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KARLA BERBAT NETTO
ALFABETIZAÇÕES COTIDIANAS: LENDO O ESPAÇO,
DESCOBRINDO O MUNDO E ESCREVENDO A
PALAVRAMUNDO NOS ANOS INICIAIS
Orientadora: Profª Drª. Carmen Lúcia Vidal Perez
Niterói
2008
Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação
da Faculdade de Educação da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação.
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KARLA BERBAT NETTO
ALFABETIZAÇÕES COTIDIANAS: LENDO O ESPAÇO,
DESCOBRINDO O MUNDO E ESCREVENDO A
PALAVRAMUNDO NOS ANOS INICIAIS
Aprovada em 29 de maio de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª CARMEN LÚCIA VIDAL PEREZ
UFF
Profª Drª MARIA TEREZA GOUDARD TAVARES
UERJ
Profª Dr JADER JANER MOREIRA LOPES
UFF
Profª Drª MARISOL BARRENCO DE MELLO
UFF
Niterói
2008
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação
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AGRADECIMENTOS
A Professora Carmen Lúcia V. Pérez, orientadora, pela presença
franca, bem como especial atenção e cumplicidade na
investigação com as crianças.
Às crianças da turma F4B, da Escola Municipal Diógenes
Ribeiro de Mendonça, pela (co)participação emprestando as
suas vozes e presença através dos ditos e interditos
compartilhados durante o ano de 2006.
Às queridas companheiras descobertas durante as aulas de
mestrado, pelas muitas escutas e pela presença solidária nos
períodos tensos da pesquisa.
À Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, por ter
“aberto às portas” e acolhido a pesquisa.
Ao professor Waldeck Carneiro da Silva pelo apoio à pesquisa
durante a sua gestão como Secretário de Educação.
Á professora Suzana de Fátima Piaz Salgado de Oliveira,
diretora do C.Ap.Dom Hélder Câmara, pelo estímulo e generosa
liberação das minhas atividades de trabalho, contribuindo para
que fosse possível me dedicar à pesquisa.
A minha mãe, Lucira Berbat Netto e a Maria José da Silva,
companheira de muitos anos, por assumirem a minha jornada de
mãe suprindo as minhas ausências.
Aos meus pais, Lucira Berbat Netto e Sebastião Antônio Netto
(in memorian), por terem me ensinado a não desistir dos
desafios da vida.
A minha avó Iracema Vasconcelos Berbat, por tantas histórias
narradas e por me ensinar aos 89 anos, que as palavras
registradas nos ajudam a pensar e escrever o mundo.
Em especial agradeço a Nathália Netto Vidal de Souza,
Bernardo Netto Vidal de Souza (meus filhos) e Francisco Carlos
Vidal de Souza (meu marido) pelo apoio e pela compreensão
por tantas horas em que lhes privei da minha companhia.
Karla Berbat Netto
RESUMO
NETTO, Karla Berbat: alfabetizações cotidianas: lendo o espaço, descobrindo o mundo
e escrevendo a palavramundo nos anos iniciais. Orientadora: Carmen Lúcia Vidal Perez.
Niterói-RJ/UFF, 29/05/2008. Dissertação (Mestrado em Educação), 158 páginas.
Campo de Confluência: Estudos do Cotidiano da Educação Popular; Linha de
Pesquisa :Alfabetização dos Alunos e Alunas das Classes Populares; Projeto de
Pesquisa: Alfabetização geográfica: uma possibilidade quando a metodologia de
pesquisa contempla as crianças.
Uma das rotas traçadas no percurso da investigação com as crianças do ensino
fundamental, da Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, situada na cidade de
Niterói/ Rio de Janeiro, me leva ao encontro das experiências, narrativas e vozes infantis.
As crianças me ensinam a compreender como me alfabetizo cotidianamente na leitura do
espaço da escola. À medida que aprendo com as crianças, vou me (in)formando a partir
de suas (in)formações. A pesquisa como formação, que venho desenvolvendo, no curso
de mestrado da Universidade Federal Fluminense, tem me ensinado a aprender com as
crianças que, para além de aprendizes, ensinam a ensinar. Caminhos que conduzem a
outros caminhos, a escuta sensível (Barbier) e a geografia existencial (Milton Santos)
possibilitam à professora e crianças traçarem os mapas-imagens do cotidiano da sala de
aula. A opção metodológica de pesquisa com as crianças se constitui a partir das próprias
crianças. Descobri com Walter Benjamim que as narrativas das crianças podem revelar a
riqueza das experiências vividas no cotidiano. Deste modo, suas descobertas, o seu jeito
de ser e fazer, são tratados como documentos de investigação, que têm me permito
compreender as relações entre as experiências cotidianas, a leitura do espaço e a
produção de sua palavramundo (Freire). A leitura que as crianças fazem do mundo, das
relações sociais de vida, do ambiente escolar, ou seja, da realidade em que vivem são
instrumentos para a compreensão do cotidiano que nos acerca. A minha surpresa inicial
em relação à escola e o meu estranhamento foram definitivamente importantes para
desencadear o meu processo de inserção no grupo. Quanto menos inserida me sentia mais
me instigava a possibilidade de descobertas de um novo fazer, de forma que o
acolhimento pudesse sobrepor ao estranho. À medida que a pesquisa vai sendo tecida
vou refletindo sobre o espaço da sala de aula como possibilidade de potencialidade, de
subjetividades e de exercício de alteridade ao mesmo tempo que sou desafiada a
descobrir a produção.
Palavras-chave: vozes infantis, cotidiano, alfabetizações.
Abstract
One of the routes traced in the path of the investigation with the children of middle
school, from Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, located in the city of
Niterói / Rio de Janeiro, led me to the encounter of experiences, narratives and child
voices. The children help me comprehend how I am taught to read and write daily inside
the interpretation of the school area. As I learn with the children, I am (in) forming
myself, from their (in) formation. The research as part of formation, which I am
developing, in my master’s degree course in Universidade Federal Fluminense, has been
teaching me to learn with the children whom, besides being apprentices, teach how to
teach. Paths that lead to other paths, the Escuta Ssensível ( Barbier ) and the Geografia
Existencial (Milton Santos) makes it possible to the teacher and the children to trace the
image-maps of the quotidian in the class room. The methodological option of research
with children is based on the children themselves. I discovered with Walter Benjamin
that the narratives of children can reveal the wealth of their daily life experiences. This
way, their discoveries, their way of being and creating, are treated as investigation’s
documents, that have helped me comprehend the relation between the daily experiences,
the interpretation of area and the production of their palavramundo (Freire). The
interpretation that children have of the world, of life’s social relations, of the school
environment, that is, of the reality in which they live are instruments for the
understanding of the quotidian that surrounds us. My initial surprise concerning school
and lack of comprehension of it, were definitely important to unleash my process of
inclusion in the group. The less included I felt, the more instigated I was to the possibility
of discovering a new method of doing things, in a way that the welcoming could surpass
the strangeness. As this research is being composed I reflect on the class room area as a
possibility of potential, of subjectivities and at the same time, I am challenged to discover
the production.
Key words: child voices, quotidian, to learn to read and write.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................2
CAPÍTULO I.....................................................................................................................6
SITUANDO A PESQUISA E ME SITUANDO NA PESQUISA: A ENTRADA NO
CAMPO.............................................................................................................................6
CAPÍTULO II..................................................................................................................14
TRAÇANDO O CAMINHO ..........................................................................................14
2.1 De onde vim para onde vou ..........................................................................37
2.2 A escola ciclada: limites e possibilidades .....................................................42
2.3 No atalho da metodologia ...........................................................................51
CAPÍTULO III. ...............................................................................................................57
TODOS JUNTOS SOMAMOS QUASE NADA:
TENSÕES E CONTRADIÇÕES ....................................................................................57
CAPÍTULO IV.................................................................................................................68
A INFÂNCIA QUE FALA OU O QUE NOS REVELA A INFÂNCIA QUE
FALA...............................................................................................................................68
4.1 Delcy...............................................................................................................70
4.2 Joyce,..............................................................................................................85
4.3 Joyce, Grazielle e Beatriz...............................................................................90
4.4 Juliene, Poliana e...........................................................................................94
4.5 João Pedro.......................................................................................................97
4.6 Larissa..........................................................................................................100
4.7 Juliene..........................................................................................................106
4.8 Bruno............................................................................................................109
4.9 João Peaulo..................................................................................................114
5.0 Ryan...........................................................................................................117
CAPÍTULO V................................................................................................................121
NOMES E LUGARES...................................................................................................121
5.1 Mapas e maquetes
.......................................................................................149
CAPÍTULO VI...............................................................................................................168
SALA DE AULA: DO TAMANHO DO MUNDO......................................................168
CONCLUSÃO...............................................................................................................189
PONTO FINAL OU RETICÊNCIAS: TENTANDO FINALIZAR .............................189
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................193
DOCUMENTOS ETINOGRÁFICOS DO VIVIDO.....................................................198
LISTAGEM DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. História da professora, f. 74
Figura 2. Texto de Jean, f. 124
Figura 3. Mapa de Jean , f. 129
Figura 4. Mapa de Gabriel, f. 130
Figura 5. Foto do posto de saúde, f. 132
Figura 6. Foto do rio, f. 133
Figura 7. Foto da subida do morro, f.134
Figura 8. Foto da subida do morro , f. 135
Figura 9. Foto cisterna da empresa Águas de Niterói, f.135
Figura 10. Foto dos registros da cisterna da empresa Águas de Niterói , f. 136
Figura 11. Foto da Antiga casa de Joyce, f. 137
Figura 12. Foto da casa de Sebastiana, f. 137
Figura 13. Foto do recado registrado no muro, f.138
Figura 14. Foto do recado registrado no muro, f.139
Figura 15. Outros condomínios, f.140
Figura 16. Bar do Caranguejo, f.141
Figura 17. Dona Aurora sendo entrevistada, f.142
Figura 18. Crianças pesquisadoras, f.143
Figura 19. Mapa 1 de Claudia, f.151
Figura 20, mapa 1 de Polyana, f.152
Figura 21. Mapa 2 de Claudia, f.153
Figura 22. Mapa 2 de Polyana, f.153
Figura 23. Mapa 1 de Douglas, f.155
Figura 24. Mapa 2 de Douglas, f.155
Figura 25. Mapa 1 de Juliene, f.157
Figura 26. Mapa 1 de Lucas, f.157
Figura 27. Mapa 2 de Juliene, f.159
Figura 28. Mapa 2 de Lucas, f.159
Figura 29. Mapa 1 de José Carlos., f.161
Figura 3. Mapa 2 de José Carlos, f.162
Figura 31. Foto da sala de aula, f.165
Figura 32. Construção da maquete, f.166
Figura 33. Construção da maquete, f.166
Figura 34. Poesia do Sabiá, f.180
Figura 35. Atividades sobre a poesia Sabiá, f.180
Figura 36. Texto coletivo, f.185
Figura 37. Atividades sobre o texto coletivo, f.186
INTRODUÇÃO
Rubem Alves
1
Tornei-me educadora não sei como, quando e nem onde. Também não sei
quem me ajudou a nascer professora, de certo muitas outras pessoas, outras tantas
professoras, talvez a vida, sei que ao “nascer professora” vivo num processo de
1
http://www.rubemalves.com.br/conversacomeducadores.htm
O estudo da gramática não faz poetas. O estudo da harmonia
não faz compositores. O estudo da psicologia não faz pessoas
equilibradas. O estudo das "ciências da educação" não faz
educadores. Educadores não podem ser produzidos. Educadores
nascem. O que se pode fazer é ajudá-los a nascer. Para isso eu
falo e escrevo: para que eles tenham coragem de nascer. Quero
educar os educadores. E isso me grande prazer porque não
existe coisa mais importante que educar...
educar e ser educada. É meio que uma roda viva, a cada momento estou num ponto do
círculo, a cada momento vivo a experiência de educar e ser educada, quando não vivo as
duas emoções simultaneamente.é uma confusão, principalmente, se insisto em querer
saber qual foi o fio que entrelaçou os fazeres, por onde comecei ou terminei. Talvez
tenha sido por esses fazeres entrelaçados, com ou sem respostas, com ou sem
explicações, que tenha me feito descobrir o cotidiano escolar.
Penso que a professora Regina Leite Garcia está certa quando diz: “...
Minha trajetória de professora pesquisadora militante da educação me leva a abrir meu
baú de memórias e ir puxando fios que, de acordo com o modo de arrumá-los compõem
o desenho de minha vida...” (apud OLIVEIRA, 2007, p.122). Ao puxar os fios e tecê-los
numa escritura a ser compartilhada com as professoras, asReginas” nos ajudam a
pensar sobre as nossas próprias práticas.
É motivada por este fio de compreender como as narrativas das crianças
revelam a escola que me dedico a realização deste trabalho de mestrado. Embora muitas
questões tenham, durante a pesquisa, atravessado o meu caminho me permitindo,
inclusive, desviar o meu foco ao percorrer outros caminhos, a suspeita traduzida em
forma de questão me fazia retomar o foco principal. Exercício teórico-metodológico
complexo para quem opta por uma pesquisa não convencional.
A opção por uma metodologia de pesquisa com as crianças está em
“...reiterar a importância cada vez maior, em nossos dias, de aprender a ouvir as
crianças e os jovens...” (DERMATINI,2005,p.2) Ao ouvir as crianças busco
compreender o espaço da escola. Neste caso, a escola, o corpo docente e os demais
profissionais que nela estão inseridos passam a fazer parte da pesquisa.
A criança ao ser ouvida nos apresenta as suas expectativas e anseios em
relação a escola, a vida cotidiana e a postura dos adultos. Apresenta o seu entorno social
nos permitindo compreender como compreendem a escola. Quando penso numa
metodologia com as crianças - que prioriza as falas e as vozes infantis - não pretendo
debruçar os meus estudos na questão da linguagem infantil, mas nos relatos orais, fontes
primárias, que me ajudam a buscar a compreensão da minha prática de professora e da
escola a partir da visão da criança.
A minha inserção na Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça,
em março de 2006, se deu como a ocupação do estrangeiro que olha com perplexidade
e de forma interrogativa o mundo, que tudo mais nada naturaliza facilmente
(GREENE, 1995). Desta forma, tornava-se indispensável a minha inserção cotidiana no
espaço geográfico da escola. Ser professora de um grupo de crianças do ensino
fundamental implicava a condição de me alfabetizar cotidianamente, portanto, ler o
espaço, descobrir o mundo e escrever a palavramundo nos anos iniciais não era uma
prerrogativa só das crianças , era antes de tudo uma necessidade minha.
Desse modo, o meu interesse em investigar a lógica da escola a partir do
mundo das crianças inscreveu-se no campo dos estudos de diferentes autores, embora
tenham argumentações distintas entendo que a conexão de pensamento destes se no
cotidiano.
Em Walter Benjamin encontro o espírito inconformado com a razão que
aprisiona o conhecimento e vivo o exercício de permitir que os sentimentos simples
sejam pontes para novas experiências. Encontro nas narrativas do vivido à possibilidade
de tecer os fios da minha pesquisa.
Com Michael de Certeau vou compreendendo que o cotidiano é revelador
de diferentes práticas do sujeito na interação com os seus pares. Após a leitura de A
Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer comecei a perceber a importância de trazer para
o centro do cenário científico, as práticas, as situações corriqueiras, cotidianamente
vividas e formuladas pelos sujeito ordinários (os homens comuns). E é esse homem
ordinário sujeito, também, da minha pesquisa.
Milton Santos me apresenta uma Geografia que se revela na existência do
vivido. Uma Geografia existencial que me possibilita viver a experiência de descobrir
junto com as crianças a espacialidade dos acontecimentos cotidianos.
Encontro nos estudos de René Barbier
2
a escuta sensível - um tipo de
escuta “...favorável ao pesquisador-educador que pretende saber sentir o universo
afetivo, imaginário e cognitivo do outro para poder compreender de dentro suas
atitudes, comportamentos e sistema de idéias, de valores de símbolos e de mitos...”
2
Fala do autor na Conferência na Escola Superior de Ciências da Saúde – FEPECS – SES- GDF.2002
http://www.saude.df.gov.br/FEPECS
(2002, p. 1) .Assim, percorro o caminho da pesquisa buscando escutar com todos os
sentidos.
Recorro ao grande mestre Paulo Freire, que me ajuda a compreender que
fazer pesquisa não é trazer a prova certezas e evidências, mas antes de tudo um
aprender constante. Freire rejeitou a concepção de alfabetização como aquisição
mecânica de codificação e decodificação do código lingüístico e nos ensinou a pensar a
alfabetização como um ato político. Quando me permito ler o espaço junto com as
crianças me permito alfabetizar-me cotidianamente num processo dialógico,
abandonando uma educação bancária para dar espaço a uma educação transformadora.
não é novidade que a formação das professoras não se somente nos
cursos de formação. A diversidade cultural e a extensão territorial do Brasil, além das
políticas públicas contribuem para que tenhamos, cada vez mais, escolas e propostas
pedagógicas impostas pelo sistema. As propostas que nos tem sido apresentadas como
Provinha Brasil, SAEB, Parâmetos e Referências curriculares, tem apagado a diversidade
e silenciado as desigualdades, ao mesmo tempo em que enfatizam a homogeneidade.
Foi buscando tecer o fio entre a teoria e a prática de forma coerente que ao
viver a experiência de assumir uma turma do ensino fundamental, após muitos anos de
trabalho em educação, me pus na perspectiva de aprender a escola. Durante a pesquisa
fui compreendendo que a minha prática se sustentava, principalmente, em dois pilares: as
alfabetizações cotidianas” e os “combinados
3
”.
As práticas em pleno processo de ebulição, processo esse que foi me
dando a condição de interpretar o meu próprio fazer pedagógico, me permitiu rever e
questionar meu próprio fazer e minhas práticas anteriores e investir em outras
possibilidades de ser professora e suscita, ainda, outras descobertas.
Quando interajo com as crianças descubro outras maneiras de atuar.
Assim, os combinadosrevelam outras formas de agir junto às crianças e outras formas
de agir das crianças. Os “combinadossurgem como possibilidade de avançarmos, tática
3
Chamo de combinados os acordos feitos entre professoras e crianças. No âmbito pedagógico a professora
que procura ter uma relação dialógica cria o combinado, este é sempre o desejo de subverter o cotidiano
opressor. Entendo os combinados como ferramenta teórica de trabalho que nos permite através de práticas
instituintes superar a hegemonia que domina as práticas escolares.
que me possibilita ler e aprender o cotidiano escolar a partir dos acertos que vamos
fazendo a cada nova situação que surge.
Os combinados me ensinam, assim como as crianças. Aprendemos na e
com as negociações, produzidas pelos combinados outra dinâmica de interação. Os
combinados” se inserem no âmbito da ética das relações de ensinar e aprender,
rompendo com as relações de poder e com práticas disciplinares impostas. Cognitiva e
politicamente os combinados se constituem em momentos importantes da aula, articulam
a dimensão relacional e a dimensão epistemológica do saber.
Os combinados são negociações que acabam por influenciar as relações
éticas, políticas, epistemológicas e cognitivas no cotidiano da sala de aula. Os
combinados se articulam às alfabetizações cotidianas, por um processo de resignificação
das relações de ensino.
Tomando a alfabetização para além do código escrito me alfabetizo
quando me proponho aprender a construção de uma sala de aula democrática e
comprometida com as crianças das classes populares. Nessa perspectiva as relações de
ensino se articulam horizontalmente, pela circulação de saberes, e rompem com a
verticalização da relação o poder-saber.
Estou chamando de “alfabetizações cotidianas” as práticas inseridas no
campo da utopia para muitos, mas plenamente possível e real para as professoras
comprometidas e dispostas a romper com saberes instituídos. A ruptura de modelos
hegemonicamente estabelecidos é possível quando nos dispomos aprender a aprender
o cotidiano da escola.
É através dos “arranjos” diários e das negociações que vamos instituindo
outros fazeres, reconhecendo outras maneiras, nem sempre democráticas e tranqüilas, de
nos colocarmos no espaço da escola. Desta forma, considero que os combinados são
táticas que me ajudam a trilhar os caminhos da pesquisa ao mesmo tempo em que me
ajudam a ler essas relações através das “alfabetizações cotidianas”.
A pesquisa com o cotidiano rompe com a linearidade, pois o cotidiano não
é estático, ao contrário, o cotidiano é vida. Assim, a pesquisa subverte a linearidade
cronológica dos fatos e funde tempoespaço no movimento permanente do cotidiano.
Como uma narrativa que atualiza o passado no presente fundido-os no futuro (o futuro é
a leitura que você leitor faz deste texto), a pesquisa não se prendeu a uma ortodoxia
metodológica, portanto, sua escrita não pretendeu organizar a redação nos moldes
clássicos da escrita científica. Partindo deste princípio, o tempo verbal não esta
engessado. A pesquisadora é também um sujeito da pesquisa, que ao registrar a autoria
da crianças que são (co) pesquisadoras narra o cotidiano vivido e aprendido.
Nos momentos de intenso envolvimento com os acontecimentos, a redação
do texto era registrado tomando o tempo verbal do presente. Em outros momentos,
quando me encontro refletindo sobre os fatos vividos o tempo verbal da redação me leva
ao registro do passado. Essa fusão tempo-espaço e registro me aprisiona ao mesmo
tempo que me ensina a ousar: emancipo-me de minha própria escrita.
Os capítulos formam dobras que se desdobram na pluralidade de sentido
dos acontecimentos. A pesquisa com o cotidiano que toma para si a criança não pretende
discutir a criança, mas deixar falar o/a infante desconstruindo a idéia da universalidade
da infância.
O capítulo 1, Situando a pesquisa e me situando na pesquisa: a entrada
no campo discute a trajetória da professora e o encontro com a pesquisa. Apresenta a
inserção da professora no cotidiano escolar, quando está descobre que o cotidiano é mais
do que a rotina do vivido é um campo epistemológico em pleno processo de atuação.
o capítulo 2, Traçando o caminho”, pretende apresentar a minha
trajetória de professora, que vai se tornando pesquisadora de sua própria prática
profissional durante os longos anos de trabalho. Narra a experiência vivida em escolas
particulares e o encontro com a escola pública.
O encontro com o primeiro campo de pesquisa e a necessidade de se
inserir em um novo campo vai sendo relatado quando apresenta a seção De onde vim
para onde vou”. A terceira seção A escola ciclada: limites e possibilidades, busca
discutir o modelo de formação, a atuação e a transição para outra lógica, os conflitos da
professora e a busca pela “boa professora”. Ainda no mesmo capítulo, a seção No
atalho da metodologia”, apresenta a pesquisa e o seu desenvolvimento metodológico.
O capítulo 3, Todos juntos somamos quase nada: tensões e
contradições” apresenta a interação entre as professoras da escola e a equipe técnico-
pedagógica. Essa relação vai sendo questionada a medida que a pesquisadora vai
compreendendo como a escola se organiza e quais são as tensões vividas pelo grupo. Ao
mesmo tempo as tensões e contradições da escola vão possibilitando compreender a
leitura que as crianças fazem da escola.
O capítulo 4, A infância que fala ou o que nos revela a infância que
fala” centra-se nas narrativas das crianças. Ao me aproximar do espaço de vida de cada
uma das crianças, do entorno que as cerca, as falas e comportamentos que expressam um
pouco de suas vidas e de suas relações no ambiente escolar vou tecendo os fios da
pesquisa. Busco compreender como as crianças pensam a escola, como vivem o espaço
escolar, como constroem os conhecimentos.
O capítulo 5, “Nomes, Lugares, Mapas e maquetes”, apresenta as práticas
realizadas com as crianças durante o ano letivo de 2006. As práticas realizadas permitem
entender um pouco mais sobre as crianças e sobre suas lógicas. Procura compreender
como romper com o modelo de aula convencional, quando cotidianamente professora e
crianças em interação descobrem outras formas de aprenderensinaraprender.
o capítulo 6, “Sala de aula que espaço é esse?”
4
, pretende discutir a sala de
aula como espaço de criação. Demarca o espaço de encontro da professora com ela
mesma, pois o que ecoava como estranho no primeiro momento, torna-se espaço de
influência mútua. Os laços afetivos, os nculos que nos fomos permitindo criar, as
aventuras narradas disseminaram vida ao lugar.
A partir daí os combinados eram mantidos como possibilidade dialógica que mediava as
práticas do grupo. A conclusão “Ponto final ou reticências: tentando finalizar” pretende
discutir a trajetória da pesquisa e a importância desta para a formação de professora-
pesquisadora e de crianças investigadoras que coletivamente constroem (com)partilham
novos significados para a sala de aula, novas aprendizagens e novas descobertas
4
Tomo emprestado o título do livro de Regis de Morais, Sala de Aula: que Espaço é Esse?
CAPÍTULO I
SITUANDO A PESQUISA E ME SITUANDO NA
PESQUISA: A ENTRADA NO CAMPO
A experiência de viver a prática de sala de aula com as crianças me permite
apreender o que é imprevisível: o cotidiano é aventureiro, jamais previsível. O encontro
da professora com as teorias possibilitou outras leituras sobre a escola. Permitir o
encontro com a escola “nua” “despida” de toda e qualquer previsibilidade é possível,
nesta pesquisa, quando me liberto das concepções de escolas restringidas pelo modelo
hegemônico. Quando me permito viajar com as crianças percorrendo um itinerário a ser
demarcado através das narrativas do vivido. A pesquisa no cotidiano revela o nosso
próprio cotidiano.
Viver aquela escola, espaço novo aos meus olhos, mas familiar às crianças, pois
muito perpassam dois ou três anos naquele ambiente, é possibilitar as descobertas.
Aqueles que vivem intensamente a escola, a ponto de perceberem que embora
aparentemente igual guarda segredos e mistérios, sabem do que estou falando. Segredos,
velados entre os sujeitos e escondidos nos arquivos da memória daqueles que habitam o
seu interior, peças escondidas de uma engrenagem que funciona dentro de outra
engrenagem: a escola e seus “combinados”.
Ouvir a voz das crianças não se constitui como
um simples desiderato metodológico, mas como
uma condição decisiva para o estabelecimento
do diálogo intergeracional que a ciência social
é convidada a realizar.
Sarmento, Manuel J.
Não me é novidade o desafio do exercício da professora-pesquisadora que faz da
sua própria prática um campo fértil, onde prática e teoria se encontram a partir da
reflexão sobre o vivido. Hoje percebo que muito venho, implicitamente, fazendo esse
exercício. Essa práxis em pleno processo de construção, nunca linear, nunca homogênea,
fascina aqueles que vêem no interior da escola uma beleza singular, própria das escolas.
Não falo da beleza romântica e ingênua, aquela que me levou a optar, aos 16
anos, em ser professora e permeou o meu imaginário de estudante do curso de formação
de professores. Falo da beleza da complexidade, aquela que se revela em cada criança,
cada professor ou professora, cada funcionário que ali trabalha, cada diretora ou diretor,
coordenador, orientador... Enfim, falo das relações que se manifestam em cada escola e
do quanto essas relações podem enriquecer, potencializando aprendizagens e produção
dos saberes, ou promovendo o fracasso.
Ler o cotidiano da escola ao mesmo tempo em que estou implicada na pesquisa
com cotidiano é teorizá-lo. É pensar o cotidiano além do dia-a-dia compulsivamente
vivido. É perceber que o que foi dito em reuniões, festividades e encontros... nem sempre
é somente o que foi dito porque está interiorizado em cada sujeito de forma diferente:
interditos que guardam segredos, conduzem negociações e dão forma ao modo de
funcionamento singular de cada escola.
Serão os segredos e combinados, velados no interior da escola e do qual não
participamos, que de certa forma nos encanta e nos fazem viver misteriosamente esse
cotidiano? Embora esse cotidiano nunca nos negue o quanto é árduo continuamos a
habitar o chão da escola. Somos nós mesmas que denunciamos quase que diariamente: os
baixos salários, as péssimas condições de trabalho, as crianças “indisciplinadas”, os pais
“malcriados”, os diretores ausentes ou muito exigentes, mas somos nós mesmas que ali
permanecemos. Às vezes com as nossas aulas “caducas”, cansativas e pouco atraentes.
Outras vezes, dedicadas e liberadas para o prazer e a dor de sentir que a aula é vida e que,
portanto, também, guarda os seus segredos.
Foi vivendo esse cotidiano misterioso e fascinante ao longo de muitos anos de
exercício profissional que comecei a suspeitar que poderia compreender de fato a
escola se fosse capaz de compreender a compreensão da criança sobre a escola. Assim,
chego ao curso de mestrado com uma suspeita traduzida em forma de questão de
pesquisa: buscar a partir das crianças compreender melhor a escola e a criança na escola.
Optar pelas vozes das crianças é optar por sujeitos que tem sido negado historicamente.
Esse desafio me assusta. Como trazer para a pesquisa vozes silenciadas? Como
reconhecer a importância de uma pesquisa em que os sujeitos nela implicados foram
negados ao longo da história?
Na tentativa de resposta, pois aprendi que professoras devem ter sempre
respostas, é que vou fazendo perguntas e tentando respondê-las. Ainda que as respostas
não sejam verdadeiras e únicas, ainda que sejam possibilidades e caminhos, busco
através das perguntas traçar uma cartografia das indagações, que como um mapa pode
me auxiliar a traçar rotas de investigação, mesmo sabendo que rotas podem implicar
rupturas com o traçado original da representação.
Vivo essa história, sou parte dela e é isso que me autoriza a pensar que essa
narrativa foi tecida com os fios da experiência significativa, pois como nos afirma
Benjamim (1993) é possível narrar quando vivemos intensamente a história e quando
esta história passa a ser nossa também... Todos nós somos dotados de sentimentos e
valores que integram o nosso ser e, por conseguinte nos faz ser aquilo que somos, mesmo
que nem sempre saibamos reconhecer essa manifestação interior. A escuta sensível que
para René Barbier (1992) “...é o modo de tomar consciência e de interferir, próprio do
pesquisador ou educador que adote essa lógica...” é a condição necessária à professora e
pesquisadora que enquanto sujeito da pesquisa é também a professora daquele grupo.
Portanto, as falas e atitudes das crianças vão dando corpo à pesquisa e sugerindo uma
possibilidade metodológica, sempre que a argumentação reflexiva vai despertando na
professora um sentido maior.
Uma das rotas traçadas no percurso da investigação com as crianças do ensino
fundamental, da Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, situada na cidade de
Niterói, me leva ao encontro das experiências, narrativas e vozes infantis. Narrativas,
vozes e experiências que me ensinam a compreender como me alfabetizo cotidianamente
na leitura do espaço da escola. À medida que aprendo com as crianças, vou me (com)
formando a partir de suas (in)formações. Como professora da turma F4b - grupo de
crianças do segundo ciclo
5
do ensino fundamental - tenho percorrido outros caminhos de
5
No município de Niterói as escolas são organizadas em sistema de ciclos (escolas cicladas como são
denominadas). No lugar de séries anuais, os ciclos trabalham com períodos alongados em que a idade e os
interesses em comuns dos alunos são os principais articuladores do processo de ensino e de aprendizagem.
Ver Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Educação de Niterói, www.educacao niteroi .com.br
formação. A pesquisa como formação vem me ensinando a aprender com as crianças
que, além de aprendizes, ensinam a ensinar.
Acredito que independente das minhas marcas, o lugar de onde falamos nos
conduz a uma prática. Nos tornamos professoras sempre que o nosso fazer está
comprometido com ideais e concepções de vida. Assim, ao escutar as crianças, prática
que vai além do ouvir, pois nos aprisiona ao outro em todos os sentidos, marcamos a
diferença na escola e na sala de aula. Entendo que é como se ouvíssemos com todos os
sentidos, como se tatuássemos outras realidades em nós mesmos, assim é a escuta
sensível, escuta que nos permite captar o outro e nos entregar a ele dando sentido ao que
é vivido.
Parto do pressuposto de que vivo inteiramente aquilo que conheço ou
aquilo que desconfiando conhecer me instiga as novas descobertas. Não me entrego a um
espaço que não me é familiar. Portanto, busco traçar com as crianças nossa geografia
existencial
6
o que implica pensar como cotidianamente lemos e escrevemos o espaço da
Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça.
A sala de aula é o espaço banal, o ponto de partida da pesquisa. Para
Milton Santos (1997) o espaço banal é o espaço do vivido, da solidariedade, das
emoções e não da racionalidade técnica que delimita uma área, neste caso não como
pensar uma geografia que delimite, aprisione o homem. A pesquisa com o cotidiano vai
me possibilitando descobrir que a geografia preocupada com a existência é, ao mesmo
tempo, uma indagação sobre os acontecimentos onde cada atuação se segundo seu
tempo, mas todas elas têm significado. É dentro dessa lógica que entendo como o espaço
banal da pesquisa, a sala de aula.
A geografia como escrita existencial me ajuda a compreender a(s)
criança(s), não a criança universal dos manuais didáticos, mas aquela(s) criança(s)
singular(es) com quem descubro outros territórios de saberes que transformam
cotidianamente o lugar da sala de aula num espaço praticado. Tomo aqui o sentido de
território para além do
[...] conceito clássico sedimentado somente no espaço físico e seus
atributos (como solo, recursos naturais, hídricos e outros) para ser
6
Milton Santos nos leva ao encontro de outra concepção de geografia cuja categoria da existência presta-se
a um tratamento geográfico do mundo vivido.
compreendido como um conjunto de relações sociais que imbricam e
projetam num determinado espaço suas representações, cujas
fronteiras se deslocam no espaço-tempo e são prenhos de
subjetividade em suas manifestações. (LOPES,2007,p. 78)
Esses territórios, vividos com as crianças no cotidiano da sala de aula, me
ajudam a descobrir a pesquisa e a me descobrir nesta pesquisa. A concepção de geografia
como escrita existencial orienta a prática de uma pesquisa, que busca captar a
complexidade das relações diferenciadas da(s) criança(s) com a escola e as relações da
escola com a(s) criança(s). Na pesquisa, as letras e palavras formam fios de frases que ao
serem registradas no papel emprestam vida as nossas construções diárias. Caminhos que
conduzem a outros caminhos, a escuta sensível e a geografia existencial possibilitam as
professora e crianças a traçarem os mapas-imagens de uma cartografia simbólica
7
do
cotidiano da sala de aula.
A opção metodológica de pesquisa com as crianças se constitui a partir das
próprias crianças. As narrativas das crianças, suas descobertas, o seu jeito de ser e fazer,
são tratados como documentos de investigação, que m me permito compreender as
relações entre as experiências cotidianas e a leitura do espaço. A infância que fala
oralmente e escrituralmente se alfabetiza à medida que vai produzindo a sua
palavramundo (FREIRE,2003). Assim a leitura que as crianças fazem do mundo, das
relações sociais de vida, do ambiente escolar, ou seja, da realidade em que vivem são
instrumentos para a compreensão do cotidiano que nos acerca.
Portanto, não um planejamento prévio do que me proponho escutar ou
observar, não há um critério único ou mais relevante no comportamento das crianças que
me faça debruçar a atenção. Existe, entretanto, um caminho investigativo que me convida
a estar atenta aos saberes, aprendizagens, experiências e emoções vividas em suas
relações com a escola. Neste caso, a escola e todas as relações que perpassam no seu
interior; a minha formação e a minha trajetória profissional acabam por contribuir para
essa pesquisa.
Ainda na intenção de compreender as relações das crianças com a escola, as
professoras e demais adultos que nela trabalham recorro a Boaventura Souza Santos
7
A partir de Boaventura (2000) compreendemos a Cartografia simbólica como modo de imaginar e
representar a realidade social. A utilização da cartografia permite a identificação das estruturas de
representações dos diversos campos do saber sobre a realidade social.
(2005, p.198), e vou me certificando de que assim como os mapas distorcem a
realidade para instituir a orientação...” a metodologia de pesquisa que toma a criança
como sujeito da pesquisa transita por um caminho híbrido, uma cartografia simbólica,
que distorce a realidade na perspectiva de construir o conhecimento.
A sociedade brasileira é marcada pela diversidade cultural, social e econômica.
Em meio a essas relações encontramos a criança, sujeito que aprende a viver socialmente.
É preciso que se pense que não são somente os artefatos eletrônicos sofisticados e os
brinquedos e quinquilharias coloridas e planejadas para despertar a atenção das crianças,
que garantem uma infância feliz. Se fosse assim, como ficariam as crianças que estão
fora desse mercado de consumo?
Longe de lidar com os artefatos infantilizados e produzidos por empresas que
fazem da criança-consumidor um mercado potencial de lucros imediatos, as crianças em
suas brincadeiras exercitam a inventividade. Através da imaginação transformam
materiais, subvertem significados e recriam o uso de objetos, como bricoleur
8
, a criança
cria seus brinquedos e brincadeiras e produz arte.
Pensemos naqueles que usam o trabalho, uma realidade cada vez mais imposta as
nossas crianças pobres, como lugar onde as brincadeiras também acontecem. Usam
transformar a realidade cruel em artifício de diversão. Pensemos ainda naquelas crianças
que vivendo em áreas adversas planejadas pelos adultos, aprendem que não espaço
para as brincadeiras, numa sociedade marcada pelo medo, ódio e violência. Ainda assim,
reinventam um cotidiano astucioso, humanizam o espaço pela arte de fazer - condição
indispensável aos seres humanos, como nos afirma Certeau( 1994 ).
Dentro desta linha de raciocínio, não tempo para o ócio na infância das
crianças contemporâneas. O mundo adultocêntrico
9
ou liberta as crianças para o
consumo desenfreado ou a aprisiona dentro do seu próprio mundo, roubando-lhe a
expressividade espontânea. Mas de que infâncias falamos? Será que uma única
infância?
8
Bricoleur - arte típica daqueles que usam materiais improvisados utilizando-os intuitivamente. Fazem uso
da criatividade e não a imposição de projetos e esquemas pré-estabelecidos.
9
" O termo adultocêntrico aproxima-se aqui de outro termo bastante utilizado na Antropologia: o
etnocentrismo: uma visão de mundo segundo a qual o grupo ao qual pertencemos é tomado como centro de
tudo e os outros são olhados segundo nossos valores, criando-se um modelo que serve de parâmetro para
qualquer comparação. Nesse caso o modelo é o adulto e tudo passa a ser visto e sentido segundo a ótica do
adulto, ele é o centro" (Gobbi, 1997:26).
Infância não é somente um “...estado intermédio de maturação e
desenvolvimento humano, nem tampouco são eles indivíduos que se desenvolvem
independente da construção social das suas condições de existência e das
representações e imagens historicamente construídas sobre e para eles...”
(SARMENTO,1998,p.1). Reconhecer a criança é antes de tudo compreender a infância,
mas não do ponto de vista do adulto e sim a partir da lógica da criança. Falo de uma
infância em que a multiplicidade de acontecimentos faz com que as crianças interajam no
mundo dos adultos não de forma passiva, ao contrário, participem como seres integrantes
e ativos da vida social.
A escuta sensível me possibilitou reconhecer que a fala das crianças precisam ser
legitimadas para que os saberes e aprendizagens se façam presentes no contexto da sala
de aula. Longe de ser uma atitude espontaneísta, escutar as crianças é a condição
necessária para compreender a lógica que orienta a compreensão (e a ação) das crianças
sobre e na vida, no mundo, na escola.
Escutar com todos os sentidos é condição necessária à pesquisa com as crianças
(também pesquisa com o cotidiano). Não se trata apenas de me colocar no papel de
observador, é preciso um estado de atenção de vigilância ao meu fazer. As negociações e
os combinados, que resultam das relações que nos acompanharam durante o ano letivo,
nos possibilitaram caminhar num diálogo constante pronunciado entre o jogo de bola, as
brincadeiras e as atividades de sala de aula. Possibilitaram ainda, indagações sobre a
minha vida ao mesmo tempo em que revelam a sua.
Entre as falas, as curiosidades, os combinados, o tempo que nos movia em ritmos
diferentes e a sensibilidade de se buscar escutar por inteiro é que a pesquisa vai
acontecendo. É uma rede com fios tecidos por uma coletividade, tão bem tecidos que não
sei exatamente onde começa e termina o fiar. Assim, o privilegio a ordem dos
acontecimentos, vou tecendo os fios do inicio, do meio sem uma preocupação com o fim.
Vou entrelaçando os fios das histórias dos meus alunos com os fios da minha história.
CAPÍTULO II
TRAÇANDO O CAMINHO
Embora não tenha a intenção de organizar cronologicamente a pesquisa,
certa disposição do texto favorecerá ao leitor acompanhar a trajeto que fiz com as
crianças da turma F4 B (4º ano do ensino fundamental turma B) da escola Municipal
Diógenes Ribeiro de Mendonça, em Niterói, no ano de 2006. Sendo a professora da
turma e pesquisadora vinculada ao grupo do cotidiano da UFF, a minha pesquisa se
nas práticas com as crianças.
Na perspectiva de situar o espaço-tempo é que vou contando a minha
história. História essa que antecede a entrada no campo de pesquisa, propriamente dito,
mas que de certa forma me lança a pesquisa e me convida a adentrar no cotidiano da vida
escolar dialogando com as metodologias de pesquisa com crianças
10
.
Havia guardado todos os meus livros na estante e decidido entrar de férias.
No ano anterior àquele janeiro de 2003, os livros foram os meus parceiros inseparáveis.
Lecionava com disciplinas da área pedagógica em cursos de Formação de Professores,
além de Orientadora Pedagógica de uma escola particular, portanto chegara o momento
de descansar daquela rotina. Aproveitava os dias de férias, até que um telegrama da
prefeitura de Niterói solicitava meu comparecimento para ingresso ao magistério. Sorri!
Uma mistura de felicidade e incertezas tomou conta de mim. Se por um lado havia feito o
concurso e desejava fazer parte daquela realidade, por outro o meu imaginário criava
alguns obstáculos.
A minha trajetória profissional estava marcada pelo tempo que me constituiu em
professora. Tempo este que reencontro nas lembranças de aluna da escola pública, tempo
que transforma vivências em experiência tão profundas que me marca como professora e
orientadora pedagógica. Mas se são as marcas deixadas pelo trabalho que transformam as
nossas práticas, o meu fazer estava marcado por um modelo próprio que atende aos
interesses de uma determinada classe e de uma determinada escola. Sabia que os vinte e
três anos atuando em escolas particulares influenciaram o meu saber e o meu fazer.
Conseguiria me adaptar a realidade da escola pública?
10
Sobre essa perspectiva metodológica consultar Prado (org), Por uma cultura da Infância: metodologias
de pesquisa com crianças, ed. Autores Associados.
Formei-me professora no ano de 1981. Antes de concluir o curso, trabalhava
como “auxiliar” da alfabetização em uma escola particular. Pouco tempo depois de ser
admitida como professora, a direção da escola propôs que assumisse a coordenação da
Educação Infantil. Na escola particular a coordenação é, na maioria das vezes, ocupada
por um pedagogo e o trabalho consiste na orientação pedagógica. Lá fiquei por 10 anos e
transitei como coordenadora em outras etapas de escolaridade.
Ao mesmo tempo em que assumia a coordenação, era professora das séries
iniciais. Após concluir a universidade, atuei como professora de alguns cursos de
formação de professores em outras escolas particulares. Essa atuação, de certa forma, me
levava a tecer outras práticas, a vivenciar outras realidades à medida que ouvia os meus
pares e me fazia refletir, cada vez que as nossas argumentações, sobre o saber-fazer da
profissão, pareciam não ter respostas.
Ao sair da primeira escola, onde adquiri as primeiras aproximações como
professora e orientadora pedagógica, ingressei em outra escola particular como
coordenadora da Educação Infantil e Ensino Fundamental, onde atuo 13 anos. Esses
dados são importantes, quando a partir deles, vou situando o meu saber-fazer, refletindo a
minha prática e entendendo como me faço professora.
Embora, até então, estivesse exercido a profissão em escolas que atendiam aos
interesses da classe média, instigava-me, naquela etapa da minha vida profissional,
ingressar em uma escola pública. A trajetória de aluna, oriunda da escola pública, me
dava à condição de entender a competição desigual de quem freqüenta os bancos
escolares e cada vez mais percebia o quanto as contradições permeavam o meu cotidiano.
Sempre me incomodou o discurso e as práticas ao mérito pessoal, o estímulo aos
interesses estritamente individualistas e as práticas de estímulo à competitividade.
Discursos velados mais comuns em instituições onde os interesses estão voltados para a
qualidade do ensino, numa perspectiva de eliminação de uns sob os outros.
Assumir a escola pública era predispor a caminhar por uma realidade conhecida e
desconhecida ao mesmo tempo, significava pôr a prova as minhas próprias inquietações.
Embora em uma etapa anterior da minha vida, tenha renunciado o emprego público por
receber uma proposta promissora de uma escola particular, eu desejava viver essa
realidade.
Se por um lado, havia feito um exercício individualista de luta pela promoção da
minha própria sobrevivência, através da valorização econômica e social do meu trabalho,
por outro, desejava aproximar-me da luta pela melhoria da qualidade de vida do conjunto
da sociedade brasileira menos assistida. Sabia que por esse atalho eu conseguiria
percorrer aproximando-me da escola pública. Longe de ter uma perspectiva salvadorista,
de pensar que mudaria o rumo da educação com o meu ingresso ao magistério público,
era uma esperança de construir, desconstruindo e reconstruindo com o outro que
atravessasse o meu caminho outra possibilidade de escrever a minha história.
Conhecer de fato é viver o chão da escola. A realidade da escola conhece
quem interage dentro/com ela. Essa leitura eu já fazia. Sabia que para falar da escola era
preciso vivê-la, encarná-la. Reconhecia também que ocupar a função de O. P
orientadora pedagógica- na escola particular é aprender a lidar com a complexidade do
cotidiano da escola. Porém, são outras questões, outras relações... As relações começam
na esfera político-administrativa: se na escola particular as questões perpassam pela
tomada de decisões e resoluções de problemas relacionados a uma unidade, na escola
pública se fala de uma rede. Obviamente a complexidade é muito maior e não se encerra
na esfera administrativa, política, econômica e social.
Era o meu saber-fazer que provocava dúvidas, em mim mesma. A experiência
com o trabalho desenvolvido na escola particular vai se incorporando à minha prática e
vou me constituindo, também, na professora que vai para a escola pública. Trago esse
conceito a partir de Larossa
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que
nada nos aconteça. (2002, p.21).
