferente, é um
colégio que tem uma história diferente, isso conta muito. O perfil
dos alunos é diferente... é diferente, o perfil dos profissionais é
diferente... então essa adaptação foi difícil, não entrar na sala de
aula e dar aula, isso pra mim foi fácil, as coisas que eu não sabia
eu fui correr atrás pra ler e buscar, pesquisar para levar para eles
na sala de aula, isso foi tranqüilo, o difícil foi me adaptar a esse
regime diferente, ... aqui tem uma... é uma escola mas não é uma
escola como qualquer outra... é diferente, né... as idéias, eu acho
que são as idéias que são diferentes. A escola é a mesma, é uma
escola com professor, com aluno, isso é igual, mas as idéias são
diferentes, o clima é diferente, porque uma é municipal a outra é
federal, uma é uma escola pequenininha de comunidade, a outra é
uma escola que traz alunos do Rio de Janeiro inteiro, até de fora,
então eu acho que as idéias são diferentes, o trabalho ele tem um
ambiente diferente, então ele acaba fluindo diferente.
140
Ana faz questão de ressaltar que suas dificuldades de adaptação não se situaram no
âmbito do trabalho em sala de aula onde a atuação do professor pressupõe estudo e pesquisa,
dando a entender que esse movimento não se inaugurou com o ingresso no CPII, ou seja, foi
tranqüilo pelo fato de fazer parte de sua prática. Contudo, para esclarecer as razões de seu
estranhamento, enumera alguns dados que, presentes também em outras narrativas, merecem
atenção. Quanto ao que nomeia como perfil dos alunos e professores reconhecendo um
ponto que diferencia o CPII de sua escola de origem, embora não esteja claro em sua narrativa
que critérios utiliza para identificá-lo, é possível inferir o aspecto sócio-econômico.
No que diz respeito alunos, o fato da Unidade São Cristóvão I receber crianças não
de diferentes bairros do Rio de Janeiro, mas também de outras localidades da região
metropolitana, indica uma disponibilidade financeira das famílias diferente daquelas que
matriculam seus filhos em escolas públicas situadas nas cercanias de seus bairros de moradia,
embora não permita afirmar que o CPII não receba alunos oriundos das classes populares,
posto que o ingresso não é feito por concurso mas por sorteio público. Em relação aos
professores, ressalta-se a questão da formação. Não hoje na Unidade São Cristóvão I
nenhum professor com formação em nível de ensino médio ou antigo curso Normal, todos
possuem pelo menos um curso de graduação e muitos a titulação de mestrado ou doutorado,
incentivados por um plano de carreira que agrega vantagens financeiras tanto pelo tempo de
serviço quanto pela titulação.
Mas o que chama a atenção na fala de Ana é a perplexidade frente a uma escola grande
e setorizada, cujo regime diferente impôs a ela, que chegava de uma pequena escola inserida
em uma também pequena comunidade, um esforço de compreensão de seu funcionamento,
sua lógica, suas idéias. Depreendem-se daí inclusive as dificuldades relacionadas à inserção
em um grupo que, por se reunir em equipes de séries ou atividades e por contar com parcos
momentos de encontro informais, não propicia de imediato a sensação de pertencimento e de
acolhida.
Para Carolina, professora substituta cujo contrato de dois anos expirou no final de
2007, esse sentimento de não-pertencimento se exacerba pelo fato de não ser professora
efetiva da escola:
141
...eu me deparei com uma realidade escolar assim maravilhosa,
mas não tava me vendo ali... assim eu vejo que... porque eu não
posso fugir da comparação porque eu tinha tido contato com
outra realidade. [...] Eu acho que a gente quando não passa num
concurso, ainda, que está sendo o meu caso, a gente não tem...
como eu posso explicar pra você? A carta de crédito? Pra dizer
assim: eu sou capaz. Infelizmente na nossa sociedade, nós medimos
as pessoas através de avaliações. Nós não medimos o talento, a
capacidade da pessoa através de coisas práticas, do cotidiano no
qual ela poderia se sair muito bem, então eu vejo que é por conta,
assim, de um contrato...
Se no caso das professoras concursadas, como visto, que se passar por uma espécie
de rito de passagem até que se sintam pertencendo àquele grupo, até que se percebam capazes
de dizer a sua palavra, de dar a sua contribuição, é perfeitamente possível que as professoras
substitutas vejam o término de seus contratos sem que cheguem a conquistar a autonomia,
segurança e reconhecimento, definidos por Carolina como carta de crédito. Por certo não se
trata somente de uma questão de tempo essa conquista, porém o período limitado de dois anos
em que as professoras substitutas permanecem na escola basta, por si só, para imprimir esse
sentimento enfatizado na fala de Carolina pela dificuldade de estar se vendo ali, ou, o que é
ainda mais cruel, quando enfim começam a se sentir à vontade nas relações e no trabalho, é
chegada a hora de se despedir.
Não se pode negar que a condição de professora substituta, dada a sua transitoriedade,
concorre para limitar as possibilidades de superação desse estado de acanhamento, e que no
caso das professoras efetivas, o fato de contar com a continuidade do trabalho pode favorecer
uma atitude de confiança do valor de suas contribuições, como é possível observar em outro
trecho da narrativa de Lia:
No início eu fui bem aluna daquilo que eu cheguei e vi, com o
tempo eu comecei a dar certas opiniões, a me mostrar mais, a
trazer mais contribuições, eu sabia que eu era capaz mas eu tinha
aquela... sei lá, um pouco de vergonha, um pouco de medo... sei
lá... de receio de que as coisas que eu trouxesse não fossem bem
142
recebidas e depois eu fui vendo que as pessoas que chegam também
elas vão mesclando, não era só aquele grupo que trazia, até a gente
trazia, nós novatas, digamos assim, trazíamos contribuições pra
elas, pras pessoas que estavam aqui antigas.
A setorização da escola aparece também como um problema na narrativa de Lia que se
ressente da falta de continuidade dos relacionamentos no CPII e atribui a esse quadro certo
isolamento das equipes que, segundo sua avaliação, dificulta a formação de vínculos
duradouros entre os membros desses grupos:
...“ah, certo porque tem tudo assim, tudo é
compartimentalizado, tudo é dividido, tudo é por conteúdo, é
separado por áreas, as equipes trabalham ali, mas elas quase que
têm contato com a equipe em si, a equipe da segunda série, a
equipe da primeira série”. Enquanto isso nas outras escolas que eu
trabalhei era tudo assim um tanto misturado, a gente estava ali,
todo mundo, tinha uma intimidade grande, enquanto que aqui a
gente vê assim que até na relação humana a gente se envolve muito
com as pessoas num determinado ano, no ano que vem você está
em outra equipe de outra série e você quase não tem mais contato
com essas pessoas. Você passa no corredor fala oi correndo, você
tem até saudade, tem vontade de conversar, saber como é que está
a vida porque você se tornou íntima e a escola não te proporciona
por essa estrutura toda dividida...
Pelo olhar de Lia, a setorização da escola não se limita à esfera administrativa, mas
alcança a orientação pedagógica e produz os efeitos de sua lógica nos relacionamentos que,
firmados a cada ano letivo ou enquanto permanecem as equipes, encontram dificuldades para
consolidar-se fora desses círculos. Observa-se que, de início, a organização em setores
diferentes e especializados foi por ela percebida como um fator que poderia explicar o porquê
de o CPII ser, em suas palavras, uma escola pública que dá certo.
Suas críticas a esse perfil institucional, entretanto, não invalidam o reconhecimento,
também enfatizado em outras narrativas, de que no Colégio existe o compromisso por parte da
143
equipe de professores de buscar realizar um bom trabalho. A avaliação de Lia não coloca em
questão do compromisso com a qualidade do trabalho realizado, mas os efeitos colaterais de
um sistema que à primeira vista pode dar a impressão de ser responsável por essa qualidade,
contudo não favorece o estreitamento das relações, a intimidade que costumava compartilhar
com seus pares nas outras escolas em que trabalhou antes de ingressar no CPII.
Teresinha, que chegou ao Pedrinho no ano de sua inauguração e espera sua
aposentadoria para maio de 2008, no trecho abaixo, sob outra perspectiva, se reporta à mesma
questão apontada por Lia. Ao falar de como foi complicado encontrar tempo para conceder a
entrevista numa quinta-feira, dia da semana em que permanece na escola em dois turnos,
reflete sobre a importância de haver espaço e tempo na escola que possam contemplar não
os temas e encaminhamentos do trabalho, mas a conversa, a troca de idéias sobre a vida:
...que a gente fica muito restrita, fica. A gente quer trocar,
conversar, desabafar, até falar da vida pessoal, não é? Não quero
falar com o marido, quero falar com alguém (...) não precisa ser
amiga, alguém que ouça, eu não acho questão de amizade não. De
repente você está indisposta: “Oh Valéria deixa eu desabafar com
você?”Vou e falo. E eu acho que a gente está perdendo isso sim.
É uma pressa (...) Os encontros que a gente tem são sempre para
trabalho, entendeu?
Teresinha fala de uma perda, o que remete a outro segmento de sua narrativa no qual
se recorda de épocas passadas em que, segundo sua avaliação, havia mais disponibilidade para
os encontros fora da escola. Ao comparar com a circunstância atual, cita o exemplo de uma
tentativa recente de reunir o grupo para comemorar os aniversários do período, frustrada pela
incompatibilidade de horários, tanto dos aniversariantes quanto dos convidados. Essa perda,
no entanto, não é reconhecida com base somente no fato de ter se tornado cada vez mais
escassas as oportunidades do grupo estar junto fora do horário de trabalho. Refere-se também
aos encontros que, na escola, embora aconteçam com freqüência e regularidade, se restringem
à discussão acerca dos assuntos profissionais, restando pouco tempo e ocasião para ouvir e
fazer ouvir uma outra palavra, além daquela a serviço da razão, da técnica, da informação.
144
Teresinha fala também de uma pressa e, ao colocá-la a par e passo com o predomínio
da informação a mediar as relações na escola, observa que algo se perdeu. Para Benjamin
(1994) onde prepondera a informação e sua fugaz validade, instaura-se a pressa, o ritmo
acelerado, o tempo cada vez mais raro concorrendo com a necessidade de absorção máxima; o
fluxo incessante de coisas a saber que nos arrebata e não sabe esperar. É esse o contexto que,
segundo o autor, impede o homem, na modernidade, de se constituir como sujeito da
experiência; é nesse cenário, portanto, que do discurso vivo cada vez mais se afasta a narrativa
e das relações entre os sujeitos se esgarça a comunidade de ouvintes.
Buscar compreender os meandros pelos quais esse quadro ganha terreno no interior
das práticas institucionais não se basta pela constatação de uma perda, de uma falta, mas das
significações que ela produz nas relações e nas práticas da escola. Entretanto, se com
Benjamin (Op. cit.) é possível localizar nessas práticas os aspectos que se intervêm à
experiência e à narrativa, é a companhia do autor também que permite vislumbrar “uma nova
beleza ao que está desaparecendo” (Id., p. 201), ou seja, buscar a narrativa nas ruínas da
narrativa.
Capítulo 5: TEMPOS DE ESCOLA, TEMPOS NA ESCOLA: INTERSEÇÕES E
RUPTURAS
5.1- Tempos de escola: do percurso de estudante ao ofício docente
As experiências relacionadas ao tempo vivido no ambiente escolar e ao percurso de
estudante representaram um importante espaço de rememoração das professoras, tanto que
145
muitas vezes essas referências emergem mesmo em passagens em que a escola não é o tema
central da narrativa. Compreensível essa recorrência, considerando se tratar de uma categoria
profissional sui generis que, a rigor, desde a infância e a partir do ingresso na escola
permanece em interação com esse contexto institucional até a finalização de seu ciclo de
trabalho, ainda que cambiando papéis e responsabilidades ao longo do percurso. Cabe
assinalar que na conversa anterior à entrevista, que embora não esteja registrada posso
considerar como parte integrante da mesma, não houve de minha parte uma solicitação direta
sobre o resgate do percurso de escolarização, mas sim de trazer à luz as relações estabelecidas
na infância com o ato de narrar incluindo a escola nesse rol.
Na lembrança das circunstâncias e motivações que orientaram o ingresso na carreira
docente essas referências aparecem com maior nitidez quando cenas e cenários do processo de
escolarização e do percurso de estudante são evocados a partir de imagens e acontecimentos
significativos, das relações e sentidos que ali se constituíram, dos lugares, das pessoas com
quem conviveram, dos itinerários que apontaram para o tornar-se as professoras que hoje
são. Embora o foco da pesquisa não se concentre neste aspecto, a intensidade com que as
professoras se dedicaram a recuperar os caminhos que as conduziram ao trabalho docente e
como tema as mobilizaram pela rememoração de seus tempos de escola, seja como estudantes
ou como profissionais, tornou-se pertinente destacar algumas passagens. Desse modo procuro
mostrar o quanto as experiências constituídas no contexto escolar são vívidas memórias para
as professoras, em contraponto, como será evidenciado mais adiante, às parcas lembranças
sobre narrativas que os tempos de escola são capazes de evocar.
Nesse viés ganham destaque as memórias das escolas pelas quais passaram ao longo
da trajetória profissional, os percalços e as conquistas, as aprendizagens e as frustrações
vividas e sofridas não diante dos desafios impostos pelo início da docência, mas sobretudo
pelas condições de trabalho quase sempre avessas às idealizadas durante os cursos de
formação. A narrativa de Ana é exemplar de um quadro de desapontamento que se anuncia
no Curso Normal cujo ingresso não se deu por escolha pessoal:
O Colégio Normal foi uma experiência assim horrível (risos),
porque... eu não gostava, não gostava de nada que era feito ali, eu
achava que eu não gostava de dar aula, tudo que era mostrado...
que era apresentado a mim eu não gostava, então assim, eu ia
146
fazendo o Normal meio que empurrando, mas com aquela coisa de
que vou terminar e não quero ser professora... mas, assim, quando
eu comecei a entrar, a gente começou a ter o primeiro contato com
a prática, com os estágios que a gente fazia nas escolas... naquela
época, que não faz tanto tempo assim, eu me formei em... na Escola
Normal, foi em 96, então não faz tanto tempo... Naquela época, no
estágio, eu me chocava porque a gente faz o estágio em escola
pública municipal, e eu ficava chocada assim... com... como as
coisas funcionavam, os alunos, como eles eram, o perfil dos alunos
tinha... hoje em dia, assim, está... a realidade a cada dia ela vai
se agravando mais... mas naquela época os alunos eram bem
carentes, então aquilo ali pra mim foi... serviu pra mim de... foi
mais um motivo pra eu dizer que não queria ser professora, que eu
via uma realidade muito carente, o perfil dos professores também
não me ajudavam, porque quando você olha pra alguém que você
algo positivo, você uma motivação, uma alegria, um
entusiasmo, você se entusiasma também, né? Então eu via na figura
daqueles professores com quem eu convivi ali eu via é... imagem de
pessoas cansadas, de pessoas que estavam ali muito desmotivadas
e descrentes mesmo com o que estavam fazendo, então naquela
época havia isso, então a minha perspectiva era de terminar ali
e partir pra outra.
Se o curso de formação de professores não foi capaz de proporcionar a Ana
experiências significativas a ponto de suscitar seu interesse pelo exercício docente, os
primeiros contatos com a escola na situação de estágio contribuíram ainda mais para
confirmar a sua determinação de investir em outras vertentes de formação profissional tão
logo concluísse o curso Normal. De um lado o impacto do encontro face a face com um
contexto social e cultural diverso daquele de sua origem familiar e a constatação in loco da
crescente pauperização da população; de outro a percepção de um quadro de desalento em
relação ao trabalho docente por parte das professoras que ali conheceu, projetando em seu
futuro profissional uma imagem que em nada a estimulava a persistir. Porém, no desenrolar da
história de Ana a situação financeira da família à época da conclusão do curso a levaram a
147
prestar concurso e logo no ano seguinteestava trabalhando em uma escola do município do
Rio:
Eu tinha muita vontade de fazer medicina... e aí quando eu terminei
o Normal, tive uma sorte danada... não sei se foi sorte ou azar, de
passar pro... hoje eu vejo que foi sorte... de passar pra prefeitura,
novinha com 18, tinha acabado de... não tinha nem feito 18 anos
ainda, e passei pra prefeitura municipal. É uma história que eu
ouço direto, várias professoras aqui que trabalham com a gente
têm essa história de terem entrado bem novinhas, e foi o que
aconteceu comigo também. E foi a felicidade da família porque
tão nova ter conseguido um emprego e tal... nosso problema não
foi a separação familiar, também teve problema financeiro que
estava junto. Então fui pra prefeitura trabalhar e aí... comecei a...
sem querer você é obrigado a aprender, você é obrigada a se
envolver ali, e foi uma verdadeira escola... começou a minha
escola de vida, quando eu fui pra prefeitura. Na prefeitura, assim,
no início quando eu entrei eu sentia que aquilo ali seria um desafio
muito grande pra mim, primeiro por ser muito nova, e as pessoas te
subestimam, né? E depois por conta da própria realidade, mas,
assim, com o passar do tempo... foram seis anos no total... durante
esses seis anos eu fui acumulando, aos pouquinhos fui aprendendo,
eu sempre tive essa postura de... de me juntar às pessoas pra
aprender, de ficar... colar ali, ficar do lado olhando, junto pra ver
como é que a pessoa faz pra fazer também. Então sempre tive essa
postura de estar aprendendo, nunca tive vergonha de perguntar
como é que faz, e de pedir ajuda, e eu fui caminhando e fui
construindo aí uma bagagem.
Pela narrativa Ana reconstrói sua história, suas experiências, suas práticas,
identificando e avaliando os momentos-chave de sua formação. A aprovação no concurso
representou, sim, o adiamento do sonho de cursar medicina, entretanto o trabalho efetivo na
escola propiciou uma compreensão diferente daquela construída nos tempos de curso e de
estágio, inclusive em relação aos seus pares que passam de pessoas descrentes com o trabalho
148
àquelas que contribuíram efetivamente para sua formação; com quem tem acesso a novas
aprendizagens, com quem compartilha saberes e fazeres e de quem recebe ajuda para
encontrar seu próprio caminho e construir sua identidade profissional.
Perdas e ganhos estão em jogo nessas passagens. Se por um lado o efetivo trabalho nas
escolas municipais impôs a Ana a renúncia a outros projetos, por outro propiciou o que, no
trecho abaixo, ela nomeia de amadurecimento pelo enfrentamento de desafios que a princípio
pareciam além de sua capacidade e disponibilidade de jovem professora recém-formada.
Referindo-se ao ingresso no município como o início de sua escola de vida, Ana sugere que
este não foi um marco importante somente no âmbito profissional, mais, sua fala é eloqüente
em mostrar a fragilidade das fronteiras artificial e ideologicamente erigidas entre vida e
trabalho do professor:
...na prefeitura, eu convivi durante esses seis anos com uma
realidade muito, muito difícil, muito complicada, uma coisa que eu
queria sair, mas que eu estava ali eu comecei a dar o melhor de
mim, entendeu? Então, passei por várias escolas, trabalhei na
Cidade de Deus, na época em que era rodado até um filme com
esse nome... vi coisas que me deixaram chocada mas que pra mim
trouxeram verdadeiras lições de vida, acho que de amadurecimento
também. Foi que eu comecei a amadurecer mais e comecei a dar
o melhor de mim, comecei a me envolver no trabalho, fui parar
numa escola que era uma escola de quinta à oitava em que eu
trabalhava na sala de leitura, e os alunos eram super carentes, eles
eram muito agressivos, eles eram rebeldes... rolava muita coisa ali
complicada que... a ponto de as pessoas que entravam nessa
escola, elas se viam assim... não viam a hora de sair, elas
entravam com vontade de sair. Então um ambiente que a princípio
ninguém quer trabalhar num ambiente como esse e eu lá acabei me
descobrindo... Porque a princípio eu me dei super bem com os
alunos, porque eu era novinha, então eles se identificaram muito
comigo, então eles me ouviam e eu conversava muito com eles, eles
começaram, assim, a amolecer, e ao mesmo tempo eu cobrava
muito deles, eu mostrava pra eles que eu era a professora, então
149
que ali eles tinham que estar me respeitando. Foi uma experiência
incrível... eu ver que aquelas meninas adolescentes se espelhavam
em mim, foi que eu comecei a ter consciência da... da
importância... do papel que eu tinha ali, né?... foi que eu
comecei a me preocupar mais... caiu a ficha... que tudo que eu
fazia pra eles, aquilo ali era um exemplo. Então isso foi uma coisa
que me amadureceu muito... os meninos também eles eram muito
criativos, eles faziam grafiti, aqueles desenhos, eu consegui... a
gente conseguiu... eu consegui batalhar junto com a direção da
escola a gente conseguiu fazer toda fachada da escola com grafiti
dos alunos... Então era uma coisa que estava me dando prazer, era
aquela coisa de eu acordar... era uma escola perto da minha casa,
quer dizer, era uma comunidade que eu tinha... que eu me
identificava, então eu ia pra casa... ia pro colégio e era uma coisa
que me dava prazer. Eu não vivia em função disso, do meu
trabalho, sempre fiz outras coisas e tal, mas não ia pra
trabalhar e ganhar o meu dinheiro, eu ia pra fazer um trabalho
que eu amava.
Percebe-se que o sentimento de cair a ficha, de se descobrir, de reconhecer o seu lugar
de professora e realizar seu trabalho com entusiasmo, não se deu como acontecimento, mas
como um processo pleno de dificuldades e ainda permeado de vontades de desistir. Em sua
narrativa Ana não diz, mas conta de um exercício de alteridade tão difícil quanto necessário
nessa jornada de se tornar professora. A imagem do espelho, que ela evoca ao falar da
identificação das meninas e meninos com a professora recém-chegada à escola onde muitos
dos seus pares ansiavam pela hora de se despedir, faz pensar, faz duvidar de uma mirada de
mão única. Quem olhava e quem se via no olhar do outro? Como o dom das histórias é
chamar outras histórias, esse trecho da narrativa de Ana me chamou o conto “O espelho” de
Guimarães Rosa que transcrevo apenas o início:
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que
me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-
me tempo, desânimos, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando
conhecimentos que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que
150
sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade-um
espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou,
as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de
um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando
nada acontece, um milagre que não estamos vendo (ROSA, 1981, p.
61).
Que fatores teriam, enfim, concorrido para que em seu trabalho Ana pudesse seguir um
atalho e se desviar do sentimento de desânimo e descrença dominante à sua volta? Não creio
que seja possível encontrar respostas na ordem do mensurável, da racionalidade da aquisição
de instrumentos e técnicas orientadores da ação pedagógica, menos ainda na esfera do
milagroso. Por certo não se trata de buscar respostas precisas para algo que se constitui, como
aponta Nóvoa (2007), na complexidade de um processo pelo qual cada sujeito se apropria do
sentido de sua história pessoal e profissional. Nessa perspectiva, e em consonância com a
essência da narrativa, importa fazer ressoar as experiências ao mesmo tempo singulares e
coletivas, quando o que nos concerne e nos constitui alcança o estatuto social por ser
testemunhado pelo outro.
Assim como Ana, o tempo de escola que Joana elege destacar é o de seu ingresso no
curso de formação de professores, mais precisamente as circunstâncias que a conduziram a
essa opção tão logo concluiu o então chamado primeiro grau:
Eu sou Joana, a história de como eu virei professora é muito
interessante... Eu como uma boa afro-descendente, que não conheci
meu pai, tive oportunidade de conhecer minha mãe, uma grande
mulher. Sempre estudei com uma certa dificuldade, minha mãe me
mantinha na escola com uma certa dificuldade e justamente no ano
em que eu terminei o primeiro grau, minha mãe sofreu um acidente
muito sério, muito grave, assim, que desnorteou toda a família e eu
pensei até que eu não continuaria a estudar... tanto que as minhas
colegas falavam: “Ah, eu vou prestar concurso para tal lugar, eu
vou fazer não sei quê...” e eu não tinha nem planos, não tinha
expectativa nenhuma. Fiquei na minha, fiquei quieta. Minha mãe
um dia, quando ela foi fazer tratamento, estava fazendo
151
fisioterapia, ela passou pelo Instituto de Educação Governador
Roberto Silveira em Duque de Caxias e ela viu que no dia seguinte
seria o último dia de inscrição e ela chegou em casa e falou:
“Joana, vai lá...”. Eu, como filha muito obediente que sempre fui...
era muito questionadora mas era obediente, eu questionava mas...
eu fui e fiz a inscrição. Interessante que para fazer a inscrição,
eu era menor, precisava da assinatura da mãe. Eu dei uma
voltinha, eu mesma fui lá, assinei e entreguei... eu sempre fui muito
prática, muito resolvida, é para resolver, vamos resolver logo,
então: é para fazer inscrição? Precisa voltar em casa para mãe
assinar? Não, eu mesma assinei e devolvi. E fiz a prova, passei,
passei bem, apesar de tudo que estava acontecendo na minha
família, com minha mãe, eu estava muito mexida na época por
causa disso, mas mesmo assim eu fui uma das primeiras colocadas
nesse concurso. Minha cabeça estava tão cheia de tantas coisas,
que eu fui seguindo o processo... passei, tem que levar documento
tal dia. Fui levar os documentos, estou eu na fila para fazer a
matrícula no ensino médio e aí, para a minha surpresa, eu vi que a
pessoa que estava atendendo as meninas estava perguntando:
“Qual curso você quer fazer?” E eu não tinha pensado nisso...
eu fiquei apavorada! Lá, na época, tinha secretariado,
contabilidade e formação de professores. E aí, a menina que estava
imediatamente à minha frente, ela falou: “Formação de
professores”. Então, o que fiz eu? Também falei: “Formação de
professores”, e assim eu me tornei professora.
Ainda que à primeira vista possa sugerir uma sucessão de eventualidades, o que em
poucas palavras Joana narra é uma história de lutas. A luta de sua mãe para mantê-la na
escola, apesar das dificuldades sofridas por ela e conhecidas por tantas mulheres que sozinhas
assumem a criação dos filhos; sua própria luta para continuar na escola quando os
acontecimentos e as circunstâncias à sua volta apontavam para a interrupção dos estudos.
Calada ouvia os projetos promissores que suas colegas arquitetavam e também sem alarde
esperava. Silêncio e espera, mas não passividade e conformismo em relação ao que estava
152
posto e imposto por uma estrutura social excludente que nega possibilidades de sonho e
perspectivas aos filhos e filhas das famílias das classes populares.
A história de Joana fala de ações de resistência. Na contramão do destino,
teimosamente inventa saídas para romper com o instituído e produzir sua história “com gestos
hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’” (CERTEAU, 1994, p. 104). Faz lembrar
o percurso do herói dos contos populares que contra uma ordem instituída, pela astúcia,
inteligência e criatividade, reverte ao seu favor as adversidades do enredo superando desafios
além de suas forças. Para quem não tinha nenhuma perspectiva de continuar inserida no meio
escolar, compreende-se a “escolha” fortuita pela carreira do magistério, pois se não tinha
esperanças de sequer continuar estudando, acalentar um sonho de formação estava naquele
momento fora de questão. Ao que tudo indica, quando, obediente, seguiu a orientação da mãe
e foi resolver por si mesma os trâmites do concurso, seu propósito se concentrava em
simplesmente garantir uma chance de prosseguir os estudos, não se tratava de definir ou
sacramentar uma escolha ponderada e planejada. Teria escolhido outra carreira caso a moça
que a antecedia na fila da matrícula tivesse declarado uma opção diferente de curso? Ao
afirmar que assim se tornou professora, Joana fala de uma conquista pelo avesso. Por certo
esta não se cumpriu ali, naquele dia, naquele momento, mas, desse ponto de partida se
desdobra em travessia que hoje ela traz para narrar.
Nem todas as professoras conseguem determinar, assim como Joana, um marco
definidor do ponto de partida de sua trajetória de professora. Na infância, as brincadeiras de
escola, de fazer de conta ser professora são recorrentes em grande parte das narrativas, embora
nem sempre essas referências sejam evocadas propriamente como origem de uma escolha
profissional. Foi comum, no entanto, que as professoras situassem em seu tempo de criança os
primeiros interesses pela atividade docente, muitas vezes associando-os ao gosto de estar no
ambiente escolar, às experiências relacionadas ao lugar de estudante, como o faz Cecília no
trecho abaixo:
Bom, lembrando das primeiras vezes que essa idéia me ocorreu
eu era bem pequena, bem pequenininha comecei a falar que eu era
professora e ninguém me tirou essa idéia da cabeça (risos). A
família inclusive, eu avalio hoje em dia, que deve ter achado isso
assim uma (...) até uma grande conquista na família que poucas
153
pessoas eram letradas, alfabetizadas e tal que até pela família do
meu pai o grande exemplo de mulher, de sucesso, independente,
era justamente uma prima que mora em Portugal, mas que ela era
professora, sempre foi a única da família ou uma das poucas na
família que foram estudar, que saíram da aldeiazinha lá no interior
de Portugal para (...) então era um exemplo de uma pessoa que
tinha procurado outra vida, vamos dizer assim, e saiu para estudar.
Então pela família do meu pai, eu lembro que isso deve ter sido
entendido, esse meu desejo expresso desde logo quando
pequenininha, deve ter isso inclusive incentivado por esse exemplo
dessa outra prima que era uma pessoa muito admirada pela
família. Agora, tirando isso — porque eu não sei até que ponto isso
contou mas também tinha um movimento meu, realmente eu
lembro que desde pequenininha sempre falando de ser professora,
talvez como brincou a Célia ainda agora (risos) me mostrando que
talvez eu nunca tenha sido muito certa de gostar de estar na escola,
de gostar de estudar, enfim, de valorizar esse espaço escolar com
todos os desafios que ele tem , então eu fui.
Ao que parece nem mesmo Cecília arrisca sopesar o quanto a aprovação e o
sentimento de orgulho da família contribuiu para estimular um interesse instalado ou, ao
contrário, se o valor atribuído ao lugar da professora na história familiar orientou sua
inclinação precoce pela carreira docente. O fato é que as experiências relativas ao ambiente
escolar e ao ato de estudar aparecem como lugar de importância, que não exclui o
questionamento, desde muito cedo em seu percurso, a ponto de ser referido como possível
fator a influenciar sua escolha pelo ofício docente.
Esse aspecto foi também enfatizado nas lembranças de Yolanda que para contar como
se tornou professora se reporta a uma afinidade com o convívio no contexto escolar que, no
seu caso, acrescenta-se a experiência de vivê-lo sob um ponto de vista diferente daquele
decorrente de sua condição de estudante:
Yolanda:
Minha mãe era professora, trabalhava em escola, ela ficou doente,
por isso teve que sair da sala de aula e passou para a secretaria.
154
Ela foi. Não tinha com quem deixar filho, ia eu para escola
trabalhar na secretaria com ela. Fazia boletim, fazia as fichas de
avaliação – ela era professora do município – e aí eu sempre gostei
desse ambiente escolar, de estar na escola. Minha mãe era uma
referência muito forte na minha vida e ela gostava de ser
professora, então ela fazia, mesmo fora de sala de aula, ela fazia
uns projetos com os alunos de samba, alunos no morro e tal, e
levava à frente e eu sempre participando disso. Em casa eu gostava
de brincar com os perfumes, fazendo fila de boneca (risos), de
forma e eu sentava e botava por ordem alfabética. Eu era a mais
velha da família, botava todo mundo sentado para aprender. Eu
tinha um quadro, giz e apagador, então eu achava aquilo o
máximo, então assim, eu mais ou menos fui induzida não é? E
gostava mesmo desse ambiente escolar.
Por força das circunstâncias Yolanda acompanha de perto o trabalho da mãe e, assim,
tem acesso tanto aos bastidores do funcionamento da instituição escolar quanto aos projetos
que, mesmo afastada de suas funções docentes, ela persistia em desenvolver com os alunos.
Por força do afeto e da admiração pela forma como a mãe desenvolvia e se comprometia com
seu trabalho, Yolanda se identificou e se envolveu com esse universo e hoje reconhece como
referência para as escolhas que fez na vida. Enquanto rememora as mais pessoais e
significativas referências que marcaram seu itinerário de professora, Yolanda revela aspectos
da estrutura social que dizem respeito e falam diretamente à memória coletiva de inúmeras
mulheres trabalhadoras. Tantas que cotidianamente convivem com as dificuldades de exercer
e conciliar suas funções de mães e profissionais, e as maneiras que cada uma produz para
enfrentá-las.
As professoras que revelaram à pesquisa um leque de diversidade e riqueza narrativa
inclusive sobre seus itinerários na carreira docente, são as mesmas que, ao buscarem as
relações estabelecidas com as narrativas na escola, não avançaram para muito além de uma
vaga alusão à biblioteca da escola e às leituras obrigatórias com vistas a resolver questões de
provas e testes. A maioria sequer mencionou as narrativas no contexto escolar, ainda que este
aspecto estivesse em pauta em nossa conversa anterior às entrevistas. Cabe assinalar que
muitos dos antigos professores e professoras são lembrados como “personagens” de episódios
divertidos ou traumáticos, como pessoas a influenciar escolhas importantes nos percursos
155
profissionais e pessoais, como figuras admiradas e, também, detestadas, porém nenhum deles
foi mencionado como um narrador marcante na vida das professoras.
É interessante como as referências às narrativas na escola, quando presentes, sempre
remetem à escrita, aos livros, às atividades envolvendo o texto impresso. Porém, a leitura
escolar aparece não como experiência autêntica ou como via de acesso às narrativas, mas
como atividade desprovida de encanto e prazer, quando não são simplesmente relegadas às
margens do esquecimento.
Para Bárbara, poucas palavras bastaram para definir suas relações com as narrativas no
percurso de escolarização. Sua fala confirma a tendência de associação direta entre as
narrativas e o ato de ler e, ainda, do papel insignificante da escola para a sua formação de
leitora:
Eu não tenho recordações. Eu me lembro da biblioteca, mas eu não
era assídua à biblioteca, eu não tinha esse movimento pelos livros,
como eu falei pra você, a minha relação com os livros ela se deu
posteriormente, via espiritismo, foi por um outro caminho na minha
vida, aconteceu por um outro lugar e até hoje, embora eu aprecie
as narrativas não são elas que constituem a maior parte do meu
tempo como leitora, eu gosto da leitura informativa, eu gosto de ler
para aprender, então, mesmo na literatura espírita que tem uma
parte muito grande de narrativas, não são elas que eu priorizo. Eu
priorizo os livros técnicos, aqueles que têm algo a dizer, algo a
ensinar, meu perfil mesmo como leitora. Eu não sou uma grande
leitora de narrativas.
Nesse trecho, enquanto relata os gostos e interesses que passaram a mover a sua
aproximação com os livros, Bárbara orienta para alguns pontos interessantes de reflexão. Em
relação à formação do leitor, é preciso ressaltar o papel fundamental da escola que passa
necessariamente pelo reconhecimento de que esta não detém a propriedade da leitura e da
escrita. Prevendo tempo/espaço nas salas de aula para se fazer ouvir as narrativas singulares,
as histórias que os leitoresm para contar da pluralidade de formas de acesso a toda sorte de
material impresso, além dos cânones da literatura, a escola passaria a considerar e acolher a
complexa rede de instâncias e relações sociais que se entrecruzam no processo de
156
identificação entre os sujeitos e a leitura. Não cabe colocar em discussão o gosto e as escolhas
do leitor, mas ouvir, compreender e compartilhar o que mobiliza o interesse de cada um por
esse ou aquele gênero. Ao assinalar seu gosto e interesse pelas leituras técnicas ou
informativas, Bárbara destaca o potencial, ou mesmo a função, destas de promover
aprendizagens: ler para aprender é o que lhe convém e é o que essas leituras proporcionam,
pois, segundo sua avaliação, têm algo a dizer, algo a ensinar. Desse modo Bárbara a
entender que não reconhece nas narrativas o mesmo potencial e que por isto ocupam menor
espaço em sua prática leitora. Nesse ponto observa-se uma nítida cisão entre vida e trabalho,
considerando-se que, como mais adiante será evidenciado, a leitura de narrativas para seus
alunos se faz como prática diária inegociável, segundo suas palavras.
Ana faz tentativas de lembrar, “puxa” pela memória, para por fim admitir que a escola
não representou para ela um espaço importante de contato com as histórias, nem como
narradora, nem como ouvinte, nem como leitora:
Tinha... tinha história, tinha contação de história, é... tinha... muito
pouco, sabe? Eu não me lembro nas escolas em que eu estudei, eu
não me lembro de freqüentar biblioteca ou sala de leitura, não me
lembro disso. Eu lembro que as bibliotecas das escolas que eu
estudei eram aquelas... era aquela sala fechada. Era aquela sala
que a gente via a plaquinha lá: “Biblioteca”, mas que estava
sempre com a porta fechada. Não era acessível e os livros que
estavam eram livros velhos e grossos e pesados, não eram livros
de histórias legais e interessantes. E professora contando história
também eu lembro muito pouco, eu lembro de histórias na pré-
escola, C.A., mas depois disso, professor contador de histórias eu
não tenho essa lembrança.
Cecília foi a única a se lembrar de ocasiões em que uma professora contava fatos de
sua vida aos alunos, embora confirme, como as demais, o predomínio do texto impresso como
referência aos seus (des)encontros com as narrativas no contexto escolar:
Eventualmente e era história do livro, história do livro. É lógico
que tem aqueles professores que durante as aulas acabam
157
contando fatos da vida... eu lembro da professora da quarta série,
a turma não era muito fácil, era uma disparidade, tinha eu com
nove anos e tinha um outro com dezesseis, então o que você fala
para um... e às vezes ela tinha que dar uns toques no pessoal e às
vezes ela colocava depoimento dela enquanto pessoa, enquanto
filha, enquanto irmã enquanto mãe, mas a história mais era mesmo
lida e em ocasiões especiais porque não tinha essa coisa de ler por
ler, muitas vezes a gente tinha que ler individualmente, tinha
aquela história, aquele trecho... na aula às vezes aparecia um livro,
mas geralmente o livro enquanto objeto mesmo não aparecia,
aparecia o texto, o livro mesmo enquanto objeto, enquanto início,
meio e fim e tal, não aparecia muito. Depois na quinta série
tinha o tal livro extra classe que era obrigatório, todo mundo lia
para fazer a prova do livro, aquela coisa.
No caso de Cecília, um dado importante se acrescenta: as histórias lidas, em ocasiões
especiais, eram na verdade fragmentos de livros e a serviço das chamadas atividades de leitura
oral, onde invariavelmente cada aluno determinado trecho em voz alta, exercício que
privilegia o desempenho e a fluência na decodificação em detrimento da construção de
sentidos; eis algo por demais conhecido por quem quer que tenha freqüentado os bancos
escolares. O texto integral, o livro, aparece mais tarde em seu percurso de estudante, mas
condicionado à escolha dos professores, único para toda a turma e vinculado à avaliação — ou
controle da leitura dos alunos. Para quantas gerações de estudantes soa familiar essa cena
de leitura na escola recordada por Cecília? Quem nunca passou pelas perguntas de
interpretação cercando a leitura por todos os lados, delimitando-a em busca de um sentido a
que todos devem enfim corresponder para conseguir uma boa nota? A cada bimestre, ou nem
tanto, um livro extra-classe cujos critérios de seleção passam longe de considerar as
preferências dos leitores e que de tão extra vem dizer que na sala de aula não há espaço/tempo
para a leitura como experiência, mas de sua “apropriação utilitária” (LARROSA, 2002, p.
140).
5.2- Tempos na escola: as narrativas nas salas de aula do CPII
158
Se dos tempos de infância passados na escola as professoras pouco tiveram para
lembrar sobre o contato com as narrativas, no que se refere ao lugar destas em suas práticas
pedagógicas muito o que contar. De certa forma as narrativas aqui destacadas retomam a
discussão e a análise relativa aos documentos orientadores do trabalho pedagógico no CPII.
Porém, da letra à voz, o tema das narrativas chega atravessado pelo cotidiano das salas de
aula, pelo modo como as professoras compreendem e empreendem o ato de narrar em suas
práticas.
O reconhecimento da importância de haver espaço/tempo para as narrativas no
cotidiano da sala de aula foi recorrente em todas as entrevistas, variando, no entanto, quanto
as argumentações que as professoras apresentam para justificá-lo. A exemplo do que ocorreu
nas passagens onde as professoras falam das relações que estabeleceram na infância com as
narrativas, a polifonia desse conceito aponta para múltiplas concepções e matizes, o que
consequentemente se traduz em diferentes abordagens ou modos de fazer. Se são múltiplas as
possibilidades de interpretação suscitadas pelo tema, as práticas pedagógicas empreendidas
produzem experiências diferenciadas. Entretanto tal diversidade não implica uma análise
comparativa, ou considerá-las excludentes entre si. Ao contrário, atravessadas por fios que se
cruzam e se completam, compõem uma paisagem coletiva cujos pontos de aproximação e
distanciamento permitem estabelecer um diálogo a partir de alguns eixos de análise e reflexão.
Joana tem concentrado seu trabalho no primeiro ano do ensino fundamental, com
crianças que ingressam aos 6/7 anos de idade no CPII, a princípio provenientes de unidades de
Educação Infantil. Porém, é freqüente a chegada de crianças cujo primeiro contato com a
escola se faça no Colégio que, no caso da Unidade São Cristóvão I atende a cerca de mil
alunos e conta, como visto, com uma estrutura bastante diferenciada das demais escolas
públicas de ensino fundamental. A primeira referência de Joana aponta para as narrativas das
crianças, ávidas por comunicar suas experiências nesse ambiente no qual um turbilhão de
novidades passam a fazer parte de suas rotinas:
Eu lido com isso, enquanto professora, como uma pessoa que sabe
da importância de dar espaço à criança para a criança também se
colocar, contar suas histórias, a criança tem assim uma sede, uma
vontade... e algumas coisas mexem e elas tem assim um desejo
159
muito grande de contar, elas precisam se colocar e eu me porto
enquanto isso, até como uma pessoa que sabe dessa importância, e
é como profissional mesmo, da importância desse falar das
crianças mesmo para desenvolver até mesmo a oralidade delas,
desenvolver uma série de coisas, e eu me comporto em relação a
isso é como profissional sabedora da importância. Eu também
conto histórias, gosto muito de contar histórias também, eu gosto
muito também de fazer teatro com eles, tenho feito muito teatro e
fico muito feliz... como tem criança que encontra comigo e
pergunta: “Tia, você ainda conta aquelas histórias, ainda faz
teatrinho? Eu queria voltar para alfabetização só para fazer aquele
teatro”, porque teve um período muito grande que eu contava a
história e depois eu recontava e eles iam fazendo a mímica, eles
iam fazendo gestos e eles amavam, criança ama fazer esse tipo de
teatro através de mímica...Eu normalmente uso o livro. Depois de
um tempo a gente consegue contar história de cabeça... mas
normalmente eu conto com o livro, mostrando figuras,
normalmente é assim.
Seres da história e seres de história que somos, a nossa história pessoal e a também
nossa história coletiva, estas que nos constituem, que constroem nossa subjetividade e que,
como narradores e ouvintes, nos definem sujeitos contadores de histórias. Joana fala de uma
sede de contar, a sede que as crianças têm de narrar suas experiências e o quanto o ingresso na
escola pode significar o encontro com novas e múltiplas histórias. Ao citar as lembranças que
os ex-alunos carregam de seus primeiros anos de escola e da imagem que guardam da
professora narradora, Joana conta de uma sede que não sacia à medida que crescemos ou
avançamos nos degraus da escolarização; por mais que a cultura escolar, espelho e guardiã da
razão instrumental, se empenhe em, passo a passo, “apagar os rastros” de tantas sedes infantis:
a brincadeira, o faz-de-conta, o jogo e, no centro da cena destas e de outras formas de
experimentar o mundo, a dimensão expressiva da linguagem e a narrativa. Estas, porém, não
declinam em sua importância na constituição do sujeito enquanto é inserido no mundo dos
conceitos científicos, enquanto prossegue no domínio da leitura e da escrita, como se fosse
essa apropriação incompatível às experiências singulares e coubesse à escola a sua
substituição pelo conhecimento legitimado e uniforme. Todavia, se meninos e meninas
160
declaram o desejo de retorno aos tempos da alfabetização para reviver aquelas
experiências, é de uma perda que falam, de algo que se tornou ausente e de que sentem falta
na continuidade de sua vida escolar.
Madalena trabalhou exclusivamente em unidades de Educação Infantil antes de seu
ingresso no CPII. Sua narrativa evidencia uma comparação entre “lá” e “aqui”, quanto à
disponibilidade de contar histórias aos seus alunos e não esconde a dificuldade de garantir
essa prática e o prazer que tem, ainda, em exercê-la:
Bom, eu tento contar histórias muitas vezes, eu gosto dessa coisa
da contação de histórias, isso era uma das coisas que mais me
apaixonava no Jardim de Infância, porque todo dia tem a hora da
história. Aqui eu não consigo fazer mais todo dia, eu tenho um
espaço... eu tento privilegiar a história, mas eu tenho um espaço da
Narrativa, esse é um espaço de todo dia, e é a história de cada
um, é aquela hora da novidade que agora tem a hora da novidade,
tem a roda de leitura que acontece duas vezes por semana na
minha sala mas que agora não é mais a leitura: ler um pedaço
do livro que levou pra casa... agora é assim: eu li esse livro e eu
lembrei de uma outra coisa, está nesse momento de mudança.
Então eles trazem pra essa roda de leitura objetos, coisas que eles
ouviram falar, recortes, algumas coisas que eles lembram ou... eles
fazem uma opção: eu não quero falar do livro que eu levei pra casa
no final de semana mas eu quero falar de uma outra coisa que
estava na minha casa. Então, esse espaço da oralidade é constante.
O espaço da história ele existe mas ele, nesse momento, não é mais
o todo dia como era no Jardim de Infância e como eu tive em
alguns momentos... porque eu ouço a Beatriz falar que todo dia
conta história, eu não consigo contar história todo dia, eu
privilegio a história mas não dessa maneira, não tem dado, eu acho
muito legal mas não tem dado.
161
À época da entrevista Madalena atuava como professora do Núcleo Comum no
segundo ano de escolaridade
36
, acompanhando a turma recém-chegada à escola que recebeu
no ano anterior. Em sua fala percebe-se um sentimento de perda gradativa do espaço de contar
histórias na medida em que os alunos avançam no processo de escolarização, evidenciado na
comparação que faz não em relação ao tempo em que trabalhava no Jardim de Infância,
mas também em alguns momentos do CPII onde sugere ter sido essa prática mais assídua em
seu trabalho. Apesar de não ter declarado explicitamente, Madalena a entender que no
CPII, na passagem do primeiro para o segundo ano de escolaridade uma alteração
significativa se em relação à premência de atividades e objetivos instrucionais em nome
dos quais vai perdendo terreno o ato de contar histórias aos seus alunos.
Embora não consiga mais exercer sua voz de narradora tanto quanto gostaria, ou tanto
quanto era viável no contexto da Educação Infantil, Madalena se empenha em fazer acontecer
um valioso espaço de narrativa que nem sempre é garantido, como à primeira vista pode-se
supor, nas salas de aula onde o ato de contar histórias é prática diária. Ao transformar a roda
de leitura em “roda das novidades”, Madalena põe à disposição das crianças a alternativa de
mostrar sua leitura dos livros e do mundo, suas experiências enfim. Quando amplia esse
espaço para que as crianças possam narrar e ouvir as histórias de cada um, ela acolhe a
pluralidade por meio das narrativas singulares tantas vezes silenciadas nas salas de aula. Ao
mesmo tempo se desvencilha da idéia produzida e exercida exclusivamente pela cultura
escolar de que para toda leitura há de se seguir uma espécie prestação de contas.
Ao contar o seu modo de fazer, Madalena semeia reflexões que interessam
particularmente a esta pesquisa, a começar pela oportunidade de se colocar em questão a
noção de que a prática de contar histórias em quantidade garantiria a experiência autêntica
com as narrativas na escola. A exemplo do que costumeiramente ocorre em relação à leitura
literária, que, no lugar de ensejar um mergulho nos múltiplos sentidos do texto e na dimensão
estética da linguagem, termina por se resumir a uma estratégia para ensino do conteúdo
gramatical e/ou para as perguntas de interpretação, é possível que o ato de narrar resvale
também para uma abordagem meramente instrumental. Nessa perspectiva, as histórias
contadas/lidas pelo professor podem se tornar atividades obrigatórias e previsíveis, sempre
vinculadas às premências curriculares. O que não significa, entretanto, negar o potencial das
36
Primeira série de acordo com a antiga nomenclatura.
162
narrativas, literárias e pessoais, de “iluminar certos recantos do currículo” (GIRARDELLO,
2006, p. 128), como sugere Lia no trecho a seguir:
... teve um ano aqui na escola, no Pedro II que eu trabalhei com
horta que no final a gente construiu uma história. As crianças
foram narrando a história da semente de feijão que foi plantada e
que eles observaram, nasceu o caule, a raiz, a folha, a flor, o fruto
e depois nasceu a semente que é feijão de novo, então a gente fez a
história.
Na seqüência de sua narrativa, Lia menciona as possibilidades de acesso ao
conhecimento científico que se abrem pelo ato de narrar e ouvir experiências, pela partilha de
significados entre professores e alunos, ao mesmo tempo em que se ressente da falta de tempo
de inserir tal prática com mais regularidade em suas aulas, se esta não contempla diretamente
o desenvolvimento de um conteúdo específico:
Eu sempre gostei muito de contar, de ouvir as crianças contando
histórias também, gosto muito até hoje, você que o meu trabalho
[dissertação de mestrado] é a fala das crianças. Sempre dei uma
importância pro que as crianças falam, mas não muito tempo, a
gente fica presa aos conteúdos e àquela coisa toda. Você não tem
tanto espaço como você gostaria de contar histórias, de ler livros
pra eles, de ler livros interessantes que falem dos cientistas, por
exemplo. Agora está rolando o tema da ciência no quarto ano, na
terceira série, então tem tanta história pra contar... eles não sabem
que o Einstein foi ao Museu da Vida no Instituto Oswaldo Cruz,
eu acho isso um dado legal, quando eu cheguei e vi aquilo, o
Einstein em tamanho natural que tem dentro, você viu?
dentro tem ele junto com Carlos Chagas, é uma coisa interessante e
eu queria falar pra eles que não tem tanto tempo. Então tem
bastante coisa que a gente tem até pelas nossas vivências, e eles
também têm da vivência deles que a gente não tem tempo de narrar
e não tem tanto espaço assim porque a gente ainda é impregnado
de conteúdo, ensino tradicional, modelo triádico, aquela coisa toda
163
que atropela isso tudo... o tempo inteiro ele é estruturado e tem
aquela cobrança em cima, então você... essa estrutura acaba que
você administra mas tem uma pessoa que administra o que você
está fazendo, tem uma prova que você vai ter que dar conta, então
realmente fica mais limitado, você sabe como é isso...
