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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
NÍVEL DOUTORADO
LITON LANES PILAU SOBRINHO
COMUNICAÇÃO E DIREITO À SAÚDE
São Leopoldo
2008.
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10
LITON LANES PILAU SOBRINHO
COMUNICAÇÃO E DIREITO À SAÚDE
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Área de
Ciências Jurídicas da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos, para obtenção
parcial do título de Doutor em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha
São Leopoldo
2008.
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__________________________________________________________________
P637c Pilau Sobrinho, Liton Lanes
Comunicação e direito à saúde / Liton Lanes Pilau Sobrinho. 2007.
215 f. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Direito)
São Leopoldo : Universidade do
Vale do Rio dos Sinos, 2007.
Orientação: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha.
1. Direito à saúde. 2. Comunicação. 3. Opinião pública.
4. Improbabilidade. I. Rocha, Leonel Severo, orientador. II. Título.
CDU 34:614
__________________________________________________________________
Catalogação: bibliotecária Daiane Citadin Raupp - CRB 10/1637
12
13
Dedico
Aos meus pais, por me
mostrarem as virtudes da vida,
minha família e ao meu avô
Mario Pilau, por seus
ensinamentos de vida.
14
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao meu orientador prof. Dr. Leonel Severo Rocha, por me
mostrar o caminho e direção do trabalho.
Ao Programa de Pós Graduação em Direito, Doutorado da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos, aos Prof. Dr. José Luis Bolzan de Moraes, Dr. Lenio Luis
Streck, Dr. Bruno Hammes, Drª. Maria Cláudia Crespo Brauner, aos funcionários da
secretária do PPG.
A CAPES, por propiciar o aprofundamento de meus estudos desde o
mestrado até o doutorado.
Aos meus irmãos, Alvaro, Karen, Catlen e Newton, pelo apoio dado em
virtude das ausências do convívio familiar.
Aos colegas do doutorado, ao amigo Paulo Roberto Ramos Alves, pelas
discussões e debates acerca da teoria sistêmica.
A minha linda e a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a
realização deste sonho, meu muito obrigado!
15
“La comunicación es un suceso
de efectos multiplicadores:
primero lo tiene uno, luego dos y
luego puede hacerse extensivo
a millones, dependiendo de la
red comunicacional en la que se
piense”.
Niklas Luhmann
16
Resumo
A tese realizada orienta-se no sentido da análise da dicotomia
probabilidade/improbabilidade comunicacional sanitária. Valendo-se da teoria
sistêmica luhmanniana, busca-se a análise enredada e comunicativa do fenômeno
da comunicação/não-comunicação como forma de efetivação do direito à saúde. A
saúde apresenta-se como uma realidade extremamente complexa, estabelecendo-
se, assim, um paradoxo: existe a garantia à manutenção e assistência sanitária de
todos pelos poderes públicos, entretanto a realidade brasileira espelha uma
realidade diversa daquela cristalizada no texto constitucional, refletindo uma
completa inoperância estatal no que tange à sua promoção. Desse modo,
considerando a concepção da sociedade como sistema comunicativo, o
questionamento proposto é dado precisamente no sentido da verificação das
possibilidades da comunicação, exemplificadas mediante a aids e o mal de
Alzheimer, para visualizar a constante viabilização da garantia constitucional à
saúde. Verifica-se, portanto, a saúde bifurcada mediante os aspectos comunicativo e
não comunicativo, sendo que improbabilidades comunicacionais residem
precisamente entre a comunicação/não comunicação, sendo sua superação
condição de possibilidade à comunicação. Para tornar-se possível a comunicação
deve ser buscada a superação das improbabilidades por meio da construção de uma
opinião pública consistente e voltada aos interesses da coletividade. Viabiliza-se,
assim, a aceitação comunicativa e, conseqüentemente, causam ressonâncias nos
sistemas sociais, promovendo assim, maiores possibilidades de efetivação da
garantia à saúde em todos os casos, sejam naqueles cujas atenções sociais são
notórias, como a aids, sejam incomuns e relegados a um segundo plano devido à
pouca importância atribuída pelo sentido atribuído pela sociedade, como os casos
do mal de Alzheimer.
Palavras-chave: comunicação; direito à saúde; improbabilidade; meios de massa;
opinião pública.
17
Abstract
The thesis held orients itself towards the analysis of the dichotomy likely / unlikely
communicational health. Using Luhmann´s systems theory we are seeking to
entangle in communicative analysis of the phenomenon of communication / non-
communication as a way of effectiveness of the right to health. The health presents
as a very complex reality, the concentration thus a paradox: there is a guarantee the
maintenance and health care for all by the government, however the Brazilian reality
reflects a reality different from that crystallized in the constitutional text, reflecting a
complete failure state as far as their promotion. Thus, considering the conception of
society as communicative system, the question proposed is given precisely towards
checking the possibilities of communication, exemplified by AIDS and Alzheimer´s
Disease to view the constant viability of the constitutional guarantee to health. There
is, therefore, health divided by communicative aspects and non-communicative,
which lie precisely improbabilities communication between the communication / no
communication, and its condition of possibility for overcoming communication. To
become possible the communication must be sought to overcome improbabilities
through the construction of a public consistent and dedicated to the interests of the
community. Allows up thus the acceptance communicative and, consequently, cause
resonances in social systems, thus promoting, more possibilities for effectiveness of
the security to health in all cases, are those whose social attention are notorious,
such as AIDS, are unusual and relegated to a background due to the importance
attached by little meaning assigned by society, as the cases of evil Alzheimer´s
Disease.
Keywords: communication; right to health; improbability; mass media; public opinion.
18
Resumen
La tesis realizada se orienta en el sentido del análisis de la dicotomía
probabilidad/improbabilidad comunicacional sanitaria. Se valiendo de la teoría
sistémica luhmanniana, búsqueda-si el análisis enredada y comunicativa del
fenómeno de la comunicación/no-comunicación como forma de efectuación del
derecho a la salud. La salud se presenta como una realidad extremadamente
compleja, se estableciendo, así, una paradoja: existe la garantía al mantenimiento y
asistencia sanitaria de todos por los poderes públicos, sin embargo la realidad
brasileña refleja una realidad diversa de aquella cristalizada en el texto
constitucional, reflejando una completa inoperancia estatal en lo que tange a su
promoción. De ese modo, considerando la concepción de la sociedad como sistema
comunicativo, duda propuesto Es dado precisamente en el sentido de la verificación
de las posibilidades de la comunicación, ejemplificadas mediante la sida y lo mal de
Alzheimer, para visualizar la constante viabilidad de la garantía constitucional a la
salud. Se verifica, por lo tanto, la salud bifurcada mediante los aspectos
comunicativo y no comunicativo, siendo que improbabilidades comunicacionales
residen precisamente entre la comunicación/no comunicación, siendo su superación
condición de posibilidad a la comunicación. Para volverse posible la comunicación
debe ser buscada la superación de las improbabilidades por medio de la
construcción de una opinión pública consistente y vuelta a los intereses de la
colectividad. Se viabiliza, así, la aceptación comunicativa y, consecuentemente,
causan resonancias en los sistemas sociales, promoviendo así, mayores
posibilidades de efectuación de la garantía a la salud en todos los casos, seamos en
aquellas cuyas atenciones sociales son notorias, como la sida, seamos poco
comunes y relegados a un segundo plano debido a poca importancia atribuida por el
sentido atribuido por la sociedad, como los casos del mal de Alzheimer.
Palabras Claves: comunicación; derecho a la salud; improbabilidade; medios de
masa; opinión pública.
19
Lista de abreviaturas
ABRAZ Associação Brasileira de Alzheimer
AIDS Acquired Immuno-deficiency Syndrome
CF/88 Constituição Federal de 1988
CPMF Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras
CSS Contribuição Social para a Saúde
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
LOS Lei Orgânica Nacional da Saúde
OMS Organização Mundial da Saúde
OPAS Organização Panamericana da Saúde
SUS Sistema Único de Saúde
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
1. SOCIEDADE COMO SISTEMA COMUNICATIVO......................................................17
1.1 História e comunicação...............................................................................................17
1.2. Comunicação sob o prisma sistêmico.....................................................................36
1.3. Funcionalidade dos meios de comunicação..........................................................72
2. VÁCUO COMUNICATIVO DAS GARANTIAS SANITÁRIAS.....................................99
2.1. Conceito de opinião pública......................................................................................99
2.2. Evolução da opinião pública..................................................................................116
2.3. Improbabilidades comunicativas...........................................................................132
3. PARTICIPAÇÃO SOCIAL E COMUNICAÇÃO..........................................................150
3.1. Democracia participativa e saúde.........................................................................150
3.2. Estudos de casos ....................................................................................................189
3.2.1. AIDS.................................................................................................................... 189
3.2.2. Mal de Alzheimer .............................................................................................. 196
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................200
REFERÊNCIAS...................................................................................................................207
10
INTRODUÇÃO
A saúde é uma realidade paradoxal. Ao mesmo tempo em que a Carta
Política de 1988 é cristalina ao estabelecer e generalizar o alcance da prestação
sanitária a todos os indivíduos, indistintamente, bem como atribuir competência aos
poderes públicos para sua promoção, manutenção e recuperação, a violação de tais
direitos apresenta-se cotidianamente.
A Constituição Federal de 1988 trouxe consigo a garantia irrestrita à saúde e
à própria vida enquanto direito fundamental do indivíduo, cabendo ao Estado o
respeito incondicional a tais bens. Logo, as prestações estatais no âmbito sanitário
possuem um caráter promocional, visando a constante melhora da qualidade de vida
dos indivíduos. A problemática da saúde pública brasileira se dá justamente pela
inoperância dos entes públicos, constitucionalmente obrigados às prestações
sanitárias.
A realidade da saúde pública nacional é cotidianamente agravada pelo
descaso dos poderes públicos, pela prevalência de critérios econômicos em
detrimento da qualidade de vida dos indivíduos e, diga-se, notadamente pela
passividade da coletividade, pela ausência comunicativa. A sociedade pós-moderna
é caracterizada pelo seu caráter fragmentário e pela constante produção de
indeterminações, sendo a saúde pública uma garantia constantemente perseguida e,
paradoxalmente, imediatamente negada a seus titulares.
Nesse palco de indeterminações e incertezas, a própria concepção
sociológica clássica acerca da sociedade pode ser substituída pela ótica sistêmica
promovida por Niklas Luhmann, para quem a sociedade é caracterizada
exclusivamente por comunicações. A comunicação consiste num fenômeno circular
e auto-referencial cuja recursividade viabiliza a formação da sociedade como uma
rede comunicativa global. Assim, a própria sociedade é produtora e destinatária de
11
suas comunicações, repetindo constantemente operações de modo a assegurar sua
automanutenção e autocriação. Em outras palavras, a sociedade é constantemente
produzida comunicativamente com base em suas próprias comunicações. O sistema
social, dessa forma, é autoproduzido mediante a circularidade e reflexividade de
seus próprios elementos, ou seja, comunicações.
Logo, a partir da concepção da sociedade como um sistema que engloba
apenas comunicações, é oportuna, senão necessária, a análise da problemática do
direito à saúde sob o viés comunicativo. Enquanto objeto da pesquisa realizada, é
precisamente na comunicação que residem possibilidades de mudança e de
efetivação da garantia à saúde, via processamento de perturbações pela sociedade.
A comunicação, por sua vez, conforme Luhmann
1
, mostra-se um evento
extremamente improvável, eis que o isolamento sistêmico apenas permite sua
compreensão com base num contexto predeterminado. Por outro lado, a
comunicação encontra barreiras para ascender a seus receptores, sendo muito
pouco provável que determinada comunicação chegue a um maior número de
pessoas do que aquelas presentes em dada situação, bem como é igualmente difícil
que a comunicação seja aceita e incorporada pelo receptor tal como emitida.
Essas improbabilidades comunicacionais sobressaem-se na discussão acerca
do direito à saúde. A garantia sanitária existe e em diversos casos há comunicação
com a superação das improbabilidades como por exemplo, os extensos debates
levados adiante acerca da epidemia de aids. Entretanto, a problemática vista diz
respeito à existência de um vácuo comunicativo, um espaço de não-comunicação no
qual se encontram determinadas garantias sanitárias. Atente-se, a título
exemplificativo, aos portadores do mal de Alzheimer: inexiste a prestação estatal
efetiva e com vistas à melhora da qualidade de vida destes indivíduos, pois,
paradoxalmente, diante dessa sociedade da comunicação, há silêncio.
1
LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 3. ed. Lisboa: Vega, 2001. p. 41-43.
12
A tese ora proposta visa, assim, à análise do papel dos meios de
comunicação de massa para a viabilização de comunicações aptas à transformação
da realidade social, como fontes de superação das improbabilidades
comunicacionais e de práticas discursivas voltadas à constante melhora da saúde
pública.
O método empregado foi o sistêmico. O método sistêmico é visualizado na
análise da problemática da comunicação sanitária no sentido de um estudo não
isolado em si, mas aberto, dado de forma enredada e integrada. A aplicabilidade do
método em comento pode ser vista na presente tese de forma explícita quando é
trabalhada a questão da comunicação/não-comunicação sanitária nos casos de aids
e mal de Alzheimer, buscando-se com isso a integração da comunicação no meio
social como forma de efetivação do direito à saúde. Por outro lado, a metodologia
empregada reflete a possibilidade de viabilização de observações de segunda
ordem, isto é, o fornecimento de descrições mediante observações. Nesse sentido,
as descrições acerca das possibilidades da saúde devem ser dadas mediante o
contexto sistêmico no qual se encontra em dado momento a própria sociedade.
A pesquisa é inaugurada, no primeiro capítulo, com o estudo da proteção
constitucional do direito à saúde e o controle social de sua (auto)reprodução,
aduzindo-se a proteção estabelecida constitucionalmente à saúde e a instituição dos
controles sociais no Brasil. A seguir são analisados os conselhos de saúde no Brasil
e as redes de poder na ação política, bem como o histórico da participação popular e
a ordem descritiva de reprodução social no Brasil, demonstrando-se, com isso, a
estrutura político-sanitária e os instrumentos aptos à proteção à saúde. A proteção
jurídica à saúde é uma realidade presente, por isso, tenciona-se demonstrar a
estrutura sanitária nacional, de modo a visualizar os necessários elementos para a
promoção da saúde.
De igual forma, o capítulo inaugural demonstra a existência de mecanismos
jurídicos aptos à viabilização da realização do direito à saúde. Desde as pressões
exercidas por grupos organizados da sociedade civil até a final proclamação da
13
saúde como direito de todos e dever do Estado. A saúde é uma realidade
constantemente perseguida, razão pela qual foram sendo criados gradativamente
mecanismos para sua realização, cuja inoperância, contemporaneamente, traduz a
necessidade de uma melhor análise da problemática sanitária.
Essa inoperância estatal no que tange à realização sanitária pode ser
analisada sob o viés da comunicação. Desde a superação do conceito parsoniano
de ação, a comunicação toma foco central nos debates acerca da sociedade. A
comunicação, assim, consiste na própria sociedade, razão pela qual, quanto maiores
os níveis de comunicação, mais as relações sociais são complexificadas.
Assim, a tese ora apresentada é iniciada pelo estudo da comunicação sob o
viés sistêmico, buscando traçar os principais aspectos da teorização luhmanniana
acerca da sociedade e do direito. A seguir, passa-se à análise da funcionalidade dos
meios de comunicação, sendo trabalhada a função e operacionalidade dos meios de
massa na sociedade contemporânea.
A comunicação, entretanto, é permanentemente gerada e irradiada no meio
social através dos meios de comunicação de massas. Nesse sentido, os meios de
comunicação são, em grande parte, fornecedores de elementos à própria
constituição da sociedade. Logo, no segundo capítulo as atenções voltam-se à
opinião pública, sendo estudadas as redes de disseminação comunicativa como
geradoras de opinião pública, salientando-se aqui o papel dos meios de
comunicação de massa na formação da opinião pública analisando, ao cabo, a
problemática das improbabilidades da comunicação.
Nesse mesmo passo, o terceiro e úntquarto capítulo é focado na promoção da
crítica da opinião pública ao modelo estatal, iniciando com a conceituação de opinião
pública e com a transição de competências públicas para entes privados. Ato
contínuo, são estudadas as redes de disseminação comunicativa como geradoras
de opinião pública, salientando-se aqui o papel dos meios de comunicação de
14
massa na formação da opinião pública. A seguir, passa-se à análise da soberania
popular da opinião pública enquanto expoente de uma realidade democrática e
visualizam-se os meios pelos quais a opinião pública reveste-se como condição de
possibilidade para a mudança social.
Finalmente, o terceiro capítulo, que encerra a tese, refere-se às relações
entre democracia participativa e saúde, mencionando-se a consticucionalização do
direito à saúde e as garantias sanitárias então disponíveis. Igualmente é trazida a
análise de casos de aids e mal de Alzheimer como exemplos da comunicação/não-
comunicação sanitária em relação a doenças, precisamente no duplo sentido de
promoção de comunicações e da permanência em silêncio, atendo-se às
possibilidades trazidas quando há comunicação e, inversamente, o isolamento
quando os meios de comunicação calam.
A tese ora apresentada justifica-se em virtude da extrema necessidade de
realização fática da garantia à saúde. Faz-se necessária, por isso, a análise da
relação entre o fenômeno da comunicação e dos meios de massa como modos de
construção da realidade social e, assim, como viabilizadores de observações para
futuras descrições. Nos últimos anos, a velocidade e a quantidade de
acontecimentos observados no mundo inteiro dão um tom dramático à sensibilidade
de comunicação temporal. O desenvolvimento tecnológico tem trazido grandes
avanços e, em contrapartida, insegurança em relação aos limites impostos ao poder
econômico. Vivencia-se uma crise paradoxal na relação prestacional da saúde
pública, principalmente pela incerteza da promoção, prevenção e cura de doenças.
Há, hoje, uma crise epidemiológica no mundo, sendo exemplo a AIDS e outras
doenças com menos significância, como o Alzheimer, que atinge uma menor parcela
da população.
Com todos os avanços e o desenvolvimento de novas tecnologias na área
da saúde, se está diante de um paradoxo, isto é, o Estado está cada vez mais
reduzindo o investimento em pesquisas e deixando para a iniciativa privada dominar
o campo das novas tecnologias, sobre o que fica a dúvida de qual é o papel estatal,
eis que a sociedade fica, assim a mercê do mercado. A crise da saúde pública,
15
então, pode ser vista desde uma perspectiva epistemológica, na qual a partir da
revisão do pensamento sistêmico e complexo, passam a constituir uma forma de
contribuição para o questionamento conceitual e prático do campo, em busca de
respostas aos problemas que o atingem.
Os operadores do direito esforçam-se para encontrar saídas para os
problemas que são apresentados à sociedade, buscando dar legitimidade ao
sistema positivista, expresso no senso comum teórico. Na verdade, o direito deve ter
um sentido comum teórico, em busca da solução para as lacunas jurídicas,
buscando, assim, compensar o vazio da lei graças à produção, da circulação e da
consumação de verdades nas diversas práticas de enunciação do direito, elencar-
se-á o conjunto de representações, de crenças e de ideologias que influenciam os
operadores do direito.
Diante da complexidade da relação direito e saúde, justifica-se o interesse
pelo tema em função do direito à saúde possuir uma proteção constitucional,
estabelecendo-se, por conseguinte, como um direito de todos e como dever do
Estado de garantir o financiamento do sistema sanitário.
Defronta-se, então, com o comprometimento político-privatista e com o
descrédito estatal quanto a atingir sua finalidade assistencial-prestacional na área da
saúde. Se está diante de uma crise político-privatista-social, na qual os atores
sociais ficam enclausurados em seu sistema, impossibilitando a comunicação, e,
com isso, acerando a certeza de improbabilidade comunicacional.
Nesse passo, as descrições a serem constantemente empreendidas pelos
meios de comunicação de massa devem estar de acordo com as necessidades
sociais, não destoando desse mesmo cotidiano mediante a formação de
observações manipuladas ou concordantes apenas aos interesses de minorias
políticas ou econômicas, mas, sim, fornecendo alternativas, viabilizando o debate
acerca da saúde pública, complexificando os sistemas sociais pela aquisição de
alternativas para a problemática de seu entorno e, conseqüentemente, reduzindo a
complexidade do ambiente.
16
Por isso, a tese propõe a visualização da problemática do direito à saúde sob
o prisma da comunicação mediante a teoria sistêmica luhmanniana. Com isso se
consegue visualizar uma forma de se ver efetivo o direito à saúde mediante a
constante construção da realidade operada pelos meios de comunicação de massa.
Vislumbra-se, assim, a construção de uma realidade próxima aos anseios da
população, enquanto práticas comunicativas efetivamente voltadas à transformação
da sociedade.
17
1. SOCIEDADE COMO SISTEMA COMUNICATIVO
A comunicação exerce papel de extrema relevância no sistema da sociedade.
É por meio dela que a própria existência do social é viabilizada, conforme a
compreensão luhmanniana. Desse modo, o estudo a seguir é delimitado pelo estudo
teórico da comunicação, notadamente voltado à compreensão da comunicação
como sociedade.
1.1 História e comunicação
A comunicação é um processo primordial no desenvolvimento humano e
social. É por meio dela que se estabelecem relações de troca, interesse, aceitação,
repúdio, etc., perfazendo um meio viabilizador da convivência humana e da
formação de sistemas sociais. No curso da evolução humana, a comunicação
representou papel de significativa importância no desenvolvimento dos povos,
perpassando por diversas etapas até cristalizar-se como uma operação
eminentemente social.
A história do homem sobre a terra constitui-se num permanente
esforço de comunicação. O ser humano é um ser social que pode
abster-se de intercambiar, se necessário, bens materiais, mas não
pode deixar de trocar informações, idéias, emoções, pois a
intercomunicação é como a respiração de uma sociedade. O termo
comunicação está ligado ao adjetivo comum, que podemos descobrir
na palavra comunicar, a significação de tornar comum, colocar em
comum, isto é, dar ao outro alguma coisa que não deixa também de
ser nossa. Entregar ao nosso próximo alguma coisa que ainda
continua a nos pertencer. É como repartir o conhecimento numa
inter-relação social, afetiva e constante. É educar no desprendimento
das relações sociais
2
.
2
AVELINO, Yvone Dia. Comunicação e História. In: DOWBOR, Ladislau et al. Desafios da
Comunicação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 291.
18
O processo comunicativo remonta ao início da aventura humana sobre a
Terra. Todavia, a divisão da história em eras ou períodos pouco auxilia na
compreensão das origens da comunicação, devendo-se partir da consideração de
momentos de transição nos quais se realizaram avanços consideráveis, como o
desenvolvimento da fala, da escrita, etc.
3
Pode-se compreender, de forma provável, que um primeiro estágio do
desenvolvimento do processo da comunicação foi a utilização de símbolos e sinais
pelo homem primitivo. Com o passar de muitos milênios, com uma maior capacidade
cerebral, foram desenvolvidos gestos e a emissão de sons, juntamente com a
padronização de determinados sinais que possibilitavam a comunicação primitiva.
4
Encontra-se aqui o momento em que o homem pré-histórico iniciava sua
diferenciação para com o restante do mundo animal. Já nessa época surgiam
manifestações artísticas e signos comunicativos, a exemplo das pinturas rupestres e
dos desenhos nas grutas em Lascaux.
É de ser salientado que, nesse primeiro momento da comunicação, inexistia
a fala. A ausência da fala no homem primitivo não era decorrente de
desconhecimento ou de incapacidade psíquica para realizá-la, mas, sim, de simples
incapacidade física. Conforme estudos paleontológicos realizados, os remotos
ancestrais humanos não possuíam condições para tanto, dada a localização de sua
laringe e caixa de ressonância, as quais impossibilitavam a (re)produção sonora
necessária à fala, permitindo unicamente a forma de comunicação primata de sons
disformes e grunhidos.
5
Não obstante a ausência da fala, a comunicação gestual e
por meio de sons cumpria seu papel: perfazia a irritabilidade dos diversos sistemas
psíquicos
6
das comunidades humanas primitivas, decretando desde já uma
superioridade em relação aos outros animais
7
.
3
DEFLEUR, Melvin L.; BALL-ROKEACH, Sandra. Teorias da Comunicação de Massa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 21-22.
4
DEFLEUR; BALL-ROKEACH, Teorias da Comunicação de Massa, p. 23.
5
Idem, ibidem, p. 26-27.
6
LUHMANN, Niklas. Novos Desenvolvimentos na Teoria dos Sistemas. In: NEVES, Clarissa Eckert
Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Org.). Niklas Luhmann: a Nova Teoria dos Sistemas. Porto
Alegre: Editora da Universidade/Goethe-Institut, 1997. p. 52; MATURANA, Humberto; VARELA,
Francisco. A Árvore do Conhecimento: as Bases Biológicas da Compreensão Humana. São Paulo:
19
Nessa mesma esteira, decisivo ao desenvolvimento da comunicação
(humana) foi o aperfeiçoamento da fala e da linguagem pelos povos pré-históricos.
Com o surgimento da linguagem
8
há, provavelmente, 35 a 40 mil anos, a própria
noção de sobrevivência foi alterada, instaurando-se a fala como um meio altamente
adaptativo ao seu meio.
9
Notável avanço, contudo, seria visto no instante seguinte,
no momento considerado como início da história: o desenvolvimento da escrita.
Levou milhões de anos para nossa espécie adquirir a capacidade de
usar a linguagem. Levou muitos séculos para que o ato de escrever
tornasse uma realidade, mas este foi um período de tempo
relativamente curto. A história da escrita é a passagem da
representação pictória para sistemas fonéticos, de representação de
idéias complexas com imagens ou desenhos estilizados para a
utilização de simples letras dando a entender determinados sons. As
mais antigas tentativas para registrar informações de maneira a
poderem ser recuperadas mais tarde foram complicadas
representações de animais e cenas de caçadas em pedra, que foi o
primeiro veículo.
10
O início da escrita pode ser compreendido, conforme Defleur e Ball-
Rokeach, como sendo a passagem de um sistema baseado em representações
pictórias para um sistema fonético, mais complexo e possibilitador da concatenação
de idéias por meio de signos comunicativos. Sua história é realizada em dois
Palas Athena, 2001. p. 87: Conforme Luhmann, alicerçado em Maturana, inexiste troca de
informações, mas, sim, perturbações e ressonâncias. De igual maneira, Luhmann distingue a
existência de três classes de sistemas: sistemas orgânicos, psíquicos e sociais.
7
DEFLEUR; BALL-ROKEACH, Teorias da Comunicação de Massa. Op. cit., p. 29.
8
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad. México: Editorial Herder, 2007, p. 157: “El médium
fundamental de comunicación el que garantiza la regular y continua autopoiesis de la sociedad es
la lenguaje. Sin lugar a dudas existe comunicación sin lenguaje, aquella que se efectúa mediante
gestos o puede advertirse en el simple proceder verbigracia en el trato con las cosas aunque no se
le llame comunicación. Sin embargo, cabe la pregunta de si en caso absoluto de no existir lenguaje
es decir, en caso de no existir experiencia lingüística , es posible alguna comunicación, si es posible
observar la distinción información/darla-al-conocer. De cualquier forma el proceder interpretado
depende tanto de la situación del contexto que no deja espacio para la diferenciación entre médium y
forma y eso justamente lo aporta el lenguaje. En todo caso, sin lenguaje no es posible la
autopoiesis de un sistema de comunicación porque ésta presupone siempre una perspectiva regular
de ulterior comunicación aunque una vez posibilitada por el lenguaje permite que haya
comunicación sin lenguaje.”
9
DEFLEUR; BALL-ROKEACH, Teorias da Comunicação de Massa. Op. cit., p. 30.
10
Idem, ibidem, p. 32.
20
grandes momentos, correspondentes a duas formas de escrita: a ideográfica e a
alfabética
11
.
A escrita ideográfica, surgida em torno de 4.000 a.C.
12
, consistia em uma
forma de representação por meio de desenhos, isto é, utilizavam-se figuras únicas
ou combinadas com outras para traduzir a realidade, como, por exemplo, objetos,
fatos, eventos, etc. Progressivamente, a escrita pictográfica cedeu lugar à escrita
alfabética, consistindo esta última na concatenação de signos abstratos aptos a
representar os sons emitidos
13
. Emergia, assim, a tendência de que as figuras e
imagens utilizadas fossem progressivamente descontinuadas e a escrita alfabética,
instaurada como forma padrão, surgindo as primeiras manifestações da escrita
moderna.
Coube, entretanto, a povos como os fenícios e os semitas, da Síria, a
criação de um alfabeto rudimentar, mesmo que limitado pela inexistência de vogais e
causador de ambigüidades nas leituras. Entre os séculos VIII e IV a.C. ocorreu, na
Grécia, a formação de um alfabeto contendo vogais, viabilizando um prático meio
comunicativo
14
, o qual, posteriormente, seria repassado a Roma, onde foi
aperfeiçoado e constituído no meio utilizado até os dias atuais
15
.
A escrita foi um dos mais notáveis feitos do homem, tornando possível a
representação da realidade por meio da concatenação de signos codificados.
Possibilitou, por sua vez, o aumento da quantidade de descrições passíveis de
utilização pela sociedade, como meio de armazenamento, memória.
16
A existência e
generalização na utilização da escrita são de extrema importância e, mais, condição
11
BRETON, Philippe; PROULX, Serge. Sociologia da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2002. p. 18.
12
DEFLEUR; BALL-ROKEACH, Teorias da Comunicação de Massa. Op. cit., p. 33; BRETON;
PROULX. Sociologia da Comunicação. Op. cit., p. 18.
13
BRETON; PROULX. Sociologia da Comunicação. Op. cit., p. 19.
14
Idem, ibidem, p. 18.
15
DEFLEUR; BALL-ROKEACH, Teorias da Comunicação de Massa. Op. cit., p. 35.
16
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad. Op. cit., p. 196: “Todo esto se transforma de manera
paulatina aunque de manera más sustancial con el invento y la difusión de la escritura. La escritura
aumenta en primer lugar la cantidad de distinciones que una sociedad puede utilizar almacenar,
recordar. De eso resulta, asimismo, un aumento de las cosas o aspectos del mundo que se puede
indicarse.”
21
de possibilidade para outro significativo avanço, que muitos séculos depois seria
generalizado por Johann Guttemberg: a prensa e a técnica de impressão.
Técnicas de impressão remontam a 800 d.C., quando os chineses, valendo-
se de blocos de madeira lisa, escavavam letras ou imagens invertidas, aplicavam
tinta sobre a superfície escavada do bloco e pressionavam-na num papel,
viabilizando um primitivo sistema de impressão. Desta técnica tem-se a impressão
da Sutra do Diamante, o primeiro livro impresso do qual se tem notícia.
17
Contudo,
antes mesmo a transcrição de obras manuscritas em papiro realizada por escribas
era prática comum, tornando-se evidente o interesse do homem em perpetuar a
realidade por meio da palavra registrada num meio físico.
Com o advento da prensa de Guttemberg na Alemanha, foi prestado grande
serviço à humanidade e à evolução da comunicação. A partir do advento da famosa
Bíblia de Guttemberg, abriu-se a possibilidade de transcrição mecânica de letras e
imagens, viabilizando, assim, a impressão em larga escala e em curto espaço de
tempo. Tornou-se possível a difusão de obras em menor tempo e com qualidade
superior àquelas manuscritas, alcançando um maior número de pessoas e de
lugares.
18
Estava aberto, pois, o caminho para o início da democratização da
leitura.
19
A disponibilização de obras em diversos idiomas viabilizou a alfabetização
para um maior número de pessoas, iniciando-se a promoção de um movimento de
transformação social, possibilitando novas formas de vivências e de saberes. A
veiculação de livros e revistas implementou um súbito desenvolvimento social,
acelerando o tempo
20
e proporcionando o surgimento da comunicação de massa,
cujo estudo será realizado adiante.
17
DEFLEUR; BALL-ROKEACH, Teorias da Comunicação de Massa. Op. cit., p. 37.
18
Idem, ibidem, p. 38-39.
19
Saliente-se que a imprensa facilita a mercantilização da cultura, sendo a produção de textos
orientada a partir das demandas de mercado, afastando-se assim dos interesses dos autores e
editores. LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad. Op. cit., p. 226.
22
A comunicação corresponde à própria evolução humana. Desde o
surgimento das primeiras formas rudimentares de entendimento, como a utilização
de sons e grunhidos, da arte rupestre até o advento da escrita e dos modelos de
impressão, com a final generalização dos meios de comunicação de massa, o
homem defronta-se com a necessidade premente de comunicar. Portanto, a
importância da comunicação é destacada como fator sociabilizador e como meio de
desenvolvimento social e humano, ou, ainda, nestes tempos pós-modernos,
conforme o objeto deste estudo, como a própria sociedade.
A comunicação é um processo eminentemente social. Nesse passo é
desenvolvida uma íntima relação entre os processos comunicativos e a evolução das
civilizações. Desde a Grécia antiga até os dias atuais, a comunicação é o motor que
impulsiona as sociedades. Desse modo,
o que precisamos ter claro, contudo, é a existência de uma íntima
relação entre os processos comunicacionais e os desenvolvimentos
sociais. Isto porque a comunicação, ao permitir o intercâmbio de
mensagens, concretiza uma série de funções, dentre as quais:
informar, constituir um consenso de opinião ou, ao menos, uma
sólida maioria persuadir ou convencer, prevenir acontecimentos,
aconselhar quanto a atitudes e ações, constituir identidades, e até
mesmo divertir. O estudo da história das civilizações fiquemos com
as ocidentais, mas certamente podemos aplicar o mesmo princípio a
todas as demais evidencia uma íntima relação entre a existência de
sistemas comunicacionais e o auge do desenvolvimento civilizacional
21
.
Pode-se dizer que esse impulso civilizacional, não obstante o
desenvolvimento anterior da comunicação,
tomou grande impulso com a sociedade
grega. As críticas de Platão sobre a retórica, para o qual “não era uma arte, mas
apenas um empirismo, uma rotina que visava ao agradável, sem preocupação com o
melhor”
22
, traduzem o início de estudos sobre a comunicação.
20
MARCONDES FILHO, Ciro. Sociedade Tecnológica. São Paulo: Scipione, 1994, p. 51.
21
HOHLFELDT, Antonio. As Origens Antigas: a Comunicação e as Civilizações. In: HOHLFELDT,
Antonio; MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (Org.). Teorias da Comunicação: Conceitos,
Escolas e Tendências. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 63.
22
BRETON; PROULX. Sociologia da Comunicação. Op. cit., p. 29.
23
Em constante embate com as teses sofistas, Platão iniciou a compreensão da
comunicação como prática de poder. Essa relação entre conhecimento
(comunicação) e emancipação humana é traduzida no chamado mito da caverna
23
.
Segundo o mito, agrilhoadas, pessoas observavam impassíveis sombras de ações
que ocorriam no mundo externo projetadas no interior de uma caverna; em
determinado momento, uma destas pessoas evade-se da escuridão e, por alguns
instantes, é cegada pelo brilho da luz do dia. Essa metáfora traduz fortemente a
relação entre a passividade e a ação transformadora emancipatória, restando nítido,
igualmente, o poder da comunicação. Entretanto, Platão conclui pela impossibilidade
da comunicação, negando a possibilidade de troca de informações entre indivíduos
e estabelecendo a visão negativista de que todos estariam condenados à
segregação na obscuridade da caverna
24
.
A sua vez, Aristóteles admitia a possibilidade da comunicação, traduzindo já
naquela época a hipótese posteriormente delineada por Laswell
25
, qual seja, a
emissão da mensagem (fonte), a mensagem e a recepção da mensagem por alguém
(receptor), ainda que o modelo de Laswell tenha adicionado, posteriormente, o meio
e os efeitos do processo comunicacional
26
.
Esse conjunto de saberes permitia a inclusão do cidadão no seio da
sociedade grega, viabilizando sua identificação como parte da sociedade. “A
comunicação, assim, contribuía no dia-a-dia para construir e formalizar a
comunidade grega, integrando todos os seus participantes” e promovendo, assim, a
organização da sociedade e a inclusão de seus membros
27
.
23
PLATÃO, A República. 6. ed. São Paulo: Atena, 1956, p. 287-591.
24
HOHLFELDT, As Origens Antigas: a Comunicação e as Civilizações. Op. cit., p. 72.
25
LASWELL, Harold D. The Structure and function of communication in society. In: BRYSON, L. (Ed.).
The Communication of Ideas. New York: Harper, 1948. p. 84-99.
26
WOLF, Mauro.Teorias das Comunicações de Massa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 12;
HOHLFELDT, As Origens Antigas: a Comunicação e as Civilizações, 2001, p. 79.
27
HOHLFELDT, As origens Antigas. Op. cit., p. 80.
24
Em Roma, a comunicação teve um papel informativo para garantir o exercício
de poder. Na Grécia a comunicação era compreendida como forma de inclusão
social, como maneira de criação identitária do cidadão, ao passo que em Roma era
identificada como forma de manutenção do poder através da informação do que
ocorria no território do Império. Esse processo era um privilégio do imperador que,
por meio da informação, detinha o controle do que ocorria nas mais diversas regiões
sob o domínio romano.
O Império Romano, portanto, deu uma nova contribuição para o que
podemos denominar de história da comunicação. Para os romanos,
os processos de comunicação serviram essencialmente para controle
social, para garantia do poder, para o exercício político. Antecipando-
se às crises, mantendo-se informados de todo o que acontecia, os
governantes romanos evidenciaram que uma das funções básicas da
comunicação é, justamente, a de garantir não apenas a informação,
quanto a opinião consensual
28
.
A manutenção das acta diurna pode ser citada como exemplo desse controle
da informação pelos romanos: tratava-se do registro em papiro dos debates
ocorridos no Senado romano e afixados em muros para conhecimento da
população; posteriormente, passou-se a copiá-las e redistribuí-las para
conhecimento de todas as regiões do Império. Outra novidade trazida pelos romanos
no campo da comunicação foi o implemento de um serviço de correios. Tratava-se
de estradas especiais por onde trafegavam mensageiros do imperador com o
objetivo de troca de informações entre as mais longínquas regiões do Império,
visando à constante informação da administração romana sobre o que ocorria em
seus domínios
29
.
De igual forma, atividades relacionadas à comunicação verificam-se na
Europa dos séculos XV e XVI, dentre as quais se podem destacar a criação dos
palimpsestos nos mosteiros cristãos, o contato cultural promovido pelas Cruzadas e
28
Idem, ibidem, p. 81.
29
HOHLFELDT, As Origens Antigas. Op. cit., p. 82-83.
25
pelas grandes expedições marítimas, a já mencionada invenção do tipo móvel de
Johannes Gutenberg. A partir disso,
os processos comunicacionais, agora enriquecidos com a invenção
do tipo móvel e a conquista do papel, permitiam a plena difusão das
novidades num ritmo tão rápido quanto jamais haviam sonhado até
então os europeus. Não por um acaso, a partir da metade do século
XVII, mais exatamente a partir de 1605, começaram a circular as
folhas informativas, os mais fiéis antecessores de nossos jornais,
vendidas a exemplar, nas portas muradas das cidades ou nas feiras,
onde todo o tipo de gente se reunia, aguçando a curiosidade e
fazendo com que o mais letrado, em altos brados, lesse o que se
achava impresso para aqueles que estavam impossibilitados de o
fazer, tal como ocorre, ainda hoje, no interior do Nordeste brasileiro
com os chamados folhetos de cordel, cantados pelo compositor ou
simples revendedor, de modo a atrair a clientela, variante do que
fazem os nossos vendedores de jornal com as manchetes de cada
dia. Essa foi, na verdade, uma nova função logo descoberta para os
processos de comunicação: a popularização de novidades
30
.
Essa popularização das novidades é verificada, igualmente, no cenário
cultural francês a partir do final do século XVIII e na primeira metade do século XIX.
Num contexto de efervescência cultural, a comunicação adquiriu na França um
espaço para sua universalização: a publicação de diversas obras e de jornais e
revistas veio a promover, de certa forma, a abertura ao acesso à informação,
iniciando um processo de universalização e de mercantilização
31
da informação.
32
A partir da segunda metade do século XX, a comunicação desenvolveu-se
de forma assombrosa. A invenção do cinema pelos irmãos Lumière, com as
posteriores inovações do som e da cor, o surgimento do telefone pelas mãos de
Alexander Graham Bell
33
, o desenvolvimento vertiginoso da informática
34
e das
30
HOHLFELDT, As Origens Antigas. Op. cit., p. 86.
31
Posteriormente, essa mercantilização da informação, compreendida como a produção seriada de
produtos culturais, seria objeto de estudo por Theodor Adorno e Max Horkheimer, da Escola de
Frankfurt, na qual foi definida a noção de indústria cultural. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max.
Dialéctica do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
32
HOHLFELDT, As Origens Antigas. Op. cit., p. 88-93.
33
Idem, ibidem, p. 93-95.
34
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. v. 1. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 76-82.
26
telecomunicações
35
, a possibilidade de manutenção do código genético
36
, dentre
um incontável número de inovações, possuem estreita relação, ou melhor, são
produto e requisito da comunicação contemporânea.
A comunicação, à medida que se tornou um fenômeno social, transmudou-
se, igualmente, em objeto de estudo por diversas teorias e correntes que se fixaram
na tentativa de elucidar seu processo, universalidade e efeitos. Dentre as teorias e
escolas empenhadas nessa tentativa destacam-se a pesquisa norte-americana, a
Escola de Frankfurt, os estudos culturais, o pensamento francês sobre a
comunicação, a pesquisa na América Latina, bem como a comunicação vista do
ângulo semiótico.
A pesquisa norte-americana teve início com os estudos de Laswell,
espelhados na obra Propaganda techiniques in the world war, publicada em 1927. A
Mass Communication Research pode ser dividida em três momentos: a) a teoria
matemática ou teoria da informação, postulada por Shannon e Weaver, a qual
consistia na “sistematização do processo comunicativo a partir de uma perspectiva
puramente técnica”;
37
b) a teoria funcionalista, originária dos estudos de Laswell,
38
que “aborda hipóteses sobre as relações entre indivíduos, a sociedade e os meios
de comunicação de massa”
39
; c) a corrente voltada aos estudos dos efeitos da
comunicação, então denominada “teoria hipodérmica”, pela qual a comunicação
atingiria os indivíduos provocando determinados efeitos
40
.
De acordo com a teoria matemática de Shannon e Weaver, a comunicação
seria vista como um sistema, não como um processo, sendo buscada sua explicação
por meio de procedimentos técnicos. Dessa maneira, o passo subseqüente da
teorização norte-americana deu-se com Laswell, o qual procurou a explicação do
35
Idem, ibidem, p. 82-89; CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003.
36
CASTELLS, A Sociedade em Rede. Op. cit., p. 92-96.
37
ARAÚJO, Carlos Alberto. A Pesquisa Norte-Americana. In: HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz
C.; FRANÇA, Vera Veiga (Org.). Teorias da Comunicação: Conceitos, Escolas e Tendências.
Petrópolis: Vozes, 2001. p. 120.
38
LASWELL, The Structure and Function of Communication in Society. Op. cit., p. 84-99
39
ARAÚJO, A Pesquisa Norte-Americana. Op. cit., p. 122.
27
fenômeno comunicativo no meio social, bem como dos meios massivos de
comunicação. Nesse mesmo contexto, despontou a teoria hipodérmica como modo
de explicação da forma como a comunicação atingia seu público e dos efeitos que
nele desencadeava. Assim,
até os anos 60, as grandes evoluções por que passa a investigação
sobre os Efeitos, nos Estados Unidos, devem-se ainda
principalmente aos resultados contraditórios e complexos
encontrados nas pesquisas empíricas, que levavam constantemente
a reformulações dos quadros teóricos utilizados pelos pesquisadores
da época. A partir dos anos 60, essa grande corrente de estudos vai
dialogar de forma mais consistente com diversas outras correntes de
estudo, tanto norta-americanas (aquelas antes relegadas à
marginalidade, como o Interacionismo simbólico, a Semiótica e a
Escola de Palo Alto, e outras áreas de pesquisa como a Sociologia
do Conhecimento) como européias (a Corrente Culturológica
francesa, a Semiologia, os Cultural Studies de Birmingham). Desse
diálogo resultam novas abordagens da problemática dos efeitos, que
apontam para um quadro explicativo já bastante diferente do primeiro
modelo a orientar os estudos da década de 30
41
.
Outra teorização trazida pelas pesquisas norte-americanas foi a hipótese do
Agenda Setting, ou teoria dos efeitos a longo prazo, pela qual a comunicação não
era compreendida como meio hábil à formação de opinião, mas, sim, como forma de
alteração da estrutura cognitiva dos indivíduos
42
.
A pesquisa norte-americana, assim, voltou-se à análise dos elementos
internos do processo comunicativo, buscando o estudo das funções da
comunicação, bem como dos seus efeitos.
A sua vez, denominou-se Escola de Frankfurt ao conjunto de pensadores
alemães formado, entre outros, por Theodor Adorno, Max Horkheimer, Erich Fromm
e Herbert Marcuse. Os frankfurtianos centraram suas pesquisas nas mais diversas
40
WOLF, Teorias das Comunicações de Massa. Op. cit., p. 4-5.
41
ARAÚJO, A Pesquisa Norte-Americana. Op. cit., p. 128-129.
42
WOLF, Teorias das Comunicações de Massa. Op. cit., p. 143-144; ARAÚJO, A Pesquisa Norte-
Americana. Op. cit., p. 129.
28
áreas do conhecimento, tais como sociologia, psicologia, arte e filosofia,
promovendo, com isso, uma nova forma de ver o ser humano e o contexto no qual
está inserido
43
.
As contribuições desta escola no campo da comunicação centram-se na
criação do conceito de “indústria cultural” por Horkheimer e Adorno. A
mercantilização da cultura é analisada pelos pensadores de Frankfurt no sentido de
“subordinação da consciência à racionalidade capitalista”
44
. Nessa seara, toda
produção intelectual passa a ser considerada em seu prisma econômico, visando,
assim, ao aproveitamento dos bens culturais para consumo no mercado capitalista.
Os pensadores frankfurtianos criticaram a cultura de massa não
porque ela é popular mas, sim, porque boa parte dessa cultura
conserva as marcas das violências e da exploração a que as massas
têm sido submetidas desde as origens da história. A linguagem
rebaixada, o menosprezo da inteligência e a promoção de nossos
piores instintos, senão da brutalidade e da estupidez, que
encontramos em tantas expressões da mídia, sem dúvida se devem
ao fato de que há muitas pessoas sensíveis a esse tipo de estímulo
mas, e isso é o que importa, tal fato não é algo natural nem, também,
algo criado pela comunicação. [...] Os frankfurtianos se opuseram à
prática de pesquisa orientada para servir aos interesses do poder
estatal e das empresas de comunicação. A preocupação central dos
pensadores não era melhorar o conhecimento dos processos com
que se envolvem os meios e, assim, facilitar seu uso e exploração.
Desejavam, antes de mais nada, problematizar a sua existência e
seu significado do ponto de vista crítico e utópico
45
.
Dessa maneira, os frankfurtianos identificaram uma série de fenômenos
sociais que levavam a enfraquecer os discursos até então dominantes, como o
capitalismo, que se erigiu como o principal elemento de formação da cultura,
mercantilizando a produção intelectual e, de certa forma, enfraquecendo as práticas
discursivas até então dominantes, tais como a família, a religião, a escola, etc.
43
RÜDIGER, Francisco. A Escola de Frankfurt. In: HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA (Org.). Teorias
da comunicação: conceitos, escolas e tendências, p. 131-132.
44
Idem, ibidem, p. 138.
29
Contemporaneamente, pode-se referir Jürgen Habermas como herdeiro
intelectual do pensamento de Frankfurt. A este pensador deve-se a noção de esfera
pública, a qual, para ele, é formada mediante a discussão e deliberação acerca de
assuntos comuns. Habermas aduz que os meios de comunicação de massa
promoveram uma considerável expansão na esfera pública, trazendo, com isso, uma
significativa mudança na própria compreensão do público
46
. A contribuição de
Habermas para o campo da comunicação traduz-se na chamada teoria da ação
comunicativa, cujo estudo específico é realizado adiante.
O pensamento de Frankfurt promoveu a crítica da cultura de massa em
razão da dominação por ela explicitada, traduzindo uma aposta teórica crítica acerca
do menosprezo às massas. Os frankfurtianos não pretendiam a melhora do
conhecimento acerca dos meios de comunicação de massas, mas, antes, a
problematização de sua existência. Para Rüdiger:
Os pensadores frankfurtianos criticaram a cultura de massa não
porque ela é popular mas, sim, porque boa parte dessa cultura
conserva as marcas das violê3ncias e da exploração a que as
massas tem sido submetidas desde as origens da história. A
linguagem rebaixada, o menosprezo da inteligência e a promoção de
nossos piores instintos, senão da brutalidade e da estupidez, que
encontramos em tantas expressões da mídia, sem dúvida se devem
ao fato de que há muitas pessoas sensíveis a esse tipo de estímulo
mas, e isso é o que importa, tal fato não é algo natural nem, também,
algo criado pela comunicação
47
.
Desse modo, a linha de pensamento frankfurtiana voltou-se à crítica dos
meios de comunicação de massa como vetores da mercantilização da cultura,
expondo que a comunicação teria um caráter emancipatório e transformador, cuja
má utilização (no sentido de mercantilização da cultura) negaria tais possibilidades e
45
RÜDIGER, A Escola de Frankfurt. Op. cit., p. 144-145.
46
HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984.
47
RÜDIGER, A Escola de Frankfurt. Op. cit., p. 144.
30
viabilizaria uma prática regressiva com a intrínseca negação às suas
potencialidades.
Enquanto a Escola de Frankfurt ocupou-se com a crítica aos meios de
comunicação, o campo dos estudos culturais, iniciado em 1964 com a fundação do
Centre for Contemporary Cultural Studies na Inglaterra, teve como linha principal a
preocupação com as formas, práticas e instituições culturais, bem como as relações
com a sociedade. Dentre os pensadores cujos estudos influenciaram a criação e
desenvolvimento dos estudos culturais destacam-se Richard Hoggart, Raymond
Williams, E. P. Thompson e Stuart Hall
48
.
A formação dos estudos culturais deveu-se a um leque de preocupações
que incorporavam as relações entre cultura, história e sociedade. Nesse sentido, as
pesquisas realizadas ocuparam-se com manifestações culturais não tradicionais,
viabilizando a possibilidade de uma nova visão sobre o fenômeno da comunicação
de forma desvinculada dos centros de poder e de produção tradicional da cultura.
Por isso.
No momento em que os Estudos Culturais prestam atenção a formas
de expressão culturais não-tradicionais se descentra a legitimidade
cultural. Em conseqüência,a cultura popular alcança legitimidade,
transformando-se num lugar de atividade crítica e de intervenção.
Dessa forma, a consideração sobre a pertinência de analisar práticas
que tinham sido vistas fora da esfera da cultura inspirou a geração
que desenvolveu os Estudos Culturais, principalmente, a partir dos
anos 60, Logo, os Estudos Culturais construíram uma tendência
importante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de
hierarquias entre formas a práticas culturais, estabelecidas a partir de
oposições como cultura alta/baixa, superior/inferior, entre outras
binariedades
49
.
A proposta dos cultural studies reveste-se, assim, não como uma disciplina
acabada, mas como um conjunto de disciplinas inter-relacionadas e com diversos
48
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os Estudos Culturais. In: HOHLFELDT; MARTINO.; FRANÇA
(Org.). Teorias da Comunicação: Conceitos, Escolas e Tendências, p. 152.
31
pontos em comum. O encontro, em seu primeiro momento, entre literatura inglesa,
sociologia e história proporcionou uma nova maneira de se pensar a cultura das
massas, tornando possível a análise da cultura popular
50
.
Nesse mesmo passo, no início da década de 1970 as pesquisas realizadas
centraram-se em formas de manifestação subculturais, cujo exercício se mostrava
insurgente às manifestações de poder centralizadoras e dominantes. A partir da
metade dessa mesma década, os pesquisadores britânicos perceberam a
importância dos meios de comunicação de massa, compreendidos a partir de então
não apenas como forma de entretenimento, mas como poderosos aparelhos
ideológicos do Estado.
51
Se originalmente os Estudos Culturais podem ser considerados uma
invenção britânica, hoje, na sua forma contemporânea, tornaram-se
uma problemática teórica de repercussão internacional. Não se
confinam mais á Inglaterra e Europa nem aos Estados Unidos, tendo
se alastrado para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia, América
Latina e também para a Ásia e África. E é especialmente significativo
afirmar que o eixo anglo-saxão já não exerce mais uma incontestável
liderança desta perspectiva. A observação contemporânea de um
processo de estilhaçamento do indivíduo em múltiplas posições e/ou
identidades transforma-se tanto em tema de estudo quanto em
reflexo do próprio processo vivido atualmente pelo campo dos
Estudos Culturais: descentrado geograficamente e múltiplo
teoricamente
52
.
Os estudos culturais, dessa maneira, promoveram uma nova visão acerca
dos meios de comunicação de massa e da presença de manifestações culturais
minoritárias. O papel dos meios de comunicação é destacado pelos cultural studies
como formador de identidade, constituindo-se o reconhecimento identitário um dos
49
ESCOSTEGUY, Os Estudos Culturais. Op. cit. p. 157.
50
Idem, ibidem, p. 159.
51
Idem, ibidem, p. 160.
52
Idem, ibidem, p. 168.
32
principais debates da atualidade,
53
notadamente em questões envolvendo práticas
multiculturais
54
na complexa sociedade pós-moderna.
o pensamento francês sobre a comunicação resultou numa corrente
derivada da Escola de Frankfurt, não propriamente constituindo uma escola
específica para o estudo da comunicação
55
. As pesquisas realizadas nesse
contexto são espelhadas nas obras de Rolland Barthes, sobre semiologia; de Edgar
Morin, sobre a comunicação; na visão negativista de Jean Baudrillard, sobre a mídia;
no estudo dos meios hipertextuais, por Pierre Levy, além de inúmeros estudos
levados adiante por Lucien Sfez, Paul Virilio, Dominique Wolton, Pierre Bordieu,
Michel Maffesoli, Armand Mattelart, entre outros
56
.