O conceito é entendido como acontecimento em que a nossa participação se
com a vida. O mesmo autor dentro dessa perspectiva chama a atenção para o filósofo
alemão Walter Benjamin (1987) quanto afirma que é a “...pobreza de experiências que
caracteriza o nosso mundo...” e ainda acrescenta que “...a informação não é
experiência...”
Partindo dessa compreensão, reafirmo a minha passagem pela escola particular
como uma experiência no sentido benjaminiano. Se uma das mazelas criadas pelo mundo
moderno é a decadência da experiência por falta de tempo, no meu caso, o tempo vivido
dentro daquela realidade reafirmava a experiência vivida numa lógica que foi me
permitindo ler o mundo, de um ponto de vista, de um lugar. Ao mesmo tempo em que me
incomodavam algumas práticas competitivas e individualistas, ia me envolvendo e
aprisionando em idéias e ideais que não eram meus ou se eram não encontrei outros
atores que me ajudasse a desconstruí-las.
Porém, uma questão forte me fazia hesitar em assumir o novo trabalho: a minha
prática pedagógica e a compreensão “engessada” de escola tão impregnada no meu
fazer, que o meu discurso e as minhas concepções ideológicas de escola por ora se
esvaziavam, sem que eu me desse conta. O telegrama de convocação não era um
convite de ingresso ao magistério público: era um convite às minhas origens, às minhas
convicções a muito deixadas de lado, à minha militância político-pedagógica nunca
exercida, portanto simplesmente ideológicas.
Trilhando o caminho até então percorrido, aprendi que entre o saber e o fazer
do professor está imposto um princípio que se baseia na filosofia da instituição e na
demanda de interesses da comunidade. No caso das escolas particulares, está
representada principalmente pelos pais, pelas decisões da direção, além da influência dos
meios de comunicação, da cultura tecnológica e de outras tantas questões que emanam do
capital.
Enquanto representante da escola, assumindo o papel de Orientadora Pedagógica
o meu discurso transcorria por um ideal de escola que entendia a criança como um ser
ativo que cria hipóteses sobre o meio. Logo, a minha concepção se apoiava na teoria
interacionista, o interacionismo construtivista de Piaget e o sócio-interacionismo
proposto por Vygotsky. Reflexões muito em voga no final dos anos 80 e início dos anos
90, período em que me formei e comecei a minha atuação. E não era por acaso a minha
opção epistemológica, afinal os estudos e pesquisas mostravam o quanto avançávamos ao
percorrermos o desafio do conhecimento por este caminho. Mas será que na prática é
assim?
A perspectiva metodológica que pautava o meu discurso contemplava um ser em
ebulição que em nada combinava com o sujeito receptor de informações. Entretanto,
entre o discurso e a prática é possível se encontrar uma lacuna, uma dificuldade que nem
sempre compreendemos onde inicia e onde se encerra. Segundo Boaventura (1987)
vivemos um período paradigmático, onde o rigor cientifico que desconsidera as
experiências mais simples e estimula o conhecimento utilitário e funcional vem sendo
posta em questão. Porém, o próprio autor explica que a morte de um paradigma e o
nascimento de outro não se como acontece com os seres humanos, onde nascimento e
morte podem ser datados.
Dentro dessa perspectiva é compreensível o entendimento de que vivemos um
momento de transição, difícil de entender e de percorrer. O modelo de racionalidade
científica atravessa uma profunda crise que não sabemos exatamente até quando a
viveremos. Segundo Boaventura
A crise do paradigma dominante é o resultado interativo de uma
pluralidade de condições. Distingo entre condições sociais e condições
teóricas. Darei mais atenção às condições teóricas e por elas começo.
A primeira observação, que não é tão trivial quanto parece, é que a
identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma
científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento
que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a
fragilidade dos pilares em que se funda. (1987.p.41)
A crise da ciência que nos aponta Boaventura reflete em nós porque somos
nós o passado, o presente e a perspectiva de futuro. Vivemos a era dos grandes avanços,
mas nos contradizemos quando as nossas ações não vão de encontro a todo conhecimento
adquirido.
Responder se conseguiria ou não me adaptar a realidade da escola pública era
uma questão que não se manifestava na certeza de como fazer, manifestava-se na dúvida,
na incerteza, na atenção, na passividade e no cuidado ao adentrar em outro espaço: a
escola pública. Segundo Heidegger
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece,
nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma.
Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa
precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui:
sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à
medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer,
portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela,
entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados
por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do
tempo. (Apud, Larossa, 2002, p. 25)
É dentro dessa perspectiva de nos deixarmos abordar em nós mesmos que me
abria a novas práticas, no lugar experiência como verdade trazia a incerteza. Convencida
de que se não me apropriasse daquele fazer desistiria após o primeiro ano de trabalho,
escolhi a UMEI Itaipu (Unidade Municipal de Educação Infantil), primeiro por gostar
muito de trabalhar com crianças desta faixa etária, segundo porque a localização
favorecia o deslocamento para a outra escola. A UMEI- Itaipu fica localizada na Região
Oceânica de Niterói, área nobre e privilegiada pela paisagem e tranqüilidade que oferece
em plena área urbana.
A escola é de fácil acesso à comunidade. Do seu pátio é possível contemplar a
exuberância da serra da Tiririca e caminhando um pouco mais alcançamos duas praias da
região oceânica: Itacoatiara e Itaipu. Nos arredores condomínios luxuosos e casas
confortáveis em meio à comunidade de pescadores. As casas mais simples são habitadas,
geralmente, por moradores antigos na região.
Na UMEI cada agente educacional
11
acompanhava uma turma pela manhã, junto
com a professora, e a tarde assumia sozinha, que as professoras trabalhavam pela
manhã. Interessante é que na turma que não havia agente educacional a professora ficava
sozinha, pois em geral elas, as agentes, se negavam a fazer algum tipo de rodízio. Fato
que estranhei muito, que na escola particular isso jamais ocorreria desta forma. É
possível até que um funcionário demonstre insatisfação em exercer uma ou outra tarefa,
mas ele sabe o risco que corre ao se negar a fazer algo por motivos pessoais. Esses
detalhes iam me ajudando a ler o cotidiano da escola e entender as práticas dos sujeitos
praticantes (Certeau, 1994).
No campo das relações sociais é que aprendemos a “ocupar” o “lugar” que nos
cabe e que nos é imposto socialmente, entretanto a relação com a vida não nos impede à
abertura de outros modos de existência. Nas relações diretas entre empregador e
empregado, as ordens estabelecidas são mais difíceis de serem rompidas.
No caso do emprego público, até certo ponto, é comum subverter a ordem e
manter-se resistente ao que foi estabelecido, o que nem sempre reflete em melhoria das
condições de trabalho para o coletivo. Por outro lado, são os enfrentamentos, as críticas
11
Nas escolas do município de Niterói a agente educacional é uma funcionária concursada que tem como
atribuição ajudar a professora auxiliando-a nas práticas com as crianças da educação infantil.
que nos ajudam a romper com a linearidade, com a suposta e aparente tranqüilidade do
cotidiano para os enfrentamentos e as possibilidades de crescimento.
Nesse período discutia-se no município a importância do PPP Projeto Político
Pedagógico - sob o argumento de se conhecer melhor a comunidade. Assim, enviamos
um questionário onde constatamos que a maioria dos pais trabalham na região e são
pedreiros, pescadores, caseiros, empregados domésticos, jardineiros ou trabalham por
conta própria dando assistência técnica eletrônica e hidráulica. Havia um casal de pais
dentistas e uma mãe pesquisadora da FIOCRUZ – Fundação do Instituto Oswaldo Cruz.
O questionário enviado as famílias é a meu ver uma outra forma de se estabelecer
uma escuta sensível (BARBIER, 1992) ao outro, ou melhor, aos outros atores envolvidos
no mesmo processo. Quando nos envolvemos na vida do outro não para especular o seu
modo de vida, mas para a partir das informações nos permitir a trama do envolvimento
nos consentimos ao outro ao mesmo tempo que consentimos ter o outro conosco.
Senti-me retornando à escola, ansiosa pelo meu primeiro dia de aula. No lugar de
desvendar a curiosidade de conhecer a professora estava a curiosidade de conhecer os
alunos. No dia anterior preparei a roupa de trabalho que deveria ser leve, para possibilitar
maior participação e articulação junto ao grupo.
Na primeira semana compareceram somente sete alunos, no universo de mais de
vinte matriculados. Foi o suficiente para que a professora que estava até bem pouco
tempo indecisa se assumiria ou não o novo emprego, se encontrasse novamente, senti que
a sala de aula ainda me era bastante familiar. Simone, agente educacional, era quem me
orientava e dava as coordenadas de como funcionava a rotina de horário integral. As
crianças também ajudaram muito neste processo inicial, afinal, eles conheciam melhor o
ambiente que para mim era totalmente novo. A maioria dos alunos freqüentara aquela
escola nos anos anteriores.
Os primeiros dias de aula foram de total decepção. Falávamos línguas diferentes.
Eu, empolgada em começar uma proposta de trabalho e pôr em prática os meus
conhecimentos pedagógicos, os meus saberes educacionais trazidos num currículum que
de certo me “garantiria” realizar facilmente aquele trabalho. As crianças, empolgadas
pelo reencontro e totalmente envolvidas com o brincar.
Os brinquedos da sala habitavam um latão velho de plástico e um saco: eram os
meus verdadeiros inimigos. Enquanto eu falava insistindo na aula como exposição do
meu saber, eles brincavam; eu cantava e eles brincavam; eu contava histórias e eles
brincavam. Ao final do terceiro dia me rendi e fui vencida por eles, deixei que
brincassem por longo tempo e sai de cena. Senti que poderia tentar parcerias, e quem
sabe reverter esse quadro, hora para brincar e hora para estudar, ou melhor: aprender
brincando. Mas, como fazer? Ou melhor, como me fazer ouvida?
A rotina de atividades e horários da UMEI é bem diferente da rotina da escola
parcial. Assim, precisei adequar o meu ritmo de trabalho ao deles. Como coordenava
uma escola de Educação Infantil, da rede privada de horário parcial, entrei em sala com o
ritmo e, principalmente, com o olhar daquela escola. Logo nos primeiros dias foi possível
perceber a criança que freqüenta a escola o dia inteiro, apropria-se daquele espaço com
uma intimidade maior do que a criança que passa um período menor. Portanto,
transitavam entre os ambientes com maior familiaridade fazendo do espaço da escola
uma grande brincadeira.
Relaxei. Parei e comecei a refletir sobre nós e compreendi que as minhas
expectativas estavam aceleradas demais. Era necessário que tivéssemos mais tempo e que
ele fosse o meu grande aliado, pois era através dele que passaríamos a nos conhecer
melhor. Percebi que haveria de entrar em campo com outras artimanhas; deixei a emoção
falar mais alto e comecei a observar. Foi assim que entendi a necessidade que eles tinham
de brincar, logo a aula acontecia independente da minha oratória, era uma questão
de sensibilidade para perceber que a criança ao brincar desenvolve-se biologicamente.
Segundo Piaget
12
Para efeito, podemos distinguir dois aspectos no desenvolvimento
intelectual da criança. Por um lado, o que podemos chamar o aspecto
psico-social, quer dizer tudo o que a criança recebe do exterior,
aprende por transmissão familiar, escolar, educativa em geral; e
depois, existe o desenvolvimento que podemos chamar espontâneo,
que chamarei psicológico, para abreviar, que é o desenvolvimento da
inteligência mesma: o que a criança aprende por si mesma, o que não
lhe foi ensinado, mas o que ela deve descobrir sozinha; e é isso
essencialmente que leva tempo. (p.12)
Era esse tempo de descoberta das crianças que, de certa forma, eu tentava
acelerar, tentava abreviar à medida que impunha o meu saber sob o deles. Descartava o
que os estudos de Piaget nos ajudaram a compreender quanto ao desenvolvimento
12
Fonte de pesquisa www.fe.unicamp.br/lpg/arquivos/Psicologia_e_Educacao.doc
intelectual da criança. A descoberta que fiz, dias depois, era tão óbvia que cheguei a
pensar em não registrá-la aqui. Porém, momentos em que estamos tão envolvidos
pelas nossas próprias verdades e concepções que nos equivocamos em nossas atitudes,
que desconsideramos ou não incorporamos as teorias às nossas práticas.
Aqueles "cacarecos", uns tão danificados que não se sabia bem o que eram e
outros, em pedaços, representavam parte daquilo que um dia foi um brinquedo. Os
poucos que sobraram inteiros eram muito disputados. Um fato eu não poderia negar, seja
em qual estado físico eles estivessem, eram brinquedos. Todos os brinquedos juntos
representavam parte da infância que para uns é esquecida. Não falo da infância universal,
projetada para que as crianças executem o que foi pensado para elas, falo da infância que
existe dentro de cada um de nós e que nos leva a buscar o lúdico e a fantasia presentes
no próprio ambiente.
Era o caso de Matheus, com cinco anos apenas já convivia com a realidade de ter
o seu pai preso e presenciar os conflitos entre bandidos e policiais. Um dia Matheus me
perguntou:
- Você conhece o buraco de esconder bandido?
-Não. Respondi
- Fica no morro atrás da minha casa, meu tio se esconde e eu fico
vigiando a polícia. Quando eles vão embora eu corro e aviso pro meu tio, ele sai do
buraco.
-E quem avisa que a polícia está chegando é você também?
A minha curiosidade estava em saber se ele tinha um papel pré-
determinado, um trabalho a cumprir naquela comunidade.
Quando eu vejo, corro e aviso. Respondeu.
E você brinca? Perguntei
Não, eu fico na rua. Respondeu
E na rua não se brinca? Perguntei
De brinquedo não, eu não tenho brinquedo. de correr, de esconde-
esconde...
Para Matheus brincar com os artefatos da infância produzidos pelo
mercado industrial era comum entre os amigos da creche, afinal era também que ele
passava a maior parte do seu dia. Talvez não fossem comuns os brinquedos fabricados
pelas indústrias por serem as brincadeiras vividas de outra forma, inventadas na sua
coletividade.
Na região cresce o número de casas simples em algumas áreas onde as
construções são proibidas, começando a expandir a ocupação desordenada. Após o relato
de Matheus perguntei quem mais brincava na rua. Maria Eduarda me levou até o acervo
de fotos deles que foram trazidas de casa, para que pudesse observar o seu quintal. Da
janela onde ela estava na foto era possível avistar parte da encosta de um morro. Então
relatou:
Não posso brincar porque o quintal é perigoso, minha mãe diz que
posso cair lá embaixo.
Douglas se manifestou dizendo:
Eu não posso brincar quando vou pra casa da patroa da minha mãe
porque lá tem dois cachorros bravos, eu tenho que ficar dentro de casa.
Começava a entender o desejo insaciável da turma pelos brinquedos. Para uns os
brinquedos da sala era a possibilidade de lidar com os artefatos da infância, para outros
era a oportunidade de brincar entre amigos, portanto, era ali, no espaço da escola que as
brincadeiras deveriam acontecer. Era ali, no espaço da escola que Douglas encontrava a
liberdade negada quando acompanhava a sua mãe ao trabalho, era ali que Maria Eduarda
sentia-se segura e livre dos perigos temidos pela sua mãe. Era ali no pátio da escola, no
espaço da sala de aula que eles sentiam-se acolhidos e acolhedores nas brincadeiras.
Ali, na nossa sala as crianças subvertiam a ordem que a sociedade consumidora
impõe e faziam uso dos brinquedos danificados do jeito que a criatividade e o desejo se
manifestavam. Se por um lado, como afirma Certeau (1994, p.94) “...os produtos não
deixam lugar para os consumidores...” marcarem sua atividade, as crianças reinventavam
novos produtos e marcavam novos fazeres.
Provavelmente, só consegui perceber a importância daqueles brinquedos para eles
por resistirem astuciosamente a minha insensibilidade, ou seja, a cada descuido da
professora os brinquedos voltavam a dominar a cena. Faziam uma bricolagem com as
regras impostas por mim.
Aos poucos eles foram me ouvindo. Começamos a instituir pequenos
combinados, afim de que pudéssemos nos entender melhor. Eu me relacionava bem
com os brinquedos e procurava respeitar os horários das brincadeiras, mesmo assim, no
primeiro momento, retirei os brinquedos da sala de aula e os coloquei no espaço da
casinha de boneca. Mais tarde organizei com eles outro canto reservado aos brinquedos
em nossa sala que se multiplicaram com aos levados de minha casa, entretanto, os
combinados de horários para o uso permaneceu.
O meu fazer de professora estava imbricado com a prática cartesiana que fui
aprendendo a incorporar na rotina do meu trabalho. A minha passagem como
coordenadora de escolas particulares, estava impregnada de uma escola infantil
preparatória. O meu discurso e a minha prática entravam sempre em conflito. Defendia o
papel social das instituições de educação infantil, enquanto valorizadoras dos
conhecimentos que as crianças possuem e propulsoras na aquisição de novos
conhecimentos. Porém, acabava enveredando por uma linha preparatória através do
treinamento de habilidades e da formação de hábitos e atitudes.
Outro fato importante e que muito me incomodava era quanto aos horários, o
tempo de trabalho com eles em sala de aula era muito curto, em virtude da higiene
matinal, café da manhã, almoço e novamente a higiene. Às vezes tornava-se difícil
instituir novos horários de brincar no pátio, fora do horário que era pré-determinado pela
coordenação, por ser o pátio pequeno e não comportar muitas crianças.
A minha ansiedade e insistência consistia na idéia de investir um pouco mais no
trabalho pedagógico: na realização de tarefas, na construção de projetos, no estímulo a
leitura e a escrita, na aproximação dos conceitos matemáticos... Enfim, ficavam muitas
horas na escola, mas as queixas, de que chegavam ao último ano escolar da educação
infantil apresentando muitas dificuldades na aprendizagem era comum entre as próprias
professoras.
Incomodava-me a pouca intimidade que alguns dos meus alunos tinham com a
escrita do nome, com o registro da escrita espontânea, além de pouco aparecer letras e
números em seus desenhos e registros, como eu julgava que deveria acontecer com
crianças de 5 e 6 anos. Ainda que defendesse a idéia da construção do conhecimento e
das etapas de evolução da escrita e da leitura, no fundo incomodava-me ainda o fato de
saber que muitos freqüentavam a nossa escola, por 1 ou 2 anos, e pouca familiaridade
tinham com a leitura e a escrita, aos meus olhos.
Perseguia a idéia de Piaget em que cada estádio é definido por diferentes formas
do pensamento, assim, a criança quando estimulada e motivada conseguirá um bom
desenvolvimento. Neste caso, torna-se necessário que em cada estágio a criança vivencie
situações diferenciadas que seja desafiadora a novos experimentos. Continuo a insistir
nesta idéia, mas confesso que se hoje vivesse aquela experiência olharia com mais
cautela o saber e o não saber das crianças.
A creche, com todos os seus problemas de infra-estrutura, acomodava as crianças
em horário integral e dispunha de um bom acervo de livros, material didático farto, duas
TVs, vídeo-cassete... Mas o que faltava? Onde estava a falha? De certo muitas questões
envolvem o cotidiano da escola e muitos fatores influenciam para que as escolas dêem ou
não certo. Pude perceber, especialmente naquela escola, que a gestão escolar, tanto a que
estava quanto a que substituiu (participei mais da segunda gestão) deixava uma marca
de corporativismo.
Essa prática trazia o ranço das indiferenças tanto na perspectiva interpessoal,
quanto em relação ao desenvolvimento do trabalho. Uma das professoras levava as
crianças ao pátio para brincar, sentava-se ao sol, abria o jornal e ali passava longas horas,
quando não aproveitava para telefonar e receber telefonemas do seu celular ou do
telefone público que havia no pátio, quanto às crianças essas corriam e brincavam por
conta própria. Outra professora faltava freqüentemente e deixava claro que conseguia
atestados falsos e por isso faltava mesmo. As reuniões pedagógicas eram quase sempre
muito desgastantes. Os conflitos tomavam dimensões pessoais e quase não se discutia
nem refletia sobre as práticas pedagógicas.
A minha chegada recente e o pouco vínculo com as pessoas me fazia ficar a parte
de certos conflitos e como me relacionava com todas as professoras era procurada para
dividir com uma ou outra as situações mais difíceis que encontravam em relação às
crianças. Talvez, por este motivo, as professoras tenham solicitado o meu nome para
assumir a função de P.O. Professora-Orientadora, cargo que era ocupado, até então, por
professoras das escolas municipais de Niterói, pela ausência de Supervisora ou
Orientadora Educacional.
Conseguia manter um bom diálogo com as professoras e por conta disso,
passaram, as menos comprometidas, a se envolver com as propostas educacionais.
Quanto mais estreitava a relação com as professoras e com elas combinava algumas
parcerias de trabalho, mas indiferente era a direção para comigo e pior era a nossa
relação.
Vasculhando outros registros, característica que acredito ser da professora que se
deixa marcar sensivelmente pelo cotidiano e pelas suas práticas que se desvelam nesse
cotidiano, encontro novamente a UMEI. Naquele momento ocupava o cargo de
Professora Orientadora. O meu trabalho consistia na orientação da prática pedagógica às
professoras e na ausência da professora e da agente educacional deveria assumir a turma.
***
A chegada compassada das crianças anunciava mais um dia de trabalho na
Creche, pouco a pouco os pequeninos e as suas professoras buscavam as suas salas de
aula. Percebi que algumas crianças permaneceram sentadas nos bancos do refeitório,
espaço coberto que fica no centro da Creche, enquanto outras corriam livremente pelo
pátio. Este movimento era o anúncio de que uma das professoras não estava presente.
Reuni o grupo e nos dirigimos à sala do ano B, começamos o nosso trabalho
pedagógico conversando na rodinha.
A manhã ia passando ao mesmo tempo em que ia dando indícios de que a
professora não chegaria. Comecei a contar uma história: Tanto, Tanto!” (COOKE
,2000). O texto aborda a vida de uma família que se reúne para festejar o aniversário do
pai do bebê, uma festa surpresa. As ilustrações do livro eram tão perfeitas que viajamos
fazendo uma releitura através das figuras, a cada página desfolhada eles faziam os seus
comentários e eu ia puxando o fio da conversa, às vezes problematizava um pouco mais e
o diálogo ia se ampliando.
O bebê ficou cansado;
O bebê brincou com as pessoas, por isso ficou cansado;
Eles são negros;
A festa é simples não tem painel nem animador, mas eles estão felizes;
A partir dessa fala fiz mais uma intervenção, puxando o fio da história e
problematizando algumas situações. Entretanto, essa ficou registrada na minha memória
por conta da Carolina:
Precisamos de uma festa com painel e animador para nos sentirmos
felizes?
Carolina toma a fala com ar de conclusão e diz:
Tia, então a minha família não é feliz.
Por que? Pergunto a Carolina
Porque a mamãe e o papai ficam brigando muito. A vovó vai embora
por causa de tanta briga e eu não quero que ela embora. A minha família fica
brigante porque não quer que um pegue as coisas do outro.
Após a fala da Carolina outras crianças manifestaram o desejo de falar sobre as
suas famílias. Neste momento percebi como eram ricos aqueles depoimentos e o quanto
valioso poderia ser o registro dos mesmos. Propus ao grupo que nos organizássemos,
pois se todos desejavam me contar as suas histórias, eu haveria de escrevê-las para não
esquecer. Ia anotando a medida que desejavam falar. Alguns saíram da roda e foram
participar de outras atividades e não demonstraram interesse em contar algo sobre a sua
família, respeitei.
A minha família é branca e a avó da minha mãe é preta e a minha
família é triste eles ficam brigando. Daniel
A minha família briga, na minha família é todo mundo fortão. A minha
família é branca a minha família é feliz. Leandro
A minha família fica feliz, porque o meu pai gosta da minha mãe. A
minha família é de branco. ( embora ele seja negro).Pablo
Minha família é feliz, mas às vezes eles brigam. Taymy.
Minha família é feliz. Davidson
Minha família não briga a minha família é boazinha. Matheus Lopes
O meu pai briga com a minha mãe porque minha mãe não pega a
chave para abrir o portão. Até meu irmão briga comigo. Eu sou feliz. Talita
Minha mãe é feliz, meu pai é feliz, eu e meu irmão, até minha avó e
Érica. Bruno
Minha família é feliz, porque ela faz festa. Matheus Ribeiro
Meu pai e minha mãe brigavam muito, mas agora não brigam mais
porque eles se separaram. Eu gosto mais da minha família agora, porque agora eles não
brigam mais. Adson
A minha família não é feliz não, porque quando o meu pai compra uma
coca-cola para mim ela fica brigando.
Quem é ela? Perguntei.
Minha mãe. Ela não deixa eu ir para o Rio com o meu pai, para ver a
minha avó e os meus primos. Eles brigam e eu não gosto. Paulo Roberto
A minha casa não é feliz porque entrou um pau no do meu pai e a
unha da minha mãe encravou e meu pai foi para o hospital. Quando todo mundo ficar
bom minha família vai ser feliz. O único da minha casa que é curado” sou eu. E é
por isso que eles brigam muito e eles não são felizes e a minha mãe diz que ele é
rebelde, porque ele não quer botar o na água quente. Mamãe e papai não estão
trabalhando e a gente está ficando pobre e a gente não tem nem um real e, às vezes, a
gente come um biscoitinho e vai dormir. Também o papai comprou um terreno e a
moça agora quer tomar dele e acabou. Guilherme
Não duvidava da riqueza daqueles depoimentos, mas não sabia exatamente
o que fazer com eles. No dia seguinte levei até a professora, do ano B, o material que
havia registrado; para minha surpresa não foi de seu interesse ampliar aquela conversa.
Sugeri outros diálogos com a turma e quem sabe um projeto de trabalho em torno de uma
ou outra questão. Entendia que algumas falas eram por demais representativas e
desvelava o mundo fora da escola, tentei sensibilizá-la, mas foi em vão.
Cheguei a argumentar que havia questões importantes na fala das crianças
e precisavam ser discutidas por nós e quem sabe ampliadas num projeto pedagógico. Para
Daniel, Leandro e Pablo as características raciais das personagens do livro apresentaram
um aspecto importante, o que lhes deu a oportunidade de pensar as características raciais
das suas próprias famílias. Sabíamos que o Pablo era negro, filho de pais negros, mas
desconhecíamos a realidade do restante de sua família. Por outro lado, Adson trazia uma
questão forte: era feliz após a separação dos pais. Quem sabe tecer o fio da história por
aí. O Guilherme apontava para a situação sócio-econômica. Enfim, cada criança, dentro
da sua realidade, lia o mundo em que vivia e quem sabe passaríamos a entender melhor a
realidade da própria comunidade abraçando aquele trabalho.
Naquele momento a minha compreensão era ingênua, imaginava que um
projeto pedagógico daria conta da complexidade anunciada naquelas falas. Não sabia
bem por onde começar a ampliar aquela conversa, porém entendia que não poderia
reservar aqueles relatos para mim, nem tampouco usá-los simplesmente para externar
a compaixão pelas crianças. Mantinha acesa uma esperança, uma utopia própria da
minha inquietação frente ao mundo e a realidade de alguns. A urgência de reinventar
outro mundo para aquelas crianças me tocava, era como sonho que se amplia e se projeta
para além das fronteiras do tempo e do espaço. Segundo Boaventura Santos
A utopia é assim o realismo desesperado de uma espera que se permite
lutar pelo conteúdo da espera, não em geral mas no exacto lugar e
tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois num princípio
geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na
possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja
possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade,
promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos
os tempos e lugares com excepto naqueles que ocorreram
efectivamente. É este o realismo utópico que preside ás iniciativas dos
grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a
alternativa, vão construindo, um pouco por toda parte, alternativas
locais que tornam possível uma vida digna e decente. (2005,p.36)
A utopia interior me movia não sei para onde, me incomodava a realidade
fria e desumana que convivia lado a lado comigo. Não é aceitável que não tenhamos
atalhos que nos possa conduzir a lutar pela luta daquelas crianças e tantas outras que têm
as suas histórias silenciadas. Tornei público aqueles relatos aproximando com algumas
colegas, mas foi em vão: algumas nem sequer se sensibilizaram e outras mal puderam me
ouvir. O grupo que se sentiu incomodado, e nele me incluo, não buscou iniciativas de luta
contra o silêncio e a aniquilação social daquelas crianças. Crianças que representam à
imagem de tantas outras famílias brasileiras.
As falas anunciavam questões importantes, questões que marcam a história
de um povo e que eu compreendia, mas não conseguia ler claramente. Alfabetizo-me no
cotidiano quando procuro não entender o contexto em que me encontro, mas quando
leio o espaço. Esse espaço que é ao mesmo tempo uno e múltiplo por toda diversidade
que há nele nos faz intimo e estranho ao mesmo tempo.
Mais tarde escrevi um trabalho sobre esse fato e o apresentei em um
congresso, redigi um artigo com este recorte e foi publicado em uma revista de educação.
Entendo que tais iniciativas ajudam à “...criação de redes translocais entre
alternativas...” locais e que essa luta pode manifestar uma forma de globalização
contra-hegemonica” (BOAVENTURA SANTOS, 2005). Não silenciar as histórias do
nosso povo pode ser um dos caminhos para combater o desperdício da experiência,
porém é preciso que estejamos atentos a não naturalização dos fatos.
Os relatos de vida, trazidas a tona pelas crianças a partir da releitura da
história “Tanto, Tanto!” marcavam a minha trajetória de professora, mas não a trajetória
daquela professora. Hoje, entendo que a indignação que vivi diante da indiferença dela
era o início de um processo de metamorfose que estava por acontecer. Ou já estava
acontecendo?
Contudo, não foi o suficiente para provocar o mesmo na professora da turma, pelo
menos ali, naquele tempo e naquele espaço. “... A sucessão de tempos é também uma
sucessão de espaços que percorremos e nos percorrem, deixando em nós as marcas que
deixamos neles...” Santos (2005, p. 194). As relações sociais que se materializavam
naquele lugar imprimiram marcas na minha trajetória de professora.
A UMEI passava por um período de crise, a diretora era partidária a algumas
colegas e para elas abria concessões de horários e folgas o que não acontecia com o outro
grupo a que eu também pertencia. Essas divergências fragilizavam o meu trabalho de
orientação, pois conseguia pouca adesão das professoras para levar adiante um
engajamento sério. Aquela professora estava incomodada com a administração escolar e
deixava transparecer, sem nenhum constrangimento, a sua indiferença para com as
crianças, não demonstrava fazer questão de criar vínculos.
Hoje, compreendo que o fazer pedagógico está além da elaboração de projetos. A
nossa formação de professores nos ensina os procedimentos didáticos, mas não nos
ensina que é preciso se valer das manobras para conduzir o processo, mesmo quando esse
parece ser o caos. Não nos ensina que o problema também é nosso e que assumir as
dificuldades é assumir a complexidade do cotidiano. Para Garcia e Alves (2002, p.116)
“..a professora aprendeu em seu curso de pedagogia a ensinar como se a sala de aula
fosse um espaço de semelhanças metodologias, didáticas, formas de avaliar, sempre
numa perspectiva de homogeneização...” Romper com esse modelo hegemonicamente
estruturado é o que pode diferenciar as práticas das professoras e o que pode insinuar a
existência de professoras-pesquisadoras.
Apesar dos conflitos vividos pelo grupo era possível encontrar professoras
levando adiante projetos interessantíssimos. Um deles foi exposto num encontro
pedagógico promovido pela Fundação Municipal de Educação e foi um dos vencedores
do concurso. A professora foi brilhante, séria no seu trabalho, e mesmo com as
indiferenças que circulava naquele ambiente, mobilizou da cozinha à direção.
Não são os conflitos que nos impossibilitam de crescer, sair do lugar, alçar vôos,
ao contrário, é no conflito que tomamos um lugar, reagimos. Diferente da harmonia que
encontra um caminho aparentemente linear sem se preocupar com o desequilibro, o
conflito gera dúvidas, questionamentos e reflexão. Por vezes, mesmo não aceitando as
imposições acabamos nos acomodando aos modelos padrões, pouco nos predispomos ao
diálogo, até porque a nossa cultura escolar, familiar, social, pouco usa o diálogo como
meio de negociação. Em geral, a imposição se sobrepõe à liberdade de escolha.
Dessa forma o diálogo nem sempre era usado como princípio de acordos. Os
planejamentos eram compartilhados comigo, que atuava como Professora Orientadora.
Era um trabalho mais individual do que coletivo. O tempo e espaço para esses encontros
pouco favoreciam. Contávamos em média com 50 minutos e como não havia sala para a
Orientação Pedagógica nos encontrávamos num espaço que improvisamos no refeitório.
Em um desses encontros de planejamento, a professora expressou a sua
perplexidade diante da afirmação de uma aluna que insistia na hipótese de que o
macarrão era feito de barbante, mesmo diante de outras crianças que afirmavam não ser.
Devolvi para ela a situação e disse: - por que não a desafia a lhe dar a receita? Esse
toque foi o bastante para começarem a trabalhar com o projeto: Macarrão é feito de
barbante?
A cada encontro de planejamento, nem sempre freqüente pela dificuldade de
organização da UMEI, discutíamos os caminhos que o trabalho tomava e quantos
conhecimentos iam se agregando aquela vivência. Era justamente o que aquelas crianças
viviam ao participarem daquele projeto. Viveram a experiência na medida em que muitas
coisas aconteciam, novas descobertas faziam e construíam tantas outras, demonstrando
que foram tocados pelo sabor do saber.
No lugar do experimento o acontecimento ia sendo vivido quando: registraram as
receitas; levantaram hipóteses dos possíveis alimentos que eram usados para fazer o
macarrão; abordaram as pessoas até achar quem soubesse fazer a massa de macarrão;
fizeram a massa ao mesmo tempo em que seguiam cumprindo as etapas da receita de
barbante fornecida pela aluna (cortar pedaços iguais, pintar de amarelo, colocar para
secar, cozinhar na panela e no fogo, escorrer, colocar no prato e comer); comeram o
macarrão; constataram que de fato o barbante não se transformou ( é óbvio que a dona da
receita não quis nem saber da hipótese de comer barbante); reutilizaram o barbante...
Nesse período a FME lançou um projeto voltado para a reutilização de materiais.
A professora, junto com as crianças, reutilizou os pedaços de barbante em uma maquete
abordando o reaproveitamento de materiais. Após consenso do grupo e com o auxílio de
outras sucatas fizeram a representação deles diante de um prato de macarrão. Maquete
que lhes rendeu o prêmio oferecido pela Fundação Municipal de Educação. Um segundo
prêmio, talvez mais importante, foi a conquista pela satisfação pessoal constatada no
envolvimento e prazer das crianças.
Essas passagens: parte delas guardadas na memória, parte recolhidas dos meus
escritos, desafiam-me a refletir sobre a trajetória da professora que se constitui
pesquisadora e, por ocasião, é sujeito-objeto de investigação da sua própria pesquisa.
Pensar o lugar de onde estou é um exercício importante e necessário que seja feito por ser
complexa a pesquisa com o cotidiano, principalmente, quando o foco está na minha
própria prática.
Creio que por este motivo, em alguns momentos percebo ser necessário
responder a pergunta de Garcia e Alves (2002): Quem sabe, a professora ou a
pesquisadora? Volto a fazê-la para mim mesma da seguinte forma: Quem sabia: a
professora que estava na escola atuando com as crianças ou a pesquisadora que hoje se
debruça sob a sua pesquisa?
O nosso fazer pode tomar dimensões variadas, mas o que nos faz
pesquisadoras inseridas na prática é o estranhamento que damos ao nosso fazer, aos
acontecimentos que diariamente nos ocorre. As práticas naturalizadas não possibilitam
que possamos ver o que está para além do aparente. A professora pesquisadora é aquela
que embora não saiba exatamente como fazer, envolve-se intensamente nas questões
vividas pelo grupo. Através do diálogo, da troca com os seus pares e da busca constante
de alternativas, vai criando oportunidades favoráveis para o crescimento de seus alunos.
Não tenho dúvidas de que a resposta concentra-se na hipótese da
professora pesquisadora que vai se constituindo na ação quando vai aprendendo no
cotidiano a ser pesquisadora da sua própria prática. À medida que a pesquisa avança e se
insere na minha própria prática, acreditei estar trilhando um caminho fácil, pelo fato de
ser eu e as crianças o sujeito da pesquisa e a nossa prática o objeto de estudo. À medida
que adentro na interação com as crianças e o cotidiano encarrega-se de misturar as
relações e emoções que vivemos na sala de aula percebo que não é bem assim.
Algumas vezes me vejo tão envolvida que acabo por omitir passagens
importantes para o leitor que me acompanha. Em outros momentos acabo por justificar as
minhas atitudes, mesmo não sendo esse o objetivo da minha pesquisa, aos poucos vou
percebendo como é difícil nos despir, nos colocar “nu” diante da crítica do outro, de nos
mostrar abertos. É um movimento quase inconsciente, não havia receio de falar das
minhas fragilidades e dos meus “erros” quando decidi pela pesquisa da minha própria
prática, mas as denuncias dos primeiros leitores: professoras, orientadora e colegas do
mestrado, me fazem ver o quanto ainda me resguardo.
Embora não seja de interesse o aprofundamento do termo professora-
pesquisadora é importante entender que essa forma de pensar a prática das professoras
traz a possibilidade de ruptura do paradigma dominante, já que numa perspectiva clássica
a pesquisa era constituída somente no espaço da academia. Hoje cresce a probabilidade
do diálogo com as professoras da escola básica. Porém, a falta de uma leitura mais atenta
pode levar a uma interpretação reducionista do trabalho da professora e da importância
da pesquisa. É preciso cuidado para não banalizar o termo, nem tampouco as práticas das
professoras. “...cada vez mais acredito nessa possibilidade de fazer da nossa prática
uma pesquisa constante, cada vez mais acredito na importância da reformulação dos
cursos de pedagogia...” (ESTEBAN E ZACCUR, 2002, p.7). Gosto desse movimento e
me coloco nele.
A aproximação com a pesquisa acadêmica tem me dado à condição de refletir,
inclusive, como nos fazemos professoras pesquisadoras isoladas nos nossos próprios
fazeres. No cotidiano da escola essa prática precisa encontrar espaço para ser dialogada
por seus pares. Do contrário, tendemos a não perceber que estamos nos colocando numa
perspectiva de avaliação da teoria em ação presente na prática da professora e deixamos
de lado intuições importantes, que nos ajudaria a transcorrer das práticas, aparentemente,
pouco significativas, para fazeres mais significativos.
Essa compreensão acaba por ganhar coerência e sentido quando nos envolvemos
com a pesquisa acadêmica. Não quero dizer com isso que as práticas significativas
aconteçam mediante a possibilidade de diálogo com a academia, ao contrário, sabemos
que a escola é rica de experiências vividas. O que quero pontuar é que a reflexão sobre o
nosso fazer e os questionamentos quando compartilhados com o outro nos ajuda a
compreender esse vasto e complexo cotidiano da escola. Mas onde estão os nossos pares?
A realidade é que esse outro: a professora da sala ao lado, o grupo de
profissionais da escola e os próprios pais vêm se distanciando. A limitação do trabalho
coletivo e a dificuldade de encontrar os outros atores da escola não acontecem por
falta de interesse dos profissionais da educação, mas pela própria dinâmica de
organização da escola. Em contrapartida, a dificuldade de organização da escola não se
pela ausência de uma boa administração interna, faltam políticas públicas
comprometidas, principalmente, com a formação e com o reconhecimento da importância
de uma educação de qualidade.
A dignidade das condições de trabalho vem sendo posta de lado e o que se
proclama na educação são os discursos calorosos em prol da qualidade, como se esta para
dar certo, dependesse unicamente do profissionalismo dos educadores. O sucateamento
da escola pública reflete a falta de professoras, a falta de espaço para organização das
atividades dentro da escola, a escassez de pessoal de apoio, a dificuldade de tempo e
recursos para as professoras se dedicarem aos estudos. Desta forma, não seria diferente a
incidência de ausências que encontramos no colégio Diógenes. Embora, essas ausências
não possam justificar a falta de comprometimento por parte das pessoas envolvidas no
processo escolar.
No município de Niterói e acredito que em outros municípios, cada vez mais, nos
deparamos com professoras correndo de uma escola para outra e muitas cumprindo uma
jornada de três turnos. Algumas ainda reservam o sábado, em regime integral, para
estudo. no município uma faculdade que oferece cursos de graduação aos sábados,
algumas professoras ingressam por opção pessoal, mas muitas por falta de tempo durante
a semana. O fato é que essa corrida pela sobrevivência impede os encontros, até mesmo
informalmente, entre professoras. Ainda assim, é possível encontrarmos pessoas
comprometidas, desafiando as próprias limitações e fazendo verdadeiras acrobacias para
dar conta do seu trabalho, da melhor forma possível.
Por diferentes questões ainda uma dificuldade latente das atividades serem
postas em prática e avançarem. Por outro lado, a saúde cada vez mais precária das
professoras, acarretando licenças consecutivas; a folga abonada de um dia que, nós,
professoras da rede municipal de Niterói temos direito mensalmente, torna o quadro de
funcionários quase sempre incompleto. uma dificuldade das atividades serem postas
em ação e avançarem, por todos os fatores que dizem respeito às questões econômicas,
sociais e administrativas, mas também um falta comprometimento nosso. Por vezes,
chego a pensar que é uma falta de desejo, de encantamento que nos impede de ir adiante
de se nos envolvermos mais no cotidiano da vida de nossas crianças.
O exercício de procurar entender esse cotidiano que borbulha aos nossos olhos e
nem sempre o compreendemos, provavelmente, vem me fazendo pesquisadora da minha
própria prática. A partir daí aproximar-me da academia foi um passo, precisava de
interlocutores que me ajudasse a compreender o cotidiano da escola.
Quando o meu fazer ainda não era o da pesquisadora inserida em um grupo de
pesquisa, era a professora - pesquisadora intrigada com esse cotidiano e, sem me dar
conta, de que o cotidiano é um amplo e emaranhado campo de pesquisa, sentia-me
atraída pelas falas espontâneas e denunciadoras das crianças. Percebia que as suas
argumentações, histórias, relatos orais, registros, desenhos e mapas, revelavam um pouco
da compreensão que tem do mundo, que, por vezes, não é considerado pela escola. Em
conseqüência, esta acaba por perder boas oportunidades de instigar a aprendizagem por
meio de descobertas.
Procuro entender a escola a partir das crianças. Parto com elas em busca dessa
escola que alimenta os nossos sonhos. São as argumentações, as críticas, os comentários,
as satisfações e as insatisfações por elas verbalizadas ou externadas através dos seus
olhares, falas, silêncios e registros que me ajuda a compreender a escola.
Busco nos estudos de Renné Barbier sobre a escuta sensível, vestígios de que
pode ser por o caminho a prosseguir: aprender a escutar com todos os sentidos. Com
Milton Santos e Boaventura vou distorcendo as verdades, assim como, a geografia
existencial insiste em distorcer a realidade social.
Se for verdade que vida e escola interagem numa perspectiva de
construção, é ainda de meu interesse investigar como essa relação influencia a
aprendizagemensino
13
. Uso essa terminologia por concordar com Nilda Alves quando
afirma que é de fundamental importância refletir sobre o que nos ensinaram. Assim me
pergunto: Até que ponto ensinamos de fato? Ou ensinamos, não aprendemos no
mesmo processo? Não nos parece um movimento linear esse exercício de ensinar e
aprender. Assim, acredito que aprendemos enquanto ensinamos e dentro desta
perspectiva vou me alfabetizando nas relações cotidianas à medida que tento ler o que
ainda me é híbrido.
Após alguns anos sem me envolver diretamente na sala de aula retorno à função
de professora no município de Niterói. O retorno à sala de aula me faz perceber que
embora estivesse, até então, assumindo uma função pedagógica, um pouco mais afastada
da prática da sala de aula, não me afastei do meu desejo primeiro: ser professora. Esse
lugar continua a me contagiar.
2.1 De onde vim, para onde vou...
Para melhor situar a pesquisa, passo a descrever de onde falo e com quem
falo nesta conversa. A saída da UMEI- Itaipu e a minha chegada a Escola Municipal
Diógenes Ribeiro de Mendonça deve-se as mudanças estabelecidas pela FME
Fundação Municipal de Niterói em 2005 e efetivamente postas em práticas a partir do
inicio do ano letivo de 2006.
Como foi estabelecido pela FME que nas unidades de educação infantil só
poderiam ficar professoras com disponibilidade de horário integral e como não era de
13
Nilda Alves (2004). Dessa maneira, através da junção de termos espaçotempo; práticateoriaprática;
aprendizagemensino; dentrofora da escola - tenho buscado mostrar que a fórmula que nos ensinaram e que
tão bem aprendemos, se mostrando útil em determinados momentos, é insuficiente para discutir o que hoje
precisamos discutir sobre essas relações não dicotomizadas e tão férteis. Sei que esse recurso é insuficiente,
também, mas ao menos permite que nos detenhamos sobre os termos que surgem nesse processo e nos
ponhamos a pensar sobre eles.
meu interesse, fui transferida para uma escola de Ensino Fundamental. Nesse período a
Fundação convocou Orientadoras Educacionais e Supervisoras concursadas para
assumirem as escolas e o cargo de P.O. – Professora Orientadora - foi destituído.
Cheguei a Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça portando um
ofício de encaminhamento da Fundação Municipal de Educação de Niterói e uma
sensação de incerteza. O pátio acolhia algumas crianças e anunciava mais um dia de aula.
Meus olhos percorriam o ambiente em busca de alguém familiar, mas eram todos
estranhos à primeira vista. A única cena familiar era o conjunto de elementos e situações
que compõem a escola e que conhecia não como professora, mas como aluna. Ao
entrar no corredor principal de acesso à secretaria senti o mau cheiro exalado pelos
banheiros se misturando ao apetitoso cheiro que vinha da cozinha, mas eram, talvez, as
paredes cinzentas que davam um ar de frieza, e abandono àquele espaço.
A Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, fica situada no bairro
de Maria Paula
14
, em Niterói, situada num trecho da estrada Caetano Monteiro. Nas
proximidades muitas casas luxuosas que contrastam com as moradias simples, grande
parte de alvenaria, porém sem emboço e pintura.