Lia retoma a questão da estrutura e do controle institucional a impor limites ao
espaço/tempo de se fazer presentes as narrativas de alunos e professores no cotidiano da
escola. Ressalta o seu reconhecimento da importância da partilha de experiências pela
narrativa, mas admite que fale mais alto a cobrança de metas e resultados, por mais que
procure orientar seu trabalho de acordo com suas convicções. Todavia, embora o contexto
institucional não favoreça, Lia, narradora que é, teima em oferecer aos seus alunos as histórias
que ouve e também passagens marcantes de sua vida:
... dentro do Pedro II hoje naquilo que eu faço [professora de
ciências], eu conto coisas pra eles da minha vida, conto coisas que
eu escuto, conto... outro dia eu estava contando pra eles... por
causa de uma aluna chamada Sthefany, eu fui chamar ela de
Stephany de Mônaco e isso... chamei umas três vezes, contei a
história da música do Paulo Ricardo, as crianças amaram! Eles
queriam saber... eu estava contando a história, o enredo da música
lá, o tema da música, eu contei aquilo pra eles e eles começaram a
perguntar do Paulo Ricardo, da época do rock dos anos oitenta, da
princesa de Mônaco, da Sthefany de Mônaco, da família real de
Mônaco, então foi uma contação de histórias que eu acho super
legal e não tinha nada a ver com a minha matéria que é ciência,
né? Então eu gosto de contar, que eu acho que falta... esse
tempo fica muito restrito a Língua Portuguesa, eu faço isso mas eu
vejo... às vezes eu fico com medo de estar extrapolando o tempo,
porque você tem que parar... as crianças pediram pra eu trazer a
letra da música pra gente cantar na sala e eu já joguei pro dia 4 de
setembro quando vai ter uma festa de uma menina e eu vou
trazer o disco pra gente ouvir, então isso é uma coisa pequena...
mas tem umas histórias que surgem assim que eu conto... contei a
164
história da Dona Gladis Mary Periard Silva que foi a minha
professora da segunda série que pegava a régua e batia assim:
pápápáp-á... pras crianças calarem a boca... um dia eles estavam
falando muito na 401, eu falei: “olha eu vou incorporar a Dona
Gladys aqui”, “Que que é isso, tia?”, eu falei “Dona Gladys era
uma professora que eu tinha que usava laquê, sabe o que é laquê?
A maioria não sabia o que era laquê... “um troço pro cabelo ficar
armado”, Dona Gladys usava no cabelo e batia com a régua, então
eu sentava na frente dela, na carteira em frente à mesa dela. Ela
quebrava a minha régua porque ela batia pápápá, ela tinha a dela,
quebrava a dela e quebrava a de quem estava perto, batia pra
gente calar a boca. Então a gente falava, mesmo no ensino
tradicional em 1968 que foi quando eu estudei com a Dona Gladys
tinha criança... porque ela usava a régua pra gente calar a
boca... achei interessante que hoje eu cheguei na sala e eles
falaram: “Tia, como era mesmo o nome da sua professora? Bate
com a régua na carteira”, brincando, né? E eles quiseram saber de
Dona Gladys, um nome tão diferente: Gladys Mary Periard Silva e
eles quiseram que eu repetisse o nome... então eu acho que isso
tudo é narrativa que a gente vai construindo, dentro da sala de
aula...
Como professora de ciências, Lia experimenta a sensação incômoda de estar
“extrapolando o tempo” quando conta uma de suas histórias e precisa adiar o interesse dos
alunos pela sua continuação. Sua fala traduz a contradição presente nos documentos oficiais
cuja referência explícita às narrativas no trabalho do Núcleo Comum está relacionada
unicamente às competências e habilidades em Língua Portuguesa. Embora o documento
preconize em todos os componentes curriculares a interação e o diálogo entre os saberes
cotidianos e o conhecimento escolar, parece haver na prática uma identificação imediata das
narrativas com o trabalho de Língua Portuguesa. Compreende-se essa ocorrência,
considerando que este componente curricular conta com uma orientação específica acerca das
narrativas em direção ao desenvolvimento de conteúdos voltados para o domínio da forma
padrão da língua, o que pode suscitar a compreensão de que as narrativas pertencem à esfera
desse estudo e nesse âmbito podem legitimamente circular. Sobre esse aspecto, é
165
esclarecedora a narrativa de Bárbara que, de certa forma, confirma o sentimento de
transgressão que Lia experimenta ao contar aos seus alunos passagens de sua vida ou histórias
não diretamente vinculadas aos conteúdos de ciências:
Bárbara:
A literatura infantil foi mesmo uma rica descoberta, depois na
minha vida profissional, quando eu fui tendo acesso e também
tinha recursos pra montar um acervo, até hoje invisto nisso:
adquirir livros para crianças a aí, como mãe, ofereci muitos ao
meu filho, uma relação sempre de prazer em relação às narrativas.
Agora, profissionalmente, o lugar que eu estabeleci pra elas
também foi construído com o tempo. Eu contava histórias como
professor conta, ocasionalmente, assim, sentindo que estava
roubando tempo, até 98. Em 98 quando tive acesso ao trabalho e à
proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais e especialmente
ao trabalho da Maria José Nóbrega em que eu tive a possibilidade
de refletir o quanto da própria qualidade do desempenho escolar
na área de Língua Portuguesa o quanto aquilo... para que as
crianças pudessem ter bons escritos elas precisariam de bons
modelos, isso se incorporou à minha prática de uma tal maneira
que eu não me sinto mais transgredindo, aquilo é da minha rotina,
aquilo faz parte do meu trabalho. Todos os dias nós ouvimos
histórias. Noutro dia eles até perguntaram: mas porque você não
faz um dia história e um dia brincadeira, porque pra eles está tudo
na mesma categoria do lúdico, né? Por que você não troca? Não,
história a gente não vai negociar. Não pra negociar, a gente,
alguns dias a gente vai brincar, mas história a gente tem que ter
todo dia. E eu gosto muito, esse lado da atriz que não aconteceu,
ele aparece ali, eu invisto mesmo naquele momento nas caras,
bocas trejeitos. Fiz uma mala no ano passado pra mim com
apetrechos, com perucas, com chapéus, então esse lado da
teatralização na história... acho que eu sou uma boa contadora de
histórias, meus alunos avaliavam assim, quando eles terminaram a
segunda série, eles diziam: “essa história você conta bem”. Eles
166
fazem uma avaliação mais técnica, né, você conta bem. Ah, hoje
você não está muito animada, eles faziam...Eu conto a maioria
delas com livro porque eu não tenho muitas de memória. Existe
uma que eu aprendi com minha mãe, é uma história, uma versão da
Dona Baratinha, mas ela é super complexa porque tem a segunda
parte que do depois que a laranjeira desfolhou, o passarinho
depenou, o capim secou e aquilo é uma curtição pra eles, eles
adoram essa história. Eu digo que aprendi com minha mãe, que
minha mãe aprendeu com minha avó e eles acham que isso então
deve representar muito tempo, né? O conceito de passado.
Bárbara deixa clara a direta identificação que faz entre as narrativas e o texto literário
impresso, determinando com nitidez o lugar deste em sua prática como meio de acesso e
desenvolvimento da escrita de seus alunos. A leitura diária de histórias passa a fazer parte
de sua rotina, “sem culpa”, a partir do momento em que ela identifica e define objetivos
pedagógicos, vinculados especialmente ao trabalho em Língua Portuguesa, que possam
justificar tal escolha. Daí em diante as narrativas não se inserem e ganham um espaço
privilegiado em seu trabalho, como se tornam inegociáveis, em suas palavras: tem que ter
todos os dias. Por certo assumir as narrativas como compromisso pedagógico diário passa a
requisitar recursos para além do texto no sentido de ganhar a atenção dos ouvintes, assim
Bárbara abastece sua mala de apetrechos e recupera os dotes da atriz que não aconteceu para
levar este propósito adiante.
Ainda que a professora coloque em primeiro plano finalidades marcadamente
associadas aos conteúdos escolares mesmo a história herdada em sua infância não escapa
ao conceito de passado o prazer de narrar, o gosto de perceber sua narrativa apreciada
pelos ouvintes e de ser reconhecida por eles como uma boa contadora de histórias, do
contrário como haveria de resistir, dia após dia, os mais bem traçados objetivos pedagógicos?
Ao contar o seu modo de fazer, Ana, assim como as demais, enfatiza o prazer de narrar
e reconhece a importância de inserir as narrativas em suas aulas, tanto as histórias dos livros
quanto as cotidianas, como forma de despertar o interesse dos alunos:
... eu gosto muito, de narrar, de contar. Para os meus alunos hoje
sei a importância de contar histórias... as histórias dos livros, isso
167
é uma coisa que eu procuro fazer sempre com eles. Mas, fora essas
histórias, de outras histórias que a gente... eu gosto muito de
contar. Tipo: entrar na sala de aula de manhã e falar: “gente, sabe
o que aconteceu quando eu estava vindo pra cá?”, aí eles já... acho
que eles ficam mais curiosos que se eu pegasse um livro e dissesse:
“Vou ler uma história”. Eles ficam naquela expectativa: “O que
aconteceu?”, “Ah, quando eu estava vindo pra cá aconteceu isso, o
que vocês acham?”. Então eu gosto muito, gosto muito de narrar
pra eles. É... é um tempo que eu tenho que criar. Eu tenho que
procurar esse tempo dentro do meu trabalho, porque a gente tem
é... um trabalho que a gente planeja e que a gente tem que cumprir
e... acho que a gente tem que optar ou não por abrir esse espaço.
Eu sempre... eu sempre procuro abrir esse espaço porque eu acho
que é importante. Eu sempre falo que eu dou mais aula em e
falando do que sentada ou escrevendo. teve fala de aluno, de eu
estar, por exemplo, entrar na sala às sete da manhã e às nove
ainda estava ali em falando e de eles falarem: “A aula não vai
começar, não?”, esse tipo de coisa. Mas eu estou dando aula, a
gente está conversando, né? Eu gosto muito de conversar, de
dialogar com eles e ouvi-los também, as histórias que eles contam.
Não é fácil por conta da gente estar sempre assim, um
planejamento pra cumprir e tal. Mas eu não acho difícil abrir esse
espaço, até porque você faz um plano do que você tem que fazer,
mas você pode trabalhar isso de diferentes formas, inclusive na
fala. Então é um espaço que está sempre presente no meu trabalho.
Ana se vale de um recurso comumente utilizado por muitos narradores de se
colocarem como testemunhas das histórias, acreditando que desse modo consegue aguçar a
curiosidade dos ouvintes pelo seu desfecho com mais intensidade do que acontece nas
ocasiões em que histórias nos livros. É interessante como mais uma vez o tema das
narrativas sugere a alternância de papéis entre narrador e ouvintes, entre a professora que
conta e também se faz ouvinte das histórias que os alunos têm para contar. Porém, é quando
menciona o espaço para ouvir as narrativas dos alunos que mais uma vez surge a questão da
falta de tempo diante de um planejamento a ser cumprido. Se esse espaço precisa ser criado na
168
sala de aula, ficando a cargo da professora fazer ou não essa opção, sugere que o mesmo não é
previsto ou colocado em pauta no planejamento, cuja tônica parece ser a definição de
conteúdos instrucionais a serem trabalhados em períodos determinados. Embora as
professoras estejam de acordo sobre a importância da partilha narrativa para o processo de
ensinar e aprender, é recorrente a menção de um conflito entre essa escolha e o cumprimento
das metas traçadas.
Entre o tempo de escola e o tempo na escola, ou seja, entre a rememoração do
percurso de escolarização e as relações que as professoras vêm construindo com as narrativas
em suas práticas, especialmente no CPII, registram-se importantes transformações, porém
permanências não menos merecedoras de atenção e análise. Ao reconhecimento da
importância de uma ação pedagógica voltada para o compartilhar de experiências singulares
entre professoras e alunos; da narrativa como mediadora de múltiplas aprendizagens; da sala
de aula como lugar de encontro com a dimensão ética e estética da linguagem e da superação
de uma abordagem pautada em aspectos meramente instrumentais, se interpõem os moldes e
procedimentos que se conservam na instituição escolar e se fazem visíveis nas narrativas das
professoras ao tratarem do lugar destinado ao ato de narrar e ouvir em suas práticas. Em seus
percursos profissionais permanece a cisão entre conteúdos instrucionais e as múltiplas formas
de narrativas, diante das dificuldades de contemplar, nesses conteúdos, a pluralidade de
histórias individuais que emergem no espaço da sala de aula. Ainda que reconheçam um lugar
de importância para as narrativas em seu trabalho, e apesar de algumas professoras se
empenharem em propor atividades por meio das quais os alunos possam ter espaço para
narrar suas experiências, este parece ser o aspecto de mais difícil concretização. Na
organização institucional, a fragmentação e o controle minucioso do tempo e do espaço,
acentuados na medida em que os alunos avançam no percurso de escolarização, impõem
limites ao lento trabalho das narrativas cujo tempo de realização é o tempo subjetivo de cada
narrador.
Capítulo 6: IMAGENS DA COLEÇÃO
[...] porque o sujeito não é somente um, mas múltiplo e variável, porque o
tempo se espalha em redes temporais diversas, porque a história tem
solavancos, acelera ou, de repente, desmorona. Histórias, tempos, sujeitos
169
cuja pluralidade ameaça, certamente, a paciente edificação de símbolos e
de práticas seculares (GAGNEBIN, 2006, p. 46).
Após mexer e remexer, arrumar de um jeito, desarrumar de outro, combinar e
descombinar os objetos de sua coleção, agrada e convém ao colecionador retroceder alguns
passos; inclinar a cabeça, para um lado e outro, olhar demoradamente o conjunto, cada objeto
em particular, ver e ouvir os efeitos do arranjo, sempre provisório, sempre aberto a novas
articulações, fosse outro o colecionador, fosse o próprio, mais tempo tivesse, pois nada
considera como feito.
Neste capítulo pretendo registrar esse olhar que se faz a certa distância, procurando
concretizá-lo por meio do resgate de algumas imagens-síntese que, nas narrativas das
professoras, realçam um modo de compreender o ato de narrar em seus percursos de vida e
por certo enlaça os contornos que este assume em seu trabalho no CPII.
Retorno à narrativa de Rosa para trazer de volta a imagem da menina que, brincando
sozinha, conta histórias a si mesma, enquanto à sua volta um mundo paralelo de rotina adulta
segue seu curso: casa, trabalho, estudos, tarefas cotidianas inadiáveis. Até que a palavra da tia,
vidente e ouvinte, por um instante interrompe o movimento dos afazeres habituais da família
que para a menina e seu brincar não dava caso:
Presta atenção no que essa menina diz.
Por esse conselho se rompe uma estabilidade e se efetua uma importante mudança nas
relações familiares, quando a mãe passa a tomar providências de prover de testemunhas a
narrativa da menina. Penso nesta passagem como emblema dos propósitos e das escolhas
metodológicas deste estudo: na vida e na escola, em meio à velocidade e imperativos da
informação, encontrar lugar para se fazer presentes as narrativas que, na pressa dos dias, são
esquecidas, despercebidas ou desqualificadas. Não é sem razão que a menina Rosa reage com
surpresa e apreensão à atenção imprevista. Assim também o fez a maioria das professoras
diante do convite de contribuir para a pesquisa com suas memórias de vida e trabalho. Dúvida,
surpresa e inquietação que por fim se converteram em satisfação pelo narrar e também em
170
reflexão quando, pelo discurso, revisitam e reconstroem seus percursos, atribuindo, com idéias
e imagens do presente, novos sentidos ao vivido.
Assim, ao trazerem à cena as relações que estabeleceram com as narrativas pela vida a
fora, as professoras puderam contar também de múltiplas formas de compreendê-las e exercê-
las. Foi interessante registrar como as memórias das narrativas trazem em si a figura do
narrador. Rememorar as histórias, ouvidas, lidas, brincadas, contadas, e compartilhadas, é
retomar a imagem e a presença daquele ou daquela que foi seu portador. Ouvindo as
professoras e suas histórias pude conhecer, então, a importância de avós, pais, irmãos, tios e
até vizinhos de cujas vozes herdaram o que trazem para contar, o que de certa forma contribui
para contradizer o juízo de que o ato de narrar pressupõe um talento peculiar, uma aptidão
especial acessível a uns poucos iluminados (FOX, 2004). A imagem do narrador ou narradora
evocada pelas professoras em nada os associa a alguém dotado de habilidades notáveis ou
trajetórias triunfantes, mas se aproxima da figura anônima do trapeiro que “recolhe os cacos,
os restos, os detritos, movidos pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não
deixar nada se perder” (GAGNEBIN, 2006, p.53).
Se nenhum professor ou professora tiveram lugar nessa lista de guardados e guardiões,
a continuação da história ajuda a compreender tal ausência. Das muitas lembranças do tempo
em que foram alunas não coube um espaço relevante para a relação com as narrativas, nem de
ouvir nem de contar. Quando mencionadas, no contexto escolar estas estão associadas
preponderantemente ao texto impresso, às atividades que envolvem a leitura. Ocorrência que,
a princípio não causa admiração ou surpresa, considerando que historicamente a origem da
escola está vinculada à universalização da linguagem escrita e em torno desta vem
justificando e sedimentando sua existência. Em se tratando de uma instituição encarregada de
garantir a democratização da leitura e da escrita e ponderando que as narrativas agregam
múltiplas possibilidades além daquela que se realiza como produto da voz (KRAMER e
SOUZA, 1996), à escola cabe promover o direito cidadão da experiência leitora como
produção de significados, sendo o encontro com as narrativas escritas um valioso meio de se
concretizar e ampliar tal experiência. Todavia, se as professoras associam as narrativas
diretamente o ato de ler no contexto escolar, este não sobressai como experiência, mas como
dever e imposição, sempre condicionado aos conteúdos e avaliações escolares, ao controle de
testes e exames, “a prova do livro”. Mesmo quando citam o encontro com o texto literário, as
171
lembranças o trazem distanciado do gosto, do prazer de desfrutar a dimensão estética da
linguagem que a literatura é capaz de propiciar.
Para aquelas — poucas — que tiveram acesso aos sabores da literatura na infância, não
coube à escola o papel de promover esse encontro, mas às famílias que desejaram e puderam
desde cedo oferecer livros aos filhos, a investir, como algumas professoras identificam essa
iniciativa. Ao mesmo tempo as lembranças sobre as bibliotecas das escolas onde estudaram
não passam da imagem opaca de espaços pouco acolhedores e acervos pouco convidativos, ou
de salas permanentemente fechadas às quais tinham acesso limitado. A escola aparece,
portanto, não como guardiã da leitura e da escrita, mas de certa leitura e de certa escrita. Da
linguagem que produz e é produzida pela e na prática social, sua escolarização a conforma ao
domínio de códigos e regras que, “tal como a lava fria” (BAKHTIN, 2004, p. 73), é
apresentada e tratada como “instrumento pronto para ser usado” (Id, p. 73).
Enquanto isso, além dos muros da escola, as relações com as narrativas se estabelecem
como experiência autêntica e, como tal, clamam por ser comunicadas, passadas adiante, como
forma de, ressoando na experiência do ouvinte, possam ser resguardadas da névoa do
esquecimento. São passagens em que o tempo vivido em termos de intensidade se sobrepõe ao
domínio cronológico. Este último, entretanto, passa a sobressair com toda força assim que as
professoras dirigem o foco de suas narrativas especificamente para o seu trabalho e as relações
e sentidos que nesse contexto se constroem. Desde aquelas que se dão na convivência entre
seus pares na escola, passando pela estrutura e organização institucional do CPII, até o lugar
das narrativas em suas práticas pedagógicas. Por essa razão, penso em outra imagem fisgada
de muitas das narrativas:
O tempo roubado
Eis uma imagem eloqüente de alguns sentidos revelados por este estudo, a começar
pelas primeiras iniciativas de empreendê-lo, quando em suas agendas repletas de
compromissos e afazeres, as professoras se desdobraram em negociações e ajustes para que
fosse possível a realização das entrevistas. É roubado o tempo que se dedica no ambiente de
trabalho às conversas sobre a vida que acontece; é também roubado o tempo destinado ao ato
de narrar na sala de aula quando este não está estritamente vinculado aos conteúdos
172
instrucionais; como que subtraído do planejamento é o tempo de ouvir as experiências dos
alunos e se comprometer com as histórias que têm sede de contar.
O tempo, então, sempre fugidio, é o protagonista das narrativas toda vez que estas
remetem ao trabalho e às relações que se fazem na escola. Nas salas de aula, as horas
contadas: horas-aula, tempo linear e contínuo. Um tempo para cada coisa, cada uma a seu
tempo, asséptico de sobreposições e interferências. No tempo/espaço entre um sinal e outro,
quantas narrativas circulam? Que narrativas circulam? Quais as que m primazia no tempo
contado e regulamentado da escola? Quantas ficam para um depois que talvez não chegue,
para o “se der tempo a gente conta”, “se der tempo a gente ouve”?
A imagem do tempo roubado nos adverte para uma narrativa que prevalece na escola,
uma metanarrativa que ordena o currículo, o conhecimento, que organiza as relações entre os
sujeitos, os modos de pensar. uma vertente da história que com tal veemência perpassa o
cotidiano escolar que produz o apagamento das narrativas singulares de professores e alunos,
obstruindo por essa via as possibilidades de se fazer chegar à escola a vida e a pluralidade das
experiências dos sujeitos que nela convivem. Assim, é possível afirmar que a escola é um
espaço de narrativa, contudo é da predominância de certo tipo de narrativa que se fala, e do
silenciamento de outras tantas face à velocidade com que as informações cada vez mais se
multiplicam e se acentuam.
No CPII, as narrativas das professoras contam de um movimento de disponibilidade
para a escuta e valorização das histórias de quem anonimamente faz a história, inclusive pelo
interesse e entusiasmo demonstrados em narrar suas próprias histórias à pesquisa e por meio
delas refletirem sobre seus percursos. Todavia, ao mesmo tempo em que reconhecem essa
importância e se empenham em inserir as narrativas em suas práticas, revelam os
impedimentos que ainda vigoram na escola. Estes são identificados principalmente pelo
minucioso controle e fragmentação do tempo e do espaço, além do “papel principal” que
exercem os conteúdos, fixando marcos, metas e resultados em períodos determinados,
inadiáveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: o quê as histórias ensinam
173
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Caetano Veloso e Milton Nascimento, “A
terceira mergem do rio”
Como anunciei no capítulo anterior, é próprio da coleção ser provisória, inacabada,
sempre à espera, se não de inéditas aquisições, de renovadas formas de dispor e combinar seus
objetos. Esta que aqui apresento, feita de histórias móveis, plurais e abertas a múltiplas
interpretações por sua natureza, não poderia escapar à regra. Contemplando-a uma vez
mais, e com vistas ao fechamento da moldura, são contradições de sentimentos que me
vêm. Talvez daí se explique a dificuldade com que me ponho a alinhavar este remate. Por um
lado há o conforto de ver um ponto de chegada para o percurso e, neste um horizonte, o limiar
de outras perguntas que se desdobram em novas possibilidades de caminhos. De outro
sempre uma inquietação pelo que deixou de ser contemplado face aos limites do trabalho e à
infinidade de sentidos que de tais histórias são capazes de ressoar. Ao longo de todo o
processo da pesquisa não foram poucas as dificuldades com que me deparei, muitas delas
advindas de minha própria inexperiência com esse fazer, que somando-se a esta, a atual, vêm
confirmar que é preciso, mais uma vez, dar atenção ao caminho percorrido e neste, é preciso
registrar a grata surpresa de que refletir sobre o ato de narrar por meio da própria narrativa
traz questões instigantes sobre a mesma, tanto como objeto de estudo quanto como método de
investigação.
De início m à lembrança as circunstâncias que me levaram a deslizar o foco da sala
de aula, meu intuito inicial, em direção às histórias de vida das professoras e o quanto esse
novo posicionamento tornou possível contemplar, ao menos em parte, um propósito que,
desde a elaboração do projeto, me era caro: realizar a pesquisa em colaboração com os
sujeitos participantes. Embora os limites dos prazos não tenham permitido mais do que um
retorno das entrevistas transcritas às professoras, descartando a possibilidade de um novo
encontro para rediscuti-las, nos momentos de grande intensidade relacional em que estas
foram realizadas pude perceber que ali se construiu um espaço importante de rememoração e
reflexão compartilhada. Para mim que, ouvindo-as, pude ampliar o conceito de narrativa que
174
trazia profundamente marcado por minhas próprias experiências, ao mesmo tempo em que
revisitava alguns recantos esquecidos de meu percurso de professora pela memória e pela
palavra do outro; para elas que tiveram ocasião de fazer presentes os afetos plantados no
caminhar, as dificuldades, conquistas e questionamentos acerca de suas práticas ao encontrar
alguém disposto a testemunhá-los. Por esses encontros e pelos sucessivos retornos de ouvir e
transcrever as entrevistas, um vínculo se fortaleceu. Diferentemente daquele abreviado que as
relações e os afazeres na escola permitem, as narrativas me deram a conhecer matizes de vida
e trabalho das professoras que em anos de convivência no CPII sequer suspeitava. Do mesmo
modo, ouvir e registrar a trajetória de cada uma delas no CPII fez reafirmar, seguindo os
passos do pensamento benjaminiano, que a história do Colégio se constrói de histórias
anônimas e plurais, ainda que os registros oficiais, em seu tempo cronológico e linear, se
empenhem em fazer sobressair os grandes feitos, assim como os ilustres nomes e sobrenomes.
Lembro de Ana, que espontaneamente se ofereceu para participar da pesquisa, a me
dizer de seu costume de, sozinha com seus botões, retomar aspectos de seu passado, como que
contando a si mesma sua história. Porém, ela mesma reconhece: poder contar com a escuta do
outro, quanta diferença! O ato de narrar e narra-se alcança uma dimensão social quando há um
outro disponível a ouvir aquilo que até então apenas a nós pertencia. Como a palavra é uma
espécie de ponte entre o eu e o outro (BAKHTIN, 2003), nessa travessia, de mão dupla, se
ampliam as experiências tanto do narrador quanto do ouvinte; nela estão implícitas e
entrelaçadas a alternância de papéis e a transmissibilidade.
O movimento que corajosamente fizeram as professoras de colocar na roda as suas
próprias histórias, de perceber e nomear os sentimentos e sentidos que em cada subjetividade
ecoa, me leva a acreditar na possibilidade de se tornar um gesto de abrir nas salas de aula,
também sem receios, a tampa do baú das narrativas, cuja beleza está em não se prever o que
ali poderá ser descoberto. Reconhecer-se narrador e exercer o ato de narrar nas práticas
pedagógicas é também disponibilizar-se para a escuta da narrativa do outro, o que não
significa desconsiderar os conteúdos, mas abordá-los levando-se em conta as formas com que
cada sujeito experimenta o mundo. Superar a cisão entre as narrativas e os conteúdos, abrir
mão desse antagonismo desde a elaboração do currículo e das propostas pedagógicas, poderia
contribuir para fazer de nossas aulas experiências autênticas, despojando-nos da ansiedade
gerada pelas metas a serem cumpridas como páginas viradas uniforme e cronologicamente por
todos, não só em cada sala de aula, mas na escola como um todo.
175
Nesses dois anos de estudo colhi muitos frutos, alguns de sabores até então
desconhecidos, de outros tantos uma impressão de bons sumos e promissores aromas. O
encontro com a pluralidade das experiências das professoras me ensina que nas narrativas
existe um mundo de possibilidades e interpretações, o que significa incluir variados caminhos
de torná-las presentes nas salas de aula, seja a narrativa que se faz como produto da voz, seja
outras tantas formas de que esta se reveste para encontrar espaço de realização: a literatura, o
cinema, as imagens, a brincadeira, a música, o jogo, as histórias em quadrinhos, o teatro, o
“faz de conta que eu era”. Aprendi também que não se interdita às narrativas beberem na
fonte dos conteúdos e vice versa, se estes são compreendidos, e comprometidos, também
como uma boa história a ser contada e articulada com as histórias de cada um. Dessas
aprendizagens ressoa uma certeza, palavra que uso sem pudores.uma dimensão ética a ser
firmemente cuidada por quem quer que tome nas mãos as narrativas como prática pedagógica,
a da recusa à sua apropriação como mero pretexto para se “trabalhar os conteúdos”, como
forma de tornar menos amargo o remédio. A abordagem instrumental que, no lugar de
contribuir para a ampliação e amplificação das experiências, termina por atrofiá-las em
vivências a serviço de uma meta que logo em seguida será substituída por outra e mais outra.
Faz lembrar o sempre bem-vindo uso dos jogos somente quando estes se justificam como
instrumentos pedagógicos, mas são veementemente rechaçados quando emergem na sala de
aula por iniciativa e necessidade das crianças.
Assim como eu e tantas mulheres anônimas, Teresinha, Rosa, Beatriz, Ana, Lia,
Yolanda, Joana, Bárbara, Cecília, Iracema, Carolina, Madalena, não são professoras desde
sempre, tornaram-se, cada uma com seu caminho, cada caminho uma história que se fazem
coletivas pelo ato de narrá-las. Conhecer e dar a conhecer essas histórias potencializa acreditar
na constante reconstrução da identidade docente, na possível transformação das relações na
escola, no valor de ouvir e narrar quando o outro não se põe no lugar daquele que, na
indiferença se levanta e vai embora (GAGNEBIN, 2006, p. 55).
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ANEXO
181
AS NARRATIVAS
Ana
182
Foi assim... eu sempre tive uma idade bem mais novinha nas turmas em que eu estudei, minha
vida escolar sempre foi assim... por conta da minha data de aniversário... então eu era a mais
novinha numa turma de crianças mais maduras e eu ia me desenvolvendo. Sempre fui
uma boa aluna, assim, em relação ao cognitivo eu sempre fui boa em matemática... agora não
sou mais (risos)... mas tinha essa coisa da maturidade, isso foi uma coisa que eu sempre senti
na minha vida escolar e que eu sinto até hoje, essa coisa da... da... eu sempre demorei mais
tempo a amadurecer por conta dos grupos em que eu convivia. O meu amadurecimento era
bem... era uma coisa anterior. Então, muitas vezes eu não entendia a piada, muitas coisas até
abstratas que eu não conseguia entender, várias matérias na escola eu não conseguia entender
e, então assim, mesmo com esse... com essa dificuldade de... essa maturidade que a gente
precisa pra estar dando conta de determinadas coisas, eu ia superando e estava sempre me
dando bem, era considerada uma excelente aluna, e isso foi a minha vida inteira. Quando eu
cheguei... quando eu fui pra fazer o Colégio Normal... eu fui fazer o Colégio Normal, não foi
muito uma opção minha, foi uma época... foi a época mais complicada da minha vida assim
familiar que foi uma época de separação dos meus pais, então, eles não estavam muito
voltados pra gente naquele momento ... pra orientar, e tal. E, era uma época também que até
talvez por conta dessa falta de maturidade, eu não sabia o que fazer... então a orientação que
acabou vindo pra mim foi da minha mãe, daquela coisa que ela sempre teve o sonho de ser
professora e não conseguiu ser professora, ela acabou indo pra outra área. Ela sempre achou
lindo isso e ela achava que era... era uma coisa legal pra mim, era uma coisa que eu depois
podia fazer um concurso... e foi o que aconteceu, né?... então ela meio que traçou isso pra
mim e aí eu fui.
O Colégio Normal foi uma experiência assim horrível (risos), porque... eu não gostava,
não gostava de nada que era feito ali, eu achava que eu não gostava de dar aula, tudo que era
mostrado... que era apresentado a mim eu não gostava, então assim, eu ia fazendo o Normal
meio que empurrando, mas com aquela coisa de que vou terminar e não quero ser professora...
mas, assim, quando eu comecei a entrar, a gente começou a ter o primeiro contato com a
prática, com os estágios que a gente fazia nas escolas... naquela época, que não faz tanto
tempo assim, eu me formei em... na Escola Normal, foi em 96, então não faz tanto tempo...
Naquela época, no estágio, eu me chocava porque a gente faz o estágio em escola pública
municipal, e eu ficava chocada assim... com... como as coisas funcionavam, os alunos,
como eles eram, o perfil dos alunostinha... hoje em dia, assim, está... a realidade a cada dia
ela vai se agravando mais... mas naquela época os alunos eram bem carentes, então aquilo
ali pra mim foi... serviu pra mim de... foi mais um motivo pra eu dizer que não queria ser
183
professora, que eu via uma realidade muito carente, o perfil dos professores também não me
ajudavam, porque quando você olha pra alguém que você algo positivo, você uma
motivação, uma alegria, um entusiasmo, você se entusiasma também, ? Então eu via na
figura daqueles professores com quem eu convivi ali eu via é... imagem de pessoas cansadas,
de pessoas que estavam ali muito desmotivadas e descrentes mesmo com o que estavam
fazendo, então naquela época havia isso, então a minha perspectiva era de terminar ali e
partir pra outra. Eu tinha muita vontade de fazer medicina... e aí quando eu terminei o Normal,
tive uma sorte danada... não sei se foi sorte ou azar, de passar pro... hoje eu vejo que foi
sorte... de passar pra prefeitura, novinha com 18, tinha acabado de... não tinha nem feito 18
anos ainda, e passei pra prefeitura municipal. É uma história que eu ouço direto, várias
professoras aqui que trabalham com a gente têm essa história de terem entrado bem novinhas,
e foi o que aconteceu comigo também. E foi a felicidade da família porque tão nova ter
conseguido um emprego e tal... nosso problema não foi a separação familiar, também teve
problema financeiro que estava junto. Então fui pra prefeitura trabalhar e aí... comecei a... sem
querer você é obrigado a aprender, você é obrigada a se envolver ali, e foi uma verdadeira
escola... começou a minha escola de vida, quando eu fui pra prefeitura. Na prefeitura,
assim, no início quando eu entrei eu sentia que aquilo ali seria um desafio muito grande pra
mim, primeiro por ser muito nova, e as pessoas te subestimam, né? E depois por conta da
própria realidade, mas, assim, com o passar do tempo... foram seis anos no total... durante
esses seis anos eu fui acumulando, aos pouquinhos fui aprendendo, eu sempre tive essa
postura de... de me juntar às pessoas pra aprender, de ficar... colar ali, ficar do lado olhando,
junto pra ver como é que a pessoa faz pra fazer também. Então sempre tive essa postura de
estar aprendendo, nunca tive vergonha de perguntar como é que faz, e de pedir ajuda, e eu
fui caminhando e fui construindo uma bagagem. Nessa época, eu tinha muita vontade de
fazer medicina, mas eu não conseguia passar no vestibular, uma coisa incrível... foi um trauma
na minha vida porque eu fazia curso pré-vestibular, eu estudava que nem uma louca, eu
decorava todas aquelas fórmulas mas eu não conseguia passar. Então eu tentei em vários anos
seguidos e era uma frustração tremenda porque não conseguia passar pra medicina. Então eu
desisti, fui fazer faculdade do quê? Fui fazer faculdade de História que era uma coisa que eu
gostava muito. Eu estava na prefeitura trabalhando e eu comecei a sentir vontade de ter
uma formação mais específica pra minha área de primeiro segmento, de primeira à quarta. Eu
não me sentia preparada, eu queria mais embasamento teórico, eu queria mais coisas assim
que me tornassem mais profissional e eu optei por fazer Pedagogia, eu larguei História,
meio sem pensar, larguei, deixei em stand by, e fui fazer Pedagogia e também não foi uma
184
experiência muito boa. Eu não tenho uma experiência muito boa de escola, de faculdade, de
instituição. E fui fazer Pedagogia, não foi uma experiência muito boa pela própria
organização como as coisas... eu fui fazer na UERJ, não gostava muito da forma como era
organizada e tal, mas foi uma escola pra mim também, aprendi muito ali, até, assim, o perfil
profissional que eu acabei adquirindo foi graças à faculdade de Pedagogia na UERJ,
entendeu? Ali eu consegui... dos textos que eu lia, das rodas que a gente fazia na turma, das
trocas... ali tinha profissional de todas as... das mais diferentes escolas, desde a particular de
alto nível até a pública municipal, então assim, a troca era muito grande, apesar de ter sido
difícil de fazer a faculdade de Pedagogia mas foi um aprendizado muito grande. Então tomei a
decisão certa quando fui pra e fiquei trabalhando na prefeitura, mas nunca esquecendo
aquele sonho que eu tinha de estar fazendo medicina e aí, hoje, isso está mais é... meio que
encaminhado, ainda tenho vontade de fazer alguma coisa nessa área da saúde agora... e aí, na
prefeitura, eu convivi durante esses seis anos com uma realidade muito, muito difícil, muito
complicada, uma coisa que eu queria sair, mas que eu estava ali eu comecei a dar o melhor
de mim, entendeu? Então, passei por várias escolas, trabalhei na Cidade de Deus, na época em
que era rodado até um filme com esse nome... vi coisas que me deixaram chocada mas que pra
mim trouxeram verdadeiras lições de vida, acho que de amadurecimento também. Foi que
eu comecei a amadurecer mais e comecei a dar o melhor de mim, comecei a me envolver no
trabalho, fui parar numa escola que era uma escola de quinta à oitava em que eu trabalhava na
sala de leitura, e os alunos eram super carentes, eles eram muito agressivos, eles eram
rebeldes... rolava muita coisa ali complicada que... a ponto de as pessoas que entravam nessa
escola, elas se viam assim... não viam a hora de sair, elas entravam com vontade de sair.
Então um ambiente que a princípio ninguém quer trabalhar num ambiente como esse e eu
acabei me descobrindo... Porque a princípio eu me dei super bem com os alunos, porque eu
era novinha, então eles se identificaram muito comigo, então eles me ouviam e eu conversava
muito com eles, eles começaram, assim, a amolecer, e ao mesmo tempo eu cobrava muito
deles, eu mostrava pra eles que eu era a professora, então que ali eles tinham que estar me
respeitando. Foi uma experiência incrível... eu ver que aquelas meninas adolescentes se
espelhavam em mim, foi que eu comecei a ter consciência da... da importância... do papel
que eu tinha ali, né?... foi que eu comecei a me preocupar mais... caiu a ficha... que tudo
que eu fazia pra eles, aquilo ali era um exemplo. Então isso foi uma coisa que me amadureceu
muito... os meninos também eles eram muito criativos, eles faziam grafiti, aqueles desenhos,
eu consegui... a gente conseguiu... eu consegui batalhar junto com a direção da escola a
gente conseguiu fazer toda fachada da escola com grafiti dos alunos... Então era uma coisa
185
que estava me dando prazer, era aquela coisa de eu acordar... era uma escola perto da minha
casa, quer dizer, era uma comunidade que eu tinha... que eu me identificava, então eu ia pra
casa... ia pro colégio e era uma coisa que me dava prazer. Eu não vivia só em função disso, do
meu trabalho, sempre fiz outras coisas e tal, mas não ia pra trabalhar e ganhar o meu
dinheiro, eu ia pra fazer um trabalho que eu amava. E aí, nesse meio tempo eu estava
sempre fazendo alguma coisa, fiz o concurso pro Pedro II. O concurso pro Pedro II foi mais
uma coisa assim de... uma oportunidade, uma oportunidade de emprego, “ah abriu um
concurso então eu vou fazer porque é mais uma oportunidade”. Não conhecia o trabalho do
Pedro II, ouvia falar, nem sempre o que a gente ouve falar é aquilo que realmente é, então, o
que eu sabia do Pedro II é que era uma escola tradicional, uma escola de ensino de qualidade,
e uma oportunidade de trabalho, então eu fiz o concurso, mas não que eu tinha essa meta de
entrar pro Pedro II, foi mais uma coisa que... que eu acabei fazendo. E eu passei, fui
chamada pra trabalhar e tal, e aí eu me vi, uma coisa que eu nunca quis pra minha vida, nesses
seis anos foi uma coisa que eu fui amadurecendo, é que essa coisa de ser professor, de
trabalhar em escola pública, é uma coisa que exige muito de você, então você tem que ser
assim, você tem que ter uma vida à parte, você tem que viver outras coisas, você tem que ter
mais tempo pra fazer outras coisas, não pode ficar nisso, porque te consome muito. Então
não queria ficar... nem podia... não queria ficar com as duas funções, aqui e lá, não queria
ficar me dividindo. Então, esse momento, foi um momento assim difícil pra tomar decisão,
“Quê que eu faço? Fico aqui num lugar onde... é... não é um Colégio Pedro II, né, é uma
escolinha municipal, mas onde eu estou fazendo um trabalho assim que ta... ta me servindo
como uma... como um prazer e estou vendo que eu faço muito por eles também né? É mais do
que um trabalho, é uma coisa assim, é... é um envolvimento que você tem ali. E vim pro
Pedro II, saí de chorando, muito triste, arrasada, e talvez até por isso tenha... chegado aqui
com um... não muito empolgada, vim na curiosidade de o quê vem pela frente agora... quando
eu finalmente encontrei um lugar, depois de seis anos, eu me encaixei e descobri o meu
trabalho aqui eu vou e mudo... caio... Eles sentiram muito a minha falta e eu também, então
pra mim foi muito difícil, foi uma decisão difícil, de tomar. O Pedro II, ele é melhor em
questão de emprego, mas que eu estava sendo muito feliz no que eu estava fazendo eu
tava... e eu vim pro Pedro II... a princípio, entrar na sala de aula e dar aula, começar o meu
trabalho, isso não foi difícil... o que foi difícil pra mim foi... a princípio, me adaptar a um
lugar diferente mas não simplesmente por ser diferente... um lugar onde... o trabalho em si...
parece que tudo... parece que você muda pra... é uma outra realidade, não parece, é uma outra
realidade. Então foi difícil me adaptar. É uma escola muito maior, que a gente tem aqui, nessa
186
Unidade São Cristóvão, é um colégio muito grande, com vários setores, com uma organização
totalmente diferente, é um colégio que tem uma história diferente, isso conta muito. O perfil
dos alunos é diferente... é diferente... o perfil dos profissionais é diferente... então, essa
adaptação foi difícil, não entrar na sala de aula e dar aula, isso pra mim foi fácil. As coisas que
eu não sabia eu fui correr atrás pra ler e buscar, pesquisar pra levar pra eles na sala de aula,
isso foi tranqüilo. O difícil foi me adaptar a esse regime diferente, a essa coisa de... aqui tem
uma... é uma escola mas é uma escola como qualquer outra... é diferente... deixa eu ver se eu
consigo me explicar, agora eu me enrolei... as idéias, eu acho que é as idéias, acho que são as
idéias que são diferentes. A escola é a mesma, e uma escola com professor, com aluno, isso é
igual, mas as idéias são diferentes, o clima é diferente, porque uma é municipal a outra é
federal, uma é uma escola pequenininha de comunidade, a outra é uma escola que traz alunos
do Rio de Janeiro inteiro, até de fora. Então eu acho que as idéias são diferentes, o trabalho ele
tem um ambiente diferente, então ele acaba fluindo diferente. Então, assim, foi um pouquinho
difícil a adaptação, mas acho que nada que eu não... não conseguisse superar, até porque é um
lugar que me muito prazer de trabalhar e eu fui descobrindo isso aos poucos, eu não
descobri isso de cara. Por que, me prazer em trabalhar? Porque é um lugar que ainda... é
uma escola pública que ainda oferece coisas que em outros lugares você não tem. Então é... a
forma como... é... a cultura... é oferecida pros alunos aqui é uma coisa maravilhosa, as
oportunidades que eles têm de estar aprendendo música, artes, Educação Física, ir pra piscina,
isso é uma coisa que te dá prazer, ver que seus alunos estão sendo, numa escola pública, assim
contemplados em várias áreas e não naquela coisa de sala de aula com o professor em
frente ao quadro o tempo inteiro, como é a realidade das escolas públicas hoje, na maioria.
Então, aqui, eles têm uma oportunidade de... e a gente também, né? A gente tem a
oportunidade de oferecer mais pra eles e que lá não tinha. Então isso começou a me dar prazer
em trabalhar aqui. E estou até hoje, depois... amo a sala de aula, meu negócio é dar aula.
Esqueci um pouquinho medicina, tenho pensado muito, até por ter dado aula de Língua
Portuguesa nesses últimos anos, desde 2005, comecei a me interessar pela área de
Fonoaudiologia, estou fazendo planos de, de repente, mais pra frente apostar nessa área. Então
é uma coisa que eu quero sempre estar dentro da Universidade, eu quero sempre estar
estudando... buscando...
Pergunto em que ano Ana entrou para o Pedro II...
187
Em 2005. Parece que tem muitos anos que eu estou aqui, né? Pra você ver como eu me
adaptei... eu me adapto muito bem ao lugar, uma coisa que me fez muito bem, demorou um
pouquinho, não foi de cara, demorou mas aos pouquinhos eu me... já me senti em casa e o que
me deixou mais feliz foi a partir do momento em que eu passei a ter mais autonomia. Quando
eu cheguei que eu senti que as pessoas tinham uma expectativa em cima de mim, eu tive
bastante... aquilo ali não me deixava feliz porque eu queria fazer o meu trabalho, eu queria
fazer algo que eu estivesse envolvida... algo que eu acreditasse, fazer, me dedicar àquilo e
fazer bem e no início eu me sentia muito presa. Eu sentia que tinha uma expectativa em cima
de mim, eu sentia também que eu estavac hegando, que eu tinha que, primeiro, ocupar o meu
espaço pra depois eu começar a fazer... Enquanto você não ocupa o seu espaço, você não
consegue muito fazer porque tem que ficar o tempo inteiro prestando conta do que está
fazendo... tem essa preocupação de “primeiro eu tenho que ocupar a minha cadeira, pra depois
eu começar a trabalhar do jeito que eu quero, do jeito que eu gosto”...
Peço que Ana conte a relação que tinha na infância com as Narrativas, se ela lembra de um
Narrador marcante... quem contava histórias para a menina Ana?
(Ana se entusiasma ao falar de sua infância)
A prova de que ainda existe uma menina dentro de mim é que se você olhar na minha mesa de
cabeceira hoje, tem um livro do João Pinheiro Neto que eu estou lendo, que eu estou amando,
e tem um gibi da turma da Mônica, porque eu não largo os gibis. Eu compro assim na banca,
eu vou comprar o jornal e trago o gibi do Maurício de Souza, eu sou louca por gibi, então... e
é engraçado, por que? Quando eu era criança, eu acho que a minha família não tinha muito
conhecimento a respeito do que era incentivar uma boa leitura, orientar, acho que não tinha
muito... então, meu pai era um leitor, devorava livros, meu pai lia o tempo inteiro. A gente
tinha em casa uma bibliotecazinha particular, minha mãe também gostava muito, então eles
liam muito, que, o que eles traziam pra gente eram os livros, aqueles tradicionais de contos
de fadas... mais pra mim... eu tenho um irmão. Pro meu irmão eles levavam mais... meu irmão
sempre se interessou por livros científicos... revistas de curiosidades, que falavam sobre o
mundo animal, essas coisas, sempre foi louco por isso. Então, eu tinha livros, sim, de
histórias, mas tinha poucos. As histórias que o meu pai... os livros que ele, que eu lembro que
ele comprou pra mim eram livros de contos de fadas... até porque eu acho que naquela época
não tinha esses livros maravilhosos que a gente tem hoje, né? Com essas histórias assim...
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com essa coisa do humor, esses livros que eu vejo que e gente traz pro Clube do Livro das
crianças, naquela época não tinha essas produções, então... se tinha também a gente não tinha
acesso, ainda... então eram esses livros. Uma coisa que me prendia muito eram os gibis porque
meu pai comprava muito gibi, era praticamente toda semana aquela coisa do sábado o pai está
em casa e ir comprar o pão com o jornal e com o gibi, então ele fazia isso muito pra mim e pro
meu irmão, então eu tinha... eu lia muito gibi da turma da Mônica, meu personagem preferido
era o Chico Bento, ainda é... e o do meu irmão era o Tio Patinhas, então cada um... a revista
do Chico Bento pra Ana, a revista do Tio Patinhas pra ele... e, essa coisa do Narrador, por
incrível que pareça, não foi meu pai, foi meu irmão! Ele é mais velho do que eu três anos...
você falou: “pensa num Narrador marcante”, aí eu pensei, até ri porque foi o meu irmão, foi e
é. Meu irmão sempre foi assim louco por leitura, por livros, criança ele começava a se
interessar por livros de ficção científica, ele montou uma coleção de livros, ele lia, devorava
aqueles livros de bolso... acho que ele se sentia muito solitário nas leituras, porque não eram
leituras que meu pai, minha mãe se interessavam, então acho que quem ele tinha pra
compartilhar essas leituras acabava sendo EU (ênfase). Então, ele comentava muito comigo,
coisas de... assim... de invasões alienígenas e ele trazia muito isso pras nossas brincadeiras.
Nossas brincadeiras eram sempre inspiradas, tinha as outras crianças da família também, mas
toda brincadeira que a gente fazia elas eram sempre inspiradas nos livros de ficção científica
que meu irmão lia. Por exemplo, uma brincadeira no quintal, que seria uma guerrinha
meninos e meninas, “vamos fazer uma guerrinha”, mas a guerra tinha... as meninas eram
alienígenas, sim... era uma coisa sempre inspirada nos livros que ele lia. Então, ele trazia isso
muito pra gente e ele trouxe isso muito pra mim, eu não gosto de ler livros de ficção científica,
mas ele era um Narrador que me fazia... me despertava o interesse pelas histórias, pelos livros,
então eu cheguei várias vezes a ir na estante dele pegar livros de ficção científica, tentar ler
mas não conseguia por achar chato... era muito chato... era muito legal quando meu irmão
contava, né?. Então, nunca consegui ler nenhum, várias vezes fui na prateleira e tal, mas
quando ele contava era muito legal. Então, um Narrador marcante foi ele, começou assim e foi
assim a vida inteira, ele sempre se interessou por leituras, essas leituras, ele sempre foi
daquele tipo de: “Você sabe porque a minhoca...”, esse tipo de pergunta, né? que ele fazia e
deixava a gente curioso. Então eu tive muito essa coisa do gibi, de ler gibi e essa coisa das
Narrativas do meu irmão, foram muito presentes na minha infância, na adolescência também,
ali aumentou mais ainda, que ele lia muito mais e ele sempre contava, porque, o que eu
falei: quem ele tinha pra compartilhar essas leituras era eu, né?. Então... foi um Narrador
marcante, e é até hoje.
