94
O Direito Romano do período final, como já citado anteriormente, apenas contém o
embrião do fenômeno que, na modernidade, se concretiza: a universalização do instituto da
actio. Essa universalização transforma o direito material em um direito obrigacional,
relativizando direitos absolutos ou universalizando direitos obrigacionais, como afirma
Ovídio A. Baptista da Silva, no campo do processo. Tal constatação é feita com base nas
obras dos pandectísticas do século XIX, que investigam o instituto como fonte da
compreensão do processo civil emergente como ciência. A concepção do processo a partir do
instituto da actio romana, ligada às relações obrigacionais, já contém em si a subtração da
essência do direito material (o que ele é), para que o processo passe a ditar seu conteúdo. A
litiscontestatio
195
, como momento essencial do procedimento da actio, dá fundamento a essa
inversão, porque foi concebida pela majoritária doutrina do séc. XIX, como novação
196
da
relação obrigacional originária, pela instauração do processo e estabilização da instância.
A compreensão de que o processo pode alterar o direito material, com fundamento na
noção de novação, ditada pela pandectística, fundamenta o pensamento inquestionado acerca
do processo como técnica, que dita a natureza do direito material, a ponto de fabricar seu
conteúdo e dar-lhe nova essência a partir do acoplamento das eficácias sentenciais (que são
desligadas do direito material) ao direito que agora é outro direito, o fabricado pelo processo,
porque, com o processo, a relação original se transforma e cria para o autor o direito de
195
Acerca da litis contestatio, ensina Ovídio A. Baptista da Silva, citando Vittorio Scialoja: “ ‘En el período
formulario, la litis contestatio coincide con el momento en que, mediante el decreto del pretor que emite la
fórmula y la aceptación de ésta por parte de los litigantes, se establecen precisamente los términos
fundamentales en que habrá de desarollarse el juicio; lo cual se realizaba, en el procedimiento de las legis
actiones, mediante la solemne invocación de los testigos. Con la diferencia, naturalmente, de que en la litis
contestatio del procedimiento formulario no hay ya formas solemnes ni la solemne invocación de los testigos.
‘El pretor, a continuación de todo el desarollo del procedimiento in yure, nombra el juez para el procedimiento
in judicio y establece el contenido de la acción y eventualmente el de las excepciones, réplicas, etc. fijando los
términos en la fórmula, que hemos dicho que es la instrucción escrita dada a este efecto al juez.’ (Procedimiento
Civil Romano, trad. Espanhola de 1954, § 29, p. 231). a) Se pudéssemos estabelecer una equivalência entre la
litis contestatio romana e a estrutura do processo civil moderno, poderíamos sugerir que este instituto
correspondesse ao ato através do qual se encerrava a fase postulatória, com a conseqüente estabilidade da
instância, resultando estabelecidos pelo pretor os limites da controvérsia, seja pela fixação do conteúdo da
ação, seja, eventualmente, pela admissão das exceções suscitadas pelo demandado.” SILVA, Ovídio A Baptista
da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica.Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 61.
196
A concepção majoritária da litiscontestatio como novação foi objeto da crítica de Windscheid e elemento que
compôs sua polêmica com Muther. Inobstante isso, a divergência parece ser apenas gramatical, já que
Windscheid, defendendo sua posição de que a actio não era consumida pela litis contestatio, afirmou, também,
que a actio e a correspectiva obligatio eram absorvidas pelo iudicium (que se instalava por força da
litiscontestatio) e “En realidad, el acreedor no obtiene lo que dice la obligatio, sino lo que se le asigna en el
iudicium.” WINDSCHEID, Bernhard. La “actio” del derecho civil romano, desde el punto de vista del derecho
actual. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la “actio”. Buenos Aires: Ediciones
Juridicas Europa-America, 1974. p. 89. Já Muther sustentava que, com a entrega da fórmula e a nomeação do
iudex, extinguem-se a actio e a obligatio, nascendo uma nova relação entre autor e demandado (contrahitur
iudicio). MUTHER. Theodor. Sobre la doctrina de la actio romana, del derecho de accionar actual, de la
litiscontestatio y de la sucesion singular en las obligaciones. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor.
Polemica sobre la “actio”. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974. p. 277.