O bairro de Maria Paula fica na divisa de Niterói e São Gonçalo
(município vizinho). Até a década de 1930, o lugar revestia-se de ares bucólicos, isolado
dos grandes centros, pautado somente na atividade agrícola de pequeno porte. Com a
construção da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-104) e da estrada Caetano Monteiro, na
década de 1940, e com o adensamento populacional para além do centro de Niterói na
década posterior, o bairro começou a sentir algumas mudanças, como a construção de
uma olaria e criação dos primeiros loteamentos (Jardim Maria Paula, Jardim Europa e
Jardim Santa Anita), porém, ainda mantendo seu caráter rural. Uma discreta presença de
portugueses e alemães, provavelmente atraídos pelo clima ameno, é notada durante as
décadas de 1950 e 60. A partir da construção e abertura da Ponte Rio-Niterói estando
agora a 15 minutos de carro do Rio de Janeiro, o ritmo das mudanças caminhara mais
rápido. Dois condomínios de luxo são construídos, mais loteamentos são criados, como o
Jardim Remanso Verde, e a atividade comercial substitui completamente a rural.
É um dos bairros mais procurados para se morar, por razão da
proximidade dos grandes centros urbanos aliada à tranqüilidade de uma localidade
14
As informações sobre o bairro de Maria Paula foram obtidas através dos sites de pesquisa
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Paula_(bairro_de_Niter%C3%B3i_e_S%C3%A3o_Gon%C3%A7alo
http://meioambiente.niteroi.rj.gov.br/bairros/maria_paula.htm
estritamente residencial, rodeada de montanhas e verde. Condominios de luxo são
construídos ao mesmo tempo que casas simples são erguidas. Dessa forma Maria Paula é
um bairro que apresenta certa contradição, a parte que pertence a São Gonçalo dispõe de
IPTU mais barato, consequentemente, cresce o número de casas mais simples em
comparação ao trecho que pertence a Niterói onde o IPTU é um dos mais caros da
cidade. O mesmo ocorre com o valor cobrado por m2 de área.
Fui apresentada à minha turma. São trinta e uma crianças, com idades
entre 9 e 11 anos. Naquele espaço é fácil encontrar o contraste social. Algumas crianças
possuem computador e de vez enquanto fazem pequenas viagens e passeios, outras
demonstram ter uma vida difícil sem muitas oportunidades de distração e novidades.
Algumas crianças chegam de carro da própria família, de transporte escolar ou
acompanhadas por seus responsáveis, enquanto outras percorrem uma longa distância
casa/escola e fazem os percursos sozinhas, e em alguns casos permanecem sozinhas em
casa, durante o dia, enquanto os pais trabalham.
Para minha surpresa, permeava no meu imaginário uma concepção da
escola pública de ensino fundamental diferente da realidade que encontrei. Digo surpresa
porque apesar de não fazer nenhum tipo de escusa a escola pública, foi possível perceber
que tinha um olhar reducionista, um olhar que até então eu não percebia ter. As vozes
sociais ecoam o coro do fracasso com maior ênfase do que apresentam os casos de
sucesso. O grupo de trinta e um alunos, do quarto ano do ciclo, e escreve. Poucos
ainda não conseguem ler e compreender com facilidade o lido, entretanto, todos
conseguem opinar sobre as questões sociais e assim, a cada dia a minha concepção
reducionista, ainda que camuflada em meio ao meu discurso progressista, é
descaracterizada quando interpretam o cotidiano usando a lógica e a coerência de quem
está mergulhado nessa realidade.
Apesar de fazer uma imagem diferente da que encontrei, sempre procurei
defender a escola pública e os profissionais que por ela circulam, acreditando que não
podíamos generalizar a idéia da escola e dos profissionais como desqualificados. Mas,
então, por que no meu imaginário habitava a impressão de uma escola falida? Por que
acreditava tão ingenuamente que a maioria das crianças não saberia ler e escrever embora
estivessem em etapas avançadas de escolaridade? Por que aceitar tão facilmente a idéia
de que a maioria das escolas públicas é desqualificada? Preferia defender a hipótese de
que não tinha um olhar preconceituoso, mas é preciso reconhecer o quanto as idéias
homogeneizadas tomam conta do nosso inconsciente. Ou consciente?
Não é por acaso que defendia uma escola, mas no meu íntimo acreditava
em outra. Esse movimento não se por acaso, entretanto, não podemos nos deixar
enganar, assumindo também o discurso da educação enquanto produto. Ao contrário do
que possa parecer a população menos favorecida entendendo o valor da escola e a sua
força luta por ela à medida que defende o ingresso e a permanência dos seus filhos(as) na
escola. Segundo Tavares
Assim a idéia propagada pela ideologia dominante e cristalizada a
partir de um difuso senso comum, de que as camadas populares não
demandam saber, de que são refratárias a escola, contrapõem-se as
lutas concretas desses segmentos da população pelo acesso à escola
pública, pela democratização do espaço escolar e pelo direito do
acesso e definição do saber reconhecido socialmente. (2003, p.22)
Comprara uma idéia e, sem me dar conta, essa idéia perpassava pelo meu
imaginário, e mesmo tendo um discurso em defesa da escola pública, o meu olhar estava
cristalizado. Os alunos da turma F4b (Fundamental ano) eram o dado concreto de que
não existe um único modelo de escola pública. Se como nos afirma Pais (2003,p.37) “...o
conhecimento, em si mesmo, é um poder da elite, um saber reservado...” logo, é comum
que nossas mentes sejam também disciplinadas para acreditarem naquilo que nutre de
poder a elite. Porquanto, se estamos vivendo numa sociedade excludente como é a nossa,
evidenciada pelo crescimento da produção de riquezas e desigualdades sociais, o
conhecimento estaria a priori reservado a elite e, por conseguinte, aos seus filhos e não
aos filhos da classe popular.
Começava a ficar mais claro, porque embora tivesse um discurso poético em
relação à escola pública, o meu olhar para esta realidade assumia outra dimensão, não
estava atenta à complexidade que se manifesta nas relações do homem numa sociedade
marcada pela produção e pela competitividade. A minha visão ingênua, vai pouco a
pouco se transformando em reflexão consciente.
Se o desenvolvimento social e econômico, marcado pelas forças produtivas e pela
divisão do trabalho, aprisiona o homem à competitividade e estimula à individualidade
no contexto das relações sociais, “...o espaço que, para o processo produtivo, une os
homens, é o espaço que por esse mesmo processo produtivo, os separa...” Assim,
passamos à compreender que o espaço é algo além da “...forma física e que o espaço
social distingui-se das formas vazias pelo próprio fato de sua cumplicidade com a
estrutura social...” (SANTOS, 1997, p.22).
Se a escola é um bem comum capaz de desenvolver intelectualmente o homem
para o trabalho, é natural que em uma sociedade capitalista a engrenagem funcione com a
perspectiva de exclusão. O que aparentemente está para unir os homens, como é o caso
da escola, funciona para realçar as diferenças que ela mesma produz. Neste caso, a marca
da diferença está no discurso oficial que anuncia o espaço da escola como um direito
comum a todos, entretanto, a sua utilização efetiva é reservada de forma diferenciada,
provocando a separação, a individualidade e a competitividade.
Ainda, que o meu olhar desconfiasse da condição de aprendizagem apresentada
por aquelas crianças, os meus questionamentos e as minhas indagações, como professora,
não me permitiria um trabalho descomprometido. De volta à sala de aula, agora com
crianças do ensino fundamental, reencontro, mais uma vez, a professora que desejei ser.
As falas das crianças ressoam como pontos de partida e de chegada, princípio que
estabeleço para compreender melhor a escola e a criança na escola. Entendo que a
pesquisa com o cotidiano escolar é possível se busco a rememoração da trajetória que
me constitui como professora, exercício que me faz voltar à escuta para mim mesma,
possibilitando ler as minhas atitudes e compreender como me alfabetizo na interação com
as crianças.
Foi vivendo esse cotidiano misterioso e fascinante ao longo de muitos anos de
exercício profissional que comecei a suspeitar que poderia compreender de fato a
escola se fosse capaz de compreender a compreensão da criança sobre a escola. Assim,
chego ao curso de mestrado com uma suspeita traduzido em forma de questão de
pesquisa: buscar a partir das crianças compreender melhor a escola e a criança na escola.
Optar pelas vozes das crianças é optar por sujeitos que foram negados
historicamente. Esse desafio me assusta. Como trazer para a pesquisa vozes silenciadas?
Como reconhecer a importância de uma pesquisa em que os sujeitos nela implicados
foram negados ao longo da história?
O movimento de pensar novas práticas me toma de “medos” e anseios. Naquele
momento a expectativa de conseguir dar conta daquela atividade me assusta. Talvez por
este motivo, fosse tomada pela emoção de possibilitar através das brincadeiras, histórias
e jogos um ambiente propício para nos conhecermos melhor. A partir daí transformar os
prazeres e os desprazeres da escola em possibilidade de aprendizagemensino era outro
desafio.
2.2 A escola ciclada: limites e possibilidades
Outro desafio, também, era me colocar como professora na escola de ensino
fundamental. Até então, a minha experiência no município estava atrelada à educação
infantil. Apesar de saber que havia uma perspectiva das escolas de ensino fundamental
passarem a se organizar em regime de ciclos, nós, da educação infantil, não havíamos
participado de discussões, nem de cursos ou grupos de estudos sobre essa nova
modulação.
As mudanças em toda rede começavam a ser articuladas: escola ciclada,
professoras em horário integral nas UMEIs, escolas pólos... As notícias não eram
precisas, mas era o indício de mudanças. Embora a proposta de ciclos não fosse
inteiramente nova no município, dados que constam no documento oficial
15
da Fundação
Municipal de Educação mostra que
Para compreendermos o Sistema de Ciclos na Rede Municipal
de Educação, é necessário que façamos um exercício de resgate
do processo de implantação. Para isso é necessário que
retornemos ao ano de 1999, quando a idéia dos ciclos chegou à
rede municipal de educação de Niterói através da proposta
pedagógica “Construindo a escola do nosso tempo” (FME,
1999), bem como relembrar os momentos que antecedem a esse
tempo. (p. 39)
Na realidade creio que toda rede de ensino estava amadurecendo as hipóteses
acerca das modificações. Lembro de ter participado, no final do ano de 2005, de uma
reunião sobre ciclos de aprendizagem, mas esta não foi o suficiente para que a minha
prática seriada pudesse ser posta de lado e no lugar, inserir um novo modelo.
15
Ver documento na integra no site http://www.educacaoniteroi.com.br
Algumas escolas aderiram à nova perspectiva e saíram à frente, optando
para o ano de 2006, pela modulação em ciclos tornando-se escola pólo
16
. O Diógenes foi
uma das escolas que fez a opção pela nova modulação. Fui percebendo, que as escolas
pólos eram as escolas de referência para as demais. A equipe técnico-pedagógica da
escola, no início do ano letivo, procurou fazer reuniões para apresentação da proposta aos
pais. Nós, professoras, não participamos das reuniões, portanto desconheço qual foi a
receptividade dos pais frente à nova proposta.
Não havia tempo a “perder”, era preciso que algumas práticas fossem
postas em execução para que se pudesse acompanhar os possíveis encaminhamentos e
resultados. A Fundação Municipal de Educação monitorava através do contato direto da
equipe da Fundação com a escola e vice-versa.
Portanto, ao assumir a nova escola as informações chegavam como se me
fossem familiar, havia feito algumas poucas leituras sobre o assunto e tinha uma idéia
geral do regime de ciclos de aprendizagem, mas desconhecia essa prática. Aliás, a minha
trajetória de mais de 20 anos trabalhando em escolas privadas, além do meu tempo de
estudante, influenciou à minha visão cartesiana, limitada ao trabalho em regime de séries.
A ruptura dessa concepção e a introdução de uma nova perspectiva de trabalho
demandavam tempo e a minha inclusão na nova política educacional. Como afirma
Boaventura Santos (2005) não se rompe com um paradigma e se estabelece outro de
imediato, há sempre uma transição em curso. Era como me via, não defendia e ainda não
defendo a seriação acreditando ser o único modelo capaz de dar conta do nosso sistema
educacional, mas pôr em prática outras perspectivas de currículo demanda tempo.
Não se tratava de resistir ao sistema ciclado. O modelo de minha formação e
atuação durante muitos anos apontava para outra lógica. Romper com o paradigma
hegemônico era colocar em questão a minha própria atuação como professora. Era como
se no modelo seriado soubesse o que é ser uma “boa professora”, ou melhor, era como se
soubesse que caminho percorreria para dar conta de ser essa “boa professora” que no
fundo desejava ser.
E no modelo ciclado? Como dar conta da minha prática sem perdê-la de vista?
Quais os fios das práticas cicladas eu poderia puxar?
16
Escolas que optaram em aderir ao modelo ciclado em 2006, quando na realidade a implantação definitiva
e obrigatória por determinação da FME – Niterói estava prevista para o ano de 2007.
A minha formação em séries e a minha atuação durante anos como coordenadora
pedagógica apontava caminhos de um fazer pedagógico baseado num tempo linear, onde
a professora uma vez conhecedora do processo aprendizagemensino, selecionando
criteriosamente os conteúdos e buscando a criatividade e a interação dos alunos nas
aulas, estaria provavelmente provando do sucesso.
E a escola em ciclos? Como lidar com um tempo cíclico? Como lidar com a
possibilidade do fazer pedagógico mediado pelo ideal de construção da aprendizagem?
Dilemas que percorremos quando nos permitimos aprender a fazer fazendo. Punha-me o
desafio de me alfabetizar numa outra escola, dentro de outra perspectiva.
Talvez por esse motivo resistisse ao modelo ciclado, por ser muito mais fácil
começar do lugar conhecido, por ser menos doloroso pensar na hipótese de se jogar fora
tudo aquilo que se é, que se foi durante anos de formação e atuação. Era como se
estivesse negando um fazer que durante muito tempo defendesse: idade e série;
organização e seleção de conteúdos; pré-requisitos...
Estranhei logo de início os agrupamentos e reagrupamentos, a proposta de rodízio
das professoras de uma sala para outra a fim de conhecerem todos os grupos, me fez
resistir. Solicitei a Orientadora que ficasse no grupo que assumiria como professora, pois
julgava mais importante, naquele momento, ter contato com os meus alunos e não com a
escola toda. A concessão foi cedida, mas não de bom grado, seguir a organização do que
foi combinado com o grupo anterior a minha chegada, talvez fosse o mais sensato.
Entrei na contramão e às vezes tenho a impressão que finalizei o ano letivo
fazendo o caminho oposto. A resistência das crianças a cada reagrupamento, a
inquietação delas diante da interrupção de uma atividade era uma pista importante para
perceber que estávamos trilhando o caminho da construção da aprendizagem e que a
nossa sala, ainda que feia, era um espaço prazeroso. A cada indício de reagrupamento os
questionamentos vinham através das perguntas:
Tia, vai ter reagrupamento hoje?
Tia, dessa vez eu não quero ir.
Tia, quem você vai escolher?
Perguntas que nem sempre tinham respostas, para mim e para eles. Parar a
atividade e dividir o grupo em meio à uma proposta que todos estavam interessados, era
uma interrupção pouco aceita pelo grupo. Deixar de encaminhar uma atividade
inicialmente discutida e que era de interesse deles, abandonar a correção de um exercício
feita no coletivo ou de uma atividade de casa, era para eles uma perda irreparável. Havia
uma cumplicidade, uma intimidade, um jogo de olhar, uma maneira de ser e de fazer no
ambiente da nossa sala de aula que era gostoso.
Umas das minhas dificuldades em compreender a dinâmica empregada no
trabalho educativo no sistema de ciclos, no município de Niterói, são os constantes
reagrupamentos que temos que cumprir. Às vezes estamos abordando um assunto
interessante, ou calculando um problema apresentado, ou ainda lendo um texto e está
na hora de mexer com o grupo. No sistema de reagrupamento as crianças são divididas
por um critério estabelecido pela professora, anteriormente acordado por todas as demais
professoras e orientadora na reunião de planejamento.
Em alguns reagrupamentos, priorizamos o reforço escolar na área de linguagem e
da matemática. Outras vezes, propôs-se diminuir o número de alunos em sala. Esse
critério foi pensado para possibilitar a professora um atendimento mais direto as crianças
que precisam de maior atenção. Nesse caso saiam oito alunos de cada turma, o grupo dos
“resolvidos”, digamos assim, estes ficam com a professora de apoio formando uma nova
turma. Nesses dias a minha turma diminuía para 23 alunos.
Percebia que tais critérios geravam agitação na escola e na nossa sala a divisão de
grupos trazia certo descontentamento. Cada reagrupamento suscitava uma expectativa
evidente quando dizem:
O que nós vamos fazer?
Quem vai ficar com a gente?
Por que tenho que ir?
Quando estamos no meio de uma atividade ou se combinamos algo diferente após
terminarmos aquilo que nos propomos a fazer a resistência é notória. Outro fato crítico é
quando anunciamos o reagrupamento e este não acontece por falta de alguma professora.
O descrédito é total. Por esses motivos acredito que muito a se rever para que esse
modelo de ensino possa ser pensado como perspectiva de superação das dificuldades
encontradas. Como a proposta vem sendo implementada, julgo que estejamos criando
mais dificuldades, mais entraves capazes de retardar o processo de emancipação da
educação.
Havia por parte dos meus alunos uma grande resistência a esse tipo de
organização, fruto talvez da minha própria resistência. Era nítida a minha pouca
familiaridade e receptividade com as propostas de reagrupamento, por estas, sugerirem as
divisões de grupos. Era nítido também, o incomodo da orientadora educacional para com
os meus esquecimentos em relação aos grupos que deveria se deslocar para outra sala. A
realidade é que às vezes estávamos numa atividade ou em meio a uma proposta
interessante e tínhamos que parar tudo, para organizar uma nova dinâmica. Nessas horas
era comum a resistência deles e minha também.
Assim como eu, a escola que estava começando a conhecer o processo de
implementação do sistema de ciclos, mas as professoras que estavam, de alguma
forma, haviam se sensibilizado para a nova proposta. No ano anterior tiveram a
oportunidade de discutir a proposta do sistema ciclado e até mesmo de decidirem viver a
experiência de ser uma escola pólo. Havia uma pré-disposição da parte delas quanto à
organização da escola nos dias do reagrupamento, talvez por entenderem bem a dinâmica
que estava posta. Não era o meu caso!
O sistema de reagrupamentos sugeridos pela FME é na verdade uma estratégia de
apoio aos alunos. De acordo com a Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Niterói
17
“...o objetivo não é especificamente atender aqueles que têm dificuldade, mas
possibilitar o entrosamento dos alunos a partir das suas possibilidades e interesses,
inclusive permitindo a troca de saberes entre eles...” (2007, p.45)
A proposta era sem dúvida interessante, mas não combinava com aquela
escola. O espaço físico não comportava nem mesmo uma brincadeira no pátio com mais
de uma turma, não havia uma sala sequer sobrando, não tínhamos uma quadra de esporte.
Os primeiros reagrupamentos que fizemos, contemplamos mais as dificuldades, do que o
entrosamento por interesses.
No inicio do ano letivo, ao organizarem os grupos de crianças por sala se
priorizou a idade, entretanto a organização inicial não deu conta do que pretendiam.
Chamou-me a atenção, a variação de crianças com idades diferentes no mesmo grupo,
causando assim hipóteses de aprendizagens diferenciadas.
17
Para maiores informações consultar o site http://www.educacaoniteroi.com.br
Na tentativa de suprir as necessidades educativas das crianças, é que fomos
optando pelos reagrupamentos de leitura, escrita e de matemática. Digo fomos, porque na
verdade eu também participava das reuniões de quarta-feira onde se estabelecia com o
grupo as estratégias de trabalho. Digo fomos, porque embora discordasse daquele modelo
não conseguia contribuir com outra perspectiva que fosse ao encontro ao que estava
estabelecido. Ainda seguindo as orientações do documento oficial “...uma outra
possibilidade é construir um reagrupamento com base nos interesses de determinada
área, ou seja, alunos...” (2007, p. 46)
Por diferentes motivos, inerentes a nossa vontade, os reagrupamentos tinham tudo
para não acontecer da forma que foi pensado e registrado no documento oficial. A
professora de apoio
18
era escalada a cumprir as ausências, previstas ou imprevistas, das
demais professoras. O trabalho sugerido nas salas de informática e leitura era
impraticável: as duas salas eram cubículos adaptados e não acomodava nem metade da
turma, logo se tornava inviável pôr em prática o que havia sido proposto pelo sistema.
O horário das aulas de Artes e Educação Física das turmas, foi organizado de
forma que nós, professoras do 4º ano, nos encontrássemos semanalmente por cerca de 50
minutos para planejamento, porém isso ficava somente no papel. O ritmo acelerado do
cotidiano da escola e a falta constante de profissionais não permitiam o encontro entre as
professoras. Quando sentávamos para trocar informações e tentar planejar o trabalho,
ficávamos no meio do caminho, pois o tempo era curto.
Na parte da manhã, havia seis turmas: três de ano e três de ano. Por
coincidência, ou não, todas nós do ano, éramos novas naquela escola. Uma delas
faltava consecutivamente comprometendo a organização e dificultando os encontros de
planejamento, quando ela não faltava era comum não ter quem ficasse com uma das
turmas para que pudéssemos conversar sobre o desenvolvimento do trabalho, enfim
pouquíssimas vezes nos encontramos. Das vezes que conseguimos nos encontrar o tempo
de 50 minutos não foi o suficiente.
Quando o critério estabelecido para um novo reagrupamento foram oficinas por
temáticas variadas, a inscrição permitiu a escolha por temas de interesse das crianças.
Essa proposta gerou maior entusiasmo por parte das crianças e maior envolvimento das
professoras, logo, surtiu melhor aproveitamento. Cada professora escolheu um tema e
18
Pelo número de alunos teríamos duas professoras de apoio para auxiliar as propostas que seriam
desenvolvidas. Porém, por motivo de transferência de um das professoras e licença de outra contávamos
apenas com uma.
usando da literatura infantil, planejou diferentes atividades. A liberdade que as crianças
tiveram em optar pelo tema que lhes despertava maior interesse fez com que as se
envolvessem mais. Um dos poucos momentos em que nos voltamos para o exercício de
participação social e de cidadania, pois as crianças puderam fazer as suas escolha e
inscrições.
Para que o sistema de ciclos seja bem sucedido, é preciso, além de outras
questões, que a escola organize de forma mais flexível e coletiva seus tempos e espaços,
fato pouco provável naquela conjuntura. Tudo ou quase tudo, convergia para acontecer
ao contrário, além da deficiência de funcionários, outro complicador é o espaço físico da
Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça. As salas de aula estavam todas
ocupadas, havia um refeitório e um pequeno pátio coberto, os demais espaços ao ar
livre eram em áreas acidentadas.
Uma possibilidade de articulação do tempo e do espaço seria possível,
também com a presença de aulas específicas, mas, começamos o ano letivo sem contar
com nenhuma modalidade. Tentamos diversas vezes usar o laboratório de informática,
embora, a sala seja minúscula e improvisada. Para colocar em prática essa atividade,
contávamos com a professora de apoio, que a escola ciclada tem direito, para nos ajudar a
organizar a ida à informática, pois se não cabiam todos os alunos era necessário o
rodízio. Entretanto, essa colega cumpriu mais licenças e faltas de outras professoras, do
que apoiou na organização das atividades de informática.
Ainda que estivéssemos, cada uma de nós, vivendo a prática da escola
ciclada dentro da nossa perspectiva de compreensão desse modelo e, ainda, que o grupo
não estivesse afinado nas relações coletivas, um fato não se pode negar: tentamos por
diferentes caminhos colocar em prática o modelo de ciclos. O mérito do investimento das
professoras e equipe técnico-pedagógica não se descarta, mas me pergunto sempre: Qual
o preço que paga a criança da escola pública que vive as experiências e é parte da
experiência?
A minha inquietação pessoal passava por esta reflexão. Enquanto
profissional ligada a escolas particulares, não tinha como viver aquela realidade sem me
colocar em conflitos. O meu incomodo, me fez sugerir que fizéssemos um
reagrupamento onde eu pudesse estar com algumas crianças que estavam no e
anos de escolaridade e que ainda apresentavam dificuldades na leitura e na escrita. A
proposta foi aceita e reunimos cerca de oito crianças que não conseguiam ler e escrever
como os demais colegas de turma. Do meu grupo participaram três: Delcy, Wesley e
Beatriz.
Vou formar um grupo para o próximo reagrupamento, vou trabalhar com as
dificuldades de leitura e escrita, acho que será bom para vocês. O que acham, desejam
participar?
Quem mais irá participar? Sebastiana perguntou.
Da nossa turma, penso em vocês; acho que vocês poderiam aproveitar melhor
esse momento.
O que nós vamos fazer? Delcy perguntou.
Vou separar pequenos textos, algumas palavras e vamos juntos trabalhando...
Como será um grupo pequeno, onde outras crianças têm dificuldades semelhantes, um
vai ajudando o outro...
Wesley antes mesmo de saber o que iria acontecer estava disposto. Alias a
disposição de Wesley para vencer as suas dificuldades, que eram muitas e que ele era
consciente delas, era algo extraordinário. Delcy disse que sim sem maiores
argumentações. Beatriz fez uma cara de quem não estava muito satisfeita, mas disse que
participaria. Sebastiana ficou quieta.
Sebastiana tinha idade um pouco mais avançada que a turma e era muito tímida.
Apresentava um caderno muito bem organizado e uma letra perfeita, mas percebi que era
uma excelente “copista” e vinha disfarçando sempre que encontrava alguma dificuldade.
Por ter uma doença na pele, vez ou outra, era submetida a cirurgias o que lhe fez em
etapas anteriores perder muitas aulas, prejudicando o seu aproveitamento escolar. O fato
de estar no grupo, facilitaria o acompanhamento e poderia avaliar melhor o seu
rendimento, dias depois me procurou toda envergonhada, pois era o seu jeito de ser.
Tia eu não quero participar.
Tudo bem, mas vamos combinar que preciso acompanhar melhor o que vem
fazendo para que eu possa perceber se realmente você sabe ou não e poder ajudá-la.
Sinto que às vezes copia do colega, e nem sempre consegue fazer sozinha. Estou errada?
Não.
Sebastiana sabia que no fundo eu estava certa, porém não se sentia a vontade para
participar daquele grupo. A posição de Sebastiana foi respeitada e fizemos um
combinado na tentativa de que ela passasse a compartilhar as suas dúvidas comigo
assumir.
Com todas as dificuldades, conseguimos manter semanalmente um encontro de
mais ou menos uma hora. Agora, a ordem estava invertida, eu saía de sala com alguns
colegas e os demais eram assistidos por outra professora. Reclamações eram comuns
nesses casos, os alunos discordavam de qualquer movimento diferenciado, insistiam para
como os demais.
Foram poucos os encontros, mas o suficiente para ao menos colocarem as suas
dificuldades sem acanhamento. As dificuldades variavam e dois alunos se confundiam,
até mesmo, com o nome das letras, embora estivessem em etapas avançadas de
escolaridade. Ao final de cada encontro perguntavam se teríamos outros. Quando
retornava a pergunta indagando se desejavam ou não, sempre diziam que sim. Algumas
vezes que não nos encontramos por conta da organização da escola, me abordavam no
pátio questionando novos encontros.
Não consegui, naquele momento, fazer uma avaliação mais precisa da progressão
de cada um, mas os resultados dos exercícios propostos acenavam uma evolução
coletiva. Em sala, Wesley demonstrava maior segurança ao escrever e às vezes me
procurava para mostrar o seu caderno apontando:
Vê só essa aqui eu escrevi certo, não é? Viu, já estou sabendo?
Essa palavra é assim ou assim...?
Wesley se oferecia para ler em voz alta, demonstrando maior segurança. Essas
experiências também me ajudavam a prosseguir mais confiante, não no meu trabalho,
mas também no próprio modelo de ciclos que vínhamos, ainda “engatinhando”, fazendo-
o acontecer. Começava a ter a segurança de que mesmo não participando das discussões
anteriores sobre ciclos e mesmo oriunda de outra realidade, as coisas iam acontecendo,
demonstrando que nenhuma proposta é tão evasiva a ponto de não provocar movimentos
construtivos.
2.3 NO ATALHO DA METODOLOGIA
Para Aldo Victorio Filho
19
pesquisar o cotidiano é criar metodologias,
criar metodologias não me parecia algo simples e de fato não é, mas escavar a contrapelo
as evidências, como muitas vezes apontava a minha orientadora, era um desafio que aos
poucos foi me trazendo certo encantamento. É ainda Aldo Victorio Filho que nos ajuda a
perceber que “...a pesquisa desafia o autor a refletir sobre o que o faz sentir o que sente
quando sente o que sente e a questionar as ões e os percursos que cria ou escolhe
para elucidar o que elegeu conhecer...” (2007,p. ); era justamente como me sentia, um
mister de sentimentos e questionamentos ia pouco a pouco tomando conta de mim. Mas
como fazer quando o sentir nos envolve e a poesia que nos invade nos faz por demais
entusiastas?
Optei pelas narrativas do vivido, quando as leituras de Walter Benjamim
foram me mostrando que dessa forma, poderia através de uma percepção sensível, expor
as experiências vividas no cotidiano. Mas como selecionar as experiências? Quais teriam
maior importância? Quais seriam descartadas? Esse foi um desafio que pouco a pouco fui
aprendendo a enfrentar à medida que ressoava em mim as práticas vividas no espaço-
tempo cotidiano. O que despertava a minha atenção, não ecoava como veracidades, mas
como pistas que me convidavam a mergulhar na busca de descobrir e não de
efetivamente me certificar. Aos poucos, fui compreendendo que a minha pesquisa não
poderia ou não caberia nas amarras disciplinares tradicionais do rigor metodológico.
Havia um contexto que nos envolvia: o espaço da sala de aula, o espaço da escola, eu no
papel da professora, elas no papel de crianças e meus alunos, o fazer pedagógico e o
cotidiano que nos envolvia. Como se não bastasse tudo isso, eram vidas que se cruzavam
e um mundo por nós vivido. Eram as tensões e as contradições que engendravam a
própria ambiência da pesquisa.
Para compreender como as crianças produzem sua palavramundo no contexto
social e cultural em que estão inseridas, busco através do diálogo com Paulo Freire,
Michel de Cearteau, Walter Benjamim e Milton Santos, tecer o referencial teórico da
investigação a partir do movimento prática-teoria-prática. O diálogo é alinhavado com os
fios de uma escuta sensível às leituras de mundo das crianças e ainda que não seja de
19
Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 98, p. 97-110, jan./abr. 2007
meu interesse aprofundar os estudos no campo da geografia, busco a partir dela a
fundamentação para compreender como as crianças interagem com o mundo em que
vivem e como a geografia existencial pode nos ajudar na compreensão da
territorialidade da infância
20
”.
Confesso que ao escrever o meu projeto para ingresso no mestrado, fiz referência
a Alfabetização Geográfica, mas era uma visão ainda reducionista. O entorno das
crianças da creche se revelava através das histórias das suas famílias, do jogo de
imaginação entre o concreto e o abstrato em que emergia a referência de elementos
naturais. Os desenhos entre a casa e a escola me permitiram aos poucos ler os seus
caminhos e me faziam pensar nas hipóteses que se abririam para a alfabetização a partir
da Geografia. A Geografia a que me referia, até então, estaria anunciada a concepção de
espaço físico delimitado, parcelado, dividido por onde transitamos e ocupamos
diariamente.
A partir da aproximação com alguns autores a minha concepção de
geografia se amplia, começo a perceber que uma geografia que se preocupa com o
espaço
21
numa dimensão social que se revela no cotidiano. Para melhor entendimento
passei a vasculhar os significados de espaço, lugar, geografia e entorno geográfico além
de outros conceitos, à medida que a pesquisa me exigia. Noções complexas quando o
nosso campo de atuação é outro.
Acompanhada das literaturas de Michel de Certeau e Milton Santos vou à
busca de novas descobertas. Começo a compreender que a minha proposta de pesquisa
estava muito mais atrelada a uma alfabetização cotidiana, por estarem os sujeitos
integrados/inseridos/conectados ao mundo e por ser esse o meu foco de pesquisa
compreender como as crianças lêem o espaço e a partir das suas leituras descobrem o
mundo.
20
Uso o termo territorialidade da infância, a partir dos estudos de Jader Janer e Tânia Vasconcellos. Este
conceito me ajuda a pensar a infância em sua materialidade no manejo da vida cotidiana, por ser esse o
foco da minha pesquisa. Como as crianças se apropriam dos espaços designados pelos adultos e como elas
vão (re)significando esses espaços são pontos que busco identificar e discutir, a partir das práticas com as
crianças.
21
Para Milton Santos o debate deveria ser para além da geografia. O debate que permite avançar é a
discussão sobre o espaço, discussão que permite descobrir quais são as subdivisões pertinentes do objeto
que nos interessa. O espaço considerado tem também uma quinta dimensão que é o cotidiano. (...). A
dimensão espacial é a dimensão talvez central do cotidiano do mundo de hoje. 1997
São os sujeitos ordinários como afirma Certeau (1994) que ocupam pouco a
pouco o cenário científico, são esses sujeitos de que falo na minha pesquisa. São esses
sujeitos que me ajudam a perceber que mesmo os silenciados, apagados historicamente
falam. São esses sujeitos ordinários, mas vivos porque têm histórias e fazem histórias,
que Paulo Freire buscou durante a sua trajetória na educação e que de certa forma nos
convidou a ir ao encontro, achar e trazer para as nossas pesquisas.
Ainda na tentativa de me orientar, na minha própria pesquisa, encontro em Walter
Benjamim (l987, p.73) indícios de como prosseguir quando este afirma que “...saber
orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como
alguém se perde numa floresta, requer instrução... Os caminhos metodológicos da
minha pesquisa ressoam como os trajetos que percorre alguém que se perde numa cidade.
Os labirintos percorridos me servem de orientação em relação à pesquisa quando
compreendo que além das instruções metodológicas a minha atenção é fundamental para
que os simples vestígios sejam os passos a seguir. Mas onde estão esses vestígios? Como
encontrá-los?
Sinto cada vez mais que a pesquisa com a criança é instigante, mas, ainda,
um mundo a ser escavado. Walter Benjamim especialmente na obra Infância em Berlin
nos apresenta a criança como portadora de uma história onde a fantasia e o real convivem
e dialogam intensamente a ponto de produzir uma cultura própria e peculiar à infância.
Apesar de a obra datar entre os anos de 1932 a 1933 imprime forte atenção às
experiências vividas na infância, campo que oferece muito a ser explorado, do ponto de
vista teórico-epistemológico.
Quantas vezes revisitamos as narrativas reveladoras da infância do autor,
tanto mais encontramos a criança que existe em nós e o exercício de rememoração parece
inevitável. Esse exercício de visitar o passado em busca do presente nos aproxima da
sensibilidade, atributo natural àquele que lida com o outro. Narrar essas experiências
possibilita re-significar as práticas de vida, repensando as nossas atividades com as
crianças.
Ao trilhar esse caminho, fui me dando conta de que a participação das
crianças no processo da aprendizagem requer compreender que as suas falas implicam
uma dinâmica interativa na relação professora e crianças Com freqüência me colocava
atenta às expressões que diariamente elas transmitiam, oportunizando a medida que a
minha condição perceptiva permitia uma maior interação nas propostas desenvolvidas em
sala de aula.
Ao chegar à universidade, o campo com o cotidiano, fui apresentada à
metodologia de investigação de pesquisa em que as crianças são vistas como os atores
sociais, possibilidade que vinha transcorrendo empiricamente. Metodologia não
convencional, assim como não é convencional o campo do cotidiano, e em processo de
ampliação no Brasil; as pesquisas com as crianças e não sobre o modo de vida delas
marca uma nova fase, ainda que tímida. Segundo Quinteiro (2005,p.21) “...pouco se
conhece sobre as culturas infantis porque pouco se ouve e pouco se pergunta às
crianças...” Em suas investigações sobre a infância revela as dificuldades teórico-
metodológicas encontradas durante a sua pesquisa.
Com o tempo, percebo algo mais na minha relação com as crianças, percebo que
em nossa relação não era somente a interação cotidiana estreitada pelos laços formais da
profissão que nos unia. A cumplicidade nos fez íntimos e legitimava a cada instante as
nossas afinidades. Sem ter a intenção de fazer uma análise psicológica das nossas
relações, vejo-me valorando algumas falas, atitudes, manifestações de contentamento ou
descontentamento por parte das crianças. Aos poucos, vou percebendo que esses rastros
são importantes para compreender parte do universo por elas vivido. Um ou outro
registro arquivados em anotações de depoimentos espontâneos, desenhos de lugares ou
mesmo algumas falas guardadas na memória, eram os indicativos de que a pesquisa
seguia o rumo metodologicamente pensado: as crianças seriam de fato os sujeitos da
minha pesquisa.
Esse dado foi importante para que me aproximasse dos estudos relacionados a
escuta sensível. A escuta sensível que para René Barbier (1992, p.191) “...é o modo de
tomar consciência e de interferir, próprio do pesquisador ou educador que adote essa
lógica...” era a condição necessária à pesquisadora que enquanto sujeito da pesquisa é
também a professora daquele grupo. Portanto, as falas e atitudes das criançaso dando
corpo à pesquisa e sugerindo uma possibilidade metodológica, sempre que a
argumentação reflexiva vai despertando na pesquisadora um significado maior.
A forma que entendo ser dada a essa pesquisa é como num caleidoscópio onde as
peças interagem sem necessariamente se completarem, não pretendo juntar todas as peças
e encaixar com perfeição como fazemos num quebra-cabeça. Não venho em busca de
respostas, mas de perguntas, dúvidas, questionamentos, e das vozes infantis que de
alguma forma possam me dar pistas de que a aprendizagemensino está acontecendo ou
que possa acontecer no contexto geográfico onde estão inseridas.
É importante, para melhor compreensão de como o espaço vai pulsando no nosso
cotidiano, situar como me coloco no ambiente da sala de aula e como efetivamente o
trabalho foi tomando corpo. Entretanto, julgo importante ressaltar que o espaço que tomo
como referência baseia-se nos estudos de Milton Santos para quem “o espaço é contínuo
e não espaço de pontos, ou de fluxos”. O mesmo autor afirma que o espaço na
perspectiva da socialidade considera o homem em interação com os seus pares e que essa
interação se no cotidiano. Recorro a Certeau na perspectiva de escavar esse cotidiano
a ponto de compreender o que ele representa
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia ( ou que nos cabe em
partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma
opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao
despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta
ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é
aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história
a meio de nós mesma, quase em retirada, às vezes velada. [...] O “que
interessa ao historiador do cotidiano é o invisível...” (1994, p.31)
Se como afirma Certeau (1994) o cotidiano é o nosso dia-a-dia, não
previsibilidade no cotidiano que possa nos acercar de certeza porque cada dia é único.
Assim, a interação entre os sujeitos são expectativas de acontecimentos. Neste caso, a
geografia é a existência do homem em interação com outros homens.
Assim como os pequeninos da Educação Infantil, as crianças do Ensino
Fundamental me fazem descobrir que um campo epistemológico se abre através das suas
falas, sugerindo possibilidades de descobertas, seus olhares, registros, opiniões, atitudes,
histórias, conversas, indagações me fazem perceber que diferentes cotidianos se
entrelaçam... Mas e a minha pesquisa por onde anda?
Começo a perceber que me deslocar o campo de pesquisa de uma escola para
outra, foi uma questão de me permitir à aproximação com outros pares. Eu entrara na
dança e estava na roda da pesquisa. não era tão somente a pesquisadora era também a
professora. Segundo Geraldi
É nesse ‘chão movediço’ que aprendemos dia após dia, sobressalto
após sobressalto, a dor e a delicia de sermos professoras pesquisadoras
no cotidiano de nossas escolas, seja na básica, seja na universitária.
Significa que assumimos que nosso desafio se complexifica ou facilita
(depende da leitura que se faça) porque trabalhamos e pesquisamos
nossas práticas cotidianas. (2006, p. 185)
A minha pesquisa é fruto, também, da minha prática. É no chão movediço”, no
“chão híbrido”, no “chão dos acontecimentos” que se realiza a pesquisa. E atravessando
muitos chãos que eu também me alfabetizo à medida que vou lendo o mundo e
escrevendo a palavramundo com as crianças do colégio Diógenes Ribeiro de Mendonça.
A curiosidade, característica da infância presente nos diálogos e discussões na
sala, mostrava o quanto as crianças estavam em sintonia com o mundo, questões sociais
se manifestavam nas denúncias e controvérsias expostas nas suas opiniões. O diálogo
freqüente, a troca de informações, as dúvidas que surgiam me faziam pensar: somos eu e
as crianças, objetos e sujeitos da pesquisa? Um campo epistemológico se abria e era
preciso me lançar. O cotidiano vai me ensinando que não é rotineiro e igual, é antes de
tudo, espaço de surpresas permanentes. Perez nos ajuda a pensar a geografia no contexto
da infância
Fazer geografia é dialogar com o mundo, possibilitando à criança
ampliar os significados construídos, transformando sua observação em
discurso, de modo que possa compreender o sentido do mundo. O
sentido do mundo está no próprio mundo, portanto, ler o espaço é
apreender o seu sentido. Tal abordagem nos possibilita pensar a
função alfabetizadora da geografia como uma construção
epistemológica. (2005, p.134)
A interação cotidiana com a turma fornecia subsídios que me ajudam a
compreender como as crianças estão inseridas no seu espaço e como essa geografia
22
pode inserir-se nas práticas e atividades pedagógicas.
22
A Geografia aqui é entendida a partir de Milton Santos, geógrafo, que lutou por uma geografia como
instância social. Conceito renovado que nos permite lidar com a totalidade mundo, ou com a totalidade
empírica, característica do tempo presente deste período histórico recentemente denominado por ele de
período popular da história, sucedendo ao período técnico, científico e informacional.
CAPÍTULO III
TODOS JUNTOS SOMAMOS QUASE NADA:
TENSÕES E CONTRADIÇÕES
Narrar às tensões e contradições da escola vivida por nós, vai me ajudando a ler
esse cotidiano conflitante que nos envolve dia após dia. Vai me ajudando a perceber de
que forma as nossas fragilidades interferem na organização escolar e de que forma a
criança percebe e ao perceber cria possibilidades de enfrentamento. Se por um lado,
denunciamos a falta de estrutura física e humana de responsabilidade das autoridades que
gestam a educação no município, por outro, não podemos negar a nossa parcela de
responsabilidade na desorganização do espaço escolar.
As professoras de Artes e de Educação Física chegaram à escola meses depois de
terem começado as aulas. Foram aprovadas no último concurso e surpreendidas com a
convocação após o ano letivo ter começado. Integrando o quadro de profissionais de
outras escolas, o horário delas não atendia confortavelmente a nossa escola, a professora
de Artes, por exemplo, tinha um horário corrido numa seqüência quase impossível de
cumprir tendo em vista que se deslocava entre uma sala e outra. Não tínhamos um espaço
adequado para o funcionamento dessa aula. A direção decidiu aceitá-las, mesmo não se
adequando totalmente às necessidades da escola. A Escola Municipal Diógenes R. de
Mendonça é muito afastada do centro, de difícil acesso o que de um modo geral não atrai
a professora. Neste caso, a direção temia não receber outros profissionais.
A professora de Educação Física acolheu os alunos e foi acolhida por eles, não
lhe era novo o trabalho com crianças daquela faixa etária. Entretanto, o mesmo não
aconteceu com a professora de Artes, fizera o concurso para trabalhar no e ciclo e
ao ser convocada a FME disponibilizou a vaga para as anos iniciais. Aparentemente, não
estava muito satisfeita com o novo emprego, embora o tivesse aceitado. Segundo ela, não
estava conseguindo se relacionar bem com os pequenos, principalmente com algumas
crianças. Essa questão foi trazida pela própria professora em uma das reuniões de
planejamento.
A insatisfação das crianças era o suficiente para denunciar a falta de
entrosamento. Quando a professora de Artes chegava as crianças reclamavam, faziam
apelos para que eu não saísse de sala e chegavam a fazer comentários diante da
professora:
Ah! Tia fica aqui com a gente!
Tia, me deixa ir com você!
As solicitações não eram discretas e eu tentava contê-los pedindo que
colaborassem com a professora. Durante essa aula deveria descer para planejar com as
demais professoras, portanto, era necessário ausentar-me, além de ter sido combinado
que nesse horário deixaríamos à sala livre para as práticas de Artes. Fiz algumas
ressalvas a Orientadora Educacional sobre o que vinha percebendo entre a professora e as
crianças, mas foi em vão, nada mudou.
A Orientadora Educacional é a gestora de quase todo o processo
relacionado à organização da escola em relação as questões pedagógicas, atendimento as
crianças e as famílias, organização de alguns eventos, coordenação e apoio nos
reagrupamentos. Não na escola a Supervisora Educacional. Sendo assim a falta de
recursos humanos no quadro de funcionários das escolas, uma dificuldade, quase
impossível de administrar.
Logo nas primeiras aulas em que as críticas surgiram propus as crianças
que conversassem com a professora. Argumentei inclusive sobre o acolhimento que
poderiam ter, que ela era nova em nossa escola. Os meus apelos eram dispensados,
tinham argumentos de sobra que lhes respaldavam as queixas:
Ela grita muito!
Ela briga o tempo todo!
Ela dá fora na gente!
A atitude da professora para com as crianças não era das mais simpáticas, em
contrapartida eles faziam o que podiam para tirá-la do seu controle. Um dia quando
entrei na sala ela dirigiu-se a lixeira e me mostrou quantas folhas de papel ofício haviam
rasgado, amassado e destruído. A minha situação não era das mais confortáveis, se por
um lado sabia do que as crianças eram capazes, por outro era impossível negar o pouco
acolhimento da professora para com elas. Admitir que agiram corretamente era
impossível, em contrapartida negar que eles também não estavam satisfeitos era
impraticável. Era importante que fizessem acordos e que ela assumisse de fato o seu
papel, afinal naquele espaço-tempo em que acontecia a aula de artes, ela era a professora.
