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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Coletores de samambaia-preta e a questão ambiental: estudo
antropológico na área dos Fundos da Solidão, município de
Maquiné, Encosta Atlântica no Rio Grande do Sul.
Rumi Regina Kubo
Orientadora: Cornelia Eckert
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutor em
Antropologia Social.
Porto Alegre, novembro/ 2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Coletores de samambaia-preta e a questão ambiental: estudo
antropológico na área dos Fundos da Solidão, município de
Maquiné, Encosta Atlântica no Rio Grande do Sul.
Rumi Regina Kubo
Orientadora: Cornelia Eckert
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obtenção do
grau de Doutor em Antropologia Social.
Porto Alegre, novembro/ 2005
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BANCA EXAMINADORA
Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Dra. Carmen Rial (Universidade Federal de Santa Catarina)
Dra. Isabel Cristina de Moura Carvalho (Universidade Luterana do Brasil)
3
AGRADECIMENTOS
Ao findar esta tese, fica a certeza de que as pessoas são fundamentais.
À Dra. Cornelia Eckert, a minha professora orientadora, sou profundamente grata, pois me
abriu as portas do universo da Antropologia e, sob diferentes formas, orientou esta tese: pela
sua paciência, amizade e compreensão ao meu ritmo de trabalho, pela medida exata entre
interferir e apoiar, pelo exemplo de profissionalismo, pelas críticas quando estas se fizeram
necessárias e pelo apoio até os últimos momentos de escritura desta tese.
A Dra. Gabriela Coelho de Souza, amiga e parceira na trajetória dentro do Projeto
Samambaia-preta e no DESMA (Núcleo de Estudos em desenvolvimento Rural sustentável e
Mata Atlântica) cujo alcance e significado, as palavras não são capazes de traduzir. Na
realidade, ao longo do tempo tenho descoberto o quanto, complementarmente, conseguimos
construir um espaço de atuação em que depositamos nossos ideais e colocamos à disposição
de outras pessoas o que temos a oferecer profissionalmente e como pessoas.
Aos moradores dos Fundos da Solidão e Espraiado, André, Araci, Avelino, Dete, Dila, Dona
Eurides, Dona Henriqueta (in memorian), Dona Lina, Dona Maria, Dona Otilia, Dona Vitória,
Fabiano, Ivone, Ivone Dias, Lidorino, Lino, Lisiane, Lourdes, Margarida, Maria, Mariano,
Mariante, Marino, Marta, Mauro, Nei, Nico, Regina, Roberto, Romarise, Seu Amândio, Seu
Arlindo, Seu Ervino, Seu Juca, Seu Lidorino, Seu Manoel, Seu Olímpio, Seu Reduzino, Seu
Renato, Seu Valdir, Seu Virgilio, Simone, Sueli e todas as crianças, por compartilharem
comigo suas vivências.
A Rafinha, Nei, Lisiane e Miriam pela hospedagem e hospitalidade e momentos de intensa
troca de idéias.
A toda a equipe do Projeto samambaia-preta, Prof. Dr. Lovois de Andrade Miguel, Ana
Cristina Brandão Dourado, Cláudia Luiz Schirmer, Cleonice Kazmirczak, Fabiana Silva,
Gabriela Coelho de Souza, Jair Gilberto Kray, João Batista de Almeida Sobrinho, Leonardo
Alonso Guimarães, Luciane Corrêa, Marcelo Marin Farias, Rafael Ribas, Rodrigo Magalhães,
Tânia Inês Serafini, e a todas as pessoas que em determinados momentos contribuíram com
este projeto. São pessoas com as quais iniciei minha incursão aos Fundos da Solidão e
4
igualmente o alcance e significado, não são saberia expressar por palavras, visto que deixarão
marcas por toda a minha vida, pelo exemplo de profissionalismo, empenho, dedicação e
companheirismo.
A equipe do Desma (Núcleo de Estudos em Desenvolvimento Rural Sustentável e Mata
Atlântica), Carolina, Cristina, Cristofer, Eliza, Gabriela, Gilberto, Guilherme, Gustavo, Guto,
Joana, Jorge, Julia, Luciano, Mari, Marilia, Rodrigo, Rodrigo Baggio, Thiago, Tiago
Germann, que da mesma forma que a equipe do projeto samambaia, tem me ensinado a
delícia do “conhecer” quando esta se constrói também com o coração.
A ONG ANAMA, que hoje é constitutivo de meu ser e minha formação enquanto pessoa e
profissional.
A toda a equipe do Herbário ICN, Profa. Dra. Mara, Joana, Regina, Jair, Alexandre e seu
Reinaldo, pelo apoio, carinho e pela compreensão às ausências em decorrência da realização
deste trabalho.
A Ana Elisa Freitas por compartilharmos este grande desafio de nos aventurarmos por outros
campos disciplinares e ao Gianpaollo Adomilli, pelos momentos de conversas e debates.
As professoras Dras. Ana Luiza Rocha e Isabel Carvalho, pela leitura, críticas e sugestões
para esta tese.
Aos professores do Curso que gradativamente me conduziram pelos caminhos da
Antropologia.
À Rose, secretaria do PPG Antropologia Social, por todo apoio em todos os momentos do
curso.
Ao CNPq pela bolsa e taxa de bancada, que tem permitido a formação de gerações de
pesquisadores neste País. Ao Fundeflor e Programa RS-Rural que me permitiram custear parte
das saídas a campo.
Ao Ricardo meu companheiro nesta vida, por toda a compreensão, solidariedade e sabedoria
em todos os momentos.
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Resumo das diferentes classificações relacionadas à área de Mata Atlântica
(compilado de Rizzini, 1979; Adams, 2000).
Quadro 2 – Resumo dos principais eventos relacionados à Mata Atlântica no Estado do RS.
(compilado de Marcuzzo et al, 1998)
Quadro 3 – Principais eventos ocorridos entre 1999 e 2004 em Maquiné, RS.
Quadro 4 - Principais leis referentes à atividade extrativista da samambaia-preta no RS.
Quadro 5 – Listagem dos integrantes da equipe de trabalho da ANAMA, que acompanhavam
as atividades das Farmácias Caseiras Comunitárias de Linha Solidão.
Quadro 6 - Equipe de trabalho que elaborou o projeto de pesquisa sobre a biologia e ecologia
da samambaia-preta.
Quadro 7 - Equipe de trabalho do Projeto Samambaia-preta, com respectiva formação
profissional e identificação da função dentro do projeto.
Quadro 8 – Faixa de preços (R$ por mala) de compra e venda da samambaia-preta entre as
diferentes fases de intermediação - do Litoral Norte do RS para outros estados.
Quadro 9 – Moradores dos Fundos da Solidão, no período de realização do trabalho de
campo entre 2000 e 2005.
Quadro 10 – Levantamento dos produtos do grupo Samambaia-preta-artesanato, em Reais
(R$), vendido no período de março de 2004 a fevereiro de 2005, intermediado pela ONG
ANAMA (Ação Nascente Maquiné).
6
LISTA DE FIGURAS (*)
Figura 1 - Colagem com detalhe da capa e cartaz do 2° Encontro de Pesquisas sobre o Vale
do Rio Maquiné realizado no Município de Maquiné em 30/11/2002 (criação de Luciano
Montanha e Vladimir Evangelista) e fotos de samambaia-preta dos arquivos do Projeto
Samambaia-preta.
Figura 2 - Mapa da área de abrangência da Mata Atlântica com os limites das formações
vegetais constantes no Mapa da Vegetação do Brasil, do IBGE (1993) e respectivas extensões
indicadas. (Fontes IBGE: 1999, 1993; ISA: 1999 apud Capobianco, 2001.).
Figura 3 - Mapa do Rio Grande do Sul com as áreas correspondentes à Mata Atlântica, com
indicação das três áreas piloto (em vermelho): a) Quarta Colônia, b) Litoral Norte, c) Entorno
do Parque Nacional da Lagoa do Peixe.
Figura 4 - Mapa com a localização do município de Maquiné, RS. (Elaborado por Márcia
Tavares, 2000).
Figura 5 – Bacia Hidrográfica do Rio Maquiné.
Figura 6 - Topo-seqüência das encostas dos vales da bacia Hidrográfica do rio Maquiné, com
a vegetação e atividades associadas (ANAMA/ PGDR-UFRGS, 2000)
Figura 7 - A pesquisadora em atividade de campo. (Fotografia de: Ricardo Augusto Lopes
Fagundes)
Figura 8 – Montagem contendo: a) Miniatura de um mapa de Maquiné, de fonte
desconhecida b) fotografia com a vista geral dos Fundos da Solidão tirada de um dos morros,
c) mapa em detalhe da área dos Fundos da Solidão, d) imagem de satélite do município de
Maquiné com indicação da área dos Fundos da Solidão.
Figura 9 – Genealogia dos moradores dos Fundos da Solidão, com desenho esquemático da
distribuição das casas. Foram utilizados cores e números para identificação da casa dos
progenitores e delimitação da família extensa.
O início da subida ao morro para a coleta de samambaia.
Figura 10 – Genealogia familiar montada por Zeneida Gonçalves (em negrito, os moradores
fixos ou ocasionais do Fundo da Solidão em 2004)
Figura 11 – Representações em torno das atividades produtivas ao longo do tempo entre os
moradores dos Fundos da Solidão, Maquiné, RS.
Figura 12 – O início da subida ao morro para coleta de samambaia.
Figura 13 - Uma mala (unidade básica para comercialização de samambaia).
Figura 14 – Margarida num momento de coleta de samambaia-preta.
Figura 15 – Seqüência do processo de coleta da samambaia.
7
Figura 16 – Margarida carregando um fardo de samambaia.
Figura 17 - A amarração das malas e o monte com samambaia para ser entregue ao puxador.
Figura 18 – A entrega das samambaias ao puxador.
Figura 19 – Elos da cadeia produtiva da samambaia-preta.
Figura 20 – Seqüência do processo de levantamento de um fardo.
Figura 21 - Gráfico identificando as diferentes fases da atividade extrativista e relação com a
regeneração vegetal.
Figura 22 – Etiqueta identificando as peças artesanais produzidas pelo grupo de artesãs.
(Autores da etiqueta: Silvio Lovato e Tânia Serafini)
Figura 23 – Parte do material de divulgação do grupo que trabalha com o artesanato.
Figura 24 – Peças produzidas antes e após o processo de formação do grupo (Fotografia:
Gabriel Coelho de Souza).
(*) As fotografias tiradas pela autora não foram identificadas.
8
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANAMA Ação Nascente Maquine
CDB Convenção da Biodiversidade
CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente
EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural no Rio Grande do Sul
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ONG Organização Não-governamental
PGDR Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural
RBMA Reserva da Biosfera da Mata Atlântica
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
9
RESUMO
Este trabalho consiste em um estudo antropológico sobre os moradores dos Fundos da
Solidão, uma localidade do município de Maquiné, RS. Essa área encontra-se dentro dos
limites da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e sua identidade e condições de existência
são tensionadas pela prática de uma atividade específica: a coleta de samambaia-preta - que
sofre restrições sob ponto de vista da legislação ambiental. Caracteriza-se assim, um grupo
social, envolto por um problema que tem conotação ambiental. Reconhecendo o caráter
polissêmico do termo ambiental, parte-se do pressuposto de que esse grupo, encontra-se
atravessado por ditames gestados por um campo circunscrito como ambiental. Tais ditames,
tendo abrangência ampla, atingem esferas sociais diversas, e diante de situações locais
específicas, como no caso deste grupo, apresentam-se na forma de conflito e dilemas que
evidenciam modos de vida diferenciados e submetidos às condições assimétricas constitutivas
da sociedade, transfigurando-se como um problema social. O recorte e a abordagem ocorrem,
portanto, sob o horizonte de uma prática especifica, a extração de samambaia-preta, a partir da
qual, buscou-se o desvendamento de seu universo social. Nesse percurso, não se buscou
apenas, resgatar as práticas sócio-culturais desses extrativistas frente a um processo que tende
à sua exclusão social, mas procurou-se uma aproximação a estes sujeitos “em processo” que
percebem determinadas mudanças em seu meio ecológico e sócio-político, e que frente às
intimações de seu tempo, constituem um devir, através da luta pela permanência de
determinadas práticas locais, a adesão a outras práticas sociais e aliança com novos
mediadores e interlocutores, tudo isto, num clima de constante conflito e re-acomodações.
PALAVRAS-CHAVES: saber-fazer, identidade, conflito ambiental, extrativismo, Mata
Atlântica
10
ABSTRACT
This work is an anthropological study on the inhabitants of Fundos da Solidão, locality of the
city of Maquiné (Brazil), whose territory are inside of the limits of the Reserva da Biosfera da
Mata Atlantica and its identity and life conditions are pressured by the practical one of a
specific activity: the Samambaia-preta harvest. This activity is prohibited under point of view
of the current forest legislation. We have thus, a social group crossed for environmental
questions. Such questions reach diverse social spheres, and in contact with specific local
situations, as in the case of this group, results in the conflict form. The clipping and boarding
of this group occur, therefore, under the horizon of practical one specify, the Samambaia-
preta harvest, from which, your social universe are disclosed. In this situation, one does not
only search, to rescue cultural pratices of the these harvesters in front to a process that tends
to its social exclusion, but to search an approach to these citizens "in process" that they
perceive changes in course in its ecological and social context. In this way, they constitute
your future, either through the fight for the permanence of determined local practices and
knowledges, the adhesion to social practical others and alliance with new mediators and
interlocutors, everything this, in a conflict condition and re-adaptations.
KEY-WORDS: know-how, identity, environmental conflict, extractivism, Atlantic
Rainforest
11
SUMARIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................14
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15
CAPITULO 1
O contexto para o estabelecimento de uma problemática ambiental relacionado ao
extrativismo de samambaia-preta.........................................................................................19
1.1. Entre a retenção e o deleite: o paradoxo das relações dos seres humanos em relação ao
seu meio ambiente.....................................................................................................................20
1.2. A busca de definições para Mata Atlântica: um olhar fitofisionômico..............................23
1.3. Mata Atlântica e as preocupações com a proteção ambiental: a construção do conceito de
Mata Atlântica e de Reserva da Biosfera..................................................................................25
1.4. A Mata Atlântica no jogo entre o global e o local.............................................................33
1.5. Maquiné: a emergência de uma nova ruralidade entre natureza e cultura.........................36
1.6 O extrativismo da samambaia-preta: um problema ambiental?..........................................47
1.7. Do campesinato às populações tradicionais, um panorama conceitual para a
caracterização dos moradores do Fundo da Solidão.................................................................55
1.8. ANAMA, uma organização não-governamental e uma certa forma de intermediação.....60
1.9. A parte, o todo e a mediação..............................................................................................64
CAPITULO 2
Entre a Biologia e Antropologia, o contexto para a realização do presente trabalho......70
2.1. A entrada nos Fundos da Solidão: embaraços de um processo de inserção no universo de
pesquisa pela porta de uma ONG..............................................................................................71
2.2. O novo lugar “político” e a experiência compartilhada: a inserção etnográfica a partir da
academia antropológica.............................................................................................................77
2.3 No fluxo da experiência etnográfica, misturam-se coisas, palavras e as pessoas...............86
CAPITULO 3
Os Fundos da Solidão.............................................................................................................91
3.1. “Estar lá”............................................................................................................................92
12
3.2. As famílias e a distribuição espacial..................................................................................93
3.3. As terras e a tradição sucessória.........................................................................................96
3.4. Os moradores dos Fundos da Solidão: descrição e funcionamento das unidades
domésticas...............................................................................................................................102
3.5. As relações entre gêneros.................................................................................................106
3.6. As novas gerações e o estatuto da criança.......................................................................108
3.7. A renda familiar...............................................................................................................110
3.8. O tempo como fonte de estranhamento aos olhares exógenos........................................112
3.9. Ser colono, ser samambaiero... identidades sobrepostas..................................................115
3.9.1. Tempo da samambaia, tempo da roça: a construção de uma
temporalidade relacionada à atividade produtiva............................................118
3.9.2. Tempo da roça: onde se plantava de tudo.............................................119
3.9.3. Tempo da samambaia, quando as coisas começam a mudar.................122
CAPITULO 4
Tempo da samambaia e a atividade extrativista................................................................125
4.1. Vassourinha – capoeirinha - capoeirão: a dinâmica da vegetação e o espaço para a
atividade de coleta...................................................................................................................127
4.2. Tirar samambaia e a intrincada relação entre família, gênero e a atividade....................128
4.3. Molho, mala, cotas: definição de terminologias de quantidade.......................................131
4.4. Tirar samambaias e as habilidades inerentes à atividade.................................................133
4.4.1. Um dia de coleta de Margarida.............................................................134
4.4.2. Catar, catar, catar...................................................................................139
4.4.3. Tirar e colher, diferentes formas de manejo..........................................141
4.4.4. A preparação das malas.........................................................................143
4.5. Cadeia produtiva da samambaia-preta.............................................................................144
4.6. A atividade de “tirar samambaia” e sua narrativa............................................................148
CAPITULO 5.
Em torno da dimensão conflitual: do cotidiano e da problemática ambiental................152
5.1. O estrangeiro em sua dimensão conflitual: o caso de Rafinha.........................................154
5.1.1. A Fraternidade Semente da Esperança..................................................155
5.1.2. A “Farmacinha”.....................................................................................158
5.1.3. A saída de Rafinha e a emergência de um conflito latente....................160
13
5.1.4. A condição social de estrangeiro...........................................................164
5.3. A tensão diante da legislação ambiental..........................................................................166
5.4. A atividade extrativista e a legislação ambiental.............................................................171
CAPITULO 6
Tempo do artesanato: na etnografia do processo de busca de uma alternativa
econômica, as reflexões em torno do devir.........................................................................177
6.1. O grupo “Samambaia-preta – artesanato”........................................................................179
6.2. Reflexões em torno da formação do grupo e da instauração da atividade artesanal como
uma alternativa de renda.........................................................................................................186
6.3. Algumas dificuldades do processo de instauração da atividade artesanal como alternativa
de renda...................................................................................................................................191
6.4. Fatores que contribuem para a permanência deste grupo................................................196
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. Os moradores do Fundo da Solidão diante da problemática ambiental..............................204
2. Os samambaieros dos Fundos da Solidão, dentro do panorama conservacionista: da vida de
colono a samambaiero, da agricultura ao extrativismo, um modelo de proposta de
desenvolvimento sustentável para a região?...........................................................................206
3. Problematização em torno da categoria populações tradicionais e as especificidades do
contexto local..........................................................................................................................208
4. Do que foge da apreensão: comentários sobre a narrativa visual.......................................212
CONCLUSÕES.....................................................................................................................217
REFERÊNCIAS....................................................................................................................223
ANEXOS................................................................................................................................241
14
APRESENTAÇÃO
As motivações iniciais para a realização desse trabalho relacionam-se a minha inserção
no contexto ambiental, inicialmente por minha origem rural, imersa no mundo de plantas,
colheitas e problemas enfrentados pelo pequeno agricultor no País; na incursão no mundo das
Ciências Biológicas, mais especificamente da Botânica, onde novamente deparo-me com as
plantas, agora com o olhar deslocado para as suas estruturas, taxonomias e saudosa de minha
vivência anterior, preocupa-me os usos e aplicações; e de forma mais ampla, as relações que
os seres humanos estabelecem com estas.
Dentro da perspectiva das relações seres humanos-plantas, percebo-me envolvida por
um contexto de crescente visibilidade de temas relacionados a preservação ambiental e o
gradativo transbordamento da questão ambiental para outros campos do conhecimento, da
qual emergem temas como “conflitos socioambientais”, “populações tradicionais e
conservação da biodiversidade”, “desenvolvimento sustentável”, entre outros. Embalada pela
percepção de que esses temas são, majoritariamente abordados pela perspectiva das ciências
biológicas, sobrevém a tentativa de abordar tais temas pela perspectiva complementar -
considerando que o campo ambiental abrange diferentes áreas do conhecimento e, portanto,
não devendo ser circunscrito às áreas das ciências da vida. Neste contexto, busco a abordagem
antropológica. Assim, nesse trabalho, ao mesmo tempo em que busco um diálogo com os
construtos teóricos e empíricos que fundamentam esse campo disciplinar, configura-se como
o “tatear” de uma aprendiz que ao ter que utilizar as ferramentas teórico-metodológicas
constituídas dentro da Antropologia, a todo momento se pergunta “mas o que é
Antropologia”, “o que é ser antropóloga”, tendo como ponto de partida a confrontação com a
realidade complexa do campo empírico e inevitavelmente, os meus referenciais disciplinares
anteriores calcados na Biologia e de modo menos explícito, nas Artes Plásticas.
15
INTRODUÇÃO
As indagações para a proposição desta tese originaram-se dentro de um projeto de
pesquisa intitulado “Projeto Samambaia-preta”, ligado a uma organização não-governamental,
da qual faço parte. Na área de atuação desta organização não-governamental (ONG), o Litoral
Norte do Estado do Rio Grande do Sul, mais especificamente o município de Maquiné, uma
das atividades correntes é a coleta da samambaia-preta. Essa atividade, apesar de corriqueira
aos munícipes, analisado sob os parâmetros da atual legislação federal e estadual –
principalmente pelo fato dessa área estar dentro dos domínios da Mata Atlântica - é proibida.
Tal condição coloca essas pessoas que vivem dessa atividade e seus familiares, numa
condição bastante vulnerável e sujeitos a uma série de constrangimentos, sendo considerados
como “saqueadores da Mata Atlântica”
1
. Apesar de toda essa situação, pouco se conhecia
sobre essa atividade e sobre os coletores (até 2001, não havia nenhum dado sobre essa
atividade no Estado), razão pela qual foi proposto esse projeto de pesquisa, de modo a cobrir
estas lacunas.
Os dados iniciais gerados nesse Projeto se referem à cadeia produtiva dessa atividade,
a coleta, e sobre a ecologia da espécie. A partir desses dados pôde-se vislumbrar as complexas
relações estabelecidas entre as determinações de uma legislação e a entre a condição das
pessoas atingidas por essa, configurando-se, como um problema de conotação ambiental.
Nesses termos, reconhecendo o caráter polissêmico do termo ambiental, na perspectiva do
presente trabalho, parte-se do pressuposto de que essas pessoas encontram-se atravessadas por
ditames gestados por um campo circunscrito como ambiental que corresponde a “um conjunto
heterogêneo de atores e de diversidade de valores, práticas e crenças que se orientam para a
valorização da natureza e do meio ambiente como um bem” (Carvalho, 2001, p. 16). Tais
ditames, tendo abrangência ampla, atingem esferas sociais diversas e, diante de situações
locais específicas, apresentam-se na forma de conflito e de dilemas, os quais evidenciam
modos de vida diferenciados, submetidas às condições assimétricas constitutivas da
sociedade, transfigurando-se como um problema social. O interesse por essa problemática
socioambiental encontra-se no reconhecimento de que, atualmente, temas relacionados com o
meio ambiente atingem diferentes campos, manifestando-se na forma de disputas, conflitos e
1
Para ilustrar tal fato, tome-se como exemplo, a manchete de capa de um jornal de grande circulação estadual,
intitulado “Ameaça a um paraíso gaúcho”. Esta reportagem, em tom de denúncia, alerta sobre “a extração sem
controle de espécies nativas”, colocando que “a retirada de samambaia é o mais escancarado dos saques que
ocorrem diariamente contra o último vestígio de Mata Atlântica que resta em solo gaúcho” (reportagem de Elton
Werb, publicado no jornal Zero Hora de 21/05/2000, capa e p. 50-51).
16
re-ordenamentos, cujas dinâmicas permitem adentrar nas principais preocupações
contemporâneas do campo ambiental, mas estende-se para reflexões de outros campos
disciplinares e espaços sociais.
Assim, a coleta de samambaia-preta em área de Mata Atlântica é o marco inicial para
as reflexões aqui tecidas e a busca de um aprofundamento incorre na aproximação às pessoas
que exercem esse ofício e dependem dessa atividade para sua sobrevivência. Essa
aproximação constitui-se num momento de encontro, que permite o desvendamento do modo
de vida dessas pessoas e evidencia, de forma contundente, a necessidade de aproximação com
cotidiano de prática dessa atividade. É por esta via que envereda esse trabalho: o das práticas.
Nessa abordagem, considera-se que, são desvelados alguns elementos que posteriormente
poderão vir ao encontro de um debate sobre a condição contemporânea da humanidade frente
à natureza, suas relações com a técnica, o corpo, as ferramentas; como são concebidos e
articulados; e principalmente, evidenciam um saber-fazer que incorre também no acionamento
de uma memória coletiva, seja via tradição ou processo de incorporação de novos valores.
Capta-se, dessa maneira, as relações que as pessoas tecem com o seu meio, a forma
como esse meio está “incorporado” ao grupo e as imagens mobilizadas no acionamento de
tais mecanismos. Há, na elucidação da problemática da samambaia-preta e o cotidiano dos
coletores, o desvelamento da situação de um grupo que luta por impetrar sua permanência,
entre tradição e renovação. A constituição dessa continuidade ou duração, se apresenta de
forma simples e, muitas vezes, sofrida e que mostram o caráter multifacetado da problemática
inicialmente proposta.
Subjacente a esse processo apresenta-se também a reflexão sobre a adequação dos
meios utilizados para tal intento; o uso da imagem, propícia a pesquisa das práticas,
principalmente, em sua materialidade e tangibilidade e também, um fator de estabelecimento
de reciprocidade com o grupo e em tudo isso o limite do que pode ser revelado tendo como
princípio fundamental, respeito ao outro.
No primeiro capítulo, está a descrição da área de estudo e dos contextos que
orquestram o acionamento das problemáticas ambientais na região, com referenciais oriundos
de outros campos disciplinares, sobretudo da Biologia.
No segundo capítulo, é narrado o processo de ingresso no campo e aspectos
metodológicos e conceituais subjacentes a esse ingresso, evidenciando algumas situações de
campo emblemáticas. Nessa narrativa são fornecidas também, algumas caracterizações
relacionadas ao universo de realização da etnografia.
17
No terceiro capítulo, objetivando desvendar os universo social do grupo em questão,
identificam-se os atores sociais, seus papéis, como se organizam e, sobretudo, como
estabelecem uma continuidade entre passado e presente, que permite com que prossigam
constituindo-se enquanto grupo e pessoa. Apresentam-se a paisagem e o cotidiano em seus
ritmos peculiares - elementos para a constituição de uma temporalidade, onde está aglutinado
o estilo de vida dessas pessoas e as narrativas que constituem um saber-fazer próprio das
pessoas desse grupo. Verifica-se nesse capítulo, a tentativa de compreender a coleta da
samambaia-preta não apenas na perspectiva de um conflito ambiental, mas como essa
atividade está subsumido nos fazeres de cada pessoa, a partir da qual é possível pensar nas
relações abrangentes das pessoas com o seu meio “ambiente”.
No capítulo seguinte, ressalta-se a atividade extrativista, a partir da descrição do
trabalho e os saberes a ele associados, além de aspectos da cadeia produtiva. Nesse contexto,
o extrativismo apresenta-se como um paradoxo entre um fazer, onde um dos aspectos está no
íntimo contato com um modo de vida tradicional, mas que representa também a passagem
para um universo de relações complexas, onde está presente o mercado, consumo, o
ambientalismo. Manifesta-se nesse capítulo uma progressiva aproximação com a experiência
vivida.
No capítulo cinco, busca-se abordar alguns aspectos relacionados aos conflitos locais,
principalmente relacionados ao campo ambiental, como se faz presente na localidade, no
cotidiano dessas pessoas, tendo como um dos elementos fundamentais, o estranhamento.
Dessa forma, objetiva-se caracterizar o conflito ambiental, como essa coexistência de um
caráter universal em contextos locais e particularizados, onde estão subsumidos outros fatores
de ordem afetiva e social.
No capítulo seis, a partir do acompanhamento em campo de uma experiência concreta
de busca de alternativas para a atividade de coleta da samambaia-preta – o artesanato em
palha de bananeira – busca-se resgatar as especificidades da atividade extrativista, o percurso
entre a proposição de uma nova atividade e seu processo de implementação, os saberes
envolvidos, o acionamento de memórias. A análise de todo esse processo, por emulação,
remete ao processo e mecanismos que possibilitaram a instauração do extrativismo da
samambaia-preta.
Assim, nas linhas finais, espera-se chegar ao desfecho de uma trajetória, com o início
demarcado por uma problemática específica e posterior mergulho “empírico-conceitual”,
onde estão envolvidos, inclinações pessoais, escolhas conceituais dentro da disciplina,
18
confronto com o campo, as tensões que se estabelecem neste confronto e a busca de uma
síntese, dentro das possibilidades expressivas da linguagem escrita e visual.
A seqüência dos capítulos reflete um ordenamento dos conteúdos de modo a permitir
ao leitor adentrar no mundo do extrativismo, representando também o próprio percurso do
trabalho como um todo. Dessa forma, no primeiro capitulo lança-se de um olhar ainda externo
a comunidade, posteriormente no processo de inserção descreve-se a atividade extrativista,
tentando adentrar ao universo empírico, decorrendo desse processo os conflitos, inevitáveis
não somente pela temática, mas sobretudo, converte-se num processo ritual. Nos capítulos
finais, ao mesmo tempo em que abordo a temática referente ao devir, construo-o dentro de
uma perspectiva onde se busca uma fusão de horizontes, noção essa que leva em conta “a
experiência do encontro etnográfico, com todas as suas particularidades, onde se defrontam
horizontes vivos, igualmente tangíveis pela observação empírica” (Cardoso de Oliveira,
1996). Por outro lado, apesar do termo fusão trazer uma conotação de indistinção,
compreendo essa tese como dentro de um processo, conforme colocado por Turner (1986)
onde num momento inicial, há uma indistinção de papéis e ao final do processo, observa-se -
não somente como resultado de um processo de auto-conhecimento, mas da interação social -
uma definição mais clara dos contornos dos papéis sociais exercidos por cada agente. Com
isso, para a situação colocada de conflito ambiental, espera-se fornecer dados, de natureza
etnográfica, que contribuam para a formulação de leis e ordenamentos mais adequados com a
situação dos agentes envolvidos.
19
CAPITULO 1
Figura 1 - Colagem com detalhe da capa e cartaz do 2
o
Encontro de Pesquisas sobre o Vale do
Rio Maquiné realizado no Município de Maquiné em 30/11/2002 (criação de Luciano
Montanha e Vladimir Evangelista) e fotos de samambaia-preta dos arquivos do Projeto
Samambaia-preta.
O contexto para o estabelecimento de
uma problemática ambiental
relacionado ao extrativismo de
samambaia-preta
20
1.1. Entre a retenção e o deleite: o paradoxo das relações dos seres humanos em relação
ao seu meio ambiente
Quando os europeus, mais especificamente os portugueses iniciaram a colonização do
território brasileiro, encontraram duas grandes formações florestais: a maior delas, a Floresta
Amazônica e a outra, situada ao longo da Costa Atlântica (do Rio Grande do Sul ao Rio
Grande do Norte), estendendo-se por centenas de quilômetros continente adentro, chegando a
Argentina e ao Paraguai. (Capobianco, 2002, p. 111). É exatamente sobre essa área a que se
referem as descrições de Pero Vaz de Caminha na carta-relato ao seu Rei, anunciando a
descoberta da nova terra. Em sua carta, exalta a nova terra, suas belezas, o frescor
naturalístico e a vastidão, “onde não importa se em verdade exista ouro ou prata ou pedras
preciosas. Já a felicidade simples dos sentidos esclarece aos homens que o paraíso existe. E
que tudo nele será possível” (Castro, 1996, p. 105). Transparece também o estranhamento e o
fascínio diante dos seus habitantes, descritos por palavras que transbordam uma sensualidade
contida - experiência primeva de alteridade: “uma daquelas moças era toda tingida, de baixo
para cima, daquela tintura, e sua vergonha – que ela não tinha – tão graciosa que as muitas
mulheres de nossa terra, vendo-lhes as feições, provocaria vergonha, por não terem as suas
como a dela.” (carta de Pero Vaz de Caminha, retirado de Castro, 1996, p. 97). Em relação à
nova terra, nesse momento de passagem do obscurantismo da idade média para o humanismo
renascentista, o confronto com esse novo mundo mobilizam
“...insuspeitas sensações e secretas vivências (...) o vivido provoca uma
disponibilidade completamente i(nova)dora, onde se nega o ensinado ou aprendido
nos livros, por estarem os olhos a descobrir, sem rodeios, o outro e o diferente.”
(Janeira, 2001, p. 10).
Através dessas descrições é que herdamos as imagens da nova terra e da “Mata
Atlântica”.
Em relação à vegetação e à paisagem, nos posteriores relatos de viajantes,
missionários e naturalistas dos séculos XVI e XVII
2
, ao mesmo tempo em que descrevem
como “amedrontadora” - seja pela interminável massa verde, pela modificação da escala do
homem em relação à paisagem ou ao novo perturbador - revelam também um olhar
utilitarista. Como colocado por Jean de Léry: “Devo começar pela descrição das árvores mais
notáveis, e apreciadas entre nós por causa da tinta que dela se extrai: o pau-brasil, que deu o
nome à região”. Acompanham a essa descrição dados relacionados ao conhecimento dos
2
Alguns destes relatos encontram-se em Pe. José de Anchieta, Carta de São Vicente, 1560, Série Cadernos da
Reserva da Biosfera, n. 7, 1997, Jean de Léry, 1576, Viagem à terra do Brasil, Série Cadernos da Reserva da
Biosfera n. 10, 1998, Gabriel Soares Souza, Tratado descritivo do Brasil, em 1587, Editora da USP, 1971, Hans
Staden, Viagens e cativeiro entre os selvagens do Brasil.
21
moradores locais. “Essa árvore que os selvagens chamam de ‘arabutan’, engalha como o
carvalho de nossas florestas e algumas há tão grossas que três homens não bastam para
abraçar-lhe o tronco” (Léry, 1576, p. 36), sendo esses verdadeiros compêndios etnobotânicos. A luz
desse olhar que também vão se modificando as relações entre a nova terra e Portugal. Como coloca
Sílvio Castro (1996),
Mas logo depois o espírito da palavra de Pero Vaz de Caminha começa a perder-se.
Para a conservação das riquezas ameaçadas, os portugueses mudam de número e de
natureza. Já não mais a serena amorável relação. Mas a tomada do poder. O paraíso
se modifica lentamente. Modifica-se a vida. O claro imediato sentido da existência
se vê superado pela convicção colonizadora e imperialista. O colonizador perde sua
visão do paraíso...
(Castro, 1996, p. 107)
Como resultado desse olhar utilitarista, essa área é alvo de um intenso processo de
ocupação, havendo assim a redução da área inicial de vegetação. Esse é o marco inicial para o
processo de colonização do país e da conquista de outros territórios que hoje compõem a
nação brasileira. Todos os principais ciclos econômicos desde a exploração do pau-brasil, da
mineração do ouro e diamantes, a introdução de espécies domesticadas como os da cana-de-
açúcar, o gado, o café, entre outros, teve como palco essa área (Dean, 1996, Ibama, 1997). O
pau-brasil, por exemplo, foi colocado sob o monopólio da coroa portuguesa, através do
arrendamento de terra aos comerciantes desde de 1502.
O primeiro “contrato do pau-brasil” foi realizado por mercadores portugueses e
italianos, liderados por Fernando de Noronha. Nesses contratos, o Estado português
comprometia-se a não mais importar das Índias o pigmento similar, largamente utilizado na
Europa, e os arrendatários, por sua vez assumiam a exploração anual de 300 léguas do litoral,
o envio de navios às costas brasileiras e a manutenção de uma fortaleza, tudo isso sem o
prejuízo dos direitos a serem pagos à Coroa (Capobianco, 2002, p. 116).
A madeira oriunda dessa floresta serviu à construção das naus e foi usada em tudo o
que se edificou nessa região no Brasil, assim como na reconstrução de Lisboa depois do
terremoto que destruiu essa cidade, no século XVIII (Costa, 1998). A exploração madeireira
da Mata Atlântica teve importância econômica em nível nacional até muito recentemente,
com seu ápice no século XX (Schäffer e Prochnow, 2002, p. 14). Em meados de 1970 a Mata
Atlântica ainda contribuía com 47% de toda a produção de madeira em tora no País, com um
total de 15 milhões de metros cúbicos. Produção esta, drasticamente reduzida - para menos da
metade (7,9 milhões de m
3)
- em 1988, dado o esgotamento dos recursos (Capobianco, 2002,
p. 118).
22
Também houve, nesse período, extração de espécies medicinais, como a salsaparrilha,
ipecacuanha ou poaia - essa planta medicinal chegou a ser exportada na quantia de 45
toneladas por volta do final de 1860 (Dean, 1996) – as bromélias, os cactos e as orquídeas.
Também houve a exploração de produtos como as penas e plumas, as carapaças de tartarugas,
os couros, as peles de onça, veado, cutia, lontra, paca, cobras, jacarés, anta. Tal relação
exploratória com a nova terra atravessa todo o período colonial, persistindo nos séculos
seguintes
3
, sempre impulsionada pela idéia de incentivo a ocupação territorial conjugada à
exploração das riquezas sob a forma de recursos naturais.
Tais dados, além de ilustrarem o volume das riquezas da nova terra e passíveis de
exploração, colocam os moldes da política de ocupação portuguesa não apenas baseada na
retirada dos recursos naturais, mas num gradativo processo de domesticação, através do
povoamento e da introdução de novas espécies, cujo cultivo e trato eram bastante conhecidos
dos portugueses
4
. Segundo Warren Dean (1991, p. 216)
as primeiras tentativas de colonização portuguesa ao longo da costa do Brasil foram
marcadas pela introdução de um certo número de espécies de animais e plantas
domesticados que se encontravam já aclimatados em Portugal ou nas suas ilhas
atlânticas. [...] A introdução de espécies de interesse comercial deu impulso à
colonização durante os longos séculos em que os invasores, desvairados, se
perdiam numa busca de ouro e esmeraldas. A rentabilidade do açúcar e dos couros
no mercado europeu fortaleceu os laços coloniais. Além destes efeitos, deve ser
lembrado que a capacidade dos portugueses de determinar a transferência de
plantas e animais domesticados entre Portugal, o Brasil e as suas outras colônias foi
uma das mais poderosas armas do imperialismo lusitano.
Nessa breve introdução sobre a Mata Atlântica associada à abundância de riquezas e
possibilidades quase infinitas de extração encontramos a materialização do motivo edênico
preconizado por Sergio Buarque de Holanda (1995), ou seja, a associação ao paraíso cristão
na terra. Esse imaginário paradisíaco, não somente alimentou os olhares em relação ao Brasil
e ao Novo Mundo, mas, para ser mais preciso, impulsionou o movimento do Velho Mundo
rumo à descoberta das novas terras. Assim, antes mesmo do Brasil integrar o Mundo
Ocidental, já lhe havia sido reservado essa identidade edênica, sendo, posteriormente,
resgatada e re-alimentada por movimentos e pensadores que buscavam imprimir uma
3
Sobre o processo de utilização posterior da Mata Atlântica v. Hoehne, F. C. Araucarilândia. Observações
geraes ao estudo da flora e phytophysiognomia do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1930, Dean, W. A ferro e
fogo: a história da devastação da Mata Atlântica. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, Encinas, J. Relíquias
Bibliográficas Florestais. Comunicações Técnicas Florestais. Brasília: Universidade de Brasília, 2001; todos
atestam drástica diminuição desta região.
4
Sobre essa dimensão “ecológica” do colonialismo, ou seja a idéia de que o sucesso dos europeus nas regiões
onde eles conseguiram implantar suas colônias foi devido à rápida e fácil reprodução de suas plantas, animais e
parasitas, que colonizavam os ecossistemas invadidos mais efetivamente do que os próprios conquistadores, ver
Alfred Crosby, Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. Companhia das Letras, 1986.
23
originalidade à cultura brasileira
5
. Permanecendo com vigor, no imaginário contemporâneo do
brasileiro em relação ao seu País, conforme destaca José Murilo de Carvalho (1998), na
análise de algumas pesquisas de opinião pública efetuadas na década de 90.
Neste “paraíso brasileiro”, destinado ao deleite, aos prazeres corpóreos, reside também
a vontade de dominar, pois trata-se de um estado de natureza indomada, portanto, com
potencial para ser domesticado e utilizado
6
. Da mesma forma que a maçã do paraíso cristão,
nesta terra temos infindáveis frutos, alguns dos quais proibidos e ao serem colhidos, como
conseqüência, sobrevém a iminência de perder todo o paraíso. Embora sejam metafóricas as
colocações, evidenciam esse imaginário brasileiro, do qual a região de Mata Atlântica é um
exemplo concreto, mas, sobretudo, colocam as punções ambíguas vivenciadas frente a
sensação de infinitude de riquezas
7
. Entre esta profunda admiração e a vontade de domínio da
natureza, reside o paradoxo da própria condição humana. Na reverberação desse paradoxo
podemos encontrar o contexto de constituição de uma problemática ambiental, pano de fundo
do presente trabalho.
1.2. A busca de definições para Mata Atlântica: um olhar fitofisionômico
No que se refere a essa faixa litorânea, portal de constituição do Brasil-Nação, num
primeiro momento, apresentou-se como uma massa verde, monolítica, homogênea e
evocadora de ambições e imaginários fantásticos. Por outro lado, os estudos específicos sob o
crivo de um método científico, demonstram sua heterogeneidade. Apresenta-se assim, uma
faixa litorânea, com um tipo de vegetação predominante: uma floresta, localizada na faixa
tropical, mantida pela alta umidade proveniente de um regime intenso de chuvas – uma
floresta tropical pluvial – associada à Serra do Mar, visto que as massas de ar quente oriundas
do Oceano Atlântico, ao serem empurradas em direção à serra, em sua subida, encontrando
temperaturas mais baixas, condensam-se, favorecendo a precipitação. Essa seria
5
Como exemplo cito o movimento modernista brasileiro. Segundo Silvio de Castro (1996, p. 115) “quando o
Modernismo começa a sua campanha ativa em 1922, o faz tendo como metas uma nova cultura brasileira e uma
diversa realidade sócio-política para o país. Para consegui-las crêem na necessidade sócio-cultural brasileira
através daqueles valores já encontráveis na Carta de Pero Vaz de Caminha e esquecidos pela expressão
reacionária da vigente cultura retrograda em todos os setores da sociedade brasileira.”
6
Apesar de não ter sido enfatizado neste texto, esta lógica de dominação apresenta-se também em relação aos
moradores autóctones, que de “bom selvagem” da carta de Caminha, passa a ser considerado, o ser bestial a ser
convertido ao cristianismo.
7
Também Rocha (1995, p. 111-112) baseado em Gaston Bachelard e Gilbert Durand, aponta a estética urbana
brasileira como herdeira deste paradoxo fundante do imaginário brasileiro.
24
correspondente à floresta ombrófila densa
8
. Ficam implícitas as variações de fatores
condicionantes (substrato, clima, drenagem), o que poderia resultar numa heterogeneidade
interna; pela própria amplitude latitudinal da área de ocorrência deste domínio (já que abrange
uma faixa de 4000 km no sentido norte-sul) espera-se uma variação em sua composição e
conformação.
Somando-se a isso, essa área apresenta uma grande variação de altitude, demonstrada
na proposta de classificação da vegetação brasileira pelo reconhecimento de "formações"
9
ordenadas segundo a faixa altudinal
10
. Os limites entre cada uma destas faixas são variáveis
conforme a latitude considerada, o que contribui mais ainda para sua conformação
heterogênea.
Nesse debate, natureza e cultura desvencilham-se e a Mata Atlântica passa
gradativamente para domínio das disciplinas da natureza. Esquartejado pelo olhar
compartimentalizado de especialistas, descortinam-se as suas configurações particularizadas.
Exemplo disso, são as diversificadas denominações, proposta por diferentes pesquisadores
com formações acadêmicas distintas, em diferentes épocas, elegendo diferentes critérios para
a conceituação dessa área. O quadro abaixo ilustra um pouco desta variabilidade.
Autor (data) Denominação correspondente a área de Mata Atlântica
Martius (1837) Região das dríades
Wappeus (1884) Zona Litoral
Serebrenik (1942) Região do litoral
Sampaio (1945) Flora geral
Aroldo de Azevedo (1950) Formações complexas
Aubréville (1961) Região das florestas costeiras
Coutinho (1962) Floresta pluvial atlântica
Rizzini (1963) Setor da cordilheira marítima da sub-província austro-oriental da
província atlântica dos neotrópicos
Andrade-Lima (1966) Floresta perenifólia latifoliada higrofílica costeira
Romariz (1972) Floresta tropical úmida latifoliada das encostas
Hueck (1972) Floresta úmida costeira do Brasil
Ab´Saber (1970) Domínio atlântico
Ab´Saber (1977) Província fitogeográfica tropical atlântica
Fernandes e Bezerra (1990) Sub-província driádica
Quadro 1 - Resumo das diferentes classificações relacionadas à área de Mata Atlântica
(compilado de Rizzini, 1979; Adams, 2000).
8
Ombrófila: do grego ómbros, chuva, pluvial e phila, adaptado a, que tem afinidade, onde resulta que ombrófila
seria sinônimo de Floresta Pluvial. Densa: fisionomia de floresta onde as copas das árvores se tocam, formando o
dossel.
9
Conjunto vegetacional com a mesma fisionomia, em geral, sujeito aos fatores ecológicos semelhantes.
10
Trata-se de uma "hierarquia topográfica", que apresenta fisionomias distintas e "variações ecotípicas"
resultantes de ambientes distintos (IBGE, 1993). Dividem-se em: "aluvial", "das terras baixas", "submontana",
"montana" e "alto-montana".
25
Desta forma, Mata Atlântica não se refere a um tipo de vegetação ou comunidade
especifica, mas a uma região com “associação peculiar de padrões paisagísticos, definidos por
aspectos vegetacionais, geomórficos, climáticos e pedológicos, sendo a vegetação a melhor
expressão”, o que, segundo Aziz Ab´Saber (1970), corresponde a um “domínio
morfoclimático”, ou então um bioma que pode ser conceituado como um “biossistema
regional ou subcontinental caracterizado por um tipo de vegetação ou outro aspecto
identificador da paisagem.” (Odum, 1983, p. 3).
1.3. Mata Atlântica e as preocupações com a proteção ambiental: a construção do
conceito de Mata Atlântica e de Reserva da Biosfera
A progressiva constatação da diminuição dessas áreas florestadas, aliado a todo um
ideário moderno e romântico de natureza, contribuem, a partir da década de 1930, para a
formulação de algumas ações para a preservação desses domínios, como a formação de um
sistema de unidades de conservação, prevendo a criação de áreas protegidas. A idéia de
reserva natural, cujas raízes podemos buscar na Europa dos séc. XVII e XVIII, só veio a se
viabilizar no final do século XIX, nos Estados Unidos (num contexto de um capitalismo
consolidado e uma urbanização acelerada).
Ao serem institucionalizados nos EUA, em 1870, os parques naturais representavam
uma contestação ao progresso e, ao mesmo tempo, um triunfo do processo de industrialização,
que, por meio do aumento da produtividade da terra, possibilitava a manutenção paralela de
espaços de não uso. (Diegues, 1996, Camargos e Moreira, 2003). Em relação a tais
orientações, Antônio Carlos Diegues destaca o conceito de intocabilidade dessas áreas, ou
seja, a incompatibilidade entre preservação e presença humana resultando no alijamento dos
moradores (Diegues, 1996).
A primeira unidade de conservação nacional, o Parque Nacional do Itatiaia, foi criado
na Serra da Mantiqueira, em 1937, justamente no domínio da Mata Atlântica. Também, nessa
época, ocorre a decretação do Código Florestal que passa a proteger as encostas de maior
declividade, os topos de morros, as nascentes, as beiras de rios e os manguezais,
correspondente às áreas de preservação permanente (APP). Nesse momento, as motivações
para a preservação limitavam-se apenas aos aspectos estéticos e simbólicos – a peculiaridade
dos locais como representação da riqueza paisagística e natural da Nação - e à solução de
problemas provocados por secas e enchentes (Ibama, 2003).
26
A partir de 1960 e 70, com as intensas movimentações no cenário internacional
motivados por questionamentos relacionados a sociedade e seu meio ambiente, como reação a
um contexto de hegemonia do industrialismo como forma de desenvolvimento, do consumo
conspícuo como estilo de vida e da guerra fria como forma predominante das relações
políticas e diplomáticas das grandes potências do Ocidente (Mello, 1998), a justificativa para
a criação das reservas desloca-se para a perspectiva ecológica.
Um marco importante nos estudos sócio-ambientais sobre essa esfera de debates é a
Conferência das Nações Unidas para o Ambiente Humano, realizada em 1972, em Estocolmo,
Suécia. Nessa Conferência participaram representantes de 113 nações, sendo que 90%
pertencia ao grupo dos países em desenvolvimento. Os representantes desses países, liderados
pela delegação brasileira, defendiam seu direito às oportunidades de crescimento econômico a
qualquer custo. Essa posição era conflitante com a defendida pelos países “desenvolvidos”,
alarmados pelo relatório de Meadows do Clube de Roma que apontava como principal
problema ambiental global o crescimento demográfico e propunha o controle internacional de
determinados recursos básicos. Ao final, foi proclamada, a prudência ecológica às ações pró-
desenvolvimento como forma ideal de planejamento ambiental (Ibama, 2003). No Brasil, o
que se verificou, principalmente, através das ações ligadas à agricultura, foi a clara orientação
com vistas ao desenvolvimento econômico com o uso de tecnologias avançadas e uso de
insumos químicos, pouco atento à “prudência” recomendada
11
.
Ainda em relação à Conferência, cabe evidenciar que o pano de fundo das discussões,
referiam-se às questões de soberania e de controle territorial e dos patrimônios naturais. A
partir desse evento, a questão ambiental ganha foros de problema diplomático, econômico e
estratégico, em âmbito internacional (Moraes, 2004).
Nos anos 80, os repetidos episódios de desabamento nas encosta da Serra do Mar em
Cubatão, decorrente do avançado estágio de desmatamento (ameaçando à população e às
indústrias instaladas), levaram o governo do Estado de São Paulo a declarar toda a Serra do
Mar como patrimônio natural e cultural do Estado com o seu tombamento. Da mesma forma,
o exemplo é seguido pelo Estado do Paraná. Com isso, criou-se, em 1988, um grupo de
trabalho com o objetivo de proteger a Serra do Mar, envolvendo os Estados do Espírito Santo,
Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, formalizando, o que foi denominado, o
Consórcio Mata Atlântica.
11
Cabe lembrar que alguns autores se debruçaram de forma sistemática sobre as origens e desenvolvimento do
que de uma forma genérica podemos designar o “campo ambiental brasileiro” como Viola (1987), Pádua (1997),
Carvalho, (2001), onde encontramos de forma mais detalhada o teor e as ideologias subjacentes a estas
reivindicações.
27
Em 1988, a Constituição Federal confere à Mata Atlântica a condição de Patrimônio
Nacional. Consta no parágrafo 4°, do artigo 225 da Constituição Federal:
“A Floresta Amazônica Brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal
Mato-grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á,
na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.
Conforme consta na Constituição Federal de 1988, essas áreas, agora correspondem a
um bem (recurso natural) necessário à sadia qualidade de vida de toda a coletividade, cuja
conservação, para uso e transmissão de geração a geração, é responsabilidade constitucional
de cada cidadão. Essa categorização especial foi dada para destacar a importância da
conservação e preservação desse domínio, mas, em termos efetivos, não reflete
necessariamente os interesses da sociedade, nem garante os efeitos práticos visando a sua
conservação (MMA, 1998 a).
Dessa forma, baseados em critérios botânicos, fitofisionômicos, sobrepostos a
considerações de natureza geológica e geográfica e ainda considerando as questões relativas à
conservação ambiental, chegou-se ao conceito de Domínio da Mata Atlântica. Esse engloba as
áreas pristinamente ocupadas pelas seguintes formações vegetais (constantes no mapa da
vegetação do IBGE de 1993): as florestas litorâneas, as matas com araucária, as florestas
deciduais e semideciduais interioranas e os ecossistemas associados como as restingas,
manguezais, florestas costeiras, campos de altitude e encraves de campos, brejos de altitude e
cerrado. Esse seria a base para um conceito amplo de Mata Atlântica
12
(figura 2)
12
Contrastando com o conceito strictu sensu que consideram-na restrita apenas às florestas ao longo do litoral
que recobrem as serras que acompanham de forma mais ou menos contínua boa parte da costa brasileira, desde o
Rio Grande do Norte até o nordeste do Rio Grande do Sul, denominado Floresta Ombrófila Densa (marcado com
uma seta verde na convenção do mapa). Neste contexto ficam de fora as florestas estacionais dos planaltos mais
interiores do sudeste, sul e centro-oeste, as florestas com Araucaria, típicas do Planalto Meridional Brasileiro, e
as "florestas secas" do interior do Nordeste.
28
Fisionomias vegetais inseridas no Domínio da
Mata Atlântica – DMA
(1)
Fitofisionomias
(2)
Km2
(3)
%
(4)
Formações Florestais 1.041.998 79,76
Ombrófilas 406.446 31,11
Densa 218.790 16,75
Aberta 18.740 1,43
Mista 168.916 12,93
Estacionais 635.552 48,65
Semidecidual 486.500 37,24
Decidual 149.052 11,41
Zonas de Tensão Ecológica 157.747 12,07
Encraves 65.468 5,01
Refúgio Ecológico 103 0,01
Formações Pioneiras 41.105 3,15
Total DMA 1.306.421 100,00
(1)
Conforme CONAMA, 1992
(2)
Mapa de vegetação do Brasil. IBGE, 1993
(3)
ISA, 1999
(4)
Sobre a área total do DMA
Figura 2 - Mapa com a área de abrangência da Mata Atlântica, com delimitações das
formações vegetais constantes no Mapa da Vegetação do Brasil, do IBGE (1993) e
respectivas extensões indicadas. (Fontes IBGE, 1999, 1993, ISA, 1999 apud Capobianco,
2001).
O Decreto nº 99.547/90 foi a primeira iniciativa do Governo Federal em regulamentar
as determinações da Constituição Federal no que diz respeito à Mata Atlântica. Sua efetiva
contribuição para a proteção ambiental não foi possível por apresentar várias lacunas em seu
texto e não possuir o respaldo dos órgãos responsáveis por sua aplicação. Após várias
propostas posteriores, o CONAMA aprovou, em abril de 1992, uma minuta de decreto como
alternativa a esse. A nova proposta continha inúmeras inovações, entre as quais se destaca a
delimitação precisa da área de abrangência da Mata Atlântica e a proteção dos estágios
sucessionais das formações vegetais do Bioma, ou seja, a proteção também aos locais
degradados que estejam em regeneração.
A partir desta minuta, deflagra-se um processo de discussão que resulta no decreto
750/93, que, além de definir os domínios da Mata Atlântica, parte da premissa básica de que
para proteger o meio ambiente, “não basta estabelecer o que não pode ser feito, mas o que
Fonte: IBGE, ISA
29
pode ser feito, orientando as ações e criando instrumentos de controle eficazes, que
contemplem a participação efetiva da sociedade” (Capobianco, 2002, p. 11)
3
.
Nesse ínterim, passam a integrar ao Consórcio Mata Atlântica - inicialmente restrito
aos cinco Estados anteriormente referidos - os estados da Bahia, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul e em 1992, o Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
(Costa, 2003) Com o compromisso, de executar ações, visando o tombamento de toda a Mata
Atlântica, há um grande aporte de recursos oriundos do Banco Mundial e de outras
instituições internacionais, que culmina com reconhecimento da Mata Atlântica como Reserva
da Biosfera pela UNESCO entre, 1991 e 92. Assim, pouco mais de duas décadas depois de
seu lançamento, ocorre a adesão brasileira a um ideário em que busca conjugar preservação e
preocupação com sua sustentabilidade. Lembrando que o Sistema de Reservas da Biosfera do
Programa Man and Biosphere (MAB), da UNESCO visa reconhecer a importância destas
áreas para a integridade do ambiente mundial. Esse foi lançado em 1968 na Conferência sobre
a Biosfera, realizada em Paris, onde um dos pontos fundamentais era a necessidade de
envolvimento das populações locais nas ações ambientais, reforçado na década de 70, sob a
influência da Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente e consolidado por todas as
movimentações em torno da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Eco-92). Nessa última, foram elaborados alguns documentos que pautam
as ações conservacionistas como a Convenção da Biodiversidade e a Agenda 21.
A necessidade permanente de se conceber e aperfeiçoar um plano internacional de
utilização racional e conservação dos recursos naturais da biosfera e também do
melhoramento das relações globais entre os homens e o meio ambiente são as preocupações
preconizadas por esse Sistema. Todos os trabalhos a serem desenvolvidos devem ter por base:
a conservação da natureza e de sua biodiversidade, o desenvolvimento social sustentado das
populações que vivem na Reserva, com ênfase para as comunidades tradicionais; o
aprofundamento da educação ambiental e do conhecimento científico. Na verdade, constitui-
se em um instrumento de planejamento visando uma sintonia entre ações locais e os interesses
globais.
Essas transformações foram paralelas ao processo de redemocratização do País e à
reestruturação das relações sociais e econômicas das populações residentes em áreas
protegidas. O universo dos movimentos sociais, em torno do tema “reserva natural” absorve
3
Cabe ressaltar que anterior a esse decreto temos a proposição do Projeto de Lei 3258/92, que objetiva regular
os usos e formas de proteção da Mata Atlântica e que tramita até hoje. Este Projeto de Lei, além de dispor sobre
os limites da Mata Atlântica, visa regulamentar também formas de uso dessas áreas, o que para situações como
os coletores de samambaia, apresentaria algumas diretrizes mais concretas.
30
as comunidades tradicionais, uma vez que várias atividades foram introduzidas ou
incrementadas nessas áreas, tais como o artesanato, o turismo ecológico e o extrativismo. Em
função da valorização dos atributos naturais, algumas dessas áreas passaram a atrair
populações urbanas de centros vizinhos, incrementando a ocupação desses áreas para fins
residenciais ou recreacionais representando um fator de expulsão, exclusão ou reinserção das
antigas comunidades. Outro segmento da sociedade civil, as ONG´s tornaram-se mais
organizadas e procuraram aumentar sua influência sobre as políticas ambientais na região.
Segundo o documento denominado “Quem faz o que pela Mata Atlântica” (Capobianco,
2004, p. 14), que busca uma análise abrangente das experiências ligadas a Mata Atlântica
entre 1990 e 2000, de um universo de 747 projetos cadastrados como desenvolvidos neste
Domínio, 47,18% foram executadas por ONG’s de personalidade jurídica. Dentro desse
panorama, consolidou-se a Rede de ONG’s da Mata Atlântica, atestando a presença do
terceiro setor. Por outro lado, também observou um aumento do número de pesquisadores
brasileiros com treinamento no Brasil e no exterior, fortalecendo os programas de pós-
graduação com componentes de ecologia e manejo de recursos naturais no país (MMA, 1998,
p. 10). O volume total de recursos investidos nessa área, entre 1990-2000, superou R$ 270
milhões, sendo a maior parte (74,6%) destinados aos projetos de conservação de recursos
naturais, embora se observe uma tendência de aumento dos projetos de uso sustentável de
recursos naturais (Capobianco, 2004, p. 15 e 17).
O Rio Grande do Sul abriga o limite austral da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica
e tem buscado, dentro desse movimento na esfera nacional e internacional, o reconhecimento
e a efetiva implementação das diretrizes para uma Reserva da Biosfera, com vistas a proteger
o ambiente, habilitando-se para participar dos diferentes editais que representam aportes
financeiros consideráveis para o Estado.
31
Ano Evento Atribuição
1988 Criação do consórcio Mata Atlântica
(SP, PR, RJ, ES, SC)
Estabelecer diretrizes comuns para a conservação dos
remanescentes dessa floresta e buscar
reconhecimento da
UNESCO como Reserva da
Biosfera
Constituição Federal declara a Mata
Atlântica como Patrimônio Nacional
1989 RS integra o Consórcio Mata Atlântica
1992 Tombamento da Mata Atlântica e
Ecossistemas associados no RS
Instrumento jurídico para manutenção da diversidade
biológica dos remanescentes dos Domínios da Mata
Atlântica no Estado
1994 Reconhecimento da área do RS dentro
da Reserva da Biosfera da Mata
Atlântica, numa área correspondente a
40.174 km
2
1997 Ampliação da área do RS reconhecida
como pertencente a Reserva da Biosfera
para 48.695 km
2
1997 Implantação do Comitê Estadual da
Reserva da Biosfera da MA
Viabilização de financiamentos para a implantação
das áreas piloto: Litoral Norte, Quarta Colônia
Italiana e entorno do Parque Nacional da Lagoa do
Peixe e dos postos avançados.
Quadro 2 – Resumo dos principais eventos relacionados à Mata Atlântica no Estado do RS.
(compilado de Marcuzzo et al, 1998)
Conforme o quadro 2, o que se verifica no Estado é um esforço visando
gradativamente integrar a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Para isso, criaram-se vários
dispositivos legais para atender os quesitos a fim de alcançar tal condição, porque a simples
demarcação de determinada área não garante sua efetiva implementação como Reserva.
Sendo um território, que, em sua grande maioria, é composto por lavouras ou campos com
uso agropecuário, busca-se não somente manter o que resta do que seriam os “ambientes
naturais”, mas também formular novas políticas públicas visando ampliar as áreas
preservadas. A estratégia adotada para a implantação, no Estado, foi a identificação de
algumas áreas “mais preservadas” e, portanto, prioritárias para alavancar esse processo. Essas
áreas-piloto consistem no Litoral Norte, a Quarta Colônia Italiana e no entorno do Parque
Nacional da Lagoa do Peixe (figura 3).
32
Figura 3 - Mapa do Rio
Grande do Sul com as áreas
correspondentes à Mata
Atlântica, com indicação
das três áreas piloto (em
vermelho). a) Quarta
Colônia, b) Litoral Norte, c)
Entorno do Parque Nacional
da Lagoa do Peixe.
Na área-piloto do Litoral Norte, localiza-se o município de Maquiné, além de Santo
Antônio da Patrulha, Osório, Terra de Areia, Morrinhos do Sul, Três Cachoeiras, Três
Forquilhas, Dom Pedro de Alcântara e Torres. Nesta região encontram-se as áreas mais
preservadas da Mata Atlântica no Estado, incluindo-se as zonas núcleos das Reservas
Biológicas da Serra Geral e Mata Paludosa. Destacadamente, os vales dos rios Maquiné e
Três Forquilhas, por suas características ambientais, são consideradas áreas de grande
importância para a Reserva da Biosfera.
Reforçando a tendência de interesse por parte de organismos internacionais pela
preservação dessas áreas e a idéia da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica como meio para
a
b
c
33
captação de recursos financeiros por parte do Estado, recentemente foi lançado em Maquiné
14
,
o “Projeto de Conservação da Mata Atlântica às comunidades da Região Nordeste do Estado”,
que prevê investimentos para implantação de seis unidades de conservação estaduais, três
municipais e duas federais, atingindo 28 municípios, numa área aproximada de 13.000 km².
Os recursos, na ordem de R$ 40 milhões, com liberação prevista para 2005 e para os anos
seguintes, provêm de um contrato de contribuição firmado, em 2002, entre o Governo do
Estado do Rio Grande do Sul e o banco alemão Kreditanstalt für Wiederaufbau – KfW, o qual
contribuirá com o montante total de 10 milhões de euros e constituindo-se num importante
acréscimo ao orçamento do Estado.
1.4. A Mata Atlântica no jogo entre o global e o local
Essa breve trajetória apresenta a arena argumentativa
15
a partir da qual foi formulado o
que hoje denominamos “Mata Atlântica” e de sua transformação em Reserva da Biosfera.
