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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM DIREITO
Daniela Boito Maurmann Hidalgo
DA IDEOLOGIA À AUTENTICIDADE NA COMPREENSÃO DOS PRESSUPOSTOS
DO ACONTECER DO DIREITO MATERIAL NO PROCESSO: UMA APOSTA
PARADOXAL NA AÇÃO DE DIREITO MATERIAL COMO CATEGORIA
HERMENÊUTICA
São Leopoldo
2008
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Daniela Boito Maurmann Hidalgo
DA IDEOLOGIA À AUTENTICIDADE NA COMPREENSÃO DOS PRESSUPOSTOS
DO ACONTECER DO DIREITO MATERIAL NO PROCESSO: UMA APOSTA
PARADOXAL NA AÇÃO DE DIREITO MATERIAL COMO CATEGORIA
HERMENÊUTICA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Direito da Área das
Ciências Jurídicas da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos, para obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Ovídio Araújo Baptista da Silva
São Leopoldo
2008
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Ficha catalográfica
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Vanessa Borges Nunes - CRB 10/1556
H632d Hidalgo, Daniela Boito Maurmann
Da idelogia à autenticidade na compreensão dos pressupostos
do acontecer do direito material no processo: uma aposta
paradoxal na ação de direito material como categoria
hermenêutica / por Daniela Boito Maurmann Hidalgo. – 2007.
239 f. ; 30cm.
Dissertação (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2007.
“Orientação: Prof. Dr. Ovídio Araújo Baptista da Silva,
Ciências Jurídicas”.
1. Direito material. 2. Processo 3. Ação de direito material.
4. Hermenêutica filosófica. I. Título.
CDU 340.1
Dedico ao pote de ouro,
que encontrei no fim do arco-íris,
meu tesouro sagrado, razão de tudo,
minha filha Isabela.
Dedico ao meu marido, Mauro, por tudo,
absolutamente tudo,
e, sobretudo, por todo o amor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Prof. Dr. Ovídio Araújo Baptista da Silva cuja obra e ensinamentos
foram a inspiração desde o início de meus estudos na área da pesquisa, quando foi
orientador da monografia de especialização que apresentei no Curso de Especialização em
Processo Civil da PUCRS para o caminho que passei a trilhar. Desde que o curso foi
finalizado, a decisão de ingressar no curso de Mestrado e novamente solicitar sua orientação
havia sido tomada. Isso me trouxe à UNISINOS, pelo quê o agradecimento deve ser
creditado, também, a ele, que, aqui, encontrei, definitivamente, o amor pela pesquisa e pela
vida acadêmica. Agradeço ao Professor Ovídio, ainda, por ter aceitado essa nova orientação,
por ter respeitado minhas idéias, por ter sido sempre crítico e, ao mesmo tempo,
compreensivo. Agradeço a ele, então, por ter marcado aquilo que será o meu futuro, mas não
apenas por isso, porque todos sabem que o futuro do processo e, como dito aqui tantas vezes,
do direito material, está definitivamente marcado por sua obra. Esse futuro, que acredito seja
inexorável está cada vez mais perto, pois as sementes desse conhecimento continuam a se
espalhar.
Agradeço, ainda, ao Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho, por suas aulas,
sempre tão abertas e, por isso, tão produtivas; pela orientação no estágio de docência; pelo
apoio; pelas palavras de estímulo; pela confiança.
Agradeço ao Prof. Albano Marcos Bastos Pepe, pelo modo como ingressou nas nossas
vidas, pelo modo como nos ensinou a arte de ensinar, pelo modo como permanecerá em
nossas vidas.
Agradeço aos colegas Rafael Tomaz de Oliveria, Luis Fernando Moraes de Mello e
Elisa Scheibe, pelo companheirismo, pelas conversas, pela troca de idéias, pelo
compartilhamento das ansiedades, que fizeram com que esses dois anos passassem tão rápido,
deixando saudades.
Agradeço, especialmente e acima de tudo, a três pessoas fundamentais. Minha mãe,
Elenice; meu pai Solon (in memoriam); e meu avô, Antônio Boito Sobrinho (in memoriam),
que meio sem querer, meio sem saber, foi também meu pai.
Agradeço, enfim, a Deus, por esse lindo campo de margaridas que é a vida.
“Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e
vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para
trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo
toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a importam finalmente menos do
que o dom cheio de zelo que deles se faz.”
Roland Barthes
RESUMO
O presente estudo trata dos problemas concernentes à relação entre direito material e
processo, procurando demonstrar que a negação, pela doutrina majoritária, da ão de direito
material, considerada mero slogan, é a grande fonte da subtração do mundo prático e, por
isso, da inefetividade do processo e da conseqüente não-concretização dos direitos
(pretensões) de direito material, que dependem do processo para realizar-se. Para tanto, busca,
na (des) construção da pré-compreensão dessa relação, delinear o modo como essa relação se
desenvolveu até a completa autonomia entre direito material e processo, demonstrando que
esse alheamento não foi superado. Analisa, em seguida, como o paradigma da modernidade,
como era da técnica, se projeta nessa relação, transformando o direito material em produto do
processo, em que a essência do direito material, o que ele é, não é considerada. Procura, a
partir disso, buscar os elementos que levam à possibilidade de aniquilação do direito material
pelo processo, em que o direito material não é o que ele é, mas o que diz dele o processo, o
que só é possível porque a força do direito material – a ação de direito material fora negada.
Nesse contexto, o objetivo é demonstrar que a negação da ação de direito material subtrai as
possibilidades/pressupostos do acontecer do direito material no processo. O desiderato final é
fundamentar a tarefa hermenêutica da ação de direito material. O embasamento teórico está,
no que concerne à defesa da ação de direito material, na doutrina de Pontes de Miranda e
Ovídio Araújo Baptista da Silva. A leitura hermenêutica que se propõe busca,
fundamentalmente, em Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, as condições de
possibilidade de desvelamento da ideologia que está à base da negação da ação de direito
material e a projeção de uma visão autêntica da relação entre direito material e processo, em
que a ação de direito material é a fonte de irradiação de efeitos e fala ao processo como o
modo-de-ser do direito material. Por fim, projetam-se os efeitos desse novo modo-de-ver tal
relação e de fazer direito sobre alguns dos institutos processuais mais discutidos do processo
civil.
Palavras-chave: direito material; processo; ação de direito material; pré-compreensão;
ideologia; técnica; exceção; fenomenologia hermenêutica; hermenêutica filosófica;
compreensão; autenticidade; concretização de pretensões.
ABSTRACT
The present study deals with problems concerning the relation between substantive law and
process, aiming at showing the denial, by the majority doctrine, of the action of the
substantive law, considered mere slogan, is a great source of subtraction of the practical
world, and therefore the infectivity of the process and the consequent non- concretization of
the rights (pretensions) of substantive law, which depend on the process to be achieved. We
aim at, in the (de)construction of the pre-comprehension of this relation, delineating how this
relation has developed to the complete autonomy between the substantive law and process,
showing this alienation has not been surpassed. Then, we analyze how the paradigm of
modernity as the age of technique is projected in this relation, transforming the substantive
law in the product of the process, in which the essence of the substantive law, what it really is,
is not considered. We seek for elements which lead to the possibility of annihilation of the
substantive law by the process, in which the substantive law is not what it is, but what the
process tells it is. It is possible because the strength of the substantive law the action of
substantive law has been denied. In this context, I aim at demonstrating the denial of the
action of the substantive law subtracts the possibilities/presuppositions for the substantive law
to take place in the process. The final desideratum is to fundament the hermeneutics task of
the substantive law action. The theoretical basis is, concerning the substantive law action, in
the doctrine of Pontes Miranda and Ovídio Araújo Baptista da Silva. The hermeneutics
reading which is intended seeks, fundamentally, in Martin Heidegger and Hans-Georg
Gadamer, the conditions of the possibility for unveiling the ideology which is the basis for the
denial of the substantive law and the projection of an authentic view of the relation between
the substantive law and process, in which the action of the substantive law is the source of
irradiation of effects and tells to the process, like the mode of being of the substantive law.
Finally, the effects of this new mode of viewing this relation and making law over some most
discussed procedural institutes of the civil procedure is projected.
Keywords: Substantive law, process, substantive law action, pre-comprehension, ideology,
technique, exception, Hermeneutics Phenomenology, Philosophical Hermeneutics,
comprehension, authenticity, concretization of claims
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................11
2 A TRADIÇÃO .....................................................................................................................15
2.1 A (DES)CONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO MATERIAL E
PROCESSO: UMA DIGRESSÃO HISTÓRICA.....................................................................17
2.1.1 Esclarecimento introdutório.........................................................................................17
2.1.2 Em busca das origens de uma polêmica ......................................................................19
2.1.2.1 As fontes romanas ........................................................................................................20
2.1.2.1.1 Das fontes antigas ao período clássico .....................................................................21
2.1.2.1.2 O predomínio do Direito Imperial no mundo moderno ............................................26
2.1.2.2 A antiga polêmica.........................................................................................................28
2.1.2.2.1 A origem da sistematização da relação entre direito material e processo ...............29
2.1.2.2.2 O desenvolvimento de teorias com pré-compreensões distintas a respeito da ação e
da “ação”.................................................................................................................................32
2.1.2.2.3 Da impossibilidade de fusão de horizontes ...............................................................37
2.1.2.2.4 Em busca de um sentido perdido...............................................................................41
2.1.2.3 A introdução de uma nova polêmica ............................................................................42
2.1.2.3.1 A negação da ação de direito material, “substituída” pela “ação” e sua sustentação
..................................................................................................................................................43
2.1.2.3.2 A afirmação da ação de direito material e da “ação” processual: duas categorias
inconfundíveis...........................................................................................................................47
2.1.2.3.3 Exposição Crítica dos Desdobramentos da Polêmica: uma investigação destinada
ao desvelamento dos sentidos que serão objeto da análise em direção à sustentação da ação
de direito material como categoria hermenêutica ...................................................................49
2.2 UM ENCONTRO COM O SER DO ENTE A SER INVESTIGADO: A AÇÃO DE
DIREITO MATERIAL ............................................................................................................64
2.2.1 Sobre as três posições em vertical: a compreensão do conteúdo da ação de direito
material....................................................................................................................................64
2.2.2 A delimitação do âmbito em que serão investigadas..................................................66
3 A QUESTÃO DA TÉCNICA .............................................................................................72
3.1 DA TRADIÇÃO A UM NOVO PRINCÍPIO EPOCAL E DESSE EM DIREÇÃO A
UMA NOVA CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE.................................................................72
3.1.1 Do pensamento grego à modernidade, a formação do pensamento humano e da
compreensão do mundo da idéia à época da imagem do mundo .......................................73
3.1.2 A era da técnica como época da imagem do mundo...................................................80
3.1.3 A pré-compreensão inautêntica imposta pela técnica como princípio epocal .........84
3.2 A EFETIVIDADE BUSCADA NO SEIO DO PARADIGMA .........................................85
3.2.1 De como autonomia e instrumentalidade coincidem como reflexos da moderna
dimensão da técnica................................................................................................................87
3.2.2 Da concepção moderna da técnica à essência da técnica ...........................................91
3.2.3 A instrumentalidade do processo em relação ao direito material.............................95
3.2.4 Uma reflexão em direção à compreensão autêntica da vinculação do intérprete à
Constituição...........................................................................................................................106
3.3 DE DIFERENTES HORIZONTES DE SENTIDO E DA IMPOSSIBILIDADE DE
RECONSTRUÇÃO OU “CONSERTO” DA TRADIÇÃO ...................................................113
3.3.1 Na inovação conceitual criativa, a homogeneidade de pensamento no seio do
paradigma e a aparência de efetividade .............................................................................113
3.3.2 De como a técnica moderna conduz à prevalência da exceção e da necessidade da
viravolta na compreensão da relação entre direito material e processo .........................118
4 A ANÁLISE DA EXCEÇÃO............................................................................................122
4.1 O PAPEL DO POSITIVISMO NA PRODUÇÃO DA EXCEÇÃO E O (NÃO-) LUGAR
DA AÇÃO DE DIREITO MATERIAL NO SEIO DESSE PARADIGMA..........................122
4.1.1 Sobre o ‘lugar’ da negação da ação de direito material no paradigma de
pensamento que tem a exceção como normalidade ...........................................................123
4.1.2 De como são várias as concepções sobre a ligação entre o direito material e o
processo .................................................................................................................................129
4.1.3 Jurisdição Declaratória & Jurisdição Constitutiva: diferentes formas de (não)
compreender o fenômeno jurisdicional ..............................................................................131
4.2 ENTRE A ANOMIA E A AUSÊNCIA DE ANOMIA....................................................143
4.3 A AÇÃO DE DIREITO MATERIAL COMO FORÇA REALIZADORA DO DIREITO:
UM RETORNO AO MUNDO PRÁTICO.............................................................................148
5 A FENOMENOLOGIA HERMENÊUTICA..................................................................156
5.1 A (DES)CONSTRUÇÃO DA TRADIÇÃO: UMA COMPREENSÃO DA IDEOLOGIA
A CAMINHO DA AUTENTICIDADE:................................................................................156
5.1.1 Uma introdução do embasamento teórico da viragem em direção ao mundo
prático....................................................................................................................................156
5.1.2 Da ideologia à autenticidade.......................................................................................163
5.2 UMA COMPREENSÃO A PARTIR DA TRADIÇÃO EM DIREÇÃO A UMA NOVA
POSSIBILIDADE DE SENTIDO..........................................................................................168
5.2.1 A introdução da necessidade da viravolta da compreensão em direção ao modo-se-
ser do direito material no processo .....................................................................................169
5.2.2 Da superação da idéia de método científico e único em direção à diferença
projetada pelo sentido ..........................................................................................................172
5.3 A TAREFA DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA .......................................................177
5.3.1 Do que se mostra numa primeira aproximação ao que se desvela no fenômeno...178
5.3.2 O limite de sentido, ou de onde começa o desdobramento do ser da ação de direito
material como categoria hermenêutica...............................................................................183
5.3.3 A compreensão da ação de direito material e uma analogia, identidade-diferença,
com o princípio .....................................................................................................................187
5.3.4 O método como projeto...............................................................................................195
5.3.5 O problema da certeza e da definitividade como limite negativo à tarefa
hermenêutica que se dá no processo ...................................................................................202
5.3.6 A concepção do procedimento a partir do direito material posto em causa..........211
5.3.7 As repercussões da compreensão da ação de direito material no princípio da
demanda e na compreensão da coisa julgada ....................................................................214
5.4 DO PENSAMENTO, FONTE DE ALHEAMENTO, À LINGUAGEM,
POSSIBILIDADE DE COMPARTILHAMENTO................................................................217
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................221
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................227
11
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se propõe a projetar uma visão autêntica do processo em sua
relação com o direito material.
As diferentes correntes doutrinárias que constroem a epistemologia do Direito
Processual e, portanto, teorizam essa relação fornecendo a matriz de pensamento em que ela
se desenvolve o fazem no plano meramente apofântico, sem perguntar pelo sentido do ser do
processo e pelo sentido do ser do direito material. Com isso, projetam uma imagem de ambos
e da relação que os deveria unir, que é produzida apenas pela necessidade dogmático-
científica de manter a autonomia e a dignidade de cada ramo como ciência. A forma de fazer
direito observada no dia-a-dia da atividade jurisdicional recebe os reflexos desse discurso e
não oferece respostas reais, prevalecendo a atuação normativa que, ao invés de integrar direito
material e processo, os alija, com o que a possibilidade de transformação da realidade social,
por meio da concretização das pretensões legítimas de seus titulares, resta comprometida.
O presente estudo tem por objetivo investigar tanto o modo como a relação entre
direito material e processo foi (des) construída, com o paulatino abandono do real, como a
projeção de uma virada em direção à relação autêntica entre direito material e processo: da
ideologia à autenticidade na compreensão do acontecer do direito material no processo.
No primeiro capítulo, reconhecendo-se a importância do que se antecipa na pré-
compreensão do intérprete, buscar-se-á a reconstrução histórica, ou, o que seria o mesmo, a
desconstrução dos pré-juízos da tradição
1
, para desvelar o horizonte do qual parte o intérprete
quando ele se depara com a pergunta pela tarefa de realização do direito material no processo.
Para tanto, buscou-se compreender o desenvolvimento da história dessa relação, recuperando
os modos como essa história produz os seus efeitos toda vez que compreendemos-
interpretamos-aplicamos o direito material e o processo hoje. Essa reflexão busca as raízes
romanas em suas diferentes fases e retoma as antigas polêmicas que envolvem o instituto da
actio romana, que, universalizada, universaliza: 1. o procedimento ordinário, que dicotomiza
conhecimento e execução; 2. a cognição plenária; 3. a eficácia condenatória como forma de
1
Quando se fala em tradição, tem-se em mente o que foi tematizado por Gadamer, do qual se extrai: O que é
consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser
histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o
que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre nossa ação e nosso comportamento. [...]. É isso,
precisamente, que denominamos tradição: ter validade sem precisar de fundamentação.GADAMER, Hans-
Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 1997. v. 1. p.
372.
12
tutela suficiente para satisfação dos direitos; 4. a supressão da tutela interdital, que atuaria
diretamente no fato, não-normativamente, apenas; 5. a conversão dos direitos no seu
equivalente em dinheiro; 6. a concepção que atribui à jurisdição tarefa normativa e
irresponsável, que não se compromete com a concretização das pretensões. Essas
características, que passam a compor o conteúdo do modelo básico de jurisdição e do modo
como o senso comum teórico pensa a relação entre direito material e processo, tem em
comum o abandono do mundo prático, projetando-se sobre as discussões mais atuais a
renovada polêmica, iniciada por juristas deste Estado do Rio Grande do Sul que propõem
diferentes formas de pensar a relação que é a base da reflexão que será aqui empreendida.
Desse modo, o capítulo primeiro tem o objetivo de demonstrar a forma como foram
conduzidas a antiga e a nova polêmica e quais são os pressupostos das escolhas dos juristas,
chegando à temática central: a negação da ação de direito material pela doutrina dominante e
sua defesa pela corrente capitaneada por Ovídio Araújo Baptista da Silva.
O presente estudo busca, a seguir, aprofundar as conseqüências dessas escolhas que,
centradas na negação/afirmação de uma única categoria a ação de direito material - podem
levar a resultados imensamente diversos no modo de ver a relação entre direito material e
processo.
No capítulo segundo, busca-se, a partir das análises de Martin Heidegger,
especialmente sobre a modernidade como época da imagem do mundo e a questão da técnica,
a compreensão de como a negação da ação de direito material está inserida no paradigma
metafísco da modernidade. Para tanto, buscou-se desvelar, para os fins desse estudo, a
ontologia da tradição, na busca das raízes formadoras do sujeito solipsista da modernidade,
que é quem faz e para quem é feito o Direito e a Justiça estatal, representada pela atuação do
Poder Judiciário, a fim de reconhecer esses modos de (não) compreender o Direito e, com
isso, subtrair-lhe a sua essência. Esclarece-se, desde já, que, quando se fala em essência, nos
limites desse estudo, o termo é utilizado no sentido heideggeriano
2
e, com ele, se pretende
retomar o que o ser é, e não uma qualidade que está no ente e que se poderá extrair dele,
tampouco uma qualidade a ser a ele acoplada, o que seria a negação da proposta hermenêutica
fundamental, que é a base da busca da compreensão que se pretende empreender. Essa
investigação desvela os componentes que determinam a época atual, como a era da técnica, e
a atribuição de sentidos, simbolicamente impostos e veladamente indiscutidos, que transmuta
2
Conforme o estudo “A questão da técnica” In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2006. p. 11-38.
13
o ser em um ente, cujo sentido é petrificado para atender aos ideais de sistematização e de
afirmações e verdades e certezas por meio do método.
Desvelados os limites da (ausência de) ontologia da tradição, o estudo pretende refletir
acerca do modo como a técnica que caracteriza a modernidade inverte a essência das coisas,
dando prevalência ao processo de fabricação em detrimento do ser dos entes, o que se reflete
na relação investigada entre direito material e processo - resultando em uma jurisdição que
aprisiona o ser do direito material no conceito e atua, desse modo, o conceito, contentando-se
com uma correspondência que se limita a adequar o processo ao direito material
abstratamente previsto. Essa adequação limita, ainda, a tarefa do juiz ao plano jurídico, sem
que o processo dê realidade ao direito material concreto. Essa inversão da essência das coisas,
que transmuta o direito material em algo que ele não é, é o pressuposto filosófico que permite
que a história da relação entre direito material se desenvolva, como foi desvelado no primeiro
capítulo, de modo a que, na modernidade, as características antes apontadas sejam
reconhecidas como características “naturais” da atividade jurisdicional.
No terceiro capítulo, busca-se desvelar o modo pelo qual essa inversão do ser do
direito material pelo processo se fez possível. Para empreender essa busca, buscou-se, por
meio das reflexões de Giorgio Agamben, trazer à relação aqui investigada, entre direito
material e processo, a reflexão que sustenta a exceção como normalidade, em que o estado de
exceção é o espaço da anomia, do vazio de direito. Para empreender tais reflexões, buscou-se
auxílio no desvelamento do positivismo, como normativismo e decisionismo, feito nos
estudos de Carl Schmitt, sem pretender, com isso, perfilar suas posições, sabidamente
antitéticas nas diferentes fases de sua vida e obra. O que se mostrou interessante é a forma
clara com que ele traça o diagnóstico do positivismo, o que, de um outro modo, e sobre um
outro enfoque, também é abordado por Lenio Luiz Streck, em seu “Verdade e Consenso”.
À correspondência entre essa forma de o positivismo atuar, ora afirmando a
normalidade e a suficiência ôntica do ordenamento jurídico, ora suspendendo o ordenamento
e reconhecendo espaços de anomia, refletiu-se sobre a aproximação entre essa visão e as
diferentes formas de conceber a jurisdição – declaratória ou criativa – sempre desvinculada do
direito como laço que une a todos.
Essa possibilidade de afirmação de espaços de vazio do direito, onde impera a anomia,
exige um direito conceitual e equiparado à lei, em sentido amplo, mas dissociado da realidade,
do contexto, do mundo prático. Por meio dessa reflexão, pôde-se compreender por que a
negação da ação de direito material responde a um imperativo do positivismo, que necessita
transformar o ser no conceito, i.e., aprisioná-lo no ente. A ação de direito material, como
14
forma de recuperar o mundo prático, no qual todos estamos jogados, não tem lugar nesse
paradigma. Sua negação, consumada no dia-a-dia do desenvolvimento da relação entre
direito material e processo, ademais, foi um passo necessário para que a técnica dissesse
qualquer coisa sobre o ser, para que o processo dissesse, e para que continue dizendo,
qualquer coisa sobre o direito material, invertendo sua essência.
Após as análises feitas nos capítulos precedentes, em que a relação entre direito
material e processo foi desvelada com os contornos em que se apresenta à pré-compreensão
do intérprete - desvelando, com isso, o que, segundo se crê, é o modo como a ciência passa
por cima da vida, sem questionar sentidos, reconhecendo sentidos unívocos, dados a priori,
derivados da abstração da dicotomia entre fato e direito, entre texto e norma, que possibilita o
velamento do sentido do ser do processo e do direito material, encobrindo a possibilidade de
transformação social, de desvelamento do sentido ontológico - no quarto capítulo se passa a
abordar a possibilidade de uma virada na direção da autenticidade.
Surge a necessidade de enfrentamento em busca do que se poderia chamar de
despertar do Ereignis
3
(o acontecimento, o Evento), o novo, a superação efetiva, na relação
entre direito material e processo, das suas impossibilidades de realização do verdadeiro
sentido do ser do Direito. Esse novo, baseado na filosofia heideggeriana, é tomado, aqui,
como a necessidade de recuperação de uma categoria, condenada, pelo senso comum teórico,
à pena da proscrição do mundo do direito e do mundo da vida: a ação de direito material. Essa
proscrição verdadeira manifestação velada do estado de exceção e do império da técnica
se deve à possibilidade de, afirmando-a, recuperar sentidos perdidos na relação entre direito
material e processo, porque, se a ação de direito material estiver na pré-compreensão do
intérprete, a tarefa interpretativa será sempre applicatio.
Recupera-se, assim, resgatando o mundo prático, a condição de possibilidade de
realização do escopo que anima a construção dessa relação: a concretização das pretensões de
direito material, tarefa que foi entregue ao processo e que, no paradigma neo-
constitucionalista, é, acima de tudo, concretizar direitos e, com isso, construir a transformação
da sociedade, reconhecendo a responsabilidade de todos na construção do bom e do melhor,
conceitos comunitários, o que exige, por fim, a construção da intersubjetividade.
Parte-se da ideologia, desconstruindo-a, para construir a autenticidade na compreensão
da relação entre direito material e processo, afirmando, paradoxalmente, a ação de direito
material, como categoria hermenêutica capaz de desvelar esse sentido.
3
AGAMBEM, Giorgio. Infância e história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 175. (glossário do tradutor).
15
2 A TRADIÇÃO
O presente trabalho parte de uma compreensão filosófico-hermenêutica (Heidegger) e
hermenêutico-filosófica (Gadamer) do direito. Essa compreensão reconhece a necessidade de
apreensão da tradição filosófica como condição de possibilidade do existir e do pensar.
Segundo Ernildo Stein
4
, embora a tradição tenha sido recuperada por Gadamer, Heidegger
reconhecia a impossibilidade de filosofar sem haver uma apropriação da tradição filosófica e
o fez desconstruindo a metafísica. Sobre as bases da metafísica cartesiana, são lançadas as
bases de toda a metafísica moderna, até Nietzsche. Por isso, segundo Heidegger,
“Descartes solo es superable a través de la superación de aquello que él mismo
fundamentó, a través de la superación de la metafísica moderna o, lo que es lo
mismo, de la metafísica occidental. Per superación significa aquí cuestionamento
originario de la pregunta por el sentido, es decir, por el ámbito del proyecto y, en
consecuencia, por la verdad del ser, pregunta que se desvela al mismo tiempo como
pregunta por el ser de la verdad.”
5
A tradição filosófica traz consigo pré-juízos, autênticos e inautênticos, o que faz
necessário reconhecer, com Gadamer, a necessidade de que
“Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições
repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar
para ‘as coisas elas mesmas’ [...]. Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa
através de todos os desvios a que se constantemente submetido o intérprete em
virtude das idéias que lhe ocorrem.”
6
Para evitar esses desvios, sempre presentes, é preciso desvelar a tradição para traçar a
compreensão sobre como a história produziu os tempos atuais e, além disso, projetar, de
forma autêntica, a revolução do pensamento, possível e em curso, a partir do reconhecimento
de que as filosofias do passado são insuficientes nos tempos atuais e de que o reconhecimento
dessas insuficiências é condição de possibilidade para um novo agir na construção de uma
4
Nesse sentido, as obras do autor indicadas entre as obras consultadas.
5
HEIDEGGER, Martin. La epoca de la imagen del mundo. In: ______. Caminos de bosque. Madrid: Alianza,
1996 Disponível em: <http:www.heideggeriana.com.ar>. Acesso em: jun. 2007.
6
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1. p. 356.
16
nova história, de luta contínua, na busca do que Charles Taylor chamou de ética da
autenticidade
7
, num projeto em que a compreensão não pode ser tomada por meio de um
método que, findo, dá-se por tarefa terminada. É um processo sempre necessário e a ser
sempre revisado.
Partindo desses pressupostos, a busca pela maneira como a história percorreu os
caminhos e chegou à realidade das modernas concepções a respeito do direito material e do
processo é uma forma de desvelar os sentidos ideais ou representativos das imagens que
fazemos do mundo e, nele, dessa relação fundamental entre direito material e processo, em
uma superação de um modo de pensar que assegura “la primacía del método por encima de lo
ente (naturaleza e historia), el cual se convierte em algo objetivo dentro de la investigácion.”
8
No âmbito do presente estudo se impõe, então, como condição de possibilidade da real
efetividade dos direitos, a compreensão da relação entre direito material e processo em que a
imagem do direito que se projeta a partir do processo não seja uma imagem produzida pela
racionalidade científica, despregada do mundo como linguagem.
A idéia é de superação do ideal científico, em que naturaleza e historia se convierten
em objeto de la representación explicativaem prol de uma concepção em que se retome la
fuerza originaria del proyecto
9
em lugar das sistematizações abstratas, que construíram a
pandectística do século XIX e, com ela, a nova ciência que nascia: o Direito Processual Civil
como técnica destinada a substituir o direito material e sua eficácia.
Nessa dimensão, está centrada a importância da retomada da ação de direito material,
como aletheia, no sentido de que ela seja recuperada como categoria hermenêutica que
apresenta as bases da relação entre direito material e processo, mas que não nega a técnica,
apenas a impede de alterar a essência do direito e sua própria essência
10
(a essência do
processo), permitindo a autenticidade da compreensão ao desvelar os sentidos realizadores do
direito material por meio do processo.
7
TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidós, 1994.
8
HEIDEGGER, Martin. La epoca de la imagen del mundo. In: ______. Caminos de bosque. Madrid: Alianza,
1996 Disponível em: <http:www.heideggeriana.com.ar>. Acesso em: jun. 2007.
9
Ibid.
10
Fala-se em essência com referência ao sentido do ser do ente, o que ele é, e não a partir de uma visão
idealizada de uma essência presa nas coisas, a ser dela extraída. Contrapõem-se aqui, então, a concepção de
essência a partir da filosofia grega e sua compreensão a partir do que afirma Heidegger. HEIDEGGER, Martin.
Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2006.
17
2.1 A (DES)CONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO MATERIAL E
PROCESSO: UMA DIGRESSÃO HISTÓRICA
Parte-se, em um primeiro momento, à investigação e compreensão do direito material,
do processo e, especificamente, da ação de direito material, em seu desenvolvimento
histórico, buscando os desvios de sentido e uma nova forma de compreensão.
2.1.1 Esclarecimento introdutório
A afirmação, objeto do presente estudo, não só da existência da ação de direito
material, como de seu fundamental lugar na relação entre o direito material e o processo,
pressupõe a diferença entre essa - a ação - e a “ação”. À base dessa diferença, está a idéia de
que ao direito subjetivo material, categoria estática, poder da vontade, corresponde, em um
dado momento, a sua exigibilidade, pretensão, que é o poder de exigir de outrem a satisfação
do direito, momento dinâmico, porque o titular do direito pode movimentar-se,
legitimamente, de modo a exigir o que lhe é devido e, por fim, a possibilidade de efetiva
exigência, quando surge a possibilidade de um agir do titular do direito. Segundo Pontes de
Miranda, rigorosamente, três posições em vertical: o direito subjetivo, a pretensão e a
ação, separáveis
11
. E, mais adiante, afirma: Não exigibilidade sem pretensão. O Direito
Subjetivo pode ser inexigível
12
. A terceira posição, segundo Pontes, é a ação de direito
material, que surge quando o direito é violado ou ameaçado de violação e permite que o titular
aja, agir esse, no entanto, que, salvo casos excepcionais, foi vedado pela proibição da
autotutela. Citando, novamente, Pontes, “onde pretensão há, se ocorre óbice, a ação
respectiva
13
.Leia-se: ação de direito material.
No processo, as categorias se repetem e, no entendimento aqui esposado - cujas bases
teóricas são Pontes de Miranda e Ovídio A. Baptista da Silva -, não anulam umas às outras, e
também não se confundem.
No processo, o direito subjetivo à tutela jurisdicional (tutela do direito à
inafastabilidade da jurisdição de que são titulares autor e réu), pretensão processual e ação
11
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ões. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 68.
12
Ibid., p. 70.
13
Ibid., p. 123.
18
processual. Pontes de Miranda diferencia ação (em direito material) e ‘ação’ (em direito
processual)
14
, dizendo que a ação exerce-se principalmente por meio de “ação” (remédio
jurídico processual), isto é, exercendo-se a pretensão à tutela jurídica, que o Estado criou.”
15
E Ovídio acrescenta, lembrando, na assertiva de Pontes, a expressão “principalmente”,
dizendo que, certamente, esse agir para a realização do próprio direito raramente é
facultado ao respectivo titular sem que se lhe imponha a necessidade de veiculá-lo por meio
da ‘ação’, processual, sob invocação de tutela jurídica estatal.”
16
Nesse contexto, necessário analisar uma questão fundamental que exsurge da
afirmação da ação de direito material e da “ação” processual como categorias independentes,
pertencentes às duas esferas: direito material e direito processual, respectivamente. Trata-se
da discussão doutrinária e extremamente relevante para a análise que se fará no presente
estudo, sobre as cargas eficaciais, que são consideradas pela doutrina processual como
oriundas de classificação normativa das “ações” e das sentenças. Essa classificação, como é
notório, é dividida, na forma tripartite, pela doutrina tradicional, em “ações” declaratórias,
constitutivas e condenatórias. A discordância fundamental com relação à doutrina majoritária,
fundamentada essencialmente nos trabalhos de Pontes de Miranda e Ovídio A. Baptista da
Silva, se deve ao fato de que uma categoria abstrata não pode ser classificada quanto ao seu
conteúdo. Isso impõe o reconhecimento das ações de direito material, essas, sim, dotadas de
sentidos diferentes em conformidade com o modo-de-ser do direito material, isto é, o seu
conteúdo que se revela na pretensão e ação de direito material e que exige sua concretização
por medidas de diferentes caracteres. Assim, classificando as ações de direito material,
teremos cargas eficaciais diferentes, no direito material, adotando a doutrina de Ovídio Araújo
Baptista da Silva, que nisso se diferencia de Pontes de Miranda, ao reconhecer, no direito
material, ações declaratórias, constitutivas, executivas e mandamentais e reconhecendo a
executividade material das ações que envolvem direitos obrigacionais reconduzidas pelo
processo à efetivação por meio da técnica da condenação.
17
14
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 124.
15
Ibid.
16
SILVA, Ovidio A Baptista da. Direito subjetivo, pretensão, direito material e ação. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ão. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006. p. 20.
17
As variadas vertentes classificatórias, quer sigam afirmando que a classificação pertine ao direito processual,
quer reconheçam que se tratam de diferentes características das ações de direito material não serão tratadas,
especificamente, dada a dimensão das divergências e diferentes posições, preferindo-se fazer referência a elas
nos momentos em que a temática será tratada no decorrer da análise.
19
2.1.2 Em busca das origens de uma polêmica
Como afirma Carlo Gioffredi,
“solo risalendo alle origini, di un istituto si possono intravedere le carateristiche piú
genuine quali esso mai perderà nel corso della sua evoluzione e alle quali talvolta
occorre riferirsi per compreenderne la funzione attuale, deformata o deviata dal
tempo; per dimostrare che solo studiandolo nei suoi variabili aspetti, su cui le
diverse condizioni di ambiente si riflettono, di un istituto potrà darsi la definizione
piú vera, tale da retificare o completare anche la piú elaborata, ma sempre unilaterale
definizione moderna.”
18
A história da atual polêmica em torno da ação de direito material tem suas origens no
episódio que contrapôs Bernard Windscheid e Theodor Muther, iniciada nos anos 50 do
século XIX. Antes dela, especialmente antes de Windscheid, como afirma Pugliese em sua
“Introdução à Polêmica” (que não se confunde com a polêmica atual),
“la doctrina se daba por satisfecha prácticamente con la definición de Celso (D. 44,
7, 51) nihil aliud est actio quam ius quod sibi debeatur iudicio persequendi; y se
limitaba por lo general a intentar simples paráfrasis respecto de ella. La posibilidad
de uma divergência entre lo que los romanos consederaban actio y lo que los
modernos entendían por acción (Klagerecht) no se planteaba seriamente.”
19
No contexto do século XIX, em que surge a primitiva polêmica, as discussões em
torno do Direito Processual, que, então, conquistava sua autonomia, se desenvolvem com seu
paulatino desprendimento do Direito Material.
A controvérsia entre Windscheid e Muther põe o foco no instituto romano da actio,
consolidando a concepção de jurisdição a partir de tal instituto. Como afirmou Pugliese, o
conceito de actio sofreu inúmeras mutações no decorrer de sua história, nos diversos sistemas
processuais, todavia,
18
GIOFFREDI, Carlo. Contributi allo studio del processo civile romano: note critiche e spunti ricostruttivi.
Milano: Dott. A. Giuffrè, 1947. p. 45, nota 53.
19
PUGLIESE, Giovani. Introduccion da polemica sobre la ‘actio’. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER,
Theodor. Polemica sobre la ‘actio’. Buenos Aires: Europa-America, 1974. p. 12.
20
“nadie había pensado em poner en duda ni la substancial afinidad entre la figura de
la actio – delineada com referencia a una u outra época histórica – y la figura
moderna de la acción, ni la legitimidad de subsumir ambas em una definición
comprensiva.”
20
Essa falta de dúvida sobre a equivalência entre a actio e a “ação” molda todas as
discussões posteriores, não restando dela, livre, sequer o iniciador da polêmica, Windscheid.
Retroalimentada, a polêmica resulta, a cada dia, mais acirrada, e sua importância é crucial,
pois evidencia a defesa do paradigma positivista dominante, de um lado, e uma tentativa de
construção de um novo sentido para a relação entre direito material e processo, de outro,
construção essa a que o presente trabalho pretende alinhar-se.
Daí, portanto, a necessidade que se pôs em investigar, ainda que em breves linhas,
dada a dimensão da controvérsia, as origens da compreensão da categoria que é objeto da
presente dissertação – a ação de direito material - confrontando-a com as investigações
cientificamente rigorosas caracterizadoras da modernidade, para buscar o desvio de sentido
que subtrai a função de realização da justiça.
Em que momento e de que forma o processo se tornou o instrumento abstrato que hoje
é parece ser premissa de investigação irrefutável para a retomada do sentido da relação entre
direito material e processo em seu estreito vínculo direcionado à realização da justiça no caso
concreto.
2.1.2.1 As fontes romanas
Ovídio Araújo Baptista da Silva vem, bastante tempo, alertando para o fato de que
o paradigma da compreensão moderna de direito é o Direito Romano do período Imperial
21
,
que se diferencia dos períodos precedentes, seja em face da mudança da compreensão e da
forma como o Direito era criado e aplicado, seja em face da introdução das máximas cristãs
pelos Imperadores convertidos à nova religião. Essa concepção é corroborada pelo romanista
Biondo Biondi, quando diz que è sulla base del diritto giustinianeo, che si formò quella
20
PUGLIESE, Giovani. Introduccion da Polemica sobre la ‘actio’. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER,
Theodor. Polemica sobre la ‘actio’. Buenos Aires: Europa-America, 1974. p.12.
21
Várias são as obras do autor que veiculam esse alerta, das quais se destaca, especialmente, a obra Jurisdição e
Execução na Tradição Jurídica Romano-Canônica.
21
tradizione giuridica da cui sbocciarono le moderne codificazioni.
22
E, no que tange
especificamente ao processo, adverte que il sistema processuale contemporaneo, nelle sue
linee fondamentali, trae origine da quel processo extra ordinem, che è tutta creazione della
legislazione imperiale.”
23
Observa-se que o Direito Romano do chamado período final passou a conceber o
Direito de forma absolutamente divorciada do período precedente. Não se pode deixar, então,
de buscar algumas distinções acerca dos diferentes períodos da evolução do Direito Romano,
no que pertine aos institutos de defesa dos direitos, com o sentido que lhe emprestou cada
período histórico: o clássico e o final do Direito Romano.
2.1.2.1.1 Das fontes antigas ao período clássico
No período mais remoto do Direito Romano, o período das legis actio sacramento,
caracterizado pelo extremo formalismo, este apresentava um número limitado de fórmulas,
conhecidas e guardadas pelos sacerdotes, o que se afirma com apoio em Francesco de
Martino, com base no seguinte trecho de sua obra:
“Ignoriamo naturalmente il rito col quale si sará svolta la funzione giudiziaria dei
pontefici, ma certo esso era pieno di solenità, un che di suggetivo e di profondo, tale
da piegare i contendenti all’osservanza della lite giudiziaria, come al comando di un
dio. Le parti non avranno compresso o conosciuto le form del rito, le parole
solenni pronunciate dal sacerdote: se le avessero conosciute non ci spiegheremmo il
segreto gelosamente mantenuto dal collegio pontificiale.”
24
Nesse período, a atividade jurisdicional era requerida por aquele que havia sofrido
uma ação (de direito material), i.e., a execução por parte de quem se afirmava titular de um
direito. A tutela era requerida a fim de provocar a manifestação do poder jurisdicional no
sentido de afirmar legítima ou não a fórmula, correspondente ao agir daquele que se afirmava
titular do direito contra o obrigado. A jurisdição intervinha, pois, para afirmar a legitimidade
ou ilegitimidade de uma ação que fora realizada pela parte, como afirma Arangio-Ruiz,
citado por Ovídio Araújo Baptista da Silva: l’intervento del magistrato si reduce, almeno
22
BIONDI, Biondo. Istituzioni di Diritto Romano. Milano: Giuffrè, 1972. p. 3.
23
Ibid., p. 28.
24
DE MARTINO, Francesco de. La giurisdizione nel diritto romano. Padova: Cedam, 1937. p. 51.
22
nell’età piú antica, al controllo dell’ativitá delle parti.”
25
Assim, como afirma o autor, na
verdade, a primitiva “ação” processual era uma reação à ação, agir do titular do direito, a qual
mais tarde viria, paulatinamente, a ser substituída pela alegação da ação na “ação”.
Com a superação do caráter eminentemente divino da aplicação do Direito e a
passagem a um novo período em que à magistratura foi entregue o ius dicere, que perde seu
caráter sacramental, passa-se ao período das legis actiones. Essa transição, segundo De
Martino, não deixa de ter um caráter revolucionário, pois, segundo ele,
“il fatto stesso che i pontefici avevano il monopolio della giurisprudenza induce a
ritenere che essi mantessero gelosamente segreti i rituali delle azioni. Di
conseguenza è bem ammissibile la notizia che fu necessario un gesto quase
rivoluzionario, per divulgare il ius e le actiones.”
26
Além disso, a fórmula se inverte. Com efeito, não é mais o obrigado que sofreu a ação
quem busca proteção da jurisdição, mas o titular do direito que a requer para que seu direito
seja realizado, depois por meio da concessão de um interdito pelo pretor. Todavia, ainda aqui,
as ações eram limitadas e a liberdade de criação do pretor também o era. Até então, o Direito
Romano compreendia o Direito de forma desvinculada da realidade. Fórmulas genéricas eram
aplicadas de modo que a proteção aos direitos se dava limitadamente, sem garantia de
efetividade, à semelhança de como o direito processual é construído modernamente. As ações
da lei não eram construídas para o caso, mas elaboradas previamente, primeiro pelos
sacerdotes, em rituais que incluíam o desconhecimento dos leigos acerca dessas actiones e,
depois, pelos magistrados, mas sem possibilidade de construção de soluções justas e
adequadas às situações de vida. Pode-se admitir que a superação do período formal das legis
actiones, em que as actiones eram limitadas, o que, conforme Villey limitava também o
número e espécie de direitos que recebiam proteção judicial
27
, foi ocasionada pelas
necessidades das novas relações de uma sociedade mais complexa, e essa mudança trouxe
consigo o período mais fértil do Direito Romano.
Com efeito, a mudança do período das legis actiones para o período formulário, na
época clássica, se deve às necessidades sociais crescentes e se caracteriza pela abertura à
25
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Ação de imissão de posse. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 18.
26
DE MARTINO, Francesco de. La giurisdizione nel diritto romano. Padova: Cedam, 1937. p. 31.
27
Segundo Michel Villey, textualmente: “Para intentar um processo qualquer, é preciso poder introduzir a sua
pretensão numa destas fórmulas admitidas pelo costume e aceitas pelo pretor. Este não aceita senão um certo
número de fórmulas; isto significa, em linguagem moderna, que o antigo processo não reconhecia senão um
número limitado de direitos.” VILLEY, Michel. Direito romano. Porto: Rés, 1991. p. 41.
23
atividade criadora pelo pretor, que, a partir disso, transformou o rol limitado de actiones
iniciais em um ilimitado número de actiones. E, o mais importante, essa atividade criadora,
agora possível, não estava limitada nem por fórmulas divinas, nem tampouco pela lei ou pela
idéia abstrata de Direito, que caracterizam a modernidade.
Nesse período, chamado clássico ou formulário, ao pretor incumbia criar a norma para
o caso concreto, a partir do mores maiorum a tradição dos antigos ou costume –, levando
em conta as circunstâncias do caso e a necessidade de adequar a tradição à evolução das
relações humanas em sociedade. Incumbia ao pretor criar o ius, que era o conjunto de
soluções para as relações entre privados. A lex, em Roma, durante o mesmo período, tinha um
sentido e uma utilização diferente daquela que, a partir do período imperial e especialmente
na modernidade, caracterizam a construção da norma jurídica e, por derradeiro, o positivismo,
em suas variadas feições. Consoante afirma Ovídio Araújo Baptista da Silva:
“Ao Pretor, porém não cabia a criação de normas gerais, como o faz o legislador
moderno, ou como começaram a fazer os Príncipes e depois os imperadores
romanos. A iurisdictio pretoriana criava um ‘vínculo jurídico concreto’ entre as
partes litigantes (ius), nunca um norma abstrata, semelhante a nossas leis.”
28
Como afirma Biondo Biondi, “per tutta l’ epoca repubblicana lex non è quello che noi
moderni chiamiamo legge
29
. A abstração, que caracteriza a legislação moderna, não fazia
parte do modo próprio com que os romanos do período clássico construíam o direito que
regulava as relações privadas. O ius era criado, pelo pretor, diante das necessidades do caso
que se lhe apresentava à apreciação, a partir do mores maiorum sempre adaptado às novas
exigências sociais derivadas da evolução das relações sociais e a partir do conceito do que era
a ars boni et aequie, portanto, em efetiva realização do que na Grécia, por Aristóteles, foi
teorizado como phronesis, a prudência.
Esse período do Direito Romano em que se desenvolvia o Direito inspirado na noção
da phronesis grega, em contraposição à epistemè e à technè, no sentido de prudência
28
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A Jurisdictio Romana e a jurisdição moderna. In: Jurisdição, direito
material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 270.
29
Lex tinha o sentido de norma destinada à regulação das civitas e das relações entre essas e os cidadãos
romanos que, propostas por iniciativa do magistrado, o qual era investido do ius agendi cum populo, porque o
poder de agir era titulado pelo povo, deviam ser aprovadas por esse em comitia e ratificados pela autoridade do
Senado. Assim, a Lex veiculava matéria de regulação das cidades, mas não normas abstratas de conduta para o
povo em suas relações privadas. As relações privadas eram reguladas pela atividade jurisprudencial com base no
mores maiorum, sendo tarefa destinada a criar a norma para o caso concreto. BIONDI, Biondo. Istituzioni di
diritto romano. Milano: Giuffrè, 1972. p. 13.
24
direcionada ao conhecimento de como agir, na ação e para a ação, de acordo com os valores
do bonum e da aequitas - em que Aequitas é a igualdade, o equilíbrio, a proporção
30
e o
Bonum é aquilo que é conveniente (‘bom para algo’) não só para os envolvidos em uma lide,
mas para toda a coletividade. É a atenção ao bem comum que deve acompanhar a decisão do
caso singular” -, parece ser uma inspiração notável.
A criação e a atuação do Direito respondiam às necessidades específicas do caso. Com
base no morus maiorum, construía-se uma fórmula que era dada, sob condição, pelo pretor, na
fase in iure do procedimento, encaminhando-as pela fórmula que continha o direito que
deveria ser aplicado, caso confirmada, pelo iudex, na fase apud iudicem, a veracidade das
alegações feitas perante o pretor. A fórmula, pois, que continha a norma do caso concreto, era
criada concretamente, e não, previamente dada, como ocorre com a norma dada pelo
positivismo, que é uma abstração criada para regular universalmente casos que não se repetem
no mundo da vida, mas que são tidos por universais e iguais pelo conceitualismo-sistemático,
que teve impulso gigantesco com as construções dos Pandectistas alemães nos séculos XVIII
e XIX. Eles edificaram sua sistematização sobre a base de um Direito Romano diferente
daquele descrito até aqui, porque o Direito Romano legado à modernidade, como se disse
inicialmente, é o Direito Romano Imperial, em que a vontade do imperador substitui a
atividade criadora do direito, caracterizadora do ius, como fonte primária do Direito, como
adverte Ovídio Araújo Baptista da Silva: Enquanto no direito clássico a lei era apenas uma
fonte secundária do direito, ao tempo de Justiniano, não apenas tornara-se a lei a sua fonte
exclusiva, como o Imperador era seu único intérprete.”
31
Além dessa forma de criação do direito e do procedimento específico da actio, criada
para atuação de direitos relativos, o Direito Romano do período clássico atuava
imperativamente no mundo da vida, reconhecendo formas específicas de atuação, para
diferentes direitos, como no caso de direitos absolutos, sua proteção pelos interditos, fundados
em juízos de verossimilhança, ao contrário do procedimento da actio, que se fundava em
juízos plenários. Ambas as dimensões foram perdidas, ainda que o procedimento da actio
tenha sido mantido e universalizado, porque o foi não na dimensão autêntica de construção do
direito, mas apenas na sua formulação básica em que à obligatio deveria corresponder uma
comndenatio, a qual poderia se seguir a execução, em que o direito passou a ser ditado a
30
BARZOTTO, Luiz Fernando. Prudência e jurisprudência: uma reflexão epistemológica sobre a jurisprudentia
romana a partir de Aristóteles. In: Anuário do programa de Pós-Graduação em Direito: Mestrado e
Doutorado. São Leopoldo, UNISINOS, 1998-1999. p. 183.
31
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A Jurisdictio Romana e a jurisdição moderna. In: Jurisdição, direito
material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 264.
25
priori pelo “Estado” e por ele interpretado, iniciando-se, com isso, seu distanciamento do
mundo da vida. Com a supressão dos interditos, motivada pela paulatina transformação da
aequitas em humanitas, já que se tratavam de procedimentos de forte rigor, a actio foi
universalizada e, com ela, os juízos plenários.
O Estado Moderno, que concebe sua jurisdição a partir das fontes giustinianeas,
assume a paternidade do Direito que outrora não tinha feição estatal e, embora destinado a
regular relações privadas, detinha caráter público, como afirma Ovídio Araújo Baptista da
Silva: A iurisdictio do direito clássico era tão pública, como autêntica expressão do
imperium, quanto poderá sê-lo a expressão moderna. Ela não era estatal, como hoje, como
uma expressão da soberania do Estado romano, mas era pública, tanto quanto a nossa.”
32
Passou de pública à estatal, em direção ao controle do Homem Artificial.
33
A construção do direito, para o caso concreto, não é, todavia, a única fonte de
realização do direito material, que deve servir de fonte de inspiração em uma reabertura
cognitiva do direito à sua expressão autêntica de transformação da realidade. Conforme vem
advertindo, em inúmeras obras, Ovídio Araújo Baptista da Silva, havia em direito romano
dois institutos de proteção e defesa dos direitos, capazes de ser invocados perante os
magistrados: a actio e os interdicta, além de outros meios extraordinários como os últimos
[...]
34
, que eram formas especiais de proteção em que, mediante juízo sumário a respeito das
alegações do requerente, o pretor (não o magistrado) determinava ao acionado uma conduta.
Esse poderia obedecer ou não ao comando, conforme sua concordância com os fatos que
foram trazidos e fundamentaram o comando do pretor. Caso desobedecesse, ao requerente da
medida desobedecida incumbia a proposição de uma actio ex interdicto. Esse procedimento
diferenciado tinha
“aplicação no domínio do direito público, ou das relações jurídicas de natureza
pública, sendo raro o emprego da tutela interdital em questões de direito privado,
limitando-se a aplicação deles, nestes casos, particularmente à proteção
possessória.”
35
32
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A Jurisdictio Romana e a jurisdição moderna. In: Jurisdição, direito
material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 265.
33
Expressão de Thomas Hobbes, para designar o Estado. CHEVALLIER. Jean-Jacques; GUCHET. Yves. As
grandes obras políticas: de Maquiavel à actualidade. Portugal: Europa-América, 2004.
34
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. p. 17.
35
O autor adverte, no que tange à proteção possessória, sobre a natureza evidentemente voltada ao interesse
público, enquanto tutela destinada a assegurar a paz social, o que demonstra que os interditos romanos se
direcionavam à defesa dos direitos que, à época, gozavam de maior importância e evidência. SILVA, Ovídio
Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de Janeiro: Forense,
2007. p. 28
26
Quer dizer: à diversidade de conteúdo dos direitos correspondia a diversidade de sua
proteção. Ao conjunto das actiones e dos interdictas corresponde o que, na obra de Pontes de
Miranda e Ovídio A. Baptista da Silva, se denomina ação de direito material.
Delineia-se, assim, que o que ora se denomina ação de direito material não se
confunde ao que foi imortalizado como actio, em virtude dos desdobramentos teóricos que
influenciaram a construção do Direito Processual Civil como disciplina autônoma e cientifica,
o qual se abeberou, como antes assinalado, não do procedimento do Direito Romano do
período clássico, mas do Direito Romano do período seguinte, que passa a ser tratado.
2.1.2.1.2 O predomínio do Direito Imperial no mundo moderno
O que caracteriza o Direito Romano Imperial, em apertada síntese, é: 1. a supressão
dos procedimentos interditais, com opção pelo procedimento fundado na actio; 2. a
construção do direito aprioristicamente, pela codificação que marcou essa época e as que se
seguiram (o Corpus Iuris Civilis); 3. a origem exclusivamente imperial (o que modernamente
se poderia chamar de estatal) do direito, equiparado ao texto e à proibição de que os textos
fossem interpretados. Essas características marcaram os períodos posteriores. Dizer-se das
origens romanas do Direito Continental do qual descende o Direito Brasileiro é, pois, nada
dizer, que as fontes romanas sofreram total mutação da República ao Império. Ou se
poderia também dizer, do período pagão ao período cristão, uma vez que são de naturezas tão
diversas quanto o concreto e o abstrato.
Quando Giuseppe Chiovenda retrata a mutação ocorrida no espírito do juiz e sua
vinculação à causa, embora não faça, nesse ponto, expressa referência às diferenças presentes
nessas duas importantes fases do Direito Romano, ele traz a lume essa mutação entre o
concreto e o abstrato no decorrer da história. Diz ele que ao juiz romano repugnava o
julgamento com base em critérios meramente formais e abstratos
36
, e que “no se puede
36
Relata um caso contado por Aulo Gellio em que um juiz, devendo julgar um caso em que um homem
reconhecidamente honesto reclamava de outro, cuja fama era contrária, uma dívida, sem apresentar prova
alguma, pediu opinião ao jurisconsulto Favorino, que o aconselhou a julgar em favor do homem honesto.
Refletindo, esse juiz considerou que devia julgar segundo as provas e não apenas com base em um costume de
dar maior valor à palavra do homem honesto e, por isso, não podendo também desconsiderar sua palavra, acabou
por prestar juramento e liberar-se do dever de julgar (sibi non liquere). O exemplo tem valor histórico e retrata o
comprometimento do juiz com a responsabilidade sobre o caso. CHIOVENDA, Giuseppe. La idea romana en el
proceso civil moderno. In: ______ Ensayos de derecho procesal civil. Buenos Aires: Europa-América, 1949.
v.1. p. 359-360.
27
imaginar un contraste más fuerte que el que nos presenta esta función del juez romano
paragonada con la del juez en el proceso germánico de la Alta Edad Média
37
, porque, então,
o formalismo do processo determinava que a decisão do juiz deveria dar-se com base nos
juízos de Deus, cuja disciplina reduzia o julgador a expectador a observar e constatar
mecanicamente o resultado.
38
E, apesar de Chiovenda, nas mesmas linhas, afirmar que os
acontecimentos que levaram à publicização da jurisdição também produziram a retomada
daquela visão original da “livre convicção do juiz”, o que se observa é que a recuperação do
Direito Romano - tanto em face dos acontecimentos históricos que levaram à Revolução
Francesa e às modificações introduzidas por ela, especialmente a publicização da jurisdição
como função de Estado, como em face da recepção e sistematização dada ao Direito Romano
pela Escola Histórica - não levou à retomada do juiz romano a quem repugnava a apreciação
mecânica dos fatos, mas a um Direito Romano tomado pelo formalismo da cognitio extra
ordinem, que mais se aproxima do formalismo distanciado dos fatos do que de uma postura
realizadora da prudência no caso concreto. É imperioso observar que a Escola Histórica
pressupunha a unicidade e a continuidade da história, motivo pelo qual, diante das fontes
romanas que lhe estavam à disposição, produziram o desenvolvimento do direito a partir de
tais fontes, que são as justinianeas.
O que se observa, então, é que a noção grega da phronesis, praticada no período
clássico do Direito Romano, como saber direcionado a agir corretamente a partir do que é
colhido na experiência - e distinguia-se de outros saberes menos voltados à experiência
concreta, como a tecnhè e a epistemè não é o paradigma do mundo moderno. Como observa
Ovídio A. Baptista da Silva, houve transformação do conceito de aequitas no sentido clássico
(intrínseca ao sistema) durante o período que influencia a modernidade. No Direito Romano
do período final, sob a influência do cristianismo, a aequitas passa a significar humanitas,
pietas. Essa humanidade, piedade, passa a ser um referencial para a correção do direito
positivo, como critério universal, supradireito, como um transcendental.
39
Com a modernidade, a abstração do mundo da vida trabalhava em prol de verdades
constantes e de um método seguro, heranças do pensamento que se desenvolve desde as raízes
37
CHIOVENDA, Giuseppe. La idea romana en el proceso civil moderno. In: ______ Ensayos de derecho
procesal civil. Buenos Aires: Europa-América, 1949. v.1. p. 361.
38
Desse argumento resulta a necessidade de se reconhecer absurdas as interpretações que vinculam a sustentação
da ação de direito material como categoria existente ao lado da “ação” processual como um retorno aos juízos de
Deus. Ao contrário, muito mais próximo desse momento histórico está o formalismo presente no processo
ordinário, sua forma de aplicação presente no senso comum teórico dos juristas.
39
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. p. 81-83.
28
do individualismo e culmina com Descartes e sua dúvida metódica. Com os inúmeros fatores
que se desenvolveram e se aliaram para levar ao positivismo e ao cientificismo sistemático do
século XIX, o sentido que era atribuído ao Direito e às actiones, mutante no decorrer das eras,
bem como a supressão da tutela interdital corrompem o significado da ação de direito material
e levam a uma incompreensão do que o instituto representa e das condições de possibilidade
de uma nova leitura do direito em contraposição ao cientificismo tecnicista da modernidade.
Partindo-se do pressuposto de que a actio é a fórmula entregue pelo pretor no
procedimento in iure, que se originava no caso concreto, que representa a força viva do
direito, e de que, ao seu lado, havia outra forma de tutela, adequada à essência do direito que
reclamava proteção, percebe-se que não foi essa a concepção legada às épocas que sucederam
ao período clássico - até porque as fontes escritas sobre o referido período ou foram perdidas -
a partir das ordens dadas por Justiniano para proteger sua compilação - ou foram descobertas
já na modernidade.
A recepção do Direito Romano, conforme estruturado pela sistematização que lhe deu
a Escola Histórica, culminou com a afirmação de uma ciência processual autônoma em
relação ao direito material e com a conseqüente concepção de uma atividade judicial
formalista, que toma por base um fenômeno abstrato, em que o direito é uma solução pronta,
dada a priori, independentemente do que ocorre no mundo da vida, em operações mecânicas e
ao modo lógico-matemático, com as quais o Direito seria mais seguro e sua aplicação,
controlável pelo Estado.