A direção e o serviço de Orientação Educacional eram conhecedoras das questões
das crianças, mas nada foi feito ou pelo menos nada nos chegou como possível solução.
Em uma das reuniões de planejamento uma das professoras deu o seu depoimento,
dizendo:
Fui até a sala da professora Karla para avisar que a professora de Artes não
viria e as crianças reagiram festejando, eles não gostam da aula. É preciso fazer alguma
coisa!
A realidade é que não eram só os meus alunos que demonstravam
insatisfação nas aulas de artes, mas por que eles manifestavam com barulho os seus
descontentamentos? Transgressores? Inconvenientes? Confesso que às vezes, sentia que
os meus argumentos também incomodavam. Creio que na falta de condições para
resolver as situações mais complexas, nos acostumamos a evitá-las, camuflá-las como se
elas não existissem.
Coloquei em nossa sala de aula uma caixa de perguntas. Essa caixa surgiu após
algumas aulas sobre o corpo humano, muitos risos e “cochichos” aconteciam quando se
deparavam com o livro de ciências no capitulo que abordava a sexualidade. Embora
tivesse me colocado aberta a conversar sobre o tema havia um acordo velado entre eles.
Trouxe essa caixa que ficará no parapeito da janela, ela será a nossa
companheira de segredos. O que vocês acham?
Como assim tia?
Todas as vezes que desejarem perguntar algo, mas não se sentirem à vontade,
ou seja, sentirem vergonha ou coisa parecida escrevam e depositem aqui...
Coloca o nome?
Você vai dizer quem é?
Não é necessário, a menos que a pessoa deseje...
Mais um dos nossos combinados para talvez, trazer a tona dúvidas e curiosidades.
A caixa permaneceu na sala por uns dois dias sem que depositassem nenhuma pergunta.
Ao final da aula de Artes a professora pediu que uma das crianças me chamasse e ao
entrar ela me disse:
Não consegui dar aula porque eles ficaram o tempo todo colocando
bilhetinhos nessa caixa e disseram que foi você quem sugeriu.
De fato é nossa caixa de perguntas, mas não sugeri que usassem
especificamente na aula de Artes, nem tão pouco era para todos se dirigirem ao mesmo
tempo atrapalhando a aula. Respondi.
A professora saiu da sala fazendo menção de que imaginava o que continha
dentro da caixa e que eu conduzisse o restante da aula sem demonstrar muito interesse
pelo desfecho. Voltei à turma perguntando o que acontecera e em tom unânime
responderam:
Você disse que era caixa de perguntas e que podíamos perguntar qualquer
coisa, então nós perguntamos: por que tem aula de artes? Por que não troca a
professora?
Por quê? Por quê?A caixa estava cheia de por quês e achei que deveria
encaminhar a alguém que pudesse dar a resposta que eles queriam. Entreguei a
Orientadora Educacional explicando o ocorrido. Nenhum dos por quês foram
respondidos e a caixa não retornou à nossa sala. Penso em como nos propomos ouvir as
nossas crianças. São vozes que continuam silenciadas, embora esteja presente nos
discursos e nos textos oficiais a idéia da criança como sujeito de direitos.
A dificuldade de relacionamento entre as crianças e a professora não era
novidade, porém, se nada havia sido feito o enfrentamento era a condição de luta que
encontraram.
À medida que ouço os alunos e percebo que as suas falas insinuam outras falas,
sinto que se começa a tecer uma rede. Falas de crianças e fazeres de professoras se
entrelaçam anunciando um emaranhado de relações que por vezes se chocam e se
colocam em “xeque-mate”.
Diferentes subjetividades tecem nossas relações e trama a história que
compõe a vida dentro da escola e a própria vida da escola. “...As diferentes tramas que
compõem as redes de subjetividade possibilitam que o sujeito, através de processos
intersubjetivos, transite permanentemente entre o eu, o nós e o outro...”. Perez (2003,
p.22). É possível que uma relação de confiança tenha se estabelecido entre nós, e que se
confirma nas confidências vez ou outra feita pelas crianças e nos muitos bilhetinhos
depositados na caixa. Entretanto, essas questões são apenas vestígios de que ainda
muitas relações a serem explicitadas, muitas perguntas a serem feitas e muitas respostas a
serem produzidas. É ainda em Freire que me apoio para melhor compreender estas
relações
Dessa maneira, o educador não é o que apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é educado, em dialogo com o educando que, ao ser
educado, também educa. Ambos, assim se tornam sujeitos do processo
em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não
valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita
de estar sendo com as liberdades e não contra elas. (1998, p.68)
A minha liberdade era a condição para a minha autoridade se fazer
presente, se por um lado éramos companheiros e amigos, por outro sustentávamos os
nossos combinados e quando um de nós deixava de cumprir algo sabíamos que era
preciso retomar a questão.
Certo dia, em uma das reuniões de planejamento, a direção levantou a polêmica
em torno das faltas das professoras dificultando a organização da escola. O grupo de
professoras passou a justificar as ausências relembrando as necessidades e direitos que
nos respaldavam. Em contrapartida, outro manifesto tomou conta da sala: a preocupação
com uma turma do ano C, que cada dia estava com uma professora diferente e, até
então, não tinham um referencial de grupo e os conflitos entre as crianças eram
constantes. Nesse momento a professora da turma F4- C se manifestou:
Eu falto porque tenho prova na faculdade.
Você tem aula pela manhã? Perguntei.
Não, mas tenho o direito de faltar nos dias de prova para estudar.
Você chega a ter oito, nove provas por mês? Voltei a indagar.
Sim. Respondeu
Então tem que prevalecer o bom senso, se você faltar no dia de cada prova,
tirar a falta abonada e faltar por doença é impraticável. Contestei.
Ao mesmo tempo em que outras professoras se manifestavam discutindo se era
direito ou não a falta para estudos, a diretora se dirigiu ao grupo e contestou:
Se ela tem declaração da faculdade é um direito dela, eu sou obrigada a
dispensá-la.
Na escola que trabalhei, anteriormente, tínhamos direito a folga para
fazermos prova sim, mas desde que a mesma fosse aplicada no mesmo horário de
trabalho e não em turnos diferentes... Afirmei.
Mas seja a prova em que horário for é um direito instituído pela Fundação
Municipal de Educação de Niterói. A diretora esclareceu.
Nos dias que vou ao mestrado pela manhã sou também avaliada. Entretanto,
tenho usado a minha folga abonada em uma das aulas e na outra tenho assumido a falta
sendo descontada, além de deixar atividades planejadas para os meus alunos quando
vou me ausentar. Se for assim, vou solicitar uma declaração também.
Ué! Se trouxer uma declaração é um direito seu! A diretora demonstrando
irritação respondeu.
Senti-me como se fosse eu a errada naquela história, sentimento que exteriorizo
aqui, mas que não pode se configurar como um critério de verdade, porque ao narrar um
acontecimento por nós vividos uma tendência natural a trazer a tona as nossas
emoções. A irritação que eu percebi na diretora pode não ter relação propriamente
comigo e sim com o contexto em que se deu a situação. Eis um dos desafios da narrativa,
não emitir um juízo de valor, mas ao mesmo tempo não permitir uma neutralidade falsa.
A diretora geralmente estava nas reuniões de planejamento, participava pouco das
decisões pedagógicas e detinha-se mais nas discussões administrativas ou nas
informações de interesse geral. O seu contato com as professoras era, aparentemente,
superficial. Com as mais antigas notava um pouco mais de intimidade, em relação ao
grupo novato, a relação era estritamente profissional, o que é de certa forma natural.
Entretanto, naquele dia a sua postura ressoou diferente, senti um tom rude em sua fala,
um sentimento que é meu, mas que em nenhum momento revela um critério de verdade.
O trabalho coletivo favorece as discussões, os enfrentamentos e,
sobretudo, pode deflagrar situações aparentemente acomodadas. Após essa reunião a
Orientadora Educacional, supostamente atendendo a solicitação da direção, se dirigiu ao
departamento da Universidade freqüentada pela professora, de onde eram expedidas as
declarações. Subentende-se que para averiguar a legitimidade das declarações
apresentadas pela professora, ou talvez para se certificar do calendário de provas. A
notícia que nos chegou é que o departamento desconhecia tais declarações. A professora
foi devolvida a FME, não sei sob qual alegação. A partir desse fato a direção avisou que
só aceitaria declarações assinadas e carimbadas.
Um caso para inquérito administrativo? Não cabe aqui o julgamento já que
as revelações são suposições daquilo que foi dito, e não posso garantir que expõe na
íntegra o fato. Não acompanhei o tramite do processo, a ponto de comprovar o que trago.
Portanto, limito-me a trazer situações do cotidiano que são veladas no interior da escola,
mas que de certa forma implicam na organização, estrutura e funcionamento escolar.
Essa é a imagem que marca a escola pública brasileira. Os casos de
incoerência e os descasos demandam repercussão maior do que os casos de sucesso. A
imagem negativa da educação pública brasileira é anunciada de forma generalizada,
omitindo o comprometimento de outras professoras que driblando astuciosamente as
dificuldades e limitações fazem das suas aulas espaços de descobertas e novas
construções.
Cada vez mais, sentia que nós, professoras, principalmente as novatas, íamos
tateando em busca de descobrirmos a cada dia o nosso espaço e íamos, pouco a pouco,
compreendendo como se teciam as relações entre as pessoas naquele espaço. Os
profissionais da secretaria e cozinha tratavam a todos com certa indiferença, descaso.
Sentimento compartilhado nas conversas entre as professoras durante o recreio ou em
encontros casuais. Sentimentos velados no interior da escola que me faziam sentir o
quanto à escola guarda os seus segredos. Impressões que, pouco a pouco, vão me
alfabetizando nas relações cotidianas daquela escola.
Pertencia a nós, professoras, a tarefa de tomarmos conta das crianças durante o
recreio, já que ficou combinado que o turno encerraria às 11h45min e que as professoras,
por conta de serem liberadas 15 minutos antes, seriam responsáveis pelo recreio. Era um
combinado que de fato não queríamos renunciar, pois todas nós saíamos dali “correndo”
para outras escolas e nos era conveniente aceitar.
Os horários no Diógenes de entrada e saída eram mantidos rigidamente e o
recreio era curto, por falta, até mesmo, de espaço para as brincadeiras, de forma que os
minutos a menos não representavam uma perda para as crianças. O que não era justo, é
que enquanto tomávamos conta das crianças brincando no pátio, outros funcionários
usassem o espaço da escola para interesses pessoais.
Certa vez, presenciei a seguinte cena: era hora do recreio e estávamos no pátio,
uma funcionária desfolhava uma revista de produtos que ela mesma representava e
vendia, entrei na secretaria que dava acesso ao banheiro, e uma criança entrou em
seguida pedindo que colocasse remédio porque havia caído e se machucado, a
funcionária respondeu:
Vai procurar a sua professora é ela que tem que fazer o seu curativo.
O que mais nos falta fazer? Permitimos essas situações quando nos calamos ou
quando renunciamos a luta. Eu a olhei fixamente e talvez o meu olhar tenha lhe dito
muito, pois ela reagiu como quem desejasse se desculpar:
Estou ocupada e toda hora entra uma criança.
De que nos ocupamos na escola, ou melhor, do que não nos ocupamos na escola?
Se for verdade que quando ocupamos tomamos para si, haveríamos de assumir como
uma causa nossa a escola e não como do OUTRO, um OUTRO quase sempre distante de
nós.
Nos encontros - reunião de planejamento às quartas-feiras – ia aprendendo
a ler a escola. Numa outra ocasião, a diretora em tom de desabafo se dirigiu a nós e
afirmou que as professoras não estavam “vigiando” o recreio conforme o combinado.
Aliás, começo a perceber que as pessoas que mais levam broncas na escola são as
professoras e as crianças. A manifestação foi geral, é claro. Cada uma se desculpou
como pôde e as argumentações eram muitas:
Às vezes me atraso, porque tem crianças atrasadas ou com dúvidas.
Eu estou sempre lá!
Almoço correndo e vou lá pra fora!
É a única hora que tenho para ir ao banheiro, beber água...
Nesse período um dos meus alunos caiu no pátio e machucou o rim, estávamos
pelo pátio, mas não exatamente onde ele se acidentou, as preocupações da diretora não
eram sem fundamento. Um das professoras comentou sobre a ajuda de outros
funcionários, mas a direção interferiu alegando que todos tinham compromissos a
cumprir e não poderiam ficar a disposição. Uma das colegas falou:
Preciso almoçar, pois quando chego à outra escola o almoço já foi servido.
A diretora não hesitou, afinal havíamos feito um acordo, um daqueles
combinados que são velados no interior da escola.
O horário de almoço de vocês é de 12h00h as 13h00 horas!
Como se desconhecesse a realidade das professoras demonstrava indiferença. De
certo, não lhe cabia nos dispensar da tarefa que nós mesmas assumimos, mas tratar o
caso de forma unidimensional não era o melhor caminho. Entramos num acordo de
revezamento: entre “devorar” o almoço e “devorar” as crianças. Enquanto duas
professoras olhavam o recreio as outras almoçavam.
Embora não tivéssemos como pressuposto o prejuízo do interesse público,
não como negar que certo corporativismo permeou entre nós em defesa dos nossos
interesses pessoais. Mas não como ser diferente quando nos é negado um direito que
deveria ser legalmente instituído e exercido: tempo de deslocamento e tempo para o
almoço. Esse corporativismo representava a tática de enfrentamento pela sobrevivência,
acordo necessário para continuarmos mantendo as jornadas de trabalho em outros
estabelecimentos de ensino e ao mesmo tempo não abrir mão de uma necessidade
inerente do ser humano: a alimentação.
É na dinâmica dos acontecimentos reais que as relações entre os sujeitos
nas mais diferentes condições sociais surgem, lidar com a pluralidade é um caminho
árduo. A difícil superação dos enfrentamentos cotidianos nos moldes de formação da
vida moderna implica colocar em pauta questões complexas, se por um lado a diretora
necessita impor determinadas ordens, por outro não nos era possível seguir as
determinações.
A tática opera no campo do outro quando valendo-se do momento em que
a situação imposta deixa brechas.“... Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia.. Em suma, a tática é a arte do fraco...” (Certeau, 1994, p. 101).
Agimos astuciosamente, uma vez, que as lógicas cotidianas tecem, em suas práticas, um
senso de criatividade típica dos fracos, pois estes precisam criar alternativas em alguns
casos “...último recurso...”.
Os vínculos, o sentimento de pertencimento à escola, não foi algo que me “tocou”
e talvez seja o sentimento de outras professoras, é preciso que a escuta sensível se faça
presente, também, nos ambientes de trabalho. Sabemos dos conflitos de ordem social e
econômica que vive a maioria dos profissionais da educação, tal realidade é de
domínio público. Esse fato não valida práticas descomprometidas, fazeres impensados
por parte das professoras, mas nos remete a pensar como vem sobrevivendo este
profissional.
O nosso contato para discutir a parte pedagógica e o desenvolvimento das
crianças deveria ser com a Orientadora Educacional. Não havia supervisora no Diógenes,
muito embora o cargo exista no município. O envolvimento da O.E. com a escola, na sua
quase totalidade, não permitia que tivéssemos encontros mais individualizados. Era nítida
a sobrecarga de trabalho da orientadora que atendia o nosso turno. Assim como é nítida a
sobrecarga de uma professora que trabalha com uma média diária de 30 crianças, e que
na maioria das vezes cumpre mais de uma jornada de trabalho.
Era comum nas reuniões de planejamento a aproximação com algumas questões
que necessitavam de um acompanhamento mais específico, um encaminhamento mais
individualizado. Como geralmente eram muitos casos a se discutir, por mais que
fizéssemos não dávamos conta de buscar alternativas para todos ou quase todos que
precisavam de maior cuidado e atenção.
Faço a leitura de que enquanto algumas profissionais cumpriam exatamente o que
lhes era designado, outras faziam o que talvez achassem por bem fazer. Outras, faziam
além do que as suas condições de trabalho, muitas vezes, permitiam. Ao término do ano
letivo, não consegui saber ao certo o que algumas profissionais executam ali, não sei
verdadeiramente qual é a função de cada uma. Entendo que mesmo aquela que aos
nossos olhos não faz nada, faz aquilo que as suas possibilidades lhe permitem reconhecer
como um fazer.
O ano letivo começou, terminou, e a impressão que tenho é que pouco conheci
aquela escola, do ponto de vista das relações entre os profissionais e da organização
administrativa. Neste caso me incluo, porque entramos na “roda viva” da escola e nem
sempre nos policiamos no sentido de tecer com nossos pares, maiores aproximações.
Sem me dar conta, cumpri o meu fazer com as crianças como se houvesse uma escola, no
caso a nossa sala de aula, dentro de outra escola.
Fica-me a impressão de que todos juntos não anunciamos um coletivo, no sentido
de uma coletividade que se propõe ao diálogo e, ainda que tenha as suas contradições,
busca na articulação com o outro suprir as dificuldades. Fato que se coloca também como
contraditório, pois as muitas tensões vividas no cotidiano da escola e as tantas soluções
encontradas, nos remete a pensar o quanto juntos, mesmo que não percebamos,
somamos, multiplicamos e acabamos por transformar.
CAPÍTULO IV
A INFÂNCIA QUE FALA E O QUE REVELA A INFÂNCIA
QUE FALA
Apesar do pouco tempo de contato temos muitas vivências (coletivas)
para narrar. Alguns relatos e fatos por nós vividos me fazem pensar e refletir
constantemente a nossa relação e o nosso fazer. Algumas falas ressoam como pistas e me
ajudam a ver e a entender um pouco mais o universo das crianças.
Desta forma, vou tentando ler a realidade social, cultural, econômica e
educacional das crianças que convivo à medida, que as ouço com o mesmo cuidado que o
garimpeiro lança o seu olhar à procura de preciosidade onde aparentemente,
vestígios de poeira.
O olhar a que me refiro é um olhar que busca o OUTRO, sujeito itinerante de um
mesmo fazer, e não o olhar da racionalidade que fecha em si mesmo uma verdade.
Portanto, é preciso que eu tenha o cuidado ao usar o olhar como o nosso ponto de partida
e quem sabe de chegada. “...Isso significa, sim, que tudo aquilo que pensamos sobre
nossas ações e tudo que fazemos têm de ser contínua e permanentemente questionado,
revisado e criticado...” (VEIGA NETO, 2002, p.34). As práticas com as crianças
sugerem que estas sejam ouvidas, pois assim poderemos problematizar as nossas
certezas em relação à vida dos pequeninos.
Contudo, é dentro desta perspectiva de olhar, aqui entendido como possibilidade
de observar para melhor compreender a realidade, que encontro as crianças, um encontro
que me possibilita o exercício da desconfiança sobre o que julgo ser verdade.
Nesta etapa, não é o encontro formalizado pela obrigação de cumprir o meu
trabalho diariamente e o das crianças de freqüentarem a escola que nos aproxima, há uma
simbiose em curso, que nos torna cada dia mais íntimos e nos faz aproveitar quase que
mútuamente as situações cotidianas.
Busco compreender como as crianças pensam a escola, como vivem o
espaço escolar, como constroem os conhecimentos. Nesse caso é importante, me
aproximar do espaço de vida de cada um, do entorno que os acerca, das falas e
comportamentos que expressam um pouco de suas vidas, de suas relações no ambiente
escolar. Nesse primeiro momento, entendendo que ambos me falam muitas coisas.
Joyce expressa oralmente as suas inquietações, desejos, desagravos,
apresentando-se crítica e observadora. Delcy expressa os seus sentimentos com certa
agressividade, indiferença, repulsa. Ryan me provoca, mas talvez desejasse provocar a
escola. Juliene me convida a repensar a minha prática pedagógica....Todos eles de
alguma forma, me convidam a me perceber e me constituir professora.
Tento entender como se vem constituindo o nosso relacionamento, para melhor
compreender o processo escolar. Se por um lado Joyce me tem como alguém que pode
confiar os seus sentimentos, as suas atitudes, por outro percebo que Delcy tenta se
aproveitar da nossa relação, para fazer tudo àquilo que sabe não ser o mais coerente,
procurando me convencer a ser permissiva.
Não procuro uma definição nem tão pouco uma comparação entre as
crianças. O que procuro compreender, é como se constituem estas relações que se dão no
cotidiano da sala de aula. Embora residam em bairros próximos à escola, o ambiente de
cada um é diferente, porque cada família tem um modo próprio de se organizar, de
pensar as suas vidas, de educar os seus filhos. Creio que o mais importante, tem sido a
minha aprendizagem quando me coloco sensível a ponto de procurar entender a infância
que fala e que me revela muitas coisas.
Se a questão que ponho em pauta nesta pesquisa é como as crianças vivem e
pensam a escola, como se alfabetizam à medida que vão descobrindo o mundo e
desenhando os seus mundos, ouvi-las é condição indispensável. Vou me alfabetizando
cotidianamente quando tomo a escola como contexto privilegiado para entender as
crianças da turma F4B, para compreender como interagem com a escola e como vêem as
práticas realizadas pelos adultos. Passo a me interessar em saber como fazem os seus
combinados.
Penso nos combinados que faço com eles durante o ano e penso como eles
também aprendem a fazer combinados comigo, quando propõem o que sabem ser
proibido. Quantas vezes negociam o jogo de bola no pátio, negociação de fato, que a
bola é um brinquedo incômodo naquela escola. A escola fica na subida de um morro, o
seu pátio é sedimentado e em aclive, não houve até então por parte das políticas públicas
a preocupação de torná-lo plano possibilitando a ampliação da área destinada às
brincadeiras, desta forma à bola é freqüentemente arremessada para fora da escola.
Quando isso ocorre é necessário chamar um funcionário para pular o muro, quando não
funcionário disponível, o que é comum, uma das crianças pula para procurar a bola.
Tarefa nem sempre simples, que nos arredores o muro é muito alto e o terreno em
declive.
Portanto, para jogarem bola é preciso que a professora se responsabilize e é a
professora (no caso eu) quem negocia a bola na secretaria, um combinado
“marginalizado”. Um dizer sem está dito: “não queremos complicação”, “não queremos
nos responsabilizar pelas complicações”.
As crianças sabem que o jogo de bola é um exercício de democracia que deve
começar, na sala de aula, com um: por favor, tia! Pega a bola pra gente... Ou a gente
promete que não vai pular o muro. É a hora dos combinados, geralmente cumprido por
eles, pois compreendem que perderão a possibilidade de jogar bola se isto causar algum
tipo de transtorno. Sabem que infligir à ordem, é criar perturbação, é colocar em risco o
único meio de conseguirem uma bola, exceto algumas aulas de Educação Física.
4.1 Delcy
Delcy trás de casa a sua bola e guarda no nosso armário, após me
comunicar o que faria: passaria a deixar a bola na escola No fundo, sabia que teríamos
problemas com a bola, mas o armário não era meu. O armário é nosso mesmo,
algumas arrumações, vez ou outra, eram organizadas pelas meninas que tratavam de dar
um jeito especial a disposição. Nem sempre permanecia conforme o arrumado, afinal os
meninos mexiam e aí a arrumação era desfeita em frações de segundos.
A bola permaneceu por algumas semanas, o combinado foi obedecido:
usar na hora do recreio possibilitando que todos brincassem que o pátio era pequeno e
não poderíamos privar os demais colegas da escola. Mas esqueci de fazer outros
combinados! Estávamos começando uma atividade, após o recreio, quando um
funcionário abriu a porta e sem pedir licença denunciou.
Estavam subindo as escadas jogando bola e fazendo uma algazarra
danada, eram meninos daqui. Tem alguém daqui trazendo bola para a escola e criando
muita confusão, inclusive no recreio. Não pode trazer bola para a escola...
O tom de voz era de bronca e bronca para todo mundo, inclusive para
mim. O jeito que entrou na nossa sala e se dirigiu a nós, era de total falta de respeito.
Assim como abriu a porta e deu uma “bronca” disfarçada de orientação, saiu sem ao
menos solicitar: por favor, não façam mais isso ou algo parecido...
Retornei a turma querendo saber o que havia acontecido. Na verdade
confirmei o fato, Delcy e alguns meninos subiram brincando e perturbando a “ordem”
supostamente estabelecida, que na escola não havia uma regra explícita de que não se
poderia trazer bola e jogar quando desejasse. Mas, as regras da escola muitas vezes
funcionam assim, são veladas, subtendidos, precisamos aprender a ler o que não está
escrito e compreender o interdito.
Mas as crianças aprendem a usar a tática como possibilidade de
enfrentamento. Para entrar no campo do outro, um outro que é forte por deter o poder,
Delcy, astuciosamente trás a sua bola, guarda no armário enão é preciso a negociação
para conseguir brincar de futebol.
A infância que fala nos apresenta Delcy uma criança bastante levada e às
vezes agressiva com os colegas e até comigo mesma. No inicio do ano, a nossa relação
foi muito complicada, mas fomos, aos poucos, nos entendendo melhor. Tem idade
superior aos colegas e apresenta dificuldade na leitura e na escrita, de algum modo
precisa se sobressair em relação aos demais.
Delcy, menino magrelo, olhar articulador. é um pouco mais velho que a
turma, tem 11 anos, ficou retido em uma etapa anterior. Faz as atividades propostas
quando quer e seu comportamento oscila, é muito faltoso, o que dificulta ainda mais o
seu desenvolvimento. Porém, é criativo quando o assunto é atrapalhar a aula, canta muito
bem pagode e funk. Apesar da descrição não ser das mais felizes, somos amigos.
Algumas vezes me permite trabalhar com tranqüilidade, mas na maioria das vezes canta
funk o tempo todo, joga bolinha de papel nos outros, esconde material dos colegas
provocando muitas insatisfações e confusões. Quando suas vontades não são satisfeitas
tende a ser agressivo, usa palavrões, bate violentamente nos colegas e tende a intimidar
os mais “fracos” com ameaças.
É realmente difuso esse espaço que ocupamos de professora e complexa é
a interação que mantemos com os nossos alunos. Assim como a sociedade espera de nós
certa autoridade capaz de “domínio” sob as crianças, tende também a nos culpar pela
evasão ou pela dificuldade pelo qual possam passar. É comum que recaia também sobre
nós a responsabilidade pela falta de desejo ou interesse da criança para com a escola sob
o discurso de que o professor é incapaz de seduzir os seus alunos. Qual será de fato o
nosso “papel”?
De certa forma, entre uma e outra fala dos próprios colegas da escola, percebo
que a relação esperada que ocorresse, entre eu e Delcy, deveria ser de conflito, ou, até
mesmo de repressão da minha parte para com ele. Muito mais do que comumente
acontece entre nós dois, tendo em vista que é dificílimo não se ter atitudes duras com
crianças como o Delcy. O revesso às vezes provoca estranhamento e seria no nosso caso
comum que não fôssemos amigos, que a sua forma de agir me causasse mera indiferença
e que ele não desejasse a escola ou o nosso ambiente de sala de aula. O professor é
sempre alvo de críticas e às vezes, é ele mesmo o maior crítico para com os seus pares.
Confesso que algumas vezes agradeço quando Delcy falta, entretanto sinto certa
frustração por não ter conseguido, maior parceria de trabalho com ele. No início do ano
fiz um texto contando um pouquinho de minha história e propus que escrevessem um
pouquinho de si. Com essa atividade pretendia saber mais sobre a vida deles, naquele
momento sabia pouco ou quase nada, porém a forma modelar que dei a minha história os
induziu ao mesmo processo de escrita, foram sucintos em suas histórias. O texto foi para
casa, um primeiros experimentos que fiz para sentir se haveria repercussão ou não quanto
à tarefa de casa. Todos fizeram e costumam cumprir com este tipo de proposta.
Figura 1, história da professora
Para minha surpresa Delcy chegou no dia seguinte todo feliz e me disse:
O meu aniversário é junto com o seu.
Daí por diante, ele ficou mais íntimo, mais companheiro e mais
bagunceiro também. Quer sempre me prestar um favor, mas quando o assunto está
UM POUQUINHO DA MINHA HISTÓRIA
Meu nome é Karla, tenho dois filhos: Nathália e Bernardo. O nome do meu marido é
Francisco Carlos e em nossa casa o meu marido tem dois nomes, ou melhor, nome
composto.
Sou professora e trabalho em três escolas. Na Escola Municipal Diógenes Ribeiro
de Mendonça atuo como professora do grupo 4A, no Colégio de Aplicação Dom Hélder
Câmara atuo como coordenadora e na UNIVERSO sou professora também, mas de adultos.
Gosto muito de ler e escrever e acho que é por este motivo que até hoje estudo.
Sou aluna do mestrado da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Nas horas vagas gosto de me divertir, ir à praia e encontrar os meus amigos. Os
meus amigos têm filhos e a maioria da idade dos meus. Por isso, de vez em quando viajamos
juntos, nos encontramos para fazermos comidas gostosas e batemos bons “papos”.
A minha vida é simples, às vezes parece que tudo vai bem, mas em outros momentos
os problemas aparecem e é preciso resolvê-los.
ia me esquecendo, faço aniversário no dia 17 de outubro e acho que é por este
motivo que sempre escolho o número 17 como o meu número de sorte.
Karla Berbat Netto
1- Agora que você conhece um pouquinho da minha história, escreva um pouquinho da sua.
Assim, poderei conhecer um pouco mais sobre você.
relacionado às tarefas escolares nem sempre participa. Aos poucos consigo ouvir uma
leitura feita pelo Delcy em minha mesa, no coletivo ele não se propõe a ler. Às vezes, de
forma muito concisa registra algo em seu caderno. Até então, sabia pouco da sua vida,
pois ele dificilmente relatava algo de sua casa, quando solicitado a falar: conta uma
piada, disfarçava e muda de assunto. As suas faltas freqüentes o fazem ficar um pouco
perdido no cotidiano da sala de aula.
Quando fizemos o passeio aos arredores da escola ele faltou, no dia seguinte
vibrou com as histórias dos amigos e não deixou de participar das discussões que fizemos
relacionadas à comunidade. Aquele território, tanto no que diz respeito ao aspecto
geografico quanto social, lhe é intimo o bastante
O fato de se destacar em algumas atividades o deixa satisfeito e orgulhoso
transparecendo feliz por se sempre aprovado e aceito, porém, esses momentos não o
impedem de, segundos depois, ameaçar, bater e perturbar os colegas. Na tentativa de
poder ajudá-lo é que sempre insisto para se sentar mais próximo a minha mesa, digo-lhe
que assim poderei lhe dar mais atenção na realização das tarefas, além de lembrá-lo que
não deve ultrapassar os limites e prejudicar os outros. Esse discurso freqüente é
acompanhado de um lembrete:
Você não gosta de ser chamado atenção a frente dos outros ao meu lado
poderei ajudá-lo sem que ninguém perceba.
Mas é em vão, Delcy senta-se no final da sala e escapole do meu olhar e
da minha insistência personalizada. Por ser pequena a sala de aula e não comporta o
número de alunos confortavelmente, dificultando a minha locomoção entre eles e nem
sempre consigo chegar a tempo de evitar determinados conflitos.
Percebo que apesar de tudo tem muito carinho por mim, fato que pude
comprovar quando levei o meu filho de dez anos ao colégio. Chegamos quando o pátio
da escola estava repleto de crianças e fomos recebidos com olhares de indagação,
curiosidade, sorrisos discretos, de certo pensavam quem era aquele menino. Os meus
alunos, aos poucos foram entendendo que se tratava do Bernardo, isto porque, no inicio
do ano levei fotos da minha família e apresentei cada um.
Ao subir a rampa deparei-me com Delcy que encostado na parede, nos fitou com
olhar de desprezo, sem esboçar nenhum gesto ou comentário. Entrei na escola após
cumprimentá-lo e em seguida o sinal bateu era hora de se dirigirem à sala de aula. Delcy
correu sendo um dos primeiros a entrar em sala e para minha surpresa ocupou a primeira
carteira, bem à frente da minha mesa, aliás, “colado” a minha mesa. Neste dia não cantou
pagode, nem batucou e procurou fazer todas as tarefas.
A afetividade que se materializa nas relações cotidianas dando novos
sentidos a relação é o que poderíamos considerar como uma escuta sensível. Começo a
perceber o quanto às atitudes das crianças são expressivas e carregadas de significados.
Ainda não consigo entender ao certo o que Delcy quis me dizer com a sua atitude, por
outro lado não busco a certeza de nada, creio que a importância es em fazer
descobertas. Nesse caso, fui descobrindo como a afetividade se manifesta na
subjetividade de cada um, como é possível se ter relações de cordialidade com aquelas
crianças que muitas vezes julgamos estarem a parte nas relações cotidianas. Vivo a
experiência de descobrir as crianças.
Sei pouco sobre cada um deles, porém não é difícil desconfiar o que faz
com que Delcy rejeite participar das atividades, principalmente, quando a proposta exige
se mostrar perante o coletivo. Delcy tem clareza da sua dificuldade e é provavelmente
por este motivo que esconde o seu caderno, não permitindo que eu tenha acesso e nega-se
a registrar ou desenhar quando a proposta vai ser exposta em um mural ou trocada entre
parceiros. Sempre que planejo as minhas aulas procuro inserir algo que desconfio ser de
interesse dele, mas ainda encontro dificuldade em compreender o que pode lhe desperta o
prazer de aprender.
Delcy é agressivo com os colegas de escola, percebi o quanto é temido
por algumas crianças quando o Guilherme, numa brincadeira, acertou uma amêndoa no
olho dele. Delcy urrava de dor, os olhos avermelhados registravam a dimensão do
acontecido.
Guilherme entrou em desespero, chorava e implorava a Delcy que lhe
desculpasse. O descontrole de Guilherme em afirmar que foi sem querer e ouvir do
colega que havia lhe desculpado me chamou a atenção.
Calma Guilherme! Não adianta ficar em desespero. Delcy está sentindo
dor e não da pra cuidar dele e de você ao mesmo tempo. Falei
Guilherme não me ouvia, nervoso andava de um lado a outro, chorava em
ritmo de desespero. Estava nervoso e no auge do seu temor revelou
Tia minha mãe vai me “matar”! Tia você não tem noção. Delcy mora
na Faca Riscada, um lugar perigoso, e a minha mãe me falou... Tia ele junta os
garotos que ficam ali em frente ao supermercado guardando os carros e bate nos
moleques que passam. Tia ele vai querem me pegar. Tia... tia..
Guilherme mora em um sítio, pelos seus relatos, entendi que os seus pais
são caseiros. Aparenta ter uma vida econômica estruturada em relação a outras crianças
da turma. Tem computador em casa, de vez em quando chega contando algo sobre algum
passeio que fez. O seu material escolar e seus pertences estão sempre muito bem
cuidados. É interessado e participativo nas aulas, tem facilidade em compreender os
conteúdos propostos, propõe atividades e gosta de ser útil, ajudando aqueles que
demonstram estar em dificuldade.
Sempre colabora com Delcy, explicando algo que não tenha compreendido. Faz
isso com muito respeito, pois é assim com todos, interfere apontando o que deve ser
refeito nos exercícios, mas nunca se julga mais capaz, o que faz com que Delcy aceite
bem a ajuda do colega.
Sentamos os três para conversar antes da saída, conforme combinei com
Guilherme, Delcy o desculpou sem rancores, sabia perfeitamente que Guilherme era do
“bem” como ele mesmo dizia.
Mas o temor de Guilherme não era em vão. Delcy costuma bater e se
aproveita quando sente que tem uma criança mais fraca ou que o teme. É o caso do
Wesley um menino que regula idade com Delcy e que nem é um dos mais franzinos,
porém, é mais infantil e inseguro.
Era comum Delcy bater em Wesley. Um dia o encontrei “esmurrando”
Wesley e enfiando uma borracha boca adentro querendo fazê-lo engolir. Ao abordá-lo e
separar a briga Wesley chorando afirmava que Delcy queria lhe fazer engolir a borracha.
Por que fez isso com ele? Perguntei
Porque quis. Respondeu
Conversei com ele sobre as suas atitudes covardes, mas ele somente ria de
forma debochada. Age assim, sempre que o outro lhe passa um sentimento de medo e
insegurança. Morar na Faca Riscada, de certa forma, lhe faz atemorizar outras crianças.
Sobre Delcy pouco sei. A diretora da escola que o acompanha mais
tempo e conhece a sua família, de relações fora do contexto escolar, diz ser pouco o
cuidado que os adultos dispensam a ele. Fato que, possivelmente, o incomoda e o faz ter
atitudes tão indiferentes, quanto indiferentes são os adultos que o cercam. Entretanto,
estas são as primeiras pistas, primeiras impressões que em nenhum momento configuram
uma certeza.
Tanto não podem, configurar certezas que na primeira reunião de pais com
as professoras, a mãe dele compareceu. Apesar de ficar poucos minutos argumentando
ter que chegar a casa da patroa antes das 08:00 horas da manhã, compareceu à escola. Ao
sair lhe fiz o convite de comparecer outro dia, me coloquei a disposição para chegar
pouco antes das 7:30 horas para conversarmos individualmente.
***
Delcy não se limita a bater violentamente, seja nas meninas ou nos
meninos, quando se impedido pelos adultos da escola a agredir um colega se junta a
outros meninos da sua comunidade e “pega” as crianças na rua. Esse comportamento
amedronta as crianças. Segundo elas, os meninos com a qual o Delcy se junta ficam
guardando carros na porta de um supermercado próximo à escola, por onde a maioria tem
que passar.
pontos desta pesquisa que preciso retomar a cada probabilidade de resposta.
Algumas pistas me levam a entender um pouco mais sobre a vida Delcy, entretanto, não
posso antever questões, eis aqui um cuidado muito especial que deve ter o pesquisador
com o cotidiano, jamais trabalhar com a verdade última, mas com as probabilidades.
Delcy entendeu no cotidiano e nas relações que se estabelecem nesse cotidiano,
que é preciso vencer. Porém, se leva desvantagens na construção do conhecimento
escolar, visivelmente identificado nos cadernos e tarefas diárias, o mesmo não acontece
quando o assunto é o acontecimento da vida. É freqüente intimidar aqueles que
considera serem “mais fracos” e nesse ponto leva, sem dúvida, vantagem. Delcy é temido
pela maioria, o que diz é uma ordem e procura se beneficiar em tudo; sempre em nome
do que poderá vir a fazer lá fora.
Foram muitas as solicitações para que uns dos seus responsáveis comparecessem
a escola, era preciso aproximar algumas questões individualmente. Através de circulares
e telefonemas buscamos contato, mas foi em vão. Freqüentemente não comparecia às
aulas sem que tivesse uma explicação, principalmente, as segundas-feiras. Nunca sabia
onde estava o seu material e foram muitos os cadernos que desapareciam da sua mochila
também sem explicação.
Certo dia algumas professoras que caminhavam até um ponto de ônibus um pouco
mais distante da escola, presenciaram uma cena que as deixou preocupadas. Delcy corria
com um pedaço de pau no meio da rua tentando acertar em Wesley. Corria entre os
carros numa avenida extremamente perigosa, nessa estrada os carros transitam em alta
velocidade e não há redutor de velocidade. Os apelos das professoras não foi o suficiente
para detê-lo, mas foi importante para Wesley que buscou segurança ao lado delas.
Nesta etapa do ano, outra mãe havia procurado a escola, pois se sentia insegura
com as ameaças de Delcy ao seu filho Francisco, que era uma criança muito tranqüila
alvo perfeito para Delcy. Diante deste e de tantos outros fatos, a Orientadora Educacional
resolveu pedir apoio ao conselho tutelar, emitiu um parecer explicativo sobre o
comportamento de Delcy e os riscos que ele próprio sofria. Documento que tomei
conhecimento e também assinei.
Dias depois Delcy chegou acompanhado do seu pai, com olhar assustado
encontrou-me no corredor e perguntou baixinho como se tivesse com receio de que
outros colegas tomassem conhecimento:
Tia, foi você que me denunciou para o Conselho Tutelar?
Confesso que naquele momento “perdi o chão” não sabia o que lhe responder.
Senti-me covarde e traidora. Era como se estivesse assinando o meu próprio certificado
de incapacidade: não havia conseguido contornar aquela situação.
Espera só um pouquinho que vou procurar a Viviane?
Foi o que consegui lhe responder, mais covarde ainda me senti. Não consegui
admitir a minha própria atitude. Fui à busca de Viviane, nossa Orientadora Educacional,
mesmo sabendo que ela não estava e não chegaria. Precisava respirar, precisava
encontrar as palavras para denunciar o meu próprio fracasso.
Sentamos os três: eu, Delcy e o seu pai. Expliquei que a Viviane Orientadora
Educacional - não se encontrava. Delcy me fitava atentamente. Estava certa de que ele
desejava saber se partira de mim a denuncia. Por alguns instantes hesitei e imaginei o
quanto decepcionado ficaria, mas não poderia negar a minha participação. Após me
apresentar como a professora de Delcy, perguntei ao pai:
O que o traz aqui?
Professora, fomos chamados a comparecer no conselho tutelar e ficamos
sabendo que a escola está preocupada com as atitudes do meu filho.
Realmente estamos preocupadas, principalmente, com o que acontece na rua,
pois não podemos estar. Delcy está sempre envolvido em brigas e pode sofrer
represálias ou, até mesmo se acidentar nesta estrada, tendo em vista como se expõe.
Expliquei.
Antes de relatar as tantas outras preocupações que nos fez tomar a atitude de levar
o caso ao conselho, o pai como se desejasse desabafar passou a relatar o que vinha
acontecendo:
Professora, são dois filhos: ele e uma menina de 16 anos que atualmente mora
com a minha mãe. Ela foi pega pelos seguranças de um shopping por estar em
companhia de outras meninas que estavam roubando as lojas. Fui obrigado a tirá-la
daqui. Esse mora comigo e a mãe dele, mas ela não liga para ele. Eu trabalho de
cozinheiro na cantina de uma faculdade no centro da cidade de Niterói, saio cedo e
volto tarde. Mas sou eu que lavo o uniforme dele, que deixo comida pronta para ele. Se
eu não fizer, ela não faz...
Nessa etapa da conversa Delcy tinha os olhos cheios d’água e eu um na
garganta. E ele continuou
Eu não gosto que ele venha sem uniforme, se a escola tem uniforme é para usar
o uniforme, Às vezes percebo que esta sujo, ai ele vem com qualquer roupa, mas eu não
gosto. A mãe não tem carinho por ele, sei que ele sofre... Falo sempre pra ele não se
misturar com quem não presta, falo para ele vê o exemplo da irmã dele... Quero que ele
seja um homem bom, trabalhador...
Expliquei um pouco do comportamento dele em sala de aula, em relação ao
material escolar que nunca sabe onde está, a baixa participação nas aulas e falei do seu
relacionamento agressivo com os colegas, fato que nos preocupava. Como não
conseguíamos contato com a família, embora tivéssemos procurado várias vezes
apelamos para o conselho tutelar. O pai retomou a fala...
Professora, ele está “tirando onda” com as outras criança? Ele é medroso, tem
medo de escuro e gosta de dormir segurando a mão da gente, não vai ao quintal sozinho
quando anoitece...
A fala do pai me fez pensar por alguns segundos se falávamos da mesma criança.
Onde escondia aquele sujeito frágil quando estava na escola e na rua? Porque revelava
um ser agressivo e indiferente se no seu íntimo habitava uma criança a procura de colo?
Nessa hora ele já não mais estava chorando e me olhou desconfiado. Era como se
tivesse me apropriado de um segredo seu que jamais poderia ser externado. Como pode o
sujeito mais temido da escola ter medo de escuro e dormir de mãos dadas com o
papai? Não, não poderia jamais revelar essa “fraqueza”, teria que guardar esse segredo.
Esse fato em nada combinava com aquela figura “ameaçadora” que estava sempre
envolvida em confusões.
Projetamos a imagem da criança violenta, marginalizada, quando esta, não se
enquadra aos padrões de infância que nós desenhamos. Pergunto-me: por que buscamos
o conselho tutelar? Porque de fato precisávamos de ajuda ou porque ainda somos
homogeneizadores, racionalistas e intolerantes ao outro que se apresenta avesso aos
nossos princípios?
Esquecemos que o homem não é um ser acabado, logo “...onde vida
inacabamento...” (FREIRE, 1996,p.55). Sendo assim, enquanto seres conscientes nos
colocamos num processo constante de busca, construindo nossa forma de intervenção e
de permanente movimento de interação com o mundo. Viver é uma arte tecida de
possibilidades de adaptação e sobrevivência, fato apreendido por Delcy, muito antes do
que pudéssemos imaginar.
O meu saber, minha leitura do mundo também não estavam acabadas, e é nesta
perspectiva que vou compreendendo o que a pesquisa vai me possibilitando enxergar:
alfabetizo-me a medida que leio o espaço, descubro o mundo quando me proponho
escrever a palavramundo com a minha turma do fundamental.
O pai revelou que a ida deles ao conselho tutelar fez com que a mãe de Delcy se
comprometesse em acompanhá-lo mais de perto. Eles iriam começar uma sessão de
terapia com uma psicóloga, não me recordo se encaminhados pelo conselho ou por opção
familiar. A mãe e o Delcy teriam que comparecer semanalmente ao conselho tutelar para
acompanhamento.
De fato, algumas coisas mudaram na vida de Delcy e foi possível perceber. A
freqüência as aulas, alguns cuidados com a própria higiene. A mãe do Delcy também
compareceu algum tempo depois querendo saber sobre o seu desenvolvimento, o
semblante dele era de felicidade. Durante a conversa argumentei:
Apesar de querer fazer papel de vilão ele é um bom menino, acredito que ele
vai superar essa fase.
Procurei não fazer reclamações, mas mostrar que acreditávamos nele. Ao
mesmo tempo enfatizei os fatores o que dificultavam o seu bom rendimento escolar.
A escola forneceu mais um caderno, grande e de 10 matérias, mas ele retira as
folhas para fazer gaivotas. Vem para a escola sem nenhum material e aí só quer brincar.
Quando sair daqui comprarei outro caderno e ele vai ter que me mostrar todos
os dias. A mãe completou.
Imediatamente completei dizendo não ser necessário um caderno novo, mas
manter o que estava com poucas folhas na mochila, estava próximo ao fim do ano e
não havia necessidade de outro caderno.