189
E na escola? Você ouvia histórias?
Tinha... tinha história, tinha contação de história, é... tinha... muito pouco, sabe? Eu não me
lembro nas escolas em que eu estudei, eu não me lembro de freqüentar biblioteca ou sala de
leitura, não me lembro disso. Eu lembro que as bibliotecas das escolas que eu estudei eram
aquelas... era aquela sala fechada. Era aquela sala que a gente via a plaquinha lá: “Biblioteca”,
mas que estava sempre com a porta fechada. Não era acessível e os livros que estavam lá eram
livros velhos e grossos e pesados, não eram livros de histórias legais e interessantes. E
professora contando história também eu lembro muito pouco, eu lembro de histórias na pré-
escola, C.A., mas depois disso, professor contador de histórias eu não tenho essa lembrança.
E hoje, em sua sala de aula, qual é o lugar de contar histórias para os seus alunos?
Um lugar importantíssimo, até porque eu acho que tudo que eu faço, eu acho que tudo tem
que ter uma historinha. Eu lembro de uma coisa que uma professora da faculdade dizia que
tudo que a gente fala tem que ter uma historinha pra exemplificar. Então, eu gosto muito, de
narrar, de contar. Para os meus alunos hoje sei a importância de contar histórias... as histórias
dos livros, isso é uma coisa que eu procuro fazer sempre com eles. Mas, fora essas histórias,
de outras histórias que a gente... eu gosto muito de contar. Tipo: entrar na sala de aula de
manhã e falar: “gente, sabe o que aconteceu quando eu estava vindo pra cá?”, eles já... acho
que eles ficam mais curiosos que se eu pegasse um livro e dissesse: “Vou ler uma história”.
Eles ficam naquela expectativa: “O que aconteceu?”, “Ah, quando eu estava vindo pra
aconteceu isso, o que vocês acham?”. Então eu gosto muito, gosto muito de narrar pra eles.
E o tempo para isso na escola, o que você acha?
É... é um tempo que eu tenho que criar. Eu tenho que procurar esse tempo dentro do meu
trabalho, porque a gente tem é... um trabalho que a gente planeja e que a gente tem que
cumprir e... acho que a gente tem que optar ou não por abrir esse espaço. Eu sempre... eu
sempre procuro abrir esse espaço porque eu acho que é importante. Eu sempre falo que eu dou
mais aula em pé e falando do que sentada ou escrevendo. Já teve fala de aluno, de eu estar, por
exemplo, entrar na sala às sete da manhã e às nove ainda estava ali em falando e de eles
falarem: “A aula não vai começar, não?”, esse tipo de coisa. Mas eu estou dando aula, a gente
190
está conversando, né? Eu gosto muito de conversar, de dialogar com eles e ouvi-los também,
as histórias que eles contam. Não é fácil por conta da gente estar sempre assim, um
planejamento pra cumprir e tal. Mas eu não acho difícil abrir esse espaço, até porque você faz
um plano do que você tem que fazer, mas você pode trabalhar isso de diferentes formas,
inclusive na fala. Então é um espaço que estar sempre presente no meu trabalho.
Qual é o seu sentimento de contar essa história agora?
É bom, é muito bom, é bom voltar assim ao passado, essa memória é bem legal, é uma coisa
que eu faço sempre comigo mesma, sempre fico lembrando de como eu cheguei até aqui,
sempre fico vendo, é... nossa, o que eu sou hoje, o que aconteceu no passado pras coisas se
desenrolarem e chegarem ao ponto que estão. Mas eu fiquei feliz em, em... fico com um
sentimento de felicidade por estar sendo ouvida, porque... é engraçado, né, não é difícil pra
mim falar, acho que não é difícil pra muitas pessoas, mas ouvir é difícil, encontrar quem te
ouça é muito difícil... é muito difícil. Quem vai se interessar pela história de como... então, é
um sentimento de felicidade, sabe, de estar... com uma coisa tão simples... o que eu estou
falando aqui é tudo muito simples, pra você é tudo muito simples. O que eu estou te contando,
pra mim isso é... um ato tão simples mas que está sendo levado tão a sério, né? Porque você
está dando uma importância a isso, você está ouvindo, então o sentimento que eu tenho é esse.
* * *
Bárbara
Minha vida profissional começou com dezoito anos, eu fui trabalhar por necessidades
financeiras da família e o que se apresentou naquele momento, embora eu estivesse
aprovada no concurso do Pedro II, foi um emprego na Vasp. Eu fiquei seis meses. Fiz o
concurso em 86 e fui chamada em 87, então eu comecei a trabalhar na Vasp no início de 86 e
fiquei aguardando a chamada, até porque tem muito concurso público que caduca, eu fiquei
com medo e aceitei o emprego. Quando eu recebi a notícia, a convocação para o Pedro II eu
fui convidada a ficar a Vasp mas eu não queria porque eu tinha assim um desejo enorme de ir
para o magistério. Eu chorei tanto no dia que recebi o telegrama...
191
(Na Vasp)Eu emitia bilhetes para o professor Tito Urbano, diretor do Pedro II. A gente
trabalhava no setor de convênio, eu era... não chamava na época de convênio, são os grandes
correntistas que sustentam as empresas aéreas, na verdade não é esse varejo de passageiros
que mantém, são as grandes companhias. Então o Pedro II tem uma conta, na época ele tinha
com a Vasp, hoje ele não trabalha mais assim. Não sei como funciona. Então alguém daqui
ligava pedindo um bilhete, a gente reservava o vôo, imprimia e o boy vinha trazer. Era esse o
esquema. Então, o único contato que eu tinha com o Pedro II era quando eu mandava bilhete
para o diretor geral aqui.
Eu quis muito esse emprego porque, durante o curso normal, eu me encantei com a educação.
Fui fazer normal mas eu queria ser atriz. Como quase todas as adolescentes da minha geração,
né. Eu queria ser artista. Acho que foi o começo dessa geração que queria ir pra arte. Mas eu
me encantei tanto com as aulas de filosofia, sociologia, quando eu comecei a pensar naquilo
que eu supunha na época o poder transformador da educação. Hoje, eu, se tivesse reiniciando
a carreira, não teria tantos sonhos, tantas projeções. Mas eu tinha a convicção de que a gente
podia transformar mesmo a sociedade pela educação e essa perspectiva foi muito forte pra
mim. Então eu vim trabalhar aqui totalmente inexperiente com uma formação que era do
Instituto de Educação, que era ainda uma referência naquela época, mas que também eu não
tinha titulações. Eu entrei aqui com pessoas que eram diretoras de escolas no município,
quando eu cheguei no Engenho Novo, a primeira reunião, as pessoas falavam de seus
currículos e tudo que eu tinha para dizer era que eu tinha trabalhado seis meses na Vasp.
Então, as pessoas nem investiram muito em mim, né, não acreditaram. E eu tive a felicidade
de... você conheceu a Mara... A Mara foi minha primeira supervisora e com ela eu aprendi... aí
como nós perdemos a eleição lá, a Inês era a diretora naquela época, Inês perdeu a eleição e eu
ainda fiquei um ano, mas depois foi se desconfigurando muito, como se assemelha ao que
temos vivido aqui, foi ficando muito longe do que eu pretendia como escola e aí eu vim pra cá
pra São Cristóvão. Então esse meu percurso profissional, acho assim, o que eu avalio é que
tenha faltado a ele foi um certo investimento na vida acadêmica, pelas coisas que eu priorizei
na minha vida: a maternidade, a família, a minha militância religiosa que ocupa muito do meu
tempo, né, e muito da minha relação com os livros se deu pela doutrina espírita. Na verdade
eu me formei leitora pelo espiritismo, não pela escola... o interesse pelo saber, a vontade de
saber e aí, o fato de ser espírita, especialmente, te coloca em contato com a filosofia, com a
sociologia, com questões que são do mundo de maneira geral, com a educação... você acaba
tendo que ler um pouco de Darwin, estudar um pouco para entender os processos, enfim, eu
fui desenvolvendo uma relação com o saber, né. Então, fui ficando aqui no Pedro II porque
192
gosto muito daqui. Fui fazendo a Universidade concomitantemente. Fiz a graduação aqui
trabalhando no Pedro II, minha formação foi de 88 a 91, foram os anos de dedicação à
Gama Filho e depois fiz a especialização, mas não propriamente com propósito acadêmico,
naquele momento era por uma questão financeira, de progressão, né. E essa resistência que eu
passei a ter a ler o que era obrigatório, eu não me via de novo cursando disciplina com prazo
de nota, tendo que entregar prova... eu gosto de ler, eu continuo investindo na carreira nas
leituras que eu fui fazendo, nas coisas que eu fui buscando assistematicamente, se quero ler
esse autor, com vontade de estudar alfabetização, quero o que o fulano pensa... mas não
me via de novo na academia.
Sobre a relação com as histórias...
Eu me lembro muito dos momentos de ouvir histórias, a minha mãe contava histórias na hora
de dormir e eu lamento que não tenha tido a oportunidade de numa outra geração ter acesso às
narrativas, como hoje eles têm de forma linda, porque eu não tinha acesso a livros de
qualidade, eu tinha poucos livros de literatura infantil, então eu me lembro de uma coleção,
aquela coleção eu li e reli um milhão de vezes porque era aquela que tinha em casa. E eu
sempre gostei muito das histórias pelo seu conteúdo dramático, eu gostava das histórias
dramáticas, das intrigas, a inveja... E depois eu me encantei, eu queria ser atriz pelas histórias.
Eu desisti de ser atriz porque eu vi que eu não queria a fama, eu não tinha vocação nenhuma
para a exposição pública e vi que talvez até tivesse algum talento, mas vocação não tinha. Eu
gostava daquelas tramas e eu via que às vezes eu queria viver aquelas tramas, aquelas histórias
que me encantavam e... a literatura infantil foi mesmo uma rica descoberta, depois na minha
vida profissional, quando eu fui tendo acesso e também tinha recursos pra montar um
acervo, até hoje invisto nisso: adquirir livros para crianças a aí, como mãe, ofereci muitos ao
meu filho, uma relação sempre de prazer em relação às narrativas. Agora, profissionalmente, o
lugar que eu estabeleci pra elas também foi construído com o tempo. Eu contava histórias
como professor conta, ocasionalmente, assim, sentindo que estava roubando tempo, até 98.
Em 98 quando tive acesso ao trabalho e à proposta dos Parâmetros curriculares Nacionais e
especialmente ao trabalho da Maria José Nóbrega em que eu tive a possibilidade de refletir o
quanto da própria qualidade do desempenho escolar na área de Língua Portuguesa o quanto
aquilo... pra que as crianças pudessem ter bons escritos elas precisariam de bons modelos, isso
se incorporou à minha prática de uma tal maneira que eu não me sinto mais transgredindo,
aquilo é da minha rotina, aquilo faz parte do meu trabalho. Todos os dias nós ouvimos
193
histórias. Noutro dia eles até perguntaram: “mas porque você não faz um dia história e um dia
brincadeira?”, porque pra eles está tudo na mesma categoria do lúdico. “Por que você não
troca?”. “Não, história a gente não vai negociar. Não pra negociar, a gente, alguns dias a
gente vai brincar, mas história a gente tem que ter todo dia”. E eu gosto muito, esse lado da
atriz que não aconteceu, ele aparece ali, eu invisto mesmo naquele momento nas caras, bocas
trejeitos. Fiz uma mala no ano passado pra mim com apetrechos, com perucas, com chapéus.
Então esse lado da teatralização na história... acho que eu sou uma boa contadora de histórias,
meus alunos avaliavam assim, quando eles terminaram a segunda série, eles diziam essa
história você conta bem, eles fazem uma avaliação mais técnica, né, você conta bem. Ah, hoje
você não está muito animada, eles já faziam...
Eu conto a maioria delas com livro porque eu não tenho muitas de memória. Existe uma que
eu aprendi com minha mãe, é uma história, uma versão da Dona Baratinha, mas ela é super
complexa porque tem a segunda parte do depois que a laranjeira desfolhou, o passarinho
depenou, o capim secou e aquilo é uma curtição pra eles, eles adoram essa história. Eu digo
que aprendi com minha mãe, que minha mãe aprendeu com minha avó e eles acham que isso
então deve representar muito tempo (...) o conceito de passado.
Sobre ouvir histórias na escola em sua infância...
Não. Eu não tenho recordações. Eu me lembro da biblioteca, mas eu não era assídua à
biblioteca, eu não tinha esse movimento pelos livros, como eu falei pra você, a minha relação
com os livros ela se deu posteriormente, via espiritismo, foi por um outro caminho na minha
vida, aconteceu por um outro lugar e até hoje, embora eu aprecie as narrativas não são elas
que constituem a maior parte do meu tempo como leitora, eu gosto da leitura informativa, eu
gosto de ler para aprender, então, mesmo na literatura espírita que tem uma parte muito
grande de narrativas, não são elas que eu priorizo. Eu priorizo os livros técnicos, aqueles que
têm algo a dizer, algo a ensinar, meu perfil mesmo como leitora. Eu não sou uma grande
leitora de narrativas.
Peço a Bárbara que explique o que são as narrativas espíritas:
Algumas, as clássicas, as mais respeitadas, são o que a gente chama de romances históricos,
são fatos que aconteceram com outras personalidades em outras épocas e aquilo é recontado.
Às vezes eles fazem uma síntese, coisas que aconteceram em várias etapas eles condensam
numa narrativa, né. Preservam o fio condutor mas não vão... não são absolutamente fies aos
194
fatos, eles mantém o que é fundamental na narrativa. Eu acho que são bem construídas, são
bem redigidas mas ainda assim não são elas que me fascinam. De vez em quando eu pego um
livro de contos, vou ler contos...
Bárbara fala sobre as leituras no tempo da graduação:
Fiz inglês, o que li foi de literatura inglesa, acabei lendo outros autores da literatura
inglesa...
Em resposta à pergunta “o que se aprende/o que se ensina com o ato de narrar”...
eu acho tão difícil porque aquilo chega para cada um de uma maneira tão particular que eu
não faço daquilo um momento pedagógico. Eu acredito que é uma semeadura, mas de que
forma eu vou colhendo eu não sei bem, eu não monitoro isso, o que você aprendeu? Eu não
didatizo aquele momento. Eu percebo um aprendizado em relação à apropriação da
linguagem, eu vejo os alunos utilizando, tanto na linguagem falada quanto na escrita recursos
que são típicos da língua escrita. Acho muito interessante a forma como eu vejo que aquilo ali
não é explorado, é totalmente intuitivo, quase que por osmose, está em contato, recebeu
aquilo, não tem um processo de racionalização. Eu percebo que há apropriação da linguagem,
acho que, em relação às crianças pequenas, os valores que estão subjacentes são muito
percebidos e me preocupo muitos com eles, que conteúdo vou ler junto com o livro. O que eu
acho que a gente às vezes é o que não sabe que está ensinando, e, eu acho assim: daquele
momento como momento de afetividade que é uma aprendizagem que aí não passa muito pelo
intelectual, é um momento assim: em que é possível a gente estar junto com o outro, longe, a
gente não precisa do vídeo-game, a gente não precisa... a gente está ali fruindo,
aproveitando aquele momento que é bom, que é gostoso, que é prazeroso, que não precisa de
nada que é caro, não precisa de um brinquedo importado, então eu acho assim: são
aprendizagens... algumas eu acho que eles vão tendo consciência que estão realizando, outras
eles não fazem a menor idéia de que estão aprendendo aquilo. Agora, aprendizado pra mim, o
que eu tenho aprendido com esses momentos, eu acho que eu nunca pensei nisso, não sei se
saberia responder essa pergunta, coisas que eu aprendo ali...
Peço que Bárbara fale mais sobre a arrumação do espaço da sala de aula, tendo em vista a
hora da história...
195
Esse cantinho é sempre um cantinho especial, eu comprei pra eles um piso, um piso mesmo,
tipo formipiso, eu comprei e pus naquele canto onde estão os livros, então, eles têm acesso aos
livros também em momentos informais e na hora da história é ali que nós nos colocamos,
ficamos juntos, estamos ali sempre juntinhos pra ouvir a história e nesse momento é um
momento assim, pra eles tem também uma função, nessa escola especialmente, eu escolho o
momento após o recreio pra fazer isso, então pra eles também é um momento importante de
voltar ao equilíbrio porque eles ficam totalmente desequilibrados, e eles sabem disso, o
recreio é alguma coisa que complica a vida deles, então é um momento assim de
acolhimento, de voltar à calma, às vezes com música, ponho uma música suave, outras vezes
não, um certo vamos relaxar, vamos respirar pra gente ouvir a história, pra gente se
recompor, então eu invisto... agora, eu acho assim que se o professor ele não consegue ver
nisso, ele não tem essa dimensão afetiva no seu trabalho, dificilmente ele vai contar a história
com essa preocupação, ele até pode, a escola disse que ele tem que contar, vai pegar um livro
lá e vai contar, mas eu acho que isso ta ligado mesmo ao universo de valores, eu acho que esse
momento da história ele é tão marcado para valores humanos, eu acho que ele não é um
momento mais intelectual, ele é um momento mesmo de uma construção de um valor humano
e se o professor não o seu trabalho dentro dessa forma, ele não se como um agente
também nesse sentido, ele não pode entrar ali pra ensinar Ciências, Matemática, aquelas
pessoas que estão, principalmente na faixa etária que a gente tem... eu acho que é pra vida
toda, quando a gente se lembra dos professores bons, geralmente eram aqueles que se
preocupavam com a gente, que queriam saber como você tava, pra além dos conteúdos
escolares, mas eu acho que o caminho é o contrário, eu não invisto nessas coisas para
desenvolver a afetividade, eu acho que porque eu priorizo isso eu acabo investindo no que eu
considero importante.
Mais sobre o cantinho da história...
Eu não quis por almofadas por causa da sujeira da escola, que infelizmente não dispõe de um
espaço em que eu possa investir também muito nisso, nada que seja de tecido, de pano, a
gente tem os alérgicos, aquilo depois vira um estorvo, eu fiz isso um ano e depois eu ficava
lavando almofada no fim-de-semana... não dá! Não dá, não!!! Fui abrind mão dos projetos, né.
E o Clube de Leitura que eu acho que nesse rol da relação com as narrativas ele também
tem muito destaque, eu vejo que o Clube, assim fazendo uma avaliação do meu trabalho, eu
196
acho que é uma coisa bem resolvida, os alunos, quase em sua totalidade, eles desenvolvem
uma relação quase amorosa com os livros, não nos cuidados mas pelo gosto, pelo prazer,
hoje eles vieram na fila comemorando porque é o dia de levar o livro, então o investimento, o
cuidado com o acervo, a escolha das histórias, eu não abro mão de ir às editoras, eu vou a
todas as editoras, agora a gente está com esse espaço reduzido de sala do professor, a gente
tem tido aí uma redução desses espaços nas editoras, mas eu vou a elas, fico na internet agora,
fico catando, se eu não ler o texto eu não adoto o livro, eu tenho que ler o texto pra ver não só
a qualidade mas, por exemplo, tinha um lá, uma coleção da Paulinas Branca de Neve e outras
histórias, Chapeuzinho Vermelho e outras histórias, eu queria o da Branca de Neve mas trouxe
errado, trouxe da Chapeuzinho, a primeira história que tinha lá, ah, eu achei aquela história
horrível, péssima, era uma história num monte, eu podia deixar passar mas eu não quero, uma
porcaria, um troço esquisito, no final o cara degola a bruxa, no final o cara enrola a bruxa ele
se bem, a gente ta num mundo de corruptos, de impunidade, os calhordas têm que se dar
mal nos livros, né? Então eu acho que é isso, assim, o cuidado naquilo que é oferecido
também, não é pra ficar didático, não é isso, moralista, mas também não permito qualquer
acesso a qualquer porcaria e sinto isso na hora de contar a história, minha má vontade, isso foi
uma coisa que eu percebi que eu tenho que trabalhar. Quando eles trazem aqueles livros muito
pobres literariamente, eu sinto que eu conto... eu leio o livro, poderia salvar a narrativa, ele era
pobrinho mas ele podia ficar melhor com meu jeito de contar... tem que ser um livro bom de
contar. E no outro dia, inclusive na literatura espírita infantil, na metade da história eu não
agüentava mais, achava aquilo um saco, uma história boba de uma minhoca com pernas...
olha, a história me enjoou tanto que eu usei uma estratégia péssima, que não é ética, a menina
começou conversar no meio da história eu falei: muito bem, vamos parar por aqui, hoje eu
não conto mais história porque fulana está atrapalhando... aquilo era muito ruim, tem que ser
um livro legal, uma história boa de ser contada, que mereça, que seja... ou no conteúdo, às
vezes o texto não é rico mas o conteúdo é engraçado, interessante, outras vezes não, a história
em é... mas o texto é bem redigido, é bem construído, agora, quando não é nada, uma história
bobinha, uma lição de moral bobinha, aí não tem o menor sentido.
Segundo encontro:
(Valéria) Já pode.
197
(Bárbara) Então eu vou recuperar da minha entrada para porque eu não me lembro o que
(...), não é?.A minha sensação foi de uma surpresa grande favorável porque sabe que é uma
instituição muito antiga e eu fazia idéia de que eu encontraria uma escola, de abordagem
tradicional e fui surpreendida por um momento da escola em que as coisas estavam mudando,
eu não entrei quando mudou a escola, eu entrei um pouquinho depois, justamente quando se
estava fazendo a mudança da proposta pedagógica com base na experiência dos laboratórios
de currículos no município, então eu estava dentro do Pedro II (Colégio Pedro II), eu peguei o
início da capacitação e foi uma surpresa muito boa porque eu estava recém formada e eu
avaliava que o poder transformador da escola era maior do que hoje vinte anos depois de ter
sido prejudicado, mas no meu ideal era. E para mim era um momento favorável, eu via as
engrenagens trabalhando a favor desse acontecimento. Fui para o Engenho Novo havia um
grupo que defendia com vigor a proposta pedagógica e um outro grupo mais conservador,
poderia dizer assim. Numa eleição igualmente disputada, igualmente apertada, esse grupo
progressista perdeu, eu ainda permaneci mais um ano, mas discordando dos caminhos que
aquela escola foi ganhando, essa prática mais conservadora de perceber como no Pedro II o
público e privado se confundem, como as direções entendem aquele lugar como um lugar seu,
não um lugar coletivo, da gestão coletiva, eu então vim para São Cristóvão porque aqui havia
um grupo mais (...) aqui era a unidade que defendia mais fortemente essa proposta
metodológica, então a gente tinha na época uma avaliação, que era avaliação que nunca
estará nos documentos, mas a gente tinha mais tradicional Tijuca e Humaitá. O Engenho Novo
num processo inicialmente progressista que foi tendendo a esse retorno e São Cristóvão foi o
único núcleo de resistência durante bastante tempo até a última eleição, a penúltima, que nós
tivemos e que foi um marco na minha vida profissional porque eu vi que se determinadas
práticas políticas, administrativas, elas estão de tal maneira enraizadas que como na evolução
das espécies e tampouco um caminho para se manter (...) é impressionante. Agora, a minha
experiência no Pedro II foi muito enriquecedora. Eu convivi com profissionais extremantes
qualificados em diferentes áreas , eu acho que a coordenação de área embora eu descorde
dela ser mantida na unidade da forma como vem se constituindo, mas o fato de ter pessoas
especialistas nas suas áreas permite que você tendo acabe uma certa abrangência e um acesso
a muitas oportunidades, são muitas pessoas que fazem você pensar em muita coisas diferentes.
Eu acho que a gente teve esse momento (...) para mim a entrada da última direção foi um
marco nesse sentido, até então eu sentia ainda em São Cristóvão esse espaço, esse lugar de
perspectivas, não é? Até teve assim, um momento morno que mudou mais ou menos em 97
(1997) e 98 (1998) , não é? Aqui na Unidade teve o boom (...) que trouxe o olhar de fora
198
porque com a saída do laboratório de currículo (...) o trabalho se descaracterizou, você não
tinha mais uma marca, a cara do trabalho no Pedro II, de fato até hoje não temos quando a
gente fala em alfabetização, por exemplo, você percebe que não há um consenso, não há uma
proposta pedagógica geral ou se explicitada no PPP( Projeto Político Pedagógico), ela não
carece de refletir nos espaços, na prática das pessoas e então, eu acho que esse (...) se esse
monte de vendas foi logo depois, licenciados por essas pessoas que também entraram, mas
assim com um perfil de muita competência técnica, essa pessoas que estão de concurso, você (
Valéria), Helenice, Teresa Ventura, Neila. Foi um grupo assim, que chegou na época, mas
em 98, talvez também não estivesse mais apropriado para a escola , começar a propor coisas e
eu acho que a Helenice teve um papel fundamental na escola quando trouxe a Maria José
Nóbrega para falar do trabalho com a língua portuguesa e gente começou a ter acesso as
parâmetros curriculares nacionais e essa discussão.
* * *
Entrevista coletiva: Madalena, Beatriz e Iracema
Madalena: Bom, eu costumo dizer que eu comecei a ser professora no Jardim de Infância,
porque eu me apaixonei por isso, eu queria ser professora desde pequena e o Jardim de
Infância foi o lugar que eu me encontrei, então quando eu comecei, quando eu me formei e fui
trabalhar os primeiros lugares que eu procurei pra trabalhar foram os Jardins, e quando eu fui
pro município, num leque de escolas que tinha pra escolher em Bangu, eu escolho um Jardim
de Infância isolado, eu queria ser professora de Jardim de Infância, foi ali que eu me
apaixonei. E, eu acho que, especialmente, que era um espaço porque que me dava... tempo,
assim, pra brincar, pra... essa criança que durante muitos anos ainda fui, eu acho que hoje eu
sou um pouco menos, mas eu fui durante muitos anos aquela professora que era a criança... eu
tava ali exercitando essa minha infância que estava ficando pra trás. Então era a coisa de tocar
e cantar música e ouvir histórias e contar história e conversar sobre as coisas e fazer pintura a
dedo... aquele espaço do Jardim de Infância era o espaço que, pelo qual eu era apaixonada.
Então, foram 12 anos, no Jardim de Infância, 12 anos no município e mais um ano e e meio
em particular, só com Jardim de Infância. Eu fiquei um ano em Bangu e depois eu fui pra Ilha
do Governador, eu morava na Ilha, eu já morava na Ilha. Eu estudei em Jardim de Infância em
Nova Iguaçu, depois... Eu entrei no Curso Normal em 77, na Ilha do Governador também,
199
numa escola particular, e ali foi um Curso Normal que, hoje em dia, eu considero bastante
bom mas que na verdade passou ao largo dessa coisa... da prática, a prática era uma coisa
muito pequena na verdade, era você preparar algumas aulas, observar algumas aulas... foi
muito diferente do que eu fui fazer quando eu entrei...
Valéria: E você Iracema?
Iracema: Eu também sempre tive... tive sempre um sonho, na realidade eu queria ser...
adulta meu sonho era fazer veterinária, eu tenho loucura por bicho, eu cuido, eu tenho um
empenho mesmo, mas infelizmente eu não tive condições financeiras pra poder bancar isso
porque ou eu trabalho... até dava pra conciliar mas o curso de veterinária era o dia inteiro se
dedicando... pensei até em fazer agora, estou com uma situação um pouco mais
estabilizada, tenho Reginaldo pra segurar a onda mas eu fico com medo de arriscar porque eu
acho que é um pouco de loucura, eu investir nisso tudo... Eu não digo pela idade, é questão de
grana mesmo. É a questão financeira, eu não sei se eu posso viver hoje sem a minha renda,
com a renda do Reginaldo... Bom, mas eu também, foi a mesma coisa que Madalena falou:
desde criança foi, era um sonho, eu sempre brincava... acho que todo mundo brincava de
boneca e eu brincava de ser professora. Aí eu dava aula pra filha da empregada da minha mãe,
eu estava num quarto... num quarto que tinha dentro de casa... um quarto de bagunça, né...
pegava um quadro, ganhei um quadro de natal então dava aula, sempre dei aula assim, nas
brincadeiras eu era sempre a professora, sempre com aquele jeito autoritário de organizar e
mandar tudo. Aí... e o que me incentivou também, assim, eu tinha como ídolo a minha
professora de alfabetização, professora do município, eu sempre estudei em escola pública, eu
saí... quer dizer, saí... eu saí no período de quinta série porque começaram as greves e
minha mãe me botou numa escola particular, eu fiquei de quinta à oitava depois eu voltei pra
uma escola do Estado, foi onde eu fiz Normal. Mas, assim, ela era a minha deusa aquela
professora que eu tive de alfabetização, então eu acho que incentivou mais ainda essa questão
de eu querer seguir essa carreira. Meu pai, era o sonho do meu pai falar que tinha normalista...
aquelas coisas do tempo... minha filha é professora, Escola Estadual Carmela Dutra, então pro
meu pai era um orgulho. Eu dei sorte que, assim, por mais que meu pai me estimulasse, era
uma coisa que eu queria fazer, eu não fui obrigada a fazer porque ele queria, eu também, né...
encaixou tudo, eu gostava e ele, era o sonho dele. Aí, fui, como eu falei, de Escola Infantil,
que na época era Jardim, até a quinta série em escola do município, depois fui pra uma escola
200
particular e fui... fiz o concurso pra Escola Normal e passei. Quando você tava falando do
Normal, eu lembrei, não sei se você também passou por isso, do Curso Adicional (se dirige à
Madalena), você fez isso?
Madalena: Eu fiz... (risos)
Iracema: Não, eu fiz obrigada porque minha primeira experiência quando eu me formei, eu
me formei em 85, e logo caí numa escola comunitária no Campo de Santana, na igreja
Senhora de Santana, eles tinham uma escolinha ali que depois foi crescendo, crescendo, e ali
tinha Jardim, então a diretora falou que eu poderia continuar na condição de fazer o
curso adicional, porque eu nunca tive a intenção de trabalhar com Jardim, não é a minha praia,
hoje ainda não é a minha praia, eu gosto de trabalhar com crianças maiores... mas fiz, né... fiz
ali na Julia Kubichek no Centro, na Central... aí fiz, logo depois acabou, mas fiz... aí ia pra lá,
fazia aquelas coisas que não tinha muito nem cabeça, flanelógrafo, cartazinho, eu me via
ali perdendo um tempo porque eu vi muito isso no Normal, você aprende essas coisas, né?
Didática, como é que faz, como é que não faz... mas tinha que fazer, então eu fiz. Bom, então
saí dessa escola que teve que fechar porque era uma escola de crianças carentes, depois
começou a entrar dinheiro, não deu muito certo, os padres acabaram lá, resolveram
acabar com a escola. eu caí numa escola particular que é totalmente outra realidade... em
Niterói, Colégio Itapuca... trabalhei... entrei em 90, saí de ano passado... por um lado foi
uma experiência boa, mas por outro aço que me acomodei muito lá, perdi assim outros
horizontes que eu estou encontrando aqui no Pedro II como uma experiência que é
totalmente... são os opostos, não é que não tenha coisa boa desse período de escola particular,
mas as cobranças são diferentes, o objetivo é outro, porque na escola particular você a
questão do lucro, entra dinheiro na frente de tudo, e a questão das escolas que... são
direcionadas pra isso... é dinheiro, é lucro, lucro, lucro... então vai passando por cima de tudo
que às vezes o professor... não é o que o professor deseja, mas ali você não é a voz de tudo,
então... aqui eu tenho assim, eu vejo como uma diferença, assim, o professor é mais escutado,
é mais... como é que eu vou te falar?... respeitado, até pela família, numa escola particular isso
não existe, a ralação é a mesma, acho que até mais, com coisas desnecessárias, escola
particular muito valor pras aparências, aquelas coisas todas... Então, como experiência de
Pedro II, era um sonho da minha mãe fazer um concurso pr´aqui, ela sempre falou, mas eu
sempre achando que era uma coisa assim muito distante do que eu podia, assim, que eu jamais
iria conseguir, apesar de ser muito longe, eu morar em Niterói, não sei se valia à pena, então
201
fui me acomodando, me acomodando, me acomodando... e hoje por, assim, um acaso, que eu
vi no jornal, tinha um dia pra fazer inscrição, meti a cara e fiz, não sabia nem quê que ia dar e
entrei, né, como contrato, mas entrei. Fiz não levando muita porque eu também achava que
ainda era uma coisa impossível, apesar de ter passado por uma prova, entrevista, uma coisa
também burocrática... menos burocrática do que o... bem menos do que o concurso, mas era
uma coisa... pra mim, difícil. E ta aí, fiquei, meu contrato termina ano que vem, espero que
consiga passar no concurso, estou estudando, montamos um grupo de estudo...
Valéria: Então, que você chegou nesse lugar do Pedro II, você podia falar como se sentiu
chegada...
Iracema: Ahhh, mais (risos), a pessoa melhor pra dizer isso é você também que foi a que me
acolheu aqui na minha entrada, né. Eu lembro de você, Helenice, eu cheguei completamente
perdida, assustada, porque aquilo que eu falei: a realidade é outra. Eu sinto, assim,
conversando com algumas colegas aqui, que têm a realidade daqui do Pedro II, assim como...
outro dia eu tava até conversando com a Madalena, as pessoas não... porque você viver aqui
dentro, aqui é um mundo, sem experiências lá fora de outras escolas, principalmente de escola
particular, então assim, às vezes eu... não é... como é que eu vou dizer... não é que as pessoas
falem mal, mas é que lá fora não sabe como é que funcionam as coisas, entendeu? Então, aqui
não é tão ruim como se imagina, né. Tem, lógico, tem um monte de coisas que precisa ser
revista, sim, mas a realidade fora é cruel e as pessoas não sabem disso... Bom, eu cheguei
aqui totalmente perdida porque isso aqui é um mundo, é muito grande, é... eu caí com
alfabetização que eu não tinha experiência, mas eu encarei e falei: “Não, entrei, agora... ta
na chuva é pra se molhar, vam´bora...”. Descobri que eu gosto, gostei muito de trabalhar com
alfabetização, foi uma experiência incrível, que até então minha experiência era de primeiro,
segundo ano, mas foi ótimo e eu tenho muito a agradecer a você e a Helenice, eu sempre falei
isso, né... eu lembro que a primeira vez que eu cheguei que nós sentamos ali na coordenação,
acho que foi você ou Helenice que falou que eu tava com um olho “deste tamanho”, vocês me
deram logo três livros pra ler e vam´bora, meti a cara e fui. Hoje eu me sinto muito bem aqui
no Colégio, eu acho que eu me adaptei, eu tenho um grupo de amigas, não de colegas, mas de
amigas, eu até gosto de falar isso sempre, a gente troca muito, não vejo assim nenhuma...
como é que eu vou falar... ninguém me deixa de lado, de canto ou de fora porque eu sou
contratada, no grupo que eu trabalho, eu me sinto muito à vontade, entendeu, isso foi muito
importante...
202
Valéria: Mas na escola em geral, você sente isso também?
Iracema: Olha, eu não sei se me sinto assim... acho que não, mas também tem muitas pessoas
que eu também não tenho contato direto, mas eu também vejo isso com outras professoras que
tão efetivas, porque você procura sempre um grupo que... você tem sempre um grupo que
tem uma afinidade, que você encaixe melhor... mas o quê que aconteceu também: meu grupo
do ano passado é quase o mesmo desse ano... saiu você... mas a gente continu... você saiu,
entrou a Simone, eu não tenho tanta afinidade com a Simone, minha afinidade com a
Simone é profissional mesmo, eu não sei se a gente não se abertura pra isso, mas a gente é
profissional... você eu tive uma coisa fora de Colégio, que a gente às vezes... nem tanto
mas de, quando dá, a gente mantém isso, então me sinto muito bem aqui...
Valéria: Beatriz...
Beatriz: ... A minha sensação é de dèjavu, eu já vi... não, eu já contei...
(Beatriz contou parte de sua história em outra ocasião, mas a qualidade da gravação, por ter
sido feita no Centro Cultural da Justiça, um lugar aberto, ficou muito ruim, impossível de
transcrever... ela, generosamente aceitou narrar outra vez)
Valéria: Mas é que você ensaiou...
Beatriz: É mas agora é diferente, vai ser tudo diferente... quer dizer, eu diferentemente de
vocês duas, eu devo ter dito em algum momento da minha vida, na infância, que eu queria ser
professora, porque eu acho que toda menina diz, acho difícil menina que não diz, eu não estou
dizendo que deseja, eu estou dizendo que em geral tem um momento em que ela diz isso...
mas não era o que eu queria, quer dizer, eu não dizia por mentira, devo ter dito em algum
momento, devo ter desejado, acredito, não me lembro, mas eu queria ser atriz, não queria ser
professora. Na verdade eu queria ser atriz. Tudo o que eu fiz na minha vida, até uns vinte
anos, 19, foi pra esperar o momento em que eu ia ser atriz... esse era o meu desejo. Então,
tudo era um compasso de espera, né, pro gran finale, de que eu subiria aos palcos e tal... nada
de televisão, não era isso, era teatro que eu queria. Então, por que que eu fui fazer normal?
Porque... primeiro porque eu era muito esquisita, eu queria muito ter o meu trabalho, eu com
203
12 anos trabalhei. Com 12 anos eu tocava piano numa escola pra acompanhar a ginástica
feminina, foi meu primeiro salário. A minha mãe trabalhava na escola, dirigia o grêmio da
escola, aqueles grêmios que a escola tinha, né, escola municipal... e a minha mãe chegava na
escola às sete... minha mãe não chegava às sete, como eu pegava às sete saia de casa vinte
pras sete ia a pé, minha mãe ia de carro e chegava sete e pouco, ficava todo mundo assim:
“Ai, ta chovendo, você veio sozinha...”, não sei quê e tal... eu detestava aquela mania da
minha mãe chegar atrasada, minha mãe tinha outra profissão na escola, eu era a mulher... a
menina que ficava tocando piano pra acompanhar a ginástica, não concebia que a ginástica, o
balé começasse sem mim... quer dizer, a minha mãe foi ser professora tardiamente, ela era
nutricionista e ela, depois que ela teve meu irmão ela largou a nutrição, não agüentava mais
trabalhar em hospital, nem a gente agüentava mais ouvir aquelas histórias das pessoas que
morriam... “seu fulano, morreu...”, “eu fiz uma dieta pra ele...” a gente ficava desesperado, ai
meu deus... a gente tinha sete anos mas eu achava aquilo uma loucura, e minha mãe nem tinha
estrutura pr´aquilo, nem sei o que ela foi fazer nutrição... ela foi fazer Educação Musical,
foi ser professora de Ensino Médio, mas isso ela tinha nós três, e tal... quer dizer, a
trajetória dela de professora, deu aula em Rocha Miranda e não sei quê, eu acompanhei muito
porque eu rodava no mimeógrafo, eu fazia matriz pra ela, eu corrigia prova, aquilo tudo eu
fazia, vivenciava... ia pras festas, professora de música... ia pras festas juninas, dava pitaco,
ela depois começou a fazer teatro, que ela adorava teatro, a gente fazia teatro em casa... ela
fazia teatro em tudo que era escola, não ficava na música, ficava com as artes cênicas, que
ela botava na escola numa época que não tinha... a gente palpitava, dava palpite, dizia:
“Ah, fulano? Fulano tem o maior jeito...”, aquelas coisas assim... quer dizer, fui
acompanhando isso, mas eu queria muito ter um trabalho, queria muito ter meu dinheiro. Meu
pai não tinha dificuldade financeira, nenhuma... assim: meu pai era militar, na época do golpe,
então a gente tava bem de vida, né. Então, a gente tinha uma situação financeira estável, a
gente freqüentava teatro, cinema, a gente vivia no teatro municipal, meu pai cantava, tocava
violino, a gente freqüentava sarau, minha mãe pintava, a gente vivia num mundo assim de...
sabe... de espetáculo... era a Liga do não sei quê dos italianos, era no sarau do não sei quê dos
ingleses, tinha um monte de coisa que a gente ia, né, pra´quelas coisas... eu lembro que eu
dormi em Mme Butterfly com cinco anos... porque Mme Butterfly é enorme, é lindo mas é
enorme, eu era muito pequena. Mas a gente freqüentava, meu pai conheceu minha mãe no
teatro municipal, né... então eles tinham... contavam... faziam questão de ir no andar, toda
vez que ia ao Teatro ia no andar mostrar onde foi que eles se conheceram, como é que meu
pai fez a proposta à minha mãe, aquela coisa toda, que ele tinha vindo da guerra, né, meu pai
204
era viúvo já... eu fui fazer Normal porque quando cheguei no fim do Ginásio, estudava
numa escola municipal, eu estudei numa escola municipal ali no Grajaú, e minha mãe tinha
pânico do... minha mãe sempre deixou a gente na escola pública, eu me lembro que as amigas
dela todas criticavam porque foi a época que a Classe Média toda tirou seus filhos da escola
pública em massa, na época do golpe, logo depois... tinha condição mas a minha mãe, não
sei... não sei porque ela deixava a gente ali, era em frente à casa, a gente estudava com as
crianças da favela do Andaraí, nós éramos... melhores é uma palavra forte... assim, o pessoal
que... os tais do letramento... era o pessoal que não precisava de nada daquilo, o que a
professora dava a gente sabia, tinha ortografia, a gente entrou na escola alfabetizada,
que me alfabetizou foi minha irmã, minha irmã aprendeu a ler com 4 anos sozinha e me
ensinou a ler. Eu aprendi a ler porque eu declamava, a gente fazia declamação... pra você ver
como eu sou velha... fazia declamação... declamação e piano, é bem o perfil, né, do início do
século, vinte (riso)... a gente fazia declamação e eu nunca me esqueço da minha mãe
falando pra mim: “Ah, Beatriz, não vou ficar decorando poesia pra você falar.” Um dia ela
falou isso pra mim, eu tava na vila de casa, nunca me esqueço disso, eu tinha seis anos eu
segurando assim numa pilastra que tinha e ela falou aquilo pra mim, as lágrimas me vieram
aos olhos, eu falei: “Eu preciso aprender a ler.” Aí naquele dia eu me dei conta da solidão que
eu tinha que ler porque eu queria declamar poesia e ela tinha que ficar lendo pra mim e tal... aí
a minha ir me torturou e me ensinou, ela dizia que eu era muito burra, não aprendia a ler,
porque ela me ensinava que B com A fazia BA e eu não entendia... eu fui pra escola
alfabetizada. Aí eu fui fazer Normal porque minha mãe tinha pavor da escola de segundo grau
que tinha perto, era uma escola em Vila Isabel que era considerada uma boate, que todo
mundo vendia lá... aquelas coisas daquela época, né... “Ah, o João Alfredo? No João Alfredo
ninguém estuda, fuma maconha, fazem isso, fazem aquilo... os meninos fumam, namoram...”
e eu...
Iracema: A escola só funcionava... só era boa até a oitava série...
Beatriz: é, tinha isso... e eu tinha pânico de ir pra porque eu ouvia tanta coisa, eu tinha
pavor do João Alfredo. A minha irmã escapou do João Alfredo porque minha irmã tinha um
perfil todo tecnológico da matemática, então minha irmã foi pra Escola Técnica fazer
Química. Então as opções que minha mãe impunha sem dizer, que minha mãe não era
pessoa de chegar e dizer: “Ó, você não vai pro João Alfredo, você escolhe ou Normal no
Instituto de Educação”, ela não dizia, era só mensagem subliminar... (risos de todas)...
205
É, era assim... eu peguei e falei assim: “Eu não tenho alternativa, Escola Técnica nem
pensar...odeio matemática, não quero nada disso pra mim...”, falei: “Então eu vou fazer
Normal”, porque ainda juntava a fome com a vontade de comer, eu ia ter um emprego, três
anos eu ia trabalhar e ganhar um trocado, aí eu fui fazer Normal por causa disso. Entrei lá, não
sofri... sofri por outras razões, um momento muito ruim da minha vida, mas pelo que... entrei
numa época em que o Instituto nem diretor tinha, não tinha professor de Física, não tinha
professor de Química, aquilo era uma boate, aquilo era... que era uma boate cheia de
mulher, né, tinha 3, 4 homens (risos), era mais tranqüilo, era uma boate quase que não era
mista, tinha meia dúzia de homens e eu nem era esse portento, então não corria risco nenhum
(risos). eu fiz o Normal, não fiz o concurso pro município porque naquele ano tinha de
Ramos e Olaria pra e eu tava cheia de problemas emocionais, tava com pânico, aquelas
coisas, então eu não ia. a minha mãe recebeu um convite pra trabalhar numa escola
particular na Tijuca, pra dar aula de música e minha mão, além da outra escola pública de vez
em quando ela tinha... dava bandinha pra criança de 3 anos e tal... ela perguntou se podia
mandar alguém no lugar, que ela não tava interessada,me mandou. A rigor, eu não poderia,
porque eu não tinha... eu fazia faculdade de música e de letras mas eu não tinha formação pra
ser professora de música, mas eles me botaram na escola como professora primária, que eu
tinha... a legislação permitia... e eu dava aula de quinta à oitava série, mas eu tinha 16 e dava
aula pra moleque de 12, 13... não tinha maturidade nenhuma, eu trabalhei uns seis meses, a
quinta série eu me levava, a minha mãe me ajudava a preparar aula, aquela aula meio desafio,
né... não era a minha cara até porque eu não tinha aquela vivência de música, tinha até umas
coisas que eu achava legais e tal, mas o meu embate com a sétima e oitava série era muito
difícil, não tinha distanciamento nem maturidade pra lidar com criança, com adolescente que
tava tão perto de mim, eu que tinha tido uma adolescência super complicada, então pra mim
era muito difícil aquele espelho daquele tempo ali, eu que não tinha tido uma adolescência
normal. Aí eu fiquei seis meses lá, também eu entrei pra lá já em agosto... não, entrei no início
do ano e em agosto eu pedi pra sair. Saí, aí fiquei... fiz o concurso pro município do outro ano,
que no outro ano abriu fui trabalhar em Olaria. foi... quer dizer, foi legal (?)... peguei
uma turma de C.A., que não era C.A. na época, era primeiro o ano, as crianças tinham 5 anos
e meio/6, naquela época muitas não pegavam o lápis, tinham o letramento muito... não tinha
quase Jardim no município, eu não tinha experiência nenhuma, tinha 39 alunos na sala, me
colocaram pra fazer o treinamento da abelhinha, abelhinha porque naquele DEC, 12º DEC era
abelhinha que se dava, fui pr´aquele treinamento da abelhinha (tenta imitar os sons)... (risos)...
eu odiava aquilo! Aquilo era o cão! você fazia aquele curso, eles consideravam que você
206
tava pronta, não carecia de nenhuma reflexão naquele período (risos de todas)... eu fiquei
fazendo bu, du, não sei quê e não adiantou nada, no final do ano ninguém lia... olha, pra não
dizer que ninguém lia eu me lembro de umas três ou quatro que... a orientadora do Colégio,
a supervisora veio me dizer que não tinha problema não, que isso era assim mesmo, que eles
não tinham nenhuma condição, porque também ninguém podia vir me crucificar no final do
ano, verdade? Ninguém tinha me ajudado ali, ia vim me crucificar no final do ano? Aí...
quer dizer não eu, outras pessoas tinham problemas, as crianças nem eram tão
problemáticas, eu não sabia me mover naquilo e eu tinha pavor de criança pequena, eu não fiz
Estudos Adicionais porque eu achava que não tinha a menor paciência com criança pequena,
Jardim de Infância nunca na minha vida, chegava era o que tinha, dez turmas, a escola
era enorme, da primeira à oitava série, uma escola imensa...
(pausa – as professoras precisaram sair para participar da reunião de planejamento)
2º momento – continuação da conversa...
Madalena: Eu também, que nem a Beatriz, sempre estudei em escola pública, e... menos no
Normal, o Normal foi numa escola particular que meu pai ganhou uma bolsa e... estudei até a
minha quarta série em Nova Iguaçu, depois eu fui pra Ilha do Governador, fiz o antigo
Ginásio e o Curso Normal e fiz Adicional, que nem a Iracema. E a Beatriz tava falando da
questão de declamar, eu também tinha essa coisa, uma parte interessante, eu não declamava
pro teatro mas eu declamava pra igreja, né, que eu freqüentava a igreja com a minha mãe e
tinha umas peças de teatro e tal, e aí minha mãe que é... decorava, me ajudava a decorar, tanto
pra falar poesias, versos, quanto pra falar as peças lá, eu era sempre o anjo, né... era tão
engraçado aquilo! Eu era sempre o anjo, e... era interessante essa coisa d´eu, não sabia ler
ainda mas quando eu fui pra escola eu sabia ler e escrever porque eu tinha muita
curiosidade, eu queria muito aprender a ler e escrever, isso foi uma parte interessante. E a
minha mãe era essa pessoa que trazia muito a leitura pra casa, que me incentivava muito, que
comprava muito livro, que contava história, a minha mãe foi essa pessoa que contava, era a
pessoa que contava história pra mim. As minhas histórias de infância não eram
necessariamente as histórias, os contos clássicos, eram as histórias da família, a minha mãe
contava. A minha mãe foi criada na roça e ela contava histórias, eu lembro que a história que
eu mais gostava e que eu pedia pra ela repetir milhões de vezes era a história do Tio
Manezinho que caiu dentro do balde, era o meu tio, irmão dela que vendia cavalo e, numa
207
dessas no quintal, cuidando dos cavalos ele andou pra trás e caiu dentro de um balde... eu
adorava essa história, meu Deus! E ela contava repetidas vezes. Eu era muito chata pra comer
também, então ela preocupada com a minha comida, ela contava história pra eu comer. Então
eram histórias da família e que eu adorava, inclusive a gente saia pela rua contando história,
porque, como eu não comia direito ela ia atrás de mim com o prato e aí eu ia andando pela rua
e ela atrás de mim com o prato e contando história, então foi a... as histórias clássicas
apareceram na minha vida mais tarde com o livro, quando eu comecei a ler e ela trazia muitos
livros e meu pai muitas coleções e tal. Eu lembro que O Mundo da Criança eu li to-do, todos
aqueles livros iniciais que eram de versos e poesias e músicas e... Contos de Fadas e Fábula,
que eu tenho e ainda uso até hoje...