2.1.2.2 A antiga polêmica
A Escola Histórica, fundada por Savigny, responsável pela sistematização da recepção
do Direito Romano na modernidade, concebeu, por meio da teoria civilista da ação, os passos
em direção à controvérsia que alguns doutrinadores entendem seja meramente teórica.
Sobre essa controvérsia é que versará a análise empreendida nos itens subseqüentes.
29
2.1.2.2.1 A origem da sistematização da relação entre direito material e processo
Frederich Karl von Savigny - ao afirmar que
“el derecho de accion entra mas bien en la categoria de los desenvolvimientos y
metamorfosis que experimentan los derechos por si mismos subsistentes; y de esta
manera ofrece igual carácter que el origen y dissolucion de aquellos derechos que no
afectan esta condicion sino que son fases de la existencia de verdaderos
derechos.”
40
,
para depois dizer que “la relacion que de la violacion resulta, es decir, el derecho conferido á
la parte lesionada se llama derecho de accion ó accion.”
41
- introduziu uma série de
conseqüências na relação entre direito material e processo. Aquela que primeiro importa
referir é que, embora Savigny reconhecesse a ação como categoria de direito material, uma
metamorfose dos direitos por si mesmos subsistentes, e embora tenha ele advertido, ao início
da obra, que a jurisdição, como parte integrante do direito público, não era objeto de sua
indagação
42
, ao falar em direito de acciones, a leitura apressada e comprometida de sua obra
acabou por equiparar sua doutrina, posteriormente chamada teoria imanentista, à teoria sobre
a “ação”, fenômeno processual que, por disposição expressa, ele mesmo teria deixado fora de
seu debate.
Desde então, a teoria civilista da ação, teoria da ação de direito material, passou a ser
perfilada às teorias que debatem a “ação” processual, afirmando-se que aquela fora substituída
por essa.
A convicção de que ação e ação” seriam um único ser é observada em Pugliese, que
introduz, como antes assinalado, a polêmica entre Windscheid e Muther, quando afirma que a
“a problemática moderna relativa tanto a la actio como a la acción (Klagerecht) tiene
su acta de nacimiento en la publicación de Windscheid [...] tratando de demonstrar
que el concepto romano de actio era extraño al derecho moderno y no coincidia em
absoluto con el de acción (Klagerecht)[...]”.
43
40
SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema del derecho romano actual. Madrid: Centro Editorial de Góngora,
1930. v. 4. p. 8-9.
41
Ibid., p.10.
42
Ibid., p.7.
43
PUGLIESE, Giovani. Introduccion da polemica sobre la ‘actio’. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER,
Theodor. Polemica sobre la ‘actio’. Buenos Aires: Europa-America, 1974. p. 13-14.
30
Essa afirmação supõe que Savigny estivesse a tratar de ação processual em sua teoria
imanentista, quando, todavia, falava de um fenômeno de direito material, deixando de fora,
expressamente o que pertencia ao campo processual. Supunha, ainda, a referida assertiva, que
o direito novo, que nascia da violação fosse a “ação” processual e que Puchta considerava a
“ação” como um elemento anexo ou acessório do direito substancial. Falavam tais autores, no
entanto, de um fenômeno material. Embora reduzissem ação de direito material à actio fator
que se reveste de importante relevância -, não falavam de “ação” processual.
Windscheid afirma que actio é uma emanação do direito e que “actio és pues el
término para designar lo que se puede exigir de outro; para caracterizar esto en forma breve,
podemos decir atinadamente que actio es el vocablo para designar pretensión”
44
. Logo
depois, referiu que
“la expresión: ‘alguién tiene una actio’ significa, traducida al lenguaje de nuestra
concepción jurídica, que alguién tiene una pretensión, no es mesnos cierto que actio
sirve primordialmente para designar, no la pretensión, sino el hecho de hacer valer
esa pretensión ante los tribunales.”
Assim, ele mesmo colabora para o desenvolvimento de confusões que permeiam o
direito processual civil e para a negação da ação de direito material como elemento
meramente conceitual e desnecessário. Como afirma Ovídio Araújo Baptista da Silva, essas
imprecisões de Windscheid, derivadas das próprias fontes, levam a muitas incompreensões:
“A primeira decorre de haver ele identificado a pretensão com a actio do direito
privado romano, sugerindo que todas as pretensões teriam cunho obrigacional,
que a actio, para o sistema processual do ordo iudiciorum privatorum, derivava
sempre de uma obligatio; a segunda deve-se ao fato de sugerir Windscheid que se
‘exerce actio’ quando se pede tutela processual.”
45
Muther, ao polemizar com Windscheid, pretendendo estabelecer o conceito de actio
como direito de acionar, também não foge da confusão, ao dizer:
44
WINDSCHEID, Bernhard. La actio del derecho civil romano, desde el punto de vista del derecho actual. In:
WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la ‘actio’. Buenos Aires: Europa-America,
1974. p. 12.
45
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 15.
31
“Hemos encontrado a la actio una cepción nueva que es por mucho la más frecuente
y que significa tanto como: la pretensión a que se confiera una formula. (...) Por
conseguiente, quien tenía derecho a que se le confiriera la fórmula debía tener
también un derecho subjetivo, que era presupuesto y fundamento del primero.”
46
Logo depois, deixa claro que “actio es pues la pretensión del titular frente al pretor a
fin de que éste le confiera una fórmula para el caso de que su derecho sea lesionado.”
47
Ou
seja, ele concebe “ação” para quem é titular de um direito, a qual seria o correspondente
moderno da actio, porque, segundo ele, ainda, na mesma passagem, a pretensão a que seja
conferida uma fórmula é própria do período formulário que se manteve, no direito posterior,
como idéia, ainda que modificada em seus pressupostos.
Até aqui, então, a ação de direito material era reduzida à actio do Direito Romano do
período da cognitio extraordinem e era tratada como realidade que compreendia a “ação” ou
que era compreendida por essa. Não havia demarcação entre direito material e processo, mas
o espírito da época supunha a necessidade de o Direito Processual adquirir o status de ciência,
com principiologia própria.
A essa controvérsia, apenas iniciada com Windscheid e Muther nos anos 1856-1857,
sucederam-se estudos que, seguindo a linha inspirada em Theodor Muther, pretendiam
afirmar o direito de acionar e construí-lo como realidade autônoma em relação ao direito
material.
Desde que Oskar von Bülow definiu o processo como relação jurídica com três
vértices, nos quais estão as partes e o juiz, sendo essa uma relación de derecho público, que
es fundada por la demanda judicial, y que tiene naturaleza formal, de onde el derecho de las
partes en la relación procesal tiende a la sentencia, pero no a una determinada sentencia
48
,
os rumos da relação entre direito material e processo finalmente se separaram. Isso porque, da
formulação da existência de uma relação jurídica processual independente e inconfundível
com a relação jurídica material, porque não seria direcionado a uma sentença determinada,
mas simplesmente a uma sentença, passaram a ocorrer desenvolvimentos e reações.
46
MUTHER. Theodor. Sobre la doctrina de la ‘actio’ romana, del derecho de accionar actual, de la
‘litiscontestatio y de la sucesión singular en las obligaciones. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER,
Theodor. Polemica sobre la ‘actio’. Buenos Aires: Europa-America, 1974. p. 241.
47
Ibid., p. 246.
48
CHIOVENDA, Giuseppe. Ensayos de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-
América, 1949. v. 1. p. 6.
32
2.1.2.2.2 O desenvolvimento de teorias com pré-compreensões distintas a respeito da ação e
da “ação”
O primeiro desenvolvimento veio com Degenkolb e Plósz, que conceberam o direito
de ação como um direito independente da existência de um direito material que lhe servisse de
causa. Esse direito seria reconhecido ao autor e ao réu, porque ambos teriam direito a
desenvolver a relação jurídica processual para alcançar uma sentença, mas, com Bülow, não
uma sentença determinada. Esse direito de ação” era dito abstrato e não dependia da
existência de direito material, tampouco se confundia com ele.
49
À chamada teoria abstrata da ação, surgiu a reão presente na obra de Adolph Wach, do
qual Giuseppe Chiovenda se considera discípulo, porque construiu sua conceão da relação entre
direito material e processo sobre a base lançada por Wach, o mestre que o conheceu.
50
Wach sistematizou o conceito de direito à tutela jurídica frente ao Estado e ao
adversário, como um direito a uma sentença favorável e à execução. Esse direito à tutela
jurídica pertenceria ao campo do direito público, cabendo ao direito processual a regulação
desse direito que, inobstante seja um direito a uma sentença favorável, independe do direito
material (então compreendido como direito privado), porque o simples interesse em mera
declaração de certeza pode fundamentar o direito de ação. Esse direito de ação, autônomo,
consistente no direito à tutela jurídica constituía o objeto do processo, que não estava
vinculado a um direito material anterior, porque poderia, então, fundar-se na mera
necessidade da certeza da inexistência de uma relação jurídica, o que denunciava que o direito
à tutela jurídica se prendia a mero interesse jurídico a uma sentença determinada, à base da
qual não estaria, necessariamente, um direito.
Chiovenda filiou-se à teoria de Wach, concebendo-a, no entanto, de modo bastante
diferente, mas igualmente oposto à teoria abstrata. Para o jurista italiano, tratava-se de
equívoco afirmar um direito à ação aberto a todos, inclusive àqueles que não tivessem razão.
49
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 1. p. 84.
50
Sobre Wach, são as seguintes as palavras de Chiovenda: Y, entre otros, también yo me siento discípulo de
este Maestro que no he llegado a conocer.” CHIOVENDA, Giuseppe. Ensayos de derecho procesal civil.
Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1949.v. 1. p. 424.
33
Segundo ele, não existe um
“derecho de accionar, independiente de um efetivo derecho privado, o de un interés
que pueda conducir a una sentencia favorable: la mera posibilidad, capacidad,
libertad de accionar que correponde a todos los ciudadanos, no es por un derecho,
al menos en el sentido riguroso de la palabra, sino mas bien una condición del
derecho de accionar, un medio, el uso del cual se convierte en derecho sólo en
determinadas circunstancias.”
51
Ele adverte, logo ao início de seu importante ensaio sobre o tema, que, nos limites de
seu trabalho, a ação é compreendida como derecho de obrar correspondiente al particular
para la defensa de aquel derecho no satisfecho.”
52
. Nessa sua concepção acerca do direito de
ação, pode-se ler a primeira diferença da teoria concretista da ão presente em Chiovenda,
em relação à teoria de Wach, pois ele considera que ação não é direcionada contra o Estado e
contra o adversário, como sustentara Wach, mas simplesmente
“el derecho de provocar la actividad del órgano jurisdicional contra el adversario [...]
Nosotros concebimos la acción precisamente como un derecho contra el adversario,
consistente en el poder de producir frente a éste el efecto jurídico de la actuación de
la ley.”
53
Esse direito de provocar o órgão jurisdicional contra o adversário foi concebido por
Chiovenda como direito potestativo, um direito a uma sujeição, sendo, para ele, a ação, o
direito potestativo por excelência, porque La acción es un poder frente al adversario, s
que contra el adversario. Queremos con esta distinción expresar la idea de que la acción no
supone obligación alguna.
54
, e, sim, uma sujeição a que se submete o adversário.
À teoria de Wach, ainda que com diferenças, às vezes substanciais, como as que se vê
em Chiovenda, é atribuído grande mérito por parcela expressiva da doutrina, por ter, nas
palavras de Hellwig, aclarado enérgicamente la necesidad de separar netamente los
51
CHIOVENDA, Giuseppe. La acción en el sistema de los derechos. In: ______. Ensayos de derecho procesal
civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1949. v. 1. p. 13.
52
Ibid., p. 6.
53
Ibid., p. 18-19.
54
Ibid., p. 18.
34
presupuestos substanciales y procesales de una acción fundada.
55
Essas palavras parecem
expressar o centro dos desencontros que levaram a teoria da ação a encobrir diferenças entre a
ação e a “ação”, apagando a importância da relação entre direito material e processo, que se
dá pelo conteúdo concreto da primeira, e abstrato da segunda e leva à possibilidade efetiva de
afirmação de duas esferas diferentes do ordenamento jurídico e à afirmação do valor dessa
dualidade, que se em sua identidade e diferença (ontologicamente), para o acontecer do
direito material no processo, o que será analisado ao longo deste trabalho.
Quando a “ação” processual é concebida como direcionada ao Estado e ao
adversário, nesse caso, como direito potestativo a uma sentença favorável, os caracteres que
são pertencentes à ação de direito material, categoria pertinente não ao processo, mas ao
direito material, se apagam e apaga-se a diferença entre direito material e processo, passando-
se à possibilidade que um se torne servo do outro. Toda a teorização do processo aprisiona o
direito material e se confunde com ele. Desde então, por isso, concebendo escopos específicos
para o direito processual, o jurista e, por influência dele, o legislador e o juiz passam a pensar
no processo como o centro de onde se irradiam os direitos. A forma como se passa a pensar o
processo em sua relação com o direito material se por meio de uma relação desvinculada
de laços realmente concretos, porque a ação de direito material deixa de irradiar efeitos, pois
foi transformada e levada ao campo do processo (foi substituída pela “ação”), onde o direito à
tutela jurídica perde seu real contato com essa fonte de irradiação. O processo, então, passa a
ser concebido como método em que, ultrapassadas determinadas solenidades, o direito seria
declarado, sem que o direito material pudesse se impor, pois sua potência e força foram
subtraídas pela afirmação da autonomia do processo, na qual subsiste a “ação” em lugar da
ação. Certamente, não se pode esquecer de que, ao passar a compor a realidade processual, o
direito assim concebido, desvincula-se de sua origem e dos fatos de que é eficácia e, como
categoria desprendida do mundo, projeção abstrata do que antes fora realidade, perde sua
força, deixando, também, de ser a categoria cambiante que é, no mundo, quando passa pelas
vicissitudes de sua real inefetividade. O processo, então, não cuida dessas vicissitudes, e passa
a trabalhar com um conceito dado, que é investigado apenas em sua existência ou
inexistência, e não em suas particularidades ou necessidades.
Essa confusão entre o que é do direito material e o que é do processo permanece sendo
tematizada no seio desse paradigma, e o desenvolvimento seguinte na esteira da confusão
55
Chiovenda cita a obra Anspruch und Klagerecht in CHIOVENDA, Giuseppe. La acción en el sistema de los
derechos. In: ______. Ensayos de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América,
1949. v. 1. p. 12.
35
entre ação de direito material e “ação” processual em que essa absorve algumas características
da primeira, de modo generalizante – se dá por meio da teoria eclética. A teoria eclética - que,
ao contrário do que se pensa, não engendra apenas a construção de Liebman - concebe
condições para essa “ação”, cujas características são aquelas tomadas de empréstimo do que
deveria ser a ação de direito material, que, nesse entendimento desapareceu por que foi
substituída. Por força dessa teoria, cuja variante liebmaniana o Direito Brasileiro mantém,
subsiste a antiga polêmica, sempre renovada pela necessidade de delimitar as fronteiras da
autonomia processual, centrada na necessidade de reconhecer caráter publicístico ao direito
processual.
À teoria eclética adere Gian-Antonio Micheli,
56
o qual afirma que
“No me parece exacto, en cambio, ni desde el punto de vista historico ni desde el
dogmático, contraponer la acción concreta, a la acción abstrata, considerando esta
última como expresión de una concepción del Estado rígidamente autoritario y
colectivístico, mientras que la primera sería expresión de la concepción liberal e
individualística del Estado mismo. [...].La acción abstracta puede ser considerada,
desde este punto de vista, como uma institución menos exacta que la outra opuesta,
pero representa la aspiración a dar formulación jurídica al derecho cívico
correspondiente a todos de acudir a los jueces para la tutela de los proprios derechos
e interesses.”
57
Em suma, refuta a ação concreta como resquício liberal-individualista e adere à teoria
abstrata, impondo à ação” assim considerada condições para obter o provimento
jurisdicional.
Piero Calamandrei, cuja importância e proeminência no campo do direito processual
não parece estar exposta a dúvidas ou cogitações, por exemplo, fala da “ação” como categoria
processual, invocando o descabimento de tratá-la como um momento do direito substancial,
que é por ele tratado como direito subjetivo. Diz ele que
“El interés individual es, sin duda, el dominante en aquel concepto de acción, tan
querido por los civilistas del siglo pasado que CHIOVENDA llama mixto o
improprio: el concepto según el cual la acción no sería más que un aspecto o un
momento del mismo derecho subjetivo substancial, un poder inmanente de reacción
56
Embora divirja de Enrico Túlio Liebman no que tange à enumeração das condições da ação que, para Micheli,
são a legitimidade para agir, o interesse para agir (no qual insere a possibilidade jurídica do pedido) e a
competência (jurisdição). MICHELI. Gian Antonio. Jurisdicción y acción: premisas críticas al estudio de la
acción en el proceso civil. In: ______. Estudios de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Juridicas
Europa-America, 1970. v.1.
57
Ibid., p. 180-181.
36
contra la sin razón, o, como se acostumbraba a decir con circunloquios tan
pitorescos como poco comprometedores, el derecho subjetivo ‘en pie de guerra’.”
E conclui:
“Pero estas frases tan vagas y tan poco concluyentes en mismas, que representan
la acción como una sombra fugaz proyectada por el derecho subjetivo sobre la lucha
del proceso, son en realidad la expresión muy significativa de aquella concepción
liberal del Estado que situaba en el centro del sistema jurídico la idea, sentida
fuertemente, del derecho subjetivo.”
58
Ora, nem a doutrina que sustenta que existem duas ações a “ação” e a ação
pretende reduzir o direito material à sua manifestação privada e individual, nem se pode
considerar que, com isso, a doutrina tradicional poderia conceituar a “ação”. É certo que essa
confusão é derivada da origem como as categorias foram sustentadas na polêmica original
entre Windscheid e Muther e os desdobramentos das teorias sobre a ação. A polêmica,
ademais, restou alimentada pela necessidade de isolar o campo processual de interferências
que criassem óbices à afirmação de sua autonomia. Ao contrário do que propaga a doutrina
tradicional, no entanto, reconhecer a ação de direito material não afeta o caráter publicístico
do processo, porque todo o direito está impregnado pela força transformadora da Constituição
e porque os direitos materiais devem ser compreendidos a partir da matriz constitucional,
motivo pelo qual seu caráter meramente privado não tem mais lugar nesta quadra da história.
Não se nega a autonomia processual com isso; apenas se pretende reconhecer um liame
concreto entre direito material e processo, desamarrando os óbices à compreensão de ambos
que resultou da indevida simbiose entre “ação” e ação pela qual é responsável a teoria
concreta.
Não se trata, como acusou Calamandrei, de transformar a ação” em uma sombra
fugaz projetada pelo direito subjetivo. Antes, o contrário, pois se trata da proposta de
reconhecer a existência e o valor original da ação de direito material como o “sol” do sistema,
não no sentido de centro, mas de fonte de irradiação de efeitos. Com isso, e reconhecendo que
o direito material não se confunde, nem se restringe ao direito subjetivo
59
, o que se faz é
reconhecer o caráter publicístico da relação entre direito material e processo, não apenas o
58
CALAMANDREI, Piero. Estudios sobre el proceso civil. Buenos Aires: Bibliogfica Argentina, 1945. p. 142.
59
O direito material, a partir da fonte embebedora da Constituição, é igualmente “público”.
37
caráter publicístico do processo. Trata-se da releitura desse caráter publicístico como
constituidor de direitos e transformador da realidade a partir da matriz constitucional. Na
verdade, a partir de uma visão constitucionalizadora do Estado Democrático e Constitucional
de Direito, todo o direito passa a ter feição publicística.
Afirmar o conceito de “ação” no processo, consolidando-o como categoria abstrata, é
providência necessária não à autonomia do processo, mas à defesa do direito material em
suas expressões dinâmicas. Para isso, impõe-se reconhecer que a teoria concreta da ação
sistematiza e confunde a “ação”, com o que, na verdade, é a ação de direito material. Afirmar
o caráter abstrato da “ação” e, ao mesmo tempo, defender que ela possa ser condicionada por
condições concretas, como fez Liebman, não é, ao contrário do que tem afirmado parte da
processualística brasileira, perfilar a teoria abstrata, mas manter o posicionamento, cuja
origem está em Wach e Chiovenda. É perfilar a teoria concreta, impondo à “ação” as
condições da ação de direito material, que são condições que pertinem ao mérito, ao objeto do
processo, e não, à possibilidade de seu desenvolvimento em direção ao mérito. É, pois,
unificar “ação” e ação, negando a força impositiva que irradia do direito material.
As diferentes pré-compreensões inquestionadas a respeito do mesmo fenômeno, das
mesmas categorias resultam em uma estrutura teórica incapaz de permitir a concórdia, porque
os debatedores partem de horizontes diversos na tentativa de compreender o fenômeno da
relação entre direito material e processo, mas acreditam estar falando da mesma coisa.
2.1.2.2.3 Da impossibilidade de fusão de horizontes
É possível concordar parcialmente com Calamandrei quando afirma que
“las várias teorias que todavía luchan en torno al concepto de acción encuentran
todas ellas su justificación histórica en el momento presente, en cuanto cada una de
ellas debe entenderse como relativa a las diversas fases de maduración de las
relaciones entre ciudadano y Estado.”
60
Concordar parcialmente, porque é certo que as diferentes concepções da ação, como
fenômeno puramente material, ou apenas processual, ou híbrido, ou como duas esferas de agir
60
CALAMANDREI, Piero. Estudios sobre el proceso civil. Buenos Aires: Bibliogfica Argentina, 1945. p. 139.
38
autônomas, certamente prevaleceram em dada época, em virtude dos pressupostos que eram
subjacentes às relações entre Estado e indivíduos e podem levar à manutenção de determinada
postura em relação à sustentação de uma concepção ou de outra em face dos pressupostos
ideológicos que se mantêm entre os juristas do processo. O horizonte histórico, com efeito, é
imprescindível para a compreensão, inclusive, do que se abordará adiante, acerca dos
pressupostos filosóficos, que sustentam as variadas posições. Não se pode concordar, no
entanto, que essa explicação possa relativizar o conceito de “ação”, a qual, para o mesmo
autor , a quem Micheli adesão
61
, es una realidad, que puede determinar las más variadas
interpretaciones dogmáticas, pero con la cual no puede dejar de contar quien quiera
comprender como está formado, en la civilización contenporanea, el proceso.”
62
Certamente, compreender a polêmica em torno da ação é ponto central para investigar
as diferentes concepções sobre o processo, no decorrer das fases por que passou, desde sua
feição privada, indissociada do direito material, passando por sua afirmação como ciência
autônoma, em direção às visões substancialistas ou processuais-procedimentais (ambas ainda
ligadas ao esquema S-O) até a compreensão hermenêutica que ora se propõe. Todavia, afirmar
que a relação entre direito material e processo possa, na atual quadra da história, assumir
variadas interpretações dogmáticas, restando escolha do intérprete perfilar qualquer das
teorias sem que isso reflita na realidade da jurisdição, importa desvinculá-la de sua função e
despir-lhe dos meios para realização do direito material no processo. Isso porque a escolha
não é do intérprete, em um sistema jurídico democrático de Direito. Lenio Luiz Streck insiste
na importância da relação entre o modo-de-fazer Direito e a concepção de Estado
vigente/dominante.”
63
A visão do direito material como elemento normativo, distanciado da
realidade, porque cristalizado e, portanto, anulado, em seu aspecto estático, direito, sem
ação/força, não se compraz com a visão transformadora que se apresenta nessa quadra da
história.
Essa visão normativa é proposta por todas as correntes que indicam a desnecessidade
de ligar-se o direito processual ao direito material de um modo concreto, no mundo, o qual
é possível por meio da afirmação de seu aspecto dinâmico, a ação de direito material, que é o
agir concreto, manifestação do direito em sua força e capacidade de realizar-se que, vedada,
será alegada no processo. A realização do que, em virtude dela, se impõe, será, por vezes,
61
El concepto de acción es verdaderamente una cosa relativa, como había puesto ya de relieve Calamandrei
[...]”.MICHELI. Gian Antonio. Jurisdcción y acción: premisas cticas al estudio de la acción en el proceso civil. In:
______. Estudios de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1970. p. 179.
62
CALAMANDREI, Piero. Estudios sobre el proceso civil. Buenos Aires: Bibliogfica Argentina, 1945. p. 139.
63
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 44.
39
efetuada com o auxílio do Poder Judiciário, a quem incumbe a satisfação dos direitos, ou seja,
a concretização das pretensões, no plano social. As correntes que recusam relevância à
realidade do direito material, assim concebida, alinham-se com um Estado liberal-
individualista, de asseguração de direitos negativos, em que o Direito do Estado é justo por
natureza e qualquer transformação da realidade social, via judiciário, seria ilegítima. Nelas, ao
direito material não é necessário reconhecer força transformadora, porque a própria
concepção de Estado não se amolda à concepção transformadora da realidade.
Buscar as raízes dessa discussão e ingressar no campo dessas polêmicas a respeito da
“ação” ou da ação, ou de ambas, na relação entre direito material e processo, é escolher
engajar-se em uma infindável discórdia em que se falam várias línguas diferentes, em que os
horizontes de sentido não se fundem, em que os paradigmas são diversos. Disso advém a
impossibilidade de diálogo e as crenças sempre renovadas de que a controvérsia findará com
as “ferramentas” do próprio paradigma, como demonstra a posição de Eduardo Couture. O
jurista uruguaio expõe sua tese - que considera como que o “fim de uma jornada” - de que
ação é uma espécie, forma específica do direito constitucional de petição, um poder jurídico
processual, para o qual ele considera inadequada a adjetivação de abstrato. Em seu
argumento, toma o cuidado de refutar o que ele chama de necessidade de criar um tertium
genus:
“Que exista um direito, a que chamaremos, por agora, material ou substantivo, o
qual assegura ao indivíduo determinados bens da vida, é fora de dúvida. Que exista
um poder jurídico de apresentar-se ante os órgãos jurisdicionais para pedir proteção
para êsses bens da vida, tampouco é discutível. Pois bem: Será necessário criar no
sistema dos direitos um ‘tertium genus’, que não seja nem o direito substantivo, nem
o direito processual de demandar ante a autoridade? o nos parece. Se êsse novo
direito, ao qual se poderia chamar hiperbòlicamente ‘ação’, compete aos que têm
razão, e só a êsses, então confunde-se com o direito material; se, ao contrário,
possuem-no tanto os que m razão como os que não m, então confunde-se como
direito processual.”
64
O tertium genus, ao qual o jurista se refere como ação, seria a ação de direito material.
Todavia, pensar a ação de direito material como um tertium genus, cuja criação é apontada
como desnecessária pelo jurista, é um equívoco, pois a ação de direito material é estado do
direito material em atividade, um momento do direito material em ação (a redundância é
proposital), que existe ao lado da “ação” processual, sem com ela se confundir e sem apagar
64
COUTURE. Eduardo J. Fundamentos de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 55.
40
seu valor como “ação” abstrata. Essa ação, a ser alegada na “ação”, corresponde à órbita do
direito material, assim como a “ação” corresponde à órbita do direito processual. Não um
tertium genus quando se fala em ação de direito material.
À possível acusação, por fim, de que conceber a ação de direito material como
realidade concreta ao lado da “ação” abstrata significa comprometer-se com teorias
imanentistas da ação (teorias civilistas), porque estas tratariam a “ação” como categoria
imanente ao direito material, quando o que se seria imanente é a ação, não a “ação” (essa
necessariamente independente, autônoma, inclusive por determinação constitucional, porque a
todos é garantido o acesso ao judiciário que aberto a todas as pretensões e possíveis
ameaças de violação ou violação a direitos poderá ser universal, pois não como definir,
aprioristicamente, quem tem ou não direito), argúi-se que não se trata de imanência, mas de
conceber o ente (direito) em seu ser (sentido), porque todo ente só é no seu ser e todo ser é o
ser de um ente e porque não há interpretação sem aplicação. Ao lado da “ação”, também por
mandamento constitucional, deverá haver um direito potencialmente forte para fazer-se atuar,
do que resulta a imposição constitucional de reconhecimento da ação de direito material, a
qual será alegada e, por reconhecimento provisório, temporário ou definitivo do direito,
deverá ser realizada como decorrência do auxílio do Poder Judiciário na concretização dos
direitos (pretensões), sob pena de o processo ser instrumento de abstração, porque, como diz
Ovídio Araújo Baptista da Silva
65
, o direito material, só, não vai ao foro, porque é estático e
não possui potencialidade suficiente para fazer-se atuar se não for dotado de pretensão e ação
de direito material.
Em resumo: em toda essa reconstrução, das inúmeras, variáveis, coincidentes ou não,
posições sobre a ação e a “ação”, dentre as tantas outras aqui não-examinadas - porque, como
afirma a doutrina, parecem existir tantas posições quantos juristas que delas se ocuparam,
entre os quais também não concórdia possível sem a abertura do sentido que se na
compreensão como aplicação - o principal é, primeiro, desvelar a controvérsia, traçar seus
pressupostos e conseqüências, em busca de um sentido capaz de restaurar a compreensão a
partir da linguagem, e não, do instrumento, em direção à visão autêntica da ação de direito
material e à relação entre direito material e processo adequada ao modelo democrático e
social de Direito, nessa quadra da história, pois
65
Dentre outras, as obras: SILVA, Ovídio Araújo Baptista da Silva. Processo e ideologia: o paradigma
racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004; e SILVA Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição, direito material e
processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
41
“a passagem do Estado Liberal para o Estado Social revelará, constantemente, os
limites da ideologia da ‘fidelidade à lei’. A complicada convivência do Estado de
Direito com o chamado Estado do Bem-estar Social fica evidenciada pelo necessário
recurso a novas categorias cognitivas por parte do intérprete. Caminha-se, assim, da
hermenêutica de bloqueio para a hermenêutica de legitimação de aspirações
sociais.”
66
2.1.2.2.4 Em busca de um sentido perdido
As concepções acerca da actio, a transposição dessa categoria à jurisdição moderna,
como se representasse a totalidade da jurisdição desenvolvida na história do Direito Romano,
a visão que equipara a actio à ação de direito material, ou seja, a equiparação de um momento
do processo romano à atividade concreta, que é manifestação do direito em sua possibilidade
de fazer-se efetivo, a afirmação da “ação” como o modo moderno de conceber a actio, que
antes fora equiparada à ação de direito material, são os componentes históricos que
demonstram como, da função criadora e realizadora dos direitos, que caracterizou o tempo
mais próspero da civilização que legou o desenvolvimento do Direito às eras que a
sucederam, se caminhou em direção a um direito atrelado à concepção sistemática do direito e
à jurisdição de atuação apenas normativa, i.e., como da formulação do direito para o caso
concreto - em que a norma, sempre em sua dimensão concreta, era extraída do conjunto do
Direito - se involuiu para uma concepção subsuntiva de mera atividade mecanizada a partir de
uma vontade ideal e reconhecida como perfeita a priori, a vontade do legislador ou da lei;
bem como de que maneira da atividade jurisdicional direcionada ao agir concreto se involuiu
para a concepção normativa da jurisdição; são reflexões que se tornam imprescindíveis para
quem pensa o problema da relação entre processo e direito material.
67
Como as formulações que retomaram o sentido apenas declarativo da fase apud
iudicem, submetida ao iudex romano para limitar a jurisdição à atividade meramente
66
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 44.
67
Desde já, antecipando a crítica, é necessário precisar que a retomada de uma categoria, cuja sustentação e
afirmação remonta, na doutrina brasileira, a Pontes de Miranda, não equivale, de modo algum, a sustentar,
juntamente com ela, a clássica teoria da subsunção, exposta por Pontes de Miranda, de modo rigoroso, científico
e sistemático. Reconhecendo o valor da sustentação de Pontes acerca do que chamou ele de três categorias em
vertical (direito, pretensão e ação), a retomada de seu pensamento não se estende à teoria da subsunção, cuja
compreensão exige, para realização de um direito vinculado ao mundo da vida, uma releitura aberta à
compreensão a partir da tradição e da construção do direito vivo, superando a concepção abstrata do Direito, em
direção ao círculo hermenêutico. Não se trata de “jogar fora o bebê com a água do banho”, mas de reter o que de
bom pode ser retido em prol da construção de um Direito transformador da realidade, a partir de uma perspectiva
autêntica ligada ao Estado Democrático (e Constitucional) de Direito. A posição contrária redundaria em postura
maniqueísta, incompatível com uma investigação que pretende desvelar sentidos inautênticos na compreensão do
Direito.
42
declarativa, encobriram a atividade dita criadora e constitutiva do Direito que pertencia ao
pretor na fase in iure, a quem incumbia a construção da fórmula e o reconhecimento da actio
adequada a realizar o direito do caso concreto, sob a condição de que houvesse a
comprovação, perante o iudex, dos fatos que foram objeto da análise do pretor para criar a
fórmula? Como, ainda, da possibilidade de transformação da realidade em concreta realização
dos direitos por meios como a tutela interdital pelo pretor, se caminhou em direção a uma
atuação puramente normativa do Direito? São perguntas, dentre tantas outras, que se impõem
no desvelamento do que poderá vir a ser uma relação autêntica produtora de sentido entre
direito material e processo.
Não se trata, pois, de mera investigação histórica ou filológica. Trata-se de
investigação destinada a desvelar sentidos em direção a um diagnóstico dos motivos que
levam a processualística a recusar a atividade jurisdicional construtiva do Direito. Essa
investigação exige um debruçar-se sobre um novo capítulo, uma nova polêmica.
2.1.2.3 A introdução de uma nova polêmica
A polêmica recente é herdeira da antiga polêmica, mas com ela inconfundível. Parte-
se, primeiramente, do pressuposto de que a “ação” foi equiparada à actio, que, anteriormente,
havia sido confundida com a ação de direito material. O desaparecimento dessa última, a
ação de direito material, movimenta as discussões atuais, porque, segundo a majoritária
doutrina, teria sido substituída pela “ação”. Seus reflexos não restam circunscritos ao campo
da ação de direito material, nem tampouco têm efeitos limitados ou inexistentes no campo da
compreensão do processo. Assume, de modo paradoxal, lugar central na relação entre Direito
Material e Processo.
Muitos são os matizes dessa polêmica: 1) Envolve a questão relativa à classificação
das ações, decorrência imediata das posições sobre a existência da ação de direito material, de
um lado, e sua inexistência ou seu desaparecimento em face da vedação da autotutela e da
conseqüente substituição da ação pela “ação”, no outro vértice da polêmica. Supor que a
classificação seja pertinente ao plano processual é o motivo propulsor do aprimoramento da
jurisdição a formas de tutela meramente normativas dos direitos (declaratória, constitutiva e
condenatória), base da compreensão positivista da atividade jurisdicional que não vai aos
fatos. Isso porque se atribuem eficácias conceituais e desprende-se a jurisdição do seu escopo,
43
que é a concretização das pretensões de direito material; 2) Envolve a questão da própria
concepção da atividade jurisdicional, seu conteúdo e sua função, que remete à profunda
diferença entre concretizar pretensões (conceber jurisdição a partir da matriz constitucional
em um Estado de transformação social) ou regulá-los normativamente (concebendo jurisdição
a partir de um ultrapassado modelo liberal-individualista, cujo modo-de-fazer direito está
atrelado às metafísicas e, portanto, à contraposição S-O); 3) Envolve, por fim, o tema relativo
à relação entre o direito material e o processo e a superação das insuficiências da jurisdição.
Todas as matizes apontadas estão, necessariamente, ligadas umas às outras e perpassam a
noção mais importante, o desvelamento do sentido do ser do direito material e do processo,
noção capaz de restaurar um vínculo concreto e positivo entre as esferas, em direção a uma
compreensão autêntica do processo.
O surgimento, por meio do posicionamento de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira,
contrário a Ovídio Araújo Baptista da Silva, da polêmica acerca da utilidade da afirmação da
existência da ação de direito material, que esse agir para a realização do próprio direito
raramente é facultado ao respectivo titular
68
, é condição para esse desvelamento. Não seria
possível pensá-lo sem partir da reflexão sobre os motivos e as conseqüências de tão acirrada
controvérsia. A polêmica é sadia e traz, segundo Heidegger, citado por Ernildo Stein, a
possibilidade de que o pensamento corresponda ao apelo do que deve ser pensado.”
69
,
condição para a subversão de uma ordem imposta pelo positivismo universalizador,
atemporalizador e cristalizador de sentidos. Pensar a ação de direito material.
2.1.2.3.1 A negação da ação de direito material, “substituída” pela “ação” e sua sustentação
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira inaugura a polêmica, respondendo a Ovídio Araújo
Baptista da Silva, no artigo intitulado “O problema da Eficácia da Sentença”
70
e o faz
enfrentando, inicialmente, a questão relativa à classificação das ações. Não apenas a questão
relativa às classificações ternária ou quinária e, poder-se-ia acrescentar, quaternária, mas
68
SILVA, Ovídio Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 20.
69
Ernildo Stein traduz e cita passagem de Martin Heidegger no texto Für den Herrn Verleger Dr. Phil. H.c.
Hermann Niemeyer”. STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001. p. 201.
70
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
44
especialmente, o que se reflete nas ditas classificações, a sua circunscrição ao campo material
ou processual, base da controvérsia.
71
Para Alvaro de Oliveira,
“mostra-se inadequado continuar a pensar as relações entre o direito material e o
processo em termos de ação de direito material, conceito que tinha razão quando
ainda não estava suficientemente maduro o arcabouço dos direitos fundamentais e a
constitucionalização que se seguiu. [...] Trata-se, em suma, de atentar devidamente à
noção autônoma e de caráter público da ordem processual, decorrente da necessária
monopolização da distribuição da Justiça pelo Poder estatal.”
72
A questão central, para o autor, é autonomia do processo frente ao direito material,
motivo pelo qual a classificação das ações é atribuída ao processo, e não, ao direito material.
Diz o processualista, em outro estudo em que se desenvolve a polêmica: Tudo na verdade
não passa de confusão entre os dois planos, com amesquinhamento do plano do direito
processual.”
73
A concepção defendida está clara ao frisar que
“bem esclarece Lourival Vilanova inexistir relação material entre a relação material
e a processual. Poderia haver se a relação substantiva continuasse no interior da
relação processual. Mas, esta é cortada: o direito subjetivo de agir, o poder/dever de
julgar e o direito subjetivo de contestar compõem relação abstrata. Quer dizer: uma
relação tirada (ab é prefixo indicador da separação) ou desvinculada de sua causa
(em sentido técnico-jurídico). A ação em sentido de direito material não continua na
ação em sentido processual. A pretensão e o dever de prestação continuam, mas, na
nova relação, outra pretensão dirige-se ao órgão, que não se sub-roga no dever de
prestar material, mas no poder/dever de prestar a função jurisdicional.”
74
71
A classificação quaternária das ações de direito material se deve ao estudo de Ovídio Araújo Batista da Silva,
intitulado A ação condenatória como categoria processual. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Da sentença
liminar à nulidade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2002. Além dessa, pode-se apontar, no estudo de
Fábio Cardoso Machado, uma classificação trinaria, que não se confunde com a classificação clássica em
declaratórias, constitutivas e condenatórias (mais afinada com a concepção que as classifica no direito
processual): trata-se da tese exposta pelo autor de que três são as ações de direito material - declaratórias,
constitutivas e executivas - porque a real eficácia das ações condenatórias é, de fato, executiva, e a mandamental,
por sua expressa utilidade no campo da realização dos direitos, mantém-se no campo da técnica processual, não
sendo projeção de uma ação de direito material. MACHADO, Fábio Cardoso. “Ação” e ações: sobre a renovada
polêmica em torno da ação de direito material. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo.
(Org.) Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 157.
72
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Efetividade e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL,
Guilherme Rizzo (Org.). Pomica sobre a ão: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e
processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.84.
73
Ibid., p. 298.
74
Ibid.
45
A seguir, o jurista afirma que o juiz pode declarar, pode constituir, pode condenar,
pode mandar.
Necessário comparar essas assertivas do processualista com afirmação que fez
anteriormente. No rigor da análise, essa noção de que o juiz não se sub-roga no dever de
prestar material, mas no poder/dever de prestar a tutela jurisdicional não parece se coadunar
com sua afirmação de que
“não parece possível afastar a ligação com o direito material, em virtude da ínsita
instrumentalidade que a função jurisdicional exerce em relação a este, a que servem
a ação e o processo, por meio do exercício dos poderes, faculdades e ônus titulados
pelas partes. Todo o processo está impregnado de direito material. [...]. Tudo isso
demonstra não ser possível emprestar à eficácia da sentença um caráter puramente
processual”
75
.
A forma de compreender em conjunto tais assertivas, no que pertine à afirmada
relação íntima entre direito material e processo, e, ao mesmo tempo, de que o juiz não se sub-
roga no dever de prestar material, é de que o direito material que impregna, nas palavras do
jurista, o processo, é efetivamente abstrato. Não apenas compõe uma relação abstrata, como
na assertiva de Lourival Vilanova, citada por Álvaro de Oliveira, mas no sentido de que o
direito material a ser considerado é abstrato, o direito como lei (texto), Direito Positivo,
abstraídos os fatos, que são cortados, continuando, a relação processual, límpida, normativa,
em que ao juiz é dado aplicar a norma, declarando sua aplicabilidade.
A adequação entre direito material e processo - para a corrente que, com o importante
polemista, recusa valor e, até mesmo, existência à ação de direito material - é abstrata. Trata-
se de adequar a norma, não aos fatos da vida, ao fenômeno que deve receber regulação pelo
direito, mas à previsão abstrata dos direitos, por isso, em um discurso de fundamentação
prévio, o que se confirma com o seguinte trecho, da lavra do autor ora comentado: Como
bem pondera Liebman, não dúvida de que o processo é instrumento de realização do
direito material, mas tal finalidade é alcançada por meio do agir do Estado, que assegura a
efetiva vigência da ordem jurídica.” O processo realiza, assim, a ordem jurídica, não o direito
das partes envolvidas. É o direito dado a priori, abstratamente, pelo legislador, que deve ter
75
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.45.
46
sua aplicabilidade garantida. Não é o direito concreto que deve se realizar. Nesse ponto, é
preciso perguntar, afinal, qual a utilidade de se afirmar a vigência da norma jurídica sem
realizar o direito concretamente entre as partes? A pergunta poderia ser reformulada da
seguinte maneira: Onde se insere a realização da justiça nessa concepção? Garantir o respeito
à ordem jurídica, abstratamente, é atividade que não se compromete com a justiça no caso
concreto, comprometendo-se, ao revés, com uma noção de justiça, abstrata, é claro,
pressuposta na lei e na vontade do legislador, em que o mundo do supra-sensível, ideal,
perfeito, é o plano onde existem as normas jurídicas, e o mundo sensível, imperfeito, é onde
acontecem os fatos. Norma e fato não se tocam, o processo realiza a justiça em uma relação
abstrata de adequação, que pressupõe a possibilidade de separação entre fato e norma,
eliminando a contingência. A efetividade derivada dessa concepção é abstrata, pressuposta
como decorrência do método, i.e., basta seguir os passos do processo – método, instrumento –
e a justiça (abstrata!) será alcançada.
Essa concepção pressupõe que a autonomia do processo frente ao direito material
estaria vinculada ao rigor científico da articulação do processo, e sua autoridade estaria ligada
à defesa do ordenamento jurídico.
Segundo se compreende, todavia, verdadeiro prejuízo à autonomia entre direito
material e processo - que não podem se confundir, como não se confunde a coisa e sua técnica
estará em afirmar que a ação de direito material foi substituída ou transformada em “ação”
(em sentido processual), porque tal compreensão certamente acarretará a negação de um dos
âmbitos. Ou afirmo que o direito material não interferirá no processo - porque como afirma
Alvaro de Oliveira, não é possível afirmar a existência do direito antes do contraditório,
muito menos se poderá admitir a ‘ação material’ no início da demanda.”
76
- caso em que
o direito material seria produzido pelo processo. Ou, então, transporto o direito material para
o processo, concluindo pela existência de ações processuais e sentenças concretas, ao
confundir ação de direito material e “ação” e, em filiação à teoria concretista da ão, nego o
plano independente do direito processual. O manejo da negativa da ação de direito material
produz, conforme o modo como manipulada, um dos dois efeitos apontados: ou nega o
Processo, ou nega o Direito Material.
Ocorre que, no trecho apontado, de Alvaro de Oliveira, está a resposta para o
problema, porque, logo após dizer que não se pode admitir um direito ou uma ação material
76
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.41.
47
logo ao início do processo, também afirma que sua existência poderá ser averiguada ao
final do processo, com o trânsito em julgado da sentença, quando então se confundirá com a
eficácia da própria sentença.
77
Se ao processo cabe averiguar a existência é porque, caso
procedente a ação, o direito subjetivo, a pretensão e a ação existiam, porque foi
“averiguada” sua existência. Se não existiam, e o processo se desenvolveu é porque direito
subjetivo à tutela jurídica e a “ação” correspondente não se confundem com o direito material
e a ação correspondente e, então, terei dois planos independentes o direito material e o
processo –, cujo vínculo positivo pode ser afirmado.
2.1.2.3.2 A afirmação da ação de direito material e da “ação” processual: duas categorias
inconfundíveis
A posição de Ovídio Araújo Baptista da Silva, formulada sobre as bases da proposição
de Pontes de Miranda sobre a classificação das ações e não da “ação”, supõe a superposição
de três categorias em vertical: o direito, a pretensão e a ação. Segundo Ovídio, o direito
subjetivo, assim definido, é um status, uma categoria jurídica estática, ao contrário da ação
que pode ser esse próprio direito subjetivo em seu momento dinâmico.”
78
. Diferencia, pois,
ação, assim grafada no sentido material, e “ação”, no sentido processual, no modo como a ela
se referia Pontes de Miranda. Essa concepção reconhece a existência da ação de direito
material, que não se confunde com a “ação”, que corresponde ao direito subjetivo público de
invocar a tutela jurisdicional e se opõe à doutrina que afirma que a “ação”, nos sistemas
modernos, teria substituído a ação. Afirma o processualista:
“A primeira confusão, portanto, a evitar-se será aquela que costuma confundir a
‘ação’ com o direito subjetivo público’ de invocar a tutela jurisdicional, ou de
suscitar a atividade dos órgãos estatais encarregados de prestar jurisdição. A ‘ação’
não é um direito subjetivo, pela singela razão de ser ela a expressão dinâmica de um
direito subjetivo público que lhe é anterior e que a funda.”
79
77
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 41.
78
SILVA, Ovídio A Baptista da. Direito subjetivo, pretensão, direito material e ação. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 16.
79
Ibid., p. 17.
48
Dessa confusão que se busca desvelar, nasce a verdadeira recusa do liame entre direito
material e processo e o transporte das cargas eficaciais das ações e sentenças para o plano do
processo, o que, segundo o autor, expõe o vínculo dos doutrinadores que afirmam que a
classificação das sentenças está no plano processual com a teoria concretista da ação, porque
o que é abstrato, como seria a “ação”, não tem qualificação concreta: declaratória, constitutiva
ou condenatória.
80
Ovídio Araújo Baptista da Silva tem procurado demonstrar o comprometimento que a
recusa da ação de direito material tem com o normativismo - presente em toda a
processualística, que defende que a ação de direito material é um anacronismo. Esse
comprometimento, ainda conforme Ovídio A. Baptista da Silva, tem vínculos estreitos com os
equívocos cometidos, principalmente, por August Thon, para quem o direito subjetivo
somente nasceria depois de a norma ser violada
81
, e por Bernhardt Windscheid, que
decorre de haver ele identificado a pretensão com a actio do direito privado romano
82
, e,
ao mesmo tempo, dito, que se ‘exerce actio’ quando se pede tutela processual”.
83
Essas
concepções permitem a confusão das três categorias eficaciais em vertical em uma única
categoria, pela doutrina moderna, que não motivo em se manter o reconhecimento da
existência de uma categoria que representa uma atividade vedada pelo ordenamento jurídico:
a ação de direito material. O fato de ter sido vedada, no entanto, supõe sua existência anterior
e a criação de um instrumento a “ação” - para instrumentalizar a possibilidade de universal
acesso ao judiciário e potencializar, quando for o caso, a realização do direito material
exigível, violado ou ameaçado de violação, em lugar de negar a existência da ação de direito
material, ao contrário de lhe recusar valor, pressupõe sua existência no caso concreto.
Nesse passo, verifica-se que a diferenciação entre o Direito Material e o Direito
Processual é preservada aqui. A posição contrária, preocupada em manter a autonomia do
processo em relação ao direito material, em evidente contrariedade aos seus propósitos, acaba
80
Para expor apenas a teoria ternária da classificação das ações que é dominante, embora se reconheça que
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, principal polemista na matéria - junto com Ovídio Araújo Baptista da Silva,
ora comentado - filia-se à teoria quinária, em seu ensaio “O Problema da Eficácia da Sentença”, embora afirme
que a classificação pertine ao Direito Processual. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia
da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a
tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006. p. 54. É preciso lembrar, a essa altura, que Ovídio Araújo Baptista da Silva expõe teoria quaternária no
ensaio intitulado “A ação condenatória como categoria processual”. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Da
sentença liminar à nulidade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
81
SILVA. Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 4.
82
Ibid., p. 15.
83
Ibid.
49
por recusar a esfera própria do direito material, quando afirma que a ação de direito material
não existe, tendo sido substituída pela ação processual, em face da vedação da autotutela. Ao
invés, pois, de afirmar a autonomia do processo, tal construção acaba reconhecendo apenas
esse, posição monista, cuja conseqüência é apontada por Ovídio Araújo Baptista da Silva: A
nosso ver, torna-se evidente que a eliminação das pretensões e ações do campo do direito
material, contribui, decisivamente, para a debilitação do direito material, em favor do
predomínio do direito processual.”
84
2.1.2.3.3 Exposição crítica dos desdobramentos da polêmica: uma investigação destinada ao
desvelamento dos sentidos que serão objeto da análise em direção à sustentação da ação de
direito material como categoria hermenêutica
A doutrina em torno da ação e da “ação”, assim no Brasil como no exterior, apresenta
tantos matizes quantas são as proposições apresentadas em direção ao acolhimento de uma ou
outra posição, mas também engendra posições passíveis de catalogação, como independentes
de uma filiação, como é o que pretende Luiz Guilherme Marinoni.
Não é possível a análise criteriosa de todos esses posicionamentos - embora o esforço
fosse revelador e profícuo e, talvez, pela necessidade de aprofundamento e pela extensão do
material à disposição, não coubesse nos estreitos limites de um único pesquisador. Um sonho,
talvez, de quem se acha premido pela necessidade de fazer um adequado recorte nas
investigações.
85
Essa pesquisa, em torno das opiniões que se formaram a partir da polêmica inicial e
continuam se desenvolvendo, com novos matizes, é condição de possibilidade para desvelar
muitos equívocos sobre a questão.
Para introduzir o debate, em primeiro lugar, então, é preciso analisar as premissas
básicas do trabalho e, desde logo, necessário gizar a correta interpretação da doutrina de
Pontes de Miranda, paradigma teórico de onde parte a análise de Ovídio Araújo Baptista da
84
SILVA. Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 125-126.
85
Esse corte, tentando-se fugir do perigo de fazê-lo arbitrariamente, é efetuado, aqui, para tentar analisar alguns
trabalhos específicos de alguns dos principais contendores e de doutrinadores nacionais que se envolveram mais
agudamente na polêmica ou cujas proposições influenciam mais agudamente a doutrina brasileira Desde já,
todavia, o próprio critério escolhido confessa um certo arbítrio na seleção dos doutrinadores analisados, em face
da extensão em importância e quantidade do que é produzido pelos escritores nacionais.
50
Silva e motivo pelo qual é estabelecido o diálogo que se viabiliza com a resposta de Carlos
Alberto Alvaro de Oliveira.
Nesse sentido, cumpre analisar a assertiva de Guilherme Rizzo Amaral, no sentido de
que “a observação de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira abre a ferida de que padece a
classificação das ações segundo quanto de eficácia, [...]
86
.
Pontes de Miranda não desenvolve uma abstrata classificação das ações segundo o
quantum de eficácia. Pontes de Miranda parte dos fatos, para compreendê-los e a classificação
respectiva, dos respectivos fatos, a partir de seus lineamentos, acompanha-os desde seu
nascimento por todo o seu desenvolvimento eficacial direitos, pretensões e ações, todos em
sentido material. A elucidação é necessária porque partir do pressuposto de que Pontes
classifica ações induz à compreensão abstrata de sua proposição, motivo para compreendê-las,
como não poderia deixar de ser, também abstratamente, desvinculando-as de sua relação com
os fatos, entrincheirando o processo no campo da abstração, que classificações sem
embasamento concreto - como seria uma classificação de ações, nascidas não se sabe de onde
- não têm valor algum. É o primeiro problema, esse, sim, verdadeira “ferida” aberta, não na
doutrina de Pontes, mas na compreensão do processo em sua relação com o direito material.
Amaral afirma que não se encontram, no plano do direito material, pretensões de
declaração, constituição e condenação e, na sua opinião, imaginando a
“ausência de vedação à autotutela, conseguimos apenas vislumbrar a execução (de
mãos próprias) e o mandamento (não no sentido de estatalidade, mas de ordens
revestidas de ameaça física ou psicológica) como possíveis ações privadas.”
87
Ora, ao contrário do que afirma o autor, se uma conduta é proibida é porque,
necessariamente, existe. Se uma pessoa não tem autoridade para declarar a existência ou
inexistência de uma relação jurídica, ou desconstituí-la sem intervenção estatal, não quer dizer
que não tenha a pretensão e a ação de direito material respectiva, cujo exercício apenas lhe foi
vedado, em determinadas hipóteses. Basta lembrar que as partes podem declarar, entre si, uma
relação jurídica pré-existente, por instrumento particular ou escritura pública, se tal situação
estiver na esfera de disponibilidade de seus direitos, e que, se houver acordo no que tange ao
86
AMARAL, Guilherme Rizzo. A polêmica em torno da ‘ação de direito material’. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 123.
87
Ibid.
51
divórcio, o juiz homologará o acordo, desde que não haja disposição que ofenda o
ordenamento jurídico, no que é preciso lembrar o que diz o dicionário, atendendo à concitação
de Saussure: Se queres saber o significado de um significante, pergunte por aí!
88
Isto é, se
queres saber algo sobre as coisas, pergunte por aí! Sendo assim, diz o dicionário Houaiss que
homologar significa decretar, ratificar, confirmar juridicamente, reconhecer algo oficialmente,
reconhecer algo como legítimo, dentre outros significados que permitem concluir que se trata
de impor autoridade e certeza a algo, porque esse algo existe e a alguém, ou a algum órgão, no
caso, o Estado, é dado conferir tal autoridade, porque a ação originária dos envolvidos foi
vedada, no todo ou em parte
89
. A esse conjunto de fatores outros elementos se somam: se não
há, no direito material, pretensão ou ação constitutivas e desconstitutivas, declaratórias,
positivas ou negativas, como se explica 1. a possibilidade de desconstituir extrajudicialmente
relações jurídicas relativas ao estado da pessoa, advinda da entrada em vigor da Lei nº
11.441/07; 2. a possibilidade de constituir relações jurídicas extrajudicialmente, como no caso
de sociedades e, até mesmo, uniões estáveis. Dir-se-á que são atividades não-jurisdicionais de
regulação dos negócios privados, em que não conflito. Sim, são porque aplicar o direito
não é atividade exclusiva da jurisdição e não são porque em tempos de
neoconstitucionalismo o interesse público de compatibilidade à Constituição Federal abarca
tudo, inclusive, a regulação dos assuntos privados. Ademais, denotam que as pretensões e
ações de direito material, cuja eficácia seja potencialmente declaratória ou constitutiva - quer
dizer, o modo de realizar-se o direito material é produzindo tais efeitos existem antes e
independentemente do processo, sendo exercidas por meio dele, necessariamente, quando e se
vedadas ou inviabilizadas por ato das partes.
É preciso reconhecer que justamente porque a ação” é abstrata, poder-se-ão explicar
sentenças de improcedência, mas se se confundem ação e “ação”, fazendo esta substituir
aquela, uma das duas realidades deverá ser reconhecida: 1) ou não houve perda de conteúdo,
porque o conteúdo da ão está na “ação”, que não será abstrata, e não poderá haver acesso
à justiça para quem não tem direito, nem sentenças de improcedência, porque todas as ações
seriam necessariamente procedentes, que sempre haveria um conteúdo na “ação” abstrata;
2) ou se admite que tal concepção faz qualquer coisa com o direito material, porque não
restou conteúdo algum a preencher o instrumento e o conteúdo já não mais existe, porque não
88
Streck cita Ferdinand Saussure. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris,
2006. p. 101.
89
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1548
(verbete “homologar”).
52
mais existe a ação de direito material, que é a manifestação dinâmica do direito, agora
despontencializado.
Não sendo comprovada a relação que embasamento à solução requerida pelo autor,
comprova-se que a “ação”, por ser abstrata, processou-se, de modo a concluir pela
improcedência da ação (aqui no sentido material). Confessa-se que não se pode entender por
que tanta dificuldade em imaginar o direito como acontecimento, dinâmico, na vida das
pessoas. Só isso pode fundamentar porque não é possível ver que o que é entregue à atividade
do juiz não pode ser senão algo que está no mundo. Assim, concretizam-se pretensões.
Como diz Ovídio Araújo Baptista da Silva
90
, duas são as tarefas do juiz, não
necessariamente nessa ordem: uma, de verificação da veracidade das alegações das partes,
produzindo o acertamento; outra, de realização material do que o Estado as impediu de
realizar sozinhas. Ambas, atividades jurisdicionais. A segunda, realização do que foi vedado
ao interessado realizar por suas próprias mãos, mas, porque ação vedada, é ação existente, na
consecução da qual intervém o órgão jurisdicional, em atividade substitutiva, que caracteriza
a jurisdição
91
.
Outra interessante conclusão, que parece invertida, pode ser apontada no interessante
ensaio de Guilherme Rizzo Amaral. Trata-se da afirmação de que o art. 461 do Código de
Processo Civil permite ao juiz a escolha entre mandamento ou execução, independentemente
do que pedido pelo autor em sua petição inicial. Para o autor, tal equivale à prova de que não
se pode definir “a priori se a demanda é executiva ou mandamental
92
. Primeiramente,
necessário observar que o autor, ao pedir, em sua petição inicial, está diante de um fato.
Optando por pedir uma determinada medida (o que, de resto, não precisa fazer, bastando que
genericamente requeira a aplicação do art. 461 ou 461-A do Código de Processo Civil), ou
limitando-se a requerer a procedência em um dado sentido (porque não precisa indicar ao juiz
os meios a serem utilizados para a realização de seu direito no caso concreto), o que o autor
90
SILVA, Ovídio A Baptista da. Direito subjetivo, pretensão, direito material e ação”. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 21-22.
91
A concepção da atividade jurisdicional como atividade substitutiva é de grande expressão na processualística,
sendo devida a Chiovenda sua formulação: Utilizando o que de verdade se contém em todos esses modos de
ver, a mim se me afigurou que o critério realmente diferencial, correspondente, em outros termos, à essência
das coisas, reside em que a atividade jurisdicional é sempre uma atividade de substituição: é – queremos dizer –
a substituição de uma atividade pública a uma atividade alheia”. Cumpre gizar que, aqui, se admite a
substitutividade como característica da jurisdão, o como critério que a diferencie de outras formas de atos estatais.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituões de direito processual civil. o Paulo: Saraiva, 1965. v. 2. p. 10-11.