Nesses termos, num cenário de crescente expansão urbano-industrial e crítica a um modelo
desenvolvimentista incompatível com a manutenção dos recursos naturais, aliada a idéia de
escassez e de possibilidade de exaustão e extinção desses recursos, veiculam-se em torno da
Mata Atlântica, a idéia de “patrimônio” da Humanidade - fundamento da Reserva da Biosfera
- como estratégia para planificar a ocupação humana dessas áreas com vistas a manutenção da
alta biodiversidade. À noção de humanidade universalizada, sobrepõe-se a um ideário de
globalização que transcende as fronteiras locais, informado por uma razão civilizadora
preservacionista
16
, própria das camadas urbanas, que se estende para todos os setores da
sociedade.
Boaventura de Sousa Santos (2002), problematizando o processo de globalização,
visualiza as relações entre local e global em suas formas de discurso hegemônico e contra-
14
Efetuado através de uma reunião que ocorreu no dia 17/01/2005, no salão paroquial de Barra do Ouro e contou
com a participação do secretário e técnicos da Secretaria do Estadual do Meio Ambiente, representantes e
técnicos da Fundação Zoobotânica, responsável pela execução do projeto, moradores e representantes de
organizações e instituições locais.
15
Conforme Fuks (1998) “a condição de possibilidade para tornar o ‘debate público’ campo legítimo de
investigação reside no resgate da argumentação como característica essencial de seu objeto de estudo. Isso
implica em conceber a vida social e política como arena argumentativa, onde os partidos políticos, os grupos
organizados e o poder executivo participam de um permanente processo de debate. Todo esse processo é sediado
no ‘sistema de arenas públicas’, onde estão em curso as atividades reivindicatórias de grupos, o trabalho da
mídia, a criação de novas leis, a divulgação de descobertas científicas, os litígios e a definição de políticas
públicas. Nota-se, portanto, que o sistema de arenas públicas constitui-se, simultaneamente, enquanto espaço de
ação e de debate. Na dinâmica que envolve a complementaridade dessas duas dimensões, ocorre o processo de
definição dos problemas sociais e dos temas emergentes e salientes.”
16
Com isto remetemos as idéias preconizadas por Giddens (1991) e Beck (1992) sobre risco ambiental e
sociedade de risco e a idéia de processo civilizador de Elias (1994).
34
hegemônico. No primeiro caso identifica o localismo globalizado e o globalismo localizado.
O localismo globalizado corresponde ao processo onde determinado fenômeno local é
globalizado com sucesso, e exerce uma influência preponderante sobre outros locais,
enquanto o globalismo localizado seria, pode-se dizer, de modo inverso, o local que é
modificado pelo global, resultado dos impactos das práticas e imperativos transnacionais nas
condições locais (Santos, 2002, p. 65-66). Aos modos de globalização hegemônicos
contrapõem-se as dos modos de globalização contra-hegemônicos ou resistência do
cosmopolitismo e do patrimônio comum da humanidade.
A primeira forma de resistência consiste em tentar transformar trocas desiguais em
autoridade partilhada, tendo, por exemplo, os movimentos de associações indígenas ou de
populações tradicionais imprimindo valores culturais alternativos e contra-hegemônicos. Já a
segunda forma constrói-se em uma noção que recorre ao direito internacional, identificando o
patrimônio comum da humanidade (Santos, 2002, p. 67-71). Nesses termos, pela leitura de
Boaventura de Sousa Santos, as iniciativas como a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica,
poderiam fomentar resistências e fortalecimentos locais, para isto dependendo de “redes
transnacionais de uma sociedade civil e política global, dentre as quais as organizações não
governamentais progressistas transnacionais e suas alianças com as organizações e
movimentos locais”. (Moreira, 2002, p. 21)
Diante de tais possibilidades, transcorridos pouco mais de dez anos, após a instauração
da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica no RS, cabe questionar os termos desse processo, e
como vem interferindo nas dinâmicas locais e em que medida houve uma apropriação desse
novo estatuto conferido à região por parte de seus moradores. Esse olhar sob uma ótica
abrangente, do mundo como um grande ecossistema, sobreposto a uma realidade social local,
com suas idiossincrasias proporciona alguns dos elementos para a constituição da
problemática ambiental.
De uma forma geral, analisando as ações e investimentos financeiros nessa área, essas
ainda centram-se primordialmente em projetos que visam a conservação de recursos naturais.
No entanto, são crescentes as situações de conflito, em que a presença humana confronta-se
com as ações preservacionistas e, neste contexto, ganha força, principalmente a partir da
década de 80, a idéia da necessidade de substituição do paradigma das áreas protegidas
compreendidas como ilhas de biodiversidade circundadas por paisagens alteradas pela ação
humana predatória pelo paradigma biorregional, que prevê a criação e manutenção de redes
de áreas protegidas integradas ao contexto regional onde se inserem (Ferreira, 2003). Essa
situação está em conformidade com os dados relatados por Capobianco (2004), que enfatiza a
35
tendência de crescimento de projetos na Mata Atlântica enfocando o uso sustentável dos
recursos naturais, ou seja, considerar as formas de apropriação adequadas à preservação
ambiental, com isto, estando implícita a presença das populações que interagem com esses
recursos e ambientes.
Um dos conceitos chaves para a importância da conservação dessas áreas relaciona-se
com a biodiversidade, compreendida, segundo a Convenção da Biodiversidade (CDB), como
a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre
outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os
complexos ecológicos, de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade
dentro de espécies, entre espécies e ecossistemas. (CDB, art. 2)
Nesse contexto, o foco central se relaciona a idéia da importância dessa diversidade
biológica e ecológica para a humanidade e da necessidade de preservá-la. Apesar do conceito
proposto pelo CDB apresentar-se restrito, em seu texto, abrange a noção de que essa
diversidade é produto da própria natureza e da ação dos grupos humanos e de suas culturas,
ou seja, a compreensão da natureza como uma construção social e cultural.
Nas diferentes formas de interpretar de conceber a biodiversidade e conseqüentemente
as estratégias para conservação, observa-se uma polarização. A produção científica voltada à
conservação reflete essa dicotomia. Por um lado, há um núcleo de estudos e pesquisadores
que partem da premissa da existência de uma íntima relação entre diversidade cultural e
biológica (Diegues, 1996, Whelan, 2000), enquanto que por outro lado há um outro núcleo em
torno da natureza inexoravelmente intervencionista e destrutiva da presença humana em
relação ao ambiente natural (Olmos, et al 2001). À medida que esses estudos são
desenvolvidos e seus resultados divulgados, verifica-se que essas disputas e indefinições em
relação ao modelo de conservação estão longe de serem consensuais ou resolvidos. Aos
crescentes trabalhos que demonstram situações concretas de manutenção de uma alta
biodiversidade por manejos específicos de grupos humanos (Posey, 1987, Balée, 2003)
contrapõem-se compilações que demonstram que “as áreas protegidas [portanto, sem a
presença humana] são o substrato adequado da conservação da biodiversidade e não podem
ser responsabilizados pela implantação do desenvolvimento sustentável.” (Brandon et al,
1998). Estes posicionamentos refletem as diferentes posições em disputa no cenário
ambiental. Teríamos assim os posicionamentos preservacionistas, enfatizando a prioridade da
manutenção da biodiversidade e os conservacionistas ou socioambientalistas que defendem a
compatibilização entre a presença humana e os objetivos da conservação biológica.
36
Nessa atmosfera de conclusões paradoxais, é com propriedade que Anthony Giddens
(1997) ressalta o caráter experimental da modernidade, como se estivéssemos presos, em
nível global, a uma grande experiência que ocorre subjacente a cada ação, mas fora de nosso
controle. Neste sentido, apesar de identificarmos a influência de um ideal iluminista de
controle dos riscos por intevenções técnico-científicas, em todo esse crescente arsenal de
conhecimentos produzidos nas diferentes esferas de especialistas, “o mundo social tornou-se,
em grande parte, organizado de uma maneira consciente, e a natureza moldou-se conforme
uma imagem humana, mas essas circunstâncias, pelo menos em alguns setores, criaram
incertezas maiores” (Giddens, 1997: p. 77). Uma das consequências de todo esse processo é o
imbricamento cada vez maior entre as instituições modernas e a vida cotidiana; não apenas a
comunidade local, mas também a vida íntima e pessoal “tornaram-se interligadas a relações
de indefinida extensão no espaço e no tempo” (Id: p. 78), tal como preconizou Michel
Foucault sobre o poder do Estado em relação à vida privada (Foucault, 1994) e Norbert Elias
em relação a um processo civilizador a que estariam submetidas às sociedades modernas
(Elias, 1994).
A experiência do cotidiano, diretamente relacionado com o estabelecimento de
identidades individuais e coletivas, representa agora esse panorama de constantes mudanças e
incertezas e em nosso caso específico, re-coloca em discussão os pilares a partir do qual
foram propostos os atuais ordenamentos e propostas de gestão ambiental, como os
preconizados pela Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
1.5. Maquiné: a emergência de uma nova ruralidade entre natureza e cultura
Dentro da área de abrangência da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, encontra-se
Maquiné, localizada no Litoral Norte do Estado do Rio Grande do Sul, aproximadamente a
140 km de Porto Alegre, emancipada do município de Osório em 20 de março de 1992
17
. Sua
denominação, segundo Sérgio Dalpiaz (2000, p. 2), pode significar “passo do diabo”, “gota
que pinga” ou “grande ave que voa”. Para esse pesquisador, a hipótese mais provável para a
designação seja “passo do diabo”, referindo-se ao local onde há uma travessia de balsa, na
confluência do rio Maquiné com a Lagoa dos Quadros, que em dias que o vento nordeste
sopra forte, provoca altas ondas, tornando a passagem bastante perigosa.
17
Apesar da emancipação recente, existem registros sobre a povoação que datam do século XVIII, dentro das
estratégias portuguesas de ocupar a região, através do incentivo à migração açoriana, com levas vindas de
Laguna. Data referenciada em “A vila da Serra (Conceição do Arroio) sua descrição física e histórica, usos e
costumes até 1872, reminiscências” de Antônio Stenzel Filho s/d., citado por Alice Liedke (2003), num
levantamento histórico preliminar sobre a região.
37
Figura 4 - Mapa com a localização do município de Maquiné, RS. (Elaborado por Márcia
Tavares, 2000)
O clima da região, segundo o sistema de Köppen, é subtropical úmido (tipo Cfa). A
média de temperatura é de 19,9° C e a média pluviométrica anual é de 1731 mm e a
precipitação total mensal se mantém relativamente constante durante o ano. Nesses locais, as
temperaturas médias, ao longo do ano, determinam o estabelecimento de um clima ameno. De
acordo com Walter (1987), a curva de temperatura não ultrapassa a de precipitação
18
, o que
demonstra não haver épocas de secas prolongadas na região. Nas épocas em que há maiores
precipitações, ocorrem as cheias ou enchentes. Estas cheias, que atingem, sobretudo as áreas
de várzea, foram uma das razões para a ocupação das áreas de maior altitude
5
.
18
Refere-se a um diagrama climático, que é a sobreposição das curvas de chuva e temperaturas médias durante o
ano a partir da qual se obtém uma relação pluviosidade-temperatura que permite caracterizar o comportamento
climático.
5
Declarações de Seu Lidorino, agricultor aposentado, morador dos Fundos da Solidão, apresentado em detalhes
no capitulo 3. Declarações semelhantes, encontram-se nas entrevistas realizadas por Cleiton Gerhardt (2003), em
sua dissertação de mestrado.
38
O sistema viário do município compõe-se de aproximadamente 236 km de estradas
municipais, de “chão batido” (não pavimentado) em bom estado nos locais mais percorridos,
porém, vão se tornando bastante precários a medida que adentram o município. Em épocas de
chuvas, podem ocorrer enchentes, inviabilizando o acesso a algumas localidades. A rodovia
BR 101 atravessa o município na direção norte-sul, liga o Estado do Rio Grande do Sul ao
resto do país, sendo responsável por uma parcela significativa do escoamento da produção
municipal e estadual.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000 sobre o
Município revelam uma população de, aproximadamente, 7304 habitantes, sendo a maioria na
zona rural (n=5379, 74%). Em sua configuração étnica, os sobrenomes e as narrativas
familiares denotam a presença de descendentes de italianos, alemães, poloneses e
portugueses, cujas fronteiras étnicas ora são acionadas, ora perdem-se na auto-identificação
genérica de brasileiros. Na área de abrangência do Município encontra-se a Reserva Indígena
de Campo Molhado
19
e pequenos acampamentos, que abrigam representantes da etnia Mbyá-
Guarani. Além disso, um laudo antropológico, realizado pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, identificou uma área remanescente de quilombo no distrito de Morro Alto
20
.
Do ponto de vista fisionômico, o município encontra-se numa área de transição entre a
planície costeira e a Serra Geral, abrangendo, assim, locais com altitudes de 20 metros ao
nível do mar até 900 metros; é atravessado pelo rio Maquiné, com extensão de
aproximadamente 40 km, com as nascentes localizadas no município de São Francisco de
Paula e desaguando na Lagoa dos Quadros. Ao longo dessa trajetória de descida abrupta,
recebe as águas de onze arroios, sendo cada um desses arroios corresponde a um vale. Os
vales são separados por morros que podem atingir até 900 metros de altitude. Esse conjunto
(rio – afluentes - vales separados por morros) forma a bacia hidrográfica do rio Maquiné e são
esses elementos que impressionam ao visitante ou turista que pela primeira vez entra em
Maquiné, dando a impressão de que “o verde da Mata Atlântica sobe as encostas da Serra
Geral até se encontrar com a diversidade de cores e formas do céu. Entremeando as encostas
ou fluindo pelos sopés dos morros estão as cascatas, cachoeiras, riachos, córregos e
nascentes” (Schirmer e Baldauf, 2003, p. 259).
19
Reserva com superfície de 2266 hectares, situada nos Municípios de Caraá, Maquiné e Riozinho/RS, com
demarcação promulgada em 18/04/2001.
20
Morro Alto, é a primeira comunidade negra rural a receber uma certidão de autoreconhecimento como
comunidade remanescente de quilombos. A partir da portaria publicada pela Fundação Cultural Palmares no dia
4/03/2004, o novo critério para o reconhecimento de uma comunidade enquanto remanescente de quilombos é a
autoidentificação da própria comunidade enquanto tal. Sobre o processo, ver Barcelos et al. Comunidade negra
de Morro Alto: historicidade, identidade, territorialidade e direitos constitucionais. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2004.
39
Figura 5 - Bacia hidrográfica
do rio Maquiné.
Fonte: Google Earth
Esses vales que constituem a bacia Hidrográfica apresentam características próprias,
formando “microclimas” diferenciados, conforme sua insolação, vegetação e configuração do
relevo e compõem-se de comunidades distintas – geralmente denominadas de “linha” - com
etnias características, sua própria igreja (no município existem cerca de 15 capelas), salão
paroquial, padroeiro, festas e bailes. Esses vales ou linhas denominam-se: Cerrito, Forqueta,
Rio Ligeiro, Rio do Ouro, Garapiá, Pedra de Amolar, Encantada, Pinheiro, Mundo Novo,
Cachoeira, Espraiado, Prainha, Cantagalo, Costa do Maquiné, Morro Alto e Solidão. Também
as formas de ocupação do espaço e as atividades econômicas desenvolvidas são peculiares:
alguns vales, com maiores áreas de planície, apresentam maior área cultivável, o que incorre
em vantagens em relação ao potencial de uso da terra e de escoamento da produção. Por outro
lado, os vales mais estreitos, pela própria dificuldade de acesso e relativo isolamento,
apresentam-se mais preservados, podendo apresentar maiores atrativos do ponto de vista
turístico.
As propriedades estão distribuídas ao longo do perfil topográfico dos vales e
apresentam, em geral, formas de ocupação do espaço e de uso dos recursos correspondente ao
tipo de relevo. Na topo-seqüência esquemática da figura 6 encontramos distribuídos, nos vales
da bacia do rio Maquiné, os tipos de relevo identificados em Rech (1987), a saber:
a) platô: áreas mais ou menos planas, caracterizadas por rochas básicas;
escarpas: relevo abrupto com declividade superior a 40 %;
b) patamares: relevo médio a fortemente inclinado (declividade entre 20 a
40%);
40
c) colúvios: local de transporte de materiais nas vertentes; planície: com até 40
metros de altitude e relevo plano com declividade inferior a 10%.
Figura 6 - Topo-seqüência das encostas dos vales da bacia Hidrográfica do rio Maquiné, com
a vegetação e atividades associadas (ANAMA/ PGDR-UFRGS, 2000)
A cada faixa de altitude corresponde um tipo de vegetação característica, com um
conjunto específico de atividades. No topo, denominado “platô”, encontramos a vegetação
correspondente à Floresta Ombrófila Mista (antigamente associado à extração florestal de
pinhão, madeira, erva-mate) e campos (localmente denominado “faxinal” onde, antigamente,
se criava gado e porco). Atualmente, grande parte dessa faixa compõe a Reserva Biológica da
Serra Geral
21
, destinada exclusivamente à preservação ambiental e à realização de pesquisas.
Em algumas áreas verifica-se a presença de búfalo.
Na faixa seguinte, correspondente a escarpa 2 e patamar 2 (vide figura), encontramos
uma vegetação mais densa com mata (Floresta Ombrófila Densa) onde há coleta de palmito,
samambaias e plantas ornamentais como as bromélias.
Na região correspondente à escarpa 1 e patamar 1 (vide figura), apresenta-se uma
vegetação em regeneração (denominada vegetação secundária), onde se realizam os cultivos
21
Unidade de conservação criada pelo Decreto Estadual 31788 de 27/06/82 que se constitui em uma Zona
Núcleo, ou seja, áreas centrais para as estratégias de implementação da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Rio
Platô
Escarpa 2
Patamar 2
Escarpa 1
Colúvio
Planície
Altitude
- Olericultura
intensiva
Patamar 1
900m.
20 m.
Floresta Ombrófila Mista
- Extração produtos florestais
(araucária, erva-mate)
Faxinais
Floresta Ombrófila Densa e
Vegetação Secundária
- Extração produtos
florestais
(samambaia, palmito, epífitas)
Vegetação Secundária
- Culturas Anuais e pastagens
Planície Costeira
- Criação de gado
Arroz irrigado
Pesca artesanal
Lagoas
41
anuais de feijão, milho, mandioca, batata-doce, arroz. Nas localidades mais próximas à
rodovia BR 101, há plantio de banana e em menor escala, de abacaxi. Ainda nessa faixa são
extraídas samambaias. Já nas partes menos inclinadas estão as habitações.
Na planície, correspondente às várzeas, como já referido, localizam-se os produtores
de hortigranjeiros (que plantam entre outras olerícolas: alface, repolho, beterraba, salsa,
cebolinha, couve-flor, moranga e frutas como maracujá, laranja e abacaxi). Nessa faixa está a
maior concentração populacional.
Na região correspondente à planície costeira, desenvolve-se a criação de gado e a
pesca artesanal; planta-se principalmente, arroz irrigado e pratica-se o comércio de artesanato
com as fibras extraídas de espécies do banhado (tiririca e taboa), das matas (cipó e taquara) e
plantas cultivadas (bananeira).
Cerca de 30% da bacia hidrográfica do rio Maquiné é composta por essas áreas de
planície ou com baixa declividade e, o restante, corresponde às escarpas ou encostas. Nas
áreas mais altas e íngremes, observa-se a regeneração da vegetação nos mais diferentes
estádios de sucessão secundária
23
. Nas áreas planas, à medida que vamos subindo encosta
acima, tende a se reduzir, com a presença do extrativismo o uso agrícola. A topo-seqüência
esquemática demonstra uma apropriação territorial desigual com contrastes entre as áreas
planas ou de várzea e as áreas de encosta. Este contraste confirma-se ao verificarmos os dados
da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural no Rio Grande do Sul (EMATER, 1996)
que aponta a presença de duas atividades agrícolas principais no município: uma que agrega
maior renda através do cultivo de olerícolas praticada em terreno plano com alta fertilidade e
uso de tecnologia moderna (em área da várzea) e outra, cuja renda é oriunda principalmente
do milho e do feijão, praticada em terreno acidentado (área de encosta e meia encosta) e com
a utilização de tecnologia tradicional.
A grande maioria dos agricultores da região encaixa-se nesse último perfil: possuem
propriedades de pequeno porte, salientando-se que cerca de 70 % das propriedades rurais tem
menos de 20 ha, conforme o Censo Agropecuário do IBGE, 1995/96. Um estudo mais
detalhado dessas propriedades, apresentado no documento ANAMA/ PGDR-UFRGS
22
Postula-se que, no processo de desenvolvimento da sucessão ecológica, apresenta-se uma seqüência de
comunidades ecológicas que se substituem umas às outras. Esse processo observa-se por exemplo em um local
anteriormente ocupado (uma roça ou área derrubada, por exemplo) e ao ser abandonado, observa-se
gradativamente o aparecimento de uma vegetação secundária, com ervas e arbustos, até alcançar um clímax,
quando se apresenta uma vegetação de mata (Odum, 1983, p. 283).
42
(2000)
24
, demonstra que esses pequenos proprietários lançam mão de estratégias produtivas
diversificadas para estabilizarem suas condições financeiras; recorrem a trabalhos agrícolas
fora da propriedade familiar, aos pequenos arrendamentos; parcerias em terras de terceiros e
contam ainda, com a renda oriunda da aposentadoria dos mais velhos. O documento cita como
atividade adicional a produção de frutas como ameixa, laranja, morango e mamão; de mudas
de palmito; de cogumelo e de mel. Também alguns sistemas de criação de pequenos animais e
produção de produtos caseiros como queijos, lingüiças, doces, pães, vinho, licores, etc.
Constata-se, ainda, a presença de outras atividades não agrícolas com potencial de geração de
renda, como as relacionadas ao turismo (campings, tendas de produtos típicos, trilhas
ecológicas, pousadas, etc...), ao extrativismo de espécies nativas de uso ornamental
(bromélias, orquídeas samambaia-preta e xaxim), ao setor alimentício (palmito) e artesanal
(cipós).
Verifica-se, dessa maneira, um município rural onde coexistem sistemas agrícolas
tradicionais e tecnificados. Por apresentar uma beleza paisagística bucólica, aparentemente
“intocada”
25
, protegido pelo estatuto de Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, vem atraindo
parcelas crescentes de excursionistas e, sobretudo, novos moradores oriundos dos centros
urbanos, com diferentes trajetórias e perspectivas de vida. Essas são pessoas cujas famílias
moram no município e têm, nas casas de seus parentes, um local para passeio, descanso e
reencontro com suas origens; são proprietários de pequenos sítios de lazer que visitam,
ocasionalmente, geralmente aos fins-de-semana ou feriados; são profissionais cujas atividades
não dependem de uma localização fixa, ou seja, podem executar seus afazeres em ambiente
doméstico; são empreendedores que visualizam uma nova possibilidade de ganhos através de
atividades ligadas ao ecoturismo ou turismo rural, como abertura de pousadas ou realização
de passeios turísticos; são pessoas que buscam uma vida alternativa aos moldes citadinos e
individualistas atuais, distante dos consumismos urbanos com propostas de formação de
comunidades alternativas rurais (localmente denominados “os hippies”); são profissionais
ligados à área ambiental que buscam aliar a militância ao trabalho; ou ainda, grupos de
pessoas que adquirem determinadas áreas, simplesmente, para fins de preservação.
23
Relatório final do projeto “Estudo sócio-econômico no Município de Maquiné: perspectivas para um
desenvolvimento rural sustentável” executado em parceria entre a ONG ANAMA e Programa de Pós-graduação
em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
24
Nos termos colocados em Diegues (1996), natureza em seu estado virgem, com pouca ou nenhuma
interferência humana.
43
Esse aporte de diferentes pessoas com diferentes visões de mundo e estilos de vida
podem ser identificados nos diferentes eventos que se realizaram entre 1999 e 2004,
resumidos no quadro abaixo:
Festa/ evento Promotor Alguns dados
Festa da Polenta e
do Vinho
Comunidade de Barra do
Ouro, Prefeitura
Municipal, EMATER
Em sua quinta edição, realizada de dois em dois anos na
localidade de Barra do Ouro, busca resgatar e afirmar a presença
da descendência italiana na localidade. Objetiva angariar fundos
para ações sociais locais , assim como para a manutenção da
paróquia de Barra do Ouro.
Rock in Rio
Maquiné
Grêmio Estudantil
Langendonck
Festival de música com apresentações de bandas de rock locais
ou do Estado, promovido pelos jovens do município.
Festa de Nossa
Senhora do Bom
Parto
Paróquia da Maquiné Festa de caráter religioso em honra a Nossa Senhora do Bom
Parto, com realização de missa, almoço e baile na Paróquia.
Agrofest - Festa do
Agricultor
Prefeitura Municipal,
EMATER, comunidade
de Maquiné
Realizada na sede do Município. Sua tônica está na valorização
da identidade rural e sobretudo a potencialidade agrícola do
Município. Com inúmeras bancas para iniciativas locais ou não,
visa divulgar o Município e atrair contingentes populacionais e
angariar fundos para diversas finalidades.
Encontro de
Pesquisadores
Secretaria do Meio
Ambiente, Comitê
Gerenciamento da Bacia
do Rio Tramandaí,
UFRGS, ANAMA
Encontro congregando os pesquisadores que desenvolvem
trabalhos com temáticas relacionadas à área de abrangência da
bacia hidrográfica do rio Maquiné, tem por objetivo a a
divulgação e difusão dos resultados destas pesquisas aos
moradores do Município.
Encontro da
Samambaia-preta
ANAMA, Secretaria do
Meio Ambiente,
Prefeitura Municipal
Em duas edições, buscou congregar pesquisadores, fiscais e
licenciadores ambientais, coletores e transportadores de
samambaia para discutir as restrições ao corte da samambaia e as
alternativas diante de tal situação.
ENCA (Encontro de
Nacional de
Comunidades
Alternativas)
Associação Brasileira de
Comunidades
Alternativas,
Comunidade Rural do
rio Ligeiro
Surgiu em 1978 e se realiza uma vez por ano, juntando durante
uma semana grupos de pessoas cuja proposta é viver em
comunidades rurais, longe da cultura de consumo e praticando a
agricultura orgânica, a fitoterapia, a defesa do meio ambiente, a
educação das crianças no contato com a natureza. Além das
discussões sobre esses temas, há terapias e exercícios de grupo,
atividades culturais como teatro, dança, canto, artesanato e
esportes.
Garapiá Trance
Festival
Psyconautas/ Solarium
Prisma/ Alien Club
(parceria entre estas
produtoras de eventos)
O trance seria uma modalidade de festa rave, corresponde às
festas de música eletrônica de pista, geralmente, para um grande
público, realizadas em lugares diversos (nos armazéns vazios,
nos pavilhões de eventos, no prédios abandonados e nos
parques). A modalidade trance em linhas gerais apresenta uma
identificação com a natureza, ressaltando aspectos místicos e
p
sicodélicos (Fontanari, 2003). No caso desta festa a proposta era
dos participantes permanecerem dois dias em um camping local,
embalados ao som da música eletrônica reproduzida por três DJ’s
em contato com a natureza através de passeios, caminhadas e
banhos de cachoeira.
Quadro 3 – Principais eventos ocorridos entre 1999 e 2004 em Maquiné, RS.
Cada uma dessas iniciativas, bastante distintas em suas motivações, é a prova de que, a
um determinado espaço geográfico, correspondem diferentes significados, segundo os grupos
que ali habitam, visitam, passam, trabalham. Constituindo, dessa forma, “numa linguagem
44
capaz de expressar simultaneamente múltiplos planos simbólicos, sendo ainda, uma mediação
capaz de tornar compreensível a vida num país em que as contradições de todos os tipos são
realçadas diariamente” (Amaral, 2001, s/p).
Num primeiro plano apresentam-se as festas fomentadas por grupos locais com apoio
da prefeitura que, com a possibilidade de obter algum ganho econômico com o turismo,
baseados em antigas tradições, cristalizadas pela memória do grupo, criam um evento. A
exemplo disso ocorre a Festa da polenta e do Vinho. Nessa festa, organizada pela
municipalidade, através de teatro com a encenação da saga dos primeiros colonizadores da
região, das brincadeiras como a corrida com tamancos, da gastronomia constituída de polenta,
massa, galeto, regado a vinho, os costumes antepassados e estilo de vida rural são revividos e
ressignificados.
Na festa do ano de 2004, que tive oportunidade de participar, juntamente com estas
manifestações, misturavam-se a feira de produtores rurais (abrangendo clube de mães,
produtores rurais, produtores orgânicos, artesanato de um grupo de mulheres, artesanato de
índios Mbyá-guarani); a exposição de implementos agrícolas; o parque de diversões; os
camelôs; as bancas de venda das mais diversas mercadorias e comidas; e os candidatos à
prefeitura, expondo suas plataformas políticas. Nesse panorama polimórfico descortinam-se
os distintos interesses e motivações dos grupos com diferentes graus de inserção local que, em
seu conjunto, propiciam processos múltiplos de interação social e constituem o corpo social
de Maquiné. As inúmeras motivações que levam alguém a ir a um local acabam se tornando
um momento para o encontro, para a celebração, para o lazer, para sair da rotina, num local
com poucas opções de lazer. Trata-se, nesse sentido, de um tempo diferenciado das atividades
cotidianas, que reúne os diferentes segmentos que de uma forma ou outra se ligam a este
lugar.
Esse seria, pois, o sentido do tempo de um evento, a otimização de um tempo num
determinado espaço. Nesse contexto, o interesse aqui de dar luz a esse tempo que, por ser
otimizado, reúne as diferentes esferas e espaços sociais, ou seja, significa que a esse tempo
com ritmo diferenciado, corresponde, também, o de um espaço otimizado, no sentido de uma
confluência de diversificados grupos sociais que ali convivem. Este espaço, resultante deste
tempo otimizado do evento, em um tempo ordinário, apresenta-se esparso no espaço territorial
de Maquiné.
Também os jovens, ao seu modo buscam promover eventos onde buscam de uma
foram geral afirmar os gostos musicais e o estilo de vida de sua geração: promovem festivais
ao modo dos mega-eventos veiculados pela mídia, tendo como objetivo, a arrecadação de
45
fundos para algum objetivo específico como a festa de formatura do fim de ano dos alunos do
Colégio local.
No âmbito desse primeiro grupo de eventos, temos, ainda, as festas locais, centradas
em determinados vales ou comunidades, geralmente ligados à Igreja Católica, cujo público é
formado primordialmente por moradores locais. Diferenciam-se das iniciativas anteriores,
porque, apesar de visarem arrecadação de fundos, fundamentam-se numa tradição religiosa
local, onde cada comunidade homenageia sua padroeira.
Em meio a essas potencialidades locais, ligadas às suas características cênicas e
culturais, também a prefeitura se mobiliza visualizando, nessa situação, a possibilidade de
capitalização econômica e política. Dessa forma apóia eventos, acentuando peculiaridades da
cultura local, como o reforço a um estilo de vida neo-rural e as potencialidades agrícolas e
mais recentemente, o turismo como um potencial a ser explorado.
No período entre 2001 e 2004, o discurso do prefeito, sempre colocou a preocupação
com a preservação ambiental e o incentivo ao turismo, mais especificamente, à modalidade do
turismo ecológico, como metas de sua gestão. No entanto, indefinições em relação à como
implementar tal meta, ao questionamento do que se constitui um turismo ecológico e em que
medida a população local estaria sendo contemplada, desvelam a grande dificuldade em
estabelecer um plano estruturado para o setor. Tendo em vista a dificuldade de planificar os
projetos e a escassez de recursos financeiros para a implementação do turismo, efetuam-se
parcerias com instituições de ensino e pesquisa e ONG’s, visando preencher estas carências.
No entanto, trata-se de ações pontuais, não conectadas a um projeto mais amplo, o qu, na
maioria das situações, acaba não revertendo em resultados mais efetivos em termos de
políticas públicas do Município. Assim, apesar do esforço da prefeitura e do prefeito em
integrar esse movimento amplo em direção ao ecológico, as propostas acabam se perdendo
em meio a uma série de outras carências organizativas locais, a incompreensão dos próprios
funcionários públicos sobre tais direcionamentos e a dificuldade de estabelecer prioridades
frente a outras demandas municipais como a agricultura, educação e saúde. Permanecem,
assim, problemas relacionados à coleta de lixo, ao uso de agrotóxicos, à poluição dos
mananciais hídricos por insumos químicos utilizados na agricultura ou pelo lançamento dos
dejetos orgânicos das propriedades, itens importantes para o estabelecimento de um turismo
que, se quer ecológico e que, em essência, chocam-se com o interesse de também promover a
agricultura, sobretudo aqueles sistemas agrícolas que giram maior volume de capital, como a
olericultura.
46
Retomando a idéia de que as pessoas que se dirigem a Maquiné, vêm movidas por uma
busca do natural, de modo geral, ligadas a um ideário de valorização crescente da natureza e
da necessidade de preservá-la. Estas se manifestam sob diferentes motivações: como espaço
de descanso e fruição, longe da poluição e do ritmo urbano acelerado; ou enquanto um local
de grande diversidade biológica, tornando-se objeto de busca de conhecimento; ou ainda, um
lugar para habitar e constituir um projeto pessoal alternativo ao modelo urbano. Essas
tendências podem ser visualizadas nos eventos como o Encontro Nacional de Comunidades
Alternativas (ENCA), os encontros de pesquisadores e da Samambaia-preta ou na Festa
Trance.
De modo geral, há uma busca do natural, seja na forma paisagística de uma natureza
intocada (Diegues, 1996), ou através de uma tradição ligada aos antepassados, com isso re-
focalizando a imagem do rural na natureza e nas tradições, reforçada pelos moradores locais.
Conforme Moreira, (2003, p. 2) “no caldo dos movimentos ecológicos e ambientalistas
vivemos na atualidade um processo de ressignificação do mundo natural e da natureza que,
por sua vez, englobam a própria ressignificação da natureza humana e a própria realidade
rural”. Há, com isso, um alargamento e desconstrução do que poderíamos entender por rural,
resultando em sociabilidades complexas e em constante mutação e fricção de alteridades.
Dessa forma, configurando o que vem sendo identificado como neo-ruralismo (Giuliani,
1990). A discussão sobre o neo-ruralismo surge na França entre década de 60 e 70 e
expressa a idéia de que diversos valores típicos do velho mundo rural, e que se
pensava estarem em vias de extinção, passam por um certo revigoramento e
começaram a ganhar para si a adesão de pessoas da cidade. A volta às relações
diretas com a natureza, a ciclos produtivos e tempo de trabalho mais longos e
menos rígidos, ao ar puro e à tranqüilidade, assim como o desejo de relações sociais
mais profundas, sobretudo, da autodeterminação, são as dimensões que atraem
pessoas da cidade ao campo, assim como outrora as luzes da cidade atraíram a
população do campo (Giuliani, 1990, p. 59-60).
Essas situações trazem a idéia de uma associação entre a tradição do homem do campo
e a natureza. Na obra “O homem e o mundo natural”, seu autor Keith Thomas (1989) assinala
entre os séculos XVII e XVIII a emergência de um gradativo sentimento de simpatia entre o
homem e o mundo natural e mostra como já neste período, estavam presentes todos os argumentos
em que hoje se baseia o movimento ecológico, fortalecendo uma
imagem idílica de natureza e
fundamentando o mito moderno da natureza intocada (Diegues, 1996).
Neste sentido, guardadas as devidas dimensões, encontramos um paralelismo entre a
emergência desta nova ruralidade, com a valorização das populações tradicionais dentro de
estratégias de conservação, cujo grande divulgador, no Brasil, foi Antonio Carlos Diegues.
47
Conforme essa última perspectiva, postula-se a especificidade de grupos humanos, habitantes
de longa data de áreas de grande biodiversidade, no sentido de terem estabelecido, ao longo
desse tempo de interação com o meio, estratégias e manejos que conjugavam a sua
sobrevivência com a preservação do ambiente. Algumas estratégias conservacionistas
pautam-se pela busca desses conhecimentos tradicionais para o estabelecimento de políticas
de gestão de parques ou áreas de grande biodiversidade.
Ainda para ampliar esse contexto emergente, nas análises de Isabel Carvalho sobre as
identidades narrativas constitutivas de um sujeito ecológico, encontramos os contornos desse
momento histórico que produz novas compreensões do ambiental, configurando-o como um
campo específico. (Carvalho, 2001, p. 35-36). Através desta obra, conseguimos estabelecer os
nexos com o momento contemporâneo, presentes nas obras de autores como Anthony
Giddens, Boaventura de Sousa Santos, Ulrich Beck, entre outros pensadores, onde a trajetória
individual dos educadores ambientais é o exemplo deste sujeito em constituição, que vivencia
os paradigmas de seu tempo. Nesse sentido, diante da situação a qual somos defrontados em
Maquiné, identificamos um estilo de vida que se configura num “elogio da margem e do
alternativo como lugar de recusa do estabelecido e reinvenção da existência pessoal e
política.” (Carvalho, 2001, p. 212). Estilo de vida que, diante do desencantamento e perda das
utopias, reinventa-se constituindo um universo particularizado, onde a paz do mundo estaria
na paz do individuo
26
. O elogio da margem é também a busca do repouso que se postula
encontrar num paraíso longínquo, na natureza e no homem da tradição, imagens essas
permanentemente ressignificadas e re-inventadas mantendo-se de foram vigorosa nos
imaginário do homem moderno.
1.6 O extrativismo da samambaia-preta: um problema ambiental?
Uma imagem corrente no município de Maquiné é a presença de caminhões que
transitam nas diferentes localidades do município, carregados com folhas de samambaia. Esse
fato, em geral, chama a atenção da grande maioria dos visitantes da região, seja por ser uma
atividade incomum, seja pelo volume de folhas transportados na carroceria do caminhão. Esse
estranhamento é, normalmente, acompanhado por uma preocupação com a quantidade de
folhas retiradas e as conseqüências de uma retirada excessiva para a vegetação local. Para essa
atitude, concorre o perfil dos visitantes dessa região, envolvidos, em diferentes escalas, por
um discurso ecológico de preocupação com a preservação dos recursos naturais.
25
Parafraseando o cantor e compositor Vitor Ramil.
48
Baseado nessa preocupação inicial, integrantes da ONG ANAMA elaboraram o
Projeto Samambaia-preta, visando levantar subsídios que permitissem conhecer em
profundidade essa atividade. Esse projeto foi financiado por duas secretarias estaduais, com
recursos de diferentes fontes. Pela Secretaria do Meio Ambiente, o recurso veio de um fundo
denominado Fundeflor, o qual corresponde a uma parcela das multas por infrações
ambientais, destinadas a sanar os danos ambientais provocados pelos infratores. Já pela
Secretaria da Agricultura e Abastecimento provêm de um programa do Banco Mundial para
combater a fome e desta forma contribuir para o aumento da biodiversidade. Na conjunção
entre biodiversidade e fome estão, em pauta, duas grandes preocupações relacionadas aos
países em desenvolvimento. Ressalta-se que, dentro de um contexto de Estado, com escassos
recursos, este programa, denominado RS-Rural, fomenta uma série de outras ações estaduais,
relacionados às populações indígenas, quilombolas, agricultores familiares, entre outros,
formatados dentro de um programa político do governo
27
. Nesta situação, visualizam-se as
conexões estabelecidas para a execução destas políticas: Banco Mundial-Estado-ONG. Em
outros projetos vinculados a este programa, os executores são segmentos da universidade.
Essa situação revela algumas facetas da forma de intervenção nas comunidades e movimentos
sociais, orquestrado por organismos internacionais e cuja execução é legado a segmentos
locais fora da esfera pública como as ONG´s ou então a instituições de pesquisa.
A espécie conhecida popularmente como verdinho, samambaia, samambaia-silvestre
ou samambaia-preta
28
[Rumohra adiantiformis (G. Forst.) Ching] possui uma distribuição
geográfica bastante ampla, sendo encontrada em ambos os trópicos e nas regiões temperadas
do Sul (Milton & Moll, 1988, p. 725). No Rio Grande do Sul, ocorre, nos mais diversos
ambientes, desde as formações pioneiras de restinga, na região do litoral, até as matas do
oeste, na Floresta Pluvial do Alto Uruguai e nas matas ciliares da região da Campanha,
encontrada também nas florestas com Araucária da região do Planalto Nordeste e na Serra do
Sudeste, sendo particularmente abundante nas áreas de domínio da Mata Atlântica.
Esta planta ocorre em diversos habitats: restingas, rochedos, capoeiras e florestas e
com diferentes formas biológicas: terrestre, rupestre e epifítica (Fernandes, 1990; Bueno e
Senna, 1992; Senna e Waechter, 1997). Destaca-se dentre as demais pteridófitas por sua
importância econômica, devido a sua grande durabilidade, após sua colheita, também
denominado “evergreen” – sempre verde ou “hojas de cuero” – folhas de couro, em países de
26
Refere-se a gestão 1998-2002 do governador Olívio Dutra, representante do Partido dos Trabalhadores.
27
A denominação relaciona-se com a coloração verde-escura e o talo preto, e também visa diferenciá-la de outra
espécie, que ocorre na mesma área, o Pteridium aquilinum, que é chamado de samambaia-branca, devido a
coloração verde-clara.
49
língua inglesa e espanhola, respectivamente, sendo suas folhas comercializadas em nível
mundial para utilização em arranjos de flores.
Na África do Sul, na região da cidade do Cabo, proprietários de terra suprem o
mercado local, desde a década de 1970, através da extração da samambaia do ambiente
natural. Após a permissão do Departamento de Florestas daquela região para exploração
comercial em 4.000 hectares de florestas do Estado, essa atividade econômica desenvolveu-se
rapidamente, tornando-se o principal produto dessa região (Milton & Moll, 1988, p. 726).
Atualmente, já ocorrem cultivos em estufas. Nos Estados Unidos, não ocorrem populações
naturais, sendo essa espécie cultivada em viveiros irrigados.
Os maiores mercados importadores desse produto são a Europa e o Japão, comprando
as folhas produzidas na Flórida (USA) e na Costa Rica (Fonseca, 1997, p. 3, Guevara, 1997,
p. 7). No Brasil, grande parte do mercado nacional é abastecido pelas folhas extraídas no Rio
Grande do Sul sendo, na maioria das situações, obtidas através da extração direta em seu
ambiente natural, caracterizando-se como um extrativismo
29
.
Embora não existam estudos precisos, estima-se que, na região do Litoral Norte do
Estado, envolvendo os municípios de Maquiné, Caraá, Itati, Terra de Areia, Santo Antônio da
Patrulha, Morrinhos do Sul e Osório, inúmeras famílias tenham, na prática da extração das
folhas de samambaia-preta, sua principal - quando não única - fonte de renda. Segundo relatos
contidos num estudo realizado sobre agricultores familiares do município de Maquiné
(Gerhardt et al, 20003 p. 35),
parte considerável dessas famílias vivem nas encostas, geralmente nos fundos de vale,
em pequenos lotes de terra não apropriados a cultivos anuais. Praticam a agricultura
de subsistência, com uso de tecnologias tradicionais. No entanto, esta região, por suas
características climáticas, constitui um ambiente propício ao desenvolvimento de uma
flora pteridofítica bastante diversificada, onde a samambaia-preta é particularmente
abundante.
Até 2003 não havia dados sobre o impacto desse extrativismo sobre o ambiente e as
populações locais dessa espécie e por estar envolvido somente por aspectos legais
relacionados a problematização do processo extrativo, decorrentes da legislação ambiental em
vigor, trata-se de uma atividade executada informalmente, sem o aval dos órgãos
licenciadores.
28
Segundo Laure Emperaire, o termo extrativismo designa os sistemas de exploração de produtos florestais
destinados ao comércio regional, nacional ou internacional. Diferencia-se, portanto, das atividades de coleta
cujos produtos estejam limitados ao consumo familiar ou a um escambo local. Extrativismo e coleta dependem
de duas lógicas econômicas diferentes: uma regulada por um mercado externo, outra pelas necessidades da
unidade doméstica.” (Emperaire, 2000, p. 15).
50
A região onde ocorre a extração é considerada de grande importância para a efetivação
da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica no Estado. Encontrando-se na área circundante ou
zona tampão de unidades de conservação, como a Reserva Biológica da Serra Geral, criada
pelo Decreto Estadual 31788 de 27/06/1982, e a área de Proteção Ambiental - APA Rota do
Sol, para as quais, segundo a resolução 13/90 do CONAMA, postulam-se atividades de baixo
impacto ambiental.
As principais diretrizes normativas referentes a esta atividade estão nos seguintes
dispositivos legais:
A) DECRETO FEDERAL N° 750, DE 10 DE FEVEREIRO DE 1993.
Dispõe sobre o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios
avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica, e dá outras providências.
B) LEI 9.519 - CÓDIGO FLORESTAL ESTADUAL DE 21 DE JANEIRO DE 1992.
Institui o Código Florestal do Estado de Rio Grande do Sul e dá providências.
C) DECRETO ESTADUAL N° 38.355 DE 01 DE ABRIL DE 1998
Estabelece as normas básicas para o manejo dos recursos florestais nativos do Estado do
Rio Grande do Sul
D) LEI N° 11.520 CÓDIGO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE DE 03 DE AGOSTO DE
2000.
Institui o Código Estadual do Meio Ambiente do Estado de Rio Grande do Sul e dá
providências.
51
Dispositivo* Artigo Conteúdo
a
1
“Ficam proibidos o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária
ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica.”
Parágrafo único. “Excepcionalmente, a supressão da vegetação primária ou
em estágio avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica poderá ser
autorizada, mediante decisão motivada do órgão estadual competente, com
anuência prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), informando-se ao Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama), quando necessária à execução de obras, planos,
atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social, mediante
aprovação de estudo e relatório de impacto ambiental.”
b
30
“Ficam proibidos a coleta, o comércio e o transporte de plantas ornamentais
oriundas de floresta nativa”.
b
38
“Ficam proibidos o corte e a respectiva exploração da vegetação nativa em
área da Mata Atlântica, que será delimitada pelo poder executivo”.
- A Lei Estadual 10.688/96, de 09 de janeiro de 1998, altera este artigo
permitindo na Mata Atlântica apenas o corte de vegetação para uso na
propriedade, vedando a comercialização de produtos oriundos da floresta
nativa.
- Delimitando essa área proibida ao corte e à respectiva exploração da
vegetação nativa solicitada pelo Artigo 38, denominada “Poligonal da Mata
Atlântica”, foi lançado o Decreto Estadual n° 36.636 de 03/05/1996 no qual a
região do Litoral Norte está contida.
c
39
“O licenciamento para coleta ou apanha de produtos ou subprodutos não
madeiráveis, oriundos de associações florestais nativas, poderá ser concedido
a pessoas físicas ou jurídicas, desde que essa atividade não concorra para a
eliminação de espécies ou à supressão parcial ou total da vegetação às quais
estão associadas e estejam isentas de quaisquer outras restrições legais”
c
69
“Na área da Mata Atlântica, delimitada pelo Decreto Estadual n° 36.636, de
03/05/1996, o presente Decreto aplicar-se-á naquilo que não colidir com a
legislação específica”.
d
157
Estabelece que na utilização dos recursos da flora serão considerados os
conhecimentos ecológicos de modo a se alcançar sua exploração racional e
sustentável, evitando-se a degradação, a destruição da vegetação e o
comprometimento do ecossistema dela dependente.
(*) letras correspondentes aos itens do texto anterior
Quadro 4 - Principais leis referentes à atividade extrativista da samambaia-preta no RS.
Em relação às leis vigentes, além dos entraves mencionados, que se referem às
limitações da comercialização de produtos florestais nativos na Poligonal da Mata Atlântica,
seria necessário para desenvolver o manejo sustentado da samambaia-preta, considerar a
Legislação nos seguintes itens:
a) Sobre as Áreas de Preservação Permanente (APP’s) e suas possibilidades de
uso, o Código Florestal Federal (Lei 4771 de 1965), no seu Art. 10 diz que:
Não é permitida a derrubada de florestas situadas em áreas de inclinação
entre 25 e 45 graus, só sendo nelas toleradas a extração de toros quando em
regime de utilização racional, que vise a rendimentos permanentes.
52
b) Para o manejo das capoeiras, com o objetivo de evitar o sombreamento
excessivo e manter uma produção mínima de frondes, devemos atentar para o Decreto
Estadual n° 38.355 de 01 de abril de 1998, e a Resolução do CONAMA nº 33/94 que
caracteriza os estágios sucessionais da Mata Atlântica no RS passíveis de serem manejados.
Alguns estudos sobre a biologia dessa espécie foram realizados em populações
naturais na África do Sul, na região da cidade do Cabo (Milton & Moll, 1988). No Brasil, um
estudo foi realizado no município de Ilha Comprida, Estado de São Paulo, onde muitos
moradores têm parte da sua renda dependente da coleta da samambaia (Conte et al, 2000). No
Rio Grande do Sul, diante da inexistência de dados sobre a produtividade da espécie ou sobre
a atividade de coleta, foram iniciadas pesquisas pela organização não-governamental Anama,
no Litoral norte do Estado.
Através do acompanhamento sistemático, a partir de maio de 2000, verificou-se que a
atividade de coleta de samambaia-preta é fonte quase exclusiva de renda, sendo efetuado tanto
pelos homens, como pelas mulheres e adolescentes. O corte ocorre, principalmente, em áreas
de capoeira, retirando-se apenas as frondes (folhas) desenvolvidas, enquanto as mais novas e
os báculos (brotos) são deixados para as coletas posteriores. Há uma percepção generalizada
que se trata de uma espécie que “quanto mais tira, mais dá”. Do ponto de vista ecológico,
observa-se que a samambaia-preta ocorre principalmente em capoeiras em estádios iniciais a
médios onde cresce em abundância. Com o desenvolvimento da capoeira, a vegetação vai se
tornando mais densa, evoluindo para matas, enquanto que a samambaia passa a se tornar
escassa.
Segundo os depoimentos dos coletores de Maquiné
30
, a atividade vem sendo efetuada
desde a década de 1970, resultante da escassez de alternativas econômicas para as atividades
agrícolas em pequena escala. Atividades como o cultivo da cana-de-açúcar e do fumo foram
se tornando inviáveis, principalmente pelo fato de não haver um mercado que absorvesse tais
produtos. Paralelo a isso, a forte concorrência imposta por grandes produtores olerícolas que
se estabeleceram nas áreas de várzea, extremamente férteis, cuja produtividade era favorecida
pelo uso das novas tecnologias que estavam se implantando. Esse processo tomou forte
impulso com o advento da Revolução Verde na década 1960, que orientou a agricultura
brasileira e de outros países em desenvolvimento para uma profunda alteração de sua base
técnica. Buscava aliar a agricultura ao processo de industrialização que se desejava implantar
29
Coletadas dentro do Projeto samambaia-preta.
53
nesses países, liberando mão-de-obra para as cidades e associando a prática agrícola a
tecnificação com uso de insumos químicos e à mecanização das lavouras. Multinacionais e os
próprios governos financiaram essa transformação, incentivando as universidades a
direcionarem suas pesquisas para esses fins, além de criarem órgãos de extensão que dessem
assistência técnica aos agricultores, rumo à essa modernização. Uma das tentativas adotadas
pelo governo do Estado para potencializar a produção agrícola teve início já na segunda
metade da década de 50, quando foi instalado, no Município de Osório, um escritório da
chamada Missão Rural, órgão de extensão rural criado na época. Esse período também é
marcado por um grande êxodo rural nessas áreas, com deslocamento de contingentes humanos
em direção às regiões metropolitanas, atraídos pela oferta de empregos em indústrias de
calçados que estavam em franca expansão.
A samambaia-preta, sendo espécie bastante abundante na região, justamente em área
de encosta, na capoeira resultante do processo de progressiva regeneração de áreas agrícolas
abandonadas, apresenta-se como uma opção bastante rentável para os moradores. A partir da
década de 70, o interesse do mercado nacional por esta espécie incentivou comerciantes
paulistas a virem à região realizar a intermediação para outros Estados do País.
Intermediadores locais passaram a realizar o transporte da samambaia das áreas de coleta até a
rodovia federal (Coelho de Souza, 2003). Estabelece-se, assim, uma tradição regional ligada a
esta atividade, cuja rentabilidade atualmente é superior a qualquer atividade agrícola em áreas
de encosta.
O período posterior trouxe à tona algumas contradições do modelo agrícola
implantado, como: o aumento da dependência da agricultura em relação à indústria, a
concentração acentuada da posse da terra e outros meios de produção, a degradação
ambiental, a exclusão de grupos sociais dos sistemas agrários, a desvalorização de
conhecimentos acumulados durante muitas décadas pelas populações locais sobre o manejo
das culturas e criações. Conseqüentemente, ocasionou um o re-posicionamento diante de
temas como meio ambiente e recursos naturais, gerando uma série de ações e criação de
instituições objetivando à preservação ambiental. É instituído, então, a Reserva da Biosfera da
Mata Atlântica, visando à proteção dos ecossistemas cuja destruição ambiental ainda não
havia atingido seu ápice. Leis são elaboradas com o objetivo de implementar tais ações de
proteção à Mata Atlântica. Nos depoimentos dos coletores de samambaia, esse momento
apresenta-se significativo, sempre citado como o momento que “começaram a proibir o corte
de capoeira para fazer as roças”. Os discursos são sempre inflamados e inconformados diante
da impossibilidade de qualquer ação do homem, visando o plantio para sobreviver. Esse tipo
54
de conflito, em que estão envolvidas áreas de preservação e populações que vivem e
dependem destas áreas destinadas à preservação, tem sido centro de crescentes debates.
Inicialmente, as discussões forjaram-se no âmbito das populações tradicionais habitantes de
áreas de preservação, nos termos de Diegues (1996), sendo sempre objeto de controvérsias e
de polêmicas.
Diante dos fatos colocados, a atividade de extrativismo da samambaia-preta apresenta-
se ligada a uma série de condicionantes de ordem sócio-ambiental. Sua proliferação está
associada ao um processo de declínio e de abandono de uma agricultura tradicional,
desenvolvida em áreas de encosta, que se tornou pouco competitiva com a implantação de
uma agricultura em grande escala com uso de tecnologias avançadas. Foi exatamente o
abandono dessas lavouras de encosta que propiciou o desenvolvimento de uma vegetação
secundária, com densas populações de samambaia-preta, alternativa extremamente rentável e
viável para os moradores dessas áreas.
Nesse descompasso com a política hegemônica, o extrativismo da samambaia permitiu
uma re-acomodação desses contingentes humanos. No entanto, em parte, como resultado
dessa política agrícola, que, com o tempo, apresentava as contradições do ponto de vista
ambiental, levanta-se uma nova onda mundial, visando agora a preservação ambiental, o que
coloca novamente estes moradores de áreas de encosta em desajuste com as diretrizes
nacionais e internacionais. A lei incide justamente sobre as áreas e atividades exercidas por
esses moradores. Estabelece-se aqui a tensão entre uma política visando à preservação
ambiental e aos rumos de um grupo humano, cuja trajetória acompanha os desdobramentos
desse cenário de mudança. Nesse processo, observa-se uma rápida mudança nas relações entre
esse agricultor extrativista e o meio ambiente; seus hábitos alimentares; suas relações
familiares, cada vez mais intermediadas por condicionantes externos. Trata-se de
compreender as interações que se estabelecem na rotina de um grupo e suas relações com o
meio ambiente, diante dos rumos de uma nação. São modificações, transformações e
permanências que caracterizam um panorama geral num mundo globalizado, onde, apesar da
aproximação física entre os diferentes grupos, as discrepâncias tornam-se mais evidentes.
Nesse sentido, apresentam-se conectados à deflagração da Reserva da Biosfera, ao declínio de
um tipo de relação com o meio e a um contexto intelectual e social que se reposiciona diante
da natureza e da industrialização. Para apreender os sentidos deste processo, nesse trabalho,
detenho-me no universo cotidiano dos moradores dos Fundos da Solidão, uma das inúmeras
localidades do Município de Maquiné onde esta atividade se faz presente.
55
1.7. Do campesinato às populações tradicionais, um panorama conceitual para a
caracterização dos moradores do Fundo da Solidão
Uma das questões relacionadas aos estudos aqui efetuado, bem como conclusões de
outros pesquisadores que analisaram os sistemas de produção da Bacia Hidrográfica do Rio
Maquiné, demonstram a dificuldade em categorizar socialmente os coletores de samambaia.
São grupos de tradição agrícola que incorporaram, em suas práticas a coleta de samambaia
(ANAMA/ PGRD- UFRGS, 2000). Trata-se de um grupo com características de sociedades
camponesas, cuja situação assemelha-se às decorrentes da exploração de monocultura (Velho,
1972), como foram os ciclos da cana-de-açúcar e do fumo nas décadas anteriores.
Diegues e Arruda (2001), na tentativa de realizar um inventário do Brasil sobre trabalhos
relacionados às populações tradicionais, colocam como grande dificuldade de definição dos
diversos grupos, dos quais o modelo social não se encaixa totalmente dentro das definições de
sociedades capitalistas e nem são identificados sob a etnia indígena. Nesse mesmo trabalho, foi
traçada uma perspectiva histórica desses grupos, colocando-os como resultado da interação
social entre o índio e os colonizadores portugueses. Esses últimos, frente à desconhecida
paisagem, gradativamente, incorporaram técnicas de uso dos recursos naturais e manejo dos
indígenas. Desta interação, originou-se uma população rural, malgrado suas diferenças regionais,
apresentando características comuns. Segundo Wolf (1976, p. 16) há uma diferença entre
camponeses e populações primitivas, que corresponde a dependência dos primeiros, de outros
grupos sociais dominantes.
Diante dessas ambigüidades, a título de definições, pode-se pontuar como um elemento
importante desses grupos, a dependência, em diferentes escalas, da natureza. Um elemento de
ligação entre essas populações e a natureza é a relação com o território. (Diegues e Arruda, 2001,
p. 24). A partir dessas colocações infere-se que a relação particular com o meio faz parte da
conceituação desses grupos. Sendo o pano de fundo deste trabalho, a problemática concernente
às relações entre a sociedade e o meio ambiente, uma questão fundamental refere-se a como os
grupos humanos concebem sua relação com o seu meio e para os termos deste trabalho constrói-
se uma intrincada relação homem-natureza e identidade.
Trata-se uma questão em que os ecos encontram-se no surgimento da Antropologia. Lévi-
Strauss, ao buscar os primórdios dessa, indica Rousseau como um dos fundadores da ciência do
homem, onde já preconiza o encontro com o Outro, inclusive do homem com sua humanidade e
também a sua animalidade (Lévi-Strauss, 1993: p. 49). Com isso, ao mesmo tempo em que
aponta para uma reciprocidade com o mundo natural, consolida a especificidade do fazer e
pensar humanos. Desse momento, até a contemporaneidade, muito se tem escrito sobre as
56
relações homem natureza, que aponta, em grande medida, que o pensamento ocidental constitui-
se baseado numa concepção de conquista do homem sobre a natureza, ou seja, uma hegemonia
da cultura sobre a natureza (Thomas, 1989, Turner, 1990, Leis, 1992). Ao mesmo tempo, Mircea
Elíade (1969) associa o pensamento ocidental a uma nostalgia de uma natureza intocada,
sentimento que pode-se identificar na raiz do movimento ecológico (Diegues, 1994). Entre essa
vontade de imersão na natureza e o domínio do cultural sobre o natural, o ser humano vislumbra
um mundo que é tecido dentro, e paralelamente, ao meio natural, convivendo com ele na prática
e simbolicamente. Desta forma, há a construção de uma visão de mundo, ou seja, seu conceito de
natureza, de si mesmo e da sociedade (Geertz, 1989).
Na Antropologia Brasileira, no que concerne às relações entre cultura e natureza, algumas
situações são abordadas dentro da temática do campesinato e de estudos de comunidade, com
produção prolífica nas décadas de 50 e 60. No livro “Tradição esquecida”, de Luiz Carlos
Jackson (2002), pode-se averiguar algumas das raízes e da influência desta linha temática para a
compreensão do mundo rural brasileiro a partir da obra seminal “Os parceiros do Rio Bonito”
30
de Antonio Candido (1987). Segundo aquele autor, os estudos de Robert Redfield na Península
do Yucatán, no México caracterizando a “folk society” e a existência de uma “folk culture”
teriam sido o marco teórico inicial para a obra “Os parceiros do Rio Bonito”. Antonio Candido
resgata, ainda, a idéia presente na obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha, sobre a existência de
dois “brasis”, um no litoral e outra no interior, caracterizado principalmente pelo isolamento. A
partir dessa tese, coloca-se a existência relativamente autônoma, embora ameaçada, de uma
civilização rústica, constituída ao longo do processo de colonização, nos interstícios da sociedade
colonial brasileira, centralizada no latifúndio agro-exportador. Nesse contexto, Antonio Candido
(1987) estuda as formas de subsistência do caipira paulista, elucida toda uma lógica de
sobrevivência destas populações baseada nos “mínimos vitais e sociais”, perpassando neste
estudo sociológico sobre o campesinato brasileiro, a preocupação com os aspectos propriamente
culturais. Essa vertente de abordagem, no entanto, na época da publicação da obra, não apresenta
grandes ecos, principalmente porque as inquietações da intelectualidade da época voltavam-se
para uma compreensão do processo de formação da sociedade capitalista no Brasil, portanto, das
relações do campesinato numa sociedade num enfoque mais amplo e, sobretudo, com as razões
do atraso econômico brasileiro. A importância dessa obra está exatamente em trazer a luz:
o sentido de uma cultura e de um grupo social até então ignorado como presença e
história da sociedade e de um modo de conhecê-lo que, sem abrir mão do rigor
30
Trabalho foi desenvolvido entre 1948-54, e publicado pela primeira vez em 1964.
57
acadêmico, se compromete bem mais com o sentido do que quer conhecer do que com os
cânones teóricos e metodológicos do momento (Paoli, 2002, capa)
Em Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), a abordagem proposta por Antonio Candido é
retomada, aprofundando o conhecimento sobre os bairros rurais, segundo Candido (1987), a
unidade mínima da estrutura social destes grupos. No trabalho, estudando os bairros paulistas a
autora aborda a percepção de espaço entre sitiantes tradicionais de São Paulo, sua condição de
existência, sua organização interna e as relações com o a sociedade abrangente, sendo, este
último ponto, um ponto crucial para a própria definição destes grupos. A maioria dos clássicos
que tratam sobre campesinato, sublinha essa característica.
Obras posteriores tratam do campesinato sob outros enfoques, das quais destacamos as
seguintes por sua importância na condução do presente trabalho: Woortmann e Woortmann
(1997) desenvolvem uma etnografia sobre o camponês e as lógicas subjacentes ao seu trabalho
na terra. Maria Christina Amorozo (1996) elucida a lógica de manejo de uma lavoura camponesa
em Santo Antônio do Leverger, Mato Grosso. Já Carlos Rodrigues Brandão (1999), sob a forma
de um diário de campo, tece uma narrativa onde aborda as relações entre a natureza e o homem
do campo. Emilia Pietrafesa de Godói (1999), em um trabalho ambientado no sertão do Piauí,
busca a conexão entre memória e a posse da terra deste grupo. Todos esses, ao estudarem o
homem do campo, abordam em alguma medida, a relação com a natureza.