O contexto acadêmico francês nos estudos sobre comunicação revelou-se
plural e extremamente diversificado. Por não se deter especificamente na
comunicação, houve a possibilidade de levar esses estudos adiante sem a ligação
específica a determinada corrente teórica. Dessa maneira, o pensamento francês
promoveu críticas as mais diversas sobre os meios de comunicação, a relação
emissor-receptor, a mídia na pós-modernidade, o fenômeno da internet e a difusão
das novas tecnologias
57
. Precisamente por isso é que
o mais interessante na babel francesa é que todos acertam e erram
em proporções equilibradas. A comunicação é, ao mesmo tempo,
fenômeno extremo, vínculo e cimento social, imagem ‘réliante’, fator
de isolamento, produtora de ‘tautismo’, espetacularização do
jornalismo e do mundo, cristalização da técnica que acelera a
existência e suprime o espaço e o tempo, fator de interatividade,
nova utopia, velha manipulação, meio, mensagem, suporte e
vertigem de signos vazios
58
.
53
ESCOSTEGUY, Os Estudos Culturais. Op. cit. p. 167.
54
Para maiores detalhes sobre multiculturalismo ver TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo.
Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
55
SILVA, Juremir Machado da. O Pensamento Contemporâneo Francês sobre a Comunicação. In:
HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA (Org.). Teorias da Comunicação: Conceitos, Escolas e
Tendências, p. 172.
56
SILVA, J. M. O Pensamento Contemporâneo Francês sobre a Comunicação, Op. cit., p. 171-179
passim.
57
LEVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de
Janeiro: 34, 1993.
58
SILVA, J. M. O Pensamento Contemporâneo Francês sobre a Comunicação, Op. cit., p. 180.
33
A teorização francesa sobre a comunicação, assim, reveste-se de um
conjunto extremamente diversificado, não acolhendo uma teorização uniforme ou
integrada. Essa diversidade, no entanto, por promover a possibilidade de se pensar
a comunicação de forma ampla, unindo o pensamento de outras correntes, como o
de Frankfurt, sem necessariamente se vincular a eles, e viabilizando a explicação de
diversos fenômenos comunicativos até então ignorados ou pouco pesquisados.
A evolução do pensamento sobre a comunicação encontra outro ponto alto na
pesquisa em comunicação na América Latina, onde identifica-se profundamente com
o contexto social e político em que era inserida a região. A inquietação acerca da
comunicação era provocada muito mais pelo cenário promovido pelas demandas
políticas do que propriamente por interesses acadêmicos
59
.
Os estudos sobre a comunicação fixados na América Latina tiveram início na
Venezuela e no Equador no Instituto Venezuelano de Investigaciones de Prensa da
Universidad Central e no Centro Internacional de Estúdios Superiores de Periodismo
para América Latina, respectivamente. Seguiu-se a criação do Centro de Estudos da
Realidade Nacional, vinculado à Universidade Católica do Chile. Posteriormente,
deu-se a criação do Instituto de Investigaciones de la Comunicación (ININCO), na
Venezuela, substituindo o Instituto Venezuelano de Investigaciones de Pensa e do
Instituto Latinoamericano de Estúdios Transnacionales, no México
60
.
No final da década de 1960 inaugurou-se uma nova forma de pensar a
comunicação, sendo proposta uma reflexão realmente latino-americana,
considerando o palco político da região no período e opondo-se à americanização
da cultura. Nesse período, é relevante destacar, conforme Berger, que
59
BERGER, Christa A Pesquisa em Comunicação na América Latina. In: HOHLFELDT; MARTINO;
FRANÇA (Org.). Teorias da Comunicação: Conceitos, escolas e tendências, p. 241.
60
Idem, ibidem, p. 244-246.
34
frente ao exército oficial se propunham milícias populares; frente à
igreja oficiai, a teologia da libertação; frente aos sindicatos pelegos,
organizações de base; frente aos meios de comunicação e à cultura
transnacional a denúncia e, ao mesmo tempo, a criação de formas
alternativas na comunicação popular
61
.
A pesquisa em comunicação realizada na América Latina foi fortemente
carregada de pressupostos ideológicos. Sua relevância, conforme se nota, é dada
precisamente pelo caráter de um estudo de oposição à invasão cultural e à opressão
política, consistindo num arcabouço teórico com profundas raízes nos
acontecimentos sociais da época. A comunicação, dessa maneira, engendra
múltiplas compreensões, podendo-se destacar igualmente a semiótica como outra
área de extrema relevância para a compreensão do fenômeno comunicativo.
A lingüística é a ciência da linguagem verbal, ao passo que a semiótica é a ciência
de toda e qualquer forma de linguagem, seja verbal, escrita, pictória, gestual, etc. A
orientação humana no mundo requer um intrincado sistema de comunicação,
delimitado por esquemas de sons, luzes, gestos, sinais, palavras. A semiótica
ocupa-se precisamente do estudo desses signos comunicativos
62
e do significado a
eles atribuído.
Os signos possuem intrínseca qualidade representativa, isto é, um signo
jamais será o objeto que ele representa; apenas será uma imagem, uma projeção
desse objeto; assim, ilustrativamente, o objeto livro difere do signo livro. O signo é
uma representação abstrata do real
63
:
A semiótica deve ser pensada como o estudo das possibilidades de atribuição
de sentido aos mais diversos fenômenos. O mundo apresenta-se repleto de objetos,
61
BERGER, A Pesquisa em Comunicação na América Latina, Op. cit., p. 248; Para maiores detalhes,
ver ENTEL, Alicia. Teorías de la Comunicación: cuadros de épocas y pasiones de sujetos. 2. ed.
Buenos Aires: Docencia, 1995.
62
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975.
63
NETTO, J. Teixeira Coelho. Semiótica, Informação e Comunicação. 6. ed. São Paulo: Perspectiva,
2006. p. 56.
35
manifestações, eventos, isto é, de informações. Todavia, a essas informações se
deve atribuir sentido, representações, pois somente assim é possível a construção
de significações. No caso de impossibilidade de atribuição de sentido, estar-se-á
diante de meros acontecimentos, cuja relevância reporta-se praticamente nula à
comunicação
64
. Para Warat, o signo
[...] pode ser estudado sob três pontos de vista, atendendo ao fato de
que pode ser considerado como elemento que mantém três tipos de
vinculações: com os outros signos; com os objetos que designa; com
os homens que o usam. A primeira vinculação é chamada sintaxe; a
segunda, semântica; a terceira, pragmática. Esses três níveis de
análise constituem as partes da semiótica, entendida como a teoria
geral de todos os signos e sistemas de comunicação
65
.
Logo, a sintaxe pode ser compreendida como a teoria na qual é alicerçada a
construção da linguagem; a semântica ocupa-se das relações dos signos com os
objetos aos quais se referem e, por fim, a pragmática trabalha com a relação entre
os signos e os usuários, isto é no resultado prático designativo do sentido de
determinada comunicação
66
.
No campo jurídico, a semiótica é identificada na obra de Warat, Para o qual o
discurso jurídico
67
é um elemento social, cujo isolamento e individualização não são
possíveis. Enquanto dado social, o direito requer uma atribuição de sentido e
determinação valorativa das significações
68
. Essa valoração do direito aliado ao
cotidiano social, no presente estudo, é viabilizada precisamente pela compreensão
da comunicação como a própria sociedade, adentrando-se, dessa maneira, na seara
dos sistemas autopoiéticos.
64
MACHADO, Irene. O Ponto de Vista Semiótico. In: HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA (Org.).
Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências, p. 285.
65
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2. ed. Porto Alegre: SAFE, 1995. p. 39.
66
Idem, ibidem, p. 40-48 passim.
67
Saliente-se, igualmente, as contribuições de Tércio Sampaio Ferraz Júnior no estudo da
comunicação e direito. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação:
subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
68
WARAT, O Direito e sua Linguagem, Op. cit., p. 101.
36
1.2. Comunicação sob o prisma sistêmico
A idéia de diferenciação vincula-se necessariamente à noção de sistema.
Um sistema pode ser definido como um conjunto harmônico e interdependente no
qual não é possível o isolamento ou a separação de qualquer de seus elementos,
sob pena de sua destruição, isto é, o sistema somente é passível de funcionamento
em seu conjunto unitário, em sua relação sistêmica auto-organizada
69
.
Um sistema consiste numa diferença entre dois lados, uma forma, consoante
a teorização de Spencer Brown
70
, na qual Luhmann alicerça parte de sua teoria
social sistêmica. Isto é, para a manutenção sistêmica é necessária a diferenciação
entre sistema e ambiente, sendo o sistema o lado interno da forma, e o ambiente, o
lado externo. Para Luhmann,
[...] a teoria dos sistemas não tinha conseguido formular com
suficiente radicalidade, a diferença entre sistema a ambiente.
Atualmente estão disponíveis para isso melhores possibilidades que
foram desenvolvidas, no entanto, fora da teoria dos sistemas. Isso
vale, sobretudo, para o cálculo das formas desenvolvido por George
Spencer Brown (1969). Brown começa com a constatação que algo
só pode ser designado quando pode ser diferenciado. ‘Draw a
distinction’ é, portanto, a primeira instrução de seu cálculo. O ato de
diferenciar leva à marcação de uma forma que, em conseqüência,
sempre tem dois lados: o designado e aquilo do qual é diferenciado.
Aplicando-se a teoria dos sistemas seria preciso dizer
respectivamente: o sistema e seu ambiente. A forma, de acordo com
isso, não é a figura bela (ou menos bela), ela é a diferença, é uma
forma com dois lados, é uma fronteira, cuja transposição custa
tempo
71
.
Para proceder à indicação de algo se deve, necessariamente, observar seu
pólo negativo. O processo de diferenciação é fundado sempre num paradoxo
69
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 4. ed. São
Paulo: Cultrix, 1999. p. 40.
70
BROWN, George Spencer. Laws of form. New York: Bantam Books, 1973.
71
LUHMANN, Niklas. Sobre os Fundamentos Teórico-Sistêmicos da Teoria da Sociedade In: NEVES;
SAMIOS (Org.). Niklas Luhmann: A Nova Teoria dos Sistemas, Op. cit., p. 60-61.
37
constitutivo no qual a negação daquilo que se busca indicar é, inafastavelmente,
parte do processo. Dessa maneira, a forma é precisamente a diferença sim/não que
constitui um sistema, ou, em outras palavras, a diferença sistema/ambiente.
A diferenciação sistema/entorno é de extrema importância para a
compreensão da formação de sistemas sociais, pois é precisamente por esta
bifurcação que é estabelecido o que pertence ao sistema e o que pertence ao
entorno. Assim, o sistema é constituído especificamente por comunicações, ao
passo que tudo aquilo que não é comunicação pertence ao entorno. Por isso,
[…] o ponto de partida de qualquer análise sistêmico-teórica tem que
ser a diferença entre sistema e entorno. Os sistemas não somente se
orientam ocasionalmente ou por adaptação desde seu entorno, mas
de maneira estrutural, e não poderiam existir sem o entorno. São
constituídos e mantém-se através da produção e manutenção de
uma diferença sobre o entorno, e utilizam seus limites para regular
esta diferença. [...] Neste sentido, a manutenção do limite (boundary
maintence) significa a manutenção do sistema.
72
Enquanto fator essencialmente social, a comunicação identifica-se com a
própria sociedade. Por meio do arcabouço teórico traçado por Luhmann, a
sociedade é compreendida como um tecido comunicativo global, rompendo-se,
assim, com a clássica noção de sociedades diferenciadas territorialmente e
compostas por seres humanos
73
.
A concepção dominante de sociedade como grupo de pessoas localizadas
em determinado espaço geográfico cede lugar à idéia de comunicação. Para
Luhmann a comunicação é gerada por comunicações em uma contínua cadeia
72
LUHMANN, Niklas. Sociedad y Sistema: la Ambición de la Teoría. Barcelona: Paidós Ibérica, 1990.
p. 50-51: “[…] el punto de partida de cualquier análisis sistémico-teórico tiene que ser la diferencia
entre sistema y entorno. Los sistemas no sólo se orientan ocasionalmente o por adaptación hacia su
entorno, sino de manera estructural, y no podrían existir sin el entorno. Se constituyen y se mantienen
a través de la producción y el mantenimiento de una diferencia respecto al entorno, y utilizan sus
límites para regular esta diferencia. […] En este sentido, el mantenimiento del límite (boundary
maintence) significa el mantenimiento del sistema.”
73
LUHMANN, Niklas. O conceito de sociedade In: NEVES; SAMIOS (Org.). Niklas Luhmann: A nova
teoria dos sistemas, p. 80.
38
recursiva, na qual o produto das diversas comunicações sociais será sempre novas
comunicações, rompendo-se, assim, com a idéia sistêmica inicial parsoniana de
sistemas de ação.
74
Nesse sentido, conforme Luhmann:
Minha sugestão é colocar como fundamento o conceito de
comunicação e, com isso, transpor a teoria sociológica do conceito
de ação para o conceito de sistema. Isso torna possível apresentar o
sistema social como um sistema de reprodução de comunicações a
partir de comunicações, constituído apenas de suas próprias
operações e operacionalmente fechado. Com o conceito de ação é
quase impossível evitar referências externas. Uma ação, na medida
em que precisa ser atribuída, exige fazer referências a coisas não
constituídas socialmente: a um sujeito, a um indivíduo, até mesmo,
para todas as finalidades práticas, a um corpo vivo, ou seja, a uma
posição no espaço. Somente com o auxílio do conceito de
comunicação pode-se pensar num sistema social como um sistema
autopoiético, constituído só por elementos, isto é, comunicações, que
ele próprio, através da rede de conexões desses mesmos elementos,
produz e reproduz via comunicações
75
.
Desde a superação do conceito de ação, a compreensão da sociedade
como um sistema comunicativo abre espaço à sua consideração como um sistema
autopoiético, isto é, um sistema produzido por seus próprios elementos, no qual o
resultado de suas operações reverte sempre na permanente construção sistêmica.
A noção de autopoiese foi dada pelos neurobiólogos chilenos Humberto
Maturana e Francisco Varela como meio de explicação do fenômeno constitutivo-
organizativo dos seres vivos, estabelecendo-se a autopoiese como o fenômeno
recursivo-circular de autoprodução de seus elementos constitutivos. Em outras
palavras, um sistema autopoiético é aquele cujos elementos constitutivos são
continuamente (auto)produzidos numa cadeia hermético-recursiva. Logo, a
comunicação é produzida numa cadeia de reprodução comunicativa cuja existência
é impossível fora de sua rede de interações
76
.
74
PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. São Paulo: Pioneira, 1974. p. 18.
75
LUHMANN, O Conceito de Sociedade, Op. cit., p. 80.
76
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da
compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. p. 52; LUHMANN, Niklas. O Enfoque
39
A produção comunicativa da sociedade, contudo, deve ser ordenada no
âmbito do sistema social. Logo, a comunicação produzida deve ser identificada
mediante critérios seletivos, de modo a ser possível sua bifurcação em
possibilidades positivas/negativas para o reconhecimento e operacionalização dos
mais diversos tipos comunicativos constitutivos da sociedade.
Em outras palavras, todas as comunicações deverão ser identificadas com
base num código específico, de modo que seja possível a realização de operações
exclusivas com base neste mesmo código. Assim, quando determinada
comunicação possuir o código binário direito/não direito, pertencerá ao sistema
jurídico; quando tratar da forma governo/oposição, ao sistema político; do belo/feio,
ao sistema artístico
77
, e assim por diante.
A esse desdobramento de funções comunicativas dá-se o nome de
“diferenciação funcional”. O processo de diferenciação tem lugar quando
determinada comunicação fecha-se recursivamente em si mesma, excepcionando
qualquer comunicação diversa de seu código constitutivo. Desse modo,
é decisivo que, em um certo momento, a recursividade da
reprodução autopoiética começa a compreender a si própria e
alcance um fechamento a partir do qual para a política somente
conta a política, para a arte somente a arte, para a educação,
somente a predisposição para a aprendizagem, para a economia
somente o capital ou a utilidade, enquanto que os correspondentes
entornos sociais internos [...] são percebidos somente como ruído
irritante ou como moléstias
78
.
Sociológico da Teoria e Prática do Direito. Seqüência, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, jun.
1994. p. 20.
77
LUHMANN, Niklas. A Obra de Arte e a Auto-reprodução da Arte. In: OLINTO, Heidrun Krieger.
Histórias de Literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996. p. 242.
78
LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaelle; Teoría de la Sociedad. Op. cit., p. 326: “Es decisivo el
que, en un cierto momento la recursividad de la reproducción autopoiética comienza a comprenderse
a si misma y alcance una cerradura a partir de la cual para la política sólo cuenta la política, para el
arte sólo el arte, para la educación, sólo la predisposición y la disponibilidad para el aprendizaje, para
la economía sólo el capital u la utilidad, mientras que los correspondientes entornos sociales internos
[…] se perciben sólo como ruido irritante o como molestias”
40
É precisamente isso que possibilita a formação de sistemas sociais. A
bifurcação comunicativa sim/não viabiliza o processamento exclusivo de
comunicações pelos sistemas parciais da sociedade. Nesse passo, o direito opera
mediante o código direito/não direito, o que será adiante aprofundado.
O direito à saúde, nesse mesmo sentido, reflete processamentos
comunicativos mediante a identificação do código jurídico (direito/não direito)
específico. Quanto maior a produção de comunicações, maiores as possibilidades
dos sistemas, por isso, a problemática do direito à saúde deve ser observada não
apenas pelo prisma de sua efetivação, mas igualmente, no sentido de produção de
renovadas e constantes comunicações.
Resta assente, pois, a importância da comunicação, eis que é identificada
como a própria sociedade, operando de forma binária (sim/não) e (re)produzindo
sistemicamente seus elementos (novas comunicações). Desse modo, o processo de
diferenciação da comunicação traduz a possibilidade de manutenção sistêmica por
meio da especificação funcional no âmbito do sistema social. De igual maneira, os
eventos comunicativos revestem-se de extrema relevância aos meios de massa,
cuja presença é permanente na sociedade contemporânea.
Para compreender a importância da comunicação para os meios de massa, é
importante ressaltar que a existência da comunicação é fundamental, ou melhor, é
uma condição de possibilidade para a existência dos meios de massa. Contudo,
deve-se orientar-se pelas circunstâncias para estabelecer a noção inicial sobre o
processo comunicativo. Para compreender sua conceituação “se recorre, para
explicá-la, à metáfora da ‘transmissão’. Diz-se que a comunicação transmite notícias
ou informação do emissor ao receptor”
79
. Portanto, para que ocorra a comunicação
têm-se um emissor e um receptor, com aquele transmitindo a informação a este.
Esta idéia
79
LUHMANN, Nilkas. Sistemas Sociales: lineamentos para una teoría general.
Barcelona/México/Santafé de Bogotá: Anthropos/Universidad Iberoamericana/CEJA. 1998. p. 141:
“[…] se recurre, para explicarla, a la metáfora de la <información>. Se dice que la comunicación
transmite noticias o información del emisor al receptor”.
41
sugere que o emissor transmite algo que é recebido pelo receptor.
Este não é o caso, simplesmente porque o emissor não dá nada, no
sentido que perca ele algo. A metafórica do possuir, ter, dar e
receber não serve para compreender a comunicação. A metáfora da
transmissão coloca o essencial da comunicação no ato da
comunicação. Dirige a atenção e os requerimentos de habilidade
para o emissor. O ato de comunicar, no entanto, não é mais que uma
proposta de seleção, uma sugestão. Só quando se retoma esta
sugestão, quando se processa o estímulo, se gera a comunicação.
80
Portanto, a comunicação ocorre em razão dos estímulos, surgindo do ato da
comunicação como processo que leva a informação do emissor
81
ao receptor, o qual
a aceita ou não.
Significa, pois, dizer que a analogia da informação possui um sentido
diferenciado do emissor para o receptor, sendo a comunicação uma via de duas
mãos, porque essa relação é dada pela transmissão de informações do emissor ao
receptor. É preciso observar a conceituação do sentido para entender que a
comunicação é um processo de opção. Para Luhmann,
O sentido não permite mais que a seleção. A comunicação tomada
algo do atual horizonte referencial constituído por ela mesma, e deixa
à parte o outro. A comunicação é o processamento da seleção. No
entanto, não seleciona como se tomada uma e outra coisa de um
depósito.[...]. A seleção atualizada na comunicação constitui seu
próprio horizonte, aquilo que seleciona já como seleção, isto é, como
informação. O que comunica não somente é selecionado, se não que
já é seleção e, por isso mesmo, é comunicado. Por isso, a
80
LUHMANN, Nilkas. Sistemas Sociales: lineamentos para una teoría general.
Barcelona/México/Santafé de Bogotá: Anthropos/Universidad Iberoamericana/CEJA. 1998. p. 141:
“Sugiere que el emisor transmite algo que es recibido por El receptor. Este no es el caso,
simplesmente porque el emisor no da nada, en el sentido de que pierda él algo. La metafórica del
psser, tener, dar y recibir no sirve para comprender la comunicación. La métafora de la transmisión
coloca lo esencial de la comunicación en el acto de la comunicación. Dirige la atención y los
requerimientos de habilidad hacia el emisor. El acto de comunicar, sin embargo, no es más que una
propuesta de selección, uns sugerencia. Sólo cuando se retoma esta sugerencia, cuando se processa
el estímulo, se genera la comunicación”.
81
LUHMANN, Niklas. La Realidad de los Medios de Masas. Barcelona/México: Antrhopos
Editorial/Universidad Iberoamericana, 2000. p. 3: “entre el emisor y el receptor no debe haber
interacción entre presentes. La interacción quedará excluida por el intercalamiento de la técnica y
esto acarrea consecuencias muy amplias para definir el concepto de medios de comunicación de
masas.”
42
comunicação não se deve entender como processo seletivo de dois,
mas de três seleções. Não só trata-se de emissão e recepção com
uma atenção seletiva em cada caso; a seletividade mesma da
informação é um momento do processo comunicacional, porque
unicamente em relação com ela ativar-se a atenção seletiva.
82
Por meio do sentido, não se pode entender a comunicação como um
processo de duas operações resultantes do emissor e receptor, pois ele ultrapassa
esse entendimento, sendo também vinculada à seletividade de escolha perante a
informação. Assim, o processo de seletividade da informação é uma etapa do
processo comunicacional. Com essa concepção é que Luhmann estabelece as
seleções da comunicação dizendo que
[...] a comunicação é uma síntese que resulta de três seleções:
informação, ato de comunicação, compreensão. Cada um destes
componentes é, em sim mesmo, um evento contingente. A
informação é uma diferença que transforma o estado de um sistema,
isto é, que produz uma diferença
83
.
Nesse sentido, a comunicação é “[...] como a visão humana, que pode ver
dois planos, mas tem como resultado final apenas um terceiro que funde os
anteriores
84
”. Cabe, agora, revisar a compreensão de Luhmann sobre comunicação,
82
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 141: “El sentido no permite más que la selección. La
comunicación toma algo del actual horizonte referencial constituido por ella misma, y deja aparte lo
otro. La comunicación es el procesamiento de la selección. Sin embargo, no selecciona cómo se toma
una y otra cosa de un depósito. […] La selección actualizada en la comunicación constituye su proprio
horizonte, aquello que selecciona ya como selección, es decir, como información. Lo que comunica
no soló es seleccionado, si no que ya es selección y, por eso mismo, es comunicado. Por ello, la
comunicación no se debe entender como proceso selectivo de dos, sino de tres selecciones. No sólo
se trata de emisión y recepción con una atención selectiva en cada caso; la selectividad misma de la
información es un momento del proceso comunicacional, porque únicamente en relación con ella
activarse la atención selectiva.”
83
LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoría de la Sociedad. México: Universidad de
Guadalajara/Univesidad Iberoamericana/ITESO, 1993. p. 81: ”[...] la comunicación es una síntesis que
resulta de tres selecciones: información, acto de comunicación, comprensión. Cada uno de estos
componentes es, en sí mismo, un evento contingente. La información es una diferencia que
transforma el estado de un sistema, es decir, que produce una diferencia.”
84
MARCONDES FILHO, Ciro. O Escavador de Silêncios: formas de construir e de desconstruir
sentidos na comunicação: nova teoria da comunicação II. São Paulo: Paulus, 2004. p.457.
43
observando os elementos citados no processo de seleção. Inicialmente, busca-se o
seu entendimento acerca de informação:
A informação é, portanto, um valor positivo, um valor de designação,
com o qual o sistema descreve as possibilidades de seu próprio
operar. Mas, para se ter a liberdade de poder ver algo como
informação ou não, é preciso também haver a possibilidade de se
tornar algo como não-informativo. Sem semelhante valor reflexivo, o
sistema estaria entregue a tudo o que aparece. E isso significa
também que ele não teria condições de distinguir entre si mesmo e o
ambiente, não poderia organizar sua própria redução de
complexidade, sua própria seleção. [...] mesmo a informação de que
algo não é nenhuma informação é também informativa
85
.
Assim, a informação torna-se um instrumento para que o próprio sistema
descreva as possibilidades na sua operação, distinguindo a informação da não-
informação. Segundo Luhmann, pode-se, ainda, compreendê-la com um olhar
centrado no meio ambiente:
A informação é, assim, uma qualidade do sistema-interno. Não há
transferência de informação do meio ambiente para o sistema. O
meio ambiente permanece o que é. Na melhor das hipóteses, ele
contém dados. Apenas os sistemas podem ver o meio ambiente
porque ele requer o olhar de outras possibilidades, a presença de um
modelo de diferença e situação de itens dentro desse modelo como
um ‘isso em daquilo’. No meio ambiente não há ‘em vez daquilo’,
nem ‘isso’ como uma seleção fora de outras possibilidades, i.e., nem
um modelo de diferença nem de informação. Para enfatizar isso mais
uma vez: o sistema de limites tem que ser delineado para que o
mundo possa ter a possibilidade de se ver. Do contrário, haveria pura
artificialidade
86
.
85
Luhmann dirá que o código das notícias e das reportagens em jornalismo será o código
informação/não-informação.[...] Assim, como para os jornalistas, professores e estudantes de
jornalismo, o código de fato deveria ser informativo/não-informativo. É por esse motivo que se
selecionam os fatos que deverão ser notícia na imprensa. LUHMANN, Niklas. A Realidade dos Meios
de Comunicação, Op. cit., p. 39.
86
LUHMANN, Niklas. Ecological Communication. Chicago: The University of Chicago Press, 1989. p.
30.
44
Seria a informação uma qualidade interna do sistema, sendo impossibilitada a
transferência de informações do meio ambiente para o sistema, pois só o sistema é
que pode ver o ambiente, do contrário ocorreria artificialidade. “A informação é o
valor de surpresa das notícias, dado um reduzido (ou ilimitado) número de outras
possibilidades”
87
. É por meio da informação que se encontram as possibilidades,
mesmo que reduzidas, de criar novas possibilidades. É a informação uma das
condições de possibilidade para que ocorra a comunicação no sistema. Porém,
devem-se observar outros elementos da comunicação, como o ato da comunicação.
Para Luhmann,
[...] o ato de comunicação tem como tarefa voltar a reunir sobre a
marcha o separado. Da mesma forma que na visão binocular, por
causa do dobramento, surge à possibilidade e inclusive o impulso de
levar em conta contextos heterogêneos, e o resultado é um plano
emergente da realidade que na visão binocular é a construção de
compreender o comportamento como um modo de comunicação
88
.
Portanto, o ato da comunicação tem um papel fundamental para a
comunicação, eis que faz parte da construção do seu entendimento, sendo visto
como ação que pode utilizar-se dela ao distinguir seu conteúdo para entrar em
contato com outras comunicações”
89
. Assim, “[...] o ato de comunicar, entendido
este como ato de comunicação da informação”
90
, estabelece que “[...] a informação
não representa um input, mas tão só a diferenciação de possibilidades de conexão”
91
. O ato da comunicação é, enfim, entendido como elo fundamental entre a
87
LUHMANN, Niklas. El Derecho de La Sociedad. México: Universidad Iberoamericana/Iteso, 2005. p.
416: ”La información es el valor de sorpresa de las noticias, dado un reducido (o ilimitado) número de
otras posibilidades.”
88
LUHMANN, Niklas. Límites de la Comunicación como Condición de Evolución. Revista de
Occidente, Madrid: Fundación Ortega Y Gasset, n. 118, 1991. p. 29: “[...] el ato de comunicación tiene
como tarea volver a reunir sobre la marcha lo separado. Al igual que en la visión binocular, debido al
doblamiento surge la posibilidad e incluso el impulso de tener en cuenta contextos heterogéneos, y el
resultado es un plano emergente de la realidad que en la visión binocular es la construcción de
comprender el comportamiento como un modo de comunicación.”
89
LUHMANN, La Ciencia de la Sociedad, México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 33: “[...] el
ato de comunicar como acción y que pueda utilizara aquélla al distinguir su contenido para entrar en
contacto con otras comunicaciones.”
90
Idem, ibidem, p. 436: “[...] el acto de comunicar, entendido éste como acto de comunicación de la
información.”
91
Idem, ibidem, p. 231: “[...] la información no representa un input, sino tan solo La diferenciación de
posibilidades de conexión.”
45
informação e a comunicação, demonstrando as diversas condições de possibilidade
que se fazem necessárias para a sua compreensão, as quais se devem observar
pela
[...] reunião de informação, ato de comunicar e expectativa de
sucesso em um ato de atenção pressupõe, codificação… O ato de
comunicar deve duplicar a informação, isto é, deve deixá-la fora, por
um lado, e, pelo outro, utilizá-la para a participação comunicativa e
dar-lhe para isso uma forma secundária, por exemplo, uma forma de
linguagem (talvez, de escritura, etecétera). Não analisaremos os
detalhes dos problemas técnicos de tal codificação. É importante,
desde o ponto de vista sociológico, sublinhar que também isto
provoca um processo de diferenciação dos processos comunicativos.
Os acontecimentos se diferenciam, agora, em codificados e não
codificados. Os acontecimentos codificados atuam no processo
comunicativo como informação; os não codificados, como interrupção
(ruído, noise)
92
.
Por meio da associação da informação, do ato de comunicar e da expectativa
de êxito é que ocorre a diferenciação na comunicação, pela codificação dos
acontecimentos, que podem ocorrer numa perspectiva de código ou não-código, ou
seja, o código trata da aceitação da informação e o não-código, do seu insucesso,
interrupção, isto é, de seu ruído. Portanto, compreende-se que esses elementos são
fundamentais para o entendimento ou não-entendimento da comunicação.
A comunicação é, pois, uma operação que por sua vez só é possível
com base em uma diferenciação muito específica, isto é, com base
na diferenciação entre informar, ato de comunicar e compreender.
Esta diferenciação é a condição operativa da realização da
92
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 141: “La reunión de información, acto de comunicar y
expectativa de éxito en un acto de atención presupone, codificación… El acto de comunicar debe
duplicar la información, es decir, debe dejarla afuera, por un lado, y, por el otro, utilizarla para la
participación comunicativa y darle para eso una forma secundaria, por ejemplo, una forma de
lenguaje (quizás, de escritura, etcétrera). No analizaremos los detalles de los problemas técnicos de
tal codificación. Es importante, desde el punto de vista sociológico, subrayar que también esto
provoca un proceso de diferenciación de los procesos comunicativos. Los acontecimientos se
diferencian, ahora, en codificados y no codificados. Los acontecimientos codificados actúan en el
proceso comunicativo como información; los no codificados, como interrupción (ruido, noise).”
46
comunicação, de uma realização que por sua vez só é possível no
contexto autopoiético da reprodução da comunicação mediante a
comunicação. Se não pela diferença desta maneira, não há
comunicação; simplesmente os presentes se percebem uns a outros.
A emergência da comunicação em situações nas quais os
participantes conscientes percebem, além disso, muitas outras
coisas delimitam um tipo altamente específico de operação contra os
demais, precisamente ao compreender-se como estão relacionadas
à informação e o fazer saber
93
.
A comunicação, por isso, se dá pela diferença entre informação, ato de
comunicar e compreensão. É muito difícil que a comunicação ascenda aos que
estão presentes, eis que são eles que conseguem envolver uns aos outros.
Portanto, busca-se comprovar se ocorreu a compreensão da comunicação
subseqüente.
Por mais surpreendente que seja a comunicação seguinte, sempre
se lhe utiliza para observar e demonstrar que se baseia na
comunicação seguinte, sempre se lhe utiliza para observar e
demonstrar que se baseia na compreensão da comunicação anterior.
A prova pode resultar negativa, e então, com freqüência, ocasionar
uma comunicação reflexiva aproxima da comunicação. Mas para
fazê-lo possível (e na maioria dos casos, para fazê-lo
desnecessário!) deve existir desviando uma parte da atenção para o
controle da compreensão
94
.
93
LUHMANN, La Ciencia de la Sociedad, Op. cit., p. 87: “La comunicación es, pues, una operación
que a su vez sólo es posible con base en una diferenciación muy específica, es decir, con base en la
diferenciación entre informar, acto de comunicar y comprender. Esta diferenciación es La condición
operativa de La realización de comunicación, de una realización que a su vez solo es posible en El
contexto autopoiético de La reproducción de La comunicación mediante La comunicación. Si no de
diferencia de esta manera, no hay comunicación; simplemente los presentes se perciben unos a
otros. La emergencia de la comunicación en situaciones en las que los participantes conscientes
perciben además muchas otras cosas, delimita un tipo altamente específico de operación contra lo
demás, precisamente al comprenderse cómo están relacionadas la información y el hacer saber.”
94
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 145: “Por más sorpresiva que sea la comunicación
siguiente, siempre se le utiliza para observar y demostrar que se basa en la comunicación siguiente,
siempre se le utiliza para observar y demostrar que se basa en la comprensión de la comunicación
anterior. La prueba puede resultar negativa, y entonces, con frecuencia, ocasionar una comunicación
reflexiva acerca de la comunicación. Pero para hacerlo posible (¡en la mayoría de los casos, para
hacerlo innecesario!) debe existir desvíe una parte de la atención hacia el control de la comprensión.“
47
Entretanto, a comunicação fica sempre relacionada à anterior e à seguinte;
por isso, só obtém êxito quando ocorre a compreensão, valendo-se das operações
para conduzir ao processo comunicativo com vistas a auto-observação.
Isto pode ser o caso quando aparecem problemas subseqüentes que
conduzem o processo comunicativo à auto-observação. Mas para
isto se necessita outra comunicação, uma pergunta por exemplo.
Primeiro, o fazer saber das informações só ocorre como tal e serve
para diferenciar e designar aquilo sobre o que se informa (e isto bem
pode ser a situação do próprio notificador). Só como operação (mas
precisamente não como auto-observação), a comunicação é uma
observação; porque só assim pode designar algo a diferença de
outra coisa
95
.
.
Assim, a comunicação é uma observação porque busca a diferença, sendo
um fenômeno fundamental na sociedade, eis que se está diante de um processo
evolutivo fantástico. Em épocas remotas, o homem tentava se comunicar por meio
de gestos, ruídos, desenhos, etc., mas foi pela fala que a comunicação ganhou
grande expressão, e não parou por aí. O homem, usando sua inteligência, criou
formas e técnicas para facilitar esse processo de comunicação, dentre as quais se
podem citar: a linguagem, a escrita, a mensagem, o telégrafo, o jornal, o rádio, a
televisão, a internet, como fórmulas revolucionárias de comunicação social.
Reafirmando o entendimento de Luhmann, Marcondes Filho expressa que a:
comunicação é um resultado de três seleções: um agente sinaliza
alguma coisa, eu percebo nisso uma intenção de comunicar e, por fim,
eu entendo que esse agente está se comunicando comigo. Ou então,
a síntese entre um sinalizar, um informar e um entender a diferença
entre o sinalizar e o informar. É como a visão humana, que pode ver
dois planos, mas tem como resultado final apenas um terceiro, que
funde os anteriores
96
.
95
LUHMANN, La Ciencia de la Sociedad, Op. cit., p. 87: ”Esto puede ser el caso cuando aparecen
problemas subsecuentes que conducen el proceso comunicativo a la autoobservación. Pero para esto
se necesita otra comunicación, una pregunta por ejemplo. Primero, el hacer saber de las
informaciones sólo ocurre como tal y sirve para diferenciar y designar aquello sobre lo que se informa
(y esto bien pude ser la situación del propio notificador). Sólo como operación (pero precisamente no
como autoobservación), la comunicación es una observación; porque sólo así puede designar algo a
diferencia de otra cosa.”
48
Para haver a comunicação, será necessário que haja um agente que utiliza a
informação como intenção de comunicação e um receptor que a receba ou não, mas
deve ocorrer a intenção de comunicar, fundindo-se essas informações em uma
terceira.
Ao se entender a comunicação como sínteses de três seleções,
como unidade de informação, ato de comunicar e ato de entender,
então a comunicação se realiza quando e até onde se gera a
compreensão. Tudo o que a sucede <fora> da unidade de uma
comunicação fundamental que a pressupõe. Isto é válido, sobretudo,
para o caso de um quarto tipo de seleção: a aceitação ou a rejeição
da seleção notificada de sentido. No receptor da comunicação é
preciso distinguir a compreensão de seu sentido da aceitação ou a
rejeição da seleção como premissa da própria conduta. Esta
diferenciação reveste uma importância considerável [...] lhe
dedicando um afastamento
97
.
A comunicação que é transmitida do emissor ao receptor ocorre em um
processo no qual a informação é levada, pelo ato da comunicação, ao receptor, que
poderá aceitá-la ou refutá-la. Desse modo, poderá ser modificado seu sentido para a
compreensão. Isso traz como conseqüência a ocorrência de um embate, do desafio
ou co-desafio das possibilidades de rejeição da comunicação, levando-se em conta
o caráter decisório de optar pela comunicação ou não. Assim, remete-se novamente
a Luhmann para observar o processo de auto-referências, que sucede ao processo
dos elementos da comunicação:
[...] três seleções diferentes, se infere no respeito da teoria de
sistemas que não pode existir nenhuma correlação correspondente
entre o ambiente e a comunicação. À unidade da comunicação não
96
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 457.
97
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 148: “Si se entiende la comunicación como síntesis de
tres selecciones, como unidad de información, acto de comunicar y acto de entender, entonces la
comunicación se realiza cuando y hasta donde se genera la comprensión. Todo lo demás sucede
<<fuera>> de la unidad de una comunicación elemental y la presupone. Esto es válido, sobre todo,
para el caso de un cuarto tipo de selección: la aceptación o el rechazo de la selección notificada de
sentido. En el receptor de la comunicación hay que distinguir la comprensión de su sentido de la
aceptación o el rechazo de la selección como premisa de la propia conducta. Esta diferenciación
reviste una importancia considerable […] le dedicamos un apartado.“
49
lhe corresponde nada a um ambiente. A comunicação aparece,
portanto, necessariamente como processo de diferenciação, e a
simples compreensão da complexidade do entorno não se
transforma em um problema de comunicação que ocupa muito
tempo. Certamente, toda comunicação que necessita energia e
informação permanece dependente do ambiente, e também não se
pode negar que cada comunicação remete, através das relações de
sentido, direta ou indiretamente ao ambiente do sistema. O processo
de diferenciação se refere estritamente à homogeneidade e com isso
ao caráter fechado da ralação entre seleções, à seleção das
seleções nela contida, à redução de complexidade provocada por
isso
98
.
Portanto, pode-se entender que os sistemas de comunicação jamais
possuem um caráter autárquico, ainda que pretendam ter liberdade dentro do
processo comunicativo. Desse modo, observa-se a compreensão de Puig acerca da
comunicação estruturada em sistemas por meio dos procedimentos adequados na
relação ocorrida entre os sistemas:
Os processos próprios da adaptação de um sistema a seu meio, ou
do acoplamento entre dois sistemas enquanto que adaptação mútua,
podem ser entendidas, em seu conjunto, como processos de
comunicação: intercâmbios de condutas ou mensagens entre
sistemas, que possibilitam o estabelecimento, manutenção, ruptura
ou mudança das relações entre eles
99
.
98
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 164-165: “[…] tres selecciones diferentes, se infiere
respecto de la teoría de sistemas que no puede existir ninguna correlación correspondiente entre el
entorno y la comunicación. A la unidad de la comunicación no le corresponde nada un el entorno. La
comunicación aparece, por lo tanto, necesariamente como proceso de diferenciación, y la simple
comprensión de la complejidad del entorno no se convierte en un problema de comunicación que
ocupa mucho tiempo. Por supuesto, toda comunicación que necesita energía e información
permanece dependiente del entorno, y tampoco se puede negar que cada comunicación remite, a
través de las relaciones de sentido, directa o indirectamente al entorno del sistema. El proceso de
diferenciación se refiere estrictamente a la homogeneidad y con ello al carácter cerrado de la ralación
entre selecciones, a la selección de las selecciones en ella contenida, a la reducción de complejidad
provocada por ello.”
99
MARCÉ PUIG, Francesc. Conducta y Comunicación: una perspectiva sistémica. Barcelona: PPU,
1990, p. 169: “Los procesos propios de la adaptación de un sistema a su medio, o del acoplamiento
entre dos sistemas en tanto que adaptación mutua, pueden ser entendidos, en su conjunto, como
procesos de comunicación: intercambios de conductas o mensajes entre sistemas, que posibilitan el
establecimiento, mantenimiento, ruptura o cambio de las relaciones entre ellos.”
50
Evidencia-se, então, uma nova proposição sobre comunicação, centrada na
matriz sistêmica e relacionada ao processo de acoplamento do sistema e de seus
subsistemas, sendo a comunicação a condutora de mensagens entre eles,
possibilitando a troca de informações. Com base nessa idéia, cabe agora observar o
entendimento de Luhmann acerca de sistema, subsistema e acoplamento:
[...] um sistema é a forma de uma diferenciação, possuindo, pois,
dois lados: o sistema (como o lado interno da forma) e o ambiente
(como o lado externo da forma). Somente ambos os lados
constituem a diferenciação, a forma, o conceito. O ambiente, pois, é
tão importante para esta forma, tão indispensável, quanto o próprio
sistema. Como diferenciação a forma é fechada. [...] tudo o que se
pode observar e descrever com esta diferenciação pertence ou ao
sistema ou ao ambiente
100
.
Pode-se entender o sistema como uma parte única de um todo, entretanto, o
sistema é atravessado por uma diferença constitutiva: apenas é possível a
constituição sistêmica em contraponto ao seu ambiente. Os sistemas, por isso,
apresentam-se como uma diferença entre dois lados, qual seja, sistema/ambiente.
Um sistema isolado não existe, a distinção sistema/ambiente é a base constitutiva
de qualquer compreensão sistêmica. Assim,
[...] o ponto de partida de qualquer análise sistêmico-teórico tem que
ser a diferença entre sistema e ambiente. Os sistemas não só se
orientam ocasionalmente ou por adaptação para seu ambiente, mas
de maneira estrutural, e não poderiam existir sem o ambiente.
Constituem-se e se mantêm através da produção e a manutenção de
uma diferença respeito ao ambiente, e utilizam seus limites para
regular esta diferença. […] Neste sentido, a manutenção do limite
(boundary maintence) significa a manutenção do sistema
101
.
100
LUHMANN, O Conceito de Sociedade, Op. cit., p. 78.
101
LUHMANN, Sociedad y Sistema, Op. cit., p. 50-51: “el punto de partida de cualquier análisis
sistémico-teórico tiene que ser la diferencia entre sistema y entorno. Los sistemas no sólo se orientan
ocasionalmente o por adaptación hacia su entorno, sino de manera estructural, y no podrían existir sin
el entorno. Se constituyen y se mantienen a través de la producción y el mantenimiento de una
51
Pode-se, pois, identificar a relação existente entre sistema e ambiente: os
sistemas orientarão o ambiente, eis que não podem viver sem seu entorno,
possibilitando, assim, a própria manutenção sistêmica. Desse modo, observa-se
dentro do sistema seu meio interno:
O sistema no seu conjunto ganha assim a função de <meio interno>
para os subsistemas, ou seja, que para cada subsistema se dá de
um modo específico. Desta maneira, a diferença sistema/ambiente
se reduplica, e o sistema no seu conjunto se automultiplica como
uma multiplicidade de diferenças internas sistema/ambiente. Cada
diferença entre subsistemas e ambiente interno reconstitui o sistema
no seu conjunto, mas sempre desde uma perspectiva diferente
102
.
Com base na idéia da diferença
103
sistema/ambiente é que se pode
identificar a relação dos subsistemas
104
e o ambiente interno: o interior sistêmico é
permanentemente reconstituído com a aparência do sistema.
O sistema pode alcançar sua unidade como primazia de uma
determinada forma de diferenciação, por exemplo, como igualdade
de seus subsistemas, como uma simples série, como uma hierarquia,
como uma diferença entre centro e periferia, como diferenciação
sistêmica representam ao mesmo tempo aquisições evolutivas
centrais que, tem sucesso, estabilizam os sistemas em mais um nível
de alta complexidade. […] Neste contexto, hierarquia significa mais
bem que os subsistemas podem chegar a diferenciar outros
subsistemas e que, desta maneira, aparece uma relação transitiva do
ser contido no ser contido. As vantagens de racionalidade da
diferencia respecto al entorno, y utilizan sus límites para regular esta diferencia. […] En este sentido,
el mantenimiento del límite (boundary maintence) significa el mantenimiento del sistema.”
102
LUHMANN, Sociedad y Sistema, Op. cit., p. 54: “El sistema en su conjunto gana así la función de
<<medio interno>> para los subsistemas, o sea que para cada subsistema se da de un modo
específico. De esta manera, la diferencia sistema/entorno se reduplica, y el sistema en su conjunto se
automultiplica como una multiplicidad de diferencias internas sistema/entorno. Cada diferencia entre
subsistemas y entorno interno reconstituye el sistema en su conjunto, pero siempre desde una
perspectiva diferente.”
103
LUHMANN, Niklas. Conhecimento como Construção In: NEVES,; SAMIOS (Org.). Niklas
Luhmann: a nova teoria dos sistemas, Op. cit., p. 103: “[...] A diferença serva como condição de
possibilidade de percepção sob a condição de que, por sua vez, não seja perceptível. Ela é a
estrutura latente necessária da percepção e somente uma teoria da percepção pode, ao nível da
cibernética de segunda ordem, ou seja, na observação do observador que percebe, reconhecer que
isto é assim.”
104
Os subsistemas são ambientes mútuos. Eles podem produzir um processo de perturbação
ressonante quando um subsistema reage a mudanças ambientais e altera o ambiente social de outro
subsistema. LUHMANN, Niklas. Ecological Communication. Op. cit., p. 60.
52
hierarquização são óbvias. Dependem, no entanto, que outros
subsistemas só se podem formar em seu interior dos subsistemas
105
.
É por meio da igualdade estabelecida entre subsistemas que se constitui
uma forma hierarquizada para os sistemas, estabelecendo, assim, a diferenciação
entre o centro e a periferia; porém, os subsistemas só podem se formar no interior
do sistema. “Os subsistemas são mútuos. Eles podem produzir um processo de
perturbações (irritações) ressonantes quando um subsistema reage a mudanças
ambientais e altera o ambiente social de outro subsistema”
106
. Assim, evidenciam-se
as irritações que o sistema sofre no processo de diferenciação, tendo como
conseqüência a transformação ocorrida dentro do próprio sistema. Por conseguinte,
cabe verificar como ocorre o acoplamento estrutural para que essas operações
venham a se estabelecer.
O conceito de acoplamento estrutural designa uma forma para
interdependências regulares entre sistemas e relações ambientais,
que não estão disponíveis operacionalmente, mas que precisam ser
pressupostas. Importante é a alta seletividade dessas formas. Elas
não abrangem de uma vez por todas o ambiente total do sistema.
Assim, todos os sistemas de comunicação estão obviamente
acoplados a processos de consciência. Sem consciência não há
comunicação. Mas isto não significa que eventos de consciência
(percepções, pensamentos) como tal já possam ser elementos de um
processo de comunicação. O sistema de comunicação permanece,
em outras palavras, um sistema auto-referencial operacionalmente
fechado
107
.
105
LUHMANN, Sociedad y Sistema, Op. cit., p. 55-56: “El sistema puede alcanzar su unidad como
primacía de una determinada forma de diferenciación, por ejemplo, como igualdad de sus
subsistemas, como simple serie, como jerarquía, como diferencia entre centro y periferia, como
diferenciación sistémica representan al mismo tiempo unas adquisiciones evolutivas centrales que, de
tener éxito, estabilizan los sistemas en un nivel más alto de complejidad. […] En este contexto,
jerarquía significa más bien que los subsistemas pueden llegar a diferenciar otros subsistemas y que,
de esta manera, aparece una relación transitiva del ser contenido en el ser contenido. Las ventajas de
racionalidad de la jerarquización son obvias. Dependen, sin embargo, de que otros subsistemas se
pueden formar sólo en interior de subsistemas.”
106
LUHMANN, Ecological Communication, Op. cit., p. 60.
107
LUHMANN, Novos Desenvolvimentos na Teoria dos Sistemas. In: NEVES; SAMIOS (Org.). Niklas
Luhmann: a nova teoria dos sistemas, p. 67.
53
Desse modo, o processo de acoplamento estrutural do sistema não atinge a
plenitude do sistema, permanecendo funcionalmente hermético e apresentando-se
de forma que o próprio sistema opera suas operações. Ainda dentro desse processo,
sem a consciência não ocorrerá a comunicação. No sentido da conceituação do
sistema autopoiético, deve-se, primeiramente, observar que sistema é “qualquer
conjunto que possa ser assinalado de componentes que se especificam como
constituindo uma unidade”
108
. Assim, observa-se que o sistema estabelece a
interação dos indivíduos na sociedade. Para Luhmann e De Giorgi,
[...] todo sistema autopoiético opera como sistema determinado pela
estrutura, isto é, como um sistema que pode determinar as próprias
operações. O acoplamento estrutural, então, exclui que dados
existentes no ambiente possam especificar, conforme as próprias
estruturas, o que sucede no sistema. [...] Não determina o que
sucede no sistema, mas deve estar pressuposto, já que de outra
maneira a autopoiesis se deteria e o sistema deixaria de existir
109
.
Dessa forma, verifica-se que o sistema pode adaptar-se ao ambiente; caso
isso não fosse possível, o sistema inexistiria. Contudo, essa possibilidade de
transposição ocorre somente dentro do raio de ação do sistema. Por outro lado,
pode-se observar essa possibilidade de acordo com o entendimento de Maturana e
Varela, que se baseiam no processo celular:
É evidente que essa situação será simétrica, se a olharmos do ponto
de vista de qualquer das duas unidades. Isto é: para a célula da
esquerda, a da direita é apenas mais uma fonte de interações, e
como tal indistinguíveis daquelas que nós, como observadores,
classificamos como provenientes do meio “inerte”. De modo inverso,
para cada célula da direita a outra é uma fonte a mais interações,
que perceberá segundo sua própria estrutura. Isso significa que duas
(ou mais) unidade autopoiéticas podem estar acopladas em sua
108
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco J. De Máquinas e Seres Vivos: Autopoiese a
organização do vivo. São Paulo: Palas Athena, 1997. p. 19.
109
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 51-52: “[…] todo sistema autopoiético
opere como sistema determinado por la estructura, es decir, como un sistema que puede determinar
las propias operaciones. El acoplamiento estructural, entonces, excluye que datos existentes en el
entorno puedan especificar, conforme a las propias estructuras, lo que sucede en el sistema. No
determina lo que sucede en el sistema, pero debe estar presupuesto, ya que de otra manera la
autopoiesis se detendría y el sistema dejaría de existir.”
54
ontogenia, quando suas interações adquirem um caráter recorrente
ou muito estável.[...] Dado que também descrevemos a unidade
autopoiética como tendo uma estrutura particular, ficará claro que as
interações se forem recorrentes entre unidade e meio constituirão
perturbações recíprocas. Nessas interações, a estrutura do meio
apenas desencadeia as modificações estruturais das unidades
autopoiéticas. [...] haverá acoplamento estrutural.
110
Assim, fica claro que o procedimento do acoplamento estrutural ocorre por
meio de processos interativos, sendo que as modificações estruturais sistêmicas são
desencadeadas por relações. Essa conceituação dos elementos do sistema fez-se
necessária para entender sua distinção, sendo, desse modo, indispensável para o
sistema comunicativo por se observar a partir de si mesmo. Observa-se o
entendimento da comunicação e sua relação com os sistemas pelo olhar de
Marcondes Filho:
As comunicações são produzidas nessa rede recursiva de
comunicações que constitui a unidade do sistema. [...] a comunicação
é a operação que caracteriza os sistemas sociais, a de separar o que
é sistema do que não é: continuar a comunicação é dar manutenção à
autopoiese destes mesmos sistemas. Os sistemas sociais não fazem
outra coisa a não ser comunicações, e fora dos sistemas não há
comunicação. Ela é uma operação interna de cada sistema social, não
havendo comunicação entre eles e o ambiente externo
111
.
Pelo processo de produção de comunicação do sistema social, pode-se
compreender que a circulação da comunicação entre os sistemas só é possível
dentro do próprio sistema, estando, assim, fechado ao ambiente externo. A própria
evolução social implica uma adequação do sistema em que se vive, pois, com a
evolução em todas as áreas da sociedade, tem-se uma sociedade de transformação
e de ajustes. Nesse caminho, Luhmann define:
110
MATURANA; VARELA, De Máquinas e Seres Vivos, Op. cit., p. 87.
111
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 458-459.
55
[...] o sistema que, em um ambiente altamente complexo e
contingente, é capaz de manter relações constantes entre as ações.