92
AMARAL, Guilherme Rizzo. A polêmica em torno da ‘ação de direito material’. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 125.
53
faz é apontar a solução mais adequada naquele momento processual, porque a realização do
direito não se de modo estático. As situações jurídicas se modificam no curso do tempo, e
o processo precisa acompanhar essa mudança. Diante disso, o Código de Processo Civil
andou bem ao não estabelecer, estaticamente, nem a obrigação de requerer determinada
medida e nem a vinculação do autor ou do juiz a esse requerimento. Com isso, reconheceu
que o Direito não labuta no mundo ideal, de formas perfeitas e imutáveis, mas no mundo da
vida, em constante movimento em face das contingências que a realidade concreta explica.
Com isso, todavia, se explica o porquê da “abertura” do juiz à construção da compreensão de
como deve aplicar o direito, mas não explicita, ainda, de todo, como as ações de direito
material poderiam mudar, ao longo do processo e por que a ação de direito material não é uma
resposta a priori.
É preciso reconhecer, então, que a forma com que a ação de direito material é
concebida por Guilherme Rizzo Amaral - e, de modo geral, pelos autores que não reconhecem
a ação de direito material, negando-a - como resposta a priori - pressupõe que o processo não
transpire realidade e vida.
A ação de direito material não é uma abstração imutável que, classificando o direito,
não permite que ele, respondendo à contingência dos fatos que são a sua gênese e o seu
núcleo, necessite de intervenções de ordens diversas, dependendo, justamente, da alteração da
realidade da vida (isso seria a expressão de uma classificação conceitual!).
Tornando-se inócuo o mandamento, o juiz pode determinar medida executiva, porque
a realidade lhe mostra como deve agir para cumprir seu ofício jurisdicional, que não é garantir
a vigência da norma, mas realizar o direito no caso concreto, único meio capaz de garantir a
efetividade do ordenamento jurídico, para além de sua vigência. O fato de o juiz poder optar
por medida diferente daquela requerida pelo autor (sem ofender ao princípio da demanda)
93
é
derivado, com certeza, de que a ação de direito material não é um conceito abstrato, dado a
priori - porque a resposta apriorística é sempre uma abstração. Ao contrário, evita que o
processo conceba tais respostas, como tem sido o caso de aprisionar as ações processuais na
classificação abstrata: declaratória, constitutiva e condenatória, talvez evitando o mundo da
vida onde se pode visualizar as executivas e mandamentais, na hipótese lançada por
Guilherme Rizzo Amaral. O que é concreto não é imutável e, mudando os fatos - ao menos
até que a resposta final seja dada pelo Estado, através da atuação que ao particular incumbiria,
naquela situação, naquele momento, considerando todas as vicissitudes por que passam seus
93
O que será analisado no Capítulo 4.
54
direitos, pretensões e ações até serem realizados necessariamente a prestação jurisdicional
não pode permanecer sendo a mesma. Essa acusação de apriorismo, então, pode ser invertida:
apriorística é a visão do direito material e sua relação com o processo com base em uma
concepção abstrata, que abriga o direito material em uma “ação” cujo conteúdo é definível
pelo aplicador sem vinculação com o mundo dos fatos e com a força que é atributo do direito
material. Seria preciso que houvesse, com clareza, o entendimento de que a afirmação da
existência da ação de direito material não obedece aos critérios de clareza de distinção que
compunham a grade de características do método único proposto por Descartes
94
. Também
não atende a tais ideais presentes no purismo-científico das concepções sistemáticas
características da ciência moderna. Não se trata de uma ação de direito material com
característica una, pura e abstrata. Os fatos da vida jamais apresentaram uma única
característica, as ações de direito material têm cargas eficaciais diversas, o que já havia
ressaltado Pontes de Miranda
95
e, para não argumentar sozinha, invoco a afirmação de Daniel
Francisco Mitidiero, primeiro formulador de resposta ao artigo ora analisado, quando diz:
Ora, é um dado corrente na processualística brasileira que nenhuma ação é pura, que
nenhuma sentença é pura, mostrando-se antes, quaisquer delas, como um plexo de
eficácias.”
96
Outro equívoco evidente é interpretar a obra de Ovídio Araújo Baptista da Silva da
seguinte forma: “Em outras palavras, a pretensão que o Estado exerce, para Ovídio Baptista
da Silva, é a pretensão de direito material, e não a pretensão à tutela jurisdicional estatal
(aliás, essa é exercida pelo autor, e em face do próprio Estado!).”
97
Ovídio nunca afirmou
que o Estado exerce a pretensão de direito material pela parte, disse, ao revés, que, por meio
da “ação” que a parte direciona em face do Estado, em virtude de seu direito abstrato de
acesso à jurisdição, essa ação é alegada, culminando - caso provados os fatos que embasam tal
alegação, com o reconhecimento, definitivo ou não, de que o autor é titular de um direito
exigível que foi violado ou ameaçado de violação com o desenvolvimento jurisdicional dos
94
DESCARTES, Renè. Discurso do método. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1960.
95
Ainda que se possa considerar um exagero a formulação de teoria com cargas eficaciais aritmeticamente
distribuídas e, ainda, que nem todas as cargas precisam estar necessariamente presentes em todas as ações, a
noção de ação de direito material necessariamente não apresentará uma única característica.
96
MITIDIERO. Daniel Francisco. Polêmica sobre a teoria dualista da ação (ação de direito material ‘ação
processual): uma resposta a Guilherme Rizzo Amaral. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme
Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 135.
97
AMARAL, Guilherme Rizzo. A polêmica em torno da ‘ação de direito material’. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.122.
55
atos necessários à realização da ação de direito material que o titular não pode realizar
privadamente.
98
Com razão está Fábio Cardoso Machado que, em seu ensaio, em meio à polêmica,
afirma, com veemência, aquela que é a grande dificuldade com relação ao tema e, com efeito,
acrescentar-se-ia, de todas as dificuldades que poderiam existir, a mais simplória. Trata-se de
ler Pontes de Miranda, atentamente, para verificar que ele se refere à ação (de direito
material), no campo do direito material, e à “ação” (processual) no campo do processo. Não
se trata de levar uma ou outra para ou para cá. Trata-se de entender, então, como diz Fábio
Cardoso Machado, no estudo citado, que não percebe isto quem insiste em partir da
premissa de que o objeto do debate é o conceito de uma e única ação, que sendo única teria
inexoravelmente de pertencer ao direito material ou ao direito processual.
99
Duas ações, inconfundíveis, são afirmadas pela corrente capitaneada por Ovídio
Araújo Baptista da Silva. Não uma transformada ou substituída por outra. Ao contrário, à ação
de direito material é acrescentada - havendo litígio, caso em que o direito material não se
realiza espontaneamente – a “ação” como veículo.
Em meio a esse embate, está a posição de Luiz Guilherme Marinoni, que aponta, com
razão, que justamente por ser instrumento, é que o processo deve estar atento às
necessidades dos direitos.”
100
Com efeito, como dito, a conclusão é perfeita. Todavia, essa
noção não pode estar à disposição do próprio Direito Processual e do princípio das tipicidades
das formas que aceita a idéia de ação atípica, mas vincula a sua realização e
desenvolvimento às formas processuais expressamente definidas na lei.”
101
A concepção que vincula a realização do Direito Material aos desígnios traçados pelo
Direito Processual é conseqüência não da construção da “ação” como categoria abstrata, mas,
essencialmente, da confusão entre ação e “ação”, que permanece latente na obra de Marinoni,
cujo grande valor, para a processualística brasileira e também estrangeira, parece maculado
pela necessidade de negar a ação de direito material, quando, na verdade, acaba por negar a
98
Com eventual antecipação desses resultados como resposta às necessidades da pretensão e da ação de direito
material. SILVA, Ovídio A Baptista da. Direito subjetivo, pretensão, direito material e ão. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Pomica sobre a ação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006. p. 22.
99
MACHADO, Fábio Cardoso. “Ação” e ações; sobre a renovada polêmica em torno da ação de direito material.
In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 156.
100
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 209.
101
MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. In:
MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 209.
56
“ação” como categoria abstrata. Marinoni diferencia tutela jurisdicional do direito de tutela
jurisdicional, aquela dada ao autor vitorioso, essa dada ao réu vencido, ou a ambas as partes,
em caso de improcedência da demanda.
102
Essa diferenciação tem por escopo afirmar o direito
à ação adequada, que seria o corolário do direito à tutela jurisdicional do direito (para quem
tem razão), já que a tutela jurisdicional genérica seria dada a ambas as partes, mesmo em caso
de improcedência. Diz ele que ter
“direito a uma forma de tutela do direito é, simplesmente, ter direito material, pois
ninguém tem direito sem ter a sua disposição formas de tutela capazes de protegê-lo
diante de ameaça ou de violação. Mas a pretensão à tutela do direito é uma
potencialidade, no sentido de que não precisa ser exercida ou reconhecida para ser
dita existente. [...]. Porém, para que o sujeito possa obter uma dessas formas de
tutela do direito material, deve exercer o direito de ação. O direito de ação não se
confunde com o direito e com a pretensão à tutela do direito, pois essa última é uma
potencialidade que, para ser exigida, depende da ação, e diante dela pode ser
reconhecida ou não.
O trecho permite observar que o autor faz um corte na teoria de Pontes e Ovídio, mas
também não perfila sua tese inteiramente ao lado da doutrina de Alvaro de Oliveira. Superpõe
ao direito material o direito e a pretensão à tutela do direito, pois, como afirma em várias
oportunidades e também no trecho transcrito, não ter direito à tutela do direito equivale a não
ter direito. Sendo assim, um corte na pretensão e na ação de direito material, potência e
força do direito material, as quais são substituídas pelo direito e pela pretensão à tutela do
direito, que seriam dependentes do direito à ação adequada, garantida pelo art. 5º, XXXV da
CF. Após essa análise da teoria de Marinoni sobre o direito do autor, poder-se-ia dizer que ela
não difere, em essência, da teoria que afirma a existência de duas ações, uma material, a outra
processual, que se poderia ver, nesse chamado direito à tutela jurisdicional do direito, a
ação de direito material, que tem como conseqüência de sua vedação o resultado do
aparecimento da possibilidade de o seu titular exigir do Estado a tutela adequada. Poder-se-ia,
foi dito, não fosse o fato de que o corte produzido por Luiz Guilherme Marinoni atinge
justamente o elemento que garante a força e a potência do direito material para se impor, via
jurisdicional, em caso de vedação da autotutela, ou extrajudicial, em caso que ela não esteja
102
Diz o autor: “Ou seja, o juiz, ao proferir a sentença, qualquer que seja o seu resultado, necessariamente
confere tutela jurisdicional ao autor e ao réu. A sentença de improcedência tutela jurisdicional ao autor e ao
réu. A sentença de procedência presta a tutela jurisdicional do direito solicitada pelo autor e tutela jurisdicional
ao réu.” MARINONI, Luiz Guilherme. Da ão abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos,. In:
MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 229.(Os grifos pertencem ao original).
57
vedada. O corte atinge a força vinculante do direito material no processo e o mundo prático: a
ação de direito material. A norma constitucional reconhece, por meio dessa previsão, o acesso
adequado à proteção jurisdicional, mas, mesmo que a garantia eminentemente processual não
estivesse expressamente prevista, ou, estando prevista, não fosse adequadamente regulada em
lei ordinária, ela decorreria do próprio ordenamento jurídico, visto a partir da força
transformadora da Constituição em um Estado de promoção social, que reconhece direitos e
veda sua proteção pelo próprio titular, em caso de litígio (autotutela). O contrário seria
permitir dizer que, inexistindo método adequado a garantir o direito fundamental que decorre
do art. 5º, XXXV da Constituição, os direitos materiais de matriz constitucional ou
infraconstitucional – não teriam força impositiva. E isso é modo-de-fazer direito que aprisiona
o direito material em fórmulas processuais universal e abstratamente construídas pelo
processo.
A potencialidade do direito de se impor por sua própria força, mesmo necessitando do
processo como veículo, é decorrente da própria outorga dos direitos pelo texto constitucional
diretamente ou por delegação legislativa a normas infraconstitucionais vinculadas a ele formal
e materialmente. Isso porque ter direito sem possibilidade de defendê-lo equivale, de fato, a
não tê-lo se houver resistência no seu reconhecimento e concretização. A norma não se
confunde com o texto e não seria possível interpretar que o ordenamento jurídico garante um
direito sem, ao mesmo tempo, reconhecer sua potencialidade impositiva. O mesmo se pode
dizer da Constituição, pois como se poderia afirmar que ela “constitui”, atribuindo posições
positivas e negativas, conferindo direitos, se não decorresse da própria norma constitucional,
que confere esses direitos - seja por seu próprio texto, seja conferindo legitimidade à norma
infraconstitucional para atribuição de direitos, por meio de delegação legislativa, vinculada a
ela formal e materialmente – a atribuição dessa força impositiva. Não há necessidade de haver
texto legal prevendo a existência da ação de direito material, portanto, porque ela compõe a
norma, que não se confunde com o texto da lei material, sendo o conjunto de elementos que
compõem a pré-compreensão do intérprete em confronto com a lei e a inserção fática e
histórica do intérprete (situação hermenêutica) destinada a realizar um conjunto de valores em
direção à concretização dos direitos e à transformação da sociedade. A previsão do art. 5º,
XXXV, da Constituição, então, tem o fundamental papel de garantir que a força impositiva
que ela mesma outorga ao direito material a ação de direito material se imponha por
intermédio do Poder Judiciário, que deve construir o sentido do direito no caso concreto, por
meio da função jurisdicional agora por via da “ação” - concretizando-os, a partir desse
58
modo-de-ser, que é seu sentido no momento da aplicatio (compreensão-interpretação e
aplicação em um só movimento).
Quando a teoria de Luiz Guilherme Marinoni, extremamente rica na discussão a
respeito da tutela específica, retira do mundo a ação de direito material, ainda que veja na
norma constitucional o direito à ação adequada, ele produz um corte na capacidade que o
direito material teria de impor a construção legislativa, doutrinária e jurisprudencial de
meios adequados de defesa, que não tenham sido previstos na legislação processual civil,
porque retira do direito material a potencialidade e a força na imposição de sua concretização.
Além disso, permite que a norma constitucional seja interpretada abstratamente, desvinculada
das necessidades do direito material, em que a simples possibilidade de acesso a uma resposta
pelo Poder Judiciário garantiria a realização do escopo constitucional, sem interferir na vida
dos envolvidos. Como afirma Pontes de Miranda, se o sujeito tem ação e não remédio
jurídico processual nas leis processuais, o defeito é da lei, evidentemente manca.”
103
, porque,
segundo ele, a ação em sentido material - é o sol do sistema”,
104
que só desaparece nos
casos em que o próprio direito material perde sua potência e força, nunca porque o direito
processual deixou de prever a tutela adequada. A afirmação da existência da ação de direito
material evita que o direito material seja mutilado. O direito material não apenas “promete”
105
prestação de formas de tutela adequadas para o que o processo deve equipar-se. Como diz o
autor, ele exige, por meio da ação de direito material. Acreditar-se que o direito material
apenas promete formas de tutela adequada é compreensão, evidentemente inautêntica do
direito em que, como diz Ovídio Araújo Baptista da Silva, o autor não age, implora
tutelas”.
106
Luiz Guilherme Marinoni acaba, então, negando a ação de direito material, para
substituí-la por uma “ação”, única, mas adequada, abstratamente, porque o direito à tutela
jurisdicional adequada não equivale às necessidades do direito material, segundo o autor, nem
à sua pretensão e ação, negadas por ele. Importante, então, tentar compreender se a ação
adequada a que se refere o autor é a “ação” ou a ação, pois, como é sabido, a doutrina
103
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 272-273.
104
Ibid., p. 126.
105
“O processo deve se estruturar se maneira tecnicamente capaz de permitir a prestação de formas de tutela
prometidas pelo direito material.” A afirmação do jurista não deixa de estar correta, devendo-se acrescentar, no
entanto, que o direito material não pode ficar adstrito a que o processo efetue essa construção, porque o direito
material não promete; impõe. MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à
tutela dos direitos. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a
ação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 215 (Os grifos pertencem ao original).
106
SILVA. Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 78.
59
processual não admite a hipótese de existência da ação de direito material, mas afirma que a
“ação” é abstrata, adjetivando-a, no entanto, o que acaba por dar-lhe concreção. Isso foi tantas
vezes salientado por Ovídio Araújo Baptista da Silva, incompreendido pela força do
paradigma que norteia a discussão: tentar proteger o direito processual da intromissão do
direito material, sob pena de mácula à autonomia do primeiro. Acredita-se que a ação
adequada de Marinoni acaba por levar ao mesmo resultado da teoria que nega a ação de
direito material e concretiza a “ação” abstrata, ao atribuir-lhe conteúdo próprio, porque
independente do direito material, ao classificá-la. Enquanto, na posição de Alvaro de Oliveira
a “ação” é declaratória, constitutiva etc, para Marinoni, a classificação é outra, motivo pelo
qual passa a classificá-las tutela específica e tutela pelo equivalente, das quais resultam as
demais categorias, que, a rigor, podem ser simplificadas na classificação de Pontes, sem
prejuízo algum de ordem concreta.
107
É interessante a colação de mais uma passagem do ensaio de Marinoni sobre a
matéria. Com efeito, diz ele no ensaio referido: Trata-se, em outras palavras, de não abrir
mão da ação abstrata e atípica, mas a ela acrescentar o plus, também garantido pela
Constituição, de adequação à tutela do direito material e do caso concreto.”
108
Essa
passagem demonstra a confusão entre a “ação” e a ação. A negação da ação de direito
material impõe a Marinoni a superposição do direito à tutela jurisdicional do direito que
dependeria da ação adequada, mas que não seria adequada às necessidades do direito-
pretensão-ação de direito material, lembrando que, para ele, as duas últimas categorias não
existem, existindo direito e pretensão à tutela jurisdicional. Seriam, essas ações, adequadas ao
quê, então? A adequação deve buscar algo que esno mundo; do contrário, permanecer-se-á
no campo das idéias.
A adequação, para o processualista, é abstrata, o que se comprova com o
reconhecimento, por ele, de espaços de anomia. Essa idéia tem por finalidade legitimar o
107
Assinalando-se que a ação condenatória, inicialmente classificada como ação de direito material por Pontes
de Miranda, é reconhecida, aqui, como construção atinente ao processo, justamente porque a forma de exercício
da ação de direito material, para os casos em que é cabível a condenatória, foi totalmente vedada pelo
Ordenamento, não sendo, inclusive, ao juiz, possível reproduzi-la, por malferimento às garantias constitucionais,
motivo pelo qual a construção de tal técnica resultou necessária, ainda que, hoje, possa ser substituída por meios
mais eficazes, em alguns casos, sem esquecer que, em muitos, as garantias à liberdade e à incolumidade do
indivíduo e sua dignidade resultam na impossibilidade de satisfação material do direito, não porque ele não tenha
força impositiva, ou porque a técnica tenha padecido de inefetividade, mas porque ele se choca concretamente
com imperativos maiores da vida em comunidade e da proteção constitucional aos direitos fundamentais. É o
caso dos direitos creditórios em que o devedor não tem patrimônio excutível.
108
MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos,. In:
MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 227.
60
reconhecimento de cláusulas abertas e espaços em branco a serem preenchidos pelo juiz, pois
o autor considera que o direito material não pode depender da existência de técnica processual
adequada. Se essa não existir, o juiz estará obrigado, diante da mora legislativa, a interpretar a
legislação à luz da garantia constitucional para dar efetividade ao direito à tutela processual
efetiva. Segundo ele, as “cláusulas gerais processuais” outorgaram ao juiz “espaço de
discrição”
109
, devendo o juiz encontrar, mesmo diante de falta de expressa definição de
técnica processual” e de “cláusulas gerais processuais”, forma de prestar tutela jurisdicional
harmônica com o direito material, não olvidando, todavia, a “existência de regra processual
instituidora de técnica processual“
110
, que não será legítima se contrariar o fim objetivado pela
prestação jurisdicional. É evidente que o processualista enxerga espaços de anomia onde, na
verdade, eles não existem.
Se reconhecesse a ação de direito material, tal possibilidade seria afastada, mas essa
não é a compreensão dominante, sendo produto do pressuposto ideológico que será analisado
oportunamente
111
. O que importa, por ora, notar, é que a negação da existência da ação de
direito material, tem conseqüências drásticas no campo da relação entre direito material e o
processo. Mesmo teses que pretendem inovar em relação à discussão, acabam partidárias
desse pressuposto ideológico: subtraem o conteúdo dessa relação, pressupondo esse conteúdo
como resultado do procedimento, ou buscando-o na suficiência ôntica do texto ou do que o
intérprete pensa sobre o texto.
Nesse diapasão, é interessante analisar o posicionamento de Hermes Zaneti Júnior. O
autor defende a instrumentalidade do processo como corrente dotada de autoridade
suficiente e congruência adequada para justificar a ultrapassagem do problema surgido”. O
problema a que se refere é a relação entre direito material e processo que, no sentir do autor, é
apenas aparente, porque, para ele, a característica juspublicística do processo
“projeta sua própria eficácia nas situações jurídicas substanciais por ‘força própria’
decorrente da soberania do Estado-juiz e da legitimação pelo procedimento ligada à
‘pretensão de correção’”.
112
109
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 30.
110
Ibid., p. 33-34.
111
No Capítulo 3.
112
ZANETI JÚNIOR, Hermes. A teoria circular dos planos (direito material e direito processual). In:
MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 179.
61
Essa leitura põe a tônica da relação entre direito material e processo no selo posto pela
autoridade estatal, em que o processo, por sua força própria, tem todo o arcabouço necessário
para, segundo ele, construir um “direito material novo”.
113
Essa posição impõe a seguinte
pergunta: o fato de que o significado o pode ser “pré-dado”
114
o que é, sem dúvida,
correto - realmente autoriza a reconstrução do Direito e até sua criação ex novo pelo
processo?
115
. Não seria essa afirmação a exposição da idéia, eminentemente moderna, de que
o instrumento – no caso o processo – é uma coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto (S-
O), mudando a essência do objeto? Hermes Zaneti sustenta a teoria da abstração-criativa da
ação ou ‘prospectiva do processo”
116
, a qual, segundo sua própria denominação atribui à ação
processual a criação do Direito. Quer dizer: o instrumento que utilizo para dar ao direito
material a efetividade que não alcançou espontaneamente, em face do litígio, é quem cria o
objeto para o qual ele foi criado? O uso do martelo não supõe a existência do prego e da
madeira? Certamente, essas noções expostas pelo autor não são adequadas à invocação que
faz do círculo hermenêutico, no seguinte trecho:
“Nós defendemos, nesse sentido, a aceitação das eficácias das ações como eficácias
processuais sentenciais, tutelas jurisdicionais processuais capazes de proporcionar a
adequada e efetiva realização do direito material porque contém em potência os
efeitos materiais que deverão alterar as relações e situações jurídicas subjacentes.
Esta a característica instrumental do processo, retornar ao direito material,
trabalhado em contraditório amplo (juiz e partes), ao Lebenswelt (mundo da vida).
Uma relação circular, um círculo hermenêutico.”
117
Veja-se que, quando se admite a criação do direito pelo processo, evidencia-se a
contraposição entre sujeito e objeto no universo hermenêutico. A compreensão do que seja o
círculo hermenêutico contraria a idéia de criação de um direito material novo pelo processo
por meio da força do próprio processo.
113
ZANETI JÚNIOR, Hermes. A teoria circular dos planos (direito material e direito processual). In:
MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 167.
114
Afirmação que o autor faz com escolho na obra de Humberto Bergman Ávila. Ibid., p. 167, nota 11.
115
Como afirma Álvaro de Oliveira, citado para corroborar o entendimento de Hermes Zaneti Júnior. Ibid., p. 180.
116
Ibid., p. 177.
117
Ibid.
62
Acerca da análise de Zanetti, invoca-se a afirmação de Lenio Luiz Streck:
“É impossível, ao mesmo tempo, pretender trabalhar com verdades procedimentais
(não-conteúdísticas) e verdades em que o modo prático de ser no mundo é o lócus
do acontecer do sentido. São posições que não se dão ao acaso; são posições que
obedecem à inserção em um determinado paradigma. E aqui não se pode fazer
sincretismos metodológicos.”
118
Veja-se que, a rigor, existem várias concepções do círculo hermenêutico. Desde
Schleiermacher cuja concepção circular da interpretação ainda está sujeita ao esquema
sujeito-objeto até a hemenêutica filosófica que pressupõe que se fale de fenomenologia
num sentido privilegiado e de um intérprete lançado no mundo (mundo como existencial,
como concreção, no qual o intérprete está projetado), noção que não se coaduna com a
abstração da força de um instrumento que pode criar o direito material em face do selo que lhe
impõe a autoridade está-se diante de correntes substancialistas. Quando se fala em
legitimação pelo procedimento, o paradigma é outro.
119
Reconhecer apenas as eficácias
sentenciais no campo processual implica, necessariamente, a abstração do mundo da vida
invocado pelo autor, porque supõe a criação da eficácia por um instrumento abstrato, como é
o processo (sua categoria essencial é unanimemente reconhecida como abstrata: a “ação”), em
detrimento de toda a carga de vida que é trazida pelo fato que, diante do selo da autoridade,
parece perder toda a sua força na mencionada teoria
120
.
A adequação, princípio norteador da instrumentalidade, não deixa de ser, então,
tratada, como uma substancialização abstrata do processo, numa mixagem paradigmática
entre teorias processuais-procedimentais e substancialistas (ainda ligadas ao paradigma
metafísico objetificante/assujeitador). A substância não é senão um acoplamento, ao processo,
118
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 59.
119
Nota-se que o autor invoca o círculo hermenêutico com um instrumento a ser utilizado na compreensão, o que
se distancia, em muito, da proposta gadameriana de simultaneidade e co-originariedade entre interpretação-
compreensão-aplicação, e sequer se aproxima da construção heideggero-gadameriana do círculo hermenêutico.
Tampouco tal idéia é compatível com a idéia de legitimação pelo procedimento, a qual tem assento em obra de
mesmo nome do sociólogo Niklas Luhman. Assim, considerando que, nesse, é o procedimento que confere
legitimação e lá, na hermenêutica, as verdades são conteudísticas, a vinculação das teorias legitimação pelo
procedimento e círculo hermenêutico necessitaria de uma explicação de como se a aplicação de ambas, ao
mesmo tempo, ao Direito, na visão do autor. E, por fim, apenas para não deixar incompleto o argumento, se o
autor pretendia referir-se às teorias procedimentalistas da argumentação, em suas variadas apresentações (como
em Habermas e em Alexy), a invocação do círculo hermenêutico também se encontra deslocada, já que,
novamente, não se está mais no campo das teorias substancialistas. As referências ao círculo hermenêutico e à
legitimação pelo procedimento estão nas páginas 178 e 179. ZANETI JÚNIOR, Hermes. A teoria circular dos
planos (direito material e direito processual). In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo.
(Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 177.
120
O que será abordado em capítulo próprio (Capítulo 3).
63
de um conteúdo que não é dado pela relação viva, porque as características do direito não
estarão, segundo essa teoria, no direito material e na potência, pretensão, e força, ação, dele
mesmo. O direito material não tem força e conteúdo, e isso parece ser projeção perfeita de
uma teoria instrumental, ainda abstrata, que pressupõe que o instrumento cria o objeto sobre o
qual deveria atuar. É claro que incumbe ao juiz muito mais do que servir de boca da lei, mas
também não pode ser autorizado a criar o direito material como se, de fato, sua existência
dependesse do processo, o que redundaria na autorização do decisionismo e do uso auto-
suficiente da racionalidade abstrata pelo intérprete, o qual não estaria projetado na
compreensão do direito, a partir do texto, da experiência, da doutrina, da jurisprudência, da
dinâmica dos fatos, da história, do tempo, da cultura, enfim, de tudo que compõe o que se
pode chamar de tradição e que deve ser interrogado de modo a desvelar sentidos projetados
no mundo e, por isso, não-propriamente criados pelo juiz, nem repetidos por ele diretamente
da vontade da lei e/ou do legislador, mas compreendidos hermeneuticamente, em relação com
o mundo, que caracterizaria a circularidade em que se a compreensão (esse, sim, o círculo
hermenêutico), no qual se a diferença ontológica, que não separa os planos do direito
material e do processo, como realidades distintas em relação fictícia, porque abstrata. Ao
contrário, aproxima-os e os distancia, em sua identidade-diferença, possibilitando uma relação
de mútuas compreensões de modo a servir ao escopo do Direito, dar a resposta adequada, no
que se a pressupõe justa, ao caso concreto.
Esse distanciamento entre direito material e processo, proposto pelas teorias
instrumentalistas leva à confusão impulsionada por essa compreensão que nega a ão de
direito material e reconhece as eficácias, as qualidades, no processo (que, para tais teorias,
seria abstrato!) – entre ação, “ação” e procedimento.
Transcreve-se trecho do ensaio de Hermes Zaneti Júnior sobre o tema ora polemizado:
“A redação do art. 83 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e do art.
82 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), entre outros novos diplomas legais,
evidencia e confirma essa leitura porque, ao contrário do que estabelecia o art. 75 do
antigo Código Civil de 1916 (não transcrito para o novo diploma do direito civil)
determinam cabíveis todas as espécies de ações (sic. tutelas jurisdicionais
processuais) capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos afirmados
perante o judiciário. Como corolário, de uma mesma situação de direito material
afirmada, surgem diversas tutelas judiciais possíveis, ou seja, a ação não é mais uma
ou una, antes traduz sua potencialidade em diversas eficácias voltadas à efetividade
da tutela.”
121
121
ZANETI JÚNIOR, Hermes. A teoria circular dos planos (direito material e direito processual). In:
MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006. p. 181.
64
Primeiro, potencialidade que se traduz em eficácias é matéria que remete à ação de
direito material que, sim, é alegada e, se existente, também realizada por meio da atividade
jurisdicional de satisfação dos direitos, que decorre do exercício da ação”. Todavia, o autor
não aceita tal teoria preferindo ver as eficácias diretamente no processo, o que acaba por fazer
com que, no trecho transcrito, negue a abstração da ação processual, quando diz que a ação
não é mais uma ou una. Para ser fiel ao seu pensamento que nega a ação de direito material
e à sistemática processual corrente, não o autor não poderia ter recusado a abstração da
“ação”, que faz dela uma e una, como também deveria diferenciar entre “ação” e
procedimento, porque se aquela é una, esses são múltiplos não apenas porque o direito
material, segundo a doutrina recusada pelo autor, por meio de sua força, seu sentido no
mundo, a ação de direito material, impõe sua potencialidade no processo mas,
especialmente, porque não se pode confundir o veículo a “ação com o itinerário a ser
percorrido – o procedimento.
2.2 UM ENCONTRO COM O SER DO ENTE A SER INVESTIGADO: A AÇÃO DE
DIREITO MATERIAL
A reconstrução empreendida permite a explicitação do que é a ação de direito material
na visão que é esposada no presente estudo, bem como do modo como é recuperada,
indicando-se, assim, o caminho a ser traçado até sua afirmação como categoria hermenêutica.
É o que se passa a fundamentar.
2.2.1 Sobre as três posições em vertical: a compreensão do conteúdo da ação de direito
material
A doutrina de Pontes de Miranda trabalha três categorias em vertical, às quais se
prefere denominar de momentos do direito material: direito, pretensão e ação, todas em
sentido material. Na presente abordagem, não se fala dessas três categorias, como supostas
abstratamente, em - lembrando a dualidade platônica metaforicamente demonstrada na
65
“Alegoria da Caverna”
122
- uma doutrina científica que está relacionada a um mundo ideal em
que as formas perfeitas são o modelo da construção de uma teoria também perfeita, como
convém a uma verdadeira ciência, desligada do mundo imperfeito das formas sensíveis.
Essa categoria eficacial que Pontes de Miranda denominou de “sol” do sistema a
ação de direito material - assim como, conforme analisado, não se confunde ou foi substituída
pela “ação”, também não se confunde com a actio de qualquer das fases do Direito Romano.
A actio, universalizada pela sistematização do direito, destinava-se à defesa dos direitos de
natureza obrigacional e, ao seu lado, existiu, no período clássico do Direito Romano,
correspondente ao período formulário, a vindicatio, que se destinava à defesa de direitos de
natureza pública e dos direitos absolutos, cujo conteúdo detinha maior evidência e
importância, exigindo, por seu conteúdo, meios mais rápidos, efetivos e imperativos de
defesa.
123
Todavia, essa construção de institutos de defesa adequados ao conteúdo e às concretas
características do direito, que tornaram o período clássico o período mais profícuo do Direito
Romano, em que o direito era construído concretamente, conforme assinalado, foi
substituída pela abstração que caracterizou os períodos que se seguiram na história do Direito.
A essa abstração seguiu-se o paulatino desaparecimento de formas diferenciadas de tutela em
direção à uniformização em torno do instituto da actio, com o desaparecimento da vindicatio,
processo iniciado no período final da história romana cristianizada. Como ressalta Ovídio
A. Baptista da Silva, citando Emilio Betti,
“i compilatori tendono non solo a supprimere tutte le vestigia del proceso formolare
classico (D. 3, 5, 46 (47), 1), ma anche ad attenuare e quase a cancellare quel
netissino contrapposto che nel sistema del diritto classico esisteva tra la figura
dell’actio in rem e la figura dell’actio in personam.”
124
122
PLATÃO, A alegoria da caverna. Brasília, LGE, 2006.
123
o se tratará da discussão sobre se a atividade do pretor, no que tange às ordens e à atuação prática dos
direitos, no âmbito da vindicatio, a qual pertenciam os interditos, se insere. (GIOFREDDI, Carlo. Contributi
allo studio del processo civile romano: note critiche e spunti ricostruttivi. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1947), ou
não (DE MARTINO, Francesco. La guirisdizione nel diritto romano. Padova: CEDAM, 1937), no âmbito da
atividade jurisdicional. É necessário, no entanto, ressaltar que a presente análise tem por pressuposto a jurisdição
como atividade de imperium e sua característica básica a imparcialidade do juízo, entendida como compromisso
com a realização dos direitos.
124
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. p. 56.
66
A equiparação entre actio, destinada à tutela das pretensões nascidas dos direitos das
obrigações, e a vindicatio, destinada a tutelar as pretensões relativas aos direitos absolutos,
então, apenas inicia no período imperial do Direito Romano, pois, novamente citando Ovídio
A. Baptista da Silva, a contaminação da vindicatio por elementos obrigacionais, no direito
romano tardio, limitava-se ainda exclusivamente às obrigações acessórias que gravavam o
possuidor contra quem se julgara procedente a reivindicatória.”
125
A consolidação de tal
equiparação dá-se quando se considera correta a regra geral de que a acción se ejercita
contra adversários determinados ó indeterminados, segun que es in personam ó in rem.
126
A ação de direito material, conforme concebida, aqui, é a realidade do direito em
movimento, ação, para fazer-se efetivo, força, que não surge apenas violado o direito, mas que
surge quando um direito é, por qualquer modo, ameaçado de violação e se destina a conferir-
lhe segurança ou satisfação, por meio do processo, que sua realização, pelo próprio
interessado não é permitida pela sociedade democraticamente organizada. Essa ação de direito
material projeta o conteúdo do direito material, porque é o modo-de-ser (efetivar-se) desse
direito e de sua exigibilidade, sendo ela inconfundível, portanto, com a actio, ou com
quaisquer reduções simplificadoras de seu conteúdo mutável e concreto que não se confunde
também com o veículo por meio do qual é exercida: a “ação”.
2.2.2 A delimitação do âmbito em que serão investigadas
Quando se fala das três posições em vertical, nos limites do presente estudo, pois, se
tem em mente três categorias que estão no mundo, três fenômenos que são, no mundo. São
colhidas como linguagem, não como “ferramentas” cuja função é retirar de algo o sentido que
é pré-dado, não são, pois, categorias teóricas ou abstratas.
Toda digressão histórica levada a efeito nos itens precedentes tem por fulcro
demonstrar o estado da questão, a partir de suas origens a fim de, no decorrer da investigação,
delinear o desvelamento do paradigma no modo como ele se desenvolve no momento em que
o presente trabalho é desenvolvido, em direção a um rumo sinalizado: a ação de direito
material como categoria hermenêutica.
125
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. p. 57.
126
SAVIGNY. Frederick Karl von. Sistema de derecho romano actual. Madrid: F. Góngora y Compania
Editores, 1879. v. 4. p. 24.
67
Interessante notar que a origem dessas categorias remonta a um momento da vida
romana em que o direito era objeto de construção pelo Pretor, por meio da fórmula, e a
realidade era transformada pela autorização para que o particular executasse, addictio, ou pela
determinação imperativa contida nos interditos. Como ficou assinalado anteriormente, o
período formulário do Direito Romano é fonte de inspiração não apenas porque o ius civile
era objeto de construção, por intermédio da tradição o mores maiorum - no caso concreto,
mas também porque previa a defesa diferenciada de direitos igualmente diferenciados, o que é
uma expressão daquele modo concreto de fazer direito. O significado que historicamente pode
ser recuperado é a noção concreta do trato do direito, pretensão e ão, como ato, força e
potência, que permitiam a construção de um direito vivo na inserção cultural e de acordo com
a realidade fática em que se encontravam os envolvidos. Buscar e retomar esse sentido que
detinham, a partir da sua faticidade e temporalidade, recuperando o papel que cumpriam num
momento da história o Direito Romano Clássico do período formulário é uma fonte rica
de inspiração para repensar tais categorias.
Retomar esse significado vivo, presente na concepção grega de phronesis, em que o
caráter de justiça era elaborado frente ao caso, não como um conceito abstrato, em que o
Direito não era uma technè, nem se lhe reconhecia o caráter de mera epistemè, é o que se
pretende aqui construir. Retomar, ainda, a possibilidade de transformação social, não apenas
normativa, da realidade, por meio do redescobrimento da força dos direitos que se impõem,
em sua realização, com suas próprias características, não com as características que lhes
atribui o processo, abstratamente, tendente sempre a transformar sua essência, por meio da
universalização do procedimento e conceitualização cristalizadora do sentido dos fatos
jurídicos e de suas categorias eficaciais: direito, pretensão e ação, todos em sentido material.
O reconhecimento dessas categorias, na história do desenvolvimento do Direito, e sua
identificação com o período então mais profícuo do desenvolvimento do Direito, agrega-se à
busca da origem de sua dimensão científica presente na obra de Pontes de Miranda.
A comprovação de que - embora rigorosamente construída, com conotações abstratas
evidentes
127
- a teoria das ações de Pontes de Miranda tem sua raiz no mundo concreto, e não,
em proposições abstratas é a forma como ele introduz o tema em seu Tratado das Ações.
Nessa obra, ao contrário do que afirma a doutrina tradicional, Pontes não propõe mera
classificação das ações, mas, sob a forma de uma classificação, uma investigação dos fatos da
127
A cientificidade de Pontes de Miranda, ao modo matemático, que se observa na construção da Constante 15 não
compromete sua construção, porque a busca do sentido, no mundo da vida, pode ser identificada no Tratado das Ações,
conforme se verifica, dentre outros, do trecho citado na continuidade.
68
vida, donde nascem os direitos e, portanto, uma classificação dos direitos, das pretensões, e,
por isso, enfim, das ações, o que virá, ao final, a viabilizar a classificação do conteúdo das
sentenças. Confirma ele essa conclusão: “Depois foi descoberto que faltara o nome aos
antigos e que a pretensão é fato do mundo, e não conceito.”
128
. Diz ele, ainda, o seguinte:
“Por se que tais pesos de eficácia não são, como sempre se supôs, peculiares às ações e
às sentenças.”
129
Essa classificação, por pesos de eficácias – declaração, constituição, condenação,
executividade, mandamento registra a potencialidade de os direitos produzirem efeitos, na
vida das pessoas; por isso, não se deve compreendê-la como classificação conceitual. Ao
contrário, deve refletir a eficácia que emana dos direitos exigíveis ameaçados de violação ou
violados, ao imporem respeito e defesa.
É uma classificação que visa a transmitir o sentido de um direito que exige defesa, não
a classificação de instrumentos abstratamente considerados.
A doutrina, no entanto, absorveu tal classificação como depuração abstrata do
exercício da atividade jurisdicional e classifica a “ação” (processual) segundo aqueles pesos
de eficácia, majoritariamente eliminando aqueles que imediatamente interferem nas relações
da vida, transformando a realidade fática, e mantendo as eficácias que não incidem, ao menos
não diretamente, sobre essas relações. Daí a rejeição às eficácias executiva e mandamental – o
que corresponde à rejeição anterior à tutela interdital e a manutenção das eficácias
declaratória, constitutiva e condenatória – o que, em linhas gerais, pode ser atribuído à
equiparação da actio (responsável, no Direito Romano, por produzir tais eficácias) à “ação”.
Pergunta-se: como poderia o juiz escolher o peso de eficácia que dará à sentença que
prolatará em um caso específico? Onde ele busca, por exemplo - a solução constitutiva
positivo ou negativa para uma sentença? Certamente não é no direito processual, mas, no
direito material.
130
Uma hipótese parece válida: subtrai-se mentalmente toda a doutrina, toda a
jurisprudência, todas as leis materiais, enfim, toda a disciplina material dos direitos. Como,
então, o juiz saberá qual a eficácia de sua sentença? No direito processual ou no fato da vida
que lhe é posto a julgamento? Sobre o que ele disporá para solucionar o litígio? Como saber
se se trata de necessidade de execução pela via da coerção obrigacional a penhora e seus
consectários ou de atividade do juiz que, pela via da atividade do Oficial de Justiça, retira a
128
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 104.
129
Ibid., v. 1. p. 25.
130
Não se confundem Direito Material e Direito Privado. Direito Material é todo direito que regula as situações
de vida, envolvendo situações ou relações jurídicas de caráter privado ou público, sempre em uma compreensão
constitucionalizada dessas relações.
69
coisa do patrimônio de alguém para colocá-lo no de outra pessoa? Como saber se se trata de
mandado de penhora ou de imissão de posse, cujas conseqüências, é sabido, no campo do
processo – e na vida dos envolvidos! - são absolutamente diversas?
O direito processual pode responder sozinho ou ele deve perguntar aos fatos? Não
parece crível que a alguém pareça que pode, o processo, responder sem perguntar aos fatos e,
ao perguntar, estará perguntando ao direito material, não ao processo - à técnica - que deve
servir ao direito material, porque, para isso, foi construído. É o que fazia o pretor que, por
meio da interpretatio e do morus maiorum se inteirava sobre as alegações das partes sobre os
fatos e construía a fórmula que consistia na verificação de qual pretensão caberia àquele que
alegava a violação ou a ameaça de violação de um direito.
Ressalta-se: qual agir caberia àquele que alegava a violação de um direito, agir esse
que, provadas as alegações que informaram a construção da rmula, seria autorizado por
meio da adictio, após finda a segunda fase do procedimento? Essa fórmula era a outorga da
ação, de como o requerente, provada sua alegação, poderia agir para a restauração de seu
direito. Esse agir correspondia à ação de direito material, e não, à ação processual,
desconhecida dos romanos, como ressalta Ovídio Araújo Baptista da Silva:
“Nem para os romanos e nem para os juristas modernos, pelo menos até Oscar
Bullow e Wach, o conceito de ação pertencia ao direito processual. Ainda em
Chiovenda e nos demais ‘concretistas’, o conceito de ação referia-se à ‘ação
procedente’, ação de quem, no plano substancial, tinha realmente direito”.
131
Se se referisse à ação processual que necessidade haveria de o pretor construir,
segundo o caso, a solução, se a ação processual é a mesma do contrário não seria abstrata,
mas concreta? Se se tratasse de ação processual, que utilidade haveria na construção do
pretor, para cada caso, de uma fórmula que nascesse do direito relatado e que ficava, sua
outorga, sob condição da prova das alegações feitas e informadoras da construção dessa
fórmula? A fórmula construída pelo pretor não era a “ação” (processual). Como ressalta
Giovanni Pugliese, citado por Ovídio Araújo Baptista da Silva, l’actio romana non era il
131
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.p. 31.
70
diritto alla pronunzia, la mera possibilità materiale di compiere atti processuale, bensì il
potere di far varle attraverso il processo ciò che spetavva in base il diritto sostanziale.”
132
Sendo assim utilizando, num argumento ao gosto científico, aqueles três planos que,
a priori, não podem ser negados por quem com eles lida no dia-a-dia –, como poderiam as
categorias (direito, pretensão e ação), sem antes passar pelo plano da existência, i.e., sem
antes serem fatos que exigem do direito uma solução, judicial ou extrajudicialmente, serem
dotadas de eficácia? O argumento contrário, de que os processualistas se valem para abstrair o
Direito Processual dessas vicissitudes, é desvinculá-lo do mundo, construindo-o como
abstração que nem por isso deixa de utilizar as categorias do Direito Material. O que se faz
necessário, nesse ponto, é demonstrar tanto a concreção dessas categorias, quanto a diferença
entre elas, e, por fim, o modo como se compreende a doutrina de Pontes de Miranda. Dele se
extrai o seguinte trecho: “O conteúdo das pretensões é diverso, de conformidade com o
direito de que emanam.”
133
O que se quer ressaltar, então, é que a doutrina de Pontes de Miranda é revisitada,
aqui, porque o rigor científico com que foi construída está assentado sobre um alicerce
concreto e é esse alicerce que se pretende, hermeneuticamente, compreender para retomar,
não a necessidade de abstração científica que não apenas diferencia, mas antes separa e isola o
direito material e o processo. A autonomia entre as esferas do direito material e do processo é
necessária, porque a dogmática jurídica é algo de que se necessita para realizar o direito.
Todavia, autonomia, distância, isolamento, são palavras que se encontram em lugares
distintos do dicionário e não se confundem, porque seus significados são diversos. Quando se
nega a harmoniosa relação entre o direito material e o processo, nega-se também que o que se
faz em Ciência Processual é mera defesa da autonomia. Hoje, o que se faz em Ciência
Processual não é defesa da relação entre direito material e processo. É o isolamento entre
ambos e, quiçá, negação da órbita do Direito Material, como vem alertando Ovídio Araújo
Baptista da Silva. Esse, no entanto, é tópico para ser abordado separadamente.
É importante ressaltar, novamente, o que diz Pontes de Miranda que, como
sistematizador das ações (no plural, porque em sentido material), cuja doutrina - em face da
posição de Ovídio Araújo Baptista da Silva, inspirou a polêmica importantíssima, a partir da
resposta de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira é de obrigatória consulta, especialmente na
obra em que trata especificamente da matéria: o Tratado das Ações.
132
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 31-32.
133
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ões. Campinas: Bookseller, 1999.v. 1. p. 61.
71
Como dito, afirma ele:
“Estudos superficiais puseram as pretensões no direito processual. As conseqüências
seriam embaraçantes. No direito dos Estados a dois sistemas de direito, a pretensão
teria de ficar aos legisladores do direito processual, o que seria absurdo. [...]
Portanto, a prescrição seria processual e processuais seriam os prazos preclusivos
impostos, solução abertamente contrária aos sistemas de direito. Em tudo isso, a
confusão já não concerne ao direito subjetivo, à pretensão e à ação – atinge o
remédio jurídico processual.”
134
Tinha razão. A efetividade do processo – por meio da realização do direito material – é
que resta comprometida, pela abstração com que é pensada e esse é o tema-base da presente
análise que passa a investigar a relação da abstração da razão auto-suficiente do indivíduo
solipsista da modernidade e suas idéias e representações do mundo como fundamento da
inversão da compreensão desse direito material em relação à sua técnica: o processo.
134
Ao deparar com a advertência de Pontes de Miranda e ao refletir sobre o que pensa a doutrina processual -
que o direito material não é dotado de potência e força, reduzido à sua realidade estática, estando a pretensão e a
ação no processo vem a lume a questão recente relativa ao art. 219, § do Código de Processo Civil, que
determina ao juiz o reconhecimento da prescrição ex officio. Esse resultado foi professado por Pontes de Miranda
na passagem referida e agora o legislador processual legisla sobre pretensões de direito material e o juiz exerce
as pretensões das partes – contra a sua vontade, inclusive! O direito material foi definitivamente entregue ao jugo
do processo! PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller,
1999.v. 1. p. 105 (O grifo pertence ao original).
72
3 A QUESTÃO DA TÉCNICA
A importância do pensamento filosófico não pode ser menosprezada. Sobre as bases
de como o homem se compreende, ele constrói a forma de pensamento que domina uma
época. A modernidade, construída como a época da imagem do mundo e do predomínio da
técnica sobre o ser, projeta sentidos e delimita o campo de possibilidades do homem.
Ao abordar a questão da técnica, investigando esses pressupostos, pretende-se esboçar
o modo como a relação entre o direito material e o processo responde aos imperativos da
modernidade e, com isso, desvelar os fundamentos da incapacidade de o processo realizar as
pretensões de direito material de modo autêntico e, por isso, concreto, nos tempos atuais.
3.1 DA TRADIÇÃO A UM NOVO PRINCÍPIO EPOCAL E DESSE EM DIREÇÃO A UMA
NOVA CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE
Como o pensamento humano se desenvolveu de modo a subjetivar a compreensão de
um fenômeno cultural e aprisioná-lo em uma essência, que não é o que ele é, mas a forma
como é representado, exige a busca das raízes dessa história. A história da formação do
pensamento moderno.
O modo como o direito sofreu as influências do pensamento grego, das construções
latinas, da revolução representada pelo pensamento cartesiano, dos influxos e refluxos da
história é capaz de demonstrar por que o direito perdeu o seu vínculo com a justiça e passou a
ser concebido de modo abstrato e sem elo com a realidade concreta. Essa investigação, no que
interessa diretamente ao tema do presente estudo, é de fundamental relevância para que se
possa compreender como a era da técnica e seu pensamento assujeitador e transformador das
coisas em imagens influencia o modo como o direito material (não) é realizado no processo e
de como o processo não vai aos fatos, porque foi transformado em método único capaz de
revelar a certeza e a verdade, ao guiar a razão. Desse modo, a relação entre direito material e
processo passa a ser conceitual, porque parte do pensamento e é guiada pelo método. A
estabilização das relações, escopo do Estado moderno, é garantida pela imposição de
imutabilidade da solução, não pela justiça. O ideal de segurança jurídica suplanta,
paulatinamente, o ideal de justiça e, na relação aqui investigada entre direito material e
73
processo –, a satisfação dos direitos é normativa, não precisa mais ir aos fatos. A reflexão
acerca disso é o objetivo dos subcapítulos seguintes.
3.1.1 Do pensamento grego à modernidade, a formação do pensamento humano, e da
compreensão do mundo da idéia à época da imagem do mundo
A metáfora de Platão, transplantada para o lugar de onde deriva a tradição que
fundamenta um a priori não-questionado, tem fundamental importância na compreensão do
pensamento da modernidade. Na medida em que, para contemplar a verdadeira essência do
Ser”, o homem precisa sair da caverna escura dos negócios humanos para a luz clara do
firmamento das idéias
135
, Platão concebe e instaura dois mundos. Com efeito, para Platão, “a
razão alcança sua plenitude na visão da ordem maior, que também é a visão do Bem
136
; por
isso, as fontes morais às quais temos acesso por meio da razão não estão dentro de nós”. E,
por isso, “[...] o processo de nos tornarmos racionais não deve, claramente, ser descrito
como algo que acontece em nós, e sim como nossa ligação com a ordem maior em que nos
encontramos.
137
Não há, todavia, para Platão, como contemplar essa ordem, ou seja, ser
governado pela razão, sem que o homem encontre sua plena realização, o que se quando
acessa as fontes morais que estão fora dele, em um espaço superior (o bem), e essa plena
realização exige a sua ascensão para um “espaço” que está entre o mundo das coisas e o
mundo do bem (o mundo ideal)
138
. A alegoria da caverna tem, então, uma força pungente,
pois, dentre as qualidades necessárias ao filósofo-legislador, está aquela de livrar-se das
formas sensíveis e mutantes para elevar-se ao verdadeiro ser, às formas das coisas, às
idéias.”
139
Esse modo de pensar, projetando um direito ideal, terá imensa influência, que,
segundo Michel Villey, será representativa de uma tendência permanente do espírito
humano”.
140
135
A autora adverte, em nota de rodapé (19), na página 28, que a expressão traduzida por negócios humanos,
pragmata, tem a conotação de inquietude e futilidade. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007. p. 238.
136
TAYLOR, Charles. As fontes do self. São Paulo: Loyola, 1997. p. 165.
137
Ibid., p. 164.
138
A dualidade interior/exterior não é adequada para descrever o pensamento platônico, porque o homem
participava do todo, não havia a noção de indivíduo.
139
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.
140
Ibid., p. 37.
74
Com o transcurso da história, essa tendência representativa marca a história do
homem, dando lugar às construções que habituam a pensar todas as coisas a partir do
indivíduo
141
e que opõem sujeito e objeto. Um sujeito com a tarefa de extrair a essência do
objeto ou, ainda, de construir uma representação desse objeto, como se essa representação
fosse a essência, que seria algo dado e acessível pela razão humana, univocamente. O único
modo de acesso para atingir esses objetivos é a elevação a um mundo ideal, abstrato, por meio
da intellectio.
Essa concepção forma a ideologia que consiste na familiaridade do que não é pensado
e fornece os motivos para a inautenticidade do pensamento desarraigado do mundo em sua
dimensão fática, histórica, cambiante e autêntica. O certo é que continuamos pensando em
dois mundos: - o concreto, onde as coisas são impuras e onde a incerteza, da qual queremos
nos afastar, reside; - o abstrato, das idéias, onde as certezas e as verdades moram e para o qual
devemos nos reportar.
O indivíduo passa a se conceber, então, com o desenvolvimento posterior dessa idéia,
como interior e exterior. O Direito passa a ser por ele concebido como decorrência de seu
mundo interior, melhor, mais ordenado e confiável. O indivíduo, agora concebido como
interior, não reconhece o mundo concreto, aquele onde estão as coisas e os outros, e transmuta
sua condição de indivíduo em individualismo e a construção do justo, do que cabe a cada um,
não é mais possível. O Direito, por sua vez, vai, com isso, transmutando-se em técnica e
desviando-se de seu sentido. É o que legará o desenvolvimento das mútuas influências de
Santo Agostinho, do nominalismo de Ockham, da descrença que culmina na formulação de
Descartes (mas não inicia com ele), da concepção de Estado Hobbesiana: o mundo segundo o
paradigma moderno. Não é por acaso que o Direito não se ocupa de sua origem e repercussão
no mundo da vida, contentando-se com construções abstratas e com uma efetividade fictícia.
O Direito nem sempre foi concebido dessa forma, assim como a idéia de indivíduo, de
um self, independente e autonomizado da comunidade, de sua inserção no que veio a ser
chamado coletivo, é uma construção do pensamento histórico. A concepção de indivíduo é
condição de possibilidade do racionalismo e do direito considerado abstrata e subjetivamente
e, também, da idéia de Estado, comunidade artificial, elementos que compõem o mundo
moderno.
Santo Agostinho transpõe a dualidade platônica para a concepção do eu” em termos
de interior/exterior e exorta, a partir dos princípios cristãos, o homem a voltar-se para dentro
141
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 233.
75
dele mesmo: Não para fora, volte para dentro de si mesmo. No homem interior mora a
verdade.”
142
e essa virada do self na dimensão da primeira pessoa
143
é um dos fatores cuja
relevância é inegável para a inversão ocorrida na escala valorativa dos papéis em sociedade, o
redimensionando a que Hanna Arendt denominou vita activa
144
. A vida blica, a vida da
ação e do discurso, do espaço com-os-outros, cuja relevância na polis definia a posição do
homem, lugar ao âmbito privado, e esse espaço de valores invertidos irá conduzir à era da
técnica.
Esta volta do homem para dentro de si mesmo, instaurando uma dualidade interior e
exterior, como antes assinalado, inicia o processo que levou ao individualismo, cujas
conseqüências transcendem a compreensão do sujeito sobre si mesmo e influencia o
nascimento, por meio da construção de Guilherme de Ockham, do direito subjetivo, que, mais
tarde, influenciará, ainda, a construção do Estado, por meio das teorias do contrato social.
Guilherme de Ockham considerava que o único conhecimento perfeito,
verdadeiramente adequado ao real, é o do individual.”
145
Essa concepção desfecha um dos
mais duros golpes no pensamento aristotélico-tomasiano e concebe o direito subjetivo como
pilar de toda construção do jurídico. O Direito, concebido a partir do sujeito individual,
contém, em si, o germe do Direito como servo dos indivíduos, assim considerados em seus
interesses, “indo ao encontro do que denominamos o ‘ponto de vista particular’ – a tendência
dos particulares a se livrarem dos entraves do direito natural objetivo, a exercer livremente
suas atividades”.
146
O nominalismo sairá vitorioso ao final, ao impor o império da visão do
indivíduo como centro da concepção do mundo.
A reforma religiosa e também a contra-reforma, que a ela se opõe, têm papéis de
extraordinária importância. Toda justiça e autoridade vêm de Deus, daí que o homem deve
submeter-se ao direito secular, não porque seja justo, mas porque ao soberano secular é dada,
por Deus, a autoridade de sua soberania, e o Direito, por ele ditado é, então, obrigatório para
os homens. E, assim, a
“ontologia do direito moderno (ou, talvez, mais precisamente, a ausência de
ontologia do direito da filosofia moderna) está em germe nessa redução do direito a
uma técnica de repressão a serviço da ordem e nessa ruptura praticada entre o direito
e a justiça.”
142
TAYLOR, Charles. As fontes do self. o Paulo: Loyola, 1997. p. 172.
143
Ibid., p. 174.
144
Segundo a autora, com “a expressão vita activa, pretende designar três atividades humanas fundamentais:
labor, trabalho e ão.ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universiria, 2007. p. 15.
145
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 230.
146
Ibid., p. 280.
76
Sem dúvida, o direito como coerção é uma das tônicas da obra de Hobbes, cujo
espírito, ainda que não tenha influenciado reformas em sua terra natal, é reconhecível no
direito moderno, porque a “lei de Leviatã terá a vantagem decisiva de conter sanções.”
147
Construção artificial de agrupamento de indivíduos que não se viam como
comunidade e, por isso, não têm condições de construir ideais como o de justiça. A eles o
Estado oferece essa garantia abstratamente, prevendo sanções. Não atua para além da norma,
a fim de realizar pretensões e transformar a realidade de acordo com o bom e o melhor. O
parentesco com a idéia de processo e sua relação com o direito material é evidente. A
construção do processo, de modo artificial, distanciado do direito material, porque lhe foi
subtraído o mundo prático, permite que a justiça seja substituída pela efetividade artificial da
técnica. O processo não está, nessa concepção, vinculado à realização do direito material e da
justiça. Prevelece a necessidade de imposição da solução pelo Estado, seja ela justa ou não,
realize ela os direitos, concretamente, ou não, porque a estabilização das relações, pela
imposição da autoridade do Estado seria, nessa concepção, suficiente para garantir a
realização do ordenamento jurídico.Essa efetividade artificial, ditada pela coerção, substitui a
justiça, porque o compromisso do Estado não é garantir justiça, mas, sim, segurança jurídica.