Por outro lado, identificado com uma abordagem que tende para o campo das Ciências
Biológicas, o tema das relações entre homem e natureza tem se centrado em trabalhos sob a
temática do uso dos recursos naturais e seus manejos, orientados por uma ótica
conservacionista. Nesta perspectiva encontramos uma série de trabalhos abordando o
extrativismo. São trabalhos cuja discussão tem recaído sobre as reservas extrativistas do Acre
(Posey, 1992, Kainer e Duryea, 1992), o que tem gerado uma série de discussões em torno da
sustentabilidade
31
desta atividade (Browder, 1992, Homma, 1993). Paralelamente à
emergência da discussão sobre a sustentabilidade das reservas extrativistas, outras formas de
extrativismo passaram a ser objeto de estudo, como os coletores de babaçu (Anderson et al,
1991, Shiraishi Neto, 1997), uma palmeira da qual se extrai óleo, além da fibra para
artesanato, castanha (Maybury-Lewis, 1997), cipós (Durigam, 1998) entre outros.
31
Conceito bastante disseminado nos meios preservacionistas, mas de difícil definição, alvo de controvérsias,
leva em consideração a noção de uma habilidade dos sistemas manterem sua estabilidade frente a disturbios ou
submetidos a stress.
58
No que concerne o extrativismo, segundo Emilio Moran (1994) “diz respeito ao sistema
de manejo baseado na exploração periódica de recursos naturais renováveis”. Sob esse ponto
de vista, são crescentes os trabalhos que reconhecem os extrativistas como grupos com uma
forma peculiar de relação com o seu meio, originando estudos na área de ecologia e manejo dos
recursos naturais, mas também fomentando a busca do reconhecimento do direito destas
populações permanecerem em seu meio, utilizando estes recursos, partindo do ponto de vista de
que desenvolveram uma forma de interagir com o seu meio não exaurindo os recursos naturais.
Tais estudos, inspirados, principalmente, nas populações amazônicas, estabelecem uma clara
distinção entre um ethos extrativista e um colono, representado pelos colonizadores oriundos de
outras regiões, sobretudo Sul e Sudeste, como demonstra o trabalho efetuado por Carlos Correa
Teixeira (1999), em Rondônia. O autor observou o contraste entre o extrativista e o colono,
principalmente, em relação ao posicionamento diante da natureza.
Junto com a discussão da sustentabilidade, emerge o conflito entre a necessidade de
preservação e a sobrevivência das populações que retiram os recursos da natureza. Deste
conflito, surgem questões que se referem à própria caracterização destas populações e a
relação que estabelecem com o meio.
Ancorado nas etnociências, surgem áreas como a Etnoecologia e a Etnobiologia que
buscam desenvolver pesquisas visando legitimar os conhecimentos dessas populações que em
seu conjunto, são designadas como tradicionais, demonstrando paralelos entre os
conhecimentos desses grupos e a própria Ciência. Esses trabalhos tentam elucidar a lógica
subjacente aos conhecimentos empíricos dessas comunidades, tal como na ciência do concreto
de Lévi-Strauss (1989). Um marco importante, dentro dessa linha de abordagem, é o primeiro
volume da Suma Etnológica Brasileira intitulada Etnobiologia, organizado por Berta Ribeiro,
em 1987, com a contribuição de autores como Warwick Kerr, Elaine Elisabetsky, Claude
Lévi-Strauss, Darrel Posey entre outros, versando sobre Etnoecologia, Etnofarmacologia,
Etnobotânica, Etnoecologia.
Diegues e Arruda (2001), fazendo uma consulta aos bancos de dados e acervos de
instituições de pesquisa e universidades de todo o Brasil, sobre trabalhos que versavam dentro
da temática populações tradicionais (indígenas e não-indígenas) e biodiversidade, encontrou
um total de 868 referências. Dessas, é interessante observar que quase 80 % dos trabalhos
analisados, estão concentrados nos últimos 20 anos. Considerando a proporção de trabalhos
no contraste entre grupos indígenas e não-indígena, enquanto até 1990, apresentava-se um
maior número de estudos que versavam sobre indígenas, após esta data, tal proporção se
inverte. A partir desses dados, os autores constatam o “crescente interesse pelo tema
59
biodiversidade...”, assim como, “o surgimento de uma preocupação acadêmica acerca da
importância do conhecimento tradicional” (Diegues e Arruda, 2001, p. 66). Nesse trabalho,
além de evidenciar na abordagem desses grupos a questão da conservação, observa-se a
adoção de um conceito amplo que engloba grande número de grupos que apresentariam uma
interação com a natureza e, sobretudo com o manejo de recursos naturais.
Dentro dessa mesma perspectiva, Paul Little atrela a discussão entre populações
tradicionais e sustentabilidade a partir do conceito de território entendido como uma
construção resultante do “esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se
identificar” com determinada parcela do ambiente físico (Little, 2002, p. 3).
A partir desses elementos, com o novo direcionamento mundial de crescente
preocupação ambiental, veicula-se a possibilidade da reivindicação de alguns direitos
fundamentais a esses grupos.
O principal argumento para a reivindicação dos direitos desses grupos relaciona-se a sua
sobrevivência ligada ao uso dos recursos naturais. Essa é uma noção de fundo, tanto para os
grupos colocados dentro da categoria campesinato, como para as populações categorizadas
como tradicionais (conforme Diegues), ou seja, dependem diretamente do meio em que
vivem.
Remetendo ao universo empírico do presente trabalho, a pergunta com a qual se contra-
argumenta às determinações de proibição da legislação ambiental, de forma genérica poderia
ser “o que é que vamos comer se não nos deixam mais plantar nem tirar samambaia”
32
. Ou
seja, remetem as relações entre homem e seu meio e refletem-se nas atividades produtivas
desses grupos. Nesse sentido, optou-se por enfocar o universo produtivo, estabelecendo a
noção de comunidade de trabalho como delimitadora desse grupo, conforme abordado por
Cornelia Eckert (1993) e, posteriormente, presente nos trabalhos de Gianpaolo Adomilli
(2003) e Marta Cioccari (2004). Nesses são enfocados a constituição de uma memória e
identidade social dos mineiros de carvão (Eckert, Cioccari) e de pescadores artesanais
(Adomilli), a partir de suas representações e práticas sociais. Ancorado-se neste conceito,
busca-se, da mesma forma, “compreender a maneira própria dos personagens em questão
cartografarem o seu mundo de pertencimento social e de recortar as fronteiras culturais em
relação ao mundo do trabalho” (Eckert, 1993, p. 10). Ao abordar o mundo do trabalho ligado
ao extrativismo, encontramos os valores desse grupo, e na decomposição de suas práticas a
32
Para postular tal argumentação, baseio-me nas observações e na participação em algumas reuniões realizadas
no Município de Maquiné, que versavam sobre a problemática ambiental, destacando-se os I e II Encontro da
Samambaia-preta, realizados entre 2002 e 2003.
60
forma como concebem a sua relação com o meio (ordenam o mundo) e acima de tudo como
vão constituindo uma temporalidade que lhes permita a permanência diante das mudanças e
intimações, temporalidade construída no discurso através de suas histórias de vida, contadas
em diferentes momentos para o pesquisador e nas suas práticas cotidianas e nos
acontecimentos compreendidos no tempo dessa tese que permitem compreender a forma e as
estratégias através das quais esse tempo é constituído permitindo a reprodução social deste
grupo e a constituição de sua identidade social.
1.8. ANAMA, uma organização não-governamental e uma certa forma de intermediação
O contato inicial com o tema do extrativismo de samambaia-preta e o grupo abordado
foi por intermédio da organização não-governamental ANAMA, Ação Nascente Maquiné. A
criação dessa ONG ocorreu através de uma série de tentativas de projetos e trabalhos por parte
de um grupo de estudantes ligados a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrando
perspectivas disciplinares distintas. Esse grupo elaborou em 1996, o projeto “Populações
indígenas e tradicionais na Encosta Atlântica do Rio Grande do Sul”, integrando estudantes de
agronomia, de antropologia, de botânica, de ecologia, de farmacologia e de zoologia. Para a
elaboração desse projeto concorreram: a então recente retomada das atividades do Núcleo de
Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT), ligado ao Departamento de
Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS); a movimentação de estudantes de biologia e agronomia em
torno da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE); e o interesse de
diversos pesquisadores cujas pesquisas gravitavam em torno da interface homem-natureza.
Embora esse projeto de pesquisa não tenha obtido o apoio financeiro de nenhum órgão de
fomento à pesquisa, permaneceu a idéia embrionária de um trabalho nessa área de Mata
Atlântica, com a aproximação de diferentes perspectivas disciplinares. Motivados por essa
trajetória e aglutinando perspectivas individuais de trabalhar afastado dos centros urbanos e
de construção de uma via alternativa ao modelo econômico e a forma de construção de
conhecimento acadêmico, em setembro de 1997, ocorre a criação dessa organização não-
governamental. Essas perspectivas individuais relacionam-se a uma certa insatisfação com o
contexto de limites disciplinares e, sobretudo, do distanciamento entre universidade e
sociedade.
Entre as finalidades da Anama estão a promoção de “ações que contribuam para a
preservação e conservação da Reserva da Biosfera”, através da “interação com a comunidade
61
local, buscando apoio mútuo, intercâmbio de experiências, contribuindo assim para o
desenvolvimento sustentável da região” (estatuto da Anama, 1997, p. 4). O grupo é
constituído por estudantes e profissionais da agronomia, da antropologia, da arquitetura, das
artes, da biologia, das ciências sociais, da engenharia florestal, da geografia, da geologia, do
jornalismo, da pedagogia, do turismo. Todos esses ligados aos diferentes sub-projetos que,
além dos sócios, envolvem pessoas não ligadas à organização, mas que possuem interesse em
desenvolver trabalhos em Maquiné. Suas ações envolvem parcerias com instituições de ensino
e pesquisa, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Fundação de Pesquisa
Agropecuária do RS (Fepagro); instituições governamentais como Secretaria Estadual do
Meio Ambiente, a Prefeitura Municipal; e movimentos sociais organizados como Movimento
das Mulheres Camponesas (MMC). A ênfase na ação pode ter diferentes conotações, sendo
uma delas a que se refere, do ponto de vista de uma filosofia e metodologia da organização, o
fato de estar “em construção”.
No processo de formação da entidade, as questões iniciais centraram-se na
constituição de uma identidade cuja dificuldade residia, exatamente, na obtenção de coesão de
um grupo de composição tão diversificada. Ao longo de sete/oito anos o grupo de
pesquisadores da Anama vem tentado identificar e intervir em problemáticas locais, buscando
soluções que aliem pesquisa à resolução de uma demanda local. Essa mediação tem se
constituído em um de seus principais papéis no contexto social. O trabalho abordando o
extrativismo da samambaia-preta constitui-se num sub-projeto da Anama, juntamente com
outros seis campos de atuação: Educação Ambiental, Patrimônio Histórico, Agrofloresta,
Qualidade das águas e Ecoturismo. Cada grupo trabalha sobre uma problemática específica, a
partir da qual são abordados temas ligados ao desenvolvimento sustentável da Região. Esses
sub-projetos são mantidos via recursos obtidos de diferentes agências de fomento à pesquisa e
à extensão comunitária e da ação voluntária de seus integrantes, embora o voluntariado não
seja o objetivo do grupo. Tais fatos espelham um pouco do contexto de crescente participação
da sociedade civil, principalmente na forma de organizações não-governamentais, pautado por
projetos sociais.
Apresenta-se também como referência para a atuação desse grupo a adesão à idéia de
Reserva da Biosfera, ou seja, uma visão globalizada de funcionamento e intervenção no
ambiente natural, a qual reflete a concepção hegemônica de gestão dos recursos naturais,
proposta pelos organismos mundiais. Cabe lembrar que, para essa adesão, concorre o fato de
haver previsão de recursos mundiais para a realização de trabalhos de pesquisa e intervenção
nessas áreas, consideradas prioritárias para a conservação. No entanto, ao mesmo tempo em
62
que se ancoram no conceito de Reserva da Biosfera, gestam, pela própria atuação local,
críticas aos principais ordenamentos impostos por essas estratégias globais. Isso gera a
necessidade de, constantemente, reavaliar posicionamentos e atitudes, resultando em dúvidas
e freqüentes atritos entre os membros.
Nesse contexto, ao mesmo tempo em que são efetuadas as ações dentro da ONG, cada
um dos integrantes têm conduzido projetos de pesquisa particulares, tal como é o caso da
presente tese. Essa situação está bastante clara para a ONG, pois tem sido uma das dinâmicas
mantenedoras das atividades da organização: o vínculo com algum projeto de pesquisa
acadêmico. No entanto, diante da comunidade, é sempre uma delimitação difusa. A própria
imagem de uma pesquisa, “um estudo”, com as suas diferentes etapas delimitadas e objetivos
restritos, tem sido, ao longo do tempo, re-questionado pelos moradores do local. Apesar desse
tempo de convívio e do reconhecimento da legitimidade da ação em alguns campos, há uma
clara demarcação entre a ONG e a comunidade. Para os moradores de Maquiné, a Anama e
seus integrantes são identificados como os “de fora”. As discussões locais, os conflitos que
freqüentemente surgem estão sempre a re-colocar essa condição. Sobrevêm, aqui, as
restrições entre estabelecidos e outsiders, proposta por Norbert Elias e John Scotson (2000). A
categorização “de fora”, faz-se sentir em rodas informais onde freqüentemente ouve-se a
expressão “vocês de fora”. Da mesma forma, quando há algum novo morador referem-se
àquele fulano que veio de fora e, de forma mais aguda, em momentos de disputa. A exemplo
disso, o caso de uma das integrantes da Anama que foi morar em Maquiné e trabalhar como
professora. Essa candidatou-se à direção do colégio e nas campanhas da candidata opositora,
era corrente a menção, no discurso, o pertencimento local acionado por expressões como “a
gente, aqui da terra”.
Ainda de modo a termos matizes dessa delimitação e conseqüente restrição,
encontramos uma situação interessante na sobreposição de funções de alguns integrantes onde
ora são ativistas, ora são pesquisadores e, sobretudo, quando assumem algum cargo público,
como foi o caso de um dos membros que assumiu o cargo de Diretor da Reserva Biológica
Estadual da Serra Geral, a principal unidade de conservação da região. Nesse caso, entre os
seus encargos de Diretor, além de administrar a Reserva Biológica propriamente dita, ainda
era responsável por licenciar o corte de capoeira (permitido, sob determinadas condições,
desde que com a devida vistoria), verificar denúncias de algum delito ambiental e fiscalizá-lo.
Sobretudo, nessa última função, havia um conflito muito grande. Mais interessante nesse caso
é que, além de assumir esse cargo e ser ativista da Anama, ainda pertencia a uma tradicional
família local. Essa sobreposição permite visualizar um pouco dos jogos de identidades entre
63
Anama e comunidade local, e também dentro da entidade. Inicialmente, somos levados a
imaginar diante, desse quadro, que o fato de pertencer a uma família do local seria um
facilitador em suas ações. No entanto, o que se verifica é que esse fato gera sentimentos
ambíguos entre os moradores. Há um duplo sentimento, o de proximidade, pelo fato de terem
um passado em comum, freqüentemente os moradores referem-se ao diretor como se fossem
velhos conhecidos, com aquela típica camaradagem de quando estamos em algum local
estranho e encontramos um conhecido em comum: “Sim, sei quem é, ... é dos Perotto...”.
Poré, paradoxalmente, por essa familiaridade, observam-se declarações e manifestações que
demonstram uma profunda revolta e incompreensão diante das atitudes assumidas como
Diretor, apesar de mostrar-se um fiscalizador aberto ao diálogo e à negociação. Inúmeros
sentimentos poderiam estar gerando tal reação, mas parece prevalecer algo como um
sentimento de traição, relativo a alguém que “passou para o outro lado”.
Essa superposição de papéis gerou outra ordem de conflitos e re-ordenamentos de
identidades sociais dentro da ONG: ser um fiscalizador era incompatível com o ativismo
dentro da entidade. ANAMA, SEMA, IBAMA são siglas, sem dúvida, parecidas que, para os
olhares dos moradores locais, não havia diferença. Essa situação acima colocada contribuía,
sobremaneira, para essa confusão, a tal ponto que foi solicitado a esse integrante o
afastamento da Anama, enquanto estivesse assumindo o cargo de Diretor da Reserva
Biológica. Esse conflito revelou uma das facetas de atuação dos integrantes da Anama,
principalmente no que se refere aos delitos ambientais. O convívio com a comunidade
confrontava cada integrante com inúmeras situações e questionamentos relacionados às
interdições legais do ponto de vista ambiental, como as queimadas, a caça e o corte de
samambaia. Como agir diante de tais situações? Em questionamentos dessa natureza e,
sobretudo, no confronto e convivência local, reside um dos grandes dilemas desses ativistas:
num primeiro momento, o fato de se confrontar com concepções diversas diante da questão
ambiental e, num segundo momento, como se posicionar e agir. Tais atitudes possuem uma
gradação de respostas, sendo que cada caso apresentava as suas peculiaridades. Mas como
estabelecer regras gerais para o grupo? Uma questão referia-se às denúncias. Denunciar era
um caso extremo e enquanto entidade, nunca houve tal atitude. No entanto, tais situações
sempre geraram polêmicas internas, como até que ponto deve-se e pode-se tolerar algo que
consideram “errado”. E, apesar desse cuidado, havia, por parte dos moradores locais, sempre
uma desconfiança subliminar de que, determinadas denúncias haviam sido gestadas pela
Entidade.
64
Uma das formas de se subtrair desse dilema residia no desenvolvimento da pesquisa,
que além de tirar o peso desse ativismo, permitia ancoramento na própria Ciência. Esta via era
acioanda em situações reivindicatórias como é a luta pela legalização do extrativismo ou a
obtenção de recursos para ações locais através de projetos com conotação ambiental e, apesar
das situações de confronto, permite o acionamento de um princípio de reciprocidade e
cumplicidade entre ONG e comunidade. Uma das lutas dos integrantes da ONG constitui-se,
em meio a essa indefinição de papéis sociais dentro da comunidade, no reconhecimento por
suas peculiaridades enquanto ONG, desenvolvendo atividades específicas, com destacada
importância para comunidade.
1.9. A parte, o todo e a mediação
O que se apresenta nesse contexto é uma rede complexa de interesses e motivações,
focalizados em torno da temática ambiental e, no caso desse estudo, mais especificamente, a
questão da samambaia-preta. Tentar sua apreensão ou, como coloca Clifford Geertz, “ligar
paisagens locais, cheias de detalhes e acidentes, com as topografias complexas em que se
inserem” (Geertz, 2001, p. 193) requer uma capacidade não somente de apreender as esferas
que se sobrepõem, mas perceber como essas esferas se interconetam e se comunicam. Trata-se
de um exercício de vai-e-vem onde ora recorremos a generalizações, ora resgatamos as
particularidades e originalidades locais. Assim, não se busca neste trabalho estabelecer as
delimitações entre essas esferas, mas abordar, na questão entre local e o todo, as suas várias
nuances. Como coloca Sydel Silverman (1977), na relação parte-todo está um dos problemas
estratégicos nos estudos antropológicos de sociedades complexas.
Dentro desse entendimento, para a compreensão analítica da situação, resgata-se aqui
um conceito bastante corrente nos estudos de comunidades, o de mediador, ou seja, o
indivíduo ou o grupo que age como um elo entre sistemas sociais locais e nacionais e com
determinadas. Esses estabelecem conexões entre diferentes esferas, com ações num sistema
local e global e com determinadas hierarquias. Portanto são relações verticais. A pertinência
do conceito tem ainda limites temporais, ou seja, a relação parte-todo, sendo dinâmica, está
sujeita a alterações ao longo do tempo. Como alerta Silverman (1977), à pertinência da
utilização desse conceito somente em situações definidas detalhadamente, ou seja, restrito a
uma forma particular de relação entre parte e todo.
Assim, Maquiné, RS, encontra-se dentro da área reconhecida pela UNESCO como
Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, citada como uma das principais zonas de
65
biodiversidade
33
do Estado. A atividade extrativista da samambaia-preta em toda a região da
Encosta Atlântica no Rio Grande do Sul é realizada em área florestal de preservação
permanente, sendo considerada ilegal a comercialização de qualquer recurso natural oriundo
desses locais. Contudo, um decreto de lei recente regulariza o “licenciamento para a coleta de
produtos não madeiráveis, desde que a atividade não concorra para a eliminação da espécie ou
comprometa a vegetação associada”
34
. Nesse sentido, devido a inexistência de dados, uma
ONG propõe-se a preencher essa lacuna, através da realização de pesquisa.
Para essa situação, apresentam-se diferentes mediadores, ou seja, diferentes escalas de
interação. Por exemplo, em termos da cadeia produtiva, a presença do transportador, pode ser
caracterizada como uma atividade de mediação, visto que é o elo fundamental, a partir do qual
é escoado o produto do extrativismo em direção aos grandes centros. Ao longo desse texto,
verificar-se-ão outras pessoas/grupos que exercem esse papel, o que, de certa maneira, reforça
a existência de um sistema parte-todo.
Como anteriormente colocado, a Anama é uma ONG criada há, aproximadamente,
oito anos, congregando pessoas de diferentes formações acadêmicas, como uma forma de
crítica à estrutura acadêmica a qual dificultava a realização de trabalhos aplicados e que
buscavam retornos concretos aos grupos pesquisados. Na fundação dessa ONG encontraram
uma forma de canalizar as ações de modo menos burocratizado e menos atrelado aos
objetivos estritamente acadêmicos.
Através do conceito de mediação, confrontando a trajetória da ONG, verifica-se que
há um sistema parte-todo que paira sobre essa situação, porém é difícil precisar quais limites.
Uma primeira análise levaria a pensar que a ONG, muito mais como integrante/representante
de um de uma perspectiva globalizada que está chegando ao local, em conformidade com uma
certa ética ecológica ampla, veiculada via organismos internacionais, estatais, assim como os
visitantes/turistas. No entanto, sua trajetória por ser incipiente no processo de integração à
comunidade, o envolvimento com as problemáticas locais e as negociações a afastam do
alinhamento a essa perspectiva ampla, na forma de uma postura relativista, atenta a uma ética
particularista.
Um ponto que merece ser ressaltado é a busca de legitimidade dessa ONG na
comunidade. Fica claro que essa se dá pelo estabelecimento de alianças com outros
33
Variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas
terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; incluindo a
diversidade dentro da espécie, entre espécies e de ecossistemas. Essa variabilidade é entendida como produto da
própria natureza, sem intervenção humana. (Diegues e Arruda, 2001).
34
Decreto de lei n
o
. 38355 de 01 de abril de 1998 – artigo 39.
66
mediadores de diferentes esferas, como é o caso da inserção inicial, através de algumas
pessoas-chaves. Ao mesmo tempo em que estabelece distinções em relação a essas alianças.
Significa também operar no fluxo da comunidade local, como por exemplo, no envolvimento
em fofocas ou em conflitos pessoais que, uma vez resolvidos, no âmbito local, contribuem
para cimentar uma certa legitimidade institucional. Coloca-se em evidência a concretude das
relações cotidianas e da experiência, meio pela qual essa comunidade relaciona-se com o
mundo. Até então, essa ética ecológica desse todo envolvente tinha como representante, a
figura abstrata do IBAMA, alvo de muitas histórias e causos. Na verdade, o que se entende
por mediação, compreende um conjunto de situações de interlocução, em diferentes escalas,
que em seu todo, legitimam o papel do mediador.
Na interação com essa comunidade, alguns fatores concorrem para uma maior
facilidade ou não. Nesse caso, cada integrante desse grupo estabelece relações pessoais de
amizade e, que acabam por sua vez, reforçando essa situação de mediação da ONG. Qual é o
perfil dessas pessoas que integram esse grupo que interage com a comunidade? Verificando as
trajetórias dessas,constata-se que são pessoas ligadas a academia, sendo alguns de origem
rural. Nesse processo, pensa-se, pois num resgate de um passado rural, re-atualizado pela
condição de terem ingressado na academia. Essa condição configura-se num facilitador na
interação com a comunidade. Apresentam também um longo tempo de trajetória comum e, em
sua grande maioria, ligados às áreas biológicas e que buscam aproximações com atuações nas
áreas de ciências humanas. Portanto são indivíduos que buscam o trânsito por diferentes
perspectivas disciplinares. Por outro lado, como no caso da consecução dos financiamentos
aos projetos, essa foi obtida dentro de uma conjuntura governamental favorável à discussão de
tais conflitos, evidenciando antigas alianças fundadas em um passado acadêmico comum e
simpatias político-partidárias, como facilitadoras.
O mediador, portanto, ora apresenta uma natureza híbrida, seja entre disciplinas ou
entre rural e urbano, ou entre facções políticas; ora apresenta-se posicionado. Esse caráter
duplo, certamente traz conflitos internos. Trata-se de um equilíbrio instável, constantemente
sob questionamentos, gerando, em muitos momentos, situações de crise de identidade. Por
exemplo, embora integrem essa ONG, no plano de atuação, encontram-se atrelados a uma
pesquisa acadêmica na interface com outras instituições como as universidades. Dessa
interação origina-se o material para as reflexões acadêmicas e desta forma, retornam ao seio
da qual tentaram se afastar pela atuação na ONG. Assim, um outro nível de reflexões diz
respeito a este aspecto ético, tão discutido no plano dos estudos antropológicos. Neste
patamar, descobre-se, pois, que não mais existe a relação pesquisador-objeto, uma vez que o
67
nível de comprometimento do pesquisador aponta para além desses limites. Isso significa não
somente pensar o lugar do pesquisador, mas também de buscar a linguagem que contemple
essa amplitude e complexidade de situações.
Nos estudos recentes, considerando a eclosão de ONG’s e suas estratégias de ação,
coloca-se uma re-configuração no panorama contemporâneo regido pela ótica de um mundo
globalizado, onde as ONG’s apresentam-se entre os “novos agentes políticos e sociais diretos
no campo da intervenção e da representação dos interesses dos grupos sociais marginalizados
ou discriminados em seus direitos” (Steil, 2001, p. 15). Nessa situação, o próprio conceito de
representação se modifica, passando de uma “relação orgânica entre mediador e sua base
social”, para uma representação “que se funda sobre o reconhecimento de mediadores e porta-
vozes que apresentam e formulam, de modo coerente, os anseios sociais dispersos”. (Steil,
2001, p. 15). Estudos como de Sophie Chevalier (2001) relatam que também em outros locais
e contextos políticos diferenciados, as relações passam a ser intermediada por instituições fora
da esfera governamental. Verifica-se hoje toda uma nova reconfiguração em termos de
políticas públicas, com o envolvimento de novos segmentos, o restabelecimento de diretrizes
diferenciadas e o clamor por uma maior participação.
Dentro desse panorama atual, cabem questionamentos sobre esses papéis assumidos
por novos atores; sobre os interesses norteadores desses rumos; e sobre a própria qualidade
dessas novas interações. Trata-se, pois de um fato ligado a uma conjuntura atual, gerando um
processo de constantes mutações. Significa colocar que tais mediadores têm um contexto
histórico que os favorecem, com isso retomando os termos colocados por Silverman (1977),
para mediador, que são sempre configurações específicas de um sistema parte-todo e, portanto
válidas se definido em detalhe.
Nessa perspectiva de análise, evidencia-se o envolvimento e a importância que a
temática ambiental vem adquirindo nessas comunidades, por uma série de fatores geográficos
e situacionais, o que favorece a aproximação e a intervenção de uma ONG, com contornos
ambientalistas, nesse município. Distanciam-se da perspectiva proposta por Elias e Scotson
(2000) de segregação entre os estabelecidos e “outsiders” e aproximam-se da perspectiva
relacional colocada por Bourdieu (1996, 2000), com a configuração que se apresenta sob a
forma de capitais sociais
35
diferenciados, portanto, não disputam o mesmo espaço social
36
,
35
O capital – que pode existir no estado objectivado, em forma de propriedades materiais, ou, no caso do
capital cultural, no estado incorporado, e que pode ser juridicamente garantido – representa um poder sobre um
campo (num dado momento) e, mais precisamente, sobre o produto acumulado do trabalho passado (em
particular sobre o conjunto de instrumentos de produção), logo sobre os mecanismos que contribuem para
68
tornando-se complementares. Nessa situação, cada agente social tem um papel específico
dentro do campo social. Os integrantes da ONG acessam determinadas esferas sociais e
conhecimentos aos quais os moradores locais tem contato bastante limitado, como por
exemplo as informações atualizadas sobre a legislação ambiental e suas brechas para a
atuação dos agricultores. Os conflitos e os atritos se dão quando passam a disputar o mesmo
espaço social. Exemplo disso, o caso da integrantes da ONG que vindo morar em Maquiné,
começa a disputar um mercado de trabalho local, geralmente em funções onde se exige
formação em nível de terceiro grau, como professor, o que acaba diminuindo as possibilidades
de trabalho dos moradores mais antigos.
Às reflexões diante dessa situação, é inevitável colocar em evidência a qualidade das
relações de mediação. Cleyton Gerhadt (2002), buscando analisar processo de interferência da
problemática ambiental no município de Maquiné, efetuou uma pesquisa junto aos
agricultores familiares e seus mediadores sociais. Ao debruçar-se sobre os depoimentos
desses mediadores, chama a atenção para esse novo tipo de mediador e, acima de tudo, que os
temas relacionados à questão do meio ambiente possuem a capacidade de “se inserir e de
desencadear novos processos sociais ‘por dentro’ das esferas do relacionamento humano”. No
entanto, segundo este mesmo autor,
o mais significativo, é que esta dimensão transformadora ocorre “por fora” dos
processos de institucionalização da problemática ambiental, ou seja, ela se
concretiza quando colocada intersticialmente nas relações sociais que se processam
entre agentes socialmente diferenciados, e não o contrário. E isto, obviamente, só
será possível de ser feito mediante a criação de situações de contato e de troca (não
só através dos mecanismos institucionais, mas, porque não, também a partir da
construção de vínculos intersubjetivos) entre agentes sociais com trajetórias e com
perspectivas mundo diferenciadas. (Gerhadt, 2003, p. 469)
E conclui seu trabalho afirmando que a introdução de políticas ambientais no
Município, se mostrou
amplamente desigual (no que diz respeito à diversidade social destes espaços e as
oportunidades disponíveis aos agentes), desestruturante (principalmente no que
tange aos modos de vida existentes) e pouco “democrática” (havendo uma completa
desconsideração dos conhecimentos e experiências dos agricultores em relação ao
ambiente onde eles próprios vivem, trabalham, se divertem e, obviamente, retiram
aquilo que garante sua reprodução social ao longo do tempo). (Gerhadt, 2003, p.
15)
assegurar a produção de uma categoria de bens e, deste modo, sobre um conjunto de rendimentos e de ganhos.”
(Bourdieu, 2000, p. 134)
36
O espaço social é constituído de tal modo que os agentes ou grupos são distribuídos em função de sua posição
[...] de acordo com os princípios de diferenciação, ou seja o capital”. (Bourdieu, 1996, p. 19)
69
Diante de tais constatações, sobrevém a impressão de que há toda uma situação de
deflagração do extrativismo da samambaia-preta como uma problemática ambiental,
considerando as várias esferas e arenas argumentativas. No entanto, nos interstícios, perfilam
indeterminações e imprecisões, como resíduos a serem resgatados e questionados. Dessa
forma, a partir de tal problematização, tomando a etnografia como método de construção de
conhecimento e de trocas sociais, por suas qualidades de reflexão e de auto-reflexão, buscou-
sei desenvolver uma pesquisa antropológica de inserção etnográfica na comunidade, a fim de
conhecer e acompanhar o cotidiano dos moradores dos Fundos de Linha Solidão, um pequeno
núcleo de pessoas, no tempo e espaço da experiência de pesquisa de doutoramento. Buscou-
se, a partir deste lugar acadêmico que se misturou ao meu projeto de pesquisadora e ativista
da Anama, acompanhar e registrar as práticas e saberes de homens e mulheres ligados à
atividade extrativa da samambaia-preta e como essa é afetada pelas novas idéias gestadas e
veiculadas dentro do campo ambiental.
70
CAPITULO 2
Entre a Biologia e Antropologia, o contexto para a realização do trabalho
Toda obra, por mais singela que seja, tem seu processo. Ao
observar uma flor, lembramo-nos que, um dia, foi semente, depois
broto e, apenas em função disso, pode se apresentar como flor.
Igualmente, esse trabalho encerra um percurso, em parte, guiado por
algumas regras e experiências acumuladas dentro do campo de
conhecimento ao qual me propus a incursionar. Porém, influenciado
por todas as contingências oferecidas pelo campo empírico e o que
essas suscitam em termos reflexivos, colocam-se algumas situações e
leituras que orientaram a concepção e escritura dessa tese, assim como
as diversas facetas envolvidas nesse processo, de modo a propiciar
algumas coordenadas metodológicas e conceituais que nortearam o
trabalho como um todo.
71
2.1. A entrada nos Fundos da Solidão: embaraços de um processo de inserção no
universo de pesquisa pela porta de uma ONG
A realização dessa tese foi fruto do convívio com os moradores dos Fundos da
Solidão, cujo contato inicial deu-se em 1998. O contexto de surgimento e de desenvolvimento
desse trabalho, intermediado pela minha militância na ONG Anama, inserido dentro de um
projeto de pesquisa aplicada, desenvolvido por uma equipe multidisciplinar, acrescido às
minhas diferentes identidades profissionais. Sendo esses elementos constituintes e essenciais a
serem considerados, tanto do ponto de vista metodológico como analítico, pois a realização
dessa tese traz em seu cerne, as dificuldades e complexidades desse encontro de perspectivas
diversas. O limite entre tais perspectivas é bastante vago e, nesse capítulo, busco um
ordenamento espaço-temporal, de modo a fornecer as etapas que conduziram a realização
desse trabalho, suas potencialidades reflexivas e também seus limites.
Linha Solidão é um distrito do Município de Maquiné, localizada em um dos vales que
constitui a bacia hidrográfica do Rio Maquiné. Nesse Distrito, apresentava-se um movimento
integrado essencialmente por mulheres e disseminado em todo o Estado do Rio Grande do Sul
e alguns municípios da Amazônia e Argentina, a Farmácia Caseira Comunitária. O grupo de
Linha Solidão, iniciado em 1991, fora o primeiro e a partir desse, gradativamente foram sendo
constituídos os demais. A organizadora desses grupos era conhecida como Rafinha, moradora
da localidade, ex-freira e pedagoga que, em seus 60 anos de vida, sempre se mostrou ligada
aos movimentos de amparo aos necessitados e, sobretudo, às mulheres. Em linhas gerais,
pregava a idéia da saúde em seu conceito amplo de “harmonia do nosso Ser de dentro e fora
de nós mesmos” segundo suas palavras. Aliava uma terapia com uso de plantas medicinais,
com princípios de um convívio equilibrado com o meio ambiente, ressaltando o caráter
sistêmico da relação homem-natureza. Ao mesmo tempo em que tinha um projeto político de
“libertação da mulher do campo”. Esses princípios gerais estavam organizados na forma de
um manual-guia para essas farmácias, denominado “Manual das Bruxinhas de Deus” (Rafinha
et al, 1997), cujo título, remete a uma ambiência fantástica, que mistura elementos do
catolicismo popular a figuras medievais
37
. Em 1998 (época das primeiras visitas a localidade),
o grupo que encontramos na Linha Solidão, era constituído por onze mulheres, que se
reuniam semanalmente, para preparar remédios à base de plantas. Esses eram distribuídos aos
moradores da região, procurando, com isso, sanar os principais problemas locais de saúde.
Diante das peculiaridades desse grupo, formou-se uma equipe de trabalho dentro da Anama
37
A referência as bruxinhas, segundo explicações de Rafinha, baseava-se na queima às bruxas, mulheres
condenadas por seu pensamento e atitudes libertárias e avançadas para sua época.
72
para acompanhá-las. Inicialmente, estabelecendo um diálogo entre os integrantes desse grupo
e Rafinha e, posteriormente, passando-se a freqüentar às reuniões semanais. Essa equipe da
Anama era constituída por oito pessoas (especificado no quadro 5), com diferentes formações
e focos de abordagem que gravitavam em torno do tema da saúde e do uso de plantas
medicinais.
Participante Formação acadêmica Perspectiva de abordagem dentro da equipe
Ângela Sperry Acadêmica de Farmácia Avaliação farmacotécnica e segurança
Gilsane von Poser Farmacêutica Avaliação farmacotécnica e segurança
Luciane Ouriques Ferreira Antropóloga Representações de saúde e cura
Simone Moro Jornalista Aprendizado das técnicas de manipulação
Gabriela Coelho de Souza Bióloga Etnobotânica e sustentabilidade
Rodrigo Gastal Magalhães Bióloga Etnobotânica e sustentabilidade
Rumi Regina Kubo Bióloga Etnobotânica e sustentabilidade
Simone Gutkoski Veterinária Recursos terapêuticos em atenção à saúde
animal
Quadro 5 – Listagem dos integrantes da equipe de trabalho da ANAMA, que acompanhavam
as atividades das Farmácias Caseiras Comunitárias de Linha Solidão.
O universo inicial de pesquisa desse grupo de acadêmicos era, portanto, as reuniões
semanais deste grupo. Nessas reuniões, verificou-se que a grande parte dessas mulheres
“tirava samambaia”. Diante das restrições legais a essa atividade, formou-se um segundo
grupo de trabalho (quadro 6), constituído primordialmente por profissionais ligadas à biologia
e à ecologia que elaboraram um projeto de pesquisa centrado no estudo da samambaia-preta.
Participante Formação acadêmica Perspectiva de abordagem dentro da equipe
Cláudia Luiz Schirmer Bióloga/ Professora Intermediação com a comunidade local
Cleonice Kazmirczak Bióloga/ Ecologia Estudo da biologia da samambaia-preta
Rosana Moreno Senna Bióloga/ Botânica Estudo dos aspectos ecológicos da
samambaia-preta
Quadro 6 - Equipe de trabalho que elaborou o projeto de pesquisa sobre a biologia e ecologia
da samambaia-preta.
Apesar desse rico universo empírico, as idas ao campo foram se tornando esparsas,
devido ao fato de, até então, não haver nenhum suporte financeiro para realização das
atividades, o que dificultava principalmente as idas até a Linha Solidão. Essa irregularidade,
nas participações às reuniões, fazia com que as mulheres nos vissem como visitantes
ocasionais e não como profissionais com potencial de prestarem algum auxílio ao trabalho das
farmácias caseiras, como era o intuito, enquanto militante de uma ONG e pesquisadores.
Além da dificuldade logística, a questão que se colocava era como atividades de natureza
acadêmica poderiam se converter em trabalhos que fossem ao encontro dos interesses do
grupo. Todas essas dificuldades e dúvidas geravam um sentimento de frustração, fruto da
73
própria inexperiência do grupo com trabalhos aplicados. Resolvemos então suspender as
atividades junto às farmácias caseiras e não mais prosseguir com as saídas de campo,
enquanto não houvesse condições mínimas para dar continuidade ao trabalho, com maior
constância e, conseqüentemente, confiabilidade ao trabalho. As indagações que pautavam as
discussões da ONG eram relacionados às formas de qualificar a inserção e a atuação na
comunidade e às expectativas que a própria comunidade tinha em relação ao grupo. Também
começávamos a compreender que não nos encaixávamos no perfil do “cientista”, que fica em
seu laboratório testando as propriedades e extraindo as substâncias de determinada planta, que
regia o imaginário local em relação ao pesquisador de universidade.
No ano de 2000, ocorreu uma aproximação das perspectivas de abordagem das duas
equipes de trabalho anteriormente citadas, resultando na elaboração de um projeto de pesquisa
e intervenção centrado no universo dos coletores de samambaia-preta dos Fundos da Solidão,
setor da Linha Solidão que reunia vários coletores de samambaia. Há assim uma redefinição
de foco, migrando de uma abordagem tendo como objeto as farmácias caseiras, para centrar-
se no extrativismo da samambaia-preta, passando o Projeto a denominar-se Samambaia-preta.
Para a execução desse projeto, firmou-se uma parceria institucional da ONG Anama com a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Rural (PGDR).
Tendo esse projeto em mãos, buscaram-se parceiros para o financiamento, o que foi
obtido junto a dois órgãos ligados ao governo estadual. O projeto foi desmembrado em dois
formatos, complementares em sua abordagem, com os títulos “Samambaia-preta: avaliação e
diversificação na busca de um desenvolvimento sustentável no Município da Maquiné, RS”,
com apoio do Fundo de Desenvolvimento Florestal (Fundeflor), ligado a Secretaria Estadual
do Meio Ambiente e “Avaliação etnobiológica e sócio-econômica da samambaia-preta
(Rumohra adiantiformis (G. Forest.) Ching) na região da Encosta Atlântica do Estado”, com
apoio do Programa RS – Rural ligado a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado
do RS. Houve ainda o apoio a algumas atividades específicas da Casa do Artesão, ligada à
Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social, da Prefeitura Municipal de Maquiné e da ONG
Alternativa.
Em 2001, iniciam-se as atividades referentes a esses projetos, centrando-se na
localidade dos Fundos da Solidão, último núcleo humano do Distrito de Linha Solidão, um
fundo de vale propriamente dito, para onde Rafinha tinha se mudado em 1999. A execução do
projeto estava a cargo de profissionais e de estudantes de diferentes áreas do conhecimento,
com variados níveis de envolvimento (Quadro 7), inclusive, alguns que nunca foram ao
74
campo. Algumas atividades contaram com a ajuda dos moradores, não somente como
informantes, mas também como executores das atividades de avaliação e de medição de
samambaia. O projeto abrangia os seguintes estudos ou atividades:
A) estudo da ecologia e biologia da espécie Rumohra adiantiformis, a samambaia-preta;
B) levantamento etnoecológico dos manejos tradicionais da região associados a essa
planta;
C) caracterização dos sistemas produtivos ligados ao extrativismo;
D) caracterização dos sistemas agrários da região;
E) estudo da cadeia produtiva da samambaia;
F) busca de alternativas de renda para a atividade;
G) caracterização sócio-econômica e histórica dos extrativistas dos Fundos da Solidão.
Participante Formação acadêmica Função dentro da equipe (estudo
ou atividade ao qual estava
ligado*)
Ana Cristina Brandão Dourado Pedagogia Executora. (A, E, F, G)
Ana Paula Schulte Haas Acadêmica de Farmácia Pesquisadora. (F)
Antônio Augusto Ungaretti
Marques
Engenheiro Florestal Consultor. (B)
Cláudia Luiz Schirmer Bióloga, Msc. Ecologia Executora. (A)
Cleonice Kazmirczak Bióloga, Msc. Botânica Coordenador de área. (A)
Cleyton Gerhardt Engenheiro Agrônomo, Msc.
Desenvolvimento Florestal
Pesquisador. (D, G)
Elaine Elisabetsky Biomédica, Dr. em Bioquímica/
Etnobotânica/ Etnofarmacologia
Consultora. (F)
Erica Goulart Acadêmica de História Pesquisadora. (G)
Fabiana Silva Bióloga Pesquisadora. (F)
Gabriela Peixoto Coelho de
Souza
Bióloga, Doutoranda em Botânica Coordenadora geral
Jair Kray Acadêmico de Biologia Pesquisador. (A)
João Batista de Almeida
Sobrinho
Historiador Pesquisador. (G)
Leonardo Alonso Guimarães Engenheiro Agrônomo Pesquisador. (A, B, C, D, E)
Lourdes Maria Prado Duarte
(Rafinha)
Pedagoga e Teóloga Consultor. (F)
Lovois de Andrade Miguel Engenheiro Agrônomo, Dr. em
Agronomia
Coordenador de área. (C, D, E, G)
Luciane Ribeiro Correa Acadêmica de Biologia Pesquisadora. (A)
Marcelo Marin Farias Acadêmico de História Pesquisador. (A, G)
Paola Masiero Acadêmica de História Pesquisadora. (G)
Paulo Kageyama Engenheiro Florestal, Dr. em Genética Consultor. (A)
Rafael Perez Ribas Acadêmico de Ciências Econômicas Pesquisador. (E)
Rodrigo Gastal Magalhães Biólogo, Msc. Botânica Pesquisador. (A, B)
Rosana Moreno Senna Bióloga, Msc. Botânica Consultor. (A)
Rumi Regina Kubo Bióloga, Doutoranda em Antropologia Coordenadora geral
Tânia Inês Serafini Acadêmica de Comunicação Social Pesquisadora. (A, B, G)
(*) letras correspondentes aos itens do texto anterior
Quadro 7 - Equipe de trabalho do Projeto Samambaia-preta, com respectiva formação
profissional e identificação da função dentro do projeto.
75
Pelo fato de, como pesquisadores, alojarmo-nos na casa da Rafinha, claramente já
estávamos fadados a alguns estigmas aos olhos dos moradores da localidade. Rafinha era uma
mulher descasada, morava sozinh e estava sempre recebendo visitantes, seja para fazerem
consultas sobre os remédios caseiros, seja para lazer. Algumas pessoas ficavam uma
temporada morando com Rafinha. Esses eram os “cabeludos”, “maconheiros”, que “tomavam
banho pelados no rio”, segundo as definições dos moradores locais. Ao mesmo tempo em que
Rafinha tinha contato com toda esta “gente de fora”, era uma pessoa que ajudava os
moradores do local, mantendo uma prática religiosa católica uma vez que fora freira e suas
ações continuavam pautadas nos preceitos católicos.
Aos poucos, alguns integrantes da equipe começaram a visitar as casas, falando do
projeto e efetuando algumas entrevistas. Buscando aproximação àquelas pessoas mais
familiarizadas com Rafinha, como Margarida e a família de seu Lidorino. Começamos a
freqüentar algumas festinhas familiares, prestando pequenos favores à comunidade tais como:
carona e compra de alguma mercadoria em Porto Alegre. Porém, falar do projeto, da pesquisa,
da universidade, da ONG... era bastante vago, pois cada questionamento ocasional, que
versavam sobre o trabalho, o nosso cotidiano, as nossas razões de estarmos ali...
constatávamos que, estávamos muito longe de nos fazermos entender. Eram questionamentos
correntes:
- Mas o que vocês querem saber? Se é sobre a samambaia, não é a gente que
vai acabar com a samambaia, é o mato que vai terminando com ela.
- Tinha que fazer um trabalho pra descobrir como é que a gente vai
conseguir sobreviver, sem poder botar roça e tirar samambaia.
- Querem que a gente plante em árvore?
- Mas o que é que vocês querem com isso tudo?
Situações inusitadas eram associadas às fofocas. Um desses episódios foi com
Gabriela, integrante do grupo de pesquisadores. Num fim de semana, quando visitava uma das
casas, essa ficara sabendo que tinham nos chamado de “maconheiros” e “bando de
prostitutas”. Gabriela, muito abalada, relatou o episódio a Rafinha, que tomando as dores de
Gabriela, foi tirar satisfações de Marta, a qual supostamente teria espalhado tal fofoca. Criou-
se uma cisão entre as duas. Frente a tal situação, o grupo refletiu sobre o acontecido e
resolveu esclarecer os fatos com Marta. Fomos, Gabriela e eu, conversar com Marta,
colocando o fato e a fonte dos constrangimentos. Essa nos colocou que em uma conversa
informal, “final de tarde, tomando chimarrão, só os de casa”, teriam comentado “alguma coisa
a respeito”, portanto ela não estava negando o comentário. No entanto, “não era sobre vocês”,
dando a entender que entre os que freqüentavam a casa de Rafinha, ela estabelecia diferenças
76
entre nós pesquisadores e outros moradores ocasionais. Dizia-se por isso, “chateada” com
pessoas que “tinham espalhado essa fofoca”, ou seja, teriam levado para círculos exteriores
determinados comentários ou assuntos, que considerava, restrito aos círculos pessoal e
familiar. O mais engraçado é que neste momento, pela estrada passaram dois amigos nossos
“cabeludos”, que nos cumprimentaram e que embora não fizessem parte do grupo de trabalho,
eram integrantes da Anama. Nem olhei para Gabriela, porque sentia que tivemos sensação
similar: sem dúvida eram pessoas exóticas para qualquer padrão local. Neste momento,
sobreveio a situação de estranhamento a que essas pessoas eram confrontadas. Sem falar em
minha própria aparência oriental, muitas vezes associada a “índios”, ou então originando
comentários admirados como “Ah, tu fala direitinho a nossa língua...”
Esse episódio contém alguns elementos importantes para começarmos a compreender
esse grupo. Alertou-nos para esse círculo de conversas e julgamentos (um círculo restrito e
familiar, na qual correm os comentários sobre nossa presença, mas que dificilmente chegam a
nossos ouvidos) e a clara cisão que havia entre os moradores locais e Rafinha e o grande
esforço do grupo de pesquisadores em estabelecer as diferenças em relação ao círculo de
Rafinha. Como propositores do Projeto Samambaia-preta, fazíamos reuniões para
esclarecermos sobre o nosso projeto, apesar das participações serem esparsas e constituídas
por uma pequena parcela da comunidade - nada muito alentador. Foi o momento de formular
alguns questionamentos: quais os grupos que pertencem à comunidade, quem são os “de fora”
e como tais elementos são caracterizados, em que medida há um discernimento entre os vários
elementos “de fora”, como cada grupo ou um morador local se relaciona conosco, que tipo de
alianças estavam se operando, qual a base de tais alianças... questionamentos similares aos
colocados anteriormente sobre a ANAMA, mas aqui, estávamos a elaborar os elementos para
a avaliação da “qualidade de mediação”.
Uma prática que aqui se faz presente e que nas inúmeras idas e vindas, verificou-se
que era uma prática corrente (cada nova vinda a Solidão, havia um boato ou fofoca diferente).
Segundo Elias e Scotson (2000), essa prática, seja ela depreciativa ou elogiosa, tem como
função fundamental a coesão do grupo: um centro de intrigas, no sentido de manter vivo o
sistema de comunicação e reatualização do interesse dos comunitários pelos assuntos de sua
comunidade. Nesse sentido, esses autores, num estudo comparativo entre dois grupamentos
humanos, um mais antigo e coeso, outro mais recente e mais frouxamente organizado,
verificaram uma correlação entre a estrutura da fofoca e do grupo que a circula, na medida
que quanto mais coeso é o grupo, há maior circulação da fofoca entre as famílias e
associações. Além disso, um outro aspecto importante para análise dessa prática social refere-
77
se a distinção entre os dois pólos: aqueles que a circulam e aqueles sobre quem ela é
circulada. Há nessa polarização a identificação de um quadro de referências entre a “situação
e a estrutura de dois grupos e a relação que mantêm entre si” (Elias e Scotson, 2000, p. 130).
Disso tudo, ficava claro que se tratava de um grupo com claras fronteiras entre os de dentro e
fora e a manutenção dessas fronteiras verificava-se em situações de conflito, fofocas,
comentários, piadas - práticas e categorias que denotam os modos de regulação social do
grupo. A nossa inserção somou-se a outras situações de cisão e contraste já estabelecidas,
como é o caso de Rafinha. Diante disso, um elemento importante tanto para a pesquisa do
projeto Samambaia-preta, como para minha pesquisa particular, era essa figura, de um grupo,
sob constantes contatos e pressões diante do novo - [diria até] o novo manifesto em suas
formas extremas – e como esse novo é re-acomodado ao cotidiano do grupo.
Essas conclusões conduziam a compreensão de que, embora a problemática estivesse
centrada na atividade de extrativismo da samambaia-preta e, portanto, nas condições de
reprodução econômica desse grupo, havia a necessidade de uma abordagem abrangente atenta
à reprodução de outras relações, como as formas como se constroem relações de
reciprocidade e confiança, as alianças internas; quesitos fundamentais para compreender esse
grupo e as condições para sua reprodutibilidade social.
2.2. O novo lugar “político” e a experiência compartilhada: a inserção etnográfica a
partir da academia antropológica
Nesse contexto, a partir da constatação da importância de abordar aspectos como as
relações pessoais e como essas se fazem importantes no tecido social e nas relações entre o
local e o global, surge a proposta de, aproveitando o meu envolvimento com o projeto e o
interesse em desenvolver uma tese de doutorado, buscar uma abordagem antropológica. Dessa
forma, apesar de terem sido considerados dados coletados anteriormente, é apenas em março
de 2001 que se estabelece o estudo dos moradores dos Fundos como objeto de um estudo
antropológico, sendo o recorte definido ao longo do contato com o grupo.
Uma das questões que permanecia em aberto em relação a esse grupo, considerando
também as situações de contato e de conflito vivenciados dentro do projeto Samambaia-preta,
dizia respeito à discussão sobre a tradicionalidade da atividade. Essa questão foi tomada como
pano de fundo dentro dos debates sobre sustentabilidade não somente no meio acadêmico,
mas, sobretudo, nos círculos preservacionistas, principalmente, após a constituição de 1988 e
a instauração de reservas extrativistas que dava uma condição de direito àqueles grupos
78
considerados tradicionais. Nesse debate, a idéia de tradição está associada à memória de um
tempo remoto e ao acúmulo de conhecimento, conhecimento este que seria a base de um
conjunto de práticas e estratégias de intervenção no meio natural, que poderiam contribuir
para um programa mais consistente e eficaz em termos de preservação ambiental que as
propostas técnico-científicas de sustentabilidade até então colocadas. Embora essas idéias –
cujo principal expoente era Antonio Carlos Diegues - tenham recebido críticas (Adams, 2000,
Cunha e Almeida, 2001), principalmente, na década de 90, propiciou uma ampla discussão a
respeito das relações entre a preservação ambiental e presença de grupos humanos. Através
desta noção, abria-se a possibilidade de colocar esses extrativistas de samambaia-preta no
panorama do debate no campo ambiental, abordando as especificidades desse grupo, as suas
relações com o mercado e a sociedade abrangente e analisando os contornos que permitiriam
a delimitação de um campo conceitual próprio para a questão ambiental. Nesses termos, fez-
se necessário a incursão no universo teórico e metodológico da antropologia de modo a não
apenas desconstruir determinadas visões simplificadoras de tradição e cultura, mas, sobretudo,
relacioná-los à complexidade das perspectivas que estão em jogo dentro desse campo
circunscrito como ambiental, ao qual estão inseridos estes coletores de samambaia.
Ao longo da convivência com o grupo, no desvendamento da trajetória dessas pessoas
e, com isso, a constituição da história da atividade, o extrativismo - muito mais do que a
perpetuação de uma tradição - representava o índice da mudança. No entanto, trilhando os
caminhos da instauração dessa atividade, era impossível considerá-la destituída de um
ancoramento em uma tradição de colono ou campesina. Isso exigiu a refocalização do olhar
do observador-pesquisador no contato e no convívio com os moradores e a incorporação a da
bibliografia centrada em populações tradicionais a uma literatura analítica relacionada ao
campesinato, adentrando a toda uma tradição da antropologia relacionada aos estudos de
comunidade.
Dessa forma, compreender os significados dessa atividade constituir-se-ia não apenas
em uma descrição de uma prática, mas elucidação de um ancoramento a uma estrutura social
e ao processo de constituição de uma temporalidade própria, que permitiu a permanência
dessa atividade. Abordar esse grupo a partir da tradicionalidade incorreria em buscar as
fronteiras sociais e simbólicas que dão peculiaridade a esse grupo, no sentido de constituírem
uma comunidade de pertencimento, pautado pelo trabalho. Por outro lado, reconhecidamente
o trabalho e, mais especificamente, a prática extrativista, encontrava-se ligado ao seu
ambiente, ao processo da regeneração da vegetação, ou seja, a uma temporalidade relacionada
à paisagem. Essa conjunção entre tempo e paisagem em seu limite encontra-se nas fronteiras
79
entre a biologia e a antropologia, destacando-se os estudos de antropologia física ou de
biologia evolutiva. Porém tratava-se de considerar um tempo mais exíguo, três ou quatro
gerações, ou seja, a escala de tempo de uma vida humana.
Agora como pesquisadora em campo, passei a atuar como antropóloga, embora
mantendo a atividade na ANAMA. Como colocar essa delimitação era uma das preocupações
constantes em nível de interação com a comunidade. No que concerne a atitude em campo,
num primeiro momento, essas re-orientações de foco da pesquisa não resultavam em
modificações abruptas, uma vez que continuava efetuando visitas e colhendo dados sobre o
cotidiano de forma geral. Tratava-se por uma questão ética, de conseguir expor a existência
desses objetos de pesquisa diferenciados. Em termos locais incorria em justificar como uma
pessoa que estava pesquisando samambaia interessa-se também por estudar as relações de
parentesco de cada um, interessa-se pelas festas, as plantações... Uma primeira ordem de
justificações era que eles eram pessoas que tiravam samambaia e, portanto, interessava como
eram as relações das famílias. Mas isso, para meus propósitos não era o bastante, pois, com
essa colocação, permanecia a condição anterior de pesquisadora dentro do projeto
Samambaia-preta. A idéia que se aproximava ao aspirado era a de escrever um livro sobre a
Solidão e, mais tarde, com a inserção do vídeo, de fazer um filme os moradores. Na ocasião,
uma das moradoras sugeriu que esse material fosse enviado ao “Programa do Ratinho”
38
, de
modo a mostrar sua penosa condição de vida. Essa delimitação indefinida de papéis, perpetua-
se, permanecendo para além do momento de finalização dessa tese. Para ilustrar esta situação,
no momento, verifica-se que o termo biólogo já é um termo assimilado pelo grupo, mas a
profissão de antropólogo ainda está longe de ser compreendida e assimilada, tendo analogia
com a de psicólogo. Assim, o esforço de inserção no campo, compõe-se também de uma
preocupação em achar um “lugar” dentro do campo no processo de negociação, de modo a se
obter uma identidade e um papel social dentro do grupo. Em outras palavras, a questão “qual
é o meu lugar no campo?” (conforme assinalado no trabalho de Dalmolin et al, (2002), mas
também colocado em tantas outras etnografias), apesar de ter conotações objetivas para a
obtenção de dados, converte-se, principalmente no momento do diálogo entre a teoria
antropológica e a experiência acumulada da vivência em campo, o ponto de percepção dos
sentidos do processo de realização de uma etnografia.
De uma forma geral, houve uma primeira etapa de visitas, efetuadas entre 2001 e
2002, com conversas com os moradores para conhecer um pouco das impressões e das
38
Programa de televisão onde um dos quadros focalizava a história de vida de determinada telespectadora,
objetivando, com isto, mostrar as dificuldades enfrentadas pela população brasileira.
80
expectativas em relação ao que estava ocorrendo. Nas próprias atividades previstas dentro do
projeto, buscava-se uma atenção maior à reação das pessoas e sua receptividade a proposta
como um todo. Nesse período, efetuavam-se visitas, pautado pelo interesse de inserção à
dinâmica local, buscando estreitar as relações com as pessoas. Com isto pude conhecer a
localidade, o parentesco, as redes sociais e familiarizar-me com os assuntos cotidianos. As
idas à Solidão eram efetuadas quinzenalmente, sempre aos fins-de-semana, acompanhando às
saídas previstas pelo projeto. Algumas vezes, envolvia-me com as atividades ligadas aos
experimentos previstos no projeto durante o dia e à noite, visitava as pessoas. A observação
era o principal meio de apreensão, complementado pela atenção às conversas rotineiras, a
algumas entrevistas livres e anotações no diário de campo, visando agora um projeto de
pesquisa, ligado ao meu doutoramento em Antropologia.
O fato de poder responder igualmente por outras áreas de conhecimento, dado a minha
formação artística com ênfase em fotografia no curso de Graduação de Artes Plásticas na
UFRGS, propiciava também desenvolver técnicas de análise e reflexões epistemológicas
advindas desse campo de conhecimento. O olhar antropológico vinha submerso de reflexões
sobre a imagem, a paisagem, a estética do viver desta população, o gesto, próprios de um
fotógrafo. Esses elementos, aos poucos, contribuíam para a consolidação de alguns caminhos
para chegar aos objetivos propostos dentro do projeto de tese, embora nesse momento,
persistisse um certo receio e questionamento sobre a validade de tomar dados quase
“impressionísticos” para as análises posteriores dentro do trabalho.
A fotografia foi bastante importante como uma forma de estabelecimento de
reciprocidade. Desde as primeiras saídas, apareci com a bolsa da máquina fotográfica, embora
tenha demorado a retirá-la para uso. Carregar a máquina tornou-se um hábito. Haviam saídas
de campo que não tirava nenhuma fotografia e utilizá-la pela primeira vez, causou um certo
impacto. Na ocasião, senti-me um tanto desconfortável, pois as pessoas olhavam curiosas,
apreensivas. Embora a maioria conhecesse uma máquina fotográfica, havia um certo ar de
suspense e talvez de apreensão, diante das restrições da legislação ambiental que pairavam
sobre as práticas locais. Foi um momento de ruptura. Tentei explicar a trivialidade daquela
máquina, tentei falar sobre outros assuntos. Essa situação se repetiu em algumas outras
ocasiões e com o tempo, as pessoas passaram a solicitar fotografias, principalmente
fotografias de família.
Num segundo momento, durante o ano de 2003, as estadias tornaram-se mais
prolongadas, com duração de três a sete dias (hospedada na casa de Rafinha), intercalado por
períodos de retorno a Porto Alegre e desvinculado das atividades do grupo do Projeto
81
Samambaia-preta. Fazia visitas às casas, subidas ao morro para coleta de samambaia, registros
fotográficos da atividade, descrições do cotidiano em diário de campo relacionado aos
afazeres domésticos, divisão de tarefas, relacionamento com filhos e entre cônjuges, entre
familiares, como eram as refeições, as atividades ligadas ao preparo da terra e à plantação e ao
artesanato. Inicialmente, houve a preocupação em descobrir os horários que as pessoas
encontravam-se em casa, o que, aos poucos me obrigou a entender melhor as rotinas diárias e
de trabalho: horário de acordar, do café, de ir à roça, quem vai para a roça e quem fica, quais
os dias de tirar samambaia. Para a delimitação das áreas e identificação das roças utilizaram-
se as fotografias panorâmicas, tiradas em subidas aos morros acompanhadas de esboços da
distribuição da propriedade.
Nesse ínterim pude me aproximar de Chico, um dos intermediadores da cadeia
produtiva da samambaia, responsável pelo transporte, possibilitando observar as relações
estabelecidas dentro da cadeia produtiva. Isso tudo permitiu a delimitação dos papéis sociais e
de trabalho no contexto local.
Esse foi também um tempo de negociação e de busca de maior aceitação, por parte das
pessoas que faziam parte dessa comunidade, da minha presença como antropóloga e
pesquisadora da ANAMA. O tempo mais prolongado e a intensividade da pesquisa
permitiam, aos poucos, uma confiança maior e constituída de menos constrangimentos do que
em anos anteriores e adentrando ao fluxo do cotidiano local, tornando-se cena trivial, as
pessoas puxarem uma cadeira e dizerem: “entra aí, Rumi!”.
Nessas situações, inicialmente relutava, tentando perceber se não havia inconvenientes
em efetuar uma visita. Sempre era mais fácil interagir com as mulheres. Percebia-se essa
tensão de gênero em diversas situações, como a vivida com seu Reduzino, um senhor
aposentado, cuja esposa o tinha deixado por não gostar de morar no “Fundão”. Estava sempre
a falar de sua solidão e de como gostaria de “achar uma outra mulher”. Certa vez, chegando à
casa de seu Reduzino como normalmente fazia, ele me comentou “eu até queria convidar a
senhora pra entrar, mas sabe como é que é... eu sei que não tem maldade, é tudo amizade,
mas...”. Prontamente eu fui dizendo “Não, não, eu entendo” e conversando mais algumas
palavras, fui embora.