Para tanto o sistema tem que produzir e organizar uma seletividade de
tal forma que ele capte a alta complexidade e seja capaz de reduzi-la
as bases da ação, passível de decisões
112
.
Em conformidade, Luhmann afirma que os sistemas sociais utilizam “[...] uma
comunicação como sua modalidade particular da reprodução autopoiética. Seus
elementos são as comunicações que são produzidas recursivamente e reproduzem
por uma rede das comunicações e que não podem existir fora de tal rede”
113
. Em
outras palavras, a sociedade é um sistema social extenso, no qual é possível a
reprodução de comunicações sempre renovadas por outras comunicações. A
autopoiese, então, deve ser compreendida como a recursividade na qual se
revestem as operações comunicativas da sociedade; comunicações sempre farão
referência a outras comunicações, e assim por diante. A sociedade, por isso, é o
sistema global constituído comunicacionalmente, gerando e sendo gerado
continuamente por comunicações. Por isso, a sociedade
É um sistema autopoiético. Ela é um sistema fechado, auto-
referencial, já que não existe nenhuma comunicação entre a
sociedade e seu ambiente, por exemplo, entre a sociedade e
pessoas que vivem individualmente. Toda comunicação é uma
operação interna à sociedade, é produção de sociedade e se expõe
como acontecimento empírico, não somente à continuação, mas
também à observação através de outras comunicações. Neste
sentido, a sociedade moderna alcança uma complexidade que lhe
permite reproduzir múltiplas autodescrições, não passíveis de serem
integradas, e, simultaneamente, observar através de descrições de
descrições que isto acontece. Isso significa, ao mesmo tempo, que é
preciso renunciar a uma única correta representação do sistema, no
sistema da sociedade na sociedade
114
.
112
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. 168.
113
LUHMANN, Niklas. The autopoiesis of social systems. In: GEYER, Felix.; ZOUWEN, Johannes van
der (Ed.). Sociocybernetic paradoxes: observation, control and evolution of self-steering systems.
London: Sage, 1986: “[…] use communication as their particular mode of autopoietic reproduction.
Their elements are communications which are recursively produced and reproduces by a network of
communications and which cannot exist outside of such a network.”
114
LUHMANN, Novos Desenvolvimentos na Teoria dos Sistemas. Op. cit., p. 58.
56
Portanto, a comunicação só é possível internamente à sociedade, ou seja,
dentro do sistema social, visto que no ambiente da exibição inexistem
comunicações, mas apenas complexidade. Destarte, Luhmann traduz a necessidade
de,
[...] com isso, transpor a teoria sociológica do conceito de ação para
o conceito de sistema. Isso torna possível apresentar o sistema
social como um sistema de reprodução de comunicações a partir de
comunicações, constituído apenas de suas próprias operações e
operacionalmente fechado. Com o conceito de ação é quase
impossível evitar referências externas. Uma ação, na medida em que
precisa ser atribuída, exige fazer referências a coisas não
constituídas socialmente: a um sujeito, a um indivíduo, até mesmo,
para todas as finalidades práticas, a um corpo vivo, ou seja, a uma
posição no espaço. Somente com o auxílio do conceito de
comunicação pode-se pensar num sistema social como um sistema
autopoiético, constituído só por elementos, isto é, comunicações, que
ele próprio, através da rede de conexões desses mesmos elementos,
produz e reproduz via comunicações
115
.
Ao valor da comunicação evidente nos sistemas sociais pode-se acrescentar
a noção de uma inter-relação do sistema social como sistema autopoiético, visto que
o sistema é produzido e reproduzido pela comunicação. Assim, chega-se a uma
cominação dos sistemas no mundo. Em conformidade, Rocha assevera que “a
sociedade como sistema social é possível graças à comunicação. Por sua vez, a
comunicação depende da linguagem, das funções, da diferenciação e das
estruturas”
116
. Torna-se, pois, crível o processo evolutivo da sociedade.
Portanto, a comunicação é um dos instrumentos mais antigos da
humanidade. É por meio dela que o homem consegue se expressar desde os
tempos das cavernas, quando a comunicação se dava por meio de gestos, sons,
ruídos. Surgiram, após, o desenho, a escrita, as sílabas, as palavras, o papiro, o
papel, a tipografia, o correio, o jornal, a eletricidade, o telefone, o rádio, a televisão, o
satélite e a internet. O processo evolutivo da comunicação tem avançado com o
passar dos tempos em razão do desenvolvimento tecnológico, que possibilita tal
115
LUHMANN, Novos Desenvolvimentos na Teoria dos Sistemas. Op. cit., p. 80.
57
avanço e teve como um marco fundamental a descoberta do papel. A partir daí
houve o surgimento da
[...] tipografia, sendo sua invenção atribuída a Gutenberg, com 200
exemplares da primeira Bíblia impressa, em aproximadamente 1456.
[...] Em seguida vem o correio, o jornal, a eletricidade, que mudará os
aspectos da comunicação, já não mais escrita. Surge o telégrafo [...] A
invenção do telefone foi atribuída a Alexander Graham Bell [...] Depois
temos a fantástica radiodifusão, a televisão, o satélite e a Internet
117
.
A comunicação passa por um processo de transformação como a própria
evolução da sociedade; com o passar dos tempos, tornou-se possível o
desenvolvimento de outros meios de comunicação, culminando no fato de que “[...] a
sociedade diz Luhmann não se compõe de pessoas, mas de comunicações
entre pessoas
118
. Assim, a idéia de que a comunicação se dá dentro do universo
social, e não individualizado, e somente por meio desta é possível desenvolver a
sociedade.
A comunicação dentro do sistema social funciona como causa e efeito de
sua auto-reprodução; logo, só é possível estabelecer a comunicação por meio dela
própria. Nesse sentido, o processo de auto-reprodução comunicacional está
relacionado com seu próprio sistema, visto que “o ambiente é que possibilita tudo
isto e nos permite compreender muitas coisas. [...] não pode explicar-nos como é
possível aceder à autopoiesis da comunicação, à clausura operacional dos sistemas
de comunicação”
119
. Assim, o entorno é colocado como condição de possibilidade
de abrir links para permitir que a comunicação se acople e saia de sua clausura
operacional. Para haver a comunicação, será necessário que haja um agente que
116
ROCHA, Leonel Severo. Três Matrizes da Teoria Jurídica. In: ______. Epistemologia Jurídica e
Democracia. 2.ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 104.
117
HANSEN, Como Entender a Saúde na Comunicação? Op. cit., p. 10.
118
GARCIA AMADO, Juan Antonio. La Filosofia del Derecho de Habermas y Luhmann. Bogotá: Ed.
Universidad Externado de Colombia, 1997. p. 113: “La sociedad dice Luhmann- no se compone de
personas, sino de comunicaciones entre personas.”
119
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 83: “El entorno que posibilita todo esto
nos permite comprender muchas cosas. [...] no puede explicarnos cómo es posible acceder a la
autopoiesis de la comunicación, a la clausura operacional de los sistemas de comunicación.”
58
utiliza a informação como intenção de comunicação e um receptor que a recebe ou
não.
Evidencia-se, portanto, uma nova proposição sobre comunicação, centrada
na matriz sistêmica e relacionada ao processo de acoplamento do sistema e de seus
subsistemas, sendo a condutora de mensagens entre eles e possibilitando a troca
de informações entre si. Sua relação com “um meio que está constituído por
elementos acoplados em um modo amplo: uma forma, ao invés, põe em conexão
aos mesmos elementos em um acoplamento amplo
120
. Portanto, a relação
estabelecida no sistema se dá, igualmente, no ambiente por meio de conexões que
operam o acoplamento no sistema de comunicação. Na percepção de Luhmann:
Os sistemas de comunicação se constituem a si mesmos mediante
uma distinção entre meio e forma. Quando falamos de “meios de
comunicação” entendemos sempre o uso operativo da diferença
entre substrato medial e a forma. A comunicação é possível só […]
como processo desta diferença. A distinção entre substrato medial e
forma descompõe o problema geral da complexidade estruturada
mediante a ulterior distinção entre elementos acoplados de modo
estrito e entre elementos acoplados de modo amplo
121
.
Ademais, pode-se dizer que “[…] não entendemos como forma o signo de
uma distinção. E, portanto, a distinção entre meio e forma é uma forma”.
122
Portanto,
meio é forma “[…] com dois lados, no qual um deles (no lado da forma) se contém a
si mesma. A distinção meio/forma está construída paradoxalmente ao prever sua re-
entrada em si mesma, ao fazer-se presente de novo em um de seus lados [...]”
123
,
120
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 86: “Un medio está constituido por
elementos acoplados en un modo amplio: una forma, al contrario, pone en conexión a los mismos
elementos en un acoplamiento amplio.”
121
Idem, ibidem, p. 84-85 “Los sistemas de comunicación se constituyen a sí mismos mediante una
distinción entre medio y forma. Cuando hablamos de “medios de comunicación” entendemos siempre
el uso operativo de la diferencia entre sustrato medial y la forma. La comunicación es posible sólo […]
como procesualización de esta diferencia. La distinción entre sustrato medial y forma descompone el
problema general de la complejidad estructurada mediante la ulterior distinción entre elementos
acoplados de modo estricto y entre elementos acoplados de modo amplio.“
122
Idem, ibidem, p. 86: “[…] no entendemos con forma el signo de una distinción. Y por lo tanto, la
distinción entre medio y forma es una forma.
123
LUHMANN, Niklas. El Arte de la Sociedad. México: Herder, 2005. p. 175: “forma con dos lados, en
el que uno de ellos (en el lado de la forma) se contiene a sí misma. La distinción medio/forma está
59
estabelecendo, assim, por um processo de entrada/saída. Cabe, agora, verificar
como ocorrem as comunicações na compreensão de Marcondes Filho:
As comunicações são produzidas nessa rede recursiva de
comunicações que constitui a unidade do sistema. [...] a comunicação
é a operação que caracteriza os sistemas sociais, a de separar o que
é sistema do que não é: continuar a comunicação é dar manutenção à
autopoiese destes mesmos sistemas. Os sistemas sociais não fazem
outra coisa a não ser comunicações, e fora dos sistemas não há
comunicação. Ela é uma operação interna de cada sistema social, não
havendo comunicação entre eles e o ambiente externo
124
.
Pelo processo de produção de comunicação no sistema social, pode-se
compreender que a circulação da comunicação entre os sistemas só é possível
dentro do próprio sistema, estando, assim, fechado ao ambiente externo. A própria
evolução social implica uma adequação do sistema, pois, com a evolução em todas
as áreas da sociedade, tem-se uma sociedade de mudança e de adequação. Desse
modo, pode-se verificar a importância que a comunicação possui para os meios de
massa, ou seja, só é possível viabilizar os meios de comunicação porque ocorre a
comunicação como condição de possibilidade para a existência dos meios de
comunicação. Para Luhmann,
com base na linguagem se desenvolveram os meios de
comunicação, isto é, escrita, impressão e telecomunicações. Estes
meios de baseiam em uma decomposição, em uma recombinação
incongruente de unidades lingüísticas que não podem dissolver-se
mais. Assim se alcança uma expansão imensa da amplitude do
processo comunicacional que re-atua, por sua vez, sobre o que se
comprova como conteúdo da comunicação. Os meios de
comunicação selecionam mediante sua própria técnica, acham suas
próprias possibilidades de conservação, comparação e
melhoramento, as quais, não obstante, só podem ser utilizadas com
base em estandardizações. Em comparação com a tradição oral,
submissa à interação e à memória, os meios de comunicação se
expandem e ao mesmo tempo se limitam, e assim a comunicação
serve como base para as comunicações seguintes.
125
construida paradójicamente al prever su re-entrada en sí misma, al hacerse presente de huevo en
uno de sus lados.”
124
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 458-459.
125
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 158-159: “Con base en el lenguaje se han podido
desarrollar los medios de comunicación, es decir, escritura, impresión y telecomunicaciones. Estos
60
Segundo o entendimento do autor, há uma maior tendência de que as
comunicações, ao serem expandidas e limitadas, tornem-se improváveis em razão
de que é improvável que a comunicação seja compreendida por outrem, tendo em
vista o enclausuramento de sua consciência. O significado só se faz compreender
em razão do entendimento que a memória lhe reserva. A segunda improbabilidade
refere-se à impossibilidade de se aceder aos receptores, o que se refere à
possibilidade de as comunicações atingirem somente aos que estão presentes ao
evento. Por fim, a terceira improbabilidade diz respeito à obtenção do resultado
desejado, tratando-se da adoção e incorporação da comunicação ao
comportamento
126
.
Pode-se afirmar que a comunicação é um evento extremamente improvável.
A improbabilidade da comunicação, entretanto, pode ser superada por meio dos
chamados “meios de comunicação simbolicamente generalizados”. Tais meios
atuam sobre um caos comunicativo, viabilizando o êxito de comunicações até então
improváveis; são aqueles
[...] meios que utilizam generalizações para simbolizar a relação
entre seleção e motivação, isto é, para representá-la como unidade.
Exemplos importantes são: verdade, amor, propriedade/dinheiro,
poder/direito; até certo ponto também fé religiosa, arte e atualmente,
talvez, “valores básicos” civilizatoriamente padronizados. De maneira
muito diferente, e para constelações de interação muito diversas,
trata-se em todos os casos de condicionar a seleção da comunicação
dessa maneira que atuem o mesmo tempo como meios motivadores,
isto é, que podem assegurar de maneira suficiente o cumprimento da
proposta de seleção. A comunicação mais bem-sucedida/
transcendental se realiza na sociedade atual mediante tais meios de
comunicação e, em conseqüência, as oportunidades para a formação
medios de basan en una descomposición, en una recombinación incongruente de unidades
lingüísticas que no pueden disolverse más. Así se logra una expansión inmensa de la amplitud del
proceso comunicacional que reactúa, a su vez, sobre lo que se comprueba como contenido de la
comunicación. Los medios de comunicación seleccionan mediante su propia técnica, crean sus
propias posibilidades de conservación, comparación y mejoramiento, las cuales, no obstante, sólo
pueden ser utilizadas con base en estandarizaciones. En comparación con la tradición oral, sujeta a
la interacción y a la memoria , los medios de comunicación se expanden y a la vez se limitan, y así la
comunicación sirve como base para las comunicaciones siguientes.”
126
LUHMANN, Niklas. A Improbabilidade da Comunicação. Lisboa: Vega, 2001. p. 42-43.
61
dos sistemas sociais são dirigidos para suas funções
correspondentes
127
.
Pode-se considerar a comunicação como autopoiética, ou seja, um fenômeno
que se reproduz nele mesmo. Todavia, a autopoiese dos sistemas sociais apenas
tem lugar quando viabilizada a comunicação, isto é, a comunicação produzida deve
ser passível de reconhecimento; caso contrário, será refutada e identificada apenas
como ruído. A problemática da improbabilidade da comunicação será vista com
maior propriedade no capítulo 5.
Assim, faz-se necessário estabelecer, inicialmente, uma diferenciação de
meio e forma nos sistemas de comunicação, visto que a “[...] comunicação é
possível só […] como processo desta diferença”.
128
Assim, o procedimento dessa
diferença está relacionado diretamente à distinção entre seus elementos meio e
forma: “[…] é ela mesma uma forma forma com dois lados, no qual um deles (no
lado da forma) se contém a si mesma. A distinção meio/forma está construída
paradoxalmente ao prever sua re-entrada em si mesma, ao fazer-se presente do ovo
em um de seus lados”
129
. Portanto, observa-se a relação entre meio/forma como
uma unidade única com dois lados, ou seja, ambas se compõem como parte do
mesmo.
127
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 159-160: “medios que utilizan generalizaciones para
simbolizar la relación entre selección y motivación, es decir, para representarla como unidad.
Ejemplos importantes son: verdad, amor, propiedad/dinero, poder/derecho; hasta cierto punto también
fe religiosa, arte y actualmente, quizá, “valores básicos” civilizatoriamente estandarizados. De manera
muy diferente, y para constelaciones de interacción muy diversas, se trata en todos los casos de
condicionar la selección de la comunicación de tal manera que actúen el mismo tiempo como medios
motivadores, es decir, que pueden asegurar de manera suficiente el cumplimiento de la propuesta de
selección. La comunicación más exitosa/trascendental se realiza en la sociedad actual mediante tales
medios de comunicación y, en consecuencia, las oportunidades para la formación de los sistemas
sociales son dirigidos hacia sus funciones correspondientes.”
128
LUHMAN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 84-85: ”La comunicación es posible sólo
[…] como procesualización de esta diferencia.”
129
LUHMANN, El Arte de la Sociedad, Op. cit., p. 175: “[…] es ella misma una forma forma con dos
lados, en el que uno de ellos (en el lado de la forma) se contiene a sí misma. La distinción
medio/forma está construida paradójicamente al prever su re-entrada en sí misma, al hacerse
presente de huevo en uno de sus lados.”
62
Dessa forma, pode-se identificar que a comunicação reveste-se na síntese
necessária para que o processo de emissão da informação siga seus receptores, e,
por meio do ato da comunicação, venha ou não a ascender a seus presentes.
Assim, a comunicação é essencial para que os meios de massa possibilitem
transcendência dessa mesma comunicação aos presentes. Por isso faz-se
necessária a observância da conceituação de meios de comunicação proposta por
Luhmann:
Sob o conceito de meios de comunicação devem ser compreendidos,
de agora em diante, todas as instituições da sociedade que se
servem de meios técnicos de reprodução para de reprodução para a
difusão da comunicação. Consideram-se, principalmente, livros,
revistas, jornais produzidos de forma impressa, mas também
processos de reprodução fotográfica ou eletrônica de qualquer tipo,
na medida em que fabriquem produtos em grande quantidade a um
público indeterminado. Também a difusão da comunicação pelo rádio
faz parte desse conceito, na medida em que for acessível a todos e
não sirva apenas para manter a conexão telefônica entre
participantes individuais. A produção em massa de manuscritos com
base no ditado, como ocorria em oficinas medievais de escrita, não
se inclui no conceito, como tampouco o acesso público a espaços
onde a comunicação ocorre quer dizer, o conceito não vale para
conferências, representações teatrais, exposições, concertos, a não
ser que essa divulgação suceda por meio de filmes ou disquetes
130
.
Portanto, os meios de comunicação não se restringem somente a uma
espécie. Nesse contexto, observa-se que o processo evolutivo dos meios de
comunicação se dá pelos mais diversos meios, seja pela comunicação oral, seja
pela escrita, sonora, televisiva e pela internet. A comunicação massiva existente
atualmente viabiliza o auxílio a temas de relevância da sociedade. Como exemplo,
refira-se meios como o rádio e a televisão, utilizados largamente para a divulgação
de temas relacionados à saúde, como a promoção de campanhas sanitárias, o
alerta quanto à determinada doença ou a divulgação de medidas preventivas.
Saliente-se, ainda, a internet como meio aberto à participação popular, no sentido de
produção de um excedente comunicativo, restando tal meio como expoente da
difusão comunicativa e de participação popular.
130
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 16-17.
63
Está-se diante de um processo extremamente enriquecido pelo advento da
tecnologia; por outro lado, nessa evolução há de se desconsiderar a produção dos
manuscritos da era medieval ou apresentações fechadas de peças teatrais ou
concertos, a não ser que esse processo seja divulgado massivamente por filmes,
num processo industrial que torne possível a comunicação. Por outro lado, neste
processo se evidencia a escrita, que conduz à diferença dos meios de comunicação.
Desse modo, aduz Luhmann:
a [...] tecnologia de difusão representa aqui [...] o mesmo que é
realizado pelo médium dinheiro para uma diferenciação auto-
fortificada da economia: ela própria constitui apenas um meio (um
medium) que permite a formação de forma que, então, diferentes do
próprio medium [...]”
131
.
Assim, diante da complexidade que envolve o dinheiro e a economia, essas
operações revestem-se em comunicações que possibilitam o fechamento
operacional sistêmico. Dessa forma, pode-se dizer que os sistemas de comunicação
compõem-se da caracterização entre meio e forma à qual Luhmann refere
132
.
Pode-se observar, contudo, que o processo comunicativo ocorre por meio da
diferenciação da clausura operacional dos sistemas, que “[...] traz como
conseqüência que o sistema dependa da auto-organização. Suas próprias estruturas
podem construir-se e transformar-se unicamente mediante operações dela mesma”
133
. Ocorre, assim, a comunicação dentro do próprio sistema social, onde “[...] um
sistema é a forma de uma diferenciação, possuindo, pois, dois lados: o sistema
(como o lado interno da forma) e o ambiente (como o lado externo da forma).
131
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 17.
132
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 84-85: “Cuando hablamos de
<<medios de comunicación>> entendemos siempre el uso operativo de la diferencia entre sustrato
medial y forma. La comunicación es posible solo […] como procesualización de esta diferencia.”
133
Idem, ibidem, p. 49: “La clausura operacional trae como consecuencia que el sistema dependa de
la autoorganización. Sus propias estructuras pueden construirse y transformarse únicamente
mediante operaciones de ella misma […].”
64
Somente ambos os lados constituem a diferenciação, a forma, o conceito”.
134
Assim,
pode-se dizer que o sistema é único, porém formado por dois lados que estabelecem
sua própria diferença. Pela capacidade de ocorrência de comunicações dentro do
próprio sistema deve-se observar a distinção entre o sistema aberto e o sistema
fechado. Escarpit especifica a relação existente entre código e linguagem:
Por definição, o código é um sistema fechado que pretende ser
exaustivo para o sistema físico que interpreta. Não permite nem
ambigüidades nem repetições. Para isso, supõe implicitamente a
invariação das relações que definem o sistema físico interpretado,
por meios do qual é possível integrar a um conhecimento ordenado
todo acontecimento conforme à hipótese e de invariação.[…] A
linguagem é por definição um sistema aberto e evolutivo onde não
pode existir invariação total, sem o qual não poderia haver redução
de informação, que é a função fundamental da linguagem. Em um
sistema lingüístico, as relações se modificam continuamente por
efeito da prática. Para produzir informação, a linguagem é menos
confiável que o código: mas sem ele em impossível superar os
obstáculos que opõe a incompatibilidade dos sistemas
135
.
Essa relação existente entre o sistema aberto e fechado é fácil de identificar
por meio do código e da linguagem, que possibilita, no primeiro caso, o fechamento
do sistema e, no segundo, a sua abertura, como função essencial para a própria
autonomia do sistema em sua diferenciação. Portanto, o código tem um papel
fundamental dentro dos sistemas, porque possibilita seu fechamento.
Para Luhmann, “[...] se os sistemas se baseiam em uma diferença codificada
(verdadeiro/falso, jurídico/antijurídico, ter/não ter), toda auto-referência teria lugar
dentro destes códigos”. Nesse sentido, o autor conclui que os códigos agem “[...]
134
LUHMANN, O Conceito de Sociedade. Op. cit., p. 78.
135
ESCARPIT, Robert. Teoria de la Información y Práctica Política. Traducción Marcos Lara. México:
Fondo de Cultura Económica, 1981. p. 44-45: “Por definición, el código es un sistema cerrado que
pretende ser exhaustivo para el sistema físico que interpreta. No permite ni ambigüedades ni
repeticiones. Para ello, supone implícitamente la invariación de las relaciones que definen el sistema
físico interpretado, por medios del cual es posible integrar a un conocimiento ordenado todo
acontecimiento conforme a la hipótesis e de invariación. […] El lenguaje es por definición un sistema
abierto y evolutivo donde no puede existir invariación total, sin lo cual no podría haber reducción de
información, que es la función fundamental del lenguaje. En un sistema lingüístico, las relaciones se
modifican continuamente por efecto de la practica. Para producir información, el lenguaje es menos
confiable que el código: pero sin él en imposible superar los obstáculos que opone la incompatibilidad
de los sistemas.”
65
dentro deles como relação de negação, que excepciona terceiras possibilidades e
contradições; precisamente este procedimento que estabelece o código não pode
ser aplicado à unidade do próprio código. A não ser por um observador”
136
.
Portanto, deve-se observar a relação existente da linguagem no processo de
abertura do sistema. Maturana define a linguagem como sendo
[...] um fenômeno que nos envolve como seres vivos e, portanto, um
fenômeno biológico que se origina na nossa história evolutiva,
consiste num operar recorrente, em coordenações de coordenações
consensuais de conduta. Disto resulta que as palavras são nós nas
redes de coordenação de ações, e não representantes abstratos de
uma realidade independente dos nossos afazeres. È por tudo isso
que as palavras não são inócuas e que não é indiferente usarmos
uma ou outra numa determinada situação. As palavras que usamos
não somente revelam nosso pensar, como também projetam o curso
do nosso fazer
137
.
Desse modo, compreende-se que a linguagem torna-se indispensável para a
compreensão da comunicação. Luhmann parte da conceituação proposta por
Maturana: “[...] dizer que, em uma coordenação da coordenação, da conduta de
seres vivos individuais. [...] é uma construção histórica notável da evolução que
consiste em uma muito penetrante seleção de seus meios”
138
. Entende-se, assim,
que a linguagem possui uma íntima relação com o código. Exemplificando-a no
sentido de estabelecer uma tradução, assinala Escarpit: “A tradução é uma operação
de linguagem, não uma operação de código, e a linguagem é própria do indivíduo
humano. [...] A linguagem supõe uma grande parte do código: cada língua em
particular possui seu código próprio que a define como sistema”
139
. Logo,
136
LUHMANN, Niklas. O Enfoque Sociológico da Teoria e Prática do Direito, Op. cit., p. 19.
137
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte:
UFMG, 1998. p. 90.
138
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 159: “[...] decir, en una coordinación de la
coordinación, de la conducta de seres vivos individuales. [...] es una construcción histórica notable de
la evolución que consiste en una muy penetrante selección de sus medios.”
139
ESCARPIT, Teoria de la Información y Práctica Política, Op. cit., p. 45: “La tradición es una
operación de lenguaje, no una operación de código, y el lenguaje es lo propio del individuo humano.
[...] El lenguaje supone una gran parte de código: cada lengua particular posee su código propio que
la define como sistema.“
66
a linguagem possui uma característica especial, [...] uma forma de
todo particular. Como forma de duas partes, consiste na distinção
entre som e sentido. [...] o som não é o sentido, senão que
precisamente por isto seu não ser determina às vezes qual o sentido
de que fala
140
.
Assim, pode-se entender que a diferença existente entre a linguagem e o som
é estabelecida pela diferença na relação de abertura e fechamento do sistema.
Rocha afirma sobre a relação da abertura/fechamento que “[...] o sistema
diferenciado deve ser, simultaneamente, operativamente fechado para manter a sua
unidade e cognitivamente aberto para poder observar a sua diferença constitutiva”
141
. A diferença é que possibilita aos observadores verificarem a sua dupla
contingência. Por conseguinte, pode-se dizer que a sociedade tem como objeto
basilar a comunicação, cuja capacidade de diferenciação e repetição de operações
são distintas de suas observações. Dessa forma, Luhmann traz a importância do
fechamento do sistema para a sociedade:
Se descrevermos a sociedade como um sistema, então partimos da
teoria geral dos sistemas autopoiéticos, que se deve tratar de um
sistema operacionalmente fechado. No plano das operações próprias
do sistema não há nenhum contato com o ambiente. Isto vale ainda
quando […] estas operações sejam observações ou operações cuja
autopoiesis peça uma auto-observação. Também não para os
sistemas que observam existe, no plano de seu operar, nenhum
contato com o ambiente. Cada observação sobre o ambiente deve
realizar-se no mesmo sistema como atividade interna mediante
distinções próprias (para as quais não existe nenhuma
correspondência no ambiente). De outra maneira não faria sentido
falar de observação do ambiente. Toda observação do ambiente
pressupõe a distinção entre autorreferência
142
e heterorreferência
143
,
a qual pode fazer-se só no sistema
144
.
140
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 91: “El lenguaje tiene, por tanto, una
forma del todo particular. Como forma de dos partes, consiste en la distinción entre sonido y sentido.
[…] el sonido no es el sentido, sino que precisamente por esto su no ser determina a veces cuál es el
sentido del que se habla […].”
141
ROCHA, Leonel Severo. Interpretação Jurídica e Racionalidade. In: ______. Epistemologia
Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 112.
142
Luhmann refere que “auto-referência designa toda operação que se refere a algo fora de si mesmo
e que, através disto, volta a si. A pura auto-referência, a qual não toma o desvio do que lhe é externo,
equivaleria a uma tautologia. Operações reais ou sistemas reais dependem de um ‘desdobramento’
ou destautologização desta tautologia, pois somente então, estas poderão compreender que são
somente possíveis em um ambiente real de uma maneira limitada, não arbitrária.” Conforme tradução
em ROCHA, Leonel Severo. Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo Sistêmico. In
67
Observa-se que, em relação à clausura operacional do sistema, não ocorre
nenhum contato com o ambiente, ao passo que a observação
145
só pode se realizar
no mesmo sistema, como uma intensidade interna do sistema mediante a
observação de seu próprio ambiente. Para Marcondes Filho,
[...] é a observação, o componente provisório, artificial. Mas
“observação” não é apenas olhar: para Luhmann, observar é
escolher, fazer uma seleção. Utilizar a diferença para designar um
lado e não o outro. Por isso, observação é também operação.
Quando se observa, quando se escolhe um e não o outro, o conjunto
que ambos formam torna-se “invisível”: se eu olho a universidade,
perco o ambiente em que ela está inserida; este é meu ponto cego. É
como o olho, que não pode ver a si mesmo. Diferenciar é estabelecer
um limite: para ver aquilo que eu não escolhi (o outro lado) devo
cruzar esse limite. E isso me toma tempo, só posso fazê-lo mais
tarde. Por isso, um observador só pode ver um lado de cada vez.
146
Pode-se verificar, portanto, que a observação é um processo de escolha, uma
seleção cuja operação se vale da diferença para estabelecer os limites. “Observar é
______; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do
Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 40. Ver LUHMANN, Ecological Communication,
Op. cit., p. 145: “Self-reference designates every operation that refers to something beyond itself and
thought this back to itself. Pure self-reference that does not take this detour through what is external to
it self would amount to a tautology. Real operations or systems depend on an ‘unfolding’ or de-
tautologization of this tautology because only then can they grasp that they are possible in a real
envireonment only in a restricted, non-arbitrary way.”
143
Entende-se aquí como heterorreferencia o entorno. LUHMANN, El Derecho de la Sociedad, Op.
cit., p. 108.
144
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 49: “Si describimos la sociedad como
un sistema, entonces se sigue, de la teoría general de los sistemas autopoiéticos, que se debe tratar
de un sistema operacionalmente cerrado. En el plano de las operaciones propias del sistema no hay
ningún contacto con el entorno. Esto vale aun cuando […] estar operaciones sean observaciones o
bien operaciones cuya autopoiesis pida una autoobservación. Tampoco para los sistemas que
observan existe, en el plano de su operar, ningún contacto con el entorno. Cada observación sobre el
entorno debe realizar-se en el mismo sistema como actividad interna mediante distinciones propias
(para las cuales no existe ninguna correspondencia en el entorno). De otra manera no tendría sentido
hablar de observación del entorno. Toda observación del entorno presupone la distinción entre
autoreferencia y heteroreferencia, la cual puede hacerse sólo en el sistema.”
145
Observação é definida no nível de abstração do conceito de autopoiese. Designa a unidade de
uma operação que faz uma distinção visando indicar um ou o outro lado desta distinção. Nesse modo
de operação pode novamente existir consciência ou comunicação. Luhmann, Ecological
Communication, Op. cit., p.144: “Observation Is define don the level of abstraction of the concept of
autopoiesis. It designates the unity of an operation that makes a distinction in order to indicate one or
the other side of this distinction. Its mode of operation can, again, be life, consciousness or
communication”
68
igualmente uma atividade interna dos sistemas, não é nenhum acesso a uma
realidade exterior”
147
. Assim, a observação, sendo uma operação interna do
sistema, não pode ultrapassar esses limites. O processo da comunicação, conforme
Luhmann, é estabelecido pelo fundamento da
[...] linguagem se desenvolveram os meios de comunicação, isto é,
escritura, impressão e telecomunicações. Estes meios se baseiam
em uma decomposição, em uma recombinação de unidades
lingüísticas incongruente de unidades lingüísticas que não podem
dissolver-se mais*. Assim se alcança uma expansão imensa da
amplitude do processo comunicacional que reactúa, por sua vez,
sobre o que se comprova como conteúdo da comunicação*. Os
meios de comunicação selecionam mediante sua própria técnica,
achem suas próprias possibilidades de conservação, comparação e
melhoramento, as quais, não obstante, só podem ser utilizadas com
base em estandardizações. Em comparação com a tradição oral,
submissa à interação e à memória, os meios de comunicação se
expandem e ao mesmo tempo limitam, e assim a comunicação serve
como base para as comunicações seguintes
148
.
Nos meios de comunicação pode-se verificar a importância desse processo
de autopoiesis da comunicação, visto que ela se auto-reproduz a partir de si mesma:
“[...] sem linguagem não é possível a autopoiesis de um sistema de comunicação
porque esta pressupõe sempre uma perspectiva regular de ulterior comunicação -
mesmo que uma vez possibilitada pela linguagem permite que haja comunicação
sem linguagem.”
149
No mesmo sentido tem-se no posicionamento de Marcondes
Filho, ao afirmar que a linguagem é
146
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 429.
147
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 429.
148
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 158: “Con base en el lenguaje se han podido desarrollar
los medios de comunicación, es decir, escritura, impresión y telecomunicaciones. Estos medios se
basan en una descomposición, en una recombinación de unidades lingüísticas incongruente de
unidades lingüísticas que no pueden disolverse más*. Así se logra una expansión inmensa de la
amplitud del proceso comunicacional que reactúa, a su vez, sobre lo que se comprueba como
contenido de la comunicación*. Los medios de comunicación seleccionan mediante su propia técnica,
crean sus propias posibilidades de conservación , comparación y mejoramiento, las cuales, no
obstante, sólo pueden ser utilizadas con base en estandarizaciones. En comparación con la tradición
oral, sujeta a la interacción y a la memoria, los medios de comunicación se expanden y a la vez
limitan, y así la comunicación sirve como base para las comunicaciones siguientes.
149
LUHMANN,. La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 157-158: “[…] sin lenguaje no es posible la
autopoiesis de un sistema de comunicación porque ésta presupone siempre una perspectiva regular
de ulterior comunicación- aunque una vez posibilitada por el lenguaje permite que haya comunicación
sin lenguaje.”
69
[...] condição obrigatória para a realização da autopoiese da
comunicação para a diferenciação entre o ato de participar a
comunicação e a informação, pois apenas a comunicação do corpo,
pela sua ambigüidade, não garantiria a recursividade do sentido na
comunicação. Não obstante, apesar de a consciência e a
comunicação estarem atravessados pelo sentido, de terem sua
estabilidade de reprodução acoplada estruturalmente mediante a
linguagem, nem consciência, nem comunicação devem ficar
reduzidas à linguagem, ou seja, não é correto que só se pode ver o
que se pode formular
150
.
Demonstra-se, com isso, a necessidade da comunicação através de seus
meios para verificar que a linguagem é fundamental para a ocorrência da
autopoiesis nos sistemas, pois “[...] as comunicações de sistemas sociais ligam-se
através de meios de comunicação, dos media, como a língua, os meios de difusão e
mesmo os meios de comunicação simbolicamente generalizados”
151
. Desse modo
os meios é que permitem os acoplamentos e os desacoplamentos, (re)produzindo
continuamente formas (sim/não). Verifica-se, pois, que o meio é uma condição de
possibilidade para o acoplamento e desacoplamento, ou seja, o acoplamento
estrutural
152
dos sistemas comunicacionais.
Cabe, agora, observar o papel dos meios para o processo de comunicação de
massas: “[...] entendem-se as instituições da sociedade que usam tecnologias da
multiplicação para disseminar a comunicação. [...] cumpre ressaltar, não ocorre
nenhuma interação entre emissor e receptor. [...] Essa desconexão garante a
liberdade de comunicação”
153
da sociedade Nessa perspectiva, tem-se como
150
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 486.
151
Idem, ibidem, p. 476.
152
LUHMANN, Niklas. Sobre os Fundamentos Teórico-sistêmicos da Teoria da Sociedade. Op. cit., p.
67: “O conceito de acoplamento estrutural designa uma forma para interdependências regulares entre
sistemas e relações ambientais, que não estão disponíveis operacionalmente, mas que precisam ser
pressupostas. Importante é a alta seletividade dessas formas. Elas não abrangem, de uma vez por
todas o ambiente total do sistema. Assim, todos os sistemas de comunicação estão obviamente
acoplados a processos de consciência. Sem consciência não há comunicação. Mas isto não significa
que eventos de consciência (percepções, pensamentos) como tal já possam ser elementos de um
processo de comunicação. O sistema de comunicação permanece, em outras palavras, um sistema
auto-referencial operacionalmente fechado.”
153
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 494.
70
comunicação de massas uma idéia de ampliação do acesso à informação nos mais
diversos meios, como as transmissões realizadas por televisão, rádio, jornal, etc.
Não obstante, os meios de comunicação utilizam os instrumentos de
comunicação de modo a serem possibilitadas as intervenções de operações com os
meios, isto é, os meios se valem desses elementos para levar a comunicação a
outros receptores. Deve-se observar a inter-relação existente no seu plano de ação
pela heteroreferência e auto-referência, visto que o “[...] sistema se dá tempo e
constitui cada operação com a expectativa de que outras se sucedam”.
154
Desse
modo, observa-se a importância de cada operação para o sistema, sendo que elas
se auto-reproduzem pela autopoiesis da comunicação. Logo, deve-se trabalhar a
idéia da função dos meios de comunicação para as massas, sobre o que Luhmann
afirma:
Se se quiser extrair dessas análises algo sobre função social dos
meios de comunicação, é preciso, em primeiro lugar, começar de
uma distinção básica, isto é, a distinção entre Operação e
Observação. Operação é a ocorrência efetiva de acontecimentos; a
reprodução deles é realizada pela autopoiese do sistema, isto é, a
reprodução da diferença, entre sistema e meio externo. As
observações utilizam distinções para descrever uma coisa (e não
outra)
155
.
Na operação dos meios de comunicação, faz-se a diferenciação de “[...] dois
planos de ação: quando eles se referem a um mundo externo, mesmo que
fantasiado, fala-se de heterorreferência; quando eles falam de si mesmos, enquanto
veículos de difusão, fala-se de auto-referência”
156
, ou seja, é a relação existente do
direito/não-direito, observando a maneira como se estabelece a observação de
segunda ordem na construção da realidade social. Com isso, é salientada a
importância dos meios de comunicação, sobre o que Luhmann refere:
154
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 29.
155
Idem, ibidem, p. 155.
156
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 494-495.
71
[...] consiste, [...] em orquestrar a auto-observação do sistema social
com isso não se está pensando num objeto específico entre outros,
mas numa forma de dividir o mundo em sistema (a saber, a
sociedade) e o meio externo. Trata-se de uma observação universal,
não específica de um objeto. Já falamos em outro contexto, da
função da memória sistêmica, que disponibiliza uma realidade de
background para todas as comunicações que vão se seguindo, e é
continuamente reimpregnada pelos meios de comunicação
157
.
Seria, neste caso, a idéia de que o sistema necessita promover sua auto-
observação, fazendo com que venha a ocorrer a sua auto-reprodução, de modo à
manutenção de sua autopoiese. “Os meios de comunicação realizam na sociedade
exatamente aquela estrutura dual de reprodução e informação, de continuidade de
uma autopoiese sempre já adaptada e de uma disposição cognitiva à irritação”
158
.
Diante dos meios de comunicação, fica notória sua função
159
, que “[...] consiste na
produção contínua e no processamento das irritações e não no aumento do
conhecimento, nem numa socialização ou educação no sentido da conformidade às
normas”
160
. Portanto, os meios de comunicação
[...] garantem a todos os sistemas de função uma presença que é
aceita por toda a sociedade e é ao mesmo tempo familiar aos
indivíduos, presença essa que eles tomam como ponto de partida
quando se trata de selecionar um passado específico do sistema,
assim como de fixar expectativas de futuro importantes para o
sistema. Conforma as necessidades individuais, outros sistemas
podem ajustar suas previsões à referência passada; a economia, por
exemplo, pode adaptar-se às inovações provenientes das firmas ou
do mercado, e apoiada nisso, fixar suas próprias conexões entre seu
passado e seu futuro
161
.
157
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 158.
158
Idem, ibidem, p. 159.
159
Nesse sentido, segundo WOLF, Teorias das Comunicações de Massa, Op. cit., p. 55: “o
inventário das funções correlaciona-se a quatro tipos de fenômenos de comunicação diversos: a. a
existência do sistema global dos meios de comunicação de massa numa sociedade; b. os tipos de
modelos específicos de comunicação ligados a cada meio particular (imprensa, rádio, etc); c. a ordem
institucional e organizacional com que os diversos meios de comunicação operam; d. as
conseqüência do fato de as principais atividades de comunicação se desenvolverem por intermédio
dos meios de comunicação de massa.”
160
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 159.
161
Idem, ibidem, p. 160-161.
72
A comunicação, portanto, é uma condição de possibilidade para a existência
dos meios de comunicação, pois sem comunicação não há a realização de
operações no sistema. Essas trocas são fundamentais para que se possa ajustar o
futuro identificando o passado e, assim, reduzindo a complexidade de frustração
com referência no passado.
1.3. Funcionalidade dos meios de comunicação
Com a noção de meios de comunicação, a clássica troca de informações
como forma de construção da realidade sofrem violento abalo. Os meios de
comunicação colocam-se no âmbito social de forma onipresente e generalizadora,
reclamando para si a possibilidade de construção da realidade social e individual.
Entretanto, pode-se perguntar: o que é mídia? “O latim possuía a palavra
médium, cujo plural era media; seu significado era ‘meio’, ‘espaço intermediário’”
162
.
A palavra, igualmente, indicava um ponto de convergência, um lugar-comum. Com o
advento da expressão mass media podem-se compreender os meios de
comunicação como uma força transcendente à usual prática discursiva local e da
troca de informações entre diferentes interlocutores.
Mass media quer dizer meios de comunicação tecnicamente aptos à
difusão simultânea de toda espécie de informação, destinando-se a
um número indiscriminado de indivíduos. Esses meios de
comunicação modernos são, além do cinema, os jornais, as revistas,
as emissoras de rádio e, sobretudo, as redes de televisão. [...] estão
em jogo os meios (tecnologicamente perfectíveis) de disseminação
rápida e generalizada de mensagens, popularizando-se, por
“naturais”, as linguagens em que se acham vazadas. Além disso, as
facilidades encontradas para sua reprodução e imediata divulgação
conferem a tais mensagens “repercussão social”
163
.
162
POLISTCHUK, Ilana; TRINTA, Aluizio Ramos. Teorias da Comunicação: o Pensamento e a Prática
da Comunicação Social. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 79.
163
Idem, ibidem, p. 79.
73
Desse modo, por meios de comunicação compreende-se toda e qualquer
difusão unilateral de informação. “O livro foi a primeira mercadoria produzida em
massa. A imprensa, que, por definição é uniforme e repetível, [...] possibilitou o
surgimento de mercados para esses artigos.”
164
Podem-se citar, ainda, como
exemplo de meios de comunicação revistas, jornais, cinema, programas televisivos,
programas de rádio, etc.
Saliente-se a compreensão da internet como meio de comunicação apenas
em determinados casos, eis que por vezes é possível a seleção da informação
desejada na rede mundial de computadores, bem como a troca de informações com
outros indivíduos.
Pode-se compreender os mass media como essa força transcendente no
sentido de que se colocam entre as relações intersubjetivas de forma abrupta: não é
possível a seleção da informação desejada, pois a comunicação é imposta
unilateralmente. Todavia, os meios de comunicação não se traduzem em elemento
decisório; podem, sim, influenciar os processos sociais de tomada de decisão,
todavia, conforme Marcondes Filho, as decisões são necessariamente realizadas em
instâncias inferiores:
Os grandes meios de comunicação de massa são transmissões
unilaterais da comunicação. Os receptores os recebem e são (podem
ser) por eles mobilizáveis. Não há troca, intercâmbio entre os dois
atores do processo social. Diferentemente ocorre com a
comunicação interpessoal. Esta se baseia no diálogo, na conversa
direta sem barreiras ou preconceitos; ela atua a longo prazo e
intermitentemente. É também mais espontânea. Essa comunicação é
a que efetivamente forma, não a outra. Debates em televisão podem
reforçar tendências ou opções para candidatos a postos no governo;
não decidem, contudo. A decisão ocorre em outras instâncias,
nesses grupos menores sob a influência de pessoas de confiança,
em círculos mais livremente aceitos
165
.
164
MCLUHAN, Herbert Marshall. As Tecnologías, os Meios de Comunicação e a Cultura. In: Mcluhan
por McLuhan: Conferências e Entrevistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 37.
74
Por outro lado, os meios de comunicação fornecem elementos aptos para
conciliar diferentes interesses da complexa sociedade pós-moderna, construindo
pontos de vista e fornecendo, assim, o arcabouço informativo necessário à
sociabilidade.
A legitimação dos meios de comunicação de massa encontra terreno
fértil na divisão social, quer esta diga respeito à esfera funcional quer
à estrutura ocupacional dos espaços da sociedade moderna. Nesta
situação, a segmentação das diferentes esferas da vida social
encontra na função integradora dos meios de comunicação de massa
a estrutura discursiva que consegue conciliar os interesses
antagônicos da vida social
166
.
O papel do emissor nos meios de comunicação reveste-se, então, de
extrema importância, eis que o emissor transmuda-se no deus criador da
informação. O processo de comunicação para as massas, como já referido, é algo
posto, fixado no meio social arbitrariamente:
Tal como vimos a propósito da inteligência artificial, o ponto de
partida de uma reflexão sobre a comunicação é sempre o esquema
clássico da decisão, cartesiano, representativo. Nesse esquema
fragmentado, mecânico, o emissor é o todo-poderoso. É ele que
envia a bola de bilhar, a mensagem que atingirá o auditor, o sujeito
activo, o príncipe. O poder reside de outro modo ou a favor do outro,
sujeito passivo, todo ouvidos e consentimento. Supomo-lo a deitar a
orelha ao conteúdo da mensagem e damos-lhe, mesmo assim, a
permissão para ajuizar da realidade, da autenticidade, ou do charme
persuasivo da mensagem recebida. Fica a cargo do emissor
desembaraçar-se para a tornar aceitável
167
.
165
MARCONDES FILHO, Ciro. Quem Manipula Quem? Poder e Massas na Indústria da Cultura e da
Comunicação no Brasil. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 101.
166
DIAS, Fernando Nogueira. Droga e Toxicodependência na Imprensa Escrita: discurso e percurso.
Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 72.
167
SFEZ, Lucien. A Comunicação. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. p. 51-51.
75
A aceitabilidade da comunicação, dessa forma, não é algo que dependa do
receptor, o qual é incapaz de selecionar a informação que deseja consumir
168
. A
seleção apenas é possível em relação ao meio desejado: pode-se decidir por ler um
livro, comprar uma revista, assistir a um programa televisivo, entretanto o conteúdo
trazido é impositivo, ou seja, não é possível a seleção da informação.
Sinteticamente, pode-se selecionar o meio, todavia jamais a informação. Para
Ferrer:
Estamos situados ante os meios massivos de comunicação, assim
chamados porque transportam mensagens às quais tem acesso
todos os públicos: mensagens comuns para um comum de
receptores. [...] Cada público seleciona seu meio e cada anunciante
seu púbico. A comunicação é possível pela existência dos meios e
torna possível a coexistência de todos eles
169
.
Os meios de comunicação, dessa maneira, viabilizam o trânsito comunicativo,
perfazendo-se num meio de construção da realidade social. Nesse mesmo passo, é
de ser salientada a concepção compartilhada por Luhmann e De Giorgi acerca dos
meios de comunicação:
Para os homens, este sistema de ordem superior, que por sua vez
não vive, é o sistema de comunicação chamado sociedade. Em
outras palavras, deve existir no plano do sistema emergente um
modo próprio de operar (aqui a comunicação), uma própria
autopoiese, uma possibilidade autogarantida de continuidade das
operações. [...] Os sistemas de comunicação constituem-se a si
mesmos mediante uma distinção entre meio e forma. Quando
falamos de meios de comunicação entendemos sempre o uso
operativo da diferença entre substrato medial e forma. A
comunicação é possível somente [...] como processualização desta
diferença. A distinção entre substrato medial e forma decompõe o
problema geral da complexidade estruturada mediante a ulterior
168
Refira-se aqui a já mencionada idéia de indústria cultural trazida por Adorno e Horkheimer.
169
FERRER, Eulalio. Información y Comunicación. 2. ed. México: Fon de Cultura Económica, 1998. p.
81: “Estamos situados ante los medios masivos de comunicación, así llamados porque transportan
mensajes a los cuales tienen acceso todos los públicos: mensajes comunes para un común de
receptores. […] Cada público selecciona su medio y cada anunciante su publico. La comunicación es
posible por la existencia de los medio y hace posible la coexistencia de todos ellos.”
76
distinção entre elementos acoplados em modo estrito e entre
elementos acoplados de modo amplo
170
.
O sistema da sociedade, para Luhmann
171
, possui nos meios de massa a
condição de possibilidade à reprodução da comunicação, viabilizando-se, assim,
uma ligação entre passado e futuro, apenas passível de ocorrer mediante a
constante reprodução comunicativa no meio social. Nesse sentido, a comunicação é
a própria sociedade, trazendo os próprios meios de comunicação, além de seu
conteúdo, preceitos comunicativos, razão pela qual se pode afirmar que o meio é
mensagem.
O aforismo “o meio é a mensagem”, cunhado por Marshall McLuhan
172
remeto ao fato de que as conseqüências dos meios de comunicação constituem-se
no resultado da introdução de novas tecnologias no meio social. Em outras palavras,
as próprias tecnologias (os meios de comunicação) trazem conseqüências
individuais e sociais, independentemente de seu conteúdo. Por isso,
numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e
estilhaçar todas as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às
vezes de ser um tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos e
operacionais, o meio é a mensagem. Isto apenas significa que as
conseqüências sociais e pessoais de qualquer meio ou seja, de
qualquer uma das extensões de nós mesmos constituem o
resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova
tecnologia ou extensão de nós mesmos
173
.
170
LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoría de la Sociedad. Guadalajara, México:
Universidad de Guadalajara/Universidad Iberoamericana/Iteso, 1993. p. 84-85: “Para los hombres
este sistema de orden superior, que a su vez no vive, es el sistema de comunicación llamado
sociedad. En otras palabras, debe existir en el plano del sistema emergente un modo propio de
operar (aquí la comunicación), una propia autopoiesis, una posibilidad autogarantizada de continuidad
de las operaciones. […] Los sistemas de comunicación se constituyen a si mismos mediante una
distinción entre medio y forma. Cuando hablamos de medios de comunicación entendemos siempre el
uso operativo de la diferencia entre sustrato medial y la forma. La comunicaión es posible sólo […]
como procesualización de esta diferencia. La distinción entre sustrato medial y forma descompone el
problema general de la complejidad estructurada mediante la ulterior distinción entre elementos
acoplados de modo estrito y entre elementos acoplados de modo amplío.”
171
LUHMANN, Niklas. A Realidade dos Meios de Comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. p. 165.
172
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. Tradução
Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 21-25.
173
Idem, ibidem, p. 21.
77
McLuhan revela já no título de uma de suas obras mais conhecidas que os
meios de comunicação seriam extensões do homem. Nesse passo, toda e qualquer
manifestação dos meios promoveria um controle viabilizador de formas de
sociabilidade. Logo, o conteúdo dos meios de comunicação pouco importaria,
restando o próprio meio como a mensagem, isto é, o meio em si próprio como
viabilizador de estruturação social.
[...] É o meio que configura e controla a proporção e a forma das
ações e associações humanas. O conteúdo ou usos desses meios
são tão diversos quão ineficazes na estruturação da forma das
associações humanas. Na verdade não deixa de ser bastante típico
que o “conteúdo” de qualquer meio nos cegue para a natureza desse
mesmo meio
174
.
Os meios de comunicação, assim, revestem-se de um caráter prescritivo em
si; como prolongamentos do homem, são elementos constituintes de associações.
Entretanto, tal raciocínio até pouco era inimaginável, porque vigia o primado da
mensagem como significação pelo seu conteúdo; os meios, por seu turno,
consistiam em mero veículo de difusão da mensagem. Para Mcluhan:
Não se torna, pois, evidente que, a partir do momento em que o
seqüencial cede ao simultâneo, ingressamos no mundo da estrutura
e da configuração? E não foi isto que aconteceu tanto na Física
como na pintura, na poesia e na comunicação? Os segmentos
especializados da atenção deslocaram-se para o campo total, e é por
isso que agora podemos dizer, da maneira a mais natural possível:
“O meio é a mensagem”. Antes da velocidade elétrica e do campo
integral ou unificado, que’ o meio fosse a mensagem era algo que
não tinha nada de óbvio. Parecia, então que a mensagem era o
“conteúdo”, como costumavam dizer as pessoas ao perguntarem
sobre o que significava um quadro, ou de que coisa tratava. Nunca
se lembravam de perguntar do que tratava uma melodia, ou uma
casa ou um vestido
175
.
174
McLUHAN, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Op. cit., p. 23.
175
Idem, ibidem, p. 27.
78
A velocidade exponencial com que os meios de comunicação foram
(re)produzidos no meio social contribuiu significativamente para essa nova forma de
compreensão. Nesse ponto McLuhan refere “o meio realmente trabalha sobre nós,
realmente se apodera da população e a massageia ferozmente”
176
. Desse modo, os
meios de comunicação apresentam-se como a própria mensagem; agem
massivamente sobre os indivíduos, promovendo a possibilidade de estruturação
social conforme sua própria realidade.