Valéria: Beatriz ainda tem essa coleção...
Madalena: Eu tenho também. Eu li todas aquelas histórias, que eu adorava! Minha mãe dizia
que parecia que não tinha criança em casa...
(Beatriz lembra da imagem da Rapunzel, da ilustração do livro)
Madalena: É... a imagem... E foi assim, eu continuei meus estudos... quando eu fui fazer a
psicologia, a graduação, eu fui fazer psicologia pra trabalhar com Educação, eu queria
continuar trabalhando ali com Educação, com dificuldade de aprendizagem que foi mais uma
coisa que me atraiu na Psicologia e aí, por isso, depois eu fui fazer a Psicopedagogia pra
trabalhar com isso. E o Pedro II também veio meio que por acaso, eu tava no município
muito tempo e tava fazendo a pós-graduação e uma colega falou: “Olha prorrogaram a
inscrição do Pedro II.” Eu não tinha me dado conta, mal ouvia o quê que era o Pedro II...
“Não, é muito bom, o Pedro II é muito bom, uma escola pública maravilhosa... faz,
Madalena!” tinham prorrogado, eu falei: “É vou fazer, né. E fiz e foi a hora que eu
consegui vir pra cá, mas sempre querendo trabalhar com as crianças mais novas, mesmo aqui
a minha preferência sempre foi essa, cheguei aqui pegando uma alfabetização e não quero, a
não ser que eu seja obrigada, eu não quero trabalhar com... terceiro ano é o máximo pra
meu limite, quarto ano e quinto de jeito nenhum porque eu gosto dessa coisa de ter o espaço
na sala pra rodinha, pra conversa, pra você fazer uma brincadeira, pra você ter algo além do...
quadro, giz, apostila, folhinha mimeografada...
208
Iracema: Você tem experiência de...
Madalena: De trabalhar com alunos mais velhos? Não. Minha primeira experiência com
aluno mais velho foi aqui no Pedro II que foi com a Classe de Alfabetização e depois fui
pra primeira série e agora o segundo ano. Eu trabalhei muitos anos com Jardim.
Valéria: Como é que foi a chegada aqui no Pedro II?
Madalena: Eu fiquei muito maravilhada com a escola, na verdade. Porque, apesar do
município ter sido muito bom pra mim em termos de formação, você tinha muitas carências
no município, e o que eu achei mais fantástico aqui é que você queria um papel tinha, você
tinha... não precisava mais guardar a sobra do papel, porque isso aqui que a Beatriz ta
cortando (a mesa está repleta de sobras de papel em vários tons de verde, depois que a Beatriz
cortou letras e bordas para o mural da sala), eu guardava esse papelzinho. E aqui não
precisava mais, tinha um mundo de papéis coloridos ali naquele almoxarifado. Isso me atraiu
muito, além da questão da coordenação, da orientação mesmo pedagógica que a gente tinha,
um acompanhamento que na verdade, no município, era uma orientadora, você encontrava
com ela a cada quinze dias pra fazer um planejamento, né, isso porque eu trabalhava numa
escola que era privilegiada. Então essa coisa do acompanhamento pedagógico aqui me
maravilhou, né, eu gostei... e foi um período de deslumbramento mesmo meu início, fora a
questão financeira que... (risos de todas pela expressão de Madalena). Eu fiquei um tempo
afastada da turma, fiquei oito anos fora de turma, trabalhando com a Orientação Educacional e
foi a hora que eu conheci o Pedro II nas suas outras séries, numa outra faceta do Pedro II, e
quando eu voltei pra turma...
Beatriz: ... O lado negro da Força...
Madalena: É... o lado negro da força... e quando eu voltei pra turma, lembro que o que mais
me incomodou, me afligiu foi... eu falei isso em outros momentos... o fato de ter que
trabalhar com a turma, eu fiquei um tempo sem trabalhar com o conjunto, trabalhando mais
com o individual, e isso me afligiu muito quando eu voltei a trabalhar com a turma em 2004
porque eu achava aquilo muito... é... impossível de fazer, eu queria ta trabalhando no um a
um, né, eu falava uma coisa no coletivo mas eu queria ver como... o que você escreveu aqui,
porque você escreveu isso? E não tempo, né? Então, nos momentos mais formais, que
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precisam ser também coletivos me afligiam muito assim que eu voltei pra turma, hoje em dia
eu estou um pouco mais tranqüila com isso, não tem jeito, tem que entrar todo mundo.
Valéria: E o lugar das histórias na sua vida de professora, na sala de aula, como é?
Madalena: Bom, eu tento contar histórias muitas vezes, eu gosto dessa coisa da contação de
histórias, isso era uma das coisas que mais me apaixonava no Jardim de Infância, porque todo
dia tem a hora da história. Aqui eu não consigo fazer mais todo dia, eu tenho um espaço... eu
tento privilegiar a história, mas eu tenho um espaço da Narrativa, esse é um espaço de todo
dia, e aí é a história de cada um, é aquela hora da novidade que agora tem a hora da novidade,
tem a roda de leitura que acontece duas vezes por semana na minha sala mas que agora não é
mais a leitura: ler um pedaço do livro que levou pra casa... agora é assim: eu li esse livro e
eu lembrei de uma outra coisa, está nesse momento de mudança. Então eles trazem pra essa
roda de leitura objetos, coisas que eles ouviram falar, recortes, algumas coisas que eles
lembram ou... eles fazem uma opção: eu não quero falar do livro que eu levei pra casa no final
de semana mas eu quero falar de uma outra coisa que estava na minha casa. Então, esse
espaço da oralidade é constante. O espaço da história ele existe mas ele, nesse momento, não é
mais o todo dia como era no Jardim de Infância e como eu tive em alguns momentos... porque
eu ouço a Beatriz falar que todo dia conta história, eu não consigo contar história todo dia, eu
privilegio a história mas não dessa maneira, não tem dado, eu acho muito legal mas não tem
dado.
Valéria: qual é o tempo reservado no planejamento para isso?
Madalena: Eu acho que a gente cava esse espaço, porque se não ele não acontece, você tem
que abrir mão de algumas coisas pra poder contar histórias ali, porque se não não dá. Então,
assim, meu armário ta cheio de folha porque eu quero fazer a roda de leitura daquela maneira,
agora que ta sendo conseguido com a turma ficar um tempo parada, porque eu quero trazer
alguns elementos, eu quero botar algumas coisas no mural que eles trouxeram, mas eu quero
falar sobre aquilo que eles tão trazendo, que eles leiam aquilo. Então, tem que ser cavado, se
não não acontece. A história... mesmo o nosso Clube de Leitura, é uma coisa que a gente sua
pra fazer conseguir funcionar, nem todo mundo “compra”, quem “compra” o Clube de Leitura
são os professores, é a coordenação daquela série, a coordenação de LP até compra à
distância, na verdade o empenho é nosso, se não não acontece.
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Beatriz: é interessante, agora que você falou isso eu me lembrei. Você não tem uma menção,
você não tem um encontro que alguém diga: “E o Clube, como está indo?”
Madalena: É, nada, nada.
Beatriz: se inaugurou, “Já inaugurou o Clube? comprou os livros?” Mas não tem
nenhum acompanhamento, se está legal, está interessante, está acontecendo, como é que é a
sua roda, como é que você faz... a gente troca entre a gente, você chega aqui e diz como você
faz e eu posso dizer como é que eu faço a minha, e pego uma idéia da sua e tal. Mas você não
tem esse acompanhamento...
Iracema: O que eu achei legal aqui, quando eu entrei pra cá no ano passado, é a questão desse
dinheiro que é cobrado... bem, não é cobrado... é pedido pra que a gente possa fazer a seleção
desses livros, porque até então eu tive esse trabalho, sempre gostei de fazer esse trabalho de
contar histórias e tal, mas eram os livros que se pedia nas famílias, então você sabe que vai
receber... só porcaria... mas a família se preocupa muito com o preço, com o valor do livro,
não com o conteúdo. Então, eu achei essa sugestão... com certeza vou levar isso adiante pra
onde eu seguir aí a minha trajetória, esse cuidado que o Colégio tem, no caso as turmas que se
dedicam mais a esse trabalho, de selecionar esses livros, de ir nas editoras, eu não sabia dessa
fórmula, até porque é uma sugestão da escola.
Beatriz: na escola particular teria mais facilidade, já tem tanta coisa que é cobrada...
Iracema: Olha, também não é por aí, não. Eu tenho mais facilidade de pedir dinheiro à turma
que eu estou do que na escola particular...
Beatriz: Eu digo enquanto política, não digo enquanto você professora, digo a escola poderia
ter isso na sua política, assim como tem levar pr´aqui ou pr´ali, ou pedir aqueles livros
didáticos todos, livro de inglês e tal...
Iracema: Mas a gente... a escola particular com essa proposta é mais pra dizer que tem esse
trabalho, porque cada um faz o que acha melhor dentro da sala, fecha a porta e... entendeu?
Não é que tenha essa troca. Eu vejo, eu digo a experiência que eu tenho de alfabetização e
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esse ano, não sei... a Madalena falou que o pessoal não leva muito, muito à frente esse tipo de
trabalho, mas na escola particular é pra dizer que tem, pelo menos a vivência que eu tenho.
“Ó, o trabalho com livro de literatura, lê, leva pra casa, mas... que ao mesmo tempo, eu agora
fiquei pensando no que a Madalena falou, isso realmente não é conversado, né, não é que seja
cobrado, mas nos encontros...
Madalena: Este é o único projeto que existe na escola da Alfabetização até a quarta série, é o
único, mas na verdade não tem um espaço pra ele, a não ser o de: “Tem que inaugurar o Clube
de Leitura”.
Valéria: Iracema fala então de sua relação com as Narrativas na infância...
Iracema: Olha, eu não tive muito... muita ajuda da família em relação a isso, não. A minha
mãe é uma pessoa que não teve oportunidade de estudo, casou muito nova, assumiu uma
família... os irmãos... porque a minha avó era uma pessoa muito problemática, sem falar que
ela não tinha paciência nenhuma e tal, muito complicada emocionalmente. Logo depois a
minha avó se suicidou, a minha mãe ficou grávida de mim, então eu não tive muito essa
vivência em casa, de histórias... meu pai era uma pessoa que trabalhava o dia inteiro mas
muito meu amigo, meu companheiro, mas não tinha também essas vivências de contar
histórias. Então eu não tive muito, eu não vivi muito isso. Eu lembro de uma tia minha que
me ajudava muito com o conteúdo mesmo escolar, na alfabetização, mas nada assim que... eu
sempre gostei de conversar com pessoas idosas... quando eu ia pra casa dessa minha tia,
com nove, dez anos, eu gostava muito de conversar com uma vizinha da minha tia que era
assim a Dona Mocinha o nome dela, sempre que eu ia ela contava muita história, muita
história de vida, de netos e tal. Agora, essa coisa de livros em casa, ver os meus pais lendo e
se empenhando na questão do estudo, nada disso. Meu pai tem curso técnico, fez também por
exigência da família... depois voltando na questão que eu falei do curso Normal, né, que era o
sonho do meu pai, mas por outro lado também a preocupação do meu pai era não pagar
escola, meu pai queria se ver livre da escola particular que eu estava até então pelas... por
causa das greves. Então, quando eu acabei a oitava série, eu tinha que sair dali, meu pai
sempre foi muito... não queria investir muito nessas coisas, então ele juntou o sonho dele e por
outro lado também de não ter essa despesa, eu entrar pra uma escola estadual pra fazer
Normal. Eu lembro até que quando eu... você vê, eu nunca tive incentivo assim de buscar uma
faculdade pública, eu nunca fiz prova pra uma faculdade pública. Engraçado isso, né? hoje eu
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fico pensando... eu nunca fiz prova pra um concurso público, fiz uma vez pra Niterói, mas
fiz por fazer pra ver como é que era. Então, eu nunca tive isso na família, uma pessoa que me
direcionasse, o quê que é melhor, o que não é melhor, porque no estudo eu sempre fui eu
mesma, eu sempre fui boa aluna, mas tudo que eu conseguia ali era mérito meu, minha mãe
nunca sentou comigo pra estudar, pra ler nada comigo, ela sempre dizia que não tem jeito, e é
assim mesmo, foi assim com meu irmão também. Então, eu nunca tive essa questão. Eu já vou
ter hoje com meu filho, entendeu? Essa preocupação, pensar numa faculdade pública. Eu
lembro quando eu passei pra faculdade particular, foi logo assim que eu terminei o Normal, eu
fiz Pedagogia. Eu fiz na Veiga de Almeida, é escola particular, mas eu consegui a
classificação em terceiro lugar, em escola particular você sabe que todo mundo passa mesmo,
mas aquilo pra mim... porque era tudo mérito meu e eu não tinha como bancar a minha
faculdade, eu trabalhava ganhando um salário mínimo, eu trabalhava com meu tio. Gente,
quando eu cheguei em casa contando aquilo, foi uma tragédia. Porque meu pai encarou, caiu
na real que ia ter que pagar a faculdade pra mim, entendeu? Tanto é que eu tive que parar. Eu
fiz o primeiro ano, assim aos trancos e barrancos, quase implorando pra ele pagar, ele não
pagava. chegava época de prova que tinha que estar com a mensalidade em dia pra pegar a
etiqueta pra colar na prova e eu tava sempre na fila na hora da prova, correndo pra pegar a
etiqueta, essas coisas. quando eu casei eu tive que parar porque Reginaldo falou que
também não achava legal, que a gente vai assumir um casamento e vai bancar a nossa vida,
ele achou que não tinha a ver meu pai pagar. Eu também concordei. Conclusão: eu voltei a
estudar dez anos depois, escola particular, faculdade particular, mas me formei assim... acho
que foi o orgulho do meu marido, sabe, ele tem orgulho de mim assim porque eu estou aqui,
como coisa que: “Pô, você foi, você conseguiu, é isso mesmo...”, mas eu não tive isso dos
meus pais. Não é nem culpar, não, é parte cultural mesmo, eles não foram... minha mãe foi
criada pra fazer comida e cuidar dos irmãos, meu pai foi criado pra ganhar dinheiro,
entendeu? Tinha que trabalhar, filho de português, e se dedicava muito a essas coisas, apesar
de ter feito uma Escola Técnica, acho que na família foi um dos poucos que conseguiu como
se fosse uma coisa do outro mundo, mas foi por aí. Então, eu fico pensando hoje eu como
mãe, eu não quero o que eu tive pro meu filho, em termos de família, de afeto também, não só
cultural, eu quero totalmente diferente...
Madalena: Deixa eu falar uma coisa que eu acho que tem a ver com o que você está falando...
assim: a minha mãe nunca foi à escola, ela aprendeu a ler vendo os tios ensinarem para o
irmão e para os primos, por que? Porque eles diziam que mulher não precisaria aprender a ler
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e escrever. Então, assim, essa coisa dela... ela olhava o pessoal aprender e ela aprendeu
sozinha, o que ela sabia fazer era fazer o nome dela e aos pouquinhos foi aprendendo a ler e
escrever, então, na verdade, ela valorizava pra caramba essa coisa da escola e da leitura e da
escrita, né. E o meu pai, ele estudou até o terceiro ano, depois começou a trabalhar... terceira
série, né... ele começou a trabalhar, eu lembro que eu tenho em casa até hoje um livro que
ele usava pra estudar que é um... parece pergaminho, uma coisa maravilhosa, eu guardo aquilo
como uma relíquia, e ele também tinha essa valorização enorme, até alguns anos atrás, todo
ano, no dia do mestre, meu pai vinha com um buquê de flores pra mim. Dia 15 de outubro ele
trazia flores pra mim, então tem uma valorização muito grande, na hora que ele me colocou na
escola ele trazia livros e comprava coleções não sei quê... ele quando viu a filha virar
professora também aquilo foi muito importante pra ele, isso é uma coisa que marcou muito a
minha vida.
Valéria: Mas a minha mãe, uma das histórias que ela contava sempre era essa parte dela
batalhar pra ir pra escola. Era uma família, sei lá, com 11 irmãos, ninguém ia pra escola, eles
moravam no interior em Campos, não tinha esse negócio de ir pra escola, ela fez até a terceira
série também, mas ela dava um valor danado... ela tinha isso que você (Iracema) disse que tem
com seu filho, ela tinha pros filhos dela, como ela teve aquela dificuldade toda de ir pra
escola... inclusive a mãe proibia de ir pra escola, além de não colocar, proibia: “Vai fazer o
quê lá?”
Iracema: porque tinha muita coisa pra fazer em casa, tinha que ajudar... então a prioridade era
outra. Agora, eu tenho muita preocupação porque eu sei, assim, a história de vida da minha
mãe, eu sei o que ela passou pra mim, mas eu não quero passar isso pro meu filho, então eu
fico me cobrando, eu sou uma pessoa muito assim severa com tudo, organizada, e tal... tem
que ser daquele jeito. Eu tenho que mudar essa questão porque, da mesma forma que eu quero
agir diferente com o meu filho, eu fico com medo de sufocá-lo, entendeu? Quem ajuda nesse
trabalho assim dessa passagem minha com o meu filho é o meu marido, que ele é mais
maleável. Então eu tenho muita preocupação de não passar o que eu tive como cultura,
emocionalmente... que dependesse da minha família, não que dependesse de mim, o que
depender de mim eu passo com o maior orgulho, entendeu? Que tudo foi sempre mérito meu,
isso eu falo mesmo de cabeça erguida, nada foi mérito da minha mãe, do meu pai, pelo
contrário, eles nunca me incentivaram em nada, nem é na escola, não... mas isso eu passo
pra Juan com o maior orgulho.
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Valéria: Beatriz...
Beatriz: É... acho que a minha história é bem diferente... porque minha mãe, minha mãe...
meu avô, acho que ele era um visionário porque ele saiu de... pai da minha mãe... com 17 anos
ele saiu do Acre, deixou uma família com 9 irmãos, aquela miséria que ele contava de um
irmão que morreu de fome, bebê, porque a mãe não tinha leite e aquela papa de farinha não
dava conta e a outra morreu porque a parteira deixou cair de cabeça na hora que nasceu, pegou
assim e tchibum (apesar da história trágica, rimos muito nessa parte porque Beatriz contando a
gente teve que rir...)... imagina o Acre há cem anos atrás... ele contava isso. E ele veio embora
de mala e bagagem com 17 anos tentar a vida no Rio de Janeiro e trouxe a família toda depois,
trouxe a mãe, trouxe as irmãs, montou a vida aqui, trabalhou no Arsenal de Marinha, deixou
uma noiva em Manaus e ele chegava cedo, ele contava isso... ele chegava cedo, ele pegava às
oito, chegava seis e meia pra... porque meu avô gostava de tudo bonito, tinha a caligrafia
desenhada de antigamente com aquela caneta de pena, aquela coisa linda tinteiro, e ele queria
bater à máquina as cartas, não ia mandar aquela carta mal ajambrada e tal... até parece que ia
conseguir com aquela letra linda, mas ele batia, datilografava. Aí, uma vez o cara do
Arsenal de Marinha... ele era contínuo... viu: “Você sabe datilografar?”, ele pensou que ia
levar uma bronca, o cara deu outro carguinho a ele. Ele chegou a ser o segundo cara no
Arsenal de Marinha, civil né, não era militar naquela época, mas por causa dessas coisas de
política, aquela história do Lott, aquelas coisas aí, que o cara abandonou, teve uma saída
honrosa assim, alguém entregou o cargo por uma questão política grave e ele era da... vamos
dizer assim: ele tinha subido junto com aquelas pessoas e aí, por uma questão de... de
fidelidade política ele saiu. E depois ele tinha orgulho de ter sido o primeiro inscrito na
Gama Filho, quando a Gama Filho abriu a faculdade de direito ele foi o primeiro inscrito no
vestibular, o primeiro matriculado... meu avô era daqueles que tinha mania de ser o primeiro...
abriu a Ponte Rio-Niterói, tinha que ser o primeiro a passar... (risos de todas)...
Madalena: lembra o seu filho...
Beatriz: é... novidadeiro, novidadeiro... muito engraçado. E a mãe dele era assim também. Ela
tinha 80 e tantos, 90 anos quando a Ponte Rio-Niterói inaugurou, ela morreu com 99 anos...
mas ela foi, ela foi, logo que inaugurou ela tinha que atravessar a ponte, que ela tinha que ver
a novidade e tal... e ele trouxe a família toda e montou a vida aqui. Ele era um cara, eu
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imagino pela origem dele, que ele saiu de um lugar que não tinha nada. Então eu acho que o
mérito era todo dele. Então, ele começou a colocar a minha mãe em tudo que minha mãe
queria, filha única, ele tinha uma situação boa que ele tava no Arsenal de Marinha... aquela
coisa de novo rico... mas é que hoje você essa gente novo rico compra um puta
apartamento na Barra, freqüenta Shopping Center e torra o dinheiro em carro, não sei quê e
tal... quer dizer, ele tinha isso, ele tinha televisão quando ninguém tinha, ele comprou
geladeira quando ninguém tinha, ele era o único no bairro que tinha, mas ele tinha o outro
lado: ele levava a minha mãe a exposições de pintura, levava à Biblioteca Nacional, levava ao
Teatro Municipal, e minha mãe um dia olhou uma mulher tocando piano e disse “Eu quero
tocar aquilo”, uma semana depois tinha um piano dentro de casa. Ele procurou uma professora
de piano e botou minha mãe. E minha mãe queria pintar, botou minha mãe pra pintar...
então ela teve isso tudo e essa parte toda cultural eu acho que a minha coisa com as histórias
ela vem menos que das histórias, da gente ouvir histórias, porque minha mãe trabalhava, fazia
faculdade, era nutricionista e trabalhava o dia inteiro, depois que ela foi ser professora que
ficou mais em casa. A gente ficava mais com a minha avó, então minha lembrança grande das
histórias era o sarampo e a catapora (risos das ouvintes...), quando a gente ficava doente e
quando a gente teve sarampo não deixavam a gente ler, a gente já lia, eu e minha irmã tivemos
sarampo uma seguidinha da outra, né, tudo da mesma idade... aí a gente... elas não deixavam a
gente ler, eu lembro que a gente lacrimejava e ela vinha ler aquelas histórias antigas do
Mundo da Criança, tinha a parte de poesia e a Rapunzel... e conta de novo e ela tinha o serviço
da casa pra fazer e a gente: “Ah, então vou pegar o livro e ler...”, fazia chantagem, tava com
sarampo, com febre não podia ler, ela vinha ler pra gente, porque ela não tinha assim muito
tempo. E minha mãe, eu não lembro da minha mãe contar história, eu me lembro da minha
avó e assim, lembro da vivência da gente lendo histórias por conta do teatro, porque a gente ia
ao teatro, a gente ia à ópera, então meu pai ficava contando, lia aqueles libretos de ópera pra
gente e a ópera tem sempre uma história que é uma tragédia maravilhosa, todas são, um se
mata, outro se suicida, quando o cara está chegando o outro já se matou... e aqueles libretos de
ópera que a gente acompanhava, né, e a gente gostava porque a gente não ia ao Teatro
Municipal, a gente ia aos saraus e as pessoas cantavam árias de óperas, então cada vez que ia
cantar uma ária: “mas por que... o que essa ária diz?”... e aí, meu pai que adorava ópera, a
maior lembrança que ele trazia da guerra foram os dois anos que ele ficou na Itália... eu achei
agora nos achados da minha mãe, datilografado assim: “Óperas que eu assisti durante os dois
anos em que eu fiquei na ocupação da Itália”, com a data e com o teatro que ele foi assistir...
porque isso era a coisa... ele não contava nada da guerra, nada. Ele contava duas coisas da
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guerra que a gente adorava ouvir: uma eram as óperas que ele assistiu, o vulcão, que ele pegou
o Etna e a história da ida... três histórias..., da ida pra guerra que ele contava que o frio era a
pior coisa no porão do navio... e que a gente ficava procurando entender como é que o porão
de navio podia ser tão frio edepois você cresce e vai entender, né, o frio, o frio que é ir pra
um país distante pra guerra sem saber se volta, ele era enfermeiro, não tava na frente de
batalha, mas ele contava, sim de alguns amigos que ele viu morrer... chegar estourado no
lugar onde eles estavam... estourava uma granada do lado, amigos e tal. Então, eu acho que a
minha relação com as histórias veio mais daí... assim... da... eu não me lembro da minha mãe
contar história... agora, a coisa do teatro era muito forte, muito forte, e quando ela fez
faculdade de teatro, quando a gente foi pra Universidade a minha mãe foi também. Eu acho
que ela tinha... eu não sei, eu acho que ela tinha uma coisa assim, minha mãe não envelheceu,
ela veio envelhecer agora, dois meses antes de morrer, ela teve dificuldade de aceitar ser avó,
e tal... então eu acho que quando a gente foi pra Universidade ela quis ir também e ela foi
fazer faculdade de teatro, e a gente acompanhou, eu... eu principalmente que eu queria fazer,
acompanhei aquela faculdade de teatro de perto, a monografia dela foi Maria Clara Machado.
A gente dava palpite e ela lia pra gente: “Olha aqui o texto que eu fiz sobre isso...”. Tudo que
ela lia ela trazia pra casa, então eu acho que foi muito pelo teatro. A gente fez vários cursos
com a Maria Clara Machado na época do Tablado, com a Maria Clara mesmo, que agora,
agora não, de vinte anos pra não era a Maria Clara que dava, era a Cacá Mourthé, era
aquele outro o ... Mas a gente fez no início que era a Maria Clara, a gente conhecia a Maria
Clara, e fazia as coisas com ela lá. Então eu acho que a minha relação com a s histórias veio
daí. Aí, quando eu comecei a ser professora, eu sempre gostei de contar história, sempre
gostei... não era, assim, uma coisa clara pra mim logo que me formei, sempre contei, mas eu
também não tinha esse apreço de conhecer os livros. Engraçado que eu fui fazer literatura,
acho que a vida da gente é meio enviesada porque eu fui fazer literatura... em casa eu tinha
a fama de ser a que não lê, as ironias da vida que eu relatei pra Helenice quando ela fez a
pesquisa dela, né... Eu era a que não lia, porque a minha irmã com sete anos tinha lido
Monteiro Lobato, As Caçadas de Pedrinho, As reinações de Narizinho e eu me sentia... por
isso que eu amei o livro do Pennac (Daniel Pennac)... como aquela história do Pennac, eu abri
As reinações de Narizinho e eram blocos e blocos de letras pretas que eu não tinha coragem
(risos). Eu não era muito agitada quando era criança, mas eu era assim sempre de falar muito,
então eu ficava na conversa... queria dar aula pro meu irmão... torturava meu irmão. Eu estava
no ginásio e dava aula de francês pro moleque, o moleque tinha 4 anos, então eu torturava ele
dando aula de francês e não fazia um dever de casa da escola. Ficava pendurada, me
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arrebentava na escola... tinha isso também, de ser a primeira a se ferrar, de uma história em
que todo mundo era... A minha irmã era a melhor aluna, se destacava pelos problemas
emocionais graves, mas era excelente aluna, não tinha nenhum problema. E eu não dava
defeito na escola mas também não estudava, ia me arrebentando no ginásio... Mas aí, porque
que eu falei isso? Por causa da... é... ihhh, perdi... Não, eu tava falando porque que eu fui fazer
literatura, né? eu fiz o Normal, fui trabalhar e tal e fui fazer literatura... porque eu tive
uma professora de literatura, eu nunca vou me esquecer dela, Alice Cafezeiro, no primeiro ano
Normal e Alice dava aula de literatura que era um... eu não sei o que era aquilo... ela
começava a falar de um autor de livro e ela falava, ela falava, ela falava, e as pessoas
ficavam... dormiam (eu estudava à tarde), as pessoas dormiam e eu escrevia, escrevia,
escrevia, escrevia. Escrevia... e as pessoas pediam pra ela escrever no quadro e aquelas
palavras dela, eu não sei o quê que era, eu nem lia muito... eu lia na época da escola, li no
ginásio, li algumas coisas, li o Reinações de Narizinho, li o Caçadas de Pedrinho, mas não li
aquela coleção inteira do Monteiro Lobato como a minha irmã, não li mesmo. Tinha um
monte de livro que eu li da Condessa de Segùr, aquele “Diário de Ana Maria”, “Diário de
Denis”, que davam aquilo pra gente quando não queriam conversar sobre sexo, davam pra
gente (risos de todas)... é! Davam aquilo pra gente pra não ter que conversar... a menina
falava na tal da regra que eu não sabia nem o que era, que nunca tinham me explicado, aí:
Droga! Tudo de novo regrado. lia, porque naquela época era assim: era o não dito e
davam o livro pra ler e continuava o não dito, era o mais ou menos dito (risos)... e ficava por
isso mesmo, né?. Então, essas coisas eram meio que tinha que ler e eu lia... Eu não lia muito
como a minha irmã, minha irmã lia compulsivamente, levava bronca porque não podia ler
depois do almoço, não podia ler de estômago cheio, não podia ler na luz, porque não podia ler
não sei aonde... apesar da família ser toda leitora, né? Eu lia pouco, fui fazer literatura
porque eu me encantei com a história da... porque eu não gostava... não gostava de Português,
nunca gostei de gramática, e falei: “Não me vejo dando aula disso.” Mas a Alice me encantou
tanto com a literatura que eu falei... a gente aquelas coisas todas do Normal, São
Bernardo, não sei quê, Cassiano Ricardo, me lembro dessas leituras, e eu me encantei e
fui fazer literatura. Depois de muito tempo, tendo feito literatura, eu me questionei porque
que eu fiz literatura, porque o que eu queria era fazer teatro...
Iracema: Mais uma vez, né? Porque você sempre teve vontade de fazer teatro...
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Beatriz: Eu fiz vestibular pra faculdade de teatro. Fiz vestibular... mas que tá, minha mãe...
é aquilo que eu falei... minha mãe não dizia as coisas, ela dava mensagens subliminares... ela
foi pra faculdade de teatro mas ela vivia dizendo que aquilo não era meio pra mim, ela
chegava em casa enchendo a boca pra dizer que aquilo não era meio, que aquilo não era
ambiente, porque era aquele... ninguém é de ninguém, a visão, né? Ela estava dentro mas
ela via, como toda faculdade, tem gente que cheira, tem gente que fuma... não é prerrogativa
do teatro, mas ela tinha sido criada com aquela cabeça... Ela foi pra faculdade, fez inúmeros
amigos dentro, era casada, ia pro bar tomar chope depois das estréias, meu pai ia junto.
Porque meu pai não era um cara assim da noite, não gostava, estava aposentado porque ele
era anos mais velho do que a minha mãe, mas ela ligava e dizia: “Antônio, olha, tem um
negócio no Palcão, eu tive que assistir, mas tão chamando pra tomar um chope aqui...”. Era ali
na Praia do Flamengo, ali no prédio da UNE, aquele Palcão era... então assim: “Eu vou,
bom?”, ele... “Você quer vir?”. Ele detestava bar, detestava bebida, não bebia bebida
alcóolica... ele pegava o carro e ia lá. Às vezes a gente ia junto, às vezes eu ia com ele, a
gente ficava lá... no final, todo mundo... meu pai dava palpite nos espetáculos, meu pai
era assistente de direção dela no teatro que a gente fazia em casa, também ele dava palpite,
quando ela se formou ele fazia parte da turma já. Também porque ele marcava o espaço
dele, ele ia, ele buscava, ele conhecia todo mundo, ele ficava por perto marcando, igual
cachorro que marca com xixi assim... ele marcava o espaço dele. Então a gente... eu queria
fazer, eu fiz vestibular mas eu estava fazendo letras e a minha mãe continuava falando
aquilo, apesar dela ter saído dali naquela época, estava saindo e tal, conhecia todo mundo...
conheci Vera Holt, Vera Holt trabalhou com minha mãe. Vera Holt fez um espetáculo com
minha mãe maravilhoso naquele Palcão. Quando acabou o espetáculo eu namorava até o
Marco, meu marido, eu falei: “Nossa, essa mulher vai longe...”, o Marco: “como é que é?”, eu
falei: “Essa mulher, se ela tiver sorte ela vai longe, porque você reparou a presença que ela
tem?, “Ah, não sei o que é isso...”, eu falei: “Marco, ela tem presença em cena, você não
sentiu isso?, Não, hoje eu falo isso pra ele: “É cascata.”, cascata nada, nós fomos nos
bastid... no camarim de Pérola, ela lembrava da minha mãe, minha mãe tinha dirigido ela, ela
tinha vindo do interior na época... Dirigido assim, como colegas no trabalho e tal, mas eu
nunca me esqueci dela, quando eu bati o olho nela na televisão eu falei: “É a Vera Holt.”
Nunca me esqueci dela porque fiquei muito impressionada porque ela trabalhava muito bem e
tal... Então, eu comecei... eu acho que atravessou a minha vida que eu fazia faculdade de
música, tocava piano... quando entrei para a faculdade, entrei para a faculdade de música
particular. Eu tinha faculdade de música, tinha faculdade de Letras e tinha a política, e a
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política estudantil atravessou a minha vida, não dava pra tanta coisa e eu comecei a namorar o
Marco também, e não cabia tanta coisa na mala. Então eu não cheguei a freqüentar a
faculdade de teatro. Depois ainda voltei a fazer teatro no Sesc Tijuca, procurei um grupo
amador, depois que eu casei ainda fiz teatro com minha mãe uma vez, essa peça até que o
meu irmão montou agora, “A farsa do advogado Pathelin”. Estava grávida do meu primeiro filho
a última vez que eu fiz e depois eu saí fora mesmo... é isso... entrou a política que é
outra história da minha vida e que atravessou todo... uma boa parte da minha faculdade e da
minha trajetória como professora. E tem aquilo também que eu te contei que saí da escola
apavorada, fui trabalhar na Câmara. tinha isso que você falou, né... eu datilografava,
máquina elétrica, porque eu tinha feito curso de datilografia... sou do tempo em que se fazia
curso de datilografia... digito até hoje com todos os dedos. Eu fiz, não concluí mas fiz... Aí,
nesse afã que eu queria trabalhar em algum lugar, eu fui fazer... querendo alguma coisa... e
eu fui pra Câmara trabalhar com um vereador que era amigo da minha mãe porque eu saí
foragida da escola porque não tinha alfabetizado ninguém, entrei em pânico...(risos de
todas)... mas foi um impulso, coisa de geminiana, encontrei com ele na cantina da faculdade,
ele: “E aí, como é que está? Ta trabalhando?”, eu falei: “Estou, professor.” Aí, ele dava aula
da faculdade de Educação da Uerj, veio tomar café no 11 porque só tinha cantina no 11, ele
falou assim: “Ta bem?”, “Não, estou péssima.” Eu estava mal, era outubro isso... ele falou:
“Mas por que?”, eu disse: “Sei lá, não vou conseguir alfabetizar ninguém, peguei um C.A.,
não dou pra isso, não... não sei quê... Ele falou: “Quer vir trabalhar comigo?”, eu falei:
“Quero!” Nem me dei conta, quando eu vi ele tinha ligado pra minha mãe, tinha me
pedido e eu saí da escola e fui trabalhar na Câmara, organizando... ele era daquele setor de
Educação e Cultura, que tem uns setores assim, e ele queria organizar um... uma programação
cultural pra Câmara e eu organizei. Todo mês tinha um evento naquele salão nobre, e tal...
mas eu comecei a fazer política na faculdade, entrei no MR8, comecei a fazer política
clandestina, aquelas reuniões de madrugada, e eu comecei a ficar desesperada porque eu
fazia campanha pro Raimundo de Oliveira porque o MR8 apoiava o Raimundo de Oliveira e
trabalhava no gabinete de outro vereador que tinha um candidato (risos de todas). E
comecei a ficar desesperada que eu tinha que sair de lá, porque qualquer hora ele ia me ver na
rua. Eu não ia pra panfletagem do vereador que eu trabalhava, que eu ganhava meu ganha-
pão, ganhava o triplo do que eu ganhava no município, e trabalhava de graça, subia morro
com o pessoal do Raimundo de Oliveira, do Tonico, Antonio Carlos Carvalho, aquele pessoal
todo e... eu acabei saindo da Câmara, continuei na política. A política foi uma coisa... eu
acho que tem a ver com a contação de história também, porque aquilo é uma coisa que
220
organiza muito, né?. Eu não tenho esse período mal resolvido na minha vida, não, porque
aquela coisa da reunião... aquelas reuniões que a gente tinha de base, de você discutir as
questões, de você aprofundar, de você ouvir as pessoas... Aquilo... aquilo ensina muito, acho
que ensina mais da política e mais do discurso, de tudo... não sei... eu achei que foi um
momento na minha vida muito interessante... e aí, paralelo a isso, eu tava no município,
teve a greve de 79 e você atua na greve, vai pra zonal da greve, vai fazer política na
faculdade... era aqueles atos públicos, eu fui presidente do Diretório Acadêmico, aquilo era
muito... era muito legal. A gente entrava em 40 turmas em uma noite, eu achava aquilo muito
divertido... 40 turmas... olha, o dia que explodiram aquela bomba no gabinete do Tonico, que
era nosso vereador, que aquela moça morreu, a Lida Monteiro, que explodiram aquela bomba
lá... a gente entrou nas 40 turmas em menos de 40 minutos... a gente entrava com lágrimas nos
olhos assim... e o pessoal falou assim: “Beatriz (eu era presidente do Diretório nessa
época)... Beatriz, você tem que subir no banquinho e fazer falação...”. Sete e meia da noite,
saia aquela galera, porque era faculdade noturna, as pessoas trabalhavam, a maioria chegava
seis e meia/sete no Campus, o pessoal de Letras, que era um curso noturno, e sete e meia era a
hora que todo mundo saia pra comer alguma coisa pra agüentar o tranco até dez e meia que
tinha aula... Então, tinha quase mil pessoas, eram 40 turmas, tinha quase mil pessoas naquele
hall, e o pessoal: “Agora você tem que subir no banquinho, você é a presidente do
Diretório, tem que ser você pra chamar o pessoal pro Ato Público que vai ter agora no sétimo
andar, em desagravo, não sei quê, não sei quê...”. Eu subi no banquinho... Pessoal! (aquele
burburinho...), pessoal! pessoal!... mas a gente tinha o maior respeito, sabe... isso é uma coisa
que eu... que eu trago daquela época, assim, a gente tinha o maior respeito das pessoas lá,
entendeu? A gente era a menina dos olhos da Organização porque a chapa que a gente
votasse... é horrível falar isso, né?... mas a chapa que a gente indicasse pro DCE, pra UNE, pra
UEE, pro que quer que fosse, tinha... 600 votos na Letras. Porque a gente fazia isso mas a
gente tinha um cineclube que funcionava que era uma maravilha, a gente tinha um
Departamento Cultural que fazia mostra de poesia e que a gente brigava, porque eles
arrancavam as poesias da parede e a gente fazia ato público porque arrancaram as poesias da
parede (risos de todas)... Eu me lembro do Marco Antônio gesticulando (risos)... a gente fazia
isso tudo... a gente fazia uma festa junina concorridíssima, maravilhosa, a gente tinha um
Departamento Cultural que o pessoal da organização, o pessoal Capa Preta que vinha e via:
“O que é aquilo ali, é reunião de quê?, “É reunião do Departamento Cultural”, “O quê?? Não é
reunião do Diretório?”, “Não, aquilo é “só” a reunião do Departamento Cultural”... (risos)...
“Aquilo tudo é massa?”... (risos de todas)... aquela visão de massa né? Aquela visão bem
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estreita... então tinha um cara que fazia reunião de Departamento Cultural que depois
desmembrou em Departamento de esportes porque ele fazia uma grande de uma olimpíada e
as reuniões dele tinham vinte/trinta pessoas e nego fazia isso pra botar dez numa reunião
pra discutir conjuntura (risos)... eles ficavam loucos... a gente tinha um Diretório que
funcionava e a gente ia, a gente estava presente em tudo... “Ah, não pode fazer... aíestava a
gente dentro da sala de aula... a gente tomava porrada da Organização também, tomava
porrada direto... “Os companheiros não tão entendendo a questão, os companheiros não tão
entendendo a questão... a questão não é aqui, não é essa questão economicazinha aqui do
sistema de crédito que está entrando, não... a companheira não está entendendo, a questão é a
conjuntura, a gente vai ter que cortar cana quando a revolução sair... vamos parar com esse
negócio... a questão...”. A gente dizia assim: “Então tá bom, a Cristina vai no ato lá com vocês
mas a gente vai ficar aqui porque é uma questão econômica... os caras ficavam loucos!
Ficavam loucos com a gente... davam porrada... cada dia eles mandavam um Capa Preta
maior, mas a gente dobrava eles todos (risos de todas). A gente dobrava porque a gente não se
afastava... porque a gente tinha respaldo, pô! Quem não tivesse respaldo fazia aquele negócio
que nem a gente fazia? E a gente tinha esse movimento todo que não era um movimento
econômico da reivindicação, era um movimento cultural, era uma coisa muito legal, tinha
muita coisa pra ser feita na Universidade... hoje eu entro na Universidade e vejo aquilo
devagar... fico até com pena do meu filho porque... porque tinha, independente... quem não
queria se envolver com a gente com a política, quem não queria assinar abaixo-assinado,
quem não queria ir pra ato público, não precisava, entendeu? Participava do Cine Clube que
tinha debate, tinha debate de poesia, tinha mostra de poesia que cada um colocava seus
trabalhos... os alunos, né, podiam colocar os seus trabalhos, tinha muita coisa acontecendo...
um movimento muito legal. Depois eu fui pro movimento de base, quando saí da
Universidade quando a gente... a minha história tem muito essa coisa da cultura... eu fui ser
presidente do Departamento de Cultura da Associação de Moradores da Praça Sães Pena e o
que a gente fazia eram aquelas manhãs de criatividade na Praça Sães Pena... (dirigindo-se a
Madalena) você chegou a pegar isso?
Madalena: Pouco...
... que a gente punha massinha, tinta no chão e recebia as crianças pra pintar, contar histórias,
tinha livros...
222
(a hora do recreio se aproxima...)
Valéria: Eu sei o que eu sinto quando ouço as histórias de vocês, agora eu gostaria de saber de
vocês qual é o sentimento de contar esse pedaço da vida de vocês...
Iracema: É sempre bom... eu gostei... eu tava falando... essa troca no individual só eu e você...
acho que assim (as três juntas) foi muito mais rico porque a história de vida assim do outro,
foi muito legal. Em alguns momentos eu me prendo... por um lado é bom, por um lado tem
muitas mágoas, eu vou relembrando aquilo... que dói... assim, muita coisa que não pode ser
dita até por questão de tempo e até não teria muito a ver aqui com o assunto... mas você vai
relembrando não só de coisas de que você falou mas de coisas...
Beatriz: ... você está reorganizando...
Iracema: É... então foi muito bom... que eu acho assim muito válido, poder botar pra fora...
uma terapia... (risos nossos), mas é assim... eu vejo assim muitas mágoas, eu senti muita...
(Iracema se emociona)...
Madalena: você começou a falar e eu fiquei emocionada... são coisas que você não fala todo
dia... aí você não... não lembra...
Iracema: eu me senti assim muito à vontade. A princípio eu tava assim meio... não sei até
onde eu posso ir, não sei até onde eu posso falar, não sei se é isso que ela quer ouvir... mas foi
muito legal.
Beatriz: Eu acho que a coisa da memória, aquilo que eu te falei naquele dia, hoje eu nem falei
nisso, mas naquele dia quando eu tive com ela sozinha, eu contei da escola que eu trabalhei
antes de vir pra e eu mesma não tinha noção de como aquela escola tinha sido tão
importante pra mim... foi com o discurso, na hora que você organiza, na hora que você
organiza a lembrança... porque você conta pedaços, né... eu conversando com meus filhos em
casa, eles costumam dizer assim... a gente senta pra conversar na hora do almoço... aí eu solto
uma: “Porque quando eu trabalhava lá...”, o M. diz assim: “Conhecendo minha mãe parte
5... (risos nossos)... quanto mais tem pra aparecer que a gente não sabe da sua vida?”, né?
Porque você não conta... você não senta perto de filho e começa a contar a história...
223
Iracema: na conversa do dia-a-dia você não assim uma seqüência, você conta umas partes,
você não conta uma história do início ao fim.
* * *
Carolina
Pastos Bons fica localizada mais ou menos no Sul do Maranhão e ela é uma cidade muito
antiga, deve ter em torno de quatrocentos anos e é uma cidade assim que foi originalmente
criada a partir da passagem de bois. Lá era uma terra de descanso e aí por isso o nome “Pastos
Bons” porque tem muitos minadouros de água, ainda hoje é um lugar que tem muito pasto,
então ali era onde os viajantes ficavam pro descanso do gado, pra seguir adiante. Então por
isso o nome: Pastos Bons. Ela tem dois santos padroeiros: São Bento e São José, o festejo de
São José é em março e o festejo de São Bento acabou agora em julho, são festejos muito
freqüentados... e o meu processo assim como professora, o meu percurso, eu acho que se deu
por uma questão também familiar. A minha mãe foi professora daquele antigo MOBRAL e eu
tinha contato com os livros, eu era... sou a filha mais velha, então eu tinha contato com os
livros, participava daquele caminho dela à noite dando aula e eu acho que foi isso realmente
tocou em mim, porque eu tenho uma relação muito íntima e muito próxima, acho que até
mesmo espiritual com minha mãe. A gente se percebe e tem um sentimento assim muito
inteiro... eu nem sei explicar. Às vezes quando ela está sentindo alguma coisa eu sinto aqui...
na sexta-feira eu tive um mal estar, olha horrível... domingo eu liguei pra ela: “Mãe o quê
que está... ela tava doente! Eu não sabia porque eu estava sentindo mal estar. Então eu acho
que foi isso mesmo que me levou a ser professora, foi assim alguma coisa de realização
também da minha mãe, familiar. Eu terminei o magist... eu fiz o curso de formação de
professores no Instituto de Educação do Maranhão, na cidade de São Luiz, eu terminei em 95,
quando eu terminei em 95 eu prestei vestibular pra pedagogia e não passei, então, como eu
morava na casa de pessoas, assim, como seu eu morasse de favor, eu não gostava muito
porque algumas coisas da família que não me contemplavam, você é uma pessoa à parte.
eu conversei com meus pais e resolvemos que eu ia voltar. nesse período teve o censo de
96, o Censo agropecuário, eu fui, trabalhei no IBGE por seis meses e logo logo teve um
224
concurso da prefeitura. Eu tava dando aula numa escolinha de periferia como contratada
passei nesse concurso de 98 e permaneci nessa mesma escola, com um ano que eu estava
trabalhando... Estavam precisando de tirar uma licença de uma diretora de uma escola, a
secretária de educação me perguntou seu eu queria, eu falei: “Olha eu sou muito nova...”, eu
tinha 19 anos completando 20, “... eu acho que não sei... a gente pode tentar...”. eu fui
auxiliar nesse processo lá. Eles estavam implantando aquele projeto pela qualidade total, foi
naquele boom, os cinco Ss. eu comecei ajudando, ajudando, ajudando. a equipe que
tava trabalhando com isso gostou de mim e falou pra secretária que eu poderia estar
auxiliando. Aí eu trabalhei na secretaria de educação como supervisora escolar, na Zona Rural
da cidade, eu fazia duas viagens por semana. Eu ia nas escolas ver como é que estava, e aí...
depois, logo, foi assim rápido, no ano seguinte estavam precisando de uma diretora, eu fui
assumi, achei que estava mais madura, né? Lá, assim, por não ter pessoal qualificado, eles
dão muita oportunidade. que eu achava assim que o meu trabalho ia estar muito
direcionado pro ensino, que eu me vi dentro de um processo burocrático dentro da escola
que me prendeu demais, eu me afastei uma ano dos professores, eu me afastei de mim mesma
como professora, eu não tive oportunidade de fazer aquilo que eu gostaria dentro de uma sala
de aula e nesse aspecto eu acho que não foi bom pra mim. Eu fiquei ateeeé eu vir pra cá,
eu tive oportunidade de trabalhar à noite com o magistério, eu dava aula de sociologia, e
didática dos estudos sociais. eu me realizei, eu queria realmente estar em sala de aula, eu
trabalhava com jovens assim mais ou menos da minha faixa etária, tinha pessoas mais velhas e
esse trabalho à noite foi muito bom pra mim. Eu trabalhava de manhã na escola como diretora,
à tarde eu ficava em casa fazendo meus bordados, meu enxoval... eu comecei a fazer enxoval
acho que eu tinha uns dez anos... eu ficava fazendo meus bordados, ajudando a minha mãe
e à noite eu ia pra escola, uma escola distante, no centro da cidade, eu subia duas ladeiras pra
poder chegar até lá. E o meu contato com os jovens foi algo acho que muito interessante, nós
tivemos oportunidade de fazer, dentro ali dos estudos sociais, alguns trabalhos com visita de
campo, numa usina hidrelétrica que tem lá próximo da CHESF, aí lá eu fiz uma visita guiada e
no retorno a gente trabalhou com maquete, toda essa construção de estudos sociais. E aí,
depois de tudo isso, acho que eu trabalhei uns dois anos lá, aí foi quando eu vim pra cá. Aqui,
no primeiro ano que eu cheguei eu fui pra um cursinho pré-vestibular no Centro da cidade,
na Rua das Marrecas... dentro de uma sala cheia de adolescentes, eu me sentia assim
perdidinha, mas foi bom porque eu m,e coloquei na postura de aluna, assim, um novo
encontro comigo mesma na questão de educação. Eu passei no vestibular da UERJ, fiquei
esse tempo todo, foi muito bom porque eu desconstruí muita coisa que eu pensava a respeito
225
de educação, foi um novo ambiente, foi assim um... um leque que se abriu pra mim e eu tinha
vontade, realmente era pedagogia que eu queria fazer, tanto que aqui foi o primeiro vestibular
que eu tentei. esse tempo eu tive contato com professores que me estimularam. Eu soube
que aqui (Colégio Pedro II) estava precisando de professor, no terceiro ano da faculdade,
quando começou, eu fiz o processo seletivo aqui e entrei. Eu não conhecia a Instituição Pedro
II, foi uma amiga minha que viu pela internet e falou assim: “Olha, Carolina, abriu inscrição
pro Colégio Pedro II, se eu fosse você eu faria...”, “Ah, não, Priscila, eu não vou conseguir!”,
ela falou: “você vai”, aí eu fiz, né?