Sendo mulher, entrevistar homens era mais difícil. Um homem e uma mulher,
sozinhos dentro de uma casa sempre gerava alguma desconfiança em uma comunidade
arraigada a valores tradicionais de gênero. Um homem entrevistar uma mulher era mais difícil
ainda. Tais situações são similares aos relatados em Ellen e Klaas Woortmann, que
observaram em campo essa restrição a determinados dados relacionados ao gênero do
82
pesquisador. No caso, desse casal de pesquisadores, associam o acesso a determinados dados
em função de constituírem-se em um workteam (Woortmann e Woortmann, 1997). Portanto,
as observações e possibilidades de incursão ao universo local foram sempre pautados por uma
delimitação de gênero, embora, o fato de ser de fora e de estar envolta por um estatuto de
pesquisadora, permitia um certo afrouxamento das regras sociais.
Uma vez entrando na casa e iniciada a conversa ou a entrevista, sair era sempre uma
dificuldade, pois argumentavam: “- É cedo...”, “- Toma mais um café.” A essas solicitações,
para não fazer desfeita, ficava mais alguns momentos e após inúmeras repetições da cena
anteriormente citada, conseguia sair. As pessoas do local gostavam de uma “boa prosa”,
emendando os assuntos: começava com samambaia e acabava em outros bem diferentes.
Muitas vezes saia tarde das casas, após o jantar. Decorrente disso, passei a carregar lanterna,
ou vela e fósforo. Na verdade, descobri, que por convenção, sempre “é cedo”, para se ir
embora e os limites para a permanência e a interferência no cotidiano das pessoas é sempre
uma questão delicada, perceptível apenas nas sutilezas do momento.
Os diferentes momentos do dia tambémm diferentes sons. Durante o dia ouve-se o
rádio, galinha, cachorro latindo, gritos de crianças e mães ralhando com estas; à noite, além
dos cães e outros sons como murmúrio das vozes, falando sobre assuntos de família, a novela
na televisão, misturando-se aos sons de sapos e grilos dos banhados e matos que circundam as
casas. Cada horário tem seus rumores, donde é possível conceber uma ambiência constituída
por sons e silêncios próprios a comunidade, criando-se uma paisagem sonora (Schaefer,
1991).
Através das entrevistas foi possível tomar contato com as trajetórias de vida das
pessoas. Estas entrevistas acabavam se configurando em histórias da própria família, seja pela
interferência de outros membros do grupo familiar no momento da entrevista, seja porque
mesmo individualmente, as trajetórias estavam muito atreladas a esta, o que evidência sua
centralidade. Considerando essa relevância das relações familiares, traçou-se uma árvore
genealógica das famílias, buscando-se estabelecer paralelos com as formas de organização da
terra e do trabalho, e, sobretudo o ordenamento dos acontecimentos, de modo a obter uma
conformação de uma memória coletiva. Para essa construção, além das entrevistas conversas
visando a elucidação das relações de parentesco entre os moradores locais, foram utilizadas as
entrevistas realizadas pela equipe responsável pelo histórico da atividade extrativista dentro
do projeto Samambaia-preta.
As casas, o mobiliário, os enfeites de parede, a paisagem vista a partir das casas,
também foram foco de atenção, os quais, gradativamente, passei a fotografar. Isso causou um
83
certo estranhamento entre as pessoas, razão pela qual, busquei enquadrar esses detalhes nas
fotografias, onde o foco principal eram as pessoas. Todos esses elementos contribuíram para a
elucidação do ethos conformador daquela comunidade.
Nas saídas a campo, passei também a utilizar o vídeo. Nessas, além do
acompanhamento da atividade que estava sendo realizada, também foi possível gravar
algumas narrativas e depoimentos que forneceram dados importantes para a análise sobre o
saber e as práticas locais. As gravações de entrevistas (em áudio e vídeo) incorriam com
algum mal-estar inicial, em geral, antecedido de alguma explicação ou negociação. Essa
resistência em ser gravado dependia de pré-disposições individuais. Alguns gostavam de ser
gravados em suas entrevistas, como é o caso de seu Renato; outros impuseram como condição
para a realização das entrevistas a supressão do gravador ou do vídeo.
Foram, sobretudo, as conversas, em diferentes situações cotidianas que permitiram não
apenas o acesso aos significados dos trabalhos ou do viver na Solidão, mas ao
estabelecimento de uma relação de reciprocidade. A conversa, enquanto metodologia de
coleta de dados apresenta seus inconvenientes quando comparado a uma entrevista gravada,
principalmente porque o contexto da fala original é continuamente re-constituído pelo
pesquisador e à apropriação dos diálogos ou de qualquer outra fala, é recontado a partir do
relato secundário. No entanto, é inevitável reconhecer sua função integradora o que, também,
pode estar mascarando a distinção de papéis entre pesquisador e informante. Nessas situações,
parece que a informalidade do ambiente, o fato de se estar ocupado com alguma atividade, o
ar de cordialidade encadeia mais facilmente a evocação de lembranças, histórias pitorescas,
pequenas passagens da vida. Gestos levam a episódios passados, histórias que se costumava
contar, piadas. Histórias que ouvia de uma mãe, numa outra ocasião, eram repetidas pelos
filhos, assim como ocorria com aspectos íntimos e fofocas. Descobria-se quem era ciumento e
como era a relação entre gêneros. Cada imagem gerada, cada depoimento, mesclava-se às
confissões pessoais. O papel de pesquisadora se diluía com o de amiga, o que pode também
colocar em questão a natureza dos dados desse trabalho, cada vez mais distante de uma certa
neutralidade e rigor, que suscita uma pesquisa científica. Porém, nesse caso, foram essenciais
à realização desse trabalho.
A tensão inicial relacionada ao problema da ilegalidade da atividade de coleta
transmutava-se no desvelamento de pequenos segredos íntimos, cuja dúvida incorria no
questionamento do que pode ser “publicizado” e o que deve ficar entre quatro paredes. Apesar
de me encontrar nessa atmosfera de envolvimento e de intimidade, freqüentemente era
interpelada com questões como: “- O que é que tu estás fazendo aqui?” Essas situações e
84
questionamentos denotavam haver ainda muitas diferenças e assimetrias entre o universo do
pesquisador e sua pesquisa e as pessoas com as quais me propunha a estudar.
Ao longo do ano de 2004, continuei acompanhando o grupo, agora com apenas uma
ida mensal com estadias de dois a três dias, colhendo dados e depoimentos complementares
aos já levantados, mas, sobretudo acompanhando os desdobramentos dos eventos ligados a
legalização da samambaia-preta, e a busca de alternativas econômicas, especificamente sob a
forma do artesanato de palha de bananeira. Este momento, representado metaforicamente pelo
“tempo do artesanato”, diante de todo esse trabalho intelectual de bióloga e antropóloga de
colher dados e analisar, representa o esforço subjacente ao da pesquisa, de colocar à
disposição dessas pessoas, o conhecimento gerado por essa pesquisa, como uma forma de
retorno para a comunidade, ou pelo menos buscar uma forma de fazê-lo. Dessa experiência
pode-se destacar que, ainda existem distâncias fundamentais, referentes aos capitais sociais
diferenciados e que se trata sempre de uma relação desigual, agonística, por mais que
queiramos buscar uma igualdade. Nessa reflexão, sobrevém a inexorabilidade dos processos
macrossociais, aos quais nem eu, nem o morador de Solidão escapam, mas buscamos mudar,
sugerir, interferir, num esforço humano de uma atitude solidária. É nesse momento que os
conceitos de natureza e desenvolvimento são revistos, ou conjuntamente discutidos e
vivenciados. Nesse momento também alguns moradores de Solidão conhecem a minha
morada, meu cotidiano em Porto Alegre, dando continuidade ao fluxo das relações que
permearam toda a realização desse trabalho, mas que não terminam com sua conclusão.
Nessa etapa, o que se colocava era a possibilidade de construção de um horizonte em
comum, a possibilidade de contribuir para a melhoria de vida desses grupos e neste sentido, a
noção de projeto, expectativas, interesses... as esperanças de cada uma destas pessoas,
configurando-se como um complemento a todas as observações anteriores. Talvez tenha sido
nesse momento, ainda que permeado pelo estranhamento e distâncias intransponíveis - o
próprio fato de ter que reconhecer a existência de tais distâncias – foi possível constituir uma
análise sobre o que foi vivenciado e recolhido na forma de dados e, sobretudo, de refletir
sobre o que fazer com esses dados. Em realidade, a experiência de vida de 2004, entre esse ir
e vir, permitiu buscar nexos com tudo o que representa esse trabalho e, sobretudo o
estabelecimento de comparações entre Solidão e Porto Alegre, entre moradores de Solidão e
militantes da ANAMA, entre extrativistas e acadêmicos, entre a prática e a teoria, enfim
compor um quadro analítico, sempre permeado pelo limite entre eu e o outro tentando
vislumbrar um horizonte comum e mostrando o limite de tais categorizações dicotômicas. Foi
neste momento, onde surgiram os maiores conflitos, foram também os momentos que me
85
suscitaram maiores reflexões sobre a condição de sujeitos diante dos desdobramentos do
campo que delimitei como ambiental. Nesse trajeto, é inevitável colocar não somente as
reflexões em torno de todos os dados, as anotações do diário, mas, sobretudo com pequenas
vivências cotidianas em Porto Alegre que me permitiram estabelecer contrastes entre lá e cá,
ou perceber que somos iguais, mas temos diferenças.
Muitas perguntas sem resposta surgiram nesse momento e no horizonte da academia a
necessidade de concluir, de ter o que dizer dessa experiência: entre teorias e divagações
pessoais, surgem outras aflições... Neste momento coube a mim vivenciar um segundo sentido
da experiência, agora não mais o meu “experienciamento” do confronto com o outro, mas de
colocar essa experiência dentro dos moldes da “uma experiência”, permeado por sentimentos,
busca de sentido e de significados baseado no cotidiano concretamente vivido.
Figura 7 - A pesquisadora em campo (fotografia de Ricardo Fagundes).
Pelo fato de pairar sobre a temática abordada uma série de restrições legais, o que
poderia acarretar em problemas para as pessoas citadas, em algumas situações, como em
relação às queimadas, caça ou outro fato que pudesse acarretar em futuros embaraços às
pessoas, os nomes reais foram suprimidos ou substituídos. Porém, de uma forma geral, foram
mantidos os nomes verdadeiros, pois pelas características do local, onde todos interagem ou,
pelo menos, sabe-se da vida do outro, o anonimato é quase impossível. Logo, foi inevitável,
em algumas ocasiões, não deixar de citar alguma pessoa, mesmo que não tenha sido um
interlocutor direto. Acrescido a isso, o fato de que esse trabalho foi resultado, não somente de
entrevistas e saídas formais, mas constituído numa imersão no cotidiano da localidade. Nessas
86
situações, apesar de se buscar uma posição e formas de abordagens mais próximas de uma
imparcialidade científica, com algumas pessoas, houve maior proximidade e intimidade do
que com outras, tornando-se difícil discernir, no momento da escrita, a quem citar e a quem
suprimir. Para essa tese e outras situações onde havia a menção de nomes em algum trabalho,
ou publicação de alguma foto ou imagem videográfica, as pessoas eram consultadas
verbalmente.
2.3 No fluxo da experiência etnográfica, misturam-se coisas, palavras e as pessoas
A elucidação da atividade extrativista, enquanto problema ambiental para os
moradores dos Fundos da Solidão, incorre em considerar o lugar e os significados dessa
atividade para esse grupo. Assim, para abordá-los é necessário compreender as estratégias de
reprodução social, considerando a totalidade de suas ocupações e de como estão inseridas em
seu cotidiano e ao longo de suas vidas. Nesses termos, imediatamente somos remetidos a
noção de “fato social total”. Segundo Lévi-Strauss, ao conceber essa noção, Marcel Mauss
tinha como preocupação de fundo a própria plausibilidade da antropologia no sentido de
definir a realidade do social, ou melhor “de definir o social como a realidade” (Lévi-Strauss,
s/d, p. 24). Sendo assim, postula que, “o social só é real integrado em sistema”, ou seja, em
alusão a uma totalidade que, conforme nos alerta James Clifford (1998, p. 190-191), não se
trata da noção funcionalista de uma interrelação entre as partes, mas, fazendo alusão ao
princípio hologramático, de uma representatividade estrutural e de um micro-universo que
remete a uma totalidade estrutural (Cuéllar, 1998, p. 109). Assim, toma-se a constituição da
identidade como o elemento que costura o sujeito a estrutura e, dessa forma, “estabiliza tanto
os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente
mais unificados e previsíveis” (Hall, 1999, p. 12). Não se trata, porém, de tomar esse conceito
em sua conotação essencialista, mas como um fundo virtual que guia e justifica suas ações
cotidianas e o ato de estar no mundo. Conforme coloca Levi-Strauss (1977, p. 332), a
identidade “é uma espécie de fundo virtual ao qual nos é indispensável referirmos para
explicar determinado número de coisas, mas sem que tenha jamais uma existência real”.
Assim, “sua existência é puramente teórica” e se constrói num constante contraste entre o eu e
o outro, permeado por uma noção de valor. Esse conceito relacional permite que à identidade
social, agreguemos os termos da mudança como anteriormente colocado, considerando o
contexto de fricção com as motivações preservacionistas globais, mas também a própria
87
interação com a figura do pesquisador, cujo papel apresenta-se sobreposto a uma situação de
militância em uma ONG.
Para o desvendamento dessa identidade social, busca-se o ancoramento nas
representações sociais a partir das práticas culturais, elemento empírico primordial para
nossas análises. Com isso, ainda a sombra do pensamento de Marcel Mauss, aproximamo-nos
da noção de experiência, porque os fatos sociais estão encarnados na experiência individual. É
por essa via que o foco de abordagem desse trabalho centra seu olhar nas práticas.
As práticas são tomadas em seu aspecto sincrônico e diacrônico. Na tactilidade e
corporalidade das práticas cotidianas e na sua narração, estão condensadas às dimensões
temporal e espacial, onde, a cada instante o passado é re-significado e re-dimensionado. Na
abordagem da memória, são captados os significados espaço-temporais relativos ao meio
ambiente, à natureza, ao processo de trabalho, às mudanças, aos conflitos e às rupturas;
elementos para a constituição da trajetória desse grupo. Leroi-Gourhan (1993) em sua
arqueologia do processo de constituição humana demonstra a integração entre os processos
biológicos: nutrição, reprodução, ocupação do espaço; e a socialização, numa espécie de
sincronismo entre o ritmo biológico e o social. Nessa decomposição dos atos humanos,
ressalta-se o gesto, que conforma o local, domesticando o tempo e o espaço. Essas posturas e
gestos estão imersas dentro das suas atividades cotidianas.
O estudo do cotidiano, como aponta Petersen (1995a: 49), numa análise sobre o tema na
historiografia, configura-se como uma crítica à epistemologia racionalista e uma recusa às
grandes sínteses. No entanto, o cotidiano como objeto de estudo necessitaria “de uma
definição mais consistente”, ou dito de outra forma, considera “o paradigma da ciência ao
mesmo tempo indispensável e insuficiente para o conhecimento cotidiano” (Petersen, 1995:
35). Mesquita (1995, p. 14) aborda esse assunto, através da noção de hábito como “aquilo que
se repete como tarefa ou exercício” e, portanto, é a manifestação de um conhecimento
acumulado. Nesse sentido, traz uma conotação de duração e ao mesmo tempo a idéia de um
saber, de um conhecimento. Santos (1996), verificando os sinais de crise da ciência
racionalista, apresenta o paradigma de um conhecimento prudente, onde haveria uma fusão
entre conhecimento científico e comum. Geertz (1997) considera o senso comum como uma
forma de pensamento deliberado. Também Maffesoli (1984), em sua sociologia
compreensiva, busca o resgate do conhecimento comum, reintroduzindo as dimensões míticas
e imaginárias, anuladas pela epistemologia racionalista, isso sem esquecer de Lévi-Strauss em
sua “ciência do concreto”, o qual estabelece paralelos entre este “pensamento selvagem” e o
“pensamento cientifico”.
88
O interesse em relação ao cotidiano nessa tese reside na configuração desse locus das
práticas, da aplicação continuada e repetida de determinados campos do conhecimento
acumulado, decomposto nos gestos repetitivos, habituais, e residuais. O resíduo, referência
aos elementos fragmentários de práticas cotidianas, traz subjacente à idéia da existência de
um todo, a de um sistema passível de ser decomposto - porém não isolado - nessas práticas
cotidianas. Nesse sentido, Petersen (1995a: 55), ao analisar trabalhos os quais incluem a
perspectiva do cotidiano, verifica que todos deixam claro, que a explicação do fenômeno que
estudam não pode fechar-se nesse, necessitando um ancoramento à uma globalidade da vida
social.
Toda essa construção das práticas cotidianas só se conforma dentro de um tempo, de
uma duração, onde fatos contínuos são transformados em descontínuos. Nesse processo o
tempo do mundo e o tempo subjetivo são comprimidos (Bachelard, 1988).
Esse cruzamento entre uma prática e uma duração acumulados, traz uma aproximação
com a noção de habitus de Pierre Bourdieu que faz referência a um corpo socializado, o qual
incorporou as estruturas do mundo ou de um setor particular desse mundo e que estrutura
tanto a percepção quanto a ação nesse mundo (Bourdieu 1996). Esse conceito traz a idéia da
prática como materialização do conhecimento, permeadas pelo universo simbólico dos
sujeitos (Sahlins, 1976), não esquecendo que se conforma dentro de um espaço social, onde o
sujeito ocupa determinadas posições em uma dada situação de oferta de bens e de práticas
possíveis (Bourdieu, 1996: 18).
Concebendo-se a localidade de Solidão e, mais especificamente, no Fundão, como o
repositório de práticas, vislumbra-se a organização do espaço no tempo. Na atividade
extrativista, o domínio de um ofício, o processo de domesticação do meio, a ação da cultura
sobre o mundo natural, e as formas de transmiti-las de modo a garantir a reprodução social do
grupo condensam-se num “saber-fazer” enquanto estratégia de agir no mundo e se perpetuar
(De Certeau, 1994). Nesse contexto, contribui a experiência. Walter Benjamin (1994: 198-
199), estabelecendo as conexões entre história e experiência, comenta: “a experiência que
passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorreram todos os narradores” e toma o camponês
sedentário como “o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que
conhece suas histórias e tradições”. Nesse mesmo texto, encontra-se uma citação
extremamente poética sobre a experiência, por certo elucidativa para os objetivos desse
trabalho: “A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles
definem uma prática” (idem: 220). Assim, Benjamin conjuga a memória, a narração e a
experiência.
89
Portanto, nesta incursão na comunidade, ao contato e no convívio, sobrevêm as
histórias, as narrativas, a memória e todo um “agenciamento de intrigas” (Ricoeur, 1994)
indissociavelmente colado a todo esse fazer, imerso nas práticas cotidianas. Nesse ponto faz-
se necessário assinalar ainda uma outra modalidade de esferas de abordagem, além do
individual e do social, a do o subjetivo. Essa se apresenta através da imagem, do lugar do
olhar e da ação de uma imaginação criadora (Bachelard, 1991); um imaginário que se dirige
para a imagem do mato, da casa, do selvagem, do domesticado, do belo e do feio,
conformando as paisagens (Schama, 1996, Simmel, 1996).
Bachelard (1991: 2-3) faz uma clara diferenciação entre a imagem percebida e a criada.
A primeira pertence a ordem da imaginação reprodutora, enquanto a segunda estaria ligada a
ordem da imaginação criadora. Na interação com os elementos da natureza, nas práticas
cotidianas que nos propomos a estudar, de imediato, temos a impressão de que se mobiliza a
primeira (a imaginação percebida). No entanto, o que Bachelard chama a atenção é para uma
necessária vigilância ao papel da imaginação criadora nesses processos. Na constituição da
duração, abre-se o espaço para o debate relacionado à imagem. Bachelard (idem: 3) coloca a
imagem como anterior à percepção e defende a sua primitividade. Assim, na narração, como
na realização de determinadas atividades, ou na ocupação dos espaços, é ressaltado o papel da
imagem e da solidariedade entre memória e imaginação. (Bachelard, 1988a).
Em linhas gerais, em todos os momentos manipula-se com as formas e seus conteúdos:
com o que cada situação está a nos informar sobre as pessoas, sobre o grupo e como também
eu, enquanto pesquisadora, estou colocada neste todo considerando as tensões advindas de
uma situação de ilegalidade da atividade. Nesse contato intersubjetivo, sobrevém Georg
Simmel a partir das noções de formas sociais e a sociação (Moraes Filho, 1983). Como uma
tentativa de sintetizar todas essas imagens e impressões levantadas, que foram aflorando nesse
processo etnográfico recorre-se a uma síntese, formal. Tal como numa escrita ideogramática,
e tal como nos ensina Bachelard a todo o momento, “coisas” concentram e são carregadas de
sentidos. Tentando desvendar os termos da tensão advinda de uma proibição da atividade,
procura-se nas relações pessoais e entre grupos os elementos para pensar esta situação de
conflito. Recorro assim à teoria do conflito, conforme Simmel (1983), onde se pode
vislumbrar no conflito não apenas a ruptura, mas a busca da reconciliação e de um horizonte
em comum.
Na constituição desse estudo e a constituição de um texto acadêmico, dá-se o
questionamento do papel do próprio pesquisador, envolto num círculo entre texto e contexto
(Geertz, 1989) e na reflexão diante de um direcionamento do olhar, entre olhar e registrar,
90
entre o que pode e o que não pode ser registrado. Enfim, uma antropologia da duração contida
no próprio processo do fazer antropológico.
Finalmente, no contexto apresentado, vislumbram-se resultados para além da realização
de um estudo acadêmico. O pano de fundo dessas pesquisas insere-se na problemática dos
coletores de samambaia, onde um grupo (ONG) propõe-se a fornecer subsídios para conduzir
adequadamente esta questão. Trata-se de um tema que tem se tornado bastante comum no que
se relaciona às questões preservacionistas. Apresenta-se a tentativa de sobrepor a categoria de
diversidade cultural ao de diversidade biológica – já defendida por Posey 1987, Toledo, 1986,
Diegues, 1997, Rocha, 2000, entre outros. Na realidade, é na intersecção entre estas formas de
abordagens que se configuram os caminhos para um desenvolvimento sustentável
39
, também
formulável numa perspectiva de etnodesenvolvimento (Stavenhagen, 1985). Desses encontros
conceituais temos a formulação recente da idéia de uma etnoconservação (Diegues, 2000).
Nessa situação reside a superação do texto-contexto de Geertz (1989), ou seja, a intenção de
que ao configurar um texto, tenhamos a possibilidade de que esse texto não seja apenas um
texto, mas que esta possa transcender essa à sociedade, contribuindo para a resolução de seus
impasses. Onde,
a tarefa da etnografia, ou uma delas em todo caso, é sem dúvida fornecer, como
fazem a história e as artes, narrativas e cenários para refocalizar a nossa atenção;
não, no entanto, os que nos tornam aceitáveis para nós mesmos pela representação
de outros reunidos dentro de mundos onde não queremos e não podemos chegar,
mas os que nos tornam visíveis para nós mesmos pela representação de nós e de
todos os demais postos no meio de um mundo cheio de estranhezas irremovíveis das
quais não podemos nos manter distantes.
(Geertz, 1999, p. 3)
Trata-se da presença de um sujeito que se propõe a uma incursão etnográfica,
articulando o vivido com a teoria antropológica, mas ao mesmo tempo faz parte desse
universo, um sujeito que se pensa, enquanto pesquisador e enquanto ativista, cujo perigo,
reside em refletir somente sobre a sua imagem e não a imagem pelo encontro com um outro.
Em meio a todas essas indagações essa tese foi concebida.
39
Essa noção aparece historicamente relacionada ao interesse deliberado com desenvolvimento social surgido
em meados do século passado. Trata-se de uma idéia de desenvolvimento pensado em termos econômicos e
principalmente no sentido de uma gradual emancipação por parte dos países em desenvolvimento dos
desenvolvidos. No entanto, surge também a noção de “desenvolvimento alternativo” referindo-se às tendências
de se colocar menos ênfase na produtividade econômica, se comparado com objetivos sociais e ambientais.
Embora definido de várias maneiras e rótulos o termo “sustentabilidade” acabou por se impor como uma síntese
para todas as tendências alternativas e o termo “desenvolvimento sustentável” começou a ser usado nos anos
1980 como um novo meio de expressar um interesse deliberado para a conservação da natureza (Grunewald,
2003, p. 49).
91
CAPITULO 3
Os Fundos da Solidão
a) Miniatura de um mapa
de Maquiné, de fonte
desconhecida b) fotografia
com a vista geral dos
Fundos da Solidão tirada
de um dos morros, c)
mapa em detalhe da área
dos Fundos da Solidão, d)
imagem de satélite do
município de Maquiné,
com indicação da área dos
Fundos da Solidão.
d
c
b
Fundos da Solidão, Maquiné, RS
92
3.1. “Estar lá”
Os Fundos da Solidão representa um dos muitos núcleos habitados dos inúmeros vales
que constituem o município de Maquiné. Nessa localidade moram famílias que se dedicam à
atividade extrativista. De modo a compreender essa atividade em seu contexto social, busca-
se neste capítulo elucidar a dinâmica social desse grupo, suas representações e identidade
social.
Como principal via de acesso a essa localidade tem-se uma precária estrada, cheia de
buracos e pedras soltas que permite o fluxo entre a cidade de Maquiné e essa localidade. Esse
fluxo é representado pelo esparso movimento de caminhões, carros, carroças, ciclistas ou
motos que, ao passarem, obrigam os poucos caminhantes a mergulharem numa bruma de
poeira (ou a protegerem-se dos respingos d’água, conforme as condições climáticas),
conferindo ao lugar uma certa idéia de tranqüilidade interiorana. Essa impressão é reforçada
pela paisagem composta de lavouras de verduras ao longo da estrada, algumas casas e morros
verdes ao fundo.
A proximidade aos morros aumenta a medida que se vai adentrando em direção aos
Fundos, a ponto de, ali chegando, visualizar-se quase que exclusivamente morros, impondo-se
aos olhos e, secundariamente, esparsas casas e manchas de roças. Sobrevém, com isso uma
certa idéia de isolamento em relação a grandes centros urbanos, motivado por fatores
geográficos.
Esse fluxo entre Maquiné e Fundos da Solidão, em geral, é motivado pela necessidade
de comprar os principais gêneros alimentícios, pelo escoamento da samambaia, pelo acesso à
educação, pela busca de serviços de atenção primária à saúde e pela participação nos eventos
sociais como missas e bailes. Isso denota, em grande medida, que apesar da impressão de um
isolamento geográfico e social, trata-se de um grupo inserido num contexto de
municipalidade, com claros laços de dependência de agentes externos à localidade e, apesar
de profundamente ligados a um lugar, são lançados às determinações e às adversidades de um
contexto político e social regional e nacional mais amplo. Essa situação traz-nos os termos de
grupos considerados como “part society”, proposta por Alfred Kroeber (1948), ou seja,
segmentos de uma classe de população maior, ocupando posições subordinadas. Dentro dessa
noção e influenciado pelas idéias veiculadas por pesquisadores da escola de Chicago sobre a
relação entre cidade e campo Robert Redfield (1960) e, mais tarde, Eric Wolf (1976), tece a
formulação do campesinato como um grupo em um “estágio intermediário” entre o primitivo
e o moderno. Isso válido para demonstrar o teor da relação da dependência de esferas mais
amplas e da dificuldade de colocar o campesinato como uma categoria cultural distinta.
93
Esse dado torna oportuna a observação colocada por Luis Fernando Dias Duarte
(1999) em sua introdução à pesquisa etnográfica sobre os pescadores de Jurujuba no Rio de
Janeiro. Esse tece um comentário sobre a especificidade do grupo que estava a trabalhar.
Comenta que, se até há pouco tempo, a antropologia se empenhava em demonstrar que o
“outro” era também o “mesmo”, combatendo o etnocentrismo em relação aos povos
primitivos ou selvagens, nos casos recentes,
“impõe-se justamente o inverso: a de que esses “mesmos” (que afiguram
apenas como uma versão diluída do “nós” nas noções de “povo” e “massa”)
são também os “outros”, na afirmativa da especificidade de sua vivência
enquanto produtores, em face da dominação que os reduz.” (Dias Duarte,
1999, p. 14).
É exatamente nesse jogo de dependência de esferas mais amplas da qual todos
fazemos parte, sobreposto a determinados pertencimentos locais, regidos pelas relações
sociais e de vivência cotidiana com um determinado espaço, que é possível conferir um
sentido de comunidade, compartilhando valores e projetos comuns. Os sentidos desse
pertencimento manifestam-se sob diversas formas. Essas podem ser visualizadas através das
relações familiares, da relação com a terra e com o trabalho, descritos neste capítulo.
3.2. As famílias e a distribuição espacial
Nas áreas planas e nos primeiros patamares das encostas dos morros, encontram-se as
casas dos moradores de Fundos da Solidão. Afora o núcleo principal, representado por um
aglomerado maior de moradias, as demais casas, estão distribuídas ao longo da estrada
principal, conforme a delimitação dos lotes de terras, geralmente em faixas que vão da estrada
até topo do morro, caracterizando a estruturação fundiária da região. Esses lotes, inicialmente
retangulares, ao longo de tempo foram recortados e desmembrados, fundamentado em
sucessivos acertos entre proprietários, de modo que, muitas vezes, para alguém que chega ao
local, é difícil entender os limites das propriedades. Tais limites, entre os moradores locais são
rigorosamente respeitados. Invadir terra alheia ou mesmo obtê-la legalmente através de
dispositivos jurídicos, como o usucapião, são considerados formas ilegítimas de aquisição de
terras.
Tomando a atual distribuição das casas em sua configuração espacial, sobreposta à
genealogia familiar, construída a partir das entrevistas com os moradores dos Fundos da
Solidão, visualiza-se um padrão de distribuição das casas, conforme unidades de famílias
94
extensas, centradas em torno da casa do membro mais velho que, geralmente é o proprietário
das terras (figura 9).
52
3
4
5
6
7
8
13
14
15
22 2
3
3
16
17
18
20
21
2
6
2
7
2
8
2
8
30
3
1
3
2
33
3
4
35
36
37
38
39
41
40
41
1
2
24 2
5
19
42 4
3
4
5
4
6
4
7
4
8
4
9
50
5
1
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
66
67
68
69
70
71
72
74
75
76
73
77
78
79
80
9
12
10
11
GENEALOGIA DOS MORADORES DOS FUNDOS DA SOLIDÃO
Gerações
G1
G2
G3
G4
1) Rafinha
2) Seu Reduzino
3) Pai de Margarida
4) Mãe de Margarida
5) Antero (ex-marido de d.
Otília)
6) Dona Otília
7) Seu Virgílio
8) Ex-esposa de seu Virgílio
9) Seu Juca
10) Seu Lidorino
11) Dona Maria
12) Ex-marido d. Eurides
13) Dona Eurides
14) Seu Ervino
15) Ex-esposa de seu Ervino
16) Ex-marido de dona Lina
17) Dona Lina
18) Seu Olímpio
19) Ex-esposa de seu Olimpio
20) Manoel Almeida Marques
(Maneca)
21) Dona Henriqueta
22) Seu Renato
23) Maria
24) Margarida
25) Lourdes
26) Marino
27) Dila
28) Mariano
29) Avelino
30) Dico (seu Valdir)
31) Araci
32) Mariante
33) Dete
34) Avelino
35) André
36) Ivone
37) Ex- marido de Ivone
38) Simone
39) Eni
40) Pedrinho
41) Fernanda
42) Flávia
43) Marta
44) Lidorino
45) ???
46) Mário
47) Nelson
48) Gisa
49) Sirlei
50) Amândio
51) Doca
52) Esposa do Doca
53) Fabiano
54) Lisiani
55) Gabriel
56) Valmir
57) Ana
58) David
59) Daiane
60) Daniel
61) Mauro
62) Dedete
63) Rose
64) Jeferson
65) Larissa
66) Nico
67)
Jucemar
68) Lisete
69) Maria
70) Cristiano
71) Luís Davi
72) Luan
73) Vanessa
74) Sílvia
75) Diego
76) Leandro
77) Sidnei
78) CamilaSidnei
79) Carlinhos
80) Fernando
LEGENDA
Sexo feminino
Sexo masculino
Não morador do local
Falecido
Separação
Presença de outros membros
não indicados
Figura 15 – Genealogia dos moradores de Fundos da Solidão, com desenho esquemático da
distribuição das casas. As cores e números indicam a casa dos progenitores com delimitação da
família extensa.
17
22
6
10
13
18
9
1
2
21
Estrada
Casa do progenitor
Casa das demais
famílias
Le
g
enda
Família extensa
95
De modo resumido, tem-se a seguinte composição dos moradores de Fundos da
Solidão, que representam, as pessoas que através de relatos, das narrativas e a da convivência,
permitiram-me construir o quadro analítico dos Fundos da Solidão e da atividade extrativista.
N* G1 - Geração
mais antiga
Estado civil G2 - Filhos
(cônjuge)
G3 - Netos Observações
10 Seu Lidorino e
Dona Maria
Casados
André (Ivone)
Luan, Cristiano,
Maria, Luis Davi,
Gabriel
Lino (Lurdes)
Daiane, Deivid,
Daniel
2 Seu Reduzino
Separado
6 Dona Otilia e
Seu Virgilio
União estável
(ambos eram
viúvos)
Avelino
Mauro
Valdir
(Margarida)
Valmir e Ana
Mariano (Dete)
Mariante (Dila)
Jucemar e Lisete
Araci
Dedete, Rose, Nico
(Simone)
Nico e Simone tem
quatro filhos
17 Dona Lina
Viúva
Lidorino (Marta)
Silvia e Diego Dona Lina tem outro
filho que
freqüentemente
encontra-se nos
Fundos
18 Seu Olimpio
Viúvo
Giza
Seu Olimpio também
tem outros filhos que
freqüentemente
encontram-se nos
Fundos
13 Dona Eurides e
Seu Ervino
União estável (D.
Eurides era
viúva)
Eni (Pedrinho),
Flavia, Fernanda
21 Dona
Henriqueta
Viúva
Seu Amandio,
Sueli (Marino)
Leandro, Sidnei
Arlindo
(Terezinha)
1 Rafinha
Separada Rafinha mora com
Lisiane, Nei e Miriam
9 Seu Juca
Casado Embora seu Juca seja
casado com Araci,
prefere morar sozinho
22 Seu Renato e
Maria
Casados
Fabiano, Gabriel
Não moram nos
limites dos Fundos da
Solidão
(*) Numeração referente a indicada na genealogia
Quadro 9 – Moradores dos Fundos da Solidão no período de realização do trabalho de campo
entre 2000 e 2005.
O padrão de distribuição das casas, em parte reflete a presença de um senso prático ou
uma estratégia em acomodar, dentro da terra disponível, a parentela (correspondente aos
parentes e aliados). Porém, isso tem conseqüências bem mais profundas na construção das
96
redes de relações e produção. Confere um panorama bastante complexo por trás de um
padrão, à princípio, movido por uma razão prática.
Além dessas famílias, ao longo do trabalho, foram consideradas algumas unidades
domésticas que não se localizam nos Fundos, mas que têm relações com os moradores locais,
por serem parentes ou amigos. Como nos caos do caso do casal Romarise e Roberto que,
anteriormente, moravam em Solidão e, atualmente, vivem em Maquiné, e como algumas
famílias da localidade de Espraiado, cujas relações com os moradores dos Fundos ocorrem
por terem sido “puxadores” ou participarem do grupo de artesanato, como é o caso do casal
Regina e Milton, ou o de Chico, que é o transportador da samambaia.
3.3. As terras e a tradição sucessória
A genealogia anteriormente colocada resume, em grande medida, as afirmações
correntes localmente, onde se diz que “aqui nos Fundos todo mundo é parente”. Em realidade,
não se trata de parentesco circunscrito somente aos dados de consangüinidade (em sentido
biológico), mas trata-se de parentela em seu sentido amplo onde, ao longo de tempo e de
convívio, alianças vão sendo estabelecidas e as pessoas passam a serem incluídas dentro de
uma ampla noção de grande família
40
. Mesmo o casal seu Renato e Maria que não moram no
principal núcleo dos Fundos e, na genealogia, não apresentam nenhuma ligação de parentesco,
afirmam que, por linhas distantes, são primos de Lidorino e Marta.
Rafinha, a princípio, na perspectiva de parentesco apresenta-se como um ego distinto
mas, recentemente, foi convidada para ser madrinha de crisma de Ana, filha do casal Valdir e
Margarida. Dessa forma, passou a ser considerada comadre por esses últimos. Isso reforça a
idéia de uma certa unidade e um sentimento de pertença que os caracteriza como um grupo ou
uma grande família simbólica, justificando expressões como “nós aqui dos Fundos”, “a gente,
do Fundão”.
No entanto, analisando com ênfase à distribuição espacial, sugere-se que, apesar de
todos serem “parentes”, há uma segmentação que caracteriza uma organização social, baseada
nos laços familiares, que adquire diferentes formas de associações entre pessoas e entre
grupos a qual se altera com o tempo. Isso incorre em deduzir que a segmentação, conforme a
distribuição espacial das casas, relaciona-se a determinadas regras que regem os
40
Conforme crítica a uma visão genealógica e reificada de parentesco defendida em Schneider, D. A critique of
the study of kinship. Ann Harbor: Univ. of Michigan, 1992. p. 187-201) e já amplamente debatida dentro da
antropologia.
97
pertencimentos localmente acionados. Assim, pode-se considerar a atual distribuição de terras
como o resultado de tradições sucessórias e que refletem, em sua economia moral, um
“conjunto de normas e obrigações recíprocas, idéias de justiça e bem-estar social, enfim uma
ética a orientar a conduta dos indivíduos de comunidades relativamente pequenas e
integradas” (Godoi, 1999, p. 50), ou seja, os valores subjacentes a esse grupo.
Através de uma genealogia específica, pode-se sugerir processos de segmentação
familiar, ao longo do tempo, baseados nos sentidos de uma economia moral, relacionados à
sucessão da propriedade, valores estes ligados à terra e à família. Essa genealogia foi
construída, baseada nas pesquisas pessoais de Zeneida, neta de Dona Henriqueta, que mora no
município vizinho de Osório. Zeneida se diz fascinada por esse tipo de pesquisa e de suas
origens, razão pela qual, até hoje, junta dados históricos, documentos e imagens que digam
respeito a sua família. Nesse esforço que remete à família, não podemos deixar de entrever a
importância que a categoria sangue (tal como proposto em Abreu Filho, 1982) apresenta-se
como nutridora desse pertencimento. Essa categoria circunscreve uma percepção de
parentesco, marcada por uma ênfase na consanguinidade, não somente como uma ordem da
natureza, mas como articulação dessa com a da cultura.
“O sangue é pensado como substância transmissora de qualidades físicas,
morais, formando o corpo e o caráter. Assim, se através do sangue
qualidades morais são transmitidas e perpetuadas e se ele dá conta da
construção do corpo e seus instintos, o indivíduo – agente empírico – é
representado, não como uma individualidade indivisível, mas como parte de
uma totalidade que o transcende e contrói. (Abreu Filho, 1980, p. 98)
Assim, ao afirmar que “a gente tem o mesmo sangue”, Zeneida conecta um dado
pensado como da natureza, como operador de relações de identidade, estabelecedor de
diferenças e hierarquias.
A partir de suas pesquisas, Zeneida montou o seguinte mapa genealógico, transcrito a
partir de suas anotações (Fig. 10). Através dessa genealogia, encontramos um tronco comum
entre as famílias de seu Lidorino e dona Henriqueta; circunscrição essa que, embora seja
reconhecida, não se apresenta como conformadora de uma inclusão nos termos das tradições
sucessórias, ou seja, são considerados, neste contexto, constituintes de dois segmentos
diferenciados: de seu Lidorino e dona Henriqueta.
Manoel Laurindo Marques (tataravô)
Vergílio Almeida Marques
Aschinino Almeida Marques
(bisavô)
Crescêncio Almeida Marques + Enedina
Norberto
Augusta
Zuleta
Marieta
Antonio
Lindolfo
Manoel (Maneca) +
Henriqueta
Armândio
Afonso + Neusa
Antonio + Terezinha
Arlindo + Terezinha
Inês + André
Norma + Vilmar
Sueli + Marino
Américo + Vilma
Zélia + Cláudio
Zeneida + João
Zenilda + Jonas
Lidorino Pacheco dos Reis + Maria
Figura 10 – Genealogia familiar montada por Zeneida Gonçalves (em negrito, os moradores fixos ou ocasionais do Fundo da Solidão
em 2004, referidos no texto)
99
Seu Lidorino é casado com dona Maria. O casal tem cinco filhos. Dois moram nos
Fundos da Solidão: Avelino (ou Lino) e André. Avelino é casado com Lurdes (que é irmã de
Margarida, prima de Dila e Dete, sobrinha de seu Virgílio) e têm três filhos. André, o outro
filho, é casado com Ivone (irmã de Simone, filha de dona Eurides) e têm cinco filhos.
Já a “falecida dona Henriqueta”, à época da realização deste trabalho, era viúva, mãe
de oito filhos e até seu falecimento em 2003, dividia a casa com seu filho Armândio, que
nunca casou. Na casa ao lado, mora sua filha Sueli e seu marido Marino, com os dois filhos.
Há uma outra casa em frente a casa de Dona Henriqueta, que pertence a Arlindo casado com
Terezinha e que tem esta casa como uma casa de campo, uma vez que moram em Campo
Bom. Com o falecimento de dona Henriqueta, ao longo da realização desse trabalho, suas
terras foram divididas. Armândio ficou com a casa de dona Henriqueta; Sueli (e Marino) e
Arlindo (e Terezinha) continuaram com suas casas. E ainda uma outra filha, Inês, e seu
marido André (que moram em Maquiné) construíram uma casa nas imediações em função de
terem recebido por herança o terreno e que, como Arlindo, visitam aos fins-de-semana.
Cabe ressaltar que quando comecei a minha incursão aos Fundos da Solidão morava,
nas adjacências, dona Marieta que, pela genealogia, é uma das filhas de Aschinino Almeida
Marques, portanto também herdeira das terras. Essa era considerada por todos como “não
muito certa da cabeça”. Posteriormente, foi levada por Arlindo para Campo Bom, sendo esse,
o responsável por seus cuidados. Como colocou seu Amândio “lá está sendo bem cuidada,
pois o Doca (seu Arlindo) tem empregada e tudo e faz tudo por ela”.
Recentemente, Vilma, viúva de um dos filhos de dona Henriqueta e que, além de
receber as terras correspondentes à herança de seu falecido marido (um dos filhos de dona
Henriqueta), havia comprado as terras dos herdeiros de seu Crescêncio, construiu uma casa
tendo intenções de vir morar na localidade. Esse fato que gerou um conflito familiar, visto que
nem todos consideravam legítimo o direito de Vilma a essa herança. Também Zeneida, sua
filha, tem planos de posteriormente vir morar nos Fundos com sua mãe.
Baseada nessa genealogia e nos processos de sucessão das terras, depreende-se uma
tradição de partilha igualitária das terras ao longo das gerações e, nesse processo, ao longo
dessas quatro gerações, inicialmente a terra que pertencia a dois irmãos foi sendo
desmembrada. No entanto, a forma como foram sendo efetuadas as divisões mostra que não
se trata de apenas dividir a propriedade a cada geração entre todos os herdeiros. Não é
necessário uma contabilidade complexa para concluir que um número tão grande de pessoas
vivendo e obtendo sua sobrevivência em áreas de, no máximo, 22 hectares, como é o caso
destas propriedades é insustentável. Porém, como estabelecer quem fica e quem sai? A
100
literatura concernente a tais deslocamentos coloca que a migração, nesses casos, tem um
caráter claro: “garantir a reprodução da unidade, mantendo um vínculo estável com a terra”
(Godoi, 1999: p. 70), mas, também é verdade que “onde há herdeiros, há deserdados”
(ibidem, p. 70). Um fator importante para essas escolhas, relaciona-se ao gênero. No entanto,
deve-se atentar para outros elementos de ordem afetiva e circunstancial.
De uma forma geral, permaneceram os filhos homens, com a ressalva de que tiveram o
direito à terra assegurado, somente aquele que nela permaneceu ou que dela tomou posse, seja
na forma de uso, através do plantio de algum cultivar ou na forma de construção de alguma
benfeitoria. Essa situação se confirma em outros relatos na bibliografia referente à lógica
camponesa da posse de terra relacionado ao trabalho sobre essa mesma terra (Musumeci,
1988, Woortmann e Woortmann, 1997, Gehlen, 1998, Godoi, 1999).
Entre todas as situações permanece a leitura da existência de um senso prático e um
habitus que conforma um modo de produção em torno da família, onde se efetua um balanço
entre a produção e consumidores. Nesse sentido, a quantidade de terra disponível é um dado
fundamental para a reprodução social desse grupo e a percepção da terra enquanto um valor
moral, ligado à tradição familiar, não somente como um bem em seu valor monetário. Mesmo
em situações onde a terra era vendida, o que se observa é que foi efetuada entre membros do
mesmo tronco familiar, como no caso de Vilma que adquiriu as terras dos herdeiros de
Crescêncio. A terra não é apenas o lugar para o trabalho, mas o resultado de um trabalho
familiar. Essa não é apenas uma propriedade, mas o patrimônio de uma família, portanto,
ligado a noção de transmissão de uma herança pelo valor sangue (conforme Abreu Filho,
1982), o que se torna um parâmetro não somente para o estabelecimento de pertencimentos,
mas também de hierarquias (Dumont, 1992 e Duarte, 1988)
41
.
Por outro lado, baseado no exemplo de dona Marieta, estigmatizada como doente
mental, em parte decorrente da imagem de mulher solteirona que não conseguiu casar, o
direito à terra incorre também assumir ônus afetivo e moral dos cuidados com algum membro
da família. Nesse caso, pelo fato de Arlindo assumir dona Marieta sob seus os cuidados, esse
tem o direito a sua herança, uma vez que dona Marieta não tem herdeiros. A herança é
pensada como uma retribuição aos anos de cuidados, afetos e gastos desse para com sua tia.
Nesse caso, “funde-se num padrão de reciprocidade a relação dos homens entre si com aquela
entre homens e as coisas”. (Woortmann, 1995, p. 195)
41
Segundo estes autores a relação hierárquica pressupõe a dimensão de valor como lógica estabelecedora de
distinções, ao mesmo tempo que situa o indivíduo relacionalmente
101
O direito pleno à terra está associado ao trabalho, ao cuidado com a terra e a um modo
de vida associado à atividade ligada à terra como, posteriormente, será caracterizado em
detalhes. No entanto, o direito à terra pelo trabalho ou construção de benfeitorias não incorre
em desrespeitar os limites da propriedade de patrimônio alheio; não se trata de ocupar
qualquer terra que não esteja em uso ou desocupada. Nesse sentido, compreende-se a
condenação a atitudes como de Edi, ex-marido de Rafinha que está requerendo usucapião das
terras onde atualmente vive, bem como o fato de existirem determinados lotes de terras não
ocupados que, sequer se conhece o proprietário, não terem sido invadidos ou anexados ao
patrimônio de algum morador local.
Além disso, nos desdobramentos recentes que se observa baseado na genealogia de
Zeneida, principalmente relacionado às gerações recentes, observa-se que a terra é
considerada não apenas em sua ótica de reprodução social do grupo familiar, mas também
relacionada ao lazer. Nesse sentido, permanece a idéia da manutenção do patrimônio familiar,
não mais somente para o aprovisionamento, no sentido da subsistência do grupo familiar, mas
em sua acepção simbólica e afetiva. Arlindo, Inês e Vilma que constituíram toda uma
trajetória urbana na busca por melhores condições de vida e mantêm suas propriedades nos
Fundos. Seja porque sempre mantiveram esse referencial familiar do “ethos” local, seja
porque no encontro com o universo urbano, sobrevém um ideário de valorização da natureza e
da tradição, as gerações recentes buscam um retorno aos Fundos e vêem nesse retorno, uma
forma de cultuar uma tradição familiar, ligada às suas reminiscências de infância e à
preservação de um valor ligado à família. Esse sentido familiar remete a um parentesco, mas
tem sua atualização enquanto valor afetivo e cultural.
É nesse contexto que se fazem perceber possibilidades de mudanças de atitudes. Por
exemplo, Zeneida conta que sua mãe faz coleta seletiva de lixo e todo o lixo orgânico é
destinado à compostagem. Todo o lixo que enxerga nos arredores, gradativamente vai
recolhendo, ao contrário da prática local, onde o normalmente é jogado no arroio ou no mato.
Também Inês, em sua fala, ressalta a importância de “preservar as águas e o verde desse
lugar”, destacando os valores estéticos contidos numa natureza “preservada”.
A essa noção de propriedade envolta em valores familiares e na necessidade de mantê-
la, é necessário reconhecer que, se por um lado somos levados a interpretar esses fatos como
regidos por uma certa economia moral, não significa que, com isso, também não esteja
implícita uma certa idéia de monetarização, observável nos desdobramentos da partilha,
reconhecidamente processada sob conflitos e disputas. Isso implica em reconhecer que na
idéia de um patrimônio familiar comum, vão se infiltrando valores como o direito à
102
propriedade nos termos jurídicos (a titulação privada da terra), onde começa-se a atentar para
a preocupação com o registro da partilha do imóvel. Observam-se, pequenos detalhes como a
construção de cercas que delimitam as propriedades dos herdeiros, antes visto como uma
propriedade comum.
Por outro lado, essa noção de propriedade, envolta em alguns valores relacionados ao
trabalho e à família, em parte, explica a grande dificuldade de compreender noções como
Reserva da Biosfera ou a proibição ao livre usufruto das terras, sobretudo o impedimento a
uma forma de intervenção tradicional, ligada não somente com uma razão instrumental, mas
também simbólica, no sentido de constituírem um patrimônio familiar onde não se separa um
modo de “ser” e “ter” da própria noção de terra.
3.4. Os moradores dos Fundos da Solidão e a descrição das unidades domésticas.
Nas primeiras entrevistas com seu Olímpio, aposentado, morador dos Fundos da
Solidão, tentando desvendar um pouco das identidades locais e sabendo que se tratava de uma
região de colonização italiana, acrescido a uma aparência que poderia estar denotando tal
origem, perguntou-se em relação aos seus antepassados “O senhor não lembra se eles vieram
da Itália?” Imediata e categoricamente, ele respondeu: “Não. Era tudo daqui.” Num outro
momento da entrevista, questionou-se: “O Sr. se lembra dos seus pais, dos seus avós ?”, esse
responde: “Essa parte eu me lembro. Nós fomos criados tudo aqui dentro de Maquiné. Quer
dizer que aqui pertence para Maquiné mesmo. Nós fomos criados aqui na Solidão. Nós se
criamos tudo em casa com o falecido meu pai e a falecida minha mãe”.
A essa abordagem inicial, o tema progressivamente, abarcava a relação com o
trabalho: “Todo mundo na roça. Todos eles. Meus irmãos nunca saíram para trabalhar para
fora. Tudo junto em casa.” Declara seu Olímpio, de forma austera, como indicando as pistas
para o caminho reto, correto, honrado.
Na verdade, o meu interesse e a forma de abordagem giravam sempre em torno da
atividade produtiva ligada à samambaia, o que, por si só, poderia, mesmo tentando falar de
família, estar orientando o assunto para a produção e para o trabalho; mas igualmente
perpassa a essa comunidade a íntima ligação entre o sentimento de identidade local, o valor
do trabalho e a família.
As declarações de seu Olimpio como “Ali em casa foi assim: nós trabalhemos tudo
para o monte da casa, não tinha separação, hoje já tem separação, mas de primeiramente não
tinha. Então se eu tinha dinheiro, meus irmãos tinham”, evidenciam uma solidariedade que
103
remete à família e a um contexto de representação das condições de produção e reprodução
social que regem um sistema de valores centrado na família, norteado pelo trabalho e
propriedade comum, envolto em uma vida austera e regrada. Fazendo alusão ao modo de
produção doméstico, característico do campesinato, nos termos dos seus primeiros
teorizadores, como Chayanov (Woortmann, 2001). Para esse autor, duas questões eram
básicas: a indistinção entre unidade de produção e unidade de consumo e a ausência de
salários. A partir desses elementos, postula toda uma racionalização do ponto de vista
econômico que singulariza o camponês e seu modo de produção num constante balanço entre
produção (fundamentado na mão de obra familiar) e consumo (relativo ao número de pessoas
que vive desta produção familiar).
Como modelo, Chayanov permite, a partir do funcionamento das unidades domésticas
em um viés econômico, estabelecer as bases para uma categoria social de camponês. No
entanto, as trajetórias individuais demonstram como cada família apresenta estratégias
próprias, sobressaindo a presença do indivíduo e o conflito com a hierarquia familiar. Relatos
de filhas que saíram brigadas de casa, nunca mais se soube delas e que nem o nome se
pronuncia, exemplificam esses conflitos e justificam as palavras de seu Olímpio, que constata
que mudanças vêm ocorrendo. Nos termos dos registros operados nos Fundos da Solidão,
importa olharmos para este dado: dos conflitos e os dilemas os quais sempre se fizeram
presentes e agora se convertem em sinais de mudança na própria estrutura familiar. Partindo
do pressuposto que, da mesma forma que as genealogias, os modelos teóricos são apenas
mapas que conduzem a uma percepção geométrica e estruturada da unidade doméstica, mais
do que os caminhos "formais" dos mapas, importam os caminhos efetivamente percorridos
pelos sujeitos das relações de parentesco. Propõe-se centrar a atenção nas relações familiares
em sua prática, ou seja, nos caminhos cultivados.
Na própria configuração exposta até o momento, a sobreposição da unidade doméstica
entre unidade residencial e de produção permeada pela posse da terra, incorre em uma tensão
entre a lealdade a família, em seu sentido extenso, contraposta à nuclear.
Dessa forma, aos questionamentos sobre família, a tendência é referenciar a família
nuclear ou conjugal, – o casal, com filhos ou não, ou então, os solteirões ou os “sozinhos” que
no momento encontram-se separados - residentes num espaço delimitado pelo local de
moradia. Esses, com sua própria roça (embora a maioria não seja proprietária deste espaço) e
um conjunto de atividades para a manutenção deste grupamento. Nesse sentido, fundamental
é a casa, a presença de um provedor, a complementaridade hierárquica entre gêneros e a terra
com seu valor de uso.
104
No entanto, considerando as relações sociais de ajuda mútua e a titularidade dos lotes
de terras, verifica-se a família extensa como delimitador dos grupamentos familiares. No caso,
a referência é o progenitor(a) da linhagem (o proprietário das terras). Isso incorre em
considerar a terra em seu valor de direito e a complementariedade hierárquica entre gerações.
De uma forma geral, os laços centram-se na geração mais antiga. A própria observação da
distribuição das casas (Figura 9) parece demonstrar um princípio centrípeto, cujo centro
encontra-se na casa paterna ou materna, a partir da qual “emana” uma força atrativa,
relacionada aos laços que ligam pai, mãe e filhos. Estabelece-se com isso, uma dinâmica não
só de distribuição das casas e uso da terra, mas uma interação muito própria entre seus
moradores. Declarações como de dona Otília e seu Virgilio, ilustram um pouco dessa
situação.
- A senhora visita todos os seus filhos?
Seu Virgílio: Ela visita de casa em casa.
Dona Otília: Eu passo tudo aí.
- Todo dia?
Dona Otília: Todo dia. Quando eu vou na casa dum o outro [reclama]...
Seu Virgílio: Quando ela não vai, eles vêm.
Ou então, dona Maria, falando que andava muito “estressada”, comentou, “sabe como
é que é, a gente fica fazendo o serviço de casa, mas está sempre com os ouvidos atentos, ouve
um grito dos netos, dá uma espiadinha”. Isso expõe uma organização espacial das casas em
que, das casas dos pais, é possível visualizar a dos demais filhos. Assim, entre as casas de
pais, filhos e netos, há um fluxo de relações de auto-ajuda e auto-vigilância.
Depreende-se, desse contexto mais amplo que, embora encontremos como modelo a
família nuclear, nos contextos produtivos e sociais, a parentela e a família extensa são os
delimitadores dos grupamentos familiares (por exemplo, a família de dona Henriqueta,
anteriormente analisada a partir da genealogia de Zeneida).
Quando se questiona quantas famílias vivem nos Fundos da Solidão, as respostas
referem-se ao primeiro ponto de vista, ou seja, contabilizam-se vinte os quais, tomados dentro
da delimitação de famílias extensas, transformam-se em oito núcleos familiares. Esses
correspondem a distribuição espacial mostrada na figura 9 e ao fato de que apenas a metade
das famílias entrevistadas afirmam ser dona das terras onde vive (lembrando que em algumas
propriedades, já foi efetuada a repartição da herança).
Em relação à terra, a maioria dessas famílias detêm apenas o direito de posse de suas
propriedades. Essa situação, até recentemente, dificultava a utilização dessas áreas pelos
agricultores locais, pois, segundo o Código Florestal do Rio Grande do Sul, a solicitação de
105
licença oficial para proceder ao manejo da vegetação pioneira, característica da região
(capoeiras em diversos estágios de regeneração), somente pode ser encaminhada para áreas
com registro legal em cartório. Quanto à extensão, são todas pequenas propriedades de, no
máximo, 22 hectares, sendo que a metade não atinge dez hectares. Geralmente a superfície
agrícola útil é pequena, com pouca área plana e inclinação suave (correspondendo à planície e
escarpa 1, no esquema apresentado na figura 6, no capítulo 1), o restante formado por
encostas, onde o manejo e uso tornam-se difíceis.
A extensão dos lotes de terra são fatores importantes de serem considerados, pois o
que se verifica é que, de geração em geração, os filhos vão casando e construindo suas casas
perto dos seus pais. Casamentos consangüíneos, como dos gêmeos Mariano e Mariante que
são casados com as irmãs Dila e Dete, são comuns. Também seu Olímpio e seu irmão
casaram com duas irmãs e, diante do meu estranhamento com esse fato, afirma que era “coisa
muito comum”. Parece, com isso haver uma lógica de manutenção da propriedade e da
família. No entanto, os relatos colocam a falta de opção, ocasionado pelo relativo isolamento
geográfico e pela restrita rede de sociabilidade. Alguns casamentos são por “fuga” tanto que,
para referirem-se a alguns casamentos, ouve-se o termo “eles fugiram”. Outros trabalhos
sobre campesinato já registraram essa situação (Woortmann e Woortmann, 1983). Uma das
explicações para isso relaciona-se às condições financeiras, pois a fuga é uma forma das
famílias não precisarem oferecer uma festa de casamento. Isso expõe a regra local, onde a
família da noiva seria a responsável por oferecer a festa e poder oferecer uma grande festa no
casamento da filha apresenta-se como motivo de distinção. Contudo, dado às condições
econômicas, há todo um sistema social para “burlar” essas obrigações, sem expor a família da
noiva.
Geralmente, quem permanece nas terras são os filhos homens, vindo a esposa integrar-
se à família desse. A saída das filhas está associada não somente ao casamento mas,
observam-se, em muitos casos, que essas saem para empregarem-se na casa de parentes ou
conhecidos, realizando algum trabalho doméstico, posteriormente vindo a se casarem.
Há dois casos onde os maridos moram nas terras do núcleo familiar da esposa. Ao
relato desses dois caos, acrescenta-se uma justificativa lógica, o que confirma uma tendência a
um padrão residencial virilocal. Em um dos casos, de Pedro e Eni, sua mãe, dona Eurides, tem
apenas um filho homem (que mora na cidade) e várias filhas mulheres, o que justifica a opção
de morarem nas terras da mãe. No outro caso, de Sueli e Marino, parece que uma das razões
de estarem morando perto da mãe de Sueli, Dona Henriqueta (que veio a falecer no intervalo
de realização da pesquisa), seria o fato de poderem assisti-la, tanto no que concerne aos
106
cuidados com a saúde,como no auxílio aos afazeres domésticos. Além disso, na propriedade
de dona Otília (mãe de Marino), já se concentra um grande número de famílias e casas, o que,
talvez tivesse influenciado para essa decisão.
Ainda um há caso diferenciado dos demais, o de seu Juca que, apesar de ter relações
maritais com Araci, mora numa casa “no mato”. Esse é um local bastante isolado onde
moravam seus familiares. Esporadicamente “desce” de sua casa para visitar a família. As
razões dessa situação podem estar relacionadas à disposição individual a um certo isolamento,
até a questões estruturais, decorrentes das relações sociais, visto que a família de seu Juca não
era da localidade.
3.5. As relações entre gêneros
Um dos eixos fundamentais da organização familiar encontra-se na relação entre
marido e mulher. Esse tema, aos olhares exógenos de alguém que está se inserindo a
comunidade, tende a ser tratado numa perspectiva polarizada entre os gêneros. Porém sua
abordagem, ao mesmo tempo em que fornece as regras de um grupo regido por hierarquias,
tangencia a problemática ampla da relação do indivíduo perante a sociedade, própria da
discussão da modernidade, onde o sujeito começa a se conceber enquanto indivíduo, dando
margem aos conflitos em relação às regras do grupo.
A representação dos papéis sociais de cada gênero apresentam-se claramente
delimitados e que em sua complementaridade permitem a manutenção da família. Assim, de
uma forma geral, à mulher cabe a educação dos filhos, a manutenção e o ordenamento da casa
e dos arredores, enquanto ao homem cabe encarregar-se de todas as tarefas para a provisão
dessa família, propiciar os bens materiais, encarregando-se das atividades produtivas.
Revelam uma estrutura baseada na divisão sexual do trabalho entre as esferas pública e
privada atribuída segundo o gênero. Tal disposição permite a visualização de cenas onde o
homem (marido ou filho) chega em casa, suado e sujo, uma vez que estava na roça. Lava-se e
vai sentar-se à mesa, esperando que a mulher (esposa ou filha), sirva a comida recém retirada
do fogo. Esse é o modelo de uma família bem constituída. A esse conjunto de tarefas,
correspondem valores morais ou comportamentos, que correspondem à configuração do
homem, como o responsável pela casa, o seu chefe, e a da mulher, integrada a esse domínio,
estebelecendo-se assim uma relação complementar e sugerindo uma situação de
“englobamento do contrário”, conforme Louis Dumont (1985).
107
Apesar dessa ordenação tradicional ideal embalar as representações locais relativas à
relação dos gêneros, sendo reiteradamente reforçado no discurso (quando perguntados sobre a
economia familiar, há sempre uma preocupação de apresentar a figura masculina como o
responsável pela manutenção da família), o que se verifica também são discursos e situações
disruptivas, que recolocam essa disposição complementar entre gêneros como uma forma de
submissão. Essa situação perfila entre as mulheres, geralmente em linguagem jocosa, mas
manifesta-se muito mais numa linguagem silenciosa, reticente, entrecortada de um riso
contido ou então em termos como “tu sabe como é que é....”.
Presenças como de Rafinha, diante de tais configurações buscam inseri-las em um
discurso moderno-contemporâneo, questionando esta situação e buscando a “igualdade de
condições” entre os homens e mulheres. Estes questionamentos incitam um sentimento de
angústia entre as mulheres que buscam cada vez mais inserirem-se numa atividade produtiva
para obter seu próprio ganho e ajudarem nos gastos da casa ou reivindicarem de forma
igualitária, sua parte da herança. Por outro lado, também os homens, percebendo estas
mudanças que estão a se processar, ora buscam impor os padrões correntes, mostrando-se
bastante resistentes a qualquer mudança nos hábitos familiares cotidianos, ora mostram-se
ciumentos, buscando mecanismos para cercear a liberdade de suas esposas, mas igualmente
sentem-se angustiados, embora demonstrem de diferentes formas. Tais balanços entre os
gêneros são também afetados e afetam as demais esferas sociais deste grupo, tais como nas
atividades produtivas. A inserção ou adesão a uma nova atividade, desta forma altera e é
afetado por este balanço entre gêneros.