Os meios de comunicação, no entanto, foram potencializados com os
progressivos desenvolvimentos tecnológicos. A noção de que o meio é a mensagem
pôde ser compreendida desde a ampliação dos meios e da sua influência sobre o
indivíduo. Da prensa de Guttemberg aos satélites artificiais, a comunicação foi sendo
constantemente aprimorada por meio de sucessivas inovações, sendo os
desenvolvimentos tecnológicos de vital relevância para a comunicação.
No decurso da história, a tecnologia foi responsável por um sem-número de
inovações, pelo implemento de técnicas industriais, como se denota dos avanços
ocorridos desde a Revolução Industrial
177
até à manipulação genética. Os avanços
tecnológicos, contudo, apresentam estreita relação com a projeção atual dos meios
de comunicação.
Com o implemento de técnicas específicas, foi possibilitada a gênese de uma
série de equipamentos e aparelhos aptos à viabilização da comunicação. Os meios
de comunicação, pois, são constantemente pensados e aprimorados de acordo com
os desenvolvimentos tecnológicos:
As novas tecnologias [...] dizem respeito aos aparelhos de produção
e de transmissão de imagens (meios audiovisuais de comunicação,
176
McLUHAN, Herbert Marshall. O Meio é a Mensagem, Op. cit., p. 111-112.
177
Para maiores detalhes sobre a Revolução Industrial ver HOBSBAWM, Eric J.. Da Revolução
Industrial Inglesa ao Imperialismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 33-73
passim; IGLÈSIAS, Francisco. A Revolução Industrial. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
79
como a televisão), bem como aos aparatos próprios à rápida
transmissão de informações e dados (personalizados ou
socializados, como o telefone). Sua imediata incorporação aos
domínios da informática (que dispõe sobre os modos de tratamento
automático da informação) e das telecomunicações (com a utilização
de fibras ópticas e de satélites para o envio de informação sonora ou
visual por meio de ondas de sinais) é a prova maior de sua
procedência e de sua aguardada serventia
178
.
Desde a concepção do tipo móvel por Guttemberg, o processo de
comunicação vem sendo constantemente aprimorado, notadamente no que diz
respeito aos seus meios. Essa evolução pode ser vista nos desenvolvimentos da
eletrônica, no surgimento do rádio, da televisão, na comunicação possibilitada pelo
telefone como forma de interação à distância, no advento do computador e das
grandes redes eletrônicas de comunicação
179
.
Nesse sentido, por meios de comunicação entendem-se aquelas tecnologias
capazes de potencializar a comunicação, ou seja, as técnicas que possuem a
capacidade de elevação da comunicação a um status de relevância tal que sua
inexistência ou supressão já não é mais possível, sejam elas destinadas à escrita, à
difusão de sons e imagens ou à integração global como a internet.
A técnica possibilitou a massificação da comunicação, produzindo meios de
comunicação cujo alcance transcende fronteiras: da hegemonia da palavra impressa
como meio de comunicação passou-se à era dos CDs, DVDs, computadores,
telefones celulares, televisão, internet. Essa massificação dos meios veio promover
a universalização da informação, o acesso global e instantâneo aos acontecimentos.
De forma ilustrativa, basta se pensar nas coberturas jornalísticas de grandes
confrontos ou nos ataques ao World Trade Center de 11 de setembro de 2001,
transmitidos via satélite ao mundo todo.
178
POLISTCHUK; TRINTA, Teorias da Comunicação, Op. cit., p. 42.
179
BRETON; PROULX. Sociologia da Comunicação, Op. cit., p. 65-78 passim.
80
Nesse mesmo passo, podem-se identificar os meios de comunicação
enquanto a própria tecnologia: a técnica cria os meios, que, por sua vez, reforçam as
possibilidades de produção tecnológica pelo intercâmbio de informações acerca
dessas mesmas tecnologias, num excedente comunicativo autoproduzido.
Tecnologia e meios de comunicação são duas realidades permanentemente ligadas:
uma proporciona o caminho a ser seguido pela outra, numa contínua e recíproca
relação de trocas.
Enquanto a comunicação tecnológica é permanentemente realimentada
precisamente pelos meios a que ela própria deu origem, os meios de comunicação
promovem significativas transformações no âmbito do sistema da sociedade. A
própria noção temporal e especial é refeita, eis que tempo e espaço são
continuamente redefinidos pelos meios de comunicação, os quais, em razão da
instantaneidade da informação que possibilitam, promovem radicais alterações na
forma de vivência humana e social:
O desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação
revolucionaram as relações espaço-tempo, que se alteram em
função das condições técnicas presentes em cada período histórico.
A instantaneidade das comunicações e da transmissão de
informações, possibilitada primeiro pelo cabo e, posteriormente,
pelas antenas hertzianas e satélites artificiais, impõe uma parcial
eliminação da fricção do espaço em todos os pontos alcançados
pelas redes. Assim, as novas tecnologias da informação aprofundam
a diferença entre as temporalidades dos agentes hegemônicos e
aquelas dos agentes não-hegemônicos da sociedade em todos os
lugares e países
180
.
A comunicação promove uma constante redução temporal e espacial,
produzindo novas possibilidades de controle social. O acesso à informação, nesse
sentido, potencializado pelos meios de comunicação tecnologicamente concebidos,
possui uma capacidade de influência global. Essa influência manifesta-se nos meios
180
CASTILLO, Ricardo. Tecnologia da Informação e os Novos Fundamentos do Espaço Geográfico.
In: DOWBOR, Ladislau et. al. Desafios da comunicação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 248.
81
cultural, político, econômico, social, etc.,
181
revestindo-se os meios de comunicação,
conforme Octavio Ianni, como “príncipe eletrônico”:
O príncipe eletrônico, no entanto, não é nem condottiere nem partido
político, mas realiza e ultrapassa os descortínios e as atividades
dessas duas figuras clássicas da política. O príncipe eletrônico é uma
entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e
ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade, em
âmbito local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e
orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes
e atuantes em escala nacional, regional e mundial, sempre em
conformidade com os diferentes contextos socioculturais e político-
econômicos desenhados no novo mapa do mundo
182
.
Os desenvolvimentos tecnológicos impulsionam crescentemente a
universalização dos meios de comunicação, fazendo-os onipresentes no âmbito da
sociedade e viabilizando níveis de comunicação até então inimaginados. É
justamente essa tecnologia que promove hoje a comunicação em larga escala e
desatrelada da interação entre emissor e receptor.
Essa universalização da comunicação, impulsionada (senão produzida)
pelos desenvolvimentos tecnológicos dos meios, é a possibilidade de explicação da
própria sociedade, consoante a teoria sistêmica proposta por Luhmann
183
. A
sociedade pós-moderna é permeada pela existência de paradoxos e contradições. A
constante presença de novas tecnologias promove um constante repensar nas
maneiras de agir, de pensar, etc., e acabam, igualmente, por promover imensas
possibilidades até então não disponíveis. Saliente-se o surgimento de novos
medicamentos, de novas formas de tratamento médico, de novos equipamentos, etc.
181
NOJOSA, Urbano. Reflexões sobre a Sociedade da Informática. In: NOJOSA, Urbano; GARCIA,
Wilton (Org.). Comunicação e Tecnologia. São Paulo: Nojosa, 2003. p. 16.
182
IANNI, Octavio. O Príncipe Eletrônico. In: DOWBOR, Ladislau et. al. Desafios da Comunicação. 2.
ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 64-65.
183
LUHMANN, Niklas. O Conceito de Sociedade In: NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva
Machado Barbosa (Org.). Niklas Luhmann: a Nova Teoria dos Sistemas. Porto Alegre: Editora da
Universidade/Goethe-Institut, 1997. p. 80.
82
Esses desenvolvimentos traduzem o fato de que “a técnica é o lugar do
aumento da complexidade e, portanto, do aumento das possibilidades.”
184
. As
inúmeras possibilidades trazidas pelas tecnologias complexificam cada vez mais as
relações sociais, trazendo em si, além de chances de inclusão, possibilidades
excludentes. O debate entre o papel e as conseqüências das tecnologias para o
indivíduo é bem referido por Luhmann quando registra:
A técnica, pois, na modernidade adiantada, se entende como
aplicação do saber natural para fins humanos, e até como ação
paralela à criação divina ou como cópia de arquétipos previstos na
Criação. Isto fez possível conceber uma ciência referida a isso sob o
nome de “tecnologia”. Só este nexo estreito entre natureza e técnica
sugere o contraste hoje comum entre técnica e humanidade.[…]
A advertência é que o ser humano não deve deixar que seu
autocomprensión se determine pela técnica; deve rebelar-se contra
as dependências que dali emanam assim como deve rebelar-se
contra a dominação sem mais; deve libertar-se da transferência que
implica a técnica e a dominação; deve “emancipar-se” se é que
quer salvar sua humanidade e sua autodeterminação”
185
.
A tecnologia, desse modo, opera uma constante transformação da sociedade,
agindo massivamente sobre os indivíduos, gerando comunicações. Assim, promove
inovações e possibilidades comunicativas até então indisponíveis. Em relação aos
meios eletrônicos, Marcondes Filho explicita a compreensão luhmanniana dizendo:
Em relação aos meios eletrônicos, Luhmann expressa preocupação
ao dizer que a comunicação mediada por computador pode repercutir
negativamente na comunicação social. Ele supõe que o computador
184
VIAL, Sandra Regina Martini. Sociedade Complexa e o Direito Fraterno. In: SANTOS, André
Leonardo Copetti; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Org.). Constituição, sistemas sociais
e hermenêutica: programa de pós-graduação em direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. n. 3.
Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2007. p. 183.
185
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 411-412: “La técnica, pues, en la modernidad
temprana, se entiende como aplicación del saber natural para fines humanos, y hasta como acción
paralela a la creación divina o como copia de arquetipos previstos en la Creación. Esto hizo posible
concebir una ciencia referida a ello bajo el nombre de “tecnología”. Sólo este nexo estrecho entre
naturaleza y técnica sugiere el contraste hoy común entre técnica y humanidad.[…] La
advertencia es que el ser humano no debe dejar que su autocomprensión se determine por la
técnica; debe rebelarse contra las dependencias que de allí emanan así como debe rebelarse
contra la dominación sin más; debe liberarse de la enajenación que implica la técnica y la dominación;
debe “emanciparse” si es que quiere salvar su humanidad y su autodeterminación”
83
poderia substituir ou transcender o trabalho constituidor da sociedade
da comunicação. O computador, quando comparado àquilo que é
definido na tradição sobre a religião e a arte, altera a relação entre
superfície (acessível) e profundidade. Já que não há espaço para
uma ordenação linear que viabilize a significação
186
.
Esses desenvolvimentos trazem, assim, a chance de expansão da
comunicação. A própria utilização de computadores traduz a possibilidade de acesso
à informação por muitos, perpetuando temporalmente seus efeitos. Para Luhmann,
[…] isto é válido também, tanto para a comunicação oral como para a
escrita, com a diferença que a tecnologia de difusão da escritura
pode fazer chegar temporária e especialmente o acontecimento
da comunicação a muitos destinatários, e assim alcançar que se
realize em momentos imprevisivelmente numerosos
187
.
Nesse sentido, a tecnologia pode apontar para novas formas de emancipação
humana, buscando-se seu sentido precisamente na possibilidade das trocas que
proporciona:
O jogo da Internet pode auxiliar no processo de consolidação de uma
sociedade onde o sentido seja aquele de viver compactuando, de
apostar na construção de um outro mundo através deste próprio. O
mecanismo da técnica, também através da Internet, pode se
apresentar como uma forma de emancipação
188
.
Entretanto, há de ser feita uma ressalva, eis que as tecnologias apresentam-
se paradoxalmente: ao mesmo tempo em que acenam para um futuro de
emancipação e constante participação no processo comunicativo, proporcionam
186
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 464.
187
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 49: “esto es válido también, tanto para la
comunicación oral como para la escrita, con la diferencia de que la tecnología de difusión de la
escritura puede hacer llegar temporal y especialmente el acontecimiento de la comunicación a
muchos destinatarios, y así lograr que se realice en momentos imprevisiblemente numerosos”
188
VIAL, Sociedade Complexa e o Direito Fraterno. Op. cit., p. 186.
84
formas excludentes jamais vistas. A sociedade pós-moderna empenha-se no
controle de suas indeterminações, todavia as produz crescentemente
189
. Isso pode
ser observado na necessidade de muitos de acesso a determinados bens e serviços,
porém com sua conseqüente exclusão em razão de carência financeira.
A sociedade possui os meios para promover a saúde pública, entretanto, a
voz dos interesses econômicos por vezes ecoa mais alto. A tecnologia, criada com o
intuito de resolução de problemas, acaba por incluir/excluir. Paradoxalmente, os
próprios meios destinados a proporcionar à sociedade maior controle de suas
incertezas desencadeiam um processo massivo de exclusão, visto que o acesso às
tecnologias sanitárias é proporcionado a uma pequena parcela da população em
razão de critérios econômicos.
A superação da exclusão pode ser viabilizada pela própria comunicação
operada pelos meios de massas. Por outro lado, a própria economia vincular-se
comunicativamente a mudanças sociais, podendo-se citar como exemplo a Lei nº
9.787, de 10 de fevereiro de 1999, promulgada durante o mandato presidencial de
Fernando Henrique Cardoso, que estabeleceu o medicamento genérico, viabilizando
assim a aquisição de medicamentos a custos reduzidos. A constituição de uma
opinião pública forte e direcionada a formas de inclusão e emancipação, promovida
pelo público (espectadores), é condição de possibilidade para uma sociedade cada
vez mais autopoiética, complexificada para reduzir complexidade.
A possibilidade de redução de complexidade encontra na publicidade um
papel fundamental na mudança de paradigmas da sociedade pós-moderna, pois
pode ser um instrumento de comunicação, utilizado, na maioria das vezes, para
atrair e influenciar a atenção das pessoas nas suas tomadas de decisão. Assim,
verifica-se que pode ser entendida como elo fundamental de transformação social e
estabelecimento de novos costumes. Também a
189
ROCHA, Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo Sistêmico. In ______;
SCHWARTZ; CLAM. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito, Op. cit., p. 36.
85
[...] propaganda pode estar motivada pela esperança de alcançar
sucesso nas vendas, mas sua função latente está em produzir e
consolidar critérios do bom gosto para aquelas pessoas que carecem
dele; isto é, sortir de segurança de julgamento respeito às qualidades
simbólicas de objetos e modos de conduta. […] esta função latente
da propaganda pode depois aproveitar-se estrategicamente para
fomentar deste modo as vendas, mesmo que surte também seus
efeitos em que nada compram
190
.
Assim, pode-se observar que a publicidade/propaganda não possui como
objetivo central somente obter sucesso nas vendas, mas procura estabelecer
padrões de gosto nas pessoas, o bom ou mau gosto, buscando criar uma nova
conduta de comportamento da sociedade. Pode, mesmo, estabelecer um novo
padrão até mesmo para os que não compram, pela fixação de novos padrões de
repetição no seu inconsciente. Veja-se o exemplo da publicidade da coca-cola:
“mata sua sede”. Este padrão, pela repetição da veiculação da publicidade nos mais
diversos meios de comunicação, leva a que se pense, ao estar com sede,
automaticamente, em coca-cola, que “mata sua sede”. Portanto, têm-se novos
padrões. Mcluhann afirma:
A pressão contínua é a de criar anúncios cada vez mais há imagem
dos motivos e desejos do público. A importância do produto é
inversamente proporcional ao aumento de participação do público.
[...] o produto e a resposta do público se tornam uma única estrutura
complexa. [...] a firme tendência da publicidade é a de declarar o
produto como parte integral de grandes processos e objetivos
sociais[...] os anúncios, pois, tendem a se afastar da imagem que o
consumidor faz do produto, aproximando-se da imagem de um
processo do produtor. A chamada imagem coorporativa do processo
inclui o consumidor no papel de produtor, igualmente
191
.
190
LUHMANN. La Sociedad de la Sociedad, p. 875: “La publicidad puede estar motivada por la
esperanza de alcanzar éxito en las ventas, pero su función latente está en producir y consolidar
criterios del buen gusto para aquellas personas que carecen de él; es decir, surtir de seguridad de
juicio respecto a las cualidades simbólicas de objetos y modos de conducta. […] esta función latente
de la publicidad puede luego aprovecharse estratégicamente para fomentar de este modo las ventas,
aunque surte también sus efectos en quienes nada compran.”
191
MCLUHAN, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Op. cit., p. 255.
86
É esse processo de repetição contínua que a publicidade exerce pelos meios
de comunicação e utiliza-se de determinados mitos, ou seja, vale-se de figuras de
destaque e renome. Como exemplo: “Os astros e estrelas de cinema e os ídolos nas
matinês são levados ao domínio público [...]. Eles se tornam sonhos que o dinheiro
pode comprar; podem ser comprados, abraçados e apontados mais facilmente do
que mulheres públicas”
192
. Ao se instituírem novos padrões de consumo, estimula-
se uma onda de consumismo, determinando os desejos do público. A este é
proposto um modismo assoberbado para alcançar determinado status social, no
caso, consumir o mesmo produto. Esses padrões só foram possíveis de se
estabelecer com o processo evolutivo dos meios quentes e frios
193
, estabelecendo,
assim, novos meios de comunicação, que atingem mais o público com as novas
tecnologias. Para Mcluhan:
Os anúncios parecem operar segundo o avançado princípio de que
uma bolinha ou estrutura numa barragem redundante de
repetições acabará por se afirmar gradualmente. Os anúncios levam
o princípio do ruído até ao nível da persuasão bem de acordo,
aliás, com os processos de lavagem cerebral. Este princípio de
profundidade da investida no inconsciente pode muito bem ser a
razão por que, tema de tantos anúncios
194
.
A complexidade que envolve a publicidade por meio de seus anúncios,
conduz a que se estabeleçam padrões de persuasão com um elevado nível de
ruídos pela repetição incessante dos anúncios, os quais criam no inconsciente das
pessoas novos padrões de consumo. É como se fosse uma lavagem cerebral
192
Idem, ibidem, p. 215.
193
Nessa direção MCLUHAN, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Op. cit., p. 38:
Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente, como o rádio, de um meio frio,
como o telefone, ou um meio quente, como o cinema, de um meio frio, como a televisão. Um meio
quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em “alta definição”. Alta definição se
refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta
definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca
informação visual, O telefone é um meio frio, ou de baixa definição, porque ao ouvido é fornecida unia
magra quantidade de informação. A fala é um meio frio de baixa definição, porque muito pouco é
fornecido e muita coisa deve ser preenchida pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não
deixam muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um
meio quente. como o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus
usuários.”
194
MCLUHAN, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Op. cit., p. 256.
87
operada por meio dos processos de repetição da publicidade. Luhmann refere em
sua definição dos meios de comunicação:
[...] trabalha também com outros dois gêneros, se bem que não tão
exaustivamente como o jornalismo: a publicidade e o entretenimento.
Para ele, a publicidade não falsifica nada, ela põe, de fato, as cartas
na mesa ao declarar seus motivos e suas intenções, apesar de
esconder seus meios. Ao receptor é sugerida liberdade de decidir se
quer ou não adquirir o bem ou o serviço, mas há uma “opaquização”,
pois, mesmo jogando abertamente, a linguagem paradoxal da
publicidade é enganosa: pode-se economizar gastando dinheiro, o
artigo oferecido é exclusivo, etc. Niklas Luhmann acredita que a
publicidade, em realidade, atua num plano além do mercado e do
consumo, funcionando como mecanismo de equilíbrio entre
redundância e variedade, em que comprar o mesmo produto, a
mesma marca, é antes um ato de dúvida do que de confirmação; é
preciso sempre motivos adicionais, o que se dá pela produção de
ilusão. Este seria exatamente o dilema da publicidade, apresentar
sempre algo de novo e, ao mesmo tempo, manter a fidelidade à
marca: variedade e redundância
195
.
Conforme a proposição do autor, a publicidade não altera nada, mas coloca
as mensagens na mesa e esconde seus meios, propondo, assim, ao receptor a
condição de redução da complexidade pelo exercício da compra ou não dos
produtos ou serviços ofertados, estabelecidos pela redundância
196
de comprar o
mesmo produto em função da confiança de comprar o mesmo produto.
Assim, essa tomada de decisão é um ato de dúvida, não de confirmação, pois
o dilema da publicidade centra-se no paradoxo entre o novo e a fidelidade à marca.
E “[...] exatamente pelo fato de o publicitário deixar bem claro seu interesse na
publicidade, por isso mesmo ele pode lidar abertamente com a memória e os outros
motivos daquilo que é anunciado”
197
. Desse modo, pode-se verificar que se devem
estabelecer barreiras no exercício da publicidade. Para Luhmann existem
195
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 500.
196
LUHMANN, Ecological Communication, Op. cit., p. 145: “Redundancy The multiple certification of a
function, therefore the appearance of ‘superfluit’. The rejection of redundancy means that
multifunctional mechanisms have to be replaced by functionally specif ones that are applied to
(autopoietic) self-certification.”
197
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 84.
88
[...] limites legais para o ato de enganar conscientemente, mas isso
não vale quando se trata da costumeira cumplicidade dos
destinatários no sentido de se enganarem a si mesmos, Cada vez
mais as mensagens publicitárias ocupam-se hoje em dia em tornar
desconhecido ao destinatário o motivo daquilo que é anunciado. Ele
reconhece que se trata de publicidade, mas não que esta sendo
influenciado. Sugere-se que o destinatário tenha liberdade de
decisão e até mesmo que ele deseja por si mesmo, aquilo que ele
jamais desejaria
198
.
Uma das idéias propostas por Luhmann é de que a publicidade agiria no
sentido de enganar o inconsciente por meio das mensagens publicitárias, as quais
desconhecem seus destinatários, ou seja, não conseguem atingir toda massa, mas
apenas aqueles que são seus receptores e estão conectados a elas. A publicidade
nem sempre atinge o motivo do que é anunciado, pois o destinatário tem a condição
da liberdade para a tomada de decisão, significando que
o sucesso da publicidade não está somente no econômico, no
sucesso de vendas. O sistema dos meios de comunicação tem,
também aqui, uma função própria e está deve se localizar na
estabilização da relação entre redundância e variedade na cultura
cotidiana. A redundância é produzida à medida que algo é vendido
de a coisa vender bem; a variedade, à medida que a pessoa tem
necessidade de distinguir os próprios produtos nos mercados
199
.
A publicidade, portanto, não lida somente com a questão econômica, visando
o sucesso das vendas. Os sistemas dos meios de comunicação estabelecem uma
relação entre a redundância e a variedade, o primeiro referindo-se àquilo que é
vendido e o segundo tratando da possibilidade de as pessoas virem a distinguir no
mercado os produtos. Institui-se, pois, um novo padrão da publicidade, que não
possui unicamente a finalidade da venda, mas, igualmente, a de estabelecer novos
198
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 84.
199
Idem, ibidem, p. 91.
89
padrões pelo processo repetitivo, gravando no inconsciente das pessoas padrões,
marcas, como no exemplo mencionado da Coca-Cola: “mata sua sede”. Portanto,
a publicidade, portanto, não atua sobre o consumo imediato, a
exposição das vantagens ou valores intrínsecos das mercadorias
(seu “valor de uso”), mas sim sobre a satisfação substituta: “compre
um carro e você pertencerá a um mundo exclusivo, de pessoas
especiais”, “ para gente como você, o uísque Y”, “ para quem sabe o
que quer...”, e assim por diante. O que se vende na publicidade não
é de forma alguma o produto. Este é absolutamente secundário e é
colocado mesmo a margem, no fim, em um canto da publicidade.
Vendem-se muito mais os elementos ideológicos de diferenciação do
mundo capitalista, que na realidade imediata não encontram
satisfação
200
.
Por meio da publicidade é que se estabelecem novos padrões ideológicos de
diferenciação da aldeia global capitalista, a verdadeira satisfação do público,
condição esta estabelecida pela influência econômica sobre a mídia com o intuito de
alterar drasticamente os padrões de consumo. Assim, a sociedade consome as
coisas muitas não por utilidade, mais por sua aparência, por sua superficialidade,
tornando-se dirigida pelo impulso, ou deixando-se se influenciar por novos padrões
comportamentais. Para Marcondes Filho, a
[...] diferenciação social proposta pelo capital é o distanciamento e a
separação artificial dos indivíduos por meio da aquisição de bens
portadores de status. Na falta de uma situação real de vivência
burguesa, com todos seus confortos e prazeres, as camadas médias
das sociedades capitalistas satisfazem-se com a sua aparência.
Ostentam pura e simplesmente os objetos simbólicos da vida e da
luxúria burguesa. A luta encarniçada para possuir tais bens ocorre
em todos os espaços da socialização burguesa: nas festas, nas
residências, nas atividades abertas, nos centros comerciais, nos
supermercados. Em toda parte é preciso demonstrar que se “está por
cima”, que não se sofre com a crise que se é superior, enfim
201
.
Portanto, tem-se um novo padrão estabelecido diante do poder da
diferenciação social proposta pelo capital, com novos paradigmas de status para a
200
MARCONDES FILHO, Quem Manipula Quem? Op. cit., p. 145.
201
Idem, ibidem, p. 123.
90
sociedade, indicando uma vivência de aparências e futilidades, sistematizadas pelos
símbolos da ideologia capitalista. Está-se diante de uma ruptura paradigmática de
valores sociais, interposta pela influência da publicidade, como a mudança dos
padrões culturais. Hoje, vive-se um novo ciclo de acesso à informação pelos mais
diversos meios de comunicação, tendo-se de colocar limites aos padrões do poder
econômico. É constante a busca pelos padrões do rejuvenescimento, fruto da cultura
interposta pela moda, que impõe novos padrões de beleza à sociedade, a qual
muitas vezes não pondera os riscos à saúde que estes padrões causam. A
publicidade utiliza-se desses padrões para estabelecer e promover a venda de
produtos de beleza e novas técnicas cirúrgicas, que atuam de forma agressiva no
organismo.
Nesse sentido, cabe ao Estado estabelecer os limites à publicidade,
especificamente à publicidade de medicamentos. Assim, o Decreto nº 20.377, de
08/09/193, regulamentou a profissão do farmacêutico, o qual foi revogado pela Lei nº
5.991, de 17/12/1973, esta a primeira lei a regulamentar a questão sanitária, sobre a
comercialização de produtos farmacêuticos; em 1976 elaborou-se uma legislação
mais rígida sobre medicamentos, a Lei nº 6.360, de 06/09/1976, regulamentada pelo
Decreto nº 79.094, de 05/01/1977, que sujeita a um controle de vigilância sanitária
os medicamentos. Todavia foi com a Lei nº 6360/1976 que a matéria sobre
publicidade de medicamentos foi abordada, especificamente em seus artigos 57-
58
202
. O Decreto nº 79.094, de 05/1/1977, veio submeter ao sistema de vigilância
sanitária os medicamentos, insumos farmacêuticos, drogas, correlatos, cosméticos,
produtos de higiene, saneantes e outros, prevendo, ainda, em seu art. 118,
parágrafo 2º
203
, a exigência de autorização prévia. Este dispositivo foi,
202
BRASIL, Lei 6360/1976. Art. 57: O Poder Executivo disporá, em regulamento, sobre a
rotulagem,as bulas, os impressos, as etiquetas e os prospectos referentes aos produtos de que trata
esta Lei; Art. 58 [...] ficou estabelecido que a propaganda somente poderia ser promovida após a
autorização do Ministério da Saúde.
203
BRASIL, Decreto nº 79.094/1977, art.118: A propaganda dos medicamentos, drogas ou de
qualquer outro produto submetido ao regime da Lei no 6.360, de 23 de setembro de 1976, e deste
Regulamento, cuja venda independa de prescrição do médico ou cirurgião-dentista, prescindirá de
autorização prévia do Ministério da Saúde, desde que sejam observadas as seguintes condições: I -
Registro do produto, quando este for obrigatório, no órgão de vigilância sanitária competente do
Ministério da Saúde. II - Que o texto, figura, imagem, ou projeções não ensejem interpretação falsa,
erro ou confusão quanto à composição do produto, suas finalidades, modo de usar ou procedência,
ou apregoem propriedades terapêuticas não comprovadas por ocasião do registro a que se refere o
item anterior. III - Que sejam declaradas obrigatoriamente as contra-indicações, indicações, cuidados
91
posteriormente, revogado pelo Decreto nº 2.018, de 01/10/1996. Somente em 1980
surgiu o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, que estabeleceu o
comprometimento de que as propagandas devem ser respeitadoras, honestas e
verdadeiras, conforme dispõe seu art. 1º
204
. A questão relacionada à publicidade de
produtos farmacêuticos ficou estabelecida em seu Anexo I
205
.
Entretanto, o maior avanço no controle da publicidade veio a acontecer com a
Carta Constitucional de 1988, que estabeleceu em seu art. 220, parágrafo 3º, inciso
II, e parágrafo 4º
206
, restrições à veiculação da publicidade de medicamentos,
exigindo informações relativas aos malefícios sobre o uso dos produtos. Na prática,
porém, vê-se que, em relação à publicidade de medicamentos, veicula-se que, em
caso de reações adversas
207
, seja procurado um médico. O artigo 221, inciso IV, da
Constituição Federal de 1988
208
estabeleceu que as programações de rádio e
televisão devem primar pelo respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da
família, mas foi exatamente com a Lei nº 9.294/1996 que se estabeleceu a
orientação para as propagandas sobre medicamentos para a indústria farmacêutica.
e advertências sobre o uso do produto. IV - Enquadrar-se nas demais exigências genéricas que
venham a ser fixadas pelo Ministério da Saúde. § 2º - No caso de infração, constatada a
inobservância do disposto nos itens I, II e III deste artigo, independentemente da penalidade
aplicável, a empresa ficará sujeita ao regime de prévia autorização previsto no artigo 58 da Lei nº
6.360, de 23 de setembro de 1976, em relação aos textos de futuras propagandas.
204
BRASIL, CONAR, Art. 1º Todo anúncio deve ser respeitador e conformar-se às leis do país; deve,
ainda, ser honesto e verdadeiro.
205
BRASIL, CONAR, Anexo I. A publicidade dos produtos submetidos a este Anexo observará as
normas específicas que se seguem, as quais complementam as normas gerais deste Código. Para os
efeitos deste Anexo, são considerados produtos farmacêuticos isentos de prescrição, também
conhecidos como medicamentos populares ou OTC over the counter -, aqueles cuja venda, nos
termos da lei, está dispensada da apresentação de receita emitida por Médicos e Cirurgiões-
Dentistas.
206
BRASIL, Constituição Federal de 1988, Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a
expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto nesta Constituição. §3º - Compete à lei federal II - estabelecer os meios legais
que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações
de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos,
práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. § 4º - A propaganda
comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a
restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário,
advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
207
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias
estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que
necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
208
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios: IV CF/88: respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
92
Outro avanço foi a criação do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de
11/09/1990, que estabeleceu o direito à informação em seu artigo 6º, incisos III e IV
209
, coibindo a publicidade enganosa e abusiva. Por conseguinte, foi o Decreto nº
2.018/1996, no artigo 22, parágrafo 3º
210
, que trouxe a responsabilidade solidária
entre as agencias de publicidade, veículos de comunicação e fabricantes. Todavia
foi com as resoluções RDC 102, 133 e 199/ANVISA que se estabeleceu a
fiscalização sobre a publicidade de medicamentos, seguindo as orientações
propostas pela Organização Mundial de Saúde conforme as Resoluções WHA21.41,
WHA39.27 e WHO,1992, 1994. Nessas foram estabelecidos os critérios éticos a fim
de coibir a promoção inadequada da publicidade de medicamentos em nível global.
Todas essas leis e resoluções vêm no sentido de estabelecer medidas que
permitam o respeito ao ser humano e o controle efetivo das práticas publicitárias,
que podem ser enganosas e abusivas. Nesse sentido, estabeleceu-se no Brasil uma
nova possibilidade de realizar a promoção da saúde, com políticas como a da
proibição publicitária sobre a indústria tabagista. Contudo, infelizmente, o governo se
rende mais uma vez à pressão internacional da Federação Internacional de
Automobilística (FIA) e, para promover o grande prêmio do Brasil, editou a Medida
Provisória n.º 118
211
, que adiou para 1º de agosto de 2005 o início da proibição do
209
Art. 6 - São direitos básicos do consumidor: III - informação adequada e clara sobre os diferentes
produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade
e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV - proteção contra a publicidade enganosa e
abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas
ou impostas no fornecimento de produtos e serviços.(CDC)
210
Decreto nº 2.018/1996: Art. 22 - ........................ § 3º Consideram-se infratores, para efeitos deste
artigo, os responsáveis pelo produto, pela peça publicitária e pelo veículo de comunicação utilizado,
na medida de sua responsabilidade.
211
Medida Provisória nº 118, de 03 de Abril de 2003: Art. 3
o
-A. .
Parágrafo único. Até 31 de julho de 2005, o disposto nos incisos V e VI não se aplica no caso de
eventos esportivos internacionais que não tenham sede fixa em um único país e sejam organizados
ou realizados por instituições estrangeiras." (NR) "Art.3
o
-C.A aplicação do disposto no parágrafo único
do art. 3
o
-A fica condicionada à veiculação gratuita pelas emissoras de televisão, durante a
transmissão do evento, de mensagens de advertência sobre os malefícios do fumo. §1
o
Na abertura e
no encerramento da transmissão do evento, será veiculada mensagem de advertência, cujo conteúdo
será definido pelo Ministério da Saúde, com duração não inferior a trinta segundos em cada inserção.
§2
o
A cada intervalo de quinze minutos, durante a respectiva transmissão, será veiculada mensagem
de advertência escrita ou falada superposta sobre os malefícios do fumo com duração não inferior a
quinze segundos em cada inserção, por intermédio das seguintes frases, usadas seqüencialmente,
todas precedidas da afirmação "O Ministério da Saúde adverte": I-fumar pode causar doenças do
coração e derrame cerebral; II-fumar pode causar câncer do pulmão, bronquite crônica e enfisema
pulmonar; III-quem fuma durante a gravidez pode prejudicar o bebê; IV-quem fuma adoece mais de
93
patrocínio de eventos esportivos internacionais por marcas de cigarros. A medida
estabeleceu que as publicidades veiculadas devam apresentar advertências com os
malefícios que o cigarro traz à saúde das pessoas. A medida foi convertida na Lei
nº. 10.712, de agosto de 2003.
Assim, demonstra-se que os limites impostos à publicidade podem ser
flexibilizados em função das questões econômicas, que se valem de seu poder para
pressionar o Estado a permitir que os interesses econômicos fiquem acima dos
interesses sanitários, ou seja, da saúde da população. O Estado gasta muito
dinheiro em campanhas de prevenção e promoção da saúde, mas, paradoxalmente,
edita medidas provisórias que são resquícios da ditadura militar para autorizar
temporariamente tais eventos. Desse modo, verifica-se qual é o limite da
comunicação.Para Luhmann:
Por isso será tão mais difícil ainda encontrar esses limites da
comunicação, cuja superação é a que leva e antecipe a evolução da
sociedade. Mas não devemos preocupar-nos por enquanto, porque,
de todas as maneiras, a evolução sempre aproveita acasos e
ocasiões para levar a cabo modificações estruturais… porque, de
todas as maneiras, a evolução é imprognosticável
212
.
Portanto, com todos os avanços que se vêem na comunicação fica difícil
estabelecer os limites de seus processos evolutivos. A publicidade tem um papel
fundamental para a mudança de paradigmas na sociedade, visto que por meio dela
úlcera do estômago; V-evite fumar na presença de crianças; VI-fumar provoca diversos males à sua
saúde; VII-fumar causa mau hálito, perda de dentes e câncer de boca; VIII-fumar causa infarto do
coração; IX-nicotina é droga e causa dependência; X-fumar causa impotência sexual. §3
o
Considera-
se, para os efeitos do caput e dos §§ 1
o
e 2
o
, integrantes do evento os treinos livres e oficiais
preparatórios. §4
o
Aplica-se o disposto neste artigo aos eventos cujas imagens sejam geradas no
exterior e transmitidos ou retransmitidos por emissoras de televisão no território nacional." (NR)
"Art.3
o
-D.É facultado ao Ministério da Saúde afixar, nos locais dos eventos esportivos referidos no art.
3
o
-A, propaganda fixa com mensagem de advertência escrita que observará os conteúdos a que se
refere o § 2
o
do art. 3
o
-C, cabendo aos responsáveis pela sua organização assegurar os locais para a
referida afixação."
212
LUHMANN, Límites de la Comunicación como Condición de Evolución, Op. cit., p. 40: “Por eso
será tanto más difícil todavía encontrar esos límites de la comunicación, cuya superación es la que
lleva adelante la evolución de la sociedad. Pero no debemos preocuparnos por ahora, porque, de
todas maneras, la evolución siempre aprovecha azares y ocasiones para llevar a cabo modificaciones
estructurales… porque, de todas maneras, la evolución es imprognosticable.”
94
e do processo evolutivo da comunicação é que se possibilitam novos padrões
comportamentais da sociedade.
A realidade experimentada pela sociedade é resultado de constantes
atualizações comunicativas no interior do sistema. A permanente produção
comunicativa atua bifurcando-se em possibilidades binárias de modo a ser possível
sua operacionalização. Esse fato divide o mundo em dois (sistema/ambiente),
restando a indicação de determinadas operações como requisito para o estado
subseqüente da sociedade.
A realidade, como produção de verdades aceitas pela sociedade, é um
produto constantemente reelaborado pelos meios de comunicação de massa. As
descrições do dia-a-dia do sistema social são desse modo, produto dos meios de
comunicação. Os meios operam, então, indicações seletivas acerca de assuntos
considerados (por eles próprios) como de importância à sociedade. Todavia,
[...] não pode ficar apenas a cargo do sistema científico a garantia,
para a sociedade, de que a realidade vai surgir. Antes, deve-se
pensar no conhecimento do mundo que o sistema dos meios de
comunicação produz e reproduz. A questão agora é: que descrição
da realidade produzem os meios de comunicação quando se parte
do fato de que eles atuam em todas as três áreas da programação?
E se nós estivéssemos em condições de extrair um julgamento a
respeito disso, apareceria, então, imediatamente, a questão seguinte:
que sociedade surge quando ela se informa corrente e
continuamente sobre si mesma dessa maneira?
213
A problemática trazida por Luhmann bem ilustra a dependência comunicação
X meios de comunicação: a construção da realidade social indica igualmente a
problematização dessa mesma comunicação, eis que a sociedade (re)produz
ciclicamente comunicações que versam sobre comunicações.
213
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 107.
95
A sociedade, em seus subsistemas, trabalha com recursos da memória; por
isso, sempre que determinada comunicação for relevante à manutenção da
autopoiese sistêmica, é resgatada com o objetivo de promover descrições que
estejam de acordo com regras predefinidas pelo sistema. Por isso,
a realidade é descrita de uma forma, a saber, segundo o modo de
investigação da verdade que passa a impressão de ser carente de
equilíbrio. A reprodução continuada do “é” é contraposta pelo como
“de fato deveria ser”. O antagonismo dos partidos, previsto
institucionalmente, que permite ao sistema político alternar o governo
e a oposição, é representado nos jornais diários de forma tão forte
que os valores que se preservam na área de responsabilidade da
política aparecem como deficitários e precisam ser lembrados
214
.
Os meios de comunicação de massa fornecem descrições da realidade, mas,
ao mesmo tempo revestem comunicações de incertezas e riscos. A dificuldade de
quantificar o poder das comunicações, ou a impossibilidade de aferição de seus
riscos promove a indicação de novas comunicações para gerir os déficits anteriores,
trazendo sempre novas descrições da realidade. Assim,
[...] os meios de comunicação colocaram para funcionar, ao mesmo
tempo as três áreas de programação notícias reportagens,
publicidade e entretenimento com formas bem diferenciadas de
construção da realidade torna difícil reconhecer um efeito global e
remetê-lo de volta ao sistema dos meios de comunicação. O traço
básico talvez mais importante e contínuo é que os meios de
comunicação, ao mesmo tempo em que elaboram informações,
abrem um horizonte de incertezas produzidas por eles mesmos, que
precisa ser servido com outras e sempre outras informações
215
.
Quanto mais se comunica, maiores são os níveis de complexidade da
sociedade. Assim, as comunicações trazidas pelos meios de massa aumentam
exponencialmente as possibilidades de essas comunicações causarem perturbações
214
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 134.
215
Idem, ibidem, p. 138.
96
e ressonâncias nos diversos sistemas funcionais da sociedade. Isso porque, quanto
mais
os meios de comunicação aumentam a irritabilidade da sociedade e,
com isso, a capacidade de elaborar as informações. Dito de forma
mais precisa: eles elevam a complexidade dos contextos de sentido
nos quais a sociedade expõe-se à irritação por meio das diferenças
autoproduzidas. A irritabilidade é produzida ou por meio de
horizontes de expectativas, que asseguram possibilidades de
normalidade, mas, não obstante, em casos isolados, podem ser
rompidas por acasos, incidentes, acidentes, ou por meio de espaços
de indeterminação, que serão reproduzidos continuamente como
espaços que necessitam de preenchimento. Em ambos os casos
trata-se de autopoiese reprodução da comunicação com base nos
resultados da comunicação
216
.
Os meios de comunicação de massa, portanto, possibilitam descrições de
estados do sistema social, isto é, fornecem indicações seletivas da realidade social;
assim, as descrições da realidade promovidas por eles consistem em observações
de observações. Nesse sentido, essas observações de segunda ordem possibilitam
novas descrições, a serem constantemente produzidas pelos demais subsistemas.
Isso torna possível que a política, o direito, a economia, etc. baseiem suas
operações nas comunicações levadas adiante pelos meios de massa, reproduzindo-
as internamente conforme suas próprias diretrizes sistêmicas. Luhmann aduz que
a realidade dos meios de comunicação é uma realidade da
observação de segunda ordem. Ela substitui declarações do saber
garantidas em outras formações sociais por meio de posições
excepcionais de observação: pelos sábios, pelos sacerdotes, pela
nobreza, pela cidade, pela religião ou pelas formas de vida que se
distinguem pela ática e pela política. A diferença é tão gritante que
não se pode falar nem de decadência nem de progresso. Mesmo
aqui permanece, como modo de reflexão, apenas a observação de
segunda ordem. Trata-se da observação de que uma sociedade, que
deixa sua auto-observação ao encargo do sistema de função dos
meios de comunicação, aceita essa mesma forma de observação à
maneira da observação de observadores
217
.
216
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 138-139.
97
As descrições fornecidas pelos meios de comunicação, possuem o encargo
da produção de um excedente comunicativo que, de certa maneira, alimenta a
autopoiese da sociedade. Em outras palavras, cada sistema funcional absorve os
influxos trazidos pelos meios de comunicação de massa de acordo com sua
codificação binária, distribuindo-os na sociedade. Assim, há comunicação e,
conseqüentemente, a possibilidade de esta mesma sociedade gerir tais
perturbações.
As construções da realidade oferecidas pelos meios de comunicação
têm por isso efeitos de instituir uma ordem em relação àquilo que em
sociedade pode ser observado como liberdade e, com isso,
principalmente, em relação à questão de como são distribuídas as
chances do agir que é atribuível a cada um em sociedade
218
.
A possibilidade de administração das indeterminações pela sociedade reside,
igualmente, no artifício da memória. Notadamente, o sistema jurídico torna-se o
sistema responsável pela instituição do tempo social e, por conseqüência, da
instituição da memória da sociedade
219
. Sobre a memória social, Ost explica que
instituir o passado, certificar os fatos ocorridos, garantir a origem dos
títulos, das regras, das pessoas e das coisas: eis a mais antiga e a
mais permanente das funções do jurídico.[...] Assim se constrói, por
meio das tentativas de resposta formuladas, nos confins do
imaginário e do racional, um passado <<memorável>> - digno de
memória onde se enraíza a identidade colectiva
220
.
O direito, na ótica de Ost, apresenta-se como o sistema responsável pela
manutenção da memória da sociedade, formando, assim, a identidade social coletiva
e garantindo a legitimidade normativa por meio da institucionalização de um passo
digno de ser relembrado e constantemente repetido.
217
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 141-142.
218
Idem, ibidem, p. 144.
219
ROCHA, Leonel Severo. Tempo e Constituição. Direitos Culturais, Santo Ângelo: URI, n. 1, dez.
2006. p. 190-191.
220
OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 52.
98
Desse modo, a comunicação é indissociável da sociedade. A instituição do
passado pela memória serve como um lastro para as operações sociais, todavia não
determina essas mesmas operações. O passado, não obstante institucionalizado
pela memória, é passível de periódicas avaliações pelo tempo do requestionamento
221
: as comunicações são periodicamente reavaliadas. Assim,
a comunicação influencia o sistema social e o sistema social
influencia a comunicação. Nenhum pode ser analisado
separadamente sem que se distorça a natureza do processo. Um dos
pontos importantes em que o processo da comunicação e o processo
social são interdependentes é no campo da uniformidade de
comportamento. Pessoas que se tenham entre si comunicado
durante certo tempo tendem a manter padrões de conduta similares.
A tendência para a similaridade é um pré-requisito para o
desenvolvimento de um sistema. Como diz o velho adágio, aves da
mesma plumagem formam um bando
222
.
Os padrões estabelecidos pela comunicação, por isso, constituem-se em
permanentes descrições do estado do sistema, apontando para operações
posteriores. Dessa maneira, os meios de comunicação atuam no sentido de
possibilitar constantes indicações à sociedade, contribuindo, assim, para a
autopoiese sistêmica e, conjuntamente, para a construção da realidade social, que
será orientada mediante as observações e descrições fornecidas pelos meios de
comunicação de massa, constituindo, assim, a opinião pública.
221
OST, O Tempo do Direito, Op. cit., p. 323.
222
BERLO, David Kenneth. O Processo da Comunicação: introdução à teoria e à prática. 10. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 156.
99
2. VÁCUO COMUNICATIVO DAS GARANTIAS SANITÁRIAS
A doença é a realidade paradoxal na qual é fundado o pressuposto de
compreensão da saúde. Nesse sentido, adquirem particular relevância os debates
levados adiante no âmbito do sistema social relacionados à saúde. Logo, de acordo
com a relevância atribuída a determinada comunicação, pode-se referir que existem
casos de comunicação/não-comunicação sanitária. Dessa maneira, a comunicação
sanitária é condição de possibilidade para a evolução dos serviços de saúde
pública, bem como para a promoção da constante melhora das condições de vida
dos indivíduos e a prevenção de doenças.
2.1. Conceito de opinião pública
A sociedade opera mediante a contínua e incessante produção de
comunicações. Essas comunicações, a sua vez, potencializadas através dos meios
de massas, acabam por construir realidades sempre diversas, pelo constante
movimento sistêmico-autopoiético do sistema social da sociedade e de seus
subsistemas funcionais. A opinião pública, por seu turno, apresenta-se como
elemento fundamental num ambiente plural e democrático.
Um dos exemplos históricos mais significativos acerca do que foi
compreendido como opinião pública pode ser o fato ocorrido na Inglaterra em 1935,
quando houve a insurgência contra o Parlamento inglês, que pretendia ceder a
Etiópia à Itália. Essa insurgência obrigou o governo a abandonar o projeto,
prevalecendo a voz geral, o que despertou uma consciência geral para o fenômeno
que, historicamente, passaria a ser compreendido como a voz geral da coletividade
223
.
223
SAUVY, Alfred. A Opinião Pública. 2. ed. São Paulo: Difel, 1966. p. 7.
100
Entretanto, a concepção de opinião pública vem desde muito antes. “Desde
1780 os escritores franceses faziam uso extensivo da opinião pública para referir-se
a um fenômeno mais político que social”
224
. Com a criação do tipo móvel de
Guttemberg, no século XV, iniciou-se um processo de divulgação massiva de
informações, viabilizando a democratização da leitura e, conseqüentemente, a
ampliação da possibilidade de manifestação de opiniões. Por isso,
[…] não pode falar-se de um conceito político de “opinião pública”
antes da segunda metade do século XVIII, e de sua imposição em
toda a Europa inclusive depois da Revolução Francesa. Todavia, a
verdadeira inovação se fala no uso da imprensa para colocar em
circulação panfletos políticos, ou melhor na Inglaterra do século
XVIII para a divulgação de petições dirigidas ao Parlamento.
Porque com isto resta claro que não somente se dirigem ao
destinatário e que estava excluída a manutenção de segredo
225
.
[Tradução livre]
A rápida difusão comunicativa promovida pela imprensa aliou os interesses
de comerciantes e classes dirigentes com a crescente expansão da alfabetização,
possibilitando a emergência da uma voz geral, compreendida até então como
vontade política da sociedade
226
. Pergunta-se, entretanto: O que é a opinião
pública? Pode o pensamento coletivo ser expresso como opinião pública? A
compreensão do fenômeno pode ser explicada com base em diferentes óticas.
Sartori traduz a opinião pública como um conjunto de idéias que residem na
coletividade; assim, emerge do público, para o público e envolve a coisa pública.
Nessa linha de pensamento, o conceito de opinião pública é traduzido como a voz
geral orientada à resolução de problemas coletivos, ao interesse geral da
coletividade. Igualmente, a opinião pública não pode ser entendida como uma
224
PRICE, Vincent. Opinión Publica. Barcelona: Paidós, 1994. p. 22.
225
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 403: “[...] no puede hablarse de un concepto
político de “opinión pública” antes de la segunda mitad del siglo XVIII, y de su imposición en toda
Europa incluso después de la Revolución Francesa. Aunque la verdadera innovación se halla en el
uso de le imprenta para poner en circulación panfletos políticos, o bien en la Inglaterra del siglo XVII
para la divulgación de peticiones dirigidas al Parlamento. Porque con eso queda claro que no sólo
se dirigen al destinatario y que estaba excluido el mantenerlas en secreto.”
226
PRICE, Opinión Publica, Op. cit., p. 22.
101
verdade, mas, sim, como opinião, eis que seria um mero opinar subjetivo, carente de
comprovação
227
.
Em Habermas a opinião pública não possui o encargo de vincular-se a
regras políticas ou de dedicar-se a discussões públicas, no entanto mantém estreita
relação com o poder no momento em que toda e qualquer opinião (seja pública ou
não) reveste-se de importância ao exercício do poder estatal. Por isso, quaisquer
manifestações (opiniões, manifestações, condutas) são passíveis de se transformar
em opinião pública desde o momento em que participem de maneira relevante do
exercício das funções estatais de dominação e administração
228
.
Ao abordar a temática da opinião pública no ciberespaço, Lévy
229
aduz
sobre a expansão e fragmentação da esfera pública. Assim, a opinião pública seria
uma forma de qualificação de comunidades lingüisticamente orientadas,
ultrapassando a noção estatal e criando um espaço universal de formação e
227
SARTORI, Giovanni. Homo Videns: televisão e pós-pensamento. Bauru: Edusc, 2001, p. 52: “A
opinião pública se apresenta antes de mais nada como uma situação, uma colocação. Neste sentido
representa o conjunto de opiniões que se encontram na coletividade ou nos agregados públicos. Mas
a noção de opinião pública consiste também e sobretudo nas opiniões generalizadas do público, nas
opiniões endógenas, que são do público no sentido que o público é na verdade o sujeito das
mesmas. Acrescente-se que uma opinião é dita pública não só porque pertence ao público, mas
também porque envolve a res publica, a coisa pública, quer dizer, assuntos que são de natureza
pública: o interesse geral, o bem comum, os problemas coletivos.”
228
HABERMAS, Jürgen. Historia y Crítica de la Opinión Pública: la transformación estructural de la
vida pública. Barcelona: G. Gili, 2002. p. 268: “la opinión pública no está ya vinculada ni a reglas de
discusión pública o a formas de verbalización, ni debe ocuparse de problemas políticos, ni menos aún
dirigirse a instancias políticas. Su relación con la dominación, con el poder, aumenta, por así decirlo, a
espaldas suyas: los deseos <<privados>> de automóviles y refrigeradores caen bajo la categoría de
<<opinión pública>>, exactamente igual que el resto de modos de conductas de grupos cualesquiera
con tal de que sean relevantes para el ejercicio de las funciones estatal- sociales de la dominación y
la administración”.
229
LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. Lisboa: Piaget, 2003. p. 53-54: “A opinião pública moldar-se-á
cada vez mais em listas de discussões, fóruns, salas de conversação, redes de sítios interligados e
outros dispositivos de comunicação próprios para as comunidades virtuais, dos quais alguns media
clássicos serão quando muito, pontos de reunião. Neste enquadramento, o texto de um jornalista
distinguir-se-á cada vez menos da opinião de um especialista de renome ou de um internauta de
escrita fácil num grupo de discussão. A noção de opinião pública (a insistir na manutenção deste
termo) qualificará prioritariamente comunidades lingüísticas e de afins diversos mais do que cidadãos
de um Estado. [...] a esfera pública está em crescimento e em reorganização continuados. Ela
desdobra-se, particulariza-se em pequenas e médias comunidades, cola-se aqui e acolá, floresce
noutro ponto, reconstitui uma singularidade nesta ou naquela área do espaço semântico [...]. Em vez
de apenas se multiplicarem num único nível, numa única escala (no palco clássico dos media), as
suas formas, complexas e dinâmicas reproduzem-se em todas as escalas e passam
imprevisivelmente de um nível para outro no seio da rede viva, móvel e em expansão da inteligência
coletiva da humanidade.”
102
atualização de práticas discursivas, multiplicando-se dinamicamente os espaços
públicos de discussão e, conseqüentemente, complexificando-se ainda mais tais
discursos.
É, entretanto, a conceituação de opinião pública trazida por Luhmann a que
melhor se amolda aos objetivos do presente trabalho. Segundo já visto, a
comunicação produz-se continuamente em uma rede hermético-recursiva, cujos
componentes não são outra coisa senão comunicações. Nesse sentido, a
comunicação é sensível a problemas constantemente gerados e complexificados,
aos quais apresenta rápida reação. Basta referir os exemplos trazidos por
Luhmann,
230
como a consideração dos riscos das decisões, os problemas
ecológicos, as conseqüências das novas tecnologias, etc.