A contra-reforma sua contribuição a esse novo modo de conceber a justiça. A
laicização e a retomada da confiança na razão humana, depositada na vontade do legislador
que está contida no texto da lei, ao qual é equiparado o direito, contribuem para a cisão entre
justiça e direito. A formação do pensamento moderno recebe a contribuição de Suarez
148
.
Segundo Michel Villey, o que
“desapareceu do sistema suareziano das fontes do direito é o papel criador da
doutrina ou o controle pelo juiz da justiça da lei. Pois nada mais vem interferir na
busca da solução de direito, nem a justiça, nem a natureza, nada além da vontade
positiva do legislador. [...] Logo se dará rédea solta à onipotência do Estado.”
149
Todos esses fatores se desenvolvem e estão à base da relação entre direito material e
processo, que chega à modernidade.
147
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 742.
148
Por não fazer parte da presente investigação, deixa-se de abordar a filiação de Suarez a São Tomás de Aquino.
Há discussão a respeito dessa filião. Villey aponta a infidelidade de Suarez a São Tos (VILLEY, Michel. Op. cit., p.
393-424). Skinner refere-se a São Tomás como o herói de Suarez. SKINNER, Quentin. Los fundamentos del
pensamiento político moderno II: la reforma. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 143.
149
VILLEY, op. cit., p. 418-419.
77
Esse novo período da história, então em gestação, encontra as inquietudes provocadas
pelas novas descobertas da ordem cósmica. Quando Galileu estabeleceu um fato
demonstrável onde antes havia somente especulações inspiradas”,
150
são destruídos os
alicerces das certezas científicas até então vigorantes, e surge a dúvida cartesiana. A partir
dela, Descartes formula o que chamou de primeiro princípio da filosofia que procurava: se
penso, então algo de que não posso duvidar, existo (cogito ergo sum).
151
Essa
compreensão, de confiança apenas de sua própria realidade como razão, deslocou a
compreensão do sujeito, definitivamente, para dentro de si mesmo porque, segundo ele,
nunca nos devemos deixar convencer senão pela evidência de nossa razão. É bom que se
note que eu digo de nossa razão e não de nossa imaginação e de nossos sentidos.”
152
Assim,
constrói-se a auto-suficiência de um sujeito para o qual tudo o que pode conhecer está dentro
dele mesmo, desde a compreensão das ciências, até as fontes morais, bastando que o homem
se entregue ao controle racional. Esta concepção mantém o dualismo platônico res cogitans
e res extensa e concebe o sujeito, o cogito, a partir da noção de substância, como o que está
à base, preenchendo, assim, o sujeito, pois o concebe como a substância de todas as nossas
representações.”
153
A dúvida cartesiana, base dessa escola de suspeita
154
, lugar a uma nova
concepção do homem e de sua relação com o mundo que foi, paradoxalmente, o motivo pelo
qual a certeza passou a ser o valor básico da modernidade e insiste em aprisionar o
pensamento do homem da pós-modernidade. A concepção do homem em primeira pessoa, o
fato de ‘sujeito’ visar a algo assim como auto-relação, reflexividade e egoidade
155
, que
pressupõe a concepção da dualidade interior/exterior, em que as fontes morais, as idéias, a
consciência, o pensamento, tudo, está dentro de mim, e o que está dentro de mim é aquilo em
que posso confiar, prepara o terreno para o individualismo massificado da era da técnica,
como novo princípio epocal. Essa nova época, a era da técnica, encontra-se, não obstante,
150
ARENDT, Hannah. A condão humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 273. As formulações de
Galileu Galilei eram objeto de especulação e, segundo Ernst Cassirer, apareciam na obra De docta ignorantia de
Nicolau de Cusa, muito antes da morte de Giordano Bruno e da formulação de Galileu Galilei. CASSIRER, Ernst.
Indivíduo e cosmos na filosofia do renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 62.
151
Segundo Descartes, “nossa imaginão e os nossos sentidos nunca nos poderiam dar certeza de cousa alguma, sem a
intervenção de nosso pensamento.” DESCARTES, René. Discurso do método. Rio de Janeiro:Jo Olympio, 1960. p.
98.
152
Ibid., p. 101.
153
GADAMER, Hans-Georg. Subjetividade e intersubjetividade, sujeito e pessoa. In: ______. Hermenêutica
em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 12.
154
Como a denominou Niezstche, citado por ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 273.
155
GADAMER, op. cit., p. 11.
78
inserida no modo-de-pensar da metafísica da modernidade, como época da imagem do
mundo, porque toda a metafísica moderna, incluindo Nietzsche, se mantendrá dentro de la
interpretación de lo ente y la verdad iniciada por Descartes.”
156
A idéia da necessidade de busca de certezas, que caracterizou a virada filosófica de
Descartes, tem profundos reflexos na formação do modo de compreender o direito. Se o
que posso confiar está em mim, e se o mundo sensível é o mundo das incertezas e das ilusões
criadas pelos sentidos, então, somente posso confiar na certeza do próprio pensamento. A
certeza e, pois, a verdade não será encontrada no mundo das aparências (o escuro da caverna
platônica). Ao contrário, exige o abandono desse mundo de sombras, em busca da luz que está
fora, acima, no supra-sensível que, em Descartes, é a consciência, o pensar do homem que,
por isso, existe. É possível, então, visualizar por que a dicotomia entre certeza e aparência é
tão presente no pensamento humano da modernidade e por que a necessidade de certezas
que não são mais possíveis no limiar da pós-modernidade são perseguidas como se
fossem a forma de converter-se as coisas do mundo em um universo de imutabilidades
seguras, o que se sabe ser impossível, embora não haja o reconhecimento de tal
impossibilidade. Mantém-se a crença na dualidade platônica e, se cada um dos mundos
platônicos é o oposto do outro, todos os predicados que atribuímos a um temos de
necessariamente subtrair do outro. Todas as características das idéias são derivadas por
antítese das características da aparência.”
157
Onde mera aparência, então, não
segurança, o que, como tantas vezes alertado por Ovídio Araújo Baptista da Silva
158
, tem
inúmeras conseqüências na relação entre o direito material e o processo.
As significações que estão ligadas à concepção platônica, no entanto, não são apenas
essas, que a esfera de dois mundos e as dualidades daí oriundas manifestam-se, no mundo
do direito, por um ideal de constância, porque a “idéia”, tal qual é concebida por Platão na
recepção de suas obras, feita pela escolástica medieval, que foi legada à modernidade, é
caracterizada e totalmente determinada pelo postulado da constância do sentido, o mundo
dos fenômenos sensíveis se subtrai a todo e qualquer tipo de determinação”.
159
É com base
nessas considerações que se pode afirmar que, desde a metafísica clássica e suas essências, até
a metafísica moderna e suas representações, cristalizam-se sentidos, o que é resultado da
156
HEIDEGGER, Martin. La epoca de la imagen del mundo. In: ______. Caminos de bosque. Madrid: Alianza,
1996 Disponível em: <http:www.heideggeriana.com.ar>. Acesso em: jun. 2007.
157
CASSIRER, Ernst. Indiduo e cosmos na filosofia do renascimento. São Paulo: Martins Fontes: 2001. p. 28.
158
Consoante se observa em suas obras indicadas, entre as obras consultadas para a presente investigação.
159
CASSIRER, op. cit., p. 28.
79
dificuldade do sujeito da modernidade de haver-se com a administração das contingências
históricas e de suas próprias contingências como ser mortal.
A certeza, que se opõe à aparência, impõe uma atitude de programação e controle de
resultados, em nome da segurança pretendida, que opta pelo positivismo, certamente por uma
falsa idéia de que o modelo positivista garantiria respostas a priori, seguras e justas, que
trataria a todos de modo igualitário. Nada além de uma falsa compreensão provocada por um
dogma arraigado no pensamento de que às coisas do mundo, meramente aparentes, mas
incertas, pode ser agregada a certeza pretendida. Todavia, são justamente essas respostas a
priori - que não deixam o mundo superior das idéias para se imiscuir nos negócios humanos -
que permitem a insegurança e a incerteza de um mundo de subjetividades arbitrárias.
Enquanto se diz que o Poder Judiciário deve revelar a “vontade concreta da Lei”, diz-
se dele que é a boca que pronuncia a vontade da Lei e que, portanto, não está agindo
subjetivamente. Quando se fala em vontade da Lei, no entanto, o subjetivismo assujeitador do
positivismo está presente. O dogma de que essa revelação traria segurança, por meio de
certeza, vela, no entanto, a arbitrariedade que é o seu pressuposto.
O autodomínio da razão se desenvolve e fundamenta um novo passo da formação do
pensamento humano do indivíduo. Da fusão entre a filosofia cartesiana e as idéias que
levaram à internalização das fontes morais, nasce o indivíduo desprendido da modernidade. É,
segundo Gadamer, por meio de Locke, que o cogito me cogitare assume validade universal.
160
A racionalidade instrumental e hedonista de Locke fundamenta o subjetivismo exacerbado,
que culmina com o sujeito solipsista da modernidade, desvinculado de tudo o que não sejam
os seus sentimentos, interesse, comodidade, despregado do “Outro”, irresponsável, incapaz de
reconhecer na face do outro uma fonte de sua própria liberdade, de sua responsabilidade e
incapaz, por fim, de desenvolver qualquer idéia de comunidade, de comunhão, e, como
decorrência, de qualquer concepção que envolva o reconhecimento dos indivíduos como
coletividade comprometida. Sendo assim, incapaz de construir uma idéia coletiva do bom, do
justo.
Essa é a história da tradição filosófica, que formou o universo de sentido da metafísica
da modernidade, e esse ente, que somos nós mesmos, não se pode desligar do acontecer da
história do ser e da metafísica, porque a tradição filosófica é um existencial do Dasein.
Compreendendo-se mergulhado na tradição e sabendo que a cada fase da história um
princípio marca os fenômenos da época (princípios epocais) - que não escolhemos, nascemos
160
GADAMER, Hans-Georg. Subjetividade e intersubjetividade, sujeito e pessoa. In: ______. Hermenêutica
em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis: Vozes, 2007. p.12.
80
dentro deles e somos limitados em nossas opções paradigmáticas por esses princípios e
vivemos sob o império desses princípios o Dasein precebe-se limitado pelos sentidos
autênticos ou inautênticos – lhe impõe a tradição.
Dessa forma, a tradição é de onde parte a compreensão e, não-questionada,
transforma-se em poder ideológico. Esse modo de pensar é velado pelo conteúdo de violência
simbólica que contém. Como afirma Bourdieu, é
“próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a
cumplicidade mais subtilmente extorquida daqueles que a suportam. Forma por
excelência do discurso legítimo, o direito pode exercer a sua eficácia específica
na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que
permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do
seu funcionamento.”
161
O desencobrimento desse modo ideológico de pensar permite o desvelamento do
modo-de-fazer direito e de pensar a relação entre o direito material e o processo,
demonstrando que o processo, como técnica que serve a um fim, traz consigo uma concepção
inautêntica, que vela o significado autêntico dele mesmo, como técnica e também transforma
o direito material, que perde suas características para ser imagem de como é representado pelo
processo, sem qualquer correspondência entre o que ele é e essa imagem. O processo precisa
apenas chegar a seu termo, método que é. A realização do direito material, sua satisfação
social, cumprido o rito, já não é perquirida, porque, como é corrente na doutrina processual, já
não é atividade jurisdicional; afinal, o sensível e o supra-sensível são mundos opostos.
3.1.2 A era da técnica como época da imagem do mundo
Os princípios epocais são os modos de acesso ao ente que provocam o esquecimento
do ser desse ente. A análise da tradição e de seus diferentes princípios epocais a idéia em
Platão, a substância em Aristóteles, o ens creatur na Idade Média, o cogito em Descartes, o
espírito absoluto em Hegel, a vontade de poder em Nietzsche - permite a reconstrução de
como, e sob quais fundamentos, o século XIX elaborou a sistematização da ciência. Desde a
idéia em Platão, até o dispositivo, na era da técnica, esse encobrimento é um erro, porque a
161
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 242.
81
compreensão do mundo a partir do dispositivo, em relações de instrumentalidade, observa o
mundo e a natureza como algo que pode ser transformado, porque é mera representação.
Essa é a relação do homem com o mundo na era da técnica, o século XX, em que tudo
é meio, inclusive ele, o homem, cuja essência, no sentido do que ele é, deve estar apto a ser
transformado.
Para Heidegger, o princípio que domina o século XX é a continuação de uma tradição
metafísica de encobrimento do ser dos entes que se inicia com os pós-socráticos, mais
especificamente com Platão e a idéia. Esse princípio epocal é a técnica que nos tira do mundo,
por força da objetivação operada pelo dispositivo. A figura na qual impera o ser na era da
técnica é o dispositivo. O dispositivo é a essência da moderna concepção da técnica que
converte em objeto a coisa. Uma essência inautêntica, porque apenas representativa do
arbitrário que engendra a compreensão que não pergunta pela verdadeira essência das coisas,
que, em Heidegger, é aquilo que a coisa é, em sua dimensão já-junto-das-coisas, e não, uma
qualidade (metafísica) acoplada ao ente que deve ser dele extraído, tampouco a imagem que
arbitrariamente fazemos dele. Daí por que o século XX é um século de obscurecimento, de
encobrimento. Vale, como ilustração, a imagem metafórica de Heidegger, na qual
“o próprio Reno aparece, como um dis-positivo. A usina hidroelétrica não está
instalada no Reno, como a velha ponte de madeira que, durante séculos, ligava uma
margem à outra. A situação se inverteu. Agora é o rio que está instalado na usina. O
rio que hoje o Reno é, a saber, fornecedor de pressão hidráulica, o Reno o é pela
essência da usina.”
162
Uma transformação inumana, artificial, tendente a realizar as necessidades também
artificiais de um mundo presentificado como espaço de fabricação e de consumo, não de
relações humanas. O espaço humano é transformado. De espaço de relações entre os homens,
para espaço de fabricação de coisas e necessidades para esses homens. A dimensão do
humano deixa de ser a palavra, a relação sintática com o outro, para ser o espaço do homo
faber. Essa visão de mundo, em que tudo é destinado à transformação fabril, traz consigo o
perigo, sempre presente e atuante, e sempre realizado, do mau uso da técnica, e a dimensão de
sentido em que se pode superar essa modernidade-técnica é a viravolta proposta por
Heidegger, um retorno à dimensão dos seres, que se no mundo que é linguagem. Enfrentar
a questão da técnica é pressuposto do repensar a questão ética. Ambas as dimensões - a virada
162
HEIDEGGER, Martin. A queso da técnica. In: ______. Ensaios e confencias. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 20.
82
em direção à fenomenologia existencial e o reconhecimento do Outro como dignidade e como
condição de possibilidade do exercício dos direitos e limite desse mesmo exercício, como
responsabilidade são imprescindíveis para a superação da era da técnica e da respectiva
visão do mundo em direção à virada do pensar a dimensão do homem como ser humano. Uma
é pressuposto da outra.
O racionalismo da modernidade, responsável pelas diversas correntes do positivismo
jurídico - incluídas as posturas argumentativas, procedimentalistas, substancialistas (ainda
vinculadas ao pensamento assujeitador), desde a jurisprudência de conceitos à jurisprudência
de valores, abrangidas as tantas variantes de sua reformulação dentro da tradição da
racionalidade metafísica
163
- não pensa a coisa em seu ser e a converte sempre em objeto. Para
Heidegger, segundo Stein, quando a técnica, e, por isso, a ciência, converteu a coisa em
objeto e assim em dispositivo, a coisa deixou de acontecer como mundo, e então a técnica se
tornou nosso destino”.
164
A técnica, como princípio epocal, é enfrentada, por Martin Heidegger, em um caminho
do desvelamento do que ela representa até a possível virada em direção a uma superação
desobjetificante do mundo. O ponto de chegada, que se converterá em eterno ponto de partida,
é uma dimensão de compreensão autêntica do mundo e a criação de um espaço em que os
sentidos partem do mundo, do fenômeno, em que não um princípio epocal, mas uma
constante busca do sentido. Essa construção parte do desvelamento da relação com os entes,
em direção à superação da interpretação objetificadora do mundo que cristaliza sentidos. É
um resgate do sentido do ser dos entes, um resgate de sua dimensão fenomenológica e
transformadora do mundo. A relação sujeito-objeto tende ao encobrimento do ser, para que
somente o ente se faça presente, e é isso que impede a realização dos sentidos e permite as
vozes unívocas atemporais, universalizantes de sentidos.
Esse desvelamento se traduz no modo-de-fazer direito que se na relação (ou falta
de) entre direito material e processo. A advertência de falta de efetividade do processo fez
surgir inúmeras propostas de alterações nessa relação que permanecem, sempre, no plano
apofântico e não resultam em uma pergunta sobre o como hermenêutico dessa relação.
Continua-se a tentar encontrar, no paradigma epistemológico vigente, algo que não está nele e
que, por isso, logicamente, não pode fornecer. As construções da dogmática processual civil,
163
O presente trabalho não pretende abarcar a descrição dos diferentes positivismos e as doutrinas que se
destinaram a corrigi-lo, sem, no entanto, superá-lo, consistentes nas teorias do discurso ou da argumentação
jurídica, que cindem fundamentação e aplicação.
164
STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2000. p. 100.
83
em suas investigações cada vez mais modernas (em duplo sentido), buscam a efetividade na
afirmação do processo como instrumento do direito material. Todavia, como ressalta Ovídio
Araújo Baptista da Silva, a utilização de alguma coisa como instrumento pressupõe uma
atividade humana orientada a um fim. O agente que se serve do instrumento pode usá-lo para
finalidade muito diferente daquela para a qual ele fora criado.”
165
O processo mantém, assim, a aparentemente insuperável dimensão de crise de
efetividade e, em decorrência, de legitimidade, sendo utilizado como instrumento que não se
liga concretamente ao seu fim e, por isso, nega o referido fim, o que culmina com a alteração
da essência do direito material quando necessita da intervenção do processo para sua
realização, o que inclui a necessidade de assegurá-lo e satisfazê-lo, em tempo, pois, ao
contrário do que diz a máxima, justiça que tarda é justiça falha.
As correntes que sustentam a legitimação pelo procedimento não logram melhor
resultado. Ao sustentar que o ato jurisdicional se legitimaria pela produção do direito material
a partir do seu modo de produção devido processo legal –, tais teorias rompem a relação
entre direito material e processo, fazendo com que esse se sobreponha àquele.
A necessidade de uma viravolta na compreensão da relação entre direito material e
processo está, dessa forma, fundamentada no perigo, sempre concretizado de mau uso da
técnica. Essa viravolta exige a transformação do imaginário jurídico por meio da pergunta
pelo ser da ação de direito material, que a desvele como sentido do ser
166
do direito material,
que se pretende realizar por meio do processo. Para isso, bastaria deixar que o direito material
e o processo fossem compreendidos a partir da dimensão do cuidado, em que a
responsabilidade do intérprete-aplicador o vincula à concretização real das pretensões trazidas
à apreciação do Poder Judiciário. Com efeito: Teoria’ e ‘práxis’ são possibilidades de ser
de um ente cujo ser deve ser determinado como cuidado.”
167
A atuação democraticamente
responsável da jurisdição está vinculada ao cuidado e à constante vigilância hermenêutica da
técnica. Para tanto, é preciso analisar como a técnica mecanizada da modernidade e seu
método matemático impedem a real compreensão do direito como fenômeno cultural e
165
SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil: . Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v. 2. p. 39.
166
Não se trata de aderir a teorias imanentistas da ação, embora, como advertido anteriormente, Savigny não
considerasse a “açãoimanente ao direito, mas a ação. SAVIGNY. Frederick Karl von. Sistema de derecho
romano actual. Madrid: F. ngora, 1879. v. 4. E não nenhum absurdo nisso, porque a ação é manifestação
do direito material em seu aspecto dinâmico.
167
STEIN, Ernildo. Teoria do conhecimento e ser-no-mundo. In: ______. Seis estudos sobre ‘ser e tempo. Petrópolis:
Vozes, 2005. p. 24.
84
impõem uma visão instrumental que opõe o sujeito e o objeto da compreensão, impondo, a
esse, a imagem projetada dele na mente do sujeito.
3.1.3 A pré-compreensão inautêntica imposta pela técnica como princípio epocal
A ciência - divorciada da filosofia, que começa a se desenvolver com a descoberta de
Galileu Galilei, mas que tem raízes mais profundas em sua compreensão e que ganha
sistematização, inclusive do âmbito no direito, com a Escola de Savigny e seus
desdobramentos - funda a necessidade de progresso sobre a questão da técnica. Esse
progresso fundado na questão da técnica inaugura a era do dispositivo e da disciplina em que
a confiança no progresso científico parece trazer certezas aos homens e afastá-lo dos
infortúnios de sua finitude. É certo que esse modelo é objeto de reavaliação, especialmente
em virtude da impossibilidade de a técnica fazer frente às catástrofes mundiais, como analisou
Hannah Arendt.
168
Todavia, nos tempos de mudança, os fatores de transformação não estão
institucionalizados, permanecem nos limites do não-dito, entre as fronteiras das posições
institucionalizadas, no caso da relação entre o direito material e o processo, entre o
positivismo-legalista e o positivismo pragmático-estratégico, que mantêm, em seu aparente
distanciamento, uma proximidade escandalosa: a necessidade de negação da ação de direito
material, condição de possibilidade da desvinculação do jurista com o mundo e de sua
irresponsabilidade radical para com os resultados de suas posições abstratas e individualistas
em que o outro não é reconhecido em sua existência, em sua dignidade, é apenas um
instrumento, não é mais um fim como pretendia Kant.
A técnica como encontro-provocado com o ente, como modo de interpretação-
representativa do mundo, em que sujeito e objeto se opõem em uma relação significativa
artificialmente construída, serve como instrumento, como Ge-Stell
169
(dis-positivo), que
domina a natureza e provoca sua alteração. Essa técnica dominadora, que é o processo
pensado pelas mentes do racionalismo, no qual estão incluídas também as construções dos
instrumentalistas e dos procedimentalistas (compreendem-se, aqui, as teorias processuais-
procedimentais), altera a essência do direito material de modo a fazer dele um apêndice do
processo, mera substância a ser acoplada. Enquanto representarmos a técnica, como um
168
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
169
HEIDEGGER, Martin. A queso da técnica. In: ______. Ensaios e confencias. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 20.
85
instrumento, ficaremos presos à vontade de dominá-la. Todo nosso empenho passará por fora
da essência da técnica.
170
171
3.2 A EFETIVIDADE BUSCADA NO SEIO DO PARADIGMA
Como afirma Lenio Luiz Streck,
“Com efeito, preparado/engendrado para o enfrentamento dos conflitos
interindividuais, o Direito e a dogmática jurídica (que o instrumentaliza) não
conseguem atender às especificidades das demandas originadas de uma sociedade
complexa e conflituosa (J.E. Faria).”
172
E acrescenta:
“Visivelmente uma crise que, antes de mais nada, precisa ser descoberta ‘como’
crise. Essa crise ocorre porque o velho modelo de Direito (de feição liberal –
individualista-normativista) não morreu, e o novo modelo (forjado a partir do Estado
Democrático de Direito) não nasceu ainda.”
173
O modelo liberal-individualista de fazer direito - que poderia ser considerado
suficiente para um momento histórico em que o paradigma da autonomia da vontade era
aceito, e o Estado não era concebido como transformador da realidade, em que a dimensão do
cuidado com os Outros não assumia um lugar cimeiro na vida em sociedade, justamente
porque a palavra comunidade fora substituída pela idéia de indivíduo - permaneceu com a
mudança da sociedade e da função do Direito, mas entrou em crise.
170
HEIDEGGER, Martin. A queso da técnica. In: ______. Ensaios e confencias. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 35.
171
A essência de alguma coisa é aquilo que ela é. Questionar a técnica significa, portanto, perguntar o que ela
é”. Ibid., p. 11.
172
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 2.
173
Ibid.
86
Como afirma Alasdair Macyntire, em qualquer momento,
“pode acontecer a uma pesquisa constituída pela tradição que, por seus próprios
padrões de progresso, ela deixe de progredir. Seus métodos de pesquisa, até então
confiáveis, tornam-se estéreis. Os conflitos sobre respostas opostas a questões
fundamentais não podem mais ser racionalmente estabelecidos. Além disso, pode,
de fato, acontecer que o uso dos métodos de pesquisa e das formas de argumentação,
através dos quais o progresso racional tinha sido feito até então, comece a ter efeito
de, cada vez mais, revelar novas inadequações, incoerências a então
desconhecidas, e novos problemas, para cujas soluções não parece haver recursos ou
recursos suficientes no tecido de crenças já estabelecido. (...) Esse tipo de dissolução
de certezas historicamente fundadas é a marca de uma crise epistemológica.”
174
Nesse contexto em que o paradigma resume o mundo concreto a uma imagem abstrata
e impõe à história e à natureza a mesma metodologia cristalizadora de sentidos, todas as
construções que visam à superação da crise se mantêm na busca de depuração conceitual
dentro do mesmo paradigma, o que impõe concordar com o diagnóstico de Macyntire, antes
transcrito, e dele divergir quando admite a possibilidade de que uma inovação conceitual
imaginativa”,
175
dentro dos limites do próprio paradigma, seria suficiente para superar a
crise. Antes é preciso acompanhar Thomas Kuhn quando diz que paradigmas não podem, de
modo algum, ser corrigidos pela ciência normal
176
e que as crises debilitam a rigidez dos
estereótipos e ao mesmo tempo fornecem os dados adicionais necessários para uma alteração
fundamental de paradigma.”
177
A partir dessa concepção é que é preciso, além de investigar os antecedentes históricos
que levam à negativa da ação de direito material e seu papel na ligação entre direito material e
processo, desvelando o paradigma, buscar os rumos que essa relação tem tomado, na
modernidade, como ela reflete aqueles pressupostos que compõem o horizonte de sentido no
qual habitam os seus defensores, bem como o que a ciência do processo produziu e sua
relação com a manutenção da crise mesmo após tantas tentativas de, por vias legislativas,
dotar o processo de maior efetividade. Com isso, colhem-se os dados essenciais para alteração
do paradigma.
As correntes instrumentalistas do processo, em suas inúmeras variantes, e, do mesmo
modo, as correntes que advogam a legitimação pelo procedimento, estão inseridas no contexto
174
MACYNTIRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. p. 388.
175
Ibid., p. 389.
176
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 160.
177
Ibid., p. 121.
87
paradigmático em crise e tentam realizar aquilo que Alasdair Macyntire considerou, conforme
antes apontado, a forma de superação da crise epistemológica: uma inovação conceitual
imaginativa
.
Essa inovação conceitual se mantém, no entanto, nos estreitos limites do domínio
paradigmático e, por isso, não é possível falar da afirmação da ação de direito material sem
percorrer os rumos instrumentalistas do processo, porque, neles há, predominantemente, uma
constante, a negação da ação, que teria sido substituída pela “ação” ou eliminada por ela.
Não é suficiente a imaginação conceitual; é preciso romper com o modo de pensar
assujeitador da modernidade, redescobrindo o sentido do ser dos entes cristalizados em uma
imagem arbitrária.
3.2.1 De como autonomia e instrumentalidade coincidem como reflexos da moderna
dimensão da técnica
A corrente instrumentalista do processo é considerada a terceira fase de
desenvolvimento do processo em sua relação com o direito material.
178
As três fases ou
momentos metodológicos, como refere a doutrina de um modo geral, seriam a fase privatista,
em que o processo se confundia com o direito material, por não ter, ainda, conquistado
autonomia científica; a fase autonomista, em que o processo, em prol de sua própria
identidade científica, se distancia do direito material; a terceira fase, a instrumental, que, em
breves linhas, pretende retomar o vínculo perdido com o direito material em prol de escopos
vários, dentre eles, mas não principalmente, a realização do direito no caso concreto. Essa
síntese apertada, acerca das três fases antes relatadas, aponta que um reconhecimento da
necessidade de retomada da ligação entre direito material e processo.
A leitura do que essa relação representa em direção à efetiva realização do direito
material no processo e da concretização de direitos (pretensões) e, por fim, mas não menos
importante, da significação da construção do conceito de “ação” em relação à ação de direito
178
Importante salientar que a obra de Cândido Rangel Dinamarco aborda a corrente instrumentalista do ponto de
vista do processo genericamente considerado, em linhas que não cabem na presente investigação, a qual se limita
a investigar o campo das relações do processo civil com o direito material (ressalvando-se que, aqui, direito
material não se confunde com direito privado). DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do
processo. São Paulo: Malheiros, 2005.
88
material, produzida nas diferentes fases doutrinárias apontadas, está fundada no paradigma
investigado, um modelo em profunda crise.
No campo da relação entre direito material e processo, o desenvolvimento científico
foi direcionado a partir da autonomização do processo, medida imprescindível para garantir,
ao último, status de ciência no sentido moderno. Autonomia, abstração, conceitos,
sistematização, busca de certeza e segurança estão na origem da formação do processo como
ciência. É sua genética, uma genética que, como se verá, acompanha sua compreensão pelo
senso comum teórico dos juristas, mesmo quando a idéia de instrumentalização do processo
conquista lugar de palavra de ordem.
A cientificação do Direito engendra a recepção do ideal metódico de busca da certeza.
O lugar da certeza é o lugar platônico, do mundo das idéias, do belo, da abstração, onde tudo
está em ordem. Não é o mundo, esse lugar de incertezas, do inesperado, das vicissitudes da
vida, da finitude da existência e, pois, do que é desconhecido. Sua autonomia exige método
próprio e seguro de busca da segurança e da certeza por meio do Estado, indivíduo artificial,
também abstrato, que permitiu o abandono do estado de natureza e ordenou o mundo. Um
ideal de segurança fundado no método exige o totalizante reconhecimento da univocidade de
sentidos, sem a qual não segurança e certeza possíveis e não viabilidade de construção
de um método moderno-científico. E, sem esse método, via de conseqüência, o processo não
adquire seu bilhete de ingresso no campo científico e não oferece ordem às coisas inseguras
do mundo sensível.
A autonomia, cultivada com carinho pelos cientistas do Processo, não é abandonada
quando a idéia de instrumentalidade é reconhecida pela comunidade científica. Ao contrário,
como solução para os males do processo, a instrumentalidade se reconhece como realizadora
dos ideais de justiça e guardiã do ideal de autonomia. Pretende-se, com ela, substancializar a
relação entre direito material e processo. Todavia, essa substancialização nada mais é do que
um novo nome para a velha abstração.
O instrumentalismo proposto e dominante no processo civil brasileiro é concebido a
partir da visão do direito processual como um todo sistemático, coordenado pela teoria geral
do processo, por generalizações indutivas com particularidades dedutivas em um edifício
sistemático,
179
à maneira do método único, que lembra a auto-suficiência da razão e remete a
pensar no direito material como a imagem representativa do que o intérprete pensa acerca
dele. Isso é inconcebível em uma concepção democrática e transformadora do Direito, que
179
Segundo o que expõe DINAMARCO, ndido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 71.
89
tem um compromisso com o poder transformador da Constituição como documento a ser
interpretado como compromisso do Estado e do Direito com o bem comum, para o qual o
bem de cada um é pressuposto necessário e indivisível.
Essa instrumentalidade a que se propõe a nova fase metodológica se encontra
vinculada à metodologia unitária do direito processual, que, ao contrário do que sustenta
Cândido Rangel Dinamarco, impõe homogeneidade de soluções. Compreender o direito em
um método único significa, sim, racionalizar o direito na abstração científica que marcou a
fase autonomista que, segundo se acredita e se sustenta aqui, não foi deixada para trás.
Quando o jurista diz que o processo é “um instrumento, sim, mas não a serviço
exclusivamente do direito substancial; sua missão mais elevada é a que tem perante a
sociedade, para a pacificação, segundo critérios vigentes de justiça e para a estabilidade das
instituições”,
180
ele parte do pressuposto de que o direito substancial e o processo possam ser
vistos e aplicados em uma dimensão puramente jurídica e de que escopos sociais, políticos
e jurídicos cindíveis no direito, sendo possível realizar um, sem realizar os demais. Trata-se,
pois, de duas visões muito diferenciadas do que seja o direito. No presente estudo, a
compreensão do direito não é um fenômeno simplesmente jurídico, pois não existe o
exclusivamente jurídico, senão em teoria pura
181
. A compreensão do jurídico envolve uma
visão em que o social, o político e o jurídico - para falar das esferas de escopo relacionadas
pelo autor de “Instrumentalidade do Processo” – são incindíveis porque a compreensão não se
por etapas a jurídica, a social e a política. O jurídico é também social e político e dizer,
então, que a busca pela concretização do escopo jurídico realização do direito no caso
concreto é um dos escopos, mas não o mais importante do processo, é também dizer que o
direito, estritamente o jurídico, é uma ciência pura, na qual a intervenção do social e do
jurídico só se porque eventualmente são escopos específicos que se colocam a ele. Essa
cisão é, evidentemente, necessária para marcar uma ciência pura, cujo método é único e cuja
autonomia é o bem sempre posto em eterna vigilância contra as intromissões dos fenômenos
não-jurídicos. Essa ciência é a ciência do processo.
Disso resulta a necessidade da ruptura paradigmática, para que exsurja a possibilidade
de satisfação dos direitos pelo processo o que, como ressalta Ovídio A. Baptista da Silva, não
pode ser identificado com o conteúdo meramente normativo de um provimento definitivo apto
à produção de coisa julgada. Afirma o jurista: Nossa compreensão do que seja a satisfação
180
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 42.
181
E a separação das órbitas entre o político, o social e o jurídico, não pode deixar de lembrar o normativismo
kelseniano. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
90
de um direito corresponde rigorosamente ao entendimento do senso comum, para o qual
satisfazer um direito é realizá-lo no plano social.”
182
A diferenciação entre satisfação
puramente normativa e satisfação real, apontada pelo autor, sugere a compreensão da forma
de fazer direito para o senso comum teórico dos juristas
183
, que não se confunde com o senso
comum que expressa o modo como as coisas são, elas mesmas, na realidade social. Quando se
admite que a jurisdição não se comprometa com o resultado fático de um processo, quer dizer,
quando ao juiz satisfaz proclamar o direito para o caso, sem se preocupar com a real
obediência à ordem que emitiu (em caso de sentença, liminar ou definitiva, mandamental),
quando não se ocupa da efetivação do conteúdo executivo de uma decisão igualmente
provisória ou definitiva, e ocorreu de esquecer-se, no próprio dispositivo da sentença, de
emitir a ordem de execução - do que fomos testemunha no dia-a-dia forense - isso desvela o
seu modo de pensar e fazer jurisdição. O mesmo se dá quando, ainda, se contenta com proferir
provimentos (decisões) de antecipação de tutela, bastando-lhe isso, sem se comprometer com
sua real efetivação (do que também fomos testemunhas: o descumprimento de mandados, sem
que se obtenha do próprio magistrado prolator da decisão qualquer providência real tendente a
viabilizar o cumprimento, por meio de medidas coercitivas ou executivas em substituição; ou
ainda, a afirmação de desnecessidade de determinação de auxílio de força pública ao Oficial
de Justiça, para cumprimento de mandado executivo, com a justificativa de que não cabia ao
juiz deslocar a referida força para esse efeito, entre tantas outras). Certamente, nessa
compreensão da função jurisdicional, insere-se a preocupação normativa com a realização,
portanto, meramente fictícia dos direitos, sem que seja necessário chegar aos fatos. Tal ordem
de idéias se alinha com a afirmação de que o escopo da jurisdição é, primeiro, realizar a paz
social, sendo escopo de menor importância a necessidade de concretização dos direitos. Isso
porque a jurisdição que se limita à “satisfação” dos direitos no plano puramente normativo
continua desligada de sua real efetivação e a paz social, então advinda, é meramente fictícia (a
ficção da coisa julgada como ideal da jurisdição).
182
SILVA, Ovídio A. Baptista da Curso de processo civil: Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v. 2. p. 26.
183
A expressão senso comum teórico dos juristasfoi cunhada por Luis Alberto Warat. WARAT, Luis Alberto.
Introdução Geral do Direito II. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995.
91
3.2.2 Da concepção moderna da técnica à essência da técnica
O campo do direito processual está impregnado pela idéia de domínio da técnica que a
como instrumento e não pergunta o que ela é. Isso faz do direito processual um espaço
totalizante que aniquila o ser do direito material, já não sendo o direito processual criado em
função do direito material, mas esse criado em função daquele. Como disse Heidegger, o rio
que hoje o Reno é, a saber, fornecedor de pressão hidráulica, o Reno o é pela essência da
usina.”
184
O direito material é, hoje, o que lhe determina a essência moderna, distorcida, do
processo, que altera a essência do direito material a ponto de tornar o usurpador devedor em
virtude do processo
185
.
Disso resulta que as características e o conteúdo do direito material são apagados
quando ingressam no processo, respondendo a uma característica essencial da técnica com o
sentido que se cristalizou na modernidade, a partir da filosofia da consciência: a necessidade
de a razão (suas construções intelectuais) dominarem a natureza, o mundo onde as coisas se
dão, agora, como simples imagens. Esse paradigma epistemológico domina a doutrina
processual civil. O processo é considerado técnica a serviço do direito material, mas essa
técnica é concebida ao modo da modernidade, em que predomina a insistência de considerar
todas as coisas como resultado de um processo.”
186
As correntes instrumentalistas, que se inserem no panorama das teorias
substancialistas, controem o instrumento como uma coisa que, ao se interpor entre o sujeito e
o objeto, concebe arbitrariamente o objeto. A mesma oposição é flagrada nas correntes que
advogam a legitimação pelo procedimento, não-conteudísticas. Ocorre que, ao contrário do
que sustenta o senso comum teórico dos juristas, as características ou qualidades do direito
material e dos momentos eficacias que lhe seguem possibilidade de exigir e exigência,
possibilidade de agir e ação – não são dados pelo processo.
Não se trata, pois, de negar que o processo seja uma técnica; trata-se de buscar o que é
a técnica em uma visão autêntica. A virada copernicana em direção à idéia de que o domínio
do método leva à objetificação (entificação) e, pois, à universalização dos sentidos exige a
184
HEIDEGGER, Martin. A queso da técnica. In: ______. Ensaios e confencias. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 20.
185
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. p. 59.
186
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 318.
92
superação da era da técnica e a compreensão de que conhecimento é sempre um modo de ser
do estar-aí na base de seu já-estar-junto-do-mundo.”
187
A técnica, é bem verdade, tem suas próprias características, como instrumento, mas é
vazia a priori. É interessante perseguir essa compreensão buscando, na análise filosófica da
“coisa”, em Heidegger, novamente, uma metáfora. Como receptáculo destinado a receber o
conteúdo de algo para o qual foi construída, ela precisa ser vazia, a priori, pois todo receber
necessita do vazio, como recipiente.”
188
Heidegger analisa, no contexto de uma análise mais
abrangente, a coisa, o ges-tell (dispositivo), e o perigo em direção ao desvelamento da técnica
em uma nova condição de possibilidade de ser, à viravolta.
Às coisas elas mesmas, não como entes, mas como o que simplesmente é, i.e., como
sentido, como ser. Assim, a “coisa”, para Heidegger, necessita ser pensada:“Pensar a coisa,
como coisa, significa deixar a coisa vigorar e acontecer em sua coisificação, a partir da
mundanização de mundo. [...] No sentido de reunir e recolher numa unidade, coisificar é
aproximar mundo.”
189
Em lugar da representação das coisas, que permite que a mente humana
projete uma imagem da coisa que não está comprometida com o mundo, que atribui, por esse
desprendimento, qualquer sentido à coisa, a proposição de voltar às coisas mesmas exige o
desvelamento do sentido desse ser, para que, ao que permanece entificado, i.e., cristalizado, se
substitua o ser das coisas como elas são. Esse desvelamento permite a concepção de que a
idéia que se faz da coisa, sem vínculo com o mundo (mundo como linguagem), petrifique o
sentido, substituindo o sentido cambiante e histórico da coisa, que lhe determina a cambiante
condição humana, pela aceitação da imagem que a modernidade projeta por meio das
construções científicas. É o que ocorre com o direito material, cujo ser é transformado pelo
processo, objetificado como ente, cujo sentido é cristalizado e atemporal. Como adverte
Hannah Arendt, em lugar do “conceito de Ser, encontramos agora o conceito de Processo
190
.
A mesma constatação, no sentido de que, em lugar do conceito do ser do direito material, está
a técnica, o processo, sugere a metáfora de Heidegger, quando, meditando a “coisa-jarra”,
afirma que aciência faz da coisa-jarra algo negativo, enquanto não deixar as coisas
mesmas serem a medida e o parâmetro.”
191
187
Ernildo Stein cita, neste trecho, a obra de Martin Heidegger contida no § 20 do volume 20 das obras
completas. STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre ‘ser e tempo’. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 30.
188
HEIDEGGER, Martin. A Coisa. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2006. p.149.
189
Ibid., p.158.
190
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 309-310.
191
HEIDEGGER, op. cit., p.148.
93
A técnica, desse modo, inverte ou cria uma imagem para a essência das coisas que não
é o que elas são. Na relação entre direito material e processo, a metáfora da jarra ilustra essa
situação, pois a jarra, como recipiente, técnica, destinada a realizar algo (no caso da jarra
receber e doar), tem, no vazio, na ausência de conteúdo o nada na jarra
192
a
característica de sua possibilidade de ser, enquanto receptáculo, que recebe. [...] É o vazio
da jarra que determina todo tocar e apreender da pro-dução. O ser da coisa do receptáculo
não reside, de forma alguma, na matéria, de que consta, mas no vazio, que recebe.”
193
Essa é
a essência da técnica. Seu ser não consta da matéria de que foi feita a técnica, mas da
possibilidade de receber e, por isso, doar aquilo que recebeu. Concebendo o processo e o
direito material, nessa visão que pretende retornar às coisas como elas são – técnica e
conteúdo poder-se-ia dizer que o sentido do ser do processo é poder receber, sem alterar a
essência, o conteúdo que lhe foi destinado. O Direito Material, esse conteúdo, então, poderia
ser doado, sem alteração de sua essência, ao mundo, pelo que ele é. Diz Heidegger:
“A doação da vaza pode ser uma bebida. Então ela dá água, ela vinho para beber.
Na água doada, perdura a fonte. Na fonte perdura todo o conjunto das pedras e todo
o adormecimento obscuro da terra, que recebe chuva e orvalho do céu. Na água da
fonte, perduram as núpcias de céu e terra. As núpcias perduram no vinho que a fruta
da vinha concede e no qual a força alimentadora da terra e o sol do céu se confiam
um ao outro. Na doação da água, na doação do vinho perduram, cada vez, céu e
terra. A doação da vaza é, porém, o ser-jarra. Na vigência da jarra, perduram céu e
terra.”
194
Como se disse ao início: o conteúdo e as características do direito material o
acompanham ao processo. Não é isso, todavia, o que ocorre na prática inspirada pelas
construções teóricas dos processualistas modernos, no que se poderia chamar de autonomia-
instrumental em voga. Nem tampouco o que pretendem as teorias processuais-procedimentais
que fazem do direito material um produto incondicionado do processo. E isso é uma
decorrência do processo histórico que, por obra das ordens direcionadas à proteção da
compilação de Justiniano, universalizou, como antes analisado, o Direito Romano do Período
Final, por obra da pandectística, que predominou no século XIX, justamente quando o
Processo Civil caminhava a passos largos em direção à sua autonomia científica que o afastou
do direito material.
192
HEIDEGGER, Martin. A Coisa. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2006. p.147.
193
Ibid.
194
Ibid., p.150.
94
O Direito Romano do período final, como citado anteriormente, apenas contém o
embrião do fenômeno que, na modernidade, se concretiza: a universalização do instituto da
actio. Essa universalização transforma o direito material em um direito obrigacional,
relativizando direitos absolutos ou universalizando direitos obrigacionais, como afirma
Ovídio A. Baptista da Silva, no campo do processo. Tal constatação é feita com base nas
obras dos pandectísticas do culo XIX, que investigam o instituto como fonte da
compreensão do processo civil emergente como ciência. A concepção do processo a partir do
instituto da actio romana, ligada às relações obrigacionais, contém em si a subtração da
essência do direito material (o que ele é), para que o processo passe a ditar seu conteúdo. A
litiscontestatio
195
, como momento essencial do procedimento da actio, fundamento a essa
inversão, porque foi concebida pela majoritária doutrina do séc. XIX, como novação
196
da
relação obrigacional originária, pela instauração do processo e estabilização da instância.
A compreensão de que o processo pode alterar o direito material, com fundamento na
noção de novação, ditada pela pandectística, fundamenta o pensamento inquestionado acerca
do processo como técnica, que dita a natureza do direito material, a ponto de fabricar seu
conteúdo e dar-lhe nova essência a partir do acoplamento das eficácias sentenciais (que são
desligadas do direito material) ao direito que agora é outro direito, o fabricado pelo processo,
porque, com o processo, a relação original se transforma e cria para o autor o direito de
195
Acerca da litis contestatio, ensina Ovídio A. Baptista da Silva, citando Vittorio Scialoja: ‘En el período
formulario, la litis contestatio coincide con el momento en que, mediante el decreto del pretor que emite la
fórmula y la aceptación de ésta por parte de los litigantes, se establecen precisamente los rminos
fundamentales en que habrá de desarollarse el juicio; lo cual se realizaba, en el procedimiento de las legis
actiones, mediante la solemne invocación de los testigos. Con la diferencia, naturalmente, de que en la litis
contestatio del procedimiento formulario no hay ya formas solemnes ni la solemne invocación de los testigos.
‘El pretor, a continuación de todo el desarollo del procedimiento in yure, nombra el juez para el procedimiento
in judicio y establece el contenido de la acción y eventualmente el de las excepciones, réplicas, etc. fijando los
términos en la fórmula, que hemos dicho que es la instrucción escrita dada a este efecto al juez.’ (Procedimiento
Civil Romano, trad. Espanhola de 1954, § 29, p. 231). a) Se pudéssemos estabelecer una equivalência entre la
litis contestatio romana e a estrutura do processo civil moderno, poderíamos sugerir que este instituto
correspondesse ao ato através do qual se encerrava a fase postulatória, com a conseqüente estabilidade da
instância, resultando estabelecidos pelo pretor os limites da controvérsia, seja pela fixação do conteúdo da
ação, seja, eventualmente, pela admissão das exceções suscitadas pelo demandado. SILVA, Ovídio A Baptista
da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica.Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 61.
196
A concepção majoritária da litiscontestatio como novação foi objeto da crítica de Windscheid e elemento que
compôs sua polêmica com Muther. Inobstante isso, a divergência parece ser apenas gramatical, já que
Windscheid, defendendo sua posição de que a actio não era consumida pela litis contestatio, afirmou, também,
que a actio e a correspectiva obligatio eram absorvidas pelo iudicium (que se instalava por força da
litiscontestatio) e En realidad, el acreedor no obtiene lo que dice la obligatio, sino lo que se le asigna en el
iudicium.” WINDSCHEID, Bernhard. La “actio” del derecho civil romano, desde el punto de vista del derecho
actual. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la “actio”. Buenos Aires: Ediciones
Juridicas Europa-America, 1974. p. 89. Já Muther sustentava que, com a entrega da fórmula e a nomeação do
iudex, extinguem-se a actio e a obligatio, nascendo uma nova relação entre autor e demandado (contrahitur
iudicio). MUTHER. Theodor. Sobre la doctrina de la actio romana, del derecho de accionar actual, de la
litiscontestatio y de la sucesion singular en las obligaciones. In: WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor.
Polemica sobre la “actio”. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974. p. 277.
95
submeter o réu a uma condenação, e ao demandado, a obrigação de suportá-la. Usurpador e
vítima são transformados em devedor e credor. Os meios de tutela se universalizam como se a
todos os direitos correspondesse uma verdadeira relação jurídica obrigacional, na qual o bem
está licitamente na posse e patrimônio do devedor, ao contrário das relações de direitos
absolutos, em que, por exemplo, a coisa está ilegitimamente no patrimônio do ofensor.
Essa forma de conceber o processo e sua relação de direito material é própria das
correntes instrumentais, que ligam as técnicas de tutela à previsão abstrata do direito material,
conforme se verá adiante, como também às correntes que lhe fazem a crítica. Sejam elas
correntes substancialistas (ainda ligadas ao esquema S-O) ou procedimentalistas, o que
permanece é o paradigma e sua tentativa de correção, e não, de superação.
O direito material não é, nessa visão, a medida e o parâmetro do processo.
3.2.3 A instrumentalidade do processo em relação ao direito material
A construção da instrumentalidade do processo como principiologia fundamental na
relação entre direito material e processo tem sido pautada pela relação de adequabilidade
abstrata, em que o processo como instrumento é algo dado, e o direito material, um conceito
universal, também aprioristicamente concebido em uma dimensão ideal-normativa. Um
instrumento abstrato que será substancializado. Substancializar é, nesse caso, buscar um elo,
também, abstrato, nos três escopos – jurídico, político e social –, genericamente considerados,
em que o processo serviria a um direito material também como imagem dada, pré-concebida.
Esse processo é dado nas mãos dos juízes e, pois, do Estado, para fazer efetivo o direito
material como pura abstração. Não há um reconhecimento das coisas no mundo, como
fenômeno privilegiado, em que as coisas acontecem e têm uma dimensão que a técnica não
pode reduzir. Não há fatos. Ao contrário, o papel da cnica é reduzir à disciplina os
fenômenos e suas soluções, sempre presentes e dadas a partir de um mundo de ordem
garantida pelo método. Por isso, os conteúdos dos fatos que originam os direitos, pretensões e
ações de direito material podem ser atribuídos à “ação” (abstrata!) e às sentenças
197
, as quais
serão arbitrariamente acopladas aos fatos. Esse acoplamento permite a afirmação da
desnecessidade de reconhecer sentenças conforme o conteúdo dos direitos. São técnicas
197
Isso ocorre quando a doutrina insiste em classificar a “açãoprocessual e as sentenças e recusar qualquer
liame entre essa classificação e o direito material.
96
construídas sem vinculação com as necessidades do fim para o qual foram criadas: a
realização/concretização das pretensões. O conteúdo da sentença seria determinado pelo
pedido da parte, mas sem levar em consideração o direito que reclama proteção e satisfação:
mero acoplamento instrumental mecanizado.
Essa efetividade, em si, é uma abstração pressuposta. E, na mesma esteira, o
“princípio” da efetividade da tutela jurisdicional é acoplado, como um dispositivo, à tutela
jurisdicional, em que a resposta pelo uso da instrumentalidade está previamente dada, sem
qualquer comprometimento com os fatos, com o mundo da vida. Esse acoplamento garante,
para o senso comum teórico que, cumprido o método, por uma visão instrumental, não haverá
como falhar a efetividade. Essa crença, ao mesmo tempo, serve ao positivismo-legalista e ao
pragmatismo, num paradoxo difícil de aceitar e vivenciado todos os dias. Essa efetividade
abstrata serve a um interesse que põe, em mãos da autoridade superior (seja o Estado e/ou a
classe que o governa), a totalizante aniquilação do direito material pelo processo em uma
visão de unidade do ordenamento jurídico, que será analisada, no presente estudo, sob a ótica
da exceção (Capítulo 3).
A visão instrumental-abstrata e tida como substancializadora, por acoplamentos, é
flagrada em todas as correntes instrumentais do processo, que esse é um instrumento da
modernidade, uma ferramenta, não um modo de compreensão. Por esse motivo, a doutrina
processual desenvolvida até hoje, passando pela autonomia e, inclusive, pela
instrumentalidade ou instrumentalidade moderna, como a sustenta José Roberto dos Santos
Bedaque
198
, trilhou caminhos que servem ao estrangulamento/aniquilação do direito material
pelo processo.
Ao retirar a ação de direito material do mundo, porque nega sua existência, a
efetividade da tutela jurisdicional fica condicionada pela previsão de meios processuais. Essa
efetividade, compreendida em relação à previsão “normativa” do direito material, concebe
meios cuja adequação não perquire fatos e que se a priori em discursos de fundamentação
também apriorísticos. As teorias instrumentais (e todas as suas variantes) propõem um
discurso de adequação prévio, em que a tutela é adequada abstratamente à previsão normativa,
sem preocupação em voltar ao mundo prático. Se, no entanto, a ação de direito material for
afirmada como um momento do direito material em ação no mundo, será preciso reconhecer
um fenômeno inegável: a existência do próprio direito (sempre compreendido em sua
faticidade, sua realização concreta, desta perspectiva) dita a necessidade de sua efetivação e
198
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros,
2006. Idem. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 1995.
97
desautoriza a pensar a tutela jurisdicional sem que, na sua compreensão, esteja ínsita a
efetividade, sem necessidade de adjetivação, em que discursos de validade/fundamentação e
discursos de aplicação não são cindidos
199
. Isso porque o próprio direito informa a
imperatividade de sua satisfação, haja ou não norma processual que contemple
adequadamente esse resultado, haja ou não previsão legal de instrumento específico para sua
tutela. É a própria força impositiva da Constituição que exige essa virada em direção à
afirmação da ação de direito material, porque ela retoma a força impositiva do direito
material, impedindo interpretações inautênticas sobre o direito, que passa a ter poder
transformador, exigência do neoconstitucionalismo. Por isso, não se trata, registre-se, de
menosprezo ao direito legislado e à Constituição; ao contrário, permite a compreensão de que,
se a Constituição ou a legislação infraconstitucional instituem direitos, está garantida sua
efetivação por meios adequados, sob pena de virarem literatura, pois, como diz Ovídio Araújo
Baptista da Silva, direito (pretensão) sem ação é poesia, certamente de qualidade”.
200
Também não se trata de irracionalismo e de se permitir ao intérprete livre disposição dos
meios e do direito. Ao contrário, o limite de sentido é dado pelo direito em concreto, que
necessita de intervenção para realizar-se ou para não ser violado ou ameaçado de violação.
Como sustenta Marinoni, o elo de ligação
201
entre o direito material e o processo é
também um ‘elemento de legitimação’ porque a ‘técnica processual’ somente pode ser
considerada legítima, perante tal direito fundamental, quando capaz de dar ao juiz o poder
de prestar tutela jurisdicional efetiva”.
202
A fundamentação desse elo de ligação na previsão constitucional de direito
fundamental à tutela jurisdicional efetiva exige a afirmação da ação de direito material, pois
não visão autêntica possível do direito material se lhe for retirada a força impositiva. A
negação da força impositiva do conteúdo do direito material, sua capacidade de realização e
efetivação, permitindo que a previsão de meios de tutela reste escolha da doutrina processual,
segundo critérios puramente científicos, o que tem ocorrido, é caudatária de um modo-de-
fazer direito própria da ultrapassada máxima do lasse-faire, no qual a Constituição permanece
como documento retórico, em sua real inefetividade. Essa é a realidade que se tem
199
É preciso perceber que nos movemos “numa impossibilidade de fazer coincidir discursos de validade e discursos de
adequação e é nesse ponto que se o embate entre a hermenêutica (filofica) e as diversas teorias discursivas.”
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2006. p. 8.
200
Conforme Ovídio Araújo Baptista da Silva. Ações e senteças executivas. In: Jurisdição, direito material e
processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 253.
201
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 34.
202
Ibid., p. 34.
98
testemunhado nos dias que correm: previsto o direito fundamental à tutela jurisdicional
efetiva, a doutrina, que nega a existência da ação de direito material e com ela a força
impositiva dos direitos permanece construindo um método único e, por isso, abstratamente
adequado, contentando-se em tutelar normativamente os direitos, porque não nada que o
vincule à realidade social. Assim, a relação entre direito material e processo acaba sendo
diminuída a uma abstração em que os direitos materiais, inclusive os fundamentais, jazem
como letras mortas sem força de imposição de seu conteúdo, já que a técnica processual não é
construída de acordo com esse conteúdo. Dessa forma, subtrai-se do direito material sua
força, pois o aniquila fazendo dele fruto do processo.
Esse pressuposto teórico acompanha as construções que pretendem transpor a fase
autonomista do processo em direção ao que chamam de “instrumentalidade moderna”, com o
fim de superar as limitações do processo e prestar tutela efetiva aos direitos fundamentais.
Todavia, a própria hermenêutica constitucional resta comprometida.
Com o escopo de perseguir efetividade, a partir do paradigma teórico apresentado,
José Roberto dos Santos Bedaque
203
apresenta a tese de relativização do binômio direito-
processo e a considera um passo adiante à fase instrumentalista. Afirma que a construção
científica do processo se deu na fase autonomista, que valorizou demasiadamente a técnica, e
que a nova fase – instrumental – exige que os institutos processuais sejam revistos. Para tanto,
afirma que se trata
“de tomar consciência de que os institutos são concebidos à luz do direito material.
Implica reconhecer que a distância entre direito e processo é muito menor do que se
imaginava e que a reaproximação de ambos não compromete a autonomia da ciência
processual.”
204
O apreço e a necessidade de reafirmar a autonomia científica, tão ao gosto cartesiano,
agregados à idéia de que uma reaproximação, aparentemente apenas ôntica entre processo e
direito material, sem necessidade de alteração do paradigma epistemológico e da
compreensão da técnica, inviabiliza, à ciência, a realização de sua legitimidade, a saber:
oferecer base epistêmica para uma compreensão adequada da técnica, em que esta deixe de
ser o centro das possibilidades, para dar lugar à compreensão de que o direito material, que
203
Doutrinadores como Cândido Rangel Dinamarco, Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, José Carlos Barbosa
Moreira, Humberto Teodoro Júnior, dentre tantos outros.
204
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo.
São Paulo: Malheiros, 1995. p. 13-14.
99
não logra satisfação no mundo prático, precisa do processo para ser compreendido e, desse
modo, realizado concretamente.
Dinamarco insurge-se contra o preconceito consistente em considerar o processo
como mero instrumento técnico e o direito processual como ciência neutra em face das
opções axiológicas do Estado.”
205
Essa visão da técnica, como instrumento neutro no qual,
portanto, caberia qualquer visão ideológica, qualquer opção autoritária ou democrática de
Direito e de Estado é, no entanto, característica dos juristas que negam o vínculo concreto
entre processo e direito material (que não se confunde com direito privado!) e que confundem
as opções ideológicas do Estado – a Lei – com o Direito.
Na permanente indistinção que a doutrina faz entre “ação” e ão, indistinção que
produz o distanciamento entre direito material e processo, pois, negada a ação de direito
material, fenômeno concreto, e considerada a “ação” processual como categoria abstrata (o
que reconhecidamente é), o vínculo entre direito material e processo reduz-se a um fenômeno
puramente idealizado, pois não liame concreto de ligação entre ambos. O nculo passa a
se dar com o direito material objetivo e os ditames abstratos do ordenamento, sem retorno aos
fatos, que esses foram isolados no mundo dos fatos e não têm possibilidade de atuação no
processo. A potência e a força do direito material foram cortadas pela preponderância da
técnica sobre o ser do direito material, cortadas ao ser proscrita a ação de direito material.
Como adverte Hannah Arendt, nesse contexto, em lugar do conceito de Ser, encontramos
agora o conceito de Processo.”
206
Desse modo, acrescenta, do ponto de vista do homo
faber, era como se o meio, o processo de produção ou de desenvolvimento fosse mais
importante que o fim, o produto acabado.
207
A compreensão do direito que está à base desse pensamento é aquela em que a técnica
é método abstrato, em que apenas se reconhece que a racionalidade não pode ser apenas
formal, mas também material, contentando-se com uma mudança dos métodos a serem
utilizados pelo processualista para rever os conceitos de sua ciência
208209
. Isso, segundo
Hannah Arendt, se porque o cientista criava apenas para conhecer, não para produzir
205
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. pág. 41.