Eu não conhecia o Pedro II até então, não sabia da história do Colégio, porque foi fundado,
não sabia nada. A questão mesmo histórica que hoje eu sei da importância dessa escola no
nosso país, porque o que a gente percebia e o que eu percebo hoje nitidamente é que a História
do Brasil ela ficou muito concentrada Rio, São Paulo e Minas Gerais e no interior do
Maranhão a gente até estudava alguma coisa, mas assim, fatos históricos distantes. Então foi
aqui que eu conheci o Pedro II realmente, quando eu vim pra escola, fiquei.
perguntaram: “Carolina, você quer trabalhar com o quê?”, eu falei: “Olha, eu gosto das séries
iniciais”. Não tinha nenhuma disponível, me deixaram na biblioteca. na biblioteca eu
tentei realizar um bom trabalho. As turmas que iam eu estava sempre orientando... Depois
apareceu a oportunidade de trabalhar com aquelas crianças com... necessidades especiais de
aprendizagem, nós ficamos, foi aquele horror, né?... um caos geral porque eu acho que a
questão era mais disciplinar do que de conteúdo, perturbou todo mundo... formaram uma
turma... Ah, essa história é interessante... eram crianças de fora que realmente estavam
atrasadas em relação às outras crianças na questão do conteúdo, que a escola não podia
voltá-los para a série inicial e eles não estavam se encaixando nas salas que eles estavam e a
escola não tinha um lugar próprio... apropriado pra colocar essas crianças. nos colocaram
numa salinha apertadinha, paredes baixas, perturbando a coordenação. os professores se
reuniram para conversar porque viram também a minha aflição... Enquanto eu estava aqui
trabalhando o conteúdo com um, o outro estava correndo, estava no banheiro, estava isso,
estava aquilo, subindo nas cadeiras. Eu me senti assim um... um ninguém naqueles meses que
eu fiquei com aquelas crianças eu me vi impossibilitada... Valéria, olha, eu chegava em casa...
você teve oportunidade de ir lá... eu escrevia música, eu fazia jogos... mas tudo acabava muito
rápido, tudo não dava, até porque eles estavam incomodados também com a situação, eu tinha
certeza porque eles falavam: “Porque nós estamos aqui?”. Tinha um que dizia todo dia no
início da aula: “Eu não quero ficar aqui, tia, eu quero voltar pra minha sala de aula”. Eles
falavam isso todo dia pra mim. a Rossana (professora), um dia, conversou comigo, falou
226
que estava disponível que essas crianças fossem inseridas na sala dela, se eu gostaria de
trabalhar nessa “bi-regência” com ela, né? eu falei: “Olha, Rossana, no meu estado eu
gostaria sim”. Aí foi quando nós tivemos a oportunidade de inseri-los dentro de uma sala... foi
em maio, nós ficamos ali naquela sala dois meses: março e abril, quando foi em maio, início
de maio, a gente foi pra lá... Mas foi assim uma coisa automática, Valéria, a postura das
crianças mu-dou! Teve assim uma diferença enorme, a Rossana e eu ficamos até assim aéreas
porque a gente não entendia... Depois, com o desenrolar da história, é que a gente foi analisar
e realmente perceber que ali eles se viam como um ser que tinha dificuldades, mas numa sala
que todo mundo tinhas suas dificuldades também... e ali eles se encontraram. Tinha mais
crianças e ali eles tinham obrigação de ficar mais quietos porque senão não ia funcionar, mais
concentrados, e desse grupinho de quatro alunos, um passou pra série seguinte junto com a
turma. O interessante foi isso, junto com a turma da Rossana e esse ano não está dando
problema nenhum, graças a Deus. O outro, continua comigo esse ano aqui com a Luiza,
também mudou bastante a postura e os outros dois, um está com a Célia, Célia da manhã e o
outro com a Conceição. O que está com a Conceição e o outro que está com a Célia eles estão
fazendo tratamento com aquele... não sei se você ouviu falar, um grupo que está fazendo
pela Ufrj? Um estudo de neurologia, acho que é, e eles estão fazendo uma pesquisa com
essas crianças pra saber realmente o que está impedindo esse processo de alfabetização...
Estão num processo assim inicial que estavam no ano passado. O da Conceição é um caso
acho que mais agravante porque ele tem problemas familiares sérios, é a zona de conflito da
família, a mãe e o pai, o pai diz que a mãe tem ciúme do filho, a mãe diz que o pai tem ciúme
do filho e por vai... e esse ano eu estou aqui com essa experiência de estar trabalhando
com uma criança que tem paralisia cerebral e tem a parte motora toda afetada, mas está sendo
uma experiência muito rica pra mim porque eu vejo a limitação dela e isso me impulsiona a
buscar mais, a pesquisar, ler, pra ver como eu posso estar auxiliando o trabalho com ela. Mas
ela nos surpreende, assim, fantástica, está lendo, compreendendo o que lê, escreve com um
pouco de dificuldade mas escreve, o caderno dela é o computador e ela tem muita vontade,
muita vontade de aprender. Uma menina que gosta também de estar com o grupo e nesse
sentido, assim o que tem me mostrado nesses dois anos, porque assim, eu praticamente fiquei
com educação especial nessa escola, né? Parece que está sendo... o que está me mostrando,
Valéria, na prática é que essas crianças que tem algum tipo de necessidade dita especial entre
aspas, elas gostam de estar no grupo, elas não se sentem bem fora do grupo, elas se sentem
realmente realizadas quando estão juntas... até porque aqui existem outras crianças que têm
dificuldades e que vão até nós nos perguntar, pedir auxílio... ela às vezes até diz: “Não é isso,
227
você não sabe que é isso? Como é que você não faz?” Aí, eu gosto sempre de dizer assim, eles
vêm: “Ah, tia, qual é a resposta?” “Você leu o texto? de novo, mais uma vez...” ela:
“ah, a Carolina não falou pra você ler de novo? Tem que ler!” Ela sabe ler e ela é uma
menina que tem muito gosto pela leitura, principalmente os contos, as narrativas...
Pergunto à Carolina: como você vê essa escola e como você vê essa escola te vendo?
Olhe, a princípio eu me vi, eu me vi assim um trabalho solitário. Quando eu cheguei eu me vi
assim: “ah, o que sobrar vai ficar comigo”. Foi essa a visão que eu tive, e quando me
perguntaram no que é que você quer trabalhar, eu falei: “Olha, não vou nem esquentar muito a
minha cabeça porque eu sei que vai ser o que elas quiserem”. Então eu fiquei à disposição...
porque eu tenho muito assim, Valéria, eu sou uma pessoa que eu não tenho medo de desafios
e eu estou sempre naquela postura de ficar à disposição do outro para... eu estou aqui para
servir, para trabalhar, então eu vou ficar à disposição, entendeu?. Eu me vi assim, nessa
questão de eu vou ficar à disposição e eu vou trabalhar aonde elas quiserem, independente da
minha vontade...
Pergunto se isso tem a ver com o fato de ela ser professora substituta...
Eu acho, eu acho, sim. Eu acho que a gente quando não passa num concurso, ainda, que está
sendo o meu caso, a gente não tem... como eu posso explicar pra você? A carta de crédito? Pra
dizer assim: eu sou capaz. Infelizmente na nossa sociedade, nós medimos as pessoas através
de avaliações. Nós não medimos o talento, a capacidade da pessoa através de coisas práticas,
do cotidiano no qual ela poderia se sair muito bem, então eu vejo que é por conta, assim, de
um contrato... nesse segundo ano, Valéria, eu fiquei onde eu realmente queria. Quando eu
saí de casa... eu conhecia a E., falava com a mãe dela e tudo... eu falei assim: “Eu gostaria
de trabalhar com a E. esse ano”. E quando eu me encontrei com a Luiza no primeiro dia
daquela reunião grande que é pra distribuir os cartões... que ali trás tudo assim pronto e
acabado: você vai ficar com isso, você vai ficar com aquilo, no final do ano a gente bota mais
ou menos o que a gente quer e a minha segunda opção era o segundo ano, a minha primeira
opção era a classe de S.I (primeiro ano), e a segunda opção era essa, eu falei... eu olhei pra
Luiza, a Luiza olhou pra mim, eu falei: “Luiza, você quer?”, ela disse: “Quero!” Foi isso,
nem perguntou o que era, nem... parece que já estava... E Luiza e eu não havíamos conversado
antes sobre isso, que eu senti o desejo e a Luiza também, quando eu saí de da reunião
228
não me deram meu cartão, que eu me dirigi à direção, a Alice falou assim: “Nós sabemos
com o que é que você vai ficar.” Eu falei: “É?”, ela disse: “É, pra você ficar com a E., dando
um apoio lá com a Luiza. Aí eu falei: “Tá bom.”
Pergunto se ela tinha explicitado isso na “lista de desejos” do final do ano...
Não, botei a opção segundo ano, mas não coloquei exatamente com quem que eu queria ficar,
no meu coração eu queria.esse ano eu fiquei. E esse ano, eu não sei, eu percebo assim que
as pessoas estão me olhando com bons olhos, assim, uma aceitação maior. Acho que o
primeiro ano foi de medo... essa menina veio do nordeste, é meio assim... eu acho que é assim,
eu acho que as pessoas tem preconceito, sim do nordestino, Valéria, infelizmente, entendeu?
Porque é uma construção também cultural. O nordestino que vem geralmente pra cidade
grande, ele não sabe ler, ele não sabe escrever, ele não tem formação, é uma pessoa boba,
ingênua, que não tem muita experiência também com os saberes socialmente aceitos, né?
Então esse ano eu realmente me achei, assim, eu me sinto valorizada onde eu estou. No ano
passado eu não me sentia muito não, eu vou falar sinceramente pra você, eu tinha aquele
sentimento (se refere ao sentimento dos alunos que não tinham turma), chegou numa reunião
que inclusive eu até chorei, acho que você estava, e eu falei que a escola... que eu me
deparei com uma realidade escolar assim maravilhosa mas não estava me vendo ali... assim eu
vejo que... porque eu não posso fugir da comparação porque eu já tinha tido contato com outra
realidade... eu vejo que vocês têm ferramentas ótimas pra se trabalhar dentro das salas de aula,
eu vejo que vocês têm pessoas que estão preparadas, qualificadas mesmo, eu não gosto nem
dessa palavra, para estar dando um ensino de qualidade, para estar orientando esse processo
ensino-aprendizagem. Eu vejo ferramentas fantásticas nesse campo também, vejo que vocês
têm uma estrutura física boa, não é perfeita, claro, ainda existem muitas coisas aqui que
poderiam estar sendo melhoradas como a própria questão dos vazamentos, de alguns entulhos
que a gente vê pela escola mas, a parte principal que eu considero que é a parte pedagógica eu
acho que ela é muito boa, em relação ao que eu tinha antes, entendeu? Agora, vejo que é uma
escola onde muitas pessoas têm suas práticas cotidianas muito individuais, individualistas, não
vejo uma troca assim de saberes muito grande, não vejo, Valéria, algumas pessoas... a Luiza
foi uma das pessoas que me auxiliou muito naquele processo de quando eu estava lá, você, a
própria Rossana, mas assim, poucas pessoas, poucas pessoas me procuraram pra perguntar
como é que eu estava, como estavam acontecendo as coisas ali, o quê que estava bom, o quê
que estava ruim. A Luiza sempre dizia... tirava uma carta da manga e dizia: “Olha aqui, essa
229
atividade aqui vai ser boa pra você, olha Carolina, isso aqui você quer?”. Ela estava sempre
nessa postura. Eu não sei, Valéria, se é um julgamento meu também, aquele sentimento, às
vezes de inferioridade que bate, mas eu acho que aqui nessa escola tem muita... muita estrela e
isso atrapalha também porque você perde um pouco a humildade de dizer assim: “Olha, eu
posso aprender hoje com e você pode aprender comigo”.
Pergunto o que significa “estrela”...
Ah, pessoas com títulos, títulos e mais títulos. E aí, tem uma passagem na bíblia que diz, um
versículo, que eu acho isso fantástico, ele diz: que o muito estudai, falta... (não compreendi o
final)... porque você estuda, estuda, estuda e no fim você não faz o que deveria fazer que é
trazer pra sua realidade escolar o benefício daquela sua pesquisa, o benefício daquele seu
estudo, ou então o retorno. Você está fazendo essa entrevista comigo agora e depois, será que
você vai ter oportunidade de dizer “Carolina, olha, o meu resultado foi esse e esse, o quê que
você acha?” E eu acho que é um pouco isso, falta essa troca, um ambiente onde as pesquisas
que eu sei que estão sendo realizadas nesse momento fossem abertas para todos os
professores. “Olha, eu pesquisei sobre isso, é a nossa realidade”, entendeu? “Nós
comprovamos que isso está acontecendo, o que nós podemos fazer para que isso não aconteça
de novo, quais as melhorias que essa pesquisa pode trazer pro contexto escolar”. Eu acho que
falta muito isso aqui no Colégio Pedro II. É porque eu acho que eu estou cer... vou dar um
exemplo, conceituar é difícil... Eu acho que eu estou certa, eu acho a minha prática é a certa
então vou fazer assim e ninguém tem nada a ver e também aqui não tem essa cobrança de
seguir uma mesma prática, as pessoas aqui têm liberdade pra trabalhar com os mesmos
conteúdos fazendo atividades diferentes, eu vejo isso... Todo mundo, não, todo mundo não, eu
acho que primeiro e segundo ano, agora terceira e quarta série eu acho que está mais fechado,
eu percebo isso assim, talvez esteja enganada. E também eu fiquei o ano passado com aquele
grupo de primeira série que não tinha OP (orientadora pedagógica), então eu acho que isso
favoreceu mais eu ter essa visão, que as pessoas estavam trabalhando do jeito que queriam e
que achavam que estava certo... era terra de ninguém, Valéria, uma coisa que eu posso
conversar com você tranquilamente sobre isso... Eu acho as pessoas daqui muito medrosas,
elas não expõem o que elas pensam, eu não sei porque isso, entendeu? Porque eu trabalhei,
como eu falei pra você, com direção de escola e meus professores eles podiam dizer pra mim
o que estava bom e o que não estava, porque ali era uma passagem minha, eu falava sempre
pra eles: “Olha, eu estou, eu não sou, eu sou professora igual a vocês, então eu acho que falta
230
também aqui um espaço de debates, entendeu? Um espaço onde as pessoas coloquem suas
opiniões, sabe? É porque o que fala, aquele que está incomodado e fala é tido como
revolucionário e o revolucionário ele é sempre visto com maus olhos, porque é aquele que fica
mexendo muito nas coisas, fica atrapalhando o trabalho, sempre insatisfeito e eu acho que a
crise ela é algo assim positivo quando a gente é impulsionado a fazer outra realidade, pra fazer
o novo tudo de novo e eu vejo aqui, assim... Aquela última reunião mexeu muito comigo,
quando saíram dali algumas pessoas chorando, como foi a... a A. mesmo saiu chorando por
conta da M. que também saiu chorando... aquilo mexeu muito comigo porque? Eu achei super
bacana o que a M. fez, de falar... e achei super bacana também a direção da escola ter dado
aquela oportunidade ali, entendeu? E as pessoas estavam todas caladas, assim, não é... todo
mundo poderia falar. Porque uma pessoa? E eu acho o trabalho do magistério assim, o
trabalho pedagógico mesmo da sala de aula com as crianças, eu acho o nosso trabalho de
professor muito solitário, eu sempre achei isso e agora eu estou achando mais... assim um
medo... um... eu na faculdade nunca tive esse medo assim de expor o que eu penso.
Ultimamente eu tenho até me calado assim porque aqui, eu falei com você, eu acho que eu
não tenho o crédito pra dizer assim: “Olha é isso e isso”. Mas ainda eu falo um pouquinho, eu
não sou de ficar calada não, eu sou de falar quando eu estou incomodada em relação a alguma
situação eu falo, e inclusive no ano passado quando a direção da escola me perguntou como
estava eu coloquei... você estava na reunião onde eu falei: “olha o trabalho está impossível,
está isso e isso, eu não estou me sentindo assim uma pessoa apoiada pela escola”, falei, eu
acho que nem gostaram mas ninguém tem que gostar, quem tem que gostar era eu que estava
vivendo a situação...
Pergunto se Carolina pretende fazer o concurso para o Pedro II...
Pretendo. Pretendo mas me vejo hoje trabalhando numa escola de classe popular, o perfil do
Pedro II não é o meu perfil...
Você diz das crianças?
Não, não é das crianças, não... Criança, Valéria, independente da classe dela, ela não tem os
nossos preconceitos, ela te aceita, assim, a criança ela é muito maleável... é mais em relação
ao perfil dos professores da escola e da própria estrutura como a escola foi feita, foi
construída, uma escola para as elites, eu conceituo o Colégio Pedro II como uma escola feita
231
para as elites, desde o começo. E eu acho que até agora, porque, acho não, tenho certeza,
porque tendo contato com as coisas, com os conteúdos que são trabalhados aqui, eles não são
conteúdos voltados para as classes populares, não são... o cotidiano de uma classe popular que
eu trabalhei no Maranhão é diferente do cotidiano escolar daqui...Eu acho que os
conteúdos são bem parecidos, mas a forma de trabalhar com a s classes populares, você usa
outro tipo de linguagem, é uma linguagem mais despojada, assim mais simples até, você tem
outra postura, geralmente são crianças que precisam não de um acompanhamento
pedagógico mas também emocional, a questão também até de saúde... Nesse trabalho que eu
fiz lá, era primeira série, mas eu trabalhava a questão de escovação de dentes, lavar a mão
depois do uso do banheiro, antes das refeições, postura de sala de aula, aqui as crianças sabem
essas coisas... alguns, os que não m são de classe popular geralmente, as crianças aqui são
de classe média alta e a maioria tem seu lanche prontinho, nas classes populares, não, eles
esperam o lanche, entendeu? Crianças com doenças sérias, como eu tive uma criança com
sífilis, é outra questão, aqui nós temos crianças com alguns problemas de saúde mas são
lidados de uma forma diferente, têm um tratamento adequado, nós temos um posto médico aí,
nas classe populares, não, bateu a cabeça tem que aguardar a ambulância do corpo de
bombeiro...
Insisto no que ela disse: a diferença não está nas crianças...
É difícil ver a diferença... eu acho que a diferença está relacionada mesmo com as pessoas
adultas, eu acho que o pensamento de escola é diferente, a visão de escola daqui é uma e a
visão... a visão daqui é assim, praticamente, passar no vestibular, conseguir um bom emprego,
ter uma boa profissão, lá, não, é ter um trabalho, um resgate mesmo, ah, a única forma de
subir na vida é estudando? Eu vejo assim que a escola nas classes populares ela é vista assim
como uma forma de não deixar meu filho ser marginal, vou botar na escola... a gente escuta
assim de mãe: “Se você não for pra escola, você vai ser marginal, você vai ser isso, vai ser
bandido, vai ser aquilo e aquilo outro, não pode deixar de ir para escola”, eu acho que aqui...
eu nunca ouvi assim em reunião, eu ouvia sobre isso, o sentido aqui na reunião rola mais
em torno da indisciplina mesmo deles que independe de classe, é geral... e pensar a escola
assim diferente uma da outra é difícil mas tem uma diferença...
Peço que ela fale sobre estar contando essa história nesse momento... qual é o sentimento de
contar essa história...
232
Eu me sinto valorizada e eu me sinto importante, eu me sinto importante em estar dando essa
entrevista pra você, até porque eu acho que essa entrevista ela pode contribuir de alguma
forma para que algumas coisas que aconteceram comigo aqui nessa escola não venham a
acontecer com outras pessoas, contratadas ou não, e o que é bom eu falei... que a escola se
sinta estimulada a continuar trabalhando numa forma assim de muito interesse, com muita
garra... eu vejo as pessoas, eu vejo aqui um profissionalismo fantástico, eu vejo isso
claramente, aqui os professores são profissionais da educação, então eu acho que isso também
é interessante, você falar: “Olha alguém falou que a gente trabalha bem, que a gente é isso,
que a gente é bom nisso, acho que de uma certa forma essa entrevista ela pode contribuir pra
uma melhoria ou pra um aperfeiçoamento com as coisas aqui na escola, até você como
funcionária dessa instituição de ensino ta repensando a sua prática...
Insisto que Carolina fale sobre ela...
Olha, quem conta um conto aumenta um ponto... eu acho que eu contando a minha
experiência eu me sinto parte do processo... de educação nesse país, eu me sinto parte
integrante, me sinto realizada naquilo que faço, mesmo não de forma plena, com certeza
existe muitas coisas que eu preciso alcançar e me impulsiona a continuar lutando por uma
educação de qualidade nesse país e eu vou ter que ralar muito, passar em concurso,
provavelmente eu quero voltar pro meu Estado porque eu penso muito em... lá... até Valéria,
em tentar fazer algumas coisas que de repente eu não fiz por não saber, e eu me sinto assim
um ser integrante dessa grande luta pela educação nesse país... é isso, contar essa história é
isso.
* * *
Cecília
Eu tenho 22 anos de magistério, comecei, assim, quando eu tinha acabado de completar 18
anos, eu era aquela menina mesmo que saiu por meio que deslumbrada sem saber
exatamente o que fazer. Fui bem classificada no primeiro concurso que eu fiz pro Estado,
então acabei meio que naquela coisa daquele momento da década de oitenta que tinha... o
início do governo Brizola, o Programa Especial de Educação, acabei entrando para uma escola
233
que era considerada como escola experimental em São Gonçalo, que era meio que assim
Plano Piloto do Ciep e tal e, com isso, isso foi uma experiência muito marcante porque
acabou me apresentando novas possibilidades, novas discussões, uma coisa mais política
mesmo, um engajamento maior, tanto nas questões pedagógicas mesmo ali do lidar com o
aluno, com a comunidade, quanto político mesmo enquanto cidadão, profissional dentro do
sindicato. Enfim, foi assim uma coisa que abriu bastante o leque que veio marcando desde
então um pouco a minha trajetória, a trajetória que eu fiz no próprio curso de pedagogia que
depois eu entrei, e sempre ali procurando as disciplinas, os professores, no caso a pedagogia
era separada em habilitações, então até a decisão de quê habilitações, em quê eu iria me
habilitar no curso de pedagogia foi mediado por isso: “ah, não quero fazer magistério não
porque fica numa discussão muito acanhadinha, o departamento, nhem nhem nhem, os
professores”... então, eu fugi dali, fugi... acabei fazendo administração que não era nem
porque assim com o objetivo tanto de ser diretora de escola, de me candidatar, não sei quê,
mas pela discussão mesmo maior da educação, do sistema e tal, das questões maiores, do
sistema de educação brasileira. Então, isso foi me permeando aí, nos cursos de pós-graduação,
de mestrado sempre um pouco por aí.
E depois essa escola experimental, que eu comecei, que tinha um nome pomposo de
Complexo Educacional de São Gonçalo, que tinha um nome lindo, uma idéia linda na teoria,
mas que não tinha nem prédio, a gente ficava em prédio emprestado, era uma confusão
danada, mas que serviu um pouco para eu entender como é que era a educação no Brasil,
como é que era o tratamento dado à Educação no Brasil, a coisa que era meio populista
mesmo e tal. Aí o Brizola entrou, saiu, entrou saiu, veio o Moreira, veio mais não sei o quê, aí
eu também saí da escola, fui trabalhar em outra escola, uma escola na Ilha de Itaoca, que é um
lugar bem... considerado uma área rural de São Gonçalo, difícil de chegar, na Praia da Luz,
e também foi uma experiência muito legal porque eu fui assim meio que convidada,
cooptada para ir para essa escola por uma colega minha do sindicato, fazendo ali um núcleo
meio de... de resistência, de alternativa para gente, ela era diretora da escola, eu fui lá e tal. E a
gente teve uma experiência bastante rica e foi sofrido quando a escola acabou sendo
municipalizada e eu optei por sair, por não continuar numa escola municipalizada e
administrada pela prefeitura, eu era do Estado, achei que era complicado, então... e logo
depois eu ... em mais outras escolas, um ano em cada escola, e aí, então acabei chegando ao
Pedro II.
Como eu tava falando, estranhei muito a diferença que era o Pedro II, em termos de
autonomia do trabalho, assim, muitas coisas achando maravilhoso, olha, que maravilha, isso
234
aqui é realmente uma escola, uma seriedade aqui, enfim, temos condições. Mas em outras
eu senti uma perda muito grande nessa questão da autonomia, assim de como a pessoa é
tratada, era como se eu não tivesse experiência nenhuma e me davam tudo por escrito e ainda
liam comigo o que estava escrito e no final ainda perguntavam: tem alguma dúvida? Era como
se eu não soubesse nada, não conseguisse ter uma estratégia para dar uma aula, não
conseguisse eu mesma planejar uma aula. Isso para mim foi muito complicado porque me fez
me encolher e ficar insegura, enfim, várias outras questões que foram se acumulando que eu
acho que agora, depois de tanto tempo, que eu fui conseguindo resgatar. Fui ao fundo do
poço já aqui no Colégio, já saí do poço, sei lá como porque teve uma época que eu achava que
não tinha mais o que fazer dentro de uma sala de aula com crianças, se eu quisesse ser
professora eu ia ter que procurar outro nível de ensino, então muito ruim, até porque... pela
prática oral que se nos encaminhamentos, nas reuniões de planejamento, como isso é
colocado assim, parece que tem os donos dos pedaços, os caciques, e a gente tem que
cumprir, cumprir, cumprir... então isso para mim foi muito complicado e eu fui abandonando
um monte de coisa, me calando, me calando, me calando, mas, passando por cima, e talvez
entrando na segunda parte da conversa...
A minha infância foi muito marcada pela coisa de ser filha do imigrante, né, filha do
português que veio pro Brasil e que deixou na terrinha tudo que era de mais sagrado,
precioso, os tesouros, não em termos materiais, mas afetivos, deixou a família, deixou aquele
ambiente, aquela coisa, deixou uma saudade imensa, deixou um “se”, se eu estivesse seria
diferente, se, se, se, SE. De repente se ele tivesse ficado lá, de repente nada daquilo tivesse
acontecido tão bem, mas foi muito marcado então por essas narrativas: como era lá, pelas
cartas que a gente recebia, então cada carta do tamanho de um bonde, três, quatro folhas, do
tempo em que se escrevia cartas porque hoje ninguém mais escreve carta, e eram cartas
longas, cartas que iam que vinham, que eram recebidas com a maior alegria, que eram lidas
para todo mundo: senta aqui e escuta... daqui a pouco chegava outro e: senta aqui e escuta,
para mim, minha avó que recebia as cartas, ela não era... não sabia ler nem escrever, então ela
dependia sempre de alguém e muitas vezes eu ia ter que ler a carta para ela, reler a carta e tal.
Às vezes eu achava um saco, vamos falar sério né, mas que hoje, mesmo na época eu achando
um pouco chato, até porque às vezes eu tinha que reler a carta várias vezes, então era um saco
mesmo, leu uma vez acabou, acabou, mas para minha avó tinha que reler, lembrar e tal, “ah, lê
essa carta aqui do ano passado que eu quero ver o que ela escreveu mesmo, entender”... e para
mim aquilo era chato... hoje eu acho que isso tem um valor assim incrível porque era entender
a escrita e a leitura como um espaço afetivo, de relação afetiva com aquilo tudo, né, que
235
envolvia todo um carinho, um laço, e que eu acho que foi me ajudando a passar... então... e,
tirando a escola, e aí sim eu tive os livros, os escritos. Na minha casa a gente não tinha muitos
livros infantis, depois que eu fiquei adolescente é que aí mamãe foi investindo, percebeu, e
tal, mas enquanto criança a gente ao tinha muito a coisa do livro escrito porque a gente ouvia
mais as histórias das minhas duas avós... das festas, das lendas, assim, narrativas orais no
sentido popular mesmo, os causos que contavam, das aparições no meio do mato que não era
o saci daqui mas, hoje eu faço a mediação, chamava não sei o quê, era muito marcante,
tudo, os costumes, como se fazia o pão, como é que se colhia a azeitona, a cereja, não sei o
quê, entendeu? O quê que se cantava nessas ocasiões porque a colheita também era um
momento festivo, ... a minha avó, essa que é a mãe do meu pai, ela gostava muito de... como
ela não sabia escrever, então ela memorizava, sempre memorizou coisas inteiras, então,
quadrinhas, versinhos, poeminhas, e ela vivia recitando aquelas coisas, nhem nhem nhem,
muitos até de caráter religioso também, então, às vezes era uma quadrinha para falar de Santo
Antônio, às vezes enchia o saco também, vamos falar sério, mas era assim. E a minha avó por
parte de mãe, ela já não tinha tanto isso, mas era também uma boa contadora de causos, e uma
boa contadora da vida dela. Então, a experiência dela enquanto mulher, lógico que não com a
liberdade que a gente tem para conversar hoje em dia, mas ela deixava... eu fui começando a
entender melhor assim a experiência dela como mulher, né, entrar na vida adulta, casar e
depois ter filhos, o quanto aquilo foi meio que traumático para ela, então elas passavam
também. E a minha avó paterna também, porque minha avó paterna quando teve a primeira
filha teve depressão pós-parto, ficou ensandecida e essas coisas, como se tratava na época...
tranca a mulher no quarto... como quem cria uma fera lá, porque minha avó ficou realmente
muito agressiva, queria atacar os outros, então uma irmã dela é que podia entrar no quarto,
e chamaram o médico, por fim, para dar um atendimento, o médico veio... eu acho uma
história assim... o médico vem, examina e tal e diz que o remédio que ele poderia orientar era
chamar o marido que estava na América, aquela coisa do português sair, estava nos Estados
Unidos, no caso, não tinha vindo pro Brasil. Chama ele de volta porque o remédio para ela era
ter outro filho, então para eu entender... a coisa da mulher na sociedade... e sempre pessoas
ligadas ao cultivo da terra, ao trabalho na terra de agricultura, de agricultor mesmo que o meu
pai tem uma saudade incrível, então quando pára... meu pai é português, veio para com
vinte e tantos anos, ou trinta, quase, mas esse que deixou a coisa e não consegue se
desvincular... então conta muitas histórias, sempre falando, inclusive tinha a mulher
apaixonada que ele deixou e aqui ele veio fazer uma outra vida e não foi o que ele também
queria, então é uma pessoa que conta muita história, sentar do lado dele é... ele começa a falar,
236
e ele começa a falar do vinho e daqui a pouco é mais ao sei o quê e depois a história que é
muito legal... hoje eu tenho uma paciência incrível para ouvir isso, mesmo que seja uma
história repetida trezentas e cinqüenta vezes, mas eu gosto de ouvir, eu pergunto,
participo, tento valorizar, pros meus sobrinhos, meu filho, os menores, mostrando: olha só...
fazendo inclusive relações, buscando assim as coisas, valorizando isso porque eu sei que
depois que minha avó morreu, com todo o peso que era ali uma pessoa idosa, chateando na
adolescência, minha avó era uma pessoa difícil mesmo de se relacionar, depois que ela
morreu, primeiro a avó paterna, depois a avó materna, eu vi o quanto eu tinha perdido e assim
uma pena de não ter registrado, de não ter filmado, até porque não tinha tantos recursos
quanto hoje... hoje é fácil grava e filmar... porque tinha um valor assim que hoje fica na
memória e tal... e eu falo: coitada da velhinha, eu era cruel com a velhinha e tal, achava
a velha chata, mas quanto que ela passou ali e quanto ela também sofria, essa avó paterna
sofria de não saber ler e escrever, ela falava “se eu soubesse ler e escrever eu ia escrever um
livro da minha vida”, ela tinha vontade de escrever um livro da vida dela, quer dizer o que ela
sabia, o que ela tinha aprendido, faz lembrar meio a Cora Coralina que começou a escrever
depois de velha já, e quanto que a mulher tinha para dizer, né? Eu imaginava assim, de repente
a minha avó também que queria extravasar tudo isso que ela pensa e não tinha muito como,
tinha os ouvidos e nem sempre os ouvidos estavam ali disponíveis porque entravam outros
intervenientes na questão. Tinha a minha madrinha também que contava muitas histórias,
aí, sim, histórias que às vezes ela tinha lido, já era letrada e ela contava “ah eu li um livro uma
certa vez... O Crime do Padre Amaro”, então ela me contava o livro, entendeu? Mas contado,
eu nunca li O Crime do Padre Amaro, eu acho até que tenho que ler para resgatar essa dívida
entendeu? Nunca li, mas ela me contava a história, então fazia assim umas mediações que
eram mais na parte oral porque mesmo essa minha madrinha e meus outros tios eram letrados,
mas elementarmente, foram no máximo até a quarta série, então não tinham nem muita
vivência de ler e escrever, o básico ali para fazer as anotações e tal, para escrever as cartas
para Portugal. Eu lembro que ajudava e ficava dando pitaco depois, “ah eu acho que aqui
devia botar um ponto” porque eles não tinham essa coisa, eram... escrever pela emoção, do
jeito que vinha no pensamento, como se fala, sem marcar pontuação, sem parágrafo, sem
nada, era uma coisa assim, que é como meu pai. Ele se isola para escrever as cartas para
mandar, não quer que ninguém atrapalhe, que ninguém leia, ele não deixa, justamente para
não ficar dando opinião... a minha mãe também é de contar algumas histórias da adolescência,
mas ela já teve uma vida... tanto como mãe, porque mãe de sete filhos não tem muito tempo...
faz isso faz aquilo e ela ainda ajudava meu pai no comércio, então não tanto de contar, mas
237
ainda contava algumas coisas, dos namorados que supostamente ela teve antes de conhecer
meu pai. Algumas coisas assim da infância também que uma parte foi em Portugal, sempre
muito marcado pela coisa portuguesa, né, da infância dela em Portugal que a primeira infância
foi em Portugal, ela é brasileira mas foi para com uns três anos e voltou com treze, então a
infância dela mesmo foi lá... a escola portuguesa, a palmatória, aquela coisa toda, entendeu?
Tudo ela contava assim para gente...
Sobre suas relações com as narrativas na escola...
Eventualmente e era história do livro, história do livro. É lógico que tem aqueles
professores que durante as aulas acabam contando fatos da vida... eu lembro da professora da
quarta série, a turma não era muito fácil, era uma disparidade, tinha eu com nove anos e tinha
um outro com dezesseis, então o que você fala para um... e às vezes ela tinha que dar uns
toques no pessoal e às vezes ela colocava depoimento dela enquanto pessoa, enquanto filha,
enquanto irmã enquanto mãe, mas a história mais era mesmo lida e em ocasiões especiais
porque não tinha essa coisa de ler por ler, muitas vezes a gente tinha que ler individualmente,
tinha aquela história, aquele trecho... na aula às vezes aparecia um livro, mas geralmente o
livro enquanto objeto mesmo não aparecia, aparecia o texto, o livro mesmo enquanto objeto,
enquanto início, meio e fim e tal, não aparecia muito. Depois na quinta série tinha o tal
livro extra classe que era obrigatório, todo mundo lia para fazer a prova do livro, aquela coisa.
A minha busca pela literatura começou cedo, tipo nove dez anos, foi quando minha mãe
começou a comprar mais livros para nossa casa e tal e todos os meus irmãos têm uma ligação
muito grande com a leitura, de buscar livro para ler, todo mundo tem uma biblioteca em casa,
cada um com seu estilo de leitura preferido mas tem essa coisa de buscar de estar lendo e tal, e
a coisa da oralidade, como eu disse, foi uma coisa que eu fui percebendo depois, eu tinha uma
coisa meio intuitiva, da família, mas valorizar e até a ponto de tentar me tornar uma contadora
de histórias, fazer curso, não sei quê, isso é mais recente, talvez seja uma coisa que eu vim
construindo aqui no Pedro II, foi um amadurecimento entre aspas mais dessa fase mais recente
minha, porque eu sempre busquei a leitura, não exatamente de contos populares, nem de
resgatar, nem de pesquisar, isso vem de agora mais recente, e nem na sala de aula, como
professora de ressaltar esse tipo de conto popular e tal, então até leio muito pros meus alunos,
procuro ler, ressaltar os vários aspectos que a leitura pode trazer, tanto de prazer quanto de
falar das emoções, os nossos sentimentos e tal, mas sempre mediado com o livro, com uma
história específica autoral, os contos às vezes aparecem mas não é o meu foco, assim, né, mas
238
o que que eu acho que as crianças estão aprendendo? Necessariamente nada, não sei se elas
estão aprendendo alguma coisa ou não...
Pergunto, então, porquê ela trás as histórias pras crianças...
Primeiro, bom, posso falar de várias coisas... se eu quero que eles se tornem leitores, agora
vamos falar dos aspectos práticos, dos objetivos, se eu quero que eles se tornem leitores eles
têm que ver alguém lendo, têm que ter acesso a esses livros, conhecer o maior número deles
para ver o que esse mundo pode oferecer, trago livros também porque às vezes vai me ajudar
depois a estabelecer uma ponte com outro assunto, trago livros às vezes para falar de
emoções, de sentimentos que pode ser algum que eu premeditei mas pode sair uma coisa
totalmente diferente, muitas vezes eu leio sem nenhuma intenção, eu escolho o livro e ali eles
vão ver... muito engraçado que essa turma que eu estou agora diz: esse livro me fez pensar, é
deles, ah fez pensar? Enfim, a poesia também que é outro tipo, eu procuro incentivar essa
coisa que é uma coisa mais lúdica, mais sem objetivo...
Pergunto se Cecília conta histórias sem ler...
Sem ler, arrisco... esse ano até ainda não fiz, não sei porque, esse ano a turma está um pouco
me desgastando, eu tenho um aluno com necessidades especiais e então eu acabei ficando
mito voltada para isso, vou até escrever isso na minha avaliação, acho que eu estou mais
preocupada do que criativa, do que qualquer coisa, aquilo ta me absorvendo muito, então se eu
estou criando estratégias, eu acho que estou se não a turma não estava andando, mas não estou
assim tão criativa e me sentindo tão livre assim, mas no ano passado, quer era, que eu tava na
literatura, então às vezes eu ia até transgredindo um pouco o que estava planejado para contar
histórias mesmo, eu estava preparando repertório e tal, ou então acontecia um imprevisto:
não achei o material que era para dar a tal aula que estava estipulada, então era a minha
chance, aí ia lá e pegava Dona Baratinha, enfiava não sei o quê, trazia outras...
Você está formando um repertório...
Exatamente... aí Câmara Cascudo... olha, essa história, o que vocês acham, e havia turmas que
assim, que você sentia que havia uma receptividade maior para aquele tipo de literatura e
outras que ficavam assim achando que era uma coisa diferente porque era muito do
239
imaginário, às vezes fantástico, né, que às vezes eles tinham uma certa... assim, ficavam meio
desconfiados, onde... é para acreditar naquilo, eu falava sei lá, vai é uma história...
Você acha que isso acontece quando eles estão ouvindo uma história “de livro”? Porque eu
tenho essa experiência de muito frequentemente eles perguntarem se é verdade...
Também acontece com o livro, também... eles sempre perguntam: isso é verdade? Sei
lá...Pensa aí, vamos lá... você acha que é possível, não é, e tal, e às vezes eu até gosto de
incentivar, deixa pensar que é verdade, né, porque um pouco de fantasia não faz mal a
ninguém, enfim, é isso... não sei, quer mais? Fica à vontade...
Então, esse ano você ainda não teve oportunidade de contar histórias do seu repertório...
É, do repertório, não, só se eu contei algum causo da minha vida, uma história... ah, o que saiu
e que eu não explorei devidamente na turma, a tal mulher de branco no banheiro, a mulher...
que é uma lenda urbana e que eu falei que não era aquilo, até porque isso tava virando um
pânico... eu acho que não dei o tratamento que devia, gente isso é uma história, eu quando
criança ouvi essa história e tal, mas no sentido mais de aplacar aquilo, acabar com aquilo,
com essa chateação do que explorar como, vamos dizer, um conto, uma história, até porque eu
também fiquei com medo de você ficar esticando muito o assunto e depois eles ficarem com
mais medo, né, mas contar uma história do meu repertório, esse ano eu ainda não contei, não
sei nem porquê...
Pergunto qual é o lugar dessa conversa nos planejamentos...
Não... se você não tomar cuidado dentro do planejamento da escola, pelo ritmo, você nem
conta história, porque se prioriza o conhecimento mesmo ali sistematizado, a coisa das regras
dos desempenhos escolares que se desconsidera essa parte do leitor, né, se você não tiver um
cuidado, você incentivar a leitura nos seus alunos, esse momento de fruição... do clube... se
duvidar nem o clube às vezes acontece, se você não priorizar aquilo, acredito que em algumas
turmas talvez não aconteça com muita regularidade, eu acho que vi isso acontecendo,
porque tem o clube mas às vezes não tem tanta regularidade assim porque depende um pouco
às vezes do professor priorizar, embora, como eu disse, eu estou numa fase que eu não
estou contando história... estou assumindo aqui... não estou contando história todo dia porque?
240
Porque eu estou achando que eu estou tão atrasada, tão diferente, enfim, preciso de tantas
coisas na minha turma, eu preciso conversar tantas outras coisas com eles que acaba não
acontecendo, depois do recreio, como eu gosto, a rodinha da história, a rodinha às vezes é para
falar de outra coisa... ali eles me falando o que fizeram, o que não fizeram mas não é uma
história, não é um livro, porque a escola pressiona, não é Pedro II, é toda... não é para
criticar o Pedro II... acho que em todas, há uma pressão para você trabalhar dentro do que está
sistematizado, escrito, preconizado, ali nos planos, parâmetros não sei das quantas que não...
que eu acho que a leitura não tem um espaço. Até essa política do MEC de salas de leitura e
tal, ainda é uma coisa muito, muito... ainda embrionária, o MEC até manda os livros e tal mas
não são devidamente aproveitados.
Sobre os encontros de planejamento semanal: o tema das Narrativas é discutido?
Às vezes surge... surge. Esse ano, por exemplo: esse ano tem uma professora que tem como
estratégia, às vezes assim: para estabelecer a relação fonética, fonológica, da letra, né, da letra
com o som, então ela um livro, uma história autoral e ali ela vai destacar a palavra, né... o
nome do personagem (p.ex.)... ah, começa com a letra A, vamos trabalhar a letra A... às
vezes eu acabo até fazendo mas acho que é colocar a literatura num lugar que não é o dela... e,
assim, já fiz algumas vezes mas procuro não fazer isso com a regularidade com que é proposto
por essa outra colega, porque eu acho que é colocar a literatura a serviço de uma coisa que
não... que não tem que ser, né... é colocar assim: então os livros são para gente ficar
aprendendo essas letras e tal, é... tem essa função? Não. Tem uma função outra, muito
maior do que essa, né. Então, o que eu procuro ler, independente do que ta rolando nos
assuntos que tão rolando e tal, embora às vezes eu também traga livros... estamos estudando
elefante, então tem que sair um livro informativo do elefante e tal, porque os livros também
servem para isso, mas eu acho que a história, o conto, não tem que ser colocado assim. Me
preocupa um pouco isso, né, essa tendência que às vezes aparece e que às vezes a gente vê até
em cursos... no SINPRO, não sei se você chegou a ver, mas o SINPRO às vezes oferece um
curso que é Alfabetização através da literatura... Matemática através da literatura, né... e eu
fico olhando, é interessante? É... mas ao mesmo tempo... eu vou contar a história pensando
que dali eu vou tirar o dois mais dois, o três mais três, não sei quê... sabe? Meio complicado.
Não que uma vez ou outra você não faça isso, mas isso sempre, estabelecer isso como uma
estratégia sempre...
241
Você acha que a recepção do ouvinte é diferente quando ele está ouvindo uma história de livro
ou quando está ouvindo uma história de memória?
É... eu acho que, assim... para mim é diferente, eu não sei a recepção, eu acredito que tenha
também isso para o receptor talvez seja diferente. Agora, para quem conta, quando você ta
com o livro é como se você tivesse... você ta concentrada no ler e tal, é como se tivesse meio
que uma barreira ali entre você e quem ta ouvindo, então o seu olhar é para o que ta escrito e
eventualmente para quem ta... e quando você ta contando, então você busca o olhar, busca ali
para ver se ele realmente ta entendendo. Eu via muito isso no ano passado com o Yuri, que é
um aluno também com necessidades especiais, ele ta no terceiro ano, né... e o Yuri, quando eu
lia o livro, parecia que o Yuri não tava muito ali para isso, eu não tinha certeza se ele tinha
compreendido o que eu tinha lido, a história... e quando eu contava a história de... e até às
vezes eu tinha essa proposta de contos de fadas, os contos de fadas eram contados, não eram
lidos... tinha até umas gravuras para ilustrar e tal, mas muitos eram contados, né. E quando eu
contava, eu via o Yuri realmente prestando atenção porque, no que eu buscava o olhar de
todo mundo, eu também buscava o olhar dele e aquilo mantinha ele ali meio que ligado
naquilo que eu estava falando, né. E quando tinha o livro ele meio que...voava... e eu percebia
isso em outros momentos também, que quando você conta você busca mais a relação mesmo
ali direta, você ta contando ta falando para alguém... e quando você ta lendo você ta
concentrada mais num texto que você ta lendo e menos preocupada com as reações das
pessoas, da troca dos olhares, não percebe às vezes os sorrisos, os olhares de exclamações,
aquela coisa assim, que depois você tem que resgatar depois a história, que também tem a
sua validade mas todas as vezes você perde muito ali... na hora, de ver o olhar da pessoa...
ih, esse aí entendeu tudo...
Você acha que tem que ter uma formação específica para contar histórias?
Não acho não, entendeu, assim, não fiz muitos cursos... fiz um no Sinpro (Sindicato dos
professores do Rio de Janeiro) com o Laerte e tava fazendo outro com o Gregório. O do
Gregório deixa muito claro que não... é uma coisa mais intuitiva. É lógico que tem algumas
técnicas, que eu acho que são importantes, mas que não passa exatamente por um curso, eu
acho que... é a coisa da comunicação mesmo, de você ter cuidado no seu falar, a clareza, é
intuitivo também, porque não adianta você receber aquele rol de técnicas e depois você não ter
como aplicar aquilo. Então, como... assim... se precisasse de curso minha avó não teria
242
contado tanta história, tem um monte de gente aí no meio da rua que conta história e você fica
bobo de ver e nunca fez curso, e conta aqueles causos maravilhosos e você fica ali preso
naquela narrativa, naquela linguagem às vezes bem natural.
Então você não traz tantas histórias pros seus alunos quanto você gostaria. O que falta?
Eu acho que falta... eu me autorizar, eu buscar esse tempo, esse espaço que eu não... não
encontrei ainda, eu não busquei ainda. Eu... por exemplo, eu criei o espaço da história, que
de repente não acontece em todas as salas, em todas as escolas, até porque a escola, mesmo
que não seja uma coisa oficial, que esteja presente em todos os planejamentos, mas meio que
tem um pouco, uma orientação, um incentivo a isso, né. Então, tudo bem, me autorizei, fui
autorizada, vamos dizer assim, em mão dupla, me autorizei a contar as histórias sem nenhuma
finalidade, contar por contar, ler por ler, e tal... mas o relato oral, o conto mesmo oral, de
memória e tal, não tem muito espaço, não, acho que talvez porque não tenha me autorizado,
enfim... Eu não estou entendendo como é que eu estou no primeiro ano, né, crianças de cinco
seis anos, e eu ainda não contei para eles uma Dona Baratinha, é uma coisa... porque que não
saiu ainda? Sabe, eu acho que tem que ser um momento especial, momento especial que
nunca chega e que eu não crio e que não acontece, entendeu? Talvez porque a gente fique
muito preocupado com tantas outras questões que a escola... até as próprias relações entre as
crianças, tem que parar para cuidar disso, mas às vezes se você não tomar cuidado sai
atropelando tudo e querendo impor a sua autoridade ali para que um respeite o outro, mas é
uma coisa imposta porque você não trabalha aquilo como um valor, você não tem muito
espaço para conversar, para criar um momento para se falar disso, porque que essas coisas
estão acontecendo, né... Enfim, até nisso esse ano eu estou sentindo... eu sempre procurei ter
um pouco de cuidado nisso, com as relações na turma, e tal, até nisso esse ano eu estou me
sentindo... entendeu? Pressionada demais, acho até que eu estou me levando demais por essas
cobranças, essas preocupações, e às vezes eu... não estou muito errado aquilo... eu não consigo
sair disso porque, quando você quer falar, de colocar esse tipo de questionamento, às vezes
você é mal compreendido, até... vamos pegar um outro exemplo: da DE, do quinto período,
né... tem pessoas que acham que levantar esse questionamento é como se fosse um sacrilégio,
né, “Não, o que você ta reclamando, não sei quê?”, Então, sei lá, eu acho que eu acabo muito
me levando pelas pressões mesmo, enfim, acabo me omitindo em determinadas coisas, que
não deixa a gente satisfeita, mas, enfim, a gente vai levando, vai tentando compensar de um
lado ou de outro...
243
Em outro dia continuamos a conversa...
Como se tornou professora?