Outros fatores contribuem para alterar este balanço entre os sexos na divisão do
trabalho. Segundo Meyer Fortes (1962), um dado importante a se considerar em relação aos
grupos domésticos refere-se a fase do ciclo de desenvolvimento, ou seja, dependendo da fase
de vida que se encontram seus integrantes a própria divisão sexual do trabalho é alterada.
Assim, com o envelhecimento do casal, frequentemente visualiza-se o marido, ajudando a
esposa em suas tarefas domésticas, como lavar a louça, arrumar a casa... Da mesma forma, em
grupos domésticos onde há poucos homens, a mulher assume as tarefas masculinas, de modo
que a divisão sexual, reiterado no plano do discurso, na prática apresenta alterações, o que nos
leva a referir-nos a atividades “mais femininas” ou “mais masculinas” como represetantes
desse estado de complementariedade entre os sexos.
108
3.6. As novas gerações e o estatuto da criança
Atualmente, convivem nessas terras até quatro gerações e parece haver uma lógica de
ocupação dessas terras, onde o número de pessoas foi, de certa forma, “regulado” de modo a
manterem o balanço entre quantidade de terras e sua capacidade de suporte. Sob esse
raciocínio, próprio de algumas abordagens clássicas em torno do campesinato onde, para a
manutenção da família o balanço entre produção e consumo é determinante, os filhos podem
ser vistos como elementos reguladores deste balanço (seja por significar maior consumo, mas
por outro lado, constituírem-se na mão de obra que mantém a produção familiar). Nas
conversas sobre a família, observa-se que tais preocupações se fazem presentes, mas, a ênfase
das abordagens no que concerne aos filhos recai no fato, como observa Macfarlaine (1986),
de que os filhos são o objeto do afeto, considerados sob o seu aspecto emocional e estético
que proporcionavam às famílias. “É uma graça de Deus, um anjinho, um presente”, como
observa Ivone. A família somente se completa com a presença de um filho e representa
também a expectativa de continuidade da família e de dias melhores. Nesse sentido, percebe-
se que as idéias e os investimentos associados a nova geração, constituem-se nas formas pelas
quais, as pessoas visualizam estratégias para se alcançar maior prosperidade.
Nesse sentido, às gerações mais novas reforça-se o acesso à escolaridade. O ensino
fundamental é propiciado a partir de duas escolas: uma delas situada na localidade, a Escola
Municipal Boaventura e a outra na sede do município de Maquiné, a Escola Estadual
Leopoldo von Langendonck. Contrasta com a situação dos adultos dos Fundos da Solidão
que, em sua grande maioria, se enquadram em duas categorias em relação à alfabetização: a
primeira constituída por aqueles que não sabem ler e escrever ou escrevem somente o seu
próprio nome e reconhecem os números; a segunda caracteriza-se por pessoas que foram
precariamente alfabetizadas em sua infância ou em sua adolescência, sabendo ler e escrever
pequenos textos. Relata-se que, antigamente, havia uma escola nos Fundos da Solidão onde a
maioria dos adultos estudou. Geralmente, as mulheres não sabem escrever. Muitas delas
ressaltam que gostariam de ter aprendido a escrever ou de terem continuado na escola, mas os
pais não consideravam importante que uma mulher soubesse escrever. O nível de escolaridade
fixa-se nas quatro primeiras séries do ensino fundamental. A geração se encontra na pré-
adolescência e na adolescência apresenta um grau de escolaridade melhor e almejam sair da
Solidão, “achar emprego em outro lugar”. Um fator que tem contribuído para a escolarização
relaciona-se aos programas governamentais iniciados na década de 90, como as “bolsas-
109
escola”
42
, que levam os pais a enviarem seus filhos à escola, visto que são motivados pelo
recebimento de um auxílio em dinheiro. Essa imposição de enviarem os filhos à escola este
inserido no Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual preconiza a idéia de que a criança
“tem que brincar”, na leitura dos moradores locais, interfere na prática corrente dos filhos
ajudarem os pais nos afazeres domésticos e na roça. “Época de cortar cana a gente não ia a
escola”, conta seu Armândio. Hoje, algumas mães temem ser denunciadas ao Conselho
Tutelar, pois, segundo relatam, houve casos de mães que receberem a visita de representantes
do Conselho, em função de denúncias relativas aos maus tratos.
Eu e o Lino quando era pequeninho, às vezes, levavam pra roça, botavam dentro de
um balaio, de uma caixa e deixava lá (risos). E hoje os nossos não levamos, ficamos
com dó tem que ficar um em casa pra cuidar ou arrumar uma pra cuidar. Antes mais,
nós ia pra roça, nem que os mosquitos mordessem (André)
Essa situação, em parte, evidencia o processo de modificação do estatuto da criança.
Antigamente crianças misturavam-se aos adultos, no máximo eram miniaturas de adultos que,
tão logo passasse a dispensar a ajuda da mãe, ingressavam na vida adulta, participando dos
ofícios diários da família (Ariès, 1981). Estabelecia-se dentro do grupo doméstico, uma
divisão do trabalho por faixa etária. Nesse contexto, eram importantes para a própria
manutenção e reprodução da unidade doméstica. Com a instauração da infância como uma
fase diferenciada da fase adulta, há a conotação da criança como um peso, como mais uma
boca a alimentar, sem contar com sua força de trabalho (como já analisado por Macfarlaine,
1986). No entanto, com as bolsas-escola, novamente inverte-se essa situação, uma vez que as
famílias passam a receber por criança que esteja matriculada na escola.
Embora corresponda a um valor de R$ 15,00, pode-se perceber a sua importância para
as famílias que a recebem. Segundo relato da Vice-diretora da maior escola do município, o
processo de cadastramento e a seleção das famílias aptas a receberem esse auxílio é alvo de
disputas acirradíssinas. Além disso, pelas leis trabalhistas, a mulher agricultora, atualmente
tem direito a receber o auxílio maternidade, o que também contribui para um olhar favorável
em relação à maternidade. Ivone, por exemplo, com o dinheiro que recebeu com o nascimento
do último filho, conseguiu efetuar algumas reformas na casa, há muito almejadas. Em tom de
brincadeira ainda diz que pretende ter mais um filho para poder comprar um cavalo e uma
carroça e,com isto sair vendendo aipim, feijão e artesanato.
42
Criado pela Medida Provisória 2.140, de 13 de fevereiro de 2001, o Programa Nacional de Renda Mínima
vinculada à educação - "Bolsa Escola", garante todo mês uma ajuda de R$ 15,00 para cada criança entre 6 e 15
anos, que esteja freqüentando e assistindo às aulas. O programa assiste no máximo 3 crianças por família e a
renda familiar não pode ser superior a R$ 90,00 por pessoa.
110
Nesse contexto, o interstício de tempo até a criança atingir a idade escolar é um
momento que gera algumas dificuldades, pois nessa faixa de idade, além de não receber o
referido benefício, incorre na necessidade de alguém para cuidar da criança. O que fazer com
a criança pequena quando a mãe precisa ir trabalhar? Normalmente deixam com uma irmã
mais velha ou com outros familiares, que “dão uma olhadinha”. Porém, constitui-se um
problema para as mulheres, razão pela qual, reivindicam uma creche local.
Ainda em relação aos filhos, o que se observa é a diminuição do número de filhos de
geração a geração, estando cada vez mais presentes nas pautas familiares o planejamento
familiar e a preocupação com o controle da natalidade.
3.7. A renda familiar
A renda dessas famílias é um parâmetro difícil de precisar. Estimativas são possíveis,
através de aproximações a intervalos de renda. No entanto, ao longo desse tempo de
acompanhamento dessas, as fontes de renda e os valores variaram. Num levantamento inicial
efetuado em 2002, verificou-se que a renda mensal de 16 famílias consultadas, oscilava entre
um a dois salários mínimos, enquanto que, para três das famílias, o rendimento mensal não
chegava a um salário mínimo.
A coleta de samambaia faz parte da composição de renda de, aproximadamente 60%
das famílias dos Fundos da Solidão. Desses, a maioria a considera como fonte principal de
renda. A aposentadoria rural vem em segundo lugar, sendo a renda principal de oito famílias.
As outras atividades citadas na composição da renda das famílias foram: venda de excedente
agrícola, artesanato com fibras naturais, trabalho como peão ou em “empreitadas”, azulejista,
licenças e pensões do INSS, elaboração e comercialização de fitoterápicos preparados a partir
de ervas cultivadas e coletadas na localidade, participação em feiras. Existe ainda a referida
busca do benefício do Programa Bolsa Escola do Governo Federal e a ajuda financeira de
familiares residentes em outras localidades.
Foi relatado ainda, um caso de arrendamento de terras para coleta de samambaia, cujo
pagamento correspondia a, aproximadamente, 39 dias de trabalho por ano do casal e do filho,
na propriedade do arrendador. Ocasionalmente, há casos de arrendamento por curto espaço de
tempo (de três meses por exemplo) pagando aproximadamente R$ 150,00 pelo período total
111
de uso
43
. Quando o arrendamento é para cultivo da área, um terço da colheita é destinado ao
proprietário como forma de pagamento.
Parte das atividades e rendimentos referidos são temporários, ou seja, não há uma
garantia de continuidade prolongada, mas são aproveitados como complemento da renda.
Algumas dessas atividades, assim como as de subsistência, são praticadas quando não há
demanda por samambaia.
É importante salientar que nenhuma família tem como principal rendimento a venda
de excedente de produção agrícola ou pecuária. Verifica-se que persistem roças onde são
cultivadas, principalmente, a mandioca, além do milho, do feijão e da batata-doce. Na
propriedade de alguns moradores, há a criação de porcos e de galinhas para obtenção da carne
e de ovos. Poucas famílias mantêm gado, seja de corte ou leiteiro. Tendo em vista a pequena
produção, muitos dos mantimentos consumidos são comprados nos mercados da região.
Esse quadro de tarefas vem sofrendo drásticas alterações ao longo do tempo. Em
2004/2005, momento da escritura desse trabalho, muitas famílias haviam deixado de tirar
samambaia, passando a trabalhar em empreitadas nas grandes propriedades da região.
De uma forma geral, esse dado sobre a renda é um parâmetro cada vez mais
considerado, seja para determinação da situação social de um grupo, seja em termos práticos
para abertura de uma conta bancária ou, simplesmente, efetuar uma compra a prazo. Porém, a
avaliação dos valores de renda dessas famílias tem conotações bastante paradoxais, uma vez
que esse é freqüentemente considerado “um bom dinheiro” para os moldes locais. Mas, por
outro lado, em determinados momento, colocam-se como os “mais necessitados, os mais
pobres”. A compreensão das razões de tais avaliações recolocam as diversas representações a
respeito do valor do trabalho e da condição social dessas pessoas.
A consideração de que se trata de um “bom dinheiro” refere-se à avaliação em
comparação aos possíveis ganhos com outras atividades, como no cultivo de milho ou no de
feijão, dentro das condições locais. Seja pela quantidade de área plantada, seja pelos preços de
mercado desses produtos, quando comparados aos valores de um feixe de samambaia que,
como foi visto, para os olhares locais, não exige maiores tratos com cultivo, o rendimento
financeiro foi bem inferior.
Por outro lado, são sempre considerados, aos olhares externos à comunidade, como
“os mais pobres”, os “fracos”. Percebe-se, mais que um julgamento em termos dos valores da
43
Apesar de haver apenas um relato de arrendamento formal, o que se verifica é a existência de outros acertos
com os proprietários das terras para, ocasionalmente, retirarem a samambaia. Neste caso, geralmente, o coletor
paga R$ 0,05 por mala (pacote com aproximadamente 60 folhas de samambaia) colhida na propriedade.
112
renda familiar, propriamente ditos, que se mesclam avaliações de ordem moral
44
. Subjacente à
constatação do estado de pobreza, as observações e os comentários referem-se à incapacidade
de racionalização, por parte desses, entre o quanto se ganha e o quanto se gasta. Um exemplo
disso é a freqüente referência às famílias com muitos filhos em contraste com os baixos
ganhos, ou, ao fato de apenas trabalharem para o gasto, sem terem uma preocupação com o
futuro.
3.8 O tempo como fonte de estranhamento aos olhares exógenos
Fazendo uma retrospectiva do processo de inserção e início do trabalho com o grupo,
uma imagem impactante relaciona-se a natureza de trabalho árduo, difícil e sujeito a uma série
de intemperismos climáticos e contratempos das atividades produtivas do grupo. No entanto,
com a intensificação do convívio e com o acompanhamento mais rotineiro, verifica-se que há
um certo descompasso entre o grande esforço dispendido com o extrativismo e a agricultura,
ao mesmo tempo, uma certa sensação de indolência, no que tange a outras situações
cotidianas. Algumas situações relatadas a seguir trazem elementos para ilustrar esse fato.
O primeiro exemplo refere-se ao Seu Renato. Esse era um excelente construtor de
violinos e, comovido com essa atividade rústica e artesanal, um dos integrantes da
organização não-governamental encomendou um violão. Outras pessoas também desejavam
adquirir um violino construído por Seu Renato. Contudo, até que esse concluísse o violão
passou-se um ano. Eu mesma acompanhei esse longo período de espera e de ansiedade em ver
o violão pronto. Ao mesmo tempo sabia-se que a venda de um violino renderia mais do que
meses de coleta de samambaia. Outros amigos da família relataram que, caso Seu Renato se
propusesse a realmente produzir violinos, haveria inúmeras encomendas. Um exercício de
relativização permitia respeitar este tempo diferenciado de manufatura de uma obra artesanal,
de concepção e de construção de cada instrumento, em conformidade com os momentos de
inspiração de quem o constrói. Mas permanecia ainda algo não compreendido.
Outro exemplo refere-se a algumas pessoas que fazem artesanato. Como forma de
consecução de uma renda extra, integrantes da ong e da comunidade conseguiram colocações
em algumas feiras de artesanato para que essas vendessem seus trabalhos. Durante a feira,
apesar de conseguirem vender seus produtos, passaram a semana inteira fazendo queixas
44
Situação similar foi descrita por Arlene Renck (1997) em relação aos coletores de erva-mate do oeste
catarinense, cuja condição de extrativista sobrepõe-se a uma fronteira étnica, relacionada aos “brasileiros ou
caboclos”, em contraste com os “colonos” italianos e tais julgamentos e argumentos são colocados como
estabelecedores das fronteiras étnicas e sociais entre essas categorias.
113
sobre a dificuldade de estarem ali vendendo. Obviamente, uma reflexão mais aproximada da
situação evidenciaria o esforço e a dificuldade de saírem de sua rotina caseira, a preocupação
com os filhos, com o marido. No entanto, uma das pessoas que havia conseguido o espaço
para venda sentia-se muito frustrada com a recepção dessas mulheres a sua iniciativa. Numa
situação de desabafo, colocou que se sentia “desperdiçando energia com quem não quer se
ajudar”.
Esses cenários remetem a relatos de moradores do município ao referirem-se aos
moradores do Fundão, evidenciam essa incompreensão em relação ao imobilismo das pessoas
dessa localidade. Algo como “é difícil trabalhar com eles”, “este pessoal não tem iniciativa,
vontade”. O próprio prefeito, ao mesmo tempo em que colocava as dificuldades pelas quais
passavam as famílias da localidade, manifesta, nas entrelinhas, um pouco desse sentimento.
Eu mesma, oriunda de uma realidade rural, também era acometida desta impressão,
frente ao contato com essa comunidade. Na verdade, estava ostentando a distinção referida
por Seyferth (1993), entre os colonos alemães, que em seus discursos, estabeleciam fronteiras
étnicas em relação aos caboclos, baseado no volume de trabalho. Constituia-se, portanto,
também para mim, um exercício de relativização.
No entanto, esses julgamentos de valores dessas situações evidenciam também,
ideologias bastante distintas, onde a instauração de uma lógica capitalista rompe com a
tradicional. Uma primeira reflexão diz respeito aos tempos. Transparece aqui a imagem de um
tempo que não evolui, de um lugar remoto e onde moram pessoas excluídas das políticas
públicas. Um estado de letargia que remete àqueles tempos de crise que deu origem ao tempo
da samambaia. Remetendo ao filme do cineasta Walter Salles, “Abril Despedaçado”
45
que
tem como temática condutora a tradição e a noção de honra no ambiente rural brasileiro. A
imagem recorrente durante o filme é o movimento circular de uma junta de bois que move a
moenda de cana onde uma pequena família do interior nordestino, de sol a sol, trabalha. Dia
após dia, os bois de canga andam em círculo, movendo as engrenagens que moem a cana. O
movimento é repetitivo e monótono. Uma das imagens mais contundentes, no entanto, é
quando estes animais passam a andar em movimento circular sem estarem na moenda de cana.
Tal imagem causa-nos um grande mal-estar, porque pensamos nos bois, mas em seguida,
pensamos nas pessoas, as quais também se encontram nessa condição. Num relampejar de
segundos, uma série de imagens perpassam a mente, gerado por essa imagem inicial. Não se
encontra saída para esse imobilismo, embora estejam em movimento. Essa é uma imagem que
45
Filme dirigido por Walter Salles, produção franco-suiço-brasileira de 2001, baseado no livro Abril
Despedaçado de Ismail Kadaré
.
114
pode ser veiculada relacionada à tradição a ao tradicional e por conseguinte aos moradores
dos Fundos da Solidão.
No entanto, numa rápida retrospectiva pelas principais obras sobre campesinato
brasileiro, parece extraordinária a habilidade de perpetuação dos mecanismos mantenedores
desses grupo e de sua perpetuação: no funcionamento de uma família, na relação entre
gêneros, na relação pais-filhos, nas alianças, na relação com a terra e o trabalho. Somos
compelidos a pensar que há um sistema social e político que instaura tal situação e que, de
modo altamente eficaz, continua a se reproduzir.
Parece que é dentro destes ditames que se perpetua uma condição que estigmatiza esse
grupo, mas que também permite sua perpetuação. Tal estigma apresenta-se como um sinal
diacrítico e estabelecedor de algumas fronteiras entre dois sistemas diferenciados, sejam esses
identificados como rural e urbano, tradicional e moderno ou campo e cidade. Mais do que
analisá-los como estigma, essa dicotomia permite o estabelecimento de dois regimes distintos
de valores e idéias, remetendo a Louis Dumont (1992): um regido pelo princípio de hierarquia
em contraste com outro, identificado com a igualdade. Dentro da perspectiva hierárquica, o
todo rege as partes, resultando num sistema holista, enquanto na perspectiva igualitária, a
parte predomina sobre o todo, resultando num sistema individualista.
No caso das observações, uma das hipóteses em relação ao grupo é de que esses
regimes diferenciados resultem em temporalidades distintas que, apesar de suas fronteiras e
estranhamentos, convivem. Na fricção entre essas temporalidades, pode-se perceber a
presença do conflito que, além da situação da tensão, pode ser a mola para a dinamicidade
desse sistema e signos de um estado de constante mudança. Assim, ao contrário da imagem
inicial de imobilismo associado a esse grupo, na perspectiva do trabalho etnográfico somos
acometidos pela imagem de um grupo constantemente colocado diante de novas situações,
novas pessoas, novas leis, as quais, ao seu modo, acomodam as suas rotinas. Nos termos desse
trabalho, encara-se esse fato como conformador desse grupo, o que justifica abordá-lo no
quadro referencial de uma sociedade moderna e complexa e que por apresentarem
mecanismos culturais tradicionais, estabelecem fronteiras, inscritas em valores e práticas, que
permitem uma delimitação entre esses grupos e a sociedade abrangente a qual está imersa. É
dentro desse contexto que constituem suas identidades.
115
3.9 Ser colono, ser samambaiero... identidades sobrepostas
Escrever essa tese constitui-se, de modo enfático, entrar na Solidão, o que significa
ingressar numa localidade cujo referencial inicial é o fato de ficar num “fundo”. Esse traz a
conotação de distância, mas, sobretudo, de um certo isolamento. Trata-se de um “fundo de
vale” com uma via de acesso principal e rodeado de morros que, aos olhos de quem não é da
localidade, parece intransponível. Com o tempo e com as histórias, vai-se descobrindo que
existem atalhos que passam por meio das roças de verduras e que, pelos morros, existem
caminhos, outrora muito percorridos. É nesses termos que um “pedaço de natureza” vai se
constituindo em paisagem, num esforço do espírito em captar uma unidade dentro de uma
totalidade indivisível que é a natureza. Citando Simmel (1996)
A natureza que no seu ser e no seu sentido profundos tudo ignora da
individualidade, se encontra remanejada pelo olhar humano - que a divide e
decompõe em seguida em unidades particulares - nessas individualidades
que chamamos de paisagens. (p. 16)
Ancorados na noção de paisagem, identifica-se uma primeira instância conformadora
da identidade local. O “fundo” traz a idéia de uma interioridade, um resguardo,o qual evoca
uma certa idéia de originalidade, de primitividade e de precariedade. Essa primitividade é
reforçada pela paisagem ao denotar uma forma de vida intrinsecamente ligada a essa
paisagem, ou seja, dependente da terra e dos recursos naturais. Essas idéias, não expressas na
forma de conceitos, afloram ao adentrar nesse universo local. No encontro com os moradores,
pressente-se esse complexo lastro de sentir-se de determinada forma, em função de
compartilhar um lugar, ligados por fortes laços de parentesco e de convívio e que em seu
conjunto constituem uma tradição e conformam um modo de ser, cujo discurso não é capaz de
expressar, mas que resultam em um certo estilo de vida. Estilo esse, aberto ao novo por ser
inevitável, mas que no fundo busca com todas as suas forças resguardar uma essência, o
direito à diferença e o despeito a quem ultrapassa tais limites. Isto traz a impressão de um
certo fechamento. Ser dos Fundos, traz assim uma primeira referência identitária,
profundamente arraigada entre os moradores.
Ser do lugar não significa apenas morar nos Fundos. Perpassa entre outras referências
um estilo de vida rural, ligado ao “colono”, de quem planta, em contraponto a quem veio da
cidade; justificando a afirmação “vocês lá da cidade” ouvida em inúmeras conversas
efetuadas ao longo desse trabalho. A cidade era representada pelas inúmeras pessoas estranhas
que freqüentavam a casa de Rafinha, associada à violência veiculada pelos programas de TV
116
como o “Programa do Ratinho”
46
, ao trabalho assalariado e ao “dinheiro certo” no fim do
mês. Ademais, “os da cidade” pouco entendiam de plantar, de andar no mato, de roçar e do
trabalho pesado. Esses elementos são importantes para a compreensão da situação de
inconformidade com a legislação ambiental, pois “são os da cidade que fazem as leis”. Assim,
ajudam a constituição de a coesão dessa comunidade, a referência negativa da cidade em seu
aspecto moral (a violência, a vida desregrada, o roubo) e estético (a poluição, o barulho, a
grande quantidade de carros, a confusão), sobreposto à idéia de berço das leis, que coíbem a
liberdade do colono.
Para o acionamento dessas distinções, a noção de valor, conforme Dumont (1985), é
fundamental. Trata-se de uma distinção entre categorias contrastivas, revestidos de valores
diferenciados a partir da qual é possível estabelecer uma hierarquia. Assim toda experiência
humana (intelectual ou prática) pressupõe uma distribuição diferencial (culturalmente
definida) do “valor” no mundo, que permite justamente a orientação do sujeito em situação.
A categoria “colono”, transveste-se de uma auto-referência, acionada como contrastiva
a quem é da cidade. Do ponto de vista legal, são todos agricultores que contribuem com o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais e, quando questionados formalmente, ou para
preenchimento de algum formulário, colocam-se como agricultores. Uma razão para isso é a
aposentadoria rural, visto que uma das perspectivas para esses moradores é o direito à
aposentadoria. Trata-se de um salário mínimo, o que, para os parâmetros locais, é um valor
razoável, mas, sobretudo, a imporncia está na estabilidade a ela associada, sendo um “um
ganho fixo”, referente ao fato de ser pago mensalmente. Esse aspecto revela a associação ao
trabalho do colono à uma noção de instabilidade, pois depende das condições do tempo, das
estações, das flutuações de preços dos produtos, entre outros fatores flutuantes, o que os traz
os sentidos das afirmações correntes de estarem sempre “na luta”, atentos a todas estas
variáveis, num misto de espera, oportunismo e resignação.
Com a aposentadoria, apresenta-se a possibilidade de descanso, associado a
despreocupação em relação a essa instabilidade e não apenas ao fato de não precisarem mais
trabalhar. “Estar sempre na luta” revela assim, uma condição desse colono e o resistir a tal
condição, uma de suas grandes qualidades.
Revela também, a identidade em torno do valor-trabalho. A “vida de colono” denota
“viver da terra”. Isso significa não apenas ter a roça, mas dessa roça tirar seu alimento, o
feijão, o aipim,o arroz que vai para a sua mesa; o milho que alimenta o porco que fornece a
46
Programa de televisão, veiculado pela rede SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), que mescla os mais
diversos quadros, buscando abordar temas polêmicos sempre em tom de denúncia.
117
banha e a carne; o pasto que alimenta as vacas que dão o leite. Viver da terra apresenta
algumas especificidades relativas ao “preparar a roça” o qual incorre em “botar” (derrubar)
uma capoeira, limpar, plantar, conhecer as épocas adequadas e, sobretudo, “trabalhar pesado”,
capinar ao sol, esperar a chuva, temer alguma seca, ou geada forte, e, finalmente, “cuidar”,
que significa estar atento a algum gafanhoto, formiga ou ave que “atora” (corta) as sementes
recém germinadas. Esses elementos correspondem a um “fazer” que incorre em saberes
diversos que foram sendo acumulados ao longo do tempo.
Ao colocarem-se como agricultores ocorre, em muitos momentos, uma distinção entre
aqueles “fracos” e “fortes”, num contraste entre os moradores de fundos de vale em
contraposição aos agricultores de várzea, aos hortigranjeiros que cultivam olerícolas, os quais
têm máquinas, condições de comprarem adubo e os “químicos” para a terra. Esse contraste
denota algumas diferenças na relação com a terra: perpassa ao hortigranjeiro a idéia da terra
como uma mercadoria, um meio de obter o lucro. As espécies cultivadas por esses,
principalmente olerícolas, destinam-se a suprir o mercado externo, “vão tudo pra Ceasa”, ao
contrário dos colonos, cujos cultivos visam ao consumo local.
Nos círculos informais, no entanto há ainda outra distinção, associada ao extrativismo.
Os “colonos” são os que “tem roça”, geralmente são os mais velhos, que agora estão
aposentados. Esses são os proprietários das terras. As gerações seguintes, não tendo condições
de adquirirem outros lotes, acabam permanecendo nessas terras. Correspondem aos
“samambaieros”, pertencentes à nova geração, entre 20 e 40 anos, moram na propriedade dos
pais e, embora pratiquem a agricultura, têm, na coleta, a sua principal fonte de renda.
Entende-se por renda, o valor em espécie que cada família consegue ganhar com seu
trabalho, ainda que haja uma gama de atividades produtivas que, não necessariamente
revertam em renda, mas que contribuem para a manutenção da família. Isso ocorre no plantio
em hortas e em roças; na criação de porcos ou galinhas; na coleta da banana nos bananais
abandonados; na caça de animais do mato ou de pescados; na realização de algum serviço de
construção civil ou de capina em propriedades alheias, entre outros. Tais atividades são
relevantes não apenas para a provisão dessas famílias, mas são elementos essenciais no fluxo
da rotina dessas pessoas. Contudo, como a maioria economicamente ativa dedica-se à coleta,
observa-se uma gradativa diminuição dessas atividades.
Acompanhando as compras de uma família, observa-se que, praticamente, todos os
gêneros alimentícios são adquiridos no supermercado local. Na abordagem a essa questão
alegam que “não vale a pena plantar”. Esse quadro de deslocamento da força de trabalho para
a atividade extrativista acarreta num gradativo abandono da agricultura mesmo para consumo
118
familiar e na inserção a uma cadeia produtiva bastante complexa, da qual desconhecem os
elos seguintes e em última análise, tem pouca autonomia para estabelecer preços ou o fluxo.
Na realidade, para tal distinção entre “colono” e “samambaiero”, há um recorte
temporal e, conseqüentemente, geracional. A atenção para a frase de André, com 38 anos e
“samambaiero” permite exemplificar tal situação: “O que era colono plantava de tudo:
plantava milho, feijão, arroz, aipim, batata. Isso tudo plantava.” Percebe-se que, ao mesmo
tempo que retrata o colono, caracteriza-o num tempo passado (no tempo em que a atividade
principal era a roça e o plantio). “Hoje a gente tira samambaia” - é o tempo da samambaia.
Contudo não abdicam dessa identidade de colonos. Ora se auto-designam
agricultores/colonos, ora samambaieros. Seriam, pois, colonos que vivem no tempo da
samambaia. Logo, na conformação dos acontecimentos dentro do fluxo temporal individual,
pode-se compreender um pouco das identidades que cada um tece em relação ao trabalho e ao
lugar. Nessa sobreposição de identidades ligadas às atividades produtivas, a idéia de mudança
generalizada, que se faz sentir seja nas relações familiares, seja em na paisagem.
3.9.1 Tempo da samambaia, tempo da roça: a construção de uma temporalidade
relacionada à atividade produtiva
As identidades de “colono” e de “samambaiero” expressam uma delimitação temporal
entre a agricultura e o extrativismo, nos termos de sua importância para a economia familiar,
mas também contém ordenamentos de natureza afetiva e simbólica que em última instância
referem-se a avaliação do atual modo de vida.
Num primeiro momento, tem-se o “antigo” onde a agricultura é o dado fundamental
para a reprodução familiar. As narrativas reiteradamente descrevem os morros da Solidão
como “amarelinhos de trigo ou milho seco”. Infere-se, desse dado, que a maior parte da
propriedade era ocupada por roças. O que temos hoje é a presença do extrativismo e dos
morros verdes, cobertos de vegetação em diferentes estágios de regeneração. Numa
comparação entre a paisagem de antes e a de hoje, relata-me Margarida: “Esses morros aqui
era tudo cheio de roça. Roça de milho, roça de feijão, era tudo quanto era coisa que eles
plantavam. Agora não, agora é tudo fechado”.
Nesse imbricamento narrativo entre paisagem e tempo, ou na correspondência entre
paisagem e rememorações, pode-se retomar Evans–Pritchard (2002) ao estudar as noções de
tempo e espaço entre os Nuer, povo do Sudão Meridional. Conforme esse autor, ao tempo
ecológico, cujo compasso é marcado pelos ritmos naturais - no nosso caso da paisagem e sua
119
regeneração – e transformada em representações socialmente construídas, sobrepõe-se a um
tempo estrutural, marcado por referências significativas a esse grupo. Nesse sentido, esse
último estaria relacionado à identidade do grupo.
Esse tempo ecológico, socialmente construído, em realidade, constitui-se através dos
ritmos naturais e sofre as contingências de um tempo histórico que se impõe na forma de um
ordenamento jurídico. Apresentam-se, nesse período, as marcas de um tempo histórico que
corresponde à época que não se pôde mais plantar, quando começaram a proibir as queimadas
para fazer roças, e os amigos começaram a ir embora.
Pela paisagem, as transformações são narradas, mas, ao narrarem sobre essas
transformações, estão refletindo sobre suas experiências e sobre como essas modificações
foram vivenciadas. Na sobreposição entre paisagem e experiência, encontra-se, conforme
Ingold (1993), a possibilidade da paisagem ser lida como texto, constituindo o que chama de
paisagem cultural. Segundo esse autor, “a paisagem incorpora as formas sócio-culturais”.
Dessa forma, a vida é um processo que envolve a passagem do tempo, sendo esse um
processo de vida que é também o de informação da paisagem na qual a pessoa vive. Isso
propicia uma aproximação aos conceitos biológicos de manejo de paisagem, nos termos
apresentados por Clement (1999), através da noção de domesticação de paisagens, entendida
como “um processo inconsciente e consciente em que a intervenção humana na paisagem
resulta em mudanças na ecologia da paisagem e na demografia de suas populações de plantas
e animais”.
3.9.2 Tempo da roça: onde se plantava de tudo
O tempo da roça representa a contraposição da paisagem atual de morros cobertos de
mato. É um tempo de fartura que, nos relatos, traz comoção e saudade, como a dizer “os bons
tempos”, tempo em que todos livremente “botavam roça”. Com o termo “botar”, subentende-
se a derrubada da capoeira e o uso da queimada para limpar essas áreas. De uma forma geral,
trata-se de um sistema agrícola com a manutenção de áreas em diferentes estágios de uso, ou
seja: a roça; a capoeira (que corresponde a um estado de pousio para posteriormente ser limpo
através da queimada para a consecução de novas áreas de roça); a mata ou uma vegetação em
estágio avançado de regeneração, como forma de reserva para obtenção de lenha e madeira ou
para futuras roças.
Uma nova roça é aberta pela derrubada do capoeirão - vegetação em estágio avançado
de regeneração - ou do mato. Após essa derrubada, a limpeza da área é efetuada através da
120
queimada para plantio de cana, feijão, milho ou aipim, sendo usado por aproximadamente, 5 a
8 anos, dependendo de quando a produtividade começar a baixar. Passado esse período de
uso, a área é abandonada ou mais especificamente, a área não é cultivada, permitindo que se
processe a regeneração vegetal. Nesse ínterim, novas áreas são abertas e, com isso,
caracteriza-se um sistema produtivo com uma lógica de rotação de áreas e de culturas com
pousio. Ao pousio está associado o descanso para a terra recobrar sua fertilidade, “a gordura
da terra”, como correntemente citado.
Para a queimada era necessário observar uma série de cuidados: estar atento à direção
dos ventos, de preferência em um dia com pouco vento; fazer o acero, faixas roçadas que
delimitam o local a ser queimado e, sobretudo, estar atento a qualquer faísca que pudesse
ultrapassar os limites, atingindo a propriedade vizinha. A madeira obtida da derrubada era
transformada em lenha para uso doméstico ou vendida.
Esse sistema, baseado na rotação de áreas com pousio e queimada, parece estar
presente ao longo de toda a história agrícola (Wolf, 1976, Peroni, 2002) e encontra-se relatado
em detalhe em outras etnografias (Woortmann e Woortmann, 1997). Nessa rotatividade, a
percepção da terra tal como um organismo vivo onde as forças são consumidas
gradativamente pela atividade agrícola e que, sob a ação do tempo, vão sendo recuperadas. Na
transformação do mato em roça, o fogo aparece como um delimitador de etapas. Nesse
sentido, o fogo, do ponto de vista prático, facilita a remoção da vegetação. Entretanto, esse
encerra também uma noção de limpeza e de passagem de ciclos. Conforme Mary Douglas
(1976), constituem constructo humano universal o interesse pela pureza e o pelo combate à
sujeira ou ao impuro que podem remeter a formas especificas de ordenamento do espaço.
A cinza gerada nesse processo é vista como essencial para possibilitar o
desenvolvimento dessas plantas. Assim, num intervalo de tempo variável, segundo a
produtividade, anualmente eram plantados o feijão, o milho, a batata, o trigo, a mandioca.
“Tudo a bico de enxada”, segundo as palavras de seu Renato. Isso significa estar atento às
épocas de plantio anualmente estabelecidas e, também, acompanhar o desenvolvimento dos
cultivares dessas áreas que, quando começam a declinar, devem ser abandonadas.
A fartura desse tempo associa-se a multiplicidade de cultivos, mas também a variedade
de atividades executadas, como transparece no relato de seu Renato sobre o que era plantado
antigamente:
De tudo um pouco. Naquela época, a falecida minha mãe gostava de plantar
era aipim, era feijão, era de tudo um pouco... a roça se colhia muita coisa.
Arroz, trigo, o que mais..., milho, batata doce, batata inglesa nós colhia aí, o
alho, a fava que a falecida minha mãe gostava muito de plantar na época aí,
121
ervilha... Tudo isso aí a gente colhia aí, né. E, o que mais? A falecida minha
mãe gostava muito de trabalhar com doce, ela era doceira também, fazia
doce... saia fora nestes bailes de Maquiné, ela fazia doce... ela trabalhou
muito tempo e ela gostava muito de fazer, trabalhar com cuzcuz assim, mas
ela fazia o cuzcuz, tirava o aipim e curtia ele numa poça de água, deixava até
ele curtir ali. Depois fazia, tirava dali até o polvilho. Então tudo isso aí eu
me lembro. Amendoim se plantava aí. E, que mais que eu posso te dizer?
O trigo, plantado tanto nos morros como nas várzeas, era trilhado e levado ao moinho,
obtendo a farinha para uso doméstico além do farelo para alimentar os animais. Criava-se
galinha, gado e, principalmente, porco. Esse era solto em mangueiras e alimentado com o
milho cultivado, o farelo e os restos de comida. O cultivo do trigo foi declinando,
principalmente devido às doenças, sendo substituído pelo fumo. As marcas do período de
cultivo e processamento do fumo persistem até hoje, representado por alguns fornos de
secagem, que hoje estão abandonados ou são utilizados como galpão.
Outras atividades como o artesanato com palha de trigo, tiririca ou de taquara para a
confecção de utensílios domésticos e chapéus são também mencionadas e detalhadas com
muito saudosismo.
Trata-se de um tempo que, de uma forma geral, referem-se como o de fartura e
diversidade, no qual, implicitamente, estão associadas a maior liberdade e auto-suficiência das
famílias.
No entanto, o que mobiliza as lembranças mais caras para esse grupo, relaciona-se a
cana-de-açúcar que envolvia toda a família, desde o cultivo ao seu processamento e a sua
venda. Nessa área dos Fundos, havia nove engenhos, o que equivale a quase um engenho por
família. Alguns relembram saudosos que acordavam cedo para colher a cana no frio do
inverno com geada. Colhiam a cana e a acondicionavam em aros de cipó para serem
transportados nas carretas que eram “puxadas a boi” até o engenho onde, numa moenda,
movido à tração animal, era extraída a garapa. Essa era fervida, para o preparo do melado, do
açúcar amarelo e da cachaça. O açúcar era vendido no mercado local ou oferecido diretamente
aos moradores. A cachaça era transportada, pelos tropeiros para a Serra, nos municípios de
Caxias do Sul, Ana Rech, onde era trocada por charque ou vinho. Afora a saudade desse
tempo, ressaltam o trabalho como sendo duro, que exigia o empenho de todos sob o comando
da figura do pai. O trabalho duro é apresentado como a medida da seriedade desse tempo, de
um rigor que, ao longo de tempo, foi sendo perdido. Sob o índice desse rigor, é colocado
também o fato de haver pouca roupa, calçados e produtos manufaturados, resumido pelo
termo “pouco luxo”. As calças eram remendadas inúmeras vezes, até restar apenas um trapo,
122
quando virava pano de chão. Quando muito, tinham um par de sapatos para ocasiões especiais
e a grande maioria dos produtos consumidos era preparado em casa.
Mas é nesse rigor que também encontram as justificativas de uma vida regrada, regida
pelo trabalho honesto, respeito aos mais velhos e às tradições locais. Essas representadas pelas
festas, pelas obrigações religiosas, pela freqüência à missa e, sobretudo, pela organização
produtiva centrada na família. A esse tempo antigo, do colono, são investidos os valores que
essa comunidade preza e que são conformadores de seu orgulho e de sua honra de gente
pobre, mas honesta e trabalhadora.
3.9.3 Tempo da samambaia, quando as coisas começam a mudar
A partir do final da década de 70, inicia-se a atividade extrativista nos Fundos da
Solidão, através da vinda de algumas pessoas de outras localidades: Espraiado e Barra do
Ouro. Esses arrendavam pedaços de terra na Solidão por seis meses a um ano. “Traziam uma
turma para tirar tudo”, como conta seu Lidorino. O pagamento em dinheiro ou mercadorias
era conforme a quantidade colhida. Era nesse sistema que Margarida, moradora de outra
localidade, Espraiado, ainda criança, vinha aos Fundos com seu pai e irmãos colher
samambaia.
Essa situação apresenta paralelos com o esvaziamento populacional do Município,
decorrente do deslocamento de muitos moradores locais em direção às cidades para
empregarem-se em fábricas de calçados, principalmente no município de Campo Bom; ou
para trabalharem em cidades vizinhas, como Osório; ou em empregos sazonais, nas cidades
litorâneas (como Capão da Canoa), atuando como auxiliar de serviços gerais: pedreiro,
azulejista, guarda noturno e jardineiro. É um momento bastante evidenciado nas entrevistas e
falas: o processo de saída de amigos, parentes, que optam por buscar melhores condições de
vida na cidade.
Hoje tem umas vinte famílias. Antes tinha umas trinta. Muito mais de vinte
que saíram. Tem uns que saíram e depois voltaram. Eu até já tava
apavorado. Pensei que ia ficar só eu. Atacava os nervos da gente. Pessoal
que ia um, saia aquela mudança e atrás ia outro carregando um caminhão
para sair...(Seu Lidorino)
Saiu quase tudo daqui. Eram os que mais viviam das roças, daí quando não
deu a plantação... E naquele tempo que eu estou falando, não tinha esse
negócio da samambaia. Começou dali para cá e aí saíram, foram se
empregar e o pai foi se agüentando, aí plantava para o gasto e fazia biscate,
aí depois veio este da samambaia. (André, filho de seu Lidorino)
123
Nas palavras de seu Lidorino e de filho André transparece a síntese de um processo
gradativo de declínio de um modo de vida centrado na autonomia da produção doméstica. Os
sinais desse tempo difícil relacionam-se a impossibilidade de manter a família. Nesse período,
inúmeras estratégias como o plantio de bananeira, de fumo, pepino, a execução de algum
trabalho temporário ou biscate e o extrativismo de samambaia são tentativas de sobreviver a
essa situação. E na inviabilidade dessas tentativas, a opção pela retirada, a aposta na mudança
ou o reconhecimento dos novos tempos. Aqueles que tinham parentes que moravam em
outros lugares e que puderam estabelecer contatos de modo a obter alguma colocação partiam,
deixando familiares, geralmente os mais velhos, nas terras. A esperança em dias melhores era
o sentimento que os movia. Nesses casos, o emprego em fábricas de calçados era a ocupação
mais corrente. Outros tentaram sair, trabalharam em alguns empregos temporários como
auxiliares de serviços gerais, mas acabaram retornando. Entre esses, alguns lamentam terem
sucumbido às adversidades, tendo que retornar; outros, afirmam com convicção que jamais
conseguiriam se adaptar a vida na cidade.
É um processo em que não se compreende exatamente quais são as causas, tampouco
quando começou, porém suas conseqüências faziam-se sentir no dia-a-dia, nas conversas,
apresentando-se como um sentimento que angustiava os moradores. Esse sentimento, apesar
de remeter-se a um tempo passado, parece continuar reverberando no dia-a-dia, como se os
dias de crise não tivessem acabado e permanecessem até hoje ou que se estivesse outra fase de
tempos difíceis. É em meio a esses sentimentos que as lembranças dessas pessoas são
costuradas, ordenadas e repassadas para os que se propõem a perscrutar o passado.
Quando se vive numa situação de crise, parece que os sentimentos e as imagens mais
caras são remetidas ao passado. Nos relatos dessa situação de crise evidencia a centralidade
do trabalho para essas pessoas. O trabalho traduz-se num modo de vida, que por sua vez
fundamenta a identidade social dessas pessoas. Para ser mais exato, amalgamam-se o
trabalho, o modo de vida e a identidade. E isso estabelece a forma de interação com o meio, o
tom e o aspecto da paisagem.
Antes, a paisagem era representada pelas roças. Com a saída de uma parcela
considerável dos moradores locais, passou-se a cultivar menos. As áreas de capoeira, que,
anteriormente, transformavam-se em roças, foram sendo abandonadas. As terras deixaram de
ser cultivadas, seja porque “não valia a pena”, devido aos baixos preços do feijão e do milho,
mas também, com a saída dos moradores, restavam nestes lugares poucos adultos que
pudessem dar conta de continuarem plantando na escala anterior. Gradativamente, os próprios
moradores de Solidão (que ficaram) passam a tirar a samambaia de seus terrenos, tornando-se
124
a principal atividade local. Embora todos continuassem a cultivar e criar animais, realizavam
em pequena escala, entremeado pelas tarefas ligadas ao extrativismo. Nesse contexto, passou-
se a não mais derrubar a capoeira através da queima, visto que era nessa [capoeira] que
crescia a samambaia a qual lhes rendia melhores ganhos.
A representação da mudança nas atividades produtivas na Solidão corresponde à
delimitação de práticas diferenciadas que se opõem o sistema agrícola tradicional ao
extrativista. Essas oposições encontram paralelos com as narrativas que delimitam o tempo do
colono e da samambaia. Depreende-se desse contexto de paralelismo entre identidades e
práticas, alguns índices que permitem uma leitura mais das mudanças percebidas na paisagem
(figura 11).
À coincidência entre o tempo da samambaia e declínio da atividade agrícola,
sobrepõe-se a idéia do cerceamento pela legislação ambiental, o que justifica algumas
motivações e insatisfações em relação a essa.
0
2000
4000
6000
8000
10000
1920 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000
Agricultura tradicional Extrativismo
Roças cultivadas
Vegetação em regeneração
rural
urbana
TOTAL
“roça”
“capoeira”
“colono”
“samambaieiro”
Tempo das roças
Tempo da samambaia
Dados censitários de
Maquiné relativos à
população , entre os
anos de 1920 a 2000
(IBGE).
Atividade produtiva
Representação da
paisagem
POPULAÇÃO
Figura 11 - Representações em torno das atividades produtivas e paisagem ao longo do tempo entre os moradores da Localidade dos
Fundos da Solidão, Maquiné, RS.
125
CAPITULO 4
Tempo da samambaia e a atividade extrativista
A paisagem local, inicialmente para os olhos desavisados e sem o
acompanhamento de sua evolução, apresenta-se homogênea,
constituída por morros e delineados por tons esverdeados. Num olhar
um pouco mais aproximado, começa-se a identificar uma paisagem
mais diversificada e entrecortada de diferentes matizes. Também numa
perspectiva temporal, percebe-se que antigamente, os morros eram
cobertos de roças, apresentando tons amarelados, portanto apresentando
outras cores. A partir deste contraste a partir das cores que identificam
a paisagem, começa-se a descortinar as inúmeras camadas de memória
depositadas nessa paisagem. Por outro lado, quando, do ponto de vista
técnico, refiro-me aos “diferentes estádios de regeneração”, faço
menção a essas camadas, baseada num saber técnico-científico que
prevê a evolução de uma vegetação, desde um terreno limpo até a
formação de uma mata. Quando as pessoas do local estão a me falar
dessas paisagens, tenho a nítida impressão de que não estamos a ver a
mesma paisagem. O verde dos morros que eu vejo, não são os mesmos
vistos pelos moradores.
126
Nesse jogo de deslocamento de olhares, há também um processo de aproximação com
as pessoas. Aquele olhar que repousava sobre uma paisagem homogênea, desloca-se para uma
paisagem mais matizada, entrecortada de roças, com vestígios de habitações e de áreas
revegetadas.
Enfim, um olhar panorâmico, em minha primeira subida ao morro, deu-me a nítida
noção do contraste em relação ao que os olhos descortinam quando se está caminhando pelas
estradas do Fundão. A paisagem vista das estradas e locais mais baixos dá a impressão de
maior homogeneidade, da presença de mais verde. Há uma faixa perto das estradas que
apresenta uma vegetação alta, com espécies arbóreas, transmitindo a sensação de que há
muito mato. No entanto, ao atravessar esta primeira faixa, o que se apresenta é uma área com
vegetação mais baixa composta de roças de mandioca ou de milho, de hortas, rodeadas por
capoeira. O contato com a dinâmica histórica da paisagem e de organização de espaços dão
uma dimensão mais diversa da inicial, convertendo-se num processo de familiarização com os
moradores e sua trajetória. Manifesta-se igualmente um saber, cujo corpus é o resultado de
um processo onde se combinam a tradição e a experiência.
Nesse momento, ao tentarmo-nos fixar sobre a atividade extrativista, cabe enfatizar
que essa se realiza em área de capoeira: locais que anteriormente eram roça ou potreiro para
pastoreio e, atualmente, devido ao abandono, encontram-se em diferentes etapas da
regeneração. Esse dado demanda o conhecimento de uma dinâmica natural da vegetação e a
referência à história da localidade. Ali, os terrenos que inúmeras vezes, percorri com
Margarida ou Ivone, tirando samambaia, foram um dia roça. “Aqui era roça de cana”, conta
André, marido de Ivone. Esse fato, contribui também para dar a noção de quão cheio de
camadas está imerso a atividade extrativista. “A samambaia antes era praga”, conta-me seu
Renato. A atividade extrativista se fundamenta numa história de conhecimento pregresso da
planta, seu ambiente e suas características biológicas. “A samambaia gosta de luz”, “onde o
mato é grosso, não dá mais samambaia”, “a macega abafa a samambaia”, são observações que
são correntes entre os moradores do Fundão.
Ao falar da paisagem e do local em que há samambaia, rememorar-se a paisagem
passada, acrescidas às sucessivas observações de pequenas ocorrências. “Nasci aqui. Aqui
neste terreno do outro lado aí, ó. A casa era ali adiante, do outro lado, depois viemos pra cá.”,
“Aqui tá enterrado meu umbigo:”, “Ih, isso dava baile. Era muito bom, sabia? Agora não.
Tudo aqui, tá vendo, dava baile.”, relembra seu Juca. Muitas vezes, no afã de entender o
manejo da atividade esquecemos esses aspectos afetivos também conformadores do
conhecimento de manejo. Esboça-se aqui a definição da cultura em que essa não se limita à
127
aquisição de habilidades nem somente ao acesso a um conhecimento, sendo essencial para
que se possa falar de cultura, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do psiquismo e da
subjetividade individuais. Esta dinâmica entre a exterioridade e interioridade da cultura, estão
no cerne do pensamento esboçado por Georg Simmel em seus muitos ensaios. Um deles
debruçando-se sobre a situação limítrofe para os seres humanos - a vida e a morte. Toma esse
dualismo como o ponto de partida para o processo que se desenvolve entre o sujeito e o
objeto, ao mesmo tempo que, sinaliza para os aspectos objetivos e subjetivos de que o mesmo
se compõe. Assim, frente à iminência e a grande interrogação que se constitui a morte para o
ser humano, vemos que somente em sua presença desenvolve-se uma gama de sentimentos,
reflexões que, de uma certa forma, acabam modelando a própria vida (Simmel, 1998). É nessa
fricção e complementaridade entre elementos opostos que se constitui a cultura, em seus
aspectos objetivos e subjetivos.
4.1. Vassourinha – capoeirinha - capoeirão: a dinâmica da vegetação e o espaço para a
atividade de coleta
Ao abandono das áreas plantadas, após dois anos, verifica-se a presença de uma
vegetação normalmente denominada de “vassourinha” (vassourinha corresponde a diferentes
espécies da família botânica Asteraceae, que neste estágio são dominantes, caracterizando esta
vegetação). A partir de então, com mais dois anos, verifica-se a presença de uma vegetação
composta de arbustos e de ervas, cujo estrato inferior, apresenta predomínio da samambaia a
“capoeirinha” ou “capoeira fina”. Esse estágio, dentro dessa dinâmica de regeneração, caso
não se efetue o desbaste ou a sua derrubada, dá lugar para uma vegetação, que
progressivamente passará a apresentar espécies arbustivas, tendendo às arbóreas, o que
denomina-se “capoeirão ou capoeira grossa”. Esse processo ocorre em um intervalo de
aproximadamente oito anos. Nesse estágio, a samambaia começa a diminuir, dando lugar ao
crescimento de outras espécies e que evoluem para uma vegetação de mata. É a luz dessa
situação que se ouve, quando confrontados ao problema ambiental associado à samambaia,
observações como “o que vai acabar com a samambaia é o capoeirão e não a gente”.
Genericamente, capoeirinha e capoeirão são designadas de capoeira. São nessas áreas,
os quais se caracterizam por apresentarem-se em algum estágio do contínuo compreendido
entre “capoeirinha” e “capoeirão”, onde, atualmente, são efetuadas as coletas. Nas áreas que
se encontram em estágios iniciais [capoeirinha], é mais fácil o deslocamento e há uma
quantidade maior de samambaias. No entanto, devido a crescente diminuição destas áreas,
128
pela evolução da vegetação, gradativamente as coletas vêm se efetuando em área de
capoeirão. A distância entre a casa e as áreas de coleta também são variáveis. Algumas
pessoas arrendam os locais próximos a casa, o que facilita em termos de acesso e transporte.
Contudo, a maioria ressente-se pelo fato de ser necessário percorrer distâncias cada vez
maiores e de efetuar coletas em áreas mais extensas, caracterizando uma situação de
diminuição da samambaia.
4.2. Tirar samambaia e a intrincada relação entre família, gênero e a atividade
Para a construção dessa descrição foram consideradas as anotações de campo, das
situações em que visualizava alguma tarefa relacionada à coleta, assim como relatos e
narrativas dos moradores, especificamente, sobre a atividade. Também foram consideradas
situações entremeadas em alguma entrevista ou relato não necessariamente centrado no
processo de tirar samambaia como nas histórias de vida.
A atividade de coleta corresponde a uma rotina que inclui o deslocamento aos locais
onde ocorrem densas populações de samambaias e o ato de colher, propriamente dito, juntá-
los e amarrá-los num grande feixe, transportá-los a locais próximos a estrada principal, onde
são armazenados e, posteriormente, preparados para serem entregues aos transportadores,
denominados “puxadores”. O convívio e as repetidas observações demonstram que cada
coletor estabelece uma forma própria de inserir a atividade dentro de sua rotina diária,
conforme a necessidade de dinheiro, o tempo disponível, a constituição familiar e a
coordenação com outros afazeres paralelos. Também o ato da coleta, reveste-se das
idiossincrasias particulares: o uso ou não de algum instrumento para cortar a samambaia, de
determinado tipo de roupa, as fobias pessoais (medo de aranha, cobra), enfim, em cada ato,
há, além das linhas gerais que caracterizam a atividade, o tom pessoal na sua forma de
executá-los. Cada um desenvolve uma estratégia própria para o desenvolvimento desta tarefa.
Dessa forma, nas narrativas seguintes, buscou-se a descrição baseada,
privilegiadamente, na experiência direta de acompanhamento das coletas de algumas pessoas.
Com isso, obteve-se uma descrição geral da seqüência de atos que compreende a atividade,
mas reconhecendo também que há nesta descrição, o tom pessoal dos coletores e coletoras
que foram retratados bem como da própria narradora. O fio condutor da descrição centra-se
nas coletas do casal Ivone e André e de Margarida.
Margarida tem 37 anos, nasceu no Espraiado, uma localidade de Maquiné, vindo
morar nos Fundos após seu casamento com Valdir, a quem normalmente chama de Dico.
129
Lembra que, quando era pequena, não colhia, apenas acompanhava seu pai, um dos primeiros
coletores da localidade. Não moravam na Solidão, razão pela qual ela, seu pai e os irmãos
passavam a semana colhendo samambaia, dormindo num galpão alugado de dona Otília - hoje
sua sogra. Ela apenas acompanhava o grupo e a após um período de uma semana voltavam
para casa. Foi assim que a atividade foi chegando aos Fundos. Ela passou a tirar samambaia,
depois que se casou, para ajudar seu marido. Hoje, com a doença de Dico, apenas ela tira
samambaia. “Trabalho sacrificado, mas é só o que sei fazer. Acho que vou passar a vida toda
tirando samambaia”. Têm dois filhos, Ana de 17 anos e Valmir de 19 anos. Há
aproximadamente três anos, Valmir ajudava na coleta. Hoje, trabalha prestando serviços
gerais como capina e plantio, para um olericultor local.
André e Ivone tem respectivamente 38 anos e 29 anos. André “nasceu e se criou” no
Fundão, tendo acompanhado o processo de instauração da atividade na localidade. Já Ivone
morava em Porto Alegre. Fora casada e, de seu primeiro casamento, teve o seu primogênito,
Luan. Em suas visitas ocasionais aos seus pais, que haviam comprado um lote de terras nos
Fundos, conheceu André. Casaram-se e hoje tem, além de Luan: Luís Davi, Cristiano, Maria,
com idades entre três e nove anos. Na época desse relato estava grávida do quinto filho
(Gabriel).
Margarida vai coletar sozinha, pois seu marido é doente, não podendo executar
atividades que demandem grande esforço físico. Dico dedica-se à roça da casa (na qual
também Margarida ajuda) e, ocasionalmente, trabalha como pedreiro em alguma
“empreitada” que surja nas imediações. Além dessas tarefas, Margarida obtém algum
rendimento oriundo da venda de produtos preparados a base de plantas como cremes,
sabonetes e tinturas, que fabrica juntamente com Rafinha e Maria. André e Ivone, geralmente
vão coletar juntos, embora não seja regra. Além de coletar samambaia, Ivone faz artesanato
com palha de bananeira, obtendo algum ganho extra, enquanto André realiza atividades
ocasionais, ligado a construção, mantendo também uma roça. Ao contrário de Margarida,
Ivone diz não saber trabalhar na roça: “se eu tivesse que plantar, morria de fome”.
A atividade de coleta de samambaia é executada tanto por homens quanto por
mulheres, solitariamente ou entre casais. Também há situações de coleta grupal, onde se
arrenda uma terra (geralmente o arrendador é também o transportador) e contrata-se um grupo
de pessoas para que efetuem a coleta. Esse sistema parece ter sido comum na década de 80 e
90 – quando se iniciou a atividade na região - onde alguns transportadores de Barra do Ouro e
Espraiado (localidades de Maquiné) arrendavam as terras dos moradores dos Fundos da
130
Solidão, trazendo um grande número de pessoas para efetuarem a coleta e também
contratando os moradores locais. Hoje, em Maquiné, tal sistema não se verifica.
Essa possibilidade de ser efetuada por homens e por mulheres, no âmbito da
organização familiar local, parece ter sido um dos fatores que contribuíram para o
estabelecimento da atividade. Encaixa-se dentro da forma da dinâmica da unidade produtiva
local baseada na força de trabalho familiar e divisão de tarefas.
Margarida sai muito cedo e efetua coletas entre às nove ou dez horas da manhã. Após
a qual, retorna para casa, dedicando-se aos afazeres domésticos e a ajudar ao marido nas
atividades agrícolas. Dependendo da quantidade encomendada pelo transportador sai para
nova coleta à tarde.
André e Ivone, geralmente, saem mais tarde, visto que têm filhos pequenos, sendo que
alguns vão à escola, enquanto outros ficam em casa. No entanto, a preocupação maior é com o
filho menor, o Luís Davi, que tem três anos e precisa estar sob os cuidados de alguma pessoa.
Nesse caso, alguém fica com a criança, às vezes a irmã mais nova de Ivone e outras, a avó,
que recebem por esta atividade. Porém, quando não há ninguém, a criança acompanha o casal.
Cabe lembrar que, durante a realização dessa pesquisa, acompanhei a duas gravidezes de
Ivone, presenciando as suas subidas com uma grande barriga, entremeada de enjôos e tonturas
durante as coletas. Como coletam o dia todo, existe a necessidade de levar um lanche ou
comida para o almoço. Essa situação de se levar a
criança para as coletas, é um
fato comum. Margarida
conta que, quando seus
filhos eram pequenos,
levava-os junto, deixando “o
nenê dormindo debaixo de
uma árvore”. Outras pessoas
da comunidade, como Nino,
que é irmão de André,
também tem filhos pequenos
e relata que,
ocasionalmente, leva-os
junto.
Ao observar André e Ivone, normalmente André se apresenta, pelos seus argumentos e
observações, mais otimista e conformado. É sempre Ivone que se cansa, que reclama da
Figura 12
131
diminuição da samambaia. Mas também é Ivone que tem que se responsabilizar com o
Luizinho quando este chora, é ela que tem que ir dar a “teta” e ele é exigente, não se deixa
enganar, ser persuadido por outras ofertas que possam desviar da sua vontade de mamar.
Grávida novamente, sente enjôo e tontura. Recordo-me de outras mulheres grávidas, as quais
associavam à gestação a uma situação de ter um mínimo de estabilidade e de desejos
satisfeitos. Fazer todos os exames médicos, acompanhar a evolução da gravidez, enfim,
desfrutar desse momento especial. Em Ivone, talvez, haja um pouco da frustração de, há
muito tempo, ter abandonado essa ilusão. Coloca a gravidez como, naquele momento, algo
indesejado e que não pode ser tirado, um peso do destino. Tais falas apresentam-se como
facetas de um tema que gera sentimentos bastante ambivalentes, entre essa frustração e
desânimo, mas também momentos de satisfação pela maternidade e inclusive pela
possibilidade de desfrutar do benefício do salário maternidade. De forma geral, parece-me que
ao fato de ser mulher está associado ter filhos.
Margarida, certa vez me perguntou “Mas tu vai deixar uma sementinha ainda, né”,
implicitamente questionando o fato de ainda não ter filhos. Aqui é inevitável reportar-me à
condição feminina, às diferenças ligadas ao ser homem e ao ser mulher. No caso da situação
de coleta, a todo o momento, André colocava que ele não achava uma tarefa árdua tirar
samambaia. Quanto aos filhos, comenta que a “gente também foi criado assim e nunca faltou
comida, planta ali, tira samambaia aqui e sempre vai ter comida para eles, de fome eles não
morrem”. Essas soaram palavras reverberaram intensamente em minha consciência feminina.
Como explicar para André o que é ser mulher? E para Ivone, o que é ser homem. André, que
deseja ardentemente ter outra filha mulher, comenta “se desta vez não nascer mulher a gente
continua tentando até nascer uma mulher”. Isso era dito com simplicidade e ternura
comoventes e em tom de brincadeira. Ivone, apesar de se mostrar revoltada – “tu diz isso
porque não é tu que carrega esta barriga” - talvez também partilhe deste desejo. Essas
situações demonstram os sentimentos ambivalentes que giram em torno da questão de gênero
e também durante a coleta, parece que a dupla jornada feminina é atualizada.
4.3. Molho, mala, cotas: definição de terminologias de quantidade
O fato inicial que desencadeia a ação extrativista está no pedido efetuado pelo
transportador, localmente denominado “puxador”. Na região existem pelo menos sete
puxadores. Na Solidão, no período de realização deste trabalho, a grande maioria, entregava
para Chico, que mora numa localidade próxima (Morro Alto). Esse vem, duas vezes por
132
semana em um caminhão, buscar a samambaia
47
. As quantidades que devem ser coletadas por
cada um, denominadas “cotas”, são previamente estabelecidas por ele e ao aceitá-las, o
coletor assume um compromisso de colher o combinado. Uma vez definidas as cotas
encomendadas, infere-se o tempo necessário para obter a quantidade solicitada, distribuindo
no intervalo de tempo disponível.
Geralmente, quando esse vem buscar a samambaia, combina a cota posterior. Quando
isso não é possível, esse telefona para a casa de Marta, a qual pertencente a única família que,
na época da realização dessas saídas de campo, tinha um telefone celular. Normalmente, as
cotas são distribuídas equitativamente para as famílias. Porém, há ocasiões em que uma ou
outra família recebe uma cota maior. Isso, muitas vezes devido à necessidade pela qual estão
passando, ou pela maior disponibilidade de tempo para a coleta. Havendo, dessa forma, um
certo critério de justiça quanto à necessidade, a qual passa pelo julgamento de Chico e que,
nem sempre, é consensual entre os coletores. Mas o estabelecido por Chico é respeitado.