Os meios de comunicação, a sua vez, operam distinções
231
e atuam
seletivamente, indicando quais comunicações são passíveis de utilização, quais
acontecimentos serão levados a público, etc. Os meios de massas proporcionam o
acoplamento entre os diversos sistemas sociais; logo, a linguagem, os meios
eletrônicos, os meios de comunicação simbolicamente generalizados, etc.
promovem continuamente o acoplamento e o desacoplamento dos sistemas e,
assim, (re)produzem constantemente formas
232
.
Explicando melhor, a produção comunicativa no meio social é responsável
pela produção da própria sociedade: tudo é comunicação
233
. As comunicações
proporcionam e são proporcionadas por seus próprios meios autopoieticamente,
gerando, assim, um excedente comunicativo apto à construção paradoxal da
realidade social estabelecida pelo código binário (forma, sim/não).
230
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 869.
231
MARCONDES FILHO, O Escavador de Silêncios, Op. cit., p. 480.
232
Idem, ibidem, p. 476.
233
Ver LUHMANN, Niklas. O Conceito de Sociedade In: NEVES; SAMIOS (Org.). Niklas Luhmann.
Op. cit., p. 80; GARCÍA AMADO, Juan Antonio. La Filosofía del Derecho de Habermas y Luhmann.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1997. p. 109-114.
103
Os próprios meios de comunicação de massa são compreendidos como uma
forma baseada no código informação/não-informação. A opinião pública, nesse
sentido, é o resultado da seletividade operada por estes meios; assim, não são
questionáveis eventuais manipulações ou distorções. A opinião pública, como
produto de constantes atualizações dos meios de comunicação, traduz-se como a
própria realidade social; os meios geram constantemente descrições da realidade
234
. Para Marcondes Filho,
a lógica do pensamento atual não necessita mais da comprovação,
da verificação fiel, da derrubada de argumentos. Este modelo está
superado. A lógica atual é absolutamente outra: todo o instrumental
“científico” é amplamente utilizado para dar status de verdade às
imposições de classe e a opinião pública precisa apenas da
aparência da verdade. O que lhe interessa é participar do jogo, fazer
parte do espetáculo e não questionar os fundamentos últimos das
explicações
235
.
Luhmann menciona três dimensões pelas quais é possível descrever a
seletividade dos meios de comunicação cujo resultado é o que se compreende como
opinião pública: a) na dimensão objetual ocorre uma quantificação de dados, um
mapeamento do que pode ser utilizado como notícia; b) na perspectiva temporal é
analisada a relevância do que se quer informar, a informação deve ser nova, possuir
um valor informativo relevante; c) na dimensão social ocorre certa mobilização
social para gerir os conflitos, há uma constante produção de inquietude, que leva a
promover recorrentes operações sistêmicas para geri-las
236
.
Ilustrativamente, podem-se redesenhar tais dimensões do prisma das
notícias acerca dos casos de HIV no mundo, conforme relatórios da Organização
das Nações Unidas: na dimensão objetual, são quantificados os dados acerca da
ocorrência da doença no mundo; posteriormente, na dimensão temporal é analisado
se houve aumento ou diminuição da propagação da doença; por fim, diante da
dimensão social, a opinião pública faz emergir políticas públicas espelhadas neste
234
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 873.
235
MARCONDES FILHO, Quem Manipula Quem? Op. cit., p. 14.
104
caso nos programas de saúde, com o intuito de controle das inquietações às quais o
sistema social é submetido. Salientem-se, de igual forma, as campanhas levadas
adiante contra eventual epidemia de dengue no Brasil. Os meios de comunicação de
massas fazem emergir um excedente comunicacional que acaba por ser moldado na
opinião pública; dessa maneira, viabilizam-se mobilizações, programas de
prevenção à doença, movimentos educativos, etc, com o objetivo de combate das
causas da dengue, bem como de divulgação de informações para sua prevenção.
Por meio dessas três dimensões é possível a seleção informativa de modo a
constituir a opinião pública. Após o levantamento daquilo que pode ser utilizado
como notícia, passa-se ao estudo da viabilidade do conteúdo a ser informado e,
finalmente, a informação produzida gera inquietudes e perturbações que os sistemas
absorvem e processam de acordo com seus próprios pressupostos sistêmicos.
A opinião pública, em razão disso, basta-se no sentido da seletividade
comunicativa que proporciona. “Os meios de comunicação de massa só podem
influenciar a vida política do país criando opiniões. Mas os poderes tradicionais só
podem controlar e criticar a mídia através da própria mídia”
237
. É precisamente por
meio dessas descrições que o sistema social é orientado, pouco importando a
verdade individual ou o fundamento último de cada comunicação. A opinião pública
opera como forma de autodescrição da sociedade, fornecendo a atualização de
comunicações anteriores e ampliando as possibilidades para novas comunicações.
Para fins de operacionalidade do sistema social da sociedade, a opinião pública é
permanentemente (re)construída autopoieticamente, realizando continuamente
seleções e, assim, atuando como um filtro daquilo que se mostra necessário à
sociedade:
Aquilo que se deriva como resultado da atuação constante dos meios
de massas, a “opinião pública”, se basta a si mesma. Por isso tem
236
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 872-874.
237
ECO, Umberto. Sobre a Imprensa. In: ECO, Umberto (Org.). Cinco Escritos Morais. 7. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2006. p. 56.
105
pouco sentido perguntar-se se (e como) os meios de massas
distorcem a realidade existente. Geram uma descrição da realidade,
uma construção de mundo e esta é a realidade à qual a sociedade se
orienta. As informações se difundem em grande quantidade e se
renovam dia a dia. Desta maneira se produz uma imensa
redundância que torna inútil a busca daquilo que realmente os
indivíduos sabem e pensam. Pode-se supor (porém não mais que
isto) que se está informado. Assim, a opinião pública atua como um
espelho em cuja parte de trás se assenta também um espelho.
Aquele que da informação se vê no meio da informação habitual
a si mesmo e a outras fontes que emitem informação. Aquele que
recebe a informação se vê a si mesmo e a outros receptores de
informação e aprende pouco a pouco a levar em conta de forma
altamente seletiva daquilo que é necessário para atuar no contexto
social respectivo seja a política, a escola, grupos de amigos,
movimentos sociais. O próprio espelho é intransparente
238
.
[Tradução livre]
Essa metáfora do espelho traduz a razão da opinião pública: seu papel de
possibilitar uma (auto)observação da sociedade ou, em outras palavras, uma
observação dos observadores. A opinião pública torna possível aos sistemas a
observação de si e dos demais sistemas sociais, viabilizando, com isso, o seu
próprio desenvolvimento com base no que é observado. Dessa maneira, os sistemas
sociais passam a observar a si e aos demais sistemas conforme descrições
fornecidas pela opinião pública.
Por um lado, isto significa que a política só pode vislumbrar-se no
espelho da opinião pública, fixada que está no contexto
artificialmente escolhido das suas próprias possibilidades de
movimento. Por outro lado, contudo, o espelho também reflecte de
238
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 873: “Aquello que se deriva como resultado
de la efectuación constante de los medios de masas, la “opinión pública”, se basta a sí misma. Por
eso tiene poco sentido preguntarse si (y cómo) los medios de masas distorsionan la realidad
existente. Generan una descripción de la realidad, una construcción del mundo y ésa es la realidad a
la cual la sociedad se orienta. Las informaciones se difunden en gran cantidad y se renuevan día a
día. De esa manera se produce una inmensa redundancia que vuelve inútil la búsqueda de aquello
que realmente los individuos saben y piensan. Se puede suponer (pero no más que eso) que se está
informado. Así, la opinión pública actúa como un espejo en cuya parte de atrás se asienta también un
espejo. Aquel que da información se ve en el medio de la información habitual a sí mismo y a
otras fuentes que emiten información. Aquel que recibe la información se ve a sí mismo y a otros
receptores de información y aprende poco a poco a tomar nota de manera altamente selectiva de
aquello que es necesario para actuar en el contexto social respectivo sea la política, la escuela,
grupos de amigos, movimientos sociales. El espejo mismo es intransparente.”
106
volta para o observador menos e ao mesmo tempo mais que
somente ele próprio. Ele também vê os seus concorrentes, intrigas e
possibilidades que só são atractivas para os outros e não para ele.
Assim, o espelho da opinião pública, tal como o sistema dos preços
de mercado, torna possível uma observação dos observadores.
Como sistema social, o sistema político, portanto, usa a opinião
pública para se tornar capaz de se observar e desenvolver estruturas
de expectativas correspondentes
239
.
A opinião pública, por isso, deve ser compreendida como um medium apto a
possibilitar a observação de segunda ordem no âmbito do sistema social. Ela é
constantemente construída/desconstruída pela seletividade promovida pelos meios
de comunicação, levando os diversos sistemas da sociedade a observarem a si
próprios e aos demais sistemas nos seus respectivos entornos. A função da opinião
pública, assim, em seu sentido político, consiste, precisamente, no sentido da
possibilidade do deslocamento da auto-observação para o nível operativo de
observar o observador, para uma observação de segunda ordem.
A sua função política específica reside, contudo, na transferência da
forma de auto-observação do sistema político, para o modo reflexivo
de observar os observadores. Porque só quando a opinião pública
oferece mais do que meramente um eco centralizado da actividade
política pode o sistema político desenvolver-se que se mantém não
só como uma identidade bem sucedida mas também atinge a
clausura ao nível da observação dos observadores
240
.
Esse nível de observação é fundamental ao desenvolvimento do sistema
político. “Muito mais que outros sistemas de funções, o sistema político depende da
opinião pública. Para a política, a opinião pública é um dos mais importantes
sensores, cuja observação substitui a observação direta do ambiente”.
241
A
observação de segunda ordem promove o enclausuramento do sistema da política
em virtude de sua codificação própria, possibilitando uma clausura operativa no nível
dessa observação.
239
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 86-87.
240
Idem, ibidem, p. 88-89.
241
Idem, ibidem, p. 85.
107
Em outros termos, a opinião pública possibilita que o sistema político
observe seu ambiente e os demais subsistemas e opere conforme o resultado dessa
observação. A opinião pública, portanto pode ser compreendida como um dos meios
aptos à formação de formas no sistema social e, igualmente, como possibilitadora de
acoplamentos entre os diversos sistemas, viabilizando, assim, a observação de
segunda ordem enquanto práxis reflexiva sistêmica.
A sociedade é comunicação. Ao constituir-se comunicacionalmente, o
sistema social torna-se o cenário propício à difusão comunicativa. É de ser lembrado
que os meios de massa fornecem determinada indicação seletiva daquilo que é
relevante e daquilo que não o é para o sistema social, bifurcando, assim, as
possibilidades de descrição mediante a diferença informação/não-informação; resta,
pois, a opinião pública como um produto de meios de comunicação de massas
constantemente empenhados em fornecer descrições da realidade. Para
Campilongo,
a sociedade pode ser examinada como uma rede de comunicações.
O que diferencia o sistema social dos demais sistemas é exatamente
isso. A operação típica da sociedade é a comunicação, entendida
como ato de transmitir, receber e compreender a informação. A
própria evolução sociocultural é exemplo da contínua transformação
e ampliação das possibilidades de comunicação
242
.
Importa salientar, num primeiro momento, o rompimento para com a visão
cartesiano-mecanicista até então dominante no cenário científico. A fragmentação e
redução às partes como forma de explicação do todo devem, necessariamente,
ceder espaço à consideração de um todo interligado e interdependente. O
pensamento sistêmico, assim, passa a operar com o conceito de redes, como um
todo interligado e harmonicamente operativo.
108
Na visão mecanicista, o mundo é uma coleção de objetos. Estes,
naturalmente, interagem uns com os outros, e, portanto, há relações
entre eles. Mas as relações são secundárias [...]. Na visão sistêmica,
compreendemos que os próprios objetos são redes de relações,
embutidas em redes maiores. Para o pensador sistêmico, as
relações são fundamentais. As fronteiras dos padrões discerníveis
("objetos") são secundárias [...]
243
.
Essa pequena noção de interligação e interdependência sistêmica é de
extrema importância para a compreensão da formação e disseminação da opinião
pública no meio social. As redes geradoras de opinião pública operam de forma
integrada, restando sua causa e efeito como resultado e requisito de operações
comunicativas anteriores, bem como sua corporificação no meio social como
condição de possibilidade a operações posteriores, conforme referido anteriormente.
Dessa maneira, a comunicação é constantemente produzida com base em outras
comunicações.
Toda comunicação é dependente de comunicações anteriores. De forma a
ilustrar tal assertiva, basta se pensar no fato ocorrido na África relacionado aos
medicamentos destinados aos portadores de HIV: a decisão a favor da quebra de
patentes de medicamentos
244
teve repercussão mundial, fato que acabou por gerar
um excedente comunicacional no âmbito do sistema social
245
. Os meios de
comunicação de massas, diferenciados quanto à codificação informação/não-
informação, potencializaram a comunicação referente ao tema, acabando por
influenciar a construção da opinião pública no sentido favorável à decisão que
autorizou a quebra de patentes. Ilustrativamente, a opinião pública gerada por essa
242
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. São Paulo: Max Limonad,
2000, p. 162.
243
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 4. ed. São
Paulo: Cultrix, 1999. p. 47.
244
Sobre as violações de garantias fundamentais por grandes empresas farmacêuticas
transnacionais ver TEUBNER, Gunther. Globalized Society Fragmented Justice: Human Rights
Violations by “Private” Transnational Actors. In: ESCAMILLA, Manuel; SAAVENDRA, Modesto (Ed):
Law and Justice in a global society. Granada: International association for philosophy of law end
social philosophy, 2005.
245
Saliente-se a compreensão de sociedade como um sistema global de comunicações, razão pela
qual, em tempos de globalização, não é possível falar em unidades geograficamente delimitadas
como fator de explicação de sociedades. Passa-se a falar da sociedade no lugar das sociedades.
LUHMANN; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 69.
109
decisão trouxe ressonâncias
246
na sociedade, viabilizando construções peculiares a
cada sistema social segundo sua autopoiese própria.
Os meios de comunicação de massas, por isso, atuam imediatamente como
viabilizadores de descrições da realidade social. Dessa maneira, sobressai-se
cristalino o poder operado pelos media, no sentido de construção/desconstrução de
comunicações e, conseqüentemente, da realidade social.
O processo da comunicação não está solto, mas, inter-relacionado com
outros meios, Para Nafarrate, “os meios são precisamente isso: meios. Todo o peso
da reflexão moderna sobre os meios de massa está centrado em uma crítica ao
poder incontível e desumanizado ao homem”
247
. A realidade proposta aos meios de
massas perpassa por uma crítica ao poder humano; assim, a
comunicação em sua forma constitutiva primária definida como
código, como sistemas de diferenças ou como se queira não
sente, não possui consciência, não valora, não discrimina; não é nem
boa nem má para o ser humano, é simplesmente um fato cego.
248
Na teoria luhmanniana, a sociedade é pura comunicação e toda a
comunicação é sociedade, estando ambas completamente autoligadas. A
comunicação não pode ser afetada por nada que exista fora dela, e a sociedade é o
universo de todas as comunicações possíveis. Por isso, a comunicação é
246
LUHMANN, Ecological communication, p. 15-21.
247
NAFARRATE, Javier Torres. In Memoriam. In: LUHMANN, Niklas. La Realidad dos Medios de
Masas. México: Anthropos Editorial. 2000. p. X: “Los medíos son precisamente eso: medios. Todo el
peso de la reflexión moderna sobre los mass media está centrado en una crítica al poder incontenible
y deshumanizado al hombre
248
Idem, ibidem, p. XII: “comunicación en su forma constitutiva primaria definida como código, como
sistemas de diferencias o como se quieira no siente, no posee conciencia, no valora, no
discrimina; no es ni buena ni mala para el ser humano, es simplesmente um suceso ciego”
110
continuamente gerada numa cadeia hermético-recursiva: comunicações produzem
comunicações, cuja existência somente é possível dentro dessa mesma rede.
249
A partir destas disposições gerais da teoria sistêmica e da teoria da
sociedade, há que dar-se o passo seguinte para se chegar à teoria
dos meios de comunicação para as massas. A função dos mass
media consiste, sobretudo, em dirigir a autoobservação do sistema da
sociedade com isto não se está indicando nenhum objeto específico,
mas a maneira na qual o mundo é cortado mediante a diferença
sistema (é dizer sociedade/ambiente). Se trata de uma observação
universal, e não uma observação específica de um objeto.
250
[Tradução livre]
Esse avanço da comunicação para os meios de massa não significa a
observação de um só objeto, mas, sim, a demonstração das diferenças existentes no
mundo, garantindo “a todos os sistemas funcionais uma aceitação social ampla, e
aos indivíduos a garantia de um presente conhecido, do qual possam partir para
selecionar um passado específico ou expectativas futuras referidas aos sistemas”
251
. Percebe-se na relação dos meios de massa com o tempo que a “comunicação
resolve em primeiro lugar um problema de tempo, e isto é válido para alguns meios
de massa que operam sob pressão de aceleração. O problema é como se chega de
uma comunicação a outra”
252
. A problemática proposta destaca o questionamento
sobre como é feito o link das comunicações. Luhmann responde dizendo:
249
LUHMANN, Niklas. The Autopoiesis of Social Systems. In: GEYER, Felix.; ZOUWEN, Johannes
van der (Ed.). Sociocybernetic paradoxes: observation, control and evolution of self-steering systems.
London: Sage, 1986. p. 172-173.
250
LUHMANN, Niklas. La Realidad dos Medios de Masas. México: Anthropos Editorial. 2000. p. 39: “A
partir de estas disposiciones generales de la Teoría de sistemas y de la Teoría de la sociedad, hay
que dar el siguiente paso para arribar a la Teoría de los medios de comunicación para las massas. La
función de los mass media consiste, por sobre todo, en dirigir la autoobservación del sistema de la
sociedad con esto no se está indicando ningún objeto específico, sino la manera en la que el mundo
es cortado mediante la diferencia: sistema (es decir: sociedad/entorno). Se trata de una observación
universal, y no una observación específica de un objeto.
251
Idem, ibidem, p. 142: “a todos los sistemas funcionales uma aceptación social amplia, y a los
indivíduos les garantizan un presente conocido, del cual puedan partir para seleccionar un pasado
específico o expectativas futuras referidas a los sistemas”.
111
Tudo isso seria impossível se dependesse de um consenso prévio,
assegurado, e que fosse operativo. Ao contrário: cada comunicação
explícita situa a pergunta por sua recepção ou rechaço; por
conseguinte coloca o consenso em jogo, com pleno conhecimento de
que se pode seguir comunicando através do dissenso
253
. [Tradução
livre]
Cada comunicação trabalha com um código de recepção ou recusa,
colocando o consenso em jogo, para que possa ser aceita ou não através da
contradição. “Ao parecer, esta aplicação social dos meios de massa serve para
entrelaçar permanentemente o passado com o futuro no marco das altas pretensões
de redundância e variedade que exige a sociedade moderna, e que devem registrar
de modo temporal”
254
. Observa-se que na sociedade moderna se está lidando com
relações de passado/futuro distintas de uma dimensão temporal, que é permitida
pela diferenciação e pelas clausuras operativas do sistema, as quais levam ao seu
fechamento e acoplamento. Assim, a função dos meios de massa é realizar na
sociedade uma estrutura de bandas, ou seja, de reprodução e informação:
[…] estrutura dual entre prosseguimento da autopoiese viável e uma
disposição aberta aos estímulos por parte da cognição. A preferência
dos mass media, pelo valor de surpresa da informação, que ao ser
publicada perde seu valor de informação, torna claro que a função dos
meios de massas consiste na permanente produção e processamento
dos estímulos e não da difusão do conhecimento, nem sua
socialização, nem a educação orientada a produzir conformidade com
as normas
255
. [Tradução livre]
252
LUHMANN, La Realidad dos Medios de Masas, Op. cit., p. 143: “comunicación resuelve em primer
lugar um problema de tiempo, y esto és válido para unos mass media que operan bajo presión de
aceleramiento. El problema es cómo se llega de una comunicación a la otra”
253
Idem, ibidem, p. 144: “Todo isto sería imposible si dependiera de um consenso prévio, asegurado,
y que fuera operativo. Por el contrario: cada comunicación explícita situa la pregunta por su recepción
o rechazo; por conseguinte pone el consenso en juego, a sabiendas de que se puede seguir
comunicando a través del disenso”.
254
Idem, ibidem, p. 146: “Al parecer, esta aplicación social de los mass media sirve para entrelazar
permanentemente el passado com el futuro en el marco de las altas pretenciones de redundância y
variedad que exige la sociedad moderna, y que se deben registrar en modo temporal”.
255
LUHMANN, La Realidad dos Medios de Masas, Op. cit., p.140: “[…] esctrutura dual entre
prosecución de la autopoiesis viable y uma disposición abierta a los estímulos por parte de la
cognición. La preferência de los mass media, por el valor de sorpresa de la información, que al ser
publicada pierde su valor de información, hace claro que la función de los medios de masas consiste
en la permanente produción y procesamiento de las estimulaciones y no la difusión del
conocimiento, ni su socialización, ni la educación orientada a producir conformidad con las normas”
112
Essa estrutura de bandas propostas por Luhmann pode ser entendida como
um sistema dual (am fm), no qual se têm duas bandas, às quais se permite que
sejam conectadas de acordo com sua freqüência. Essa estrutura produz a
reprodução permanentemente, por meio do processamento de estímulos, não de
sua socialização e educação para estabelecer uma resignação perante as normas.
O fenômeno de auto-reprodução só é possível, para Luhmann, em razão de
que “a comunicação somente é levada a efeito ali onde a auto-observação, no ato
de entender, distingue entre informação e ato de participar da comunicação. Sem
esta distinção, a comunicação seria derrubada e os participantes se veriam
constrangidos a perceber apenas comportamentos”
256
. Essa relação “entre ato de
participar da comunicação e informação se ajusta exatamente à exigência de que o
prosseguimento da comunicação não reste dependente de que a informação seja
total e adequada”
257
. Assim, há a exploração do mundo circundante pela
comunicação, estabelecendo um patamar de (não)aceitabilidade do entorno.
Por isso, “os meios de massas garantem a todos os sistemas funcionais uma
aceitação social ampla, e aos indivíduos é garantido um presente conhecido, do qual
possam partir para selecionar um passado específico ou expectativas futuras
referidas aos sistemas”
258
. Essa relação traz a possibilidade de serem estabelecidas
expectativas em relação ao futuro, refutadas no próprio sistema pelos meios de
massa, desde que haja uma aceitação social, sempre na relação passado/futuro, no
sentido de reduzir sua complexidade.
256
Idem, ibidem, p. 138: “la comunicación sólo se lleva a efecto allí donde la autoobservación, en el
acto de entender, distingue entre información y acto de participar la comunicación. Sin esta distinción,
la comunicación se derrumbaría y los participantes se verían constreñidos a percibir tan sólo
comportamientos”.
257
Idem, ibidem, p.138: “entre acto de participar la comunicación e información se ajusta exactamente
a la exigencia de que la prosecución de la comunicación no se hace dependiente de que la
información sea total y adecuada”.
258
LUHMANN, La Realidad dos Medios de Masas, p.142: “Los medios de masas garantizan a todos
los sistemas funcionales una aceptación social amplia, y a los individuos les garantizan un presente
conocido, del cual puedan partir para seleccionar un pasado específico o expectativas futuras
referidas a los sistemas”.
113
Pode-se entender que os meios de massa possuem um papel fundamental
de conexão entre o passado e futuro e possibilitam a comunicação entre o sistema e
entorno, gerando, assim, informação e, como conseqüência, opinião pública. Isso
acaba por gerar um excedente comunicacional pelo qual a sociedade se obriga à
realização de (auto)observações e (auto)descrições. Em suma,
a sociedade atual conhece a si própria através dos meios de
comunicação de massa. Sua representação e sua operação dão-se
sempre no presente. Os meios de comunicação tornam possível
essa condição operativa da sociedade. Também tornam visível a
simultaneidade de todas as operações que se realizam nos sistemas
sociais da sociedade
259
.
A opinião pública, nesse sentido, é constantemente gerada e reformulada no
ritmo que os meios de massas proporcionam. A comunicação é propagada com uma
velocidade avassaladora, restando à opinião pública um contínuo movimento
autopoiético. Por isso, pode-se compreender que a própria sociedade, com
rede/sistema autopoiético comunicativo, alimenta os meios de comunicação de
massas para a constante construção da realidade social, sendo esta realidade
refletida na e pela opinião pública.
Ao possibilitar observações de segunda ordem no âmbito da sociedade, a
opinião pública concorre para a mudança social. Em virtude da constante
(re)construção promovida pela operação de observar o observador, sobressai
cristalino o posicionamento da opinião pública no sentido de pressionar o Estado. A
construção da realidade pelos meios de massas opera uma seletividade
comunicativa na qual subsistem apenas aquelas comunicações de relevância ao
sistema, causando ressonâncias e perturbações que a sociedade deve abarcar.
Deve ser novamente referido o fato referente ao impeachment do ex-
presidente da República, Fernando Collor de Mello: a opinião pública, construída
114
pelos meios de comunicação de massas, voltou-se espetacularmente contra a
permanência de Fernando Collor na presidência. Ainda que as verdadeiras razões
para o impedimento do exercício do mandato presidencial não fossem
absolutamente cristalinas, a mobilização popular como expressão da opinião pública,
alicerçada pelos meios de massas, tornou efetivo o impedimento.
Atente-se para o fato de que as grandes mobilizações promovidas nessa
época refletiam exatamente a expressão da opinião pública enquanto doxa
260
construída pelos meios de comunicação. Desse episódio se sobressai o poder da
verdade operada pela opinião pública: o próprio sistema social cria os eventos de
cuja resolução, posteriormente, ocupa-se. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em
que a sociedade é capaz de controlar suas indeterminações, ela as produz
incessantemente
261
. Nesse sentido, pode-se compreender que a própria sociedade
constitui e (re)produz constantemente comunicações, indeterminações e paradoxos
dos quais os sistemas devem-se ocupar.
Saliente-se que a comunicação e a opinião pública, necessariamente, são
fenômenos cujo poder é dependente de redes de conexão. Nesse passo, as
relações são cada vez mais o elo necessário para a manutenção das possibilidades
de geração de comunicações no sistema social. Por isso, a interligação comunicativa
e a necessidade de estabelecimento de relações são elementos fundamentais para
o desenvolvimento social. Portanto:
Quanto mais um regime político, uma cultura, uma forma econômica
ou um estilo de organização tem afinidade com a densificação das
interconexões tanto mais sobreviverá e se difundirá na envolvente
contemporânea. A melhor maneira de se desenvolver uma
colectividade já não é erguer, manter ou estender fronteiras, mas
259
DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e Risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: SAFE,
1998. p. 38-39.
260
SARTORI, Homo Videns, Op. cit., p.53: “[...] vale ressaltar que é correto falar-se em opinião. De
fato, opinião significa doxa, e não epistème, não é saber e ciência ao esmo tempo; é simplesmente
um saber, um opinar subjetivo para o qual não se exige comprovação.”
261
ROCHA, Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo Sistêmico. Op. cit., p. 36.
115
alimentar a abundância e melhorar a qualidade das relações no seu
próprio seio com os outros colectivos
262
.
Pode-se, assim, dizer que todo e qualquer acontecimento comunicativo
ocorre dentro da sociedade: apenas o sistema social possui capacidade de distinção
das diversas comunicações mediante codificações próprias (sim/não). A
diferenciação sistema/entorno mostra-se de extrema importância para a
compreensão da opinião pública, visto que toda comunicação, verse sobre o
sistema, verse sobre o entorno, apenas é passível de existência no âmbito interno
do sistema.
Os meios de comunicação operam mediante a distinção informação/não-
informação. O direito opera com conteúdos bifurcados em direito/não direito; a
política, mediante a forma governo/oposição, etc., ao passo que à comunicação
interessam apenas aqueles enunciados com conteúdo informativo, pouco
importando a legalidade, o valor econômico, a valoração política, o conteúdo
educativo, etc. A informação é o elemento constituinte dos meios de comunicação,
razão pela qual é projetada a realidade social mediante a possibilidade de
observações de segunda ordem a serem operadas via opinião pública.
Precisamente por isso, depreende-se que a sociedade, através dos meios
de comunicação, é uma imensa rede geradora de opinião pública: a comunicação
constantemente selecionada é, repita-se, causa e efeito da constituição da realidade
social. Nesse sentido, todos os meios aptos à propagação da comunicação, como os
meios de massas, os meios de comunicação simbolicamente generalizados
263
, etc.,
262
LÉVY, Pierre. Filosofia World. O mercado, o ciberespaço e a consciência. Lisboa: Piaget, 2001. p.
28.
263
LUHMANN, Niklas. Poder. Brasília: Unb, 1985. p. 8: “O pressuposto primeiro e mais importante é
que os processos de comunicação dirigidos pelos meios inter-relacionam os parceiros, que efetuam
ambos operações seletivas próprias, tendo conhecimento simultâneo um do outro. Nós falaremos em
Alter e em Ego. Todos os meios de comunicação pressupõem situações sociais com possibilidade de
escolha para ambas as pares, situações, pois, com seletividade duplamente contingente. Á
justamente isto que lhes empresta a função de dirigir os processos de transmissão de seleções, em
sua seletividade, do Alter para o Ego. Neste sentido, o problema inicial de todos os meios de
comunicação generalizados simbolicamente é idêntico; para o poder vale, por conseguinte, tanto
quanto para o amor ou para a verdade. Em todo caso, a comunicação que tem influência cada vez
maior se relaciona sempre a um parceiro que deve ser dirigido em suas seleções.”
116
operam distinções diante da rede comunicativa da sociedade, num constante
empenho em observar, descrever, construir e desconstruir a realidade social.
2.2. Evolução da opinião pública
A idéia de desenvolver o conceito de público se dá por uma relação do
produto da diferença de público, dos meios de comunicação, que deve estar imbuída
de uma distinção a fazer dentro de uma relação envolvendo, inicialmente, a idéia de
“esfera pública”. Esses conceitos são definidos por Luhmann:
[...] conceito de “esfera pública”, conceito esse que de distingue de
forma suficientemente clara do sistema dos meios de comunicação
[...] Parece estar embutido no conceito de “público” sempre um
momento de imprevisibilidade. No discurso jurídico clássico, ”público”
é aquilo que é acessível a todos, quer dizer, aquilo que é definido
pela exclusão do controle sobre seu acesso. Segundo essa
interpretação, os produtos impressos e as emissões dos meios de
comunicação são públicos, pois não há nenhum controle sobre quem
deles toma conhecimento. Mas isso, visto pela perspectiva do
conceito, é apenas um setor parcial daquilo que é público
264
.
A relação que envolve a idéia de uma esfera pública é dada pela condição do
que é público. Para a comunicação essa noção significa disponibilizar um acesso a
todos, porém como será possível levar a comunicação para aqueles que não estão
presentes ao evento? Dessa forma, a comunicação pluraliza as complexidades por
meio do código binário, o qual possibilita aceitá-la ou recusá-la. Assim, tem-se uma
nova realidade colocada pelo mundo virtual. Lévy afirma:
A emergência das comunidades virtuais gerais ou especializadas,
comerciais ou militantes, ocasionais ou duráveis constitui um dos
maiores acontecimentos sociológicos dos cinco último anos. Essas
comunidades virtuais podem duplicar comunidades já existentes, tais
como empresas, cidades ou associações, mas podem também se
264
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, p.168.
117
constituir de maneira original no ciberespaço, a partir de uma
vontade de comunicação em torno de “pontos comuns”, quaisquer
que sejam, entre internautas. O tamanho e a densidade de
freqüência das comunidades virtuais são, hoje em dia, questões
comerciais, culturais e políticas maiores, na medida em que
representam, ao mesmo tempo, um mercado, uma fração da opinião
no novo espaço público e uma potência de inteligência coletiva
(coordenação, cooperação, trocas de saberes, ajuda mútua etc.)
265
.
O paradoxo estabelecido pelas novas possibilidades oferecidas pelos meios
da comunicação gera um processo autopoiético de reprodução da informação por
meio das comunidades virtuais, sobre o qual não é possível ter limite ou controle.
Isso traz conseqüências antes inimagináveis no universo de espaço público e
permite uma nova realidade, caracterizada por diversificadas possibilidades de
comunicação. A partir dessa sistemática há uma nova situação de espaço público,
no qual
[...] mídias não se ligam mais a um público localizado, mas a uma
comunidade virtual distribuída por toda parte num mundo de
ouvintes, espectadores, leitores, contribuintes. Assim, as
singularidades locais universalizam-se e todos os pontos de vista
estão virtualmente presentes em cada ponto da rede. O novo espaço
público constrói um território de natureza semântica. A “posição”
neste território virtual vai se tornar determinante, relativizando
progressivamente o papel da situação ou da providência geográfica.
As distâncias e proximidades semânticas marcam-se através de
senhas, de laços hipertextuais, de conexões entre comunidades
virtuais, de troca de informações, de densidades de inteligência
coletiva
266
.
O papel estabelecido para as mídias não é mais restrito a um determinado
público local. Com o advento das redes, a informação navega de modo amplo,
possibilitando sua universalização pelo acesso disponibilizado aos internautas. Esse
265
LÉVY, Pierre. Pela Ciberdemocracia. In: MORAIS, Dênis. (Org.) Por uma outra comunicação. Rio
de Janeiro: Recorde, 2003. p. 372-373.
266
Idem, ibidem, p. 373.
118
fato se consegue visualizar, por exemplo, nos avanços da aids
267
no mundo, o qual
deixou de ser um problema local para tornar-se um problema universalizado. Com
isso, institui-se uma nova jurisdição para os embates na esfera virtual, não apenas a
limitando, mas igualmente ampliando-a e complexificando suas possibilidades. Para
Luhmann,
essa limitação pode ser corrigida se se fizer a virada da ação para a
observação. Pode-se então definir a esfera pública, [...] como o
ambiente social interno dos subsistemas sociais isto é, de todas as
suas interações e de suas organizações -, mas também dos
subsistemas sociais de função e dos movimentos sociais. A
vantagem dessa definição é de se poder transferi-la aos sistemas
sociais de função. O “mercado” seria assim o ambiente interno do
sistema econômico das organizações e das interações econômicas;
a “opinião pública”, o ambiente interno do sistema político das
organizações e das interações políticas
268
.
É por meio da mudança da ação para a observação que se estabelece uma
definição da esfera pública, analisando-a como ambiente interno dos sistemas em
decorrência dos movimentos sociais; assim, a observação
269
estabelece a função
para o sistema, como no descrito acima, de que o mercado seria o ambiente interno
do sistema econômico e a opinião pública, o sistema interno do sistema político, o
que é possibilitado pelo processo de diferenciação, ou seja, a observação da
observação (observação de segunda ordem). Nesse sentido, pode-se observar a
importância da observação da observação, com a qual McLuhann estabelece uma
analogia entre o público e a imprensa que:
267
Conforme dados trazidos pela Uniaids, evidencia-se que a que a prevalência mundial do HIV foi
estabilizada, bem como houve um decréscimo no número de novas infecções, isso se deve, em parte,
ao impacto dos programas anti HIV. Todavia, em 2007 era estimado que 33,2 milhões de pessoas
conviviam com o vírus HIV, outros 2,5 milhões de pessoas foram infectadas e 2,1 milhões de pessoas
faleceram em decorrência da AIDS. Disponível em <http: http://www.unaids.org/en>. Acesso em: 20
de dezembro de 2007.
268
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p.168-169.
269
LUHMANN.; DE GIORGI, Teoría de la Sociedad, Op. cit., p. 171-172: “Una de las más importantes
descomposiciones de paradojas se encuentra en la diferenciación entre observación de primer orden
y observación de segundo orden. Uno de estos caracteres más notables de los medios de
comunicación simbólicamente generalizados es el hecho de que hacen posible una diferenciación así.
Un investigador observa o que otros observadores observan. Quien ama tiene como interés primario
establecer si el amado o la amada ama (todavía). Los precios ofrecen la posibilidad de observación
cómo los demás observan el mercado y si compran o no compran con un determinado precio. El arte
119
Enquanto imagem coletiva e comunal, a imprensa assume uma
postura natural de oposição a toda manipulação privada. Qualquer
indivíduo que começa a se comportar como se fosse "alguém”
público acaba parando nas páginas de um jornal. Qualquer indivíduo
que manipula o público para o seu bem pessoal também acabará
sentindo o poder de purificação pela publicidade. O manto da
invisibilidade, portanto, parece calhar melhor naqueles que são
proprietários de jornais ou que os utilizam extensivamente para fins
comerciais. Isto não ajudaria a definir como essencialmente corrupta
a estranha obsessão do homem livresco com os barões da
imprensa? O ponto de vista puramente pessoal e fragmentário
assumido pelo escritor e pelo leitor de livros cria pontos naturais de
hostilidade em relação à grande força comunal da imprensa. Como
formas, ou meios, o livro e o jornal parecem ser verdadeiros
exemplos de completa incompatibilidade. Os donos dos meios
sempre se empenham em dar ao público o que o público deseja,
porque percebem que a sua força está no meio e não na mensagem
ou na linha do jornal
270
.
Conforme o posicionamento do autor, os meios é que possibilitam aos
detentores do poder uma autonomia ao tornar os indivíduos públicos ou não. Essa
capacidade é própria dos meios de comunicação, que transformam os indivíduos em
público. E é essa influência que possibilita a manipulação da informação, dando
ciência ao público daquilo que a imprensa quer, visto que é voraz o poder da
manipulação da mídia. Portanto, ela leva ao público aquilo que interessa aos
detentores do poder.
Se prestarmos a devida atenção ao fato de que a imprensa e um
mosaico, uma espécie de organização participante e um mundo do
tipo “faça você mesmo”, podemos ver por que ela é tão necessária a
um governo democrático. [...] surpreende-se com o fato de que a
imprensa consiga relacionar consigo mesma e com a nação,
departamentos e setores governamentais extremamente
fragmentados. Enfatiza o paradoxo de a imprensa se dedicar ao
processo de lavagem dos acontecimentos, dando-os à publicidade,
ao mesmo tempo em que muitos acontecimentos devem ser
mantidos em segredo, no mundo eletrônico da trama inconsútil dos
eventos. O alto segredo é traduzido em termos de participação e
moderno puede comprenderse sólo si se reconoce de qué manera los modernos artistas emplean sus
medios, es decir, de qué manera observan lo que hacen.”
270
MCLUHAN, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Op. cit., p. 244-245.
120
responsabilidade públicas por meio da mágica flexibilidade de deixar
“transpirar” as notícias controladamente
271
.
Caso se considere a imprensa como parte de um mosaico de um governo
democrático, pode-se observar como ela estabelece a diferenciação da notícia
(informação) que será levada ao público, estabelecendo em muitas vezes uma
espécie de controle que num Estado Democrático de Direito não deveria ocorrer
pois, a informação não deveria ser manipulada ao bel prazer dos detentores do
poder. Para Wolton com esse procedimento há três riscos:
Ela tem aí um papel evidente, ao mesmo tempo de estabelecimento
de relações, de inteligibilidade, de coabitação e de confrontação.
Três riscos penduram entretanto: o muro da mídia, ou seja, o recuo
do mundo comunicacional fechando-se sobre si mesmo entre circo
mediático e elites; a tirania das sondagens que dão a ilusão de um
conhecimento representativo da sociedade e de suas contradições; e
finalmente uma comunicação política extremamente estreita, fechada
nas relações políticos-sondagens-mídia, excluindo os outros atores e
as informações que não aquelas veiculadas pela imprensa
272
.
Os riscos que permeiam na comunicação são muros da mídia formada pelas
elites, com a tirania das especulações da sociedade e suas contradições
estabelecidas pela comunicação política das relações política-sondagens-mídia,
acarretando a supressão dos atores e informações que não são levadas a público.
Possibilita-se dessa forma, que a comunicação política constitua um liame entre as
contradições da política e a opinião pública para os movimentos sociais, “tanto mais
pelo fato que o receptor hoje em dia parece, para um observador menos atento, com
o militante cidadão de amanhã. É, pois, do interesse comum que ele veja suas
preocupações contempladas na comunicação política.
273
Assim, sendo tem-se a
possibilidade de estabelecer uma nova posição de construção da realidade social
com pessoas mais conscientes e preparadas para enfrentar a voracidade como a
271
MCLUHAN, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Op. cit., p. 241.
272
WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006. p. 118-119.
273
Idem, ibidem, p. 119.
121
política se coloca diante da sociedade, trazendo como conseqüências
transformações na comunidade, que atuam em três esferas, propostas por Wolton:
O funcionamento do espaço público mediatizado na sociedade
aberta não é paradoxalmente mais fácil do que ontem. Ele deve
integrar três mudanças importantes: a ampliação da quantidade de
categorias dos atores políticos associações, movimentos culturais,
empresariado, universitários etc; a mutação da mídia, presa no duplo
mercado de estrelas insolentes e free lancers sem emprego fixo; e o
surgimento de sondagens que simplificam de forma caricaturesca a
visão que dão da sociedade
274
.
Verifica-se, assim, uma nova perspectiva para o estabelecimento do espaço
público, formado por uma transformação em relação aos atores políticos diante da
multiplicidade de representação social, ocasionando uma alternância da mídia. Esta
traz novas informações por meio de free lancers, que podem se tornar estrelas
insolentes diante dos furos de notícias, ocasionando, assim, novas condições de
possibilidades, ultrapassando as fronteiras de uma comunicação focada somente
nos atores dos meios de comunicação. Desse modo, tem-se uma influência de
segunda ordem, ou seja, a observação da observação vista do exterior, que pode
ocasionar uma irritação interna no sistema. Sobre isso Luhmann afirma:
Continua valendo o fato de as fronteiras do sistema não poderem ser
ultrapassadas operacionalmente. Mas vale também o fato de que
cada sistema observante tem condições de refletir esse mesmo fato.
Ele vê, desde o lado interno de suas fronteiras, que deve haver um
lado externo, pois, não fosse assim, a fronteira não seria fronteira.
Quando ocorrem repetidamente experiências específicas de irritação
internamente ao sistema, este pode imaginar outros sistemas no
ambiente externo que seriam responsáveis por isso. Opostamente,
quando o sistema considera o fato de ser observado do exterior, sem
que fique claro como o fazem e por meio de quem, ele se vê a si
mesmo como observável no médium da esfera pública. Isso pode
mas não precisa levar a que as opiniões sejam dirigidas a se
orientarem de forma generalizável (e, assim, publicamente
defensável). As estratégias que funcionalmente equivalem a isso são
as do segredo e da hipocrisia
275
.
274
WOLTON, É Preciso Salvar a Comunicação, Op. cit., p. 121.
275
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p.169.
122
Visualiza-se que, por meio das observações geradas pelas visualizações do
ambiente externo ao sistema, possibilita-se o mistério da hipocrisia na esfera
pública, conduzindo-a que as opiniões públicas possam ser defensáveis, causando,
assim, uma imprecisão sobre a observação entre as opiniões e a esfera pública. Isso
se vislumbra como extremamente importante para a consolidação do Estado
Democrático de Direito, no qual a liberdade de expressão deve possibilitar ao
cidadão uma forma de participação e inclusão social (re)conquistada pelo Brasil na
Constituição Federal de 1988
276
. Desse modo, a esfera pública é o ambiente em
que a sociedade tem a condição de possibilidade para
o acesso público à comunicação no aparelho político de dominação
amplia-se assim com a ajuda da imprensa e só depois disso é que se
chega à idéia de uma opinião pública como última instância do
julgamento das questões políticas. Apesar ou pelo fato de a esfera
pública não poder decidir politicamente e estar, de certa forma, fora
dos limites do sistema da política, ela é explorada politicamente na
política e será copiada no interior do sistema
277
.
Observa-se que com o desenvolvimento da imprensa, ou seja, o surgimento
dos meios de comunicação, avançou-se para o estabelecimento de uma
superioridade política que pode ser condicionada pela instituição de uma supremacia
política, a qual se vale dos meios para impor suas posições. Todavia, geram também
opinião pública, que seria a última instância das questões políticas, sendo a tomada
de decisão reproduzida no interior do sistema. Constata-se, assim, a importância da
imprensa diante do jogo político, observando-se o que ocorre no Brasil, como, por
exemplo, a discussão para a aprovação da Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira (CPMF).
276
BRASIL, Constituição Federal de 1988. Art. 5º, Inc IV é livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato; Inc. IX é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independente de censura ou licença;
277
LUHMANN, A Realidade dos Meios de Comunicação, Op. cit., p. 171.
123
No caso o governo afirmava que, sem os recursos provenientes dessa
contribuição, faltariam recursos para a saúde. Nota-se que o governo vale-se dos
meios de comunicação para que as notícias cheguem ao público, e este, pela
opinião pública, pressione os atores políticos para que medidas de interesse estatal
sejam tomadas. Contudo, sabe-se que o problema não está centrado na
prorrogação dessa contribuição, a qual se mostrou finalmente, provisória, mas é um
problema de aplicação de recursos para o fim ao qual foram instituídos. A resolução
de tal problema é, aparentemente, o interesse do governo no atual momento, com a
proposição da Contribuição Social para a Saúde (CSS), a operar nas mesmas
formas que a CPMF, entretanto com alíquota de 0,1% (zero vírgula um por cento) a
ser destinada integralmente para a saúde.
O público, assim, atua num ambiente democrático como o produtor e
destinatário das comunicações. Por isso, é importante a formação da opinião
pública, a fim de serem possibilitadas constantes descrições da sociedade em um
dado momento. A realidade social cotidiana é constantemente (re)construída, pois
vive-se num momento da história em que o tempo escapa com uma velocidade
incrível e o espaço parece desdobrar-se num só locus global. A pluralidade
discursiva, levada adiante numa pós-modernidade cada vez mais fragmentada e
distante de metanarrativas
278
, acabou por problematizar o Estado de forma até
então inimaginada. O que antes era simples tornou-se complexo; o subjetivismo
cedeu lugar ao descentramento do sujeito; passou-se à relativização do universal e
abandonou-se a noção de segurança para se adentrar nos debates acerca dos
riscos
279
.
278
, Conforme Lyotard, entende-se por pós-modernidade a incredulidade em relação aos metarrelatos.
Os grandes discursos enquanto meios aptos à explicação do homem e da natureza cedem lugar à
uma pluralidade de vivências. Igualmente em VATTIMO, Gianni. Posmodernidad: ¿una sociedad
transparente? In: VATTIMO, Gianni et. al. En torno a la posmodernidad. Barcelona: Anthropos
Editorial, 2003. p. 10, tem-se a compreensão do rompimento de uma história centralizadora, cujos
acontecimentos se davam sob sua onipresença. Passa-se de uma história unitária a uma pluralidade
de vivências, de histórias concorrentes. LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna. 6. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. XV
279
ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização: lições de filosofia do direito e
do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 202-203.
124
Essa problematização trouxe consigo a necessidade de se pensar em algo
até então considerado de pouca importância. A sociedade voltou-se à consideração
das conseqüências de decisões, corporificando-se o risco como fator, ao mesmo
tempo, de evolução social e democrática
280
e de possibilidade danosa perante a
tais decisões
281
. Assim,
a lógica da transformação da opinião pública, em particular sua
fixação sobre posições conservadoras ou progressistas, isto é, a
favor da troca ou da manutenção do status quo social, não está já a
altura desta situação histórica. As questões devem delinear-se de
outro modo. Dado que estamos imersos em uma veloz mudança
social, é preciso questionar-se se devemos nos adaptar ou não às
transformações; ou até que ponto sim e até que ponto não; ou se
devemos fazer mais tarde ou mais cedo. Para dizer em outras
palavras, se deve deixar que a mudança siga seu curso e adaptar-se
depois a suas conseqüências quando a violência dos fatos assim o
constranja? Ou há possibilidades de intervenções corretivas
oportunas, que ainda assim não podem pretender controlar todo o
acontecimento global desde um plano nem estão em condições de
justificar-se como progresso?
282
[Tradução livre]
280
ROCHA, Leonel Severo. Direito, Complexidade e Risco. Seqüência, Florianópolis: Fundação
Boiteux, n. 28, jun., 1994. p. 11.
281
Sobre o risco das decisões ver LUHMANN, Niklas. Sociología del Riesgo. México: Triana Editores,
1998, onde é explicitado o risco enquanto produto exclusivo de decisões tomadas no sistema social.
Toda e qualquer decisão é arriscada, em razão pela qual não seria possível mais se falar em
segurança frente aos constantes riscos, mas partir-se para a diferenciação risco/perigo, enquanto
distinção entre o produto de decisões e fatores alheios ao processo decisório. Nessa mesma linha, é
de ser salientada a contribuição de BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva
modernidad. Barcelona: Paidós, 2001, onde o autor delimita as bases para a compreensão de uma
sociedade de risco, moldada pelos crescentes avanços tecnológicos, cujos resultados voltam-se à
coletividade enquanto possibilidade danosa. Ainda, em DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e
Risco, Op. cit., há a necessidade de a sociedade suportar riscos, ao contrário de supostas certezas
quanto ao conteúdo das decisões. Nesse passo os riscos corporificam-se enquanto produto cujo
potencial danoso deve ser assimilado pela sociedade. O risco é uma forma de distribuição dos bads e
não dos goods.
282
LUHMANN, Teoría Política en el Estado de Bienestar, Op. cit., p. 149: “La lógica de la formación
de la opinión pública, en particular su fijación sobre posiciones conservadoras o progresistas, es
decir, a favor del cambio o del mantenimiento del status quo social, no está ya a la altura de esta
situación histórica. Las cuestiones deben plantearse de otro modo. Dado que estamos inmersos en
un veloz cambio social, es preciso cuestionarse si debemos adaptarnos o no a las transformaciones;
o hasta qué punto sí y hasta qué punto no; o si debemos hacerlo más tarde o más temprano. Por
decirlo en otras palabras, ¿se debe dejar que el cambio siga su curso y adaptarse después a sus
consecuencias cuando la violencia de los hechos así lo constriña? ¿O hay posibilidades de
intervenciones correctivas oportunas, que aún así no pueden pretender controlar todo el hecho global
conforme a un plan ni están en condiciones de justificarse como progreso?”
125
Portanto, “vivemos num mundo de transformações, que afetam quase tudo o
que fazemos. [...] estamos a ser empurrados para uma ordem global que ainda não
compreendemos na sua totalidade, mas cujos efeitos já se fazem sentir em nós”
283
.
Às transformações pelas quais passam o Estado e a sociedade não transparece
qualquer possibilidade de controle ou de determinação. Precisamente pelo fato de o
sistema social apresentar-se como uma máquina não trivial
284
, suas operações não
podem ser programadas ou determinadas. Assim, a sociedade caminha ao sabor da
autopoiese sistêmica, na contínua (auto)manutenção e (auto)reprodução de suas
estruturas. Para Luhmann,
a sociedade em que vivemos se vê sujeita a rápidas e profundas
transformações. Estas mudanças não somente afetam às formas nas
que se organiza a vida humana. Não somente abarcam o Estado e a
economia, as comunidades religiosas, o direito e a educação.
Abarcam também o meio natural e os motivos das pessoas e deste
modo revertem novamente sobre a sociedade. Não existe nenhuma
instância na sociedade capaz de guiar estas transformações em
direção a algum resultado global desejado; porém há muitas
possibilidades de influenciá-lo
285
. [Tradução livre]
Em meio a esse aparente caos, não obstante a impossibilidade no que tange
à determinação e/ou ao controle do caminho seguido pelo sistema social, conforme
Luhmann, há a possibilidade de influenciar a sociedade para seguir determinado
283
GIDDENS, Anthony. O Mundo na Era da Globalização. Lisboa: Presença, 2001. p. 15.
284
LUHMANN, Novos desenvolvimentos na teoria dos sistemas. In: NEVES; SAMIOS (Org.). Niklas
Luhmann: a nova teoria dos sistemas, p. 51: “Por ‘máquina’ entende-se simplesmente funções de
transformação, não necessariamente aparelhos mecânicos, mas também cérebros ou cálculos
matemáticos. Máquinas triviais transformam, sempre da mesma maneira, inputs em outputs. Se o
input é repetido, obtém-se o mesmo output ou há um erro e a máquina precisa ir para o conserto.
Máquinas auto-referenciais, ao contrário, tornam seu output dependente de seu respectivo estado,
por exemplo, do estado que decorre das operações recém efetuadas. Elas produzem com os
mesmos inputs, dependendo de sua própria situação, resultados completamente diferentes.
Máquinas triviais são confiáveis e, conquanto que não defeituosas, operam de forma previsível.
Máquinas auto-referenciais não são confiáveis, têm humor instável, são de certa forma máquinas
históricas e podem, portanto, ser também criativas. Elas não podem, contudo, ser programadas para
a criatividade. Elas não são previsivelmente criativas, mas sim aleatoriamente criativas.”
285
LUHMANN, Teoría Política en el Estado de Bienestar, p. 147: ”La sociedad en que vivimos se ve
sujeta a rápidas y profundas transformaciones. Estos cambios no sólo afectan a las formas en las que
se organiza la vida humana. No sólo abarcan al Estado y la economía, las comunidades religiosas, el
derecho e la educación. Abarcan también al medio natural y a los motivos de las personas y de este
modo revierten de nuevo sobre la sociedad. No existe ninguna instancia en la sociedad capaz de
guiar estas transformaciones en dirección a algún resultado global deseado; pero hay muchas
posibilidades de influenciarlo.”
126
caminho, ainda que o resultado de tal influência possa ser diverso daquele
pretendido, afinal, por tratar-se de decisões, o fenômeno da contingência permanece
sempre presente
286
. Dessa maneira, a opinião pública, como espelho da sociedade,
é passível de influência, isto é, sua construção deve ser dada de acordo com o que
é requerido pelo sistema.