Para minha surpresa, ele que já se levantava para retornar a sala retirou do
bolso quatro moedas de 1,00 real e colocou sobre a mesa para a mãe.
É para comprar o meu caderno.
O que nos revela essa criança? Para muitos quase um marginal, para
outros falta pouco para ser mais um delinqüente. Mas é simplesmente uma criança. Os
seus medos revelam a pouca idade, a fragilidade de quem ainda precisa de um adulto por
perto. Mas a infância idealizada, aquela assistida e poupada de sofrimentos não é para
todos.
Nas duas vezes que estivemos juntos na presença de um dos seus pais ele
se emocionou, chorou. Deixou a criança frágil e medrosa aparecer, desmascarando
aquele ser arrogante. Quem é essa criança? O que nos revela essa infância?
Essa mesma criança que tem medos e que gosta de dormir de mãos
dadas com pai de vez enquanto revelava ter dormido sozinha, sem a presença dos pais ou
de um adulto. Quando perguntava o porquê, respondia:
Meu pai dormiu no trabalho e a minha mãe saiu, acho que foi pro
pagode.
Imagino a noite dessa criança que tem medos e, como o seu próprio pai
denunciou, ainda busca uma mão adulta para segurar na busca pelo sono. Imagino
quantos “demônios” que ameaçam a imaginação infantil não têm que vencer sozinho.
Imagino quantas lágrimas surgem nessas horas, quanta revolta, quanta raiva, quantos
medos deve alimentar. Como pode resguardar as outras crianças de ameaças e agressões
se ele mesmo não é preservado?
No seu imaginário não deve ter lugar para os mais fracos ou os mais medrosos da
escola, esses terão que comer a borracha, apanhar na esquina, sofrer ameaças e aprender,
assim como ele, a “exorcizar” os seus temores, a ser forte, a agüentar os “trancos” da
vida.
Por todos os acontecimentos que ele provocava e por tudo aquilo que não
provocou, mas foi acusado, aprendi a defendê-lo e não foram poucas as vezes que isso
aconteceu. Um dia sumiu um lápis e uma borracha de uma das salas, estávamos em meio
a uma atividade quando a professora entrou e quase sem pedir licença falou.
Delcy sumiu um lápis e uma borracha da minha sala, e agora?
Não foi uma, nem duas vezes, que cenas como essa aconteceram em nossa sala ou
na escola.
***
No finalzinho do ano, um ano que nos deixou marcas, presencio uma cena
inusitada. Havia dado um texto para que fosse feita uma interpretação, as questões eram
subjetivas e obedecia a certa complexidade, organizei grupos de trabalho. Delcy não se
interessou pelos grupos e fez sozinho. Pouco tempo depois veio ao meu encontro com o
seu caderno, queria saber se havia feito corretamente a tarefa. Foi lendo as respostas e
ficando feliz a cada confirmação de que havia acertado.
Logo depois percebo que se aproximou de Grazielle e ofereceu “cola”, ela
aceitou. Entretanto, não conseguia copiar as respostas porque não entendia a letra dele.
Ele resolveu ler para ela enquanto esta repassava as respostas para o seu caderno.
Satisfeito com a possibilidade de sair do anonimato “intelectual”, passou para o grupo ao
lado e ofereceu o mesmo para o Bruno que aceitou imediatamente a ajuda. Fez o mesmo
com outro colega e com mais outro.
Observo o movimento, ao mesmo tempo em que me sinto de certa forma feliz.
Delcy me dava pistas de que o pagode, o funk e o apito que fazia com o canudo, não
roubavam por completo a sua atenção. Tinha conhecimento do assunto abordado,
apresentava indícios daquilo que no fundo eu já sabia: cognitivamente era capaz como os
demais. Demonstrava crescimento pessoal, acreditava em si mesmo, sabia que era capaz
inclusive de ensinar aos colegas. Confiante, percebo o que demonstrava: poderia
prosseguir e, provavelmente, provaria do sucesso escolar em outras etapas.
***
Licenciada, afasto-me da escola em 2007, retorno para visita e tenho notícias de
que Delcy vem demonstrando maturidade, está mais centrado, menos violento e
apresenta sucesso escolar. Delcy vinha, pouco a pouco apresentando avanços que lhe
permitiriam prosseguir os estudos como os demais.
No último dia de aula em 2007, retorno a escola com o propósito de termos um
encontro. Havia tentado esse encontro algumas outras vezes, mas não foi possível. Em
2007, a escola entrou em reforma, uma grande obra que provocou muitas alterações no
espaço, por vezes, as crianças foram dispensadas mais cedo, fizeram uso de espaços
improvisados e a nossa turma havia se desfeito. Esses fatos dificultavam a junção do
grupo. Mas no último dia de aula o encontro foi possível, desejava informá-los sobre o
rumo do meu trabalho de pesquisa do qual eles faziam parte.
Fizemos um grande círculo falamos de algumas coisas, me contaram outras
tantas, trocamos endereços, telefones, e-mails. Alguns estavam diferentes, a adolescência
começara a deixar a sua marca. Contei sobre o andamento do meu trabalho de
pesquisa, eles tinham conhecimento do que se tratava, e disse que trazia por escrito
passagens do que vivemos no ano anterior. Estavam curiosos, desejaram ouvir e a cada
história sorrisos, emoções... Estávamos comovidos, sabíamos que daquele encontro em
diante tudo seria diferente, não estudariam mais naquela escola e nem todos iram para a
mesma escola no ano seguinte. Outros rumos, outras histórias, outras etapas de vida...
Antes de sairmos fiquei com Delcy, fiz mil perguntas sobre a sua vida, seus
familiares, os estudos... ele me respondeu algumas, as que desejou responder. Sobre a
escola limitou-se a dizer: foi tudo bem. Pedi para ver o seu caderno, não queria mostrá-lo,
insisti, até que o abriu. Penso o quanto a escritura se materializa na vida dos sujeitos
quando desejo observar o caderno e me certificar, como afirma Certeau (1994), da
escrita como poder”.
Estava posta a prova: Delcy tinha um caderno, um caderno como geralmente
todas as crianças têm quando freqüentam um ano letivo. Um caderno todo escrito e ainda
com capa, fato nem sempre comum ao final de um ano letivo. Delcy estava a caminho de
uma nova etapa de escolaridade, outra fase de sua vida e demonstrava condições de
prosseguir numa situação favorável, como os demais colegas.
Um sentimento de alívio me acerca. Com Certeau (1994, p.223) me ajuda a
compreender que a prática escrituristica assumiu grande importância “...nos últimos
quatro séculos reorganizando aos poucos todos os domínios por onde se estendia a
ambição ocidental de fazer sua história e, assim, fazer história..”. Neste caso, o valor da
escritura se incorpora na escola como sinônima de “progresso”; critério para inserções
em uma sociedade capitalista.
No fundo, eu sabia que escrever bem, ter um caderno organizado, manter os
conteúdos registrados, domesticar o corpo para conceber as leis criadas pelos homens,
além de outras prerrogativas era condição indispensável para ser promovido as etapas de
ensino posteriores e quem sabe não desistir da escola. Ajudar, estimular as crianças a
seguirem esse caminho é a contribuição que podemos dar não para “garantir” o
sucesso escolar, mas para ajudá-los à desejar buscar um conhecimento que os possibilite
compreender o jogo da luta social pelo poder.
Falei a verdade que realmente sentia ao desfolhar o seu caderno, ele me olhou
desconfiado como se estivesse duvidando do que falava:
Está lindo, poxa que bacana! Me empresta, deixa eu colocar na minha
pesquisa.?
Insisti e num gesto súbito arrancou uma folha qualquer e disse:
Toma, fica com você!
Wesley estava entre nós e me dirigi a ele dizendo:
Me deixa ver o seu também?
Tenho vergonha, tá feio! Respondeu Wesley
Feio nada, deixa eu ver o que fez esse ano! Respondi como se um ano escolar
pudesse estar somente ali...
Então, vem aqui!
Ao mesmo tempo em que me respondeu foi me levando para uma sala de aula
onde havia menos pessoas e, lá, na última carteira, como se precisasse se esconder, abriu
o seu caderno. Surpresa geral! Wesley também havia avançado significativamente.
Assim como o colega, retirou uma folha do caderno e me deu. No fundo sabíamos o que
aquele caderno representava, sabiam que as folhas que me deram tinham, para nós,
significado; carregavam a dor e o sabor do tão esperado sucesso escolar. O que fazia com
que Delcy e Wesley, com idade superior aos demais, não apresentassem no ano anterior
um caderno repleto de tarefas, organizado e com letras possíveis de serem
compreendidas?
Aquelas crianças revelavam o que acredito ser a função primordial da escola:
potencializara criança e não reduzir suas capacidades a uma única possibilidade. Como
seres humanos inacabados e plurais temos múltiplas formas de manifestar a nossa
existência. Durante o ano de 2006, Delcy e Wesley não conseguiram apresentar um
caderno organizado dentro das exigências da cultura escrituristica da escola, mas
contribuíram com outras possibilidades de participação. Os meninos davam-me pistas,
pela autoria das suas construções e descobertas, que compreendiam e que tinham
condição de acompanhar o conhecimento hegemônico estruturado na escola.
Havia entre nós uma cumplicidade que estava presente na possibilidade de vencer
as barreiras impostas por um modelo, no fundo sabíamos que a escritura em seus
cadernos assegurava, também, a possibilidade de prosseguir. Ao término do ano letivo de
2006 eles apresentaram uma condição muito melhor que no início, mas no fundo sabiam
que haveriam de vencer outras barreiras para continuar acompanhando a sua turma.
Dessa forma o caderno com atividades, uma escrita legível e uma organização “modelar”
como pude observar ao final de 2007, era a “garantia” de seguirem confiantes, uma nova
etapa escolar.
4.2 Joyce
A realidade social de Joyce pode ser compreendida à medida que a sua fala se
anuncia, entretanto isso o supõe uma verdade, mas uma pista de como o mundo se
revela para ela e de como ela interpreta esse mundo. Durante o recreio com o olhar
longínquo a menina se encontra debruçada na grade que separa o pequeno pátio da rampa
de acesso à escola, era de se estranhar que Joyce não estivesse correndo e brincando com
os seus colegas como gosta de fazer. Aproximo-me e pergunto:
O que houve? Está triste?
Estou. Responde Joyce
Pergunto o que aconteceu e Joyce não hesita em dizer:
O meu pai vai ser preso. Sabe tia, ele não está pagando a pensão e a minha
mãe vai denunciar ele para a polícia.
Ouço calada e Joyce continua.
Você sabia que agora se não pagar pensão vai preso?
Sem conseguir responder, pois Joyce é mais rápida que eu, simplesmente, ouço. E ela
uma menina tipicamente falante continua a sua explicação argumentativa como se
quisesse convencer-me.
Mas tia, ele não está pagando não é porque ele não quer, é porque o moço
da igreja não ta pagando a ele.
Faço uma breve intervenção um pouco ingênua, na tentativa de animá-la:
Joyce se ele não está recebendo ele vai poder falar na justiça a verdade, ele
não tem como pagar.
E ela rapidamente continua:
Eu falei pra minha mãe, se ele for preso eu vou na cadeia visitar ele! Ela
disse que não. Ah! Mas eu vou, eu vou de qualquer jeito! A minha irmã fica falando:
Joyce, você tem que ficar do lado da sua mãe. Eu não acho!
Joyce, ao contar um caso ou se defender em uma briga com os colegas
gesticula e usa freqüentemente a expressão facial, ouvi de outros profissionais da
escola algo como: essa menina é abusada”. Mas eu, que convivo diariamente com ela,
não penso assim. Se o olhar é traiçoeiro, visto que num primeiro momento pode nos
guiar para uma fantasia visual, quando observado de forma atenta, pode ser também,
revelador de muitas questões anteriormente não pensadas ou compreendidas. Por ser
espontânea e defender os seus direitos, Joyce, nos fornece muitas histórias e pode ser
confundida com uma criança provocadora de perturbações, atrevida. É bem verdade que
para sobreviver e se inserir a uma sociedade em que os direitos são negados,
principalmente o direito das crianças, demanda inteligência. Em alguns casos, impor-se
diante das regras estabelecidas requer um certo abuso, coragem e muita ousadia, embora
a escola não economize certos adjetivos, usados pejorativamente para “punir” esta
audácia, fato que pode ser entendido como positivo ou negativo.
Essas questões e tantas outras que nos envolvem diariamente me fazem pensar no
que realmente acreditamos: Será que em nós professoras uma forte tendência em
aceitarmos como “indisciplina”, “abuso” ou falta de “limites” as atitudes dos alunos,
quando estes se armam de coragem e enfrentam o mundo e os limites impostos pela da
escola?
Assim, como as nuvens que nos enganam com suas formas claramente definidas
para em seguida nos fazer duvidar daquilo que víamos instantes atrás, são também as
verdades que acercam os seres humanos. É a partir de exercício de suspeitar das verdades
estabelecidas, que permito pôr a minha prática em discussão. Procuro não desconsiderar
o que não está claramente dito, nem tão pouco confiar fielmente naquilo que vejo.
***
Apesar do conflito do pai e da mãe de Joyce, os dois são, aparentemente,
presentes em sua vida. Certo dia, alguém chegou a nossa sala pedindo para Joyce descer
porque o seu pai estava na escola. Curiosamente desci minutos depois, os dois estavam
na porta da escola, fui ao encontro deles, me apresentei e perguntei se podia lhe ajudar
em alguma coisa, o irmão que também estuda na escola havia sido chamado e foi se
aproximando. Ele, um senhor magro, aparentemente cansado e com trajes simples,
marcados de respingos de tinta, me agradeceu dizendo estar tudo bem, e completou:
Sabe professora eu trabalho aqui perto, tenho pouco tempo de ver os
meus filhos e quando eu tenho uma folguinha como hoje, venho até aqui para falar com
eles. É que fico com saudades deles.
As palavras simples daquele senhor estavam carregadas de significados,
havia uma afetividade presente, um bem querer estampado naquele rosto. Ao mesmo
tempo em que me dizia o que o levara ali, falava aos dois como gostaria que se
comportassem na escola, em casa e na rua. Despedi-me dizendo o quanto a sua filha era
querida em nossa sala. Ele estampou um sorriso vaidoso e, como se não pudesse
realmente perder tempo, retomou as suas palavras e recomendações.
***
Certo dia, após a aula de Artes, que acontece em nossa própria sala, fui
abordada pela Joyce:
Tia, vou logo te falando a verdade: briguei com a professora de Artes.
Perguntei o que aconteceu e ela respondeu entre o gesticular das mãos, da
boca e dos olhos:
Eu disse que não queria fazer o que ela mandou, eu só queria desenhar,
mas ela não deixou.
Retorno a minha fala e faço um alerta:
É capaz dela nem querer dar aulas mais em nossa turma. Ela anda
reclamando da turma.
E Joyce sem hesitar responde em tom afirmativo:
Para nossa turma não, pra mim! Tenho certeza que ela quer dar aula
para os outros, ela não quer é dar aula é pra mim. Ah, tia! Eu peguei umas folhas dela
só de raiva, umas folhas que ela deixou na mesa.
Perguntei se o que fez era certo e com um ar de quem não agiu
corretamente, mas não fazia questão de desfazer a situação respondeu que não. Joyce
sabia não ter agido certo, por outro eu também não me propus o enfrentamento daquela
questão junto com as crianças. A minha ausência embora não fosse por indiferença, hoje
percebo que era fruto da minha acomodação: não pretendia um embate direto com a
professora. No fundo me resguardava dos possíveis confrontos.
Às vezes me ponho a pensar nestas passagens queo cotidiano pode nos
proporcionar e acho intrigante, até mesmo significativo o que as crianças sinalizam. Mas
penso, também, quantas vezes ao nos depararmos com crianças questionadoras como
Joyce tentamos domesticá-las, engessá-las num modelo hegemonicamente padronizado
de criação quando minimizamos por exemplo, a sua criatividade...
Quando Joyce diz pegar algumas folhas da professora de Artes, confesso
que me surpreendi com a minha própria atitude: ouvir a Joyce e me tornar “conivente”.
Essa situação provocou uma reflexão e uma aproximação com o meu trabalho. Encontro
na qualidade da tolerância a “...virtude que nos ensina a conviver com o diferente...”
Freire (1997) neste momento me reencontro e é a partir daí que começo a compreender
porque algumas atitudes nos movem para outros caminhos, outros fazeres. É no cotidiano
e com o cotidiano que aprendemos a lidar com algumas questões, mas são as nossas
leituras, as nossas pesquisas, as nossas buscas freqüentes que nos movem para novas
práticas.
O cotidiano é bruto, porque sendo fruto da interação dos homens na
sucessão dos dias, trás em si os mais diferentes interesses e concepções dos humanos. O
cotidiano é a experiência humana em pleno processo de rotatividade. Sendo eu
integrante desse cotidiano que agrega homens, mulheres e crianças vou aprendendo a dar
importância a algumas coisas e não a outras, aprendo a aprender umas coisas e
desconhecer outras. Daí a importância de sair do lugar da obscuridade e
condicionamento, para o lugar do conhecimento crítico.
Esse sentimento me constitui como pessoa ao mesmo tempo em que me
constitui professora. A minha profissão me faz interagir com as crianças, seres que
começam a interagir com o mundo. Assim, entendo que não posso reduzir a leitura da
palavramundo, nem minha, e nem a deles, exercício que difícil que exige um estado de
vigilância constante. Exige compreender que sou condicionada a ler o mundo, interpretá-
lo e vivê-lo adotando comportamentos idealizados pelo mundo dos homens, que carrega
em si interesses próprios, entretanto provoco mudanças quando capaz de compreender as
artimanhas de quem está no poder, resisto.
Certamente, alguns anos atrás a atitude de Joyce seria para mim um
fato preocupante, um caso para se encaminhar para a coordenação ou Orientação
Educacional, achando que talvez estivesse tendo um desvio de comportamento, e hoje
tenho uma atitude totalmente oposta. O que mudou? Seria o tal “...viver-fazer da
profissão...” do que fala Perez que tomou conta de mim? Será que em mim,
professora, uma tendência a ceder aos caprichos das crianças? De certo as teorias me
ajudam a pensar e repensar a prática à medida que vou tecendo os fios do fazer. Nas
minhas releituras mais uma vez me encontro refletindo sobre a atitude das crianças e
creio que Joyce percebia o quanto me colocava aberta ao processo ensinaraprender e
poderia me confiar os seus segredos, as suas artimanhas.
Por outro lado, a resistência de Joyce tinha o sabor do meu consentimento. Não os
incentivava a criar conflitos com a professora, porém não os reprimia pela resistência que
faziam, pois sabia o quanto estava sendo doloroso para eles, também, aquela aula.
4.3 Joyce, Graziele e Beatriz
Durante uma conversa em sala de aula onde abordávamos as questões
indígenas nos aproximamos da História do Brasil, conversávamos sobre a escravidão
quando Joyce argumentou:
Tia, eu não queria ser negra.
Eu também não queria ser negra, diz Graziele.
Abro a conversa para todos e deixo que eles exponham as suas opiniões.
Beatriz é uma menina que fala pouco, senta sempre no fundo da sala e se negava, até
então, a participar de atividades em grupo. Creio que se sentia um pouco constrangida
por ter idade diferente dos demais, tem 12 anos, quando a maioria tem entre 09 e 10 anos
e além de tudo é bem mais alta que o restante da turma. Mas para minha surpresa a
Beatriz faz a sua colocação:
Eu sou negra, tenho orgulho do meu povo e não sinto vergonha de ser negra.
Continuo a conversa e eles vão denunciando em suas falas o quanto o
povo negro é sofrido e discriminado, entretanto, Beatriz não concorda com o grupo e
o seu depoimento:
Os negros não são discriminados.
Volto à fala de Beatriz para o grupo e tento problematizá-la, alguns alunos
dizem não concordar com ela e apresentam argumentações:
Os negros são pobres, moram mal, os brancos são pobres, mas nem todos ...
Beatriz se cala, tento argumentar mais um pouco a trazendo para nossa
conversa, mas ela se isenta da discussão. Não insisto. Fico pensando no entorno da
Beatriz, na sua relação social. Como deve estar colocado para ela a questão do negro na
nossa sociedade? Que relações se estabelecem no seu cotidiano que a faz pensar
diferente? Penso que talvez a Beatriz não tenha entendido bem a questão, fico intrigada.
Por outro lado, penso que possa ser eu que não tenha entendido bem o ponto de vista da
Beatriz, talvez por ter ido para sala de aula fazendo uma leitura linear ou pouco reflexiva
de como as crianças vêem, interpretam e se colocam diante das questões sociais por elas
vividas.
Talvez por emprestar à visão a possibilidade de revelar de forma
positivista a realidade social, tenha cometido o equívoco de pensar que a maioria dos
negros se sintam injustiçados ou numa posição de inferioridade. Começo a perceber o
quanto as minhas idéias ainda são partes desconexas do todo. Na verdade a Beatriz me
pegou de surpresa. As minhas verdades que nem se quer o minhas de fato, as comprei
não sei onde, mas as comprei, até encontrar Beatriz que me fez entender o quanto fui
tola ao acreditar ingenuamente na comunicação unilateral, onde o diálogo é empobrecido
“...porque as palavras nos são ditadas e as respostas previamente catalogadas....”
Santos (1997, p.21). No final da aula, de posse do meu gravador, objeto que as vezes
carregava para gravar as aulas do mestrado, me aproximo de Joyce e Graziele e volto a
propor que elas me falem por que não gostam de ser negras. Joyce diz:
Ah! Eu não gosto de preto eu queria ser branca.
Tia sempre que eu brigo na rua tem uma garota que me chama de neguinha e
de cabelo duro e eu não gosto, por isso eu não queria ser negra.
Retorno à pergunta a Graziele e ela diz:
Porque um dia eu briguei com uma garota e ela me chamou de preta, aí eu bati
nela e aí minha mãe me bateu.
Imediatamente Joyce contesta:
A minha mãe não me bateu não!
Pergunto as duas:
Mas vocês não gostariam de ser negras por que foram chamadas de negras ou
tem outro motivo?
Eu tenho vontade de prender ela! Joyce afirma.
Então vocês acham que a cor em si não incomoda, o que a incomoda é
a discriminação que vocês sofrem ao serem chamadas de negras? Volto a perguntar
Me incomoda, me incomoda muito. Tia na verdade eu queria era ser branca
rica, ter uma casa mais linda do que a dos outros, ter um piscinão (de Ramos,
sorrisos!!!). Diz Joyce.
Graziele pouco fala, mas o seu semblante revela concordar com a amiga.
Eu volto a instigá-las:
Ah, então vocês queriam é ter uma vida diferente?
É, uma vida boa. Afirmam ao mesmo tempo.
Continuo o diálogo, por vezes interrompida pela Joyce que fica ansiosa
com a idéia de nossa conversa estar sendo gravada.
Então, o que incomoda mais à vocês é o fato de serem negras ou pobres?
Ser pobre. As duas afirmam.
Então, não é tanto o fato de ser negra... Sou interrompida pela Joyce antes de
concluir a minha pergunta, e ela afirma:
Ser pobre não é tanto, mas ser negro....
Para você o maior problema é ser negra Joyce? Pergunto.
Pobre nem tanto, pobre nem me incomoda tanto, mas ser negra...
E para você Grazielle, o que mais a incomoda?
Ser pobre!
Joyce nos interrompe e passa a relatar vários episódios vividos entre ela e
a menina que a chamou de “preta” (segundo a própria Joyce). Entre os relatos das brigas
e puxões de cabelo Joyce diz que a menina é abandonada, a mãe mora em outro lugar e
nem sequer dava a ela um arroz para comer e que assim foi preciso vir morar com outras
pessoas, perto de sua casa.
Aproveito este gancho e questiono a Joyce:
Ela é branca, mas não tem uma vida melhor que a sua. Mesmo assim você
gostaria de ser branca como ela?
Sei lá tia (pára pensativa e continua), eu queria ser branca sabe.
Joyce, Graziele e Beatriz me ensinaram uma lição muito simples e que
teoricamente defendo sempre: as pessoas são diferentes, os sentimentos são diferentes...
Digo teoricamente porque na prática às vezes nos equivocamos e tratamos como verdade
o que a priori havíamos compreendido e discursado como sendo possibilidades ou
dúvidas. Sei que este assunto não esta encerrado, mas naquele momento a minha
condição de ir adiante estava limitada, não pela falta de maiores argumentações, leitura e
aprofundamento do assunto, mas pela forma com que a conversa foi conduzida em sala
de aula e inesperadamente me vi diante daquele debate.
Outro tipo de armadilha que o cotidiano nos reserva: a coragem de perceber a
nossa própria limitação e a humildade de buscar caminhos para voltar a questões que
entendemos ser preciso retomar. Segundo Freire (1997,p.55) “...a humildade nos ajuda a
reconhecer esta coisa óbvia: ninguém sabe tudo, ninguém ignora tudo...” Embora,
reconhecesse que não sabia tudo incorporava o saber como uma condição imutável da
minha prática.
Nas leituras e releituras que marcaram a minha trajetória naquela turma,
percurso ainda em movimento, e ao me deparar com essa passagem, percebo que ao
buscar as meninas para a entrevista reafirmo o meu discurso homogeneizado: entrevisto
Joyce e Graziele e deixo de fora a Beatriz.
Pensava ter aprendido uma lição simples, não nada de simples nessa questão.
A complexidade dela afirma que conseguimos ver aquilo que nos é possível ver naquele
momento, daquele lugar. O que se passa no cotidiano, aparentemente insignificante, traz
em si significados, compreendê-los no lugar de explicá-los é um exercício nem sempre
simples de transcorrer.
O espaço que ocupamos como professora, os caminhos que nos foi
possível transcorrer a ponto de chegar a compreender as relações que se estabelecem no
cotidiano e nas interações diárias com os nossos alunos é algo a ser pensado e refletido
durante a formação de professores e a formação continuada. Como me referi instantes
atrás, precisamos desconfiar do ponto de vista instituído como verdade única, centrado na
concepção pedagógica que nos ensinou que diretrizes determinadas, verdades a serem
seguidas pela professora.
O que vejo ser transformador na relação professora e alunos, e que nos faz
mais sensíveis a ponto de não nos permitir algumas atitudes, é o cuidado com o OUTRO.
No caso da professora, caberá a tarefa de oportunizar vínculos na relação e construir um
ambiente acolhedor.
4.4 Juliene, Polyna e ...
Na nossa sala de aula, bem como deve acontecer em outras salas de aula de
crianças nessa faixa etária, quase tudo é motivo de brigas e discussões ou quase tudo é
motivo para que falem uns com os outros. Nesse caso nem sempre me envolvo e às vezes
eles mesmos conseguem entrar num acordo.
Enquanto escrevia no quadro percebi que a discussão tomava uma proporção mais
ampla e uns tomavam partido dos outros. Quando passei a prestar maior atenção, notei
que de um lado Juliene defendia Lula e do outro Polyana defendia Geraldo Alkimin, o
clima estava tenso como é comum em discussões políticas, principalmente naquele
momento em que os confrontos entre os candidatos eram apreciados pelos cidadãos
brasileiros através dos meios de comunicação. Na “altura do campeonato” Juliene
agregava uma legião de adeptos e Polyana outros. Polyana dava pistas de que começara a
ficar nervosa e parecia chorar. Pedi para entrar na discussão fiz alguns comentários sobre
as eleições e conversamos sobre a importância do voto e de definirmos o nosso
candidato e propus um debate para o dia seguinte.
Juliene defenderia Lula durante 3 minutos e em seguida Polyana faria o
mesmo, com o seu candidato. Ambas deveriam preparar o seu discurso e as suas
argumentações e a turma em seguida, por ordem de inscrição, faria as perguntas sobre o
candidato que desejasse. No dia seguinte sala cheia, ninguém faltou. Democraticamente
arrumamos a sala e organizamos o debate.
Eu ocupei o papel de organizadora e aproveitei para registrar o quanto
consegui, elas tiraram par ou impar e Juliene começou. Argumentou que Lula muito faria
pelo país que era um homem do povo, pois era pobre e trabalhador antes de ser
presidente. Polyana abriu o seu discurso apelando para o homem culto e que muito fez no
governo de São Paulo. Em seguida abrimos para as perguntas:
Guilherme: E os buracos? Lula no primeiro mandato não fez nada para
acabar com os buracos do nosso bairro.
Juliene: Ele não governa sozinho.
Letícia: Por que São Paulo está pegando fogo” se Geraldo Alkimim foi
governador de lá?
Polyana: Ele nem começou a presidência, como é que ele vai colocar
policiais e bombeiros lá
Thiago Travassos: Por que os candidatos de Lula foram presos?
Juliene: Porque fizeram “merda”, não foi o Lula que botou dinheiro na
cueca foram os candidatos do partido dele.
Fernanda: Por que você tem tanta certeza que o Geraldo Alkimim será
um bom candidato? O Lula está lá e a gente já sabe como é.
Polyana: Porque eu acho que a cidade de São Paulo está muito ruim e se
ele for pra lá vai melhorar
Wesley: É verdade que Geraldo Alkimim está fazendo muitas escolas no
Brasil?
Polyana: É verdade.
Douglas: Por que Geraldo Alkimim aparece na cidade nos dias de
eleição?
Polyana: Porque ele tem mais coisas para fazer em São Paulo
Luka: Por que Lula vive viajando?
Juliene: Porque ele não pensa no Rio de Janeiro e São Paulo, ele
pensa em todo o Brasil.
Luka: Por que Lula em quatro anos não cumpriu o que prometeu para
todo o Brasil?
Juliene: Ele fez um monte de coisas: bolsa família, fome zero, farmácia a
1,00 real.
Delcy: Por que Geraldo Alkimim não colocou comida a 1,00 real?
Polyana: Porque ele tem planos de fazer outras coisas.
Juliene: Por que Geraldo Alkimim só pensa em São Paulo?
Polyana: Ele não está pensando em São Paulo, ele está pensando
também no Rio de Janeiro. Mas as escolas de São Paulo estão todas ferradas, ele
precisa de muito mais dinheiro.
Polyana: Aqui no Rio de Janeiro está acontecendo muitas coisas ruins e o
que Lula está fazendo?
Juliene: Ele faz sim, bolsa escola, farmácia a 1,00 real... Mas ele precisa
da assinatura dos governadores e deputados para fazer melhor.
Controvérsia na ordem estabelecida pela lógica da escola, pela lógica do adulto: a
aula não partiu da professora como é de costume a aula partiu das crianças. Uma lição
“pra lá” de cidadania! Além da inversão da ordem, muitos elementos interessantes
nesse acontecimento que vão sinalizando o quanto a sala de aula proporciona, a nós
professoras um universo de perspectivas importantes de serem refletidas e exploradas.
Como nos aponta Freire (2001),”... ensinar exige respeito aos saberes dos
educandos..”. Foi dentro dessa perspectiva que após o exercício que fizeram de dialogar
sobre cada um dos candidatos, discutimos a realidade concreta em que vivemos.
Durante a apresentação das meninas e das perguntas por eles feitas, não fiz
nenhuma intervenção, permaneci no papel anteriormente combinado de organizar as
inscrições. Em alguns momentos achei que as perguntas tomavam um direcionamento
ingênuo e pensei em fazer intervenções, mas logo percebi o meu equívoco. Não havia
nada de ingênuo naquelas colocações.
A atenção mantida pelo grupo denunciava o exercício de participação política,
ferramenta de emancipação importante quando se busca gerar a tão cobiçada autonomia
do cidadão que deseja compreender a sociedade e perceber-se como agente formador e
transformador de realidades.
De fato não havia nada de ingênuo naquelas falas e hoje percebo o quanto foi
bom não ter interrompido para discursar sobre as minhas verdades, como foi bom saber
escutar. Aquele exercício, invenção de uma oportunidade provocada pelas próprias
crianças, revelou o quanto são capazes de desenvolver suas habilidades pessoais de
responsabilidade social, liderança, tomada de decisões, relacionamento coletivo,
apropriando-se dessas capacidades ao mesmo tempo em que exercitam a autonomia, a
crítica e a reflexão.
Quando Milton Santos
23
nos insere na discussão do globalitarismo acenando para
a tendência ao totalitarismo dos últimos anos discute também a democracia a partir do
lugar, onde estamos e no qual vivemos. A partir daí re-visito as minhas memórias e
compreendo que a tendência que o autor sinalizava em 1999, começa a se materializar
nos pronunciamentos das crianças na maneira como lêem o mundo e como lutam pelo
mundo a partir do seu lugar.
4.5 João Pedro
Lembro-me que no segundo semestre notei o quanto João Pedro estava
indiferente em nossas aulas. João nunca foi muito de participar oralmente, mas sempre
apresentou interesse pelas atividades propostas por mim ou pelo grupo. Ultimamente o
seu olhar estava distante, a sua paciência com os colegas no limite, os seus cadernos não
sabia onde estavam e não concluía as atividades. Olhei bem para o João a me dei conta
do quanto não o conhecia, sempre que perguntava algo sobre a sua família em conversas
pouco formais dava-me as informações sem expandir a conversa, sabia que tinha uma
irmã mais velha e morava com a mãe e ponto final. Foi então que perguntei:
João eu não conheço a sua mãe, ela trabalha?
Trabalha, mas agora ela está em casa? Respondeu.
23
Entrevista Milton Santos, por José Corrêa Leite. Revista Teoria & Debate (fev/mar/abr 1999) Fonte:
http://www.fpabramo.org.br/td/nova_td/td40/td40_entrevista.htm.
Ela não veio à reunião, provavelmente, porque estava trabalhando. Não quer
convidá-la para vir à escola me conhecer e conhecer a sua sala de aula? Perguntei.
Não sei, vou falar com ela.
Dias depois lá estava à irmã mais velha de João, uma mulher ainda jovem e mãe de duas
meninas.
- Você quer falar com a gente? Ela perguntou.
- Pedi que a mãe dele viesse até aqui porque ainda não nos conhecemos, como o
João disse que ela não está trabalhando...
Expliquei um tanto sem graça, afinal o tinha interesse em criar transtornos à família,
não era o caso.
- Ele deu o recado certo, mas resolvi vir no lugar da minha mãe porque ele está
muito arredio, não quer nada com os estudos, fica na rua o dia inteiro, está malcriado...
Por ela seguiu tecendo um rosário de reclamações. Disse-lhe que estava
surpresa, pois comigo era muito educado e estava, ultimamente, um pouco disperso.
Antes de terminarmos a conversa fez um apelo:
-A minha mãe vai vir aqui e se você puder converse com ela para não passar a
mão na cabeça dele” e não deixá-lo fazer o que quer...
Dias depois a mãe do João me procurou, nhamos mais tempo nesse dia e foi possível
destinar maior atenção à conversa. A mãe relatou:
- O João foi abandonado, em nossa casa, ainda bebê. A mãe morava perto e ele
ficava com a minha filha, na época com 14 anos, para ela trabalhar. Um dia foi e não
voltou, a minha filha ficou criando ele, porque eu também trabalhava. Quando ele fez
um ano ela apareceu, depois sumiu novamente e assim ela sempre fez. Eu criei ele
sabendo que tem uma mãe, quando ficou maiorzinho, ela vinha, prometia um monte de
coisas e ia embora. Agora, tem um bom tempo que ela não aparece, ele fica perguntando
onde está à mãe dele e eu não sei, ninguém nunca sabe. A minha filha, a irmã dele,
casou e têm duas filhas, ele me chama de mãe, mas ela cuidou mais do que eu. Eu
trabalho para dar tudo a ele, o que não pude dar até mesmo para os meus filhos. Eu
sempre digo pra ele que faço o melhor que posso. Os meus filhos me culpam de
“estragar” ele, dizem que o deixo fazer o que quer.
Expliquei o que estava me preocupando em relação ao João Pedro. Ela
continuou:
Ele está muito malcriado, mente dizendo que está em um lugar e vai pra outro,
some pela rua e não sei mais o que fazer. Os meus filhos me culpam e o meu marido
também.... Se eu soubesse onde ela está...
Perguntei se ela devolveria o João a sua mãe e respondeu que não, perguntei se o
melhor caminho seria procurar por essa mãe ou assumi-lo de fato. Afinal ela é a mãe e
deveria agir como agiria com os seus filhos.
Tenho medo que ele se revolte mais ainda. Comentou.
Tentei tranqüilizá-la argumentando que, de certa forma, o que vinha fazendo
estava dando certo, longe da sua presença era uma criança muito educada. Expliquei que
o seu comportamento mudara, de um tempo pra cá, mas que deveria ser uma fase. Antes
de nos despedirmos ela falou:
O aniversário dele está chegando acho que está assim porque deve estar
pensando se ela vai aparecer ou não. Vou conversar com ele para não ficar assim, afinal
a família dele somos nós e gostamos muito dele.
João é mais um caso, em meio a tantos outros, que temos em nossas
escolas. Sabemos pouco, conhecemos quase nada da vida das nossas crianças. Quantos
Joãos são rotulados com frases: Está botando as manguinhas de fora! tem cara de
santinho! De bobo não tem nada...!
Quantos “Joãos” abandonam a escola por o conseguirem se “concentrar” e
“prestar atenção” nas aulas? Quantos Joãos ficam a parte do processo escolar porque não
fazem parte daquilo que foi convencionalmente pensado, elaborado? Algumas crianças
não são travessas, levadas a ponto de nos exigir prestar maior atenção a elas, por outro
lado crianças “boazinhas” que fazem tudo certinho com tanto “capricho” que nos
rouba os elogios. João Pedro estava entre duas realidades, uma criança amada e rejeitada
que, provavelmente, estava vivendo os conflitos de quem numa situação adversa precisa
experimentar a desordem, para quem sabe se reorganizar. Escutar sensivelmente é
importante para que possamos perceber os “Joãos” ou que às vezes ficam no anonimato.
4.6 Larissa
Semanalmente nos reunimos e tratamos de assuntos diversos relacionados à
escola e foi em uma dessas reuniões que a professora desabafou:
Aquela menina é muito chata
Chata? Como assim? Alguém perguntou.
Ela quer sempre ser melhor que as outras, sempre sabe mais...
A professora tentava justificar para o grupo o que considerava inoportuno na
menina. Intrigada pelo que ela poderia estar justificando como chata, indaguei um pouco
mais sobre a “chatice” da aluna e ela respondeu:
Ela vive competindo com uma outra menina da sala e quer sempre ser melhor...
Tenho procurado desafiar o meu próprio olhar observando com estranhamento os
lugares que historicamente têm sido ocupados pelas professoras e pelas crianças. Foi com
esse olhar e inserida nesse contexto que desconfiei e tentei compreender o que estaria em
“jogo” na relação entre a aluna e a professora. Começo a pensar por que a fala da
professora Lúcia me causa estranheza, desconfio do meu próprio estado de vigilância.
Como coordenadora de escolas e acompanhando o trabalho das professoras, venho
aprendendo a ocupar o lugar do estrangeiro que mira com perplexidade e interrogação o
mundo que vive Greene (1995)
Longe de desejar uma investigação sobre as possibilidades ou dificuldades de
relacionamento entre ambas, o que despertou a minha atenção estava atrelado ao fato de
como nos permitimos ser aquilo que somos e como impedimos, algumas vezes, que
sejam as crianças que passaram por nós durante os anos de escolaridade. Neste caso,
compreender o que a professora atribui à concepção de chata e conhecer a criança, eram
fatores indispensáveis para entender o quadro que vinha se formando naquele ambiente.
Foi então que lhe propus levar a menina em minha sala. Pensei, naquele
momento, que talvez em outro grupo ela apresentasse um outro tipo de comportamento.
Quem sabe a professora não estivesse desgastada daquela situação de conflitos em sala
de aula e parte dele, também, gerado por aquela menina?
Para situar melhor o leitor é importante que saiba que a professora Lúcia assumiu
a turma no meio do ano letivo, em substituição a professora Karla que foi devolvida a
Fundação Municipal de Educação. O grupo de alunos é bastante agitado e parte da sua
agitação, provavelmente, se deva por não terem sido encantados pelo processo de
afetividade, além da falta de referencial da professora. Era comum que diferentes
professoras entrassem naquela sala de aula para cobrirem as ausências da titular, o que
gerou uma falta de rotina e de organização no trabalho, provocando inclusive, constantes
desacordos entre as crianças.
Nesta faixa etária as crianças costumam alimentar uma relação, até certo ponto,
de afetividade e “cumplicidade” com aquela que diariamente os acompanha, naquela
sala, até então, isso não havia se constituído. O grupo de crianças apresentava-se agitado
e pouco integrado ao cotidiano escolar.
Estávamos acabando de planejar a nossa primeira atividade e nos organizando,
quando a batida em nossa porta nos convidou, a saber, do que se tratava. Ao abrir
deparei-me com a professora Lúcia que me disse:
Ela pode ficar?
Por alguns segundos oscilei como se não soubesse do que se tratava, mas logo
recordei do convite que fizera a professora no dia anterior, durante a reunião de
planejamento. Embora o convite estivesse partido de mim mesma, havia esquecido da
sugestão feita à colega durante a reunião no dia anterior. Por alguns segundos não me
ocorreu o que estava acontecendo e a professora complementou:
Essa é a Larissa.
Logo, entendi do que se tratava e falei:
Claro, pode entrar vai ser um prazer tê-la em nossa sala Larissa
Com o rosto escondido atrás do seu boné Larissa sentou-se e quase não conseguia
olhar para as demais crianças. Era nítido o desconforto da menina e tentei quebrar o
clima de expectativa que começou a gerar em torno da situação.
Venha Larissa pode sentar-se aqui... Disse a menina
Antes que pudesse comentar algo sobre o que estava acontecendo, alguém falou:
O que ela está fazendo aqui?
Veio nos visitar, vai passar a manhã conosco... Respondi sem entrar em
maiores detalhes
Mas por quê?
Por que desejou... Continuei.
Por que só ela?
As perguntas começaram a surgir, não havia preparado-os para a chegada da
menina. Por outro lado, Larissa se escondia cada vez mais por detrás da aba do seu boné
e eu começara a sentir o peso do desconforto da menina, afinal não havíamos nos
planejado para que aquela mudança de sala ocorresse com mais cuidado. Não sabia como
fora a negociação entre a professora e ela para que viesse a nova sala de aula.
Pelo curto espaço de tempo, entre o horário da entrada e a chegada dela a nossa
sala, pude imaginar que a menina não havia participado de um processo de encantamento
e sedução ao novo ambiente. Apelei para as justificativas usando o processo de
agrupamento e reagrupamento que ocorre periodicamente em nossa escola por conta da
implantação dos ciclos.
Gente nós não estamos sempre agrupando e reagrupando, não estou
entendendo o porquê de tanta surpresa?
Os olhos de Larissa já estavam enchendo d’agua e eu começava a me
sentir tão desconfortável quanto ela, afinal sabia exatamente do que se tratava, assim
como, provavelmente, a Larissa também sabia.
Percebi que o lugar onde inicialmente a coloquei era entre meninos e
como as carteiras estavam em semicírculo a Larissa estava totalmente exposta aos
olhares curiosos. Foi então que sugeri:
- Meninas, que tal convidar a Larissa para sentar desse lado junto de vocês?
Podem aproveitar para apresentar a Larissa o que vamos começar a fazer... Vejam se
ela deseja fazer o mesmo...
Estava em meio a uma conversa de apresentação e acomodação na tentativa de
criar um clima mais agradável para a menina, pois assim como ela, as demais crianças
também não haviam sido preparadas para a nova situação e estavam curiosos em torno do
que estaria acontecendo. Ensaiava começar a atividade a fim de desvirtuar o foco de
atenção, quando alguém mais uma vez me interrompe:
Quem você vai trocar?
A pergunta era certeira, capciosa. Foi ai que percebi o quanto insensata havia sido
a nossa decisão, a minha e da professora Lucia de trocar a Larissa de sala daquela forma.
Confesso que foi naquele momento que me dei conta realmente do peso da nossa atitude.
Eu não preciso trocar ninguém; preciso?
Há fala sério, professora! Quem você vai trocar?
Embora estivesse, minutos antes, justificado a presença da menina em
nossa sala, a explicativa que dei em nome dos reagrupamentos, não os havia convencido
e estava claro para eles que ela não estava ali por aquele motivo. Larissa de certo pensava
o mesmo: a minha desculpa estava invalidada. Por que ela trocara de sala? Por que
não havia na escola nenhum movimento que insinuasse novas organizações de grupos?
Olhei a turma e percebi claramente o quanto à criança é capaz de ler nas
entrelinhas, de perceber o que não está declaradamente dito. Como são capazes de
perceber a lógica que o adulto utiliza para o enfrentamento de possíveis soluções das
circunstâncias que necessita resolver ou justificar em nome de uma ordem ou de uma
organização que, na maioria das vezes, atende aos interesses próprios do mundo adulto.
Enquanto olhava a turma, percebi que Delcy assistia a tudo em silêncio. Não
demorou muito e alguém falou:
É Delcy que você vai trocar professora?
Continuei a olhar sem nada dizer, deixei por alguns instantes no ar aquela
pergunta, até porque, agora eu também começara a me interessar em ver que rumo àquela
conversa tomaria. Não foi preciso responder, Delcy irritado e com ar de quem estava
reprovando aquela situação, disse:
Eu não vou pra lugar nenhum, sai fora! Cala boca aí, hem... Se continuar vai
ver só...
Pergunto a turma:
Vocês acham que eu posso sair por aí trocando todo mundo?
Alguns disseram que não, outros se calaram. Um ou outro, em nome da “ordem”
e da lógica do poder, disseram que eu deveria trocar sim, mas somente aqueles que
bagunçam durante a aula. Um clima desconfortável pairava no ar por parte dos ditos
bagunceiros, sabiam que a indicação para a possível troca deveria estar atrelada ao
comportamento.
Sugeri que começássemos a atividade. Naquele momento era necessário
criar um clima de aceitação a nova aluna, mais do que contestar o acontecimento, era
importante cuidar da interação entre todos, afinal estava também em “jogo” a inserção da
Larissa ao novo grupo.