Durante o período desse trabalho, as cotas variaram entre 500 a 2000 molhos por
pessoa, por encomenda. Comumente, o combinado são mil molhos ou um “milimoli”, o que
demandaria o envolvimento por quatro turnos com a atividade de coleta e acondicionamento
em malas. Para compreender com exatidão o que representam mil molhos, é necessário
compreender como tais unidades de medida foram se modificando ao longo do tempo. A
unidade básica da samambaia é a mala, que corresponde a um pacote de aproximadamente 60
frondes – são quatro pequenos feixes de 15 frondes, cruzados e sobrepostos dois a dois e
amarrados pelo talo. Um milimoli corresponde a 100 dessas malas. Por cada mala, o coletor
recebe R$ 0,35 a 0,40. Por um milimoli ou mil molhos, recebe-se, portanto, R$ 35,00 – 40,00
o que corresponderia a 6000 frondes, aproximadamente. A grande dificuldade para um leigo,
nessas medidas, está em compreender por que, por tal quantidade, contabilizam-se mil
molhos, ou um milimoli. Foi seu Lidorino - pai de André - que me explicou:
47
Como anteriormente referido, ao final deste trabalho, a freqüência de suas vindas já havia se reduzida apenas
uma vez por semana.
133
Antigamente tu tirava quanto queria. Se tu
queria apanhar mil molhos apanhava, se queria
apanhar mais, apanhava. Dependia da vontade
da pessoa. Agora é por cotas. Não adianta
apanhar mais. Pois é, agora o puxador deixa as
cotas e é isso. Até os nomes mudaram.
Antigamente a gente tinha que fazer os
molhinhos, assim (mostrando na mão) e amarrar
cada molhinho. Aí não sei quando foi, disseram:
pra facilitar, já amarrem quatro junto. São as
malinhas. Hoje quando falam molhos, estão
falando nestas malas. Quando fala em 100
molhos, são um mili molhos.
Assim, há dez anos, mil molhos correspondiam a mil pequenos molhos, cada um com
cerca de dez frondes de samambaia. As malas atuais seriam correspondentes a um feixe com
dez desses molhos, embora, em realidade contenha penas 60 folhas ou o que corresponderia a
seis molhos. Os mil molhos ou um milimoli seriam, pois referência a este sistema anterior de
medidas de quantidade.
Também nas palavras de seu Lidorino, percebe-se uma constatação queixosa das
mudanças que vem ocorrendo, principalmente a perda de liberdade e a dependência cada vez
maior do puxador. Para essas modificações, a redução das quantidade de folhas, pode ter sido
uma das formas de compensar essas perdas que o coletor vem tendo. Acrescenta-se a isso, a
queixa generalizada de que os preços não têm reajuste há oito ou dez anos.
Apesar das encomendas variarem em torno das quantidades acima, em épocas
próximas a algumas datas festivas, como dia das mães, finados, natal, essas quantidades
aumentam de maneira considerável; é quando o puxador manda “colher a vontade”, não
precisando ficarem restritos às quantidades previamente determinadas pelo puxador.
4.4. Tirar samambaias e as habilidades inerentes à atividade
A distância entre o local de coleta e a casa diferenciam-se de coletor para coletor.
Alguns tiram em suas terras ou na propriedade da família. No entanto, com a diminuição das
quantidades de samambaia, é cada vez mais comum o arrendamento de áreas para a coleta.
Como pagamento, normalmente, repassa-se ao dono das terras, R$ 0,05 por cada mala colhida
ou, então, é combinado um valor fixo pelo direito de exploração por um tempo determinado,
normalmente R$ 150,00 por três meses. Também é comum o pagamento através de serviços
na propriedade do arrendador, que é o caso de Margarida. Uma afirmação geral é a
Figura 13 - Uma mala.
134
necessidade de serem percorridas maiores distâncias para se coletar, quando comparado a
épocas passadas. Essa situação pôde ser visualizada acompanhando André e Ivone. Ao
contrário de Margarida, que tira em áreas mais planas, próximas a sua casa; o casal vai buscar
a samambaia nas encostas, sendo árdua a caminhada até chegar a esses locais. Como
normalmente saem mais tarde, em função dos filhos, o sol já está a pino, dificultando ainda
mais a caminhada.
Cada coletor tem um local protegido na beira da estrada para depositar as samambaias
coletadas. É, nesse local, que são deixados o lanche e algum outro eventual material que
dificultaria a subida. Alguns coletores locomovem-se até estes locais com bicicleta. Para a
subida ao morro, leva-se apenas o essencial: corda para amarrar a samambaia, água e algo
para comer.
Contrastando com a situação anterior, Margarida não precisa percorrer grandes
distâncias até o local da coleta, razão pela qual, normalmente tira um turno do dia para efetuar
a coleta. Com isso pode dedicar-se a outras atividades domésticas, como preparar o almoço,
limpar a casa, fazer pão e ajudar o marido na roça.
4.4.1. Um dia de coleta de Margarida
Pelos fundos da casa, após transpor algumas cercas de arame farpado, toma-se uma
trilha dentro da mata para termos acesso a estrada principal (Margarida, Gabriela,
135
pesquisadora do projeto Samambaia-preta e eu). Margarida usava boné com cabelo preso
“para não pegar carrapicho”, blusa de manga, corda na cintura, luva improvisada feita com
uma meia furada na mão direita, faca de serrinha afiada com a ponta quebrada pendurada ao
pulso, calça comprida, tênis de cano alto. Acompanhavam, na caminhada pela estrada
principal, os cães Xuxa e Sadan e por todos os lados, avistavam-se os morros de Maquiné.
Da estrada principal, pegamos uma estrada lateral, aberta entre as capoeiras e dessa
estrada tomamos uma outra trilha, dando-nos a noção do que é estar dentro da capoeira, por
sentir, a cada passo, o roçar dessa vegetação, constituída de arvoretas de, até
aproximadamente, três metros de altura, arbustos menores, capim e muita galharia a qual
dificultava a locomoção. As trilhas tornavam-se cada vez menos perceptíveis. Margarida ía a
frente, olhava para os lados, e para trás para ver como estávamo-nos locomovendo. Achava
muita graça em ver-nos “embrenhadas na macega”. Logo adiante, localizou o que se chama
de “bola”, mostrou-nos o que seria uma “bola boa para tirar samambaia”. Entregou uma faca
extra que havia trazido para uma de nós, pois na saída anterior combinou-se que, na medida
do possível, ajudaríamos a coletar. Gabriela, prontamente, propôs-se a ajudar, avisando, de
antemão, que não sabia fazer direito. Quanto a mim, estava fotografando, mas entre os
momentos de fotografar e as pausas para observar, também colhia, com um canivete que
havia levado. Margarida, enquanto coletava, de tempos em tempos, dava uma olhadinha em
nossos movimentos. Perguntávamos se estávamos coletando frondes de tamanho adequado.
Para nos tranqüilizar, sempre rindo, concordava.
Comenta que no verão, quando a espécie é mais abundante, os “puxadores querem
tudo escolhidinho, lisinho”, mas, quando começa a esfriar, e, “quando a terra esfria, elas
crescem menos”. E nessa época, aceitam de qualquer jeito e de qualquer tamanho. Além
disso, no verão “a gente fica tapado de mosquito e eles não deixam em paz”, o que dificulta a
coleta. Um dos grandes perigos são os bichos-cabeludos os quais estão no meio da vegetação
e provocam queimaduras graves. Também representam um perigo em potencial, as cobras
que, normalmente, fogem ou são mortas.
Mentalmente registrava as posturas do corpo, o abaixar e se levantar; o ato de procurar
onde estão as bolas de samambaia; a faca pendurada no pulso a corda amarrada na cintura; a
meia cortada na mão direita; o andar pela macega; os molhos de samambaias colhidos
debaixo do braço. Tinha muita dificuldade de orientar-me dentro das macegas, em
contraponto com o absoluto senso de orientação de Margarida. Os animais que a seguem ora
desaparecem nas macegas, ora aparecem pulando entre as plantas. Ao redor, muito capim
cortante, galhos, touceiras de outras gramíneas.
De repente Margarida
desaparecia, escutávamos apenas
o barulho do roçar do seu corpo
na vegetação. Aparecia lá
adiante novamente. Trajetória
aleatória, guiada pela presença
das samambaias e a necessidade
de contornar os locais de difícil
acesso. Entre um afastar de
galhos e outro, ao achar uma
bola, as samambaias maiores
eram cortadas rapidamente com
a ajuda da faca e transferidos
para a mão esquerda.
Quando se
acumulava uma
quantidade
razoável, eram
então colocados
debaixo do braço e
assim
ritmadamente até
obter uma boa
quantidade. Estes
eram então
deixados ao longo
das imperceptíveis
trilhas.
136
137
Na volta, estes pequenos montes eram recolhidos, cuidadosamente empilhados sobre
uma corda para formarem um só molho e serem amarrados. Forma-se um monte,
quarenta/cinqüenta centímetros do chão. Num golpe só, Margarida pegava o monte e punha
nas costas. Essa operação repetia-se pelo menos umas três vezes para, no fim, ter-se um
grande molho de cerca de quarenta quilos e um metro de altura. Margarida pegava ainda as
pontas da corda que mantinham o molho preso e o puxava mais ainda, com a ajuda do peso do
corpo para apertá-lo bem. Da firmeza do molho, dependia a etapa seguinte, o transporte do
molho. Reduz-se o volume para 2/3 do inicial. Molho denso e pesado. Gabriela tentava
levantar e sequer o molho saia do chão. Margarida ria muito e repentinamente concordava que
era bastante pesado e que tinha muita dor no ombro e no pescoço. Para curar, ela passava a
pomada milagrosa, produzida na Farmácia Caseira. Comentamos que Ivone, que mesmo
grávida, ainda continuava tirando e carregando samambaia. A este comentário, Margarida fez
uma cara séria ainda dizendo que Ivone era muito resistente. Diferente dela, que quando
estava grávida não carregava mais nada, pois já abortara duas vezes e uma delas em função do
esforço excessivo carregando samambaia. Ficamos caladas.
Era o momento de retornar.
Num fôlego, levanta o monte e
tenta colocá-lo nas costas.
Como estávamos por perto,
Margarida começava a rir,
desconcentrava e não conseguia
colocar nas costas. Tentamos
ajudá-la, mas não tínhamos
força suficiente. Após algumas
tentativas, estávamos ficando
agoniadas. Finalmente com
nossa ajuda, ela colocou nas
costas, ficando o molho
apoiado nos ombros. Mãos na
cintura para dar maior firmeza
ao braço que apoiava o molho.
Inicia-se a volta. É difícil se
orientar, pois não há trilhos.
138
Tem-se que retornar seguindo os rastros de mato pisado, sinal de que há pouco tinha-
se passado por ali. A própria Margarida, pressionada pelo peso do molho que leva nas costas e
a reduzida visibilidade devido às folhas de samambaias que lhe caiam no rosto, errara o
caminho, para logo em seguida achá-lo.
Conversas, risos, algumas piadas. Retomou-se o caminho de volta. À medida que se
descia, a trilha ia ficando mais evidente. Margarida ia à frente com o pesado molho nas costas.
Da trilha lateral na capoeira, alcançou-se a estrada de chão e, após alguns minutos, entrou-se
numa pequena clareira na beira da estrada, onde já havia samambaias amontoadas e cobertas
com folhas de caeté (Hedychium coronarium L.), planta muito comum na região. Margarida
jogou então o molho das costas, descansou um pouco, arrumou o cabelo, massageou um
pouco o ombro e pescoço, recompondo-se. Pegou um balde amarelo, que estava escondido no
mato e foi até uma vertente, que ficava ao lado. Encheu-o de água e trouxe para junto do
molho. Tirou as folhas de caeté que cobriam as samambaias anteriormente colhidas,
desamarrou o molho que trouxe a pouco e foi empilhando sobre as que já estavam ali. A cada
camada, joga água, para ao fim cobrir novamente com as folhas. Assim ficando até o dia
anterior à chegada do puxador. Esse vem duas vezes por semana, às terças e sextas-feiras. Nos
dias que antecedem esses dias, as samambaias são amarrada e amontoadas a entrega. De vez
em quando molhadas assim conservando-se sem amarelar, no inverno, até oito dias e no verão
até o terceiro/quarto dia.
Nessa narrativa do processo de coleta, encontramos a centralidade do corpo, e seus
movimentos. A abordagem do corpo, na Antropologia remete-nos, a Marcel Mauss e as
técnicas corporais. Em Mauss destaca-se a natureza social do corpo onde “uma sociedade
articula uma mensagem, utilizando o corpo de forma similar àquela pela qual se utiliza o
material sonoro na fala” (Brumana, 1983). Partindo desse pressuposto básico, na situação
colocada, o desafio reside em incluir a dimensão do espaço e dos condicionantes ecológicos
além dos sociais, relacionados à atividade extrativista. Poderíamos assim tomar como a
dimensão cultural do ecológico. É uma forma de apreensão do mundo distinta de uma
apreensão intelectual que produz representações e idéias, trata-se de uma compreensão que
expressa um modo de ajustar-se a uma dada situação, que se integra ao esquema corporal
(Merleau-Ponty, 1994). Ressaltando que não se trata de um modo de ser passivo diante do
meio (o que remeteria aos termos de uma adaptação), pois se acionam, nesse processo, outras
dimensões da vida como as experiências passadas, os projetos e os esforços concretos de
intervir na realidade, ou seja, um movimento de transpor a situação. Nesse sentido, o corpo
pode estar manifestando também dados sobre o ambiente, remetendo-nos a noção de um
139
conhecer. Um conhecer, intimamente conectado com um fazer, pois para a execução da
atividade de coleta contribuiu todo um conhecimento anterior da vegetação, sobre a planta,
sobre as estações, sobre o lugar e sobre si mesmo: seu corpo, suas potencialidades e seus
limites. Em outras palavras, coordenam-se o conhecimento, que abrange a experiência, o
imaginário, as memórias e o corpo. Correspondem a estes conhecimentos: a mobilidade, o
quanto de habilidade, destreza e força são necessários e possíveis demandar, o quanto se pode
carregar, onde dói quando se exagera, os momentos em que tem-se que ser rápido e os
momentos que se exigem pura força, o sentido de direção e localização ao adentrar-se na
capoeira, há vegetação por todos os lados. Considerando que há locais com trilhas, mas
normalmente, não há trilhas, sendo o próprio deslocamento da pessoa que abre caminhos e,
abrindo caminhos, é necessário manter o senso de orientação. É necessário saber onde se
deixaram os feixes, para posteriormente serem recolhidos. Esse senso de orientação implica
numa consciência de seu corpo, em relação ao ambiente, num sentido amplo, onde concorrem,
não somente as referências diretas, como determinada árvore, algum toco,assim como a
posição do sol e a direção dos ventos. Enfim, coordenam-se uma infinidade de dados,
imperceptíveis numa primeira dissecção da atividade ou narrativa, mas que se manifestam nas
dificuldades, que surgem a cada momento, implicando numa rápida tomada de decisão e
solução. Conhecer o ambiente significa também estar atento aos potenciais perigos, aos
marimbondos, às cobras, bem como a época que mais comumente aparecem. Lembrando que
todos esses conhecimentos sempre foram importantes para quem vive em nessas localidades.
4.4.2. Catar, catar, catar
Na situação de coleta da samambaia, a capoeira que roça os corpos, os assuntos
íntimos afloram e a precariedade da situação é vivenciada. O precário que pode ser lido como
simples. Simples nas técnicas, na arduidade da função, pois se restringe a retirar uma planta
da capoeira: procurar, levar a mão ao seu talo, quebrá-lo ou cortá-lo e reuni-lo num feixe. Por
outro lado, apresenta-se rico em seus detalhes, na minúcia das entrelinhas da atividade:
procurar, em meio a uma vegetação que a todo o momento está a oferecer resistência, o corpo
que se esgueira, a mão que vai ao encontro da samambaia entre galhos, espinhos e capins
cortantes, avançando quando há espaço, recuando quando se apresenta algum obstáculo. Tudo
isso numa certa velocidade, que acaba imprimindo um ritmo: procurar, quebrar e juntar ao
feixe; procurar, quebrar e juntar ao feixe... Ivone, como que por um tique nervoso, antes de
juntar a folha colhida ao feixe, dá sempre duas batidinhas com a folha. Tem um ritmo
140
diferente de André que parece mais contínuo, menos cadenciado. Esses ritmos se fazem ouvir,
sobretudo, porque se trata de uma atividade praticamente silenciosa.
A expectativa da procura e o prazer de achar uma boa bola pode ser exemplificada
numa exclamação que algumas vezes ouvia de André: “achei uma bola boa”, “aqui tem uma
malhinha das boas”. Uma bola corresponde aos locais onde se apresenta uma população mais
densa. “Boa bola” significa ter em fartura, poder rapidamente juntar um molho com folhas
bonitas. Ivone dizia que preferia as “folhas durinhas”. Há nessas afirmações, um prazer
estético que se desenvolve relacionando o bom produto a uma facilidade de coleta.
A entrega ao ato de coleta, corresponde a entrar dentro da capoeira, deslocando as
macegas, quebrando os galhos de salseiro (Escallonia bifida), da santa-rita ou quaresmeira
(Tibouchina sellowiana), limpando com facão o caminho sujo e para encontrar um local em
que haja samambaia em grande quantidade. Poder apanhá-la e coletá-la é uma atividade
repetitiva cujo prazer está em simplesmente repetir e repetir a ação. Pode-se associá-la a
inúmeras outras situações de catação: sementes, contas, feijão. Quanto mais se cata, mais se
quer catar, entra-se numa cadeia obsessiva, catar, catar, catar. Ato repetitivo que, muitas vezes
faz esquecer o quão cansativa é essa atividade: o sol, o cansaço ao subir o morro e a vontade
de terminar logo. Esse é o ritmo da coleta.
Deter-se na atividade, significa, ouvir as narrativas sobre o tema, descrever suas
etapas, mas, também, visualizar o ato em si, ou seja, o ato de esgueirar-se entre a vegetação,
estender a mão e tirar a samambaia. Nessa perspectiva, além da habilidade que remete a um
saber, a análise a partir do gesto e seus ritmos remete-nos a André Leroi-Gourhan (1965) por
outro aos devaneios de Gaston Bachelard (1991). E nos ensina que no encontro do homem
com o meio, forja-se a técnica, entendida como o ato tradicional eficaz (Chevallier, 1991). E
essa técnica, por em sua eficácia, remete-nos a outras dimensões da compreensão do mundo e
das coisas. Trazendo à centralidade da construção do conhecimento o ancoramento a uma
imaginação criadora (Bachelard, 1991).
O ato de adentrar na capoeira evoca imagens relacionadas ao refúgio, embora num
primeiro momento, a vegetação, por toda a sua resistência a entrada humana, apresente-se
hostil. O convívio prolongado e cotidiano (e de dependência econômica em função da
samambaia) nesse ambiente estabelece uma relação de familiaridade, que nos remete a
imagem do refúgio. Não se trata do refúgio do aconchego do lar que remete a casa, mas uma
lugar de distanciamento e retiro. A longa caminhada até o local da coleta, o isolamento em
relação a outros ambientes e o silêncio que permite a audição dos sons ambiente reforçam a
esse estado de refúgio.
141
Por outro lado, na imagem do processo de coleta, de estar no meio da capoeira,
esgueirando-se entre diferentes obstáculos, alcançar a samambaia e colhê-la, poder encontrar
a essência da ação humana sobre o meio, do triunfo sobre a natureza e dos sentidos do
trabalho.
“A luta do trabalho é a mais cerrada das lutas; a duração do gesto trabalhador á mais
plena das durações, aquela em que o impulso visa mais exatamente e mais
concretamente seu alvo. Aquela também em que há o maior poder de integração. Ao
ser que está trabalhando, o gesto do trabalho integra de algum modo o objeto
resistente, a própria resistência da matéria. Uma matéria-duração é aqui uma
emergência dinâmica acima de um espaço-tempo. E mais uma vez, nessa matéria-
duração, o homem se realiza antes como devir do que como ser. Conhece um a
promoção de ser.” (Bachelard, 1991, p. 19)
A vontade de romper a resistência do meio e do próprio talo da samambaia quebrando-
a é a manifestação de uma imaginação ativa diante da resistência da matéria, de não somente
reagir a ela, mas de domesticá-la. E domesticar incorre numa ação reiterada ao longo de um
tempo, que adquire as feições de um ritmo natural, um ritmo condicionado. “É por esse ritmo
que o trabalho obtém ao mesmo tempo a sua eficácia objetiva e a sua tonicidade subjetiva”.
(Bachelard, 1991, p. 18) do coletar intermitentemente.
4.4.3. Tirar e colher, diferentes formas de manejo
“Tirar” traz a conotação relativa a uma planta que nasce espontaneamente, na
capoeira, que não precisa de maiores tratos culturais, ou manejo. “Experimentei botar uréia
pra ver se ela vinha melhor, mas a uréia queima a planta”, “Ela gosta é de terra fraca!”, afirma
André. E, nesse sentido, é diferente da atividade de plantar, o qual exige constantes tratos,
uma terra fértil, limpa e livre das pragas. Assim catar, “tirar samambaia” é diferente de colher.
Imersos no universo produtivo e da necessidade de sobrevivência dessas pessoas tais
delimitações parecem sutilezas cuja importância é secundária. No entanto, revelam que cada
ação, apesar de atenderem uma razão prática, possuem significados distintos. A samambaia,
nessa perspectiva, é vista como associada à capoeira, “ela gosta de nem muito sol, nem muita
sombra”, não sobrevivendo em áreas limpas (“só ela sozinha, no limpo, não sobrevive”).
Inclusive alguns, como seu Ervino, chegam a afirmar que testaram plantar em área de várzea,
onde ela não vem. “De certo, ela gosta de terra de morro”, comenta. Algumas plantas são
prejudiciais à samambaia, sobretudo, o salseiro (Escallonia bifida) e, em parte, essa
142
associação ocorre pelo fato dessa planta ser característica de estágios mais avançados da
vegetação.
Quanto aos períodos do ano, em que há maior abundância, embora reconheçam que a
samambaia esteja sempre brotando, normalmente identificam os meses de setembro e de
outubro como os de maior brotação. Como brotação, compreende-se o período de emergência
do solo de folhas novas, não propícias para a coleta. Consideram o verão a época com maior
abundância de folhas coletáveis, razão pela qual os puxadores são mais rigorosos com a
qualidade das folhas. Em março, ainda há mais uma brotação e a partir dessa, começa a
declinar. Nessa época, as folhas coletadas correspondem às folhas velhas que não foram
coletadas no período anterior. Nos meses de junho e julho, as folhas para coleta reduzem-se
drasticamente, embora não parem de coletar. A melhor lua para tirar samambaia é a crescente,
sendo que, ao se tirar na lua minguante, “ela custa a brotar”.
Tirar a samambaia nesse contexto, favorece a sua brotação, pois, caso essas não sejam
colhidas nesses períodos, acabam morrendo. Assim, a atividade encaixa-se a esse ritmo
natural da planta, sendo o próprio ato de tirar uma forma de manejá-la. Dentro dessa lógica,
em conversas informais, quando questionados sobre a possibilidade de plantar a samambaia,
prontamente responderam: “se é para plantar samambaia, eu planto feijão!”. Plantar
samambaia, por todo seu retrospecto, seja porque era uma praga, seja porque é planta de
capoeira, parecia-lhes uma idéia absurda.
Numa primeira dimensão das representações em torno da coleta de samambaia,
estabelece-se diferenciação entre o tirar e o cultivar, como duas modalidades diferenciadas de
relação com o meio. No que concerne aos saberes mobilizados nessas duas modalidades de
relação, observa-se que ambas demandam conhecimentos específicos, os quais, em seu
conteúdo constituem uma relação de complementaridade. Isso remete aos trabalhos
relacionados ao campesinato que identificam o mato e a casa/quintal, como dois espaços
simbolicamente diferenciados (Brandão, 1995, Woortmann e Woortmann, 1997, Teixeira,
1999). Ao primeiro espaço, associado ao mato, ao não-humano, ao não trabalhado, ao
selvagem, à caça, e aos perigos diante do desconhecido, é remetida a samambaia. Esse
contexto permite compreender o estranhamento diante da idéia de plantar a samambaia.
Remete também a distinções valorativas entre a atividade extrativista e agrícola, e por
extensão em categorizações identitárias, conforme será citado posteriormente. Ao
confrontarmos os sentidos do tirar e cultivar visualizamos que se tratam de operações
cognitivas e afetivas diferenciadas,as quais evocam sentidos diferentes para cada atividade.
Atitudes que têm conotações complementares onde o tirar se dá por subtração, enquanto o
143
cultivar resulta de um processo de adições sucessivas (contabiliza-se além do trabalho de
limpeza do espaço, a capina ou aplicação de algum herbicida, o acréscimo de algum esterco
ou uréia para ajudar em seu desenvolvimento). Essa complementaridade conforma um modo
de ser e de produzir dessa comunidade.
4.4.4. A preparação das malas
Após as coletas, as frondes ficam empilhadas e protegidas do sol. Geralmente, ficam
em algum refúgio dentro da mata ou numa sombra de árvore, sempre perto de uma fonte de
água para serem molhadas ocasionalmente. No dia anterior a entrega ao puxador, essas
samambaias devem ser empacotadas na forma de “malas” – alguns chamam de “fardo”. Ao
lado do monte, munido de barbantes, geralmente de ráfia, fornecidos pelo coletor, já cortado
no tamanho ideal, inicia-se a amarração. O barbante é colocado no chão, em cima do qual são
colocados quatro feixes com os talos cruzados dois a dois, para serem amarrados. As folhas
são juntadas vigorosamente, sempre num certo ritmo. Com a ajuda do joelho, os quatro
molhos de samambaia são amarrados com firmeza, o que exige bastante força, caso contrário,
a mala se desfaz com a manipulação. Uma vez amarrados em malas, são novamente
empilhadas num grande monte, borrifadas com a água e cobertas a espera do puxador.
Quando, ultrapassa-se o número de quantidades encomendadas, o excedente é guardado para
a próxima entrega. Essa é uma das vantagens do inverno, pois as samambaias se conservam
por mais tempo.
Figura 17 - A amarração das malas e o
monte com samambaias para ser
entregue ao puxador.
144
4.5. Cadeia produtiva da samambaia-preta
O dia da vinda do puxador é aguardado com ansiedade. Todos ficam atentos a chegada
do caminhão que entra na Solidão ruidosamente, buzinando. Chico, com freqüência, traz
alguma encomenda de Maquiné: ração para animais, cadeiras e móveis. Cada coletor tem o
compromisso de alcançar suas malas para serem empilhadas no caminhão. Portanto, o dia da
entrega incorre em efetuar as atividades rotineiras, estando atento a chegada do puxador e à
disponibilidade para, a qualquer momento interromper sua atividade e acompanhá-lo. Caso, o
coletor não possa estar presente, pede para alguém substituí-lo (um familiar ou vizinho) no
carregamento das malas de samambaia. Ocasionalmente, vem com Chico uma outra pessoa
para ajudá-lo. Assim, para o carregamento, são necessárias duas pessoas: uma que joga os
montes, geralmente o samambaieiro e a outra que recebe e empilha-os no caminhão. Uma
dessas funções é assumida por Chico ou seu ajudante, para efetuar a contagem das malas e a
sua seleção. Ao longo do carregamento, as malas impróprias, seja por não terem quantidade
suficiente (que é avaliado pelo peso de cada mala, em torno de meio quilo) ou pela má
qualidade das folhas que podem estar comidas, sapecadas ou jovens demais, são postas de
lado e descontadas do pagamento. Começa-se por Marino e Marta, cujos montes ficam mais
no fundo do vale. Posteriormente, são recolhidas as samambaias de Nino, Dila, Dete,
Margarida, André, Ivone e Nico.
Figura 18 – A entrega das samambaias ao puxador.
Depois de carregarem o caminhão, é efetuado o pagamento, que pode ser em dinheiro
ou cheque. Na ocasião é combinado a quantidade da próxima encomenda. Cada um recebe de
Chico um molho de de barbante de ráfia, para a amarração das malas da próxima entrega.
Algumas pessoas, aproveitam e pegam carona até Maquiné, para fazerem “o rancho” com o
dinheiro recebido.
Uma das razões pelas quais todos gostam de entregar para Chico está no fato deste
efetuar o pagamento “na hora” e cumprir com as datas de encomenda estabelecidas. Há na
localidade outro puxador que embora pague um pouco mais pelo produto, atrasa em até 45 dias
o pagamento, não vindo, às vezes, buscar a samambaia encomendada. “O Chico paga menos
mas é certo, pode contar.”
c
o
n
s
u
m
i
d
o
r
intermediário
secundário
intermediário
terciário
(PR, SP)
atacadistas
empresas, Holambra,
CEASA SP, RS
varejistas
floriculturas, vendedor
de flores
extrativista
intermediário
primário
Chico pode ser considerado um puxador
primário, o primeiro elo de uma cadeia
complexa, conforme demonstrado na
ilustração ao lado . Percebe-se que Chico é
uma pessoa bastante respeitada, tendo sido
outrora samambaiero e ascendido a
condição de puxador. Desta forma, se por
um lado há uma tensão estabelecida pela
própria hierarquia da estrutura da cadeia,
onde é o puxador que dita os preços, as
quantidades... também verificam-se laços
de reciprocidade, troca de favores.
Figura 19 - Elos da cadeia produtiva da samambaia-preta.
145
146
A própria condição de ter sido um igual, pois Chico e sua esposa já foram tiradores,
reforça esse laço de confiança mútua. Em realidade, trata-se de uma mediação na concepção
proposta por Silverman (1977), ao contrário, por exemplo, dos integrantes da ANAMA.
Refere-se a alguém que pertence à comunidade e, por possuir uma posição privilegiada,
estabelece a conexão com as esferas mais amplas, ou seja, sua legitimidade vem de uma
relação orgânica com os seus representados.
As relações estabelecidas entre extrativistas e transportadores primários são baseadas
em confiança mútua, baseado no respeito e credibilidade. A relação dos transportadores
primários e secundários com as empresas compradoras de São Paulo, Paraná, entre outros, é
baseada apenas em contratos orais. Toda transação fundamenta-se em compromissos
previamente estabelecidos com empresas paulistas ou de outros municípios da região,
envolvendo a carga. O transportador responde pelo cumprimento dos prazos, pela quantidade
e pela qualidade do produto. Os pagamentos, normalmente, são feitos com cheques de
terceiros ou pré-datados para 15 a 90 dias, os quais são repassados pelas empresas paulistas
aos transportadores e esses os repassam aos extrativistas. Nessas situações, o transportador
assume o pagamento do trabalho das famílias extrativistas que não têm condições de esperar
por esses prazos. Na prática, isso significa que o transportador avaliza os cheques junto aos
mercados locais para pagamento das compras feitas por essas famíllias. Alguns puxadores,
por não terem conseguido assegurar este fluxo acabam “quebrando”, pois muitas vezes esses
cheques de compradores de outros Estados não tem fundos, o que os obriga a arcar com o
prejuízo. Esse foi o caso de Milton, um dos antigos puxadores da samambaia dos Fundos, que
até hoje tem dívidas com os tiradores.
Um estudo sobre essa cadeia demonstra a existência de uma remuneração bastante
diferenciada entre os agentes envolvidos: os intermediários terciários e os atacadistas obtêm
uma remuneração significativamente, superior à margem obtida pelos demais agentes (vide
quadro 8).
Intermediário
Primário
IP
Intermediário
Secundário
IS
Intermediário
Terciário
IT
Atacadistas
Preço Compra
(R$ por mala)
0,35 - 0,40 0,55 0,60 – 0,70 1,60 - 1,70
Preço Venda
(R$ por mala)
0,55 - 0.60 0,65 - 0,70 1,25 – 1,70 2,50 - 3,70
Fonte: Ribas et al, 2002.
Quadro 8 – Faixa de preços (R$ por mala) de compra e venda da samambaia-preta entre as
diferentes fases de intermediação - do Litoral Norte do RS para outros estados.
147
Isso porque, os intermediários terciários são os principais responsáveis pelo transporte
interestadual, e os atacadistas, através do poder de formação dos preços da cadeia,
maximizam seus lucros de venda, de acordo com qualidade do produto. (Ribas et al, 2002).
Quem mora nos Fundos, pouco sabe sobre os elos da cadeia, os preços diferenciados e
o próprio destino final dessas samambaias. Os vasos com flores presentes nas mesas dos
moradores locais, dificilmente são acompanhados com samambaia, ou seja, na prática local, a
samambaia não é associada a arranjo floral. Em uma das subidas para coleta de samambaia,
falando em aniversário e presentes, Ivone comenta que nunca recebera um buquê de flores.
Uma observação-queixa que realça a distância entre o universo social do coletor e do
consumidor final, coloca os sentidos da diferenciação de processos produtivos do tempo do
colono e da samambaia e a mudança que incorre da inserção a uma cadeia produtiva mais
ampla, cujos meandros, o extrativista, não domina. Por desconhecer esses elos da cadeia e a
forma de se relacionar com esses diferentes atores sociais, o extrativista deposita a confiança
na relação com Chico, o puxador, numa relação de subordinação, que incorre em um
sentimento de tranqüilidade e estabilidade e dão os sentidos de hierarquia e interdependência
entre esses.
A partir do pressuposto que esse seria um dos fortes mecanismos que mantém a coesão
dessa cadeia, abrem-se alguns questionamentos relacionados ao contexto mais amplo que se
insere essa atividade, mais especificamente, atrelada a uma problemática ambiental. Um
primeiro questionamento refere-se às relações entre esse mecanismo com o ilegalidade da
atividade, uma vez que a essas situações de clandestinidade além de favorecerem contratos
informais, cria entre os seus participantes uma cumplicidade. Como a instauração da cadeia
produtiva da samambaia se deu antes da instauração da proibição da atividade, provavelmente
essa não haveria uma relação direta entre a clandestinidade e o estabelecimento de tal sistema.
No entanto, poderia estar contribuindo para a sua manutenção ao longo do tempo, uma vez
que a ilegalidade não permite a inserção de relações formais de mercado.
Por outro lado, como se aventa a possibilidade de legalização da atividade, o
questionamento seguinte relaciona-se ao impacto da legalização nessas relações estabelecidas
e quais seriam as ações políticas que contribuiriam efetivamente para uma melhoria da cadeia
produtiva dessa atividade.
148
4.6. A atividade de “tirar samambaia” e sua narrativa
Para os moradores de Solidão, a alusão à atividade de “tirar de samambaia”, traz
conotações paradoxais. Se, por um lado, a referência é o “trabalho duro”, cuja base reside no
trabalho braçal e no uso da força física; por outro lado, para obtê-la, basta procurar e colher, o
que não requer maiores esforços. Essa situação é a porta de entrada para entendermos um
pouco do universo das representações e identidades desse grupo. A exigência da força física
sobrevém da necessidade de, após coletadas as folhas, transportá-las até os locais onde são
empacotados e entregues ao puxador. Por outro lado, o ato de “tirar samambaia”, relacionado
privilegiadamente com achar uma “boa malha ou bola” desta planta que cresce
espontaneamente na capoeira e coletá-la, não requer esforço físico. Não se trata de uma
atividade difícil. Nessa avaliação, está embutido todo um sistema de valores ligado ao
“colono” na qual um dos índices é o trabalho duro, o esforço. O domínio de um “saber”
especial desse “colono” está justamente na arte de plantar, de saber a época e a lua adequada
para cada cultivo, o de cuidar da roça de modo a obter uma boa produção. Nessa situação,
podemos ter a dimensão da presença de um pensamento camponês que segundo Carlos
Rodrigues Brandão (1999), usa
“as relações práticas e simbólicas entre as variações do mundo natural e as
respostas sociais por meio do trabalho, como um indicador essencial do
fluxo dos tempos e da própria ordem de ambos os mundos, pensados um
pelo outro: o da sociedade e o da natureza” (p. 93).
No caso da coleta esse “saber” não se faz necessário, fica-se apenas com o trabalho
braçal, rompendo a unidade de uma determinada representação de um “saber-fazer”
tradicional de colono. Por isso, num momento inicial, parece haver um certo desdém perante
essa atividade por parte dos próprios coletores.
Em relação ao local da coleta, essas conotações paradoxais em relação à atividade
também se fazem presentes. A coleta de samambaia, efetuada na capoeira, estágio sucessional
da vegetação, associado a um tempo e espaço de “descanso da terra” entre uma roça e outra,
permite traçar um paralelo entre a mudança de estatuto desse estágio - outrora de descanso - e
a situação atual do grupo. A capoeira sempre fez parte de suas vidas, apenas como uma forma
de descanso, um momento intermediário para que, posteriormente, após a derrubada e a
queima, se obtivesse a roça. A agricultura por eles praticada nas roças cobria a subsistência do
grupo doméstico. No entanto, com o ingresso a uma sociedade voltada para o consumo e a
necessidade de acesso ao dinheiro (não mais apenas aos produtos), a samambaia, por ter
melhor fator de conversão em dinheiro em relação aos demais gêneros por eles cultivados,
149
instaura-se como produto principal. Por essa razão, passam a depender do espaço que era de
descanso.
Percebe-se nessa situação uma certa ambivalência que remete a um processo de
mudança e necessidade de re-atualizar alguns valores tradicionais. Antes, o colono orgulhoso
do seu saber e auto-suficiência, hoje, o samambaiero, trabalhador braçal e a grande
dificuldade em manter seu grupo doméstico. Sobrevém então o questionamento das razões
permite que esse samambaiero, outrora colono, apesar da constatação de que “as coisas estão”
piorando, mantenha sua trajetória, mantendo sua dignidade e obtendo a reprodução social de
seu grupo?
Retomando o processo de coleta que se constitui em procurar, procurar, até achar uma
bola. Ao achar, um instante de repouso para aquele que luta contra o meio para buscar seu
objetivo. Instante de repouso imperceptível na urgência de produzir e de obter determinada
quantidade de samambaia no final do dia. No entanto, é uma primeira recompensa, um prazer,
encontrar uma “boa bola”. Em seguida, o ato de colher a samambaia que exige força e
velocidade para romper a fronde, quebrá-la: em seu conjunto, manifesta-se na forma de uma
rítmica própria. Essa incorpora novamente um momento de repouso para juntar todas as
folhas colhidas num molho. Repouso para ir colocando ao longo do trajeto os pequenos
montes formados pelos molhos de samambaia coletada. Assim, resulta dessa operação uma
rítmica própria que imprime rapidez nas ações compassadas. Após um certo período de coleta,
ao esgotar-se a samambaia do local, percorre-se o caminho juntando os molhos que ficaram,
ao longo do trajeto, para serem empilhados ordenadamente, de modo a formar um maciço
verde, o “fardo”. Esse é firmemente amarrado com uma corda trazida envolta à cintura. É
preciso força, para dar unidade ao bloco. Essa operação repete-se inúmeras vezes, até obter a
quantidade suficiente que varia entre 20 a 40 kg, conforme a situação.
Reunido tudo, é a hora de carregar e de colocar nas costas Essa é uma operação que
exige uma certa concentração para romper a inércia daquele monte verde, quase um bloco,
que repousa no chão. Alguns acendem rapidamente um cigarro e dão “umas pitadas”,
enquanto que outros respiram fundo e, no momento crucial, onde todas as energias
concentram-se no ato de levantar, colocam o “fardo” no ombro. Isso exige extrema
concentração, caso contrário, a operação fica pela metade, necessitando o “fardo”, ser
recolocado no chão para reiniciar o processo.
Colocado no ombro, percebe-se que os passos tornam-se pesados pela pressão da
carga. Toda a energia concentra-se no ombro, os braços apenas apóiam e assim,
Há aqui todo um dinamismo muscular a se manifestar. Esse é
produto da combinação de força e velocidade, imprimindo um
ritmo que remete às representações do “trabalho duro”, mas que
permite compreender, na adesão a essas ações, que há mais que
o simples emprego da força bruta. Subjaz a essas ações, um
conhecimento que decorre do saber incorporado de “colono”, o
qual compreende um saber e fazer que não podem ser
desmembrados. Nessa indistinção as pistas que levam a
totalidade do fato social e permitem a esse coletor estabelecer as
continuidades diante das mudanças dos tempos e dar unidade a
um grupo a partir do compartilhamento de determinado saber-
fazer próprio do colono que remete também ao samambaiaiero...
Para que se alcance tal “saber-fazer”, muito mais que a descrição
de uma técnica ou de um conjunto de operações que levam a um
resultado eficiente, foi necessário um movimento em direção a
uma adesão às imagens. Ancora-se em Gaston Bachelard (1990 e
1991), na sua obra consagrada à imaginação da matéria,
detendo-se nas imagens da terra e os devaneios por ela
suscitados. Bachelard busca, nas imagens positivas e concretas
das matérias terrestres, a evocação de uma imaginação não
apenas reprodutora - que ele credita a percepção e memória -
mas a conquista de umaimaginação criadora. As operações aqui
descritas – somadas às imagens fotográficas que, em sua
materialidade, reforçam a positividade associada às matérias
vagarosamente, inicia-se a saída da capoeira e descida do morro
até o local sombreado onde a samambaia deverá ser amarrada
em “malas”. Dessa forma, é entregue ao puxador.
150
151
terrestres - facilitam a imaginação reprodutora e desafiam a consecução de uma imaginação
criadora. Esse autor alerta ainda que, “em relação às substâncias terrestres, a matéria traz
tantas experiências positivas, a forma é tão manifesta, tão evidente, tão real, que não se vê
claramente como se pode dar corpo a devaneios relativos a intimidade da matéria” (Id., 1991,
p. 2).
É justamente nessa intimidade com a matéria – a capoeira, os locais de coleta, os
locais onde melhor se desenvolve a samambaia, a resistência do talo à colheita, sua
durabilidade, seu desenvolvimento posterior – que estão manifestos os saberes de cada uma
dessas pessoas que tira samambaia. Saberes que podem ser sistematizados segundo uma ótica
científica, onde é possível estabelecer uma correspondência positiva entre os saberes locais e
os resultados de um estudo conduzido dentro de uma metodologia científica relativa a
ecologia da samambaia-preta (ANAMA/ SEMA, 2002). Mas, ao contrário do que buscam
essas metodologias, ou seja, uma relação de causa e efeito nos conhecimentos do coletor,
efetua-se também a busca de sentidos e significados que ultrapassam uma racionalidade
lógica e linear. Nesses termos, a prática da coleta de samambaia-preta está intrinsecamente
colada a uma identidade e memória social, mantida através das relações sociais e atualizado
em cada gesto e narrativa.
152
CAPITULO 5
Em torno da dimensão conflitual: do cotidiano e da problemática ambiental
Nos capítulos anteriores, buscou-se evidenciar a existência da
atividade peculiar do extrativismo de samambaia-preta, ancorada na
identidade e na memória coletiva de uma comunidade, sendo essa
apresentada no seu cotidiano de trabalho e no saber-fazer subjacente a
essa e inscrita nos olhares sobre a paisagem local. Paralelamente,
evidenciou-se o processo de deflagração dessa área de Reserva da
Biosfera e o de sua importância para as ações conservacionistas
globais. Isso resulta na imposição de uma legislação restritiva em
relação ao manejo da paisagem local, que sobreposto às representações
ao tempo da samambaia e declínio da atividade agrícola geram uma
situação de tensão suficiente para caracterizá-la como uma situação de
conflito.
153
O convívio com esse grupo tem demonstrado que a recepção e assimilação desses
ordenamentos reforçam um determinado ethos e fomentam diferentes atitudes e práticas que,
em seu conjunto, resultam num complexo e rico universo de situações as quais permitem
compreender um pouco mais sobre as pessoas dessa comunidade. Nesse capítulo busca-se
compreender as interações que se fazem no âmbito desses conflitos, percebendo lugar e o
papel dessas ações restritivas da legislação ambiental no fluxo cotidiano dessa comunidade, as
quais vão muito além do que, genericamente, pode-se caracterizar pela oposição entre dois
modos de intervenção na paisagem local, ou mesmo num choque entre tradição e
modernidade.
Para a abordagem do conflito utiliza-se como parâmetro analítico a teoria do conflito
de Simmel (1983). Para esse autor, a condição essencial para a sociedade está no conflito,
sendo a base para os processos de constituição e atualização da sociedade, o que denomina
sociação. Essa condição permite o acesso às regras que fornecem sua estrutura e que
determinam seus limites. Essas regras constituiriam os códigos sociais que regem as relações
nas diversas sociedades. Um pressuposto básico, na configuração do conflito, refere-se ao fato
de que um conflito não é algo dado em si, mas, sim, construído nas relações sociais. Dessa
forma, trata-se de uma dimensão cognitiva que configura determinadas questões como
“conflituantes”, apresentando-se na forma de representações e práticas. Dessa forma,
compreender a tensão diante da legislação ambiental incorre em compreender o conflito em
seu aspecto amplo, relacionado a outras situações de conflito paralelas. Nesse capítulo, são,
inicialmente, colocados de forma fragmentada, diferentes facetas dos conflitos que, em seu
conjunto, estão atrelados aos ambientais.
154
5.1. O estrangeiro em sua dimensão conflitual: o caso de Rafinha
Rafinha, uma das moradoras locais e minha anfitriã durante a realização desse
trabalho, tem uma trajetória bastante emblemática e distinta dos demais moradores locais.
Segundo ela, sua história de vida apresenta-se repleta de rupturas e mudanças de rumos. Saíra
de casa aos treze anos para estudar num convento sob os protestos de sua mãe e, diante da
impossibilidade de sua família financiar sua partida, fora pessoalmente pedir auxílio ao
prefeito da cidade onde morava.
“Cheguei em casa com aquela passagem. A minha mãe ficou num
desespero, eu ia fazer uma coisa daquelas, eu não era disso, né. Foi o
primeiro ato de liberdade da minha vida. Foi um desespero em casa, mas eu
fui dois dias depois. Me quebrei, foi doído, doído, eu me lembro. Eu tinha
um irmão de dois anos, que era muito apegado a mim, que eu cuidava. Até
hoje ele não me perdoa totalmente. Foi muito difícil naquele momento. Eu
era a mais velha de todas.”
A narrativa de sua história de vida pontua situações de ruptura, como na via sacra,
em que cada parada representa um momento difícil de sofrimento e de um aprendizado.
Conforme a sua avaliação de sua saída de casa:
“Mas foi tão bom, tão bom. Agora eu sei o lugar que essas coisas ocupam
na vida. Foi muito importante romper naquela época. Eu era muito apegada
às pessoas. Se eu não tivesse rompido, até hoje estaria na família, fazendo o
que eles fazem, do jeito deles. Hoje estou aqui na Solidão. Então foi muito
bom.”
Assim como na saída de sua casa, a saída do convento, após dilacerantes conflitos com
os preceitos da doutrina cristã e com a sua prática, representou outro rompimento. A seguir, o
encontro e a opção de ir morar com seu “companheiro” em Maquiné (motivo de uma reação
de indignação por parte da população local) é relatado minuciosamente por Rafinha e que
culmina com a sua separação, outra situação de ruptura, igualmente muito dramática.
Conheci-a um pouco antes dessa separação, após a qual, decidiu ir morar nos Fundos
da Solidão. Nessa mudança buscava o que a levou e a fez sair do convento: ajudar as pessoas.
Nomeou a nova morada de Fraternidade Semente da Esperança. Essa foi construída em
155
mutirão, com a contribuição dos vários amigos que agregou em sua trajetória de vida e a
transformou num local de acolhida às pessoas que necessitavam de alguma ajuda física ou
espiritual.
O grande fundamento da opção de morar nos Fundos, “lá no fundo”, como ela mesma
diz, foi “poder ficar mais perto do pessoal dos Fundos” que, segundo ela, era “muito, muito
carente”. A própria opção do Projeto samambaia-preta em centrar seus estudos nessa
localidade foi motivado pela carestia da população. Já nas entrelinhas, ocorre-me perguntar
sobre as conotações desse ajudar e em que medida as próprias pessoas que moravam no local
desejavam, desse modo, serem ajudadas.
Dar carona, trazer algum remédio, prestar assistência a algum morador doente
(fazendo curativo, tirando bicho de pé, conseguindo remédio para as dores nas costas de
Margarida), obter doações de roupas e brinquedos para os filhos de Simone, de Ivone ou de
Lurdes, em suas idas e vindas à Porto Alegre comprar algum presentinho, alguma meia para
os filhos de Simone, organizar festinhas para os idosos, e para os aniversariantes do mês,
celebrar novenas e a via sacra... era alguns dos favores prestados por Rafinha que contribuiu
para sua integração à comunidade. Quando alguém ficava doente, a qualquer hora, era
Rafinha que, com seu fusquinha, levava ao posto de saúde. Foi nessa época que iniciei meu
trabalho de campo.
5.1.1. A Fraternidade Semente da Esperança
Nos fundos do Fundo da Solidão, numa clareira, em meio à vegetação em estágio
avançado de regeneração, encontram-se cinco pequenas casas que, em seu conjunto, Rafinha
denominou de Fraternidade Semente da Esperança, sua morada. A primeira delas, na área
central, encravada em um barranco e com dois andares abriga a cozinha coletiva, o
laboratório, três quartos, e um banheiro. O “laboratório” é o local onde Margarida, Maria e
156
Lisiane preparam produtos à base de plantas medicinais, como sabonete, xampu, óleo para
massagem e elixir anti-fumo. Esses são vendidos e convertem-se em complementação de suas
renda. Para prepararem esses produtos, reúnem-se duas vezes por semana. As atividades
compreendem a coleta da matéria-prima, sua secagem, preparação e embalagem. Para sua
venda, a figura de Rafinha é fundamental, pois os compradores são as pessoas que visitam a
Fraternidade, bem como aqueles que assistem as suas palestras nos diversos locais onde,
constantemente, é convidada para ministrá-las. Nesse caso, uma delas, acompanha-a,
responsabilizando-se pela banca de venda com os produtos do laboratório e os elixires da
farmácia caseira.
Os quartos e o banheiro ficam no andar de cima e compreendem dois quartos e uma
sala. Nos quartos, ficam, geralmente, as pessoas que temporariamente moram na Fraternidade
e os visitantes ocasionais (a circulação de pessoas é muito grande). O período de permanência
desses hóspedes varia muito, sendo que na maioria dos casos, coincide com os feriados e fins
de semana. Alguns se tornam residem por períodos mais longos, ficando meses ou mesmo
anos, buscando desenvolver alguma atividade, como plantar ou dedicar-se ao artesanato. Esse
era o caso de Nei. Como exposto, há sempre visitantes buscando consultas e aconselhamento
de Rafinha, assim como curiosos e amigos. Rafinha nem sempre fica na Fraternidade. Há
épocas que ficam viajando por períodos longos, aparecendo ocasionalmente para lavar suas
roupas e “recarregar as energias”, entre uma e outra maratona de palestras nos vários
municípios do Estado. Essas palestras geralmente estão relacionadas com o Movimento
Mulheres Camponesas, o qual paga suas despesas com deslocamento e com alimentação.
Ocasionalmente, é contratada para efetuar alguma atividade pontual relacionada a plantas
medicinais ou na esfera da educação. Para esses momentos de ausência, Rafinha conta com o
apoio desses moradores temporários que ajudam-na cuidando da casa, recebendo aos
visitantes, tratando dos animais (gatos e cachorros) e da horta.
157
Além dessa construção principal, há a casa de Rafinha, constituída de um quarto,
banheiro e uma pequena cozinha, afastado dessa primeira, onde ela busca obter um mínimo de
privacidade. Porém isso é um momento raro, pois essa nunca se nega a atender alguém. Para
ilustrar esse fato, acompanhei situações em que Rafinha estava adoentada e, mesmo assim,
continuava atendendo a todos. A preocupação com essa situação é oriunda de um olhar
exógeno e racional pois, com o tempo, compreendi porque ela assim agia: nesses casos, o
necessitado e aquele que pode ajudar são envolvidos por uma ação recíproca, de tal forma
que, ao final, ambos saem curados. Essa era a motivação que levava Rafinha entregar-se de
forma tão intensa a essa a essas atividades. Ao final, dar e receber reveste-se de uma relação
de confiança e de poder. Aqui os sentidos do “mana” de Mauss.
Além dessas duas moradias, há um outro alojamento com dois quartos para visitantes e
ainda, o “cantinho da paz”. Essa é uma pequeníssima peça com formato hexagonal que
destina-se à prática de meditações, orações ou a alguma dinâmica de grupo que exija um
recolhimento.
Existe ainda o galpão onde são guardadas ferramentas e materiais diversos: botas,
capas, caixilhos de abelhas e um forno de barro onde, geralmente, se assa o pão e se guarda a
madeira para a lenha. Há, por fim, uma peça de alvenaria em construção que, como o
“cantinho da paz”, foi projetado para ser hexagonal, porém com dimensões maiores. Trata-se
de um sonho da Rafinha, seria a casa da cura, para repouso das pessoas doentes mas, também,
um local com infra-estrutura para receber grupos maiores e para realizar palestras. Com isso,
ao invés de Rafinha deslocar-se pelo Estado, proferindo palestras, os grupos viriam e
poderiam ficar ali. Entre as casas, encontram-se pequenas hortas-jardins, geralmente em
formato circular onde se entremeiam verduras, plantas medicinais e flores.
Toda essa ambiência com as casas que parecem de boneca, sua decoração, o formato
dessas casas, a horta que é também jardim, santos e imagens católicas que se misturam às
imagens orientais, conferem ao local uma atmosfera irreal e exótica. Tudo isso apresenta-se
158
com um frescor ingênuo, campônio, que remetem às estampas floreadas espalhadas por esses
ambientes. Essa ambiência representa, o espírito que Rafinha gostaria de imprimir a esse
grupo que chama de Fraternidade Semente da Esperança. Esse também é umolhar que
Rafinha lança em relação a vida no campo e para os Fundos da Solidão.
5.1.2. A “Farmacinha”
As Farmácias Caseiras ou Farmacinha, segundo Rafinha, visavam, além de fornecer
remédios caseiros e naturais aos doentes, contribuir para a “libertação da mulher”. Trata-se de
um discurso que problematiza em torno da situação da mulher: sempre em casa, tendo que
trabalhar duro e sob o jugo do marido. Para Rafinha, a transformação da sociedade passa pela
organização política da mulher. De origem rural (nasceu em Uruguaiana) e convivendo
diariamente com a rotina da Solidão, Rafinha conhece - e não consegue aceitar - a situação de
opressão vivenciada pela mulher rural. Sua luta é pela “igualdade de direitos da mulher”. Em
função de seu trabalho com curas, ganhou notoriedade, sendo, freqüentemente procurada para
dar consultas. A terapia preconizada por Rafinha compreende o uso de elixires, preparados a
base de plantas medicinais, norteada pelo conceito de “saúde integral”. Embasa-se em uma
visão “holista” o qual percebe o indivíduo em interação com o meio ambiente, como uma
totalidade. A saúde, nesse sentido, depende da harmonia que esse estabelece em sua relação
ao seu corpo, com o seu grupo social, com a natureza e com Deus.
Dessa forma, as farmácias caseiras, passam a receber apoio político do Movimento
Mulheres Camponesas e, alastram-se por todo o Estado. Iniciativas na Argentina e na
Amazônia ocorrem intermédio de religiosos e por amigos de sua militância nos movimentos
de base da igreja católica.
A Farmacinha da Solidão funciona numa casa de madeira com duas peças, sendo uma
muito ampla, para a realização das reuniões, e outra menor e mais reservada, para as
159
consultas. Anexo há uma estufa para secagem dos chás e um galpão. Anteriormente,
localizava-se perto da primeira morada de Rafinha em Maquiné, tendo sido deslocada para a
atual localização em 1999, na beira do caminho que conduz aos Fundos da Solidão.
Nessa casa, as mulheres reúnem-se semanalmente onde, além da preparação dos
elixires, rezam ou discutem visando a organização de alguma ação comunitária. Inicialmente,
era Rafinha que coordenava as atividades, mas, com o tempo, a coordenação passou para
Maria e Margarida, que considera-as suas discípulas. Embora todo o movimento e os
trabalhos centralizem-se e inspirem-se em Rafinha, gradativamente percebe-se a tentativa de
Rafinha passar a liderança e responsabilidade para Maria. Todo o trabalho desenvolvido nas
Farmácias Caseiras possui um caráter voluntário, sem fins lucrativos, sendo norteado por
alguns princípios gerais, como o trabalho em grupo. Com o tempo, pessoas de outras
localidades e municípios passam a procurar a Farmacinha, na busca dos remédios ali
produzidos.
Essa casa e a organização desse grupo, pelo fato de buscar sanar uma grande
deficiência local, que é o acesso a um sistema de assistência à saúde, recebe a aprovação de
todos os moradores da localidade. Os usuários, em sua maioria, a creditam no poder de cura
das plantas, embora à adesão a esse tipo de terapia apresente-se bastante variável. Percebe-se
que, em alguma medida, as pessoas acessam algum remédio da Farmacinha, para alguma
emergência, mas sempre recorrem aos “químicos”, acreditando na maior eficácia desses, para
algumas doenças consideradas mais graves, como problemas cardíacos, desordens nervosas,
dores musculares.
Por outro lado, por possuir um viés político, relacionado ao papel feminino e
sobretudo, pela figura de Rafinha não se apresentar como convencional, aos moldes locais,
inspiram posicionamentos e olhares diversos. Com isso, o nível de participação dos
moradores às atividades da Farmacinha é baixo, aumentando de tempos em tempos. No
entanto, a Farmacinha, não se reduz às atividades relacionadas à Rafinha. Com o tempo,
160
alguns jovens passaram a solicitar o espaço da casa para efetuarem reuniões e encontros.
Essas reuniões, inicialmente relacionadas a Igreja católica, na forma de grupos de jovens,
acabam se constituindo num momento de lazer para esses jovens. Com o passar do tempo, as
reuniões passam a ter música, combina-se o preparo de alguma comida, alguma festa de
aniversário.
Datas festivas como o Natal ou o dia das crianças, motivam a ocupação do espaço para
algumas atividades como distribuição de presentes ou mesmo donativos. Uma atividade que
tradicionalmente foi sendo associada a Farmacinha é o Terno de Reis, comandado pelo Seu
Renato. Este, além de coordenar o grupo, ainda constrói alguns dos instrumentos utilizados no
Terno. É um evento que sempre congrega muita gente não somente da localidade. Além da
apresentação do Terno de Reis, é preparado em mutirão alguma comida (como por exemplo,
uma sopa de lentilha) e na continuidade, transforma-se em baile.
Através da trajetória da Farmacinha na comunidade podem-se perceber os meandros
de processo de inserção da Rafinha na comunidade. Sob diferentes formas, Rafinha trouxe à
localidade uma certa notoriedade, associada a sua figura, mas também à Farmacinha e os
remédios ali produzidos. As atividades como Terno de Reis, festas e encontros realizados no
espaço da Farmacinha e a grande participação a essas atividades expõem também algumas
carências locais, como os poucos momentos de lazer e de encontros coletivos.
5.1.3. A saída de Rafinha e a emergência de um conflito latente
Pelo relatado até o momento, podemos visualizar em Rafinha uma figura ambígua em
sua relação com essa comunidade. Por um lado, contraria valores correntes da localidade ao
veicular a figura de uma mulher independente, por outro, traz grandes benefícios para a
comunidade. Essa ambivalência relaciona-se a uma tensão latente, já citada na relação entre
161
integrantes da ANAMA com os moradores de. Inúmeras situações ilustram que há uma
delimitação entre os “daqui” e os “de fora”.
No decorrer do trabalho de campo, apresentou-se um a situação com um desfecho
radical por parte de Rafinha que permite evidenciar essas tensões e como todas essas se
interligam, estendendo-se para as relacionadas à questão ambiental.
A referida situação tem seu início numa reunião, solicitada por alguns moradores
locais, que pediam esclarecimentos sobre queimada, corte de capoeira e licenciamento para
corte da vegetação. Essa solicitação foi intermediada por Rafinha, em função de que
recentemente Juliano, filho de seu Zé, havia sido multado por estar efetuando uma queimada.
Essa multa, sucedeu em função de que a diretora da Reserva Biológica, querendo conhecer
um pouco mais da região, fora procurar Rafinha e nessa ida, ao avistar uma placa que, em
realidade referia-se a Farmácia Caseira, pensou ser o este caminho para a casa de Rafinha. Por
essa razão, toma essa estrada e exatamente nesse dia, Juliano estava efetuando uma queimada
nas imediações. Isso resultou em uma autuação e multa.
Após esse episódio, todos ficam apreensivos e solicitam uma reunião com o “pessoal
do IBAMA”. Nesse ínterim, há toda uma ordem de represálias a Rafinha, que é
responsabilizada pelo ocorrido. Sentindo-se desgastada, pede-me que eu coordene essa
reunião. Foi convidada para prestar esclarecimentos, a própria diretora da Reserva, que na
região era a responsável pelo licenciamento ambiental, tendo sido combinado que essa
reunião seria após uma novena.
A novena fora na casa de Paulo e Sônia e, apesar das novenas serem sempre bem
freqüentadas por todos, havia um maior número de participantes. Percebia-se uma certa
inquietação. Ao final da novena, encostou na frente da casa de Paulo a camionete da diretora
da Reserva da Serra Geral, Paola. Essa, cumprimenta primeiramente a mim, pelo fato de me
conhecer e em seguida aos demais. Apesar do ar de aparente cordialidade, pressente-se no ar
uma tensão generalizada. Era a primeira vez que os moradores solicitavam uma reunião dessa
162
natureza, uma vez que anteriormente, pela ANAMA sugeriram-se reuniões deste tipo, de
esclarecimentos, mas não houve maior interesse por parte dos moradores locais.
A reunião inicia-se com uma breve explanação minha apresentando a Diretora da
Reserva Paola, ao qual segue-se uma confusão generalizada: todos querem fazer perguntas,
expondo suas problemáticas e questionando Paola sobre a viabilidade de licenciar o corte da
vegetação.
A uma certa altura, Paulo pede a palavra e, gritando, diz que acha um absurdo, “esse
pessoal do IBAMA, andar pra lá e pra cá, em propriedade particular, não deixando ninguém
mais botar capoeira”. Nisso os ânimos se alteram. Peço em voz alta para todos se acalmarem,
olho para o filho de Paulo, pedindo para que tente controlar seu pai. Ao que, pedro, irmão de
Paulo, toma as dores do irmão e começa também a discursar. Nisso, o Zé, que havia sido
recentemente multado, compadecendo-se de Paola, comenta, “deixa a guria”. Paola, num
esforço para manter seu auto-controle, retruca, “assim o senhor está me ofendendo!” E
segue-se por alguns minutos esse estado de confusão.
Transcorridos alguns instantes, os ânimos se esmaecem e volta-se a recolocar os
assuntos e todo o restante da reunião transcorre dentro e uma certa cordialidade.
Representantes do grupo de jovens perguntam se não podem entrar na Reserva para fazer
passeios. Esses também questionam sobre temas relacionados à caça e à realização de
queimadas. A reunião termina com Paola disponibilizando-se para esclarecer outras dúvidas
posteriores. Tudo levava a crer que seria o início de um processo de aproximação entre
fiscalizadores e moradores locais.
Particularmente, saio satisfeita, porque Paulo era uma das pessoas com as quais não
havia conseguido fazer entrevistas, uma vez que até há pouco tempo era inimigo da Rafinha e
nesse processo abriu-se essa possibilidade.
Algumas semanas depois, estando em Porto Alegre, recebo uma ligação de Rafinha,
contando que Paulo havia sido multado e que, se eu pretendia ir aos Fundos aguardasse um
163
pouco, pois o ambiente estava muito hostil tanto para Rafinha como para qualquer pessoa
ligada a ela. Contou-me, em detalhes, que Paola subira o morro com um policial, a fim de
averiguar se alguém estava caçando. Nesse dia, apesar de Paulo não estar com nenhum animal
abatido, foi preso por porte ilegal de arma (devido a uma legislação recente proibindo o porte
de armas)
48
. Tivera que pagar R$ 1000,00 de fiança para ser liberado. Através de outros
integrantes da ANAMA, soube que a intenção de Paola era apenas assustar Paulo, mas a
situação havia fugido ao seu controle, tendo esse desfecho lamentável.