Já, lembrei. Bom, lembrando das primeiras vezes que essa idéia me ocorreu eu era bem
pequena, bem pequenininha comecei a falar que eu era professora e ninguém me tirou essa
idéia da cabeça (risos) .A família inclusive, eu avalio hoje em dia, que deve ter achado isso
assim uma (...) até uma grande conquista na família que poucas pessoas eram letradas,
alfabetizadas e tal que até pela família do meu pai o grande exemplo de mulher, de sucesso ,
independente, era justamente uma prima que mora em Portugal, mas que ela era professora,
sempre foi a única da família ou uma das poucas na família que foram estudar, que saíram da
aldeiazinha lá no interior de Portugal para (...) então era um exemplo de uma pessoa que tinha
procurado outra vida, vamos dizer assim, e saiu para estudar. Então pela família do meu pai,
eu lembro que isso deve ter sido entendido, esse meu desejo expresso desde logo quando
pequenininha, deve ter isso inclusive incentivado por esse exemplo dessa outra prima que era
uma pessoa muito admirada pela família. Até hoje ela é uma referência,para os assuntos de
Portugal é a prima Odete e tal. E depois, quando eu a conheci pessoalmente, também tinha a
coisa de que naquela própria aldeia, vamos dizer assim um lugar bem pequenininho do
interior de Portugal ela era também a referência na própria comunidade “Ah, da
senhora ou professora Odete, ou Dona Odete e tal.” Todo mundo sabia onde era porque ela
era uma das únicas professoras ali do lugar e a mais antiga e então eu acho que isso passa para
o meu pai, para o meu tio, para a minha madrinha e tal essa coisa assim de sentir como um
acerto, uma decisão acertada, incentivada, de ser professora. Agora , tirando isso- porque eu
não sei até que ponto isso contou mas também tinha um movimento meu , realmente eu
lembro que desde pequenininha sempre falando de ser professora, talvez como brincou a Célia
ainda agora (risos) me mostrando que talvez eu nunca tenha sido muito certa de gostar de estar
na escola , de gostar de estudar, enfim, de valorizar esse espaço escolar com todos os desafios
que ele tem , então eu fui. Sempre estudei na mesma escola do jardim até o (...) Em São
Gonçalo que era um antigo Instituto Cultual Azevedo Vianna (ICAV) que é uma escola
particular, eu não me formei em escola pública, me formei em escola particular, agora é Santa
Mônica, você (Valéria) deve conhecer, então na época ele oferecia formação de professores ,
então eu estava ali, ali mesmo e foi, enfim, assim me formei, sem oposição da família, pelo
contrário o pessoal até achando interessante e depois de ter me formado umas colegas
244
minhas assim também fizeram junto comigo , então era uma coisa até, ali do grupo , até
socialmente também valorizado ali de alguma forma, nem todas foram fazer o curso
pedagógico , mas algumas fizeram, do meu grupo , então não levantou muitos esforço...
assim que eu me formei que foi em 84 (1984), eu terminei o segundo grau e logo saiu a
notícia, o edital do concurso para a rede estadual , na rede municipal, foi um concurso imenso
que a prefeitura do Rio (Rio de Janeiro) fez junto com o Estado na mesma data, não sei se
você(Valéria) se lembra?
(Valéria) Lembro, lembro.
(Cecília) Foram milhões de vagas, filas quilométricas...
(Valéria) E as provas eram feitas em lugares imensos.
(Cecília) Exatamente.
(Cecília) Aí, fui eu não é? Me inscrevi no concurso, eu lembro que teve que enfrentar fila,
porque a fila foi imensa, tudo era muito imenso , depois para entregar os títulos era uma hora,
era uma coisa. Maracanãnzinho, fazia assinatura , fiz contrato no Maracanãnzinho.
(Valéria) Eu fiz isso.
(Cecília) o que aconteceu? Eu me formei em dezembro, ainda tinha dezessete anos e logo
saiu o edital do concurso e tal , quer dizer, ao mesmo tempo que eu e a minha colega que tinha
curso , a gente saiu pelas escolas de São Gonçalo distribuindo nosso currículo porque não
tinha nada no currículo, a formação que a gente tinha feito igual e alguns poucos cursos
assim, eventuais, a gente saiu, ela dirigia de carro , então era uma beleza, a gente ficava
passeando parando em escola e escola e tal, e eu lembro assim , que ela , até porque o pai dela
conhecia o diretor da escola, ela conseguiu logo um vaga lá, uma colocação, para ser
professora ali no bairro mesmo, numa escola mesmo e eu não, o meu currículo, apesar de
ter espalhado em vários lugares, fui até chamada para várias entrevistas, mas era sempre
aquela coisa , a gente nunca sabe o que erra na entrevista: “O que eu falei que ele não
gostou?” Ou. “Por que ele não me selecionou?” Mas enfim, passou e teve uma proposta de
eu ficar como professora assistente, ajudante, para levar as crianças ao banheiro, eu falei:
245
“Ah, isso não.” Eu estava com um concurso em vista, estava estudando, tinha me
inscrito , aí eu falei: “Ah, não eu prefiro arriscar nesse concurso aí , para ficar ajudando eu não
quero não.” Meio que esnobei, não é? Mas fazer o quê.Aí fiz a prova, ainda tinha dezessete
anos e eu e – Risos – minha mãe só comprando vaga, não , porque com menos de dezoito, “eu
ouvi falar que com menos de dezoito anos não pode”.Aí dito e feito.Eu fiz dezoito,
completei dezoito porque demora , aquela coisa demora, concurso público , ainda mais um
monte de gente falando: “Ah saiu o resultado, depois mais não sei quantos (...)” quando
chegou no dia sete de maio eu fui logo tirar o título de eleitor que eu não tinha, na época
podai com dezoito , não tinha essa coisa de dezesseis.A carteira de identidade eu já tinha, mas
eu fui logo dando entrada em todos os documentos que podia –Risos –
(Valéria) Para provar que você tinha dezoito anos.
(Cecília) Risos Para provar que eu tinha dezoito anos . –Risos agora podem me
chamar, foi o que aconteceu, acho que ou eu sabia ou logo marcaram a data , dez dias
depois de eu ter dezoito anos foi o dia de eu ia assinar o contratono Maracanãnzinho , com
dezoito anos completos –Risos e falta documentação, não sei, o protocolo , não sei, que
eu tive esse percalço de não ter dezoito anos completos, eu fui para escola, assim, teve a
escolha , eu lembro que (...) ainda era assim eu junto com a minha mãe, ainda tinha aquela
coisa de andar com a minha mãe, até porque assim (...) não tanto porque eu ia para vários
lugares sozinha , mas essa coisa que acho que para a minha mãe foi importante, então ela
queria nas escolas também comigo e ver o melhor lugar para eu trabalhar, então não tinha só a
coisa da super proteção , da filhinha, mas também aquela valorização da mãe querer ir , olhar,
ver e tal, participar e como é que é, ela foi no Maracanãnzinho comigo Risos visitou
várias escola em São Gonçalo para ver onde que tinha vaga, onde que não tinha , no dia da
escolha eu fui sozinha , eu não estava com a mãe “a tira colo” –Risos mas eu tinha
também feito a minha escolha ali dentro e realmente foi a escola que eu (...) que oferecia mais
vagas que na época era ainda governo Brizola , o secretário de educação, Darcy Ribeiro, então
tinha aquela coisa do projeto de educação, os CIEPs ( Centros Integrados de Educação
Pública) e uma escola em São Gonçalo era um (...) como se fosse uma escola meio que
experimental , não era CIEP, mas que estava caminhando experimentalmente para ter uma
organização diferente, muito inclusive, depois eu fui perceber, depois voltei para e fui ver
que as pessoas falavam, mas eu não percebia muito na época , muita até pautada aqui na
experiência do Pedro II ( Colégio Pedro II) algumas coisas, de organização , de estrutura
246
curricular , de horário dos professores, tinha uma folga semanal para a gente , entendeu?
Então eu fui para essa escola que era o (...) Como é que se chamava? Era Centro Interescolar,
não, Complexo Educacional de São Gonçalo, era composto pelo Tarcísio Bueno, Walter
Orlandine,a FFP (Faculdade de Formação de Professores) que na época não era da Uerj
( Universidade do Estado do Rio de Janeiro) era (...) estava “sem pai nem mãe” –Risos
Circulava Darcy Ribeiro, eu acho.Era uma outra coisa e mais essa , o Tarcísio Bueno não
comportava tantas turmas de primeira a quarta , então a gente usava, inclusive, as salas da
faculdade que estão sem utilização , então a gente ficou ali e era experimental em tudo –Risos
até em usar as salas que não eram adequadas para as crianças , mas valeu pela experiência
porque era um grupo legal porque eu acho que devo muito, a minha formação mesmo eu devo
a essa escola, às pessoas que trabalhavam nesse momento e tal porque vinham mesmo uma
proposta de, enfim, de experimentar, de mudar , de refletir novas coisas sobre educação, as
crianças das chamadas classes populares, o discurso na década de 80 ainda estava muito
aflorado, então Paulo Freire na veia e outros tantos ali e os discursos bem assim não é? E tal.
(Valéria) E esses discursos você já tinha visto na formação da escola?
(Cecília) Não .Isso é porque , por exemplo, como eu tinha outras primas também
professoras se formando, trabalhando mais velhas do que eu, mas eu freqüentava muito a
casa delas porque elas moravam no Rio ( Rio de Janeiro) , num desses momentos de férias
que eu fui para a casa delas estava acontecendo lá na UFF ( Universidade Federal Fluminense)
uma CBE ( III Conferência Brasileira de Educação) que era uma Conferência Brasileira de
Educação , uma coisa assim com esse nome , Conferência ou Congresso e foi na UFF,
era época que a gente estava pensando em LDB ( Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional) , a gente não , os outros, os outros educadores estavam Risos e eu fui me dar
conta disso.Muito engraçado de ter visto, inclusive, acho que foi uma palestra ou mesa
redonda com o Dermeval Saviani .Eu com dezessete anos, dezesseis anos de idade assistindo
o cara, não entendendo nada provavelmente, mas entendi a questão da educação como ato
político , aquela coisa e tal, fiquei com aquilo ali na cabeça, fui falar com a professora e tal,
ela falou assim: “Ih, você não entendeu nada , não é isso que ele quis dizer.”Assim aquelas
coisas e tal, demonstrando que eu tinha entendido parcialmente que eu não tinha entendido
tudo , pois sim, já tinha tido essa experiência , ouvido algumas coisas, o curso pedagógico que
eu fiz, a minha tia considera muito fraco assim, muito aquém , quer dizer eu não sei se , por
exemplo, se eu tivesse num tão melhor porque eu acho que não tinha uma coisa ali, como
247
estava todo mundo ali mudando, mudando e querendo mudar , outros nem percebendo que
tinha que mudar nada , então eu não sei se seria tão melhor assim, mas de qualquer forma,
quando eu entrei na escola para trabalhar e estava trabalhando vendo as pessoas procurando
outras alternativas, fazendo outras questões, procurando novas metodologias tanto
tecnicamente como politicamente e sim que as coisas começaram a se encaixar e ler
mais, também acho que foi importantíssimo nessa minha formação porque aproveitando
que eu estava no prédio da faculdade e na época eu saía do curso pedagógico assim muito
imbuída, eu sempre fui boa aluna em matemática, então eu fale assim: “Então eu vou fazer
faculdade de matemática”, mas para me aprofundar na questão da metodologia da matemática,
um ensino da matemática diferente e tal , eu cheguei a dar vários passos nesse sentido , mas
depois eu me embolei no meio do caminho , eu fui fazer curso de ensino de matemática que
na época era oferecido pelo Centro de Ciências daqui do Rio ligado à FAPERJ ( Fundo Carlos
Chagas Filho de Amparo ã Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) a gente fazia os cursos
em São Gonçalo ,com material concreto, freqüente vários módulo de curso e comecei depois o
vestibular para matemática e cheguei a começar a faculdade de matemática, primeiro numa
faculdade particular , antiga FACEM, que era Centro Educacional não é? E depois , como era
particular e tal (...) E lá na FFP ( Faculdade de Formação de Professores) abriu o vestibular,
eu fiz o vestibular novamente , fui para FFP, trabalhava , estava no prédio, quer
dizer, era fácil, ou antes do trabalho ou depois do trabalho freqüentar as disciplinas e na
época isso a gente tem que colocar sempre foi realmente uma Faculdade de Formação de
Professores , a preocupação dele é a formação , hoje em dia eu não sei se está tão, mas o
currículo é muito pautado ali na parte pedagógica , a preocupação, não sei se em todas as
áreas mas eu percebia na época que tinha essa preocupação , então a gente desde o primeiro
período tinha que cursar um monte de disciplinas pedagógicas e tinha a tal chamada prática
pedagógica e sim que eu tive a sorte de fazer a disciplina com uma professora que eu
considero assim muito boa que a prática pedagógica foi, essa disciplina por dois tempos por
semana só, carga horária até pequena comparada com as outras , mas ela conseguiu imprimi
no curso, sem deixar a coisa se perder e tal, uma linha tão legal , depois poucos professores a
gente encontra assim na faculdade porque as vezes a coisa fica meio perdida , o professor é
muito bom, traz textos legais, mas você fica meia perdida, essa professora não ela era muito
boa, tinha conhecimento e além disso ela foi conseguido dar o curso, inclusive dando
seminário que geralmente seminário a coisa se perde, o seminário dela não, valia a pena
mesmo sabe? E a gente foi assim (...) E então eu fui ler o primeiro livro do Paulo Freire
“Educação e Mudança”que é ela deu duas alternativas, a gente tinha que ler um livro inteiro
248
no semestre, fora o que a gente lia que podia ser em textos, livros, mas a gente leu um livro
inteiro para depois relatar, e era um livro da Bárbara Freitag que também era badaladíssimo
na época e o livro do Paulo Freire, eu escolhi “Educação e Mudança”e eu realmente me
apaixonei, aquela coisa de ficar apaixonada –Risos – aí aquilo ali bateu, aí sim que eu comecei
a ler mais Paulo Freire e tal e conversando com as colegas , isso na prática mesmo, no dia-
a-dia da aula, de ver as situações acontecendo com os alunos e lançando algumas experiências
assim “vamos arriscar” correndo o risco, não sei bem onde que isso vai dar, ninguém sabe,
mas vamos –Risos – e meti a cabeça junto com as minhas colegas e aí foi aí que eu acho assim
mais do que estudei no Colégio, acho que aquela informação, naquele momento foi muito
importante, inclusive eu já tinha falado meio que na outra entrevista , aí juntou a militância do
SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação) e tal , mas eu considero meio que
aí.Essa disciplina na faculdade, essa experiência da escola (...)
(Valéria) Quando as pessoas relatam que entrou na escola com dezessete anos, elas falam de
medo, assustadas (...)
(Cecília) Também porque eu tinha os meus medos, minhas inseguranças não é? Porque
imagina uma menina não é? Eu lembro que quando eu fui escolher a turma., então falava no
meio daquele um monte de gente , a diretora, a diretora ainda tinha um (...) não essa diretora,
mas para mim , eu chegando, era uma autoridade que eu tinha que respeitar e falar e eu
novinha, todo mundo via que era novinha “ah, não sei o quê”, ainda mexiam com a gente e
tudo, então eu lembro que eu tinha um pouco de insegurança, mas ao mesmo tempo, tinha
essa coisa do grupo, de ir , assim “vamos experimentar”, era uma escola assim meio assim ,
tinha umas coisas muito legais, tinha a coisa de ter reuniões semanais e sempre, então isso era
muito legal apara a troca e tal e todo mundo sentava e altos debates , toas as –Risos
questões que pudessem ter as vezes não se limitava pedagógico,de aluno, saía discutindo um
monte de coisa, por ser uma escola ali experimental, porque enquanto estava o governo
Brizola tudo bem, mas depois que entrou Moreira Franco , imagina, eram outras questões
Risos e agora para onde a gente vai? Quem é ? Não sei o quê. Porque o objetivo era
construir um CIEP para a gente ficar no CIEP, quando saiu o Brizola e entrou o Moreira, não
tinha –Risos mais CIEP.E agora a gente vai ficar nesse prédio?Aí tinha uma questão de
diretores, toda aquela coisa que gente também ia fazendo eleição, reunia, fazendo toda a (...)
Eu lembro que eu cheguei a participar (...) fazer o regimento, o regulamento da eleição ,
como é que ia ser a eleição , quem votava, quem não votava.
249
(Valéria)Uma coisa que você nem sonhava (...)
(Cecília)Nem sonhava.
(Valéria) (...) antes do normal (curso normal).
(Cecília) Não, não. Isso aí não se falava.
(Valéria) Agora , é engraçado como lembrança puxa lembrança.
(Cecília) É.
(Valéria) Você falou da (...) eu até fui na FFP outro dia para participar de um Seminário e
eu olhei aquele entorno ali e fiquei tão (...) com tanta saudade porque eu estudei naquele no
Tarcísio Bueno .
(Cecília) Ah é?
(Valéria) E a gente morava na parada quarenta (...)
(Cecília) Andou muito ali.
(Valéria) Mais ou menos, sabe por que mais ou menos? Não tem aquela rua de trás da (...)
(Cecília) Do Tarcísio?
(Valéria) Não. Tem a linha do trem.
(Cecília) Ah, aquela rua.
(Valéria) E tem a rua de trás. Tem a rua principal , tem a rua do trem e tem a rua principal
.Aquela rua não era asfaltada é claro . A gente morava na parada quarenta e a gente ia a
para o Tarcísio Bueno , eu minha irmã e um cachorro.
(Cecília) Sei.
(Valéria) Então ele ia até a escola, depois ele voltava para casa sozinho.
(Cecília) Que legal ! –Risos
Por e-mail, em novembro/07
Valéria,
A expressão pequenos comerciantes não está errada, mas não sei se a verdadeira dimensão
do negócio. Meu pai tinha uma pequena quitanda, que agora está nas mãos de um dos meus
irmãos. Meus pais estão aposentados, embora ainda apareçam em alguns horários na
quitanda. Acho que a palavra quitandeiro, com toda a sua conotação, deveria aparecer. Afinal,
sou a filha do quitandeiro. Papai tinha essa quitanda quando casou com mamãe. Aliás, se
conheceram na quitanda, um de cada lado do balcão...
Meus avós paterno e materno vieram primeiro sozinhospara o Brasil em épocas diferentes. A
mulher e filhos, vinham vindo depois.
Meu avó materno (Benjamin) teve algumas idas e vindas, mas a chegada definitiva foi 50
anos - 14/01/1957 - data comemorada em janeiro último pela família com saudosa festa,
(organizada pela minha mãe) com direito a petiscos, contos, causos e versos lusitanos (Pessoa
250
e Camões apareceram, claro...). Mamãe chegou ao Brasil com 12 anos. Tudo era uma grande
novidade. Eles moravam no interior de Portugal ( na região de Aveiro) e vieram morar numa
cidade grande, que era o Rio já naquela época. Mas note-se que,na região em que eles viviam,
haviam algumas fábricas e mini-hidrelétricas, para a produção de energia. Meu avô
trabalhou na fábrica de celulose e teve participação em uma greve na década de 30, episódio
que deve ter influenciado sua decisão de migrar para o Brasil. A título de curiosidade, saiba
que tal episódio - A greve - será encenado pela família no Natal, uma "brincadeira bastante
séria", a qual a tios, tias, sobrinhos e sobrinhas têm se dedicado nos últimos tempos.
Meus avós - tanto paternos, quanto maternos - já faleceram.
A família de meu pai, veio vindo aos poucos. Primeiro meu avô, depois um tio, depois outro
tio, depois uma tia que casou e veio com o marido fazer a vida. Por último, vovó Antônia e
papai (pelo menos este não queria muito vir. Veio pela pressão da família...). Não sei direito a
data, mas, pelos meus cálculos, também foi na década de 50. Papai era homem feito, com
certeza tinha mais de vinte anos de idade. Também morava em área rural, na região da Beira
Alta - Serra da Estrela, onde além das plantações de subsistência e de uvas, criava-se muitas
cabras.
Em relação ao título - Notícias de além-mar - acho que está bem simpático... estou curiosa
para ver o texto... Se houver outras dúvidas, escreva.
Um abraço.
* * *
Joana
Eu sou Joana, a história de como eu virei professora é muito interessante... Eu como uma boa
afro-descendente, que não conheci meu pai, só tive oportunidade de conhecer minha mãe, uma
grande mulher. Sempre estudei com uma certa dificuldade, minha mãe me mantinha na escola
com uma certa dificuldade e justamente no ano em que eu terminei o primeiro grau, minha
mãe sofreu um acidente muito sério, muito grave, assim, que desnorteou toda a família e eu
pensei até que eu não continuaria a estudar... tanto que as minhas colegas falavam: “Ah, eu
vou prestar concurso para tal lugar, eu vou fazer não sei quê...” e eu não tinha nem planos, não
tinha expectativa nenhuma. Fiquei na minha, fiquei quieta. Minha mãe um dia, quando ela foi
fazer tratamento, estava fazendo fisioterapia, ela passou pelo Instituto de Educação
Governador Roberto Silveira em Duque de Caxias e ela viu que no dia seguinte seria o último
dia de inscrição e ela chegou em casa e falou: “Joana, vai lá...”. Eu, como filha muito
obediente que sempre fui... era muito questionadora mas era obediente, eu questionava mas...
eu fui e fiz a inscrição. Interessante que para fazer a inscrição, eu era menor, precisava da
assinatura da mãe. Eu dei uma voltinha, eu mesma fui lá, assinei e entreguei... eu sempre fui
muito prática, muito resolvida, é para resolver, vamos resolver logo, então: é para fazer
inscrição? Precisa voltar em casa para mãe assinar? Não, eu mesma assinei e devolvi. E fiz a
251
prova, passei, passei bem, apesar de tudo que estava acontecendo na minha família, com
minha mãe, eu estava muito mexida na época por causa disso, mas mesmo assim eu fui uma
das primeiras colocadas nesse concurso. Minha cabeça estava tão cheia de tantas coisas, que
eu fui seguindo o processo... passei, tem que levar documento tal dia. Fui levar os
documentos, estou eu na fila para fazer a matrícula no ensino médio e aí, para a minha
surpresa, eu vi que a pessoa que estava atendendo as meninas estava perguntando: “Qual
curso você quer fazer?” E eu não tinha pensado nisso... eu fiquei apavorada! Lá, na época,
tinha secretariado, contabilidade e formação de professores. E aí, a menina que estava
imediatamente à minha frente, ela falou: “Formação de professores”. Então, o que fiz eu?
Também falei: “Formação de professores”, e assim eu me tornei professora. Fiz todo o curso,
eu sou uma pessoa do tipo que se é para fazer eu faço, sou meio camaleoa... fui fazendo,
procurei sempre fazer da melhor maneira possível, com boas notas, no terceiro ano foi quando
eu comecei a trabalhar numa escola, minhas notas caíram um pouco mas me formei e
eis-me aqui... Logo depois que me formei eu trabalhei em alguns subempregos... trabalhei na
LBA que hoje está extinta, trabalhei como recreadora em colônia de férias, trabalhei no
IBGE onde ganhei um bom dinheiro... Eu trabalhei em escolas pequenas, particulares
pequenas, assim, bem fundo de quintal mesmo, bem precárias e no IBGE foi um trabalho
assim importante na minha vida, marcou a minha vida, por que? Eu fiz um censo comercial e
para fazer censo comercial nós tínhamos que fazer um curso durante uma semana, o dia todo.
Eu fiz esse curso e saí de como a segunda colocada e por isso eu recebi... isso significava
em você... naquilo que você receberia mais tarde, no seu trabalho e naquilo que você iria
receber financeiramente. Então eu fiquei com uma área muito boa em Caxias, com apenas
uma quadra, mas uma quadra que concentrava assim um número imenso de comércio, de
indústrias, era muita coisa, muitos prédios, e ali eu fiz aquele trabalho por talvez uns dois
meses no centro comercial, terminei, recebi um bom dinheiro, a minha mãe mandou guardar
esse dinheiro... foi quando surgiu o concurso pro Estado e eu tinha o meu dinheiro
guardado, eu pude pagar para fazer minha inscrição no Estado, para fazer o concurso pro
Estado e naquela época, 25 anos atrás, não havia os recursos tecnológicos que tem hoje, as
coisas não eram tão rápidas para serem processadas e um professor quando entrava na rede do
Estado, ainda mais o concurso que eu fiz quando entraram um número imenso de pessoas, as
pessoas ficavam assim oito meses sem receber. Eu fiquei tranqüila durante esse período por
cauda do dinheiro que eu havia recebido no IBGE, então eu pagava minhas passagens,
comprava até uma roupinha, um sapatinho, assim, e passei esses oito meses até começar a
receber do Estado. Trabalhei no Estado durante dois anos, no Estado de 82 até 84. Em 84
252
abriu o concurso aqui pro Pedro II e aí eu fiz o concurso pro Pedro II e passei também mas eu
vinha estudando... porque eu trabalhava no Estado, mas eu como filha mais velha, então
tinha que ajudar a família, essa coisa que não era suficiente com o que eu ganhava no Estado,
morava com minha mãe, eu tenho uma irmã e um irmão, então tinha que ajudar a família,
essas coisas e aquilo que eu ganhava no Estado não era suficiente então eu sabia que eu queria
mais um emprego. Então eu cheguei até a me inscrever pro Banco do Brasil, BNDES, mas
para esses concursos eu nunca me preparei realmente de uma forma adequada, mas eu
estudava, estudava muito mais para área voltada para Educação e aí, quando apareceu o
concurso aqui pro Pedro II eu passei e vim trabalhar também no Pedro II. Aí passei a trabalhar
no Estado e no Pedro II a partir de 84.
Pergunto se ela já sabia da existência do Pedro II...
Olha eu ouvia falar do Pedro II principalmente através dos livros porque antigamente tinha a
admissão, o curso de admissão, e tinha uns livros de admissão que tinha assim uns exercícios
assim daqueles bem brabos, bem cabeludos, o exercício chamado “forte”, né, e nesses livros
de admissão tinha muitos exercícios do Colégio Pedro II, das provas do Colégio Pedro II e
como era difícil para mim resolver os exercícios do Colégio Pedro II! Mas quando teve o
concurso eu vim e deu tudo certo, eu passei. Eu na verdade nem sabia onde era o Pedro II,
nem sabia onde era o Colégio Pedro II, o que eu sabia do Pedro II, o que eu tinha ouvido falar,
nem ouvido falar... o que eu tinha lido do Pedro II era aqueles exercícios que eu via nos livros
e que eu usava inclusive para estudar na admissão e tal, no curso de admissão e mais tarde
quando estava me preparando pro concurso que viesse, então eu não tinha ouvido falar nada
do Pedro II, nem sabia onde era o Pedro II, quantas Unidade havia, não sabia de nada. Eu
fiquei sabendo do concurso pro Colégio Pedro II através da rádio relógio! Eu ouvindo a rádio
relógio, o cara falou: “Estão abertas as inscrições para o concurso do Colégio Pedro II”, eu
ouvi e vim e me inscrevi e assim, passei, né. Eu tenho essa coisa assim de meter a cara, de
desbravadora de ir sem medo e ser feliz, mas sempre fiz tudo na minha vida assim: se der,
deu, se não der, não vou ficar assim frustrada, traumatizada por causa disso... eu tento e às
vezes dá certo.
Pergunto como foi sua chegada no Pedro II...
253
Foi muito difícil porque eu vinha de uma realidade, tanto pedagógica, muito diferenciada, eu
tinha o ensino médio, aqui muitas pessoas tinham a faculdade, até mestrado, então
tinha uma outra visão, tinha um outro olhar, tinha um outro trato, né, tinha um outro
fazer, e eu ainda estava ainda muito arraigada a algumas teorias e a alguns posicionamentos
do passado, ultrapassados. Então, eu olhava e julgava de uma determinada maneira, de acordo
com os meus conhecimentos, de acordo com as minhas vivências, de acordo com a minha
realidade, mas aquela coisa, a gente vai observando as coisas e vai assim... e começa a
interagir na verdade e começa a ser contaminada, a palavra não seria bem essa, mas algumas
práticas você acaba se apossando delas e você, sem sentir, sem perceber, sua prática começa a
mudar, por estar ouvindo essas pessoas, por estar em contato, por estar vendo outras práticas,
né, na verdade você começa a ser mexida, tocada, sua prática vai sendo alterada
gradativamente. E depois de um tempo eu comecei a fazer faculdade também, ingressei na
faculdade, fiz a faculdade de letras e estudar é uma coisa que eu gosto muito, pesquisar...
sempre fui muito bisbilhoteira, muito curiosa, então fiz assim muitos cursinhos de pouca
duração, de algumas horas mas que me acrescentaram algumas coisa e a gente vai vendo um
pouquinho aqui, um pouquinho ali e vai se formando o nosso saber.
Pergunto como Joana vê seu caminho no Pedro II desde a sua chegada até agora...
O Pedro II foi uma verdadeira escola, isso aqui para mim foi uma escola, é uma escola. Aqui
nós temos um ambiente muito rico, essa diversidade que nós temos aqui é uma riqueza assim
de um grande valor porque, à medida em que nós temos contato com tantas pessoas com
formações tão diferenciadas, a gente tem oportunidade de entrar em contato com muitas
coisas, com muitos saberes e a gente vai incorporando na verdade esses saberes, essas
práticas, porque a gente julga e a gente vê, aquilo que certo a gente acaba incorporando e
acaba praticando também. Então, o simples fato de nós estarmos aqui num grupo de
profissionais de formações tão diferenciadas, que nós temos aqui com formação nas mais
diversas áreas, nós temos aqui pessoas com formação desde ciências contábeis, psicologia,
biologia, matemática... então isso é um diferencial, isso é um formador, além dos cursos
e da formação continuada que muitas vezes nos são oportunizadas... Agora mesmo estou às
voltas com um curso de formação continuada em mídias aplicadas à Educação pela... à
distância. Por exemplo, a ADCPII (Associação de docentes do CPII) algum tempo atrás
promoveu um seminário que trouxe algumas pessoas, infelizmente foi um seminário muito
esvaziado, nem todas as oportunidades as pessoas na verdade aproveitam, porque são
254
oportunidades que muitas vezes não estão dentro do seu horário de trabalho, mas a pessoa... e
eu não estou julgando... mas a pessoa que se dispõe a participar desses cursos, dessas
oportunidades, seminários, fora de seu horário de trabalho, tem bastante coisa para
aproveitar... a ADCPII promoveu, o SINDSCOPE (Sindicato dos servidores do CPII) também
promove algumas coisas, mais voltadas para área trabalhista, mas promove também. Agora o
departamento de Educação Especial tem trazido uma pessoas assim muito interessantes,
porque eu acho que a Educação tem que conversar muito com o pessoal da área de saúde, é
uma coisa que faz muita falta, nos faz falta ouvir o pessoal da área de saúde, para nós
sabermos como tratar... não tratar no sentido patológico... mas como nós temos que nos
comportar diante de certas situações, diante dessas crianças, que envolvem algumas
demandas, o que nós podemos fazer enquanto professores por algumas crianças. Então, tem
vindo à escola, através do Departamento de Educação Especial, algumas pessoas bastante
interessantes que, pelo menos para mim têm acrescentado muito. Agora, normalmente isso
acontece fora do período de trabalho, por isso muitas pessoas não participam.
Joana, nesse meio de caminho, desde que você entrou no Pedro II, você casou, teve filhos...
você gostaria de contar essa parte?
Foi um barato... você entrar num lugar solteira e ali naquele lugar você, junto com seus pares,
outros pares também na mesma condição, solteiríssimas, e teve uma turma boa aqui que
passou por essas fases juntas, de namoro, onde nós compartilhávamos algumas coisas, de
noivado, dos casamentos, o nascimento dos filhos... e digo que foi muito difícil o período da
minha vida com três crianças pequenas, que eu tive neném em 89, 90 e 91 e recebi o
apelido aqui na Unidade de “a sempre grávida”... foi um período muito difícil porque dar
conta dessas demandas de mãe, criança pequena tem muitas doencinhas, coisas pertinentes a
essa fase da vida, eu hoje olho para trás e penso: “gente, como eu não enlouqueci?!”, foi muito
difícil... essa coisa de gente para tomar conta, e creche, e empregada, e babá, não sei o quê...
olha, eu passei por muitas situações! Eu tenho histórias para contar assim da minha vida
pessoal, de coisas que eu passei e tendo que trabalhar, dar conta de um trabalho, dar conta de
família e de casa... eu posso me considerar agora mais à vontade, mais tranqüila, estou bem
mais tranqüila, minhas filhas agora estão adolescentes, com 15, 17 e 18 anos, então eu
agora estou assim nos céus com as pernas de fora... porque elas estão autônomas agora,
vão para casa sozinhas, vêm para a escola sozinhas, se viram em casa, com comida, não
precisa mais ninguém para ficar pajeando, para ficar tomando conta, dando alimentação, essas
255
coisas, então elas têm bastante autonomia agora e eu estou numa fase assim de voltar até
para outros interesses, não preciso mais ficar assim com tanto tempo, assim cem por cento
voltada para família. Eu vinha com elas, voltava com elas, no princípio elas eram bem
pequenas, não tinha ninguém para levá-las de volta para casa, elas passavam a tarde aqui
comigo, teve assim... a gente foi aquela coisa que aconteceu, fomos levando, mas havia dias
que a coisa era bem complicada, tinha que trazer comida, esquentar comida, para dar almoço
para todo mundo e à tarde elas cansadas e a gente voltar para casa e estar aqui no outro dia
cedo novamente... era complicado. Faz parte daquelas memórias que a gente olha para trás e
diz “gente, eu passei por isso!!!” e sobrevivi e elas também.
Peço que Joana fale como ela vê a escola quando entrou aqui e como vê a escola hoje...
A escola foi se acertando em muitos aspectos, porque a escola quando foi... a Unidade foi
inaugurada em 1982 (84), conforme a diretora disse não tinha nem um boletim, não tinha
nada, tudo teve que ser estruturado, tudo teve que ser criado, no início o serviço de
almoxarifado era muito difícil, hoje tem um turno que funciona de uma forma um pouco
precária, mas eu vejo que a escola está mais limpa, porque antigamente era muito pior, eram
muitas tralhas em cada sala, então hoje a escola, eu vejo as pessoas tentando organizar
melhor a escola, é claro que não está de uma forma ideal, há muito que por fazer ainda mas, se
eu comparar a escola de hoje com a escola do passado, eu vejo que ela está melhor
organizada, melhor estruturada, as pessoas estão procurando acertar essa coisa da biblioteca,
almoxarifado, onde você pegar material, o multimeios, a confecção do material... antigamente
nós pedíamos mas nós tínhamos que contar... eu, enquanto coordenadora, teve um período que
eu ficava com dores nas costas de tanto contar material, separar folhas paras pessoas, hoje
não tem mais isso, as pessoas recebem as folhas separadas, então muitas coisas aqui foram
aprimoradas, olhando para trás... em outras, no entanto, eu vejo que a gente tem assim
algumas perdas, principalmente na parte pedagógica, acho que nós tínhamos... passamos por
algumas experiências, acrescentamos algumas coisas ao nosso currículo em termos de
trabalho, em termos de fazer pedagógico e que eram boas, que eram interessantes e que nós
perdemos, em termos de qualidade algumas coisas, em alguns aspectos eu registro aqui
algumas perdas, sim. Eu vejo um grande crescimento na parte administrativa, de organização,
mas na parte pedagógica eu vejo perdas, sim.
Peço a Joana que fale sobre sua relação com as narrativas na infância.
256
Eu fui uma criança que não ouviu histórias. Raramente, muito raramente, teve um
periodozinho da minha vida, eu era adolescente, tinha um senhor de idade e nós
ficávamos à noite assando batata doce e ele contando histórias... assando batata doce à noite e
ele contava assim umas histórias mirabolantes e nós ficávamos muito interessadas, mas na
minha infância não tive esse contato com livros, com pessoas contando histórias para mim, eu
não tive isso, nem na minha escola, eu não sou dessa escola que... com essa visão, de
formação, de contar história para criança, para a criança ir se apropriando dessa estrutura,
dessas narrativas, enriquecimento através desse trabalho, não sou desse tempo...O literário não
houve na minha infância, da narrativa literária eu não tive acesso, mas a minha família era
uma família pequena mas que nós conversávamos muito, muito, muito, muito... nós nos
reuníamos à noite, ficávamos conversando, e essa coisa das memórias isso minha mãe
trouxe para nós. Dos familiares dela que, muito ligados à música, que tocavam, animavam
bailes, a família da minha mãe era muito ligada à música... de Minas, no interior, sempre tinha
um baile, era tradição naquela época. que não tinha outro divertimento, eram os moradores
que tocavam e faziam o baile nas casas e as pessoas se divertiam, era o lazer das pessoas.
Então, histórias do tempo da minha bisavó, da minha mãe quando criança, história de família,
isso nós tivemos e tivemos muito, foi muito interessante, um momento assim muito
gostoso. E isso me faz lembrar da minha infância como algo muito bom, um momento
delicioso na minha vida, é uma recordação muito boa esses momentos da minha família...
Pergunto como Joana lida com as histórias com seus alunos, tem lugar para as histórias na sala
de aula? Como vem lidando com isso ao longo de seu percurso de professora?
Eu lido com isso, enquanto professora, como uma pessoa que sabe da importância de dar
espaço à criança para a criança também se colocar, contar suas histórias, a criança tem assim
uma sede, uma vontade... e algumas coisas mexem e elas tem assim um desejo muito grande
de contar, elas precisam se colocar e eu me porto enquanto isso, até como uma pessoa que
sabe dessa importância, e é como profissional mesmo, da importância desse falar das
crianças mesmo para desenvolver até mesmo a oralidade delas, desenvolver uma série de
coisas, e eu me comporto em relação a isso é como profissional sabedora da importância. Eu
também conto histórias, gosto muito de contar histórias também, eu gosto muito também de
fazer teatro com eles, tenho feito muito teatro e fico muito feliz... como tem criança que
encontra comigo e pergunta: “Tia, você ainda conta aquelas histórias, ainda faz teatrinho? Eu
257
queria voltar para alfabetização para fazer aquele teatro”, porque teve um período muito
grande que eu contava a história e depois eu recontava e eles iam fazendo a mímica, eles
iam fazendo gestos e eles amavam, criança ama fazer esse tipo de teatro através de
mímica...Eu normalmente uso o livro. Depois de um tempo a gente consegue contar história
de cabeça... mas normalmente eu conto com o livro, mostrando figuras, normalmente é assim.
Pergunto qual é o espaço para isto na escola...
Infelizmente, o que eu sinto é que ao longo das séries isso vai se perdendo, a gente está
ficando assim tão pressionado com essa questão dos conteúdos e ter que dar conta de algumas
coisas que a coisa vai ficando difícil, até por isso que eu normalmente faço a opção de estar na
alfabetização, porque na alfabetização, alfabetizar, letrar, contando histórias, cantando,
dançando, dramatizando... é muito mais fácil e quando a gente encontra prazer a gente...
encontrar melhor o espaço para isso, a gente faz isso assim com muita tranqüilidade, sem peso
na consciência... e depois vem aquela cobrança, tinha que ter dado isso, ele tem que estar
assim e não está, entendeu? E isso é muito complicado porque depois vem... não adianta,
mesmo nós trabalhando com ficha (de avaliação) como nós trabalhamos, mesmo assim, você
tendo que preencher uma ficha mas a avaliação, ela existe... a cobrança, a meta, ela existe. E
a gente, enquanto profissional se sente muito pressionado a dar conta daquilo e a gente
acaba tomando algumas decisões e alguns caminhos, com menos tempo, reservando menos
tempo para as memórias, para as narrativas, para contar, para conversar.
Peço que Joana fale sobre seu sentimento de narrar nesse momento essa parte de sua vida...
A gente parar... e hoje a gente corre tanto, nossa vida é uma correria, uma loucura. A gente ta
sempre ligado, assim antenado em tantas coisas que a gente tem para fazer e chega numa tarde
como essa de quinta-feira às quatro horas da tarde, e a gente parar para contar da nossa vida
desde de trás, traz assim um sossego, uma calma... relaxa... uma tranqüilidade... é muito
gostoso, é muito bom.
Lia
A escola pra mim sempre teve uma importância muito grande na minha vida, desde pequena.
Eu com nove anos transformei a oficina do meu pai, que era técnico de eletrônica, numa
258
escolinha pra dar aula pras crianças... pros meus coleguinhas e pras minhas irmãs. Então, eu
levei uma bronca do meu pai, por causa daquela coisa, eu afastei tudo, botei as carteiras,
coloquei um quadro, que a gente tinha um quadro negro na minha casa. Minha família é de
pessoas que estudam, meu pai sempre gostou de estudar, minha mãe sempre leu muito, então,
a escola e estudar, ler, sempre foram ações muito importantes na vida da gente. Uma família
numerosa, cheia de crianças, então a gente brincava muito e eu adorava brincar de ser a
professora, a diretora da escola, isso eu me lembro bem marcado, desde os meus nove anos de
idade. Por outro lado, eu tinha um pai autoritário demais, que não me deixava brincar na rua,
nem os meus irmãos, então a saída pra ir pro colégio, desde o jardim de infância pra mim era
uma liberdade de ver a rua, chegar na escola, de estar com outras pessoas de aprender... então,
tudo pra mim era novidade, era uma coisa interessantíssima, aqueles carimbos que a
professora botava pra escrever a-e-i-o-u dentro, tudo, eu achava maravilhosas as professoras,
todas as professoras que eu tive eu adorava. Era aquela coisa do colégio... a hora do recreio,
era uma escola muito grande a minha escola, então a gente saia todo mundo pro pátio na hora
do recreio. Então pra mim era uma festa ir pra escola, eu sempre fui pra escola com alegria,
com felicidade, aquela coisa, a tia... ai eu adorava ir pro colégio, odiava as férias escolares
porque eu queria estar dentro da escola. Também teve uma coisa que me marcou muito dentro
do colégio por conta da figura do meu pai que era uma pessoa que quando a gente fazia
qualquer coisa que ele não gostava, a primeira coisa que ele falava era: Cala a boca! E quando
eu cheguei na escola que as pessoas começaram a... a gostar do que eu escrevia... não posso te
dizer precisamente quando... mas eu me lembro, assim, pelas minhas redações, eu tirava notas
altas, então a minha palavra... pra mim, eu comecei a ver a importância que as pessoas davam
na escola, então, eu era sempre assim considerada uma das melhores alunas, tirava nota boa, o
colégio pra mim era uma coisa muito boa e me identificava muito, me sentia bem ali dentro,
enquanto em casa tinha aquela... era tolhida e toda atenção dividida por sete filhos, na escola
eu me sobressaia e isso fez da escola também um local muito bom pra mim. Quando eu
comecei, por exemplo, a ler, que eu lia bem, que as professoras me pediam pra ler, eu via um
outro lugar de falar que era interessante. Então, escrever, ler, estudar, tirar nota boa, sempre
foi uma coisa importante pra mim, que eu via, eu dava importância a isso. Eu era uma aluna
aplicada, não tive problema nenhum em escola, nunca tive problema de nota, problema de
ficar preocupada, de fazer prova, de ficar nervosa pra fazer prova, porque eu me dava bem.
Então eu tive um período de escolaridade muito, assim, proveitoso, tirava notas boas e tal.
Quando foi chegando assim na adolescência a gente começa a relaxar um pouco, começa a ter
outros interesses na vida, mas ainda assim minhas notas eram boas e tudo mais, eu comecei a
259
pensar no que ia fazer depois da oitava série e naturalmente me veio a idéia de ser professora.
Numa seqüência de ser a terceira filha, eu fui a primeira a escolher o magistério, eu não fui
influenciada por ninguém, a irmã mais velha fez um curso científico, a outra fez secretariado e
eu quis ser professora. Então foi por vontade, por escolha, não foi por imposição de pai e mãe,
por nada gratuito como naquela época, na minha turma tinha muitas colegas que o pai
matriculou, a mãe quis que fizesse o curso normal, que queria que tivesse uma profissão. Eu,
não. Fiz por escolha. Com 17 anos eu peguei a primeira turma na prefeitura da minha cidade
que é Nova Iguaçu e tinha um contrato e nós ficamos, a minha turma toda foi assim pegar esse
contrato, pra ganhar um dinheiro e trabalhar e pra mim foi uma alegria, peguei a turma
sozinha, aos dezessete anos eu comecei a alfabetizar numa escola da prefeitura, uma escola
mais distante do centro que era onde tinha vaga naquela época e também foi uma coisa que eu
adorei. Então sempre teve a escola, tudo ligado à escola e ao trabalho de professora, pra mim
sempre foi uma coisa agradável, boa, eu sempre fiz com prazer, sempre foi ligado ao prazer.
Então, o que aconteceu? Terminei o curso normal, né, formação de professores, fiquei entre
fazer a Biologia, que era o que eu gostava, a Língua Portuguesa que eu também tinha um
fascínio e era muito boa aluna em Português e fiquei naquela coisa de fazer psicologia mas
pra compreender o processo de construção de conhecimento nas crianças, essas três áreas
do conhecimento sempre foram áreas do meu interesse... eu optei por fazer biologia porque
eu pensei na coisa profissional, a Língua Portuguesa eu achei que seria mais maçante o curso,
mais chato e eu tinha uma atração pelas coisas da natureza muito grande, então a biologia eu
poderia dar aula em qualquer grau de ensino em qualquer série, a psicologia me limitaria a
trabalhar no ensino médio, hoje ensino médio, segundo grau, em curso de formação de
professores ou outros cursos que por ventura tivesse essa cadeira. Então eu também pensei
nisso e conversei com pessoas na época e vi e que me falaram: “você gosta de biologia, então
você vai poder trabalhar com essa matéria em tudo que é área de ensino”. fui fazer o curso
de Ciências Biológicas. Estudei inicialmente numa faculdade particular que era a Faculdade
de Humanidades Pedro II, a antiga Fahupe. Quando eu tava no segundo ano da Fahupe eu fiz
vestibular e passei pra UERJ, era uma alegria estudar numa faculdade estadual que eu não
pagava, mas, por outro lado, eu queria trabalhar e aí um dos concursos que eu tive acesso...
porque eu fiquei quatro anos formada sem ter concurso, pro Estado, pra prefeitura do Rio ou
pra prefeitura de Nova Iguaçu, eu fiquei esperando... eu fui funcionária do IBGE, fiz concurso
pro IBGE, passei, trabalhei um ano e quatro meses no IBGE, assim que teve o primeiro
concurso do Estado, as pessoas falaram que eu era louca, que eu... ganhava 96 mil cruzeiros,
sei qual era o dinheiro naquela época, e saí pra ganhar no Estado 21! Então, todo mundo:
260
“Você é maluca! Você é doida, sair do IBGE, quem é que sai de uma profissão concursada do
IBGE?” Mas eu fiz isso. Na época que eu optei por ser professora do Estado foi quando eu
passei pra UERJ. Ainda dava pra conciliar, mas aí eu fiz o concurso pro município do Rio e eu
optei por trabalhar, eu poderia ter ficado na UERJ e dando aula no Estado, mas eu preferi ser
professora do município do Rio e voltar pra Fahupe pra terminar minha faculdade de biologia
na Fahupe, então terminei a faculdade de biologia. Assim que eu acabei a faculdade de
biologia eu tive a oportunidade de fazer o curso de Pedagogia na UERJ que era um curso pra
quem tinha uma licenciatura plena, era um curso chamado PCP, você escolhia uma das
modalidades, ou supervisão ou administração escolar e eu fui fazer administração escolar. Fiz
o curso de pedagogia na UERJ. Nesse meio tempo eu fiz vestibular e passei pra psicologia na
UFRJ, na Praia Vermelha. Mais uma vez o magistério foi mais forte pra mim e eu
abandonei no quarto período a faculdade de psicologia e terminei a pedagogia porque elas
ficavam concomitantes num determinado tempo, então eu falei: “Ah, não pra fazer tantas
graduações e eu quero mesmo é ser professora”, isso sempre foi uma idéia definida dentro da
minha cabeça, então eu vou me aprofundar naquilo que eu quero fazer que é trabalhar mesmo
com alunos. uma outra área, uma outra coisa importante nisso tudo é que eu sempre tive
vontade apenas de trabalhar com crianças ou com formação de professores que trabalhariam
com crianças, eu nunca tive vontade, assim, de trabalhar com ensino médio, essa coisa de ser
professor I, professor I de trabalhar com aluno de quinta em diante porque professor II que é o
que trabalha com as crianças pequenas de C.A. à quarta série era relegado a segundo plano,
isso nunca me incomodou. Então, o que aconteceu? Embora isso fosse uma realidade, tivesse
uma carga horária menor que até atraísse naquela época, você trabalhar com quinta à oitava
você pode trabalhar três dias por semana, enquanto que a gente fica presa a semana toda
quando é professora de C.A. à quarta série, mas eu sempre gostei muito dessa coisa de início
da escolarização com as crianças, eu centralizei o meu foco em crianças e na escola pública.