A indagação das crianças me fez pensar em como nos colocamos no espaço da
escola e como nos fazemos professoras. Quando as crianças num processo de
desconstrução da própria subalternidade desconfiam daquela condição e começam a se
manifestar, forçam-me indiretamente a assumir uma postura. Ainda que tivesse a
intenção de troca não seria tão fácil fazê-la. Eles estavam atentos o suficiente para se
contrapor a ordem e começavam a se organizar, qualquer mexida naquele espaço,
provavelmente, mobilizaria a todos. Desafiavam-me a usar a verdade e esclarecer o que
de fato poderia estar por detrás de tudo aquilo.
Aquele momento me fez pensar como determinadas práticas podem implicar no
outro um desconforto, uma insatisfação. Foi a partir da pergunta que percebi o quanto
prolixa era aquela situação, afinal, para ter, uma das crianças, a iniciativa de perguntar
quem eu iria trocar, era sinal de que percebiam claramente como se constitui a lógica da
escola e como se constitui a lógica do poder. Deveriam estar se sentindo ameaçados e
chegando a conclusão de que qualquer um pode ser retirado daqui ou dali e levado para
outra sala, sem maiores argumentações.
Já não se trata somente do sentimento experimentado pela Larissa de menos valia,
mas como nos apropriamos do lugar de professora, ali demarcado como lugar de poder, e
fazemos valer o sentimento de colonizador que em nós habita. Comecei a pensar o
quanto imprudente havia sido a minha atitude, em sugerir que mandasse a menina para a
minha sala, e da professora em propiciar a ida, sem ao menos pensarmos alternativas para
ingressar-lhe ao novo grupo.
Tentei reverter um pouco à situação a fim de deixá-la livre para fazer a sua opção.
Dirigi-me a Larissa e disse:
Não precisa ficar se não desejar, mas participe conosco durante esta manhã...
Quem sabe você gosta?
As crianças estavam ilustrando a capa de um envelope que passariam a utilizar
para guardar as suas produções, prática que instituímos para facilitar a identificação de
cada envelope. Larissa interessou-se pela proposta e logo se pôs a fazer, encontrava-se
mais descontraída. Algumas vezes precisou de material como hidrocor e lápis de cor, eles
se incumbiram de apresentar-lhe o nosso armário e o que guardávamos. Aos poucos
foi fazendo uso dos materiais sem a preocupação de me pedir permissão a todo o
momento, foi percebendo que todos eram usuários do armário da professora. Não
demorou e estava de posse das revistinhas e livros que guardamos. Confeccionou o
seu envelope, emprestou materiais e pediu emprestado. No final do dia ela se aproximou
e disse:
Tia, eu posso ficar aqui?
Brinquei devolvendo-lhe uma pergunta:
É namoro ou amizade?
É namoro. Respondeu sorrindo.
Se como nos afirma Certeau (1994) a ocasião nos permite uma
oportunidade, Larissa se serviu da ocasião ao ser levada para nova sala e aproveitou a
oportunidade para assegurar a sua escolha: gostou do grupo, integrou-se bem, desejou
aquele novo grupo: logo, pediu para ficar. O que até então era para Larissa apenas um
acontecimento: ser levada da sua sala para outra, agora ela própria transformara em
ocasião e diante da ocasião uma nova oportunidade: mudar-se efetivamente para um
novo espaço.
Naquele dia e nos dias que se seguiram durante aquela semana Delcy
comportou-se muito bem, penso que deveria imaginar que se alguém pudesse ser trocado
esse alguém seria ele. A turma também esteve mais contida e mais desconfiada.
Provavelmente, não se sentiam seguros e pairava no ar certa dúvida em torno da possível
troca. Às vezes alguém perguntava:
Professora, você não vai trocar mesmo não?
Nestes momentos era comum ouvir um brincar com o outro quando diziam:
Vai ser você! E o outro retrucava
Vai ser você porque você fez isso ou aquilo...
Começavam a brincar com as possibilidades de sair do espaço fronteiriço
e colocar o outro, quando diziam:
Você fez mais coisas “erradas” do que eu, ou ainda, você fez isso ou aquilo e
eu não fiz.
Começo a notar como fazem uso das táticas de enfrentamento para saírem
ganhando daquela situação. Se para Certeau (19944, p.47)...a tática depende do tempo,
vigiando para “captar no vôo” possibilidades de ganho, podemos pensar que são com
as nossas experiências que articulamos as nossas táticas. Logo, as experiências que
viveram até então lhes possibilitaram pensar em formas de enfrentamento para livrarem-
se da probabilidade de serem “trocados”:
Não foi eu que fiz, foi você ou você faz coisas piores que eu, então quem vai é
você...
Larissa está entre nós, a cada dia a sua interação com o grupo cresce e os
primeiros desentendimentos começam a aparecer. Percebo que sente dificuldade de
relacionar-se, apesar de ter sido acolhida, pelo menos pela maioria das crianças. Vez ou
outra está envolvida em alguma confusão, não resta à menor dúvida que talvez pelas suas
próprias atitudes: delatora e conflituosa. Assim, às vezes é alvo de chacotas o que a deixa
irritada gerando novos conflitos, entretanto, nada que a diferencie por demais de outras
crianças de sua idade. Porém, tem conseguido participar das atividades propostas, assim
como gosta de propor novas atividades e sempre busca parceria de trabalho com as
demais colegas.
4.7 Juliene
Os diálogos ampliam os nossos horizontes e vamos conhecendo e reconhecendo,
inclusive, as nossas fraquezas, vaidades, desejos, vontades... Como anuncia Freire (2003
p. 78) O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-
lo, não se esgotando, portanto da relação eu-tu. Esse exercício o nos possibilita
simplesmente ultrapassar a troca de idéias, nos possibilita reflexões mais amplas sobre
nós mesmos e sobre os homens em interação como o mundo. É através do diálogo, às
vezes mais densos e tensos às vezes mais amenos e tranqüilos, que encontramos
caminhos para solucionar problemas, negociar possibilidades, planejar o que desejamos
fazer.
No ano de 2006 usamos os livros didáticos que ainda estavam disponíveis na
escola. Para melhor situar o leitor se faz necessário esclarecer que a adoção de livros se
de três em três anos, portanto, no terceiro ano é natural que tenhamos menos
exemplares disponíveis para o uso das crianças. Percebi esse fato logo nos primeiros dias
quando, nós professoras, saímos a cata dos livros didáticos e verificamos que haviam
poucos títulos. Era preciso que fizéssemos um rodízio para atender todas as turmas.
Pouco tempo depois, eu os havia abandonado e saí em busca de outros materiais,
outras possibilidades.
No inicio do segundo semestre fomos surpreendidas com uma quantidade enorme
de livros para consultarmos e fazermos as escolhas, que no ano seguinte uma nova
remessa seria comprada. Foi o desfolhar de tantos livros - uns com propostas mais ricas e
inteligentes outros menos, uns mais coloridos e outros menos - que me fez reavaliar os
conteúdos trabalhados até então, embora estivéssemos afinados com o que os livros
propunham, trilhamos caminhos diversos.
Dias depois, fui tomada por uma crise de ser professora numa versão tradicional,
e cumpri com as minhas “obrigações”. Senti-me um tanto ameaçada pela possibilidade
de não estar “cumprindo” o programa convencionalmente e as crianças no ano seguinte
serem “exigidas” a realizar as atividades a partir dos modelos mais convencionais,
principalmente, aqueles apresentados nos livros didáticos. Os conteúdos eram verbos,
classificação das palavras quanto a gênero e número de sílabas e etc... Embora
tivéssemos feito atividades diversas, envolvendo essas questões, selecionei uma gama de
outras.
O fato de estarmos no segundo semestre me fez sentir uma espécie de obrigação
de “prepará-los” para o ano seguinte. Mais uma vez a presença da coordenadora da
escola particular que convive com a idéia do ensino preparatório, baseado nas hipóteses,
habilidades e competências, numa visão conteudista, tão em voga ultimamente, toma
conta de mim.
O exercício de treinamento avançava parte do terceiro dia de massacre. Ritual
cotidianamente repetido: cópia do quadro, execução das tarefas, correção e tudo
novamente. Embora estivesse achando cansativo, permaneci acreditando que a minha
intuição estava certa, até que Juliene da sua carteira disse:
Poxa tia, essas aulas estão ficando tão chatas!
Imediatamente da minha mesa respondi:
Também acho!
A minha resposta foi o suficiente para suscitar neles um desabafo coletivo.
Juliene me faz um convite a revisitar as minhas convicções, já não tão convictas assim, e
pôr em prática o que Freire (1987, p.84). aponta: A educação autêntica, repitamos, não
se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Dar
significado ao conteúdo programático: eis um desafio para nós professores. A
participação das crianças me ajuda a compreender que nem sempre o que elaboro é o
melhor para elas e que as minhas/nossas crenças ou descrenças nem sempre tem
fundamento.
Decidimos terminar o que estava proposto no quadro e fazer outra atividade. A
liberdade para o diálogo é importante para que se possa confirmar o que algumas vezes
praticamos em relação à organização e aplicação dos conteúdos... As nossas aulas
transcorrem caminhos de idas e vindas, os meus fazeres nem sempre obedecem aos meus
saberes, porque são resultados, também, das minhas descobertas.
A prática escolar quando inclusiva deve considerar os sujeitos que vão se
constituindo historicamente, a criança ao participar da construção do mundo sente-se
sujeito em potencial. As crianças denunciaram como o meu fazer está impregnado da
educação bancária. O meu discurso dialógico, problematizador, em prol de uma prática
libertadora é sucumbido pela imposição típica de uma educação pronta, imposta ao
outro. Embora reconheça que não sou a “dona” do saber e que, portanto é importante
rever a centralidade em mim mesma abrindo a oportunidade para a construção coletiva, a
versão treinamento técnico impregna, ainda, o meu fazer.
Duvidei do potencial das crianças julgando-os incapaz de cumprir ou de se
“enquadrar” a um modelo mais convencional, provaram as suas capacidades e embora
não desejem aquele modelo são capazes de sobreviver a ele. Penso, ainda, o quanto julgo
os meus pares. Quando exponho as crianças ao treino é como se acreditasse que todas as
professoras seguissem o mesmo caminho: convencional e endurecido por práticas pouco
significativas. Ao tomar a prática hegemônica como modelo de educação escolar,
contraditoriamente, esqueço, nego e com minha atitude ajudo a silenciar outras práticas,
ações alternativas, como lembra Boaventura Santos (2000), tão necessárias à ruptura do
conhecimento regulação.
Boaventura me ajuda a compreender esta minha ambivalência, quando nos fala da
íntima ligação do conhecimento regulação com o conhecimento emancipação. Embora
ambos tenham sido gestados pela modernidade, a opção pelo conhecimento regulação
prevalece na sociedade e na escola. As ações alternativas são necessárias à emergência e
consolidação do conhecimento emancipação.
A experiência vivida com as crianças me ensina sobre a ambivalência de minha
própria prática e sobre minha condição de pesquisadora. Formada sob a égide do
paradigma da regulação trago em mim verdades cristalizadas que de um modo geral
atribuo ao outro. Imagino que as professoras do quinto ano exigem que as crianças
copiem do quadro de forma organizada, dominem determinados conteúdos e acima de
tudo estejam adequadas a um modelo de aula (e de prática docente) universalizado pelo
discurso legitimado na prática cotidiana.
Como professora comprometida com o sucesso de meus alunos, resolvo
estabelecer um treinamento de comportamentos. E agora, onde estão minhas crenças em
outro modelo de escola, em outra forma de organização da sala de aula, do conhecimento
e do espaço-tempo da escola? A prática emergente, frágil aposta na produção de um
conhecimento emancipação no cotidiano da escola, sucumbe ao peso da tradição
pedagógica do conhecimento regulação.
As crianças me ensinam a ensinar e a pesquisar, é com a ajuda das crianças que
tenho conseguido compreender que a crise de compreensão é minha (parodiando José de
Souza Martins). São elas que apontam minhas próprias contradições e ambivalências, são
elas que me ajudam a exercitar na prática da pesquisa a flexibilidade do meu próprio
fazer.
4.8 Bruno
A aparente dificuldade de escrita de Bruno, uma criança do segundo ciclo
considerada até então um aluno NEE (Necessidades Educacionais Especiais), deixa de
ser um problema maior quando entendo, por exemplo, que esse saber instituinte não pode
se contrapor às experiências plenas trazidas pelo próprio Bruno e que ressignificam o seu
saber. Uso a expressão, experiências plenas, por serem vividas intensamente e não de
forma superficial, como nos chama atenção Walter Benjamim (1994) em experiência e
pobreza.
Bruno ao contrário do que a sua ficha de avaliação escolar dizia, era uma criança
sábia, muito interessada e extremamente participativa. Os seus depoimentos eram sempre
enriquecedores e as experiências vividas em seu núcleo familiar eram sempre muito bem
vindas as nossas aulas, pois eram ilustrativas e davam sentido aos conteúdos abordados.
Como pode um aluno, com tamanha capacidade de organização intelectual dos seus
saberes, ser considerado portador de necessidades especiais? Será que o fato de aglutinar
palavras, omitir e misturar diferentes tipos de letras é o suficiente para enquadrarmos o
sujeito como incapaz?
Viver esse dilema com o Bruno foi uma das situações que me colocou frente a
frente com os problemas cotidianos, percebia a sua condição intelectual e desconfiava da
avaliação que lhe foi feita. Para Sacristán
Os dilemas são pontos significativos de "tensão" frente aos quais é
preciso optar e frente aos quais de fato sempre se toma alguma opção
quando se realiza algum tipo de prática, ou quando se planeja o
próprio ensino, de modo que a opção ou direção tomada configura um
modelo ou estilo educativo peculiar (1998,p.190)
Por ser o meu primeiro ano naquela escola não conseguia compreender os
critérios que foram estabelecidos, no ano anterior, para aquela avaliação. Quando
manifestei para a Orientadora Educacional a minha surpresa diante do caso, nenhuma
resposta foi dada no sentido de esclarecer que critérios usaram para a avaliação, nada foi
feito por parte daquele serviço para reverter o quadro, Bruno continuava a freqüentar
aquela sala.
Por outro lado, a professora da sala de alunos especiais insistia em afirmar para
mim que o Bruno era especial porque era muito agitado e a sua letra e organização no
caderno não correspondiam ao esperado. E o que o Bruno correspondia para mais, o que
sabia além do que esperávamos não fazia parte das regras do jogo?
Dias depois de externar as minhas dúvidas, a professora da sala de alunos
especiais saiu de licença prêmio, Bruno não freqüentaria aquele ambiente por alguns
meses já que não havia substituta para a professora. As minhas inquietações para com o
Bruno aumentavam, neste mesmo período fomos fazer um passeio pela cidade de Niterói
e ele se destacava:
Tia olha! Seguindo essa avenida vai dar no trabalho do meu pai, ele trabalha
na Águas de Niterói.
Aquele prédio ali é o Niterói Shopping, é ali o meu dentista.
Sabe tia, eu tenho plano de saúde do trabalho do meu pai.
Esse bairro aqui é São Lourenço...
Tia presta atenção, se subir aquela rua... Olha tia! Vai dar na casa do meu tio,
aqui é São Lourenço, mas descendo por ali vai dar no Fonseca...
Frases como essas eram naturalmente ditas pelo Bruno, interferia nas
colocações dos demais colegas informando o que julgava não estar sendo colocado
corretamente, e sempre tinha razão. Curiosamente perguntei:
Bruno, você conhece todos os lugares praticamente. Quem te ensinou?
Eu venho no trabalho do meu pai e no dentista com a minha mãe e fico
perguntando pra ela. E no sábado e domingo, às vezes, eu saio com meu pai e ele vai me
falando o nome dos lugares.
Como pode uma criança que demonstra interesse por tudo e apreende com
tanto atributo ser portadora de alguma necessidade especial? Que saberes traz o Bruno
que não interessam a escola?
Quando aprendemos a multiplicação por dois números, abri uma conversa para
que pensássemos por que haveríamos de multiplicar por dois números, entre uma ou
outra colocação fiz a seguinte:
Se uma empregada doméstica desejar saber o quanto ela vai receber ao final
de um ano, ela precisará fazer uma conta, que conta será essa? Como ela vai fazer para
descobrir?
Bruno sem pestanejar responde:
Coloca aí tia 369,00 x 12...
Por que você optou por estes números? Perguntei
Porque é o salário dela que você vai ter que multiplicar por 12, porque são 12
meses.
Tem certeza Bruno que o salário é esse? Perguntei intrigada diante da sua
resposta tão confiante, que eu mesma chegaria próximo, pois desconhecia o valor
exato.
Pode colocar aí tia, está certo.
Claro que fizemos o cálculo, afinal a exatidão do valor do salário mínimo não era
o que mais importava ali, mas as certezas do Bruno sempre me chamavam a atenção.
Além de saber o valor, pois fui à busca de informação e estava corretíssimo, sabia a
lógica da operação para chegar ao cálculo sem demonstrar dificuldade. E essa criança
ainda é “rotulada”, “fichada” de portadora de necessidades educacionais especiais?
Quando Bruno se viu valorizado nas contribuições que trazia para o grupo e
estava confiante e participativo o provoquei. Com ar sério e demonstrando não estar
gostando da sua letra e organização no caderno, fui “dura”, dirigi-me a ele diretamente e
o desafiei:
Olha só Bruno a partir de hoje vamos parar com essa “brincadeirinha”, quero
que escreva de forma que eu possa entender.
Sabia que tinha sido muito rigorosa e o meu semblante, provavelmente,
não esboçou nenhuma dúvida de que estava zangada. Por alguns minutos fiquei na
expectativa e pensei comigo mesma: ou ele vai chorar e eu vou ter que voltar atrás e me
desculpar ou vai mudar o seu jeito de escrever. Permaneci na minha mesa
disfarçadamente, arrumando algumas coisas e esperando o momento de ir até ele
justificar, sem muita justificativa, a minha atitude ríspida. Minutos se passaram e nada,
indiretamente cheguei até a sua mesa e constatei o que muito desconfiara, Bruno
conseguia escrever muito melhor do que apresentava até então.
Ainda refletindo sobre o caso de Bruno entendo que foi de fundamental
importância tecer os fios da escuta sensível, com os fios da minha experiência
profissional. Ainda sob um forte desejo de compreender porque optamos por fazer
algumas coisas e não ouras, porque não nos aquietamos diante de algumas situações,
porque temos algumas atitudes e não outras é que me pergunto: Que impulso é esse?
Sacristán incomodado com os rumos das pesquisas que investigam as professoras
fazem uma alerta sobre a algumas metáforas criadas por aqueles que elaboram o
discurso da educação e não por aqueles que trabalham as práticas em educação.
Reconheço a importância de registrarmos as nossas práticas atentando para o nosso
próprio fazer.
Caminhando a partir do pensamento o mesmo autor, vou procurando
compreender as questões sobre a minha prática. Tomar como minha, a situação do Bruno
é de certa forma buscar encontrar possibilidades de ajudá-lo a sair daquela condição.
Gimeno Sacristán afirma que
[...] o pensamento não explica a ação, o pensamento é parte da ação,
mas não é toda ação. A idéia de que apenas pensamos quando agimos
é uma característica do racionalismo ocidental, do cientificismo e do
positivismo científico. Mas o pensamento não se reduz a ação. Os
professores, por mais que pareça estranho, são pessoas que sentem e
querem... não só pensam.(2002, 85)
Entendo que o meu pensamento não estava restrito a uma ação imprudente e
racional, estava carregada de um sentimento de bem querer, desejava ver o Bruno sair
daquela condição de restrição da sua própria escrita. Esse movimento possibilitou trazer
quem estava, até então, a sombra da aprendizagem para a luz dos acontecimentos.
Desconfio que o Bruno apesar das dificuldades na escrita, que não podem ser negadas,
usava escrever daquela forma, pois era a condição necessária para continuar intitulado
como criança especial e ter o direito de freqüentar a sala de crianças especiais.
A sala era, para ele, prazerosa que nela haviam muitos jogos e a liberdade de
usá-los com outros companheiros. Em contrapartida, enquanto se ausentava da sala de
aula para esse novo ambiente, os seus colegas de classe estavam produzindo algo e de
certo fazendo registros escritos, uma atividade que sem sombra de dúvidas para ele era
complexa. Assim, era para Bruno conveniente freqüentar a sala de crianças NEE
(Necessidades Educacionais Especiais)
Tomando a experiência como algo que ao nos tocar, nos marca tão
profundamente e acaba por nos transformar mesmo que não percebamos, entendo que ao
conseguir desconfiar do meu olhar em relação à escrita e as produções do Bruno me
transformo. Viver esse conflito com o Bruno, me faz pensar no quanto essa experiência
amplia o universo da minha prática de professora, me mostrando a importância de
desconfiar atentamente das crianças no que diz respeito ao que afirmam sobre o que elas
não sabem. Que aprendizagens trazem consigo que nem sempre são contempladas nos
programas de conteúdos da escola, mas que apontam saberes que extrapolam o saber
instituído?
Ao tentarmos compreender as práticas exercidas no ambiente escolar, percebemos
a importância da professora desenvolver uma escuta sensível, ouvir a criança nas suas
mais diferentes manifestações de linguagem. Essa reflexão nos leva ao encontro das
experiências plenas que se manifesta no contexto de um grupo, na interação da sala de
aula.
Como definir o conceito de experiência? Esta reflexão nos leva ao encontro das
contribuições de Walter Benjamin (1985), contribuições que apontam para o sentido das
experiências plenas”, que se traduzem por uma tessitura coletiva e pela a possibilidade
de abertura polifônica.
4.9 João Paulo
Entre uma conversa e outra as caças mostram-se curiosas indagam sobre o meu
trabalho à tarde. Desejam saber o que eu faço, onde esta localizada a outra escola, e
tantas outras questões. Eu também tenho muita curiosidade sobre a vida deles! O que
fazem nos finais de semana, onde costumavam ir, com quem moram, onde brincam...
A minha formação cartesiana me faz recorrer a diferentes materiais que
possam dar suporte as minhas práticas em sala de aula. Assim, além de diferentes livros
de diferentes autores, da busca na internet de propostas diversificadas, da troca de
experiências com outras colegas, carrego os cadernos do meu filho que no ano anterior
cursara a 3 ª série do ensino fundamental. Esses recursos são os parâmetros que utilizo
para pensar as aulas, para fazer os meus planejamentos.
Uma das vezes que recorria a diferentes materiais, João Paulo pegou o
caderno que estava sobre a minha mesa e o pede emprestado. Desfolha curiosamente e
da sua carteira pergunta:
Tia de quem é esse caderno?
Do meu filho. Respondo.
Ele estuda em que escola?
Na escola que eu trabalho à tarde.
É uma escola particular, não é?
Sim.
Surpreendentemente ele me pergunta:
Lá tem prova?
Sim lá tem prova.
Desejam saber como fazem a prova, conto que algumas vezes marcamos
uma data e outras vezes a prova ésurpresa”, a professora inesperadamente entrega aos
alunos um exercício para ser realizada sem consulta. O clima é de euforia, muitas
curiosidades até que o Jean perguntou?
Por que a gente não faz prova também?
Expliquei que a prova não é a única maneira que tenho de avaliá-los. O
meu discurso é tomado por uma seqüência de perguntas curiosas e denuncias:
A gente não faz prova porque todo mundo passa mesmo. Explicou
Pollyana.
É, mas se no quinto ano não souber nada é reprovado... Continua
Juliene.
Vocês querem fazer prova? Perguntei
A sala foi tomada por um mistério, medo, expectativa e euforia. Um clima
animado invadiu o ambiente e propus.
Então, qualquer dia fazemos uma prova, combinado?
Combinado! Um coro de olhos arregalados se fez presente.
Daí em diante o clima era de expectativa e atenção redobrada, a cada final
da aula sempre um deles perguntava:
Quando nós vamos fazer a prova?
Aproximei a conversa com a Orientadora Educacional, que me informou
não ser proibido, mas também não era prática comum. Achei melhor optar pelo modelo
“surpresa”.
No dia da prova provoquei o ritual de uma atrás do outro e cada criança
fez a sua. Assumiram o fazer como uma possibilidade de demonstrar o conhecimento que
construíram até então. Os dias consecutivos estavam marcados por outras questões:
Já corrigiu?
Qual foi a minha nota?
Tia eu errei muita coisa?
Quando eu vou levar a minha prova para casa?
Essas perguntas me fazem refletir sobre o que está instituído, numa
sociedade de classes como marco da possibilidade de ascensão social. Se é a prova que
possibilita o ingresso através do vestibular ou a um concurso público, ela é marca de uma
possibilidade de ascensão, possibilidade esta ocupada principalmente pelas classes
privilegiadas da nossa sociedade. Essa lição é facilmente aprendida pelas crianças, e
precocemente descobrem as demarcações de uma educação dual que atende
diferenciadamente crianças de classes sociais diferentes.
É obvio que a prova em si não é o único instrumento que demarca a
diferença, nem tampouco é através desse instrumento que se vai garantir a escola de
qualidade. Mas ela delimita as diferentes formas de exclusão das escolas brasileiras e
talvez, por isso, tenha se tornado tão significativa para aquele grupo de crianças.
Especular sobre a prova, “reivindicar” fazer a prova, exigir” o resultado da prova. Um
ato político? A reinvenção da própria escola?
São elas, as crianças, que forjam outra escola, dentro da própria escola.
São elas que denunciam que uma escola em que a qualidade é simbolicamente
marcada por um signo: a prova. E nessas escolas eles não estão e dessas escolas eles não
fazem parte. Se rituais cultivados numa sociedade de classes, a prova é um ritual que
marca as nossas escolas.
Aprendemos com o outro quando aprendemos a ouvir o outro, as crianças
não especulam sobre a prova sem nenhum motivo, sabem o que ela representa e desejam
a ascensão. Entendem que o “sucesso” nas provas, lhes possibilitará alcançar um mundo
melhor.
Após corrigir as provas as devolvi e fizemos juntos uma auto-correção.
Participaram seriamente desse processo, envolveram-se desejando saber o que erraram,
corrigiram os erros e depois levaram para casa. O ritual foi cumprido também por eles, o
envelope com as provas e outras atividades realizadas foram levados para casa, ninguém
esqueceu na escola, não encontrei um só envelope deixado para trás.
Ler o cotidiano não é uma tarefa fácil. Compreender as armadilhas em que
ele nos coloca também é uma tarefa difícil, exercício que requer certa ousadia e constante
prudência. Trazer essas questões para uma reflexão fundamentada com alguns autores me
possibilita compreender não as crianças, como a escola e o meu trabalho na interação
dessa rede de fios tecidos cotidianamente. A pesquisa vem revelando questões
importantes em relação à escola, as crianças e adultos envolvidos nesse processo. Ainda
que não tenha a perspectiva de conclusão pode revelar outras possibilidades de pensar a
escola.
***
5.0 Ryan
De fato conversávamos muito e era comum enquanto copiavam do quadro
ou resolviam as questões a conversa acontecer no paralelo, o que muitas vezes contribuiu
para que as aulas ficassem mais prazerosas. Porém, não era sempre que a tranqüilidade
imperava em nossa sala de aula, tínhamos nossos embates e estranhamentos. aqueles
dias em que não estamos bem e parece que nenhuma história é cabível, nenhuma
brincadeira ou piadinha é bem acolhida. Acho que aprendemos a nos conhecer e
costumávamos ser respeitosos uns com os outros nos nossos dias nebulosos.
Em um desses dias, porém, chegamos ao nosso limite final: eu e o Ryan.
Não me recordo exatamente como tudo aconteceu, mas lembro que estava exausta e
bastante agitada naquele dia. Esse acontecimento mais me marcou profundamente. Hoje
penso que marcas podem ter deixado em Ryan?
Antes do sinal de saída as crianças estavam em fila no corredor preparadas
para descer, prática comum naquela escola e necessária já que as escadas oferecem certo
risco e em geral descem correndo, brincando e empurrando uns aos outros. Nesse meio
tempo em que organizo a forma, retorno à sala por algum motivo e encontro o lixo todo
espalhado pelo chão, volto furiosa ao encontro da turma. Os meninos apontam o Ryan
como o executor. Sem hesitar determino que junte todo o lixo. Ryan gritando e chorando
diz:
Eu não vou catar! Não foi só eu!
Grito mais alto que ele exigindo que o faça. No mesmo instante outros se
aproximam oferecendo ajuda sem pedir permissão, um gesto de socorro ao amigo. O lixo
é catado. Eu e o Ryan saímos furiosos, quase um lixo também. Ryan é um menino alto,
magro e de mais idade que os demais. Pela sua altura destacava-se na turma, havia ficado
retido em alguma etapa anterior e a sua irmã mais nova o acompanhou na escolaridade e
estudava na mesma sala. Crio hipóteses sobre o que incomoda o Ryan e imagino que a
junção desses fatos deve lhe causar algum mal estar.
Ryan chora por qualquer motivo, assim como respostas manifestando certa
hostilidade. O menino me incomodava com as suas respostas agressivas e com o seu jeito
de não assumir as suas atitudes. Eu de certo deveria lhe incomodar por tantas outras
coisas que não consigo perceber. Naquele dia enfim, chegamos ao nosso limite. No dia
seguinte ele chegou cabisbaixo e eu não sabia bem como fazer para me aproximar. No
meio da manhã sentei ao seu lado e disse-lhe:
Fiquei chateada com o que ocorreu ontem.
Ele nada falou, continuando de cabeça baixa sem que pudesse ver os seus
olhos.
Quer conversar sobre o que ocorreu ontem?
Fazendo sinal com a cabeça respondeu que não. Ainda assim, disse que ficava
chateada com o jeito que se dirigia a mim quando por qualquer motivo me respondia
agressivamente. Ele continuou calado. Disse que embora não desejasse conversar eu o
queria bem. O silêncio de Ryan falava, negociava comigo uma mudança na minha
postura para que ele pudesse mudar também.
Durante o nosso desentendimento, zangado, ele me acusou de só chamar a
sua atenção e não advertir as demais crianças, de tê-lo sempre como culpado. Será que de
fato sou mais exigente com ele? Será que não sou indiferente às questões do Ryan? Que
histórias traziam aquela criança que não conseguia ouvir? O silenciar de Ryan me
obrigava a refletir sobre minhas atitudes para com ele, se por um lado não encontro
respostas para o seu jeito de lidar comigo, por outro me ponho a perseguir as minhas
atitudes para com ele.
O enfrentamento que vivemos tomou a dimensão de um conflito, pois
fugiu a racionalização didática. Para Benjamin(2002) o ensino moral perde a sua
importância quando é generalizado e teorizado, segundo o mesmo autor “...a influência
moral é assunto inteiramente pessoal, que se furta a toda esquematização e
normatização...” Nesse caso, possivelmente, exercitamos a ética quando Ryan silencia e
eu o procuro, problematizamos como podíamos e não naturalizamos o vivido.
Era inconcebível negar o Ryan. Percorria caminhos fundados na produção
de um conhecimento emancipação. Conhecimento este, fundado na solidariedade, no
dizer de Boaventura Santos (2000), que me levasse às práticas emancipatórias,
potencializadoras da libertação e inibidoras da opressão, no dizer de Freire (1987).
Contudo, foi o embate com o Ryan que me fez perceber o quanto a regulação na qual
fomos formadas está presente em nossa prática cotidiana, o quanto o modelo regulardor
está impregnado em nosso fazer.
Ao rememorar esta experiência, começo a me dar conta da lacuna
existente entre o que quero ser e o que sou de fato. Ryan me ajuda a compreender
teoricamente o meu fazer e me faz ver o quanto é ingênuo pensar que só o nosso desejo é
suficiente para mudar o nosso procedimento diante da vida, no seu ímpeto de raiva
provoca em mim a escuta sensível de mim mesma: a gestação da prática vivida e não
simplesmente idealizada, a vigilância do meu fazer. As experiências e
histórias de vida das crianças são pouco ou quase nada compartilhadas dentro da escola.
Dias depois a mãe do Ryan apareceu na escola e conversamos sobre ele. Comentei sobre
o seu comportamento às vezes agressivo e a dificuldade que percebo nele de verbalizar o
que sente ou negociar o que deseja, usando o choro freqüentemente.
A mãe disse que especialmente naqueles dias ele estava muito tenso, pois
iria à delegacia prestar depoimentos. Segundo ela no ano anterior o pai de outra criança
havia invadido a escola e agredido o Ryan, por causa de brigas entre as crianças. O caso
foi sério e ele precisou fazer corpo de delito, além de prestar depoimentos. Por um
período foi assistido por uma psicóloga, mas atualmente estava sem acompanhamento.
Não sei se este acontecimento por si só, explica as atitudes e
comportamentos de Ryan, no entanto não se encaixa de maneira alguma nas minhas
hipóteses anteriores. Surpreendo-me pelo fato de um acontecimento desta ordem de
gravidade não ter chegado ao meu conhecimento. Procurei me informar e a Orientadora
que afirmou ter acontecido o fato. Não me foram apresentados registros do fato, nem de
forma oral nem através de alguma ficha informativa sobre a vida escolar da criança de
nenhuma criança. Onde está o nosso comprometimento com as crianças, com nossos
alunos? Onde está a nossa ética profissional?
Quantas questões não estão veladas nesse acontecimento, afinal uma
criança é agredida dentro da própria escola. Óbvio que o fato não aconteceu por descuido
ou indiferença da escola, mas a escola é responsável pela integridade moral e física da
criança naquele momento. O que guarda o silêncio da escola quando omite a história do
Ryan? Que negociações foram feitas? Quem se beneficia com estes combinados? Com
este silêncio? Com esta omissão? Basta colocar um portão interior para impedir o acesso
imediato de indesejáveis? Quem são os indesejáveis na escola?
Discutimos na escola os comportamentos das crianças, suas atitudes que
nos agridem no plano moral ou físico. na nossa sociedade diferentes casos, relatados
sobre as agressões das crianças aos profissionais da escola, nos assustamos com tamanha
violência. Será que os casos onde as crianças são vítimas na escola ressoam na
sociedade?
Compreender a escola a partir das crianças é compreender como se
operam cotidianamente as relações, criança/escola, criança/professoras. Em geral as
práticas falam das crianças: agressivas, debochadas, desatentas, dissimuladas,
“ajustadas”, “desajustadas”, etc. A criança é falada na escola é apontada pela escola
quando interessa a escola. Mas essa criança também é calada na escola, há discursos que
falam e há discursos que calam.
A escola providenciou uma grade após o acontecimento para dificultar um
pouco mais o acesso das pessoas a sala de aula. Será essa a questão? Será que
protegemos os nossos alunos quando colocamos uma grade de ferro e evitamos que tais
discussões venham à tona. Situações como essa, revelam o nosso não saber coletivo. No
entanto segredos e omissões não nos ajudam a produzir um conhecimento capaz de nos
possibilitar enfrentar com propriedade tais situações. O silêncio é uma forma de
opressão. Desvelar segredos, circular histórias, narrar o cotidiano podem traduzir formas
de luta contra a opressão, podem ser instrumentos de denúncia de um presente intolerável
que anuncia um futuro mais ético, como nos lembra Freire (2000).
Como professora não posso abrir mão de conduzir o processo de lutar por
essas crianças (meus/minhas alunos/as), não posso abrir mão da esperança e da crença de
que a escola pode fazer diferença em suas vidas. Mas o que é a escola para o Ryan? Será
que a escola está preocupada com a escola que ela é para o Ryan?
CAPÍTULO V
NOMES E LUGARES
Todas as coisas e lugares têm nome, mas nem sempre nos damos conta do
significado dos nomes e a relação que eles possam ter com a nossa vida. Usamos e
reproduzimo-os e nem sempre questionamos a sua origem ou até mesmo o quanto é
representativo no contexto social. Estávamos em abril quando uma das vezes
em que escrevi o cabeçalho no quadro para as crianças copiarem, prática que reproduzo
por está constituída naquele espaço e que não foi por mim questionada e nem tão
pouco refletida sobre o real valor, perguntei aos alunos:
Quem foi Diógenes Ribeiro de Mendonça?
Não souberam responder nem mesmo tinham alguma pista de quem poderia ser
ou o porquê do seu nome está ali.
Foi motivado por este fio de pensamento, camuflado em mim mesma, que
dias depois voltei ao assunto, porém deixando clara a minha curiosidade e estimulando a
deles. Uma criança sugeriu que conversássemos com a diretora, achei ótima a idéia. Era o
indício de que aquilo que discutiam e refletiam se materializava nas soluções buscadas a
cada problema surgido. Sugeri que enviássemos um bilhete convidando-a a vir a nossa
sala. Neste momento a Orientadora Educacional chegou para nos dar um recado e
imediatamente começaram a interrogá-la.
Viviane sabia pouco, mas foi o suficiente para que suscitasse algumas
questões, uma delas, era que segundo as informações que tinha a respeito do Diógenes,
ele não era uma pessoa bem vista pela Associação de Moradores. Assim surgiu a idéia de
convidar o presidente da Associação de Moradores para uma conversa sobre o assunto.
Neste mesmo dia a tarefa de casa foi elaborar um bilhete convidando o presidente da
Associação de Moradores para vir nos visitar.
Estava lançada a proposta e fiquei na expectativa de saber como se
desdobraria, tendo em vista que a atividade poderia suscitar a participação de vozes
familiares. Não faço da tarefa de casa uma “camisa de força”, mas instituí no nosso
trabalho diário algo que tenha continuidade no lar, o que efetivamente vem dando certo.
De modo geral eles assumiram essa responsabilidade e diariamente me cobram o
desfecho deste trabalho com questões do tipo:
Tia, vai corrigir a tarefa de casa?
Tia, não entendi por isso não fiz...
Lampejos de conhecimentos vão aos poucos se materializando e no dia
seguinte perguntei se haviam feito à tarefa e quem gostaria de ler para todos. Muitos
fizeram, alguns desejaram ler, outros não. Alguns preferem ler para mim, não gostam
de se expor, outros preferem que eu leia para todos. Foi assim que pouco a pouco fui me
aproximando de suas construções e para minha surpresa o João
Paulo escreveu da seguinte forma. Penso nos significados que
as crianças atribuem às coisas. Como fazer para compreender a importância dada por
João aquela atividade? Minha emoção ao ouvir a leitura da carta do João foi à emoção de
todos, as crianças vibraram com o amigo. Não hesitaram em decidir que seria a carta-
convite enviada a Associação de Moradores. O conhecimento não é fruto somente da
razão em si, João exterioriza o envolvimento na emoção que se fez presente ao realizar a
sua atividade em casa.
O texto de João pode provocar em nós professoras uma necessidade de revisão,
visto que contém “erros” aos olhos da formação que recebemos. Entretanto, procurei dar
mais atenção a perspectiva de valorização da produção das crianças do que os erros,
propriamente ditos. De qualquer forma os erros ortográficos do João não desqualificaram
a sua produção e é essa a idéia que tenho tentado transmitir a todos.
Procuro interferir pouco nas produções, evito corrigí-las apontando os
erros e dentro do possível, procuro enfatizar os pontos positivos. Algumas vezes os
chamo a minha mesa e corrigem ali mesmo. De vez em quando escolho um texto para
que possamos fazer a “limpeza”, corrigindo-o no coletivo. Foi assim que aconteceu com
o texto do João, digitei, exatamente como o fez, e em seguida distribuí para todos. Fiz
uma cópia impressa em transparência e começamos à correção, íamos lendo na
transparência e eu reescrevia no quadro fazendo os acertos que juntos entendíamos ser
necessário, do mesmo modo eles transcreviam para o seu caderno. Em seus cadernos
ficou registrado o texto do João digitado e impresso, exatamente como o escreveu, e a
cópia que fizeram do texto corrigido, cópia esta que seria também enviada à Associação
de Moradores. Em geral gostam deste tipo de atividade e, longe do que possa parecer, o
texto em evidência não tem sido motivo de chacota, ao contrário, exercem esta atividade
com muita maturidade e respeito.
Em suas casas as pessoas pouco ou nada sabiam sobre a vida do patrono da escola
Diógenes Ribeiro de Mendonça. Juliene chegou com uma novidade:
Tia, minha mãe disse que a filha de Diógenes é professora e leciona em uma
escola próxima a nossa...
Figura 2, Carta de João Paulo
Enquanto conversávamos sobre o assunto alguém colocou a seguinte questão:
Será que a filha dele também acha que ele era ladrão?
Estava posto o problema, embora a Viviane não tenha dito que o Diógenes era
“ladrão” ao usar a expressão não era bem visto foi o suficiente para que uma das crianças
levantasse suspeita sobre a sua integridade.
No espaço social é comum a leitura do que não é bem visto com o que não é bom,
logo ser ladrão foi uma questão de associação e não de certeza, sobre a índole do
Diógenes Ribeiro de Mendonça. Aproveitei a oportunidade e comecei a articular
algumas questões, como não tínhamos respostas, optamos por tentar um contato não
com a Associação, mas, também, com a filha dele. Por este caminho começamos a
trilhar, mas confesso: não foi fácil!
Ao mesmo tempo em que a curiosidade batia a nossa porta ou que nós
batíamos a porta dela, participei de uma reunião de planejamento com as demais
professoras do 4º ano e havíamos combinado trabalhar a história do município de Niterói.
Durante a reunião deveríamos fazer a opção pelo conteúdo que trabalharíamos com as
crianças. Havia uma relação de conteúdos organizado em documento pela FME a serem
seguidos, em cada etapa do ciclo. A orientação era para que tentássemos trabalhar os
mesmos assuntos, ao mesmo tempo, em todas as turmas de cada etapa do ciclo.
Apesar de saber que deveria começar a trabalhar com o conteúdo sobre o
município, algumas indagações se tornaram presentes: Como poderia estudar o
município sem saber, antes de tudo, que história traz esse homem cujo nome a nossa
escola recebeu? Como falar do município sem antes falar do bairro, da escola e da sua
própria comunidade?
O estudo de geografia que se propõe no ensino fundamental na maioria das vezes
obedece à lógica do
...estudo do meio considerando que se deve partir do próprio sujeito,
estudando a criança particularmente, a sua vida, a sua família, a
escola, a rua, o bairro, a cidade, e, assim, ir sucessivamente
ampliando, espacialmente, aquilo que é o conteúdo a ser trabalhado.
São os Círculos Concêntricos, que se sucedem numa seqüência linear,
do mais simples e próximo ao mais distante. Na realidade, esse
procedimento constitui mais um problema do que uma solução, pois o
mundo é extremamente complexo e, em sua dinamicidade, não acolhe
os sujeitos em círculos que se ampliam sucessivamente do mais
próximo para o mais distante. (CALLAI, 2005, p.230)
De fato, o que menos importava naquele momento, para aquele grupo, era
abordar o estudo da geografia e história da cidade de Niterói. Havia aspectos
significativos que despertava a curiosidade das crianças; uma geografia existencial que
nascia do desejo das crianças de entenderem o espaço em que vivem.
Desejavam ir em busca de mais informações, o que os documentos da
escola informavam, não era o suficiente para entender o problema que estava posto. Por
outro lado, o meu referencial com a comunidade, a minha leitura do bairro era
superficial, não conhecia aquele espaço. Para Certeau (1996, p. 43) “...a prática do
bairro é desde a infância uma técnica do reconhecimento do espaço enquanto social [...]
o bairro se atesta na história do sujeito...” O bairro de Maria Paula guardava a história
do homem Diógenes, assim como participa da história de vida das crianças que estão a
“caça” das histórias escondida na memória do bairro. Na tentativa de suprir parte da
minha limitação sugeri que desenhassem o percurso que fazem casa/escola. O impasse se
criou:
- Tia eu não sei fazer mapa...
- Tia eu acho que eu não vou conseguir...
- Tia, é muito difícil...
Insisti na idéia do desenho cartográfico. Naquele momento não havia me
dado conta da complexidade que existe no exercício de representação do espaço. O que
fazer diante da resistência? Como fazer quando a nossa proposta está além da perspectiva
das crianças? Recuar? Persistir?
A aula representa um desafio constante quando provoca a aprendizagem não
das crianças, mas também das professoras. Propor um exercício de desenhar um mapa, na
minha concepção era algo simples. Era o olhar do adulto que aprendeu ao longo da sua
trajetória de vida, a decodificar signos, legendas, traçados que compõem a representação
cartográfica.
Equivocamo-nos porque, na condição de adultos, desenvolvermos a capacidade
de solucionar uma situação mais complexa sem a intervenção do outro e assim
imaginamos a criança. Essas questões são importantes para que possamos observar em
que nível de desenvolvimento a criança está e qual será a nossa contribuição no processo
de construção da aprendizagem.
Segundo Vygotsky
24
(1987) quando a criança soluciona algo sozinha, usando dos
conhecimentos que trás na interação com a vida, opera no nível do desenvolvimento real,
mas para que consiga atingir outras etapas de desenvolvimento a interação com outros
adultos ou outras crianças é determinante.
Neste caso, situações aparentemente banais, nas práticas de sala de aula, podem
implicar no insucesso das crianças se as professoras ignoram a importância da ZDP
(Zona de Desenvolvimento Potencial). Muitas vezes não nos damos conta de que a
criança vivendo a fase de desenvolvimento potencial, (VYGOTSKY, 1987), necessita do
auxílio de um adulto ou outros parceiros para a resolução de um problema, visto que os
conhecimentos adquiridos ainda não são suficientes para lhe dar a autonomia por nós
imaginada.
Semelhante é a expectativa do adulto para com a criança em fase de descoberta da
leitura e da escrita. Freqüentemente, nos deparamos com o tratamento desses saberes
com certa linearidade, como se o ato de ler e escrever fossem simultâneos. Daí ocorrerem
tantas dificuldades no processo de alfabetização das crianças.
Embora os mapas roubassem à atenção e a curiosidade das crianças a dúvida
deles na execução da tarefa me fez pensar que a proposta por mim selecionada não era a
mais adequada. Os conflitos ocorrem porque temos uma forte tendência a colonizar o
outro. Ainda nos tomamos do sentimento de que sabemos mais porque somos professoras
ou porque somos adultos.
A concepção do eu ensino você aprende foi severamente criticada por Paulo
Freire; com ele aprendemos que a concepção bancária de educação se alicerça nos
princípios de dominação, de domesticação e alienação transferidas do educador para o
aluno através do conhecimento dado, imposto, alienado. Contudo é como se esta prática
estivesse incorporada ao nosso ser, romper com esse modelo é um exercício que requer
uma vigilância constante de nossas práticas.