Vive-se num mundo complexo, cujas possibilidades pós-modernamente
anunciadas apresentam-se numa assustadora multiplicidade. “A teoria da sociedade
tem colocado, ao lado de conceitos como de diferenciação, o conceito de
complexidade, visto como fundamental para a delimitação, observação e descrição
de um sistema”
287
. Nesse sentido, a própria existência de sistemas sociais é
justificada pela necessidade da redução da complexidade do entorno. Para
Luhmann,
o homem vive em um mundo constituído sensorialmente, cuja
relevância não é inequivocamente definida através de seu
organismo. Desta forma o mundo apresenta ao homem uma
multiplicidade de possíveis experiências e ações, em contraposição
ao seu limitado potencial em termos de percepção, de assimilação de
informação e ação atual e consciente. Cada experiência concreta
apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades
que são ao mesmo tempo complexas e contingentes. Com
complexidade queremos dizer que sempre existem mais
possibilidades do que se pode realizar
288
.
Como condição de possibilidade de mudança social é assente o
posicionamento da opinião pública no sentido de possibilitar observações capazes
de viabilizar o processo de tomada de decisões com o intuito de redução da
complexidade. A opinião pública fornece, como já dito, descrições da realidade
social operada pelos meios de comunicação de massas. Esse contínuo
espelhamento da sociedade promove ressonâncias em meio ao sistema social, no
286
LUHMANN, Sociologia do Direito I, Op. cit., p. 45-46.
287
ROCHA, Direito, Complexidade e Risco, Op. cit., p. 2.
288
LUHMANN, Sociologia do Direito I, Op. cit., p. 45.
127
qual a comunicação (revestida na opinião pública) identifica-se, paradoxalmente
289
,
de forma binária (sim/não).
O processo de tomada de decisões está relacionado com a manipulação do
poder político em relacionar a doutrina política e a sua estrutura diante da opinião
pública. É esclarecedora a lição de Luhmann, que aborda a problemática da tomada
de decisões que afetem o futuro do indivíduo e da sociedade:
Conhecemos a inadequação de todos os intentos por resolver
problemas deste tipo com deslocamentos de preferências no âmbito
da decisão. Sobre os futuros presentes decidirá a evolução social, e
provavelmente é esta expectativa de um destino sobre o qual não
podemos dispor a que alimenta esta preocupação soterrada que
apenas podemos eliminar na superfície, na percepção e
comunicação dos riscos
290
. [Tradução livre]
O futuro presente está diante da incerteza da tomada de decisões; de outro
lado, no entanto, está a expectativa de o destino não se distanciar dos riscos
propostos na percepção e na comunicação. A opinião pública, precisamente em face
dessas tensões, indeterminações e incertezas, identificadas em cada sistema
funcional, traduz a possibilidade de transformação pela (re)produção dos elementos
internos dos mais diversos sistemas sociais. Em razão da autopoiese própria de
cada sistema, ao assimilar internamente as comunicações e construir informações
específicas, mostra-se possível a contínua transformação social.
A problemática referente à opinião pública reside justamente em sua
construção. Luhmann acena para o fato de que a opinião pública se basta como
meio de descrição da realidade social, não importando o fundamento das
comunicações ou a vontade individual, fato que poderia ser interpretado como
289
LUHMANN, Niklas. O Enfoque Sociológico da Teoria e Prática do Direito. Seqüência,
Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, jun., 1994. p. 18.
290
LUHMANN, Niklas. Observaciones de la Modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica, 1997, p. 137:
Conocemos la inadecuación de todos los intentos por resolver problemas de este tipo con
desplazamientos de preferencias en el ámbito de la decisión. Sobre los futuros presentes decidirá la
evolución social, y probablemente es esta expectativa de un destino sobre el que no podemos
disponer la que alimenta esa preocupación soterrada que sólo podemos eliminar en la superficie, en
la percepción y comunicación de los riesgos”.
128
passividade diante de eventuais manipulações dos meios de comunicação de
massas. Em tal ótica, a opinião pública deve ser compreendida como um dado
pronto e acabado, não sendo passível de questionamentos ou eventuais revisões,
afinal ela refletiria a verdade da sociedade, possibilitando observações e
conseqüentes descrições com base em seu conteúdo.
Pode-se manter a concordância com o postulado luhmanniano de a opinião
pública bastar a si própria
291
, entretanto o momento anterior à sua constituição, à
sua construção, é passível de filtragem. Em verdade, a opinião pública, como
conteúdo pronto e acabado, torna-se uma verdade imperativa, todavia a sua
constituição deve levar em consideração toda a complexidade envolvente. Daí a
importância de serem promovidas constantes discussões, viabilizadas pelos meios
de massas e por espaços de discussão democráticos. A viabilização de observações
de observações deve levar em conta toda a problemática da complexidade da
sociedade e de seu entorno, restando a opinião pública como um meio
necessariamente vinculado aos anseios sociais.
As descrições da sociedade promovidas pelos meios de comunicação de
massas devem, obrigatoriamente, levar em consideração a realidade na qual está
inserido o sistema social, promovendo uma filtragem seletiva não conforme
interesses supranacionais, prática comum no mercado capitalista globalizado,
292
mas, sim, de acordo com as necessidades da sociedade. Não obstante a
impossibilidade de determinação do sistema em direção a determinado resultado,
conforme referido por Luhmann, é possível influenciar a sociedade em determinada
291
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 869.
292
Sobretudo válida neste aspecto a crítica aposta em GALEANO, Eduardo. Úselo y tírelo: el mundo
visto desde una perspectiva latinoamericana. Buenos Aires: Booklet, 2007. p. 24-25: “Fin del siglo, fin
del milenio, tiempo del desprecio. Pocos propietarios, muchos poseídos; pocos opinadores, muchos
opinados; pocos consumidores, muchos consumidos; pocos desarrollados, muchos arrollados. Los
pocos, cada vez menos. Los muchos, cada vez más: dentro de cada país, y en el mapa internacional.
A lo largo de este siglo, la brecha que separa los países pobres de los países ricos se ha multiplicado
por cinco. El mundo de nuestros días es obra maestra de una escuela artística que podríamos llamar
el realismo capitalista. En su infinita generosidad, el sistema nos otorga a todos la libertad de
aceptarlo o aceptarlo, pero el ochenta por ciento de la humanidad tiene prohibido el ingreso a la
sociedad de consumo. Se puede verla por televisión, eso sí: quien no consume cosas, consume
fantasías de consumo.”
129
direção. Essa influência, por assim dizer, pode se dar pela produção da opinião
pública conectada à realidade em que está inserida a sociedade.
A opinião pública, nesse sentido, deve promover o acoplamento entre os
sistemas, como maneira de observação de segunda ordem. Logo, ao ser
possibilitado ao direito observar a política; à política, a observação da economia; à
economia, a observação da educação, etc., a sociedade é constantemente
transformada mediante a aquisição e o processamento de perturbações, num
contínuo movimento sistêmico-autopoiético.
Esse nível de observação, entretanto, deve ser dado de acordo com uma
realidade que vincule o sistema a possibilidades de crescimento e desenvolvimento
direcionados, jamais determinados por entidades supranacionais ou por
manipulações dos meios de massa. A opinião pública deve promover o acoplamento
entre os sistemas, ou a observação de observadores, levando em consideração as
necessidades da sociedade como condição de possibilidade de transformação social
com vistas a um futuro não catastrófico, mas promissor.
Em verdade, a opinião pública reveste-se de um medium operado pelos
meios de massa, todavia esse fato não exclui a possibilidade de influência nos meios
de comunicação. Deve ser destacada a possibilidade de insurgência popular em
relação a determinada questão, gerando uma sobrecarga comunicativa que a
sociedade deve identificar e absorver, mesmo que, ainda assim, a resposta
apresentada pelos sistemas não necessariamente corresponda às expectativas
populares.
Saliente-se, nesse aspecto, a promoção da educação de modo a serem
possibilitadas saudáveis influências na construção da opinião pública. A opinião
pública não pode ser considerada um dado pronto e acabado, criado unicamente
pelos meios de massas; ela é um excedente comunicacional cujos espaços de
discussão democrática acabam por moldar a opinião pública. Os meios de massas,
130
são o veículo pelo qual são geradas comunicações; por isso, a realidade social é
uma construção continuamente operada por tais meios, havendo espaço, todavia, à
participação popular no processo comunicativo. Nesse sentido, a sociedade é capaz
de estabelecer critérios seletivos aptos à construção de diferentes descrições
sociais, estas possíveis justamente em virtude de um ambiente democrático
293
.
Nessa seara, é assente uma mudança paradigmática no sentido da
efetivação de uma opinião pública mais coesa com a realidade cotidiana. Saliente-se
como exemplo a condenação de grupos religiosos quanto à utilização de
preservativos, em virtude da visão da relação sexual como meio unicamente
reprodutivo. Assim, descartando a possibilidade de utilização de métodos
contraceptivos, mascara-se o exponencial risco ao qual são expostos aqueles que
têm suas condutas pautadas por tais dogmas. Assim, a vigência de
crenças/paradigmas desconectados da realidade vivida acaba por agravar ainda
mais o cotidiano sanitário.
Outro aspecto a ser destacado nesse ponto é a possibilidade/necessidade
do controle estatal de doenças. Nesse sentido, ao possibilitar a clausura operativa
no nível da observação de segunda ordem, a opinião pública desencadeia
mudanças estruturais na esfera sanitária, eis que o Estado passa a controlar
determinadas doenças com o objetivo de redução da complexidade. Logo, ao serem
promovidas o controle de doenças e a promoção da saúde, o sistema atua de modo
a determinar as indeterminações trazidas pela opinião pública.
É importante, nesse aspecto, a referência à multiplicidade cultural que
permeia os debates sociais pós-modernos. A observância de critérios
293
Por democracia compreende-se a bifurcação do sistema política mediante o código
governo/oposição. Para Luhmann a democracia não pode ser descrita mediante a idéia do domínio
do povo sobre o povo, ou por meio da noção de um princípio segundo o qual todas as decisões
devem ser tomadas de um modo participativo. Assim a democracia não importaria em um consenso
da maioria sobre determinada questão, mas sim na possibilidade de criação de comunicações
baseada em uma pluralidade de discursos. Precisamente por isso a forma governo/oposição tomaria
local central à compreensão da democracia: as comunicações pertencem ou ao valor positivo da
forma (governo) ou ao seu valor negativo (oposição), possibilitando então a construção de realidades
com base nesta distinção. LUHMANN, Teoría Política en el Estado de Bienestar, Op. cit., p. 159-170.
131
multiculturais
294
, igualmente, acaba por fortalecer a necessidade não de consensos
prévios
295
, mas, sim, da produção de uma multiplicidade de comunicações que os
sistemas devem identificar binariamente. À sociedade pós-moderna, dessa maneira,
não importa um consenso prévio, mas a produção de diferença, a produção de
comunicações diversas identificáveis com a codificação específica de cada sistema
funcional.
296
A constituição da opinião pública, igualmente, sugere a superação de
improbabilidades, notadamente da segunda improbabilidade
297
trabalhada por
Luhmann, quando afirma que determinada comunicação dificilmente atingirá mais
pessoas do que aquelas que se encontram numa dada situação, cabe a referência,
ainda, à falta de interesse quanto à comunicação apresentada
298
.
A expansão de ambientes democráticos de discussão, como a internet
299
,
as consultas populares, etc., traduziria uma maneira de superar, em parte, a
improbabilidade do acesso à comunicação, viabilizando uma maior participação
popular e, conseqüentemente, a formação da opinião pública como espelho de uma
realidade mais próxima aos anseios sociais, desviando-se, dessa maneira, de
eventuais tentativas de manipulação e/ou distorção da opinião pública pelos meios
de massas.
Nesse aspecto, a comunicação instantânea e universal proporcionada pela
internet mudou radicalmente a própria maneira de se compreender a opinião pública.
Afinal, “se os media ou seja, os dispositivos concretos da comunicação dão
forma à opinião pública, a emergência do ciberespaço implica uma mutação radical
desta, ou, melhor, da conversação coletiva pela via da qual se criam e se distribuem
294
TAYLOR, Charles. A Política de Reconhecimento. In: TAYLOR, Charles et. al. Multiculturalismo.
Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p. 45-94.
295
HABERMAS, Teoría de la Acción Comunicativa. Op. cit., p. 479.
296
LUHMANN, Teoría Política en el Estado de Bienestar, Op. cit., p. 159-170.
297
A temática das improbabilidades será trabalhada com maior propriedade no último capítulo desta
tese.
298
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 41-44.
299
LÉVY, Ciberdemocracia, Op. cit., p. 53-54
132
opiniões”
300
. Nesse sentido, a revolução provocada pela informática tem papel de
destaque pois, como característica própria da globalização, as redes eletrônicas de
comunicação
301
fornecem amplos espaços de discussão acerca de qualquer
assunto, potencializando exponencialmente as possibilidades da comunicação.
Os meios de massas operam constantes distinções informativas. Nesse
sentido, a opinião pública é moldada ao sabor de interesses por vezes alheios às
necessidades da sociedade. A verdade da opinião pública torna-se a verdade da
sociedade, não havendo espaço para críticas ou visualização de manipulações.
Entretanto, a construção da opinião pública deve se dar de forma participativa e
voltada a formas de descrição mais coesas com a realidade social. Assim, faz-se
necessária a expansão de ambientes democráticos de discussão, para que haja a
contínua transformação da opinião pública e, conseqüentemente, a constante
mutação da sociedade.
2.3. Improbabilidades comunicativas
Vive-se em mundo altamente conectado, ou seja, interligado, no qual a
comunicação é o condutor entre o emissor e o receptor; ela só é possível, contudo,
desde que a informação que está se linkando seja liberada pelo entendimento,
conectada, produzindo, dessa forma, a linguagem. “Cada ponto dessa rede está
ligado direta ou indiretamente com todos os outros pontos, onde eles se encontram,
se façam encontrar ou devam encontrarem-se em certo momento”
302
. Para proceder
a essa leitura, no entanto, será necessário ter o código de acesso, o qual será o
passaporte para permitir o entendimento.
300
Idem, ibidem, p. 46.
301
CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas. Ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix,
2002. p. 144.
302
ESCARPIT, Robert. Teoria de la Información y Práctica Política. México: Fondo de Cultura
Económica, 1981. p. 17: “Cada punto de esa red está ligado directa o indirectamente con todos los
otros puntos, donde ellos se encuentren, se hayan encontrado o deban encontrarse en cierto
momento.”
133
[...] a teoria da comunicação não pode limitar-se a analisar aspectos
parciais da convivência social, nem contentar-se em examinar as
diversas técnicas de comunicação, embora estas e suas
conseqüências despertem, pela sua novidade, particular interesse na
sociedade actual
303
.
A comunicação é um evento extremamente improvável, despertando um
interesse social no sentido da superação dessas improbabilidades, pois se está no
terceiro milênio e os avanços tecnológicos criam novas condições de possibilidade,
ou seja, novos meios de exercê-la. Nesse sentido, para Luhmann, a improbabilidade
da comunicação pode ser vista sob três aspectos distintos:
Em primeiro lugar, é improvável que alguém compreenda o que o
outro quer dizer, tendo em conta o isolamento e a individualização de
sua consciência. O sentido só se pode entender em função do
contexto é, basicamente o que sua memória lhe faculta
304
.
A improbabilidade de compreensão se dá em função da percepção, eis que
nem todos têm conhecimento daquilo que se quer dizer, o que possibilitado pela
memória, a qual grava aquilo que interessa. Em outras palavras, o isolamento
operacional dos sistemas apenas faculta a compreensão da informação com base
num contexto prévio, facultado pela memória do sistema. Nesse sentido, não há
troca ou imposição de informação, mas uma permanente construção com base no
sentido dado pelo contexto sistêmico.
Aqui pode ser destacado o trabalho desenvolvido pela Pastoral da Criança,
coordenado por Zilda Arns Neumann
305
. A comunicação viabilizada em níveis
acessíveis à população proporcionou a adesão massiva ao programa, que visava à
303
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 39.
304
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 39.
305
NEUMANN, Zilda Arns. Depoimentos Brasileiros: ela criou uma rede de solidariedade que salva
centenas de milhares de crianças brasileiras. Belo Horizonte: Leitura, 2003.
134
informação e à criação de uma rede solidária assistencial para reduzir os níveis de
mortalidade infantil no Brasil.
A segunda improbabilidade é a de aceder aos receptores. É
improvável que uma comunicação chegue a mais pessoas do que as
que se encontram presentes numa situação dada. O problema
assenta na extensão espacial e temporal
306
.
Para ocorrer a comunicação é necessário que ela chegue a um maior
número de pessoas das que estão presentes numa dada situação. Ela poderá
ocorrer em cada caso desde que os indivíduos se comuniquem e desintegrem-se
quando não desejam mais se comunicarem, já que cada um possui interesses
diferentes.
A segunda improbabilidade da comunicação pode ser destacada por meio
das medidas sanitárias adotadas no Brasil para o combate da dengue: o
conhecimento acerca de eventuais focos da doença apenas é viabilizado pelos
meios de comunicação de massa. Nesse sentido, até pouco tempo a dengue era
vista como um mal erradicado do território nacional, entretanto, após o surgimento
de casos da doença, os meios de comunicação passaram a promover constantes
observações da realidade, viabilizando a comunicação para toda a sociedade como
forma de descrição da realidade.
Por isso, medidas sanitárias foram adotadas pelos poderes públicos no
sentido de programas informativos e medidas visando ao combate aos focos da
doença. Destaque-se que, se ocorrem os focos e as pessoas os desconhecem,
apenas tomarão conhecimento pela mídia, bem como atente-se para o fato de que
os gestores, que poderiam evitar a doença via prevenção por meio de campanhas
educativas , só o farão quando pressionados pela mídia, que gerará uma opinião
pública, voltada à observação de segunda ordem, e esta, conseqüentemente,
pressionará o gestor a uma atitude.
135
A terceira improbabilidade é a de obter o resultado desejado. Nem
sequer o facto de que uma comunicação tenha sido entendida garante
que tenha sido também aceite. Por <<resultado desejado>> entende o
facto de que o receptor adopte o conteúdo selectivo da comunicação
(a informação) como premissa do seu próprio comportamento,
incorporando à selecção novas selecções e elevando assim o grau de
selectividade. A aceitação como premissa do próprio comportamento
pode significar actuar em virtude das directrizes correspondentes, bem
como experimentar, pensar e assimilar novos conhecimentos,
supondo que uma determinada informação seja correta
307
.
A improbabilidade da obtenção do resultado desejado relaciona-se à extrema
complexidade da atual sociedade pós-moderna. As múltiplas possibilidades
irradiadas no meio social obscurecem as decisões, tornando-as cada vez mais
contingentes e arriscadas. Nesse passo, a assimilação de determinada comunicação
é diretamente proporcional aos níveis de certeza se é que se pode utilizar tal
expressão em relação ao seu resultado. Pelo fato de a sociedade apresentar-se
cada vez mais distante de certezas, a redução de complexidade é requisito à
assimilação de determinada comunicação, o que pode ocorrer mediante
planejamentos. A obtenção do resultado desejado é maximizada mediante o
planejamento pela delimitação comunicativa, ainda que, mesmo assim, seja
impossível a certeza acerca de seu resultado final.
Essa terceira improbabilidade da comunicação relaciona-se com as
expectativas, ou seja, com a incerteza de alcançar o resultado desejado. O processo
seletivo só é acessível para quem possui o poder, noutro sentido, “não são somente
obstáculos para que uma comunicação chegue ao destinatário, actuam ao mesmo
tempo como ‘factores de discussão’, que induzem a abster-se de uma comunicação
que se considera utópica”
308
.
306
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., 42.
307
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 39.
308
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 43.
136
Os sistemas sociais não podem se formar se não houver comunicação; a
comunicação é uma operação eminentemente social
309
, “por conseguinte, as
improbabilidades do processo de comunicação e forma em que as mesmas se
superam e se transformam em probabilidades regulam a formação dos sistemas
sociais”
310
. Logo, entende-se o processo evolutivo da sociedade precisamente no
sentido da superação das improbabilidades e da possibilidade de obtenção de
sucesso da comunicação.
A superação das improbabilidades, com sua conseqüente transformação em
probabilidades, é dada pelos chamados meios de comunicação simbolicamente
generalizados
311
. Esses meios podem ser compreendidos como uma aquisição
evolutiva dos sistemas sociais; por meio deles determinadas comunicações, antes
improváveis, são transmudadas em prováveis. Logo, os meios de comunicação
simbolicamente generalizados operam como influências à aquisição e incorporação
de determinada comunicação.
Até muito avançada a Idade Moderna, reagiu-se à extrema
improbabilidade com esforços criados por uma espécie de técnica
persuasiva, assim pela eloqüência como meta educativa, como a
retórica como teoria especial, ou pela disputa como arte do conflito e
da imposição. Nem sequer a invenção da imprensa logrou que estes
esforços se tornaram obsoletos, ou melhor os reforçou. O êxito,
todavia, não esteve nesta tendência conservadora, mas no
desenvolvimento dos meios de comunicação simbolicamente
generalizados, que se referem com exata função a este problema.
Denominaremos “simbolicamente generalizados” a aqueles meios
que utilizam generalizações para simbolizar a relação entre seleção e
motivação, isto é, para representar-la como unidade. Exemplos
importantes são: verdade, amor, propriedade/dinheiro, poder/direito;
até certo ponto também fé religiosa, arte e atualmente, quiçá,
“valores básicos” civilizadamente estandarizados
312
. [Tradução livre]
309
LUHMANN, La Sociedad de la Sociedad, Op. cit., p. 57: “[...] la comunicación tiene todas las
propiedades necesarias: es una operación genuinamente social, la única genuinamente social. Lo es
porque presupone el concurso de un gran número de sistemas de conciencia pero, precisamente por
eso, no puede atribuirse como unidad a ninguna conciencia individual.”
310
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 44.
311
LUHMANN, Sistemas Sociales, Op. cit., p. 59
312
Idem, ibidem, p. 59: Hasta muy avanzada la Edad Moderna, se ha reaccionado a la
improbabilidad extrema con esfuerzos creados por una especie de técnica persuasiva, así por la
elocuencia como meta educativa, como la retórica como teoría especial, o por la disputa como arte
del conflicto y de la imposición. Ni siquiera la invención de la imprenta logró que estos esfuerzos se
volvieran obsoletos, más bien los reforzó. El éxito, sin embargo, no estuvo en esta tendencia más
137
O sucesso das comunicações no sistema social depende, por isso, da
atuação dos meios simbolicamente generalizados. Cada sistema funcional possui o
seu próprio meio de modo a garantir a comunicação esperada. Nesse passo, a
problemática acerca da comunicação é explicitada por Luhmann:
Quando uma comunicação foi correctamente entendida dispõem-se
de maior número de motivos para rejeitar. Se a comunicação
transborda o círculo dos presentes, a sua compreensão torna-se mais
difícil e é mais fácil, por sua vez, que se produza a rejeição
313
.
O entendimento da comunicação permeia o risco de sua rejeição, que é
paradoxal ao poder estabelecido pela compreensão. Essa relação pode ser vista sob
a égide estatal de fomento da saúde. Em contrapartida, verifica-se que os problemas
atuais são derivados de problemas anteriores. Será por isso que a saúde pública
está um caos?
Nesse passo, a saúde pública torna-se cada vez mais problematizada em
razão da improbabilidade de sua comunicação: aceita-se que o Estado deve prestar
serviços de saúde, todavia há a impossibilidade, por vezes, do sistema político de
adotar a comunicação dada em função de critérios próprios, bem como a
inexistência de meios simbolicamente generalizados com função específica de
serem aceitos pela comunicação sanitária.
O sistema político, conforme visto no terceiro capítulo, atua diante da
formação da opinião pública, que possibilita uma observação de observações.
Nesse passo, a política opera segundo a distinção governo/oposição, restando
bien conservadora, sino en el desarrollo de los medios de comunicación simbólicamente
generalizados, que se refieren con exacta función a este problema. Denominaremos “simbólicamente
generalizados” a aquellos medios que utilizan generalizaciones para simbolizar la relación entre
selección y motivación, es decir, para representarla como unidad. Ejemplos importantes son: verdad,
amor, propiedad/dinero, poder/derecho; hasta cierto punto también fe religiosa, arte y actualmente,
quizá, “valores básicos” civilizatoriamente estandarizados.
313
LUHMANN, A Improbabilidade da Comunicação, Op. cit., p. 44.
138
aquilo esperado pela sociedade como perturbações que a política deve abarcar de
acordo com sua estrutura binária específica, diga-se novamente, governo/oposição.
Na temática proposta, a política deve captar os estímulos levados adiante pelos
meios de massas, pela formação da opinião pública, incorporando-os ao seu modo
de operar. Por isso, a superação das improbabilidades da comunicação reveste-se
de extrema importância.
A correta compreensão das comunicações sanitárias é condição de
possibilidade para uma efetiva transformação da realidade social. Assim, a política
deve agir mediante seu código próprio. Em verdade, a política costumeiramente
opera mediante o código econômico, levando em consideração não a realidade na
qual se insere, mas a realidade de atores privados transnacionais. Isso acaba por
causar um rompimento para com suas funções originárias, desdiferenciação
314
e,
consequentemente, acena para uma crise sistêmica.
Desse modo, a opinião pública reveste-se de extrema importância à
realização da saúde, pois, ao possibilitar observações de segunda ordem, viabiliza a
autopoiese sistêmica com vistas à realidade na qual se insere a política
315
. Logo, ao
possibilitar essas observações de observações, a opinião pública levada adiante
num ambiente democrático refira-se novamente a necessidade de ampliação de
espaços democráticos de discussão cristaliza-se enquanto meio apto à superação
das improbabilidades e como maneira legítima de pressão ao Estado.
314
Saliente-se, aqui, a posição aposta em CAMPILONGO, O Direito na Sociedade Complexa, Op. cit.,
p. 74: “Quando o sistema político se confunde com os sistemas econômico e jurídico; quando há
sobreposição de funções entre os sistemas; quando a diferenciação funcional encontra resistências
em estruturas hierárquicas, o poder passa a ter donos [...] e a democracia transforma-se num
lamentável mal-entendido.””
315
Salientem-se as inquietações trazidas em WOLTON, É Preciso Salvar a Comunicação, Op. cit., p.
122: “O outro, hoje mais próximo, mais acessível, tornou-se meu igual. Ao mesmo tempo, a
experiência da comunicação prova que ele é dificilmente atingível. E que todas as liberdades e todas
as técnicas não bastam para aproximar0me dele. A esta realidade antropológica da incomunicação,
em somar-se a questão política da autoridade. Numa sociedade democrática, os indivíduos são iguais
e o poder legítimo resulta da eleição. Mas numerosas situações de autoridade e de poder não se
baseiam em eleição. Qual é o seu futuro? Como fazer com que coabitem essas lógicas de poder com
outras lógicas sociais, culturais, religiosas, estéticas, não ligadas ao poder? O que significa obedecer
hoje em dia? Até onde é possível discutir-se tudo? Qual é a base da autoridade? Qual é o
fundamento dos direitos e dos deveres de indivíduos livres?... São a própria abertura do espaço
público, sua democratização e sua visibilidade que reativam as questões do poder, da autoridade, e
de todos os outros modos de regulação.”
139
A excepcionalidade da doença caracteriza-se como um paradoxo, pois os
problemas atuais são fruto da inoperância estatal em combater seu risco. Essa
relação é vista nas epidemias que assolam o mundo moderno, não por falta de
recursos econômicos, mas por um critério de preponderância e abuso do poder
econômico. Pode-se evidenciar a improbabilidade da comunicação em relação à
aids.
O desastre da epidemia de AIDS matou mais que todas as guerras
civis nos anos 90 e teve em especial relevância no sul da áfrica com o
caso “Hazel Tau vs. Glaxo e Boehringer”. O caso demonstra a
discussão social multidimencional que segue quaestiones júris: a
política de preços de empresas farmacêuticas multinacionais que
violam direitos fundamentais. Podem os portadores de AIDS
reivindicar seu direito fundamental à vida diretamente contra
empresas farmacêuticas multinacionais? O acesso à medicação como
Direito Humano existe no setor privado? De modo geral: os direitos
fundamentais obrigam não apenas o Estado, mas também agentes
transnacionais privados diretamente?
316
[Tradução livre]
Tem-se, aqui, um caso de improbabilidade da comunicação em decorrência
dos detentores do biopoder, ou seja, os laboratórios farmacêuticos. Essa é uma
relação de domínio cuja mudança só é possível por meio da mudança estrutural de
compreensão da linguagem “vida” e pela refutação do predomínio dos direitos
humanos sob o interesse econômico, ou, em outros termos, da formação de uma
opinião pública voltada às necessidades sociais como forma de observação. Isso
traz como conseqüência o
316
TEUBNER, Globalized Society Fragmented Justice: Human Rights Violations by “Private”
Transnational Actors. Op. cit., p. 547: “The disastrous AIDS epidemic, the numbers killed by which
worldwide have overtaken those of the dead in all civil wars of the 90s, took a special turn in South
Africa with the legal case “Hazel Tau vs. Glaxo and Boehringer”. The case translates the
multidimensional social issues into the following quaestiones juris: has the pricing policy of
multinational pharmaceutical enterprises violated fundamental human rights? Can AIDS patients
assert their fundamental right to life directly against multinational pharmaceutical enterprises? Does
140
[...] efeito “horizontal” dos direitos fundamentais, e a questão impõe
uma obrigação não somente aos órgãos governamentais, mas
também diretamente aos agentes privados, tomando-se dimensões
muito mais dramáticas na esfera transnacional do que já teve
nacionalmente. Não resulta somente em transgressões aos direitos
fundamentais por empresas farmacêuticas na epidemia mundial da
AIDS, mas já tem causado uma movimentação em vários escândalos
nos quais empresas multinacionais estão envolvidas
317
. [Tradução
livre]
Pode-se evidenciar nessa improbabilidade uma relação de poder e
submissão ”em relação ao poder, o súdito não é, de pleno direito, nem vivo nem
morto”
318
. O biopoder, desse modo, é estabelecido mediante a centralização de
formas de tratamento nas mãos de grandes laboratórios farmacêuticos. A sociedade
é refém da ganância econômica estabelecida pelo biopoder, sobre o qual Foucault
diz:
[...] do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o poder da
soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece
agora, com essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do
poder sobre a “população” enquanto tal, sobre o homem enquanto ser
vivo, um poder contínuo científico , que é o poder de “fazer viver”. A
soberania fazia morrer e deixar viver. E eis que agora aparece um
poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao
contrário, em fazer viver e em deixar morrer
319
.
A relação proposta por Foucault visa, paradoxalmente, a uma mudança, eis
que a soberania, até então vista como o exercício do poder de fazer morrer,
defronta-se, agora, com o poder de fazer viver e de deixar morrer. Em outras
“Access to Medication as a Human Right” exist in the private sector? More generally: do fundamental
rights obligate not
only States, but also private transnational actors directly?”
317
TEUBNER, Globalized Society Fragmented Justice: Human Rights Violations by “Private”
Transnational Actors. Op. cit., p. 547: “The “horizontal” effect of fundamental rights, i.e. the question
whether they impose obligations not only on governmental bodies but also directly on private actors, is
taking on much more dramatic dimensions in the transnational sphere than it ever had nationally. It not
only arises for human-rights infringements by pharmaceutical enterprises in the worldwide AIDS
epidemic, but has already raised a stir in several scandals in which multinational enterprises were
involved.”
318
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 286.
141
palavras, o exercício do poder volta-se à promoção da vida, ao seu constante
exercício no sentido de valoração à vida, de se fazer viver. Esse paradoxo
estabelece as relações de improbabilidade da comunicação no seguinte sentido: no
caso da aids, como sendo uma epidemia do mundo moderno, não é estabelecida
uma comunicação se não houver dinheiro para deleitar os detentores das patentes
de medicamentos.
Poderá haver a comunicação pela veiculação pelos meios de massa da crise
epidemiológica mundial, que atinge todas as faixas etárias. Gera-se, assim, uma
pressão dos atores sociais pela opinião pública para que sejam relativizados os
direitos de propriedade intelectual e industrial e para que essa licença compulsória
para produção de medicamentos contra a aids torne-se domínio público,
estabelecendo, assim, o biopoder de fazer viver.
Por outro lado, se se observar o mal de Alzheimer, que atinge a população
idosa, não há comunicação, eis que o mal atinge a parcela da população mais
debilitada, razão pela qual não há interesse do biopoder em desenvolver pesquisas
para a cura dessa doença, pois ela atinge pequena parcela da população, com isso,
se estabelece uma relação de deixar morrer. Está-se, dessa maneira, diante do
paradoxo comunicação/não-comunicação da saúde.
Os meios de massa, conforme já visto, constituem a opinião pública como
recorrentes descrições da realidade social, influenciando e possibilitando a
observação de segunda ordem pela sociedade. Logo, temas considerados de
relevância são postos em local de destaque de modo a que possam efetivamente
ser operacionalizados pelos sistemas.
A comunicação da saúde, assim, enfrenta a necessidade de ser socialmente
relevante para tornar-se objeto valorado pelos meios de massas e,
conseqüentemente, para constituir-se em opinião pública. O exemplo acerca da
319
FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade, Op. cit., p. 286.
142
epidemia global de aids bem ilustra esse fato: o excedente comunicativo gerado
pelos meios desencadeiam mudanças estruturais nos sistemas (direito, política,
medicina, educação, economia, etc.), os quais acabam por assimilar tais
perturbações para geri-las de acordo com suas estruturas particulares.
Nesse aspecto, pode-se exemplificar a comunicação sanitária, igualmente,
por meio das já referidas ações desenvolvidas pela Pastoral da Criança no Brasil. O
projeto, levado adiante por Zilda Arns Neumann
320
, consistia, inicialmente, em
promover o acúmulo de conhecimento da população carente brasileira com o
objetivo de redução da mortalidade infantil. Esse interesse desencadeou um
processo comunicativo circular que se expandiu, inclusive, além das fronteiras
nacionais, viabilizando uma rede solidária com milhares de voluntários que prestam
auxílio a mais de um milhão de crianças em todo o território nacional.
A pastoral da criança, desse modo, pode ser compreendida como um nítido
exemplo de reprodução autopoiética da comunicação, perfazendo a irritabilidade dos
sistemas sociais. Saliente-se, igualmente, a assimilação de tal comunicação por
sistemas funcionais, o que pode ser comprovado com o apoio dado ao projeto pelo
Ministério da Saúde, bem como por diversos outros órgãos públicos e privados.
321
Refira-se, igualmente, a extrema importância das pressões advindas de
movimentos populares para a criação do Sistema Único de Saúde, as quais,
revestidas comunicacionalmente, causaram extremas ressonâncias no sistema
político, de modo a este promover a rede de serviços sanitários no Brasil. Assim,
o movimento popular por saúde inicia-se na década de sessenta,
com reivindicações feitas através de abaixo-assinados, mas foi na
década seguinte que se ampliou significativamente. Conseguiu dar
um salto, passando de simples reivindicação de cunho econômico
para um processo da qualidade do serviço. Reivindicavam-se não
320
NEUMANN, Zilda Arns. Depoimentos Brasileiros. Op. cit.
321
Idem, ibidem.
143
apenas a conquista de equipamentos, mas a própria gestão e
organização da saúde
322
.
O próprio processo de criação do Sistema Único de Saúde é um nítido
exemplo de comunicação sanitária. As perturbações comunicativas causadas na
sociedade pelos meios de comunicação, a formação da opinião pública, a
participação popular, etc. acabaram por promover mudanças estruturais na
sociedade, notadamente, nesse aspecto, a criação do SUS.
A comunicação sanitária deve ser analisada do prisma da possibilidade de
sua disseminação no meio social: a comunicação sempre é produto de
comunicações anteriores e requisito para novas comunicações. Por isso, o interesse
comunicativo atinge níveis consideráveis apenas quando as condições para a
difusão desta mesma comunicação se apresentar. Retome-se o caso da epidemia
de aids: as possibilidades comunicativas expandem-se exponencialmente, eis que
há o interesse social no controle do problema, a constante busca da minimização
dos riscos de epidemia por meio de tratamentos médicos, processos informativos,
etc.
Por outro, lado toma vulto a recorrente problemática acerca da distinção
público/privado, notadamente no sistema econômico. Nesse aspecto, tem-se o
paradoxo da epidemia mundial de aids frente à detenção da propriedade dos
fármacos necessários ao combate de tal enfermidade por grandes laboratórios
farmacêuticos
323
.
322
FARIA, Marcília de Araújo Medrado. Movimentos populares e o surgimento do SUS no estado de
São Paulo. In: ______; JATENE, Adib (Org.). Saúde e movimentos sociais: o SUS no contexto da
revisão constitucional de 1993. São Paulo: USP, 1995. p. 20.
323
Ver TEUBNER, Globalized Society Fragmented Justice: Human Rights Violations by “Private”
Transnational Actors. Op. cit.
144
A comunicação, pois, necessita de outras comunicações,
324
o que acaba por
perfazer um processo circular e auto-referencial cujas possibilidades se expandem
rapidamente. Basta se pensar na opinião pública formada acerca da possibilidade de
quebra de patentes de medicamentos destinados ao tratamento de indivíduos
contaminados pelo vírus HIV: existe a preocupação social no que tange ao controle
da doença,
325
bem como a necessidade de processar aquilo trazido pela opinião
pública. Saliente-se, igualmente, que políticas públicas são levadas adiante após a
veiculação de notícias sobre determinada doença. Refira-se aqui o exemplo da
dengue, e de doenças até então erradicadas, como a tuberculose, incorporadas aos
programas sanitários nacionais em função de sua crescente ocorrência e de sua
veiculação nos meios de comunicação de massa.
O próprio processo de comunicação sanitária centrada na ocorrência de
casos de contaminação pelo vírus HIV, em seu princípio, traduzia-se como um caso
de não-comunicação. É de ser referido que os debates acerca da doença ficavam
adstritos a limitados círculos, centrando-se as discussões na existência de grupos de
risco, fato que restringia a comunicação a determinados grupos étnicos e/ou práticas
comportamentais, como a utilização de drogas injetáveis. Saliente-se que,
[...] apesar de os primeiros casos de AIDS no Brasil terem sido
identificados precocemente na história da epidemia, as respostas
oficiais tardaram a ocorrer. No primeiro momento, vozes à esquerda
e à direito desqualificavam a AIDS como prioridade do ponto de vista
de saúde pública, entre outros motivos pela marca de doença restrita
a determinados grupos e pela própria visão discriminatória com que
estes grupos, em especial os “homossexuais” e “viciados em
drogas”, eram encarados mesmo dentro dos setores mais avançados
do chamado movimento sanitário
326
.
324
A comunicação, para Luhmann, é um contínuo aprendizado sistêmico. Em lugar da possibilidade
de determinismo sistêmico há a possibilidade de o sistema aprender/não-aprender. Com isso a
sociedade comunica apenas aquilo que se mostra relevante. LUHMANN, Límites de la Comunicación
como Condición de Evolución, Op. cit., p. 28.
325
ABREU, Anabela Garcia; NOGUER, Isabel; COWGIRL, Karen. El VIH/SIDA en países de América
Latina: los retos futuros. Washington: Organización Panamericana de la Salud/Banco Mundial, 2004.
p. 140-146.
326
CAMARGO JR., Kenneth Rochel de. Políticas públicas e prevenção em HIV/AIDS. In: PARKER,
Richard; GALVÂO, Jane; BESSA, Marcelo Secron (Org.). Saúde, desenvolvimento e política:
respostas frente à AIDS no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: ABBIA/Editora 34, 1999. p. 231.
145
O rompimento para com tal mentalidade coincidiu com o surgimento de um
ambiente democrático. Nesse passo, a comunicação passou a ser viabilizada por
muitos e para muitos, fato que acabou por gerar o espaço propício à gênese de
novas comunicações atinentes ao tema de uma possível epidemia de HIV. A
propagação da comunicação sanitária causa perturbações nos sistemas sociais,
provocando, assim, o desenvolvimento de políticas públicas de combate à epidemia,
pela consideração da saúde como bem maior em detrimento da economia, etc. Por
isso,
[...] a atuação de movimentos organizados da sociedade civil teve um
papel marcante tanto para impulsionar a atuação do setor público
quanto na determinação do próprio conteúdo das respostas. Deve-se
ter em mente ainda que o início da epidemia de HIV/AIDS, ou ao
menos o início de sua visibilidade, coincide com um momento
histórico peculiar em nosso país, no qual se articulava a chamada
redemocratização [...]
327
.
Quanto mais for comunicado a respeito de determinada questão, maiores
serão as possibilidades de novas comunicações. A comunicação sanitária, desse
modo, depende da valoração social acerca de determinada questão. Quanto mais
for comunicado, maiores são as possibilidades de desenvolvimento social e,
conseqüentemente, de transposição de tais comunicações ao interior dos sistemas
funcionais, complexificando os processos sistêmicos para a necessária redução da
complexidade de seu ambiente.
A saúde, porém, é tema da comunicação enquanto relevante ao sistema
social. Assim, nem toda comunicação sanitária mostra-se revestida de tal relevância,
o que acaba por excluir determinados temas dos debates sociais, constituindo-se em
caso de não comunicação da saúde.
327
Idem, ibidem, p. 232.
146
A comunicação da saúde é necessária à formação da opinião pública acerca
de determinado tema, notadamente em relação a dada enfermidade passível de
dano à coletividade. Todavia, verifica-se que em outros casos a comunicação é
efêmera, passageira, causando pequenas perturbações na sociedade ou, por vezes,
sendo passageiramente, não causando maiores efeitos.
A reprodução autopoiética da sociedade é dependente de constantes
estímulos comunicativos. A comunicação, desse modo, provoca e estimula os
sistemas à contínua manutenção de suas estruturas. Assim, para o desenvolvimento
de determinado tema no sistema social faz-se necessário o desenvolvimento de
reiteradas comunicações a seu respeito. Nesse sentido, pode-se dizer que
determinadas questões atinentes à saúde pública não comunicam, deixando de
causar os eventos sistêmicos necessários ao desenvolvimento de alternativas a tais
questões.
É interessante a compreensão de que a comunicação, por sua vez,
necessita diferenciar-se da informação. Precisamente essa diferença entre
informação/comunicação é a barreira pela qual é viabilizada a existência de
comunicação. Conforme Luhmann, só é possível conhecer o mundo porque o
acesso a ele é bloqueado.
328
Nesse sentido, a informação pura e simples nada é
para o sistema; é apenas uma fonte que emana possibilidades interpretativas, as
quais se revestirão, posteriormente, como comunicações. Para Luhmann
toda a comunicação baseia-se numa distinção circunstanciada com
precisão, na distinção entre informação e comunicação. Sem a
existência de uma proteção, concedida por tal distinção, o receptor
da comunicação seria directamente confrontado com o quadro de
circunstâncias do mundo, tal como acontece com as percepções
usuais. Só se chega à comunicação e à aceitação ou rejeição das
selecções por ela comunicadas, quando o receptor consegue
328
LUHMANN, Novos Desenvolvimentos na Teoria dos Sistemas. Op. cit., p. 52.
147
distinguir a selectividade da informação, da selecção da
comunicação
329
.
A comunicação, enquanto síntese da informação, apresenta-se sob um
aspecto de incerteza. Conforme já visto, a comunicação é improvável e, por isso,
não se mostra passível de determinação ou controle no sentido de se supor, garantir
ou tornar provável. Importa, ainda, a distinção entre informação e comunicação, eis
que na primeira não se fala em comunicação, mas, sim, num contingente com
possibilidades de geração comunicação. A seletividade da informação é condição de
possibilidade para futuras comunicações; a seletividade da comunicação, por sua
vez, reveste-se na escolha de determinada comunicação entre uma pluralidade de
possibilidades. Nesse sentido,
É preciso, portanto, que nossa comunicação permaneça esta coisa
turbulenta e vaga, da qual não há nem ciência nem técnica, mas que
está acima ou enquadra a maior parte delas. Não se abordará este
campo sem ser um pouco feiticeiro, ou artista; e, de fato, “a
comunicação” acumula-se, ou está no seu ápice, na relação
interpessoal, na psicanálise, na arte ou no marketing publicitário ou
político, os quais nunca farão parte, apesar do que pensam alguns,
de uma técnica adequada nem de rotinas programáveis
330
.
Pode-se exemplificar a não-comunicação com o caso do mal de Alzheimer, a
doença que não possui o mesmo destaque atribuído, por exemplo, à aids. Dessa
maneira, a comunicação gerada pelos casos de Alzheimer provoca mudanças de
pequena monta no sistema social. A pouca relevância atribuída à enfermidade é
espelhada, inclusive, pela carência de publicações a respeito, ao contrário da
incrível pluralidade dos textos destinados ao conhecimento e informação acerca da
aids. Não obstante a existência de um programa específico, instituído pelo Ministério
329
LUHMANN, Niklas. O Amor como Paixão: para a Codificação da Intimidade. Lisboa: Difel, 1982. p.
164.
330
BOUGNOUX, Daniel. Introdução às Ciências da Comunicação. Bauru: Edusc, 1999. p. 18-19.
148
da Saúde por meio da Portaria nº 703, de 12 de abril de 2002
331
, a atenção à
enfermidade limita-se ao fornecimento de medicamentos específicos para o controle
da doença
332
e a manutenção genérica da assistência do Sistema Único de Saúde,
restando pouco expressivas ações de informação e, principalmente, de humanização
no tratamento.
Ainda, frente à ineficácia estatal no que tange à manutenção sanitária é
mister referir a organização da sociedade civil de modo a buscar pressionar o Estado
no cumprimento e efetivação das promessas constitucionais. Saliente-se, nesse
aspecto, a criação da Associação Brasileira de Alzheimer Abraz, formada por
familiares de pessoas portadoras do mal de Alzheimer, profissionais da área da
saúde e voluntários. A entidade visa justamente a assistência e promoção de
esclarecimento sobre a doença como forma de uma melhor qualidade de vida aos
portadores do mal de Alzheimer,
333
cobrindo, dessa forma, boa parte da ausência
estatal.
Cabe ressaltar, igualmente, as doenças que já se encontravam controladas
e tornam a ocupar espaços de debates na sociedade em razão de seu
ressurgimento, como, por exemplo, a dengue. Está-se diante de outro exemplo da
não-comunicação, ou melhor, de uma transposição de não-comunicação para
comunicação, afinal, após a chegada dessas inquietações aos meios de
comunicação e a geração de uma opinião pública coesa com a realidade cotidiana
da população, são cobradas atitudes dos gestores públicos.
A possível epidemia de dengue, levada adiante pelos meios de
comunicação, foi rapidamente controlada pelos poderes públicos. Esse fato bem
ilustra a premência da formação de uma consciência participativa pela população no
331
A portaria nº 703 do Ministério da Saúde institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o
Programa de Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer.
332
Atualmente são fornecidos pelo Sistema Único de Saúde os medicamentos rivastigmina,
galantamina e donepezil, utilizados para o tratamento do mal de Alzheimer, conforme estabelecido na
Portaria nº 843, de 31 de outubro de 2002, da Secretaria de Assistência à Saúde.
333
Conforme informações disponíveis no site da Associação Brasileira de Alzheimer.
http://www.abraz.com.br.
149
sentido de, aliando-se às possibilidades comunicativas dos meios de comunicação
de massa, exercer pressão sobre o Estado mediante a formação da opinião pública
voltada aos interesses dos indivíduos.
O exemplo do controle da epidemia de dengue pode ser comparado na ótica
da participação/mobilização popular e da viabilização de observações pela mídia, à
atenção despendida à aids na promoção de sua prevenção. Ainda, importante
relevância adquire a organização de movimentos sociais visando e produção de
comunicações específicas às doenças, campanhas governamentais, investimentos
em pesquisa e desenvolvimento. Desse modo, a sociedade volta a operar
normalmente, prevalecendo a harmonia sistêmica em oposição à prevalência da
codificação econômica aos demais sistemas. Isso ocorre porque existe mais
comunicação sobre aids
334
e outras doenças
335
de interesse social e um nível
comunicacional imensamente inferior dos casos do mal de Alzhaimer.
A existência da comunicação se dá, notadamente, pela participação popular
no sentido de fornecimento aos sistemas de um excedente comunicacional cuja
operacionalidade interna deverá abarcar. Por isso, a não-comunicação reveste-se na
inércia daqueles interessados na transformação da realidade social, bem como, e
aqui a problemática é agravada, pela substituição da codificação governo/oposição
ou direito/não direito pelo código ganhar/perder. Há, com isso, o solapamento da
saúde pública notadamente agravada pela não-comunicação em virtude da
inversão de funções e da predominância da codificação do sistema econômico na
sociedade.
334
Cerca de 100 000 pessoas foram infectadas com o vírus HIV durante o ano de 2007, fato que
eleva ao número de 1,6 milhões de pessoas infectadas apenas na América Latina. ORGANIZACIÓN
MUNDIAL DE LA SALUD. Situación de la epidemia de sida : informe especial sobre la prevención del
VIH : Diciembre de 2007. Disponível em <http://data.unaids.org/pub/EPISlides/2007/
2007_epiupdate_es.pdf>, 2007. Acesso em: 01 de fevereiro de 2008.
335
No período compreendido entre janeiro e julho de 2007, foram registrados 438.949 casos de
dengue clássica, 926 casos de Febre Hemorrágica da Dengue e a ocorrência de 98 óbitos, conforme
dados obtidos no site do Ministério da Saúde. BRASIL. Ministério da Saúde, Campanha da dengue.
Disponível em <http://www.combatadengue.com.br/sobreadengue/adenguenobrasil.php>. Brasília,
2007. Acesso em: 01 de fevereiro de 2008.
150
3. PARTICIPAÇÃO SOCIAL E COMUNICAÇÃO
A saúde adquire particular relevância quando identificada como um processo
fundado na distinção saúde/enfermidade. Nessa paradoxal realidade a comunicação
exerce papel fundamental quanto à irritabilidade dos diversos sistemas sociais,
constituindo-se um requisito à concretização de direitos, notadamente neste caso, do
direito à saúde.
3.1. Democracia participativa e saúde
Um dos pressupostos para a realização dos direitos fundamentais, direitos
sociais, é o exercício da cidadania. A participação da comunidade nas ações
estatais de saúde é que dará contornos a sua forma de eficácia e aplicabilidade, na
medida em que a democracia pressupõe controle e participação.
Pensar o controle social em saúde numa perspectiva democrática
suscita a busca de um referencial que dê conta de analisar a
questão do poder, fundamental na determinação do que e do que é
foi possível instituir-se hoje como prática de controle social,
entendido aqui, como ficou estabelecendo a partir da 8ª Conferência
Nacional de Saúde como poder de controle da população sobre as
ações e políticas de saúdo do Estado
336
.
O poder de que aqui se trata não fica adstrito às proposições jurídicas, mas
emerge de uma trama social bem mais complexa, de diversas instâncias que regem
a vida, as quais, atuando conjuntamente, potencializam-se e reforçam-se. Para
tanto, é mister compreender a análise de Foucault, onde refere que existem formas
de exercício de poder diferentes dentro do Estado
337
. Mais especificamente, na área
336
WENDHAUSEN, Águeda. O Duplo Sentido do Controle Social: (des)caminhos da Participação em
Saúde. Itajaí: Univalli, 2002, p. 123.
337
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 216-217.
151
da saúde quer-se verificar se esses poderes se consolidam por intermédio dos
Conselhos de Saúde, por terem relação entre si, bem como com o contexto mais
geral, em permanente tensão
338
.
Foucault parte do estudo do poder como algo positivo. Demonstra, assim, que
as relações de poder não se passam somente no plano do direito, nem no plano da
violência; são, sim, em sua maioria, basicamente contratuais, não unicamente
repressivas
339
. Desse modo, é equivocado definir o poder como algo que nega tudo,
que impõe limites, que castiga. Há uma concepção positiva de poder mesmo em
âmbito estatal e, para vislumbrá-la, é necessária uma diferenciação dos termos
dominação e repressão:
A dominação capitalista não conseguiria se manter, se fosse
exclusivamente baseada na repressão. De fato o poder produz; ele
produz real; produz domínio de objeto e rituais de verdade. O poder
possui uma eficácia produtiva; ema “positividade” e é justamente
este aspecto que explica o fato de ter como alvo o corpo humano,
não para suplicá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. O
que lhe interessa não é expulsar os homens da vida social, impedir
o exercício de suas atividades e sim gerir a vida dos homens,
controlá-los em suas ações para que seja possível utilizá-lo ao
máximo. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os
perigos políticos, aumentar a força econômica e diminuir a força
políticas. Foi este tipo de poder específico que Foucault chamou de
“poder disciplinar”ou “disciplina”: essa técnica, esse instrumento de
poder que fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e
manutenção da sociedade industrial capitalista
340
.
Outro importante aspecto a ser abordado é a diferenciação que Foucault faz na
questão das relações de poder e relações de dominação. Nas relações de
dominação, toda e qualquer relação de poder é estática e bloqueada, impedindo a
conversão daquela situação mesmo com instrumentos econômicos, políticos e
militares. As relações de poder, por sua vez, têm uma extraordinária extensão nas
338
WENDHAUSEN, O Duplo Sentido do Controle Social. Op. cit., p. 124.
339
FOUCAULT, Microfísica do Poder. Op. cit., p. 186-190.
340
WENDHAUSEN, O Duplo Sentido do Controle Social, p. 126.
152
relações sociais, pois são instáveis e se modificam mediante o uso de estratégia dos
participantes. A multiplicidade das relações de poder serve para tornar impossíveis
as relações unilaterais de dominação.
Explanado de forma sucinta como se dá a relação em redes do poder, cabe
elucidar, no âmbito da saúde, como ocorre na prática dos Conselhos de Saúde o
exercício do poder, no entanto levando em consideração o fato de que não haveria
exterioridade entre técnicas de saber e estratégia de poder.