Eu nunca pensei também em trabalhar em escola particular, eu sempre quis trabalhar na escola
pública, dedicar o meu trabalho e a minha atividade às crianças da escola pública. Não sei se
talvez a escola pública eu achasse assim que... na escola particular não era o tipo de trabalho
que eu queria, eu queria atender a uma clientela mais necessitada, sabe? Eu falo sempre assim,
que a escola particular qualquer pessoa poderia trabalhar, ou qualquer pessoa gostaria de uma
escola boa, uma escola estruturada ou com mais condições de trabalho, então a escola pública
é aquela escola pra professor que quer ralar e que quer tirar alguma coisa a mais ou trazer
alguma coisa a mais pra aquelas crianças. Também isso foi outro fato consumado em mim, eu
jamais gostaria ou pleitearia trabalhar numa escola particular, qualquer que fosse, da melhor
261
ou da escolinha de bairro, do Jardim de Infância, nunca pensei, pra mim eu queria ser
professora da escola pública. Então, com o passar do tempo, dentro do município do Rio eu
aprendi muita coisa como professora do município do Rio, o município na época que eu
trabalhei foi um... hoje eu não sei porque não acompanho o trabalho do município mais... mas
tinha muitos seminários, muitos congressos, muitos cursos, e eu fazia tudo que vinha, eu
queria aprender tudo, eu participava de tudo quanto era projeto, tudo que a escola pudesse me
liberar ou que eu pudesse participar porque tinha horário eu participava. Então eu acho que o
município foi uma grande escola, ali dentro eu senti mais intensamente uma tentativa de
mudança de uma escola tradicional para uma escola construtivista, no iniciozinho, assim, a
partir de um projeto que o município trazia, o construtivismo em termos assim como um
projeto em turmas que tava começando a ter um trabalho diferenciado, até assim um estudo
mais aprofundado de autores e tudo mais. Eu comecei a ver o trabalho na escola de uma outra
maneira que não fosse aquela coisa empacotada que eu tinha estudado, que eu tinha visto no
curso normal e que eu fazia dentro da minha sala de aula. No Estado, por outro lado, eu
trabalhei pouco tempo com turma, três anos só. Eu fui pra uma escola, eu trabalhava no
município do Rio e fui pra uma escola que precisou de mim na parte administrativa. Então eu
vi todo o lado administrativo de uma escola Estadual. Fui auxiliar de secretaria, fui secretária,
encarregada de nutrição escolar, fui responsável pelo departamento pessoal, fui diretora
adjunta e algumas vezes substitui a diretora, a diretora geral da escola por problema de
doença, por gravidez que ela teve, então eu vi o trabalho dentro de uma escola, dentro do
sistema público de ensino, em todas, praticamente em todas as funções, então eu tive uma
visão geral. A escola do Estado me deu essa visão da parte administrativa, pedagógica. Daí
dessa escola, eu trabalhei 10 anos ou 11, não me lembro direito, eu fui pra um CIEP ser
diretora pedagógica, abraçando outro projeto que era o segundo projeto especial de educação
dos Cieps. Então o que eu posso ver de mim nessa trajetória é uma pessoa que sempre
buscando... buscando, buscando alguma coisa nova, alguma coisa que me trouxesse aquele
alento de que a escola pública pudesse ser uma escola boa. Com isso, naturalmente eu cheguei
ao Pedro II porque no imaginário social esta escola se inscreve como uma escola boa, uma
escola de qualidade. Eu queria saber o que essa escola tinha, sendo pública que era uma escola
que dava certo. Eu não tinha idéia do Pedrinho ter essa separação do Pedrão até então. Eu ...
ah o Pedro II, o Pedro II, essa coisa, entre aspas, que a gente ouve todo mundo falar e que...
meu próprio pai pensava “poxa, minha filha trabalhar no Colégio Pedro II...” que é aquela
escola que é um altar, digamos assim, de sabedoria. Quando abriu o concurso pro Pedro II eu
falei “vou tentar ver o que essa escola tem de melhor do que as escolas estaduais que eu
262
passei, as da prefeitura do Rio e as particulares que eu tenho notícia”. Aí, fiz o concurso e vim
parar aqui no Pedro II. Então, inicialmente eu saí do município do Rio porque o município me
prendia todas as manhãs e no Estado, nessa época eu era secretária de uma escola de ensino
médio, numa escola técnica, eu tinha saído do Ciep e tava nessa escola técnica. eu ainda
fiquei um tempo com quarenta horas no Pedro II e nessa escola porque eu queria ter certeza
do que eu ia querer, se era trabalhar numa escola estadual dentro da minha cidade ou ir pro
Pedro II numa cidade que eu conheço, nasci no Rio de Janeiro, tenho irmãs e a vida do meu
pai foi aqui, mas era um ambiente, uma história diferente pra mim, até... trabalhei no
município do Rio mas na Zona Norte, na área de favela, bem dentro da favela do Acari, então
é uma realidade diferente daqui e do que é o Pedro II. Nesse bairro, o Pedro II é um marco,
assim como a Quinta da Boa Vista, o Observatório Nacional, então entrar naquele espaço ali e
ser uma professora a mais ali dentro, era um desafio também pra mim, eu queria ver o que nós
vamos... entrei aqui muito timidamente no início, vi um grupo de professores assim que
parecia que sabiam tudo, que comandavam aquela escola, que eram parte da história daquela
escola, porque tinham ajudado a fundar o Pedrinho.Aquele grupo eu admirava mas ao mesmo
tempo eu me sentia assim pequena diante delas porque elas sabiam tudo da escola e eu até
hoje não sei... até hoje eu não sei... porque assim, o quê que é esse Colégio todo... como elas
conhecem, eu vejo como que muita gente ali conhece porque a vida apenas aqui, muitas, né,
elas têm essa escola como a vida delas mesmo. Eu não vejo o Pedro II na minha vida como
uma coisa tão primordial como eu vi por exemplo o Colégio Estadual... que foi esse que eu
passei dez anos em Nova Iguaçu, como o Ciep que eu passei pouco tempo mas que eu ajudei a
implantar, como a minha escola do município que eu trabalhei no Jardim de Infância que foi
essa, como eu falo, a grande escola na questão da construção do conhecimento infantil. Então
eu não vejo... eu vejo o Pedro II às vezes, por muito tempo eu o vi, como se eu tivesse
aprendendo aqui dentro, eu tava contribuindo com o que eu sabia mas eu tava muito mais
aprendendo do que ensinando, então aqui... pode parecer paradoxal pelo que eu falei, mas não
é... eu digo assim: eu parecia uma aluna aqui, no município eu tava aprendendo mas eu era
a professora da turma, aqui eu era uma aluna vendo as colegas trabalhando, eu tava me
apossando da filosofia daquele colégio, eu tava vendo uma estrutura totalmente diferente da
que eu vivi, porque no início eu achava interessante demais e hoje eu não sei se é tão
interessante como eu vi quando eu cheguei... “ah, certo porque tem tudo assim, tudo é
compartimentalizado, tudo é dividido, tudo é por conteúdo, é separado por áreas, as equipes
trabalham ali ,mas elas quase que têm contato com a equipe em si, a equipe da segunda
série, a equipe da primeira série”, enquanto isso nas outras escolas que eu trabalhei era tudo
263
assim um tanto misturado, a gente tava ali, todo mundo, tinha uma intimidade grande,
enquanto que aqui a gente assim que até na relação humana a gente se envolve muito com
as pessoas num determinado ano, no ano que vem você ta noutra equipe de outra série e você
quase não tem mais contato com essas pessoas, você passa no corredor fala oi correndo, você
tem até saudade, tem vontade de conversar, saber como é que ta a vida porque você se tornou
íntima e a escola não te proporciona por essa estrutura toda dividida... aquela grade curricular
toda dividida, sete tempos pra matemática, sete tempos pra LP, quatro tempos pra Ciências,
quatro tempos pra ES, também tem o lado bom que talvez obrigue as pessoas a trabalhar com
os conteúdos. Por outro lado você não pode abrir muitos os leques porque você tem aqueles
conteúdos. Então, a gente sabe que essa escola certo, é uma escola boa, a gente que tem
muita coisa boa aqui que a gente não em outras escolas públicas, mas você paga preço por
essa estrutura da escola, um preço de que a sua liberdade é cerceada como professora, você
não tem muito como inovar ou pra trazer coisas além daquilo ou diferente daquilo, porque
todo mundo vai compartilhar, que aquele momento vai ter que ser aquilo dali, aquele conteúdo
tem que ser trabalhado, a turma ta exigindo um pouco mais outra coisa mas você tem que
fazer aquilo ali, você tem a prova, você tem ano que te a P.U (prova única), você tem a data
pra entregar a nota, então eu acho que essa escola tem muita coisa boa mas ela também ela
tem as nossas prisões, nós temos as nossas prisões aqui dentro, várias prisões: do calendário,
do horário, de combinações, essa muita estrutura que a gente aqui, em comparação que eu
falando com as escolas pelas quais eu passei, ela te causa umas prisões,. Mas... ai o que eu
encontrei, fui muito timidamente, mas mesmo assim eu acho que a gente ainda quando quer
fazer alguma coisa você ainda consegue burlar um pouco as coisas. Então o que eu vim
fazendo?, colhendo dados ao longo desses doze anos que eu estou no Pedro II. No início eu
fui bem aluna daquilo que eu cheguei e vi, com o tempo eu comecei a dar certas opiniões, a
me mostrar mais, a trazer mais contribuições, eu sabia que eu era capaz mas eu tinha aquela...
sei lá, um pouco de vergonha, um pouco de medo... sei lá... de receio de que as coisas que eu
trouxesse não fossem bem recebidas e depois eu fui vendo que as pessoas que chegam
também elas vão mesclando, não era aquele grupo que trazia, até a gente trazia, nós
novatas, digamos assim, trazíamos contribuições pra elas, pras pessoas que tavam aqui
antigas. Então eu fiz uma parceria, pro que eu sou hoje aqui na escola, professora do ensino de
Ciências, hoje eu me vejo bem estruturada dentro do ensino de Ciências com um vínculo
maior com a linguagem e agora eu trasito pela matemática que eu achava que nunca ia ter,
pelo jeito que se trabalhava aqui, diferente daquela coisa muito tradicional que eu via lá fora...
eu fiz uma parceria com o Ednilson na época, que era um trabalho de Lp que não é o meu
264
trabalho, não sou assim tão rígida nas coisas como o Ednilson mostrava, assim, não é rigidez
no sentido de crítica que eu tô fazendo, eu tô dizendo que meu trabalho era diferente, porque o
Ednilson fazia um trabalho bastante tradicional em termos de gramática, ao qual eu tenho
minhas dúvidas se aquilo é pra ser assim ou não... mas o Ednilson... nós fizemos uma parceria
com o ensino de ciências que deu muito certo na época, então ele trabalhava assuntos de
ciência na LP e eu trabalhava assuntos de LP em ciências, e a gente viu que aquilo dava um pé
grande pra trabalhar, eu comecei a ver que era um gancho legal pra... porque então ciências
tinha que ser trabalhado junto com matemática e LP com ES. Tempos depois eu tive uma
experiência legal com a Lívia, foi porque a Lívia gostava de mat e de ES, pela própria
formação dela e eu gostava da linguagem e de ciências, então a gente trocou. foi uma
mudança que a gente fez até então estruturada e nós éramos do mesmo concurso, a Lívia
chegou um pouquinho antes mas a gente também era nova, digamos assim, eu e ela éramos
novas diante daquele quadro que tinha aqui. Então foi uma coisa que deu certo, que foi
avaliada como uma coisa positiva na época e tal. também teve o laboratório, dentro do
ensino de ciências também era uma coisa que me atraia mas também tinha suas peculiaridades
que eu também não... tinha umas coisas assim que eu não gostava muito, aquele trânsito... o
professor de laboratório ele recebe várias turmas, vários grupos, você não tem tempo de
conhecer as crianças, fica a figura da professora que não participa tanto da aula e nem
participa sempre dos planejamentos do laboratório, então a gente fica com aquela... primeiro
eu tinha a impressão de que elas estavam ali me avaliando, você sente isso quando trabalha
no laboratório, existe uma avaliação o tempo todo da professora, um olhar que pode ser crítico
sobre o quê você ta fazendo. eu pensava assim:”Poxa vida, será que tudo que eu faço ta de
acordo com o que ela queria, ou não?”, Você, por outro lado não agrada todo mundo, mesmo
se você fizer tudo perfeitamente vai agradar, é claro que tinham professores que queriam que
encaminhasse o trabalho de outro lado... mas aos poucos... eu sofri no início, quando eu
abracei essa atividade do laboratório eu vinha trabalhando como professora de ciências que
participava do laboratório, eu percebia... eu achava complicado esse trânsito de criança toda
hora entrando e saindo do laboratório. Por outro lado, como professora de turma eu queria ter
maior autonomia de fazer experiências lá no laboratório, porque o horário do laboratório é tão
fechado que se eu quiser fazer uma experiência, um outro trabalho qualquer dentro do
laboratório, eu não posso fazer porque ali dentro tem a turma que ocupa aquele espaço. Mas,
voltando à atividade em si do laboratório, é uma atividade que mais me chama a atenção na
atividade de laboratório, é como as crianças gostam de ir pro laboratório, então aquele espaço
precisava ser trabalhado da melhor maneira possível. Eu via ali uma coisa muito direcionada,
265
o trabalho muito orientado, as crianças podiam chegar àquela resposta daqueles relatórios,
então começou a me interessar muito aquele trabalho da aula de ciências no laboratório. Por
outro lado, na aula de ciências na sala de aula eu queria enxertar com o trabalho do
laboratório, com trabalhos experimentais e a gente nitidamente a aula teórica na sala de
aula e a aula experimental dentro do laboratório, então eu comecei a pensar naquilo e a
procurar estudar, me aprofundar. Quando foi em 2002, sete anos depois que eu tava aqui no
Pedro II, ia fazer sete anos em setembro daquele ano, eu resolvi fazer um curso de
especialização em ensino de ciências na UERJ pra ver o que o meio acadêmico tava fazendo
de novo naquele campo que pra mim era novo, então eu fui estudar. E eu tive contato com
professores, com conteúdos que trabalham o ensino de ciências via linguagem, de música,
de filme, plástica, teatro, eu vi outras coisas que começaram a se somar dentro de mim. Não
era aquela coisa de prática de laboratório a partir de um relatório que vem feito, que
vem mimeografado ou xerocado, seja lá o que for, aquela coisa, aquela folhinha pronta... fazer
três quatro experimentações no mesmo dia... muita coisa... e eu comecei a pensar naquilo
ali... Hoje eu sou, continuo sendo uma estudante do ensino de ciências e vou continuar sendo,
isso não vai acabar assim tão cedo pra minha vida mas vejo que não é fácil a gente trazer as
idéias novas mas não é impossível. Hoje eu vejo o Pedro II como uma escola de aprender,
continuo aprendendo, e de ensinar, eu continuo ensinando, nisso aí você precisa romper certas
coisas, lançar mão de uma coisa como um desafio pra poder fazer, não é tão fácil, não é tão
simples, vide doze anos passados, não foi de um dia pro outro, mas um pouco de cada um, um
pouco de mim eu acho que também vai ficar. Hoje euvejo que o meu trabalho no ensino de
ciências e talvez também da linguagem quando eu trabalhei, não vejo com medo, vejo
que ele contribui, contribui para a escola, pra modificação de alguma coisa, é um trabalho que
traz alguma contribuição, eu não vou querer ser inesquecível pra escola, porque escola te
passa, você fica 25 anos dentro de uma escola daqui a pouco chegam outras pessoas. Hoje o
Colégio ta totalmente diferente do que era quando eu cheguei aqui pelo grupo que a gente ta
vendo hoje em dia aqui, pelo grupo que ta administrando, é uma escola diferente. Eu não vejo
o Pedro II mais como eu via naquela época, mas acho que todo mundo tem sua parcela de
contribuição e eu tô dando a minha, até o dia em que eu sair daqui.
Pergunto se Lia já passou pela coordenação no CPII...
Não e nem quero passar. fui convidada várias vezes, mas eu não quero passar, não tenho
vontade nenhuma de passar pela coordenação. Eu acho ainda o trabalho com as crianças a
266
parte mais interessante do magistério, o trabalho direto com o aluno e eu acho difícil até numa
escola estruturada como aqui é hoje... talvez se eu... a gente como isso é... a relação de
poder talvez que esteja impregnada em mim, mas não que ela me atraia não, mas eu digo
assim se fosse um grupo de contratadas chegando aqui agora talvez eu tivesse mais liberdade
de ser uma coordenadora que eu pensasse que ia dar certo... acho corajoso as meninas que
chegam agora e pegam a coordenação porque eu acho difícil você coordenar as antigas, não as
novatas, não aquelas que... a metáfase que nós somos, acho que a minha geração é a metáfase,
pegou no meio do caminho, a nossa geração... eles tinham metade do caminho e eles têm
também agora um pouco de nós. Aquela primeira geração que era toda da escola, eu acho que
hoje elas já não assustam tanto e elas estão um pouco fragmentadas. até porque elas viram que
a escola ideal é utópica. Eu acho que elas já caíram em si, muitas dessas pessoas, eu identifico
a maioria delas do que um ou outro grupo que existe dentro da escola mas eu digo assim:
muitas viram que a coisa é árdua, não é construir uma escola, romper aquilo que elas
queriam, que elas pensavam que ia ser o Colégio, e hoje ta muito diferente porque chegou
muita gente diferente que vai embora, que não tem a mesma responsabilidade que a gente tem
com a escola, então essas pessoas saem, algumas contribuem, outras, como eu ouvi de
pessoas aqui dentro falar assim: “ah, eu vim pra ficar esse tempo mas eu sei que eu vou
embora, então não vou me matar, eu não quero... não me preocupo com isso, eu não vou fazer
concurso pra cá...” , algumas não fizeram, outras fazem não passam, se iludem, porque vêm
isso aqui como um bicho papão, que é difícil entrar dentro desse quadro, fazer parte desse
quadro... então eu não tenho essa vontade de ser coordenadora aqui. Eu ainda gostaria de
trabalhar na área de pedagogia em si, mas dentro da formação de professores, sabe, nos cursos
de formação de professores. Acho que a gente tem muita coisa pra contribuir, que a nossa
visão do Colégio tem seus lados, o início, o meio e agora temos um ocaso momentâneo que o
Colégio ta passando e penso assim, eu não digo que é ruim não. O trabalho aqui pra mim
continua sendo bom, sendo uma escola pública eu ainda vejo o trabalho do Pedrinho como
uma escola muito boa mas eu vejo que a estrutura vigente hoje aqui dentro de muita gente de
fora que vem e vai, esse trânsito de pessoas que chegam, que saem... a gente tem um montão
de gente nova que eu nem conheço, eu não sei o nome dessas pessoas, eu trabalho com uma
nova, então daqui a dois anos ela vai estar fora daqui, isso eu acho que ta mudando a cara do
Colégio, também essa coisa de muita gente estar buscando outras... outras coisas pra fazer na
vida, do grupo antigo... mas também eu acho que isso é uma coisa natural num local onde fica
e vem, onde vem e vai pessoas, onde chegam e saem pessoas, a escola é assim, não é uma
empresa, que você fica ali que você entra e com 20 anos vai se aposentar, embora isso não
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seja mais o modelo dentro do nosso país, você pouco se aposenta em empresa particular, mas
sei lá, eu acho que a escola ta passando por uma fase de modificação, o Colégio não é mais...
não tem mais... talvez dentro de mim o significado dele hoje não é mais como era quando eu
entrei doze anos atrás, eu acho que a cara da escola está mudada, até os alunos... quando a
gente entrou aqui tinha tantas crianças filhas dos professores, hoje a gente que o professor
que mora mais longe prefere deixar seu filho na escola perto de casa porque é meio
complicado trazer as crianças pra cá... apesar da maioria ainda fazer isso mas, sei lá, parecia
que as pessoas apostava mais no colégio, parecia que as pessoas apostavam mais naquilo que
se fazia aqui. Hoje a gentepessoas reclamando que o contrato acaba no meio do ano, então
a professora vai embora, isso ta acontecendo todo ano, as pessoas ficam pensando: “ah, aquela
turma de repente vai sofrer aquela perda, de conteúdo, de professor, por causa de greve, por
causa de... tem n fatores que eu não pensava que encontraria aqui quando eu cheguei, eu
achava que era uma coisa mais sólida e hoje eu acho que não é, que o Pedro II passa também
por suas crises, suas mudanças, tem umas que podem não ser tão boas qto a gente pensava que
pudesse ser e outros problemas mais que a gente passa aí.
Peço que Lia fale sobre sua relação com as narrativas na infância...
Ah, sim... Meu pai contou muitas histórias, meu pai foi um contador de histórias, porque
talvez ele quisesse todo mundo ali perto dele, então ele juntava a gente e contava muita
história... Monteiro Lobato, a gente tinha a coleção do Monteiro Lobato. E contava histórias
da vida dele, sempre a vida do meu pai foi uma vida cheia de histórias interessantes, então ele
contava da vida dele, do meu avô, dos meus avós, meus quatro avós, sempre teve muita
contação de histórias, muita narrativa dentro da minha casa. Livro sempre foi uma coisa que a
gente ganhou e a gente contava uns pros outros, histórias dos livros que a gente lia, entre os
irmãos e com os colegas que vinham na nossa casa, porque a nossa casa sempre foi cheia de
criança, sempre esteve cheia de criança de fora, porque ele não deixava a gente sair pra rua,
mas as crianças vinham, então a gente contava história, sentava todo mundo e ouvia, lia
livro... e tinha... sempre vimos os nossos pais lendo, então tinha muita coisa assim pra contar,
nós repetíamos as histórias deles, até hoje a gente repete histórias pros nossos sobrinhos e
eles gostam de ouvir a gente contar histórias daquela época que papai contava...
Pergunto como lida com as histórias na escola, contar histórias pros seus alunos...
268
Bem, eu fui uma contadora de histórias diária quando eu era do Jardim da Infância, então
aquilo pra mim era primordial, eu adorava contar histórias, achava super importante, acho
muito importante isso pras crianças... dentro do Pedro II hoje naquilo que eu faço, eu conto
coisas pra eles da minha vida, conto coisas que eu escuto, conto... outro dia eu tava contando
pra eles... por causa de uma aluna chamada Sthefany, eu fui chamar ela de Stephany de
Mônaco e isso... chamei umas três vezes, contei a história da música do Paulo Ricardo, as
crianças amaram! Eles queriam saber... eu tava contando a história, o enredo da música lá, o
tema da música, eu contei aquilo pra eles e eles começaram a perguntar do Paulo Ricardo, da
época do rock dos anos oitenta, da princesa de Mônaco, da Sthefany de Mônaco, da família
real de Mônaco, então foi uma contação de histórias que eu acho super legal e não tinha nada
a ver com a minha matéria que é ciência, né, então eu gosto de contar, que eu acho que
falta, esse tempo fica muito restrito a LP, eu faço isso mas eu vejo... às vezes eu fico com
medo de estar extrapolando o tempo, porque você tem que parar... as crianças pediram pra eu
trazer a letra da música pra gente cantar na sala e eu joguei pro dia 4 de setembro quando
vai ter uma festa de uma menina e eu vou trazer o disco pra gente ouvir, então isso é uma
coisa pequena... mas tem umas histórias que surgem assim que eu conto... contei a história da
Dona Gladis Mary Periard Silva que foi a minha professora da segunda série que pegava a
régua e batia assim: pápápáp-á... pras crianças calarem a boca... um dia eles estavam falando
muito na 401, eu falei: “olha eu vou incorporar a Dona Gladys aqui”, “Que que é isso, tia?”,
eu falei “Dona Gladys era uma professora que eu tinha que usava laquê, sabe o que é laquê? A
maioria não sabia o que era laquê... “um troço pro cabelo ficar armado”, Dona Gladys usava
no cabelo e batia com a régua, então eu sentava na frente dela, na carteira em frente à mesa
dela. Ela quebrava a minha régua porque ela batia pápápá, ela tinha a dela, quebrava a dela e
quebrava a de quem tava perto, batia pra gente calar a boca. Então a gente falava, mesmo
no ensino tradicional em 1968 que foi quando eu estudei com a Dona Gladys tinha
criança... porque ela usava a régua pra gente calar a boca... achei interessante que hoje eu
cheguei na sala e eles falaram: “Tia, como era mesmo o nome da sua professora? Bate com a
régua na carteira”, brincando, né, e eles quiseram saber de Dona Gladys, um nome tão
diferente: Gladys Mary Periard Silva e eles quiseram que eu repetisse o nome... então eu acho
que isso tudo é narrativa que a gente vai construindo, dentro da sala de aula... eu gostava de
fazer histórias com os murais, contar a história dos murais com as crianças... teve um ano aqui
na escola, no Pedro II que eu trabalhei com horta que no final a gente construiu uma história.
As crianças foram narrando a história da semente de feijão que foi plantada e que eles
observaram, nasceu o caule, a raiz, a folha, a flor, o fruto e depois nasceu a semente que é
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feijão de novo, então a gente fez a história. Eu sempre gostei muito de contar, de ouvir as
crianças contando histórias também, gosto muito até hoje, você que o meu trabalho
(dissertação de mestrado) é a fala das crianças. Sempre dei uma importância pro que as
crianças falam mas não muito tempo, a gente fica presa aos conteúdos e àquela coisa toda.
Você não tanto espaço como você gostaria de contar histórias, de ler livros pra eles, de ler
livros interessantes que falem dos cientistas, por exemplo. Agora ta rolando o tema da ciência
no quarto ano, na terceira série, então tem tanta história pra contar... eles não sabem que o
Einstein foi no Museu da Vida no Instituto Oswaldo Cruz, eu acho isso um dado legal,
quando eu cheguei e vi aquilo, o Einstein em tamanho natural que tem dentro, você
viu? Lá dentro tem ele junto com Carlos Chagas, é uma coisa interessante e eu queria falar pra
eles que não tem tanto tempo, então tem bastante coisa que a gente tem até pelas nossas
vivências, e eles também têm da vivência deles que a gente não tem tempo de narrar e não tem
tanto espaço assim porque a gente ainda é impregnado de conteúdo, ensino tradicional,
modelo triádico, aquela coisa toda que atropela isso tudo... o tempo inteiro ele é estruturado e
tem aquela cobrança em cima, então você... essa estrutura acaba que você administra mas tem
uma pessoa que administra o que você ta fazendo, tem uma prova que você vai ter que dar
conta, então realmente fica mais limitado, você sabe como é isso...
Peço que Lia fale sobre o que achou de participar da pesquisa contando sua história...
Eu... como isso ta sempre relacionado ao prazer que eu tenho na minha vida, acho que eu
nasci pra fazer isso, não me vejo fazendo outra coisa na minha vida assim em termos de
trabalho, então foi com muito prazer que eu fiz isso (dar a entrevista) como também a certeza
de que eu possa estar contribuindo pro seu estudo, o contar a minha vida cheia de emoção,
porque eu falei isso e me emocionei lembrando das coisas. Mesmo assim eu não penso, eu não
pensei, eu nem sabia do que se tratava o teu tema e veio assim a imagem do meu pai, a minha
imagem pequena no colégio, a imagem que foi crescendo e no que isso tudo virou hoje em dia
na pessoa que eu sou hoje, foi muita emoção, mas também tem o lado que eu vejo da gente
que quer continuar os estudos, numa fase da nossa vida que a gente ta com quarenta e
poucos anos ou quarenta e tantos que a gente ta buscando aprofundar o conhecimento, então
eu fazendo isso pra você também porque eu fiz isso pouco tempo e sei quanto é
importante a gente ouvir as pessoas que a gente... e ter elementos pra gente estudar. Um
elemento aqui, a contribuição de todo mundo... todo mundo tem... os que vão te falar vão te
dar os elementos pra você construir o teu estudo e também tem esse lado que eu achei
270
importante de contribuir com o que você ta fazendo... eu li uma dissertação sobre história
de vida mas era diferente, era sobre as coordenações, é até de uma colega da gente que
trabalhou aqui com a gente, ela fez um trabalho, ela analisou a história de vida das pessoas
que trabalhavam com orientação e coordenação escolar e foi muito legal, eu li a dissertação
dela com interesse e achei interessante ver o quanto daquilo dali ela tirou coisas pra ela
aprender naquilo que as pessoas falavam. A narrativa é a gente se reportar à memória. Como
tem coisa guardada dentro da gente, como tem coisa que a gente pode aprender com o que a
gente guardou e nem sabe que tão ali dentro presas dentro da gente... Aí que vem... na verdade
a nossa fala estrutura e organiza o nosso pensamento. Então a gente está botando o
pensamento, a gente usou o que está guardado mas a gente está organizando esse pensamento
através do que a gente está falando. Mas ao mesmo tempo está repensando aquilo que a gente
viveu e está com certeza construindo mais alguma coisa lá.
* * *
Rosa
Então... é... na minha família... eu sou descendente de... lá atrás... de africanos e índios, é uma
coisa assim que tem uma... uma... o povo do nordeste sobretudo, quanto maior for a
influência, eu acho, indígena e africana, tem mais essa coisa da oralidade passando, né? São
pessoas que tiveram pouca escolaridade, pensando... voltando na minha árvore genealógica ,
vai de nenhuma escolarização, e aí, o que a gente tem? Uma riqueza muito grande dessa coisa
da oralidade. Então, a minha família é uma família grande que tem muitos agregados e
pessoas: “Esse é seu primo, aquele é seu tio...”, é uma multidão de primos e uma multidão de
tios, porque os primos mais velhos são chamados de tios. Eu estou passando por isso agora
porque eu tenho dois primos, uma de 15 e outro de 17 que me chamam de tia. Então, o que
acontecia, tinha uma coisa divertida, né? Eu passei, eu mais do que meus irmãos, vivi muito
essa coisa de inventar histórias, por conta da questão de estar meio que aprisionada num
gesso, por conta da questão da minha bacia torta, dos meus problemas de constituição óssea,
então eu ficava muito tempo... e ficava muito tempo sozinha também, porque era a caçula,
eles iam pra escola e eu ficava sozinha. Eu chorava, queria ir pra escola de qualquer maneira,
eu ficava inventando histórias... inventava, inventava, inventava... eu era aquela pessoa que ia
271
pra janela do apartamento e ficava olhando as nuvens pra ver o que estava montando, que
histórias estavam rolando ali e aí... eu não tinha como escrever... interessante que aqui [no
Colégio] quando você pega uma turma de S.I, [primeiro ano] , você estimula neles a noção de
que pra não se perder isso, é preciso escrever e eu tinha... quando eu fui...já estava doida pra
aprender a escrever porque eu queria passar pro papel aquelas histórias que eu inventava
porque eu tinha medo de esquecer. Então, o quê que acontecia, eu ficava assim seca ouvindo
as histórias que as pessoas contavam. As coisas dos ditados também é uma coisa assim forte,
muito rico, né?... eu disse pro meu irmão, um dia quando eu voltar à Bahia agora... tem 3
anos que eu não volto, desde que minha mãe faleceu eu não voltei mais lá... eu falei: “Quando
eu voltar à Bahia agora eu vou querer voltar com mais tempo...e vou querer levar um gravador
pra gravar as coisas que a tia Odetinha fala”... o nome dela é Odete, ela na verdade é uma
agregada, filha de uma empregada antiga, que é uma coisa assim, não chegou a ser uma
empregada, era mais uma agregada porque ela tinha dificuldades... ela tinha uma filha e foi
acolhida por alguém da família de trás e fazia pequenos serviços e ficava junto, morava
junto... e ela teve essa filha continuou criada como se fosse irmã ali, então é irmã de criação
da minha mãe... e ela dizia umas coisas assim fantásticas, entendeu? Ela mexia com essa
coisa... ainda mexe, acho... com essa coisa de vidência, que é forte lá, muito mais do que
aqui... aqui é mais pra derrubar, pra tirar marido... essas coisas assim básicas... aqui as bacanas
vão e dizem que nunca foram, que não sabem, que não sei quê... aquela coisa de trago a
pessoa amada em três dias, que o cara da novela foi... mas eram coisas mais... quer dizer
também isso provavelmente... mas coisas até mais corriqueiras: saber o quê fazer. “Vai ser
bom pra mim mudar pra cidade tal? olha aí...”, então tinha a coisa de jogar o búzio, de olhar
no copo d´água. Ela trabalha muito, mexe mais com o copo d´água do que com os búzios. Eu
não sei se ela tinha passado por um percurso de feitura, mas ela é daquelas pessoas que andam
sempre com uma guia, que eles chamam de “contas”... aqui no Rio a gente chama de guia...
pendurada, onde quer que ta com aquele negócio pendurado. E aí, ela dizia que... tinha
coisa de vidência e aí ela falava umas coisas assim... ela olhou pra mim e disse: “peraí que ela
falando!”. E a minha mãe não entendeu nada, né? Quando, umas duas ou três vezes que ela
veio ao Rio, isso me chamou a atenção, porque ser a última de um elenco de cinco filhos...
Porque antigamente não se dava muita bola para o que criança falava. E era muito gozado que
ela dizia assim: “Presta atenção no que essa menina diz.” E eu tava brincando uma vez,
brincando mesmo, sozinha com as minhas bonecas e eles estavam conversando e eu disse
uma frase, dentro da minha brincadeira ali que as pessoas se calaram e vieram me perguntar
porque eu tinha dito aquilo... “Mas eu estou brincando...”. E foi uma situação chata pra mim
272
porque... “Eu fiz uma grande besteira”. “Mas eu estava aqui, não estava me metendo na
conversa... mas eu não estava nem ouvindo...” e comecei a chorar... e ela falou: “Vocês tão
assustando a criança, não é assim...”, ela me levou para um canto, ficou conversando,
brincou dali, brincou daqui... “Mas aí, você estava brincando quando falou aquele negócio,
você estava brincando, de quê você estava brincando mesmo?...” eu falei: “eu não me
lembro direito... eu sei que eu tava ali inventado uns personagens na minha brincadeira de
casinha. eu contei a minha brincadeira e ela ficou assim...”Ahhh, entendi...”, depois ela
falou: “Rosália, depois eu falo com você uma coisa”. Aí, o quê que aconteceu... desde esse
momento que eu tava brincando e disse uma coisa que todo mundo teve um troço... o pessoal
ficou meio que me monitorando quando eu ia brincar, começou a colocar mais os meninos pra
brincarem comigo porque, como eu era a única menina, ficava aquela coisa: “Ah, não vou
brincar de boneca, não.”, “A gente brinca com ela quando for não sei quê, quando for não sei
quê, mas quando for boneca não vou brincar, não.” Até que minha mãe conseguiu dar um jeito
de organizar: “Ah, olha, tem o caminhão, a boneca está se mudando, cadê o caminhão pra
fazer a mudança da boneca?”, e tal, não sei quê... ela tentou fazer uns ajustes pra tentar
integrar na minha brincadeira de boneca, mas... foi uma coisa assim...
Essa coisa da oralidade então, do ouvir dizer, dos ditados... a minha mãe vivia dizendo
ditados... a minha avó vivia dizendo ditados... e era uma coisa assim... uma coisa de educação
por conta dos ditados... outro dia eu tava dizendo: “Você pára de dormir com os olhos dos
outros”, e a pessoa me olhou assim: “Nossa, o quê que é isso?”, “Olha, dormir com o olho
do outro é ficar pensando e agindo como se fosse o outro, em vez de você agir como você,
você está entregando a vida, a sua vida pro outro. Você dormir com o olho do outro quer
dizer... você dorme quando o outro dorme, faz quando o outro faz e faz o que o outro quer que
você faça. Então dormir com os olhos do outro quer dizer: cuida mais... olha o quê, que
conflito... o dormir com os olhos dos outros... você diz que coisa mais doida, né? Eu não
entendia... quando você fala o outro?: “Iiih! Vou procurar saber o quê que é isso, né? E, as
pessoas da minha família recebiam... eu me lembro disso, que uma vez a gente tava numa
festinha de aniversário de um dos meus primos que voltou pra Bahia e a minha avó materna
de repente chegou um caboclo, eu tomei um susto... ele bateu nas costas da minha tia e
disse assim: “Já falei pra você parar de dormir com os olhos dos outros, olha o que você
fazendo.” Era alguma bobagem que ela tinha... tava com a intenção de fazer. O caboclo foi
embora, ela ficou assim... cantou parabéns... mas eu fiquei com aquilo: ”Dormir com os
olhos dos outros?, não combina! como é que eu posso dormir...” que a pessoa conseguir
entender isso... pra mim foi uma grande alegria, eu ouvia essa coisa de vez em quando eu não
273
conseguia entender o que é... “como que é isso, quem é esse outro?... como uma pessoa pode
dormir com o olho da outra pessoa?” Estranho, não fazia sentido... mas tem um outro sentido,
né? Então, tinha umas coisas assim...
Essa minha tia, eu gosto de conversar com a minha tia Detinha porque a cada duas
palavra ela solta três ditados, é uma coisa muito interessante... e se você descuidar 3 segundo
do que ela está falando, você se perde, porque ela fala que nem metralhadora... Não dar ponto
sem nó... se falar isso de alguém, cuidado: “Ó fulano é esperto”. Se ele está te pedindo isso,
fica esperto. É uma coisa assim... meu irmão... eu tenho um irmão que é casado em
Sepetiba... a gente tem uma casa em Sepetiba que eu não freqüento anos, porque depois
que aquela praia entrou em decadência, começou a ficar com esgoto, eu nunca mais fui lá...
mas ele vai, ele pesca lá, ele come aquele peixe e diz que o mercúrio está fazendo muito bem
pra ele, que está ótimo, está tudo maravilhoso, que tem camarão, que tem não sei quê... e
ele falou assim: “Ah, pois é lavaram um navio dentro da baía, entupiu, assoreou a baía... agora
os japoneses querem comprar aquela lama. Eu falei: “Bom, japonês não ponto sem nó,
deve ter um jeito de extrair petróleo daquela lama. No mínimo, vão fazer alguma coisa, algum
combustível que eles estão pesquisando... algo eles vão fazer com essa lama, se eles querem é
melhor não dar...”, O ideal é não dar e tentar descobrir por que é que eles querem a lama...
Sabe aquela coisa? “Ah, vou jogar essa capinha de celular fora, ah então você dá pra mim?” É
o suficiente pra você desconfiar e não dar... o quê que ela quer fazer com essa capinha de
celular??? Deve ser um lance que eu ainda não saquei... vai que tem alguma coisa
preciosa?” você começa, vamos dizer assim, a pesquisar, o que tem a capinha do celular,
não sei quê, não sei quê, não sei quê... e o que é interessante, essa coisa de não dar ponto sem
nó, porque está querendo uma ação segura, que é uma coisa meio capitalista, aliás bastante
capitalista, como que a as crianças desde a S.I. têm isso... eu trabalhei no CAPSI (Centros de
Atenção Psicossocial para a Infância e Adolescência) de Campo Grande e os usuários, as
pessoas que se tratam passam por oficinas, também, não tratamento psiquiátrico, então,
existe uma psicóloga que está fazendo reciclagem... não a Ângela me corrigiu... um
reaproveitamento daqueles frasquinhos de refrigerante pequenininhos. Aí, ela pediu para as
crianças: “se você for jogar fora, pra mim.” Aí... não. Muitas vezes sobra um pouquinho
assim e leva pra casa... a impressão que eu tenho é que enquanto eu não contar pra ela o que
eu quero com aquilo, ela não vai me dar... então na segunda-feira eu vou falar pra quê que eu
quero aquilo... na hora em que você diz, não sabe o que é... é que esse... gatinho (se refere ao
desenho da capinha de celular que está sobre a mesa) ali, eu quero transformar em crochê filé
pra botar na colcha do meu sobrinho neto, você: “Ah, bom, então tudo bem: TOMA.” Mas
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se eu não digo pra quê que é, o escondido, né, o que nem todo mundo entende, o que nem todo
mundo sabe, o que é escondido é um grande... então, segura, não solta, né?
Então os ditados, têm uma coisa assim: “Você não é nem trapo, quer ser guardanapo?”.
Eu era pequena, mas me lembro disso... você não é nem trapo, quer ser guardanapo... tem um
que ela diz... “A Sé de Palha, Colégio de Baeta”... “Eu conheço você do tempo da Sé de Palha,
Colégio de Baeta...”, e eu ficava, gente... primeiro que ela falava ultra rápido e eu não
entendia as palavras direito... “de Baeta” eu escutava “de baet”... gente o que é isso? de
palha e colégio de baeta”... Depois... muito tempo depois, é que eu fui sacar a questão...
comecei a estudar de novo a História, aí eu me dei conta, fui a Anchieta, não sei quê... aí eu vi
a primeira capelinha, “Ahhh, sei: a Sé, de palha...” Que a é a primeira igreja a ser
construída, e como não havia... a primeira, faz de qualquer maneira depois... faz com palha
mesmo. O Colégio de baeta, tem a ver com a fundação de São Paulo, que começou a partir de
um colégio que os jesuítas montaram e que, como era frio, as paredes eram de palha, mas
foram revestidas com cobertores porque era muito frio: Colégio de baeta... baeta era aquele
cobertor vagabundo, né?... Então, uma coisa mais velha do que a de palha e o colégio de
baeta... eu levei anos da minha vida com cobras na cabeça pra conseguir entender. Tem umas
coisas que ela dizia que... “Como penar mais que sovaco de aleijado”... essa é mais simples...
Agora, você ouviu falar: “Vai passar a vida arrastando lata e roendo beira de penico?” Essa
chega a ser nojenta... (risos)... como assim? Roendo beira de penico? O cara tão mal, tão
ferrado, que ele precisa de alguém que lhe comida... a comida, como na história da
preguiça, ela tem que ter uma vasilha, então o cara tava tão mal, que a única vasilha que ele
conseguiu juntar para por comida foi um penico... então, quan... (risos)... quando colocava
comida ali, ele virava aquela coisa na boca e roendo beira de penico tem a ver com tentar
sugar tudo que tem ali dentro, dá a impressão, pra quem está olhando que ele está roendo, está
sugando ao máximo aquela borda ali... agora você diz ”Roendo beira de penico! Hoje isso
nem assusta porque as crianças não têm penico, as crianças vão da fralda para o vaso,
adaptado... então, é uma coisa assim, penico já é um vaso sanitário pequenininho, não é mais o
penico como era antigamente... roendo beira de penico, imagina... arrastando lata... “gente, o
que é isso?”... Tem um que ela dizia, minha mãe dizia muito isso, “Dono do defunto não
chora, parede meia vai dar ataque?”... O fulano é seu vizinho, parede meia quer dizer parede
comum, o cara da família do que morreu, o que mora do lado está dando ataque porque o
fulano morreu, é aquela coisa: ser mais realista que o rei... é equivalente, né?... “Dono do
defunto não chora, parede meia vai dar ataque?”... Tipo assim: o que você tem a ver com isso?
Larga isso pra lá...
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Mas é muito gozado que a gente conversa trocando ditados... tinha uma outra coisa
que ela dizia, que era tipo um pingue-pongue, daqui a pouco eu lembro... Mas tinha umas
coisas assim... por causa das mortalhas... a coisa da oralidade... algum tempo eu não sei
quem se rasgou, soltou, e não tinha como tirar pra costurar, acho que era uma roupa... bem,
vai costurar uma roupa no corpo, deixa eu ficar aqui pertinho, a Cristina disse: “Mas por
que?” Porque a minha e disse que não se costura roupa no corpo de gente viva... “Por
quê?”... Ah, por causa da mortalha, quer dizer, o cara morria você pegava um pano e
costurava do lado. A mortalha era feita... aliás se diz que mortalha não tem bolso... isso é pros
pão-duros: mortalha não tem bolso... então tinha um versinho... quando você for costurar
roupa no corpo, você diz assim:
Costuro a vida
Não costuro a sorte
Costuro na vida
Não costuro na morte
Porque ela dizia que, além de dar azar, por conta de perder dinheiro, podia dar o azar
de ficar agourando o fulano de morrer. Então tinha umas coisas... não pode dormir com os pés
para a porta. A minha cama tem os pés para porta do quarto... A minha tia foi em casa, ela
disse: “Você vai me desculpar, mas eu vou por os pés para a cabeceira, vou botar meu na
sua cabeça”, virou... “Eu não durmo com os pés para a porta, nunca...” Aí, foi na casa de
uma pessoa, ela veio falando que uma das irmãs... outra coisa interessante... a coisa da vida
dos orixás... ela disse assim: “Fulana é de Oxum.. sei lá, não me lembro qual foi que ela
falou... ela mudou pra uma casa, ela comprou uma casa, e ela sabia que se ela é de Oxum, a
primeira a entrar na casa tinha que ser Oxum, e não ela... E ela entrou, o marido fez a
mudança e ela disse pro marido: “Primeiro quem entra é Oxum, depois vem as coisas da
casa...”, e o marido esqueceu e trouxe a mudança e botou tudo de qualquer jeito, as coisas
não andavam pra frente... “Eu falei pra ela que não vai voltar a paz naquele canto, ba ba ba
ba, porque ela botou as coisas na frente...
É muito engraçado que, na umbanda, não tem muito essa questão de “não gostei
disso”, “vou te dar uma cipoada”, com essas coisas menores, a gente muito a entidade
deixar uma espinafração no cavalo, quando o cavalo faz alguma coisa de qualidade moral que
seja desaconselhável, ou uma atitude material que seja desaconselhável, tipo: casar com
alguém e continuar deixando alguém entrar na casa, não romper com determinada pessoa,
276
alguma coisa assim. Mas essa coisa de não botar a entidade na casa de quem é, vamos dizer
assim, a dona da cabeça, primeiro, é interessante como nunca na umbanda, nessa coisa mais
arraigada ao que era na África, isso é muito ainda... então são entidades que têm muitas
características humanas, eu acho interessante isso, muita característica humana, tipo: fulano
não pode comer peixe de pele porque fulano é de não sei quê, fulano não pode comer pipoca
porque é de não sei quê... não pode comer caranguejo... “Ih, você botou sal, não sei quê, na
comida, fulano não vai poder comer...”, Depois de muito tempo é que eu fui... até ouvindo
rádio mesmo, nos programas que antigamente rolavam, né, falando de Candomblé, falando de
Umbanda, e dizia: “Não, filho de fulano, de tal entidade, não pode comer isso aqui, porque
não sei quê... contraria a regra, ele pode comer isso.” Eu: “Mas como é que um espírito
come?”Muito, muito tempo depois é que eu fui entender essa história de porque que se põe
comida ou coisas que servem de alimento ali... Mas aí, voltamos pros ditados... Tinha essas
coisas, entendeu? A questão do... essas são, eu acho, mais palatáveis, né?: o chinelo velho e
o cansado... O dono do defunto pega na cabeça... então é aquela coisa, fulano a gente
chamou pra lavar e depois começou a se encostar... “Ah, não, o dono do defunto pega na
cabeça”, então ou você pega no pesado ou então eu me canso e vou embora porque eu que sou
visita aqui, eu é que tinha que fazer o trabalho mais leve... e essa coisa da oralidade... a
história de desenhar o Sol quando está chovendo muito... aquelas coisas de índio, né?... que o
Sol fica com ciúme e vem ver que história é essa... uns versinhos, acho que os versinhos é
mais europeu, da chuva, o Sol... a minha mãe falava isso, ela desenhava o Sol... quando tava
chovendo muito ela falava: “Ah, amanhã tem que fazer sol”... engraçado que os católicos
rezam pra Santa Clara, a minha mãe desenhava o Sol e botava na janela... “Mas pra quê?...”
o Aluísio falou: “Ah, eu fui pesquisar: os índios dizem que, quando está chovendo muito e
eles precisam de um pouco de sol, eles pedem às crianças que, mesmo com chuva, desenhem
um Sol no chão e brinquem em volta, uma coisa assim... o que meu irmão conseguiu coletar
na Bahia era uma coisa assim, que vem mais da corrente do indígena do que do primitivo
africano, e que dizia o seguinte: as crianças ficavam brincando e cantando ali em volta do Sol
e o Sol ficava com ciúmes: “Que outro Sol, é esse, para quem as crianças estão cantando e
brincando?”, “Eu sou o SOL”, “vou resolver isso” , e aparecia. E na hora dele aparecer
eles desmanchavam e continuavam brincando. Aí, é uma coisa assim, essa relação de fazer
chover... fulano só falta fazer chover... tem um pedaço também que vem dessa coisa da prática
da dança da chuva que é mais indígena do que... eu não sei como é que rolava do
africano... mas eu me lembro muito... Não sei se você lembra... que uns anos atrás houve
uma seca no Norte e bombardearam nuvem, jogaram água e não sei quê e nada resolvia, e
277
um povo indígena mandou um recado pro povo que tava passando a seca: “Fiquem tranqüilos
que em 3 dias vai começar a chover, nós vamos começar a dança da chuva por vocês”.
pediu pra mandar uma pessoa de para o acampamento para a chuva cair no lugar daquela
pessoa. Quer dizer: a pessoa seria a ponte pra ensinar à chuva onde é que ela tinha que cair, e
o povo mandou... Mandaram uma pessoa para essa aldeia para fazer a dança da chuva, para
mandar a chuva para onde essa pessoa estava morando... E houve um deboche na mídia,
porque o cacique tinha feito e o outro tinha mandado... e em 3 dias choveu que foi uma
beleza... que foi uma beleza... Mas eu ri muito, muito, muito... e eu não me lembro quem foi o
chargista que colocou assim: “Dança da chuva”, e um grupinho engravatado na primeira
etapa e o pessoal fazendo a dança da chuva e os outros olhando assim... com uns gráficos,
umas coisas... é com a ciência que eu vou resolver... e o cara lá fazendo a dança da chuva. Do
lado, na segunda etapa, está aquele toró caindo e o cara na chuva narrando, de cócoras assim...
hehehe rere u... como é que foi mesmo? Hehehe rere ú... e eu falei: “Ah, que legal que um
chargista fez isso...” Porque é uma coisa assim: não é da ciência, né? ... e a gente sabe que a
ciência que funciona veio observando a natureza e observando o primitivo... mesmo... né?
Então, você cortar a raiz, você... não pra você negar a sua raiz. Tinha uma menina que
acabou voltando, não se adaptou aqui, a [...] do Amazonas, eu acho... e ela dizia: “Eu sou
indígena” e eu olhava pra cara dela, ela loura... “Mas você tem ascendência indígena? “Tenho,
eu tenho orgulho dos meus ascendentes...” e eu olhava pra aqueles cabelos louros não
entendia nada... se ela tem orgulho da ascendência dela, porque não deixa o cabelo da cor que
é? Porque era uma loura, como diz o meu irmão, com sobrancelha marrom... eu tenho um
irmão que é ferino, sabe? Terrível, terrível, terrível... Quando eu saio com ele, como a gente
anda sempre muito junto, muita gente acha que nós somos casados, e aí foi muito gozado uma
vez, que a gente tava junto, fomos comprar umas... fomos umas quatro vezes no mesmo lugar,
e no outro dia ele foi sozinho e ele: “oi tudo bom?, ele falou um negócio lá, ele riu... falou
alguma piadinha, comprou e falou alguma coisa engraçada, né? E a moça disse; “se a sua
esposa tivesse aí, eu queria ver o senhor me dizer isso...”, ele disse: “Olha, eu não sou casado,
então não tenho esposa, aquela é minha irmã...”, “Sua irmã? Ai, desculpa..., aí, meu Deus,
desculpa”, aí ela pediu desculpa porque achou que nós éramos casados... eé muito gozado,
que às vezes a gente está andando e ele diz: “ta vendo, quando eu estou com você todo mundo
me ponto, todo mundo me bola... com você, pronto: começa a chover mulher na
minha horta”. Eu ainda vou descobrir por que... Eu disse: “olha não vem me perguntar porque
eu não entendo disso...”. Aí ele falou assim: “É uma coisa assim... é uma seletividade, se serve
pra ela, alguma coisa tem de positivo, se não ela não estaria ali, vamos para ver o que é...”
278
Se está solto, vai ver ninguém, agüentou ficar e eu não vou me meter nessa roubada, nessa
canoa furada, como dizia minha mãe. E aí... bom, agora você quer que eu pra onde? Eu
esqueci...
(Valéria) Eu queria que você falasse onde é que isso entra na sua vida de professora...