Semanas depois, fui à Solidão. Passando em frente à casa de Paulo, vejo que sua
esposa Sônia, ao me ver, fecha a bruscamente janela. Ao visitar outras pessoas, verifico um
sentimento de revolta, pois avaliar ser excessiva uma multa de R$ 1000,00 e, ainda, terem
retido sua arma, embora todos reconhecessem que Paulo era uma pessoa “esquentada”. Para
aumentar a tensão da situação, cabe colocar que Paulo, em sua juventude, perdera uma perna
numa brincadeira entre amigos e segundo relatos dos moradores, passou por um longo
processo de superação até integrar-se às atividades cotidianas da roça. Hoje, apesar de ter
apenas uma perna “faz [trabalha] muito mais do que qualquer um com duas pernas”. O
discurso dos moradores discorre sobre a impossibilidade do “colono hoje em dia plantar a sua
rocinha pra dar de comer aos filhos”, “um tatu vale mais que a gente” e seu Lidorino,
ironicamente diz: “decerto eu só não fui multado porque eu não tava trabalhando”.
Manifesto (ingenuamente) a intenção de falar com Paulo. Porém todos me aconselham
a não fazê-lo. Isso porque, na opinião de Paulo, fora alguém do “pessoal da Rafinha” que
fizera a denúncia a seu respeito e uma das suspeitas era eu, visto que fui eu que apresentei
Paola na reunião.
48
A Lei nº 10.826/03 conhecida como "Estatuto do Desarmamento", de 23 de janeiro de 2003, foi elaborada
com vistas a regularizar o registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição. Segundo essa lei, o
porte ilegal de arma será punido com reclusão de 02 (dois) a 04 (quatro) anos, e multa, se a arma for de uso
permitido (art. 14) e reclusão de 03 (três) a 06 (seis) anos, e multa, caso a arma seja de uso restrito (art. 16).
164
Nesse processo cresciam as hostilidades em relação à Rafinha. As opiniões sobre sua
responsabilidade nos desdobramentos dessa situação se dividiam. Neste ínterim, Rafinha
decide sair dos Fundos da Solidão. Segundo ela, o momento derradeiro foi desencadeado
numa conversa com um amigo, morador de Maquiné, já adoentada com todos estes
aborrecimentos, comentando sobre os fatos recentes, ouve prontamente: “Mas também, depois
que tu foi morar no Fundo, só aconteceu coisa ruim pra aquela gente”. Segundo ela, foi um
choque, nunca pensara que chegaria a tal ponto. Decide então “virar a página”. Rapidamente
procura um outro lugar para morar.
No momento que estou a escrever este trabalho, ocorre mais uma das rupturas
características da trajetória de Rafinha: sua saída dos Fundos, após sucessivos conflitos com
os moradores locais. As configurações e desdobramentos desse acontecimento forneceram os
elementos que permitiram interpretar um pouco das relações de poder e coerção existentes
nessa comunidade. É difícil, em fatos como esses, precisar o momento em que esse foi
desencadeado. Contudo, a decisão de sair dos Fundos e ir morar em um pequeno quartinho
alugado por um grupo de amigos religiosos, no município de Gravataí, foi o resultado de um
somatório de pequenos incidentes, mal-entendidos e fofocas. Difícil colocar tais razões, sem
expor excessivamente a sua figura e, mais delicado ainda, é submetê-la a uma análise
antropológica, cujo preceito ético de respeito ao outro é uma das suas premissas
fundamentais. Nesses delicados fatos em que se percebem as nuances que permitem
compreender um pouco dos jogos coletivos e individuais que constituem as relações sociais e,
por essa razão, resolvi correr esse risco, omitindo passagens excessivamente pessoais cujo
acesso não me foi negado, uma vez que foi constitutivo do convívio, mas que tocam em
questões cujo limite entre o privado e o público são muito difusos.
5.1.4. A condição social de estrangeiro
165
Os desdobramentos aqui relatados conduzem-nos imediatamente a Norbert Elias e
John Scotson (2000) e a configuração estabelecidos-outsiders para analisar tal situação na
pequena comunidade fictícia de Winston Parva, em torno das tensões entre os habitantes
estabelecidos e os “outsiders”, onde através de mecanismos como a fofoca e boatos, a imagem
dos estabelecidos é mantida em detrimento dos de fora. Quais os termos para o
estabelecimento deste paralelo?
Anteriormente a partir das tensões e pequenos conflitos que foram se apresentando ao
longo do tempo de convívio em Maquiné, manifestava-se nestes diferentes momentos a figura
do estrangeiro, ora mediador nos termos de Silverman (1977) ora o elemento tensionante
como em Simmel (1983). O estrangeiro de Georg Simmel exprime a tensão constante entre
proximidade e distância presente nas relações sociais, não representa mais uma figura, mas
uma condição. Assim, “como o indigente e as variadas espécies de ‘inimigos internos’, o
estrangeiro é um elemento do próprio grupo. São elementos que se, de um lado, são imanentes
e tem posição de membros, por outro lado estão fora dele e o confrontam” (Simmel, 1983,
p.183).
Nos termos do período de realização deste trabalho, evidenciou-se a impossibilidade
de Rafinha ser absorvida totalmente como alguém da comunidade. Também a mim coube este
papel, de elemento tensionante. Um dado fundamental nessa relação é o fato de não ser do
local, manifesto no não compartilhamento de um passado e um modo de vida em comum.
Como anteriormente colocado, para ser do local há requisitos que ultrapassam o fato de morar
no mesmo lugar e estabelecer relações cotidianas de vizinhança. O que cimenta as relações
entre os estabelecidos? O “sempre fizemos assim”, uma tradição, o “sangue”, um sentimento
de pertencimento, compartilhado, como que uma substância invisível que nutre os indivíduos,
que os faz sentirem-se pessoa - noção lapidada por Marcel Mauss (1973) – em contraposição
ao individuo moderno (Dumont, 1985), tais como os habitantes estabelecidos da obra de Elias
e Scotson. Inegavelmente o convívio é o cimentador de tais relações, mas também aqui, pode
166
ser justamente o fator de acirramento das diferenças. Pelas descrições colocadas, somente pela
observação da ambiência doméstica da casa de Rafinha evidenciam-se essas diferenças.
Por outro lado, por suas qualidades de mediadora, travada nas relações cotidianas,
aparentemente apresentava-se como alguém integrada à comunidade. Inclusive, é tratada
como comadre por Dico, marido de Margarida, em função dessa ser madrinha de crisma da
filha Ana. No entanto, permanece um resíduo, desprezível em determinadas situações, mas
que tem um potencial de violentamente vir à tona. Parece que foi esse o caso com Rafinha. As
pequenas fofocas que giram em torno do fato de Rafinha receber muitas pessoas, homens
principalmente, os costumes diferentes desses amigos de Rafinha (cabeludo, maconheiro,
defenderem o meio ambiente), ao mesmo tempo questionando a sua justiça, visto que estaria
favorecendo algumas pessoas da comunidade, principalmente Maria e Margarida, que além de
trabalharem na “Farmacinha”, também se beneficiam das vendas do “laboratório”, através da
venda dos produtos ali produzidos. Outras mulheres gostariam de entrar nesse grupo, produzir
e vender remédios e aprender sobre cura, no entanto, sentiam-se preteridas. Quanto aos
homens, Rafinha está sempre a questionar a posição masculina na relação familiar e o lugar
da mulher. Inúmeras vezes, nas reuniões da “Farmacinha”, colocava sobre a importância da
mulher ter seu espaço, poder uma tarde pelo menos deixar casa, filhos, marido e se reunir com
outras mulheres, para conversar de seus problemas, trocar idéias, se sentirem mulheres.
Trata-se de um ideário que rompe com a hierarquia local, colocando nos termos de uma
ideologia individualista. Por momentos parece-me paradoxal, porque Rafinha recorre a todo
um ideal holista de saúde integral como resultado da harmonia da pessoa com seu meio. No
entanto, ao mesmo tempo, isto incorre no questionamento das relações hierárquicas imersas
na comunidade local. Para alcançar a harmonia integral, é necessário romper com alguns
lastros hierárquicos das relações locais. Com isto, Rafinha torna-se a figura que tensiona uma
ordem local, mas no seu encontro com essa realidade, ela própria cai nos paradoxos desse
encontro.
167
5.3. A tensão diante da legislação ambiental
Conseguir o acesso ao trabalho na roça, dentre as inúmeras atividades locais,
apresentou-se como uma das tarefas mais difíceis dentro do trabalho de campo. Às
combinações de ir a roça, ocorria de chover, ou haver alguma outra atividade que impedia a
minha companhia... Essa dificuldade, em parte relaciona-se ao fato da roça ser um espaço
masculino, apesar de tanto mulheres como homens trabalharem nela. Nas seis vezes que tive
acesso roça, apenas numa delas, foi conduzida por dona Eurides, mesmo assim de forma
acidental. Aqui se faz presente a oposição casa-roça/ mulher-homem, relatado em outras
etnografias que trabalham com campesinato (Moura, 1978, Woortmann e Woortmann, 1997).
Também nas entrevistas, apesar dos assuntos discorrerem sobre as épocas de plantio
do feijão ou do milho, dos preços, do que se planeja plantar, quando o assunto discorria sobre
o sistema de cultivo como um todo, pude perceber que normalmente localizavam-se num
tempo passado, quando “tudo era roça” e se “plantava de tudo”. Assim, há descrições quanto
à queima, o cuidado com o aceiro (trata-se de um trecho roçado ao redor da área que vai ser
efetuada a queima de modo a impedir a propagação do fogo além dos imites desejados), com
a direção dos ventos no momento da queima, episódios em que quase pegou fogo na capoeira
do vizinho, sendo possível conceber o sistema de cultivo local. Nesse contexto, percebe-se a
mistura entre um tempo passado e um presente, o que se fazia antigamente se confunde com o
que se faz hoje. Mais tarde, compreendi que havia outra razão para a dificuldade em elucidar
esse assunto: a proibição às queimadas.
As conseqüências dessa proibição estão presentes na comunidade através de episódios
de pessoas próximas que foram multadas. No período desse trabalho, uma pessoa havia sido
multada por estar fazendo queimada (conforme anteriormente citado). Como eu estava a
escrever sobre a Solidão, principalmente com entrevistas gravadas, é inevitável considerar
esse elemento tensionador. Informalmente, em momentos mais descontraídos ocorria de
argumentarem sobre a necessidade de queimar e as críticas à legislação, que não deixava mais
168
o colono trabalhar. Eu comentava a eles que no caso de “botar a capoeira para fazer roça”, a
lei permitia, através de um licenciamento. Ao que prontamente perguntavam: “Mas o que
adianta poder botar capoeira se não pode queimar? Prefiro então deixar crescer o mato”.
Dessa forma dentro de um sistema de manejo das roças, queimar é um elemento fundamental.
Nei, um dos moradores da Fraternidade, veio de Canoas, marcado por uma trajetória
eminentemente urbana - como a grande maioria das pessoas que passavam algum tempo com
Rafinha - e resolveu fazer uma roça de milho. Para isto, teve que derrubar uma área que
dentro da categorização local correspondia à capoeira. Em seus relatos, e acompanhando o
processo, pude perceber o quão duro é o roçar. Sol quente (apesar de ser julho), insetos e
capins a roçar os corpos, que se misturam com o suor. Alguns amigos ajudaram. Também
Mauro, morador dos Fundos ajudou na tarefa. Depois de tudo derrubado, aguarda-se que a
vegetação derrubada seque ao sol.
Conta-me Nei que quando tudo estava seco, Mauro, queria atear fogo (como
normalmente é efetuado), ao qual, Nei foi energicamente contrário, não deixando que Mauro
efetuasse tal intento.
Depois de seco, a tarefa que se segue é limpar tudo que foi roçado. Nessa ação,
também contribuí. Como sempre, o sol na cabeça, grandes galhos para serem puxados (os
maiores eram cortados com machado, para serem transformados em lenha). O terreno era
pedregoso, isto tudo dificultado pela inclinação do terreno, que exigia um esforço extra para
subir e descer com os galhos. Obviamente, nesse momento é possível perceber porque atear
fogo facilitaria o processo, eliminando os arbustos e o capim seco. Neste terreno Nei plantou
as sementes de milho, que ganhara de um amigo, que cultivava organicamente.
Ao visitar outras casas, todos sabiam que Nei havia “botado a capoeira”, seja porque
ele havia comentado com algumas pessoas, mas sobretudo, porque nessas áreas de encosta, de
diferentes pontos, visualizam-se as manchas das áreas abertas. A roça do Nei, sendo no meio
de uma capoeira desenvolvida, destacava-se visivelmente. Um dado interessante em relação a
169
esse fato é o olhar positivo que a comunidade local lançava para o fato de Nei estar plantando.
Em algumas conversas com outros moradores locais, houve observações como “o Nei veio da
cidade mas é quase como um dos nossos”, ou então, num outro comentário, dona Lina disse
que ficara muito feliz em ver o Nei abrindo aquela roça.
Ao longo desse tempo na Solidão, acompanhei o desenvolvimento dessa roça e a
colheita, não apenas eu, mas descobri que toda a comunidade. Há um sistema de vigilância
local, os quais os indícios começaram a se apresentar, algum tempo depois, após uma novena.
Entre outros assuntos em pauta nas conversas, ao entrarmos na questão da capoeira e
queimadas, Paulo me questiona, na frente de todos os presentes, “tu vê, por exemplo, a roça
do Nei, ele não queimou e me diz ai quanto ele colheu” e referindo-se a baixa produtividade
da roça de Nei e ainda mostrando com a mão o pequeno tamanho das espigas. Esse
questionamento, ainda escutei algumas outras vezes, efetuado por pessoas da comunidade.
Com isso, pude perceber o quanto se tem o controle das informações locais, inclusive de
produtividade. Da mesma forma em outras situações, pude perceber que era possível saber
quem teve uma boa colheita ou teve o feijão arruinado, entre outros assuntos relativos a
atividade agrícola.
Esse mesmo questionamento, recoloquei para Nei, ao que ele mesmo disse que não
estava interessado na grande produtividade e sim em obter o suficiente para fazer alguma
farinha e ainda poder ter sementes para a próxima safra. Ainda com relação a esse fato,
contou-me que certa vez, na casa de Marta, novamente vindo à tona esse assunto, essa teria
comentado que apesar de nesse primeiro plantio, não ter obtido uma boa colheita, nos
próximos plantios, ele teria uma produtividade maior, em função de não ter queimado. Nesses
termos, a comunidade, ao mesmo tempo em que, condena a proibição da queimada, está
atenta a possibilidade de que ela possa ser benéfica, que possa haver maior produtividade sem
a realização da queimada para plantio. Nesse sentido, a experiência de Nei, transforma-se
num experimento, onde todos querem ver confirmadas as suas assertivas, mas estão atentos
170
também para a possibilidade de refutá-la. Por exemplo, se Nei tivesse tido uma melhor
produtividade, em que termos se colocaria essa situação? No informal comentário de Marta
sobre o segundo ano de produção, percebe-se que se vislumbra essa possibilidade.
Nesse episódio, podemos visualizar um pouco do momento atual, entre a proibição de
uma prática, como se convive com essa, as estratégias para narrá-lo, a recusa à mudança sem,
no entanto, deixar de estar atento a essa. Para analisar este fato, evidencia-se a astúcia
conforme De Certeau (2003), o clássico “jeitinho” para contornar e conviver com as restrições
legais. São, portanto, práticas microscópicas que estabelecem táticas a cada instante, a cada
confronto, como esclarece o autor “uma ação calculada na ausência de uma estratégia de
ação” (De Certeau, 2003, p. 1000). Mas, também através da sociologia do segredo de Simmel
(1999) encontramos sugestões sobre os sentidos dessa situação. Sem negar que há um
componente dessa “astúcia”, admitindo que a literatura referente ao segredo adequa-se de
forma mais apropriada aos estudos no campo da religião ou dos rituais, interessa-me adotar a
noção de segredo para análise dessa situação, justamente porque no contexto colocado, há
uma questão de fundo que se liga a uma tradição do grupo. Ou seja, as práticas, ligadas a
agricultura local resguardam um componente tradicional. Nesse sentido, o segredo de práticas
ilícitas como a queimada em face ao Código Florestal instituído pela Lei Federal nº 4771, de
15 de setembro de 1965
49
e lícitas em face da cultura tradicional do trabalho na terra,
estariam relacionadas ao acionamento de práticas e saberes que tecem sistema de valores de
um pertencimento a esse grupo. Duas formas de ver o mundo, uma prática local, não
abertamente revelada. No jogo de ocultação e revelação, apresenta-se o segredo em sua
dimensão estabelecedora de relações entre dois segmentos de grupo ou indivíduos, a partir de
questões como o quanto um sabe do outro, o quanto o convívio permite que ampliemos esse
conhecimento do outro, o quanto pode ser revelado. Nesse processo de confronto
49
O seu art. 27 prevê que: "É proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação”.
171
estruturam-se novos ordenamentos sociais, em que são acionados antigos e novos
pertencimentos. Em alguns momentos sobrevém o fascínio e a tentação em revelá-lo, porque
em diferentes medidas, essa que poderia simplesmente ser ocultada, se revela. Revela-se
porque em verdade constitui esse grupo e seu modo de ser; configura-se em parte de sua
identidade, da forma de conceber e ordenar o mundo e suas atividades cotidianas.
Percebe-se também o quanto o medo da legislação ambiental, nos termos da eminência
de serem multados integra o cotidiano dessas pessoas, reforçando essa fricção entre revelação
e ocultação. Certa ocasião, conversando em frente a casa de Dona Eurides, vimos um pequeno
avião sobrevoar os Fundas da Solidão. As crianças correram atrás, curiosas, impressionadas.
E esse foi o assunto do dia, o avião que sobrevoou a Solidão. Para mim tratava-se de um avião
de passeio, alguns desses aviões que fazem passeios pelo litoral. No entanto, para a grande
maioria dos moradores tratava-se de um avião do IBAMA que estava sobrevoando para
fiscalizar se alguém estava queimando. “Mas agora o colono não pode nem fazer uma rocinha
que ficam vigiando”, comenta mais tarde Seu Lidorino. Ainda uma outra observação reforça
essa sensação de constante vigilância. Maria, filha de Ivone, disse que lera no avião “PT -
IBAMA”, referindo-se ao código de identificação do avião. Isto dito por uma criança de
apenas oito anos. Uma outra ocasião, peguei uma carona com o então diretor da Reserva da
Serra Geral, que estava com a camionete com o logotipo da Secretaria do Meio Ambiente.
Deixou-me na entrada da Solidão. Quando passamos pelo colégio, avistei ainda algumas
crianças dos Fundos na janela. Descendo da camionete, fui caminhando até a casa de Simone
para visitá-la. Ficamos conversando e neste ínterim, as crianças retornavam da escola, trazidas
pelo o ônibus escolar. Camila, filha de Simone, desce correndo e vem comentando “mãe, eu
vi a camionete do IBAMA vindo pra cá”, ao que Simone comenta: “ih, o Fulano que se
cuide...”, referindo-se a um dos moradores que há pouco havia efetuado uma queimada.
Com essa situação, chegamos a uma questão fundamental para o contexto desse
trabalho, ou seja, o fato de que, apesar desse convívio cotidiano e aparentemente pacífico,
172
temos que estar atentos a esses episódios subjacentes às relações sociais: o que não pode ser
dito. E nessa situação, a presença do medo e da insegurança instituído pela penalidade
imposta pela legislação ambiental como o conformador das relações não somente entre
indivíduos, mas instituindo grupos ou alianças através do sinal diacrítico que reside numa
prática. Tanto mais se apresenta fundamental porque como anteriormente visto, a prática da
queimada transveste-se de um caráter tradicional não somente local, mas de uma categoria
genérica, concebido como campesinato tradicional. O interessante nesse processo é que
convivem paralelamente a esse fechamento através do segredo os germes de aniquilamento
desse segredo, não no sentido de alguém que delata, mas nos termos do desaparecimento
dessa interdição pela refutação, como poderia ter sido a experiência de Nei. Nesse caso, temos
que estar atentos para outros mecanismos relacionados a esse processo, que posteriormente
abordaremos.
5.4. A atividade extrativista e a legislação ambiental
Em diferentes momentos, nesses três anos de acompanhamento da atividade, há
consenso nas afirmações referentes à diminuição da samambaia. As quantidades que eram
solicitadas para coleta também tem diminuído. Conforme Seu Juca, ao ser perguntado porque
as pessoas deixavam de plantar:
Foi parando por causa da samambaia, por que samambaia naquele tempo
dava dinheiro. Agora não dá mais nada. Primeiro o cara comprava vaca com
o dinheiro da samambaia, agora não compra nem galinha mais.
Há uma clara percepção de que a atividade extrativista apresenta modificações ao
longo do tempo. Na fala de seu Juca, são evidenciados os momentos de transição por ele
percebidos. O primeiro, da gradativa modificação das atividades agrícolas para a extrativista e
atualmente do declínio da própria atividade extrativista. Quais os fatores que contribuem para
173
esse declínio? Em parte parece estar associado ao próprio declínio da demanda (em 2002
quando iniciei o trabalho, os puxadores vinham duas vezes por semana, encomendando
aproximadamente mil molhos ou “milimoli” por vez, a partir de 2003, estes passam a vir
apenas uma vez por semana, continuando os pedidos serem de mil molhos), mas nos termos
dos moradores locais, o que é evidenciado é a diminuição da samambaia disponível, em
grande parte decorrente do avanço da vegetação, que “abafa a samambaia”, tal situação
poderia ser revertida com o corte da vegetação, ou seja, “botando a capoeira” através da
queima. Baseado nesse dado, Coelho de Souza (2003), efetuou uma leitura do tempo da
samambaia, onde associa os estádios da regeneração da vegetação as fases do extrativismo no
município. Identificou assim, uma primeira fase de expansão da atividade extrativista,
associado à vegetação em estádio inicial de regeneração, seguido de uma fase de estabilização
associado a estádios médios de regeneração e finalmente, uma fase de declínio da atividade,
associado ao estádio avançado da regeneração da vegetação, o que poderia ser uma leitura
mais detalhada do tempo da samambaia, preconizado nos capítulos anteriores.
Figura 21 – Gráfico identificando as diferentes fases da atividade extrativista e relação a
regeneração vegetal (elaborado a partir da proposta de Coelho de Souza, 2003 adaptado de
Homma 1993)
expansão
estabilização
declínio
Tempo
estádio inicial
estádio médio est. avançado
REGENERAÇÃO DA VEGETAÇÃO
(
CAPOEIRA
)
FASES DA ATIVIDADE EXTRATIVISTA
174
Na realidade, esse seria o caminho preconizado para a grande maioria dos
extrativismos (Homma, 1993), a partir da compreensão de que haveria uma tendência à
exaustão da exploração do recurso natural, caso não houvesse uma interfervenção direcionada
a manutenção dos estoques do recurso. A proposta guiada por uma leitura lógica e tecnicista
dentro desse contexto para o caso da samambaia seria uma intervenção na vegetação de modo
a estancar sua evolução através do corte ou poda da vegetação.
No entanto, dentro da compreensão local, não se trata apenas de considerar a
samambaia isoladamente. As identidades sobrepostas de colono e samambaiero, o
acionamento de pertencimentos locais e, sobretudo, a necessidade de considerar a atividade
ligada à agricultura para compreendê-la essa em sua dimensão amapla, aqui são reforçados
quando analisamos em detalhe o teor das restrições ambientais em relação à atividade
extrativista. Segundo André,
Lá onde o seu Juca mora, onde ele tá parando. Lado de lá, em cima daquele
morro onde é um chatão só, que é pura samambaia agora, tinha morador lá.
Eles moravam em cima do morro que era pra plantar, criavam porco lá,
tudo, galinha, faziam dinheiro dali, vendiam naquele tempo, levavam
galinha... pegavam de dois numa vara de galinha, de lá assim, tudo
amarrado pelas perninhas, levavam lá embaixo e vendiam tudo. Então,
aonde tem a samambaia por causa disso aí também, eles derrubavam,
queimavam, era tudo queimado, essas roças ai, plantavam, certo eu não sei
porque a samambaia gostava vir junto. Agora vai para um ponto de certo
que o povo não vive mais de roça, vai indo que ela [a samambaia] vai
terminar também.
Nas palavras de André, agricultura (como tradicionalmente é/era efetuado) está
justaposta a atividade de tirar a samambaia, no sentido de que dentro de sua percepção de
manejo, uma é complementar a outra. A samambaia dá em grande quantidade porque
anteriormente foi plantado e queimado. Ao deixar-se de efetuar esse manejo agrícola, ambas
as atividades estão fadadas a acabarem, restando apenas mato. Daí porque o mato subtrai-lhes
sua condição de sobrevivência. Com isto não estão a negar a importância do mato,
175
reconhecem sua importância em termos estéticos e ambientais, já permeados pela assimilação
do discurso conservacionista ao qual estão em contato, mas compreendem-na em seu contexto
sistêmico de manejo local. A roça, a capoeira e o mato são entidades discretas dentro de uma
complementaridade funcional e temporal. Embora o esquema interpretativo da relação entre a
vegetação e as fases da atividade sejam pertinentes, para compreendermos o teor do conflito
com a legislação temos que considerar anterior e paralelamente a essa a atividade agrícola de
colono que, em seu manejo está previsto a queima e o corte da capoeira.
A legislação sendo concebida dentro de uma lógica racional, ancorada na finitude dos
recursos naturais e na necessidade de interferência de modo a evitar a exaustão desses
recursos e a na compreensão de que na ausência desses recursos a inviabiliza-se a reprodução
humana, caracteriza-se portanto, por um olhar futurista, racional, pessimista diante das
conseqüências das atividades humanas. Nesse contexto, teríamos por parte dessa comunidade,
uma atitude mais despreocupada em relação ao futuro, conforme colocado pelas situações
expostas no início desse capítulo em relação à temporalidade local. Uma despreocupação que
não significa necessariamente um olhar otimista, antes conformista, diante dos
desdobramentos dos fatos (inclusive em relação ao meio ambiente), como inúmeras vezes
fora-me repetido a ladainha popular “o futuro a Deus pertence”.
Mas por outro lado, cabe ter em conta que essa imposição de novos ordenamentos
não recaem sobre uma comunidade anômica, repousam dentro de uma comunidade com sua
estrutura própria e que contém também táticas de defesa contra os que não partilham de seus
valores e seu modo de vida. Tal fato, pode ser evidenciado pelo exemplo de Rafinha e os
fatos cotidianos caracterizados por uma auto-vigilância relatados nesse capítulo. O desfecho
do episódio envolvendo Rafinha demonstra, a capacidade que tem essa comunidade de
fechar-se em si mesma, de afastar aqueles que tensionam o grupo.
Embora esses elementos, ao longo desse capítulo tenham sido colocados
fragmentariamente, estão intrinsecamente relacionados à questão ambiental, uma vez que
176
entre a situação estabelecidos e outsiders e a relação “moradores de Solidão/legislação
ambiental” se estabelece paralelos e os sentimentos gerados na primeira situação, de certa
forma perfilam a segunda.
Aqui se apresenta por um lado a indizível dificuldade de adesão aos novos
ordenamentos ambientais, mas também aquele resíduo inexplicável que em conversas com
diferentes visitantes de Maquiné que, tendo contato com as pessoas dessa comunidade,
caracterizam-nas como envolvidas por um certo “conservadorismo” em suas idéias e atitude
“tacanha”; uma dificuldade de reconhecimento de alteridades que em muitas situações podem
chegar a uma situação de intolerância ou violência. Delicado, portanto em sua análise e mais
delicado ainda ao lidarmos com os sentimentos e as relações de poder.
Nesses termos, ainda pautado pela figura do estrangeiro, encontraremos num terceiro
autor (além de Simmel e Elias e Scotson) que também debruçou-se sobre essa condição.
Trata-se de Alfred Schutz (1944), que em sua análise sobre esse tipo social procura ressaltar a
situação que é vivenciada pelo estrangeiro recém-chegado ao grupo. Neste intento, Schutz
diferencia os comportamentos referentes ao indivíduo que “vive” no grupo daquele que,
embora “vivendo”, também pensa sobre o grupo. Com isso, ressalta os diferentes níveis de
significação que cada individuo, constrói diante dessa situação, privilegiando a qualidade de
intermediação, visto que enquanto em Simmel a figura do estrangeiro é monolítica, em
Schutz, esse se desdobra em diferentes subjetividades constituídas no ato de interação e
encontro entre eu e o outro. Nesse sentido, encontramos em Rafinha e nos demais
“estrangeiros”, a tentativa de se tornarem mediadores no convívio cotidiano com os
moradores locais, numa tentativa de constituição de um nós, baseado em alguns consensos,
como em relação à questão ambiental. Trata-se de uma aposta, que pelos desdobramentos
atuais, apresenta-se como um horizonte longínquo, embora necessário.
177
CAPITULO 6
Tempo do artesanato: na etnografia do processo de busca de uma alternativa
econômica, as reflexões em torno do devir
Num olhar retrospectivo sobre essa comunidade, em inúmeras ocasiões
somos assolados pela imagem de decadência, ocasionada pela
impressão de estarmos diante de um modo de vida que parece fadado a
desaparecer. Isso é decorrente do estranhamento diante de um tempo
que custa a passar, pelos moradores cuja identidade ancora-se nas
memórias passadas, reforçado pelo crescente número de aposentados e
dos jovens que almejam sair dos Fundos para melhorar de vida. Mas
como em Eckert (1993), mesmo nos tempos letárgicos dos mineiros de
Cèvennes, encontramos os germes da vontade de prosseguir e de
construir um devir a partir do próprio estado de declínio de uma
atividade a que gerações se dedicaram. Esse mesmo fulcro de
reinvenção do cotidiano (De Certeau, 2003) encontramos nesse evento
etnográfico junto aos moradores dessa comunidade onde a instauração
da atividade extrativista de samambaia é o próprio exemplo. Contudo
também em relação a essa atividade, verificamos alguns respingos de
um sentimento de decadência e de declínio da atividade. Dessa forma,
178
uma das possíveis interpretações para o estado de conflito diante da legislação ambiental,
apresenta-se no fato dessa estar associada às representações de mudança operada pela
mutação da atividade agrícola para a extrativista e, sobretudo, ao declínio de sua própria
atividade e, por extensão, de possibilidade de intervenção em seu meio ambiente e ameaça a
continuidade de um grupo. Assim, um dos aspectos relevantes sobre essa comunidade está
nesse sentimento de declínio, apesar da luta em sobreviver a cada dia e em formular uma
tática diferente a cada brecha oferecida pelas situações. Dessa forma, hoje, é um tempo de
lembranças reconstruídas e também um tempo de incertezas, de um sentimento de crise e de
preocupação com os rumos das gerações futuras. Nessa constatação, há oportunidade para ser
pensado o tempos atual e a relação pesquisador- pesquisado, transforma-se no ato de pensar a
si mesmo nesse encontro e confronto de diferentes horizontes, onde o “outro” pertence a
mesma sociedade do pesquisador e, ao buscar elucidar as expectativas, as experiências e os
sonhos do pesquisado, o pesquisador nada mais faz do que se ver num espelho que o conduz
para dentro de si, de seu mundo, de suas preocupações, de seus riscos e de seus medos. Logo,
o exercício de estranhamento transforma-se em reconhecer que as crises, as preocupações e os
medos dos moradores de Solidão, são correlatos aos do meio acadêmico, aos das ONG´s e aos
da sociedade como um todo. A diferença está na linguagem e nas formas de manifestar e
reagir a esses medos.
Torna-se oportuno, a partir da experiência de busca de alternativa econômica para
atividade extrativista, refletirmos sobre tais expectativas e sentimentos, onde os Fundos da
Solidão e Porto Alegre são postos num contínuo. Esse é o tempo do artesanato. Trata-se de
um tempo virtual para a lógica produtiva local, pois não era uma atividade reconhecida pelos
moradores locais como uma real opção de renda mas, por outro lado, apresenta-se vivamente
debatida e proposta pelos integrantes da ONG, como uma alternativa econômica para
atividade a extrativista da samambaia-preta. Um tempo forjado desse encontro entre os
moradores com a ONG, com os gestores das políticas públicas, com a perspectiva ampla de
179
mercado, sobretudo, um mercado sensível, ou em processo de sensibilização aos rumos de um
mundo ecologizado (cujas ISO’s e certificações, convertem-se em exemplos).
Apresenta-se nesse momento, o espaço para esse tempo, como sendo o do devir onde
os anseios e projetos futuros afloram. Mesmo que o artesanato não se configure como uma
real alternativa, o esforço em constituí-lo como uma alternativa econômica, a mobilização de
um grupo para esse fim e a adesão de algumas pessoas, permite pensá-lo como o tempo em
construção, não mais colocado no “tempo da roça”, mas das formas e das lutas por
permanecer como pessoa e como grupo. Para a expressão desses anseios, é fundamental ter
em conta, retrospectivamente, o mecanismo e as razões para adesão a atividade extrativista da
samambaia, conforme abordado nos capítulos anteriores e, ao mesmo tempo, não efetuarmos
apenas uma análise em termos econômicos das reais possibilidades dessa nova atividade, mas,
sobretudo, descortinar um pouco das expectativas, representações e sensibilidades que
constroem esse devir.
6.1. O grupo “Samambaia-preta – artesanato”
50
Entre os desdobramentos decorrentes da realização do Projeto samambaia-preta, o
convívio entre os samambaieiros e os integrantes da ONG, do vivenciamento de sua situação
social e os impasses vividos por essa comunidade diante da legislação ambiental, está a
formação de um grupo de mulheres artesãs, denominado Projeto samambaia – artesanato.
Trata-se de um sub-grupo que se formou dentro da equipe de trabalho ligado ao projeto
samambaia-preta da ANAMA, integrado, inicialmente, por quatro pessoas dessa ONG, sendo
que duas delas saíram em 2004. Em 2005, a equipe passa a contar, novamente, com quatro
pessoas, o que significa que, nesse processo persistem duas pessoas as quais o acompanharam
o processo todo o período, a bióloga Gabriela Coelho de Souza e eu. Portanto, cabe evidenciar
50
Dados de ordem técnica referente a essa iniciativa estão colocados no artigo Coelho de Souza et al 2003.
180
aqui, novamente uma etnografia baseada nesse duplo papel por mim exercido, de militante da
ONG e pesquisadora.
Baseado no inventário de plantas utilizadas localmente, dentre medicinais e
artesanais (ANAMA-PGDR, 2003, Coelho de Souza, 2003), surgiram questionamentos
quanto à viabilidade de alguns desses itens transformarem-se em uma alternativa de renda
para a atividade extrativista de samambaia.
Esses questionamentos abriram espaço para a realização de oficinas, sugeridas por
integrantes da ONG ANAMA, envolvidos nos estudos relacionados ao artesanato e
ministradas por Romarise - uma artesã, agricultora e samambaiera, cuja família mora em
Solidão - para a transmissão das técnicas de trabalho em palha de bananeira. Essa iniciativa
desencadeou o processo de formação do grupo de artesanato local, o qual se consolidou
através de encontros periódicos, a partir do segundo semestre de 2001, com oficinas, onde
eram ensinadas algumas técnicas de trançagem em palha de bananeira e, posteriormente,
visando organizar e viabilizar a comercialização desses produtos. Ao longo desse tempo,
consolidou-se um grupo formado por seis mulheres que continuou produzindo artefatos
preferencialmente com palha de bananeira. Duas delas, Simone e Ivone, são moradoras dos
Fundos da Solidão, Romarise, atualmente mora em Maquiné (antes morava em Solidão);
Ivone Dias, Dona Vitória e Regina moram na localidade de Espraiado. Regina e seu marido
Milton tiravam e “puxavam” samambaia dos Fundos da Solidão, razão pela qual tem laços de
amizade com os moradores do Fundo. Nas primeiras reuniões e nas oficinas, surpreendi-me
com a intimidade e a camaradagem com que se cumprimentavam. Segundo relatou Regina,
numa de nossas conversas sobre sua trajetória de vida, tiravam samambaias com a família de
Margarida (cujos pais, atualmente moram perto de sua casa na localidade de Espraiado). Por
serem proprietários de uma camionete, “puxavam” samambaia, chegando a efetuar dois
carregamentos num dia. “Com a criança pequena dormindo nos pés do caminhão”, acrescenta
-Regina, relembrando o tempo da samambaia. Tempo em que havia muita encomenda. Tanto,
181
que foram perdendo o controle, pois os pagamentos eram com cheques de 60 a 90 dias e
muitos dos quais sem fundos, motivo pelo qual “foi quebrando com o negócio”. Chegaram a
ficar devendo R$ 8000,00 para os tiradores de samambaia e, até hoje, persistem resíduos
dessa dívida. Hoje em dia, Milton (seu marido) realiza trabalhos temporários em alguma
propriedade dos arredores e Regina “se vira”, segundo ela conta, ora fazendo faxina, ora
prestando algum outro serviço onde se inclui o artesanato. O casal tem três filhos dos quais, o
mais velho, Eliezer, ocasionalmente faz algum artesanato para ajudar a família.
Ivone Dias e Dona Vitória, filha e mãe, moram perto da casa de Regina, que é casada
com um dos filhos de dona Vitória. Dona Vitória, embora aposentada, continua fazendo
esteiras de junco e trança com palha de bananeira para vender a metro para uma outra artesã
da localidade que monta as peças e as revende para lojas de artesanato. Ela e sua família
moram na localidade de Espraiado há aproximadamente 37 anos, numa propriedade que tem
31 hectares numa faixa que vai até os morros. Antes moravam na Serra (município de Santo
Antônio da Patrulha). Lá tiravam erva-mate. Os “tarefeiros”
51
iam corta-la no mato,
carregavam, sapecavam no fogo, empilhavam numa base de madeira e deixavam secar uns
quatro dias no “barbaquá”
52
. Vendiam nos arredores. Depois plantaram fumo. Quando vieram
para Maquiné, chegaram a vender pedra para o calçamento dos centros urbanos, tiravam
“dinheiro de pedra”, depois veio a samambaia. Para obtê-la arrendavam lotes de terras de
outros proprietários. Há cerca de 6 anos estão tirando junco para fazer esteira, sendo que a
atividade, inicialmente, era executada por seu filho Romildo, popularmente conhecido por
Geada, que aprendera com seu sogro, morador da localidade de Morro Alto. Dona Vitória
51
Segundo Arlene Renck (1997), no processo de extração da erva-mate, são aqueles encarregados da coleta
dessa planta no mato, também denominado “ervateiro”.
52
Corresponde ao sistema de secagem da erva-mate, no entanto, tem diversas, conotações segundo diferentes
grupos étnicos. Para os de origem italiana, trata-se do sistema moderno de secagem, correlato aos atuais, e para
os “brasileiros”, refere-se ao sistema antigo, também denominado “carijo”, equivalente à secagem com fumaça.
No caso exposto, parece fazer alusão a este último contexto.
182
aprendera com seu filho a realizar esta tarefa e, juntos, passaram a produzir e a vender para os
“artesanatos” (tendas e lojas na beira da rodovia) locais. Hoje, faz trança com palha de fora de
bananeira que vende a 0,20 por metro, fazendo cerca de 10 metros por dia. Nessa rápida
trajetória de vida de dona Vitória, é interessante observar que, grande parte das atividades
produtivas de sua família foram pautadas por diferentes formas de extrativismo.
Quanto à Ivone Dias, essa morou em Caxias, terra de seu marido, mas não se
adaptando à nova cidade, retornou. Seu marido é motorista de ônibus e faz o transporte de
passageiros entre Maquiné e cidades vizinhas; Ivone até há pouco, tempo trabalhava para uma
loja de artesanatos, tingindo plantas secas. Por “ter que trabalhar com os químicos” (que
considera insalubre) e em horário integral parou de trabalhar. Atualmente executa algum
trabalho esporádico e está fazendo supletivo de modo a melhorar de vida. Tem dois filhos e,
como todas as demais mulheres, divide seu tempo entre contribuir para a renda familiar e
realizar os afazeres referentes à casa e à educação dos filhos. Essa é uma dificuldade
fundamental referente ao trabalho: conciliá-lo com os afazeres domésticos. Dessa forma, se,
por um lado, o grupo do artesanato exige a mobilização de algum tempo para as reuniões com
as participantes do grupo, por outro lado, permite ser feito em casa, adaptado às rotinas
domésticas de cada uma.
Romarise, além de ser samambaieira, exercia paralelamente atividades ligadas ao
artesanato. Sobre essa atividade comenta
Ah, o artesanato já vem desde a época da minha vó, uma bolsa, um chapéu,
uma peneira para um vizinho, um balaio. Alguma coisa eu sempre fiz. E
quando eu morei em Porto Alegre nesses três anos era só isso o que eu
fazia. Eu cuidava da casa e saia a vender as coisas.
Como exposto, morou em Porto Alegre e em Cachoeirinha, onde sobreviveu
basicamente do artesanato. Seu artesanato, uma espécie de bricolagem, que agregava às
técnicas de montagem de flores os recursos naturais que conhecia de sua vida rural,
183
reapropirando-se dos objetos ou reciclando-os; e adaptando-os as suas necessidades, de onde
resultavam seus arranjos florais vendidos de porta em porta. Nessa versatilidade um saber que
resulta num fazer, num construir e sobreviver, enfim, um saber-fazer que remete a Michel De
Certeau (2003) cujo relato de Romarise ilustra em detalhes:
Tudo era luxo. Aí eu vendia uma flor por um real. Eu fazia umas folhas,
montava uma flor com esses carvalho sabe, eu pintava as folhas de verde e
adaptava ali com um papel crepom e um arame. Botava a flor assim, botava
um botão, fazia uns raminhos, botava tudo dentro de uma caixa de papelão e
levava aquelas quantidades ou então eu fazia um cestinho pequeninho,
depois eu descobri um firma que fazia cestinha de vime que pagava R$ 0,23
a cestinha. Daí eu vendia o arranjo a R$ 1,50. Eu pegava, sovava lá no
fundo do pátio, fiz um buraco, tirei a argila, era um terreno aterrado e
sovava lá 10 quilos, botava no saquinho e guardava lá. Aí pegava as
bolinhas, que esses saquinhos de carne tudo eu lavava. Daí eu pegava e
enrolava a bolinha de barro dentro, botava dentro do cestinho porque se não
o barro sempre sai para fora das frestinhas. Então para que o barro não
aparecer eu botava aquele plasticozinho. Aí eu botava as folhas tudo na
volta e botava uns botãozinho de flor dentro e vendia. Daí depois começou
a vir os importado, não dava mais para eu fazer a cesta e fazer flor.
Porque se tu ia lá, pegava por R$ 1,99, dezessete, dezoito flor, eu não tinha
condição de arriscar. Eu tenho ainda os tecidos aí, prensa, tudo que eu fazia
as flor. Mas com aquela flor aí, não dava, não tinha nem como pensar em
concorrer, nem mais fazer a cestinha. Daí eu ia lá tinha de R$ 0,23, tinha de
R$ 0,50, e eu pegava aquelas cestinha já prontas e montava os arranjo
dentro. Ou pegava já os vasos do R$ 1,99, só sovava bastante, montava ali
uma mesada de arranjo, vendia aqueles ali e comprava mais flor e montava
os arranjo e vendia, os carvalho, as macega, assim, essas capoeirinhas eu
tirava e pintava eu mesma em casa.
Romarise concluiu o supletivo de primeiro grau e, em 1997, retornou à Solidão onde
seus pais e irmãos moravam. Permaneceu fazendo artesanato: empalhava cadeiras,
confeccionava balaios, arranjos e guirlandas florais, além de plantar e tirar samambaia.
Atualmente, mora em Maquiné com seu companheiro Roberto, sendo reconhecida pela
184
comunidade pela atividade artesanal. Em função disto, passou a ser uma das
informantes-chave num levantamento etnobotânico, previsto dentro do Projeto
Samambaia-preta, quando ainda morava na Solidão. Isso oportunizou uma aproximação com
os integrantes da ONG, gerando uma forte amizade. Dentro desse contexto, foi convidada a
ministrar oficinas sobre as principais técnicas de trançagem em palha. No inicio estava
reticente em relação ao sucesso da iniciativa pois, segundo ela, nunca acreditou nesses
“grupos” ou nessas organizações coletivas. Porém com a gradativa adesão por parte de
algumas mulheres, a ponto de configurar-se num grupo especifico de
agricultoras-samambaieiras-artesãs, observou-se, ao longo do tempo, um envolvimento cada
vez maior por parte de Romarise.
Com o objetivo de aglutinar ao produto a referência a esse grupo de artesãs,
conferindo ao produto uma identidade própria e, com isso, possibilitar agregar valor às peças
produzidas, foi criada uma etiqueta com a logomarca “Samambaia-preta - Artesanato”,
demarcando a atividade artesanal como uma alternativa de renda às pessoas envolvidas na
atividade extrativista da samambaia-preta.
Figura 22 – Etiqueta identificando as peças
artesanais produzidas pelo grupo de artesãs.
185
Figura 23Parte do material de divulgação do grupo que trabalha com o artesanato.
186
6.2. Reflexões em torno da formação do grupo e da instauração da atividade artesanal
como uma alternativa de renda
No processo de formação e instauração desse grupo, houve muitas reuniões e
conversas informais onde o questionamento fundamental era o que compreendiam como uma
alternativa de renda e quem poderia ajudá-las para a consecução desses objetivos. Para essa
análise, foram consideradas a participação nessas reuniões e, sobretudo, conversas informais
onde procurei questionar sobre alguns itens específicos, buscando estabelecer um debate.
Esses encontros eram realizados aos fins-de-semana: períodos que as integrantes da ONG
tinham livre, pois se tratava de uma atividade voluntária, encaixada em suas rotinas
profissionais ou acadêmicas.
Segundo os comentários levantados nessas interlocuções, Rafinha já havia colocado
essas questões e teriam escrito um projeto para a construção de uma “tafona”
53
, para processar
o aipim. Em relação aos percursos desse projeto, pouco se pôde detalhar, no entanto,
ressaltava-se como uma experiência negativa, “que não deu certo”, razão pela qual se
mostravam reticentes e sem muito entusiasmo para elaborar e aderir a uma outra proposta.
Ao questionamento sobre algumas alternativas, numa reunião com os moradores dos
Fundos da Solidão, realizada em 2001, as sugestões apresentadas foram: a) laboratório para
produção de fitocosméticos; b) fábricas de conservas e compotas; c) plantio de ervas
medicinais; d) plantio de bananeiras; e) padaria; f) creche comunitária para as mulheres
poderem trabalhar nos projetos; g) aviário de codornas; h) fábrica de calçados; i) plantio de
samambaia-preta. Esses itens permitiram visualizar um pouco do espectro de expectativas dos
moradores.
Fundamental observar que, dentre esses itens, o artesanato não foi citado como
alternativa de renda, posição defendida por alguns membros da ONG, baseada na lógica
53
Uma espécie de moinho manual para moer a mandioca ou aipim.
187
produtiva do extrativismo que caracterizava a atividade samambaieira. Dessa forma, refletir
sobre a ascensão dessa atividade como alternativa, implica ter em conta a presença de projetos
diferenciados entre os anseios locais e dos integrantes da ONG e conseqüentemente a
presença de um processo de negociação, caracterizado por relações assimétricas. Alguns
moradores colocavam a vontade de ter um emprego fixo, com salário garantido no fim do
mês, sendo uma das principais aspirações a obtenção de estabilidade financeira. Diante das
diversas opções, pode-se visualizar a influência dos diferentes grupos com os quais esses
moradores convivem: o laboratório e as plantas medicinais, relacionam-se ao trabalho de
Rafinha; o plantio de samambaia, à presença dos pesquisadores da ONG; a fábrica de calçado,
à experiência pregressa de moradores que foram trabalhar em Campo Bom, exercendo
funções relacionadas a essa atividade, e sobretudo, o exemplo de Arlindo, o “Doca”, filho de
Dona Henriqueta. Esse foi um dos que foi trabalhar com calçado em Campo Bom e hoje é
dono de uma pequena fábrica de calçados, sendo o exemplo maior de um filho da localidade
bem sucedido. Todas essas alternativas implicam, logicamente, em investimentos de capital.
Quando questionados sobre as possíveis fontes de apoio, colocavam a prefeitura e de uma
forma genérica, o “governo”. Governo nesse sentido, representa uma entidade genérica e
abstrata, “os mesmos que fazem as leis” e esse era o argumento fundamental para
reivindicarem esse apoio devido ao fato desses serem os responsáveis pela proibição de
queimar, caçar, tirar samambaia.
Diante dessas formulações, ocorreu de questionar quem representava o governo. As
respostas mais freqüentes relacionavam-se aos políticos, ao presidente e ao governador.
Dentro desse quadro, em muitos momentos, os integrantes da ONG eram colocados como
seus interlocutores e intermediadores. Declarações como: - “Diz lá pro Olívio ou pro
Ibama...”, eram comuns, denotando, com a presença da ONG, um sentimento de aproximação
com as diferentes instâncias deliberativas, o que, ao longo de tempo, foi se desvanecendo e
instaurando uma percepção de que os integrantes da ONG não detinham esse poder.
188
A presença e o conhecimento desses “personagens governamentais”,
fundamentalmente se fazia pela televisão, através dos noticiários e, secundariamente pelo
rádio. Alguns nomes tornam-se emblemáticos nesse governo genérico, como era no caso do
“Collor” e do presidente “Lula”. Todavia, a essa generalização entre o povo e o governo, não
se visualiza uma possibilidade ou um mecanismo para uma interlocução com essas esferas.
Em muitas conversas informais, questionei quem poderia levar essas reivindicações,
ou como fazer para mudar essa situação. Muitas vezes, a pergunta era rebatida e re-colocada.
Por esse motivo, tentava explicar um pouco das diferentes hierarquias dos processos
decisórios da esfera estatal mas, ao mesmo tempo acabava concluindo, como eles, que era um
caminho penoso e, portanto, difícil de ser trilhado. Nesses momentos, era confrontada com a
magnitude desses processos deliberativos, mais especificamente aos que se relacionam a
esfera ambiental. Já as reivindicações da esfera local, como relativas às estradas, a
necessidade de uma máquina para abrir valetas ou uma carga de cascalho para tapar algum
buraco, são diretamente remetidas ao prefeito, ao vereador, ou algum conhecido ou familiar
influente na prefeitura. Entre essas duas situações de reivindicação local e a dependência de
esferas mais amplas, encontramos a complexificação das relações e a dificuldade de operar
com essas instituições abstratas. Portanto, na busca de uma organização complexa que
depende de incentivos ou apoio estatal, o grande empecilho estava em conseguir visualizar a
concretude do processo. Como esse pequeno grupo dos Fundos da Solidão teria seus anseios
atendidos na forma de um apoio concreto? E decorrente dessa dúvida fundamental, pode-se
entender o obstáculo em acreditar que tal empreendimento realmente pudesse dar certo. Nesse
sentido, essa situação encontra paralelos com a dificuldade de operar com as restrições
ambientais pois, para a compreensão das leis, há a necessidade de operar com essas
instituições abstratas e com sua lógica. Ao mesmo tempo, remete-nos ao modo de ser de todas
essas pessoas que constroem suas vidas baseadas na concretude do hoje e das relações diretas.
Para não restringir os sentidos dessa afirmação, como concreto, podemos abarcar uma gama
189
de atitudes, desde a reivindicação direta ao prefeito ou ao pedir um favor ao vizinho, ao
negociar com o puxador, assim como ao oferecer à “Santinha” uma moeda a cada peça de
artesanato vendida. Nesse sentido, a concretude está associada a um sentido de eficácia
fundamentada na experiência que lança mão de um arcabouço de conhecimentos, que é
formado ao longo do percurso biográfico de um indivíduo. E isto se torna mais claro, ao
remetermo-nos retrospectivamente à instauração da atividade extrativista pois, também
naquela situação, um repertório de conhecimentos que abrangem desde as habilidades
corporais adquiridas de agricultor (muitas vezes não acessível discursivamente), até uma série
de saberes genéricos sobre a planta e seu ambiente, encompassados por táticas específicas,
segundo as adversidades da situação ajudaram a constituí-la.
Nesses termos, a atividade artesanal encaixava-se em alguns quesitos do habitus e dos
saberes locais, ou seja, a familiaridade com a matéria-prima e o processo de obtenção. As
bananeiras, na região dos Fundos da Solidão, eram muito comuns, inclusive tendo inúmeros
bananais abandonados na capoeira onde os moradores iam - e vão até hoje - colher os frutos
para consumo próprio. Esses bananais são os restos de uma iniciativa pregressa que buscou
implantar o cultivo de bananas na área dos Fundos da Solidão, mas conforme relatos locais,
não se mostrou adequado devido à alta umidade, razão pela qual os bananais foram
abandonados. Apesar de serem impróprios para uma atividade comercial intensa, constitui-se
em fonte de alimento para todos os moradores que, freqüentemente, coletam a banana. Alguns
têm bananeiras cultivadas em seus quintais, perto das casas e, ocasionalmente, vendem no
mercado local, o que lhes rende algum dinheiro, principalmente uma variedade específica, a
banana-maçã, muito apreciada. Em geral, após coletado o cacho, a bananeira é derrubada para
que propicie o rebrotamento. Sendo a fibra da bananeira obtida do pseudocaule da planta, está
disponível em grande quantidade, o qual é cortada em lascas longitudinalmente e posta para
secar. Assim, obter a matéria-prima e processá-la foi rapidamente assimilado pelo grupo, da
mesma forma que a manufatura da peça, que exigia grande habilidade manual e,
190
principalmente, força para costurar não se constituía em dificuldade, uma vez que todas
estavam acostumadas ao trabalho pesado do cotidiano de agricultoras e samambaieiras.
Além disso, a matéria–prima adicional reduzia-se ao fio para costura, visto que as
agulhas provinham de varetas de guarda-chuvas inutilizados que eram passadas no rebolo
para adquirirem ponta. Ainda relacionando essa atmosfera a qual favoreceu a adesão inicial a
essa atividade, está o fato de que o artesanato era corrente entre as mulheres localmente. Ao
olharem as peças produzidas, eram relatados episódios e lembranças de chapéus, sacolas,
peneiras e balaios que eram feitos com palha de trigo, com tiririca e com taquara. Esses eram
produzidos nas casas pelas mães e pelas avós. Aliado a tudo isto, havia, por parte de cada uma
que mostrava seu trabalho, uma satisfação íntima de ver uma obra sua, acabada, onde,
gradativamente transparecia o estilo de cada uma das artesãs.
Referente a esses estilos e gostos estéticos, houve um processo de negociação onde,
através da intervenção de integrantes da ONG, por meio de comentários e avaliação das
vendas, os tipos de peças foram sendo modificados ao longo do tempo. Esses passaram de
peças decorativas para utilitárias cuja apresentação ia ao encontro dos gostos urbanos que
buscava o rústico e o artesanal. A contemplação de duas peças, uma de um momento inicial
do processo, e outra mais recente, permite visualizar tais transformações (figura 21).
Figura 24 - Peças produzidas antes e após o processo de formação do grupo.
191
6.3. Algumas dificuldades do processo de instauração da atividade artesanal como
alternativa de renda
Desde 2001, com as primeiras oficinas, até o momento atual, pode-se assinalar alguns
períodos ou fases que demarcam o processo desse grupo. Logo, num primeiro momento,
houve grande entusiasmo por parte das mulheres, inclusive com alguns homens integrando a
equipe. Inúmeras pessoas tiveram passagem pelo grupo, no entanto, não permaneceram.
Diversos fatores contribuíram para a não permanência dessas e permitiram evidenciar as
dificuldades desse processo.
As peças produzidas eram escoadas através da intermediação das integrantes da
ANAMA que, inicialmente, identificou alguns pontos para venda. Nesse período, as mulheres
produziam, segundo sua demanda pessoal, as peças que julgavam convenientes. No entanto,
no contato com o consumidor, começaram a aparecer às exigências do mercado, tanto em
termos de escala de produção quanto em qualidade. Dentro de uma lógica de mercado,
solicitava-se que passassem a confeccionar numa escala maior e com determinado padrão, o
que requeria, por parte das mulheres uma autodisciplina que incluía a capacidade de prever o
tempo para execução da peça, assim como a consecução de um padrão homogêneo para os
produtos. Prever o tempo de realização de um trabalho, efetuado entre um afazer doméstico e
outro, entre atender os filhos e o marido, era uma tarefa quase impossível. Além disso, a
necessidade de cobrir determinada demanda gerava uma ansiedade entre as mulheres qu,e
segundo elas, não conseguiam manejar.
“Isso me deixou muito estressada”, comentou-se certa vez Simone. Toda essa situação
remete à experiência da samambaia-preta. Frente a complexidade da cadeia produtiva da
samambaia, verifica-se que os samambaieiros se restringem aos patamares iniciais, relegando
aos puxadores a operação nos elos seguintes. No caso da samambaia, constata-se que todas as
decisões referentes à quantidade recaem sobre o puxador. Esse, conhecendo os limites
produtivos de cada um que coleta, distribui as demandas de modo a cobrir as solicitações do
192
mercado; aos tiradores, cabe coletar e entregar na data combinada. Da mesma forma, nesse
grupo, os olhares, inicialmente, apresentam-se restritos aos patamares iniciais, ou seja, o
grupo dá conta de produzir determinada demanda com características bastante específicas: em
pequena escala, dentro de uma liberdade produtiva ainda não cadenciada pelas exigências do
mercado ou de outras esferas institucionais.
Esse foi um dos grandes dilemas dentro desse processo, pois o que se observava era a
dependência cada vez maior da intervenção das integrantes da ANAMA. Essas estavam se
constituindo nos puxadores de samambaia, reproduzindo uma situação ao qual se propunham
a romper. Diante dessa constatação, buscou-se repassar esse dilema para as artesãs. Uma das
formas para subtrair-se desse dilema estava na participação em feiras de artesanato e de
agricultores familiares, o que propiciava uma interação direta com o consumidor, eliminando
a intermediação e, consequentemente, atingindo melhores preços e proporcionando um
confronto entre artesãs e consumidores. Isso permitiria a ambos um espaço para negociação
direta, não somente dos preços, mas também das expectativas e das limitações. Entretando,
participar dessas feiras, significava ausentar-se do ambiente familiar por um intervalo de
tempo intermitente, acarretando em incômodos à rotina familiar. Uma alternativa para essa
situação foi enviar alguém do grupo que não tivesse filhos pequenos e que tivesse maior
liberdade em relação às obrigações domésticas, no caso Romarise. Porém, enviar alguém para
participar de uma feira, incorria em despesas de deslocamento, estadia e alimentação, o que
exigia um esforço de organização do grupo para recolher de cada peça vendida um percentual
destinado a cobrir esses gastos. Também esse fato gerou grandes dificuldades, pois aquelas
que vendiam mais se sentiam lesadas, uma vez que em termos absolutos haviam contribuído
com mais dinheiro do que outra que vendera menos. Aos poucos, o grupo começava a tomar
contato com uma contabilidade racionalizada onde era necessário prever um custo inicial para
o produto, oriundos das despesas de produção e de transporte, diferentemente da
contabilidade ligada à lógica do extrativismo da samambaia, que era percebido como com um
193
custo mínimo, próximo a zero, uma vez que o próprio barbante com o qual eram amarrados os
fardos era fornecido pelo puxador e todo o resto era retirado da natureza cujo manejo, nesse
sentido, incorria apenas em administrar esse “tirar”.
No caso da samambaia, o preço era previamente estabelecido pelo puxador - valor esse
que permanecia o mesmo de oito anos. Diante dessa lógica, o questionamento referente aos
preços era colocado aos integrantes da ONG: “Quanto vale essa peça?” Uma vez que os
gastos com o material eram mínimos, para equacionar esse dilema, colocava-se como um
parâmetro possível o cálculo do trabalho despedido para coleta e manufatura da peça. Isto
envolvia um esforço de, além de avaliar esse tempo gasto, valorá-lo, convertendo em
dinheiro. Portanto, um tempo que estava imerso num todo cotidiano precisava ser fracionado:
cuidar das crianças, fazer comida, lavar roupa, fazer o artesanato. Um outro aspecto dessa
equação é a compressão dos sentidos do trabalho somente ao tempo despendido, ignorando as
diferentes dimensões do cuidado com a peça, sua concepção, de onde surgiu a idéia para
determinada peça, o gosto pela confecção... minúcias que, constantemente, eram relatadas
pelas artesãs nas reuniões. Logo, um aspecto relevante para elas, mas que, nessa lógica de
valoração proposta, acabava passando para um segundo plano.
Outras questões surgiam paralelamente a esses fatos. Como citado anteriormente,
apesar de dedicarem-se ao extrativismo, suas identidades matizam-se a de colono,
colocando-se como agricultoras em termos legais. Entretanto, mediante ao fato de passarem a
dedicar-se ao artesanato, os questionamentos recaem sobre a perda do estatuto de agricultora
e, com isto a possibilidade de perderem o direito à aposentadoria rural. Essa preocupação era
relatada nas reuniões e, amplamente, debatida em casa, com seus maridos, sendo fator de
pressão, para que deixassem de se dedicar a essa atividade. Assim, havia um temor de ordem
legal em se apresentarem como artesãs. Dedicar ao artesanato exigia, ao longo desse tempo,
assumir uma identidade e um papel ao qual não estavam preparadas, ou ao menos, exigia
delas grandes rupturas, não somente do ponto de vista legal, mas, sobretudo, em alocar em seu
194
cotidiano um tempo e um espaço para tal identidade. Significava pois, redimensionar seu
tempo dividido entre cuidar dos filhos, da casa, ajudar na roça, tirar samambaia. Implicava em
tomar contato com novos valores urbanos e ritmos não adaptados aos seus, passando a
contribuir de forma direta no orçamento familiar. Isso exigia, também por parte do marido,
dos outros integrantes da família e do grupo social um outro olhar sobre elas, não mais de
mães exemplares, mas de uma certa forma, de competidoras, ameaçando o estatuto masculino
de provedores da família.
Quanto à venda dos produtos, de um modo geral, não se apresentou promissor e
bastante dependente de uma intermediação eficiente e adequada à realidade local. No caso
desse grupo, era efetuado pelos integrantes da ONG, cuja experiência com mercados era
restrita, uma vez que demandava uma disponibilidade de tempo não somente para as reuniões,
mas, sobretudo, de visitas às lojas e constante interlocução com diferentes segmentos do
mercado, o que foi possível numa fase inicial, onde havia uma pessoa, recebendo uma ajuda
de custo para efetuar essas operações. Impossibilitados de prosseguirem com sua
remuneração, o volume das vendas diminuiu significativamente. Para ilustrar as vendas
intermediadas pelos integrantes da ONG, nesse momento, onde já não havia alguém
exercendo essa atividade específica de contato com as lojas e com o mercado - cabendo
ressaltar que afora essas vendas, as próprias artesãs vendiam para conhecidos ou
intermediadores locais - o quadro abaixo coloca o volume de vendas em reais (R$) entre
março de 2004 a fevereiro de 2005.
195
Quadro 10 - Venda dos produtos do grupo Samambaia-preta-artesanato em Reais (R$), no
período entre março de 2004 a fevereiro de 2005, intermediado pela ONG ANAMA.