Os efeitos disso é que os discursos podem ser diferentes dependendo de quem
fala de poder e do contexto institucional em que está inserido. Outra conseqüência é
que o saber, da mesma forma que pode ser instrumento e efeito do poder, pode ser
o ponto de resistência, que dá origem e é ponto de partida de uma estratégia oposta.
Dessa forma, não há outro modo para resistir a uma verdade hegemônica que não
por meio do conhecimento, da atuação ativa no sistema na “busca da verdade”,
libertando a verdade que nos é disponível dos efeitos do poder que a mantêm fixa
341
.
Outro ponto é de extrema significância para a compreensão das estruturas e
relações de poder:
Nas estruturas burocratizadas e hierarquizadas do poder moderno,
há sempre alguém “vigiando” (controlando, registrando,
pesquisando) outrem, de modo que o poder continua cada vez mais
se exercendo de maneira anônima (através das políticas de Estado,
por exemplo) fato que lhe confere ainda mais poder, pois não há um
inimigo concreto contra quem lutar. Quanto maior for a
burocratização da vida, maior a possibilidade da violência
342
.
É justamente nesse aspecto que se retoma a linha inicial abordada acerca dos
Conselhos de Saúde como instrumento de realização da cidadania e exercício da
341
WENDHAUSEN, Op. cit., p. 132.
153
democracia. Quanto maior for a atuação democrática da sociedade, menores serão
as interferências e os comandos por parte do aparelho estatal, ou seja, quanto mais
os cidadãos exercerem seu poder de soberania popular, menos o Estado exercerá o
poder que lhe é atribuído pela burocratização das instituições.
Dito isso, a efetividade dos direitos à saúde, no sentido de atender às reais
demandas sociais, com a devida atenção e especificidade que merecem os
Conselhos de Saúde, enquanto rede e esfera de debate público no estabelecimento
de diretrizes ao sistema, é primordial para o sistema de saúde como um todo e como
um instrumento para a consolidação democrática.
Uma das grandes transformações fruto da Reforma Sanitária foi a
institucionalização da saúde como um sistema de prestação positiva por parte do
Estado. No entanto, para sua efetividade, são necessários planejamentos e
estratégias que possibilitem a prestação do serviço de saúde, bem como fiscalização
e controle financeiro nas três esferas em que é realizado municipal, estadual e
federal por meio da participação popular. E este será o papel de extrema
relevância dos Conselhos de Saúde
Logo, os conselhos de saúde possuem um caráter fiscalizatório, cuja atuação
deve promover o constante controle dos serviços e ações sanitários, viabilizando
assim a dotação orçamentária e a execução das ações de saúde. Quanto à origem
dos Conselhos:
Tendo raízes nas lutas comunitárias dos anos 70, os Conselhos de
Saúde são a expressão institucional de uma das idéias fundadoras
da Reforma sanitária: a participação da sociedade nas políticas e
organização da saúde. Embora assumindo significados diversos ao
longo do tempo, a que correspondem padrões distintos de práticas
sociais, o tema da participação esteve constantemente presente na
retórica e na prática do movimento sanitário, atestando a íntima
associação com o social e o político, que, no Brasil, tem
caracterizado a agenda reformadora da saúde. Postulando a
democratização do acesso a bens e serviços de propiciadores de
saúde, mas também a democratização do acesso ao poder, a
342
WENDHAUSEN, O Duplo Sentido do Controle Social, p. 136.
154
agenda da reforma sempre teve nas propostas participativas a
marca da preocupação com os “mecanismos de funcionamento” do
Estado e não só com os “resultados redistributivos” de suas políticas
[...] Saúde como estratégia para a democracia e democracia como
estratégia para a saúde
343
.
Num período posterior, segunda metade da década de 1980, com a nova
República, acelerou-se, a partir do reconhecimento da diversidade de atores e
grupos de interesses sociais, o processo de incorporação das demandas sociais. Os
novos mecanismos de democracia representativa e o crescimento da participação
política fortaleceram a concepção de um Estado pluralista. Supõe-se, pois, que este
mesmo Estado passe a funcionar em conformidade com suas formas de
representação e o reconhecimento da diversidade de interesses sociais presentes
nesta sociedade, sendo as políticas públicas fruto de um processo de disputa e de
acordo de interesses de grupos no interior da sociedade. Normalmente, tal situação
significaria inclusão jurídico-institucional dentro do Estado, das estruturas de
representação direta da sociedade, investidas de responsabilidades de governo em
algum nível, legitimando, dessa forma, a diversidade e os interesses de projeto da
população ali representada. Segue Carvalho aduzindo que
nesse clima, e a partir das experiências dos órgãos colegiados, que
amadurece a proposta dos Conselhos de Saúde, na forma
institucional atual. Embora com identidade e atribuições legais
formalmente definidas, os Conselhos, iniciaram e ainda vivem hoje
sua trajetória prática em meio a um conjunto de dilemas e
ambigüidades, decorrentes de marcos conceituais e contingências
políticas de onde se originaram. Pertencem ao governo ou a
sociedade? Devem governar ou fiscalizar? Devem ampliar suas
responsabilidades executivas ou aprimorar seus mecanismos de
acompanhamento?
344
343
CARVALHO, Antônio Ivo de. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a
Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: FLEURY, Sônia. Saúde e democracia, a luta do
CEBES. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93.
344
CARVALHO, Antônio Ivo de. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania. Op. cit.,
p. 97.
155
O mesmo autor elucida as questões suscitadas com a seguinte afirmativa: “Na
verdade, é a própria idéia de controle social, que os fundamenta, que carrega uma
ambigüidade básica, responsável por gerar uma expectativa a respeito dos
Conselhos que, no limite, oscila entre ilusão ou ceticismo”
345
. Tal ilusão é referida no
seguinte sentido:
A ilusão, proveniente da matriz pluralista, consiste na
superestimação da margem de efetividade dos Conselhos como
arenas decisórias. Alimenta-se de miragem de um Estado neutro,
passível de ser conduzido pelos segmentos que obtenham
vantagens circunstanciais nos espaços decisórios. Nesse padrão, a
sociedade, suficientemente organizada e representada nos
conselhos, poderia controlar o Estado, conduzindo-o segundo seus
desígnios. Como se, a partir do mero funcionamento regular dos
Conselhos, do cumprimento de suas prerrogativas legais, o Estado
“se corrigi” e passa-se a funcionar segundo os interesses da
maioria. Embora tal imagem possa favorecer o proselitismo
participatório, atraindo segmentos sociais ansiosos por colocar suas
demandas junto ao aparelho estatal, até então impermeável a elas,
na verdade, ela sem mostra insuficiente para sustentação ao
funcionamento estável dos Conselhos. Diante da inefetividade
desses órgãos em satisfazer as demandas finalísticas a eles
submetidas, os representantes de segmentos podem reduzir suas
expectativas, gerando seja o esvaziamento dos Conselhos, seja
uma adaptação conformada a seus limites como arenas decisórias
(burocratização).
346
E revela ceticismo quando menciona ser
curioso que a configuração jurídico-institucional desses órgãos, cuja
composição discrimina positivamente setores sociais com menos
acesso ao poder (a caráter paritário) e enfatiza sua responsabilidade
decisória (poderes deliberativos), tenha se originado exatamente na
desconfiança de que o Estado pudesse ser passível a ponto de
implementar as medidas redistributivas demandadas pelos setores
explícitos e agora representada nos Conselhos.
347
345
CARVALHO, Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania, In: FLEURY, Sônia.
Saúde e democracia, p. 97.
346
CARVALHO, Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania. Op. cit., p. 97.
347
Ibidem, p. 97-98.
156
Essas duas visões extremas, ilusória e ceticista, apresentadas pelo autor têm
em comum a visão instrumental dos Conselhos, que ficariam em posição externa ao
Estado a fim de vigiá-lo e controlá-lo, podendo disso resultar uma perspectiva de
controle despolitizada e inócua. Em contraponto a essa visão apresentada,
considerando o caráter mais ou menos democrático do Estado, podem os Conselhos
funcionar como espécies de filtros dos interesses e demandas dos diversos
segmentos da sociedade
348
. Por esse prisma:
Esse modelo permite que os Conselhos de Saúde sejam analisados,
não mais como instrumentos externos de controle do Estado, mas
como componentes do aparelho estatal, onde funcionam apenas
como engrenagens institucionais com vigência e efeito sobre o
sistema de filtros, capazes de operar alterações nos padrões de
seletividade das demandas. Concebidos sob a égide do propósito
democratizante da Reforma Sanitária, tanto no plano social e como
político, os Conselhos podem ser considerados inovações
institucionais, entendidas como uma reforma adaptativa do desenho
institucional do Estado, dirigidas para alterar o padrão de recepção e
processamento de demandas na área da saúde, no sentido do seu
alargamento
349
.
Dessa forma, devem-se compreender os Conselhos de Saúde não se limitando
apenas ao âmbito da Reforma Sanitária como uma contribuição específica que
possa ter para o SUS, e, sim, de uma forma mais ampla, fruto de um processo
contemporâneo de reforma do Estado Democrático de Direito. Os Conselhos
permitem que o Estado faça uma redefinição do próprio conceito de “público”,
favorecendo a publicização estatal como mecanismo real de interesse público; por
sua vez, a sociedade concretiza uma noção de “cidadania”, publicizando a ação
societária num exercício cidadão voltado à diversidade e à solidariedade
350
.
348
Ibidem, p. 98-99.
349
CARVALHO, Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania. Op. cit., p. 99.
350
CARVALHO, Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania. Op. cit., p. 100-101.
157
Os conselhos podem então ser vistos como estruturas permanentes,
de caráter público, que a luz do pacto do bem-comum estabelecido
para a saúde, examina e acolhe demandas, compactibiliza
interesses e chancela uma agenda setorial de “instrumento público”,
capaz de então parametrar a ação do estado. Seu lugar ou papel no
sistema estatal de formulação ou implementação de políticas, seria
o de, operacionalmente, estabelecer ou discriminar aquilo que é de
interesse público, no processo cotidiano do processo de
apresentação de demandas e conflito/ pactuação de interesses.
Muito mais que uma “porta de acesso” ao aparelho estatal e seus
mecanismos decisórios, os Conselhos são, para diversos grupos de
interesse, uma arena de problematização e publicização de seus
interesses específicos. Embora sejam detentores de poderes legais,
sua principal característica não é a de operar com os poderes de
governo, e sim processar interesses de modo a estabelecer o
interesse público
351
.
Acerca do tema, cumpre salientar que, quando a sociedade organizada nos
Conselhos de Saúde adquire força social, passa a ser um segmento com voz com
poder de interferir nos rumos e diretrizes, como forma de reivindicar o cumprimento
das ações estatais no sentido de concretizar materialmente esses direitos
352
.
Os segmentos da comunidade adquirem rostos de ator social
quando organizados nos Conselhos de Saúde, com atribuições, tais
como as definidas na Lei nº 8.142/90, na Lei nº 8.080/90, na
resolução nº 33 do Conselho Nacional de Saúde e na Constituição
Federal, com denominações específicas, entre outros. Na
legislação, estes segmentos devem ser representantes do governo,
dos usuários, dos prestadores dos serviços de saúde, e dos
trabalhadores de saúde. Na verdade, na composição dos Conselhos
de Saúde existem segmentos definidos, mas não existe um ator
governo, um ator usuário, um ator prestador de serviço e um ator
trabalhador. Estes segmentos são compostos de verdadeiros atores
sociais, que interferem na vida social como um todo e no SUS,
diretamente, de forma positiva ou negativa, pois, além de fazerem
parte, direita ou indiretamente da política de saúde no Brasil, do
SUS, possuem interesses específicos, sistema propositivo próprio e
formulam demandas, as quais, podem ser, muitas vezes
contraditórias com relação ao SUS, tal como definido na legislação,
e divergente de outros atores sociais
353
.
351
CARVALHO, Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania. Op. cit., p. 104.
352
BALSEMÃO, Competências e Rotinas de Funcionamento dos Conselhos de Saúde no Sistema
Único de Saúde do Brasil. Op. cit., p. 312.
353
REZENDE, Conceição Aparecida Pereira; TRINDADE, Jorge. Manual de Atuação Jurídica em
Saúde Pública. Op. cit., p. 120.
158
Nesse sentido, observa-se que com a participação da sociedade organizada se
dá o processo de tomada de decisão para definição e estabelecimento da
destinação dos recursos da saúde, pois há a participação dos diversos segmentos
sociais.
Os Conselhos de Saúde têm reuniões plenárias ordinárias, que, em sua
maioria, realizam-se uma vez por mês, conforme recomendação do Congresso
Nacional de Saúde. Essas reuniões devem ser registradas em ata, elaborada pela
secretária executiva (ou, não havendo, cabe aos próprios conselheiros) e submetida
à apreciação e aprovação do Plenário do Conselho; após aprovação e assinatura,
serão encaminhadas para o gestor para fim de homologação. Compõem o Conselho
de Saúde:
Os Conselhos de Saúde são formados por quatro segmentos, sendo
que 50% das vagas são destinadas às entidades do segmento
usuário. Os outros três segmentos terão a seguinte divisão: 25%
para as atividades de profissionais de saúde e 25% para governos e
prestadores de serviço. As formas de escolha das entidades que
compõem o seguimento variam, conforme o Estada ou região. A
forma mais democrática, parece-nos, é a eleição das entidades na
conferência de saúde correspondente. Em alguns conselhos de
saúde, sua composição com a nominata das entidades, consta de lei
de sua criação. Tanto num caso, quanto no outro, escolhidas as
entidades, cabe a elas indicar seus representantes. A vaga do
conselho da saúde é da entidade e não do conselheiro, podendo
esta o substituir a qualquer tempo
354
.
Na seqüência, expõem-se a sua criação e implementação:
354
BALSEMÃO, Adalgisa. Competências e Rotinas de Funcionamento dos Conselhos de Saúde no
Sistema Único de Saúde do Brasil. Op. cit., p. 306.
159
Os conselhos de saúde estão criados por lei; eventualmente,
encontramos um conselho formado por decreto. Desde 23 de
dezembro de 1992, os conselhos de saúde em todo o Brasil
nortearam sua constituição e seua estruturação pela resolução nº 33
do Conselho Nacional de Saúde, que aconteceu em Brasília, nos
dias 15 a 19 de dezembro de 2000, conforme consta no relatório
final, na letra c do item 7, tema controle social, “o plenário da 11ª
Conferência Nacional de Saúde deliberou pela reformulação da
Resolução nº 33/92, sendo que esta reformulação acontecerá após
discussão e acolhimento de sugestões do conselhos estaduais de
saúde, que deverão buscar subsídios junto aos conselhos
municipais de saúde e à Plenária Nacional dos Conselhos”. A
coordenação da plenária Nacional de Conselhos de Saúde reuniu-se
imediatamente ao final 11ª Conferência Nacional de Saúde,
inclusive com calendário para a discussão da Resolução nº 33 nos
Estados e nas regiões. No ano de 2001, o debate sobre a
reformulação da Resolução nº 33 obteve âmbito nacional.
Conselhos municipais e estaduais, plenárias estaduais e regionais
de conselhos de saúde em todo o Brasil debateram e elaborarão
propostas para a Resolução nº 33. Na 10ª Plenária Nacional dos
Conselhos de Saúde, ocorrida de 18 a 20 de novembro de 2001,
foram debatidas e deliberadas propostas para a reformulação da
CNS nº 33/92. Essas propostas foram encaminhadas ao Conselho
Nacional de Saúde
355
.
Após ampla discussão da Resolução nº 33/92, como referido anteriormente, o
Conselho Nacional de Saúde aprovou a Resolução nº 333/2003, que impõe
diretrizes para reformulação, funcionamento e atribuições dos Conselhos de Saúde.
No tocante ao funcionamento, cabe verificar o que dispõe a quarta diretriz da
resolução, com especial atenção ao estabelecimento da plenária; estruturação
interna do Conselho de Saúde; secretária executiva; orçamento gerenciado pelo
próprio conselho; decisão mediante quorum mínimo; após três meses haverá o
pronunciamento do gestor público; fica claro que por meio dos conselhos ocorre uma
descentralização da tomada de decisão para a destinação dos recursos,
possibilitando, com isso, maior participação da sociedade na tomada de decisão e
acompanhamento dos gestores.
Segundo a Lei nº 8.142/90, a Conferência de Saúde (em caráter nacional)
“reunir-se-á a cada 4 anos, com a representação de vários segmentos sociais, para
355
BALSEMÃO, Adalgisa. Competências e Rotinas de Funcionamento dos Conselhos de Saúde no
Sistema Único de Saúde do Brasil. Op. cit., p. 307-308.
160
avaliar a situação da saúde e propor diretrizes para a formulação da política de
saúde nos níveis correspondentes”. Por isso, nota-se que se procurou criar, de
forma organizada, os Conselhos de Saúde com autonomia e significativas
atribuições, reconhecendo-se sua importância para o controle das ações no Sistema
Único de Saúde.
Em face do explanado, entende-se como principal motivo de criação e
institucionalização dos Conselhos de Saúde a questão do controle social por meio
da participação popular, das ações referentes à saúde pública. Por todas as razões
até aqui expostas, torna-se óbvio que a participação popular é um dos pilares do
SUS. Em verdade, é um instrumento de cidadania, na medida em que busca, por
meio da participação popular, a formulação de diretrizes para a atuação do poder
público, bem como o papel de fiscalização dos serviços públicos prestados pelo
Estado, visando à maior eficiência e a consolidação dos objetivos afirmados no
Estado Democrático de Direito.
Assim, cabe verificar como se dá a participação popular, bem como sua
importância para a concretização dos preceitos constitucionais referentes ao direito
fundamental social à saúde no Brasil. No tocante à participação social:
É um dos pilares do SUS, consagrado no inciso III do artigo 198.
Como instrumento de democracia participativa, a participação social
garante a população espaço direto na formulação, implementação,
gestão e controle de uma política pública, afasta as práticas
paternalistas e desenvolve o sendo de responsabilidade comum. A
inserção da sociedade no âmbito interno dos órgãos de formulação
política de saúde reverte a prática de tomada de decisões com base
apenas em visões técnico-burocráticas, distantes das reais carências
da população [...]
356
.
Nítido exemplo de atuação da população é o crescente número de demandas
envolvendo o Poder Judiciário objetivando a obrigação do Estado quanto ao
fornecimento de medicamentos e custeio de tratamentos médicos.
356
WENDHAUSEN, O Duplo Sentido do Controle Social. Op. cit., p. 172.
161
A participação popular em saúde é uma realidade recente. Desde muito a
população clama por prestações sanitárias de modo a reduzir a complexidade da
doença e ser proporcionado pelos poderes públicos condições razoáveis de saúde.
Pode-se exemplificar tal assertiva com o surgimento, em 1983, do Programa de
Ações Integradas de Saúde, consistindo na formação de comissões de saúde no
âmbito Estadual e Municipal. O programa, por sua vez, mais tarde, transformou-se
na atual forma dos conselhos de saúde. Já em 1987, O programa Sistema Unificado
Descentralizado de Saúde SUDS aponta para a manutenção de um sistema de
convênios, cristalizando princípios da saúde pública como a gratuidade e a
descentralização
357
.
Após a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada entre 17 e 21 de março de
1986, foi elaborado um relatório final em que é proposta a criação de um Sistema
Único de Saúde, bem como da Comissão Nacional de Reforma Sanitária,
encarregada principalmente pela defesa das propostas junto à Assembléia Nacional
Constituinte e tornando-se a principal base para a elevação da saúde à condição de
bem constitucionalmente protegido
358
.
A saúde pública é uma realidade em permanente mudança e evolução, por
isso, a participação popular é de extrema importância para a transformação da
realidade sanitária nacional. Desse modo, juntamente com a participação da
sociedade civil organizada mediante representação em classes, a participação ativa
da mídia como expoente das necessidades coletivas de saúde e a atuação
consciente do Poder Judiciário são elementos valiosos para a permanente
(re)construção da saúde pública.
Além da necessidade de reafirmar a participação popular, convém adentrar a
questão da saúde na Constituição de 1988, é preciso compreender como se chegou
357
BALSEMÃO, Adalgisa. Competências e Rotinas de Funcionamento dos Conselhos de Saúde no
Sistema Único de Saúde do Brasil. Op. cit., p. 303-304.
358
BALSEMÃO, Adalgisa. Competências e rotinas de funcionamento dos conselhos de saúde no
Sistema Único de Saúde do Brasil. Op. cit., p. 304.
162
à concepção do seu reconhecimento e normatização como um direito fundamental
social, condizente com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social e com as
inversões de paradigmas que acompanharam essas mudanças.
Na proporção em que ocorria o desenvolvimento industrial no século XIX,
partes representantes do Estado Liberal burguês iniciaram suas reivindicações por
melhoria das condições de vida à classe operária, na busca ao reconhecimento pelo
Estado dos direitos socioeconômicos, bem como da ampliação dos direitos políticos.
Assim, surgiu a consciência política da evolução dos direitos fundamentais, que
eram até então insuficientes para assegurar uma vida digna.
Doutrinariamente a ascensão do Estado Social teve como marco o advento
da Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, na
Alemanha, as quais delimitaram o período de transição do constitucionalismo liberal
ao constitucionalismo social, assegurando os direitos fundamentais e a ordem
econômica e social. Contudo, mais precisamente no período pós-Segunda Guerra
Mundial, em face da grande comoção que se instalara na sociedade civil, o Estado
foi motivado a reconstruir a sociedade, e o liberalismo, em conjunto com o
capitalismo, tentou estabelecer um Estado de Bem-Estar Social, também chamado
Welfare State
359
, por meio de políticas sociais. Por essas, asseguraria direitos
sociais, com especial destaque à proteção aos direitos à saúde e à educação para a
população.
Necessário aqui referir que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948 contribuiu para introdução dos direitos sociais nas constituições modernas,
bem como para mobilizar os países democráticos para que criassem meios de
promoção e proteção dos direitos sociais. Somente após a promulgação desta
declaração se pôde ter, historicamente, a certeza de que a humanidade partilha de
alguns valores em comum, acolhidos pelo universo subjetivo dos homens, e que a
359
Alguns autores apontam que o Welfare State surgiu como mecanismo de controle político das
classes trabalhadoras pelas classes capitalistas: a intervenção no processo de barganha limita
institucionalmente a capacidade de organização extra-estatal dos trabalhadores. Ver VACCA,
Giuseppe. “Estado e Mercado, público e privado”. Lua Nova, n. 24, set. 1991.
163
humanidade precisa preservar, principalmente após a Primeira e Segunda Guerra
Mundial, quando a humanidade assistiu às maiores violações de direitos e
atrocidades da história da humanidade. Assim, ao fim dos conflitos a comunidade
mundial queria, acima de tudo, a paz e a preservação da dignidade da pessoa
humana.
Em síntese, pode-se dizer que no ápice do Estado Liberal as constituições
visavam a justificar e garantir a separação de poderes, além de firmar juridicamente
os direitos de liberdade, que exigiam do Estado apenas abstenção frente aos direitos
dos cidadãos. Por sua vez, as constituições do Estado Social, principalmente do
pós-guerra, visavam assegurar ao indivíduo o seu direito e igualdade, com o que o
Estado passa a ter um papel decisivo e interventor nesses direitos, cabendo-lhe, por
meio de garantia dos direitos sociais, minimizar tais desigualdades.
A doutrina constitucional é una no reconhecimento de três gerações de
direito, as quais foram reveladas historicamente ao seu tempo e que se vinculam ao
lema de Revolução Francesa: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Ao presente
estudo cabe clarear a segunda geração de direitos fundamentais, os quais são
desdobramentos do direito à igualdade, para, posteriormente, analisar o direito à
saúde nesta perspectiva.
Os direitos de segunda geração são os econômicos, sociais e culturais, tendo
surgido em razão do impacto causado pela industrialização e dos graves problemas
econômicos e sociais que acompanharam esse processo. No entanto, pode-se
perceber que apenas o reconhecimento formal dos direitos de igualdade e de
liberdade não é suficiente para garanti-los aos cidadãos. Para tanto, exigiu-se do
Estado uma posição efetiva para minimizar os problemas sociais, daí seu caráter de
dimensão positiva. Caberá ao Estado outorgar aos cidadãos prestações de cunho
assistencial, propiciando saúde, educação, trabalho e outros. É, portanto, a
passagem das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas.
Além do caráter de direitos de cunho positivo, que é sua principal característica, trata
164
das liberdades sociais, que envolvem a vida em sociedade, tais como liberdade
sindical, direito de greve, direitos dos trabalhadores
360
.
Vislumbram-se, sob outro aspecto, os direitos de segunda geração como uma
etapa de proteção da dignidade humana, impondo deveres ao Estado quanto à
igualdade material dos seus cidadãos. Nessa etapa, entretanto, entende-se que tão
importante quanto salvaguardar os direitos individuais era proteger as instituições,
que seriam potencialmente mais abertas à participação e até mesmo à valoração do
indivíduo, uma vez que a função do Estado é primar pelo bem-estar dos indivíduos
em sociedade.
Portanto, os direitos de segunda geração exigiriam do Estado uma proteção
efetiva dos indivíduos como coletividade, buscando meios de propiciar a todos,
igualmente, condições dignas de sobrevivência, como visto no item anterior.
Todavia, mais do que o Estado propiciar aos seus cidadãos a garantia e eficácia
desses direitos, isso depende da própria forma de Estado adotada, um Estado
Democrático de Direito. Como ensina Streck:
Mais ainda, torna-se relevante acrescentar que o Estado
Democrático de Direito assenta-se em dois pilares: a democracia e
os direitos fundamentais. Não há democracia sem o respeito e a
realização dos direitos fundamentais-sociais, e não há direitos
fundamentais-sociais no sentido que lhe é dado pela tradição
sem democracia. Há, assim, uma co-pertença entre ambos. O
contemporâneo constitucionalismo pensou nessa necessária
convivência entre o regime democrático e a realização dos direitos
fundamentais previstos nas Constituições
361
.
Diante de tal afirmação, pode-se verificar que o efetivo cumprimento dos
direitos fundamentais depende basicamente do cumprimento da política adotada
pela forma de Estado, no caso, a forma democrática, não somente a participação no
360
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 55-56.
361
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 104.
165
processo decisório, como também sendo o instrumento para a realização de valores
essenciais à convivência humana em sociedade. Miranda destaca:
Não basta enumerar, definir, explicitar, assegurar só por si direitos
fundamentais; é necessário que a organização constitucional esteja
orientada para a sua garantia e sua promoção. Assim como não
basta afirmar o princípio democrático e procurar coincidência entre a
vontade política do Estado e a vontade popular, em qualquer
momento; é necessário estabelecer um quadro institucional em que
esta vontade se forme em liberdade e em cada cidadão tenha a
segurança da previsibilidade do futuro
362
.
Ocorre que, nas questões que se referem à saúde, a visibilidade nas três
primeiras décadas do século XX certamente ofuscou importantes processos
ocorridos nos momentos posteriores que antecederam a criação do Ministério da
saúde em 1953. É importante reconhecer que, com a criação do Departamento
Nacional de Saúde Pública, o que veio a ocorrer a partir de 1920, começou a vigorar
um modelo mais centralizado, que teria longa sobrevivência após a criação do
Ministério de Educação e Saúde, em 1931. Outro evento de extrema importância foi
a reforma implementada pelo ministro Gustavo Capanema, em 1941, cuja estrutura
verticalizada e centralizadora encontraria expressão com a criação dos Serviços
Nacionais de Saúde.
363
No tocante à participação do Brasil na OMS, há menção tanto nos trabalhos
retrospectivas sobre a organização como naqueles que se referem à história da
OPAS. Contudo, destaca-se a participação de Geraldo Paula Souza, que apresentou
uma proposta na década de 1940 para a criação de uma nova entidade para a
saúde mundial. Também ele recriava a Sociedade Brasileira de Higiene e, com a
instauração do VII Congresso Brasileiro de Higiene, em 1947, retomaram-se as
362
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. vol. IV. 2. ed. Coimbra: Editora Coimbra, 1998,
p. 77.
363
LIMA, Nísia Trindade. O Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde: uma história em três
dimensões. In: FINKELMAN, Jacobo (Org.). Caminhos da Saúde Pública no Brasil. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2002, p. 45.
166
atividades da antiga sociedade, formada em 1923, com fundamento na defesa de
uma atuação em âmbito nacional
364
.
Impende referir que em 1945, na conferência de São Francisco, nos
EUA, que tinha o intuito de aprovar o projeto de constituição
orgânica das Nações Unidas, Geraldo Paula Souza teria chamado
atenção para a falta de referência a questões de saúde e higiene, o
que veio a motivá-lo a apresentar uma proposta em conjunto com a
delegação da China para a criação de uma organização de âmbito
internacional de saúde. Ato contínuo, o Conselho Econômico e
Social das Nações Unidas reuniu-se a fim de convocar uma
Comissão Técnica Preparatória da Conferência Sanitária
Internacional, objetivando a criação da organização internacional de
proteção e promoção da saúde
365
.
Com as novas atribuições do Estado advindas do Estado de Bem-Estar
Social, foi oficialmente instituída a Previdência Social e o Estado passou a
responsabilizar-se, como acima referido, pela questão da forma de implementação e
prevenção sanitária, com o intuito de concretizar a saúde em sentido amplo . Nesse
mesmo passo, as atribuições da Organização Mundial da Saúde promoveram uma
visão universalizada da saúde, promovendo então a institucionalização sanitária no
âmbito interno dos Estados
366
:
[...] O Estado do Bem-Estar Social da segunda metade do século XX
reforça a lógica econômica, especialmente em decorrência da
evidente interdependência entre condições de saúde e de trabalho,
e se responsabiliza pela implementação da prevenção sanitária.
Instituem-se, então, os sistemas de previdência social, que não se
limitam a cuidar dos doentes, mas organizam a prevenção sanitária.
Inicialmente eles propunham uma diferenciação entre a assistência
social destinada às classes mais desfavorecidas e baseada no
princípio da solidariedade e , portanto, financiada por fundos
públicos estatais e a previdência social um mecanismo
assecuratório restrito aos trabalhadores. Entretanto, exatamente
porque a prevenção sanitária era um dos objetivos de
desenvolvimento do Estado, logo se esclarece o conceito de
364
LIMA, O Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde. In: FINKELMAN (Org.). Caminhos da
Saúde Pública no Brasil. Op. cit., p. 69.
365
Ibidem, p. 69.
366
VENTURA, Deisy. Direito Internacional Sanitário. In: BRASIL. Direito Sanitário e Saúde Pública. v.
1. Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 263-264.
167
seguridade social, que engloba subsistemas de assistência,
previdência e saúde pública
367
.
Após breve relato sobre a a importância da realização e efetividade dos
direitos fundamentais para a própria manutenção do Estado Democrático de Direito,
já se pode observar que não basta ao Estado garantir esses direitos, fazem-se
necessárias políticas públicas que os tornem realidade social para a cidadania, quer
aqui se trate do direito fundamental social à saúde, por se considerar um pré-
requisito primordial à realização da dignidade da pessoa humana, quer do próprio
fundamento do Estado constitucional.
A Constituição de 1988 nasceu após um período de democratização do
direito, da política e da própria sociedade, após longos anos de ditadura militar, de
uma história de usurpação e denegação de direitos. Por esse motivo, apresenta
características que justificam este intuito de proteção e garantias de direitos,
apresentando-se como uma Constituição dirigente e, também, econômica. Nesse
mesmo sentido, pode-se dizer que Constituição dirigente
368
é aquela que indica
programas, fins e ações governamentais a serem seguidos pelos governos,
objetivando uma mudança social e concretização de direitos. É um plano, uma meta,
tanto do Estado como da sociedade, a sua realização em conformidade com o que
dispõe. Contudo, a Constituição é dirigente por também ser uma Constituição
econômica, voltada à implementação de uma nova ordem econômica e social; para
tal pretensão, deve contemplar um sistema econômico que anime e,
conseqüentemente, um regime econômico que a instrumentalize.
369
367
DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In: BRASIL. Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 1.
Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 43.
368
Para maior aprofundamento do tema, ver CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
369
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado
Social: o Direito Sanitário. In: BRASIL. Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 1. Brasília: Ministério da
Saúde, 2003, p. 22-25.
168
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 6º
370
, traz o
direito à saúde como um direito fundamental social, complementado especialmente
pelo artigo 196
371
, no qual garanta “mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Com
esses dispositivos a saúde foi, portanto, um direito fundamental constitucionalmente
consagrado como um direito público subjetivo
372
, ficando sob a responsabilidade do
poder público desenvolver políticas para garantir tal direito aos cidadãos brasileiros.,
elucida-se o tema com as colocações de Canotilho:
Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos de
liberdades, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder
antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio
democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a
exigência de garantias de organização e de processos com
transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica,
direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestações
sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem
dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do
legislador democrático, desses direitos
373
.
Nessa esteira, como sendo norma de direito fundamental, possui também
uma dimensão objetiva
374
(a saúde como direito do cidadão e objeto de proteção do
370
Com a seguinte redação: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição”. BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República
Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 2007.
371
Com a seguinte redação: “A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de
1988. Brasília, DF: Senado Federal, 2007.
372
Conforme Mello: “Os direitos subjetivos situados ao nível da legislação são categorias jurídicas
instituídas pelo legislador e por estes endereçadas, por um lado às pessoas que possam nas
relações jurídicas as quais incidirá um direito legal, e, por outro, aos juízes que devam decidir casos
judiciais nos quais estejam em jogo esses direitos subjetivos legais”. In: MELLO, Cláudio Ari.
Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 144.
373
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit., p. 285.
374
Acerca da dimensão objetiva, para maiores esclarecimentos, Sarlet afirma que “[...] a doutrina
alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui
função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais
está condicionado, de certa forma pelo seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra
inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se neste contexto, de uma
responsabilidade comunitária dos indivíduos. É neste sentido que se justifica a afirmação de que a
169
Estado); logo, a saúde sempre deve estar protegida de qualquer ação ou omissão
por parte do poder público.
Sabe-se que os direitos sociais prestacionais exigem por parte do poder
público o sustento material para atender às demandas geradas por esses direitos. É
nesse ponto que o Estado encontra obstáculos reais à efetivação. Um dos
argumentos utilizados contra a eficácia dos direitos sociais prestacionais é questão
do seu caráter programático
375
. Alega-se que suas normas só serão exigíveis
quando partirem dos poderes instituídos programas e regulamentações,
concretizações legislativas que, a partir de então, as tornem direitamente aplicáveis
pelo Poder Judiciário. Para contrapor tal argumento, tomem-se os ensinamentos de
Sarlet:
Independentemente ainda da discussão em torno da
possibilidade de se reconhecerem direitos subjetivos a prestação
com base em normas de cunho iminentemente programático, (para
nos mantermos fiéis a terminologia adotada), importa ressaltar mais
uma vez que todas as normas consagradoras de direitos
fundamentais são dotadas de eficácia e, em certa medida,
diretamente aplicáveis já ao nível da constituição e
independentemente de intermediação legislativa . Em verdade, [...]
todas as normas de direitos fundamentais são direta
(imediatamente) aplicáveis na medida de sua eficácia
376
.
perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos
individuais com base no interesse comunitário prevalente, mas também, que de certa forma contribui
para limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar
preservado o núcleo destes”. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. cit.,
p. 155.
375
Quando se fala em norma programática, faz-se referência àqueles conteúdos constitucionais que
são disposições indicativas de tarefas a serem realizadas, ou seja, fins a serem atingidos pelos
poderes públicos em face das prerrogativas constitucionais. Segundo alguns doutrinadores, seriam
normas com certa vagueza de conteúdo, com baixa efetividade jurídica e social. José Joaquim
Gomes Canotilho declarou “a morte das normas programáticas”, no sentido que o caráter
programático das normas não seria motivo para o não cumprimento de seus dispositivos.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit.
376
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. cit., p. 289.
170
Em princípio, tratando-se de eficácia dos direitos fundamentais há que se ter
em mente sempre a necessidade de potencializá-los sob o prisma da norma contida
no artigo 5º, parágrafo 1º
377
, da Constituição Federal de 1988, inclusive com o
reconhecimento de direitos subjetivos a prestações, o que de regra, pressupõe a
análise do caso concreto. Entretanto, em se tratando especificamente do direito à
saúde, os argumentos pesam no sentido de que, para além da sua positivação no
artigo 6º da Carta Magna, encontra-se também no disposto do artigo 196, integrando
o título da ordem social. Sarlet grifa o fato de as normas de direitos sociais,
especialmente o direito à saúde, estarem diretamente vinculadas a direitos como a
vida e a dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual qualquer argumento contra
a sua aplicabilidade imediata torna-se insustentável
378
.
O conceito de saúde estabelecido pela OMS demonstra a amplitude com que
o direito busca a proteção da saúde, considerando-a muito mais que apenas a
ausência de enfermidade. A saúde é compreendida como envolvendo aspectos
físicos, mentais e emocionais, conforme expõe a OMS: “A saúde é um estado de
completo bem estar físico, mental, social e não apenas a ausência da enfermidade”.
Assim:
Partindo do conceito de saúde aceito pela própria OMS, que chamei
de conceito oficial, não é difícil demonstrar o quanto nossa
Constituição Federal buscou preservar esse importante interesse,
que é de cada um dos indivíduos, e indivisivelmente,de todos. A
partir da peculiar forma de tutela constitucional da saúde, conforme
destaco logo abaixo, obviamente o legislador infraconstitucional
seguiria pelo único caminho possível, o de dar complemento a essa
tutela reforçando- na maioria das vezes aspectos que tratam das
formas de preservar a saúde pública de atividades que venham a
afrontá-la
379
.
377
Com a seguinte redação: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (EC n .45/2004). §1 . As
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” BRASIL.
Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988.
Brasília, DF: Senado Federal, 2007.
378
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. cit., p. 307-309.
171
O novo paradigma que justifica a forma de normatização do direito à saúde na
CF/1988 é, por sua vez, a estrita vinculação do direito à saúde com a própria
realização da dignidade da pessoa humana e sua realização também na existência
em coletividade, ou seja, visa-se à proteção da qualidade de vida do sujeito de
direitos, bem como do ambiente em que ele está envolto:
Assim, como ocorreu com diversos direitos fundamentais, esse
conteúdo de saúde acaba por demonstrar parcial e insuficiente para
satisfazer as necessidades da pessoa humana e a construção de
uma sociedade com reduzida desigualdade social (objetivos do
Estado social). O individualismo do enfoque não atende os anseios
de promoção da saúde e, nem mesmo de garantia de permanência
sadia. Ambos dependem de forma marcante da qualidade de vida
comunidade. Com efeito, ainda que premiado a visão individual, o
cidadão não poderá continuar saudável sem o meio em que vive e
as pessoas que o rodeiam também estejam ou possuam
condições de salubridade, especialmente diante de contágio e da
contaminação pelos agentes diretamente provocadores de doença.
[...] Logo, a saúde deve ser examinada e tutelada no contexto do
ambiente circundante O mundo exterior e as influências sobre a
vida humana adquirem relevância, especialmente dos trabalhadores.
A preocupação é antes de tudo com a prevenção dos males,
mediante a garantia de condições de vida digna a população, sob
uma visão social e coletiva
380
.
Na contemporaneidade, o direito à saúde vem sendo amplamente discutido
por vários segmentos, especialmente no tocante à eficácia do argumento jurídico
com relação aos direitos sociais e suas dificuldades de aplicabilidade, que podem
ser internalizadas na avaliação da saúde enquanto bem econômico. Mesmo os
Estados mais tradicionais e mais desenvolvidos, bem como os que estão passando
pelo processo de reforma radical de suas bases estruturais, possuem interesse no
tratamento da saúde como direito. Contudo, o efetivo acesso universal dos serviços
público de saúde encontra outros obstáculos, visto que a saúde não tem apenas um
aspecto individual. Portanto, não basta que sejam apenas colocados à disposição da
população todos os meios de promoção, proteção e recuperação da saúde, pois o
papel que os Estados assumiram é o de garantir satisfatoriamente este serviço, além
379
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Saúde Pública e Improbidade Administrativa. In: BRASIL. Direito
sanitário e saúde pública. v. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 130.
172
de controlar o comportamento dos indivíduos no intuito de impedir-lhes quaisquer
ações que possam ser nocivas à saúde do povo
381
. Portanto:
Especialmente no campo da saúde pública, é absolutamente
imperativo reconhecer que sua proteção se faz exata e
precisamente pela compreensão de que as normas típicas do que já
se definiu como o Direito Sanitário não se conforma aos modelos
clássico de um Direito concebido à luz de paradigmas estatutários,
informados por princípios como certeza e segurança jurídicas, já que
é inerente esse processo a rematerialização a da racionalidade
legal e particularismo, a legitimidade determinada pela observância
de critérios fundados numa ética de convicção, a partir da qual os
fins acabam definindo os meios necessários para a sua consecução,
tudo em perfeita consonância com os novos desígnios
constitucionais já referidos
382
.
Os dispositivos constitucionais, tais como artigo 1º, inciso III
383
, tratam da
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito. Tendo em mente a extensão que o conceito da OMS apresenta, poder-se-ia
dizer que, dada a íntima ligação existente, este é um dispositivo constitucional de
proteção à saúde. Todavia, mais expressamente, o artigo 6º da Constituição Federal
dá à saúde o tratamento da categoria de um direito social. Segue Vigliar referindo
que
com muito maior importância que os dispositivos mencionados até
aqui, ressalto a importância dos artigos 196 a 200 da Constituição
Federal, que corroam a disciplina constitucional do tema, deixando
claro que a saúde é um direito de todos, e ainda um dever do
Estado, que garantirá mediante políticas sociais e econômicas, não
só para a redução do risco da doença, como promovendo o acesso
380
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004, p. 120.
381
DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In: BRASIL. Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 1.
Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 44-48.
382
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado
Social: o Direito Sanitário. Op. cit., p. 29.
383
Com a seguinte redação: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como
fundamentos: [...] III- a dignidade da pessoa humana”. BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da
República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 2007.
173
universal e igualitário a serviços que possibilitem a proteção e a
recuperação de portadores de doença
384
.
Em se tratando especificamente de direito à saúde, os argumentos pesam no
sentido de que, para além da sua positivação no artigo 6º da Constituição, encontra-
se o dispositivo do artigo 196, integrando também o título da ordem social. Aqui,
grifa-se a questão das normas de direitos sociais, especialmente por estar o direito à
saúde diretamente vinculado aos direitos como a vida e a dignidade da pessoa
humana, motivo pelo qual qualquer argumento contra a sua aplicabilidade imediata
torna-se insustentável
385
. Nesse raciocínio cita-se Tojal:
[...] a garantia do direito à saúde, expressamente referida no art 196
da Constituição, inscreve-se exata e precisamente no rol daquele
conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos
voltadas para a realização da nova ordem social, cujos objetivos são
o bem-estar e a justiça social
386
.
O direito à saúde, mais que uma norma constitucional, impõe deveres e sua
inaplicabilidade gera normas coercitivas, refletindo a opção pelo Estado Democrático
de Direito no sentido de que é pressuposto para a realização de tantos outros
princípios constitucionais, como próprio direito à vida, ou à dignidade da pessoa
humana, ou, ainda, o direito de liberdade material, igualdade e tantos outros. Ainda
com relação ao direito social consagrado na Carta de 1988, o direito à saúde
é princípio constitucional que dá unidade ao sistema e influi
diretamente sobre o conceito de saúde e que exatamente por
exprimir os valores fundamentais o constituinte reflete a ideologia
inspiradora da Constituição, a opção pelo “Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais...o bem
estar... a igualdade” (C.F., preâmbulo). A leitura mais superficial
deste princípio esclarece que o termo saúde, empregado em
qualquer conceito constitucional, deve ser precisado com a
necessária consideração de sua natureza de direito reconhecido
384
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Saúde Pública e Improbidade Administrativa. Op. cit., p. 131.
385
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. cit., p. 307-309.
386
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado
Social: o Direito Sanitário. Op. cit., p. 27.
174
igualmente a todo povo. Isto por decorrência lógica e imediata de tal
princípio, eventualmente expresso no preâmbulo da Constituição.
387
Interpretados os princípios que fundamentam o direito constitucional à saúde,
deve-se examinar as diretrizes que são fundamentais para a sua operacionalização
e concretização.
Nessa esfera, procurando determinar os objetivos do sistema de
seguridade social construído na Constituição para a assegurar o
direito à saúde, a afirmação da “universalidade da cobertura e do
atendimento... e ...do caráter democrático e descentralizado da
gestão administrativa, com a participação da comunidade: (C.F.
artigo194, § ún., I e VII), vincula o aplicador do conceito ao alcance
de tais objetivos sob pena de ilegalidade”
388
.
Em consonância com o exposto, sabe-se que está o Estado obrigado,
conforme o disposto no artigo 196 da Constituição Federal, a prestar os serviços que
visam à promoção, proteção e recuperação da saúde em todos seus aspectos, seja
físico, seja mental, bem como tem o papel de atuar na prevenção do risco à doença,
primando sempre pelo acesso universal e igualitário. Isso se dá por meio de políticas
públicas eficazes para a concretização do direito à saúde no Brasil e pela realização
de uma nova ordem econômica e social, que prima pela realização dos direitos
fundamentais. Logo, apresenta-se a força vinculante da Constituição dirigente,
opção do constituinte originário
389
. Destaca-se:
Lei Maior da República estipulou critérios para que a saúde seja
corretamente determinada em seu texto. Assim vinculou às políticas
sociais e econômicas e ao acesso às ações e serviços destinados,
não só a sua recuperação, mas também, à sua promoção e
proteção. Em outras palavras, adotou-se o conceito que engloba
tanto a ausência de doença, quanto seu bem estar, enquanto
387
DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. Op. cit., p. 30-31.
388
Ibidem, p. 31.
389
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado
Social: o Direito Sanitário. Op. cit., p. 27-28.
175
derivado das políticas públicas que o têm por objetivo, seja apenas a
política, seja sua implementação, traduzida na garantia de acesso
universal e igualitário as ações e serviços com o mesmo objetivo
(C.F.,artigo196)
390
.
A Constituição Federal inovou na terminologia ao referir a existência de
serviço de relevância pública, o que é diferente de serviço público. O legislador quis
dar especial atenção à manutenção e fiscalização deste serviço, em face da
relevância social das ações e serviços de saúde, como dispõe o artigo 197
391
da
Constituição Federal de 1988, devendo sua execução ser feita tanto pelo Estado
como por terceiros, bem como por pessoa física de direito privado. Isso também
significa que, existindo um confronto com outro serviço que não tenha a qualificação
de relevância pública, o administrador público deverá privilegiar o direito à saúde,
como, por exemplo, na destinação de recursos. Dessa forma, a Constituição veda a
inversão de prioridades por parte do administrador no exercício de sua função
pública
392
.
Portanto, o constituinte de 1988, estabeleceu ser a saúde um serviço de
relevância pública, dando ao poder público a competência para sua regulamentação
e controle. No entanto, permitindo que sua execução possa ser feita não diretamente
pelo Estado, mas também por meio de terceiros, deu traços ao novo sistema como
algo além dos limites exclusivamente estatais.
Assim, pode-se dizer que constitui um dever do Estado regular,
fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde, sejam eles
públicos ou privados, pois ambos são considerados de relevância
pública. Conjugando-se o disposto no artigo 197 da Constituição,
com o artigo 174 que reconhece o Estado como agente regulador
da atividade econômica cabe ao poder público, na área da saúde,
390
DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. Op. cit., p. 30.
391
Com a seguinte redação: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao
poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo
sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica
de direito privado”. BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 05
de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 2007.
392
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004, p. 127-129.
176
além das funções de fiscalizar, promover o planejamento tanto para
o setor público como para o setor privado. [...]. A função planejadora
do Estado deve ser realizada com vistas ao desenvolvimento
nacional equilibrado, à erradicação da pobreza e da marginalização
social, à redução das desigualdades sociais e regionais, à
construção de uma sociedade justa e solidária
393
.
No tocante ao conteúdo do artigo 198 da Constituição, traz as diretrizes que
devem ser seguidas e respeitadas para a operacionalização do Sistema Único de
Saúde. Veja-se o caput deste artigo: “as ações e serviços públicos de saúde
integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único,
organizado de acordo com as seguintes diretrizes [...]”. Sobre o artigo, entende-se
que
os incisos I, II e III do artigo 198 da Constituição Federal
estabelecem, expressamente, como diretrizes do Sistema único de
Saúde, a descentralização, o atendimento integral e a participação
da comunidade. No caput do artigo, estão princípios não registrados
explicitamente como tais. São eles: a saúde como direito de todos e
dever do Estado; a regionalização e a hierarquização dos serviços
de saúde; e a unicidade do sistema de saúde. Estes princípios foram
explicitados, posteriormente na Lei Orgânica de Saúde LOS.
394
Desse modo, a saúde torna-se um bem a ser efetivado por todos, cuja
responsabilidade principal é do Estado, a ser realizada de forma descentralizada.
Entretanto, a participação da comunidade reveste-se de extrema importância no
sentido do exercício da cidadania.
Nesse rumo, fortemente influenciado por todo processo de democratização
que sofreu o Brasil após longos anos de ditadura militar, o modelo de
descentralização do SUS procurou distribuir competências, delegando certa
autonomia aos entes federados na prestação do serviço de saúde e nas ações de
políticas sociais:
393
CARVALHO, Guido Ivan de; SANTOS, Lenir. Aspectos Jurídicos da Gestão de Serviços de Saúde
no Brasil. In: CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Os Médicos e a Saúde no Brasil. 1998.
177
No caso específico do Brasil, a federação, como instituição, e, no
terreno próprio das políticas sociais, o gasto social como política
pública, passaram por profundas transformações trazidas pelo
compromisso assumido pela redemocratização como pelo novo
paradigma econômico. A proposta descentralizadora foi reforçada
pela crítica ao padrão de proteção social construídos pelos governos
autoritários: hipercentralizado, institucionalmente fragmentado e
iníquo do ponto de vista dos benefícios distribuídos... A
descentralização foi vista como um instrumento de universalização e
acesso e do aumento do controle dos beneficiários sobre os
serviços sociais. À exceção da área da previdência, nas demais
áreas de política social brasileira, como educação fundamental,
assistência social, saúde e saneamento, habitação popular, foram
implementados programas que objetivaram transferir paulatinamente
um conjunto significado de atribuições de gestão federal aos níveis
estadual e municipal de governo
395
.
O processo de descentralização da saúde vinha sendo idealizado
anteriormente à Constituição de 1988, mas com ela ganhou força normativa e novos
parâmetros aptos à sua melhor operacionalização. Assim, a descentralização
sanitária apresenta-se como uma melhor forma de aproximação entre os centros de
poder e os anseios comunitários, viabilizando prestações em níveis locais e
proporcionando igualmente a fiscalização dos serviços de saúde pela população.
A criação do Sistema Único de Saúde acena para uma nova realidade
sanitária, apresentando-se como um expoente do regime democrático então
instaurado no Brasil. A reforma sanitária, dessa maneira, promoveu diretrizes
básicas para a implementação de um sistema único e descentralizado de
atendimento à saúde. Cabe vislumbrar alguns princípios do Sistema Único de
Saúde, que são igualmente primordiais para a compreensão das diretrizes impostas
na Constituição para a prestação deste serviço.
394
REZENDE, Conceição Aparecida Pereira; TRINDADE, Jorge. Manual de Atuação Jurídica em
Saúde Pública. In: BRASIL. Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 2. Brasília: Ministério da Saúde,
2003. p. 60.
395
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado
Social: o Direito Sanitário. Op. cit., p. 100.
178
Quanto ao princípio da unicidade, pode-se dizer que se refere ao fato de
serem os serviços e ações de saúde uma rede regionalizada e hierarquizada,
indicando que devem ser operacionalizados pelos ministérios, institutos, fundações,
autarquias e agências que tenham vinculação com a administração pública direta de
cada uma das esferas do governo. Sobre o princípio da universalidade, pretendeu o
constituinte estender este direito a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no
Brasil, conforme sua necessidades. Já o princípio da integridade da assistência diz
respeito ao direito que tem o cidadão de utilizar este serviço conforme sua
necessidade, incluindo atendimento, medicamentos, equipamentos e os
procedimentos que se fizerem necessários.
Acerca da função e importância da vigilância sanitária para o direito à saúde,
são pertinentes as seguintes considerações: “Nos artigos 196 e 200 da Constituição
Federal, a vigilância sanitária é definida como obrigação do Estado, não pairando
dúvidas sobre a posição que desfruta o conjunto de ações desse campo como
componente do conceito atual de saúde”.
396
A lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 Lei Orgânica da Saúde
regula, para todo Território Nacional, as ações e serviços de saúde
executados pelos Poderes Públicos e pela iniciativa privada. Ao
dispor sobre o Sistema Único de Saúde este diploma legal traz uma
definição para a vigilância sanitária que confere um caráter
abrangente ao conjunto de ações: além de uma natureza restritiva
de eliminar, diminuir ou prevenir riscos, há também uma dimensão
mais ampla de intervenção do Estado no aspecto da concepção
atual de saúde/doença. A definição reporta-se aos objetivos
finalísticos das ações de vigilância sanitária, situando-se num marco
referencial da esfera produtiva. De noção restritiva e imprecisa
quanto à função protetora da saúde, a vigilância sanitária passa a
compor o elenco de direitos fundamentais das pessoas, no seu
amplo aspecto de ação.
397
No mesmo sentido, outra lei que reforça a legislação de vigilância sanitária é
o Código de Defesa do Consumidor, que reconhece a vulnerabilidade do consumidor
396
COSTA, Ediná Alves. Vigilância Sanitária e Proteção da Saúde. In: BRASIL. Direito Sanitário e
Saúde Pública, p. 205.
397
Ibidem, p. 206.