206
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 309-310.
207
Ibid.
208
Considera o autor, em sua visão instrumentalista, que a “precisão conceitual é necessária a qualquer ciência.”
“Apenas”, segundo ele, “não se pode transformar a técnica, os conceitos e as definições em objeto principal da
ciência processual.” Com isso, condena o processualismo e a “excessiva autonomia do processo frente ao direito
material [...].”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. São Paulo: Malheiros, 1995.p 17.
209
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: inflncia do direito material sobre o processo. São Paulo:
Malheiros, 1995. p. 15.
100
coisas; estas eram meros subprodutos ou efeitos colaterais.”
210
É o campo da abstração
científica, em que a realização concreta do direito material é apenas um efeito colateral ou
subproduto das construções teóricas dos juristas e dos acoplamentos realizados no campo do
processo. Continua-se, assim, subtraindo do processo o mundo prático, que nele entraria pela
porta da racionalidade material, o que conferiria o sucesso da empreitada”.
211
Para Bedaque,
o juiz não atua com o objetivo de concretizar direitos (ao menos não precipuamente), mas
com o de “atuar a lei.”
212
Isso responde à pergunta sobre o motivo pelo qual ele é levado a
afirmar que a técnica processual deve adequar-se, portanto, àquelas situações
abstratamente previstas pelo legislador material, para cuja efetivação seja necessária a
intervenção jurisdicional.”
213
Dinamarco, por sua vez, considera que o juiz não tutela
direitos, mas pessoas,
214
o que abstrataliza a relação entre direito material e processo,
desvinculando o julgador de sua responsabilidade com o caso concreto, porque um escopo
de pacificação social, na sua opinião, maior e superior à realização do direito no caso
concreto, que é dada por alcançada com a entrega da prestação jurisdicional, porque as partes
envolvidas sabem que, exauridos os escalões de julgamento, esperança alguma de solução
melhor seria humanamente realizável
215
, com o que não se pode concordar. Essa asssertiva
lembra a proposta procedimentalista de matriz habermasiana em que a verdade é consenso ou
aceitabilidade racional (pois esperança alguma de solução melhor seria humanamente
realizável!). Vale lembrar, aqui, o que Ovídio A. Baptista da Silva denuncia ao afirmar a
diferença entre essa concepção, de satisfação abstrata, da satisfatividade como realização dos
direitos no plano social. Essa advertência é adequada em relação ao que a doutrina da
instrumentalidade costuma denominar de supremacia do escopo político em relação ao escopo
jurídico, sendo aquele a paz social e esse a tutela dos direitos entre as partes. Isso porque essa
escala valorativa pressupõe a satisfatividade na afirmação da solução no plano normativo, por
meio da composição da lide processual, que se realiza com a prolação da sentença. Esse é o
pressuposto lógico que parece ser invencível: conceber jurisdição como tarefa de
aplicação/atuação (rectius: declaração) da lei, é uma terrível e temível abstração que desliga o
210
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 310.
211
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. São Paulo:
Malheiros, 1995. p. 15.
212
Ibid., p. 25.
213
Ibid., p. 36.
214
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 183.
215
Ibid., p. 195. A afirmão parece fazer coro com o conhecido trecho de voto do Ministro Humberto Gomes de Barros,
colacionado por Lenio Luiz Streck, do qual se extrai o seguinte trecho: Ningm nos dá lões. Não somos aprendizes de
ningm. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declarão de que temos novel saber
jurídico uma imposão da Constituição Federal.” STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro, men
Iuris, 2006. p. 165.
101
juiz de sua tarefa constitucional - a concretização dos direitos e a transformação da realidade
social em direção ao ideal de vida boa presente na Constituição - e o autoriza a ser
irresponsável.
Dessa forma, impõe-se a pergunta: Considerando que Habermas propõe a
fundamentação prévia dos atos do mundo prático, produzida por um discurso ideal de fala,
para o qual é suficiente a própria norma, independentemente de sua aplicação às situações
concretas, poder-se-ia reconduzir as teorias instrumentais ao discurso ideal de fala
habermasiano? Partindo da análise de Streck sobre a obra de Klaus Günther (cujo paradigma é
habermasiano, embora tente recuperar a razão prática), é possível responder afirmativamente.
Streck, a respeito da proposta de Gunther, diz que uma “aposta na formação prévia de
discursos e procedimentos que venham a assegurar a validade numa perspectiva universal,
para uma posterior aplicação, a partir do princípio da adequabilidade (ou teoria da
adequabilidade)”.
216
As teorias instrumentais do processo sustentam o estabelecimento de
escopos a priori, dentre os quais tem a primazia a paz social, e o escopo de
realização/concretização de direitos não pode, nem deve ser o fim essencial da jurisdição o
que, na visão de Dinamarco, seria ultrapassado. O fundamento da atividade jurisdicional,
então, seria dado por um escopo definido a priori (discursos de validade/fundamentação
independentes da aplicação) como fundamento da melhor resposta possível na generalidade
dos casos. A adequação, em uma perspectiva mais “moderna”, é direcionada à adequação
apriorística, como ficou claro em análise anterior.
Assim, ao contrário da hermenêutica, em que fundamentação (compreensão e
interpretação) e aplicação não são cindíveis, nas teorias processuais-procedimentais, a
aplicação virá após a fundamentação, com o que se substitui assim como no
procedimentalismo habermasiano – a razão prática pela razão comunicativa, o que implica
“o sacrifício do mundo prático, o sacrifício da conteudística, que somente entra em
campo depois ‘das regras do jogo estarem previamente fundamentadas’, através dos
discursos de aplicação; daí o papel contrafático dos discursos de fundamentação, que
transcendem o fático, isto é, os fatos se realizam no contexto do discurso de fala
ideal.”
217
216
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 56.
217
Ibid., p. 32.
102
Veja-se que Bedaque afirma a necessidade de a técnica adequar-se às situações
abstratamente previstas em discursos em que o fundamento é previamente dado, desvinculado
da aplicação, mundo da vida. A substancialização da relação entre direito material e processo
é abstrata (a substância é uma imagem que se faz da coisa). Essa concepção, apegada ao seu
pressuposto ideológico, reafirma a cisão ocorrida com a autonomização do processo, porque a
instrumentalidade proposta é do método à idéia. Quando Bedaque afirma que o “direito
substancial constitui elemento integrante de todo o direito processual, pois é parâmetro para
o exercício da ação e da jurisdição
218
, ao que parece, parafraseando Fazzalari, ele busca a
retomada de um vínculo, que sabe deve ser retomado, mas que não chega a recuperar em face
de que permanece reconhecendo a necessidade de adaptar o processo a situações “concretas”
que, para o jurista, são as espécies normativas cuja vontade concreta não foi atuada.
Permanece, então, distante da riqueza das situações da vida. Essa postura será marcada, em
sua obra mais recente
219
, pela seguinte afirmação: Não se tratará dos mecanismos destinados
a tornar efetivas as várias modalidades de tutela jurisdicional. Limitar-se-á ao campo da
técnica processual.”
Sua concepção de “moderna instrumentalidade” - segundo ele, um passo à frente à
instrumentalidade conhecida - impõe alterações no uso da técnica, para atribuir-lhe eticidade,
quando voltada aos escopos do processo que, para ele, é um método de trabalho
desenvolvido pelo Estado para permitir a solução dos litígios.”
220
Novamente deve ser
lembrada a lição de Ovídio A. Baptista da Silva, quando adverte sobre a concepção de
satisfatividade como composição da lide, solução dos litígios ou atuação da vontade concreta
da lei, no plano meramente normativo, sem ir aos fatos, i.e., a confusão/ equiparação entre
satisfatividade e definitividade.
221
Para tal instrumentalizão da técnica, Bedaque registra a necessidade de adoção
dos princípios da adequação
222
, da verdade jurídica objetiva, da elasticidade processual,
da efetividade, da celeridade, da economia processual, da ausência de prejuízo, da
operosidade, da instrumentalidade das formas, da fungibilidade dos meios, do
contraditório e da ampla defesa, para alcançar os valores da segurança, da efetividade,
218
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo - influência do direito material sobre o processo. São
Paulo: Malheiros, 1995. p. 56.
219
Ibid., p. 32.
220
Ibid., p. 36.
221
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil: Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de Janeiro:
Forense, 2007. v. 2. p.34.
222
BEDAQUE, op. cit., p. 62.
103
da justiça e da paz social.
223
Ou seja: inovações processuais, construções teórico-científicas
que não vão aos fatos. Tal proposta de instrumentalização da técnica para atender às
necessidades do direito material se origina do reconhecimento de que o direito à tutela
jurisdicional é direito fundamental a ser tutelado, o que incumbiria o legislador, de um lado, e
o juiz, de outro, de viabilizar o exercício do direito por meio de técnicas adequadas que
seriam corolários do direito à tutela jurisdicional efetiva e à ordem jurídica justa. Todavia,
repete-se, essa adequação permanece sendo adequação às situações abstratamente
consideradas, o que supõe sistematização e universalização do(s) sentido(s) do(s) direito(s),
numa relação cristalizada, sem necessidade de tratar da diversidade das situações da vida. A
realização dos direitos, fundamentais ou não, impõe, segundo o autor, a revisão da técnica
para adequá-la aos seus escopos, pois o processo, para Bedaque, é a técnica (método) da qual
se vale a jurisdição para alcançar o resultado de atuação da vontade concreta da lei.
Essa adequação, que é abstrata, porque não vai aos fatos, está ligada a uma
preocupação implícita com a lógica interna da ciência processual, que pode ser percebida no
trecho de Humberto Theodoro Júnior, que se transcreve:
“Quando se classificam as sentenças em declaratórias, constitutivas e condenatórias,
sempre se levava em conta o objeto (o conteúdo do ato decisório). quando se
cogitou das sentenças executivas ou mandamentais, o que se ponderou foram os
efeitos de certas sentenças. Não pode, como é evidente, uma classificação ora
lastrear-se no objeto, ora nos efeitos, sob pena de violar a comezinha regra de lógica:
toda classificação deve compreender todos os objetos do universo enfocado e deve
observar um critério para agrupar as diversas espécies classificadas.‘Pode haver,
portanto, classificação por objeto e classificação por efeitos. Não pode, todavia,
admitir-se como correta uma classificação que utiliza, para formação de alguns
grupos de elementos, o critério do conteúdo e, para outros, o dos efeitos. Isto levaria,
fatalmente, a superposições e conflitos entre as espécies irregularmente
agrupadas.”
224
No trecho colacionado, percebe-se que a classificação é remetida à exigência de
precisão conceitual, e não, à necessidade da diferenciação entre os diferentes fatos da vida que
são alegados no processo como diferentes pretensões e ações de direito material, cuja
ausência de realização espontânea dá sentido à necessidade de construção do arcabouço
processual.
223
BEDAQUE, Jo Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. o Paulo: Malheiros,
2006. p. 40, 45, 50 e 99.
224
THEODORO Júnior. Humberto. As vias de execução do código de processo civil brasileiro reformado. In:
RDCPC , n. 43, p. 54, set.-out. 2006.
104
Trata-se, primordialmente, de preocupar-se com a higidez lógica da classificação,
para, depois, catalogar nela a realidade, merecendo a passagem transcrita a crítica de Ovídio
Araújo Baptista da Silva, no sentido de que o normativismo não vai aos fatos.
225
Essa necessidade de catalogar o conteúdo do ato jurisdicional em proposições
normativas declaração, constituição e condenação presente em abalizada e majoritária
doutrina, no entanto, retira do fenômeno jurisdicional tudo o que vai aos fatos.
Compartilhando o pensamento de Theodoro Júnior, José Roberto dos Santos Bedaque
considera que de qualquer modo
“a discussão preferida por alguns processualistas nenhum resultado prático produz e
em nada contribui para o desenvolvimento da ciência processual. Luta-se por
classificações fundadas em critérios heterogêneos, de difícil compreensão para
aquele que necessita do processo sem ser, todavia, um profundo conhecedor dos
conceitos e idéias restritos a certa corrente doutrinária. E o que me parece mais
grave perde-se a oportunidade de buscar alternativas para a sua solução do grande
problema das sentenças condenatórias e sua efetivação.”
226
O mesmo se em José Carlos Barbosa Moreira que, diferentemente de Bedaque e
Theodoro Júnior, que incluem as ações de direito material executivas entre as condenatórias,
as inclui entre as modificativas, nas quais estariam como subclasses as constitutivas e a
chamada executiva, as quais se distinguiriam uma da outra por concernir aquela a direitos
potestativos, esta a direitos a uma prestação”, mas segundo ele, seriam modificativas de
estado de direito, não do estado de fato.”
227
Todos, então, estão atentos à classificação normativa dos conteúdos do ato
jurisdicional, porque o processo, como diz Carnelutti, citado por Barbosa Moreira no mesmo
trecho transcrito, é “uma ciência de nomes”, o que, ao que parece, envolve um retorno ao
pensamento inicial de Hermógenes, em sua disputa com Crátilo, em que aquele diz a
Sócrates: “[...] não sou capaz de me deixar persuadir de que a correcção dos nomes seja
outra coisa para além da convenção e do acordo.”
228
Com efeito, se a doutrina majoritária
reconhece apenas três nomes, três categorias assim classificadas declaração, constituição,
225
Por todas, as obras de SILVA, Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição jurídica
romano-canônica. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Idem. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In:
______. Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
226
BEDAQUE. José Roberto dos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 558-559.
227
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Sentença Executiva. Revista de Processo, n. 114, p. 162.
228
PLATÃO. Crátilo. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 44.
105
condenação - não é necessário encontrar nelas o seu ser. Basta o consenso em torno do que
são, o que entifica o ser e apaga a possibilidade de buscar efetiva concretização dos direitos,
pois antes vem a Ciência.
O resultado não é outro que aquele da ausência de pergunta pelo que é o direito, sua
interpretação despreocupada com o mundo dos fenômenos e seu reconhecimento como
ciência, cuja universalização é possível por força de que a consciência é dotada de
características que poderiam levar a todos aos mesmos resultados, desde que se seguisse o
método adequado. O método lógico-dedutivo, registre-se, aparece defendido como o método a
ser utilizado por Dinamarco, cujo esforço em torno de uma Teoria Geral do Processo é sinal
do apego paradigmático do jurista à fase cientificista do processo. Observe-se que a
adequação por ele proposta é operada em um iter lógico-axiológico em que cada
“direito, em concreto (ou cada situação em que a existência do direito é negada), é
sempre resultante da acomodação de uma concreta situação de fato nas hipóteses
oferecidas pelo ordenamento jurídico: mediante esse enquadramento e o trabalho de
investigação do significado dos preceitos abstratos segundo os valores, que, no
tempo presente, legitimam a disposição, chega-se à vontade concreta da lei”
229
.
Essa metodologia de adequação dos fatos na moldura abstrata está descrita em Hans
Kelsen: “Justamente por isso, a obtenção da norma individual no processo de aplicação da
lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma
função voluntária.”
230
Revela isso que o objetivo maior do jurista é permanecer ao abrigo de
uma ciência tanto mais pura quanto mais cientificamente segura, um sonho como fora o sonho
kelseniano de fazer do normativismo uma ciência pura. O apego ao método, na teoria da
instrumentalidade, inclusive na moderna instrumentalidade proposta por Bedaque, reduz o
processo a método de trabalho,
231
que deve ser seguro para que seja possível revelar o
verdadeiro sentido da forma e da técnica processual”.
232
O apego ao método como forma de levar a resultados seguros e confiáveis e de manter
o arcabouço da ciência está fundado na dúvida sobre tudo o que é concreto, sobre tudo o que é
fato e que não seja moldado de acordo com a inspiração idealizada da ciência matemática que
sobreviveu à dúvida metafísica cartesiana. Consoante se nos escritos do próprio Descartes,
229
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 48.
230
KELSEN, Hans, Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 393.
231
BEDAQUE, Jo Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p.
77.
232
Ibid., p. 90.
106
havendo um método para guiar o bom-senso, o porque não considerar satisfatórios os
seus resultados. Não há, a partir dessa concepção que molda o modo de pensar metafísico da
modernidade, como não considerar satisfatórios os resultados do processo, ainda que eles
nada satisfaçam e em nada resultem porque a tutela foi outorgada in abstrato e a vida das
partes, sua situação concreta, em nada se alterou. A razão depende do método a guiá-la,
porque, segundo Descartes, não é verossímil
“que todos se enganem; ao contrário, isso mostra que o poder de bem julgar e de
distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente que se chama o bom senso ou a
razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, assim, a diversidade de nossas
opiniões não resulta de serem umas mais razoáveis do que outras, mas somente de
conduzirmos nossos pensamentos por diversas vias, e de não considerarmos as
mesmas cousas. Porque não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem.”
233
A communis opinium, então, possível a partir dessa visão, e agora por ela
fundamentada em sua legitimidade, passa a ditar os rumos do Direito, em que predomina o
que Ls Alberto Warat denomina de senso comum teórico dos juristas, para o qual o direito
abstrato, desligado, como dito, do fenômeno conferirá a validade universal e a certeza,
necessárias a todo empreendimento científico. Esses fatores, aliados ao sujeito individualista e
irresponsável da modernidade, são o espelho do modo como o direito é compreendido e fonte
de sua inefetividade no campo pesquisado: o processo em sua ligação com o direito material.
3.2.4 Uma reflexão em direção à compreensão autêntica da vinculação do intérprete à
Constituição
A afirmação de instrumentalidade, em que o instrumento não se vincula ao objeto
sobre o qual deve atuar, e se interpõe entre ele e o sujeito que deve compreendê-lo e atuá-lo,
impede que os juristas encontrem a efetividade que procuram e impede o acontecer
“constituinte” da Constituição.
Importante gizar que onde a Constituição não condiciona, não cabe ao intérprete
condicionar. Sendo assim , as condições da ação, herança liebmaniana, sustentadas pelos
instrumentalistas, como Dinamarco e Bedaque, não poderiam ser consideradas válidas. Diz-
233
DESCARTES, René. Discurso do Método. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. p. 41-42.
107
se, não poderiam, porque não se trata de condições da “ação” processual e, por isso, abstrata e
incondicionada, mas porque se trata de condições da ação de direito material, essa concreta,
apenas alegada e, por vezes, realizada por meio do processo. A distinção entre “ação” e ação
e, por isso, não apenas a afirmação da ação de direito material, mas também a defesa da
abstração da “ação” – e sua pressuposta autonomia – por meio da não-aceitação de seu
condicionamento, é imperiosa, pois, assim, será dada ao processo a investigação sobre a
alegada ação de direito material, por intermédio do processo, em todos os casos. Processando-
se toda “ação” que ingressar em juízo, poder-se-á garantir efetiva tutela a todas as ações
alegadas no processo, realizando as pretensões de direito material não-realizadas
espontaneamente, exigindo a realização prática das pretensões relativas a direitos subjetivos
ou potestativos, individuais homogêneos, coletivos ou difusos, e dando curso a elas. Não
importa, todas requerem efetivação, e sua efetivação não pode ser a mera construção abstrata
da solução para o caso. de ser a afetiva providência que exige o direito material por meio
de sua força dinâmica, a ação de direito material.
Negar, por um lado, a ação significa retirar a força do direito material, como tantas
vezes alertado no curso do presente estudo; negar, por outro, abstração à “ação”, impondo-lhe
condições que não são suas, mas da ação de direito material, importa impedir o acesso à
efetiva prestação jurisdicional de inúmeras causas que, em face da garantia de inafastabilidade
da jurisdição, devem ser processadas a fim de viabilizar o julgamento sobre ações que têm de
ser atuadas para concretização dos direitos. Duas ordens de direitos fundamentais inalienáveis
e inabolíveis são consideradas no que se sustenta aqui: o amplo acesso de todos ao judiciário,
como garantia de cidadania e o direito à realização do direito pelo Estado, na exata medida em
que essa realização foi por ele vedada ao particular, e a exigência de atuação da ação de
direito material em sua concretude fática, que deve ser elevada, o mais possível, à identidade
com aquela que teria sido atuada espontaneamente.
Ambas ação e “ação” - acabam sendo negadas pela estrutura paradigmática em que
se inserem as correntes instrumentalistas e todas as correntes processuais-procedimentais e
substancialistas ligadas ao esquema S-O. É o que se faz quando se classifica uma única coisa,
dita abstrata, a partir de noções eminentemente concretas. Nega-se a abstração da ação”, ao
mesmo tempo em que a concretude é elevada ao plano conceitual, porque se nega, também, o
mundo prático, que ingressaria no processo pela ação. Ou seja, as características fundamentais
da ação e da “ação” são negligenciadas. Como foi dito antes, a classificação das sentenças (de
procedência!) é apenas um reflexo da classificação dos fatos jurídicos lato sensu, cuja
construção, no Brasil, é devida a Pontes de Miranda. Ao falar, portanto, em classificar
108
sentenças (já no campo da jurisdição!), o que o processualista faz é buscar características dos
fatos jurídicos, no que a dogmática chamaria de plano da existência, características que os
acompanham ao chamado plano da eficácia, em que se encontram os direitos, pretensões e
ações (de direito material!), características que deveriam ser consideradas no processo, como
necessárias à real, e não abstrata, efetividade dos direitos materiais que não se realizaram
espontaneamente, e não-transportadas a ele, como se o processo, técnica, pudesse,
abstratamente, catalogar o mundo da vida em fórmulas procedimentais, construídas pela razão
auto-suficiente, que, bem ordenada, sempre chega à verdade: o fruto nefasto da filosofia da
consciência, que tirou o homem do mundo e o devolveu, por meio de suas ciências, ao mundo
platônico e belo das idéias. Por outro lado, assim catalogada, a “ação” perde sua abstração e
“ganha” condições concretas, positivadas, no sistema brasileiro, no art. 267 do Código de
Processo Civil
234
, o que acaba impedindo o real acesso universal à jurisdição e deferindo-a
apenas àqueles que têm direito.
Na questão relacionada ao procedimento, a velha dicotomia liberdade das formas e
tipicidade das formas não encontra solução adequada pelo princípio da instrumentalidade,
porque a proposta instrumental reconhece a impossibilidade de o processo restar atrelado a
formas eminentemente típicas e, ao mesmo tempo, atrela-o à mera legalidade (que não se
confunde com o Direito) como fiadora dos objetivos a serem cumpridos pelo processo e ao
princípio do contraditório e da participação das partes. Essa postura é necessária quando o
processo se mantém desvinculado do direito material porque não ponto de contato. Dizer-
se que um é instrumento do outro, sem contato algum que não seja a lei in abstrato é,
realmente, temerário, porque permite que a técnica seja manipulada para resultar na expressão
de um estado pretensamente neutro. É sobre essa perspectiva de sentido, majoritária na
doutrina do processo civil, que Calamandrei adverte, ao comentar o novo Código de Processo
Civil Italiano:
“Sobre la naturaleza del ofício del juez (y también, de una manera más general, de
los juristas), al que el nuevo código pide que sea ‘el austero asertor de una fuerte y
más plena legalidad’, la relación ministerial contiene expresiones que no podrián ser
más claras y enérgicas (n.8); y al principio de la legalidad ha querido permanecer
fiel el nuevo código también en el campo específico del derecho procesal (relación,
n. 16), en el cual se ha rechazado netamente la tendencia, que aflora en las
legislaciones de otros países, a confiar al juez el poder de fijar libremente en cada
caso, fuera de todo dique de ley, el procedimiento que estime corresponda mejor a
234
Art. 267 Extingue-se o processo, sem resolução do mérito: [...] VI quando não concorrer qualquer das
condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.
109
las exigencias concretas de las controversias a decidir. Si esta ilimitada libertad del
juez fuese admitida, la función práctica de la ciencia procesal sería en gran parte
anulada; como pienso que debería ocurrir en un país en el que se hiciese general
aquella disposición que al principio de la guerra ha sido puesta en vigor en Alemania
por los Amtsgerichte, a los cuales se les ha concedido el poder de determinar
discrecionalmente caso por caso el proprio procedimiento.”
235
Ora, onde o vínculo entre direito material e processo existe concretamente onde a
ação de direito material é reconhecida –, esse temor seria desnecessário, porque não somente
as leis do processo seriam elementos para o regramento do caminho procedimental. A
ausência da ação de direito material no modo de pensar dos juristas e aplicadores permite que
o procedimento seja estabelecido in abstrato, para tutelas jurisdicionais também disciplinadas
in abstrato, i.e., adequadas aos direitos positivados, mas sem a realidade concreta dos fatos e
sua dinâmica. Adequação abstrata defendida por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, ao dizer:
“Deve-se atender, essencialmente, aos princípios da efetividade e da segurança (este
derivado do próprio Estado de Direito e representado pelo conceito de ‘devido
processo legal’), ambos com matriz constitucional, e ainda à situação jurídica
substancial afirmada. Esses princípios informadores é que determinam as espécies
possíveis de tutela jurisdicional in abstrato.”
236
Em uma compreensão hermenêutica da ação de direito material, essa também irradia
seus efeitos para a compreensão do procedimento adequado, todavia, ao direito material in
concreto (sua dimensão dinâmica: ação de direito material), porque compreensão-
interpreteção-aplicação se dão em um único momento. Não compreensão sem fatos. Essa
concepção, longe de malferir o texto das leis e a disciplina constitucional, os concretiza, ao
permitir que o juiz, libertado da tipicidade abstrata das formas, possa amoldar o procedimento
- segundo as necessidades que o litígio e os fatos que não congelam com a propositura da
ação, exigem concretizando direitos por meio da atuação real no mundo prático. Nem
tipicidade de formas, pois, tampouco liberdade ao juiz para livrar-se delas sem parâmetros. O
que se propõe é um procedimento que, disciplinado na técnica processual, seja permeável às
exigências do caso concreto, e que, por isso, e apenas por isso, pode dizer que age de acordo
com as exigências democráticas de um direito que não é refém dos técnicos e que poderá
235
CALAMANDREI, Piero. Los estudios de derecho procesal en Italia. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas
Europa-America, 1959. p. 100-101.
236
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL. Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 51.
110
realizar-se, realmente, sem mudança em sua essência oriunda da necessidade científica de os
juristas do processo manterem o seu campo de poder, entendido esse como o conjunto de
“relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um
quantum suficiente de força social ou de capital de modo a que estes tenham a
possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem
uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do
poder [...]”.
237
Nesse contexto, aparece a essencialidade da questão da fundamentação quando se tem
em mente que a técnica, representada pela “ação” abstrata, após o desaparecimento da ação de
direito material, está sujeita às mutações ilegítimas do sistema político, e ao retrocesso social.
Não reconhecer a ação de direito material, afirmando um nculo meramente abstrato entre o
direito material e sua técnica de efetivação, permite que se desconheça a força impositiva que
advém do reconhecimento de direitos pela Constituição e pelo ordenamento jurídico como um
todo, fazendo depender a eficácia dos direitos materiais, fundamentais, ou não, e de todo o
ordenamento jurídico, da realidade cambiante de posições políticas, inclusive ilegítimas,
deixando, nesse caso, a sociedade e o próprio Judiciário sem alternativas diante da crise,
que permite a construção de instrumentos meramente abstratos para defesa dos direitos,
contentando-se com uma aparência de efetividade do processo. Essa aparência de efetividade
denuncia a presença de um modo-de-fazer direito próprio do Estado Neutro, que não se
compromete com valores, justiça ou verdade, ao buscar a segurança por meio da lei, a qual é
reduzido o direito. Lei e Direito, equiparados, passam a ser sinônimos de verdade e justiça,
em que as leis são “as regras do justo e do injusto”,
238
independentemente de seu conteúdo.
É preciso, então, reconhecer que um
“símile Stato técnico-neutrale puó essere tanto tolerante quanto intollerante; in
entrambi i casi resta neutrale allo stesso modo. Il suo valore, la sua veritá e la sua
giustizia sono assorbite dalla decisione del comando legale; l’introduzione de quelle
idee nell’argomentazione giuridica creerebbe soltanto nuovo conflitto e nuova
insicurezza.”
239
237
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 28-29.
238
Thomas Hobbes é citado por SILVA. Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição
jurídica romano-canônica. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 95
239
Carl Schmidt, neste trecho, é citado por SILVA, Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na
tradição jurídica romano-canônica. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 96.
111
Esse Estado Neutro, descompromissado com a realidade, traduz a necessidade de o
processo, como técnica, permanecer neutro. Para que o processo se mantenha neutro, isto é,
realizando apenas os fins que não são estranhos à sua própria estrutura, ditados pelo Estado do
lasse faire, que, no horizonte brasileiro, é o que representa a estrutura do Código de Processo
Civil, ele não pode ser invadido pela realidade. Nesse contexto, a ação de direito material,
como expressão dinâmica e cambiante de um direito material, que é levado pelos influxos do
que acontece no mundo, que não foi realizado e está em constante mutação pelos diferentes
reflexos dos acontecimentos atos ou omissões dos envolvidos, modificações no cenário
econômico, político, social, cultural –, deve ser negada pela doutrina que não compreendeu,
ainda, o poder transformador de uma nova concepção do sentido do direito e de seu
documento fundante: a Constituição em um Estado Social e Democrático de Direito. Quando
a doutrina reconhece a manutenção ou asseguração da paz social como escopo fundamental
do processo, o que faz a teoria da instrumentalidade, ela pressupõe duas ordens de idéias: de
um lado, que a paz social exista, possa ser mantida ou assegurada pela simples solução
normativa da controvérsia (sem satisfação real dos direitos, porque não melhor solução
possível para as partes); de outro, que a Constituição, neste Estado Democrático de Direito,
especificamente, o Brasil, não seja transformadora de mundo (porque satisfazer
normativamente não transforma mundo). Essa concepção remete ao Estado-Neutro
Hobbesiano, em que a Constituição transforma-se, assim, em um território inóspito (espécie
de latifúndio improdutivo), pela falta de uma pré-compreensão adequada acerca de seu papel
no interior do novo paradigma do Estado Democrático de Direito.”
240
Permanecem, por isso, em meio a uma concepção de Estado, eminentemente liberal,
que não conhece valores que não os da neutralidade que intensifica a tendência humana à
segurança e estabilidade - porque o impulso de retirar-se da complexidade eivada de riscos
para o abrigo da uniformidade é universal; o que difere são os modos de agir a partir desse
impulso [...].”
241
- que não são mais possíveis nessa quadra da história, a era da modernidade
líquida.
Esse impulso não admite intromissão da cambiante realidade do direito material em
ação. Isso exige a negação da ação de direito material e da capacidade de transformação social
por meio do processo, cuja importância se torna central no estágio de afirmação democrática.
A prevalência de um Estado pretensamente neutro, em que não visão transformadora da
240
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 18.
241
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 206.
112
realidade, transmuta o processo em uma técnica que é distanciada do direito material por sua
própria necessidade de construir meios de atuação jurisdicional seguros e, por isso, estáveis.
Foi dito por Micheli que
“y el legislador puede de muchos modos, como lo demuenstra también la reciente
esperiencia de la Corte Constitucional, limitar o suprimir los derechos de la defensa
del ciudadano, violar un precepto constitucional, cuya actualidad esta precisamente
demostrada por las actualmente frecuentes hipótesis en que el ciudadano se ha
sentido disminuido precisamente denunciando la ilegitimidad de ellas ante la
corte.”
242
Com efeito, o legislador, seja ele constituinte ou infraconstitucional, não pode fazer
isso, mas invariavelmente o faz, deixando, sem solução efetiva, inúmeros casos levados à
apreciação do Poder Judiciário. Por que o faz? É precisamente esse, segundo se entende, o
âmago da questão. Se a lei é a medida do justo e do injusto, o vínculo entre direito material e
processo deve se dar apenas no âmbito das idéias, prevendo o legislador hipóteses abstratas de
processo para hipóteses também abstratas de direito, consoante ressaltou Micheli, quando
disse que mediante el ejercício, en el proceso, del poder de acción, el sujeto ‘hace valer’,
afirma ante el juez uma pretensión, respecto de la cual pide una forma, un tipo de tutela
jurídica, prevista (en abstrato) por la ley.
243
. Se esse é o elo de ligação, então, a adequação
entre o processo e o direito material será sempre irrecusável, e não haverá problemas na
efetividade da jurisdição que não passem, exclusivamente, pela melhoria do sistema
processual, visto, sempre, abstratamente. Essa visão é compartilhada pelas correntes
instrumentalistas, em suas várias proposições, o que permite ver nelas um sempre renovado
retorno à afirmação da autonomia do processo em relação ao direito material e um renovado
contentamento com a possibilidade de melhorar as aparências de efetividade.
É claro que essas insuficiências são sentidas, inclusive, pelos doutrinadores que
professam a inexistência da ação de direito material. Foi isso que levou Micheli, onze anos
mais tarde, a dizer que todas as tentativas de catalogar las acciones humanas, de
reconducirlas a módulos racionales, se agotan frente a la infinita variedad de estas
242
MICHELI, Gian Antonio. La unidad del ordenamiento y el proceso civil. In: ______. Estudios de derecho
procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1970. p. 318.
243
MICHELI, Gian Antonio. Derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Eurpora-América,
1959. v. 1. p. 35-36.
113
acciones”, mantendo, paradoxalmente, sua opinião inicial sobre a doutrina da ação.
244
Isso
porque os problemas do processo em sua relação com o direito material são atribuídos à visão
privatística do processo que seriam atribuídas às tentativas de reduzir o processo a uma
manifestação do direito subjetivo e privado, aos quais o direito material é reduzido, nessa
visão, o que remete à homogeneidade de pensamento.
3.3 DE DIFERENTES HORIZONTES DE SENTIDO E DA IMPOSSIBILIDADE DE
RECONSTRUÇÃO OU “CONSERTO” DA TRADIÇÃO
O senso comum teórico dita uma forma de pensamento homogêneo, que leva o
processo a ser tematizado e aplicado sem que o sentido do ser do direito material nele alegado
seja parâmetro para o desenvolvimento do processo. Esse é tematizado e alterado
legislativamente, em busca de maior efetividade, por medidas que, ao invés de aproximá-lo do
direito material, deixando que este seja a medida e o parâmetro, distancia-o ainda mais. As
considerações que se seguem visam a demonstrar como isso se dá, de modo a demonstrar que
os diferentes horizontes de sentido de que partem as visões aprisionadas na metafísica, que
caracteriza a era da técnica, não têm possibilidade de fundir horizontes com a visão que é
proposta aqui. Por isso, não possibilidade de conserto da tradição, sendo necessário um
rompimento com o paradigma dominante para que uma nova possibilidade de sentido
acontença. Isso, todavia, pode ser feito ao ser amplamente desvelada a força do paradigma
dominante e como ele produz o resultado em que a técnica pode mudar a essência do ser, o
que encaminha a análise da relação entre direito material e processo sob a ótica da exceção.
3.3.1 Na inovação conceitual criativa, a homogeneidade de pensamento no seio do
paradigma e a aparência de efetividade
Dentre as visões instrumentais, aparecem as formulações como as da chamada visão
alternativa do Direito, cujo pensamento retoma, também, a afirmação de insuficiência da
244
MICHELI, Gian Antonio. La unidad del ordenamiento y el proceso civil. In: ______. Estudios de derecho
procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1970. p. 320.
114
concepção do processo como mero instrumento do direito substancial
245
, propondo que, ao
assimilar mais ampla e profundamente sua função pública no seio do Estado
contemporâneo, o processo estende seu escopo para o social e o político, em prevalência
sobre o jurídico. Enfim, busca justiça sob a égide da efetividade do processo.”
246
Nesse momento, é latente a pergunta de como se dá efetividade ao processo tomando o
direito como realidade jurídica. Não é adequada a crítica ao silogismo formal da teoria da
subsunção se a realidade continua sendo fatiada e analisada em etapas de interpretação:
primeiro observo o escopo social, depois o político, depois o jurídico, prevalecendo os dois
primeiros em relação ao último! Conceber diferentes escopos, como se a compreensão tivesse
um roteiro, método, é não se distanciar dos erros do positivismo-normativista. Apenas se
inverte o objetivo (ou escopo), abstratamente, considerando ser essa a solução para alcançar
uma visão transformadora do direito. Inverter a ordem do método é permanecer nele, talvez,
agora, libertados os intérpretes das amarras da visão estritamente jurídica e legalista do
fenômeno, para abandonar-se às suas próprias idéias do que seja o social e o político e do que
seria a tarefa da jurisdição.
É evidente que os escopos ditos sociais e políticos se integram à compreensão da
realização do direito material a partir de uma visão transformadora do direito, mas é por meio
de sua efetiva realização, considerando os valores eleitos pela Constituição, que norteia a
compreensão do direito material, que se realizam todos aqueles escopos que devem, sim, ser
reconduzidos a uma compreensão como aplicação, pois não compreensão e interpretação
sem um caso, sem fato, sem aplicatio. Em direção a uma visão transformadora e autêntica,
i.e., no momento de significação do ser desse ente que é o direito, torna-se central a idéia da
força impositiva do direito material, que se transforma em força nenhuma com a teimosa e
inautêntica afirmação de que visualizar a jurisdição por meio da ação de direito material é
sinal de uma visão privatística do processo civil.
A partir do pressuposto teórico vigente, de homogeneidade de posições e efetividade
normativo-processual, i.e., a partir do núcleo do paradigma dominante, inúmeras mudanças
legislativas são propostas, algumas com evidente poder de quebrar a ordinariedade, como os
artigos 273 e 461 do Código em vigor. Todavia, tais soluções surgem no seio do paradigma
em crise, na esperança de que tais reformas tenham o condão de fazê-la desaparecer. Ocorre
que o modelo de pensar e fazer Direito no Brasil, o habitus que se impõe por meio do
paradigma dominante, determina que se veja o novo com os olhos do velho.
245
PORTANOVA, Rui. Motivões ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 106.
246
Ibid., p. 101.
115
Nesse contexto, indubitavelmente, a idéia predominante é a de que só pode haver paz
social por meio de segurança jurídica, essa, por sua vez, umbilicalmente, segundo o
paradigma dominante, ligada ao predomínio do método e à consagração da certeza no seio das
relações jurídicas. Por isso, muito embora o reconhecimento de direitos materiais, que exigem
diferente abordagem material e tratamento processual, a jurisdição permanece atada aos
grilhões do direito individual e pessoalizado, do processo ordinarizado, da dificuldade, senão
impossibilidade, de reconhecer e aplicar mecanismos que visem à quebra da ordinariedade ou
que se fundamentem em verossimilhança ou probabilidade, em cognição sumária, enfim, em
tutela sumária satisfativa e autônoma. Em suma, em que haja modificação do mundo dos
fatos, satisfação, império, antes da plenária cognição, e mesmo depois dela, de modo a que
seja viabilizada a realização das pretensões, no plano social, contra a vontade da outra parte,
sem que esse resultado seja condicionado ou inviabilizado pelas regras de processo e pela
ideologia que as domina.
Acerca disso, é imperioso relatar o que se tornou evidente com a alteração legislativa
ocorrida por meio da Lei nº 11.232/05, que introduziu o art. 475-J, que pretensamente
suprime a dicotomia conhecimento-execução, subtraindo a necessidade de citação entre a
sentença e o início dos atos executórios. Como era evidente, já que a dicotomia não se
encontrava apenas no Código de Processo Civil, mas no pensamento dominante, que se
reproduz décadas, os operadores do Direito não conseguem trabalhar com a dita alteração,
e o resultado prático permaneceu sendo, na grande maioria dos casos, o mesmo verificado
após a entrada em vigor do art. 461 do Código de Processo Civil, que disciplina a execução,
provisória ou definitiva, das obrigações de fazer. Nada de realmente relevante mudou.
Permanece havendo necessidade de petição inicial executória, que, todavia, mudou de nome
(requerimento). Continuam sendo admitidos e processados embargos, que também mudaram
de nome (impugnação), com o mesmo espírito de outrora, i.é, o olhar do operador do Direito
sobre os referidos institutos, na hora de aplicá-los, verdadeiro elemento “emperrador” do
processo e de seu andamento, bem como da realização de seus escopos, não foi alterado. O
devedor/executado continua agindo como se a sentença não contivesse uma ordem, mas fosse
mera declaração, como se não contivesse império, sendo apenas uma formulação da vontade
concreta da Lei, apta a produzir segurança jurídica por meio da certeza ínsita ao conceito de
coisa julgada. A dicotomia persiste, embora a doutrina possa afirmar que a dogmática superou
116
as objeções que lhe foram feitas, no Brasil, especialmente pela obra de Ovídio Araújo
Baptista da Silva
247
.
Alterações periféricas - que não efetuam a quebra da ordinariedade no intuito velado
ou não-percebido de fazer crer que as coisas estão mudando, vão evoluindo, quando tudo se
encontra parado e envolto pela poeira de uma terra devastada que, ainda assim, acredita que
tudo está em perfeita ordem
248
- têm sido recorrentes no Processo Civil Brasileiro dos últimos
anos. É ilustrativo invocar a tentativa de limitação na tramitação de processos no Poder
Judiciário Brasileiro, com a criação de óbices, primeiramente, à tramitação de Recursos nos
Tribunais Superiores (artigo 38 da Lei 8.038/90), após, nos Tribunais de 2
a
instância (art.
557 do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei 9.756/98) e, por fim, a
tentativa de limitação na tramitação de ações que podem ser repudiadas, ab initio, pelos juízes
de 1
o
grau (art. 285-A, introduzido no Código de Processo Civil pela 11.277/06), tudo
mediante a invocação de súmulas e verbetes de jurisprudência dominantes nos Tribunais, em
evidente recurso à metodologia universalizante, que atende aos anseios de reprodução de
sentidos da ideologia da modernidade, e impede a compreensão do caso e do fenômeno
jurisdicional como produtor do sentido dos objetivos do Estado Democrático de Direito.
249
A sumariedade da cognição
250
, como decorrência do conteúdo do direito, da pretensão
e da ação de direito material, defendida por Ovídio A. Baptista da Silva, reiteradamente, em
suas obras, tem sido objeto de profunda resistência por parte da doutrina. Vem sendo
paulatinamente admitida, por meio de projetos de reforma do Código de Processo Civil, como
construções processuais inovadoras, nunca como decorrência do modo-de-ser do direito
material. Dessa forma, sua introdução no seio do paradigma não deriva do reconhecimento da
necessidade de o processo atender às características do direito material e, por isso, o modo de
operar essa inovação permanecerá atrelado ao habitus do senso comum teórico e tenderá a ser
operada conceitualmente, sem vinculação com os fatos que fazem com que determinada
“ação” deva ser desenvolvida de acordo com as necessidades da ação que foi alegada no
processo. Como é sabido, necessidades reais não afetam o normativismo. É relevante notar
247
O texto remete a todas as obras do autor citadas nas referências como nas obras consultadas.
248
Das quais os exemplos mais angustiantes são as alterações na sistemática recursal e a criação das súmulas
vinculantes e impeditivas que, a pretexto de “melhorara disciplina processual e, particularmente, dos recursos,
criam, cada vez, mais óbices ao acontecer do direito material no processo.
249
Exemplos os mais variados poderiam ser citados, mas, a síntese referida, apresentada em aula do curso
Mestrado da UNISINOS, na disciplina de Hermenêutica Jurídica - 2006/2 pelo Prof. Lenio Luiz Streck e por
ele tratada em sua obra, ilustra o que tem sido a realidade da dogmática jurídica no campo do Processo Civil.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2006.
250
Que não se confunde com a sumariedade procedimental construída pelo processo.
117
que o senso comum teórico e seu respectivo campo são tão fechados em suas representações
de sentido que - mesmo com a defesa feita pelo doutrinador
251
, no Brasil, com fundamento na
doutrina de Sérgio Chiarloni, de propostas cujo embasamento são o contraditório eventual ou
postificado, a sumarização das demandas e o direito substancial à cautela - a recente proposta
legislativa a respeito do tema da sumarização da demanda e transformação do contraditório
ordinário em eventual nas antecipações de tutela, chamada proposta de estabilização da
tutela antecipada”, é atribuída por José Roberto dos Santos Bedaque e pela Comissão
constituída pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual a Kazuo Watanabe, em obra desse
autor indicada e citada na justificativa do projeto, de 1999.
252
A sumarização das demandas,
no entanto, como adverte Ovídio A. Baptista da Silva, não é nenhuma novidade no sistema
processual brasileiro, para quem observa o conceito de título executivo (o autor refere-se ao
título executivo extrajudicial)
o grande motor da civilização industrial -, vendo que sua construção sustentou-se no
princípio do contraditório eventual, [...] De modo que o direito moderno que
produziu a genial criação do título executivo, valendo-se da verossimilhança e da
inversão do contraditório, através do qual o estado está disposto a conceder tutela a
quem pode não ter direito, recusa-se a empregar a mesma técnica para outras
situações que não seja diretamente os interesses dos comerciantes e empresários em
geral.”
253
Dessa forma, duas ordens de preocupações se apresentam: 1. o fato de que a proposta
parte do senso comum teórico dominante e está destinada a atuar por meio de agentes
inseridos nesse mesmo paradigma, o que motiva o temor de que a modificação poderá não ter
as repercussões que deveria, aparecendo apenas como um apêndice ao mecanismo estruturado
do processo e padecendo de real efetividade na vida das pessoas que necessitam do processo;
2. o reconhecimento de que, em prol das classes dominantes, a técnica é construída a partir da
realidade social. É imperioso notar que a executoriedade do título cambial foi construída pelo
processo não porque haveria necessidade de assegurar a paz social, mas para atender à
realização concreta dos interesses das classes em favor de quem, em grande volume, os
mencionados títulos são emitidos: as classes dominantes.
251
SILVA, Ovidio A Baptista da. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. v. 3. p. 61.
252
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros,
2006. p. 84.
253
SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil: Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v. 2. p. 31.
118
3.3.2 De como a técnica moderna conduz à prevalência da exceção e da necessidade da
viravolta na compreensão da relação entre direito material e processo
A afirmação da ação de direito material, insiste-se, não reduz o direito material ao
direito subjetivo ou ao direito privado, como também não reduz a ão de direito material à
uma ação vista apenas no plano subjetivo-privado. Direito material tem feição ampla,
abrangendo direitos subjetivos, reais e pessoais, direitos potestativos, direitos de natureza
privada ou pública, fundamentais ou não. Também não reduz o processo a uma face ou
vertente do direito privado ou, ainda, material. Fá-lo, apenas, vincular-se, em sua diferença,
como técnica, àquilo que deve realizar, o direito material.
Cumpre observar, no entanto, que, assim como não é possível reduzir o processo ao
direito material, não é possível reduzir esse àquele. A visão que refuta a ação de direito
material, no entanto, produz exatamente isso, cujo fenômeno é tratado, aqui, como permissão
à técnica de alterar a essência do ser do direito material. Contra a ação de direito material,
chamada por ele de ação-direito, Micheli afirma a esfera processual e os atos que só tem razão
de ser no próprio processo, reduzindo o direito material ao processo (em adoção de postura
monista que ele pretende refutar). Diz ele:
“Algo más arriba he recordado que, contra el fundamento de la acción-derecho está
todo el código de rito que disciplina y regula, desde la demanda, a la sentencia, una
serie de actos provenientes también de las partes que tienen su razõn de ser en el
proceso; actos por conseguiente, que en este último encuentran su justificación
estructural y funcional, independientemente de las situaciones de derecho sustancial
que, a través del proceso civil, son hechas valer.
254
A técnica, concebida a partir da noção de que a “ação” – abstrata, que substituiu a ação
concreta, que é a ação de direito material - norteia o processo que se desenvolve, como
técnica, em procedimento, apenas instrumentalizando o direito abstrato positivado na lei, é um
erro. Esse erro traz consigo o perigo. Perigo na defesa de escopos a serem realizados no
campo normativo, porque seu sentido não é direcionado ao caso concreto, uma vez que
realizar o direito no caso concreto não seria nem o primeiro, nem o mais importante escopo.
Dinamarco sustenta que, neste quadrante da história do direito, não teria sequer sentido
254
MICHELI, Gian Antonio. Jurisdicción y acción: premisas críticas al estudio de la accn en el proceso civil. In:
______. Estudios de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1970. p. 172.
119
cogitar da tutela dos direitos como escopo do processo, expressão de uma visão superada do
ordenamento jurídico.”
255
Os reais escopos, então, seriam: eliminar conflitos por critérios
justos, educar para o exercício dos direitos, regular o exercício do poder mediante critérios
que incluam a participação dos interessados. Esses têm sido os escopos perseguidos pelo
processo durante as últimas décadas e as agruras com que lida o processo civil só têm
aumentado, justamente porque a ciência do Direito Processual considera intromissão indevida
à sua autonomia a pretensão de o Direito Material pretender sua realização como escopo
principal do processo.
Para as concepções inseridas nesse mesmo horizonte de sentido, em que a pacificação
social é o escopo primeiro do processo, porque a tutela jurisdicional, despida de
imutabilidade (e por conseqüência da indiscutibilidade) conferida pela coisa julgada ao
comando sentencial” seria mera “flatus vocis
256
, a efetividade não parte do mundo e não se
pode admitir a idéia de uma norma de conduta que contenha dentro de si o mecanismo de
sua própria realização judicial, acaso violada [...]
257
. Por esse motivo, não se poderia
admitir a existência da ação de direito material, cujo conteúdo é limitado, nessa visão, à mera
norma de conduta, o que, efetivamente, lhe reduz o significado e, em tese, justificaria sua
recusa.
A viravolta na compreensão da relação entre direito material e processo, que é objeto
das presentes reflexões, pretende transpor a concepção meramente apofântica da ação de
direito material, reduzida a “slogan, uma simples idéia platônica
258
, o que leva à sua
negação, para recuperar sua dimensão de “sol” do sistema, preferindo a forma como Pontes de
Miranda a nomina. Parte-se, então, desse “sol” projetando, diante do perigo já concretizado de
mau uso da técnica, uma viravolta na dimensão da compreensão, uma autêntica revolução
copernicana: esse sol o é mais o centro de todo o sistema, mas a fonte de irradiação de
efeitos do direito material para o processo, o que permite a esse, em sua inicial e essencial
neutralidade como técnica, ser iluminado precisamente pelos efeitos que irradiam do retorno
ao mundo prático, em que o ordenamento jurídico é considerado, sempre, a partir de uma
255
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 216.
256
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na
perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 317.
257
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 50.
258
OLIVEIRA, op. cit., 296.
120
visão constitucional transformadora de mundo, de que a Constituição é o centro do sistema,
como documento político, social, jurídico, filosófico, que une esses elementos indissociáveis
na compreensão hermenêutica.
O processo não pode servir como espaço de dominação. Deve servir como espaço de
transformação social em que ao direito material seja dado realizar-se, e não transformação
maior do que essa em um universo onde não se tem acesso ao sentido, mas apenas às coisas
em sua dimensão presentificada.
Uma concepção hermenêutica, em que a Constituição, como parte da pré-compreensão
do intérprete, constitui sentidos, permite que o processo, como técnica, seja iluminado,
justamente, por seus valores, por meio desse “sol” do sistema a ação de direito material
(sentido do ser do direito) que recupera o mundo prático e une fato e direito, em sua
diferença, que é ontológica. Ao processo será possível, então, seguir sua vocação para atender
aos valores e princípios segundo o caso concreto, sem ter uma postura valorativa em si,
compartimentada em escopos dados a priori, de forma genérica paz social, por exemplo - a
serem somados uma ao outro como entes distintos, cuja significação poderia ser até
conflitante. Essa concepção compartimentada da tradição permite uma visão distorcida do
Direito como um todo e permite o reconhecimento de que o processo poderia alterar o modo
de ser do direito material, entificando-o em fórmulas abstratas e realizando-o, assim, apenas
normativamente, o que atende ao escopo de assegurar a paz social, segundo o que acredita a
doutrina majoritária, mesmo sem mudar a vida dos envolvidos e, especialmente, daquele que
reclama a satisfação de seu direito.
O sentido não é um dado. Ele é construído a partir da Constituição, numa compreensão
hermenêutica que constrói o significado do ser do direito material, sem reduzi-lo a mero ente,
cujo sentido estaria aprisionado no texto ou cujo sentido poderia ser atribuído arbitrariamente
pelo processo, o que permitiria ao processo fugir à sua missão, ligando-se de maneira
meramente abstrata com o direito material.
É imprescindível reconhecer, com Ovídio Araújo Baptista da Silva que o direito
subjetivo, isoladamente, jamais me dará ação.
259
. Sendo assim, a negação da existência da
ação de direito material tem pressupostos ideológicos ligados à manutenção do racionalismo,
pois, negando a existência de ações, pretensões e até de direitos no campo do direito material,
o normativismo racionalista consegue transportar a certeza presente no direito material
consumado, em que as coisas são ou não são, para o direito material não-realizado, em
259
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 48.
121
mutação, e para o processo, no qual apenas projeto, não certezas, apenas possibilidades
e alegações, transformando o processo em um campo aparentemente seguro de verdades e
segurança, abstraindo-o de seu ser e impedindo-o de exercer suas funções, que, para isso
ele necessariamente teria de trabalhar com o razoável, o provável, o verossímil, contentar-se
com menos do que a verdade e a certeza. Tudo isso, como visto, são necessidades imperiosas
de quem precisa da afirmação do direito como ciência - nos moldes da modernidade, e, por
isso, abstrata - dotada de universalidades não-cambiantes, de abstrações, de dados fixos, sem
os quais não haveria ciência. Essa necessidade de negação da existência da ação de direito
material retira do titular o poder frente ao Estado, entregando-lhe um instrumento formatado
pelo Estado segundo suas próprias necessidades, e desloca a este o poder característico de
feição totalitária, em que impera a exceção e em que o espaço de anomia do Direito é
considerado espaço legítimo a ser preenchido pelo sujeito assujeitador da modernidade na
forma como o pensamento das classes dominantes considerar adequado aos seus interesses.
Passa-se a compreender o processo como favor do Estado, ao invés de perceber nele um
imperativo, um dever do Estado frente ao reconhecimento de direitos dos quais a ação de
direito material é a fonte de irradiação do ser e da força impositiva do direito a ser realizado
pelo Estado, por meio da realização do resultado prático equivalente à sua plena realização.
Essa negação também atende aos ditames do Estado liberal, pois a lei do mercado - a
segurança de menor interferência possível na esfera jurídica alheia e de solução final da
controvérsia - exige um processo civil que “despotencialize”
260
o direito material. É o espaço
de anomia e de exceção.
260
Parafraseando SILVA, Ovidio A Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-
canônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 168.
122
4 A ANÁLISE DA EXCEÇÃO
A análise da exceção parte do reconhecimento de que, se a técnica pode alterar o
sentido do ser do ente, é porque esse ser foi retirado do mundo e aprisionado no conceito. É
evidente que isso só se dá porque o mundo prático foi subtraído e, em seu lugar, é reconhecida
a suficiência do ordenamento, abstratamente construído, ou um espaço de anomia, a ser
preenchido, conforme a situação pela vontade do intérprete, em que a lei material não tem
força de lei e onde, por outro lado, força de lei sem lei. Os subcapítulos que se seguem
pretendem projetar essa análise no campo da relação entre direito material e processo,
desvelando o seu papel na ausência da possibilidade de o direito material acontecer no
processo. Projeta-se tal impossibilidade em direção à viravolta no seio da qual se considera
que isso possa se tornar possível.
4.1 O PAPEL DO POSITIVISMO NA PRODUÇÃO DA EXCEÇÃO E O (NÃO-) LUGAR
DA AÇÃO DE DIREITO MATERIAL NO SEIO DESSE PARADIGMA
A revelação dos pressupostos ideológicos que constituem a base para o predomínio do
indivíduo e que levam à definição da modernidade como época da imagem do mundo
demonstram os motivos pelos quais a investigação anterior se fazia imprescindível, que
possibilita compreender porque a dualidade entre conceito abstrato e ser concreto, denunciada
por Carl Schmitt
261
, leva à subtração do mundo prático, ao predomínio do conceito e à
eliminação da ação de direito material do seu lugar como modo-de-ser do direito material,
expressão dinâmica que liga direito material e processo. Como afirma Carl Schmidt:
“Con la filosofia de Descartes comenzó la conmoción del antiguo pensamiento
ontológico; su argumentación cogito, ergo sum remitió a los hombres a un hecho
subjetivo e interno, a su pensamiento, en lugar de una realidad del mundo exterior.
El pensamiento científico-natural de los hombres dede ser geocéntrico y buscó el
centro fuera de la Tierra, el pensamiento filosófico se volvió egocéntrico y buscó el
centro en sí mismo. La filosofia moderna está dominada por una escisión entre
pensamiento y ser, concepto y realidad, espíritu y naturaleza, sujeto y objeto, que la
solucíon transcendental de Kant tampoco eliminó; esta no restituye la realidad del
261
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl
Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 82.
123
mundo exterior al espíritu pensante, porque para ella la objetividad del pensamiento
consiste en que éste se mueve en las formas objetivamente válidas y alla esencia de
la realidad empírica, la cosa en sí, no puede ser aprehendida.”
262
Indissociados, pensamento e ser permitem a subtração do mundo prático e impõem a
negação dos elementos que significam a retomada do vínculo entre direito material e
processo. Com isso, o ser – o direito material - perde força impositiva e pode ser aprisionado e
constantemente redimensionado pelo conceito, o que demonstra que o positivismo e suas
posturas são o modelo de pensamento que corresponde ao mundo da era da técnica em que o
espaço da ação no mundo é negado em prol da otimização dos modos de fabricação de entes
padronizados.
É imperioso, portanto, investigar como o positivismo produz a exceção e, com ela, a
subtração da força impositiva do direito material, motivo pelo qual a negação da ação de
direito material - categoria capaz de restabelecer o elo entre o conceito e a coisa em si e de
retomar o vínculo com o mundo prático - está fundamentada na manutenção do paradigma
positivista e no individualismo da era da técnica. É o que se pretende abordar no presente
capítulo.
4.1.1 Sobre o ‘lugar’ da negação da ação de direito material no paradigma de
pensamento que tem a exceção como normalidade
A negação da ação de direito material responde a um imperativo da era do Direito
como técnica de dominação em que a alternativa se dá, consoante salienta Bourdieu, entre o
formalismo, que afirma a autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo
social, e do instrumentalismo, que concebe o direito como um reflexo ou um utensílio ao
serviço dos dominantes.”
263
Múltiplos são os fatores que servem a esse propósito, como se buscou assinalar. O
resultado, todavia, que se quer apontar, no presente estudo, é o da dominação do direito
material pelo processo, que se pela alternância, à disposição do intérprete, entre
normalidade e exceção.
262
SCHIMITT, Carl. Romanticismo político.Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2000. p. 110.
263
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 209.
124
Os imperativos que levam à negação da ação de direito material como anacronismo e
slogan respondem ao pressuposto do sistema jurídico positivista que, na análise de Schmitt,
mescla o normativismo e o decisionismo e substitui a justiça pelo interesse da segurança
jurídica
264
. Por meio dessa mescla, o positivista fundamenta, segundo Schmitt, o seu ponto
de vista primeiramente, em uma vontade (do legislador ou da lei) e depois, contra a sua
vontade, sem mediações em uma lei ‘objetiva’.”
265
Esse paradoxo resulta na negação, de fato, daquilo que o positivismo busca, a
segurança por meio da suficiência ôntica do direito, porque permite que o positivista se
apresente, de acordo com a situação (Lage der sache), ora como decisionista, ora como
normativista.”