Pelo quadro colocado, os valores das vendas nesse intervalo de tempo, apresentam-se
baixos o que evidencia, para o grupo, a importância da intermediação, ou melhor colocado,
que um dos problemas fundamentais não estava na produção, mas no escoamento ou nas
formas de alcançar o mercado consumidor. Fator esse que ressalta a situação de dependência e
de necessidade de articulação com as esferas mais amplas do mercado, exigindo, antes de
mais nada, alargar o espaço de ação para além dos limites dos Fundos da Solidão ou de
Maquiné. Apontava, cada vez mais, para a necessidade das pessoas desse grupo, tão enraizado
localmente, saírem desse círculo, o que, com a atividade extrativista da samambaia-preta, não
se fazia necessário.
Dessa forma, o contexto de desenvolvimento desse grupo foi bastante oscilante, entre
momentos de euforia por algum resultado positivo, acompanhado por uma constante aflição
diante das incertezas dos rumos futuros. Houve reuniões esvaziadas; desentendimento entre as
integrantes; desânimo por parte de quem achava ter investindo mais energia que as demais
companheiras do grupo; problemas de organização; cancelamento de reuniões porque não
dispunham de carro, uma vez que os deslocamentos dependiam da disponibilidade de carros
mês produção venda unidade total venda (R$) média (R$)
mar/04 39
7
Peça
30,98 4,43
abr/04 34
20
Peça
106,20 5,31
mai/04 34
13
Peça
55,68 4,28
jun/04 12
1
Peça
2,48 2,48
jul/04 13
24
Peça
75,38 3,14
ago/04 14
18
Peça
124,83 6,94
set/04 37
6
Peça
71,10 11,85
out/04 16
0
Peça
0,00 0,00
nov/04 37
5
Peça
27,00 5,40
dez/04 20 12
Peça
106,60 8,88
jan/05 42 58
Peça
394,16 6,80
fev/05 28 14
Peça
49,95 3,57
326 178 1044,36 5,87
196
particulares das integrantes da ONG, transparecendo a dificuldade que tinham essas mulheres
em trabalharem como grupo e os limites da idéia de solidariedade.
Frente a essas questões, o caso da samambaia mostra-se bastante significativo, pois a
partir das dificuldades vivenciadas para a formação do grupo de artesanato, podemos
constatar a dimensão e as características do processo de instauração da atividade extrativista
de samambaia e de como esse, ao longo do tempo, instalou-se dentro da comunidade e da
região, abarcando homens e mulheres, adaptando-se a uma organização social e familiar local.
6.4. Fatores que contribuem para a permanência desse grupo
Nos esforços dessa conversão trabalho-dinheiro ou, através da presença do dinheiro
enquanto um centro de interesse para esse grupo - uma vez que o objetivo primeiro de sua
formação, da atuação da ONG e das mulheres se reunirem, girava em torno da busca de
alternativas econômicas para essas pessoas - podemos visualizar os vários sentidos do
dinheiro, um dos pilares das sociedades modernas conforme Georg Simmel (2005). O
dinheiro torna-se a razão do grupo existir, também o motivo dos conflitos internos. Aqui,
como citado por Simmel, o meio torna-se um fim. Perante essa situação, tentando analisar o
caso do extrativismo da samambaia-preta, pode-se avaliar as modificações que vão se
instaurando ao longo desses processos de transformação das atividades produtivas. Por
exemplo, com a conversão do trabalho agrícola voltado à economia doméstica para o
extrativismo, uma modificação perceptível está na dieta alimentar que, segundo relatam, era
baseada nos gêneros alimentícios cultivados. Com o extrativismo, passou-se a plantar menos
e, com a posse do dinheiro, gradativamente, passou-se a consumir produtos industrializados,
como bolachas, óleo de soja, leite em pó, refrigerantes, margarina entre outros, com todos os
seus subprodutos como as embalagens, que passam a integrar o cotidiano dessas pessoas não
somente na forma de maior quantidade de lixo nos arredores da casa, mas reutilizado
197
cotidianamente como recipientes para guardar os grãos, transformado em lamparinas,
brinquedos, raladores, enfeites), utilizando-se do gás de cozinha, dependendo cada vez mais
da ida ao mercado. Do ponto de vista da cadeia produtiva, visualiza-se, sobretudo a
complexificação das relações e a dependência maior de esferas mais abrangentes da
sociedade, reforçando o que Georg Simmel (2005) coloca em seu texto sobre o dinheiro, ou
seja a monetarização do mundo moderno e suas conseqüências nas relações sociais e no
próprio modo de ser do homem moderno em termos de uma maior abstração das relações e
tendência ao individualismo.
Pelas dificuldades colocadas, nessa centralidade do dinheiro, o “lado qualitativo dos
objetos perde sua importância psicológica por causa da economia monetária” (Simmel, 2005,
p. 31) mas, enquanto processo de criação e gerador de uma necessidade de coesão do grupo,
encontra-se, através da análise dos significados da produção artesanal para essas pessoas,
diretamente ligadas a esse processo, um afloramento de antigas sensações revestido em novas
situações e descoberta de diferentes sensibilidades, em parte, ligadas ao processo criativo e ao
seu papel social dentro da família e do grupo. O prazer encontrado na visualização de uma
roça limpa e plantada, também é encontrado na peça acabada. Ao mesmo tempo, os olhos
estão atentos ao que os outros produzem, ao que a companheira do grupo anda produzindo,
como ela faz, o que a TV apresenta. O mundo da decoração das novelas e dos programas de
televisão vai penetrando no cotidiano local. “Aquela rede do Big Brother Brasil”
54
, passa a ser
reproduzida. O que é belo ou interessante vai adquirindo novos matizes. Na emergência
dessas situações, a necessidade de explicitar sentimentos conflitantes, como a vontade de
maior liberdade em relação às regras do grupo social, a descoberta da autonomia feminina e
as revoltas recalcadas perante atitudes condenáveis do ponto de vista do grupo familiar.
54
Programa de televisão em formato “reality show” onde se acompanhava pela televisão o cotidiano de um
grupo de pessoas confinadas em uma casa.
198
Por outro lado, para os integrantes da ONG, a venda das peças para complementar a
renda familiar dessas pessoas e esse processo como um todo, reveste-se não apenas de uma
ação para ajudá-las, mas o interesse em atrelar a valores “ambientalmente corretos” ao uso das
fibras naturais, embutindo-os no preço final da peça e na argumentação para a sua venda.
Nesses termos, um valor relacionado a uma atitude perante a natureza e aos recursos naturais
é convertido em um valor monetário. O consumidor de tais peças é, exatamente, o grupo que
busca em Maquiné um convívio mais harmonioso com a natureza - os “novos rurais”, os
“ecologistas” (conforme colocado no primeiro capítulo). Nesse caso, o dinheiro é um meio
para alcançar um outro fim, a preservação ecológica, compreendida como a busca de um
desenvolvimento sustentável para a região.
Diferentes anseios e perspectivas de vida se encontram pautados pela centralidade no
dinheiro. Por parte das samambaieiras-artesãs, a vontade de poder efetuar melhorias na casa,
“comprar uma carroça ou um fusquinha para sair oferecendo o artesanato por aí”, poder ter
um banheiro em sua casa, poder ter seu próprio “dinheirinho”, poder proporcionar aos filhos a
continuidade dos estudos. Já para os integrantes da ONG, trata-se de viabilizar uma ação que
possa contribuir para a melhoria de vida dessas pessoas, atrelado à preservação ambiental, ou
seja provar que é possível equacionar preservação e desenvolvimento: mesclam-se fortes
interesses individuais a um idealismo ecológico. Por um lado, as samambaieras-agricultoras,
com nível de escolaridade básico, por outro, profissionais e estudantes universitários
vinculados a diversos projetos acadêmicos: evidencia-se uma relação entre agentes dotados de
volume e de estrutura de capital-social bastante diferenciados onde estão em jogo diferentes
identidades (agricultor-extrativista e mediador social) com todas as assimetrias dessa relação
desigual.
Nesse contexto, a questão fundamental que se coloca está em compreender como
agentes tão diversos propõem-se a seguir juntos, ou, mais especificamente, porque até o
presente momento permanecem interligados. Na análise dessa situação, embora sejamos
199
propensos a pensar em projeto de vida, onde os agentes envolvidos projetam determinadas
expectativas de futuro que vão sendo construídas paulatinamente, tal como a noção de
estratégia de Michel De Certeau (2003), para o contexto analítico proposto, apresenta-se, mais
pertinente, ancorar na noção de tática como uma contraposição a essa, ou seja, construída na
ausência de uma estratégia, a cada passo, segundo se apresentam as situações, tal como em
relação ao extrativismo da samambaia e sobretudo no posicionamento diante da legislação
ambiental, agora evidenciando os interesses que estão em jogo.
Para isto, pressupõe-se que as pessoas não agem de maneira disparatada que, pelo
menos nesse caso, não estejam fazendo coisas sem sentido para elas. Isso significa que há
uma racionalidade subjacente às suas escolhas, mesmo que essa não tenha sido orientada de
modo racional. Sendo movido pelo interesse, tem-se a motivação a partir da avaliação de que
seja interessante aderir a esse grupo. O investimento que se aproxima da metáfora de um jogo,
referindo-se a energia que leva cada jogador a entrar no jogo, a investir, seja emocional, física
ou intelectualmente
55
. Nesse caso, o que leva cada uma das mulheres a sair de casa e a deixar
sua família para se reunir com as demais ou as integrantes da ONG a saírem de Porto Alegre,
da mesma forma deixando seus familiares em momentos destinados, em princípio, ao
descanso e ao lazer?
A constatação de que a samambaia está acabando, aliada às escassas oportunidades de
alternativas de atividades econômicas e, por parte das integrantes da ONG, a busca de um
desenvolvimento sustentável estão entre as razões explícitas para as avaliações favoráveis em
torno da adesão a esse grupo. No entanto, além desses argumentos racionais, há uma outra
ordem de sentidos que cimenta esse grupo, caso contrário, baseado numa análise racional, do
55
Referência à noção de illusio, conforme Pierre Bourdieu (1996, p. 139-140), onde “os jogos sociais são jogos
que se fazem esquecer como jogos e a illusio é essa relação encantada com o jogo que é o produto de uma
relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social”.
200
ponto de vista das vendas, por exemplo, o que se concluiria era a impossibilidade desse grupo
de continuar.
Um fato relevante que se observa, ao longo desse processo, refere-se às relações
pessoais que vão se constituindo nessa interação de grupo. Ao final da reunião, juntamente
com as peças artesanais transportadas no carro para serem levados às lojas, também eram
oferecidos: aipim, bananas, algumas verduras. Ao mesmo tempo, por parte das integrantes da
ONG, eram oferecidos alguma roupa para as crianças, um outro utilitário doméstico que não
mais estava sendo utilizado, um remédio que era conseguido em algum posto de saúde.
Enfim, caracterizam-se relações de reciprocidade que, ao longo do tempo, alimentam
sentimentos de confiança e de proximidade, ou, mais especificamente, a percepção de forma
mais clara das diferenças e das proximidades entre cada uma das integrantes do grupo. Essa
percepção, proporcionada pelas diversas atividades do grupo, tais como a vinda ao Fórum
Social Mundial
56
que, inversamente as situações anteriores, obrigou os moradores do Fundo a
se deslocarem para o universo das integrantes da ONG, inclusive hospedando-se nas suas
casas. E, nessas estadias, aparentemente tranqüilas, em realidade, apresentavam-se de forma
mais pungente as diferenças dos respectivos universos sociais: os horários; a dependência do
dinheiro (cada deslocamento de ônibus ou uma simples garrafa de água incorria em gasto); o
modo de vida (alguns confortos como o banheiro, os quartos reservados, os eletrodomésticos);
as diversões (os hábitos de ir ao teatro, ao cinema, os programas culturais); o gosto ruim da
água, entre outros, eram alguns parâmetros que eram comentados informalmente entre uma
brincadeira e outra.
Dessa forma, as entidades e os comentários implícitos nas relações entre essas pessoas
(como a universidade, o computador, a internet e e-mail...) passam se apresentar de forma
concreta, proporcionando comparações e julgamentos de valores. Algumas observações como
56
Evento internacional realizado em janeiro de 2005 em Porto Alegre, reunindo os mais diferentes segmentos
da sociedade, visando debater uma serie de questões relativos à economia, política, meio ambiente, entre outros.
201
“vocês não dependem de vender o artesanato para comer”, em alguns momentos de
discussões agudas eram correntes de se ouvirem, justamente, baseado na gradativa
familiaridade com os universos sociais diferenciados.
O estabelecimento de relações recíprocas é um dos fundamentos desse grupo, porém,
um aspecto que leva a essa situação abre-nos a possibilidade de analisarmos esse grupo,
abarcando questões mais amplas como a problemática ambiental. Esse se refere a confiança.
Partindo da categoria confiança, entre as mulheres que integram esse grupo e as integrantes da
ONG, podemos num primeiro momento, estabelecer diferenciações. Conforme o processo
relatado nesse capítulo, coloca-se o estabelecimento de laços de confiança, baseado na
co-presença dos atores sociais e a vivencia aproximada como mediadora das relações entre
essas pessoas. Ao mesmo tempo apresenta-se fundamental para selar essa confiança a
possibilidade de perceber um horizonte em comum, ou seja, interesses próximos, ou pelo
menos compreendidas em suas diferenças.
Para fazer um contraste, tomando os fundamentos da problemática ambiental do qual
estão imbuídas as integrantes da ONG, sobretudo, a noção de risco ambiental, verifica-se que,
da mesma forma, alavanca-se num sistema de confiança, porém, trata-se, nesse caso, de
confiar em técnicos, biólogos e pesquisadores. Essas são instituições abstratas que, ao longo
do tempo, vêm constatando os riscos que a não-preservação dos recursos naturais pode
ocasionar. Nesse contraste, tem-se dois sistemas de confiança bastante distintos. A partir
dessa constatação, verificamos também a gradativa tendência para a necessidade de confiar
em sistemas abstratos aos quais estamos submetidos, ocasionando o que Anthony Giddens
designa de “desencaixe dos sistemas sociais”, compreendido como o “deslocamento das
relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões
indefinidas de tempo-espaço” (Giddens, 1991, p. 29). Esse autor utiliza como referência essa
noção para pensar a transição do mundo tradicional ao mundo moderno em sua dimensão
espaço-temporal.
202
No caso em questão, o que se verifica é como esses sistemas de confiança se
interconectam, por exemplo, os valores relativos à preservação ambiental (baseado num
sistema abstrato de confiança), lentamente, escoa através de relações de confiança,
pessoalmente construídas ao longo do tempo e a própria rotina e intimidade cotidianas
também vão sendo afetadas, seguindo um curso de aproximação de horizontes. Da mesma
forma, a temporalidade construída em referência a um passado promissor de colono –
portanto construída sobre um sistema de confiança numa tradição local – confunde-se com um
tempo que busca a ruptura com esse passado, cada vez mais dependente da confiança em
entidades e instituições abstratas. Do ponto de vista afetivo e cognitivo, gradativamente,
deslocam-se as noções de tempo e espaço. Entretanto, isto ocorre num contexto de constante
fricção, envolvendo conflitos, comparações, estabelecimento de regras, rompimentos, mas,
sobretudo, de envolvimento, onde cada um visualiza a validade de entrar nesse jogo, que
também é construído socialmente, ao longo do tempo.
Para essa situação, exemplificamos com a situação surgida em uma das reuniões desse
grupo: três após o inicio das atividades do grupo, ouve-se a avaliação de uma das mulheres,
relativo à participação em uma feira: “as pessoas compram os produtos para nos ajudar”.
“Não”, coloca uma das integrantes da ONG, “as pessoas compram porque ficam sabendo que
vocês moram numa área de Mata Atlântica e de alguma forma estão contribuindo para a sua
preservação”. Apenas muito tempo depois se apresenta o espaço prático para conectar as
percepções diversas diante da mesma situação. O próprio discurso de uma das integrantes do
grupo de artesanato passa a abarcar o termo “Mata Atlântica”, de forma positiva, aliando ao
seu produto e, conseqüentemente, intimidando o ouvinte sensibilizado do ponto de vista
ambiental, a comprar. Tais situações provocam re-ordenamentos conceituais e simbólicos a
todos os participantes que re-orientam sua forma de ver e de se ver na relação com o outro e
com o seu meio.
203
O que esses relatos colocam? Dificilmente tais avaliações constam nos relatórios finais
de avaliação de projetos e nem é possível levantá-las em momentos pré-determinados. Apenas
perfilam microscopicamente e de forma demorada ao longo do tempo na continuidade das
relações.
Assim diante de questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à preservação
ambiental, vocábulos cada vez mais presentes em nosso cotidiano, indicam a irreversibilidade
desse processo civilizatório e a persistência de assimetrias de ordem cultural, social e
econômica entre os diferentes segmentos sociais. A reversão desse quadro passa por
profundas mudanças políticas e sociais cuja perspectiva de modificação somente se pode
visualizar a longo prazo. Essas diferenças de ordem econômica e, sobretudo, social e cultural
dizem respeito ao acesso à informação, aos mercados e às pesquisas desenvolvidas nas
universidades e nos centros de pesquisas, a participação nos benefícios das políticas
governamentais e a passagem por um processo de modificação de sensibilidades, dos
agricultores visualizarem a natureza não somente enquanto seu ganha-pão, mas como um
“patrimônio da humanidade”, humanidade essa a qual se sintam identificados, ao mesmo
tempo dessa gente que gosta de mato e que nunca precisou plantar ou tirar samambaia para
sobreviver. Talvez, dentro dessa ampla perspectiva, ainda se esteja apenas articulando
natureza como uma opção rentável para a sobrevivência e não abordando as mudanças de
sensibilidades. Contudo, a experiência tem mostrado que tais elementos encontram-se
entrelaçados, seja pela conexão entre experiência concreta e entre conceito, mas, sobretudo,
pela simultaneidade desses processos.
204
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. Os moradores do Fundo da Solidão diante da problemática ambiental
O presente trabalho coloca em pauta os conflitos sociais ligados à emergência de uma
nova sensibilidade e direcionamento mundial referente ao meio ambiente e a ecologia,
manifesto em documentos como a Convenção da Biodiversidade e sua repercussão em
contextos locais específicos. Ao mesmo tempo evidencia um universo produtivo local, ligado
à prática de uma agricultura tradicional que, desde a década de 70, estava num processo de
declínio, principalmente sob os auspícios de uma política hegemônica que visava a
tecnificação e à racionalização da agricultura.
Dentro desse contexto, compreender a instauração de uma atividade específica como o
extrativismo de samambaia-preta, representava justamente evidenciar as contradições desse
processo histórico e, sobretudo, à situação de agricultores ou outras categorias sociais
inseridos nesse contexto excluídos deste processo hegemônico. Compreender a ecologia da
planta, mais do que uma abordagem estritamente biológica, requeria entender o processo
social e histórico ao qual estão imersos esses atores sociais. A samambaia-preta, apesar de ser
uma espécie que ocorre espontaneamente em ambientes naturais (em diferentes habitats), é
favorecida pela intervenção humana, apresentando-se numerosa em estádios iniciais a médios
de regeneração da vegetação, ou seja, em locais onde foram anteriormente utilizados (para
205
roça, pastoreio, entre outros usos) e que, ao seu abandono, a vegetação começa a regenerar,
propiciando a sucessão vegetal natural.
Isso incorre em entender que, se essa se apresenta abundante na região a ponto de
instaurar uma atividade especifica (cuja cadeia abastece o mercado nacional), é resultado de
um processo histórico e ecológico peculiar à condição local. Relaciona-se fundamentalmente
a uma condição que tem correlatos em todo o contexto rural brasileiro, ou seja, o abandono
das roças relacionado ao deslocamento, em direção aos centros urbanos, de contingentes de
agricultores tradicionais ou familiares, cuja reprodução social não mais estava sendo possível
dentro dos moldes até então executados (dependência de mão de obra familiar, baixa
mecanização, com a produção voltada para a manutenção do grupo doméstico). Essa
realidade, o qual um dos aspectos é abandono das roças, é que verdadeiramente propiciou a
regeneração da vegetação. Nessa regeneração, a samambaia apresenta-se como espécie
dominante, desencadeando o processo de instauração de uma nova atividade onde se
mobilizam saberes e práticas tradicionais, adaptando-se às exigências de um mercado
emergente. Sobrepõe-se a esse processo, a gradativa importância que essa área adquire em
termos conservacionistas para o Brasil, resultando na proposição de uma legislação específica,
visando à proteção e regeneração das áreas naturais, restringindo o uso dos recursos naturais.
Essa situação, para os olhares dos Fundos da Solidão, foi a responsável por uma alteração
drástica da paisagem onde o “amarelo das roças de milho” se transformou no “verde do mato
de hoje”.
Nesses termos, era necessário reconhecer as especificidades sócio-culturais locais: o
fato de serem agricultores familiares, ligada a uma agricultura de aprovisionamento, e
realizando uma atividade extrativista, ilegal do ponto de vista da legislação, restrição essa,
incompreensível do ponto de vista local, seja pelo fato da espécie se apresentar em
abundância, seja por não estarem inseridos nesse contexto do discurso conservacionista
moderno. Aliado a essa condição, a luta pela consecução de uma vida digna para os
moradores dessas áreas. Vida digna não somente do ponto de vista econômico, mas em uma
perspectiva ampla, ligada ao conceito de cidadania que abrangeria a inserção dentro desse
debate ecológico, o qual estão imersas as preocupações mundiais com a preservação e com a
qualidade de vida. Nesse item é que estavam manifestos os conflitos mais profundos, pois, em
sentido abrangente, essas modificações rumo a uma sensibilidade ecológica, incorrem não
apenas na valorização da natureza, mas em questionar conceitos como direito de propriedade,
valor da vida humana e não-humana, bem-estar social, noções essas, bastante subjetivas e que
tocam na estetização do mundo. Apesar de integrarmos um mundo moderno e complexo,
206
persistem desigualdades e que ao falarmos em “nós”, podemos estar excluindo parcelas da
população cujos conceitos considerados como partilhados ainda não estão presentes ou
apresentam-se de forma fragmentada.
2. Os samambaieros dos Fundos da Solidão, dentro do panorama conservacionista: da
vida de colono a samambaiero, da agricultura ao extrativismo, um modelo de proposta
de desenvolvimento sustentável para a região?
Os resultados dessa pesquisa demonstram que a coleta é efetuada nas áreas em
estádios iniciais a médio de regeneração da vegetação, a “capoeira”, normalmente integrante
do sistema agrícola local tradicional o qual prevê a manutenção de áreas em diferentes
estágios de uso, ou seja: a roça, a capoeira (que corresponde a um estado de pousio para
posteriormente ser limpo através da queimada para a consecução de novas áreas de roça) e a
mata ou uma vegetação em estágio avançado de regeneração, como uma forma de reserva
para obtenção de madeira ou disponibilização para futuras roças. Com isso, caracterizando-se
um sistema produtivo com uma lógica de rotação de áreas e de culturas com pousio.
O funcionamento desse sistema produtivo efetua-se a partir de uma íntima relação
entre terra e família, no sentido de que as atividades produtivas, embora centradas na unidade
familiar, quanto à organização, dependem da disponibilidade de terras. Assim, cada família
(casal e filhos que moram sob o mesmo teto) é considerada uma unidade independente nas
representações locais. No entanto, a distribuição das atividades e a divisão de tarefas
dependem diretamente da disponibilidade de terras, geralmente pertencentes a um patriarca ou
matriarca. Dentro desse contexto, são acionados bens e pertencimentos familiares referentes a
uma rede de família extensa. Também a atividade extrativista acompanha essa dinâmica local,
tanto na disponibilidade de áreas, como de mão de obra para executá-la. Interferir na atividade
extrativista, elegendo manejos adequados ou propondo novas alternativas de renda a essa
comunidade, em última instância implica mexer com essa disposição familiar e produtiva. A
intervenção, nesse sentido, acaba gerando repercussões e conflitos na esfera familiar,
principalmente na relação entre gêneros.
Nessas análises encontramos os principais elementos que forjam a identidade social
dos moradores da comunidade, ou seja, o trabalho e a sociabilidade. A sociabilidade baseada
nos laços familiares e de pertencimento local, que regem a distribuição de tarefas e de terras,
sobrepõe-se às especificidades de um saber-fazer, marcado pelo trabalho duro, assim como
pelo convívio e pela dependência do meio natural ao qual estão imersos. Frente a esse
contexto, auto-identificam-se como “colonos”, mas também como “samambaieiros”. Essa
207
sobreposição de identidades é índice de uma certa astúcia (De Certeau, 2003), oriunda deste
saber-fazer de agricultor que, diante do contexto de mudança, busca adaptações como a
adoção de uma atividade extrativista que se tornou tão importante do ponto de vista
econômico que, agora, também matiza suas identidades.
A cada uma dessas identidades corresponde um conjunto de atividades que juntas,
configuram o sistema produtivo local. Assim, conjuga-se uma agricultura primordialmente
para auto-consumo ou para trocas (plantio de aipim, batata-doce, feijão, milho e em menor
escala abóbora, amendoim, arroz, hortaliças, banana) com o extrativismo da samambaia-preta.
Ainda para o auto-consumo, há criação de galinha, de porco e de gado para leite e corte, de
caça e pesca e de coleta de alguns outros gêneros, como banana em roças abandonadas e a
presença do artesanato a partir do extrativismo de fibras vegetais. Atualmente, para a
complementação de renda, concorrem a aposentadoria dos mais idosos e a venda da mão de
obra na forma de trabalhos temporários em propriedades maiores e prestação de serviços
como pedreiro, azulejista ou babá. Verifica-se a comercialização local e em contextos
regionais de chás ou outros produtos preparados a partir plantas medicinais. Já o extrativismo
da samambaia insere-os a um mercado amplo, composto por vários intermediários até chegar
aos centros consumidores urbanos do Rio Grande do Sul e São Paulo.
Essas estratégias produtivas são estruturadas dentro de uma construção espacial e
temporal que permitem tecer uma historicidade local que regem as narrativas e a memória
coletiva local, formatando paisagens, estruturando gostos, incitando atitudes, formulando
saberes e práticas, articulando gestos, constituindo um cotidiano que permite a continuidade
dos moradores dos Fundos da Solidão, enquanto pessoas que compõem um grupo social.
Trata-se de um grupo caracterizado por uma relação singular com o meio ambiente em
termos ecológicos e simbólicos onde a forma de apropriação do meio pode ser classificada
como de baixo impacto, conforme o conjunto de pesquisas relacionadas ao extrativismo. É
dentro desse quadro social que se pode sobrepor ao debate em torno da regulamentação da
atividade. De um modo genérico, aciona-se o discurso preconizado pelas principais diretrizes
conservacionistas contemporâneas, ou seja, a conexão do local com o global, onde entram em
pauta termos como desenvolvimento sustentável (Relatório Bundlandt) ou
ecodesenvolvimento (Sachs, 1993). Do ponto de vista do debate conceitual, constitui-se um
exercício, principalmente considerando tal situação a luz de uma categorização genérica e
abrangente como populações tradicionais, paradigma inicial a partir do qual formulou-se o
debate em torno do direito de permanência e de usufruto dessas comunidades em áreas de
grande biodiversidade.
208
3. Problematização em torno da categoria populações tradicionais e as especificidades do
contexto local
A categoria populações tradicionais abarca e representa o reconhecimento da
importância de considerar os grupos humanos que vivem e interagem em áreas de grande
diversidade biológica, como atores sociais que, ao longo do tempo, poderiam estar
contribuindo para o aumento dessa biodiversidade e, a critica a uma visão de preservação
onde a ação humana deve ser afastada ou alijada, remetendo conforme Diegues (1996) ao
“mito moderno da natureza intocada”. Nesse sentido, trata-se de uma categorização datada e
surgida dentro de um contexto específico dos debates em torno da preservação ambiental. A
partir desse marco conceitual foram pautadas as ações da ONG ANAMA que cadenciaram as
atividades aqui relatadas. No entanto, ao longo do processo de estudo e de análise, centrando
na identidade social desses grupos representados pelas categorias “colono” e “samambaieiro”,
verifica-se um distanciamento entre a categoria população tradicional e a identidade social
local, no sentido de que não há uma adesão desse grupo a essa categorização. Em termos
genéricos apresenta maior proximidade com a categoria campesinato.
Esse dado permite reflexões em torno das perspectivas analíticas acadêmicas e a
situação em campo. A partir da discussão sob a perspectiva da legitimidade de considerar
essas populações como tradicionais, pode-se abordar as tensões e mudanças pelas quais esse
grupo atravessa. Nesses termos, cabe considerar a especificidade do debate em torno do
binômio preservação e populações locais, no RS.
O Estado do Rio Grande do Sul apresenta um quadro marcado por embates na
perspectiva da conservação, desde a década de 70 que, com lideranças de movimentos
ecológicos, como José Lutzenberger e Augusto Carneiro, estabelecem marcos do movimento
ambientalista, fundamentados numa tradição de lutas e de ações na defesa do meio ambiente
56
e com a presença de organizações combativas, como a AGAPAN (Associação Gaúcha de
Proteção ao Ambiente Natural) que, quando de seu surgimento [em 1971] tornou-se a face
mais radical do movimento ambientalista nacional (Bonés e Hasse, 2002). Assim, caracteriza-
se por um movimento centrado num posicionamento preservacionista onde, até recentemente,
havia pouco espaço para o debate em torno da presença humana nas áreas de proteção
ambiental. Não significa, com isso, que tais situações não perfilaram os debates da época, mas
tratava-se de um segmento secundário. Em realidade, é representativo de todo um contexto
56
Apesar de citar essas personalidades, cabe lembrar que os pioneiros do movimento ambientalista no RS são
Henrique Roessler, fundador da primeira entidade ambientalista do RS e o padre jesuíta e naturalista Balduino
Rambo que desenvolveu intensos estudo sobre a vegetação gaúcha nas de 20 a 50.
209
nacional onde, apenas na década de 80, começa-se a tencionar o debate em torno a presença e
intervenção humana direta dentro das áreas protegidas ou com interesse para preservação. Tal
perspectiva, no entanto, parte principalmente de movimentações oriundas de grupos sociais do
Norte do país, como dos seringueiros e as reservas extrativistas e na região sudeste,
principalmente com pescadores e caiçaras.
Dentro desse contexto, no RS, um Estado caracterizado por uma tradição agro-pastoril,
não se visualiza a presença de extrativistas e, mesmo os grupos indígenas ou remanescentes
de quilombos, perpassam como que invisíveis dentro dos quadros sociais (a partir da década
de 90, através da movimentação e articulação entre a antropólogos e movimentos sociais,
essas etnias passam a ter maior visibilidade na sociedade gaúcha).
Afora esses grupos etnicamente designados, tencionam a definição populações
tradicionais, os pescadores artesanais (Brutto, 2001, Adomilli, 2002) e, dentro de uma
perspectiva ampla, os agricultores familiares. Esses, apesar de representarem parcela
significativa da população gaúcha, compõem-se de grupos com identidades ligadas à etnia de
origem (alemã, italiana, polonesa, portuguesa), o que dificulta uma categorização única.
Imersos nesse quadro, temos ainda os “bugres” e os “caboclos” (Martini, 1993, Gehlen,
1998), normalmente como uma categoria contrastiva em relação à outra, considerada superior
(assim são “caboclos” em relação ao “colono alemão”, como mostra Seyferth, 1993). São,
portanto, categorias estigmatizadas e negativadas, razão pela qual a reivindicação de tais
identidades não se faz presente. Há extensa literatura a respeito da identidade, da organização
e da reprodução desses segmentos sociais, sendo o objetivo apenas dar um panorama geral do
RS, de modo a justificar o pouco espaço e a restrita visibilidade ao debate sobre populações
tradicionais e preservação no Estado.
Através dos grupos indígenas, esse debate começa a ser implementado, centrado na
questão do acesso e direito ao uso dos recursos naturais e suas implicações com a reprodução
social desses grupos. Nesse sentido, o primeiro dilema gira em torno do reconhecimento
desses como signatários de uma etnia e tradição, cristalizado por questionamentos como “eles
ainda são índios?”. Se, entre aos indígenas, aqui representado pelas etnias Kaingang e Mbyá-
guarani, perpassa essa dúvida, para os demais grupos, tal desconfiança apresenta-se de forma
mais contundente. Nesse contexto, inserem-se os extrativistas relatados nesse trabalho,
apresentando-se como agricultores, ligados a uma forma de apropriação peculiar do meio,
dentro do qual se inclui o extrativismo, conforme se observa entre os moradores dos Fundos
da Solidão, motivo pelo qual, adequadamente, operam com essas duas categorias. É, a partir
desse quadro que o estudo aqui proposto começa a problematizar concepções e definições,
210
como tradição. Definições que se apresentam essencializadas, no sentido de conceber tradição
e cultura como categorias substancializadas, atreladas: a) a uma visão de tradição imutável
que perpassa gerações, não reconhecendo o caráter dinâmico que tanto a tradição como as
identidades possuem; b) ao fato de não estarem inseridos a um mercado mais amplo e c) a
utilizarem-se de tecnologias simples, que teriam baixo impacto ambiental. Essas propriedades,
sobrepostas à situação empírica encontrada em nossos estudos, demonstram que cada uma
delas é passível de discussão e de relativizações, o que complexifica o debate e permite
vislmbrar as razões desse distanciamento entre a identidade local e a categoria populações
tradicionais.
Antes de prosseguir nessa problematização, cabe também colocar a instância em que
se forjam idéias e concepções que reconhecem a importância da preservação do meio
ambiente; uma mudança de sensibilidades, que não somente fomenta o debate mas, sobretudo,
impõe novas posturas diante dos padrões de consumo e de uso dos recursos naturais. Há,
nesse processo, uma razão civilizadora que apresenta uma inevitável tensão unificadora.
Nessa perspectiva, surgem categorias como a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica,
considerando uma formação fitofisionômica como um patrimônio da Humanidade. Assim, as
disputas e conflitos em torno das populações tradicionais representam as ambivalências entre
tradição e modernidade, visto que atrelam um apelo patrimonial - que aponta para o passado
como elemento fundamental do presente - a um certo apelo ecológico que aponta para o
futuro, enquanto valor-medida a que se deve sujeitar o presente.
Nesses termos, essas ações unificadoras apresentam-se na forma de programas amplos,
de diretrizes gerais ou de uma legislação específica, envolvendo atores de esferas diversas
como as tecno-científicas e político-administrativas. Nesse quadro, há pouco ou nenhum
espaço para a ação das populações locais. Tal situação foi possível constatar através da
realização dessa pesquisa. Os moradores dos Fundos desconhecem a legislação em detalhe e a
própria fundamentação da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, além do sentido amplo de
“preservar” e no caso, “preservar o mato e os bichos” e de serem “proibidos de botar capoeira
ou de caçar”. Não há espaço para interlocução que visualize a interferência dessas populações,
com propostas, ou mesmo manifestando suas opiniões. Quando isso ocorre, exatamente por
não coexistirem dentro de uma perspectiva onde haja uma contínua interlocução, apresenta-se
na forma de alguma reunião extratordinária, apresentando-se como uma oportunidade de
protestar e resultando em manifestações violentas e discussões, sobrando pouco espaço para o
diálogo, como na situação relatada neste trabalho.
211
Perante o exposto, reconhece-se a categoria “populações tradicionais” como aparato
analítico fundamental para alavancar estudos e ações, como as citadas nesse trabalho, visto
que a forma de intervenção desse grupo em seu meio ambiente, ao mesmo tempo em que é
essencial para sua reprodução social, apresenta fórmulas de ocupação e uso dos recursos
naturais com baixo impacto para o meio.
Todavia, reconhecer a legitimidade dessa situação requer, por outro lado, a
modificação da legislação no que concerne a legalização da atividade extrativista e do manejo
de áreas em regeneração. Isso exige a negociação entre os atores sociais envolvidos. Nesse
processo, os olhares diante de categorias como “populações tradicionais” vão se
reconstituindo. Requer, o reconhecimento dessa categoria por parte dos pertencentes das
esferas mais amplas (legisladores, governantes e sociedade em geral), a fim de visualizar uma
relação não-destrutiva entre os extrativistas/agricultores e seu meio, não transvestido por uma
idealização do “bom selvagem”. Ao mesmo tempo busca a compreensão por parte dos
extrativistas/agricultores dos termos que tornam importante a preservação da Mata Atlântica,
agora compreendida como patrimônio da qual também eles se sintam usufruidores e
preservadores.
Nesse sentido, concorda-se com análises de Cunha e Almeida (2001) que colocam a
categoria “populações tradicionais” como em constituição, que prevê um amplo debate e
negociação, muitas vezes tensa, que permite o estabelecimento de um diálogo, onde ambas as
parte devem ceder. Nesse processo perfilam mudanças de atitude e de sensibilidades. Nestes
termos, não seriam mais “populações tradicionais”, pode-se argumentar. Dentro desse quadro
pode-se pensar num processo de configuração e constante reconfiguração do relacionamento
do homem com a natureza, que se faz observar através dos desdobramentos dos fatos
relatados nessa tese. Observa-se que conceitos como Reserva da Biosfera vão perfilando,
acoplados às dinâmicas e aos contextos locais, acompanhado de conflitos e re-acomodações e
que, trazem à tona outras questões que acompanham o debate em torno da preservação
ambiental.
212
4. Do que foge da apreensão: comentários sobre a narrativa visual
Todo o processo de inserção e de construção dessa tese foram permeados pela imagem
com o uso da fotografia e do vídeo, constituindo subsídio importante para este trabalho. Dessa
forma, de modo a discutir os sentidos do uso da imagem visual e, sobretudo, poder vislumbrar
analiticamente o estatuto do uso da imagem, buscou-se a construção de uma narrativa visual.
Trata-se de uma releitura da atividade de coleta. A construção dessa narrativa baseou-se nas
entrevistas, saídas a campo com os coletores e nas imagens capturadas. Rápidas anotações
eram feitas em campo - visto que o meio era impróprio para tal ação - para depois serem
desenvolvidos num diário de campo. A câmera foi utilizada em algumas dessas saídas, no
entanto, inicialmente, sendo fator de inibição, foi colocada de lado. Posteriormente, a imagem
mostrou-se um instrumento eficaz para o estabelecimento de reciprocidade. Foi, nesse
contexto que, paulatinamente, foram introduzidas a câmera fotográfica e, num momento
seguinte, o vídeo, que causou grande sensação - algo como uma aproximação ao universo das
telenovelas e suas celebridades. Nesse jogo de “tirar a foto e ver”, “filmar” e “ver a imagem
na TV”, também foi possível sentir-me mais próxima do grupo. A possibilidade de
compartilhar o registro causando comoção, riso, estupefação foi um elemento importante na
minha aproximação e posicionamento diante das pessoas.
No momento de inserção no universo do coletor, apesar de não se poder ter a
inocência de que as hierarquias se desfazem, essas se contrabalançam, pois, se no universo
das “idéias”, apresento uma certa superioridade, no ambiente de coleta, de subida de morros,
entrada na capoeira, claramente, manifesta-se minha inferioridade em termos de resistência
física e, sobretudo, desenvoltura para movimentar-me em meio aos arbustos e as “macegas”.
Nessa situação, é impossível não assumir uma posição de aprendiz. As hierarquias invertem-
se e, nessa inversão, a possibilidade de dar luz às habilidades e saberes que separam o eu do
outro, além de reforçarem as representações em torno do “trabalho duro”, constantemente
referido.
Gravações das entrevistas, registros do diário de campo, imagens viodeográficas e
fotográficas: temos assim conjuntos de registros oriundos da mesma situação, materializados
de forma distinta, cada um com uma gênese própria. O desafio seguinte constiui-se em
compor uma narrativa com o uso da imagem e de todas as observações e análises oriundas do
campo. Em relação ao processo, apresentam-se como produtos provisórios, fragmentos
necessitando um encadeamento de modo a, adequadamente, comporem uma narração para um
público receptor. E nesse momento, a sensação de que, tão importante quanto todo o processo
de captura e recolhimento das informações, é o momento de sua escritura e de sua
213
diagramação. Efetuar escolhas, recortes, privilegiar determinadas situações e obscurecer
outras incorre na capacidade de formulação de juízos, decorrents da interação entre sujeitos
cognoscentes.
Nessa tentativa de encadear uma narrativa a partir da experiência de campo, de modo
sintético, o que se propõe é concatenar entendimento e sensibilidade enquanto duas fontes de
conhecimento. No conhecimento objetivo, segundo a acepção kantiana, a sensibilidade é
condicionada pelo entendimento enquanto que ao relacionarmos ambos funcionalmente temos
o “prazer estético”. A partir dessa polaridade inicial, encontramos em Schaeffer (1996),
algumas proposições gerais que podem introduzir a discussão. Baseada nos conceitos
presentes na “Crítica da faculdade de julgar”
57
de Kant, Jean-Marie Schaeffer propõe de modo
vago - como ele mesmo qualifica - duas orientações gerais da imagem fotográfica dentro da
Arte: uma que se orienta para a idéia de belo e outra de sublime. A orientação ao primeiro
conceito refere-se àquele objeto ou àquela imagem que “a compreensão conforme a intuição
sensível, ocasiona uma harmonia entre imaginação produtiva e o entendimento, sem um fim
específico” (Schaeffer, p. 164). Já a orientação para o sublime refere-se a uma ruptura dessa
harmonia, ou seja, a impossibilidade desse estado de equilíbrio, pois “revela-se inadequado à
faculdade de representar e exerce uma violência quanto à imaginação criativa” (p. 168).
Ambos causariam prazer estético, a primeira por esse estado de “feliz encontro” onde o
“entendimento e sensibilidade estão num acordo funcional, acordo que, ao ativar as duas
faculdades, permite que elas se complementem harmoniosamente” (Nunes, 1999, p. 51),
enquanto o sublime, justamente por “sua natureza decepcionante”, porém, não resultando
numa “desordem dialética”, porque essa “decepção icônica e semântica é na realidade uma
liberação... liberação lúdica sem as conseqüências destrutivas que poderiam resultar se
acontecesse em nossa vida efetiva” (Schaeffer 1996, p. 168). Essas duas orientações
provisórias, exatamente, por serem modelos ideais, nos permitem o questionamento sobre o
que gostaríamos de alcançar num trabalho que conjugue sensibilidade e entendimento; o peso
e a medida que se quer - e que está se dando - para cada elemento e a quê isso pode nos
conduzir. Assim, a colocação de fundo dessa narrativa consiste em uma obra posicionada em
algum ponto entre entendimento e entre sensibilidade, atentando para a geração de
conhecimento e para o prazer estético. Tendo em vista que é a imaginação a faculdade que
conjuga entendimento e sensibilidade, é também onde nos ancoramos para concebermos esse
trabalho.
57
Aqui consultado na compilação de Rodrigo Duarte (1997) em O belo autônomo. Textos clássicos da estética.
214
Tomando como suporte a reprodução de uma cédula de um real com a impressão das
imagens do processo de coleta e de trechos de entrevistas efetuadas com os coletores ou
conversas que ocorreram nas saídas de coleta, busca-se evocar esse momento de encontro
com o universo social dos samambaieros-colonos. Na formulação dessa idéia, assim como na
montagem das notas, ocorre um jogo cognitivo entre a imaginação reprodutora e criadora. As
pequenas dimensões das imagens e escritas tornam-se um convite-obrigação aos que querem
aproximar-se desse mundo particular do coletor e do narrador. É preciso uma aproximação,
redobrar a atenção e querer entrar na narrativa para compreender esse trabalho.
Por que uma nota de um real? Por representar o pouco - é a cédula de menor valor
vigente nos País - representa o discurso comum que se refere à baixa remuneração dessa
atividade. Contudo, a nota traz também a conotação de uma inserção a um mercado nos
moldes capitalistas, o que, em certa medida, move suas vidas, nos vários sentidos colocados
por Georg Simmel (2005) ao dinheiro. As falas fazem alusão à luta pela sobrevivência, aos
tempos difíceis e o sentimento de impotência diante da situação dos tempos atuais, o que traz
também a tona a referência ao “tempo antigo”, onde não se precisava depender da samambaia
e todos plantavam. A alusão ao passado associado a uma paisagem recoberta de roças - em
contraste com a atual, onde se vê apenas “mato e capoeira” e muito pouco espaço para “botar
roça” - é a constatação dos tempos difíceis que faz com que se busque a constituição de uma
memória idealizada, de fartura, trabalho digno, convertendo-se em outra forma de conceber a
riqueza.
Artistas como Cildo Meireles na década de 70, e, mais recentemente Jac Leirner já se
utilizaram de cédulas como alusão à exclusão social, ao trabalho ou à sociedade de
consumo.
58
O primeiro colocou em circulação uma nota de “Zero Cruzeiro” tomando como
referência a cédula de 10 cruzeiros (em circulação na época) e, com a fotografia de um índio
Krahô e de um doente mental impressos, discutindo, entre outras questões, o valor do dinheiro
e da pessoa. Jac Leirner, em seu “Little Pillow”, coloca uma nota de um dólar e outra de
100.000 cruzeiros em um travesseiro, apropriando-se de objetos cotidianos e recolocando-os
dentro de um circuito artístico
59
. Sobretudo, na obra de Cildo Meireles, utiliza-se da força
simbólica da cédula para provocar um questionamento sobre valores humanos.
A alusão ao dinheiro traz também a idéia de uma sociedade que os subjuga.
Entretanto, o fato de ali estarem representa toda a capacidade de conviver com esses tempos
58
Para referências mais detalhadas ver Herkenhoff (2001) e Aguilar (2000).
59
Essa possibilidade já fora explorada no início do século passado por Marcel Duchamp, questionando o estatuto
da arte na modernidade e colocando-o como um das artistas mais influentes para as gerações posteriores.
215
atuais, incorporando as mudanças. Afinal, de uma planta daninha da capoeira fazem dinheiro.
Eis um dos sentidos do extrativismo. Planta que “quanto mais se tira, mais dá”.
Acompanhando a coleta, pode-se conviver com o prazer proporcionado em encontrar uma boa
“malha ou bola de samambaia” na capoeira e a avidez em coletá-lo: move-os esta idéia de que
coletando, está-se contribuindo para estimular sua brotação, propiciando também sua própria
sobrevivência.
A impressão de imagens com trechos de falas, não mostram uma correspondência
entre fala e imagem, pois entre o discurso e a imagem fotográfica temos gêneses diferentes,
irredutíveis um ao outro, embora haja a possibilidade do estabelecimento de correlações. Ao
visualizar a imagem, não se visualiza o texto do outro lado
60
. Como se tratam de uma coleção
de imagem e falas, inicialmente desconexas, o receptor desse trabalho, caso busque algum
entendimento, tem a necessidade de buscar as conexões entre elas: entre aquilo que se leu e as
imagens, e dessas entre si, em seu conjunto, exigindo operações cognitivas complexas. Assim,
exige-se do receptor/leitor esse esforço de restituir o conjunto; sendo ativados, nesse processo,
percepção e memória, aliado-os a uma ludicidade que as notas permitem a quem está
olhando/lendo, devido a sua possibilidade de serem manipuladas e agrupadas. O filósofo
Friedrich Schiller (2002), em sua obra refere-se ao impulso lúdico, tomando por base a
importância do jogo funcional entre entendimento e sensibilidade na fundamentação do juízo
de gosto (proposto por Kant). O impulso lúdico seria a tentativa de superar a oposição
“platônica” entre sensível e entre inteligível, configurando-se uma operação que envolve
imaginação.
Nessa metáfora do jogo, também está inscrito o sentido do interesse conforme coloca-
se na interação social estabelecida entre entre samambiaieros, colonos, artesãos, os integrantes
da ONG, os pesquisadores e outros atores sociais. Johan Huizinga (1980) em seu livro “Homo
ludens”, observa que illusio (falso), tem sua origem do latim ludus (jogo), podendo significar
estar no jogo. De onde mais, tarde Pierre Bourdieu (1996) formula a noção de illusio,
enquanto o interesse em estar no jogo social, das energias e das estratégias que se mobilizam
em função de estar dentro de um campo social.
Nesse conceito de jogo lúdico, pode-se também questionar os sentidos de todo esse
processo. Isso tudo acaba numa brincadeira, em um simples jogo? O próprio fazer
antropológico, em que medida não se converte na elucidação de um jogo? E a vida é apenas
um grande jogo? Nesse sentido, o que está em jogo: uma imagem ou um encadeamento de
60
Aqui fica uma abertura para a inserção do som, que não será objeto de análise neste trabalho.
216
imagens ou palavras que consigam trazer a vivência com o grupo, com suas aspirações?
Como definir essa composição? Trata-se de uma tarefa árdua, decepcionante até certo ponto,
tal como a referência a imagem sublime. O sublime abala a imaginação e o entendimento,
pode ser algo terrível. É o sentimento de segurança e de não envolvimento do espectador, que
poderia explicar como uma imagem ou objeto terrível causa um sentimento de prazer? Ou a
aproximação a algo mais genuíno, real, fidedigno? Em tal situação, o cotidiano se torna
espetacular e permanece a pergunta: qual imagem que queremos constituir?
217
CONCLUSÕES
O Coelho Branco botou os óculos e perguntou:
- Majestade, por favor, por onde começo?
- Comece pelo começo – disse o Rei, solene – e continue até o fim. Quando acabar, pare.
(Alice no país das maravilhas, Lewis Carrol)
Com o trecho acima, extraído de um clássico da literatura infanto-juvenil, iniciei o
texto da qualificação, fazendo menção a dificuldade em que se constitui iniciar um trabalho.
Nesse momento, dou-me conta que tão difícil quanto começar é acabar. Como colocar um
ponto final, quando sabemos que na realidade, os fenômenos estão em constante mutação?
Nessa situação, talvez estejam os sentidos dessa tese: congelar um momento ou algumas
situações que permitam reter, mesmo que de modo fugidio, o sentido e os significados dessas
mudanças que se fazem presentes em nossas vidas e nas dos moradores dos Fundos da
Solidão.
Entre os diversos fios que teceram essa tese, temos como foco central o extrativismo
da samambaia-preta, na localidade da Fundos da Solidão, o qual articula diferentes dimensões
em que se pode analisar temas abrangentes como tradição e modernidade, relações homem-
natureza, mas, aqui escolhido porque traz à tona os conflitos sociais que se apresentam sob a
perspectiva ambiental.
Esse tema (extrativismo), em sua abordagem ligada às ciências da natureza, toca em
questões o como desenvolvimento sustentável, capacidade de suporte, uso dos recursos
naturais, onde se confrontam ideais de preservação ambiental com a possibilidade de uso dos
recursos naturais. No caso específico do RS, o marco inicial para da experiência aqui relatada
reside numa problemática relacionada a uma atividade extrativista, a coleta de samambaia-
preta (Rumohra adiantiformis), uma pteridófita, utilizada para ornamentação de arranjos
florais. Essa planta, pelo fato de ocorrer dentro dos limites do Domínio Mata Atlântica, um
importante marco para as políticas conservacionistas, segundo a legislação ambiental (Decreto
Federal 750/93) tem sua comercialização proibida. Esse fato contrapõe-se a uma realidade
218
local, onde essa atividade envolve grande número de pessoas direta ou indiretamente. Em
2001, quando iniciamos esse trabalho, não havia nenhum dado referente a essa atividade ou a
planta, que corroborasse ou refutasse tais ordenamentos da legislação ambiental no RS. Dessa
forma, um primeiro passo foi a proposição de um diagnóstico sobre a atividade e estudos
sobre a biologia da espécie.
A estratégia para a realização desse diagnóstico centrou-se em metodologias ligadas a
etnoecologia e etnobiologia, onde se previa a realização de estudos de cunho biológico e
sócio-econômico, tendo como fundo a existência de pelo menos dois parâmetros de
conhecimento: o científico e o local (ou tradicional). Assim, o trabalho envolvia uma
preocupação com o estabelecimento de metodologias oriundas das áreas biológicas buscando
elucidar a auto-ecologia dessa espécie, tendo como parâmetro os conhecimentos locais a
respeito da espécie e, sobretudo, a formas e o manejo, localmente executado.
Essa primeira etapa culminou com a geração de dados referentes à atividade, sua
cadeia produtiva, um panorama do manejo localmente executado e do ponto de vista
biológico, dados sobre crescimento e regeneração da espécie, o ambiente propício para seu
desenvolvimento e alguns parâmetros que apontavam para a sustentabilidade em termos
ecológicos, além do levantamento de algumas alternativas econômicas para a atividade. Esses
dados calcaram a abertura da discussão sobre a legalização e licenciamento do extrativismo da
espécie samambaia-preta, convertendo-se na primeira experiência no Estado, de diálogo entre
o órgão licenciador (em nível estadual), Ong, Universidade e extrativistas e tomado como
uma referência para a elaboração de um modelo de protocolo para o licenciamento de
recursos naturais não-madeiráveis sob restrições de uso no Estado.
A abordagem aqui proposta, transpõe essa discussão anteriormente travada dentro do
campo disciplinar das ciências biológicas para o das ciências humanas, no sentido de que
articula o debate em torno do tema sociedade e meio ambiente, buscando aprofundar as
implicações dos novos ordenamentos ligados a uma mudança de sensibilidades diante da
natureza. Para tal trabalhamos com diferentes planos de temporalidades sobrepostas,
reconstituída pelas narrativas e construídas dentro do processo etnográfico aqui relatado.
Desta forma, o trabalho, ao mesmo tempo em que tem como objeto de análise a dimensão
ambiental, constitui-se num processo microscópico e artesanal onde a cada instante, travam-se
pequenas simpatias, descobertas, situações diversas, que foram mexendo com o universo
formatado e em formação do pesquisador e que por canais de percepção diversos
conformaram essa tese. Os capítulos e sua ordenação refletem um pouco desse percurso,
acoplada as diversas abordagens em torno do extrativismo.
219
A investigação em torno da identidade desses moradores dos Fundos da Solidão
evidencia uma identidade sobreposta, ora de colonos, ora de samambaieros, que encontram
analogia com os olhares lançados sobre a paisagem e que refletem dois regimes temporais
distintos: o tempo das roças e o tempo da samambaia.
Essas sobreposições referenciam o extrativismo enquanto uma vivência contraditória
entre continuidade e mudança. Os pontos de continuidade a partir de uma delimitação
temporal e paisagística dicotômica, inicialmente apresentaram-se pouco nítidos, o que
somente foi compreendido com a análise do universo das atividades cotidianas, da experiência
vivida. Portanto, todos esses processos, são costurados nas microscópicas e corriqueiras
vivências cotidianas, muitas vezes, não claramente contemplados quando nos detemos apenas
no plano dos discursos, daí o tema da experiência e da ênfase no vivido.
Nos saberes e habilidades inerentes a prática de tirar samambaia, evidencia-se a
referência a um saber-fazer de colono. O conhecimento do ambiente, da planta, as posturas
corporais para execução da operação, nos gestos minuciosos... Tal compreensão encontrou
reforço na abordagem do processo de instauração da atividade artesanal com palha de
bananeira como alternativa de renda para essas pessoas. A análise das dificuldades que se
apresentaram nesse processo relacionado ao artesanato com palha de bananeira, recupera o
papel das formas culturais coexistentes (tradição artesanal, modo de vida rural) resultando em
afirmação e legitimação do sentido do novo para esse grupo. Trata-se, pois do novo que não é
novo, mas é essencial para o processo de legitimação dos impasses pressentidos diante das
mudanças.
Aqui a constatação de que nenhuma identidade ou legitimidade, por mais determinada
por condições materiais especificas de existência, se instaura no vazio das formas culturais
pré ou coexistentes e essas se impõem aos novos conteúdos por força dos efeitos do
pensamento analógico ancorado sob o conteúdo das representações. Em toda essa abordagem
permeia os sentidos da tradição, que o campo ambiental por um lado tensiona, mas ao mesmo
estimula na forma de seu resgate, através da incorporação da temática relacionada às
populações tradicionais e conservação da biodiversidade. Nesse caso, cabe fazer uma crítica à
concepção de tradição que calcam essas idéias, geralmente uma tradição compreendida como
estática no tempo, cristalização de um conjunto de práticas e saberes. Ao contrário, a tradição
que se manifesta através desses grupos, apresenta-se dinâmica, raiz para a persistência no
tempo, e que instaura a constituição de uma duração que preconiza a complementaridade
entre tradição e novo. Nesse encontro entre tradição e modernidade, verifica-se também o
processo de dissolução a uma cultura abrangente. Nesse caso, emergem em um único
220
processo a afirmação dos mecanismos genéricos da expressão ideológica por analogia com
formas preexistentes e a de uma nova lógica com que essas formas são pouco a pouco
investidas. Nesse sentido, gradativamente idéias como a Reserva da Biosfera, preservação da
Mata Atlântica, vão sendo incorporados ao vocabulário cotidiano dos moradores,
constituindo-se em moeda de troca para a possibilidade de reprodução social desse grupo.
A abordagem em torno dos conflitos traz a tona um pouco das angústias e tensões
vivenciadas diante das mudanças, cujo símbolo é exatamente a instauração do extrativismo da
samambaia. Rege o tema do conflito a mudança percebida como imposta por mecanismos
externos e abstratos como a legislação, o governo, os políticos, enfim “os de fora”, o que por
um lado legitima um modo de ser que lhes confere identidade enquanto grupo (manifesto no
universo dos saberes locais, do trabalho duro, mas honesto, do viver da terra e de seu
trabalho), contrabalançando ainda com um sentimento de marginalidade ressentida.
O tema da astúcia e das táticas diante dessas tensões revela o quanto o conflito e o
convívio com o novo sempre foram constitutivos do grupo, novamente sendo um caso
exemplar o caso do extrativismo da samambaia-preta. Essas populações sempre conviveram
com o novo e manejam com os conflitos, incorporando-o, re-transformando, reciclando.
Trata-se, nos termos de De Certeau, da astúcia dos fracos. Dessa forma, percebem o contexto
de subordinação diante de um todo que os envolve, representados pelo governo, pelos “da
cidade”, pelos “de fora” e rebelam-se transformando em oportunidades, possibilidade de
melhoria de vida. Ao seu modo protestam, sob um projeto de liberdade, de impor seu ritmo de
trabalho, negando as determinações impostas pela legislação ambiental, o que novamente
reforça sua identidade ligada ao colono.
Em tudo isto, podemos ver “a delicadeza e a complexidade dos fios que entretecem a
prática da diferenciação, a construção e a reconstrução contínua das identidades dentro dos
códigos acessíveis de legitimidade” (Dias Duarte, 1999, p. 277).
Na etnografia da formação do grupo de artesãs revivemos os sentidos da reciprocidade
presente nas relações, tema caro à antropologia e constitutivo de toda essa tese. A
reciprocidade, constituída a partir de uma assimetria social ao qual estão submetidos todas
essas pessoas e as instituições que representam, com seus novos mediadores, mas baseada em
estruturas de lealdades pré-existentes. Na análise do processo em suas dificuldades,
novamente revisitamos os sentidos da instauração do extrativismo da samambaia-preta
relacionado a sua adequação a um quadro cultural e social pré e co-existente. Evidenciamos
também (novamente) as identidades sobrepostas destas pessoas, verdadeiro bricoleur, que
constrói sob as franjas de uma sociedade moderna e de consumo que se impõe a eles, onde a
221
própria sensibilidade ambiental é uma das facetas, mas também vão sendo incorporados as
suas vidas. Aqui novamente o tema da dissolução a um contexto abrangente preconizado pelo
discurso preservacionista e das relações capitalistas.
O processo de formação do grupo de artesãs converte-se assim num encontro, no
sentido de que, de forma mais clara manifestam-se as diferenças dos universos sociais entre
moradores locais e mediadores, entre extrativistas/colonos/artesãos e pesquisadores, mas que
trazem à tona também a possibilidade de partindo dessas assimetrias, a própria condição para
refletir, pensar e criticar tais posições desiguais. Dessa forma, por parte das artesãs há uma
familiarização com o universo dos pesquisadores, por exemplo, o deslocamento ao meu
mundo cotidiano, com isto, a própria possibilidade de ao longo do tempo, tecer criticas mais
pungentes sobre as nossas diferenças, os interesses envolvidos, a percepção de que o objeto de
estudo para nós pesquisadores, para alguém “de lá” é a própria sobrevivência. Um certo mal
estar surge diante dessa constatação, sobretudo por se tratar de palavras ditas por alguém “de
lá” e que nos faz pensar no que estamos a vivenciar nesse momento, nessa tese.
Também nos sentidos dessa última etnografia o tema do encontro intersubjetivo com o
outro. Do ponto de vista do recorte analítico, a abordagem e construção aqui colocada
somente foi possível graças a um olhar aproximado, imerso na realidade cotidiana local,
capturada na observação de situações microscópicas (como se refere Geertz), paralelamente
ao convívio e preocupações de minha inserção entrecortada entre pesquisadora e militante,
que se transveste no tão citado encontro com o outro, enquanto um encontro intersubjetivo.
Significa isto que, o que era inicialmente lançar mão dos instrumentos metodológicos da
antropologia, converte-se na incorporação de premissas fundantes da disciplina do relativismo
cultural e de desconstrução de determinados olhares formatados. Sobrevém o aprofundamento
dos sentidos de uma construção etnográfica, não somente no momento do campo, mas em sua
construção enquanto escrita e meio de interlocução. Coteja-se dentro desse tema os meios e
suportes adequados para a inserção e campo, bem como de seu uso para a construção de uma
narrativa (aqui pautada pelo uso da imagem e de construções visuais para dar conta de todo o
processo etnográfico).
À guiza desse capítulo, podemos refletir sobre a diferença em etnografar e construir
uma etnografia, a importância da “interioridade da experiência temporal do antropólogo como
condição para a produção etnográfica”, que no inicio dessa tese foi-me colocada e que agora
nesse momento atinge matizes bastante diferentes daquele momento inicial. Um processo de
conhecimento em que meios e fins estão intrinsecamente ligados, sob a égide de uma
“hermenêutica do si”.
222
Disso tudo, cabe lembrar que se por um lado, temos aqui a formalização de um
trabalho escrito, paralelamente os conflitos e tensões, a problemática ambiental enfrentada por
essas populações permanece e de certa forma, os moradores dos Fundos da Solidão e todos
que demais envolvidos, ao contribuírem para a construção dessa tese, esperam que de alguma
forma, o “mana” contido nessa colaboração lhes retorne na forma de uma possibilidade de
desfecho dessa situação. Nesse momento, retorna a pesquisadora militante, que apesar de
perceber, a complexidade dos fios que regem as tensões ao qual estão submetidas essas
pessoas, também confia, pelo que em parte essa tese trouxe à tona, que tudo isto faz parte de
um movimento cujo desfecho desconhecemos, mas que em seus atos cotidianos, as pessoas
revelam a grande capacidade de persistirem no tempo, de perpetuarem sob diferentes formas
suas idéias, seu estilo de vida. Em meio a tudo isto e em função de todas essas situações aqui
relatadas, continuo indo à Maquine, indo à Solidão, participando de reuniões, buscando
espaços na Universidade para que tais movimentos possam ter espaço.
Finalmente com o tema das diferentes formas de apresentar a tese, seja através das
notas, das imagens contidas na tese, recupero um pouco da ambiência dos Fundos da Solidão,
algumas imagens fugidias, como os materiais cotidianos, os momentos de sociabilidade
intensa, que indiretamente conduziram às constatações e reflexões aqui propostas. Revelam
uma artesanalidade que nos remete ao fazer antropológico, delicado em sua tessitura, como ao
tentar descobrir quais os sentidos de uma nota com fotos e texto, pois a cada movimento
estamos na iminência de nos confrontarmos com algo que nos faça pensar, estranhar,
devanear constituindo um vivido que nos conduz a um conhecimento, conhecimento esse do
outro mas ao mesmo tempo de si mesmo.
223
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ANEXOS
IMAGENS UTILIZADAS NA INSTALAÇÃO ONDE ESTAS SÃO APRESETNADAS
NA FORMA DE CÉDULAS DE UM REAL.
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