179
nas relações de consumo, motivo pelo qual reafirma a responsabilidade do produtor
na questão da qualidade dos produtos que são oferecidos e ofertados, como
também reconhece a responsabilidade da vigilância sanitária como instituição, no
sentido de desenvolver as atividades, o controle e a publicidade da informação no
mercado de consumo. Na prática, existe pouca articulação, mas, em tese, os órgãos
de vigilância sanitária integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
398
Nos termos da Lei 9.782/99, cabe a União, por intermédio do
Ministério da Saúde, formular, acompanhar e avaliar a Política
Nacional de Vigilância Sanitária, postulado que se reafirma no
contrato de gestão. Por seu lado, a Lei nº 8.080/90, no seu artigo16,
inciso III, alínea d, determina como uma das competências do
Sistema único de Saúde definir e coordenar o sistema de vigilância
sanitária. Contudo, ao longo da trajetória de vigilância sanitária no
país até o presente momento, ainda não foi formulada uma política
nacional de vigilância sanitária e dada a reconhecer à sociedade
brasileira em documento emanado do Ministério da Saúde ou do
órgão federal de vigilância sanitária, o que denota que estas
políticas vêm sendo implementadas sob forte peso das
circunstâncias relevantes de cada conjuntura, sem uma articulação
mais orgânica com as demais políticas de saúde e com políticas
públicas de outros âmbitos setoriais com os quais esta área está
intrinsecamente relacionada.
399
Como se pode observar, após a Carta constitucional de 1988 buscou-se, por
meio de leis especiais, estabelecer diretrizes que assegurassem e visassem reduzir
riscos à saúde da população, uma forma eficaz de operacionalizar e concretizar o
direito à saúde, o qual foi, posteriormente, regulamentado via criação do Sistema
Único de Saúde (SUS).
O SUS é um sistema complexo e articulado, produto da Reforma Sanitária
brasileira, que teve origem no movimento sanitário, processo que mobilizou
politicamente toda a sociedade brasileira, no sentido de propor novas políticas e
modelos de organização de sistema, a fim de realizar a saúde em todos os seus
sentidos, curativa e preventivamente. Portanto, o SUS integra no sistema brasileiro,
399
COSTA, Vigilância Sanitária e Proteção da Saúde. Op. cit., p. 208.
180
a proteção social, juntamente com a Previdência Social e o Sistema Único de
Assistência Social (ainda em fase de implementação), compondo, conjuntamente, o
tripé da seguridade social estabelecido na Constituição Federal de 1988
400
.
O objetivo maior e único de todo o controle é a conquista dos
objetivos finais. Controle por controle e controle para punir se
perdem no processo e não cumprem com sua finalidade. Em última
análise deve-se controlar para conquistar a boa qualidade, maior
eficiência e eficácia. Controlar não é castigar, mas eficientizar. O
que buscamos é que o controlado ou a ação controlada seja boa e
bem feita [...] Tenho certeza de que determinadas medidas de alerta
e de exigências do cumprimento da lei acabam causando maior
impacto do que qualquer visão pontual sobre este ou aquele gasto.
A estratégia, a meu ver, é tomar medidas genéricas de efeito mais
profundo e amplo. Estas, de per si, podem resolver inúmeros
problemas particulares, individuais, pontuais. O pontual pode não
resolver o geral, mas o geral pode ajudar a resolver o pontual.
401
No tocante às leis que fundamentam sua forma de operacionalização como
sistema,
seguindo o influxo da Assembléia Constituinte e da formulação final
dada ao SUS no plano constitucional, foram editadas em 1990 duas
leis ordinárias federais, que formam as normas gerais em matéria de
Sistema Único de Saúde. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro, e a Lei
nº 8.142, de 28 de dezembro, que, em conjunto, compõem a Lei
Orgânica da Saúde. São dois diplomas que constituem um raro
exemplo de conformidade da Lei ao espírito, aos valores, princípios
e regras constitucionais
402
.
O Sistema Único de Saúde, com base nos princípios que o instituem, tais como
integridade, universalidade, gratuidade e igualdade, possui uma abrangência tanto
na cobertura como no oferecimento dos serviços de saúde, o que toma grandes
400
VASCONCELOS, C.M.; PASCHE, D.F. O Sistema Único de Saúde. In: CAMPOS, G.W.S. et al.
Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 532.
401
BALSEMÃO, Adalgisa. Competências e Rotinas de Funcionamento dos Conselhos de Saúde no
Sistema Único de Saúde do Brasil. In: BRASIL. Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 1. Brasília:
Ministério da Saúde, 2003, p. 345.
181
dimensões, envolvendo diversas formas de ação que beneficiem direta e
indiretamente a promoção e prevenção da saúde. Asseveram Vasconcelos e Pasche
O SUS é responsável pela oferta do conjunto da atenção à saúde,
que reúne ações promocionais, preventivas e assistenciais. As
ações de prevenção e vigilância em saúde são operadas pelos
serviços públicos de saúde, com abrangência nacional e cobertura
universal, e compreendem ações de vigilância sanitária sobre
alimentos, produtos e serviços, as ações de vigilância
epidemiológica sobre doenças e agravos, a vigilância ambiental,
também dos ambientes de trabalho, e as ações de imunização
referentes a um conjunto de doenças. O sucesso no controle da
poliomielite, do sarampo, da difteria, e da aids exemplifica as ações
de vigilância do sistema de saúde. Compete ao SUS, ainda, a
ofertar de serviços básicos de atenção à saúde da maioria da
população brasileira, ações de responsabilidade intransferível dos
municípios, organizada, entre outros, por meio das Unidades
Básicas de Saúde e Unidades de Saúde da Família, onde se
encontram Equipes de Saúde da Família (ESF)
403
.
Na tentativa de conceituar de forma sucinta o que vem a ser o Sistema Único
de Saúde e as suas diretrizes básicas, são fundamentais as considerações expostas
por Vasconcelos e Pasche sobre o que vêm a ser e quais os seus objetivos, a serem
concretizados no Estado Democrático de Direito:
O Sistema único de Saúde (SUS) é um arranjo organizacional do
Estado brasileiro que dá suporte a efetivação da política de saúde
no Brasil, e traduz em ação os princípios e diretrizes desta política.
Compreende um conjunto organizado e articulado de serviços e
ações de saúde, e aglutina o conjunto de ações públicas de saúde
existentes no âmbito municipal, estadual e nacional, e ainda os
serviços privados de saúde que o integram funcionalmente para a
prestação dos serviços aos usuários do sistema, de forma
complementar, quando contratados e conveniados para tal fim. Foi
instituído com o objetivo de coordenar e integrar as ações de saúde
das três esferas de governo e pressupõe a articulação de
subsistemas verticais (de vigilância e assistência à saúde) e
subsistemas de base territorial estaduais, regionais e municipais
402
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004, p. 149.
403
VASCONCELOS; PASCHE. O Sistema Único de Saúde. Op. cit., p. 540.
182
para atender de maneira funcional às demandas por atenção à
saúde
404
.
A Constituição, além de prever em seu artigo 198 a competência comum, no
sentido de que todos os entes públicos atuem no campo da saúde pública, também
determinou que integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo,
assim, o Sistema Único de Saúde. A atuação conjunta e coordenada no campo da
saúde é uma imposição constitucional. Nesse sentido, a Constituição retira do
campo do Estado e Município a possibilidade de dispor livremente sobre como
executar as políticas públicas de saúde, pois determina que deverão prestar este
serviço no âmbito do sistema único, cujas diretrizes impostas são nacionais.
É função do Sistema Único de Saúde a organização das atividades materiais
do poder público, com base num sistema normativo, que forma seu contorno jurídico.
Dessa forma, o sistema jurídico dá a forma ao material, enquanto o SUS confere o
conteúdo concreto ao preceito material.
Em 13 de setembro de 2000 foi promulgada a Emenda
Constitucional nº 29, que tratou mais detidamente do aspecto
financeiro do SUS pelos entes federativos, especialmente para
introduzir a obrigação da União, dos Estados e dos Municípios e do
Distrito Federal aplicarem certos patamares mínimos de recursos no
sistema de saúde. Segundo esta importante alteração constitucional,
Lei Complementar federal a ser editada até 2004 estipulará
percentuais a serem calculados sobre a receita tributária de Estados
e Municípios, determinando-se o menor valor a ser aplicado por
cada um desses entes nas ações e serviços públicos de saúde. Da
mesma forma, essa lei complementar estipulará o montante de
recursos a ser destinado do orçamento da União para o SUS.
Vacinado, porém, pela demora da regulamentação de outros
dispositivos constitucionais, o constituinte derivado acrescentou,
através do artigo 7º da Emenda Constitucional, o artigo 77 ao Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, estipulando regras de
aplicações de recursos para a saúde, que não poderá, nem mesmo,
pela Lei Complementar a ser editada até 2004.
405
404
VASCONCELOS; PASCHE. O Sistema Único de Saúde. Op. cit., p. 531.
405
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 157.
183
Visto de que forma se deu a institucionalização dos controles sociais, bem
como se constituiu o campo de incidência do Sistema Único de Saúde, é essencial
explanar acerca dos princípios que devem ser observados pelo Estado, pela
importância deste conhecimento ao usuário para maior aplicabilidade e efetividade
do sistema. Sobre os princípios e regras que limitam e impõem deveres ao Sistema
Único de Saúde, tem-se em destaque a universalidade, igualdade e gratuidade, que
passam a ditar as diretrizes essenciais deste sistema, motivo pelo qual se faz
necessário uma breve explanação conceitual acerca do conceito desses princípios.
O princípio da universalidade define o público a quem se dirige o sistema.
Pelo termo “universalidade”, por óbvio, observa-se que não serve apenas aos que
não têm condições financeiras, nem apenas àqueles que contribuem com a
Previdência Social, ou seja, o SUS deve servir a toda a população. Ainda, deve
servir tanto para as ações curativas como para as preventivas, pois, como traz o
inciso I do artigo 7º da lei nº 8.080, a universalidade da prestação do serviço de
saúde se dá em todos os níveis de assistência.
No que se refere ao princípio da igualdade, apresenta duas conotações: uma
em que se veda discriminação na prestação deste serviço de extrema relevância
social; a outra é que, sendo hospital público municipal, estadual ou federal,
indiferentemente de o paciente ter condições econômicas ou ser possuidor de plano
particular de saúde complementar, todo atendimento realizado nestes hospitais
tende a se submeter aos ditames constitucionais impostos pelo Sistema Único de
Saúde. Outra conotação é que o mesmo princípio da igualdade orienta o poder
público a observar a igualdade nas escolhas materiais de prioridade, ou seja, a
promoção prioritária de políticas públicas estatais nas regiões de maior carência,
priorizando sempre os mais necessitados. Por meio do princípio da igualdade,
entende-se não ser possível a discriminação de qualquer pessoa em face da origem
ou do domicílio, argumento, obviamente, reforçado pela universalidade do
atendimento
406
.
184
Em que pese ao princípio da gratuidade, pode-se dizer que é oriundo ou é
uma regra implícita contida no princípio da universalidade, pois é dever positivo do
Estado (e um direito social subjetivo dos cidadãos) cuidar da saúde de seus
cidadãos indistintamente; logo, cobrar pelo serviço prestado implica restringir o
acesso, ferindo, assim, a universalidade. Também, em razão de a saúde ser
obrigação estatal, um serviço público genérico e indivisível, alude a Constituição em
seu artigo 145,II, que isso se torna incompatível com a cobrança de taxas e, menos
ainda, de preços públicos (em face dos fins de lucro e natureza de
contraprestação)
407
.
No tocante à regionalização e hierarquização, na conformidade do artigo 198,
as redes de atuação do SUS têm diversos objetivos:
O objetivo primeiro do SUS é articular todos os serviços públicos de
saúde existentes no país que, atuando de forma ordenada, possa
haver otimização dos escassos recursos sociais em todos os níveis
da federação. Com efeito, a atuação conjunta doa entes públicos
propicia um ganho de escala e evita a sobreposição de estruturas
408
.
Essa articulação dos serviços sanitários é diretamente vinculada ao princípio
da democracia sanitária, pelo qual é premente a necessidade da participação da
população nos serviços de saúde como forma de constante ordenação das ações e
serviços sanitários. Sobre tal aspecto preleciona Weichert:
[...] com a coordenação estadual ou regional é possível organizar os
serviços por grupos de municípios - evitando o desperdício de
viabilização de semelhantes serviços em todas as localidades.
Dividindo-se a rede em níveis hierarquizados de complexidade (v.g.,
atendimento primário, baixa, média e alta complexidade) e
distribuindo-se as unidades por regiões, cria-se uma espécie de
pirâmide de serviços, de modo a eu haja uma distribuição abundante
406
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 157-163,
passim.
407
Ibidem, p. 163.
408
Ibidem, p. 165.
185
de serviços primários e de baixa complexidade em todas as
localidades (tarefa primordial dos municípios) e, conforme a
extensão geográfica e densidade populacional, sucessivamente
serviços de média e alta complexidade [...] sendo que esta tarefa
mais afeta aos Estados que tem o domínio regional da saúde.
Fundamental, porém, é que esses serviços estaduais estejam em
consonância com os serviços municipais de atendimento primário e
de baixa complexidade, de modo a racionalizar os custos sem
prejudicar os usuários
409
.
É Importante entender a intenção do Constituinte de 1988 ao elevar,
expressamente, os serviços de prestação a saúde a um status de serviço de
relevância pública, o que lhe confere prioridade diante dos demais serviços públicos,
requerendo maior atenção na sua eficácia como também na qualidade do serviço
realizado. Ao atribuir à saúde a relevância pública do seu serviço, quis o legislador
destacar que a saúde é decorrente de políticas sociais econômicas que visem à
redução do risco da doença e de outros agravos, pelo fato de ser, juntamente com
outros elementos, como alimentação, educação e moradia, um fator condicionante
da existência de uma vida digna. É justamente nesse aspecto que reside a
relevância do serviço público de saúde, sua vinculação direta com a vida e com a
dignidade da pessoa humana.
Em se tratando de hierarquização, obrigatoriamente, tende-se a elucidar a
questão também apresentada pelo artigo 198, I, que se refere à descentralização do
Sistema Único de Saúde. É por meio desta que o SUS remete aos entes locais, que,
por estarem mais próximos da população, possuem melhor qualificação para avaliar
e compreender as necessidades mais latentes, a fim de desenvolver condutas que
terão maior eficácia tanto na prevenção como no tratamento. Nesse sentido, ao
cominar o princípio da descentralização com o da hierarquização,
410
no que se refere
à prestação do serviço público, a opção adota internamente o princípio da
subsidiariedade, pois atribui ao Estado e à União somente os serviços que
409
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 165.
410
PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. Direito Sanitário: a relevância do controle nas ações e
serviços de saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 57: “[...] a assistência à saúde é livre à iniciativa
privada, mas é preciso entender que ela poderá participar de forma complementar do sistema único
de saúde, ‘segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio’ (CF, art. 199,
parágrafo 1º)”
186
Municípios e Estados, respectivamente, não tiverem condições de realizar, ou que
requeiram uma dimensão regional ou nacional para sua execução satisfatória.
411
Por mais que o SUS adote os princípios da hierarquização e da
descentralização, cabe ressaltar que a Constituição, ainda no artigo 198, I, fixa a
regra de direção do SUS em cada esfera de governo, independentemente de fixação
por norma infraconstitucional para sua aplicabilidade. Assim, para Weichert:
O art. 9º da Lei Orgânica de Saúde (Lei nº 8.080), regulamentando
essa regra constitucional, estabelece no âmbito da União a direção
Única será exercida pelo Ministério da Saúde, enquanto nos
Estados, Distrito Federal e Municípios, pela Secretaria de Saúde
Federal equivalente. No plano federal se situará a direção nacional
do sistema, pois a unidade pressupõe essa instância última de
gestão, que, com uma visão global, deverá coordenar a atuação de
todos os membros do SUS e suas respectivas redes de assistência.
Essa direção federal, no entanto, não implica em aniquilamento do
poder de autogestão pelos Estados-membros e pelos Municípios
dos seus serviços. Dentro dos parâmetros gerais fixados pelo
nacional, terão estes gestores ampla liberdade para definir a melhor
forma de execução dos serviços
412
.
No que se refere ao inciso II do artigo 198 da CF/88, o princípio da integridade
de assistência faz referência à prioridade que assumem as ações preventivas. A Lei
nº 8.080/90, em seu artigo 7º, II, ao determinar o conteúdo deste princípio, afirma
que é “um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso e em todos os níveis de
complexidade do sistema”. Como se pode observar, a integridade requer o
oferecimento, em qualquer que seja a doença, agravo ou patologia, da integridade
do serviço à saúde. Ainda, no caso específico da rede SUS, pode-se dizer que
fundamenta em nível de princípio constitucional a obrigatoriedade dos serviços
públicos de saúde, de oferecer, mesmo não estando na lista de serviço, todas as
411
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 166-167.
412
Idem, Ibidem, p. 169.
187
complexidades e especificidades. Por mais rara que seja a enfermidade, o Estado,
por intermédio do SUS, terá o dever de prestar adequado atendimento
413
.
Expressa-se, portanto, que a descentralização dos serviços vinculados à
saúde e as políticas publicas a serem efetuadas seguem princípios que se irradiam
da Carta política de 1988, bem como da Lei Orgânica da Saúde. Assim, esses
mecanismos descentralizados direcionam para o setor da saúde de forma a trazer
condições a cada região, Estado e Município de avaliar os setores deficitários,
redistribuindo funções e verbas a fim de solucionar as demandas na área da saúde.
O artigo 199 da CF/88 permite a realização dos serviços de saúde também
pela iniciativa privada, mas sob o controle do Sistema Único de Saúde. Assim,
também dispõe o artigo 20 da Lei 8.080/90: “Os serviços privados de assistência à
saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais,
legalmente habilitado, ou por meio de pessoas jurídicas de direito privado na
promoção, proteção e recuperação da saúde” dos indivíduos.
As normas gerais estabelecidas na Lei 8.080/90, no que se refere à iniciativa
privada, limitam-se à mera repetição do que já foi elucidado nas normas
constitucionais. No entanto, é vedada a participação direta ou indireta de empresas
ou capitais estrangeiros no serviço de assistência à saúde. O artigo 22
414
determina
que cada esfera de governo fica responsável e competente para expedir normas
sobre as condições em que se deve dar o funcionamento dos serviços privados de
assistência e atendimento à saúde
415
.
A função do planejamento é realizada pela União/Estado, que é o agente
normativo e regulador da atividade econômica, tendo em vista o desenvolvimento
413
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 170-171.
414
Com a seguinte redação: “Na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão
observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de
Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento”. BRASIL. Lei. 8.080 de 1990.
415
SALAZAR, Andréa Lazzarini; RODRIGUES, Karina; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Assistência
privada à saúde: regulamentação, posição e reflexos no sistema público. In: BRASIL, Direito Sanitário
e Saúde Pública, Op. cit., p. 353.
188
regional e nacional equilibrado, considerando princípios e objetivos constitucionais,
como a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza, a redução das
desigualdades sociais e a construção de uma sociedade justa e solidária. Assim,
deve o Estado exercer funções de fiscalização, planejamento e incentivo. O
planejamento, para o poder público, é fundamental para atingir os objetivos impostos
pela forma do Estado Democrático de Direito, pois a administração só pode realizar
aquilo que a lei determina, não deixando a saúde à mercê da vontade do gestor
público.
Se não houver um planejamento a médio e longo prazo, dois grandes riscos se
apresentam: de que os programas fiquem à mercê da vontade dos dirigentes do
SUS e que o setor privado não venha a interagir com o setor público. A saúde fica à
mercê também das leis do mercado, que passa de induzido para a figura de indutor
das políticas públicas no campo da saúde. “Apenas considerado a elevação dos
serviços de saúde à categoria de serviços de relevância pública, já não poderia se
admitir que a iniciativa privada que optasse por prestar tais serviços ficasse imune à
normatividade mais rigorosa do poder público”
416
enquanto limitador das atividades
privadas.
A definição das áreas necessitadas de reforço privado e de qual a
especialidade será contratada pelo poder público é uma atribuição do Conselho de
Saúde, pois irá deliberar acerca de qual será a entidade privada a ser contratada,
por quanto tempo deve se dar este serviço, bem como quais as localidades que
devem ser beneficiadas. Cabe dizer que, para a contratação deste serviço, o
procedimento objetivo a ser utilizado será o da licitação, na conformidade com o
artigo 37, XXI, da CF/88
417
.
A rigor a contratação dos serviços privados cabe aos Municípios,
salvo quando se tratar de estabelecimento de atuação regional ou
nacional (em função da hierarquização por complexidade), hipóteses
em que se situarão no contexto, dos serviços estaduais e federais.
416
SALAZAR, Andréa Lazzarini; RODRIGUES, Karina; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Assistência
privada à saúde: regulamentação, posição e reflexos no sistema público. In: BRASIL, Direito Sanitário
e Saúde Pública, Op. cit., p. 52.
417
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 200-201.
189
Não obstante, caso o município ainda esteja apto a gerir o sistema
local de saúde, pode o Estado (ou a União, caso esse também não
se tenha habilitado devidamente) realizar a contratação
418
.
Com a falta de estruturação dos serviços públicos de saúde e os conseqüentes
insegurança e descrédito da população, enfrenta-se uma crescente procura pelos
planos e seguros privados de saúde. Nesse contexto, cabe ao Estado a
regulamentação dos planos de saúde a fim de proteger o usuário do sistema privado
de saúde, conforme a Lei n. 9 656/98, que em seu artigo 1º, caput, estabelece:
“Submetem-se as disposições desta lei as pessoas jurídicas de direito privado que
operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do descumprimento da
legislação específica que rege sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação
das normas aqui estabelecidas [...]”.
Por óbvio, essa crescente ascensão do setor privado no atendimento à saúde
tem como fator condicionante a falta de recursos financeiros e a escassez e
qualidade de atendimento do Sistema Único de Saúde. No entanto, vale lembrar que
também é de responsabilidade do Estado o controle desta atividade, a fim de coibir
os abusos das empresas privadas diante da necessidade do cidadão/consumidor
desse serviço.
3.2. Estudos de casos
3.2.1. AIDS
Os sistemas, conforme já analisado, na ótica luhmanniana, possuem o
encargo de redução da complexidade do mundo por meio de uma complexificação
interna. Assim, as múltiplas alternativas do entorno
419
tornam-se passiveis de
418
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Op. cit., p. 202.
419
LUHMANN, Sociologia do Direito I, Op. cit., p. 45-46.
190
operacionalização pela incorporação da comunicação binária às fronteiras internas
da sociedade. A doença, dessa maneira, atua como evento gerador de
comunicações na sociedade. A complexidade da doença relaciona-se estreitamente
com a comunicação circularmente reproduzida. Desse modo, Sontag, referindo-se
aos casos de aids, explica:
A incerteza sobre a difusão previsível da doença quando e a quem
segue sendo um ponto central no debate sobre a Aids. Afetará de
forma generalizada, disseminando-se pelo mundo, às populações
marginalizadas: os chamados grupos de risco, para logo atacar
amplos setores dos pobres das cidades: Ou com o tempo se
converterá na clássica pandemia que varre regiões inteiras? Ambos
pontos de vista coexistem. A cada movimento de declarações e
artigos nos quais se afirma que a Aids ameaça a todos, segue outro
movimento de artigos nos quais são afirmados que se trata de uma
doença “deles”, e não de “nós”
420
. [Tradução livre]
Em que pese a pluralidade de posições acerca da aids como a
compreensão ultrapassada acerca de determinados grupos de risco ou a
marginalização dos portadores do vírus HIV , há comunicação e os debates sobre a
doença são constantemente levados adiante no meio social. A complexidade
sanitária, por isso, atua paradoxalmente na questão doença/saúde. Por outro lado, é
visível o paradoxo em relação ao acesso à saúde: existe uma imensa disponibilidade
de meios de prevenção/cura, promovidos pela constante revolução tecnológica,
entretanto, ao mesmo tempo em que tais meios tecnológicos são viabilizados, criam-
se situações de permanente exclusão. Mais uma vez saliente-se o dizer de Rocha,
para o qual a sociedade é plenamente capaz de controlar suas indeterminações,
todavia não cessa de produzi-las
421
.
420
SONTAG, Susan. La Enfermedad y sus Metáforas y el sida y sus Metáforas. Madrid: Taurus, 1996.
p. 162: “La incertidumbre sobre la difusión previsible de la enfermedad cuándo y a quién sigue
siendo un punto central en el debate sobre el sida. ¿Afectará por lo general, diseminándose por el
mundo, a las poblaciones marginadas: los llamados grupos de riesgo, para luego atacar a amplios
sectores de los pobres de las ciudades? ¿O con el tiempo se convertirá en la clásica pandemia que
barre regiones enteras? Ambos puntos de vista coexisten. A cada oleada de declaraciones y artículos
en los que se afirma que el sida nos amenaza a todos, le sigue otra oleada de artículos en los que se
afirma que se trata de una enfermedad de <<ellos>>, y no ya de <<nosotros>>.”
421
ROCHA, Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo Sistêmico. Op. cit., p. 36.
191
Melhor expondo, a sociedade, costumeiramente, opera mediante o código
ganho/perda, atribuindo muitas vezes a gestão do sistema à codificação exclusiva
ao sistema econômico. O paradoxo inclusão/exclusão pode ser visualizado, dessa
maneira, pela preponderância de critérios econômicos em detrimento da própria
saúde e da vida dos indivíduos, ou seja, dispõem-se dos meios necessários ao
tratamento de portadores do vírus HIV, bem como daqueles acometidos pelo mal de
Alzheimer, entretanto, por vezes, há notória exclusão em função do poder aquisitivo
daqueles que necessitam de tratamento.
O direito busca, reiteradamente, estabilizar expectativas, elencando
promessas no caso da saúde refira-se o artigo 196 da Constituição Federal de
1988 de modo a possibilitar a existência de supostos pontos de referência para
expectativas.
422
. Entretanto, a problemática em relação à complexidade sanitária
repousa não no sentido de futuro
423
dado pelo direito, mas, sim, na
operacionalização da comunicação mediante uma codificação diversa.
O direito opera mediante a seleção direito/não direito, estabelecendo
promessas de longa duração como é o caso dos dispositivos constitucionais. Por
isso, no âmbito do sistema jurídico, não é discutível que todos devam ter acesso aos
meios necessários à manutenção da saúde, incluindo-se aqui a prevenção e a cura,
bem como é assente a responsabilidade dos poderes públicos a sua promoção,
independentemente de qualquer critério excludente. A crise do Estado Social, como
já referido, pode ser espelhada no fato de que a sociedade opera uma constante
preponderância de critérios econômicos em detrimento das demais codificações
sociais. Por isso,
[...] vislumbra-se, concomitantemente, a desconstrução do Estado
Nacional e de seu projeto de bem-estar, o que não significa
necessariamente o desfazimento das estratégias interventivas, mas,
sobretudo, o seu redirecionamento para responder a outros
interesses que não aqueles veiculados pela “questão social”, como
se vê das políticas financeiras e tributárias de “atração” de
investimentos privados ou de proteção de determinados setores da
422
LUHMANN, Sociologia do Direito I, Op. cit., p. 58.
423
ROCHA, Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo Sistêmico. Op. cit., p. 38.
192
economia e, desde a perspectiva da globalização e da instabilidade
econômica decorrente, percebe-se um crescimento de poderes
excepcionais de que lança mão o Estado, na tentativa de tratar das
crises econômicas que se apresentam. Assim, com a globalização, a
instabilidade econômica aumentou e o recurso aos poderes de
emergência para sanar as crises econômicas passou a ser muito
mais utilizado, com a permanência do estado de emergência
econômico
424
.
A transposição direito-economia
425
viabiliza, assim, uma seletividade
sistêmica com base na inversão de códigos funcionais. No momento em que a
economia passa a atribuir sentido a comunicações até então cabíveis ao direito
operacionalizar, a sociedade torna-se cada vez mais dependente da bifurcação
ganhar/perder, refletindo tal identificação comunicativa na prestação de serviços
públicos de saúde.
A aids é tema de múltiplos e plurais eventos comunicativos. Ao tornar-se
tema de comunicação pelos meios de massas, a comunicação referente à
contaminação pelo vírus HIV acaba por moldar uma opinião pública forte e massiva,
promovendo observações e descrições da sociedade, bem como traduzindo a
necessidade de promoção de políticas públicas específicas. Refira-se novamente o
exemplo aposto no segundo capítulo acerca da quebra de patentes de
medicamentos destinados ao tratamento de soropositivos: são de relevância
construída pela opinião pública a viabilização de tratamentos e a promoção de
políticas públicas.
A doença em si mesma já é complexa, e essa complexidade é
potencializada pela exclusão em razão de critérios econômicos. Desse modo, a
complexificação sanitária é dada precisamente pelo paradoxo disposição de meios
para tratamento/inacessibilidade a esses meios, isto é, os meios existem, porém
possuem um custo financeiro que poucos podem suportar, bem como resta o estado
424
MORAIS, José Luis Bolzan de. Crises do Estado, Democracia Política e Possibilidades de
Consolidação da Proposta Constitucional. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; STRECK, Lênio Luiz. Entre
discursos e culturas jurídicas. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 20-21.
425
LUHMANN, Ecological Communication, Op. cit., p. 36-37.
193
por vezes ausente da prestação sanitária a qual resta obrigado por força
constitucional. A própria existência de formas de tratamento e a incrível disposição
de meios tecnológicos viabiliza a exclusão do acesso.
O capitalismo neoliberal, operado transnacionalmente, traduz os déficits aos
quais se submete o Estado de Bem-Estar perante a globalização econômica. Os
reflexos da globalização na manutenção sanitária são cristalinos; Logo, as
desigualdades tornam-se cada vez maiores:
Qual é a prova de que a desigualdade está aumentando e que está
relacionada com o que chamamos globalização? Atualmente, as
desigualdades econômicas mundiais são enormes: as rendas brutas
nacionais per capita de 2003 dos cinqüenta países menos
desenvolvidos do mundo, que abrigam quase 700 milhões de
pessoas, foram de 295 dólares, frente aos 28.210 dólares dos países
industrializados: quase cem vezes mais
426
. [Tradução livre]
O crescimento econômico torna-se, assim, o interesse predominante. Pouco
importam os riscos desde que não econômicos das decisões, os danos
ambientais
427
, as amarguras a que se submetem aqueles acometidos por
enfermidades, etc. Ao mercado capitalista globalizado importam o comércio, o
constante ganho, ainda que sua condição de possibilidade apresente-se como a
negação à saúde dos indivíduos. Por isso,
426
BEZRUCHKA, Stephen; MERCER, Mary Anne. La división letal: cómo afecta a desigualdad
económica a la salud. In: FORT, Meredith; MERCER, Mary Anne; GISH, Oscar (Comp.). El negocio
de la salud: los intereses de las multinacionales y la privatización de un bien público. Barcelona:
Paidós, 2006. p. 48: “¿Cual es la prueba de que la desigualdad está aumentando y de que está
relacionada con lo que llamamos globalización? En la actualidad, las desigualdades económicas
mundiales son enormes: las rentas nacionales brutas per cápita de 2003 de los cincuenta países
menos desarrollados del mundo, que albergan a casi 700 millones de personas, fueran de 295
dólares, frente a los 28.210 dólares de los países industrializados: casi cien veces más.”
427
Saliente-se a perspective luhmanniana acerca da preponderância de critérios econômicos em
detrimento de bens ambientais: para Luhmann, quando ocorre elevação nos preços o mercado é
imediatamente impulsionado, havendo, com isso, maior atividade na extração de recursos naturais.
Ao contrário, se os preços caem e as atividades já não mais se apresentam lucrativas, descontinuam-
se os processos produtivos. Dessa maneira, ainda que existam riscos ecológicos a serem
considerados, a lógica capitalista torna por obscurecer a visão de tais riscos, não os levando em
consideração, afinal, pela racionalidade da economia o que importa é apenas o ganho, e não suas
conseqüências. LUHMANN, Ecological Communication, Op. cit., p. 58-59.
194
existe um forte vínculo entre o aumento da desigualdade e a
globalização: Há muitas razões para se supor que sim. [...] quando
falamos de globalização simplesmente nos referimos ao sistema
capitalista mundial tal como evolucionou desde a década de 1970.
Na ordem mundial atual subjaz o requisito implícito do crescimento
das economias nacionais e o requisito explícito de uma maior
participação das empresas multinacionais na promoção deste
crescimento enquanto incrementam suas próprias margens de
benefícios. Se considera que o comercio é o eixo do crescimento
econômico
428
. [Tradução livre]
A economia globalizada, portanto, requer, necessariamente, um espaço de
atuação, o que traduz imediatamente a necessidade de uma menor ingerência
estatal nas relações privadas e de subvenções do poder público. O ideal capitalista
prega um regresso às raízes liberais do Estado, e quando o modelo de bem-estar
resta em crise, a transposição público-privado apresenta novamente sua face.
Refira-se que
atualmente as regras de comercio de fato exigem que os mercados
dos países pobres sejam livres ou não estejam regulados, enquanto
se mantém subvenções estatais a indústrias-chave nos países
industrializados. Estas subvenções beneficiam de forma aflitiva as
grandes empresas às expensas das entidades menores, inclusive
dentro dos países ricos, e causam devastação entre os pobres
429
.
[Tradução livre]
Deve-se partir para uma nova visão do papel do Estado e da conseqüente
necessidade de a saúde pública ser efetivada. Ao Estado, como modelo democrático
de bem-estar, cabe a contínua transformação da realidade social. Essa mesma
428
BEZRUCHKA; MERCER. La división letal: cómo afecta a desigualdad económica a la salud. In:
FORT; MERCER; GISH (Comp.). El negocio de la salud. Op. cit., p. 49: “¿Existe un fuerte vínculo
entre o aumento de la desigualdad y la globalización? Hay muchas razones para suponer que sí. […]
cuando hablamos de globalización simplemente nos referimos al sistema de capitalismo mundial tal
como ha evolucionado desde la década de 1970. En el orden mundial actual subyace el requisito
explícito del crecimiento de las economías nacionales y el requisito implícito de una mayor
participación de las empresas multinacionales en la promoción de ese crecimiento mientras
incrementan sus propios márgenes de beneficios. Se considera que el comercio es el eje del
crecimiento económico.”
429
BEZRUCHKA; MERCER. La división letal: cómo afecta a desigualdad económica a la salud. Op.
cit., p. 49: “[…] actualmente las reglas del comercio de facto exigen que los mercados de los países
pobres sean libres o no estén regulados, mientras se mantienen subvenciones estatales a industrias
clave en los países industrializados. Estas subvenciones beneficien de forma abrumadora a las
grandes empresas a expensas de las entidades más pequeñas, incluso dentro de los países ricos, y
causan devastación entre los pobres.”
195
sociedade deve operar mediante a diferenciação proposta pelos seus subsistemas:
a comunicação deve ser reconhecida de acordo com a estrutura comunicativa de
cada subsistema funcional, obedecendo-se aos critérios de diferenciação e, assim,
promovendo-se um crescente desenvolvimento social.
Estabelecer e respeitar binariamente o processo de reconhecimento
comunicativo pelos subsistemas funcionais é tarefa a ser imediatamente promovida
pelo Estado. A realidade transformadora à qual se propõe o Estado Democrático de
Direito depende, necessariamente, da viabilização de modelos discursivos,
notadamente pela formação de uma opinião pública firme e duradoura no sentido de
atribuição de responsabilidades aos atores privados para que o direito à saúde
venha a ser efetivo. Nesse sentido, vale fazer referência ao fato de que
[…] os ativistas contra a Aids do Brasil colocaram em conhecimento
da opinião pública a desesperada necessidade de que se ampliara o
tratamento, sua sensação levou ao acesso universal o tratamento da
Aids em 1997. Este modelo brasileiro é reconhecido agora em todo o
mundo
430
. [Tradução livre]
A complexidade da doença, estabelecida no paradoxo inclusão/exclusão por
critérios econômicos, pode ser superada por meio de uma opinião pública
direcionada e imersa na realidade à qual a sociedade é submetida, não na realidade
construída pela economia, mas pela realidade cotidiana da premente necessidade
de observância e cuidados para com a saúde dos cidadãos.
As possibilidades comunicativas são imensas. Basta analisar o caso
brasileiro da construção de uma opinião pública voltada à mazela social do
abandono dos indivíduos nos casos de contaminação pelo vírus HIV: com as
constantes pressões exercidas pela opinião pública espelho de necessidades reais
430
CERÓN, Alejandro; DAS, Abhijit; FORT, Meredith. La lucha por la salud de los pueblos. In: FORT;
MERCER; GISH (Comp.). El negocio de la salud. Op. cit., p. 303: “[…] los activistas contra el sida de
Brasil pusieron en conocimiento de la opinión pública la desesperada necesidad de que se ampliara
196
e forma de construção da realidade social a comunicação voltou a operar mediante
sua binariedade específica. Nesse passo, a política passou a reconhecer a
necessidade de operacionalização sistêmica mediante a bifurcação
governo/oposição, abandonando o processamento comunicativo segundo o código
ganhar/perder e promovendo, dessa maneira, políticas públicas voltadas ao controle
e tratamento dos casos de aids.
3.2.2. Mal de Alzheimer
De maneira diversa aos casos de aids apresentam-se os portadores do mal
de Alzheimer: a opinião pública ainda está adormecida nos casos dessa
enfermidade. Não há, ainda, pressão suficiente para a constituição de uma opinião
pública com força para promover as necessárias observações para que ocorra a
transformação da sociedade. Nesse caso, pode-se dizer que os portadores da
doença sofrem um abandono comunicativo senão completo abandono , o que
obscurece as possibilidades de a sociedade reconhecer perturbações e ruídos,
calando-se no que tange à viabilização de políticas públicas específicas para os
casos de Alzheimer.
Calando-se a sociedade e, consequentemente, o Estado , abrem-se
espaços para a exploração da doença por grandes laboratórios transnacionais,
viabilizando-se, dessa maneira, a consideração extrema do poder aquisitivo em
detrimento da própria saúde e da vida. Há a premente necessidade, por isso, de
viabilização de espaços públicos de discussão, conforme já referido anteriormente,
de modo a constituir uma opinião pública apta a fornecer ao sistema social
observações de uma realidade emergente e cuja necessidade de transformação é
premente.
el tratamiento y su sabor llevó al acceso universal al tratamiento del sida en 1997. Este modelo
brasileño se conoce ahora en todo el mundo.”
197
A questão sanitária é igualmente complexificada e pode ser exemplificada
por práticas como o comércio humano e a biopirataria. Menciona-se o fato ocorrido
no município de Passo Fundo, no estado do Rio Grande do Sul, levado a público
pelos meios de comunicação e referido por Berlinger e Garrafa:
[...] dirigentes da Faculdade de Medicina e do Instituto de Medicina
Legal da cidade de Passo Fundo vendiam fígados, rins e até
cadáveres inteiros para várias universidades particulares do sul do
país. O material vendido era usado para a atividade de ensino e
prática de várias faculdades médicas de universidade privadas. Essa
é a versão moderna de um outro ripo de comércio humano, sobre o
qual não havíamos falado até agora, que possui antigos precedentes,
sobretudo em épocas de obscuridade nas quais era proibido dissecar
os cadáveres e os anatomistas eram obrigados a pagar aos coveiros
para que fornecessem os corpos para estudo
431
.
E continuam referindo:
A propósito de transplante, aparecem nos anúncios classificados dos
jornais brasileiros, com regular freqüência, ofertas de rins (como
também úteros para aluguel), com preços oscilantes entre 10 e 20
mil dólares. Nas polêmicas discussões que tivemos, mesmo no
Brasil, sobre esses casos, sempre sustentamos, sem que jamais
ninguém tenha dado uma explicação clara, que se há tantos que
insistem em querer vender, evidentemente há também alguém que
compra
432
.
O comércio de partes do corpo humano bem traduz o debate do acesso à
informação e à geração da comunicação: não obstante a regulamentação limitando
a utilização de partes de corpos humanos apenas para determinados fins, existe um
evidente comércio, que a atuação dos poderes públicos não alcança. A
comunicação, por isso, depende da intervenção dos meios de massa e da
conseqüente assimilação da sociedade para geri-las. Igualmente, é de serem
431
BERLINGUER, Giovanni; GARRAFA, Volnei. O Mercado Humano: estudo bioético da compra e
venda de partes do corpo. Brasília: UNB, 1996. p. 88.
432
Ibidem, p. 88-89.
198
mencionadas as práticas envolvendo a biopirataria e a constante usurpação do
patrimônio genético, natural e intelectual. Sobre tal aspecto, leciona Shiva:
A deterioração da biodiversidade dá início a uma reação em cadeia.
O desaparecimento de uma espécie está relacionada com a extinção
de inúmeras outras, às quais ela se liga ecologicamente nas teias e
cadeias alimentares. A crise da biodiversidade, entretanto, não é
apenas uma crise do desaparecimento de espécies, que servem de
matéria-prima e têm o potencial de gerar incessantemente dólares
para os empreendimentos empresariais. Ela é, mais
fundamentalmente, uma crise que ameaça os sistemas de
sustentação da vida e os meios de subsistência de milhões de
pessoas nos países do Terceiro Mundo
433
.
O desenvolvimento tecnológico, ao mesmo passo em que proporciona uma
multiplicidade incrível de possibilidades de prevenção/tratamento, cria um
contingente de marginalização: é viabilizado o já mencionado paradoxo da exclusão
pelas possibilidades de inclusão, bem como se criam meios para formas de
exploração até então não visíveis na sociedade, como o comércio humano e a
biopirataria.
A complexidade sanitária, portanto, notadamente em relação à aids e ao mal
de Alzheimer, possui estreita vinculação com as possibilidades de tratamento e do
acesso a tais meios. Por outro lado, faz-se necessária uma maior atuação dos meios
de massas no que tange à manutenção de comunicações já consagradas (aids),
bem como daquelas cuja atenção dos meios de comunicação de massas ainda é
tímida (mal de Alzheimer).
A comunicação sanitária estabelecida nos casos de aids e do mal de
Alzheimer apresenta intrínsecas diferenças, consoante já visto nos casos de
comunicação/não-comunicação da saúde. Assim, os temas cuja recorrência (aids)
causam perturbações, ruídos nos sistemas, têm mais rápida capacidade assimilação
433
SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes,
2001. p. 92.
199
pela sociedade, ao passo em que aquelas comunicações de menor capacidade
expressiva (mal de Alzheimer) acabam relegadas a um segundo plano de relevância
e assimilação.
Desse modo, numa sociedade cada vez mais operante mediante a
codificação ter/não-ter, as comunicações com pequena força de expressão restam
excluídas. Nesse sentido, existem os meios necessários para o acompanhamento do
mal de Alzheimer, como medicamentos e tratamentos médicos, entretanto não há o
interesse social pela solução de tal enfermidade, não há comunicação sobre tal
doença e, logo, inexistem perturbações a serem abarcadas pelos sistemas sociais.
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A comunicação exerce papel de extrema relevância no meio social, sendo
que a própria concepção acerca da sociedade é dada, na ótica luhmanniana,
mediante a formação de sistemas autopoiéticos constituídos unicamente por
comunicações e possuindo sua operacionalidade determinada
comunicacionalmente. A sociedade já não pode ser vista ou estudada sob o ângulo
da tradicional visão humanista e territorial, mas, sim, enquanto existente em razão
da disseminação comunicativa em suas fronteiras.
Comunicação é sociedade. Por isso, é justamente no potencial comunicativo
que se radicam as possibilidades de avanço ou retrocesso social. A não-
comunicação reveste-se em abandono, em isolamento e, em última análise, em
estagnação social. Comunicações, por seu turno, traduzem possibilidades
emergentes de crescimento e desenvolvimento, acenando para sempre renovadas
comunicações e, dessa maneira, para novas formas de desenvolvimento social. Em
outras palavras, desenvolvimento social é sinônimo de constante produção de
comunicações, apenas assim é possível a complexificação sistêmica para,
paradoxalmente, reduzir complexidade do entorno.
Desde épocas remotas, o homem depara-se com a premente necessidade de
se comunicar. A comunicação, por isso, consiste num fenômeno eminentemente
social, tornando-se requisito indispensável à evolução da sociedade. Nesse passo,
adquire particular relevância o papel dos meios de comunicação de massa como
condição de possibilidade à reprodução comunicativa. A constante recursividade na
qual operam os meios de massa acaba por proporcionar imensas alternativas à
sociedade, ampliando as possibilidades da comunicação, pois, afinal, quanto mais
se comunica, maior a abertura para a geração de novas comunicações.
Os meios de massa, por isso, possuem o encargo de promover
constantemente novas comunicações, promovendo certa ligação entre passado e
201
futuro, isto é, ligando a memória social, caracterizada por comunicações
consolidadas, com novas possibilidades comunicativas. Essa função desempenhada
pela mídia é de extrema relevância à geração de comunicações que, posteriormente,
os sistemas sociais deverão absorver e operacionalizar de acordo com suas
estruturas internas. O desenvolvimento do sistema social, por isso, é dependente
das irritações que sofre, bem como do nível de clausura operacional que promove,
logo, quanto maior a clausura operacional da sociedade, maiores as possibilidades à
abertura cognitiva e, conseqüentemente, maiores as possibilidades comunicativas.
A mídia, dessa forma, fornece elementos que o sistema social deve identificar
binariamente, mediante a necessária bifurcação sim/não. A notícia levada a público
pelos meios de comunicação tornam-se elementos de interesse social, a sociedade
passa a ocupar-se com a operacionalização dessas comunicações com o intuito de
redução da complexidade e assimilação de alternativas de controle dessas
indeterminações pelos sistemas funcionais.
Outra dimensão acerca dos meios de comunicação de massa deve ser
destacada: a constante atuação na formação e transformação da opinião pública. A
opinião pública é um artifício comunicativo extremamente importante para a
transformação social, é por seu intermédio que se viabilizam observações de
segunda ordem. Desse modo, a mídia ao construir permanentemente comunicações,
volta-se à constituição da opinião pública para certos casos, tornando possível, com
isso, o fechamento operacional sistêmico em nível de uma observação da
observação.
A função da opinião pública reside, precisamente, em fornecer descrições de
um estado do sistema ou, em outras palavras, a descrição da sociedade em
determinado momento. Isso expande as possibilidades comunicativas incrivelmente,
pois a opinião pública apresenta-se como um espelho da sociedade, como uma
forma de empenho à constante perturbação dos sistemas funcionais, culminando na
permanente revisão e transformação da realidade social mediante os influxos
trazidos pela incerteza e complexidade dessa mesma sociedade.
202
A possibilidade da sociedade se auto-descrever mediante a formação da
opinião pública oferece elementos importantes para a mudança do estado do
sistema. Essa operação de auto-descrição da sociedade que a opinião pública
realiza reflete, por isso, na possibilidade de atenção do sistema social para questões
até então esquecidas ou pouco valorizadas.
A opinião pública, assim, é de extrema relevância para a efetivação do direito
à saúde, direito de todos cuja promoção deve ser dada com vistas à crescente
qualidade de vida dos indivíduos. Entretanto, a realidade sanitária cotidiana revela
um paradoxo: existem garantias as mais diversas à saúde pública, sendo tal direito,
inclusive, constitucionalmente estatuído, porém, visualiza-se, da mesma forma, um
imenso espaço de abandono, um espaço onde aparentemente carece-se de força
jurídica para a efetivação do direito à saúde.
Notadamente, a comunicação traduz possibilidades à saúde, todavia são
passíveis de reconhecimento certas áreas obscurecidas no âmbito da comunicação
sanitária. A sociedade é e operacionaliza comunicações, o restante inexiste para o
sistema social, faz parte de seu entorno. Bem espelham essa realidade doenças
como a aids e o mal de Alzheimer: na primeira existe o interesse social para seu
controle e tratamento, fato que viabiliza políticas públicas constantemente levadas
adiante pelo Estado; Já no segundo caso, há pouco interesse social e,
conseqüentemente, uma comunicação fraca ou não-comunicação, traduzindo-se,
assim, em prestações mínimas ou ausência de prestações estatais.
Conforme visto, a comunicação é algo improvável em razão das três
improbabilidades exaustivamente mencionadas: a impossibilidade de correta
compreensão acerca da comunicação em função da individualização das
consciências, a dificuldade em aceder a um maior número de receptores do que
aqueles presentes em dada situação e a improbabilidade de a comunicação ser
aceita e incorporada pelo receptor.
203
A superação das improbabilidades, por isso, é condição de possibilidade para
a constante revisão dos pressupostos sanitários, devendo ser perseguida por meio
da atuação do Poder Judiciário; pela realização de planejamentos no âmbito do
direito à saúde e, sobretudo, pela formação de práticas voltadas à permanente
discussão acerca da saúde e sua veiculação nos meios de comunicação de massa.
Entretanto, essa formação de práticas discursivas requer a permanente
atualização da comunicação sanitária, proporcionando a transformação da
penumbra comunicativa na qual se apresenta parte da saúde pública como o
exemplo dos casos do mal de Alzheimer em comunicações emergentes e fortes,
com potencial transformador e como maneira de efetivação da saúde como um todo,
não restrita apenas a determinadas enfermidades em função da insegurança que
proporcionam, como a Aids.
Nesse sentido, a superação das improbabilidades sanitárias depende da
constante atuação cidadã como forma de, igualmente, efetivar a garantia à saúde,
viabilizando o surgimento de sempre renovadas comunicações e a constituição de
uma opinião pública voltada à constante melhora da saúde pública enquanto meio
de combate ao abandono no qual, não raro, se encontra boa parte da população
brasileira.
Essa atuação, como participação comunicativa, requer espaços democráticos
de discussão. Tais práticas discursivas, como expoentes da participação popular,
devem ser viabilizadas pela criação desses espaços democráticos. Nesse sentido,
considerando a interligação e interdependência de toda a comunicação, vislumbra-
se a necessidade de promoção das condições de possibilidade para tais discussões,
como a inclusão digital, o maior acesso dos indivíduos aos meios de comunicação, a
realização de consultas populares, etc.
204
Nota-se, com isso, que a saúde não é um conceito isolado, enclausurada em
um solipsismo ilusório de que a realidade sanitária depende única e exclusivamente
de investimentos e atenções próprios. A transformação da realidade da saúde
pública no Brasil depende de uma extensa rede de fatores: do investimento na
própria saúde à formação de uma consciência crítica e à viabilização da participação
popular como forma de constituição de uma opinião pública voltada às necessidades
da população. Para que se torne possível a transformação da realidade sanitária, via
a contínua geração de comunicações, deve-se considerar, portanto, não apenas a
saúde, mas o acesso aos meios de comunicação, os investimentos em educação e a
viabilização de política públicas efetivas de cunho emancipatório ao invés de
práticas assistencialistas.
Contudo, a criação de políticas públicas depende justamente da pressão dos
atores sociais no sentido de produção comunicativa. Isso é bem ilustrado pelos fatos
cotidianamente verificados, notadamente em relação à doenças erradicadas ou até
então pouco preocupantes, como a dengue, febre amarela, rubéola, etc. O Estado
apenas ocupa-se com o que torna-se produto de comunicações massivas. O
surgimento ou agravamento de enfermidades por si só não possui força para a
atuação dos poderes públicos, é necessário para isso a constituição de uma opinião
pública voltada ao controle dessas doenças.
Refira-se que as grandes campanhas sanitárias ou os programas levados
adiante pelo Ministério da Saúde com maior destaque são precisamente aqueles
cujo conhecimento da população permite um maior desconforto social e, por
conseqüência lógica, a maior cobrança quanto à sua efetivação. A insegurança da
coletividade gera comunicações que, operacionalizada pelos meios de comunicação
de massa, pressiona a esfera pública para seu controle. As campanhas e programas
sanitários estatais são, hoje, reflexo justamente dessas pressões. Programas como
a farmácia popular, o programa nacional de combate à dengue, o programa nacional
de DST/aids, entre outros, refletem de forma inequívoca esse fato.
205
Quanto maior forem os níveis de comunicação, maiores as possibilidades de
operacionalização sistêmica dessas comunicações e, por isso, igualmente maiores
as possibilidades de realização do direito à saúde. Políticas públicas sanitárias são
necessárias, todavia, sua criação depende diretamente dessas pressões exercidas
comunicativamente pela opinião pública. Elementos como a existência fática de
doenças, a necessidade de medicamentos pela população carente, as precariedade
das condições de instituições sanitárias públicas, a incompetência e, principalmente,
a desumanização de profissionais da saúde apenas serão foco de atenções estatais
quando objeto de comunicações, quando a opinião pública voltar-se a tais
problemas cobrando do Estado a solução de tais mazelas.
Por isso, a realidade sanitária espelhada na norma constitucional é, por si só,
uma quimera. A realização plena e irrestrita, a efetividade da saúde como direito de
todos e o cumprimento estatal da promoção sanitária diga-se seu dever não
dependem da criação de garantias legais para isso, afinal tais garantias existem e
não são cumpridas. O pleno respeito à ordem constitucional estabelecida,
notadamente quanto à efetivação da saúde, apenas é possível via a mobilização da
coletividade objetivando a formação da opinião pública específica e voltada à
realização da saúde.
A comunicação da saúde, assim, requer uma compreensão holística e
interligada com todo um contexto social. A viabilização de sua transformação e
geração de comunicações renovadas e de acordo com os interesses sociais
perpassa pela necessidade da participação popular como exercício de cidadania e
de sua difusão pelos meios de comunicação de massa. A saúde, desse modo, deve
ser objeto de debates, havendo a necessidade da construção de uma opinião
pública robusta e voltada à discussão acerca de temas de relevância à sociedade,
possibilitando, dessa maneira, a contínua produção de comunicações para a
irritabilidade dos sistemas sociais e sua conseqüente operacionalização como forma
de efetivação da garantia constitucional à saúde.
206
Somente pela constituição da opinião pública é que serão levados adiante
cada vez mais programas de atenção sanitária, concretizando-se gradativamente a
promessa constitucional da total atenção à saúde a ser promovida pelo Estado.
Apenas dessa maneira o indivíduo, excluído do sistema da sociedade, incluir-se-á
em uma realidade voltada ao seu crescente bem-estar como expressão de
possibilidade emancipatória.
207
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