266
Essa possibilidade de “escolha”, conforme a situação, apontada por Schmitt, leva o
positivismo a suprimir, de fato, o ordenamento jurídico, colocando-o como que “entre aspas”,
suspendendo-o.
A referida constatação pode também ser encontrada em Lenio Luiz Streck, que
denuncia as diversas posturas positivistas, que permitem dizer qualquer coisa sobre o que é o
direito,
“que de um modo ou de outro, trabalham com a possibilidade de múltiplas respostas,
ou transferindo o problema da indeterminabilidade do direito para os conceitos
elaborados previamente pela dogmática jurídica ou deixando a cargo do sujeito-
intérprete a tarefa de descobrir os valores ocultos do direito.”
267
Essa é a forma de o positivista lidar com as insuficiências da dogmática analítica. A
aplicação do Direito, relegada à subsunção, não conta da diversidade do mundo da vida e,
por isso, expõe suas insuficiências, o que é revelado pelo próprio Kelsen, pai do positivismo,
quando, ao final de sua Teoria Pura do Direito, afirma que a
“interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado a ficção de
que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma
interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a
jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da
264
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do pensamento jurídico. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl
Schmitt e a fundamentação do direito. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 188.
265
Ibid.
266
Ibid.
267
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 251.
125
plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável
aproximativamente.”
268
O que se observa, pois, é que o positivismo jurídico em suas variadas formas de
manifestação, buscando a imagem de produtor de segurança jurídica, como legitimador do
modo de ser do Direito ligado ao método, produz o predomínio da discricionariedade-
arbitrária, deixando ao Poder Judiciário um espaço decisionista, ao lado da hermenêutica
normativo-analítica. Essa idéia é, também, a de Herbert Hart, em cuja doutrina está presente a
distinção entre casos fáceis - resolvíveis por mera subsunção e casos difíceis, pois haverá
pontos em que o direito existente não consegue ditar qualquer decisão que seja correcta e,
para decidir os casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus poderes de criação do
direito.”
269
Com efeito, por meio de raciocínios causais-explicativos, a aplicação do direito é
entregue ao método subsuntivo-dedutivista, nos casos fáceis e, nos difíceis, a escolha da
resposta seria entregue ao arbítrio do aplicador. Essa divisão entre hard cases e easy cases
pelo positivismo reflete a mescla apontada por Schmitt entre decisionismo e normativismo e
também a divisão entre jurisdição meramente declaratória e jurisdição criativa ou constitutiva.
Conforme Agamben, suspendendo a norma, o estado de exceção ‘revela (offenbart) em
absoluta pureza um elemento formal especificamente jurídico: a decisão (Schmitt, 1922, p.
19). Os dois elementos, norma e decisão, mostram assim sua autonomia
270
Ocorre que a decisão, no paradigma individualista, é entregue ao indivíduo,
desvinculado do mundo, pois a consagração da liberdade individual como princípio
civilizatório exigiria, em última análise, a independência do indivíduo em relação a todo
conteúdo que se pretenda objetivamente vinculante.”
271
O liberalismo, justamente por liberar o indivíduo de todo conteúdo vinculante, permite
a suspensão da norma, mas não admite verdadeira decisão. Para o positivismo, a decisão o
tem um sentido político, compreendido como noção relacionada à vida em comum e ao
destino comum. Nesse sentido desvinculado, a decisão se dá na esfera da autonomia do
indivíduo. Trata-se daquilo que o individualismo da modernidade produziu. Não mais
conceitos comunitários, apenas individuais, em que o indivíduo é guindado à medida de todas
268
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 396.
269
HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2005. p. 336.
270
AGAMBEN, Giorgio, Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 56.
271
FERREIRA, Bernardo. O Risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl
Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 53.
126
as coisas. À concepção liberalista acode, como é sabido, o positivismo, como norma ou
decisão, no qual a medida da supremacia de uma ou de outra - sabendo-se que a última exige
a suspensão da primeira - é o indivíduo. Esse positivismo, que pode dizer qualquer coisa
sobre qualquer coisa, é o lugar onde a
“força de lei (X) sem lei, o imperium flutuante, a vigência sem aplicação e, de modo
mais geral, a idéia de uma espécie de ‘grau zero’ da lei, são algumas das tantas
ficções por meio das quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e
apropriar-se do estado de exceção ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com
ele.”
272
Esse estado de exceção, que é o lugar no qual a exceção a anomia é a regra, e no
qual a norma é suspensa em sua impotência e inefetividade, ainda que válida, movimenta a
relação entre direito material e processo em direção a um espaço conceitual, em que o
processo produz o direito material e concebe a jurisdição como campo normativo destinado a
regular, também conceitualmente, as relações sociais.
A opção pela negação da ação de direito material é manifestação do estado de
exceção, em que o direito material não tem força de lei, sendo entregue ao destino que lhe der
o direito processual. Como afirma Agamben, para o estado de exceção,
“a aplicação de uma norma não está de modo algum contida nela e nem pode ser
dela deduzido, pois, de outro modo, não haveria necessidade de se criar o imponente
edifício do direito processual. Como entre a linguagem e o mundo, também entre a
norma e sua aplicação não nenhuma relação interna que permita fazer decorrer
diretamente uma da outra.”
273
E continua, dizendo:
“O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e
norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei (X) realiza (isto é,
desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união
impossível entre norma e realidade, e a conseqüente constituição do âmbito da
norma, é operada sob a forma de exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação.
Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise,
suspender sua aplicação, produzir uma exceção.”
274
272
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 80.
273
Ibid., p. 62-63
274
Ibid., p. 63.
127
A análise de Agamben demonstra que o império da exceção impede a compreensão do
sentido da justiça e a construção do sentido autêntico do ser do direito, já que para isso a
esfera comunitária deveria ser restabelecida. Não como superar o positivismo, senão por
meio da retomada da intersubjetividade, em uma dimensão hermenêutico-filosófica do direito,
único modo de fazer acontecer a viravolta em direção ao acontecer do direito material no
processo, pois é preciso reconhecer que
“aquele que compreende não escolhe arbitrariamente um ponto de vista, mas
encontra seu lugar fixado de antemão. Assim, para a possibilidade de uma
hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da
comunidade jurídica.”
275
A escolha positivista entre normalidade e exceção, em que a necessidade do ponto
de vista do intérprete - poderá ditar a suspensão do ordenamento jurídico, em que a lei perde a
força de lei toda vez que um caso particular se subtrai, em face da necessidade, à obrigação de
sua observância e em que esse paradigma de Estado e de Direito (já que o que impera é a
teoria que pressupõe a unidade do ordenamento jurídico) consolida-se a cada dia, torna-se
cada vez mais distante a concretização do ser do direito material pelo processo. Como afirma
Bercovici, o
“estado de exceção está se espalhando por toda a parte, tendendo a coincidir com o
ordenamento normal, no qual, novamente, torna tudo possível. Dessa forma, o
estado de exceção está se tornando uma estrutura jurídico-política permanente e o
paradigma dominante de governo na política contemporânea, com a ameaça de
dissolução do Estado.”
276
A crise do paradigma dominante, então, parece estar encaminhando o Direito e o
Estado a uma solução em que o individualismo se mostra cada vez mais consolidado, o que
inviabiliza a virada que se propõe, a partir da hermenêutica filosófica e do paradigma da
intersubjetividade. Direciona-se a apropriar-se do estado de exceção e a consolidar a ausência
de limite democrático sobre o poder de dizer o que é o direito. Para que isso seja viável, a
275
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v.1. p. 432.
276
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar. Rio de
Janeiro: Azougue, 2004. p. 180.
128
conceitualização deve ditar a interpretação, porque a retomada do mundo prático impõe uma
responsabilidade vinculada à transformação da sociedade que não está nos planos do
liberalismo-positivista.
Nesse contexto, a ação de direito material - que desvela uma possibilidade de sentido
que recupera a significação do direito material em sua relação com o processo, devolvendo o
mundo prático ao direito, bem como a função constituidora da Constituição e sua forma
normativa – não é bem-vinda. Sua negação, ao contrário, permite a manutenção do paradigma
instituidor da exceção como técnica normal de governo e decisão, que atende à manutenção
do status quo e que responde ao modelo liberal-individualista, em que a Constituição e, por
decorrência, a jurisdição, tem feição meramente negativa, i.e., protetora da esfera do
indivíduo (autonomia-propriedade), em que não laços comunitários a serem construídos e
preservados. Não há bem-comum.
É intuitivo, além disso, que, para regular o mundo da vida, por meio do formalismo
que exige a conceitualização da realidade, é necessário separar fato e direito em esferas
distintas. O mundo da vida passa a ser normativo. O fenômeno jurídico, então, não irá aos
fatos, o que impõe reconhecer que, correspondendo - a ação de direito material - a um retorno
ao mundo prático, não deve ser vista com surpresa sua negação.
Sem compreensão adequada do Direito Material em sua relação com o processo, a
doutrina continua, às custas do mundo da vida, tentando remendar o processo a partir das
mesmas bases epistemológicas que fundamentaram a autonomia do Direito Processual em
relação ao Direito Material.
Especificamente, então, é preciso trabalhar a compreensão dos motivos que levam a
categoria, que é objeto central do presente estudo, a ação de direito material, a ser
desenvolvida e, depois, abandonada e até condenada pelos juristas. Contextualizar a constante
polêmica de sua defesa, nas obras de Ovídio A. Baptista da Silva, com um senso comum,
determinado a recusar-lhe valor, considerando-a mero anacronismo e pensar a forma como a
ação de direito material é tratada e recusada pela maioria, possibilitará a compreensão de
como essa categoria permite pensar o que deve ser pensado em prol de uma revitalização das
condições de possibilidade de uma relação produtiva entre o direito material e o processo.
129
4.1.2 De como são várias as concepções sobre a ligação entre o direito material e o
processo
As intermináveis discussões em torno da ação e, em conseqüência, da relação entre
direito material e processo, trazem à tona duas correntes que, aparentemente, monopolizam as
atenções, discussões, conclusões e escolhas dos juristas: as correntes dualista e monista
277
do
ordenamento jurídico. Em ntese apertada, a primeira, reconhecendo duas esferas distintas: o
direito material e o processo; a segunda, reconhecendo apenas a esfera processual, porque o
direito material, antes da intervenção do processo, seria fenômeno meramente sociológico que
ingressaria no campo jurídico por obra desse.
Essas discussões demonstram que a polêmica em torno da ação é central no trato da
concepção do ordenamento jurídico e, por isso, de sua efetividade real.
No seio desse debate, a incompreensão acerca do que essas opções representam e do
que elas condicionam na relação entre direito material e processo é esclarecedora.
Incompreendida, a teoria dualista é afirmada pela maior parte da doutrina, ao mesmo tempo
em que é negado o pressuposto dessa escolha: a afirmação da ação de direito material. Com
efeito, recusar a esfera impositiva, a força normativa do direito material, por meio da
categoria que lhe dinamicidade e faticidade a ação de direito material anula a esfera
própria do direito material, fazendo sobejar o processo, que criaria o direito material. Ou,
ainda, por outro lado, anula o processo, por concebê-lo à imagem do direito material
consumado, repleto de certezas e verdades concretizadas, que necessitariam apenas ser
declaradas. Qualquer dessas escolhas é, no entanto, caudatária da unidade do ordenamento
jurídico.
Múltiplos fatores inviabilizam a compreensão da discussão. A primeira delas é a já
comentada incompreensão da ação de direito material, o que faz com que a teoria monista
tenha várias possíveis leituras da unidade do ordenamento jurídico - em virtude das variantes
que apresenta - e que a teoria dualista seja inautenticamente professada pela doutrina, em
277
Da concepção monista do ordenamento jurídico, são expoentes, na Espanha, Ramos Mendez (MENDEZ,
Francisco Ramos. Derecho y Processo. Barcelona: Librería Bosch, 1979), e, na Itália, Satta (SATTA, Salvatore.
Direito Processual Civil. Rio- GB; Borsoi, 1973). No Brasil, é expressamente defendida por Darci Guimarães
Ribeiro, que afirma: “De ahí que, para nosotros, la comprensión del derecho subjetivo pueda ser descrita de la
siguiente manera: el hecho es traído al proceso a través de la pretensión procesal deducida por el actor; el valor
se encuentra ínsito en las leyes que componem el ordenamiento jurídico; y el derecho subjetivo (a saber, la
norma individual) es creado por la sentencia del juez a partir de los hechos proporcionados por las partes y de
los valores suministrados por el ordenamiento jurídico.” RIBEIRO, Darci Guimarães. La pretensión procesal y
la tutela judicial efectiva: hacia uma teoria procesal del derecho. Barcelona: J. M. Bosch, 2004. p. 48-49.
130
irremediável confusão que leva alguns doutrinadores a professar o dualismo quando se
circunscrevem, inadvertidamente, no campo monista.
O diagnóstico deve ser creditado a Ovídio Araújo Baptista da Silva, que afirma, em
sua obra mais recente:
“Interessa, porém, no momento, mostrar, que Chiovenda, tido como um dos
principais defensores da doutrina da ‘dualidade’ de ordenamentos jurídicos,
conservava-se, na essência, um defensor das doutrinas monistas, embora num
sentido oposto ao defendido por aqueles que se auto-proclamam partidários da
doutrina da unidade do ordenamento jurídico.Enquanto Salvatore Satta, Ramos
Méndez, Carnelutti e os demais juristas catalogados como ‘monistas’, reduzem o
direito ao processo, Chiovenda, mesmo insistindo na ‘dualidade’ dos ordenamentos
jurídicos, não admitia que o ‘estado de pendência pudesse tornar ‘não evidenteo
direito.Em resumo, o jurista trabalhava com categorias de direito material; o direito
era pensado como direito material, ‘absoluto e seguro’. Dir-se-ia que o jurista, como
de resto a doutrina inteira, professa um monismo de sentido oposto: somente existe o
direito material ‘absoluto e certo’, concebido e tratado como direito material.”
278
A contraposição entre duas formas de pensar o mesmo modelo de ordenamento
jurídico aparentemente não se de modo estático, sendo paradoxalmente, na prática,
alternadas a supremacia do processo, que pode dizer qualquer coisa sobre o direito material,
ou a supremacia do direito material a ser declarado, porque suficientemente previsto no
ordenamento, sem necessidade de interpretação.
Assim, pode-se observar, simultaneamente, 1. o modelo operativo, centrado na
abstração da incidência normativa, que se apresenta como meramente declarativo de
jurisdição, no qual o juiz tem a possibilidade de não se comprometer mais do que com o dizer
da norma aplicável; e 2. o modelo que, sob o argumento das insuficiências da lei e liberado
por elas, pode criar, sem limites, a norma aplicável, em postura decisionista, que retrotrai suas
origens ao individualismo que caracteriza a modernidade. Ambas as posturas, ao contrário do
que poderia parecer em uma leitura apressada, se comprometem com a arbitrariedade que lhes
possibilita a compreensão do Direito como norma abstrata previamente dada. A compreensão
da jurisdição como mera declaração apresenta as marcas do positivismo, porque, sendo
abstrata, a incidência da norma permite ao juiz aplicá-la ao caso concreto, sem necessidade de
real concordância entre a norma aplicada e a realidade fática posta à apreciação, em evidente
postura arbitrária. Do mesmo modo, permitir a criação livre do direito, sem que a
278
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 104.
131
interpretação seja direcionada pela tradição autêntica (que se manifesta na Constituição, na
história, nos costumes, na jurisprudência, na doutrina, nas relações sociais, nos vínculos entre
os sujeitos, nos modos-de-vida e nos valores da sociedade, de forma sempre questionadora e
vigilante), deslegitima a função jurisdicional, permitindo que se diga qualquer coisa sobre o
que é o direito do caso concreto. O campo do arbítrio - preenchido de diferentes formas –, em
ambos os casos, não deixa de ser vastíssimo.
Ronald Dworkin, sob as rubricas do convencionalismo e do pragmatismo, elucida a
questão. Embora circunscrito, obviamente, ao commom law, sua exposição não deixa de
demonstrar o que aqui se afirmou, porque o pensamento a que correspondem tem o mesmo
sentido. Segundo Dworkin, no convencionalismo, o
“direito é o direito. Não é o que os juízes pensam ser, mas aquilo que realmente é.
Sua tarefa é aplicá-lo, não modificá-lo para adequá-lo à sua própria ética ou política.
Esse é o ponto de vista da maioria dos leigos e o hino dos conservadores em
questões de direito. [...] Insiste em que, uma vez tomada uma decisão clara por um
organismo autorizado por convenção, e que o conteúdo de tal decisão foi
estabelecido em conformidade com as convenções sobre a melhor maneira de
compreender tais decisões, os juízes devem respeitar essa decisão, mesmo achando
que uma decisão diferente teria sido mais justa ou sábia.”.
279
Já o pragmatismo, segundo Dworkin, afirma que,
“para decidir os casos, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo
que acreditam ser a melhor comunidade futura [...]. O pragmático pensa que os
juízes deveriam sempre fazer o melhor possível para o futuro, nas circunstâncias
dadas, desobrigados de qualquer necessidade de respeitar ou assegurar a coerência
de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou farão.”
280
4.1.3 Jurisdição declaratória & jurisdição constitutiva: diferentes formas de (não)
compreender o fenômeno jurisdicional
Essas diferentes formas de “olhar” o fenômeno jurídico estão perfeitamente adequadas
a um sistema que pretende permanecer pronto a dar respostas segundo a postura ideológica do
intérprete. As expressões que as caracterizam jurisdição declaratória ou constitutiva estão
279
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 145-146.
280
Ibid, p. 195-196.
132
comprometidas com esse imaginário de opção teórica (como sugere Agamben, a
terminologia é o momento propriamente poético do pensamento, então as escolhas
terminológicas nunca podem ser neutras.”
281
) que, na verdade, responde a imperativos de
ordem prática, consistentes em fazer do direito o que o intérprete autorizado pretende que ele
seja, porque é preciso reconhecer, com Bourdieu, que
“o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta
simbólica entre profissionais [...]”, que se realiza por meio de um “trabalho colectivo
de sublimação destinado a atestar que a decisão exprime o a vontade e a visão do
mundo do juiz mas sim a voluntas legis ou legislatoris.”
282
As expressões descoberta e criação do Direito estão, dessa forma, carregadas de
sentidos inautênticos. Na investigação sobre a natureza e o conteúdo da jurisdição moderna,
diferentes posições se enfrentam e reconhecem diferentes origens à natureza da atividade
jurisdicional, divergindo ainda sobre essa própria natureza.
A doutrina tradicional, sustentando a natureza declaratória da atividade jurisdicional,
está embasada na discutível distinção entre imperium e iurisdictio no Direito Romano. A
doutrina romanística, da qual é exemplo a obra de Franceso de Martino, recusa
jurisdicionalidade às atividades do pretor romano, circunscrevendo o campo jurisdicional à
atividades do iudex, que não detinha império e exercia suas funções por delegação do pretor,
apenas averiguando a veracidade das afirmações das partes e aplicando a fórmula dada pelo
pretor. Seria, então, jurisdicional, na posição apontada, apenas essa atividade do iudex, na fase
apud iudicem, que aplicava um direito que era construído pelo pretor, esse, sim, detentor de
poder de imperium. A atividade do pretor, na leitura que fez dela a modernidade, não constitui
jurisdição. O procedimento que substituiu o formulário, com o advento da cognitio
extraordinaria, certamente, é responsável por essa equiparação da jurisdição à atividade
declarativa do iudex, pela romanística moderna. O período imperial, em que a lei ganha
espaço como fonte principal e depois única do direito o ordo iudiciorum privatorum –, que
tornou a jurisdição atividade estatal, manteve a base declarativa da atividade do iudex, porque
a lei, então, fora ditada pelo império, não sendo necessária construção da norma por meio
da investigação da prudência pretoriana. A jurisdição, nessa fase, passa realmente a ser
concebida como atividade meramente declarativa, chegando à modernidade como atividade
281
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 15.
282
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 225.
133
desprovida de imperium. Essa concepção, que se identifica com a concepção de Direito da
Roma imperial, importalizada por Justiniano, foi desenvolvida pelas escolas de romanistas e
serviu aos desideratos da Revolução Francesa - é conhecida a expressão em que o juiz é
simplesmente “la bouche de loi- e ao ideal sistemático-cientificista, que se desenvolveu com
a pandectistística alemã dos séculos XVIII e XIX. Essa forma de conceber a jurisdição, que a
limita à atividade intelectiva e abstrata, em que o juiz cumpriria o ofício jurisdicional ao
produzir o acertamento do direito, está vinculada à expressão descoberta do direito, porque ao
juiz caberia apenas indicar o direito aplicável, dado a priori, objetivamente, sem necessidade
de compreensão da norma aplicável a partir das peculiaridades históricas e fáticas de cada fato
apreciado pela jurisdição. A expressão, então, vincula-se a um modelo abstrato de jurisdição,
que declara, a partir de uma norma pré-concebida, o direito, sem necessidade de interferência
no mundo dos fatos. Esse é o duplo resultado que se apresenta em uma jurisdição que não
procura o significado dos fatos e atribui-lhes um sentido que, a priori, não demandaria
interpretação e que não vai aos fatos, porque pressupõe que a mera declaração normativa
esgote o trabalho jurisdicional e que a satisfação do direito seria encontrada pela formação da
coisa julgada, garantidora de paz social.
Como afirma Eduardo Couture, pode-se dizer que sòmente a partir de fins do século
XIX é que se nota uma reação contra essa poderosa corrente de pensamento, que na
sentença tão sòmente a mera declaração de um direito preexistente ao processo
283
que
proclama que não só a lei, senão a lei e a função judicial é que dão ao povo o seu
direito.”
284
A expressão do pensamento da jurisdição como atividade constitutiva, a qual não
deixa de lembrar Couture, é reforçada pela adesão Kelseniana. Para Kelsen, em sua Teoria
Pura, uma:
“decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório.
O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme
e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples
‘descoberta’ do Direito ou juris-‘dição’ (‘declaração’ do Direito) neste sentido
declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma
geral a aplicar ao caso concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter
simplesmente declarativo, mas um caráter constitutivo.”
285
É a vertente que afirma a jurisdição como atividade constitutiva de Direito.
283
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 227.
284
Ibid.
285
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 264.
134
É verdade que não se pode negar que o mero enunciado normativo, a proposição ou o
juízo não são ainda o direito
286
, porque isso equivaleria a equiparar o direito à lei (em sentido
lato) e retornar à concepção de jurisdição meramente declaratória.
Com efeito, como afirma Zaccaria, La legge altro non è che uno stato
necessariamente incompiuto e transitorio, anche se dotato de forza normativa vincolante, del
processo di concretizzazione del diritto: un ‘semilavorato’, per usare l’espressione de Adolf
Merkl [...]”.
287
E, continua o autor:
“Perció l’ermeneutica giuridica è definita teoricamente dal riconoscimento che la
norma astratta rivela una struttura necessariamente incompleta, completabile
soltanto nel procedimento ermeneutico di concretizzazione della norma giuridica
all’interno della decisione di un caso pratico.”
288
A idéia de uma jurisdição criativa ou constitutiva do direito, então, não pode deixar de
ser vista como uma reação à passividade que domina a sistematização do século XIX. A
interpretação é necessária sempre, não sendo, pois, uma necessidade apenas em alguns casos,
que modernamente poderiam ser chamados de casos difíceis, em oposição aos fáceis, que
demandariam mera declaração do conteúdo do enunciado normativo.
Certamente, o direito é enquanto pode ser compreendido, e não é possível a
compreensão sem aplicação. Com efeito, por isso, não se pode deixar de afirmar a
concordância com o que diz Calmon de Passos ao atribuir o ser do direito à sua aplicação: O
Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua
aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado.”
289
A afirmação vem ao
encontro do que afirma Ovídio A. Baptista da Silva, ao citar Richard Palmer, quando diz que
o sentido e a significação são, portanto, contextuais, são parte da situação.
290
Tal
reconhecimento não autoriza, entretanto, a conclusão de Calmon de Passos, que equipara o
jurídico ao processo, porque afirma que o conflito é pressuposto necessário do jurídicoe
porque afirma que decisões acerca da melhor conduta a seguir, acerca de qual o
286
Consoante anota Calmon de Passos na seguinte passagem: O Direito enquanto apenas formulação téorica,
enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o Direito.” CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, poder
justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 67.
287
ZACCARIA, Giuseppe. L’Arte dell’interpretazione: saggi sull’ermeneutica giuridica contemporanea.
Padova: CEDAM, 1990. p. 87.
288
Ibid.
289
CALMON DE PASSOS, J.J. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 68.
290
SILVA, Ovídio A. Baptista. Verdade e significado. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica:
Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 269, 2005.
135
comportamento socialmente adequado em dada situação concreta, ou, ainda, acerca dos meios
a adotar para atingir certos fins, são decisões que se encontram fora do campo do jurídico,
porque esse estaria estritamente reservado para decisões que tenham por objetivo a
composição de conflitos de interesses, cuja solução se retirou dos que nele estão envolvidos,
ou que por meio deles não lograram solução.”
291
Sua concepção monista é observada
claramente nesses trechos. Esse monismo nega a esfera do direito material, como se o direito
não se realizasse espontaneamente, ou, ainda, como se o direito, ao assim se realizar, por
prescindir do processo, não fosse direito, mas mero fato (sociologia). Com isso, produz-se a
possibilidade de o processo condicionar o produto, afirmada pelo próprio autor, e se produz
ainda a possibilidade de alijar, ao final, o direito material produzido pelo processo, do mundo
prático, que, entregue ao sujeito auto-suficiente da modernidade, essa produção não apenas
dita o que o direito é, como também lhe retira a força impositiva que emana da realidade do
mundo prático, que não admite apropriação de sua essência. A alteração da essência das
coisas, pela técnica, pressupõe que as coisas tenham sido subtraídas da realidade
intersubjetiva, do mundo da vida. As coisas assim deslocadas da relação com o mundo podem
ser conceitualizadas à imagem do que o intérprete pensa delas. Disso resulta que o abandono
do mundo e a sua construção a partir da imagem do sujeito da era da cnica são os modos
próprios de a modernidade esquecer o ser e colocar, em lugar dele, o processo de sua
fabricação.
Na relação entre direito material e processo, o que ocorre é a necessidade de aprisioná-
la na dicotomia fato-direito, e isso não seria possível se fosse admitido o vínculo com o
mundo prático que a ação de direito material representa. A seguir, o processo pode dizer
qualquer coisa sobre o que é o direito, a partir da idéia que faz dele, declarando-a, nos casos
fáceis; criando-a, nos difíceis.
Essa realidade, observada no dia-a-dia do judiciário (realidade que, como dito alhures,
engloba todos os atores do cenário processual), é a realidade da era da técnica e da exceção,
no seio do paradigma moderno de sistematicidade conceitual e de definição apriorística da
justiça, no qual casos fáceis e difíceis não chegam a ser casos, porque permanecem alheados
do mundo prático e aprisionados na idéia e no pensamento.
A teoria monista ou da unidade do ordenamento jurídico que unifica Direito e Estado,
bem como direito material e processo, abriga a concepção do direito material como imagem
que o processo dele projeta, impedindo sua realização e impondo o império da exceção, já que
291
CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.28.
136
a lei (material) não tem força de lei. Sendo, assim, suprimida sua força imperativa, também é
suprimido o poder transformador do direito, pois o processo dele dirá “qualquer coisa”. É
disso que decorre a afirmação de autoridade da lei processual em detrimento da lei material.
O paralelo com o estado de exceção parece ser inevitável. Embora a análise de Giorgio
Agamben sobre o estado de exceção se refira à forma como esse novo paradigma de governo
entrega ao executivo poderes para legislar no lugar do legislativo, bem como a forma como
suspende o ordenamento jurídico, estabelecendo como normalidade aquilo que deveria
perdurar apenas durante períodos de excepcionalidade, não como não observar os reflexos
dessa normalidade da exceção no campo da relação entre direito material e processo e, ainda,
como a inexistência de uma compreensão autêntica a respeito coloca o direito material sob o
jugo do processo, de modo a que, como afirmou Calmon de Passos, antes de o produto
condicionar o processo é o processo que condiciona o produto
292
.
O jurista, ademais, considera que falar
“em instrumentalidade do processo é incorrer-se, mesmo que inconsciente e
involuntariamente, em um equívoco de graves conseqüências, porque indutor do
falso e perigoso entendimento de que é possível dissociar-se o ser do direito do dizer
sobre o direito, o ser do direito do processo de sua produção, o direito material do
direito processual. Uma e outra coisa fazem um.”
293
Por esse motivo, procurando uma alternativa à instrumentalidade, acaba incorrendo na
mesma forma de pensar o processo que caracteriza a instrumentalidade.
Muito embora a teoria da instrumentalidade do processo afirme posição concernente à
dualidade do ordenamento jurídico, ao optar, ao mesmo tempo, por afirmar a existência da
“ação” como substituta da ação, ela unifica o ordenamento no campo processual que estaria,
assim, autorizado a afirmar o direito material de modo abstrato, alterando o que ele é, no
mundo prático, e acreditando que a melhor resposta possível é aquela dada pelo processo,
cujo imperativo maior é a paz social, como antes explicitado. O direito concreto passa a ser o
que abstratamente se construiu para ele.
Colaciona-se trecho da obra de Dinamarco:
292
CALMON DE PASSOS, J .J. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. In: Revista de
Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 102, p. 57, 2001.
293
Ibid., p. 64
137
“Negar que o juiz crie o direito do caso concreto vale simplesmente como afirmação
de que as situações jurídico substanciais declaradas em sentença preexistem a ela.
Tal é, em simplicidade, a teoria dualista do ordenamento jurídico, que se apóia
rigorosamente no raciocínio dedutivo desenvolvido pelo intérprete a partir da
premissa maior que é a norma abstrata contida no direito objetivo material; a
premissa menor é a concreta situação de fato e a conclusão reside na afirmação do
preceito concreto (nas sentenças judiciais, o decisum). Negar que de alguma forma o
juiz concorra, em cada caso, a contribuir ou completar o preceito da lei (compondo a
lide) não pressupõe o desconhecimento de sua inserção no universo axiológico da
sociedade em que vive.”
294
Dinamarco, ao sustentar a instrumentalidade do processo, posiciona-se no sentido de
reconhecer a existência de duas esferas - o direito material e o processo – optando pela
chamada teoria dualista da ação. Todavia, essa dualidade prende-se à idéia de que não se
justifica, segundo ele,
“nessa quadra da ciência processual, pôr ao centro das investigações a polêmica em
torno da natureza privada, concreta ou abstrata da ação; ou as sutis diferenças entre a
jurisdição e as demais funções estatais; ou ainda a precisa configuração conceitual
do jus excepcionis e sua suposta assimilação à idéia de ação.”
295
De incompreensão da teoria dualista, no Brasil, portanto, é exemplo a obra clássica de
Cândido Rangel Dinamarco, que, ao engajar-se nas fileiras da defesa da teoria dualista, nega a
existência de duas órbitas do ordenamento jurídico, justamente ao considerar sincretismo
ultrapassado a sustentação de duas ações: “ação” e ação.
Esse posicionamento, então, filia-se à noção de superação da ação de direito material,
por força do arraigado pressuposto de que teria sido substituída pela “ação”. Seu pressuposto
é de que a crença de que a ação estaria no campo do direito material é uma “natural
fragilidade metodológica e científica do direito processual”,
296
fragilidade que, reconhecida a
autonomia do Direito Processual, resta superada, como também a confusão entre as esferas, a
ponto de situar-se a ação apenas no campo da “ação”.
Por isso, o autor considera equívoco de Paula Baptista a afirmação de que
“ação e exercício de ação exprimem noções distintas. A ação pertence ao direito
civil ou comercial, conforme for a matéria de que se trate com relação à lei; o
294
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 48.
295
Ibid., p. 23.
296
Ibid.
138
exercício da ação é demanda propriamente dita, a qual então pertence ao regime
judiciário.
297
Ocorre que não se trata de confusão, mas de reconhecimento de direito material e
processo como esferas distintas, o que resta comprometido com a afirmação da existência da
“ação”, apenas, porque, nisso se afirma somente a esfera do Direito Processual, o que resulta
na integração do autor à teoria monista, e não dualista. Veja-se que, ao negar o poder de o
direito se impor por sua própria potencialidade, o jurista desconhece a potência do Direito
Material, o que equivale a desconhecer a própria órbita.
A teoria exposta por Calmon de Passos - ainda que proponha, sob um paradigma
filosófico diferente, um novo prisma para compreender o processo, agora como linguagem do
direito material, em que ambos fazem um e em que o processo condiciona o produto
envereda pelo mesmo caminho de aniquilação da órbita do direito material. Está, aí,
pressuposta a idéia de que o processo pode alterar o ser do direito material, condicionando-o
e, para isso, obviamente, a força normativa do direito material deve ter sido previamente
eliminada.
Ora, o que se perde no direito material que não se consuma espontaneamente é o que
se perde porque a hermenêutica não abarca tudo, não porque o processo possa impor ao
direito material um modo-de-ser, uma essência (aquilo que algo simplesmente é no mundo)
que não é a sua. Para que esse ser não se perca, no entanto, é preciso fazer-se o resgate do
mundo prático.
Ocorre que o positivismo alija do direito justamente o mundo prático.
Enquanto o direito material é mero conceito no mundo jurídico, e mero fato no plano
dos fatos, a realidade não toca o sistema - Normatividade e facticidade são ‘planos
inteiramente distintos’ [...]
298
- e o processo (concebido como instrumento ou linguagem)
passa a ser uma coisa que se interpõe entre o sujeito da interpretação e o objeto dessa mesma
interpretação, em que esse se transmuta em algo que não era, mas passa a ser: o processo que
condiciona o produto, o processo que se põe em lugar do ser, como dissera Hannah Arendt.
297
Dinamarco cita a obra Compêndio de Teoria e Prática do Processo Civil, Rio de Janeiro: Garnier, 1907, § 5º,
p. 12, de Francisco de Paula Baptista. DINAMARCO, ndido Rangel. Instrumentalidade do processo. o
Paulo: Malheiros, 2005.
298
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos do pensamento jurídico. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl
Schmitt e a fundamentação do direito. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 172.
139
A análise acerca dessa premissa de alteração de essências e aniquilação do direito
material pelo processo, por meio da negação da ação de direito material foi objeto dos
capítulos precedentes, mas é relevante lembrar, com Fábio Cardoso Machado, que
“àquilo que se chamava actio os modernos passaram a chamar pretensão, e desta
forma o termo ação se via livre para ganhar novo significado, mesmo absolutamente
diverso do significado originário, que o termo pretensão tomou o seu lugar. E se
pretensão designa o que se pode exigir de outro, o direito subjetivo perde
definitivamente aquele aspecto dinâmico que implica a sua realização
independentemente da vontade do sujeito passivo. Perde, quer dizer, a
potencialidade de se fazer valer à força.”
299
.
Isso, acrescenta-se, porque a ação de direito material, i.e., a ligação com o mundo
prático, foi encaminhada ao exílio dos conceitos inúteis.
Nessa vertente, reconhece-se a entificação do direito, em que a lei, que, não por
coincidência, é chamada dispositivo, (Ge-Stell), é acoplada ao fato sem maiores perquirições,
como uma prótese, alterando-lhe a essência. Não se busca compreender. Na relação entre o
direito material e o processo, essa atitude leva à submissão do direito material à sua técnica de
realização, e a negação da ação de direito material traz consigo o pressuposto ideológico que
permite que não se reconheça, no direito material, qualquer potência. Sua potência é dada pelo
processo, o que permite dizer que não mais direito antes do processo. Sendo assim, o
‘instrumento’ torna-se senhor do objeto que lhe cumpria apenas tornar efetivo.”
300
Trata-se
de evidente manifestação do estado de exceção.
301
Reconhecer duas órbitas no ordenamento jurídico não se confunde com negar ao juiz
atividade de construção da compreensão do sentido, construção essa que se sempre a partir
de sua pré-compreensão, a partir da qual se move a atividade interpretativa, o que põe em
299
MACHADO, Fábio Cardoso. ão e ações: sobre a renovada polêmica em torno da ação de direito material. In:
MACHADO, bio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ão: a tutela jurisdicional na
perspectiva das relões entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 143-144.
300
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade do ordenamento e jurisdição declaratória. In: ______.
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 121.
301
Nesse momento, é necessário gizar que várias são as fases do pensamento schmittiano e, no presente trabalho,
tanto seu diagnóstico com relação ao positivismo, quanto sua discutida defesa do estado de exceção são
utilizados, sem que se tenha a pretensão de, nos limites que aqui se impõem, tratar da intrincada questão da
explicitação das bases do pensamento schmittiano ou de como tais apreciações feitas pelo cientista político
podem ou não estar interligadas. Nesse sentido, é importante lembrar que Agamben atribui a Carl Schmitt a
defesa do estado de exceção. O aporte específico da teoria schmittiana é exatamente o de tornar possível tal
articulação entre o estado de exceção e a ordem jurídica. Trata-se de uma articulação paradoxal, pois o que
deve ser inscrito no direito é algo essencialmente exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria
ordem jurídica (donde a formulação aporética: ‘Em sentido jurídico [...], ainda existe uma ordem, mesmo o
sendo uma ordem jurídica’).” AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 54.
140
evidência que a pergunta pelo sentido sempre chega tarde. A análise metodológica, ao
conceber a interpretação em fatias, de que o contexto é abstraído, desconsidera o que sempre
se apresenta à pré-compreensão, além de menosprezar a necessária vigilância dos pré-juízos
inautênticos e separar compreensão e aplicação permitindo que, no conceito, o sentido seja
esquecido.
O sentido é a construção realizada a partir do compromisso do intérprete que,
projetado no mundo, não está isolado dos outros e se considera parte de uma comunidade
regida por valores e por um ordenamento jurídico que o vincula.
O sentido não é uma criação do intérprete, nem se simplesmente a ele, de maneira
pré-concebida, a partir de dados apriorísticos, abstratos. Conceber-se a busca pelo sentido a
partir do método cartesiano: único e lógico matemático, e, por isso dedutivo, é jogar o
intérprete na armadilha de: 1. negando a órbita do direito material, ao reduzi-lo à sociologia,
ou mesmo reconhecendo o direito material, mas negando-lhe qualquer força normativa, ao
subtrair a ação de direito material do mundo, onde se o sentido das coisas, postular a
criação do direito material pelo processo, o que reduziria as correntes ao monismo tradicional;
2. reconhecer apenas o direito material, delegando ao juiz atividade meramente declarativa, o
que conduziria o intérprete a um monismo de sinal trocado. Desse modo, assim como as
expressões declaração e descoberta do direito carregam em si sentidos construídos por uma
compreensão inautêntica da jurisdição, também as expressões constituição ou criação do
direito têm vínculos que identificam determinadas correntes de pensamento.
Quando se concebe a jurisdição como atividade declaratória, de descoberta e
afirmação do direito, não se pergunta por aquilo que ela realmente é, reproduzindo sentidos
que a jurisdição expressou em momentos históricos em que as escolhas políticas e filosóficas
refletiam situações anormais, no caso específico, o Iluminismo e as lutas revolucionárias do
século XVIII. Da mesma forma, também a expressão constituição ou mesmo criação do
direito estão ligadas a momentos de ruptura em que essa visão emprestou fundamento a
sistemas revolucionários nos quais a democracia não consistia na escolha política do
momento, como no caso dos sistemas jurisdicionais soviéticos. Os movimentos de crítica
jurídica também - ainda que preocupados com a realização da justiça , ao conceberem a
possibilidade de um direito alternativo, retratam a desvinculação do intérprete a algo que o
precede: o conjunto da tradição histórica
302
. Com efeito, se, de um lado, a atividade
meramente declarativa do direito contém em si a afirmação de uma ideologia oculta, por
302
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
141
outro, a expressão “criação” do direito não é despida de problemas, porque pode identificar a
atividade desvinculada da tradição, de criação do direito ao gosto do individualismo moderno,
que permite a ausência de fundamentação do direito, que delimita o campo do decisionismo, o
qual, em atividade arbitrária, acaba produzindo o mesmo resultado da jurisdição declarativa: a
ofensa aos limites impostos pelo neoconstitucionalismo, o que equivale à ofensa à limitação
do direito às fontes que o legitimam, bem como a desvinculação com a justiça, porque não se
pode admitir justiça onde ausência de limites
303
. Trata-se de normativismo e de
decisionismo que, na análise de Carl Schmitt, circunscrevem os limites do positivismo. Com
efeito, cumpre perguntar: mais de um direito - um tradicional, outro alternativo - ou
Direito onde a preocupação do intérprete se em direção à realização, em um Estado
Democrático de Direito, a partir do texto e em direção a ele, passando pelos valores ditados
por sua compreensão política, social, de justiça no caso concreto, sempre perguntando pela
visão autêntica da jurisdição, que não aprisiona o intérprete na vontade da lei ou do legislador,
de modo irresponsável, nem lhe solta as amarras em direção aos sistemas abertos em que o
intérprete diz o que é o Direito, sem um limite de sentido? Perguntar pelo que é o direito não é
substituir uma ideologia conservadora dos interesses das classes dominantes, por outra, ainda
que evidente seja a nobreza do objetivo do empreendimento.
O que se observa é, de um lado, a omissão acerca do mundo da vida, ditada por uma
abstração que legitima a “vontade do legislador” seja ela qual for, limitando a atividade
jurisdicional à declaração irresponsável e desvinculada da busca do justo para o caso
concreto. De outro, uma atividade que reflete a auto-suficiência do pensamento individualista
moderno, que solta as amarras para possibilitar soluções não-razoáveis, sem apoio na
Constituição, na Lei, nos limites da tradição, em posição pragmatista e decisionista,
fundamentada, muitas vezes, apenas nos valores do próprio intérprete que denomina sua
tarefa de criadora do direito, atribuindo-se essa atividade a partir da constatação da
insuficiência da lei.
Ocorre que, como afirma Zaccaria, o direito jurisdicional
“configura senza dubbio un’attività produtiva di diritto (e questa considerazione
certamente accresce la responsabilità del giurista interprete); ma è importante non
dimenticare mai (per lê conseguenze político-ideologiche che una confusione su
questo punto pottrebe avere) che la crezione di diritto rappresenta l’esito di
303
No presente trabalho, a expressão “limites” tem o sentido heideggeriano de algo de onde começa o
desdobramento do ser de um ente. É um limite também positivo, porque é de onde se parte e, no círculo
hermenêutico, também onde se encontra o sentido.
142
un’attività riferita alle norme legislative e da esse derivata; e che non può pretendere
di collocarsi in contraposizione alla legge, quale fonte, con essa concorrente, di
produzione del diritto.
304
As duas expressões declaração ou descoberta e criação ou contituição do direito -
circunscrevem o campo de sentidos inautênticos acerca da jurisdição.
A expressão “construção da compreensão do direito”, sempre direcionada às situações
da vida que são reguladas pelo direito, ao revés, apesar de não ser livre de críticas, pode
melhor circunscrever-se àquilo que se entende por tarefa da jurisdição, que não descobre -
porque não uma essência metafísica esperando para ser extraída do fato – mas também não
cria, porque a tradição, como limite de sentido - retratada na Constituição, na prudência, nas
leis, nos valores da sociedade, no tempo e nos fatos – não é algo que o intérprete crie para dar
solução ao caso concreto.
O longo esclarecimento que se faz necessário, então, compreende a jurisdição como
atividade construtiva que, por meio do material que lhe é fornecido pela tradição, da qual
fazem parte as três categorias em vertical (direito, pretensão e ação, todas em sentido
material), diante do caso concreto, compreende o sentido do direito, construindo a solução
que é dada concretamente, não abstratamente, sem pressupor uma ordem superior de idéias,
mas apenas projetando-se no mundo, ao qual, consoante se discorrerá, pertence a ação de
direito material.
Ao contrário do que entende a doutrina tradicional, essa atividade construtiva não
desconhece as fontes. Guia-se por elas, perguntando-se sobre o seu sentido autêntico,
construindo a compreensão do ser do direito.
Com isso, pretende-se evitar a vinculação das idéias aqui trabalhadas com
compreensões formalistas ou substancialistas, mas igualmente abstratas, da compreensão do
direito, subscrevendo um modo de compreender a jurisdição a partir da hermenêutica
filosófica, a qual, como afirma Zaccaria,
“liquida simmetricamente da una parte la prospettiva del logicismo (per cui dalle
premesse stabilite si giungerebbe alla decisione tramite passaggi logicamente coatti),
dall’altra la prospettiva decisionistiva (per cui l’applicazione giudiziale costituirebbe
304 ZACCARIA, Giuseppe. L’arte dell’interpretazione: saggi sull’ermeneutica giuridica contemporânea.
Padova: Cedam, 1990. p. 56.
143
la sede di decisioni meramente creative da parte dell’interprete, con conseguente
rifiuto totale della dommatica).”
305
4.2 ENTRE A ANOMIA E A AUSÊNCIA DE ANOMIA
Os espaços de anomia - claúsulas abertas e espaços em branco - são produzidos pela
cisão entre discursos de fundamentação e discursos de aplicação e pela possibilidade de
alternância entre aplicação e suspensão da norma, deixadas à conveniência do intérprete
sempre que a norma tiver uma estrutura aberta ou quando sua aplicação demandar maior
esforço de compreensão, para atender aos chamados casos difíceis, em que o discurso prévio
de fundamentação falha ou abre a possibilidade de sua manipulação pelo intérprete.
No campo investigado, da relação entre direito material e processo, a existência de
espaços de anomia e a suspensão da norma material (por meio da negação da força do direito
material: a ação) representam a possibilidade de construção do direito processual de modo
imponente e de forma a aprisionar o direito material não-consumado nas estruturas
processuais construídas pelos juristas do processo, às custas das características e das
necessidades que o direito material apresenta.
Esses espaços de anomia, onde a lei não tem força de lei, e há, por outro lado, força de
lei sem lei (por meio da atribuição de força normativa a decretos, medidas provisórias ou a
súmulas, que se sobrepõem à Constituição e a todo o Direito), são reproduzidos no processo,
em que o direito material é suspenso para ganhar as características que o processo lhe atribuir,
o que foi abordado. Interessa, no entanto, ressaltar, nesse ponto, que isso é possível em
face da estrutura positivista antes relatada. No momento em que a lei material é suspensa,
deixa de haver um limite para o processo interpretativo e, em seu lugar, não resta nada senão a
escolha do intérprete sobre o que é o direito material. Desse modo, o processo pode dizer
qualquer coisa sobre ele. Para isso, é necessário alijar o mundo prático, reforçar a força do
conceito e desconsiderar a força normativa do direito material. A ação de direito material
representa um grave empecilho, senão a extrema impossibilidade de realização dessa tarefa do
positivismo. Afirmá-la impõe, por sua vez, recuperar o mundo prático, desmistificar o
conceito e reconhecer a força normativa do direito material. Isso porque, sendo, por meio
305
ZACCARIA, Giuseppe. L’arte dell’interpretazione: saggi sull’ermeneutica giuridica contemporânea.
Padova: Cedam, 1990. p. 88.
144
dela, compreensível a atividade que deve ser realizada para restaurar o direito material ou
impedir sua violação, ela vincula o intérprete/julgador a uma atividade prática a ser atingida,
e, por isso, aponta a compreensão da satisfatividade real que o direito deve perseguir. Sendo
ela uma categoria que conduz ao modo-de-ser do direto, não pode ser aprisionada no conceito,
porque esse é necessariamente atemporal e a-histórico e, por isso, prévio, sem dinamicidade.
Reconduzindo ao mundo prático e insuscetível de aprisionamento pelo conceito, ela não tem
lugar no sistema. Indica uma idéia de projeto de realização, concretização de valores e
diretrizes constitucionais, o que conduz à sua compreensão como força do direito material,
que impede a transformação do direito material naquilo que ele não é. Isso porque ela
introduz uma diferença irredutível entre direito material e processo e estabelece o
reconhecimento de uma necessária relação entre eles.
306
Não permite, pois, que o processo
diga qualquer coisa sobre o que é o direito material e tampouco permite que aquele seja
estruturado em termos de satisfatividade normativa, porque exige a realização do direito
material pelo processo, não apenas estabilização das relações (paz social ou coisa julgada).
Dessa forma, o panorama do direito material, apresentado nos capítulos precedentes,
se mostra como um produto dessa ausência de sua força impositiva.
Com efeito, apenas retirando do mundo a ação de direito material e substituindo-a por
uma categoria abstrata a ação” –, que, nesse paradigma, não tem relação com o mundo
onde as coisas se dão (já que essa ligação é possível por meio da ação de direito material),
poder-se-ia construir o processo à revelia do direito material, estabelecendo o conteúdo das
sentenças a partir da classificação abstrata e declaradamente conceitual da “ação” processual
em que o uno e abstrato é transformado em três: ação declaratória, constitutiva ou
condenatória, sem necessidade de voltar ao direito material concreto para questionar-lhe sobre
o seu ser. Esse foi um dos pressupostos para que fosse atendida a garantia liberal da
incoercibilidade das obrigações, que passou a converter os direitos em sua reparação
pecuniária, para a qual parecia suficiente a construção da eficácia condenatória junto às
tradicionais eficácias eminentemente normativas. Esse diagnóstico está em Luiz Guilherme
Marinoni, quando afirma que o
“CPC transformou o direito à reparação do dano em direito à obtenção de soma em
dinheiro. Isso pelo motivo de que o modelo que foi por ele estruturado para o
ressarcimento é completamente inidôneo para a prestação da tutela ressarcitória na
306
Esse modo de conceituar a diferença ontológica está em AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São
Paulo: Boitempo, 2004. p. 68.
145
forma específica, e assim para atender aos direitos que melhor se adaptam a essa
forma de ressarcimento.”
307
Admitir, todavia, que o processo, porque não contém dispositivo específico, i.e.,
cientificamente estruturado e legislativamente previsto, para tutela de um direito - inobstante
seja norma constitucional a tutela dos direitos e princípio milenar que, onde há o direito, deve
haver meio para sua proteção, sob pena de inocuidade de todo o ordenamento jurídico – possa
alterar a essência do direito material, que seria entregue à sua inefetividade real ou, o que
seria o mesmo, que o ser do direito material possa ser convertido em valor de troca, retira toda
a força impositiva do direito material, que é relegado à sociologia que se transforma em
direito por força do processo. Não se pode admitir que a ausência de norma específica,
prevendo o instrumento, impeça a realização do direito material na forma específica pelo
processo. O que se pode admitir é que a leitura normativista do ordenamento jurídico, que
pretende retirar o direito da norma, e não, a norma do direito, levou os juristas a pensarem que
a ausência de previsão legal de um procedimento específico poderia impedir o juiz de
construir os meios adequados para a realização do direito no caso concreto, com base na
Constituição e na lei material e, além disso, no princípio de que, se a lei processual se omitiu,
isso não representa um espaço de anomia, porque o direito é resultado da compreensão de
múltiplos fatores, um deles, sem dúvida, o texto da lei processual que, se, no caso se omitiu,
era inconstitucional por omissão –, merecendo interpretação conforme a Constituição. Isso
tudo porque a técnica não pode mudar a essência das coisas. Parafraseando a forma de
expressar-se de Ovídio Araújo Baptista da Silva, ‘tenho de confessar’ a minha total limitação
para entender como é possível que se admita essa inversão da técnica para o contrário do que
ela representa! Então, o direito material pode ter impedido o acesso à sua realização porque a
ciência e a legislação processual às quais não se limita o direito esqueceram, ou não
quiseram, ou não puderam, prever o instrumento adequado.
Nesse contexto, apenas o conteúdo abstrato dado previamente pela ciência é capaz de
responder à pergunta pelo ser entificado do direito material, que entra no processo e não
é mais evidente ou não-evidente, verossímil ou inverossímil, absoluto ou relativo, é apenas
um produto que o processo condicionará. Assim, também foi possível construir e manter o
processo ordinarizado, relegando formas de procedimento de cognição sumária às hipóteses
elencadas pelo direito processual, sem necessidade de perguntar se o modo-de-ser do direito
307
MARINONI, Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 444.
146
material requer tratamento diferenciado, por ser evidente, por exemplo, como seria o caso de
direitos absolutos, que demandam defesa por ação materialmente sumária e, em decorrência,
por procedimento de cognição sumária, com contraditório plenário eventual, justamente
porque seu grau de evidência o diferencia de direitos relativos que demandam cognição
plenária em procedimento que, por isso mesmo, será mais amplo.
Sendo o direito material, nos chamados easy cases, apenas um conceito que delimita a
moldura da norma, ao qual o fato se amoldará, ou, sendo, nos chamados hard cases, uma
criação que depende do processo, em ambos os casos, não um direito para o caso concreto
acerca do qual se buscará o significado, historicamente. Há, apenas, um espaço de anomia, em
que o direito material necessariamente seria atuado abstratamente, para realizar o
ordenamento jurídico ou, mesmo suspenso, em caso de necessidade, compreendendo-se que,
segundo Agamben, a teoria da necessidade não é aqui outra coisa que uma teoria da
exceção (dispensatio) em virtude da qual um caso particular escapa à obrigação da
observância da Lei.”
308
O paradigma que estabelece a exceção como normalidade - em que a suspensão do
ordenamento jurídico, em face da necessidade que vai tomando conta do campo jurisdicional
por força de suas insuficiências, retira da norma sua força impositiva para fazer prevalecer o
que o intérprete pensa acerca do direito - faz com que a relação entre direito material e
processo seja concebida ao sabor dos interesses dominantes. Não se pode esquecer de que o
poder ideológico do mercado que, conforme Bercovici, que cita Atílio Boron, vota todos os
dias,
309
interfere no modo como o processo atua o direito material, o que propicia algumas
formas de tutela diferenciada - que, mesmo sendo, no entendimento da doutrina dominante,
incompatíveis com as garantias constitucionais –são introduzidas no sistema, sem maiores
óbices, como naturais, a fim de dar mobilidade ao mercado, como é o caso da executividade e
abstração dos títulos cambiais. Quando se trata, todavia, de amoldar o procedimento às
peculiaridades do direito material, segundo o caso concreto, as soluções diferenciadas - ainda
que o fundamento da diferenciação da tutela seja o mesmo - são catalogadas como ofensivas
às referidas garantias constitucionais e descartadas, o que se observa, como exemplo, do
estudo de Rosemiro Pereira Leal, que considera que “a decisão judicial no direito moderno
não se define pela summaria cognitio, a não ser nas tutelas de urgência (liminares e
308
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 40.
309
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar. Rio de
Janeiro: Azougue, 2004. p. 178.
147
antecipadas) que, não mais se regendo pela interditalidade, seguem obediência ao devido
processo legal, como direito-garantia no Estado democrático de direito.”
Essa forma de conceber o direito é herdeira do nominalismo, do epicurismo e do
relativismo, que, persuadido de que está que as palavras são apenas signos, de que seu uso
é convencional, de que os sentidos das palavras são relativos, que eles ‘conotam’ realidades
diversas, segundo o ponto de vista do usuário
310
, está presente na concepção que se tem do
direito e em todas as atitudes pragmático-estratégicas de sua aplicação. Esse imaginário, no
qual a lei não tem força de lei e a Constituição não tem força de Constituição, cria (ao mesmo
tempo em que é criada por ele) um espaço de vazio jurídico que abre a possibilidade da
sustentação de que, nesse vazio, onde se encontra a necessidade, não há lei.
A suspensão do direito material se por sua impossibilidade de impor-se por sua
força normativa: a ação direito material. Passa a ser apenas conceito estático, porque sua
instância de força dinâmica foi cortada e substituída pela “ação” processual, isto é, pelo
processo. Afinal, se não construção processual adequada para tutela, não o direito.
Enquanto o direito material não tem capacidade para se impor, passa a ocorrer o que se
apontou no capítulo precedente. O processo se impõe ao ser e o substitui. Pode-se dizer que,
assim, o direito material, transmutado em algo que não é, porque foi mutilado em sua força, é
imposto aos homens sem poder transformador. Parodiando Hesse, dir-se-ia, então, que seria
como se se pretendesse coser pétalas com linhas. O primeiro sol do meio-dia haveria de
chamuscá-las.”
311
Não como haver justiça e paz social em um mundo em que o Direito se
impõe pela força da coisa julgada, não pela justiça que constrói. Cada caso será um novo
momento de insatisfação, porque o que se obtém com o processo, quando se obtém já que a
jurisdição tantas vezes pára na sua tarefa de produzir satisfatividade normativa é algo que o
direito não é, em que o sujeito da interpretação e o objeto foram contrapostos por algo que
impediu a compreensão (uma terceira coisa que entre eles se interpôs).
Dessa forma, é preciso restaurar a ligação do direito material e do processo com o
mundo prático e buscar nele a força impositiva do direito material.
310
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 273.
311
HESSE, Konrad. Força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 17.
148
4.3 A AÇÃO DE DIREITO MATERIAL COMO FORÇA REALIZADORA DO DIREITO:
UM RETORNO AO MUNDO PRÁTICO
A existência desses chamados espaços em branco, no direito material ou no processo –
que autorizariam a suspensão do ordenamento e a vigência sem aplicação não tem lugar
onde o direito material se impõe por sua força impositiva, o que ocorre sempre que se
reconhece, na ação de direito material, o elo de ligação entre o direito material e o processo,
que retoma o mundo prático. Isso porque a ação de direito material, ao recuperar o direito
material em suas características e necessidades, impõe sua realização pelo modo como ele se
manifesta dinamicamente, na realidade, fundamentando e legitimando democraticamente a
construção de tutelas diferenciadas para diferentes direitos, ainda que o processo não preveja
meios específicos.
O paradigma que se considera em crise e rumando em direção ao agravamento da
crise busca restaurar a ligação entre direito material e processo a partir de construções que
se circunscrevem, ainda, na esfera conceitual do processo e na negação da esfera impositiva
do direito material. Desse modo, o reconhecimento da necessidade de superar a relação de
alheamento entre direito material e processo é sempre tratada em um âmbito que limita a
compreensão. Com efeito, como afirma, por exemplo, Andréa Proto Pisani, para que
“sia assicurata la tutela giurisdizionale di una determinata situazione di vantaggio,
non basta che a livello di diritto processuale sia predisposto un procedimento quale
que sia, ma è necessário che il titolare della situazione di vantaggio violata (o di cui
si minaccia la violazione) possa utilizzare un procedimento (o piú procedimenti)
strutturato in modo tale da potergli fornire una tutela effettiva e non meramente
formale o astratta del suo diritto.”
312
Todavia, o mesmo autor, logo após, diz que especificando
“quindi, quanto detto poco fa, è possibile ora dire che il diritto sostanziale sul
piano della effetività, della giuridicità, non della sola declamazione contenuta nella
carta stampata esiste nella misura in cui il diritto processuale predispone
312
PISANI, Andréa Proto. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Eugenio Jovene, 1996. p. 6.
149
procedimenti, forme di tutela giurisdizionale adeguate agli specifici bisogni di tutela
delle singole situazioni di vantaggio affermate dalle norma sostanziali.”
313
Nessa visão, o direito material permanece dependente do processo. Sem que o
processo forneça o arcabouço instrumental necessário para tutela dos direitos, não
realização concreta dos direitos que se remeta para além da satisfatividade normativa, que é a
única que pode ser fornecida pelo tratamento apenas conceitual do arcabouço processual.