Cabe a professora possibilitar situações que favoreçam a conexão de diferentes
temas possibilitando que as crianças elaborem suas hipóteses sobre os mais diferentes
24
Para Vygotsky o desenvolvimento potencial é um caminho, que não foi ainda atingido, esse processo
pelo qual pasas os seres humanos é explicado em sua teoria através da ZDP (Zona de Desenvolvimento
Potencial), por ser precisamente o campo intermediário do processo.
assuntos. A sala de aula pode (e deve) ser um espaço de criação e de novos
conhecimentos. Assim sendo é necessário a reavaliação permanente do nosso fazer,
daquilo que propomos as nossas crianças e do que aprendemos, uma vez, impossível não pensar
no que aprende quem ensina.
Se “...ensinar não é transferir conhecimento...” (FREIRE, 1996), creio ser fundamental a construção do
conhecimento num processo de parceria entre professoras e as crianças. Mas como fazer? muito tempo que
questionamos as receitas prontas do fazer pedagógico, pois sabemos que não há um modelo a seguir. Neste caso, julgo
que a sensibilidade deve ser um componente indispensável às práticas que buscam comprometer-se com a autonomia.
A pesquisa, fruto da minha interação diária com as crianças, me permitiu exercitar a escuta sensível, as falas, desejos,
emoções e expectativas das crianças.
A minha intenção estava pautada na probabilidade de estimular a
abstração, através da possibilidade de brincar com a imaginação. Entretanto, da parte
deles o exercício tomava a dimensão de exatidão, do certo se contrapondo ao errado. De
fato não poderia ser diferente, se a lógica da escola está em reproduzir fielmente a
realidade, eles incorporaram o sentido da rigorosidade das respostas e não das
hipóteses que podem percorrer para chegar a possíveis conclusões. Não permitimos,
aliás, raramente estimulamos a possibilidade de brincarmos com as respostas, de
assinalarmos duvidosamente uma questão, pois longe de provocar o conflito como possibilidade
de se descoberta, está a prática voltada à reprodução leal dos fatos.
O trabalho com a criança sugere uma tessitura de redes que ao serem
entrelaçadas, dão sentido a aprendizagem. Um sujeito crítico, capaz de questionar o
contexto social e histórico em que vive, ousará mais se houver uma prática pedagógica
que o instigue a pensar, refletir, fazer conexões a ponto de adentrar numa probabilidade
de construção.
O que estava propondo com o desenho dos mapas era que pudessem
brincar com os diversos modos de imaginar e representar o espaço, criando uma
intimidade com a ciência cartográfica. Os primeiros mapas que fizeram tinham como
parâmetro o percurso que fazem freqüentemente casa-escola. Alguns mapas revelam a
compreensão da criança e informam a organização espacial que constroem a partir das
suas referências.
Figura 2, Mapa de Jean
Figura 3, Mapa de Gabriel
Jean e Gabriel usam a referência da escrita para dar pistas de como chegar
a sua casa. Outro fato interessante: prevêem o meio de transporte, no caso o automóvel,
para definir o percurso. Tanto um quanto o outro, sinalizam como eu deveria proceder
com o automóvel para obter o acesso desejado. Enquanto Jean alerta para dar ré, Gabriel
sinaliza que devo parar, pois dali em diante o acesso só é possível a pé.
A partir dos mapas a idéia de uma visita à comunidade não ficou distante, percebi
que esse caminho poderia ser rico o suficiente para que pudesse me inserir naquele
espaço, naquele grupo. A minha chegada àquela escola foi de repente e o meu referencial
com aquela comunidade até então era nenhum, fato claramente percebido por eles à
medida que iam me dando referências do tipo: ali perto do bar, naquela rua da igreja,
perto da casa lotérica... e eu ia declarando a minha desapropriação topográfica.
As crianças conduziram a caminhada, ali eu estava no lugar de aprendente
e eles eram os verdadeiros instrutores. Levei a minha máquina fotográfica e logo
começaram os apelos para que fossem os fotógrafos. Mais uma vez os combinamos
foram incorporados a nossa rotina, decidimos que cada um registraria o passeio com a
foto de um local que achasse interessante, assim fizemos. As mães também participaram:
faziam intervenções ajudando as crianças na localização do espaço, esclareciam o nome
de algumas ruas e à medida que iam conversando traziam as histórias locais,
representadas no espaço em que vivem.
Na primeira rua que entramos, logo após decidirmos aonde iríamos,
avistaram o posto do médico de família
25
e uma das crianças pediu para tirar a primeira
foto. O espaço não é neutro, porque é na construção social que os sujeitos ampliam os
significados do vivido. Escolher um lugar e registrá-lo através de uma foto era como se
fossem achados. Embora aos meus olhos não tivessem grande importância, para eles era
um espaço vivido, espaço este que como afirma Santos (2000) é de experiências que se
renovam e que acabam sendo indagações que se ampliam entre o presente e o futuro.
Paramos e eles explicaram que aquele posto de saúde não presta atendimento de
emergência. Perguntei quem freqüentava aquele posto e algumas crianças disseramter
ido lá. Uma delas tenta me explicar o que representa aquele espaço:
Tia, se cair e se machucar não pode vir aqui não, tem que ir direto ao posto do
Badú.
É um posto médico que não tem médico? Indago na tentativa de compreender o
que eles compreendem daquele espaço.
É um posto do médico de família, não atende emergência. Uma das mães
complementa a informação, enquanto os outros continuam...
Tia, euvim aqui numa festa no dia das mães, tinha gente cortando o cabelo,
fazendo unha...
Até eu já vim com a minha mãe no dia que estavam fazendo documento...
25
Médico da família. É um programa de assistência à saúde de Niterói, desenvolvido há mais de 10 anos, é
uma solução que serve de exemplo até mesmo para outros países. Os módulos são construídos nas próprias
comunidades, onde o serviço médico é prestado por uma equipe formada por um médico clínico-geral ou
generalista e um auxiliar de enfermagem.
Figura 4, foto do posto de saúde
O médico de família é um programa que atende em cada uma das comunidades de
200 a 250 famílias, neste caso, nem todas conhecem ou se beneficiam do atendimento.
Nos dias de festividades e de trabalhos assistencialistas toda a comunidade é convidada,
portanto conheciam o posto médico de família, mas não demonstravam familiaridade
com a rotina de saúde.
Argumentei sobre os postos que atendem em casos de emergência e fui
informada, por uma das mães, que naquela comunidade não atendimento de
emergência. Quando necessário buscam auxílio no bairro vizinho, Largo da Batalha, a
uns 5 km de distância. A falta de dados da pesquisadora revela como se dava as
preocupações e atenção da professora: não havia um único foco naquele momento, não se
estava priorizando um ou outro espaço. A aula ia sendo construída por todos, à medida
que o olhar de cada um permitia ver isso ou aquilo.
Figura 5,
foto do rio
O rio poluído nos fez ler as mazelas do mundo atual. Recordo-me de que
ali permanecemos alguns minutos e alguns comentários foram surgindo em relação a
poluição, a importância da preservação da natureza, o lixo, o descaso dos governantes...
Callai nos ajuda a pensar o quanto o mundo geográfico, histórico e cultural que está
presente no cotidiano da vida humana.
Por isso é importante que se estude o lugar [...] fazer a leitura do
espaço próximo, aquele que materialmente faz parte do nosso dia-a-
dia, permite que se exercite esta leitura, o conhecimento e a
compreensão do que está acontecendo. (2003, p. 61)
Os comentários feitos pelas crianças rompiam a condição de lamentação pela
degradação do ambiente urbano e se lançavam na condição de crítica ao descaso dos
poderes públicos e dos usuários locais. Eram falas que se multiplicavam, uma polifonia
em torno de assuntos por eles estudados na escola e agora comprovados no coletivo de
estudantes que na aula passeio
26
reconhecem as fragilidades do espaço público.
26
Uso o termo a partir de Freinet que usava a aula passeio como uma das técnicas da pedagogia de
incentivo e de significância as aulas. Entendia ser a experimentação e a documentação condição
indispensável que dava à criança instrumentos para aprofundar seu conhecimento.
Mais adiante nos deparamos com a subida do morro feita por uma trilha estreita e
não oficial, pois a maioria “corta caminho” por ali. Para Certeau (1994) os percursos
variáveis são práticas que o caminhante atualiza em vista as dificuldades de acesso em
que se encontra.
Não há outro acesso que não seja uma trilha íngreme como essa?
Pergunto a eles, embora soubesse que não retomariam outro trajeto; a primeira
criança alcançava metade do caminho. Era nítida a cumplicidade entre eles para me
testar, estava posta a inversão da ordem, se na escola na maioria das vezes tomo as
decisões, ali eles davam as
coordenadas e eu acabava por
executar. Era a aula como
acontecimento, descoberta e prazer o
que mais me interessava. Portanto,
ceder às brincadeiras tinha o seu valor,
pois permitia que aproveitassem o
sabor da interação professora e
crianças.
No topo do morro
avistamos uma imensa cisterna da
empresa Águas de Niterói, uma
construção familiar para eles e
estranha para mim. Logo fomos
convidados por um funcionário para nos aproximar,
dotado de uma didática própria ele foi se incumbindo de dar algumas informações que
aguçaram a curiosidade das crianças. Apesar de algumas crianças brincarem ali (há um
gramado nos arredores que acolhe o jogo de futebol) e passarem sempre por aquele
caminho avistando a cisterna, desconheciam os detalhes que fazem funcionar a
distribuição de água para os bairros vizinhos. Admiraram o tamanho dos registros e a
operação de manutenção que é realizada em um escritório longe dali, por engenheiros
que acompanham todo o trabalho através de computadores ligados à câmeras dispostas
em pontos estratégicos.
Figura 6, foto da subida do morro
Entre perguntas e respostas descobriram, através das informações dadas
pelo funcionário, que a cisterna contém oito milhões de litros cúbicos de água e se algum
acidente acontecer pode provocar ondas como a Tsunami. Frase registrada imediatamente
por eles e questionada sobre o perigo. Avançaram em suas descobertas quando o
funcionário explicou que por isso mesmo não poderia haver casa nos arredores e,
conseqüentemente, todas as casas ali construídas eram em terrenos impróprios, áreas
invadidas. Decepção! Alguns descobrem que moram em lugar de risco.
Figura 7, foto da subida do morro
Figura 8, foto cisterna da empresa Águas de Niterói
Certeau (1994) nos ajuda a pensar e entendemos que a cidade não é um “...
campo de operações programadas e controladas...” as pessoas passam a habitar os
lugares e dele fazem uso mesmo quando a área é de risco, afinal as práticas do espaço
tecem as condições determinantes da vida social. Embora os discursos oficiais anunciem
a preocupação com a moradia, investimento em construções de casas e proteção as
pessoas evitando que ocupem áreas consideradas de risco, não há notícias de uma política
com índices de investimento em residências populares. Esse aspecto confirma o descaso
dos órgãos públicos com a população menos favorecida.
Nos arredores da imensa cisterna o contraste é nítido: casas muito simples e
outras mais confortáveis. Joyce decide fotografar a casa que morou e Sebastiana a que
mora. Ainda que tenham descoberto os riscos, que tenham se decepcionado com a fria
realidade que os cerca, demonstram o apego pelo bairro por ser o lugar onde se o
envolvimento com o meio social. Para
Certeau (1997) essa familiaridade que
nos faz íntimos do lugar onde habitamos é a própria arte de conviver. Fato confirmado
quando entendemos que “...um lugar é sempre cheio de história e expressa/mostra o
resultado das relações que se estabelecem entre as pessoas, os grupos e também das
relações entre eles e a natureza...” (Callai, 2005, p.234)
Figura 9, foto dos registros da cisterna da empresa Águas de Niterói
Figura 10, foto da Antiga casa de Joyce
As casas simples
guardam histórias de vida, são
arquivos vivos da coexistência.
Novos significados vão sendo
incorporados a aula à medida que se aproximam da intimidade de alguns colegas: a casa,
a rua, a família, o bairro... A escola municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, é
referência para alguns bairros, portanto nem todos conheciam a moradia de Joyce,
Sebastiana e outros que foram apresentando as suas residências à medida que íamos
caminhando.
Na descida do morro mais novidades, avistamos um muro com uma
informação interessante. Fotografei após fazer a leitura com os alunos. A princípio não
entendemos bem, mas logo ficamos sabendo que se tratava de um recado ao entregador
da conta de luz.
Figura 11, foto da casa de Sebastiana
Assim como o espaço é múltiplo, as linguagens também são múltiplas e
estão em constante movimento. A captura de significados é possível quando se
compreende que o espaço urbano, não é usado apenas para a circulação. Existe a
possibilidade de transformação dos espaços de transição em espaços de apropriação de
seus usuários, dessa maneira os espaços de circulação da cidade se tornam espaços
públicos de sociabilidade.
O registro no muro, por ser uma prática estranha aos nossos olhos, rouba
os sorrisos e o estranhamento das crianças e me convida a pensar. Entretanto, possui
uma funcionalidade para o sujeito ordinário habitante desta comunidade que vê limitada
a possibilidade de receber a sua correspondência da AMPLA
27
, o que implica danos com
um possível corte de energia elétrica.
Do morro onde estávamos avistamos o morro em frente e questionei a
diferença, nitidamente percebida entre o lugar em que nos encontrávamos e o que
avistávamos. Não foi difícil que me apontassem que do outro lado só haviam casas muito
27
Companhia de luz elétrica da cidade de Niterói.
Figura 12, foto do recado registrado no muro
grandes, bonitas, verdadeiras mansões e que lá, era os fundos do condomínio Aldeia Casa
Grande.
Voltei o meu questionamento
perguntando:
Por que não há casas como aquelas, onde estamos e vice-versa?
Como se estivessem com a resposta pronta, disseram:
Lá é um condomínio.
Só por este motivo? Argumentei
No início do passeio me apresentaram um condomínio e...
Aquele é de pobre e esse não! Explicaram
Começavam a pontuar com clareza a diferença social. Continuei a
conversa num tom mais provocativo:
Figura 13, foto do recado registrado no muro
Tudo bem. Mas por que não tem casas simples naquele morro?
Tia, a gente nem pode entrar, se agente for você vai ver, eles vão
barrar na porta. Lá só tem casas chiques com piscina, sauna...
Lá tem casa até de artista, de Zeca Pagodinho! Não é pra qualquer um
não!
Alguém no grupo me questiona com o apoio de outros:
E você acha que eles iam fazer a casa deles aqui? E se tem um
acidente? Um Tsunami? Você acha que eles são bobos?
Figura 14, outros condomínios
A leitura que faziam do espaço demonstrava o quanto a infância não é bucólica,
nem tão pouco alienada, sabem que existem espaços diferentes para cada um nesta
sociedade. Segundo Callai
A observação e a análise dos espaços construídos encaminham para
compreender como a materialização/concretização das relações sociais
configuram um lugar, bem como este coloca limitações ou
possibilidades à sociedade. Portanto a contribuição da geografia no
nível inicial do ensino, no qual a criança passa pelo processo de
alfabetização, não se como acessória, mas como um componente
significativo (assim como as demais áreas) na busca do ler e do
escrever. Ao ler o espaço, a criança estará lendo a sua própria história,
representada concretamente pelo que resulta das forças sociais e,
particularmente, pela vivência de seus antepassados e dos grupos com
os quais convive atualmente. (2005, p.237)
Interessa-me pensar como a criança se alfabetiza no cotidiano, como ao ler
o espaço, descobre o mundo e como a geografia vai se fazendo presente nessa
construção. Não se trata de uma geografia estática e dissociada da vida, mas sim de uma
geografia existencial.
Durante o percurso fomos prestando atenção nos nomes das ruas. Eles
anotavam tudo que era de seu interesse, um dos combinados que fizemos antes de
sairmos da escola.
Encontrei no
almoxarifado da
escola umas
cadernetas de
anotações e
requeri para que
pudesse distribuí-
las às crianças
sendo útil na
realização de
nossa aula
passeio. Anotar
as observações
significativas na caderneta, mas do que uma tarefa escolar significou para o coletivo das
Figura 15, Bar do Caranguejo
crianças, uma atividade de pesquisa. Os pequenos pesquisadores, muito atentos e
compenetrados no fazer, registraram suas observações, cientes da importância da
observação e do registro para a produção de novos conhecimentos. Era nítido o
sentimento coletivo dado a importância da observação e anotação.
Na descida do morro avistaram o Bar do Caranguejo e queriam muito que
eu conhecesse. O bar fica no centro de um terreno onde o seu quintal se encontra com o
quintal de outras casas. Apesar do clima familiar é um lugar freqüentado por pessoas de
outros lugares e, portanto, considerado um lugar importante.
Para nossa surpresa fomos atendidos por uma senhora muito gentil que
veio ao nosso encontro, moradora de uma das casas onde o bar funciona. Apresentamo-
nos e ela também, se tratava da primeira alfabetizadora de Maria Paula, bairro onde está
situada a escola e a residência de parte das crianças.
Figura 16, Dona Aurora sendo entrevistada
Figura 17, crianças pesquisadoras
Meu pai era dono de muitas terras aqui. A rua por onde vocês
passaram recebe o nome da minha avó que é o mesmo meu, Aurora Ribeiro de
Mendonça. A rua ali de baixo é Rua Portugal pelo fato da minha família vir de Portugal
e morar todo mundo no mesmo lugar...
O sobrenome Ribeiro de Mendonça chamou a atenção de Jean que
imediatamente perguntou:
A senhora sabe quem foi Diógenes Ribeiro de Mendonça?
Não. Respondeu.
É o nome da nossa escola, nós queremos saber quem é ele...
Dona Aurora disse não saber de quem se trata. Ficamos decepcionados por
ela afirmar desconhecer o Diógenes Ribeiro de Mendonça.
De volta a escola uma das crianças tratou de dar uma solução para o fato
argumentando:
Como ela está velhinha não deve lembrar quem foi Diógenes Ribeiro
de Mendonça.
A voz do bairro multiplica-se em informações, muitas descobertas vão
sendo feitas. Histórias interessantes vão surgindo e, pouco a pouco, passam a entender
que a história do próprio povo deu nome à maioria dos bairros e ruas das cidades
brasileiras. Vivem o sentimento do nome das ruas, para nós não passava de um nome,
uma referência de lugar, mas para Dona Aurora e seus familiares representava muitas
coisas, como a própria vivência de seus antepassados.
Ao sairmos dali, outras conversas, foram sendo tecidas, do falar sobre
nomes e lugares as crianças começaram a perceber entendendo que os nomes das ruas e
dos bairros sofrem mudanças devido a fatores econômicos e políticos.
Durante a caminhada encontramos com o presidente da Associação de
Moradores, as mães trataram logo de me apresentar por saber da nossa investigação sobre
o patrono da escola. O senhor Amâncio nos parabenizou pela iniciativa de percorrer o
bairro. Aproveitamos para fazer o convite de ir a nossa escola, convite este que faríamos
através do bilhete de João. Sem grande cerimônia, marcou a conversa para a semana
seguinte.
No dia marcado lá estava o senhor Amâncio, que não só nos contou alguns
detalhes sobre o Diógenes, como também deu uma aula de cidadania, falando inclusive
sobre como funciona o Conselho Tutelar e as questões emergenciais tratadas pela
Associação em prol da melhoria da comunidade, o papel dos vereadores nas
comunidades...
A partir da visita, descobrimos porque o bairro, onde está situada a escola,
se chama Maria Paula. Segundo ele, Maria Paula foi ama de leite de um dos filhos de D.
Pedro II e em reconhecimento ganhou aquelas terras. Inclusive, o condomínio de “rico”,
como as crianças se referiram durante o nosso passeio, recebeu o nome de Aldeia Casa
Grande porque justamente ali morava Maria Paula, em uma aldeia, onde a casa era
grande. Mais tarde, a fazenda foi loteada e o bairro passou a se chamar Maria Paula.
Após esta conversa um aluno fez a seguinte observação:
Então Maria Paula era uma negra e eu sempre pensei que Maria Paula
era uma branca.
O nosso diálogo a partir da colocação esteve fundamentado no quanto
estamos marcados por nossas visões de mundo, por valores que vão sendo incorporados a
nossa condição de ler o mundo. Como afirma Azoilda Trindade
28
, nosso maior desafio,
talvez, seja enfrentar o que está dentro de nós, no nosso sangue, nosso coração, na
nossa mente, em nós mesmos. A fala inesperada que sai de uma voz entre muitos, é talvez
a fala de muitos de nós, porque ainda ressoa em nós mesmos o preconceito e o racismo.
A nossa aula passou para a História do Brasil, mas era preciso tocar na
história que despisse os nossos próprios convencionalismos. São estas contradições que
encontramos nos currículos das escolas que muitas vezes impedem a professora de ousar.
A luta interior que travamos, muitas vezes, está na possibilidade de transitar entre o que
está prescrito como no conteúdo programático e o que podemos instituir numa
perspectiva curricular, que se fundamenta na transversalidade do saber. Esta é no meu
caso, naquela escola, uma luta solitária. O tratamento diferenciado aos temas abordados
no contexto escolar impõe uma organização de saberes que se contrapõem a realidade das
escolas. Essa sistematização em nada combina com o mundo globalizado, que cada vez
mais acentua a transversalidade de conhecimento.
28
Parte do texto disponibilizado no site http://www.redebrasil.tv.br/salto/boletins2002/mee/meetxt5.htm
Com este trabalho um desdobramento infinito de possibilidades foi se
abrindo e percebo que poderíamos ter avançado muito mais em nossas descobertas e
conquistas, não fossem às dificuldades burocráticas encontradas, vez ou outra, para
sairmos da escola. Como são 31 alunos dependemos sempre de pessoas para
acompanhar, o que nem sempre é possível. A aula como acontecimento
proporciona infinitas descobertas e sentido ao que denominamos currículo em ação.
Escrever a nossa história dando a narrativa à importância que até então eu não havia
percebido é um exercício que começa a me desafiar. Os meus registros me trazem a
sensação de estarem sendo construídos num processo artesanal: penso nas experiências
que me marcaram, escrevo, leio, reescrevo... É um fazer que me faz pensar o quanto
parecido é com as produções artístico-artesanais onde a cada fazer um novo retoque é
possível; a cada registro novas pistas.
Sinto que as nossas experiências transitam entre o passado e o presente
possibilitando vivenciar como o antigo e o atual, provocam uma reflexão ampla. Pode
ainda nos possibilitar ensaios de rememoração sobre o quede significativo na relação
com os conhecimentos e os sentimentos quando estes estão em interação com a vida.
Segundo Nunes
Essa atitude constrói um outro estado interno, que pode ser chamado
de atenção sustentada, sem qualquer julgamento, de onde observamos
o que se passa com cada um dos artifícios de criação que somos nós
mesmos. É algo extraordinário pois se adquire, com essa prática, a
capacidade de entrar dentro da coisa que se observa, de fundir-se a ela,
de penetrar nas suas qualidades expressivas que sugerem motivos,
intenções e gestos, seguindo adiante. Não posse do eu.
abandono. Nossa mente se transforma em foco que conecta outros
focos dentro de nós mesmos, ao nível do sentimento, da intuição, da
sensação, dos níveis fisiológicos de funcionamento d,o próprio corpo.
A atenção sustentada,parece-me, conecta os dois hemisférios
cerebrais, funcionando como chave que abre simultaneamente para
dentro e para fora. (p.95, 2005)
O passeio por um lugar familiar às crianças e novo para mim mudou a
lógica da aula e nos remeteu a um desafio que não estava previamente planejado pela
professora: passado e presente dialogam tecendo fios impossíveis de serem previstos
antecipadamente. É o espaço-tempo invadindo o nosso cotidiano e imprimindo a marca
da significação existencial. No caminho o encontro com o seu Sebastião, como é
conhecido por muitas crianças, nos surpreende diante da sua disposição. Morador 54
anos no mesmo bairro é ele quem nos aborda:
O que vocês estão fazendo por aqui essa hora, assim bonitos de
uniforme?
Um coro sem ensaio responde:
Estamos mostrando o bairro à nossa professora!
Estamos pesquisando o bairro!
Estamos procurando informações sobre o nosso bairro!
Seu Sebastião parece entender o que fazemos por ali e começa a contar
como era o bairro há anos atrás. O seu discurso vai ao encontro das informações de Dona
Aurora, porém seu Sebastião recorda-se em tom nostálgico os tempos de outrora,
dizendo:
- Quando eu era moço era tudo uma beleza, esse lugar foi muito bom,
muito calmo. Hoje a gente precisa tomar mais cuidado não pode ficar sozinho pela rua...
Mais o tempo de hoje tem suas vantagens trás mais facilidade: os transportes, o
comércio...
O encontro com Dona Aurora, a parada para conversar com o seu
Sebastião, as informações sobre o sistema de distribuição de água, fornecidas por um
jovem funcionário, são práticas que nos ajudam a exercitar a interação entre o vivido e o
currículo oficial.
A dinâmica pedagógica também se inverteu, não era o planejamento
prévio que determinava a aula, mas o que as experiências vividas em uma caminhada
pela manhã demandavam sobre o conhecimento coletivo. Conhecer não é um verbo que
se aplica somente aos alunos, mas a nós professoras também. A possibilidade de
conhecer a comunidade onde está inserida a escola é um dos exercícios o qual não
deveríamos nos poupar.
Após a professora de Educação Física pedir uma maquete do bairro,
comentou na reunião pedagógica:
Fiquei surpresa com as maquetes; as crianças daqui não têm noção de
proporção/tamanho, fizeram uma cisterna imensa, desproporcional as casas...
Imediatamente, pude contestar:
Não é desproporção, muito pelo contrário... um reservatório de
água no morro, da companhia Águas de Niterói, uma cisterna imensa...
Outras professoras, moradoras daquele bairro e arredores, puderam
complementar a informação, que para elas era um dado concreto. Outras ficaram tão
surpresas quanto à professora que fez o comentário, pois também desconheciam tal
informação.
Da minha parte não cabia a surpresa, estava convicta do quanto àquela
cisterna representava para a vida das crianças. No imaginário infantil não cabia
somente o inusitado tamanho da cisterna, mas o quanto era perigosa e importante. Não
era somente um reservatório de água capaz de abastecer dezenas de bairros, era uma
poderosa ameaça para quem morava nos arredores, um tsunami capaz de causar uma
grande catástrofe para muitas vidas humanas, para muitas famílias. Penso até que ponto
para aquelas crianças e para aquela comunidade, o bairro se inscreve como a marca de
uma pertença indelével. Imagino que do ponto de vista da “...apropriação do espaço
como lugar da vida cotidiana pública...” sim, entretanto enquanto sujeito de direitos não
(Certeau, 1994). Para aquela comunidade é negado o direito de uma moradia permanente,
porque vivendo em área de risco o sentimento de estabilidade lhes é roubado.
Muitas dobras foram possíveis a partir do passeio. No dia seguinte a
conversa tinha tema marcado: o passeio e tudo que a partir dele vivemos. Decidimos
fazer uma exposição sobre o passeio através de desenhos, fotos e maquete. Como a
revelação das fotos pela escola demandava certo tempo, em virtude da verba
disponibilizada, fiz a impressão por conta própria. Outra questão que demanda uma
discussão, embora não proponha neste momento, é o que assumimos financeiramente
quando desejamos uma prática diferenciada e que não há recursos disponibilizados.
Para minimizar os gastos propus um exercício
29
, em grupo, com
fotografias impressas. Passaram a reconstruir cada etapa à a partir da descrição coletiva
dos percursos realizados por onde passaram. Alinhei aleatoriamente em folha de papel
fotográfico algumas fotos do passeio. Em seguida propus que as recortassem e
colocassem na ordem dos acontecimentos, de acordo com o percurso que fizemos. Ao
colar as fotografias deveriam fazer algumas anotações de forma que outras pessoas ao se
depararem com o trabalho pudessem ler o nosso percurso e as nossas descobertas.
29
Em anexo.
5.1 Mapas e maquetes
Se o passeio pelo bairro surgiu a partir do impacto que as crianças
sentiram quando propus que desenhassem o mapa do percurso casa-escola, os novos
mapas são propostos a partir do desejo das crianças de registrar o passeio e trazer a
público, através de uma exposição. Para minha surpresa os mapas já não assustavam, não
causavam resistência, não os obrigava ao exercício de inaugurar algo incomum.
Concordo com Vygotsky (1987, p. 98) quando este afirma que “...aquilo
que é a zona de desenvolvimento proximal hoje, será o nível de desenvolvimento real
amanhã, ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será
capaz de fazer sozinha amanhã..”. Esta concepção foi nitidamente observada quando
propus o exercício de desenhar o mapa, casa/escola, e a dificuldade por eles manifestada
me fez auxiliá-los, o que não ocorreu com o segundo mapa quando foram capazes de
fazer sozinhos.
O aprendizado vai se constituindo na relação da criança com os obstáculos
presentes e estes em interação com os pares que colaboram na perspectiva de reflexão e
nova ação. Quando a criança domina o fazer de uma proposta, quando compreende e
executa, é sinal de que está sedimentado aquele conhecimento, insistir na mesma
hipótese de trabalho não lhe trará tantos benefícios no campo do desenvolvimento quanto
lhe propor novas problemáticas.
Por vezes, insistimos na hipótese de que a criança trazendo conhecimentos
prévios deve ser capaz da execução de algumas práticas por nós determinadas.
Esquecemos que provocamos a aprendizagem sempre que esta ainda não é de domínio
total da criança e “... se uma criança pode fazer tal e tal coisa, independentemente, isso
significa que as funções para tal já amadureceram nela...” Vygotsky (1987, p. 97).
Logo, o auxílio do adulto ou de outras crianças torna-se dispensável.
Alguns detalhes me chamaram a atenção durante a execução do segundo
mapa: a não resistência ao desenho, a facilidade com que ia transcorrendo os traçados
entre as trocas de lápis e canetas coloridas e o diálogo entre eles durante a atividade. A
partir daí, a apreciação dos mapas, com teor comparativo, passou a ter importância nesta
pesquisa, pois vou percebendo que novos elementos são incorporados ao desenho e uma
nova forma de expressar a sua espacialidade é nitidamente posta em prática por eles.
Ainda que não tenha sido a intenção inicial ao observar os dois mapas, o
que foi realizado anterior a experiência vivida através do passeio e o que foi realizado
posteriormente, pude perceber como a vivência das crianças em relação ao espaço
ampliou o olhar de cada uma delas.
A atitude das crianças confirma o que Doreen Massey (2005), coloca
quanto à dimensão da multiplicidade do espaço, visto que este está sempre em
construção, nunca se apresenta totalmente acabado. As crianças implicitamente fazem
essa leitura, à medida que caminham em grupo e passam a me apresentar os lugares por
onde diariamente caminham. Os espaços por onde andam diariamente tomam novos
significados, percebem a multiplicidade de elementos que compõem e dão vida ao bairro.
A tarefa minuciosa de observar criteriosamente os desenhos das crianças é
um processo que requer uma escuta sensível, como nos diz Barbier, porque me exige
certa sensibilidade ao “interferir” na produção do outro buscando compreendê-lo. Tarefa
complexa, pois ao mesmo tempo em que eu participo quando proponho a atividade,
quando encaminho o passeio me eximo da produção final que fica a cargo de cada
criança. Mas logo percebo não ser possível me conter em apreciá-los, começo a
perceber que os desenhos por si só falam, quando apresentam as diferenças nas
produções: revelando o antes e o depois.
Essa demanda requer esforço no sentido de não fazer uma leitura
legitimada pela academia nem tampouco pela lógica adulta. Mais do que uma leitura
interpretativa é a possibilidade de compreender a espacialidade como a dimensão da vida
humana, nesse caso como a criança explora e experimenta o espaço. Os mapas podem me
dar pistas da dinâmica do espaço vivido pelas crianças e de como a geografia pode se
inserir nessa etapa de escolarização.
Convido os leitores a observar os desenhos dos mapas de algumas crianças
a fim de constatar a riqueza de detalhes. Ler os mapas das crianças é ao mesmo tempo
transitar entre a ordem e a desordem do espaço-tempo. Assim como à Foucault (2001) ao
interpretar a obra de Magritte
30
- acreditou que o óbvio pode, antes de tudo, não
representar o óbvio, é importante olhar os nossos conceitos formados com certa
30
“Isto não é um cachimbo”
desconfiança. Portanto, interpretar os mapas das crianças é nos permitir ler o mundo
através dos olhos da infância e não se configura em certezas, mas indícios.
Para efeito de melhor conduzir o leitor, na compreensão da disposição dos
mapas aqui expostos, esclareço que os mapas de referência 1, foram realizados quando
solicitei que registrassem o caminho casa-escola. os mapas de referência 2, foram
desenhados após a aula passeio.
Figura 18, mapa 1 de Claudia
Figura 19, mapa 1 de Polyana
No primeiro mapa a seqüência uniforme representa o caminho inócuo entre a casa e a
escola. No segundo mapa Polyana e Claudia parecem ampliar a noção de espacialidade, pois abandonam a
linearidade como representação. No segundo imprimem vida; os caminhos aparecem com riqueza de
detalhes, é dado maior significado ao desenho demonstrando que saíram do lugar de expectadoras, para
caminhantes.
Figura 21, mapa 2 de Polyana
Figura 20, mapa 2 de Claudia
A interação com o bairro, mediada pela companhia do outro
31
e pela
orientação de anotarem os pontos que achassem relevantes, pode ter provocado o
exercício de observação da espacialidade, diferente do que faziam habitualmente.
Quando as crianças se colocam como guias e me chamam a observar este ou aquele
lugar, me convidam a passar por este ou aquele caminho, no fundo passam a ver com
mais detalhes as paisagens e os espaços por onde caminham cotidianamente. O exercício
de explorar o espaço como estrangeiro pode possibilitar a ampliação do olhar.
Desconfio que a própria prática tradicional de apresentar o estudo do meio
por níveis hierarquizados, acaba por desenvolver na criança uma noção de espacialidade
também invariável, como se o espaço fosse fragmentado e os acontecimentos fossem
isolados. Aprender o espaço é antes de tudo aprender a observar dar sentido e significado
ao mundo que está ao seu redor. Noto que é como se Polyana e Claudia tivessem
descoberto o mapa vivido por elas cotidianamente, a partir da atividade de caminhar pelo
bairro.
Já a similitude do traçado dos mapas de Douglas me leva a crer o quanto a
relação entre o texto e o desenho, o signo verbal e a representação visual apresentam
equivalência, mesmo quando emprestam significados diferentes.
No mapa de referência 1 o caminho casa-escola é organizado a partir dos
pontos que influenciam a localização, visto esse mapa ser o instrumento que,
supostamente, eu usaria para chegar a sua residência. O posto gásbras e o capoteiro são
códigos visivelmente importantes, a ponte parece não ter grande valor como ponto
identificador. Aparentemente, as localizações de maior importância ganham destaque nas
cores das canetas de hidrocor, enquanto a referência de menor importância, no caso a
ponte, é escrita a lápis. Desconfio que a caneta não afirma a cor nos convidando a
prestar maior atenção, como não pode ser apagado, o que não ocorre com a escrita a
lápis. Outro dado que me chama a atenção é que a ponte ganha destaque através do
signo verbal, quase eximindo-se da representação visual.
31
O outro aqui é entendido como os sujeitos: adultos e crianças que interagiram durante o passeio a
comunidade.
Figura 22, mapa 1 de Douglas
Figura 23, mapa 2 de Douglas
No mapa de referência 2, ao contrário do primeiro, a descrição de maior
importância é a ponte, que ganha destaque quando o signo verbal é escrito com a caneta
hidrocor e é representada visualmente. Para Lima (1989, p. 19) “...os espaços que se
relacionam com experiências geralmente positivas das crianças são
superdimensionados, ocupam um lugar importante na folha do desenho...” Ouso dizer
que não sejam as experiências positivas, mas possivelmente todas as experiências que
marcam a criança. O registro na caderneta transcrito para a folha demonstra a
preocupação com a preservação do rio, fato que se revela no desenho. A ponte
assume uma dimensão de tamanho muito maior do que realmente é; na realidade essa
ponte nem sequer tem elevação e quase não é notada por estar no nível da rua. O mesmo
ocorre com o rio que ganha um volume de água maior do que um desenho fiel a realidade
poderia representar. Além do volume da água, a cor límpida parece revelar o desejo do
menino de como gostaria que fosse o rio, pois na realidade o manancial de água é
mínimo e a coloração é escura por conta do despejo de esgoto.
A produção de Douglas nos fornece pistas do que aparentemente
acreditamos ser verdade: o homem preenche a sua vida de representações, de sonhos e
desejos. Os acontecimentos cotidianos são leituras de mundo que nos ajuda a
compreender a dinâmica da vida. Talvez se possa entender pelo desenho que, para
Douglas, assim como para Lima “...não espaço vazio, nem de matéria nem de
significado; nem há espaço imutável. Nada é mais dinâmico do que o espaço por que ele
vai sendo construído e destruído, permanentemente, seja pelo homem, seja pelas forças
da natureza...” (1989, p.13).
A tentativa de interpretar os desenhos dos mapas das crianças abre para a
professora a possibilidade de compreender o mundo das suas crianças, de perceber que
significados os espaços tem para elas. Para Perez (2005,p.134) “...fazer geografia é
dialogar com o mundo, possibilitando à criança ampliar os significados construídos...”
Douglas demonstra uma preocupação com o espaço social à medida que confirma a sua
preocupação através do registro escrito e do desenho. Percebe-se que o menino ultrapassa
a perspectiva da representação físico/geográfica do espaço para a leitura da
espacialidade, dialoga com o mundo à medida que o seu olhar é capaz de capturar a
pluralidade de relações que se manifestam no cotidiano.
Para Juliene e de Lucas Consendey, o bairro é cheio de caminhos que se
interligam. Em ambos os mapas, nota-se a inserção de referência e orientação, porém
após as experiências que viveram como caminhantes informantes os desenhos ganham
riquezas de detalhes.
Figura 24, mapa 1 de Juliene
Figura 25, mapa 1 de Lucas
O estudo da geografia nos anos iniciais deve favorecer o contato da
criança com o mundo e o a apropriação de conceitos geográficos. Ao se sentir
íntima do seu próprio espaço vivido, imagino que será capaz de ler as diferenças, de lutar
por melhor condição de vida e por justiça social e possivelmente dará maior atenção ao
exercício de construção da cidadania.
Os traçados se ampliam e as referências e organização dos elementos que
compõem o lugar, ganham maior nitidez. Parecem perceber aspectos não vistos
anteriormente. O exercício de pensar o espaço a partir de sua experiência existencial
provoca nas crianças não o domínio das representações gráficas, também importante
para a compreensão do espaço geográfico, mas a condição de expressar suas leituras de
mundo e de marcar a sua existência no mundo. Possibilitar a criança essas experiências, é
acima de tudo permitir que ela aprenda a viver em sociedade e sentir-se parte integrante
da realidade social mais ampla.
Noto que o caminho percorrido casa-escola é ampliado no segundo mapa,
nele as crianças percebem que entre a casa e a escola espaços importantes para a
Figura 26, mapa 2 de Juliene
Figura 27, mapa 2 de Lucas
manutenção da vida do bairro. Desde a barraquinha do seu Hélio até o Centro
Comunitário as conversas foram nos possibilitando descobrir outros mundos. Callai
(2005, p. 245) afirma “...que aprender a observar, descrever, comparar, estabelecer
relações e correlações, tirar conclusões, fazer sínteses são habilidades necessárias para
a vida cotidiana...” Nesta perspectiva, entendemos que é na interação cotidiana do
homem com o espaço, que nos desenvolvemos e nos inserimos no contexto social.
Ao comparar os mapas de referência 1 e 2 da maioria, senão na totalidade
das crianças, foi possível perceber o salto qualitativo da representação antes e depois.
Para Freire (2001, p77) “...a memorização mecânica do perfil do objeto não é
aprendizado verdadeiro do objeto ou do conteúdo...” o que se confirma no caso das de
Lucas e Juliene. Experimentar, vivenciar, participar, foi de fundamental importância para
que construíssem outra possibilidade de ver o mundo e de representá-lo.
A condição de representar o mundo através do desenho está vinculada ao
fato de vivenciar cotidianamente esses espaços. No caso dos desenhos de José Carlos fica
nítido o quanto o menino se vale da perspectiva da espacialidade para representar o
espaço vivido. Os desenhos de José Carlos se destacavam em relação aos demais colegas
e é nítido o quanto a vivência cotidiana trás alterações na representação da espacialidade.
A partir do passeio onde fomos conversando, convidava-os a ver coisas ao
mesmo tempo em que eles também me convidavam a ver outras. O nosso olhar se amplia
e uma provável internalização do espaço, porque a vivência cotidiana ela tráz
alterações na representação da espacialidade. A desenvoltura do menino em representar
imagens através dos desenhos, aliada a condição de observação favorecida pelo passeio,
lhe deu a chance de ampliar a leitura do mundo no segundo desenho.
Embora não tenha previsto o exercício comparativo entre os desenhos das
crianças ao me deparar com as duas produções de José Carlos, sou convidada a refletir
sobre as construções, hipóteses e lógicas da infância.
Não é de meu interesse a análise dos desenhos por categorias de
representação, o que pretendo é chamar a atenção do quanto as experiências cotidiana
trazem alterações na representação da espacialidade. É nítido como ele consegue lidar
com uma perspectiva escalar diferenciada, do primeiro desenho, anterior ao passeio, para
o segundo desenho, posterior ao passeio.
Figura 28, mapa 1de José Carlos
Tudo que pode trazer sentido, que me permite melhor compreender, tomo
emprestado, Rener Barbier
32
. Retomo uma das questões centrais do meu trabalho de
pesquisa, que não se traduz em uma metodologia, mas considero uma estratégia
metodológica. Ao tentar compreender os desenhos das crianças valho- me de tudo aquilo
que me trás sentido. Ao tomar emprestado o que se traduz em sentido, busco
interlocutores que me ajudem a pensar as questões que aguçam o meu olhar. Se ler é
entender o mundo para além das palavras, esse exercício provoca em mim o sentimento
de que lendo a palavramundo, através dos desenhos dos mapas, busco o universo das
crianças, as suas lógicas, a forma que encontram para expressar as suas compreensões do
contexto social em que estão inseridas.
Alfabetizamo-nos geograficamente, para bem da verdade, creio que fomos
descortinando mundos quando a nossa curiosidade nos fez ultrapassar o muro da escola e
32
Em entrevista concedida ao jornal Brasiliense. http://www2.correioweb.com.br/
Figura 29, mapa 2 de José Carlos
nos aventurarmos ao longo de uma manhã pelas ruas do bairro de Maria Paula. Como
“...caminhantes ordinários da cidade...” (Certeau,1994), fomos nos inserindo no texto do
bairro e a partir dele fomos descobrindo outras formas de ver e sentir a geografia do
espaço, porque o espaço praticado nos deu a dimensão para além do bairro, nos fez
descobrir como nos inserimos no mundo vivido e como mergulhamos na nossa própria
subjetividade.
O movimento praticado pelas crianças em busca de novas descobertas, de
novas aprendizagens é um caminho sem volta, elas querem ir, prosseguem sem receio do
que podem encontrar. Desejam o novo vibram a cada alternativa de movimentos
diferentes. A idéia inicial de fazer a maquete não foi abandonada por eles, ao contrário
volta e meia questionavam.
Tia quando que nós vamos fazer a maquete?
Tia como que nós vamos fazer?
Desconfio que o anseio pelo lúdico, pela possibilidade de brincar com
outros objetos e pela criação, os faziam motivados a ponto de insistirem. Confesso que as
minhas limitações “... entre o espaço construído a partir da ambiência [...] para um
espaço representado através de símbolos...” Costella (2003, p.131), me fez adiar por
alguns dias a realização daquela atividade. Entretanto, sabia da minha implicação naquele
processo e comecei a pensar de que forma encaminharia a proposta. Quais seriam os
primeiros passos? Que materiais selecionar com as crianças?
Ainda sem muita certeza tentei fazer uma releitura do nosso passeio. Nos
dias subseqüentes, ao chegar e sair da escola fiquei mais atenta no entorno da escola. Foi
suspeitando dessa possibilidade, que arrisquei esquematizar por onde começaria.
Segundo Costella
O professor com a sua própria ambiência deve compor a dinâmica de
aula levando em consideração o poder da leitura do espaço. Ler o
espaço pressupõe entendê-lo, atrelá-lo a necessidades cotidianas,
vistas após a compreensão de suas relações. (2003, p.135)
Foi tentando compreender mentalmente o bairro que convidei as crianças a
irem ao pátio da escola e de observarmos os arredores. Sentamos no chão formando
um grande círculo e comecei a indagação:
Vamos começar a pensar na construção da nossa maquete e preciso
ouvir as sugestões de vocês. Por onde podemos começar?
Tia vamos usar caixinhas?
Tia tem que ter um isopor!
Tia eu posso procurar sucatas...
As crianças estimuladas pela possibilidade de usar diferentes materiais
começam a articular os diferentes objetos e a organização da coleta, aspecto importante,
mas que precisaria ser listado num segundo momento. Passo então a direcionar a
interpretação do espaço a partir da ambiência relatada, “...fruto do envolvimento dos
alunos nas redes de acontecimentos de suas vivências...” (Castellar, p.132).
Tudo isso será bastante útil, mas por onde vamos começar? Que parte
do bairro iremos representar?
Vamos fazer o colégio, a estrada... Uma voz tímida sai do grupo através
do Lucas Consendey.
Então começa pela estrada, lá de baixo, na descida de Pendotiba.
Perto da minha casa. Assinala Polyanna
Qual o nome do seu bairro Polyana? Ainda é Maria Paula? Pergunto
Não lá já é Vila Progresso. Responde
Então Maria Paula faz limite com A Vila Progresso? Pergunto
Faz também com Mata Paca, tia! Complementa Ryan.
Essa leitura do espaço, a princípio ainda confusa para mim, vai ficando
clara à medida que as crianças com a apropriação espacial do bairro e a partir da sua
ambiência vão me alfabetizando geograficamente, através de suas narrativas.
As práticas espaciais através dos modos de uso que fazem do bairro,
ampliam o meu conhecimento, alfabetizo-me no cotidiano de vida das crianças, ao
mesmo tempo em que uma aprendizagem compartilhada. Indago a partir das minhas
próprias limitações e eles explicam a partir das suas convicções de usuários a
familiaridade com os lugares.