Olha, entra no seguinte, o tipo de cuidado que a minha mãe tinha comigo, de estar vendo um
pouco na frente, em vez de você pensar no seu conforto agora, pensa no seu conforto na
frente. Minha e dizia: “Pois é, se você não educa seu filho agora, na frente vai passar
vergonha”. Então, essa maneira de minha mãe... minha mãe não batia, quem batia era o meu
pai. Meu pai quando cismava de bater, o dia que ele estava quente, a gente ficava mudo e saia
da frente. Quando alguma coisa tinha dado errado, a gente percebia pelo pisar, que ele não
tava bom, a gente ó... todo mundo no quarto dos meninos, a gente ficava lá, até ele dizer:
“hora de dormir”... todo mundo seguia, pra não ter lelê. E a minha mãe era muito mais de
dizer: “Olha, eu não quero que você faça isso, por causa disso, disso e disso, mas fica esperto
que eu bato. Eu estou falando, não está ouvindo, eu estou falando, não está ouvindo, então
surdo vai aprender na pancada”. Aquela coisa do mudo-surdo que você tem que segurar pra
ele olhar para você para você dizer o que quer, porque só falando: nada.
A partir desse ponto a narrativa de Rosa aborda aspectos muito íntimos de sua trajetória e, por
isto, será aqui interrompida.
* * *
Teresinha
(Teresinha) Na época que eu (...) de ser , e começar a estudar para se pensar alguma coisa , a
idéia da minha mãe sempre foi essa , pode ser o que quiser na vida, mas vai ser professora até
pelo primeiro sustento , por uma certa tranqüilidade, por uma certa garantia, por uma certa
garantia de emprego, mesmo que depois a gente abrisse o horizonte para outras coisas.E eu,
quer dizer, eu comecei como professora, trabalhei no município , gostei,mas passei a minha
vida inteira de professora reclamando, mas nunca pensei em fazer outra coisa .
279
(Valéria) –Risos
(Teresinha) Um pouco por reclamar, mas achar que eu poderia fazer alguma coisa , fazer
alguma mudança, enriquecer alguém, enfim e também por muita preguiça, eu sempre fui uma
pessoa preguiçosa , entendeu? E eu fui me acostumando. A minha entrada (...) E assim foi,
fiquei dando aula, a gente se formava e o total de pontos nas notas é que encaminhava a gente
para o colégio, você não tinha seleção, você não tinha nada.
(Valéria) No município?
(Teresinha) É. Você ia tirando as suas notas, no final do curso quantos pontos você tem , de
tanto a tanto você pode trabalhar nas favelas, pode trabalhar em Madureira, você pode
trabalhar (...) E eu fui para uma escolinha boa, sempre pegando pepinos. A minha
característica como professora é pegando turmas difíceis. Eu vim conhecer uma turma
chamada regular, normal se é que a gente pode falar aqui no Pedro II ( Colégio Pedro
II).Turma de professor que agredia aluno, alunos mal educados, era tudo para Teresinha , a
ponto de (...) Isso eu vivi. Eu dando aula, três cabeças assim olhando , era a diretora, a adjunta
e a orientadora educacional, não ouviam nem a minha voz porque era dos alunos, o que estava
acontecendo porque ninguém conseguia segurar a turma, deram para mim, então eu estou
sempre acostumada com isso, sempre fui acostumada, vim começar o bonitinho aqui, sempre
foi assim. a minha chegada aqui, fui aluna do Pedro II, nem sonhava, sem sabia que tinha.
O meu marido lendo jornal, a gente estava na praia e ele disse (...) Ele sempre lia o jornal pós-
praia. Nesse dia ele teve, sei lá, uma dor de cabeça e foi ler o jornal antes, estou eu na praia:
“Teresinha vai abrir para o Pedro II.”E a frase foi essa: “Faz porque ele é o primeiro a entrar
de férias e último a voltar às aulas.” Depois eu vi que não era nada disso. Fui embora para o
Rio ( Rio de Janeiro) era o último dia de inscrição, cheguei aqui em cima da hora, ainda fui
para cada de Rio das Ostras vim para o Rio, bateu o currículo, nem tinha currículo, ainda fui
organizar, bolar, cheguei aqui quatro horas, paguei a taxa, fiz a inscrição. De duas mil e
poucas inscritas, passaram setenta e eu entrei nessa, fui a décima sétima, alguma coisa
assim. E começamos aqui do nada, a gente não tinha nada, tinha a experiência que a gente
trouxe do Município, cada um trazendo a experiência que tinha de onde trabalhou e
começaram aquelas assessorias, as autoridades começaram a trazer gente para abrir a nossa
cabeça o que eu acho que abriu eu considero isso e houve essa mudança toda da maneira
280
de trabalhar porque o Município, embora tivesse um certo controle , uma orientação, a gente
era muito dona do nosso nariz, não é? E eu cheguei aqui e fiquei eu fui me atualizando, eu
apesar de estar me aposentando, cada vez a gente faz uma coisa nova, eu tenho um montão de
pastas de exercícios, mas eu não sei nem onde elas estão, se exercício repetido, atividade
repetida, é porque alguém achou e trouxe porque se depender de mim eu estou fazendo outra ,
muito trabalhar procurar, eu acho que me dá mais trabalho procurar do que bolar uma mais
atual, mais adequada.e a gente criou esse trabalhão todo do qual eu faço parte. Eu gosto daqui,
eu aprendi muito aqui. Eu acho que aqui o Colégio foi assim (...) A gente aprende até agora,
até esse momento eu ainda estou aprendendo. Essa foi minha trajetória de professora. Fiz a
minha faculdade de matemática depois de dez anos formada no curso normal à revelia. Um
dia eu saí de casa, me inscrevi num curso pré-vestibular, estudei intensivo, fiz o concurso,
passei para onde eu queria, para o período que eu queria, fiz a minha faculdade, ganhei mina
licenciatura, até fiz para ganhar no Município de acordo com o grau de formação, não que eu
fosse trabalhar com séries mais avançadas, mas nesse ano que eu terminei abriu um concurso
interno, então eu passei de professor eu nem me lembro se era professor quatro ou dois
para professor um , trabalhei e foi ali que eu me aposentei, parei. Matemática, sétimas e
oitavas séries, trabalhei em campo Grande ( Zona Oeste do Rio de Janeiro), depois fiquei em
Turiaçú ( Zona Norte do Rio de janeiro).
(Valéria) Mas você ficou um período trabalhando no Pedro II e no Município ao mesmo
tempo?
(Teresinha) Foi. Porque eu me aposentei Valéria e é que está , eu acho que foi em 82
( 1982), não, 82 não, 82 eu terminei minha faculdade , eu me aposentei (...) é eu já estava aqui
sim porque eu me lembro que eu saía daqui, ia para a estação da Leopoldina para pegar o
ônibus para Campo Grande – eu era a primeira passageira em pé –
(Valéria) – Risos
(Teresinha) Depois de de Campo Grande, eu vim para Madureira, estava aqui, agora o
ano exato eu não lembro.
(Valéria) Você nunca pensou em sair, largar o Município e ficar só Pedro II?
281
(Teresinha) Não, quer dizer, eu queria porque o Município me dava direito a me aposentar
jovem eu me aposentei com quarenta e um, quarenta e dois anos no Município , entendeu?
estava perto, então eu, se tivesse trazido o tempo eu não estava dando essa entrevista para
você ha muito tempo. Aí eu me aposentei lá e continuei aqui.
(Valéria) Mas nesse tempo todo que você estava no Pedro II, como era a tua vida? Porque
você não era professora, você foi mãe.... Como é que era isso misturado com o fato de ser
professora?
(Teresinha) Não foi complicado porque a minha vida inteira de casada, eu sempre tive a
empregada, a secretária, então a casa , a roupa, tudo por conta dela e eu me dedicava ao
trabalho , levava as coisas para fazer em casa – porque aqui a gente tem essa chance de fazer –
então eu nunca tive muita complicação , eu morava embaixo da minha mãe, quando eu saía
para trabalhar minha mãe assumia a filha, quando eu voltava ela estava dormindo, isso
pequenininha, adulta, adolescente, ela sempre foi muito independente, entendeu? Teve suas
reprovações como todo adolescente, foi muito ruim porque meu marido foi ver as notas e os
colegas diziam “bem feito, ela ficou”, porque ela foi sempre uma garota popular, mas eu não
sei se eu falhei nisso, agora eu acho que não muito para a gente olhar para trás, mas eu
nunca tive grandes problemas em organizar casa, trabalho e família não. Meu marido sempre
na rua, de segunda à sábado , das seis da manhã às sete (...) segunda à sexta de seis da manhã
às onze da noite e sábado de uma às cinco (...) das sete às cinco e eu ficava em casa. E a
minha mãe assumia porque a gente morava, tinha essa proximidade, mas eu estudava com a
minha filha, eu conversava com ela, mas ela sempre foi muito independente , ela saia com
doze anos para comprar presente para uma amiga , coisa que eu não faço até hoje, eu tenho
que ter alguém do lado , então ela foi sempre muito independente, talvez pela mãe não estar
em casa e o pai não estar em casa .
(Valéria) Agora vocês construíram essa escola, vocês começaram a escola, não é?Como é que
foi esse percurso? O que você olhando para trás- o que você de significativo? Que
ficou e que você vai lembrar sempre?
(Teresinha) Engraçado, para mim esse tempo está muito longe, é como se ele não tivesse
existido, não foi assim, como é que eu vou te dizer, um período que não foi significante.
Depois que a gente começou a trocar, a ter um acompanhamento, haver um (...) É o que eu
282
estava te falando , a gente trabalhava por nossa conta , quando foi instituído, por exemplo, a
coordenação de área , eu fui convidada porque eu tinha formação para fazer a coordenação de
matemática, que nesse ano eu tinha também a supervisão , antigo nome , e eu era
supervisora e eu não sabia, eu me lembro que a coordenadora geral que era a Cláudia
Benvenuto ela ficava : “você conversou com os professores?” Mas a gente não sabia o que
fazer, tanto que ela disse: “Você quer optar ? “Foi quando entraram as gêmeas , a Márcia e a
Beth, eu falei: “Eu quero a supervisão.” Porque eu não me senti preparada para assumir um
negócio que eu não tinha a menor idéia .Agora foi assim, tinha também aquela história da
reprovação, era segunda série, foi quando a gente começou, era a primeira, sorteio, primeira e
segunda série, foram as três séries iniciais aqui do Pedrinho, não é? E eu como sempre pegava
a mais alta, que sempre foi a minha (...) o meu jeito criança mais velho. E , quer dizer, a gente
fazia as reuniões , era esquema de nota, mas eu não, sabe Valéria, com sinceridade, isto está
muito longe, para mim, a única coisa que eu me lembro é que a gente começou do nada ,
sabe? Sem assim (...) A sensação que eu tinha, comprando com esse últimos tempos é que a
gente não tinha, a gente estava se organizando ali como podia , cada um trazia a sua
experiência e a gente punha em andamento. Agora, depois não, começou a formar as
equipes, equipe pedagógica, coordenadora , a coisa começou a funcionar melhor , porque
uma norma, você tendo um grupo trabalhando daquele jeito , não que no início cada um
trabalhasse de qualquer maneira, não é isso, mas a gente também não sabia, quer dizer, a gente
estava com experiências que cada uma tinha e tentava organizar e “bola pra frente”. Então eu
acho assim, um tempo muito longe, eu (...) Você (Valéria) uma vez me perguntou quem
contava histórias. Eu fiquei com aquilo na cabeça, eu fiquei remoendo, eu não me lembro de
ninguém me contando história, eu me lembro de eu com um livro na mão.
(Valéria) Quando você era criança?
(Teresinha)É. Não tenho essa memória de alguém do meu lado contando história, mas eu me
vejo com um livro (...) tem alguns até que eu me lembro, da Cinderela, que era tudo colorido ,
capa dura, eu me lembro com o livro na mão, alguém contando(...)
(Valéria) Nem na escola?
(Teresinha) Nem na escola porque o meu primário, o antigo primário foi muito truncado, eu
nunca estudei , por exemplo, numa escola pública. O meu período de alfabetização, era uma
283
escola que não era uma escola, era um clube e a professora alfabetizada. Depois eu fui para
um Colégio registrado, mas que era assim, era uma sala divida ao meio, um grupo era do
terceiro ano, que era antigamente, e o outro quatro, então a professora dava aula para e
ficava no meio, eu me lembro muito bem. A minha turma tinha sete alunos, quarto ano, minha
mãe nunca conseguiu colocar a gente em escola pública, eu fui para escola pública depois,
no Pedro II ( Colégio Pedro II) do ginásio para frente. Fiz admissão, curso de admissão que
tinha na época, não sei se tem mais.
(Valéria)Mas você é uma pessoa que conta um monte de coisa para os alunos, não é?
(Teresinha) Ah, conto!
(Valéria) O que você conta?
(Teresinha) Depende da situação, às vezes eu digo “no meu tempo (...)” agora exatamente o
que é (...) Eu sempre falo para eles: “Vocês agora estão assim, vocês têm computador, vocês
têm a televisão, vocês têm (...) Mas ninguém sabe o que é prestação? Toda hora passa na
televisão, pague em sete vezes se juros, e vocês parece que nunca ouviram?”A gente fala em
prestação. eu falo: “No meu tempo (...)”Aí eu conto algumas coisas, eu não sei dizer,
depende da situação(...)
(Valéria) Coisas da sua vida para os seus alunos?
(Teresinha) Conto. Conto. Estou contando do meu neto , conto do meu marido, da minha
filha, mas agora mesmo o que está dominando é o neto, não é? dois anos que eu falo
nele, mas conto piada para eles, de vez em quando eles querem me pegar eu vou em casa
procurar algumas para pegá-los também.
(Valéria) Sei. –Risos
(Teresinha) Eu procuro contar as coisas da minha vida, agora depende da situação, depende do
momento, o que é o assunto, entendeu? Eu dizia: “Olha, quando eu faço um trabalho mal
feito, a minha mãe sentava do meu lado e mandava eu passar a limpo todinha, ela rasgava
eu sempre digo isso minha mãe foi uma mulher muito braba, cuidou de casa a vida toda,
284
cuidou de casa, marido e filho , nunca trabalhou. Empregada? Não tinha, porque ninguém
fazia como ela fazia. Agora, era ali, fez, não está bom, arrancava a folha!” Eu conto para eles:
“Vocês estão imundos. Eu quando estudava para professora, o meu uniforme eu morava no
segundo andar era saia comprida e eu me lembro, às vezes , quando estava subindo as
escadas eu desabotoava a gravatinha eu brincava com eles a minha mãe fazia um
escândalo. Se eu não comesse, a minha mãe ia para a rua e gritava as cinco e meia da
manhã, ‘Teresinha vote’! Eu voltava, eu podia dar uma escapulida e ido embora para a escola,
mas eu voltava da onde eu estivesse.” Então coisas que relacionadas à educação , a vivência,
entendeu? “No meu tempo (...)”eu uso muito isso.
(Valéria) Você falou que ela não contava nenhuma história? O que ela te contava do tempo
dela?
(Teresinha) Não, não. A minha mulher foi sempre muito seca. Eu não me lembro de quantas
vezes eu beijei minha mãe, não lembro. Agora, ela estava ali do nosso lado. Se alguém falar
mal ou tentar nos prejudicar, ela toma frente, mesmo que depois ela te cobrar por que foi
dito aquilo, o que eu fiz que deu motivo. Ela sempre foi assim primeiro ela defende como
mãe. Minha mãe era daquelas que trabalhava na lavoura, mas onze horas da noite a gente se
arrumava para ir para o baile de ônibus, de trem e a gente ia para o baile, dançava a noite toda,
voltava quatro horas da manhã com lencinho nas costas por causa da friagem, a gente
faltava morrer, todo mundo olhando as filhas de Dona E. com um paninho nas costas por
causa do frio, do sereno, ia com a gente e no dia seguinte estava lavando, cozinhando. Ela ia.
Juntava as “filharadas todas”, nós não íamos com ninguém, nós nunca dormimos fora de casa,
depois que eu casei que a minha irmã teve mais abertura para fazer as coisas, a única casa
que a gente dormia era a minha avó, fora isso, e ela era muito seca que eu estou te falando, eu
não lembro quantas vezes eu beijei a minha mãe, acho que eu conto no dedo e era tudo assim
meio sem graça , meio sem jeito, entendeu?
( Valéria) E é diferente de você coma tua filha.
(Teresinha) Mais ou menos. ela é mais “chameguenta” porque eu também sou muito seca
talvez por isso, a minha filha não deixa eu ser seca totalmente, ela se chega, ela passa a mão
285
no meu cabelo, eu encosto nela, eu sou (...) fiquei mais maleável, mas eu tenho
muito essa secura. Eu sou (...) Eu quero ser agradável com todo mundo, eu encosto, eu sou
capaz de abraçar e sair andando, mas em família é esquisito. O parabéns, o feliz natal, o
abraço, o amigo oculto, é um abraço, mas não é um abraço , você se chega, você se encosta,
mas você não tem aquela coisa de irmão com irmão .
(Valéria) E qual é o sentimento seu de estar saindo da escola, de estar se aposentando?
(Teresinha) Honestamente. Alívio. Alívio. Ansiosa. Esperando ardentemente porque a idade ,
não é Valéria? A gente até se violenta a querer ter uma certa paciência com certas coisas e eu
acho que o meu tempo passou. De vez em quando a gente nas reuniões : “Não, porque
agora têm uma porção de gente nova Precisa de uma renovação.” É o tipo da frase que me
incomoda um pouco, mas é real, é a realidade porque eu acho que se eu tivesse que trabalhar
mais cinco anos com essa mudanças, com essas leis todas , eu acho que eu teria gás, eu teria
fogo como eu estava agora, você (Valéria) foi testemunha , tentando fazer os trabalhos. Eu
poderia esperar que alguém me desse no final de carreira, mas eu não aceito muito isso não. É
hora de parar é hora de parar. O mais perto que eu vou chegar de escola é quando eu tiver que
orientar meu neto, se for preciso, fora isso eu não quero nada mais, agora eu quero ler,
dormir, assistir a minha televisão, acordar a hora que eu quero, viajar que é o sonho do meu
marido e eu com esse negócio de trabalhar , não é que eu não trabalhe(...) o caso não é a
escola, mas eu coloco o trabalho na frente , agora eu não quero compromisso.
(Valéria) Agora, me diga assim: Do que é que você vai sentir saudade desse tempo?
(Teresinha) Sinceramente? Das bagunças, das bobagens que a gente fala, das pessoas que a
gente conheceu. Até hoje na hora do pelotão da bandeira eu me emociono e vai acontecer esse
ano também. Agora, é isso, eu não sei, não sei se nesse momento eu vou sentir falta do
trabalho: “Puxa, está acontecendo isso? Se eu estivesse em sala (...)” Eu acho que isso não vai
acontecer não. Eu quero parar. Agora, eu vou sentir falta sim dessas bagunças, dessas
bobagens que a gente fala porque aí a gente fica muito sozinha, não é? Você perde um círculo
grande de amizade. Se recolher, por que o que vai acontecer? Eu vou sair por aí: “Alô, quem
quer fazer amizade?” Não é assim. Eu pretendo mesmo me recolher, ficar limitada à família, à
viagens, eu quero viajar sim, às minha leituras por eu tenho um monte de livro que ainda está
286
no saco plástico, entendeu? É isso que eu queria fazer. Minhas palavrinhas cruzadas, meu
vídeos, meus filmes, meu vídeos, meus discos e nada mais. Parodiando.
(Valéria) Agora, o que você acha que vai deixar e não vai nem olhar para trás?
(Teresinha)Pode ser bem corriqueiro. Bem (...) Reuniões. Atividades fora de sala de aula, são
muito poucas que eu gosto, por exemplo, Valéria, eu sou uma pessoa que tenho que
reconhecer não sou alienada, mas sou comodista. Eu tenho um trabalho de sala de aula que me
desgasta, a mim e a qualquer outra professora, eu estou falando de mim, me desgasto, mas eu
estou ali na sala de aula, é o meu papel. Agora, coisas fora da sala, por exemplo, eu fico
impressionada, uma coisa que o Pedro II me ensinou a ouvir e refletir porque eu ouço as
colegas se colocarem nas reuniões, fazerem colocações que nunca me passaram pela cabeça,
eu nunca imaginei que determinada coisa estava incomodando tanto a tanta gente que a mim
não incomodava. Aí eu me pergunto – na análise que eu fazia – Será que eu estou assim, estou
tocando o meu bonde e é a maioria das vezes é, às vezes era ignorância: “Gente eu não estou
sabendo o que está rolando?”Mas a maioria das vezes é, eu estou bem como eu estou , então
eu vou tocar assim. Eu quero é estar bem.Você vê que eu não falo em reunião, agora eu escuto
tudo E não gosto de gente que está do meu lado tchá, tchá, tchá porque eu não falo, mas eu
estou ouvindo, estou refletindo, ainda digo assim: “Cara como é que a colega ou o colega
pensou isso? Eu nunca parei de analisar.” E eu vou analisar, mas eu continuo na minha , eu
nunca fui de falar em público, não gosto, eu não tenho jeito e quando é para falar é de
improviso . Cansei de ser homenageada em festas de encerramento, trazia um papel, na hora
eu dobrava e saía, mas só Deus sabe como eu ia, sem voz, tremendo. Não tenho esse dom, não
tenho, tem gente que tem e eu admiro, até gostaria de ter esse dom, mas eu não tenho esse
dom, então (...) Tem coisas que eu vejo, por exemplo, quando eu falo das reuniões, às vezes
eu escuto certas coisas (...) eu acho que o Pedro II teve uma fase, agora melhorou um
pouco, da falta de ética, da falta de (...) não é bem uma falta de respeito, mas afinal de contas
uma autoridade agente tem que saber lidar. Depois houve uma fase muito pesada, depois
melhorou, as colocações eram mais light, mas organizadas, menos agressiva. Tinhas vezes que
eu saia das reuniões e eu digo: “Meu Deus se eu tivesse no lugar dessa pessoa eu tinha tido
um troço.”Então eu sempre fui uma pessoa assim, cumpridora de ordens, eu não tenho essa
(...) Você (Valéria) eu não perco nenhum cargo, eu peguei a administração pedagógica há oito
anos, trabalhei com três administradoras totalmente diferentes, Beth Lins, Ana de Oliveira e
Patrícia, são três estilos completamente (...) me dei bem em todos eles, acho que não deixei a
287
desejar, fui muito requisitada depois, mas eu achei que tinha dado a mina cota (...) É aquela
história, sabe? A escola parece que para. A gente não tem mais idéias, não tem mais pique.
Está na hora de eu sair. A sala de aula não, a sala de aula a gente inventa, você cria uma
estratégia nova, faz uma palhaçada nova, entendeu? Mas fora de sala de aula realmente,
dentro de escola (...) algumas reuniões. Alguns cursos que a gente é obrigado a fazer porque
na hora eu reclamo, eu xingo, mas depois eu vejo que tinha sentido, mas o primeiro momento
é aquele, é isso. Era a parte mesmo fora de sala de aula, alguns momentos, excursão. Eu acho
excursão magnífico, mas eu nunca fui numa excursão em que eu não estivesse com o coração
na mão para voltar, estar com o filho dos outros. Depois, agora, você (Valéria) de convir
que nesse últimos anos, sair com criança, bala perdida, tiroteio , então eu sempre fui à
excursão “mal humorada” que não para ver, mas entre aspas , não é mal humorada, é
preocupada para voltar e no entanto não tem coisa melhor, não tem aula melhor do que uma
excursão, mas é estar responsabilizada pelos filhos dos outros . Fora da escola, entendeu?
Porque eu falo para eles; “Dentro da escola vocês são meus. Eu tenho que dar conta de vocês.
A mãe botou você aqui na minha mão, não posso largar você aqui de qualquer maneira.”
Então na rua eu fico doidinha, parece que eu estou mal humorada, que eu estou , não é mal
humorada é preocupada , eu vou e volto, essa hora que o ônibus para na porta da escola, chega
outra Teresinha. Tem que acontecer, tem que acontecer. É isso aí, agora essa parte mesmo do
que eu não tenho saudade são essas coisas fora da sala de aula. Adoro encontros de
planejamento que a gente troca, que a gente xinga, não é assim, mas e quero, “agora mesmo
eu estava assim. Gosto dos encontros de seis horas, agora algumas reuniões eu vou porque eu
sou obrigada e não tem saída , tem outras que são boas que vale a pena ir, mas tem outras(...)
Eu sou rotineira, tem gente que detesta rotina não é? Eu não. Se quebrar mina rotina eu sou
outra .Se você disser que daqui a uma semana, na sexta-feira eu vou deixar de fazer alguma
coisa que eu estou acostumada porque tem outra, até sexta-feira eu estou tensa porque vai
quebrar o meu ritmo. Eu sou eminentemente rotineira , eu acho que a rotina para mim me
organiza , ela não me deixa enfadada, não me deixa chateada , eu gosto, eu sei o que vai
acontecer e não sou triste, não sou frustrada , só você me vê sempre com uma piada , ninguém
sabe se eu estou com um problema particular, quando eu estou com dor eu ainda demonstro
um bocadinho, mas eu estou sempre a mesma, mas ninguém’m sabe o que está passando
atrás.
(Valéria) E o carnaval?
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(Teresinha)O Carnaval eu curti, tem dezesseis anos, não tenho saudade, curti muito (...) por
isso que eu estou dizendo a você ( Valéria) que eu sou uma pessoa(...)acho que faz parte da
rotina , eu quando eu vejo um desfile agora em nenhum momento eu digo assim: “Ai, que
vontade de estar lá!” Eu fui, usei, curti, abafei, acabou. Passasse para outra coisa. quando
eu parei como carnaval e com o desfile eu passei a assistir na avenida, complicou porque
antes você não ia porque não tinha dinheiro, agora você tem dinheiro e não tem ingresso, é
uma encrenca para comprar um ingresso, então eu fico na televisão, eu durmo, cochilo,
acordo, gravo, vejo no dia seguinte, tomo uma cervejinha, pronto. Acabou, passou. Eu
curti.Tenho o meu álbum de fotografia mostro até para trazer para uma colega que está a
E. para dar uma olhada, fui chamada pela globo, meu marido saiu na capa da revista, eu
não, mas ele saiu .Na mangueira. Teve um ano que eu fiz cinco desfiles, um carnaval que eu
fiz cinco desfiles, o meu foi enfaixado porque no quinto desfile eu não agüentava mais,
fio na Rio Branco ( Avenida Rio Branco) . a minha irmã disse: “Não, vai sim, vai
sim.”Enfaixou o meu pé, estávamos vendo televisão, não transmissão porque eles não
transmitem desfile da Rio Branco, o antigo desfile, mas flashes , aparece o meu todo
enfaixado, chamou atenção do cinegrafista lá do (...) Houve época que ia para a Mangueira – a
Mangueira estava para baixo os garçons, a bateria e o meu grupo que era em torno de vinte
pessoas, um gato pingado ali, um gato pingado ali, a quadra vazia e a gente se acabando.
Depois a Mangueira começou a ganhar aquele carnaval do Braguinha no Sambódromo, que
foi a primeira, aí a Mangueira explodiu. Aí eu parei. Não gosto de multidão.Aí você ( Valéria)
vai dizer assim: “Mas no desfile tem multidão .” Tem, mas era uma multidão organizada ,
porque na hora que sai, na hora que entra era um desespero também.
(Valéria)Mas você freqüentava a quadra.
(Teresinha) Freqüentava a quadra. Fiquei (...) Depois que eu ganhei um certo status na
Mangueira, aí eu parei de freqüentar também, aí eu ia , desfilava todo mundo me conhecia(...)
(Valéria) Você era passista?
(Teresinha) É. Metida à passista.
(Valéria) –Risos
289
(Teresinha) Eu saí em ala um ano, no segundo ano um amigo nosso tinha um ala e
perguntou se a gente queria sair. Eu assanhada , não é? Vamos. Ficou uma mulher e três
homens, não estava legal , depois ele tirou no terceiro ano da ala (...) no terceiro ano ele
tirou uma menina da ala e veio me fazer companhia , era o grupo verde e rosa, vinha na
frente da ala verde e rosa e assim foi durante dezesseis anos, contando com a ala , quinze
anos assim, até que teve um ano que eu entrei na avenida , fiz a curva e eu falei: “Não vou
agüentar.” Me deu medo e eu parei. Sem medo de ser feliz, curti muito, aproveitei muito
enquanto deu, enquanto estava certo. Não dá mais, troca, vira a página e ia adiante.
(pausa)
Teresinha continua falando sobre os momentos de contar histórias ao neto...
(Teresinha) (...) Criar muito a polêmica e eu comecei com Chapeuzinho ( Chapeuzinho
Vermelho) ia “pela estrada à fora (...)”aí ela levava uma cesta com biscoito, sorvete, pirulito ,
com tudo o que ele gosta , macarrão, ela sentava com a vovó, aquelas comidas,depois a
Chapeuzinho ia para casa e a vovó e ia dormir – e ele ( Gabriel) estava me olhando – aí no dia
seguinte Gabriel vem a Chapeuzinho “pela estrada à fora (...)” – aí repeti a mesma coisa – aí a
mãozinha dele assim:
-“E a Chapeuzinho ia embora?”
-“Ia.”
Terceira vez. Na quarta vez ele abriu um berreiro, mas chorava!
- “Por que você está chorando?”
- “A vo-vozinha fi-cou sozinha!”
E eu não falei no lobo mal porque no lobo mau ele tem medo porque o lobo mau (...) toda vez
que ele ver o lobo mau vai ficar com medo, eu adaptei ali para (...) e ele (Gabriel)se
emocionou com a história da vovozinha ficar sozinha . A minha filha, quando eu contava para
ela (...) quando ela ouvia Assum Preto (...) Conhece do Luiz Gonzaga?
(Valéria) Conheço.
(Teresinha) As lágrimas corriam. Isso crescidinha. E no colo quando eu cantava, eu não sei
se no terceiro , que era assim: lararan, lararan “, ela chorava no meu ombro dormindo e o
filho está igual a ela que é igual a mim que eu também sou uma (...)choro à toa. De repente eu
290
estou inspirada, o hino está tocando, eu fico emocionada, eu não sei, são coisas que me
emocionam , troca de pelotão de bandeira, isso é um negócio que eu gosto, eu acho bonito e
eu acho que a gente devia curtir mais isso com as crianças, é tão pouquinho, não precisa
muito, ele vai para o Maracanã e vai cantar o hino dançando, mas eu acho que na escola um
bocadinho disso não faz mal, não é dose cavalar não, é dose homeopática. Eu sou chata, eu
não deixo aluno cantar hino assim, não vai ficar assim, tem que botar a mão ao longo do
corpo, eu sou chata com isso, coisa de antigamente. Porque eu acho que é uma dose muito
pequena, não é o tempo todo, então eu acho que não custa a gente (...) Mas eu sou a mulher do
“vire a página”, vamos ver o que tem para as cenas do próximo capítulo. Eu sinto saudade,
tenho lembranças, tem umas, mas passaram e eu não me acho uma pessoa fria e indiferente
não, pelo contrário, eu sou muito sensível.
(Valéria) Então, eu queria que você falasse do tempo para contar histórias na escola...
(Teresinha) É essa correria. Hoje, se eu não boto firme aqui, eu estava . Eu falei:
“Não, eu assumi o compromisso.”Porque eu realmente não tinha o cronograma , se tem eu não
olhei, entendeu? Eu gosto tão pouco da quinta-feira que eu vou passando por ela. Eu estou
perdidinha com essas professoras novas. Eu não sei quem são! E eu não sei se é uma
característica Valéria do magistério, ela não é por exemplo como a classe do médico que puxa
o tapete, quando não tem jeito mesmo, eu não estou falando de Pedro II , eu estou falando
de professor, de magistério porque a minha família, a minha irmã, o meu marido, todo mundo
convive com professor e é sempre um querendo , sabe? Esse termo “puxar o tapete”Aqui no
Pedro II não comigo, mas eu vi acontecer muito pouco graças a Deus mas vi
acontecer uma ciosa que me incomoda. Isso da gente trocar (...) Você vê, eu acho legal a gente
está numa fase, eu muito pouco converso com o pessoal da tarde, mas a Ângela, a Valéria, a
Conceição , têm sempre uma palavra, um sorriso, uma troca e Valéria chega para mim e
pergunta onde que eu faço o meu cabelo, eu acho tão legal , a gente não precisa disso, não é só
falar de trabalho não, mas têm outras que não há tempo, eu já falei muita bobagem com Célia.
Não é do meu convívio e o de Célia (...) Agora, o que a gente fica muito restrita, fica. A gente
quer trocar, conversar, desabafar, até falar da vida pessoal, não é? Não quero falar com o
marido, quero falar com alguém (...) não precisa ser amiga, alguém que ouça, eu não acho
questão de amizade não. De repente você está indisposta: “Oh Valéria deixa eu desabafar com
você?” Vou e falo. E eu acho que a gente está perdendo isso sim. É uma pressa (...) Os
encontros que a gente tem são sempre para trabalho, entendeu? Eu me lembro, olha a gente
291
saía toda vez que a gente recebia pagamento a gente ia Adegão Português, eu não sei se o
prédio ainda está lá. A Patrícia outro dia quis ensaiar uma comemoração de aniversário
coletivo, mas não pode, porque aquilo, porque não sei o quê(...) Eu agora com essas viagens
malucas que eu faço nos finais de semana(...) Isso é uma coisa que eu sinto que eu não
construí no Pedro II. Está aí. Eu fui chamada outro dia ela escola do Município por uma
professora de inglês e disse: “Teresinha, nós estamos pegando as aposentadas.” E eu não pude
ir. Achei lindo elas me ligarem. A Ana que está fazendo a tese dela, está de licença, trabalhou
nessa escola, conheceu esse pessoal. Eu Teresinha, não tenho um grupo que diga assim: “Não
hoje a gente vai sair com as colegas, a gente vai almoçar, vai ao cinema, tomar um
chope.”Não tenho, minha irmã tem. Mas eu não tenho Valéria porque eu sou comodista, é
aquilo que eu estou te falando, entendeu? Eu não sou de estar saindo, de estar (...) Minha vida
é o trabalho, minha casa , não tenho (...) Agora eu acho que a gente está sem essa coisa de
pele, de pele, não é? De sentar, de trocar, de conversar, até a sua necessidade de trabalho, que
seja o trabalho, mas é uma necessidade, não é o que você não está gostando não, é , como é
que a gente vai dizer, com o chefe, é com chefe, é uma reunião é encontro organizado. De
repente eu quero sentar com (...) “Vem cá, você não está achando essa escola está muito
barulhenta?” Professora do primeiro ano, não precisa ser do quarto ou quinto, não tem isso, a
gente senta, aquilo direcionado, para trabalho, e você não tem muito que se abrir, isso eu
acho que o Colégio teve mais, agora não está tendo (...) Eu não sei o porquê. Não sei se a
gente está se deixando levar, não sei se a gente se exigindo que a gente tenha isso, porque
também se for esperar exigir vai demorar, você sabe.
(Valéria) Eu queria muito agradecer de você (Teresinha) ter me confiado, não é? As suas
lembranças...
(Teresinha) Ai, eu fiquei nervosa, porque eu pensei assim: “Meu Deus, se for partir par
alguma coisa mais intelectual, eu vou ser um fracasso.”Porque o meu negócio é muito na
prática. É o toma da cá. Se for partir para uma coisa mais filosófica eu estou ferrada,
Valéria não vai gostar, mas se for para eu me abrir , para falar o que eu quero falar dentro do
que ela estava pedindo, eu estava doida para fazer. Bem que eu podia ter tido: “Valéria eu
sinto muito, vou para o grupo de estudo.” Não, eu “seguro esse pepino” aí. Está gravando?
292
(Valéria) Está, o pepino está. Risos eu queria que você falasse , para a gente pensar,
como é que você se sente (...) Qual é o seu sentimento de falar essas coisa agora?
(Teresinha) Muito gostoso. Eu estou me sentindo bem. Estou me sentindo honesta. Honesta
que eu digo é assim, a simplicidade, a espontaneidade, o que estou fazendo é verdade. Não
inventei nada. Fui franca, fui honesta, gostei, estou à vontade, estou aliviada de ter (...)
satisfeita (...) aliviada de ter cumprido o que você me pediu, mas satisfeita de achar, de achar,
que eu possa ter colaborado, contribuído para o teu trabalho. o fato de eu achar que pode
eu já estou satisfeita, pode até não servir, mas a sensação que eu tenho é essa. Eu quero outras,
não terão outras por aí não?
* * *
Yolanda
(Valéria) Pronto, agora pode.
(Yolanda) Como eu virei professora? Minha mãe era professora trabalhava em escola, ela
ficou doente, por isso teve que sair da sala de aula e passou para a secretaria. Ela foi. Não
tinha com quem deixar filho, ia eu para escola trabalhar na secretaria com ela. Fazia
boletim, fazia as fichas de avaliação ela era professora do município –e eu sempre gostei
desse ambiente escolar, de estar na escola. Minha mãe era uma referência muito forte na
minha vida e ela gostava de ser professora, então ela fazia, mesmo fora de sala de aula, ela
fazia uns projetos com os alunos de samba, alunos no morro e tal, e levava à frente e eu
sempre participando disso. Em casa eu gostava de brincar com os perfumes, fazendo fila de
boneca (risos), de forma e aí eu sentava e botava por ordem alfabética. Eu era a mais velha da
família, botava todo mundo sentado para aprender. Eu tinha um quadro, giz e apagador, então
eu achava aquilo o máximo, então assim, eu mais ou menos fui induzida não é? E gostava
mesmo desse ambiente escolar. foi assim que eu me tornei professora. Fiz o normal (curso
normal) na escola de freira e depois comecei a trabalhar na escola de freira. Fiz concurso
para o município, passei e comecei. Fui trabalhar na Rocinha durante um tempo. Foi
maravilhoso. Foi onde eu aprendi muita coisa, fiz muitos cursos de capacitação, aproveitei o
293
tempo que eu estive lá. fui fazer faculdade não é ? Quando eu fui fazer faculdade que
fiquei amiga de uma menina que era professora do Pedro II ( Colégio Pedro II) – a Rosane da
Tijuca eu ficava assim, encantada com as coisas que ela falava que fazia com as turmas e
eu não conseguia com as turmas minhas não é? Por questões de número de alunos em sala de
aula, por questões de infra-estrutura e tal. E assim, fiquei com a maior vontade de trabalhar
aqui, pelo salário também que era muito melhor naquela época tinha 84% do dólar,
ganhava-se uma fortuna aqui.eu quis fazer o concurso.Quando “pintou” o concurso eu (...)
O de 95 (1995) eu não fiz porque eu estava viajando, uma coisa assim, aí, logo depois teve
outro, eu fiz em 96 (1996). Nesse concurso eu estava estudando para fazer Rio Branco
(Instituto Rio Branco IRBr) porque eu queria ser alguma coisa vinculada à Embaixada e tal,
essa coisa toda, então eu estava com uma gama de estudo muito boa . E fiz o concurso.
Passei em segundo lugar e fiz (...) e vim logo para cá.
(Valéria) Você veio para São Cristóvão?
(Yolanda) São Cristóvão. na reunião a Vera (...) Eu achei a escola (...) Como eu fui
recebida pela direção geral não é? Eu achei a escola muito, assim, muito grande porque era só
de município muito pequeno que eu trabalhava. Dez turmas. Dez turmas que tinha a escola.
Uma de cada série de manhã (...) em cada turma, era pequeníssima a escola, quando eu vim
parar aqui eu achei um mundo, sinto assim, meio ressabiada. Depois, quando eu vim parar
aqui em São Cristóvão, que gostei muito do ambiente de trabalho. As pessoas eram pessoas
pensantes, não era aquela coisa do marasmo do município, meio que doação. Na Rocinha
então, as pessoas que trabalhavam eram ricas, os maridos eram ricos e elas faziam aquilo
como doação e tal. Não, aqui as pessoas levavam a sério, eram profissionais, era uma escolha
profissional e isso tinha mais a ver comigo. Eu me encantei. Me encantei. saí logo do
município para vir para cá. Esqueci de falar da questão do narrador, antes de falar da recepção
aqui na escola quando eu vim para e vou falar do narrador. Vou interromper para falar do
narrador, da minha infância e depois eu volto para a recepção que essa é limpa –Risos – (...)
(Valéria) –Risos
(Yolanda) (...) Limpa. Foi demais. –Risos Bom, a minha mãe como professora contava
muita história para mim. Ela sempre ... Eu desde pequenininha ...E eu gostava muito de
história. Eu sou da geração que não tinha televisão. A televisão que tínhamos era “Vila
Sésamo” e “Sítio do Pica-Pau Amarelo” em horário reduzido, então isso facilitava muito a
294
leitura. Eu era muito mais velha do que toda a minha família, o mais novo que morava perto
tinha seis anos de diferença, então a minha diversão era muito brincar sozinha então nesse
brincar sozinha estava incluída o ato de leitura e foi assim que eu li toda a obra de Monteiro
Lobato, tudo o que era conto de fada, eu adorava conto de fada, em especial da Branca de
Neve, lia e relia, tinha aqueles disquinhos amarelos o da Branca de Neve era amarelo com
azul a da Chapeuzinho Vermelho era vermelho, era tudo direitinho. Eu adorava aqueles
disquinhos. Eu ouvia aquilo o dia inteiro. Adorava. Adorava. E gostava muito de história. Eu
sempre gostei muito de história. E acho que por isso, isso fez a diferença na hora da escolha.
Ser professora de quê? Então, a minha era de geografia, meu pai era comerciante e advogado.
Então eu acabei escolhendo Letras por causa da leitura. Com quinze anos eu já tinha lido tudo
de Machado de Assis, com dezesseis eu tinha lido tudo de Edgar Alan Poe, sem contar os
best-sellers. Agatha Christie eu li tudo, aquele Sidney Sheldon que foi da minha época e tal.
Eu lia tudo. Eu sempre devorei muitos livros e sou assim até hoje, não posso ver um livro, não
posso ir à uma livraria. Adoro ler. E a minha mãe foi muito forte nessa questão da formação
do ato de leitura. Se eu tenho isso hoje (...) Era ela leitora A gente tinha uma biblioteca em
casa. Ela participava do “Círculo do Livro”.Lembra do “Círculo”? Trocava livros. E quando
que comecei a ficar mais adolescente ela pegava o livro, ela lia, depois eu lia o mesmo livro e
a gente discutia o livro. E a nossa relação ficou tão assim, relacionada à leitura, à literatura e à
escrita que quando a gente brigava a gente brigava por cartas. Ficava sem se falar. E cartas
poéticas que eu tenho guardadas até hoje. Uma alfinetando a outra, mas de uma forma muito
bonita! –Risos Literária! E assim foi. E quando eu cheguei aqui na escola, eu com uma
expectativa muito grande de poder fazer aquilo tudo que a minha colega (Rosane) falava que
fazia e dar certo. Realmente eu gostei muito dos alunos, os alunos faziam coisas incríveis que
os meus não faziam na Rocinha e tal. E eu gostei muito de poder exercitar a minha
criatividade. Na época a escola valorizava a criação do professor e não a repetição. Então eu
podia (...) Eu sou muito criativa. A minha força criativa muito grande (...) Eu gostava
trabalhar nessa questão da criatividade. E a minha recepção aqui na escola foi muito legal
porque (...) Quem me recebeu foi a Lurdinha coordenadora de terceiro ano, de terceira série
eu fui apresentada a todos e no final do ano eu fiz uma exposição do que eu havia feito em
sala de aula, então foi uma coisa assim, bem receptiva, o que eu estranhei foram as relações
políticas. A primeira reunião de que eu participei foi uma reunião em que tinham três chapas,
em que havia três chapas para direção, de repente começou um “chororô”, uma (...) depois não
tinha mais ninguém para a direção. eu falei: “Meu Deus, onde eu estou?” –Risos Foi a
primeira reunião aqui que eu assisti no Pedro II. Eu fiquei: “Meu Deus, estou num lugar de
295
doido.” Mas ao mesmo tempo fique feliz porque não eram pessoas que diziam a mim as coisas
que acontecia, não tinha possibilidade de interferência. Essa maluquice toda me encantou. Eu
fui transferida para a Tijuca, porque eu fui a última a escolher São Cristóvão e tinha uma
pessoa que queria vir para cá e aí eu tive que ir para a Tijuca . Meu Deus, a minha vontade era
voltar correndo para essa loucura daqui! E foi isso que eu fiz. No fim do ano chamaram as
outras pessoas do concurso eu pude voltar para São Cristóvão (...) Tinha a questão da
Antiguidade. eu fui jogada na Tijuca, fiquei um ano e voltei correndo para São
Cristóvão. hoje eu trabalho com literatura, apesar de um trabalho de literatura ser um
trabalho muitas vezes voltado mais para a questão plástica (...) Eu estou conseguindo, eu no
meu particular, trabalhar bastante a questão da narrativa. Os meus alunos contam histórias.
Meus alunos sentam na cadeira de contar história que eles adoram porque é a cadeira do
professor, contam histórias para o resto da turma. A gente está exercitando o hábito de ouvir.
Então eu não fico na coisa de desenhar a história, às vezes não para desenhar a história e
ótimo que não deu porque a gente trabalhou bastante as narrações. Adoro contar histórias.
Adoro ler histórias para eles. Eles adoram fazer essas coisas.
(Valéria) E a sua avó?
(Yolanda) Ah, a minha avó! A minha avó foi minha também, é mesmo a minha narradora!
Inclusive na minha dissertação de mestrado eu coloquei que eu sentia falta durante o tempo
que eu fiquei presa ao mestrado que é uma prisão eu deixei de ouvir as histórias que ela
contava. A minha avó era uma contadora de histórias. Era uma Sherazade, árabe, cozinha
tudo de bom, comida árabe e conta histórias e ela conta histórias se incluindo como
personagem. Muito legal! Então coisas do tipo (...) E eu sentava lá, ouvindo e ela: “Não,
porque você sabe que quando o homem chegou à lua eu vi da janela da cozinha? A lua estava
brilhando no céu (...)” E ela descreve com detalhes literários que é fantástico. “(...) A lua
brilhava no céu e quando o foguete aterrissou na lua, a lua se fechou como uma borboleta e
virou uma lua nova, na mesma hora a lua cheia virou lua nova porque ela se fechou como
uma borboleta (...)” –Risos Coisas desse tipo. E contava histórias que como um cavalo (...)
como um camelo venceu um cavalo. E assim você vai vendo as lendas populares e as fábulas
recontadas na visão dela , ela como personagem (...) Ela viajou o mundo inteiro, então ela
conta essas histórias de viagens pelo mundo. Ela fez Cruzeiro de navio pelo mundo inteiro, ela
conhece o mundo inteiro, então ela conta essas histórias de uma forma magistral, a gente
nunca sabe o que é verdade e o que é fantasia e é isso que é mais legal porque a gente vive
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aquelas histórias que ela conta. Ela está vivendo enquanto conta. Ela é a perfeita narradora.Ela
entra no universo mágico. Ela contando de quando ela participou de um concurso de Miss
dentro do navio e que ganhou nesse navio e tal. E ela contando o espaço, você sabe que aquilo
não deve ter acontecido, mas a forma como ela conta te prende na narrativa , é fantástico. Ela
escreveu alguns livros - ela é praticamente analfabeta, ela escreveu alguns livros contando
histórias. Eu lendo eu morria de rir gente engraçadíssimas as histórias da família do tipo,
uma pessoa grávida e não sabia, aos noves meses estava grávida foi ao banheiro, quando foi
ao banheiro, nasceu a criança –Risos –(...)
(Valéria) –Risos
(Yolanda) E eu estava transcrevendo isso, fui pescando para ver seu eu conseguia fazer um
lançamento de livro com ela ainda em vida, eu ia encadernar, transformar aquilo num livro em
letras douradas e tal, essa coisa toda, mas infelizmente não está dando tempo porque tem que
ser alguém que entenda a cabeça dela (...)
(Valéria) Tem que ser você.
(Yolanda) Tem que ser eu porque mandar para um copy desk ou uma revisora, eles não vão
entender porque ela é praticamente analfabeta. ela contratou um professor de português
para fazer ela escrever melhor os livros dela – ela tem um monte de livro lá – (...)
(Valéria) Escrito à mão?
(Yolanda) Escrito à mão, num caderninho, porque ela escreveu à mão na expectativa de eu
fazer um livro das histórias dela. Ela disse que os direitos autorais são meus . –Risos –
(Valéria) Claro.Mas você pretende fazer isso ainda?
(Yolanda) Pretendo. Espero que com ela em vida porque ela tem noventa e seis, mas ela
está bem, então continua contando histórias, inclusive mês que vem, eu e ela vamos contar
histórias num Ansionato, onde ela mora, histórias das mil e uma noites. Eu vou contar as
histórias das mil e uma noites que ela acha que é. Inclusive, ela diz que tem uma da qual ela
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participou, então ela vai ser personagem, ela vai contar a história para os colegas dela do
Ansionato.
(Valéria) Como você acha que isso passa para os seus alunos?
(Yolanda) Passa, passa. Quando a gente deixa o aluno falar (...) A criança é a mistura de
fantasia com a realidade e quando a gente deixa ela contarem as histórias, isso é legal. Ele de
improviso, como eu faço de vez em quando : “Agora é a hora e você. Vamos lá. Quem vão
contar uma história? “Aí se alguém levanta o dedo vai para frente, começa a inventar
histórias, com oito personagens. “É verdade tia!” Ele vai se colocando no lugar do narrador
que participa de alguma forma, ou de ouvir (...)
(Valéria) Então, Yolanda, eu queria que você falasse, para fechar como é que você se sente
contando essa parte da sua vida.
(Yolanda)Ah, eu adoro falar sobre a minha vida. Eu sou leonina. –Risos Falar sobre mim é
a melhor coisa. Eu brilho. Meus olhos brilham. Se o gravador pudesse registrar viria que meus
olhos estão brilhando porque eu adoro. Eu adoro essa parte da minha vida, digamos assim,
acho que constituiu a minha personalidade. Ser a pessoa espontânea que eu sou , ser a pessoa
que “viaja na maionese”como eu sou , ser a pessoa que é criativa que eu sou, tem haver com
isso, com a minha avó por parte de pai e com a minha mãe por um outro lado, que é a minha
mãe dos livros oficias e a minha avó das história inventadas, muito legal.
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