Proto Pisani, é necessário lembrar, reproduz Satta e com ele concorda ao dizer que os
institutos processuais “nascem, por assim dizer, não apenas com o selo terreno, mas com
aquele da eternidade, que lhes é aposto por seu próprio destino de garantir a realização da
justiça.”
314
A afirmativa revela o descompasso entre o direito processual, conceitual e, por
isso, eterno, e o mundo prático, mutável, que não interfere, por suas características, no
processo, que nasce com o selo da eternidade e, por isso, não tem por que se amoldar às
necessidades cambiantes do direito material.
Essa relação de alheamento é constatada por Luiz Guilherme Marinoni, cuja teoria
busca redimensionar essa relação. O autor apresenta sua teoria partindo do pressuposto de que
não como deixar de perceber, hoje, que entre o processo e o direito material uma
relação de integração.”
315
. Não se pode deixar de ressaltar, na assertiva, a expressão ‘hoje’,
como se a necessidade de superação da relação de alheamento entre direito material e
processo fosse uma expressão dos novos tempos do sistema processual e como se toda a
história de aniquilação do direito material pela necessidade de emoldurá-lo nas fórmulas
imutáveis do processo não houvesse projetado sentidos inautênticos na pré-compreensão dos
intérpretes dessa relação. A compreensão da relação entre direito material e processo nesses
termos retira da doutrina processual a responsabilidade por construções que aniquilaram o
direito material, fazendo-o refém do processo, que se limitou a dar-lhe satisfatividade
conceitual-normativa sem preocupação com a concretização das pretensões.
A afirmação desse elo de ligação não deve, ademais, ser reduzida de modo a que se
possa, como o mencionado autor, afirmar, simplesmente, que a
313
PISANI. Andrea Proto. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Eugenio Jovene, 1996. p. 6.
314
Andréa Proto Pisani é citado por SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma
racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 9.
315
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 27.
150
“compreensão do direito de ação como direito fundamental confere ao intérprete luz
suficiente para a complementação do direito material pelo processo e para a
definição das linhas desse último na medida das necessidades do primeiro. Ou seja,
a perspectiva do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional permite que
o campo da proteção processual seja alargado, de modo a atender a todas as
situações carecedoras de tutela jurisdicional.”
316
Ocorre que, do interior do paradigma dominante, em que o mundo prático foi
descartado, considerar o direito fundamental à “ação” como fonte de irradiação suficiente para
que o processo complemente o direito material pode levar à consolidação do paradigma que
vê, no processo, uma técnica cuja essência substitui a essência da coisa, pressupondo-se que o
direito material não detém força de realização, por si, sendo necessário que o processo forneça
o conteúdo do direito material, e não, o contrário, o que se pode observar na posição
analisada de Calmon de Passos. É imperioso notar como, nessa visão, apenas como exemplo,
o direito material é flagrado como um ente sem significado, sem poder gerador de
transformação social, poder esse que lhe seria outorgado como “complementação” pelo
processo, como um favor de Estado ao indivíduo titular do direito. O processo condiciona o
produto. E tudo passa a depender do Estado totalizante, e o processo ganha o status de
gerador de possibilidades para o ente, que não são o sentido do ser desse ente, o direito
material, mas lhe são atribuídas artificialmente, pela cnica, que as substacializa, sem ter de
investigar-lhe o sentido, aquilo que o direito é, que não é senão a forma como deve ser
efetivado, respeitado e realizado por meio do processo. A metáfora de Heidegger, antes
citada, do Reno e de sua usina, é a melhor ilustração para o problema: a usina, a técnica, passa
a definir o sentido do ser do Rio, e não mais um Rio e, sim, uma usina, em que o Rio é
apenas condição de possibilidade da usina. Assim, também o direito material é apenas
condição de possibilidade do processo, quando a relação inversa deveria ser esperada.
Desse modo, no interior do paradigma do indivíduo racional e desvinculado, sem
limites à tarefa de criação, a complementação do direito material é concebida por meio de um
entendimento que permite que diga qualquer coisa sobre esse direito, justamente porque ele
não vincula, não tem poder transformador. Como dito, seu vínculo com a realidade é
conceitual e abstrato, uma imagem do direito material, projetada pela mente do intérprete por
meio do processo. Falar em complementação, a partir desse paradigma, aniquila o direito
material.
316
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.
30.
151
A “ação”, como garantia constitucional, viabiliza o acesso de todos ao judiciário, mas,
para que a garantia constitucional opere em sua realidade transformadora, essa “ação”, que
deve ser abstrata (sob pena de não ser garantida a todos, mas apenas àqueles que têm direitos),
deve restabelecer sua relação com o mundo prático. Esse restabelecimento é viável se a
força impositiva do direito material, esse direito em movimento, a ação de direito material,
trouxer, ao campo conceitual do processo, seu poder transformador da realidade, buscando
nele a complementação de que necessita. Essa complementação não é conteudística, no
sentido que ao processo seja dado dizer o que é o direito material em uma postura em que a
exceção – a anomia é a realidade. Essa complementão deve ser compreendida como a busca
do sentido do direito material, por meio da construção desse sentido, como faticidade e
historicidade, e na realização/concretização da pretensão, que é aquele sentido que foi
construído. Sob esse aspecto, a complementação é de efetividade por meio de atos
jurisdicionais que transformem a realidade de acordo com o que a realização das pretensões
demanda como atividade.
Imperioso, então, que se registre que a complementação do direito material pelo
processo, defendida no interior do paradigma dominante, que opõe teoria e práxis, sujeito e
objeto, fato e direito, não é a mesma complementação exposta por Gadamer, uma vez que, ao
falar, o filósofo já se encontra em um novo paradigma de pensamento, em que a metafísica foi
desconstruída e o ser-aí se compreende em intersubjetividade, o que significa dizer que há
uma dimensão comunitária que pressupõe um direito que vincula todos na realização do bem
comum, o que exige a retomada da faticidade e da historicidade, na dimensão da
responsabilidade, que envolve o cuidado e a consciência da história efeitual, não sendo, pois,
cabível, a partir dessa compreensão do modo-de-ser desse ente que somos nós mesmos (a
presença), um direito que se auto-excepciona ao sabor da escolha do intérprete. Afirma
Gadamer, ao examinar o direito, que o
“modelo da hermenêutica jurídica mostrou-se, pois, efetivamente fecundo. Quando
se sabe autorizado a realizar a complementação do direito, dentro da função judicial
e frente ao sentido original de um texto legal, o que faz o jurista é exatamente aquilo
que ocorre em qualquer tipo de compreensão. A velha unidade das disciplinas
hermenêuticas recupera seu direito se se reconhece a consciência da história
152
efeitual em toda prática hermenêutica, tanto na do filólogo quanto na do
historiador.”
317
E, continua, dizendo:
‘Assim, fica claro o sentido da aplicação que está de antemão em toda forma de
compreensão. A aplicação não é o emprego posterior de algo universal,
compreendido primeiro em si mesmo, e depois aplicado a um caso concreto. É,
antes, a verdadeira compreensão do próprio universal que todo texto representa para
nós. A compreensão é uma forma de efeito, e se sabe a si mesma com tal efeito.”
318
Sob essa ótica, o que se refuta não é a complementação como tarefa da hermenêutica,
mas a complementação que pressupõe espaços de anomia onde eles não existem, que nega o
ser do direito, para substituí-lo pelo ser do processo, o que ocorre quando se nega instância
impositiva ao direito material, negando a ação de direito material, seu modo-de-ser-no-
mundo. Se o intérprete estiver autorizado a complementar o direito material, porque esse não
tem força impositiva, o paradigma da era da técnica, que tudo transforma, não será superado.
Ao contrário, compreendendo-se a complementação como tarefa da hermenêutica, que se
não por haver um espaço de anomia, mas porque a compreensão é um existencial daquele que
compreende, terá sido encontrada a compreensão de que essa complementação se no
âmbito concreto, não para agregar-lhe conteúdo, o que nega sua força impositiva, mas para
fazê-lo realizar-se em seu ser, cujo sentido deve ser construído porque qualquer parâmetro
que se adote para a interpretação de normas jurídicas deve ser construído historicamente,
tendo em vista as peculiaridades do caso e das pessoas concretas nele envolvidas.”
319
Normas abertas, termos vagos, opções de concretização do direito material, ausência
de procedimento processual específico ou de técnica adequada não são espaços de anomia,
desde que se mantenha o vínculo com o mundo prático. Ao contrário, mantendo-se o direito
no padrão conceitualizado da sistemática de autonomia das ciências vigentes a partir do séc.
XIX, em maior ou menor grau, mas distanciado do mundo da vida, constituem-se anomias a
317
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária
São Francisco, 1997. v. 1. p. 446-447 (Os itálicos pertencem ao original).
318
Ibid.
319
SILVA, José Carlos Moreira da; ALMEIDA, Lara Oleques; ORIGUELLA. Daniela. O princípio da boa-fé
objetiva no direito contratual e o problema do homem médio: da jurisprudência dos valores à hermenêutica
filosófica. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Programa de Pós-Graduação em Direito da
UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 87, 2005.
153
serem preenchidas ao gosto do intérprete. Acerca disso, a análise que Bernardo Ferreira faz da
crítica ao individualismo, elaborada por Carl Schmitt, é elucidativa:
“A prioridade e a anterioridade do indivíduo no pensamento liberal se traduzem,
segundo Schmitt, na constituição de múltiplas esferas autônomas e, em última
análise, equivalentes entre si, no interior das quais a independência individual se
realiza. [...] O fato de que essas diferentes esferas sejam concebidas como
fundamentalmente separadas entre si seria uma conseqüência do princípio da
liberdade individual e, ao mesmo tempo, a sua condição. O isolamento de uma
esfera em relação à outra torna possível que cada uma delas permaneça fechada na
sua própria lógica. No interior de cada uma destas esferas, a liberdade do indivíduo
se concretiza sob a forma da liberdade de conhecimento, da liberdade de criação
artística, da liberdade de juízo moral, da liberdade econômica, e assim por diante.
Caso cada um desses campos se apresentasse como hierarquicamente superior em
relação a outros isso significaria, na perspectiva liberal, um constrangimento sobre o
indivíduo e um cerceamento da liberdade de decisão e escolha. Isso porque, nos diz
Schmitt, para o liberalismo, é inconcebível uma liberdade ‘em que um outro que não
o próprio sujeito livre (der Freie selbst) decida sobre o seu conteúdo e a sua medida
(Ma β)’ (BP, 70).”
320
Dessa análise resulta que, restabelecida a relação entre direito material e processo, por
meio do retorno ao mundo prático, não espaços de anomia, mas necessidade de
compreensão da norma (em sua diferença ontológica em que a norma é buscada no direito, e
não, reduzida à lei), no caso, que não é nem fácil, nem difícil, apenas um caso, entregue à
interpretação de seu sentido no mundo. Esse sentido no mundo deve ter um parâmetro. Esse
parâmetro é a ação de direito material.
O que se propõe, aqui, então, é algo bastante distanciado da concepção de que o direito
processual e suas construções conceituais seriam suficientes para alcançar a efetividade
perseguida do processo. A complementação do direito material pelo processo é concebida por
meio da noção de compreensão da necessidade de o processo, como técnica, que busca a
possibilidade de realizar o direito material do modo mais próximo possível de seu conteúdo,
construir sentidos, reconhecendo, no entanto, que, “na hermenêutica nunca recuperamos
tudo
321
, e agregar o que o direito material não logrou alcançar sozinho: efetividade,
concretização.
Essa forma de ser do processo aliaria o reconhecimento da força do direito material na
imposição do seu conteúdo, em que sua complementação, que se no processo, se
circunscreve à busca de realização do direito material, sem acoplamento ou criação de seu
320
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl
Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 52-53.
321
STEIN. Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 69.
154
conteúdo, mas de construção do sentido do direito, no caso concreto, ao qual será agregada
satisfatividade real, ou seja, concretização. Para tanto, há necessidade de romper com o
pensamento dominante, e o paradoxo está em que o que se propõe é justamente uma viravolta
em direção ao que é considerado inoportuno e ultrapassado.
Como afirma, com razão, Fábio Cardoso Machado,
“a ação de direito material, sob a perspectiva da dogmática jurídica, é a razão de ser
da ‘ação’ processual. Mas, lamentavelmente, a doutrina baniu do seu horizonte a
ação de direito material, e assim encobriu o ‘sol do sistema’, rompendo o vínculo do
processo com o direito material: o escopo jurídico do processo é a realização da ação
de direito material, e sem ter em vista este escopo, o processo perdeu o rumo, como
o instrumento que não sabe a que fim serve.”
322
Retomando Pontes de Miranda, pretende-se reconhecer que
“os direitos subjetivos são cheios e cercados de poderes. Sempre que, do outro lado,
alguém pode ter de sofrê-lo, o poder é pretensão; sempre que se pode exercer para
efetivar-se, estatalmente, essa sujeição – é ação.”
323
Dessa afirmação se pode extrair, facilmente, a conclusão de que Pontes de Miranda
concebia uma relação entre direito material e processo, em que o primeiro não fosse refém do
segundo. É essa visão que se pretende resgatar do grande jurista. Certo é que dessa concepção
se pode visualizar que Pontes, ao considerar o processo como meio de atuação do direito
objetivo,
324
reconhecia, precipuamente, que essa realização poderia dar-se com a
impositividade do direito material, de modo que se pode considerar realizado o
ordenamento jurídico quando houver adequada (e, portanto, justa) solução para o caso
concreto.
A superação passa pela transposição de um paradigma que contrapõe sujeito-objeto,
para um novo modo de compreender o mundo, junto dele e dos outros, um paradigma que
322
MACHADO, Fábio Cardoso. ão e ações: sobre a renovada polêmica em torno da ação de direito material. In:
MACHADO, bio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ão: a tutela jurisdicional na
perspectiva das relões entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 147.
323
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ões. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 183.
324
Como quando diz: O processo não defende direitos subjetivos ou pretensões. Se bem que muitas vezes os
suponha, o destino do processo é a atuação da lei, a realização do direito objetivo. Hoje, secundariamente é
que protege os direitos subjetivos.”. Ou quando diz que o fim precípuo do processo é a realização do direito
objetivo.” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller, 1999. v.
1. p. 140 e 284.
155
pode ser reconhecido na fenomenologia hermenêutica, que recupera o mundo prático e, com
ele, a intersubjetividade e a responsabilidade.
156
5 A FENOMENOLOGIA HERMENÊUTICA
Com o desvelamento do modo como a ação de direito material é concebida no
paradigma dominante e do que essa negação representa para a (não) concretização das
pretensões materiais por meio do processo, pretendeu-se encontrar um novo rumo direcionado
a possibilitar esse acontecer.
Nos subcapítulos que se seguem, procurar-se-á fundamentar como a compreensão
hermenêutica da ação de direito material viabiliza esse acontecer, projetando, a partir desse
novo horizonte de sentido, o sentido do ser do direito material como parâmetro para o
desenvolvimento do processo lançado no mundo prático em constante diálogo intersubjetivo a
partir de uma situação hermenêutica que compreende o direito como vinculante e
transformador de mundo.
5.1 A (DES)CONSTRUÇÃO DA TRADIÇÃO: UMA COMPREENSÃO DA IDEOLOGIA
A CAMINHO DA AUTENTICIDADE:
O primeiro passo para realizar essa tarefa é explicitar o embasamento dessa nova
compreensão, que representa uma virada da ideologia, na qual os pré-juízos o são
questionados, à autenticidade, na qual a ação de direito material ocupa um lugar cimeiro,
justamente porque recupera o mundo prático e transforma toda interpretação em applicatio. É
o que se pretende realizar nos itens que se seguem.
5.1.1 Uma introdução do embasamento teórico da viragem em direção ao mundo prático
O desvelamento da história da relação entre direito material e processo, a visualização
de que, modernamente, o processo, encarado como técnica, modifica a essência do direito
material e lhe retira a força impositiva, condicionando a forma como (não) se realiza
concretamente, em face da visão normativa que se tem do direito, permite que se reconheça
que o resgate da relação entre direito material e processo não se dará por meio de novas
criações científicas. Os conceitos dados de antemão e formulados como idéias perfeitas do
157
que é a coisa-direito ou a coisa-processo se interpõem entre o sujeito da interpretação e o
objeto a ser interpretado e isolam a aplicação como um momento normativo.
A forma de tratamento do direito, a partir de teorias gerais, que serviriam para abarcar
as dificuldades dos intérpretes e dar soluções apriorísticas para as dificuldades interpretativas
são evidentemente insuficientes para realizar um direito como saber prático, que resgata o
mundo da vida como compreensão-interpretação-aplicação em um único movimento circular
que se pergunta pelo sentido no caso, e não, a priori.
Como afirma Bourie,
“la irreflexión tradicional de la dogmática y de los prácticos del derecho acerca de
sus supuestos cognoscitivos conlleva el peligro de una ideologización del derecho,
en que opiniones son presentadas como verdades, amparadas por la ciencia, y
decisiones cargadas de intencionalidad como actos aplicadores de normas generales
en que no interviene elemento alguno que no sea cognoscitivo.”
325
Aprisionado o direito na concepção científica, a irrepetibilidade dos fatos e a diferença
entre os direitos que se dão no mundo da vida restam obscurecidas e permitem a manipulação
do sentido.
O que se necessita é de um novo rumo de pensamento, de um novo paradigma afeto à
hermenêutica, em que ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo
(Auslegung) e passa a ser produtivo (Sinngebung).”
326
. A superação do positivismo e dos neo
e pós-positivismos - os quais, afirmando o sentido unívoco da lei, buscam a manutenção do
habitus do campo jurídico, baseado na reprodução de sentidos e na firme convicção de que a
segurança jurídica pode ser viabilizada pela idéia de um Poder Judiciário que apenas
subsume, num processo dedutivo, o fato à norma - é imperiosa.
A estrutura do pensamento que remete a formas universais e aproxima, como diz
Kaufmann
327
, dois adversários tão declarados como o direito natural racionalista e o
positivismo jurídico, pode maravilhar. Esse pensamento subtrai o mundo da vida, o ser-no-
mundo, da compreensão e interpretação do direito e permite a manutenção de discursos de
reprodução de sentidos no seio da dogmática jurídica.
325
BOURIE, Enrique Barros. La moderna ciencia juridica alemana y la obra de Arthur Kaufmann. In:
KAUFMANN, Arthur. Analogia y ‘naturaleza de la cosa’: hácia una teoria de la comprension juridica.
Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976. p. 19.
326
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 197.
327
KAUFMANN, Arthur. Analogia y ‘naturaleza de la cosa’: hácia una teoria de la comprension juridica.
Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976. p. 53.
158
Resgatar o mundo da vida é o primeiro passo, então, na construção de uma dimensão
autêntica entre o direito material e o processo, de modo a que aquele possa acontecer em seu
ser, no processo. A tarefa da hermenêutica, ou como preferiu dizer Gadamer, a tarefa da
interpretação (que pressupõe a compreensão da qual é a explicitação) “consiste em
concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa da aplicação.”
328
O ser de um ente é no
movimento que une compreensão-interpretação-aplicação, não sendo, portanto, possível que o
sentido seja previamente dado, porque ele não prescinde do mundo prático. O ser de um ente
‘é’, sempre, pois, no mundo. Citando, novamente, Gadamer, em pergunta e resposta:
“Por que será que o que Aristóteles designa como a forma jurídica da phronesis
(dikastiké fronésis) não é uma technè? (...) Aristóteles mostra que toda lei é geral e
não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção, na medida em
que se encontra numa tensão necessária com relação ao concreto da ação. (...) Fica
claro que o problema da hermenêutica encontra aqui seu verdadeiro lugar.”
329
Na hermenêutica jurídica, entendida, aqui, a partir da filosofia hermenêutica
(Heidegger) e da hermenêutica filosófica (Gadamer), não separação entre mundo dos fatos
e mundo do direito. Sempre se parte de um texto, que tem um sentido na inserção fática e
histórica em que está o intérprete: sua situação hermenêutica. Essa situação hermenêutica
parte da tradição na qual sempre se está inserido, que nos lega pré-compreensões e permite
que o sentido do texto seja mediado pela distância temporal que condições, pelo
tensionamento que provoca entre o texto e a historicidade e faticidade do intérprete, de
distinguir, como diz Gadamer, os verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos,
dos falsos preconceitos que produzem mal-entendidos.”
330
Distingui-los permite o acesso ao
ser, porque querer evitar os próprios conceitos na interpretação não é impossível como
também um absurdo evidente. Interpretar significa justamente colocar em jogo os próprios
conceitos prévios, para com isso trazer realmente à fala a opinião do texto.”
331
Interpretar,
portanto, exige que se interpele a tradição a partir da própria situação hermenêutica, buscando
suspender os falsos preconceitos, ou os pré-juízos inautênticos, possibilitando a autenticidade
328
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1. p. 432.
329
Ibid., p. 418-419.
330
Ibid., p. 295.
331
Ibid., p. 514.
159
da compreensão, de modo que o sentido do texto, no caso do direito, a norma, surja, como
sentido do ser do ente.
Esse sentido, então, se dá no mundo. Como afirma José Carlos Moreira da Silva Filho,
“as coisas devem ser tomadas a partir de sua manifestação no mundo, enquanto
fenômenos. E esta manifestação nos é mediada pela linguagem , de tal modo que
‘aquilo com o que algo se apresenta a si mesmo faz parte de seu próprio ser. A
linguagem, portanto, é um acontecimento, uma experiência, um vir à fala do que nos
cerca, da tradição que determina nossa historicidade e que retorna em nossa
consciência hermenêutica.”
332
A necessidade de retomar o mundo prático, suspendendo pré-conceitos, para viabilizar
a compreensão autêntica do ser dos entes é mediada, portanto, pela linguagem, que deixa de
ser um instrumento.
Para que se a superação da linguagem como instrumento, que alija sujeito e objeto
no universo interpretativo, é preciso, primeiro, compreender que a história da humanidade em
direção à formação do pensamento jurídico da modernidade tem seus primórdios, segundo
Hans-Georg Gadamer, na superação da íntima unidade de palavra e coisa
333
que, nos
tempos primitivos, era algo tão natural que o nome verdadeiro era experimentado como
parte do portador desse nome, quando não como se o representasse por procuração.
334
Segundo ele, de certo modo, a filosofia grega se inicia precisamente com o conhecimento
de que a palavra é somente nome, isto é, não representa (vertritt) o verdadeiro ser.”
335
Para
Platão, deve-se conhecer o ente sem as palavras. Essa concepção faz da palavra uma terceira
coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, em que a palavra mantém uma relação
inteiramente secundária com a coisa. É um mero instrumento de comunicação.”
336
Essa concepção da linguagem como instrumento, como se o mundo das idéias não
dependesse da linguagem, e o pensamento não fosse linguagem, marca a concepção da
filosofia grega e medieval, como também a filosofia cartesiana, inspiradora do pensamento
iluminista da era da razão.
332
SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Hermenêutica filosófica e direito: o exemplo privilegiado da boa-fé
objetiva no direito contratual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 73.
333
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1. p. 524.
334
Ibid.
335
Ibid.
336
Ibid., p. 535.
160
Como afirma Lenio Luiz Streck,
“não é temerário afirmar que, no campo jurídico brasileiro, a linguagem ainda tem
um caráter secundário, como terceira coisa que se interpõe entre sujeito e objeto, ou
seja, uma espécie de instrumento ou veículo condutor de essências e corretas
exegeses de textos legais.”
337
A linguagem como instrumento não tem relação com a coisa em questão, e o mundo,
nesse modo-de-ver as coisas, é concebido como conceito. A superação desse modelo, em
direção à retomada do mundo prático exige a mudança do eixo do pensamento metafísico,
objetificador
338
, no qual a linguagem não será mais abordada como instrumento, ou como
terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto. A linguagem passa a ser condição de
possibilidade do próprio ser-no-mundo, porque, na linguagem, sempre vem a tradição, que
precisa ser desvelada em sua autenticidade.
A mediação da linguagem é o único modo de acesso ao ser dos entes, pois a
linguagem passa a ser o modo como tudo se dá, por isso não há modo-de-ser fora da
linguagem. Sempre falamos de dentro da linguagem sobre a linguagem”
339
; por isso, a
filosofia hermenêutica trata do mundo como linguagem, e Martin Heidegger dirá que a
linguagem é a morada do ser.
340
, o que Hans-Georg Gadamer tomará como base para sua
hermenêutica filosófica, na qual “ser que pode ser compreendido é linguagem
341
.
Com o Dasein, o ser-aí, introduzido por Heidegger, como ente privilegiado, aparece
um novo nível na problematização do ser. O ser não está mais isolado como objeto a ser
conhecido. Ele faz parte da condição essencial do ser humano. O Dasein compreende o ser e,
por isso, tem acesso aos entes. O ser é, pela compreensão, a possibilidade de acesso ao ente.
Nossa compreensão é possível porque o Dasein compreende o ser, e não porque temos um
outro fundamento para o conhecimento dos entes. Compreendo-me no mundo e, na relação
com os entes, compreendo o ser. O Dasein, então, como ser-no-mundo, introduz o ser-em
como condição prévia de todo o conhecimento e, assim, pela compreensão, introduz a
diferença ontológica e inaugura uma circularidade, numa recíproca relação entre ser e ente. A
circularidade hermenêutica compreensão do Dasein e compreensão do ser que se articulam
337
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 62.
338
Representado no imaginário jurídico pelo positivismo e suas variantes.
339
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 27.
340
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2006.
341
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1.
161
numa reciprocidade substitui o clássico modelo de fundamentação do conhecimento que se
apresenta como relação sujeito-objeto. O ser humano, como compreensão do ser se sustenta
pelos dois teoremas da finitude: o círculo hermenêutico e a diferença ontológica. O como do
ser humano enquanto compreensão do ser é um exercício inesgotável de sua diferença, porque
ele é ser-no-mundo. É como compreensão do ser que o Dasein se define radicalmente como
diferença e é por ele que se estabelece a diferença entre ser e ente. O Dasein é o modo de ser-
já-junto-das-coisas, o modo de ser-no-mundo. O ser humano não é senão em sua
temporalidade e historicidade, em seu modo-de-ser inserido na tradição que é o horizonte de
sua compreensão; por isso, intersubjetiva, e não mais isolada no horizonte do pensamento do
sujeito. Desse ser-aí surge a tematização do homem (do modo de ser do homem para si e já-
junto-das-coisas) que nunca se em sua totalidade, justamente porque o Dasein é ser-no-
mundo, e esse ser-no-mundo é sempre parte de um horizonte de sentido que é dado pela
tradição. A faticidade e a historicidade determinam o Dasein que, por isso, não tem o
monopólio da compreensão do ser. Disso resulta que o tempo, em Heidegger, é elemento
fundamental constituinte do Dasein. As coisas, então, são pensadas não como objetos, mas
em sua relação com o tempo. Ser-no-mundo, existência, Dasein, cuidado, temporalidade são
constructos que remetem a um modo-de-ser que tem como característica fundamental ser uma
estrutura prévia de sentido
342
, não conceitual, porque está imersa no mundo da vida.
As ontologias tradicionais pensavam o ser, a partir do tempo como sucessão de
presenças do tempo físico dos objetos e a partir do presente. A ontologia fundamental evita
a hegemonia do presente para não cair na entificação do ser e pensa a temporalidade em três
dimensões: presente, passado e futuro. O Dasein, então, nas três dimensões de sua finitude
presente, passado e futuro (existência, faticidade e decaída), nas suas historicidade e
temporalidade, como pré-compreensão, desvela a diferença ontológica entre ser e ente. Essa
diferença é possível na circularidade hermenêutica (compreensão, interpretação, aplicação
como fenômeno unitário). Com esses teoremas, Heidegger propõe o fim da metafísica, como
encobrimento do ser pela presença e propõe o início da questão do pensamento. Nesse ponto é
que surge a fundamental importância da linguagem, que assume um lugar cimeiro na
condução da justificação do conhecimento.
A linguagem em Heidegger não é simplesmente objeto e, sim, horizonte aberto e
estruturado e condição de possibilidade do Dasein e, por isso, da compreensão. Passa-se,
então, da idéia de percepção (metafísica) à idéia de compreensão, em cuja estrutura se
342
STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2000. p. 196.
162
antecipa o sentido. Dasein é concebido, não como objeto, mas como modo prático de ser-no-
mundo.
A fenomenologia hermenêutica, então,
343
introduz um novo conceito de
fundamentação. Não é uma fundamentação objetivista (da tradição clássica), nem subjetivista
(como a moderna), mas uma fundamentação que sempre existe quando compreendemos a
nós mesmos e que instaura uma circularidade entre a pré-compreensão, que vem com a
tradição, e a pergunta pelo sentido, que não prescinde do fato; ao contrário, só se dá no fato.
Não há, pois, monopólio da compreensão do ser, não conhecimento de objetos ou
relação de significação sem que tenhamos uma relação significativa com o mundo que nos
envolve e nos carrega. Assim, o esquema sujeito-objeto é superado, pois não é mais o método
que, numa estrutura linear, se encontra com o sentido, mas uma compreensão do sentido que
instaura a compreensão como faticidade, isto é, em que não é possível compreensão sem
aplicação, trazendo ao Direito o mundo da vida em que o ser é sempre o ser de um ente,
viabilizando a retomada da diferença, em que não casos ceis ou difíceis; casos, em
que a dimensão ética da vida requer uma solução que é constitucionalmente correta e, por
isso, há sempre um limite, no sentido positivo, de desdobramento do ser de um ente. O direito
não resta reduzido à lei. A lei, ao contrário, é o início do desdobramento do significado, que
não é pré-dado (na dupla dimensão da palavra, utilizando a expressão de Streck), nem
arbitrário. Não há lugar para decisionismos e arbitrariedades semânticas ou pretensamente
hermenêuticas.
A percepção de que uma ambigüidade fundamental no homem e por haver essa
ambigüidade fundamental é que estamos condenados à hermenêutica.”
344
permite a percepção
de que a metodologia própria das ciências racionais deve ser superada, pois é insuficiente,
para que seja possível pensar na questão do conhecimento e da relação do homem com o
mundo como diálogo com a tradição, que não é possível mais sustentar uma razão humana
passível de apreensão pelos métodos das ciências naturais.
No campo do Direito, essa percepção marca a possibilidade de transformação social.
De um direito de essências prontas, de subsunções de normas aos fatos, de dedução, em que a
aplicação da lei é dada por um raciocínio causal explicativo e em que a justiça é encontrável
pela mera aplicação de uma norma abstrata a um fato que se amolda a ela, e não o contrário,
passa-se à possibilidade de um direito do acontecer de objetivos concretizadores de justiça
343
Martin Heidegger critica a metafísica acusando-a de ser fundamentalista, ao dizer que ela pretende um
fundamentum inconcussum, um fundamento firme e objetificador.
344
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 23.
163
social; do universal propriedade, em direção à compreensão de que a propriedade exerce uma
função na sociedade, pois assim foi “constituída” pela Constituição; da idéia de um processo,
universal e, por isso, ordinarizado e normativo, em direção à idéia de que o processo se
destina a realizar o acontecer dos direitos; da idéia de suficiência ôntica da norma, em que se
reproduzem sentidos, à idéia de que os fatos não se repetem e, em sua diversidade, devem ser
regulados pelo direito que, compreendendo a diferença, compreende o sentido do ser; da
dualidade entre ser e ente, fato e direito, texto e norma, validade e vigência, essência e
aparência, à compreensão da diferença ontológica que é a compreensão, que se dá no interior
do círculo hermenêutico, de que o ser é sempre ser de um ente, que, sendo o sentido um
existencial do Dasein, não há uma propriedade colada sobre o ente.
Resgatar o mundo prático, pois, buscando os diferentes sentidos do ser desse ente, que,
a cada aplicação, é o direito material no processo, essa é a tarefa da hermenêutica, que busca a
superação da ideologia a caminho da autenticidade.
5.1.2 Da ideologia à autenticidade
A concepção da análise da ideologia à autenticidade comporta, por isso, dois
momentos: 1) a noção de que, estritamente falando, é incorreto dizer-lhe que um indivíduo
isoladamente pensa. Antes, é mais correto insistir em que êle participa no pensar
acrescentando-se ao que outros homens pensaram antes dêle.”
345
; sendo assim, a inserção do
indivíduo no horizonte de sentidos, que lhe lega a tradição, está eivada de sentidos não
questionados, pois a ontologia transmitida pela tradição obstrui novos desenvolvimentos,
particularmente nos modos básicos de pensamento”
346
; 2) desvelar os sentidos inautênticos,
produzindo o choque hermenêutico com o que é familiar e, por isso, permanece não-
questionado, permite a transposição de um universo de compreensão representativa do
mundo, dotada de métodos e confiança no domínio da natureza e da vida, pela ciência, em
direção a uma nova compreensão do mundo, fundada em uma forma autêntica de inserção do
homem no mundo em sua relação com as coisas e com os outros.
345
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 31.
346
Ibid., p. 115.
164
Ricardo Timm de Souza, no ensaio intitulado “Alteridade & Pós-modernidade – Sobre
os difíceis termos de uma questão fundamental”
347
, apresenta esse projeto como uma
passagem entre três momentos ou formas de interpretação do que ele prefere chamar de pós-
modernidade
348
.O autor demonstra uma relação sucessiva não-linear entre o pós-modernismo
hegemônico e o pós-modernismo desesperado, como formas de caracterizar as cores do
individualismo da modernidade como tempo tragicamente corroído por uma auto-
compreensão e auto-validação insuficientes
349
, em direção a um pós-modernismo desviante
que caracteriza uma espécie de aposta paradoxal
350
, que pretende descobrir o sentido
onde, muito provavelmente, segundo todos os indicativos de uma totalidade de sentido, ele
não se encontrará.”
351
Da ideologia à autenticidade, então, é um caminho a ser trilhado em busca de uma
aposta paradoxal, uma aposta em uma categoria considerada pela doutrina majoritária como
mero slogan”, cujo valor prático ou mesmo téorico é por ela considerado inexistente: a ação
de direito material. Essa categoria, paradoxalmente, é aqui compreendida como condição de
possibilidade de recuperar o sentido. Um sentido que está no mundo e que precisa ser
desvelado, numa expressão de redescoberta do sentido do ser do processo e do direito material
em sua relação de diferença, que é ontológica, no sentido heideggeriano, como identidade e
diferença, porque, na medida em que não podem ser separados, também não podem ser
confundidos, unificados.
A reconstrução ideológica do direito, por esse motivo, no âmbito da investigação sobre
a relação entre o direito material e o processo e sobre o papel da ação de direito material nesse
contexto, se impôs como forma de buscar o que diz a tradição e desvelar a oposição entre
sujeito e objeto, que ela lega à compreensão do mundo.
No campo do direito, essa relação opositiva entre sujeito e objeto, que objetifica o ente
e lhe confere um significado único, impedindo a autenticidade na compreensão que o homem
tem de si mesmo e do mundo, atinge o direito impedindo-o de realizar seu escopo de
constante significação. No campo da relação entre direito material e processo, a relevância da
investigação é a de que a incompreensão do direito material, que resta objetificado por sua
347
SOUZA, Ricardo Timm. Alteridade & pós-modernidade: sobre os difíceis termos de uma questão
fundamental. In: ______. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto
Alegre: EdiPUCRS, 2000.
348
A utilização da expressão pós-modernidade no texto não está comprometida com a adoção de um
entendimento acerca do fim da modernidade.
349
SOUZA, op. cit., p. 151.
350
Ibid., p. 165.
351
Ibid.
165
constante significação como direito subjetivo, relativo e obrigacional, apaga as diferenças,
impedindo o processo de buscar, nas características das diferentes pretensões e ações
alegadas, o modo de proceder e, também, o modo de realizá-las. Não diferenciação.
apenas um significado para cada significante. Não há, por exemplo, como conferir maior
relevância a direitos fundamentais, que restam identificados com direitos decorrentes de
relações obrigacionais (relativos). Os direitos não se impõem em sua diferença, em sua
relevância, em sua primariedade. No campo do processo, a incompreensão acerca do sentido
do ser do direito material, que lhe é legada por essa realidade, retira-lhe força, ao negar o seu
modo-de-ser, a ação de direito material, e impede que o processo opere satisfatoriamente,
obstaculizando, ainda, o reconhecimento de seu verdadeiro papel, a concretização de direitos
carentes de efetividade, o que foi enfrentado nos capítulos precedentes.
Tal resultado é visível e suas raízes históricas exigem esse incessante confronto com a
tradição, de modo a que sempre seja refeita a pergunta sobre o sentido da relação entre direito
material e processo no caso concreto. Isso no intuito de desvelar seu significado e permitir a
compreensão autêntica dessa relação, permitindo a recuperação da ação de direito material
como categoria que permite a retomada do mundo prático e a constante busca e o encontro
com o significado, um significado autêntico, de constante busca pela diferença dos sentidos,
que estão no mundo.
A ação de direito material, então, não é retomada como ferramenta, nem pretende
entificar o ser do direito material em categorizações abstratas e a prioride como deve ser
moldado o processo. Ao contrário, é buscada como fonte de constante vigilância
hermenêutica na efetivação dos direitos sem mudar sua essência, respeitando seu modo-de-
ser - por meio do resgate do mundo prático para a constante releitura dos institutos
processuais a partir do direito posto em causa, e não, de necessidade de sistematização de
soluções catalogadas para cada conjunto de casos. Isso existe, e está provado que não
funciona. Não, ao menos, com a leitura abstrata de que o processo pode transformar o direito
no que ele não é, ou teria autorização para tanto, quando o mundo prático dita solução
consentânea com as coisas mesmas (e, utilizando as palavras de Streck, não as mesmas
coisas!)
352
.
Ocorre que o direito, legado pela tradição, o a priori compartilhado que se põe diante
de nós como pré-compreensão do mundo, é de um direito material cuja genética é construída
pela compreensão desontologizada do mundo, preso no intellecto do sujeito, pela Revolução
352
Nesse sentido, as obras do autor indicadas entre as obras consultadas.
166
Liberal-Burguesa e pela pandectística dos séculos XVIII e XIX, que culminaram com a
elaboração do Código Civil Francês, em uma tradição em que o sujeito individual é o sujeito
autônomo-proprietário, sendo esse o detentor dos direitos, em que o sujeito excluído não tem
direitos, mas tem deveres e em que a necessidade de construção sistemático-científica reduz a
natureza das coisas à universalização dos valores liberais. O nascedouro da noção de direito
subjetivo, como afirma Michel Villey, está centrada na tríplice compreensão propriedade-
autonomia-reparabilidade dos danos
353
. Nesse contexto, os meios jurisdicionais não
resguardam os direitos a partir de atitudes positivas, mas essencialmente por meio da atitude
negativa de não permitir a intromissão na esfera jurídica alheia. Essa visão da autonomia
individual reformula os direitos, a partir do ingresso no processo, em direitos obrigacionais
incoercíveis, para o que se retorna à actio e à obligatio (procedimento privado do período
formulário destinado a regular direitos relativos e cuja universalização começa com o Direito
Justinianeo), e exige a incoercibilidade das obrigações que, registre-se, não foi regra nos
sistemas jurídicos europeus do medievo. Conforme assevera Chiarloni, é, assim, iniciada
“una costruzione delle obbligazioni di fare per cui l’attività personale del debitore
non è in obligatione, ma solo in solutione: l’obbligazione di fare ‘un oggetto
giuridicamente impossibile’; essa é, como l’obbligazione naturale, giuridicamente
non obbligatoria’; e pertanto, sotto il profilo costruttivo, si trata non già, almeno, di
un’obbligazione alternativa (il fatto o i danni-interessi) ma, addirittura, di una
semplice obbligazione facoltativa per il debitore, che deve i danni a titolo principale
e ha la facoltà di liberarsi prestando il facere (97)”
354
.
Concebe-se, nesse paradigma, a jurisdição como atividade de acertamento, a qual não
é dado atuar no mundo dos fatos, relegado à atividade administrativa do juiz, que perde sua
imperatividade e se restringe a uma atuação meramente normativa, pois a intervenção no
mundo prático - além de não ser jurisdicional e também limitada à tipicidade especificada na
lei processual se limita a exceções para dar efetividade ao valor máximo, a propriedade, e
para atender ao mercado.
Esse direito subjetivo, assentado sobre as bases do individualismo e da auto-
suficiência da razão humana, é um direito que não permite o encontro com diferentes sentidos
dos direitos fundamentais, absolutos (reais ou pessoais), relativos etc. inviabilizando a
compreensão de sua diferença, que se no mundo prático, como se fosse preciso superar a
353
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
354
CHIARLONI. Sergio. Misure coercitive e tutela dei diritti. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1980. p. 83.
167
própria cadeia genética (o DNA) dessa noção para que a autêntica compreensão do direito
possa acontecer, superando a noção dada, e não, discutida de direito que, quando ingressa no
processo, assume a feição universalizada que lhe dava a actio. Uma noção que
ideologicamente se impõe à compreensão, que não faz mais do que inviabilizar a
concretização do direito material - como pretensão e ação - impondo um modo-de-ser que é
construído pelo processo sem qualquer vinculação com o mundo prático. Sim, a cadeia
genética precisa ser superada para que outra construção se desvele. Essa construção supõe a
superação da idéia de individualismo do sujeito solipsista e de auto-suficiência da razão
humana, construindo um significado em que a relação entre sujeito e objeto (a relação de
significação) se como encontro não-provocado, um encontro como acontecer em que o
sujeito que compreende se pergunta pelo objeto e constrói os sentidos em uma inserção fática,
histórica, na dimensão do cuidado, consigo e com os outros, em uma dimensão de
responsabilidade pela alteridade do Outro.
Compreensão e interpretação se dão na aplicação, e isso torna sugestivo lembrar, com
Gadamer, que, em língua alemã, compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer
prático [...]”.
355
Essa dimensão prática precisa ser resgatada, pois não basta que, no
pensamento do juiz, a técnica esteja adequada à coisa. É preciso buscar a dimensão
compreensiva que, como existencial desse ser que somos todos nós, exige o reconhecimento
das dimensões da temporalidade, da faticidade, do cuidado e da finitude, que determinam que
toda tarefa compreensiva do homem é também, como ele, um projeto que impede a
cristalização dos sentidos e seu aprisionamento na a-temporalidade, na abstração, na
irresponsabilidade, no não-envolvimento com as possibilidades, para fugir da insegurança e
de tudo o que, no sentido moderno, não seja o verdadeiro. Lembrando que, verdadeiro, em
sentido moderno, é tudo o que não está remetido aos fatos, cambiantes, tudo que é constante,
inversamente, alerta Heidegger: “Em sentido grego, o que é ‘verdadeiro’, de modo ainda mais
originário do que o λόγος acima mencionado, é a αίσθησις, a simples percepção sensível de
alguma coisa
356
. A exigência é, pois, de retorno ao mundo prático. A concepção moderna de
eu, no entanto, duvida fundamentalmente dos sentidos porque, segundo Descartes, “nunca nos
devemos deixar convencer senão pela evidência de nossa razão. É bom que se note que eu
355
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. p. 348.
356
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 73.
168
digo de nossa razão e não de nossa imaginação e de nossos sentidos.”
357
. Enfim, trocamos o
mundo pelo método e é necessário inverter essa escolha.
Desse modo, é necessário fazer acontecer a viravolta o linguistic turn ocorrido na
filosofia que se tornou hermenêutica (com Heidegger) e na hermenêutica que se tornou
filosófica (com Gadamer), no campo jurídico, e essencialmente na relação entre direito
material e processo, sem o que, mesmo diante de uma Constituição de feição transformadora
da realidade social, os direitos continuarão carentes de concretização. De nada adianta uma
teoria constitucional adequada aos novos tempos se, no processo no presente caso, no
processo civil –, esses valores não têm ingresso, pois, enquanto o mandamento constitucional
determina a concretização dos direitos, o processo é tematizado dogmática e normativamente
com escopos que consideram que neste quadrante da História do direito, já não teria sequer
sentido cogitar da tutela dos direitos como escopo do processo [...]
358
, produzindo, com
isso, uma teoria processual que legitima a atividade jurisdicional meramente normativa, em
que a atividade (e responsabilidade) do juiz vai até a declaração do direito.
5.2 UMA COMPREENSÃO A PARTIR DA TRADIÇÃO EM DIREÇÃO A UMA NOVA
POSSIBILIDADE DE SENTIDO
O esforço empreendido nos próximos itens busca apresentar a ação de direito material
como aletheia
359
, que permite o encontro com o sentido do direito material pelo processo, ao
resgatar o fenômeno em um sentido privilegiado, em que logos e fenômeno se unem na ação
de direito material que, por resgatar o mundo prático, fala ao processo, como linguagem que
é, do direito material. Com isso, o método é dimensionado como projeto, a partir do
parâmetro que é a ação de direito material.
357
DESCARTES, René Discurso do método. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. p. 101.
358
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 216.
359
Aletheia, nos gregos, segundo Ernildo Stein, é o elemento primeiro e original que fecunda a meditação”.
STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude. Ijuí: Unijuí, 2001 p. 53.
169
5.2.1 A introdução da necessidade da viravolta da compreensão em direção ao modo-se-
ser do direito material no processo
Com base nas considerações precedentes, é possível afirmar que a ação de direito
material, como parte da natureza, como fenômeno, que está no mundo, é repudiada pelo ente
artificial, como parte do estado de natureza, por representar uma esfera de liberdade que
lembraria a guerra de todos contra todos. Essa afirmação pode ser encontrada nas assertivas
dos doutrinadores que se opõem ao que denominam de compreensão da relação entre direito
material e processo em termos de ação de direito material, que, em sua visão, a ação de
direito material estaria sendo recuperada como se fosse uma retomada do exercício dos
direitos por meio da força bruta. Nessa visão, o Leviatã repudia, porque fenômeno,
acontecimento, parte de um mundo que deve ser abandonado como um todo em prol da
segurança jurídica. O positivismo, ao refutar essa categoria, então, o faz por encontrar nela
uma manifestação desse estado de natureza pensado por ele. Se o positivismo atribui um
único significado ao significante, porque é necessário imprimir ordem ao mundo, não poderá
ele conviver com uma categoria que, como acontecimento, remete o homem ao mundo e
inviabiliza a univocidade de sentidos. A determinação de um sentido a priori restaria
inviabilizada. Os sentidos estão no mundo e são-ou-não-são-no-mundo, a partir do
acontecimento. Para o positivismo, o mundo não é mundo, é mera representação dual
sensível e supra-sensível, natureza e Estado.
Quando se fala em mundo, a partir da viravolta heideggeriana, pensa-se num mundo
constituído pela linguagem. A linguagem, em Heidegger, é a morada do ser. É mundo. A ação
de direito material é compreendida, aqui, como linguagem do direito material, que não se
realiza espontaneamente e, por isso, não prescinde do processo. É mundo onde esse ser se dá
na dimensão dos outros, na relação com os outros. É importante, então, reconhecer que o
processo, como técnica, não tem conteúdo a priori, donde deriva a abstração da “ação”. Sem
esse reconhecimento, não se poderia reconhecer a ação processual como categoria abstrata, no
que se compartilha da afirmação de Daniel Francisco Mitidiero de que o direito à tutela
jurídica, a pretensão à tutela jurídica e a ‘ação’ processual são entes abstratos, com o que,
evidentemente, não podem carregar um conteúdo diferente nessa ou naquela situação.”
360
360
MITIDIERO. Daniel Francisco. Polêmica sobre a teoria dualista da ação (ação de direito material ‘ação’
processual): uma resposta a Guilherme Rizzo Amaral. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme
Rizzo. (Org.) Polêmica sobre a ação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 135.
170
Se a técnica não carrega, a priori, seu conteúdo, o que, de fato, impediria (impede) o
acesso ao sentido do ser do direito material? Como se esse sentido no mundo? Em um
exemplo: Quem ou o quê informa o juiz sobre a escolha a fazer quando se depara com a
necessidade de compreensão-aplicação do art. 461 ou do art. 461-A do Código de Processo
Civil? É sua livre escolha, como indivíduo, auto-suficiente, dotado de razão e apto a escolher
segundo sua livre determinação? Não um limite de sentido? Há, sim, um limite de sentido,
no sentido heideggeriano do termo, em que o “limite não é aquilo onde algo deixa de ser, mas
como os gregos o reconheceram, o limite é aquilo a partir de onde algo começa o
desdobramento de seu ser.”
361
Esse limite, como possibilidade de ser é o sentido do ser da
ação de direito material. As cargas eficaciais estão no mundo, na ação de direito material, não
no processo, ao qual incumbe a tarefa de garantir-lhe meios de realização, não de existência.
Parte-se do pressuposto de que a compreensão ocorre como aplicação, sempre a partir
de um horizonte de sentido, que é temporal. Trata-se, então, quando se fala em ação de direito
material, de recuperá-la como possibilidade de compreensão, aletheia, como força do direito
material que não pode ser recusada pelo processo.
A partir dessa categoria a ação de direito material –, unem-se o logos, a palavra, e o
fenômeno, que permite que, do fenômeno no sentido vulgar, surja o fenômeno no sentido
privilegiado, o sentido encoberto do ente o direito que se mantém oculto pela precedência
do que não é questionado. Dizendo de outro modo: o senso comum teórico define
aprioristicamente o que é o direito material e como se o processo. O que se propõe, aqui, é
uma constante tarefa de vigilância e, portanto, de questionamento do ser desse ente, que se
vela nas atribuições apressadas de sentido, reconhecendo que, se o sentido não é único, o
modo de acesso a ele não pode ser dado a priori.
Para a hermenêutica, as coisas não são em si. Têm sentido a partir da compreensão de
que, por ser um existencial daquele que somos nós mesmos e reconhecendo que não um
indivíduo desarraigado da tradição, o sentido se na dimensão da faticidade e da
historicidade daquele que compreende a partir de uma situação hermenêutica que deve ser
investigada a partir da tradição, de modo a desvelar os sentidos no movimento de
desvelamento-velamento que produz a aletheia.
O acesso aos ser dos entes não pode ser pré-dado (na dupla significação da expressão)
pelo método: o processo. Também não pode ser buscado no ente, porque o ente pelo ente é a
forma como o ser permanece aprisionado no conceito. Sendo assim, busca-se o acesso ao ser
361
STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude. Ijuí: Unijuí, 2001. p. 124. Stein, nesse trecho, cita e traduz o
próprio Heidegger a partir do original Vorträge und Aufsätze.
171
do ente por meio da compreensão desse modo de ser do direito material que é trazido e
possibilitado pela ação de direito material, como categoria, no mundo. A ação de direito
material não é resgatada como categoria histórica, até mesmo porque, no decorrer na história,
como se viu no Capítulo 1, ela foi, paulatinamente, sendo aprisionada em conceito e, por fim,
negada. Também não é o fenômeno vulgar da ação de direito material que se quer resgatar,
como atividade entregue ao sujeito para que a exerça, repristinando o período mais antigo do
Direito Romano, em que o processo pelo procedimento da legis actio sacramento apenas
tratava de legitimar uma conduta imposta pela força privada de um dos adversários. A
proposta de tratá-la como categoria hermenêutica desenvolve essa categoria como fenômeno
privilegiado que traz à dimensão da fala o que não foi pensado, como se compreende um
direito material, qual sua dimensão caracterizadora, no caso, diante do fenômeno da
aplicação, resgatando o conceito de mundo, como fundamento e de horizonte como limite (no
sentido positivo, que é de onde começa o desdobramento do ser de um ente) de
questionamento e de desvelamento do ente.
No processo, isso representa a possibilidade de, no caso concreto, dar-se a
compreensão e a interpretação de como o direito material é, de imposição de sua
concretização por seu ser manifestado por esse desvelamento, buscando o cuidado de fazer
realizar o direito em uma dimensão que resgate sua autenticidade em lugar de dar-lhe uma
dimensão de sentido entificado pela ideologia do domínio da técnica.
Nessa visão, não se trata de dispensar a técnica, mas, ao contrário, de reconhecê-la em
sua ambivalência, positiva e negativa, recuperando-a positivamente. Isso quer dizer que a
técnica é revitalizada em sua essência, pelo que ela realmente é, não podendo, por isso,
inverter a essência do direito material, nem sua própria essência. Sob essa ótica, o direito
material traz em si a força normativa e a diretriz de sua realização, e o processo, como
técnica, é construído para viabilizar a realização do direito material, sem negar essas
características e visando a potencializá-las por meio de suas próprias construções.
Considerando que a forma de realização dos direitos obrigacionais, por exemplo, ante o
reconhecimento de direitos fundamentais, como a tutela à esfera patrimonial e
extrapatrimonial do devedor, deve ser compreendida em sua dimensão temporal e que
casos em que não podem, ou não poderiam, a priori, ser tutelados por nenhuma das cargas
eficaciais oriundas do direito material, casos de prestações em pecúnia, por exemplo, em que
nasce a necessidade de construção de técnicas, pelo processo: é o caso da ação condenatória,
construção meramente processual, no que se concorda com Ovídio Araújo Baptista da
172
Silva
362
, para se discordar, com ele, de Pontes de Miranda
363
. Em sentido inverso, a
necessidade de impor ao processo as características do direito material, que, em seu modo-de-
ser, é dinâmico, porque a compreensão envolve sempre um processo de aplicação do que,
como exemplo, se poderia apontar a sumarização da cognição, agregada ao contraditório
invertido e postificado, que vem sendo tematizado por Ovídio Araújo Baptista da Silva, como
forma de estabelecer uma correlação inversamente proporcional entre o grau de evidência
do direito e a complexidade do respectivo procedimento”.
364
Uma releitura do papel da ação de direito material neste contexto é condição de
possibilidade dessa visão. A idéia que se sustenta é uma idéia que encontra similar na
compreensão autêntica dos princípios no Direito.
A relação que opõe sujeito-objeto impede a autenticidade da compreensão do papel
dos princípios na compreensão do direito. Com a ação de direito material, ocorre o mesmo e é
por isso que uma nova compreensão da relação entre direito material e o processo, a partir do
mundo como linguagem numa virada na dimensão do ser a ação de direito material
direciona-se à superação do que Heidegger chamou de último princípio epocal: a técnica
365
.
5.2.2 Da superação da idéia de método científico e único em direção à diferença
projetada pelo sentido
A ontologia cartesiana do mundo é ainda hoje vigente em seus princípios
fundamentais”
366
, como aponta Heidegger. Esse modo de pensar cartesiano atinge o modo de
pensar o mundo, porque, para Descartes, segundo aponta o próprio Heidegger, a única via
autêntica de acesso ao mundo é o conhecimento, “a intellectio, no sentido físico-
matemático”
367
. A adoção desse paradigma está, obviamente, estruturada em face da
necessidade de superação da dúvida metódica. Havia necessidade de opção pelo método
confiável, e a mente humana, o cogito ergo sum, continha a base de toda a certeza possível. A
362
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A ação condenatória como categoria processual. In: ______. Da sentença
liminar à nulidade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 233-252.
363
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcantti. Tratado das ações. Campinas: Bookseller, 1999. v. 3.
364
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil, v.3. Porto Alegre; Sergio Antonio Fabris, p. 47.
O autor cita D. Barrios de Angelis em notas de aula mimeografadas.
365
Heidegger trata a questão relativa ao último princípio epocal o Ge-Stell em quatro conferências “A
Coisa”, “O Dispositivo”, “O perigo” e “A Viravolta”.
366
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 153.
367
Ibid., p. 147.
173
matemática, criada pelo homem, continha a possibilidade de alcançar essa certeza. Esse novo
paradigma de pensamento, que parte da dúvida em busca da certeza e encontra, na
matemática, o método que poderia levar à verdade, alcança o pensamento humano e suas
formas de expressão, por meio do método.
A interpretação e os fundamentos da filosofia cartesiana levaram a que se saltasse
por cima do fenômeno do mundo, bem como do ser dos entes intramundanos que estão
imediatamente à mão.
368
Efetivamente, a compreensão moderna do mundo e da inserção do
homem no mundo “salta por cima do fenômeno do mundo”, porque o mundo moderno passa a
ser a imagem representada pelo sujeito. O mundo, ou seja, o “ente en su totalidade se entiende
de tal manera que solo es y puede ser desde el momento en que es puesto por el hombre que
representa y produce. [...] Se busca y encuentra el ser de lo ente en la representabilidad de lo
ente.
369
O mundo é a representação que decorre da abstração do sujeito que se compreende
no mundo o que constitui a base da interpretação das relações humanas e, como não poderia
deixar de ser, do Direito. Esse reconhecimento permite que se observe porque o ideal de
sistematização do mundo e, especialmente do direito, no mundo moderno, se torna a tarefa
fundamental. “A la esencia de la imagen le corresponde la cohesión, el sistema.”
370
O
individualismo, como fonte, produz um mundo abstrato, representado, ao que corresponde,
ainda, a possibilidade de sistematização que aparece, segundo Heidegger, cuando falta la
foerza originaria del proyecto.”
371
É necessário reconhecer, com Heidegger, que a estrutura da compreensão “possui a
estrutura existencial do que chamamos projeto (N52)”
372
em que o projeto é a constituição
ontológico-existencial do espaço de articulação do poder-ser fático.”
373
Compreender,
segundo Heidegger
374
, é projetar possibilidades e interpretar é elaborar tais possibilidades.
Esse compreender - cuja estrutura significante é aberta - abre as possibilidades do sentido e
necessita da vigilância constante acerca das posições prévias, visões prévias e concepções
prévias.
375
368
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 147 (O grifo pertence ao original).
369
HEIDEGGER, Martin. La epoca de la imagen del mundo. In: ______. Caminos de bosque. Madrid: Alianza,
1996 Disponível em: <http:www.heideggeriana.com.ar>. Acesso em: jun. 2007.
370
Ibid.
371
Ibid.
372
HEIDEGGER, op. cit., p. 205.
373
Ibid., p. 205.
374
Ibid., p. 209.
375
Ibid., p. 211.
174
A partir disso, Gadamer dirá que a
“compreensão alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias
com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso, faz sentido que o intérprete não
se dirija diretamente aos textos a partir da opinião prévia que lhe é própria, mas
examine expressamente essas opiniões quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à
sua origem e validez.”
376
Compreender e interpretar, desse modo, são projeto. A abertura de sentido que se
no projeto, no entanto, - em face do modelo cartesiano, que substituiu o mundo pelo intellecto
e que mantém a marca platônica das dualidades fundamentais, entre sensível e supra-sensível,
em que a mera aparência, o fenômeno, não tem valor, e em que o valor, o belo, está no supra-
sensível, no mundo das idéias, de essências que estão dadas neste espaço ideal e que se
impõem sobre a compreensão humana de modo imutável foi abandonada em nome do
sistema. Compondo-se dessa forma, a modernidade concebe a verdade a partir da razão, por
intermédio do método, em que tudo que não é pensamento, tudo que está no mundo, é
duvidoso e, pois, imperfeito. O ideal de sistema atende aos anseios dessa nova forma de ver o
mundo. Projetar-se, abrir a compreensão à multiplicidade de sentidos que se dão no mundo e,
no que nos interessa, no momento da aplicação (do caso concreto em sua singularidade
irrepetível), não é compatível como ideal de suficiência da razão, da imperfeição de tudo o
que não é racional e da busca por clareza e ordem por intermédio do método.
Prevalece, então, o sistema e se perde a noção de projeto como decorrência da
concepção filosófica e por imperativo do ideal de ordenação do mundo pelo Estado que
emergiu na modernidade.