Estabelecemos algumas etapas de organização da atividade: divisão de
grupos, levantamento de material a ser solicitado à escola, seleção de sucatas, inicío do
projeto no papel, construção e apresentação da maquete. Durante a elaboração do projeto
no papel, Delcy se destacou. Utilizava-se das noções de semelhanças e proporções para
melhor situar os pontos de maior circulação deles no bairro:
Entra a esquerda do supermercado Real. Próximo a casa lotérica. Na
curva após o posto de gasolina...
Delcy ajudava os colegas a compreenderem a projeção e a espacialidade
mais abstrata. Demonstra uma alfabetização cartográfica, justamente pela sua
familiaridade cotidiana com o bairro. Nesse momento o meu papel era de ouvinte e
mediadora das relações entre eles. Discutiam, articulavam novas hipóteses,
representavam espacialmente o vivido.
Figura 30, foto da sala de aula
A participação se deu desde a proposta da idéia até os mínimos detalhes. A
experiência com a modelagem em papel marche para confecção dos morros, fez os mais
detalhistas retratarem os cortes e imperfeições dos morros, por exemplo. Essas minúcias
fui percebendo à medida que me familiarizava com a aula que eles iam me
proporcionando.
Demonstravam a capacidade de leitura e de comunicação oral à medida
que compreendiam e transmitiam informações que refletiam sobre a realidade vivida. O
diálogo era medido pela condição visual, à medida que experimentavam a possibilidade
de observar e discutir as várias representações sobre um mesmo lugar. Experimentavam
o exercício de pensar a espacialidade do entorno da escola ao mesmo tempo em que
faziam comparações de grandeza. A maquete é uma forma de registro que permite a
compreensão da tridimensionalidade, uma vez, que utiliza a representação em três
dimensões: largura, altura e comprimento.
A idéia de trabalhar com a espacialidade reduzida, permite que a criança
amplie a leitura das medidas e das proporções do espaço vivido para o espaço
representado. Essa questão vai ampliando o olhar da criança, principalmente, quando
Figura 31, construção da maquete Figura 32, construção da maquete
encontra nos seus pares a possibilidade de formular hipóteses, de desconstruir
concepções irreais e de construir através de outras lógicas a interpretação do espaço.
A geografia coletiva que tomou conta da nossa sala de aula durante alguns
dias de trabalho com a maquete me permitiu ver que, assim como a paisagem está em
permanente processo de transformação, a criança quando inserida no cotidiano da sala de
aula pode dar novos sentidos à escola. A aula como acontecimento possibilita a
professora e alunos viverem, coletivamente, a experiência de transformação do
conhecimento, de produção de um novo saber. O significado da aprendizagem vai se
incorporando a sua vida.
Ainda que se compreenda que diferentes modos de ler o espaço
habitado; ainda que se aceite que toda leitura é sempre diferente de outra leitura; ainda
que se repita o mesmo trajeto de outros colegas, ainda assim, a leitura do espaço também
se amplia pela riqueza da diversidade da paisagem contemplada pelos seus usuários.
Permitir a criança essas experiências é o mínimo que nós professoras podemos lhes
possibilitar (ampliar).
CAPÍTUO VI
A SALA DE AULA É DO TAMANHO DO MUNDO
A sala de aula, era o nosso primeiro lugar demarcado, faço essa leitura a partir de
Certeau (1994,p.201) que diz: “...um lugar é, portanto uma configuração instantânea de
posições. Implica uma indicação de estabilidade....” Tomando a sala de aula como a
delimitação de um espaço, entendo que esse interior, delimitado por porta, paredes e
janelas, é tomado de vida pelo seu coletivo, vibrando de energia, é o lugar praticado
pelos sujeitos.
Se o lugar sugere vida, a arquitetura da escola delimita um espaço próprio. Nós,
os sujeitos praticantes, no uso diário dos artefatos que compõem a sala de aula e na
interação social de convivência, criamos e re-criamos um cotidiano de fazeres capaz de
contar a nossa própria história. O lugar nos aproxima porque é constituído por elementos
significativos, é aconchegante e nos faz sentir seguros.
Ao chegar à escola e ao ser apresentada as crianças, tudo que estava ao meu redor
era, aparentemente, peças em posições arquitetonicamente planejadas para funcionar
como escola, era como se tudo fosse estático, nada me era íntimo. Aquele espaço ecoava
como estranho. Aos poucos a influência mútua, os laços afetivos, os vínculos que nos
fomos permitindo criar, as aventuras narradas, disseminaram vida ao lugar. me sentia
íntima e segura na minha sala de aula.
Se esses sentimentos eram importantes para mim, imagino como eram
importantes para as crianças que vão à escola em busca de conhecimentos, é fundamental
o sentimento de pertencimento para que de fato apreendam. Não como ter um bom
desenvolvimento cognitivo se não o sentimento de acolhimento e liberdade para se
expressar.
O meu olhar para a escola era “focalista”, uso esse termo por achar que ele
conta de explicar o meu sentimento. Era como se eu olhasse cada peça que compõe a
escola isoladamente, uma exposição sem contextualização. Era como se o conjunto não
tivesse vida. Era um olhar que tudo , mas nada me era familiar. Não tínhamos a
intimidade que a vida em comum proporciona. Assim como os migrantes em busca de
caminhos, vivi o sentimento do homem que chega ao novo lugar. Segundo Santos
Ultrapassado um primeiro momento de espanto e atordoamento, o
espírito alerta se refaz, reformulando a idéia de futuro a partir do
entendimento novo da nova realidade que o cerca. O entorno vivido é
lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual. O homem
busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e pouco a pouco vai
substituindo a sua ignorância do entorno por um conhecimento, ainda
que fragmentário. (1997, p.263)
De certa forma eu buscava (re)aprender a escola, lugar familiar para mim, mas
naquele momento estranho. A escola, a sala de aula, as pessoas ressoavam como um
novo lugar e era preciso viver essas relações. Embora reconhecesse naquela sala de aula
um vigor, uma alegria contagiante por parte das crianças, o aspecto físico era sombrio,
aos meus olhos, e de alguma forma me incomodava. O contraste da pintura das paredes,
um rosa desbotado e envelhecido com um cinza funesto, os armários cinza decorados
com enfeites de papel desbotados, as carteiras rosa na sua maioria danificadas, as janelas
de pouca ventilação, os ventiladores terrivelmente barulhentos. Enfim, um conjunto em
nada convidativo quando se tem como realidade o fato de se ter que permanecer
diariamente pelo menos quatro horas no mesmo local.
Foi assim que comecei a demarcar território, à medida que ia adentrando e
produzindo outras práticas no cotidiano da sala de aula. Era preciso criar vínculos a partir
do que tínhamos, pois como nos lembra Certeau (1994), são as práticas dos sujeitos
praticantes que transformam o lugar em espaço. Tornar este espaço agradável era talvez
à condição inicial para criar vínculos. Mas como fazer?
As crianças, por serem muito interessadas e gostarem de estar em plena
atividade, provocam um ritmo acelerado em sala de aula, no início era um verdadeiro
tumulto. Era importante tornar a sala de aula um ambiente prazeroso, ainda que achasse
que o conjunto de elementos que o compunha em nada favorecesse. Haveríamos de
pensar nas possibilidades de mudança; se não tínhamos os equipamentos que melhor se
adequasse àquela situação uma sala equipada com material apropriado e mobílias
dignas de permanecer por algumas horas – haveríamos de fazer alterações para que a sala
de aula se tornasse um lugar mais prazeroso.
Na nossa escola, as salas de aula, em geral, têm as mesmas configurações. O que
muda é o vinculo que se vai tecendo nestes ambientes, a arrumação que é feita, a
organização das atividades e, dentro desse contexto, vai se produzindo o sentido da
existência. Estava ficando claro que haveria de fazer algo para converter a sala de aula
pouco atraente, em lugar de acolhimento. Não estava certa por onde começar, mas sabia
que seria de fato acolhedor se fosse pensado junto com as crianças.
Pensarmos juntos, trocar idéias, chegar a um acordo, entrar num consenso, eram
expressões que não habitavam ainda as nossas relações. Os primeiros encontros
denunciavam que o desejo de falar, de expor as idéias era algo a ser construído pouco a
pouco. O estranhamento entre eles gerando brigas e desentendimentos calorosos nos
permitiam o exercício dessa tal democracia tão perseguida e tão difundida na escola, mas
pouco, muito pouco vivida.
Por ter alguns alunos rápidos na execução da tarefa, outros mais lentos e uns que
necessitam de maior atenção da minha parte, fui a busca de alternativas que me ajudasse
a atender a todos no espaço de tempo que permanecíamos em sala de aula.
Desta forma, fui observando como manifestavam os seus interesses e
desejos. Percebi que gostavam muito dos livros didáticos da escola, mas como eram
poucos os títulos que sobraram do ano anterior a direção e a orientação educacional
disponibilizaram alguns exemplaresem nossa sala. Arrumei, no armário, um espaço com
livros de história, revistas de passatempo e curiosidades que levei de minha casa.
Gostaram da idéia, foram se aproximando do material que guardara e passaram a solicitar
empréstimos entre uma atividade e outra. O fundo da sala tornou-se o espaço usado para
os jogos ou leitura, individualmente ou em dupla, quando as crianças terminam a tarefa.
Decidi começar pelo armário, que era, até então, um artefato de uso
exclusivo da professora. No nosso armário passei a guardar parte do meu material e um
dos cadernos deles quando estava comigo, como a maioria tem dois cadernos enquanto
um estava com eles o outro estava disponível para correção, prática de certa forma já
instituída na escola. Aos poucos fui inserindo no armário alguns jogos e brinquedos para
usarem no pátio. Todo o material é sempre usado por eles e cuidado também por eles. O
armário ganhou outra dimensão: não é mais um objeto da professora, passou a ser de
todos.
Recorrendo a Certeau (1994) começo a entender que disponibilizar o
armário, socializá-lo com o grupo de crianças foi uma tática e que não foi fruto do acaso,
mas da astúcia que se vale da ocasião. Era preciso “driblar” os problemas iniciais e essa
foi à possibilidade que encontrei.
Penso que o armário de ferro, feio e envelhecido sem, provavelmente, nunca ter
passado por nenhum tipo de reforma, ganhou vida em nossa sala e se tornou um
patrimônio
33
nosso. Penso que vou me alfabetizando quando leio o nosso espaço, as
nossas relações, as nossas obrigações de conviver durante um ano juntos e nesse um ano
aprender coisas, muitas coisas. Entendo que é através da produção de nossa
palavramundo, que vou me descobrindo professora de crianças de uma escola
pública.
É na riqueza do mundo que aprendo a ler o próprio mundo, quando busco
nas minhas próprias origens de aluna de escola pública a professora que sou. É
um mundo praticado que antecede a possibilidade de aprendizado que a
formação de professores me possibilitou. É essa experiência encarnada que me
possibilita descobrir a professora que sou, quando vivo uma realidade
profissional para mim, até então, nova. Sempre trabalhei em escolas
particulares, me permitir ser professora a partir da realidade posta e não a que
idealizo que é a de romper as barreiras de uma racionalidade construída a partir
da hegemonia burguesa, que vão tatuando em nós a legitimação da exclusão de
determinadas culturas ao mesmo tempo em que nos conforma.
A aproximação com diferentes teorias possibilitada a partir do ingresso no
mestrado me oportuniza possibilita aprofundar a crítica no modelo cartesiano e refletir
como esse modelo enquadra a educação no papel de instrumento da alienação. O saber
me ajuda a pensar sobre a minha prática, e me condição de compreender como o
pensamento colonizador é forte o suficiente para nos aprisionar em fazeres distantes de
nós mesmos. As teorias vão me ajudando, uma vez conhecedora das armadilhas passo a
cuidar para tentar não me aprisionar aos conhecimentos específicos somente, mas buscar
que a minha sala de aula seja um espaço de criticidade, um espaço dialógico.
33
Aqui entendido como perspectiva da identidade cultural, Magalhães (2005).
A partir da nova dinâmica, que tomou conta da sala de aula, foi necessário fazer
alguns combinados, como por exemplo: os jogos, jogados em grupo, sempre provocam
um alvoroço capaz de prejudicar os que estão por completar as suas tarefas. Assim,
chegamos à conclusão que era necessário instituir alguns acordos e decidimos que os
brinquedos coletivos só seriam usados quando todos puderem participar.
Estas evidências que foram surgindo me fazem afirmar que o ambiente da
nossa sala de aula deixou de ser um espaço desconhecido para se transformar num
espaço de experiências significativas comum a todos. Segundo Santos
Quanto mais instável e surpreendedor for o espaço, tanto mais
surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da
descoberta. A consciência pelo "lugar" se superpõe à consciência no
"lugar". A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa
e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da
nova história. (1997, p. 264)
A minha surpresa inicial e o meu estranhamento foram definitivamente
importantes para desencadear o meu processo de inserção no grupo, quanto menos
inserida me sentia, mais me instigava a possibilidade de descobertas de um novo fazer
que nos aproximasse, de forma que o acolhimento pudesse se sobrepor ao estranho.
Entendo que é impossível conviver diariamente como se fôssemos eternos
desconhecidos, julgo que a interação professora e crianças, será possível se nós
professoras proporcionarmos a acolhida. A criança é por natureza afetuosa, mas nem
sempre o seu jeito de ser e de agir é compreendido por nós porque pensamos a criança do
nosso lugar, pensamos a infância como única e nos esquecemos que diferentes
infâncias.
Dias depois me sentia mais íntima e achava a nossa sala aconchegante. A
agitação continuava intensa, porém conseguíamos nos entender um pouco melhor. Esta
desconfiança vai se consolidando na medida em que se torna evidente a forma como as
crianças vão se apropriando daquele espaço e transformando-o, quando dele fazem uso.
Do mesmo modo que brincam, zelam pelos materiais de uso comum. Quando
algo desaparece tratam logo de identificar quem possivelmente usou e não guardou ou
mesmo levou para casa sem comunicar. Apropriam-se do bem comum e dele fazem uso
incorporando-os como seu. Sempre pedem para levar para casa os jogos e livros, sempre
os empresto e sempre retornam ao armário. Estas manifestações marcam uma
legitimação coletiva, uma apropriação de elementos que o grupo constituiu como seu e
conseqüentemente: cuidam, zelam e defendem os brinquedos reafirmando o seu apego.
Este sentimento é também observado quando levam os jogos e brinquedos
para o pátio durante o recreio. Ou permitem que outros alunos de outras turmas
brinquem, dentro de uma ordem estabelecida por eles, ou brincam entre si não
permitindo novos grupos. Observo como articulam as suas próprias leis e acordos. Se por
um lado desejam que novos grupos se juntem a eles, por outro é nítido o cuidado com os
seus brinquedos. Serão os conflitos causadores da experiência vivida?
O conflito e as possíveis soluções que buscam para a dissolução desses conflitos
parecem ultrapassar a condição de vivência, para situar-se na possibilidade de
experiência. Os episódios diários que se manifestam a cada brincadeira, a cada formação
de novos grupos e a cada alternativa que fazem para uso dos pertences coletivos colocá-
os em constantes diálogos. Não serão esses acontecimentos conflituosos decididos
através de diálogos, as experiências a serem vividas no mundo contemporâneo?
A perda da experiência é a pobreza que vive a humanidade quando esta reduz as
narrativas e faz crescer os meios de comunicação de massa. Ouso pensar que haveremos
de encontrar a experiência em outras relações de vida da criança, que vive o excesso de
informação promovido pelo mundo moderno. Assim me permito perguntar: serão os
conflitos vividos e narrados na sala de aula favorecedores das experiências das crianças?
Revendo o conceito de patrimônio na perspectiva da identidade cultural,
começo a entender que o entorno que nos envolve e nos acolhe que é a sala de aula e,
especificamente, o nosso armário, possui, ou melhor, passou a possuir uma identidade
própria. Magalhães (2005 p.24) nos ajuda a compreender melhor este processo ao afirma
que o patrimônio tem sentido quando “... um indivíduo ou um grupo de indivíduos
identifica como seus um objecto ou um conjunto de objectos...” Neste caso, não se está
negando a idéia primeira de que patrimônio é uma herança deixada pelos nossos
antepassados e que a transmitiremos às novas gerações.
Porém, quando passamos a compreender o significado a partir do presente, da
relação que envolve grupos de pessoas percebemos que consiste “... num processo
simbólico de legitimação social e cultural de determinados objectos que conferem a um
grupo um sentimento colectivo de identidade...”(Magalhães, 2005, p.24).
Especificamente, no nosso caso, a sala de aula, o armário, as brincadeiras no pátio,
independente do horário do recreio, os combinados para uso dos jogos e livros foram
dando significação às nossas relações e a afetividade tem sido construída.
A construção desta relação não foi prevista ou articulada primeiramente através
da teoria, ou seja, não consultei a teoria como se fosse um receituário para executar na
prática. Porém, é natural que a teoria provoque um fazer pensado, que se apresente como
uma ferramenta capaz de nos mostar como pode ser articulada as situações nas práticas,
táticas que se desdobram no cotidiano quando se inventam novas maneiras de fazer.
Certeau nos ajuda a compreender melhor esse sentimento que nos faz aproveitar as
oportunidades
As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao
tempo as circunstâncias que o instante preciso de uma investigação
transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que
mudam a organização do espaço, às relações entre momentos
sucessivos... [...] as táticas apontam para uma hábil utilização do
tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz
nas fundações de um poder. (1994, p. 102)
Quando retorno a teoria compreendo que a prática está ali, viva e presente.
Os documentos teóricos podem até insinuar certa disciplina, pela disposição e convenção
da escrita, pelo exercício que em nós provoca de pensar sobre as práticas, porém os
estudos do cotidiano insinuam esse passear entre a prática e a teoria, ou vice-versa.
Ajuda-me a praticar (e pensar) a pesquisa como movimento prática teoria - prática que
se insinua como uma práxis. E é esta relação até certo ponto misteriosa, até certo ponto
prazerosa, que faz tecer este cotidiano de relações.
É este movimento que me faz crer que a educação não pode ser praticada
na escola como um receituário, mas sim como uma “obra” da vida. Não foi fácil trilhar
este caminho, nem tão pouco difícil, não havia planos de tornar a sala de aula e o armário
espaços demarcados de vida, aconteceu, ou melhor, foi acontecendo à medida que fomos
construindo o nosso fazer.
Não houve e creio que não uma ciência cartesiana e limitada, que conta de
explicar estas práticas, este fazer que deixe a sensação de emergir do tudo e do nada ao
mesmo tempo. È no cotidiano que as relações acontecem, contudo, não é assim que a
nossa formação de professores nos “ensina” a ser professora: uma tendência a pregar
que toda ação é reflexo de uma estratégia, de um recurso, de uma motivação previamente
articulada. Como se a relação aprendizagemensino pudesse se articular numa perspectiva
sempre prevista tecnicamente pela professora, ignorando o cotidiano.
Não pretendo ter uma postura ingênua e negar que essa teoria nos
acompanha e provoca em nós fazeres pensados e, até certo ponto, amadurecidos. Mas,
em contrapartida, não posso pensar as práticas como sendo sempre articuladas e pensadas
previamente com base no que as teorias nos fizeram refletir e conceber como posturas
coerentes.
Como a maioria das crianças, eles também gostam de doces e balas, e
apesar de não ter a pretensão de generalizar, a faço porque falo do universo de crianças
do qual convivo. Um dia resolvi levar um saco de balas para sala de aula e distribui entre
todos, foi uma festa! Confesso que ao registrar essa passagem quis persuadir a mim
mesma, de que esse gesto foi desprovido de qualquer segunda intenção, a não ser nutrir
aquelas crianças de desejos.
Mentira! Digo para mim mesma sem precisar de muitos argumentos para
me convencer; eles eram terríveis e admiráveis ao mesmo tempo, em contrapartida eles
eram 31 e eu uma só, precisava falar e ser ouvida, precisávamos ser amigos, precisava
saber o que sabiam, precisava fazê-los usar os cadernos, registrar atividades, ler, contar...
Distribuir balas foi sem dúvida a primeira coisa que pensei ao avistar o depósito de
doces.
Astúcia, suborno ou condicionamento? Não sei, a única coisa que sei é que a
partir daí os apelos para que repetisse a dose eram freqüentes. Como não poderia
distribuir doce sempre, desafiei a turma a um: “O que é o que é?”
34
Aquele que
adivinhasse ganharia um pirulito. Gostaram da idéia e como tinha um livro com
adivinhações, a cada dia no início da aula a brincadeira acontecia. Logo, no primeiro dia,
João Paulo sugeriu que escrevesse no quadro para que copiassem no caderno, assim
poderiam continuar a brincadeira em casa e com outros sujeitos. Durante muitos dias a
rotina era a mesma, após escrevermos o cabeçalho era hora do, “O que é o que é?”, e
34
Brincadeira típica do Folclore brasileiro que consiste no jogo de palavras e adivinhações.
quando propunha um mais difícil insistiam para dar dicas. Vibravam a cada descoberta e
a cada pirulito distribuído.
O desejo de João vai ao encontro do que Tostoy (2005), acreditava ser de
fundamental importância para vida escolar das crianças. Segundo o autor as obras
escolares tendem a ser por demais preocupadas com as esquematizações e didatismos e
de menos com os reais interesses das crianças. Para o mesmo autor, as crianças deveriam
ser despertadas para uma aprendizagem participante e criativa.
Essa atividade também foi acolhedora e possibilitou que nos tornássemos
mais próximos. Estava em “jogo” à atuação participativa e criativa! Aos poucos fomos
tecendo fios de afetividade regados à descontração e a tensão; as emoções eram vividas a
“flor da pele”, o grupo era agitado e o sabor adocicado dos doces não era sinônimo do
ambiente da nossa sala de aula. Portanto, era preciso investir na possibilidade de um
diálogo que nos permitisse fazer combinados e a partir daí, novas/outras possibilidades
de interação. Certo dia a mãe do Jean me deu o seguinte depoimento:
-“... ele nos espera chegar do trabalho, temos que parar para ouvir a leitura
do “O que é o que é?”, ele fica na expectativa se vamos conseguir adivinhar ou não”.
Os laços afetivos saem do nosso entorno, a geografia se expande. Casa e escola se
articulam, um diálogo que se anuncia. Nesse entrelace a leitura e a escrita,
manifestada através da brincadeira, vai se materializando na medida em que a rotina é
instituída num movimento de prazer.
Ao contrário do sentido atribuído a rotina pelo senso comum que entende
ser repetição e inalterabilidade, na pesquisa a rotina é tomada como movimento de
repetição que produz a diferença, ou seja, a repetição como ruptura do mesmo, a rotina
como produção da diferença, pois esse fazer é sempre diferenteque nenhuma situação
é igual, mesmo quando são repetidas vezes postas em prática.
Quando os desafios do livro estavam chegando ao fim senti que a turma
começava a dar pistas de que a atividade não despertava tanto interesse, entendi que
era hora de parar. Pensei de que forma deveria conduzir o término daquela atividade,
pelo menos naquele momento, sem passar a idéia de “desprezo” ou do “deixar pra lá”
algo que até então tinha nos marcado e insinuado um querer-fazer. Sugeri ao grupo
construirmos fichas de “Adivinhe se Puder” para que “pegassem” adultos e crianças da
escola.
Havia um grupo em nossa sala que se recusava, até então, a ler em
público. Dificilmente conseguia ouvir a sua leitura a menos que fosse a minha mesa ao
som de sussurros. Há um grupo que lê e escreve muito bem, há outros que ainda estão em
processo de alfabetização, uso aqui o conceito mais restrito de alfabetização, e sentiam-
se, provavelmente, constrangidos em seus atropelos diante do texto. Para minha surpresa
passaram a fazer uso das fichas e expor as suas leituras para outros quando saiam em
busca dos adultos da escola. Pouco tempo depois quando propunha uma leitura
oral/coletiva, em voz alta, todos queriam ler, e precisava efetuar inscrições de forma que
contemplasse a todos.
Era o momento dos combinados. Durante o ano letivo, muitos combinados foram
por nós traçados, uma espécie de participação negociada, em que não se por
imposição e autoritarismo. Não é fácil se valer de práticas participativas e democráticas
nas classes, principalmente, de crianças do Ensino Fundamental. ainda nas escolas e
creio que em nós mesmos uma forte tendência a reproduzirmos os modelos autoritários,
fruto, talvez, de uma herança de imposições e dominação que nos marcou historicamente.
Mas o exercício constante de um fazer humanizado nos ajuda a conter o
entusiasmo exagerado das crianças, e manter a organização quando as propostas são por
eles bem aceitas. Quando as práticas geram euforia, a negociação, os combinados no
coletivo são importantes aliados.
Desta forma, não mágica neste processo que os tenha enfeitiçado a ponto de
desejarem ler e escrever de repente, mas percebo que se apropriam da escrita e da leitura
astuciosamente quando se valem da ocasião: sair da sala de aula ao encontro de outros
espaços, de outras pessoas da escola. Como afirma Certeau, (1994, p.93) de forma
“...clandestina usam uma brincolagem e sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe
impõe uma lei, ele instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação
ele tira daí efeitos imprevistos...” Retiram o exercício de ler e escrever do lugar que lhe é
imposto pelo sistema escolar e, como numa “pirataria”, invertem a ordem. Brincam com
o que está instituído por uma formalidade.
Ao formarem as fichas, começaram a se dar conta de quantas cópias fizeram
durante aquele período em que diariamente transcreviam as adivinhações. Foi inevitável
o comentário de Juliene:
Fizemos muito Adivinhe se Puder, copiamos muito.
Continuei em tom afirmativo:
Fizeram muitas cópias.
Juliene, sorrindo respondeu:
Assim é bem melhor fazer exercícios de cópias!
Os textos do Adivinhe se Puder que fizeram parte das fichas foram digitados por
mim, que não foi possível articular esta atividade com a sala de informática da escola.
Por ser a sala muito pequena e nem todos os computadores estarem funcionando, é
comum não se conseguir um bom trabalho com a informática, fato que gera certa
frustração às crianças.
Viver a relação aprendizagemensino, tal como acontece no cotidiano, nos
coloca nessas pequenas armadilhas: fazer certas vontades, ceder a alguns apelos, enfim
nos permitir a afetividade. Numa relação entre adultos e crianças algumas possibilidades
de interação são de fundamental importância, portanto, a negociação, os acordos, o
espaço para a troca de afetividades nos parece pontos relevantes para que haja uma
relação de respeito. Iturra descreve um pouco do que pode nos ocorrer ao lidarmos com
as crianças.
Amorosos exemplos de como a infância faz mudar o comportamento
dos adultos, os quais, sem ficarem nem em público nem em privado,
ao serviço ou sob comando da pequenada, acabam por constituir essa
sociedade que apaparica o doce e dinâmico imaginário do pequeno
ser. Será que esta história encantada é universal? (1997, p.10)
Propondo-se ensinar do ponto de vista da ousadia Freire (1997), afirma ser de
fato universal a amorosidade no sentido político do termo, por ser um aspecto
fundamental para quem deseja educar numa concepção progressista.
Por ser verdadeira a relação com as crianças é que, muitas vezes, quando
percebemos nos deixamos cativar. Do ponto de vista da escuta sensível essa maneira
de lidar com os sentimentos se permitindo as emoções estaria na ordem do foro íntimo da
pessoa. A escuta sensível começa por não interpretar, por suspender qualquer juízo [...]
Ela aceita deixa-se supreender... (Barbier,1992). Essa maneira de consentir que as
emoções aflorem sem lhe impor um juízo de valor é como um procedimento artístico
artesanal que requer uma atenção minuciosa, especial.
Conviver com uma prática pedagógica que permita a amorosidade era um
exercício que se manifestava pouco a pouco nas nossas relações cotidianas. Certo dia, de
posse do meu planejamento, começamos a aula. Registrava algo no quadro quando uma
revoada de pássaros invadiu a copa da árvore que alcançava a janela da nossa sala. Era
freqüente isso acontecer nas manhãs ensolaradas. Nesse dia em especial, a algazarra por
eles provocada chamou atenção das crianças. As janelas da sala de aula foram tomadas
pelos apreciadores que disputavam um lugar. Interrompi o que ensaiei começar e de
súbito fiz uma rima:
Sabiá você sabia?
As crianças mais que depressa entraram na brincadeira que nos rendeu novas
práticas e uma poesia. A sala de aula pode ser um espaço do instituído como pode ser
também o espaço do instituinte. Essa possibilidade acaba por trazer a tona o prazer
despertando em mim e nas crianças um sentimento de pertencimento múltiplo, ainda que
não seja todos os dias assim conviver com a possibilidade, também, da imprevisibilidade
nos causa maior intimidade.
Essas práticas em nada invalidam o planejamento prévio, alias este é importante
para que me oriente e diante do imprevisto não permita o empobrecimento da aula.
Entretanto, a condição de tê-lo como o instrumento que não aprisiona é importante para
minha, nossa ousadia em criar.
Através dos registros da Juliene em seus cadernos, guardados com todo carinho, e
que me foram emprestados em 2008, foi possível resgatar algumas dessas práticas. Trago
como uma das possibilidades de refletir sobre a nossa sala de aula e as nossas
construções. Parafraseando Caetano Veloso: o desafio da dor e do prazer de saber o que
é uma aula.
Figura 33, página do caderno de Juliene,
poesia do sabiá
Figura 34, página do caderno de Juliene,
exercício sobre a poesia
A amorosidade no nosso caso foi sendo ensinada e aprendida à medida que
íamos, aos poucos, nos conhecendo e articulando alguns fazeres, tais como: a leitura, a
escrita, a escuta, a brincadeira, o desejo, o desafio, o espaço, as falas, a geografia.
Segundo Freire
É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor
sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de
anticientífico. E preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-
bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos conhecemos
com nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com
os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também
com a razão crítica. Jamais com esta apenas. (1997, p. 10)
É preciso inclusive ousar para falar em atitude de doação por parte de s
professores no momento atual em que vivemos. Esmagados e oprimidos buscamos
politicamente nos colocar contra toda e qualquer possibilidade de não sermos vistos pela
sociedade como profissionais. Atitude politicamente correta de nossa parte, entretanto,
como nos afirma Iturra (1997) nos deixamos levar pelos paparicos da infância, acima de
tudo, porque somos humanos e vivendo numa sociedade tão excludente como a nossa é
quase impossível não cedermos a alguns caprichos das nossas crianças, também
oprimidas e sacrificadas.
Nas primeiras aproximações que fizemos com os mapas, do Brasil e do
mundo, pude perceber o interesse e fascínio que estes exerciam sob as crianças. As
curiosidades e mistérios que guardam os mapas estimulavam-nos a viajar para além das
fronteiras que a cartografia poderia delimitar.
Sempre que aparecia nas nossas produções diárias, alguma atividade com
o nome de uma cidade, região ou país, instigava a curiosidade das crianças perguntando:
Onde será que está situado esse lugar no planeta.
A brincadeira começava com um corre-corre até os mapas que havia fixado na
parede da sala. Um desafio natural se punha entre eles transformando curiosidades em
brincadeiras. Era comum nessas horas em meio o “empurra-empurra”, e os
desentendimentos ocasionados pelas disputas, um deles em tom de euforia anunciar:
Já achei, tá aqui...!
A partir daí uma nova viagem era possível. Conversávamos sobre aquele
lugar revelando o que sobre ele conhecíamos ou ouvimos falar. Aproximávamos as
possíveis fronteiras com outros lugares e a distância que este nos coloca, bem como, os
costumes, as histórias... era sempre uma diversão.
Uma das primeiras vezes que isso ocorreu foi quando levei um texto para
interpretação
35
Ela veio da terra do Sol Nascente.
Do Japão, do outro lado do mundo, quando aqui é dia, lá é noite.
Seu pai trouxe toda a família para trabalhar na lavoura.
Ela era a terceira filha, e se chamava Keiko...
A história conta a aventura de uma menina japonesa que veio morar no Brasil e
ao chegar à escola se assusta com a nossa cultura. A interpretação do texto, em forma de
exercício de perguntas e respostas, que organizei no meu planejamento de aula ficou para
segundo plano. Naquele momento o que mais interessava eram as descobertas que
podíamos fazer, atravessando terras e mares sem nos preocuparmos com as fronteiras
territoriais que nos distanciava daquela parte do globo terrestre.
Tia, você sabia que quando no Brasil é dia no Japão é noite?
Tia por que eles comem de palitinhos?
Tia por que eles tiram os sapatos para entrar em casa?
Parte das respostas eles mesmos se incumbiam de explicar aos colegas.
Desejei saber como sabiam tanto sobre o Japão e foram quase unânimes em afirmar que
viram na televisão. Embora esse potente meio de comunicação seja alvo de tantas
críticas, têm nos permitido descobertas. Os avanços tecnológicos, “...a globalização da
economia e a difusão, cada vez mais veloz da informação, produziram uma
espacialidade complexa - da simultaneidade, da justaposição, do próximo e do
longínquo, do lado a lado...” (PEREZ,2005,p.6). A socialização das informações é uma
característica marcante da atualidade e mesmo as crianças menos assistidas
economicamente entram contato com o mundo, neste caso não como a escola
subestimar a televisão como meio de informação.
35
Keiko, de Cristina Von (Editora Callis, 1995)
Desta forma, vai-se diminuindo a distância entre os conhecimentos adquiridos
pelas pessoas de uma classe mais favorecida que, em geral, tem acesso a diferentes meios
culturais, de outra oriunda de classes menos favorecidas e que tem acesso restrito a
outras realidades.
A afirmação feita por uma das crianças, de que aqui é dia enquanto no
Japão é noite, suscitou curiosidades, logo o percurso da aula mudou. A imprevisibilidade
do cotidiano ia, pouco a pouco, me fazendo perceber que as práticas se materializam no
uso das possibilidades que se manifestam no consumo de diferentes situações do dia a
dia. Com Michel de Certeau (1994) vou compreendendo que o planejamento de uma aula
pode ser alterado transformando às maneiras de fazer dos praticantes, quando a ele são
incorporados outros elementos.
Esta concepção do uso e consumo que damos as coisas, rompe com a idéia
unidimensional do planejamento e organização das aulas, (CERTEAU 1994). Nos cursos
de formação de professoras aprendemos que o planejamento é flexível, entretanto este
ainda se mantém pouco maleável. A flexibilidade concentra-se muito mais em antecipar
ou prorrogar determinadas atividades. Neste caso, a ênfase recai, na maioria das vezes, na
alteração ou não do tempo previsto, mas as propostas pedagógicas, quase sempre,
continuam a cumprir o objetivo primeiro traçado pela professora.
Quando as maneiras de fazer subvertem a ordem e se transformam em outras
tantas possibilidades, diferentes da imposta ou prevista pela professora, não quer dizer
que se pretende descartar o valor da primeira, nem o objetivo anteriormente determinado,
mas dar à aula novos significados.
O planejamento inicial inspirado na interpretação de texto, configurado em forma
de exercício de perguntas e respostas por mim elaborado, é tomado de novos
significados, quando a ele novas práticas vão sendo incorporadas. O texto não
apresentava uma única maneira de ser usado, mais do que a interpretação do texto, a
partir das questões por mim pensadas, eram as descobertas que íamos fazendo a partir
das próprias inferências do grupo.
Acolhendo a pergunta das crianças, sobre o espaço-tempo do homem na
dimensão do universo, propus uma vivência através da vela ocupando o lugar do sol e, do
globo terrestre ocupando o lugar do planeta. A partir do experimento, do fenômeno da
existência do dia e da noite no espaço-tempo do planeta habitado, fui percebendo o
quanto o estudo da geografia, nas anos iniciais, pode ampliar os conhecimentos das
crianças e a leitura da palavramundo.
Essas e outras tantas descobertas são possíveis se a nossa opção como
professora não é determinante, imposta e se nos permitimos trafegar pelas trajetórias de
descobertas dos alunos. Se o damos as questões por encerradas, entendendo,
equivocadamente, que uma vez feita à explanação do assunto este estará sendo
incorporado pela criança. É importante ter a clareza de que as operações cognitivas da
criança não estão elaboradas como do adulto, entretanto, muitas vezes esquecemos esta
verdade e operamos dentro da mesma lógica.
Por outro lado, quando na relação de sala de aula o sentimento de prazer se faz
presente e as crianças se sentem colaboradoras no processo de construção do saber, estes,
tendem a se tornar mais exigentes. Assim, quando as aulas se apresentavam mais
cansativas eram duramente criticadas por eles.
Vencer as limitações da escola pública, nem sempre assistida de recursos e
espaços para novas práticas nos impõe certo malabarismo. Neste caso, a aula quando
compartilhada com as crianças anuncia acontecimentos que marcam vidas e que de certa
forma se sobrepõe aos obstáculos. Interpretando esse cotidiano através de (Certeau,
1994) entendo essas práticas que rompem a ordem estabelecida como sendo a arte dos
sujeitos ordinários, ao mesmo tempo em que cumprem, corrompem o sistema vigente,
inventando novas formas de fazer.
Eram as diferentes formas de fazer, inventado dia após dia, que nos tornava cada
vez mais íntimos. Fiquei ausente por alguns dias, após decidir participar de um congresso
em Salvador. Cheguei numa quinta-feira e as reclamações e curiosidades eram muitas.
Tia, você foi aonde?
Tia, o que você foi fazer lá?
Tia, você foi de quê?
As minhas respostas se multiplicavam em tantas outras perguntas, estavam
curiosos ao mesmo tempo em que se sentiam traídos por não terem sido avisados. Dentro
do possível, comunicava quando teria que me ausentar por algum motivo. Da viagem
trouxe um folder ilustrativo contando a história de Salvador, propus ler para eles ao
mesmo tempo em que mostrava as fotos. Nesse meio tempo alguns estavam em frente
ao mapa buscando se orientar. Comecei a instigá-los a localizarem as regiões e estados
do país tomando como referência as cidades de onde parti e aonde cheguei. As histórias
se multiplicaram e depois de muita conversa resolvemos registrar no caderno tudo que
fomos aprendendo. A aula tomou a seguinte formatação:
Figura 35, página do caderno de Juliene, texto coletivo
Os mapas enquanto artefato de uso nos possibilitava descobrir outros
mundos, descortinávamos fronteiras territoriais. Atras dos mapas e das histórias íamos
multiplicando os nossos saberes.
À medida que a ousadia se pronunciava no cotidiano das nossas ações, íamos
pouco a pouco nos envolvendo e tornando crescente a relação aprendizagemensino. É
possível, ao dialogar com Freire, anunciar infinitas argumentações que dão sentido as
nossas práticas e que resignificam nossas relações. Mas é preciso ousar para perceber,
inclusive, que o cotidiano é feito de descobertas, não um modelo de interação
professora e alunos, o que vale nesse processo é se permitir, a cada dia, novos achados, à
medida que se consente ver o que não está aparente nítido.
CONCLUSÃO
PONTO FINAL OU RETICÊNCIAS: TENTANDO
FINALIZAR
Penso na sala de aula, penso em como nos constituímos professoras na sala de
aula, penso em quantas vidas nos passam e o quanto esse espaço pode ser construtor de
significados: às vezes estranho e às vezes íntimo.
Tento retomar a pesquisa a fim de pôr um ponto final. Percebo o quanto é
impossível retomar o caminho fazendo uma leitura linear do que juntos vivemos, porque
as nossas vidas não são lineares e o cotidiano é latente, portanto cheio de armadilhas e
atalhos. Foram as armadilhas da vida que nos tornaram íntimos. Poderíamos ser apenas
professora e crianças, mas fomos além: nos perdemos e nos reencontramos muitas vezes.
Não nos encontramos por acaso, afinal para a escola vão às professoras para
ensinar e as crianças para aprender e em meio a essa relação uma gama de conhecimentos
a estudar. Neste caso era preciso construir aprendizagens. Assim como as linhas
Figura 36, página do caderno de Juliene,
imaginarias desenham os mapas, traçamos novos percursos a partir dos conhecimentos de
Matemática, Linguagem, Ciências Naturais, Geografia e História.
Muito cedo compreendemos que os conhecimentos nos pertenciam porque estes
pertencem ao mundo e aprendemos a lidar com eles. Entre os exercícios convencionais e
outras possibilidades de produção por nós instituídas vivemos a transdisciplinaridade
dos saberes.
Os corpos disciplinados pela escola vão ganhando movimento, a carteira se torna
por demais pequena e insignificante. Somente o espaço da sala de aula não é suficiente
para dar contas de tantas descobertas. Assim, entram em cena os combinados: nas
brincadeiras pelo pátio, nos exercícios dos cadernos e livros, na visita a comunidade, no
armário da sala, no jogo de bola, na prova, nos desentendimentos, nas festas de porta
fechada, no bolo de chocolate e nos passeios pela cidade (sem tempo de serem aqui
narrados)...
A professora vai aprendendo com as crianças a fazer pesquisa. As crianças,
através dos seus relatos orais, seus desenhos, suas produções, enfim da sua intervenção
diária revelam a palavramundo. São elas que anunciam outros saberes, novos
conhecimentos até então não registrados nos livros didáticos, nos manuais de
professores, nos documentos oficiais. São elas que denunciam as injustiças sociais,
delatam o mundo dos adultos, o mundo da escola.
É inserida neste contexto que a pesquisa se abre e que as questões teórico-
metodológicas são reconhecidas no cotidiano da sala de aula, pois estas não o
impostas, não são previamente delimitadas. Ao contrário, são achados e estes acabam por
justificar a importância dessa pesquisa. Os atalhos seguidos, muitas vezes
implicitamente, possibilitaram a experiência encarnada. E são essas experiências vividas
e compartilhadas com outras professoras que podem nos ajudar a reinventar a escola e a
profissão docente.
São muitas as dobras que nos possibilitam a mudança de práticas e que podem
contribuir para minimizar a evasão escolar, o analfabetismo, a distorção série idade, a
defasagem dos conhecimentos dentre os tantos outros problemas que envolvem a
educação brasileira. Sabemos que questões maiores e mesmo as práticas
comprometidas não conseguem reverter, mas sabemos também que fazemos parte de um
contingente de pessoas que podem ajudar a mudar o panorama da educação, quando
mudam o panorama de sua sala de aula, de sua escola.
Retomo a questão central desse texto: quando, onde e como colocar o ponto que
encerra, termina, acaba? Não como colocá-lo, somos parte do cotidiano e este não se
encerra, os homens continuam a viver, mesmo que escolham diferentes atalhos. Penso
que a reticência é o sinal gráfico de pontuação a usar porque a reticências indica
continuidade, (in)acabamento.
O tempo-espaço dessa pesquisa é cíclico, porque os sujeitos fazem parte de um
cotidiano mais amplo. Os sujeitos encarnados nessa pesquisa continuam trilhando os
caminhos da escola. O desafio é que a pesquisa possa servir de mediação, provocar
diálogos entre outras professoras-pesquisadoras das suas práticas, somar em discussões
sobre fazeres pedagógicos, ressoar em mudanças significativas para as professoras e as
crianças.
Tempo-espaços cíclicos sugerem que os tempos da pesquisa sejam retomados. O
ano de 2006 passou. Aparentemente o trabalho de campo se encerra com o término do
ano letivo, mas outros tempos chegam e fazem novos acontecimentos. O ano de 2007
separa professora e crianças. Novas professoras e novas crianças entram em cena.
A professora pesquisadora que aprendeu a ser pesquisadora com as crianças
continua a sua reflexão, outros achados da pesquisa vão sendo incorporados ao texto. As
crianças crescem, encerram o seu período de escolaridade na Escola Municipal Diógenes
Ribeiro de Mendonça. Em 2008, as crianças iniciam a terceira etapa do ciclo e seguem
em busca de outras escolas, a professora retorna ao Diógenes, após licença para estudos.
Há um movimento cotidiano que nos ensina a ler o mundo.
Vez ou outra as crianças voltam, passam pela antiga escola, são visitantes. A
professora os vê crescidos, rostos diferentes, a adolescência se aproxima. Trazem notícias
uns dos outros, estão quase todos na mesma escola do bairro que agrega a terceira etapa
do ciclo (antiga 5ª a 8ª série).
Delcy chega para visita está mais quieto, tranqüilo, diz fazer parte de uma igreja e
estar fazendo curso para diácono e em dois anos estará preparado, parece orgulhoso da
opção que fez sozinho, pois os seus pais não freqüentam a mesma religião. Bruno
também vem me ver, mais alto e forte diz estar feliz com a nova escola, mas assustado
com muitos professores. Juliene também aparece, o rostinho de criança ficou num tempo
passado a menina parece moça nos seus trejeitos. Pouco a pouco eles chegam...
A professora retoma as suas atividades, outras crianças, outras histórias. Umas
parecidas, outras novas. O trabalho de apoio ao ciclo faz com que encontre aqueles que
parecem estar excluídos, ainda que incluídos pelo sistema: freqüentam a sala de aula de
crianças leitoras, de palavras e textos, mas ainda não lêem as palavras escritas. Fato que
os deixa constrangidos em alguns momentos e que são revelados por eles durante os
encontros:
Tia, a gente pode ficar estudando todos os dias aqui? na sala eles ficam
rindo da gente, porque nós não sabemos ler. Fala de Débora
Tia, se eu ler acho que meu pai até vai chorar. Fala de Adriel.
Até que fim! Fala de Esdras ao ler uma palavra, ao mesmo tempo em que se
debruça sobre a carteira, jogando o corpo em sinal de alívio. Era como se estivesse
dizendo: posso relaxar porque também consegui.
Gabriel apresenta dificuldade em ler as palavras, tem a letra pouco legível,
aglutina e omite letras. Isabel, professora da sala de recursos adverte.
Gabriel também precisa de apoio é irmão de Bruno, aquele que não escrevia
nada, lembra? Foi seu aluno...
Reencontro em Gabriel o Bruno, as dificuldades parecidas com a do irmão e a
mesma vontade em superá-las. Gabriel me pede para passar um “dever” de casa, mostro-
lhe uma folha pautada, ele se anima e diz preferir aquela folha. No outro dia chega com a
folha preenchida e me entrega, toda dobradinha em meio a outros cadernos. Histórias
iguais, histórias parecidas que são possíveis de se revelar porque o cotidiano não é
previsível, porque é feito de achados de fios que tecem vidas.
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