Essa idéia é transposta, para a estrutura hobbesiana do poder, em que o fenômeno é
abandonado no estado de natureza e o Estado-Leviatã, ente-artificial, idealizado pela razão
humana e por seu poder auto-suficiente de escolha, constrói o que é necessário ao homem,
para satisfação de seus anseios e necessidades. Essa visão dual, em que idéia e real não
precisam ser co-relacionados - não têm existência compartilhada - é a história da metafísica
do esquecimento do ser, em que o mundo de entes meramente subsistentes é governado pela
razão humana e suas construções. O que está no mundo não é reconhecido como ser, apenas
como ente. Os sentidos são aí abandonados, porque o projeto se perdeu e, com ele, a
376
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. p. 356.
175
possibilidade da compreensão, que tem no projetar-se sua estrutura existencial. Os entes são
subtraídos ao tempo, à faticidade, à historicidade, ao cuidado. Não são mais em seu ser. Essa
história de esquecimento do ser dos entes é, então, a história do esquecimento do sentido. Não
necessidade de pensar o ser dos entes em sua dimensão fenomenológica. Os entes como
entes bastam porque estão à mão, não precisam ser pensados, poupam um esforço de
compreensão, pois seu significado está dado, é apenas um um significado para cada
significante sentido unívoco ao gosto do positivismo e paradoxalmente adaptado às suas
variantes legalista e pragmático-estratégica.
A prevalência da idéia de sistema sobre a idéia de projeto, no momento em que a
modernidade organizava o Estado emergente e sua técnica, o Direito, se solidifica no séc. XIX
e, no assunto que ocupa a presente investigação, aprisiona a relação entre processo e direito
material nos institutos que foram objeto da sistematização do direito especialmente pela
Escola História. Daí o motivo da apontada submissão da relação entre direito material e
processo ao ideal de autonomia e daí o legado da classificação dos direitos segundo critérios
uniformes que universalizam no instituto da actio e, por decorrência, do correlato instituto da
obligatio. Todo o fenômeno processual indica um único sentido e, por isso, uma única
estrutura essencial para a realização da jurisdição que, desligada da abertura de sentido dada
pelo projeto, fica presa nos sentidos previamente estabelecidos pela sistematização do direito.
Por isso, se vê, na manutenção da idéia de sistema, ligado à contraposição S-O, a
impossibilidade de os sentidos ocorrerem no mundo e na impossibilidade de, fora dos limites
da técnica, admitir-se a capacidade impositiva do direito material em seu sentido no mundo
(ação de direito material), o que imporia multiplicidade de sentidos (em atenção às coisas elas
mesmas) e potencialidade transformadora da jurisdição para além da imposição da
incapacidade de transformação pelo direito, em que a exceção é a regra.
Toda a presente abordagem da tradição em direção à viravolta do sistema ao projeto
(que, como projetar-se, resgata o mundo prático) - pretende desenvolver uma possibilidade de
questionamento desvelador. Mas, como Heidegger, em Ser e Tempo, é preciso evidenciar que
se entende
“essa tarefa como destruição do acervo da antiga ontologia, legado pela tradição.
Deve-se efetuar essa destruição seguindo-se o fio condutor da questão do ser até
chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações
de ser que, desde então, tornaram-se decisivas. [...]. Em todo caso, a destruição não
176
se propõe a sepultar o passado em um nada negativo, tendo uma intenção
positiva.”
377
Essa tarefa desconstrutiva da ontologia da tradição, em que o indivíduo da
modernidade ocupa o lugar central, dando lugar ao mundo como representação e a ideais
sistematizados e que, para isso, alijam o tempo, é não apenas relevante, é muito mais do que
isso. Segundo se sustenta, é condição de possibilidade de uma nova visão das relações
humanas e do Direito, como técnica destinada a regular essas relações. Sem essa
desconstrução, a tradição permanecerá ditando, a partir de compreensões inautênticas, porque
não-questionadas, sentidos universalizados que servem ao compreender a-histórico, a-
temporal, desvinculado do mundo e dos outros, representativo do mundo, que estabelece
sentidos unívocos, especificamente no âmbito da relação do direito material e do processo, em
nome de certezas artificiais, segurança fictícia, liberdades vãs, inexistência de vínculos, ordem
modificadora de essências em nome de representações seguras, sistemas em lugar de projetos,
tudo em nome da perpetuação do indivíduo da era da técnica e do valor de troca.
O direito material e o processo, servindo a essa realidade, mantêm uma relação de
instrumentalidade abstrata. Presentes a dualidade platônica e a substância aristotélica na
forma do cogito. Faz-se direito pensando abstratamente o mundo das idéias e - na relação que
se estabelece no âmbito do processo, para o qual rumam as relações que não lograram
satisfação espontânea e, portanto, necessitam da intervenção da técnica - a abstração
desconhece os reflexos dessa atuação na vida não das pessoas envolvidas autor e réu,
litisconsortes, assistentes –, mas de toda a comunidade. Essa abstração produz o mau-uso da
técnica e, por meio dela, altera a essência de tudo, construindo representações. A substância
então, passa a ser a representação que fazemos da coisa e não a coisa mesma. As pretensões e
ações de direito material, ao serem alegadas nas “ações” processuais, perdem sua essência, em
nome da manutenção de um legado de certezas e seguranças impensáveis na era da
modernidade técnica em que as relações são marcadas pela liquidez, como afirma Bauman em
que tudo é fluido, tudo é passageiro, em que tempo e espaço se confundem, em que a
dimensão da esfera da fala é substituída, paulatinamente, pelas coisas passíveis de serem
consumidas e o homem paulatinamente não se relaciona com outros homens, porque lhe basta
as relações com as coisas, sendo esta a “versão liquefeita da condição humana
378
.
377
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 61.
378
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 59.
177
A negação da ação de direito material permanece nos limites da metafísica
(clássica/moderna) que busca os sentidos na coisa e na mente, deixando de lado o mundo
prático e apresentando um discurso que coaduna o processo ao direito material previamente.
Essa negação contém em si a escolha pelo método e o alijamento do mundo.
A incompreensão do direito material e o predomínio do método que circunscreve o
processo à escolha de escopos pelo intérprete, derivadas dos sentidos que são legados pela
tradição são as fontes da incompreensão da relação entre ambos. Na relação entre direito
material e processo, então, é preciso desvelar uma compreensão autêntica, para construir uma
relação que atenda à realização dos direitos em direção a uma construção da legitimidade do
direito e do processo em âmbito comunitário.
5.3 A TAREFA DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
Todo o empreendimento reflexivo até aqui esposado visa, essencialmente, a projetar a
tarefa da hemenêutica, especificamente, no campo da relação de identidade e diferença entre
direito material e processo.
A projeção dessa tarefa, longe de buscar a formulação de um conceito ou de uma
sistematização, o que negaria tudo o que se abordou até aqui, procura projetar uma nova
forma de compreender essa relação, condição de possibilidade primeira de qualquer
empreendimento que pretenda recuperar a efetividade do processo, e, por isso, a
concretização das pretensões e ações de direito material por meio dele.
Essa é a projeção que se buscará empreender, nos próximos itens, como tarefa final no
presente estudo.
178
5.3.1 Do que se mostra numa primeira aproximação ao que se desvela no fenômeno
A tarefa da fenomenologia, às
“‘coisas elas mesmas!’ por oposição às construções soltas no ar, às descobertas
acidentais, à admissão de conceitos aparentemente verificados, por oposição às
pseudo-questões que se apresentam, muitas vezes, como problemas’, ao longo de
muitas gerações.”
379
é a tarefa aqui empreendida, transposta da analítica da presença, para buscar as possibilidades
da compreensão do direito material em sua relação com o processo que intervém na vida.
Propõe-se uma desconstrução do modelo assujeitador e de encontro-provocado pelo
instrumento que se interpõe entre o sujeito e o objeto em direção ao desvelamento da
possibilidade de encontro, de projeto a ser sempre revisado, de modo a transformar a
realidade técnica, em que tudo está reduzido a valor de troca, em uma realidade de constantes
desvelamentos de sentido e, portanto, uma realidade em que a compreensão pode encontrar a
justiça.
A relação entre direito material e processo, consoante salientado no capítulo II, que
trata da questão da técnica, está aprisionada no método cartesiano e abre um leque de
possibilidades de negação do ser do direito material e do processo, pela inversão de suas
essências.
Quando o direito material entra no processo, todos esperam o cumprimento de um rito
que se não é, acabará sendo o rito comum ordinário, de passos previamente agendados e
lentos, prevendo, aqui e ali, modificações que visam à alteração dessa realidade, no plano
meramente apofântico, sem que se investigue o que está nas profundezas dessas concepções
arraigadas ao método, caminho sempre igual para destinos diferentes. O caminho traçado pelo
processo civil brasileiro, tem, à sua base, o que já foi analisado no capítulo II e no capítulo III
(sobre a questão da técnica e a análise da exceção), uma concepção de autonomia e abstração
que lhe alteram a essência. É certo que a técnica é vazia, mas dizer vazia, porque não tem
conteúdo a priori, não quer dizer que não encontre seu conteúdo quando é chamada à atuação.
O que se quer dizer é que ela não contém, em si, o conteúdo e que também não pode criar
379
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 66.
179
desenraizadamente o conteúdo para acoplá-lo à realidade que está fora dela. Não é possível
deixar os negócios humanos, a dimensão da fala, da linguagem e da compreensão, que exigem
que o intérprete esteja projetado no mundo, para acomodar-se no mundo das idéias,
resguardando a dimensão da segurança que serve, inclusive, ao ideário da distinção na era da
técnica: que supõe a existência mecanizada de um dispositivo, instrumento a ser acoplado à
coisa, que asseguraria a resolução dos problemas. Essa técnica abstrata preenchida pelo
acoplamento de uma substância artificialmente criada pelo intelecto e, portanto,
universalizada, não esconde seu poder dominador do mundo, convertido à imagem de
constância de sentidos.
No processo, esses fatores são visíveis quando a vigilância hermenêutica convida a
pensar o que antes era tido por inquestionável. Todos os passos, pré-determinados, criam a
segurança de um resultado que será alcançado com o cumprimento do rito. Esse senso comum
teórico - que não é, senão, o que diz a tradição impensada - subtrai a capacidade de
questionamento e imortaliza práticas mecanizadas. A essência da técnica, o que ela
verdadeiramente é, perde sua dimensão de possibilidade e passa a ser o seu inverso. Para esse
fim, serve a negação da existência, utilidade, da ação de direito material na discussão de sua
relação com o processo. Para o senso comum, herdeiro da tradição, é mero anacronismo, e sua
retomada, falar sobre ela, um desperdício. Ora, o que essa corrente majoritária pretende velar
é o fenômeno, ele mesmo, “o que se revela, o que se mostra em si mesmo” e que é recuperado
pela ação de direito material, categoria hermenêutica, que é o modo-de-ser desse ente que é o
direito material e, por decorrência, da técnica destinada a concretizá-lo.
380
Essa categoria, a
ação de direito material, é o veículo do fenômeno em sentido privilegiado, que é aquilo
“que não se mostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes, mantendo-se
velado frente ao que se mostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes
mas que, ao mesmo tempo, pertence essencialmente ao que se mostra numa primeira
aproximação e na maioria das vezes a ponto de constituir o seu sentido e
fundamento.”
381
O que se mostra, no processo, numa primeira aproximação, é a necessidade de
intervenção judicial em dada causa e a necessidade de, por meio do método – que se não for o
380
Pressupondo-se direito, pretensão e ação de direito material existentes, porque, se inexistentes, não direito
material veiculado no processo, que se mantém sem conteúdo que não seja sua própria essência.
381
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 75.
180
procedimento comum ordinário, acabará sendo que é único, todos certos de que, vencido
esse ritual, a resposta dada é a que é a justa, a correta. Esse senso comum, ao se deparar com a
aporia das conseqüências da relação de direito material e processo, assim concebida, como
instrumentalização abstrata, que não olha a essência do ser do direito material posto em causa,
para, a partir de seus imperativos, investigar, de maneira libertadora - para usar uma expressão
de Heidegger –, quais são os passos a serem dados em direção a esse projeto que envolve a
busca do sentido autêntico do que se discute, envolve o questionamento dos pré-juízos,
envolve a retomada da dimensão da responsabilidade e o encontro com o sentido do direito
naquele caso, porque não há um sentido a priori a ser declarado pelo juiz boca-da-lei, nem um
sentido a ser arbitrariamente criado, por um sujeito que não encontra na lei um limite
positivo, de possibilidades; nem negativo, como freio ao arbítrio. O acontecer do direito
material no processo com a busca fundamentada, do sentido do ser do direito material traz
consigo a revelação da insegurança, porque não há um método a priori com o qual se
assegurar. Prefere-se, então, a pura aparência da realização do direito material, à busca incerta
e cheia de percalços que representa o abandono ao método cartesiano, unívoco, universal e
previamente dado, comprometendo, assim, o sentido do direito material que, em sua dimensão
autêntica, não é unívoco, universal ou previamente dado.
Buscando superar um senso comum teórico que, a todo tempo, reforma a lei, sem
conseguir modificar seu modo de tratar com ela, a recuperação da ação de direito material,
como categoria hermenêutica, desveladora do fenômeno privilegiado, tem por fim retomar o
encontro com um processo que exige cuidado e que por não poder ser um método
demarcado e uniforme é menos cômodo aos operadores, porque se depara com incertezas e
inseguranças, porque convive com elas, porque não está previamente dado, deixando espaço
para o projeto a ser sempre revisado da busca pelo sentido, e porque exige responsabilidade e
atuação concreta. Esse é o único modo de o processo ser capaz de realizar seu escopo que é
único, realizar o direito material que, em um sentido autêntico é o Direito, em suas dimensões
social, política, jurídica, indissociáveis porque integrantes de um sentido que é dado para o
caso, não havendo um escopo social, político ou jurídico dissociados dessa compreensão,
porque a tradição não é acessível em fatias e porque não compreensão sem aplicação.
Ambas se dão onde o caso, a relação de vida que é regulada pelo Direito. Concepções
generalizantes de escopos e ideários para o processo, longe do mundo da vida são projeções
abstratas e inautênticas de um sentido universal que vela as possibilidades de transformação
social pelo Direito.
181
Seria um processo que possibilitaria a real efetivação de garantias, e o desvelamento
do sentido autêntico de regras como aquelas dos artigos 461
382
e 461-A
383
do Código de
Processo Civil, cuja compreensão permanece arraigada ao modo solipsista, cientificista e
metodológico-matemático de fazer direito. As tentativas de dar efetividade ao processo,
permitindo que possa dar tratamento diferenciado à multiplicidade de relações jurídicas
diferenciadas, em constante mutação, inclusive no curso do processo - que exigem
responsabilidade (o que envolve fundamentação, i.e., explicitação da compreensão no caso)
por respostas e intervenções urgentes na vida das partes e até de terceiros (cujo caso mais
emblemático são as intervenções por medidas executivas, sejam elas provisórias, temporárias
ou definitivas) -, encontram imensas dificuldades de real efetivação na imensa maioria dos
casos (o que atesta estarmos falando da generalidade, e não, da unanimidade dos casos), em
face do modo como se compreende o direito material no processo. O senso comum teórico
permanece pensando o processo a partir do procedimento ordinário e da dicotomia
conhecimento-execução, que o caracteriza (já que essa dicotomia, ainda que tenha sido
suprimida legislativamente, permanece oculta no senso comum orico dos juristas,
impedindo o acesso ao verdadeiro sentido dessas mudanças), o que acaba ordinarizando as
formas diferenciadas de tutela e submetendo-as àquela dicotomia. Vigente, vários anos, o
art. 461 do Código de Processo Civil, que dispensava a propositura de ação de execução,
antes regulada no Livro II do Código de Processo Civil, em casos de sentenças mandamentais
e executivas, os juízes continuavam a intimar as partes para propor ações com base no art.
632
384
do digo de Processo Civil, desconsiderando, completamente, o que dispunha a nova
sistemática. Trata-se de um arraigamento aos pré-juízos inquestionados, que impede a tarefa
da compreensão autêntica, porque se olha o novo com os olhos do velho”.
385
Para realmente
ver o novo, é preciso, pois, compreender o que está velado e, segundo Heidegger, o que se
vela é o que está mais próximo. O que está mais próximo nesse sentido e, pois, mais
comumente velado pela necessidade do método do que a própria realidade do fenômeno em
sua concreção?
382
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a
tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado
prático equivalente ao adimplemento. [...]
383
Art. 461 – A. Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o
prazo para o cumprimento da obrigação. [...]
384
Art. 632. Quando o objeto da execução for obrigação de fazer, o devedor será citado para satisfazê-la no
prazo que o juiz lhe assinar, se outro não estiver determinado no título executivo.
385
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 17.
182
A ação de direito material é modo-de-ser do direito material, um momento dinâmico
do direito material em ação. Disso deriva sua importância como categoria hermenêutica,
porque ela traz o mundo prático ao processo e permite, pela força impositiva que dela deriva,
o desvelamento das necessidades que emanam dos fatos, fornecendo o arcabouço para que o
processo possa concretizar as pretensões materiais carentes de realização espontânea. Desse
resgate do mundo prático que a ação de direito material representa, é que deriva, ainda, sua
negação pelo senso comum teórico. Com efeito, é justamente o mundo prático que é
suplantado, velado e negado pelo processo, cuja autonomia científica recusa a essência do
direito material em nome da certeza metodológica da ciência moderna e, pois, em nome da
inscrição no rol das ciências. Como afirma Agamben, em um certo sentido a expropriação
da experiência estava ‘implícita’ no projeto fundamental da ciência moderna.”
386
Assim, “a
ciência moderna nasce de uma desconfiança sem precedentes em relação à experiência como
era tradicionalmente entendida [...]”.
387
A negação da ação de direito material expropria a
experiência e remete ao experimento, que é sempre o lugar do método. Cumprido o trajeto
metodológico, nada há a fazer e, mesmo quando está em curso, não há como se livrar dele.
A presente proposta procura a liberação das amarras desse método asfixiante da
ciência moderna, por meio da concretização da força normativa da lei e da Constituição. Esse
resgate, já anunciado como tarefa a ser cumprida por meio da ação de direito material,
representa o limite de sentido, por meio do texto da lei material. Imprescindível lembrar,
nesse momento, que, para a fenomenologia existencial, que embasa a presente busca pela
compreensão da relação entre direito material e processo e pelo verdadeiro e imprescindível
lugar da ação de direito material nesse contexto, o limite, a finitude, é a dimensão, a partir da
qual se constrói a possibilidade, o limite não é aquilo onde algo deixa de ser, mas como os
gregos o reconheceram, o limite é aquilo a partir de onde algo começa o desdobramento de
seu ser.”
388
386
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 25.
387
Ibid.
388
Stein, nesse trecho, cita e traduz o próprio Heidegger a partir do original Vorträge und Aufsätze”. STEIN,
Ernildo. Compreensão e Finitude. Ijuí: Unijuí, 2001. p. 124..
183
5.3.2 O limite de sentido, ou de onde começa o desdobramento do ser da ação de direito
material como categoria hermenêutica
O desvelamento de sentidos que se propõe, aqui, a partir da compreensão da ação de
direito material, parte da reflexão sobre o seguinte questionamento de Ovídio Araújo Baptista
da Silva:
“As ões são outorgadas pelos digos de Processo, ou estes apenas se limitam a
regular-lhes o conteúdo da matéria a ser objeto da controvérsia? Poderá o legislador
do processo suprimir algumas ações que hoje se reconhecem como existentes no
sistema jurídico brasileiro, por este outorgadas ao comprador, ou ao vendedor, ou ao
proprietário, ou ao condômino, ou ao locador, sem invadir o direito material e
modificá-lo?
389
Essa reflexão cumpre a tarefa do desvelamento a que se propõe e permite a retomada
do ser da ação de direito material como desveladora de sentidos. Ao se responder a essa
pergunta, estar-se-á respondendo, também, à pergunta sobre a questão de a técnica poder
modificar a essência do ser do ente sobre o qual ela é aplicada. Evidentemente que não, assim
como não se pode admitir a possibilidade de que o legislador do processo possa suprimir
ações, deixando o direito material sem potência e força alguma, o que seria atitude
evidentemente manipuladora e destrutiva do direito, porque como dito alhures, citando Ovídio
A. Baptista da Silva, direito “(pretensão) sem ação é poesia, certamente de má qualidade”.
390
A recusa da existência de duas ações, uma no campo do processo, outra no campo do
direito material, amputa o direito material de toda a sua potência e força, deixando, ao direito
processual, à técnica, a escolha sobre sua realização no mundo da vida. Não se trata de
confundir os dois planos, o direito material e o processo, nem mesmo de atribuição de
natureza privatística ao fenômeno”.
391
Ao contrário, a negação da ação de direito material é a
posição que retira toda a força do direito material, privilegiando o domínio do processo, dos
espaços de anomia e viabiliza à técnica a possibilidade de alterar o direito material, atribuindo
um modo-de-ser que não é o seu, pois, sendo alegada na “ação”, a ação, ainda que em
389
SILVA, Ovidio A Baptista da. Ação de Imiso de Posse. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. v. 1. p. 115.
390
Conforme SILVA, Ovídio Araújo Baptista da.Ações e sentenças executivas. In: Jurisdição, direito material
e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 253.
391
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na
perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 295.
184
expectativa, exige meios de realização compatíveis com o que nela se contém. É óbvio que
não se trata de reprodução de categorias, sendo a ação um dopione da “ação” ou vice-versa,
mas de reconhecer que a ação é um modo de ser do direito, não sendo a “ação” (processual)
um espaço em branco que o juiz preencherá sem se preocupar, para utilizar uma expressão de
Alvaro de Oliveira, diretamente com o “direito material pretendido”.
392
Isso porque,
obviamente, se retiro a ação e fico com a “ação”, o escopo não precisa ser o direito material
pretendido, que, como afirma José Carlos Barbosa Moreira, no que é acompanhado pelo
modo-de-fazer direito da doutrina majoritária: O compromisso primeiro de todo
processualista é com o direito processual.”
393
Veja-se que toda a teoria processual civil trata de instrumentalidade, de adequação da
resposta jurisdicional ao direito da parte, mas, negando a ação de direito material, o fazem no
campo abstrato, porque negam a relação entre o saber teórico que sustentam com a realidade
do que se produz por meio da atividade jurisdicional, de modo que aquela atuação das
eficácias sentenciais se dá, em adequação ao direito material, apenas em teoria. Permite-se o
acoplamento de uma eficácia sentencial que, segundo o pensamento do intérprete - conduzido
pela forma de pensar a jurisdição presente no imaginário jurídico (declaração, constituição e
condenação) - melhor se adapte ao caso. Não haverá, todavia, um limite de sentido, na dupla
direção aqui apontada? De onde vem essa escolha? Não haverá, em um Estado Democrático
de Direito, um limite para se dizer, agora utilizando a conhecida expressão de Streck,
“qualquer coisa sobre qualquer coisa”? Será possível que a eficácia sentencial ou
antecipatória não esteja em parte alguma, apenas na mente solipsista do julgador, como
decorrência de um discurso de fundamentação prévio? Será que o art. 5º, XXXV
394
, da
Constituição Federal não indica o caminho hermenêutico? E, se indica, qual é o caminho?
Tratando-se da pura dimensão da techné, não haverá jamais esse questionamento.
Esse, todavia, é o questionamento, talvez, mais importante a ser feito, porque desvela os
sentidos buscados até aqui e permite um limite, ambivalente, para a atuação jurisdicional, que
não o aprisiona como boca-da-lei, nem lhe solta totalmente as amarras, que, em ambos os
casos, ocorre a fuga à responsabilidade pelo resultado, na atribuição, positivista, convencional
392
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O problema da eficácia da sentença. In: MACHADO, Fábio Cardoso;
AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações
entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 49.
393
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual. In: ______. Temas de
direito processual. São Paulo: Saravia, 1997. p. 28.
394
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXV A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito; [...]
185
ou pragmático-estratégica, para utilizar a terminologia de Dworkin
395
, do apelo à vontade da
lei e do legislador. Concepção centrada na verdade abstrata da ciência moderna, paradigma
ilusório do sujeito monádico.
Conforme assinala Streck, a
“invasão da filosofia pela linguagem, ao proporcionar a superação do esquema
sujeito-objeto, coloca a linguagem como condição de possibilidade, sendo vedado
utilizá-la sob pena de um paradoxo de cunho paradigmático como um
instrumento, enfim, como uma terceira coisa que proporcione a hipostasiação de
discursos (no caso, de discursos fundamentados previamente, contrafáticos) e uma
procedimentalização argumentativa, que deixa em segundo plano o desiderato final
da norma: a aplicação (que, repita-se, ingressa ‘no jogo’ após estar resolvido o
problema da fundamentação).
396
Assim,
“cindidos, os discursos de fundamentação, por serem prévios, m a função de
servirem, contrafaticamente, de categorias para o enquadramento (adequação) das
situações concretas, que, assim, podem ser vistas como fatos (faticidade) ‘ainda sem
sentido’, à espera do devido acoplamento”.
397
A dicotomia entre aplicação e fundamentação, inviável no paradigma hermenêutico
filosófico, permite aplicação sem fatos. É pertinente trazer a pergunta de Streck, que tratando
dos discursos prévios de fundamentação e da verificação de que, por serem prévios, não se
referem a situações concretas, indaga: “Afinal, se eles se dão previamente, seria possível, por
exemplo, falar sobre a validade do princípio da dignidade da pessoa sem se referir a uma
determinada situação de aplicação?
398
No que concerne às teorias substancialistas ainda ligadas ao esquema metafísico
mesmo que se reconheça em algumas delas a valorosa intenção de dar efetividade ao
processo, a utilização da instrumentalidade como terceira coisa a se interpor entre o sujeito e o
objeto reconduz à conceitualização e abstratalização do mundo prático em que o método
399
395
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo, Maritns Fontes, 2003.
396
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2006. p. 35.
397
Ibid., p. 36.
398
Ibid., p. 53.
399
Na expressão de Rui Portanova, que pôde ser lida antes em Cândido Dinamarco, quando diz que “fixar
diretrizes é publicizar uma unidade de método, o que nem de longe implica homogeneizar soluções.”
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 149.
186
permanece sendo o meio para alcançar o justo, e a lei permanece tendo uma vontade que se
destacou da vontade do legislador e foi entregue ao intérprete-juiz como se afirma com base
no que se encontra na construção de Rui Portanova:
“Feita a lei, ela se destaca da vontade do legislador e vai adquirir seu próprio espírito
[...]. Aqui, a imparcialidade do juiz é vista juntamente com a completa
independência a ponto de não ficar sujeito, no julgamento, a nenhuma autoridade
superior.”
400
O desvelamento dos sentidos ocultos nessas premissas permite que o intérprete - ao se
deparar com a compreensão de que os sentidos não estão mais nas coisas, nem na mente e que
as teoria ligadas ao esquema S-O, ao apresentarem previamente o fundamento de sua própria
efetividade, não vão às coisas mesmas, não viabilizam a validade da compreensão, mas
apenas a adequação a esquemas a priori – revele a necessidade de algo que o ligue ao mundo.
A retomada da ação de direito material permite o desvelamento do significado em que
toda compreensão é aplicação. Nessa tarefa, que é una, a busca pelo sentido reúne
interpretação, compreensão e aplicação e, portanto, une a tarefa teórica à tarefa da aplicação
que indicará um sentido “para o caso”, e não, para todos os casos. Sem dúvida, como afirma
Ovídio Araújo Baptista da Silva, o direito nasce do fato, mas com ele não se confunde. As
proposições mais simples e que poderiam parecer óbvias, dependendo do respectivo contexto,
poderão ter ‘significados’ diversos e até antagônicos.”
401
, e a relevância disso é que em
última análise
“o que se busca no processo é o ‘significado’ a ser atribuído aos fatos. O juiz não
labora com a simples descrição empírica dos fatos. Ele deve interpretar tanto a
norma legal quanto atribuir aos fatos significados’ que haverão de ser qualificados
como jurídicos.”
402
Esse religar-se ao mundo prático, todavia, não se dará por meio do mundo dos
conceitos, em que princípios são criados teoricamente, à moda científica.
400
, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.p. 120 e 123.
401
SILVA, Ovidio A Baptista da. Verdade e significado. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica:
Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 269, 2005.
402
Ibid, p. 242.
187
5.3.3 A compreensão da ação de direito material e uma analogia, identidade-diferença,
com o princípio
A retomada da ação de direito material, em que o agir prático, demandado pelo direito
que exige concretização, é compreendido analogicamente como princípio que não deixa que o
intérprete se liberte do mundo prático, onde as coisas acontecem, permite a realização
daqueles dois escopos referidos por Streck
403
: a concretização de direitos e a prevenção contra
discursos decisionistas e arbitrariedades interpretativas na relação entre direito material e
processo, em que o procedimento não tem o condão de legitimar, por si só, o resultado e no
qual o intérprete não está autorizado a unificar sentidos ou a atribuí-los sem que haja
vinculação a nenhuma autoridade.
Essa retomada atende aos anseios que derivam do novo papel da Constituição, que
deve ser compreendido da seguinte forma:
“Com efeito, se a Constituição altera (substacialmente) a teoria das fontes que
sustentava o positivismo e os princípios m a propiciar uma nova teoria da norma
(atrás de cada regra há, agora, um princípio que não a deixa se ‘desvencilhardo
mundo prático), é porque também o modelo de conhecimento subsuntivo, próprio do
esquema sujeito-objeto, tinha que ceder lugar a um novo paradigma
interpretativo.”
404
Esse não se deixar desvencilhar do mundo prático não serealizado por um princípio
artificialmente construído, como a instrumentalidade, ou instrumentalidade moderna, ou
qualquer outro nome que se a ele, ou, ainda, por qualquer noção que eleja o procedimento
como meio de legitimação. É preciso buscar, no mundo prático, esse parâmetro hermenêutico-
interpretativo. A eleição de princípios artificialmente construídos como ferramentas a conferir
efetividade ao processo, como se disse anteriormente, traz consigo a possibilidade de mau
uso da técnica, porque tudo dependerá do que o sujeito-intérprete entender ser o escopo ou
função da jurisdição. Não uma diferenciação no modo-de-fazer direito. Muda o rótulo.
Assim, embora se reconheça que a processualística, de modo geral, vem tentando buscar uma
saída para a crise da efetividade da jurisdição, o que se afirma aqui é que novos instrumentos
dentro do mesmo paradigma não têm o condão de alterar o estado de coisas, porque as
403
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 9.
404
Ibid., p. 6.
188
construções continuam sendo artificialmente propostas sem que o senso comum teórico seja
realmente afetado.
Tal principiologia proposta para o processo, por ser artificial, permite a abertura para
diferences propostas, inautênticas ou não, sobre o que é o escopo do processo. Essa
multiplicidade de possibilidades sobre o que é o processo, qual o seu escopo, como se chega a
ele, permite um sem número de posições a serem “escolhidas” pelo intérprete, que se
distanciam da leitura autêntica da Constituição, cuja força transformadora impõe
concretização de direitos, o que faz inconstitucionais as posições que sustentam um escopo
primeiro de satisfatividade normativa, ou que consideram que o procedimento legitima o
resultado (ambas abstraindo o mundo dos fatos).
O que é um instrumento? Para que serve? Adequar-se a quê, precisamente, e como, em
que circunstâncias? Qual o momento da adequação? Após dar-se a adequação, há algo a fazer,
pode haver readequação? Quem responde a isso? Como se pode encontrar ou criar a matéria a
partir da forma? Como se pode encontrar conteúdo simplesmente pela intervenção do
procedimento? Instrumentalidade e adequação, para citar apenas aqueles que diretamente
dizem respeito ao tema tratado e que mais influência exercem no imaginário dos juristas, são
criações artificiais que subtraem a ligação com o mundo prático que seria dado aos princípios
trazer para a compreensão do Direito. Isso porque se pode instrumentalizar conceitos e fazer
adequação a eles, o que acaba sendo o objetivo da doutrina processual: instrumentalidade
referida à adequação dos direitos previstos abstratamente (sem fatos).
Uma resposta adequada à Constituição, como dito, exige concretização de direitos.
Para isso, há necessidade de resgatar o mundo prático, e não há como fazer isso sem retornar a
ele. O que se propõe, aqui, é que o parâmetro para que esse retorno seja possibilitado é a ação
de direito material, uma aposta no modo-de-ser do direito material, em sua expressão
dinâmica, como forma de resgatar a dimensão prática perdida e permitir a ontologização da
relação entre direito material e processo, procurando fazer do último a condição de
possibilidade para que o ser do direito material se dê, concretizando pretensões. Isso porque
compreender o direito material a partir de seu modo-de-ser no mundo, a ação de direito
material, permite projetar as possibilidades e os componentes de sentido desse ser, que são
explicitadas e manifestadas na tarefa interpretativa, no mesmo momento em que se a
aplicação. Afinal, como se pode dizer o que é efetividade da jurisdição, in abstrato, paz
social? Declaração do direito e solução da lide no plano normativo? Efetividade a partir de um
parâmetro normativo é coisa julgada, a partir de um parâmetro que busca na realidade o modo
como as coisas se dão, e já-são-junto-do-mundo é outra coisa, muito distanciada da
189
efetividade normativa. Exige concretização de direitos, o mais próximo possível do que esse
direito seria se não necessitasse do processo, porque a hermenêutica nunca abarca tudo. Esse
modo-de-ser é a ação de direito material.
No campo da hermenêutica filosófica, como sustenta Streck, os princípios não são
regras de otimização, e as regras não colidem em abstrato, como também princípios não
colidem em abstrato. Os princípios inviabilizam a atribuição de respostas à escolha do
intérprete, de modo solipsita. Considerando que a regra é abertura, enquanto fecham o
sistema, os princípios, operando no caso concreto, propiciam a compreensão da resposta
adequada para aquele caso, naquela conjuntura fática, naquele momento histórico, naquele
caso, cuja análise lhe é posta e que é irrepetível. É como se pretende, analogicamente, operar
a ação de direito material como linguagem do direito material que se no processo. Não há
lacunas ou espaços de anomia porque, por trás de cada regra, há um princípio que pode ser
avaliado em um caso, na sua aplicação. É o que ocorre quando se pensa na ação de direito
material (forma de imposição e realização do direito material em sua aplicação), que deve ser
respeitada de modo a que o processo possa chegar o mais perto possível do que adviria se o
ordenamento jurídico houvesse sido respeitado e se a força transformadora (e não, meramente
normativa) da Constituição e de todo o ordenamento houvesse atuado.
A ação de direito material não é um conceito, é um evento, um modo-de-ser-no-
mundo do direito material que precisa ser recuperado, na medida do possível, em sua
dimensão fática, para dar ao processo a possibilidade de atuar o direito, não como ente
objetificado em que o texto que o garante é a norma a ser aplicada pelo julgador, que lhe
atribui qualquer sentido porque realiza um conceito, garantindo a paz social (coisa julgada),
“satisfação” normativa. Por isso, é trazida em uma perspectiva em que a hermenêutica
filosófica a recupera aproximando-a da tarefa dos princípios (não mandatos de otimização ou
como abertura do sistema, como diz Streck), mas para indicar o sentido do caso e o caminho a
ser percorrido em direção à realização da justiça. Veja-se que “a condição de possibilidade de
interpretação da regra é a existência do princípio instituidor.”
405
Uma regra não subsiste
isoladamente, se assim fosse o princípio não cumpriria a função de introduzir a razão prática
no direito.”
406
Com isso, deve-se lembrar que fundamentação requer aplicação. Só está fundamentada
uma decisão que, na vida das pessoas, atua de forma a realizar o direito material, pois o que
405
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 167.
406
Ibid, p. 168.
190
está em jogo é o acontecer daquilo que resulta do princípio, que pressupõe uma espécie de
ponto de partida, que é um processo compreensivo.”
407
A negação da ação de direito material e a afirmação de sua substituição pela ação
processual despontecializa o direito material e impede a visão de que as eficácias das
sentenças não estão à disposição do juiz, nem tampouco sua compreensão acerca delas pode
ser atribuída, irresponsavelmente, à vontade objetificada da lei e do legislador, como se esses
entes, também objetificados, pudessem responder pela diversidade da vida. Dispositivos como
o art. 461 e 461-A ou 273
408
do digo de Processo Civil não abrem, arbitrariamente, ao juiz
sua possibilidade de atribuição de significado a um fato e, por isso, a escolha da carga
eficacial mais adequada, ou a adequação procedimental, segundo as simples normas do
processo. A existência da ação de direito material o impede. O processo não pode inventar
mil esquemas variáveis de ‘arrumação, sem que isso resulte conseqüência alguma no plano
dos atos.”
409
Cargas eficaciais, natureza do direito posto em causa, adequação procedimental não
são escolha desvinculada do juiz, o que é impensável em um Estado Democrático de Direito,
em que a Constituição e, por decorrência de sua compreensão, as leis, m força normativa,
força normativa cujo conteúdo é compreendido como aplicação. Essa potência eficacial está
na ação de direito material, e a negação dessa o é mais do que um modo de dominação do
direito material pelo processo e a desvinculação do juiz de suas responsabilidades, que, ao
negar a existência da ação de direito material, se desvincula de sua responsabilidade,
reconhecendo apenas a responsabilidade do legislador ao afirmar a vontade da lei e do
legislador e os métodos de interpretação do texto, ditados por ele.
Percebe-se, em qualquer ação processual que tramita perante um juízo qualquer, que,
ao iniciar o seu rito procedimental, o habitus, que determina rotina de cartórios, juízes, e até
mesmo dos advogados, leva o procedimento à ordinarização paulatina. Todo o aparato de
manifestações, requerimentos, decisões, impulsos, independentemente do direito posto em
causa, é analisado com uniformidade. Petição inicial, resposta, réplicas (essas, tantas vezes,
sequer previstas no próprio Código de Processo Civil, como se verifica da compreensão dos
407
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 151.
408
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela
pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação
e: I haja fundado receio dano irreparável ou de difícil reparação; ou II fique caracterizado o abuso de direito
de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.[...]
409
A possibilidade de mil “arrumações” é defendida por JoCarlos Barbosa Moreira. MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Sentença Executiva In: Revista de Processo, n. 114, p. 152. Esse artigo foi respondido por Ovídio
Araújo Baptista da Silva em seu ensaio SILVA, Ovídio Araújo Baptista da.Ações e sentenças executivas. In:
Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
191
artigos 323 a 327)
410
, análise idêntica de antecipações do provimento final ou até mesmo de
provimentos cautelares, passando pelas sentenças em processos cautelares, ritualização
ordinária de ritos especiais, tudo é tomado como igual, numa uniformização que desvincula o
juiz da compreensão do que está produzindo, em nome do método. A confissão está no novo
art. 285-A
411
do Código de Processo Civil, que reconhece ações simplesmente de direito e
autoriza reprodução de sentidos. Tanto ações como as indenizatórias, por exemplo, onde
não ocorra a demonstração de verossimilhança e que não apresentem qualquer espécie de
prova documental ou pré-constituída que exigem colheita da prova e/ou não demandam
intervenção de urgência, como ações sumárias, como a reintegração de posse, que exigem, no
mais das vezes, tomada de posição e tutela frente à simples verosssimilhança, são tratadas, no
decorrer do procedimento, como manifestações de um mesmo ser do direito material e
ritualizadas com a mesma parcimônia, tantas vezes, sem que medidas efetivas (o que envolve
a responsabilidade do juiz após a concessão da medida em sua realização, e não apenas no
momento da concessão) de urgência sejam tomadas para a defesa do direito que se apresente
verossímil. Obviamente, ainda não se tomou consciência de que a própria negativa de
antecipação de tutela a uma das partes está concedendo à outra parte antecipação de tutela em
sentido inverso, conforme vem alertando Ovídio Araújo Baptista da Silva. A própria sentença
de procedência, tantas vezes, deixa de determinar medidas executivas, ou estas se
determinadas, acabam jazendo em cartório até que a parte empreenda nova luta por sua
realização. Quando determinada, a medida executiva deveria ser simplesmente cumprida. As
ações cautelares, todavia, parecem ser os exemplos mais marcantes do que a eficácia
simbólica do instituído senso comum teórico produz. Quantas vezes os operadores do direito
se deparam com sentenças em ações propriamente cautelares a afirmar a inexistência do
direito à cautela porque não restaram provadas, à exaustão, as alegações trazidas pelo
requerente da cautela, como se se tratasse de processo de conhecimento de cognição plenária,
que exige produção de prova mais contundente que a cautelar, já que a cognição, nessa
última, é necessariamente, sumária. Ainda no âmbito das cautelas, pode-se apontar o
indeferimento de sua concessão, em caso de haver cautelar específica regulada pelo Código,
410
Livro I, Título VIII, Capítulo IV, do Código de Processo Civil, relativo às providências preliminares ao
julgamento, no procedimento comum ordinário do processo de conhecimento.
411
Art. 285-A Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo houver sido proferida a
sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença,
reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. [...]
192
como no caso do arresto, porque não estão satisfeitos os requisitos específicos
412
, quando está
demonstrada a situação de necessidade e urgência de seu deferimento, olvidando-se, por
completo, que a enumeração legal não pode ser exaustiva em face da necessidade de
intervenção jurisdicional diante de toda ameaça à lesão a direito. Anula-se o poder geral de
cautela,
413
disciplinado, inclusive, pelo Código de Processo Civil. Ou, por fim, a
exemplificada bipartização do procedimento em conhecimento e execução, quando o próprio
Código de Processo Civil já havia abolido a dicotomia, como nos casos dos artigos 461 e 461-
A do Código de Processo Civil. Essa realidade, todavia, não é apenas a realidade do
Judiciário. É também da classe advocatícia que, tantas vezes, por estar instituída pelo mesmo
senso comum teórico, não tem consciência de tais desvios e se deixa assim levar, em
detrimento dos direitos daqueles a quem deveriam defender. Olha-se o novo com os olhos do
velho. Tudo isso porque, acima da vida, está a sistematização das relações, das leis que as
regulam e da interpretação dessas leis.
O que se quer afirmar, então, é que, ao contrário do que pensam os doutrinadores,
legisladores e até operadores do processo, o que dita o rumo do processo não é sua legislação
processual, purificada, metodológica, segura. O que deve ditar o rumo da técnica não é ela
mesma, a inverter o fundamento de sua existência. A técnica, mesmo sendo autônoma, serve
ao seu objeto, objeto em virtude do qual foi construída. Por que, afinal, houve necessidade de
regulamentar a existência do Poder Judiciário e a sua forma de atuação? Não foi, por acaso,
porque o direito material (pretensão e ação de direito material) necessitava de intervenção
para realizar-se? Então, a técnica nasce por causa do direito material, e a trajetória que o
processo toma, na modernidade, nega, subtrai, essa compreensão, porque passa a dominar o
direito material, alterando-lhe a essência. A sentença passa a ser tratada como o dispositivo, o
Ge-Stell que, acoplado ao fato, muda-lhe a essência, o que desimporta, porque ela não deixou
de atuar, e a sua repercussão no mundo da vida, também não importa, porque a técnica como
ciência não a perquire.
Com isso, quer-se dizer que a ação de direito material traz em si a potência e a força
do direito material e, com isso, deve ditar a compreensão judicial sobre sua realização, em
cada caso, inigualável, mesmo que as aparências digam o contrário, mesmo que se possa dizer
412
Art. 813. O arresto tem lugar: [...] Art. 814. Para a concessão do arresto é essencial: I prova literal da dívida
líquida e certa; II prova documental ou justificação de algum dos casos mencionados no artigo antecedente.
Parágrafo único [...].
413
Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro,
poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que
uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação.
193
que ações idênticas como as milhares, talvez milhões, de ações revisionais de crédito
bancário, por exemplo. Quantos pararam para analisar como, em cada caso, os negócios
foram feitos, ou como as partes os conduziram, ou ainda na repercussão que a sentença terá
no campo social? Os julgamentos, às centenas, por juízes e tribunais, nessa espécie de causas,
demonstram que a universalização de seu significado não é apenas corriqueira, mas normal,
realizada com base na verdade de que, se o pedido e a causa de pedir são os mesmos, não
necessidade de perquirir os fatos. Ademais, o manejo sério da tutela coletiva poderia evitar os
inúmeros, milhares de processos que veiculam pretensões à declaração de ilegalidade de
cláusulas ou condutas, as quais, seguidas de processos de liquidação igualmente sérios, em
que a particularidade de cada caso fosse analisada, resolveria a questão sem necessidade de se
instituir o mal que advém do novo art. 285-A do Código de Processo Civil, que, como que
legitima, no imaginário dos juristas, a sua conduta uniformizada e distanciada da missão
essencial delegada ao Poder Judiciário em tempos de inefetividade dos direitos.
Trata-se de uma visão inautêntica do processo, que apaga o ser do direito material, sua
pretensão e ação, invertendo-se as essências das coisas. O que elas são não importa; o que
importa é o significado que se atribui, solipsisticamente, a elas. Com isso, o sentido
permaneceu não esclarecido porque foi tomado por ‘evidente’.”
414
Retomar a ação de direito material significa permitir a busca do sentido desse ser,
ocupando-se em desvelar o que a unificação do agir
415
no processo encobre: o fato e suas
repercussões no mundo da vida (o mundo circundante), não em um plano meramente
apofântico, mas no plano ontológico daquilo que realmente são.
A ação de direito material é um modo-de-ser do direito material e, como tal,
encaminha à compreensão das cargas eficaciais necessárias à satisfação dos direitos, bem
como à necessidade de tratamento diferenciado, pelo procedimento, sob pena de negação da
própria essência do direito (o que ele é, no mundo, e não, uma qualidade colada a ele) e de
inocuidade da prestação jurisdicional. Por isso, é necessário reconhecer que o processo não
pode, por omissão na previsão normativa processual, ou por reforma que suprima eventual
previsão, retirar do direito material a potência e a força que lhe são próprias. Como alerta
414
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006. p. 145.
415
Porque a ação de direito material teria sido anulada ou substituída pela “ação”, como sustenta a doutrina
majoritária.
194
Ovídio Araújo Baptista da Silva, direito legislado e direito processual o são sinônimos
416
.
Assim, ainda que não esteja prevista determinada carga eficacial na lei processual, o direito
material a contém. Dessa forma, também procedimentalmente, analisando-se a cognição a ser
empreendida pelo juiz o reconhecimento da essência do direito posto em causa –, pode-se
afirmar a possibilidade de sumariedade da cognição para tomada de providências
jurisdicionais, sem que a previsão dessa sumariedade esteja prevista no Código de Processo
Civil. Basta perguntar: Suprimido todo o Livro III e a previsão do art. 273, § do Código de
Processo Civil, sucumbiria o direito à cautela? Evidentemente que não. O direito substancial
ao acautelamento dos direitos é direito material e independente do processo, e sua essência
exige análise sumária, em face de sua natureza temporária e urgente de que se reveste a
providência que dele decorrerá. A inclusão da possibilidade de contraditório invertido e
eventual responderia à necessidade de defesa da outra parte e evitaria demandas
desnecessárias, caso esta, reconhecendo o direito daquele a quem foi deferida a tutela em
procedimento de cognição sumária, preferisse não levar ao judiciário o julgamento plenário da
questão. Essa forma de evitar demandas desnecessárias é certamente legítima, qualidade de
que o art. 285-A não é portador. Isso porque aquela solução é ditada pelo direito material, em
seu modo dinâmico a ação de direito material -, enquanto essa é construída pelo processo
que faz mil arrumações sem tocar nos fatos.
Não há, pois, como reconhecer força normativa ao direito material sem reconhecer que
uma visão autêntica do processo impede a possibilidade de atribuição de sentidos unívocos
pelo legislador do processo e pelo juiz e que a possibilidade de compreensão de cada causa,
em sua diferença, tem, na ação de direito material, a possibilidade compreensiva de
desdobramento do ser do direito material não-realizado espontaneamente. Do contrário, a
ausência de estranhamento diante da injustiça de um processo que chega ao fim sem garantir
nada ao vencedor - a não ser uma vitória simbólica, que não chega sequer a ser uma vitória
moral porque outra empresa tão ou mais fastigiosa é necessária para que algo se altere na
situação da relação entre as partes impedirá a visão de que à jurisdição, por meio do
processo, uma tarefa concreta foi outorgada. Sendo assim, a familiaridade com os resultados
inautênticos do processo e a responsabilização do excesso de processos ou da sistemática de
recursos continuará impedindo a visão de que novos projetos e reformas, no campo do
processo, fundados sobre as mesmas bases da autonomia e instrumentalidade abstratas e
416
SILVA. Ovídio A. Baptista da. Direito material e processo. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL,
Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e
processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 68.
195
substancializadas pelo solipsismo do sujeito, ou que pretendem encontrar conteúdo no
método, sempre restarão inócuas, inúteis e reproduzirão os mesmos sentidos inautênticos.
Dizendo-se, de forma resumida: o que se propõe é uma nova visão da relação entre
direito material e processo em que a ação de direito material, modo-de-ser desse direito, se
projete como linguagem do direito material no processo. Isso se dá, segundo se pretende
afirmar, reconhecendo uma analogia entre o papel da ação de direito material e os princípios,
procurando liberar o modo-de-fazer direito de princípios meramente conceituais que não têm
o condão de trazer o mundo prático ao processo.
Esse modo de trazer o mundo prático de volta ao direito permite que, atrás de cada
regra processual, a ação de direito material projete os sentidos autênticos, possibilitando que o
direito material se realize de acordo com sua essência, sem novações, ou possibilidade de o
processo condicionar o produto. É um novo modo de pensar o processo, em que os institutos
processuais sejam compreendidos de modo a permitir que o direito material possa se
concretizar, de acordo com suas características. Isso se refletiria na possibilidade de os
objetivos e a forma de manejo dos institutos processuais compreendidos de modo a que o
procedimento e a atividade do juiz não meramente de acertamento ou normativa, mas de
transformação do mundo de acordo com o parâmetro constitucional pudessem ser
impregnados pelo ser do direito material, em que universalizações não teriam mais lugar e em
que o processo não teria o condão de impedir que os direitos se realizem, contrariando sua
essência ou negando sua potencialidade de imposição. Afinal, essa é a tarefa da hermenêutica:
traçar possibilidades de uma nova dimensão, ontologizada, de sentido, e não dizer o que se
deve fazer para esse ou aquele caso, o que contraria a própria proposta de reconhecer o direito
tal qual é, também quando se realiza por meio do processo.
5.3.4 O método como projeto
Reconstruir o ideário que é a base da negação da ação de direito material e os desvios
de rumos que estão contidos nas chamadas visões tradicionais, instrumentais ou processuais-
procedimentais do processo - apenas para citar a temática enfrentada no presente estudo -
conduz o intérprete a uma situação hermenêutica capaz de levá-lo à efetiva superação desses
momentos ideológicos que velam a compreensão da ligação entre direito material e processo.
Com efeito, a maioria das correntes acabam desenvolvendo método que se dirige à unicidade,
196
embora a teoria instrumental sustente que unificar o método não significa homogeneizar
soluções.
417
No lugar do método único, impõe-se reconhecer a necessidade de buscar, no mundo, a
diretriz da forma adequada de se proceder em direção à solução de um conflito trazido à
apreciação do Poder Judiciário por meio do processo. A afirmação da ação de direito material
como categoria hermenêutica busca a superação das visões filosófico-analíticas da ligação
entre direito material e processo, em direção ao fenômeno privilegiado, capaz de realizar o
desvelamento do ser do direito material no processo. Por isso, a retomada dessa categoria tem
o cunho de viabilizar, no direito, a compreensão filosófico-hermenêutica e hermenêutica-
filosófica capaz de superar o método lógico-analítico, que é predominante na análise do
processo civil e na interpretação do direito material.
Como, a partir desse lugar na compreensão do direito, a fundamentação não pode ser
dada a priori, o que contrariaria tudo o que se pretendeu construir até agora, a fundamentação
deverá ser levada ao lugar da aplicação. É claro que a aplicação do direito se a todo o
instante e, como expressão da normalidade, não é trazida à análise. O momento do conflito
traduzido no campo que interessa à presente pesquisa, na necessidade de o direito material
realizar-se por meio do processo, é o momento dos atos processuais, que, é necessário dizer,
não se podem totalmente desvincular do método. O procedimento é um método, por
excelência, e o problema é utilizá-lo como ferramenta, dada aprioristicamente, sem
necessidade de constante revisão na aplicação de sua possibilidade de realizar o direito
concretamente.
A ação de direito material, como modo-de-ser do direito material, analogamente ao
princípio que subjaz à regra processual, permite a constante revisão do método para adequá-lo
às características e necessidades do direito material que deve ser realizado.
418
Sua
compreensão permite desvelar os sentidos inautênticos, presentes nas correntes que
reconhecem, no processo, atividade declarativa ou constitutiva do direito, em que o método
único, cartesiano, tem sido o responsável pela entificação do ser do direito material. Como
ente, o direito material perde sua orientação histórica, fática, projetada no mundo, para ser
sempre observado em uma visão estática e abstrata, na qual os fatos são um apêndice no
417
Consoante citado, essa posição é propugnada por DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do
Processo. São Paulo: Malheiros, 2005, cujas razões e conclusões são esposadas por Rui Portanova em suas
Motivações Ideológicas da Sentença. PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre;
Livraria do Advogado, 2003. p. 149.
418
E isso não significa concretizar a ação processual, porque procedência e improcedência referem-se à ação de
direito material alegada no processo. A ação processual processou-se, não sendo caso de improcedência ou
procedência.
197
processo silogístico. É o que ocorre quando se nega a dimensão do direito material projetada
no mundo (dinâmica), a ação de direito material. À visão estática e abstrata de uma coisa,
adapta-se uma visão abstrata do instrumento. Na realidade e dinâmica da vida, no entanto, é
que poderiam ser descobertas as insuficiências desse instrumento.
A ação de direito material, representando essa dinâmica projetada no mundo, que
conduz à retomada da força do direito material, capaz de se realizar e projetar o instrumento
que a ele se adapte, como projeção da força normativa e transformadora da Constituição (pois
é ela que atribui direitos e os qualifica por sua força impositiva, também por ela resguardada,
como antes se referiu), está em constante revisão e permite a fundamentação dessa constante
revisão. Essa projeção, revisão, fundamentação se dá, é o que se quer propor aqui, por meio
da ação de direito material, que se projeta no processo, impõe sua revisão sempre renovada e
fundamentada, nos valores constitucionais (porque o direito material é sempre o ser de um
ente cujo sentido é projetado pela tradição consubstanciada na Constituição).
As palavras de Stein, transportadas para o campo do processo e do direito material, são
esclarecedoras, pois desvelam o sentido que se quer projetar. Diz ele que
“método e objeto vão se corrigindo constantemente na medida em que os objetos do
universo filosófico e do universo das ciências humanas são altamente fluídos,
altamente imprecisos na sua verificação. De tal maneira que eles nos convocam, que
nós somos obrigados a readaptar o método e redescrever constantemente o objeto.
Atrás disto está uma espécie de circularidade. Sempre dispomos de um método
provisório para chegar ao objeto. Mas na medida em que vamos desenvolvendo o
objeto, podemos ir corrigindo nosso método.”
419
No campo do processo, modernamente, sempre um mesmo método para se chegar
ao objeto. Tal método é representado pelo procedimento ordinário, ao qual sempre se retorna,
seja porque os procedimentos especiais, em determinada fase do procedimento, acabam nele
desembocando, seja porque o procedimento cautelar ou sumário acaba sendo nele inspirado,
seja no modo de sua concepção legislativa, seja em face da mentalidade dos operadores do
direito, cuja atuação ritualizada acaba ordinarizando e formalizando sempre mais o
procedimento, em praxes mentais como, apenas para citar exemplos mais conhecidos: 1)
exigir execução pelo art. 632 do Código de Processo Civil, em caso de aplicação do art. 461
do mesmo Código; 2) menoscabar o despacho saneador, que poderia dar celeridade e
democratizar o processo, dando às partes informações fundamentadas sobre quais os pontos
419
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 58.
198
em que deve ser produzida a prova e acerca da higidez do procedimento (quanto aos
pressupostos processuais, não quanto às condições da ação - de direito material - que
pertencem ao mérito), permitindo um andar processual direcionado a um objetivo comum
entre as partes e não um complexo e desnorteado andar em que o juiz subtrai das partes não
apenas o direito à fundamentação, como também à decisão; 3) de sempre seguir o mesmo
caminho rumo à intimação para apresentação de réplica, em processos em que ela não seria
necessária. Trata-se de manifestações do método único. Adequar o processo ao direito
material é muito mais do que redirecionar o juiz para analisar os escopos sociais-políticos-
jurídicos cindidos como discursos prévios de fundamentação. A compreensão autêntica do
direito material exige a compreensão do fenômeno jurídico em que aplicar o direito é
compreender o direito material, no caso concreto, em todas essas dimensões apontadas pela
instrumentalidade, sem as quais não há direito. Não um direito bom e um mau, um justo e um
injusto. apenas visões autênticas e inautênticas sobre o que é o direito e, assim, um direito
e um não-direito. É o direito que deve ser realizado, no processo, como direito material, e
direito material não é qualquer coisa que se diga sobre ele, mas o que a compreensão a partir
do fio condutor da Constituição o impele a ser, em prol da realização de seus objetivos, o que
faz com que a visão instrumental do processo (incluindo-se as variantes moderna, alternativa,
e outras ligadas ao esquema S-O) abarque apenas a questão primária do problema, de maneira
insuficiente, porque propugnam que o juiz deve preocupar-se com a visão social e política,
antes da jurídica. Repete-se: como se pudesse haver essa compartimentalização o que
denuncia a concepção abstrata e distanciada da realidade que, apesar de tudo, ainda mantém.
Como afirma Couture,
“o juiz de poderes discricionários e o juiz do direito livre, não representam uma
‘contraditio in adjeto’ com a própria essência do direito, como também são a amarga
negação de um processo histórico pelo qual se fizeram tantas revoluções. Por outro
lado, o juiz simples instrumento da expressão da lei, o juiz que fala em nome do
parlamento, simples sinal matemático, não existem na vida real. Toda sentença,
salvo pouquíssimas exceções, traz implícita a apreciação de uma prova. E já na
apreciação dessa prova surge um processo de crítica sã, que não é, como procuramos
demonstrar em outro trabalho (348), um simples processo de lógica.”
420
A concepção do método, naquelas visões, permanece sendo única, e as proposições
apresentadas, como, por exemplo, de relativização da coisa julgada e do sistema de
preclusões, de maiores poderes instrutórios ao juiz, de ampliação do acesso à justiça, dentre
420
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 234-235.
199
outros, são insuficientes porque ditadas por uma compreensão de que é do processo que
devem partir as soluções. Ora, o instrumento não dita as necessidades do objeto. Não é ao
processo que se deve perguntar sobre as necessidades do direito material quando dinamizado
por sua potência e força, mas a essa, à ação de direito material, à qual deve se adaptar o
instrumento, não abstratamente e a priori, mas em função de constante revisão.
A ação de direito material não apenas informa as necessidades para sua realização,
como exige sua realização e fundamenta - sem discrepar da necessidade de respeito ao texto
constitucional e ao texto das leis infraconstitucionais, que são o limite da formulação da
norma para o caso concreto, mas que, com ela, não se confundem, em sua diferença, que é
ontológica - essa constante revisão do método, do procedimento, que não é novidade entre os
juristas, pois Vittorio Denti sustenta, em seu “Un Progetto per la Giustizia Civile”, que se fala
“di ‘decodificazionea proposito della esigenza di guardare alla realtà del diritto al
di là degli schemi del codice: una analoga esigenza, espressa nella proposta di creare
forme differenziate di tutela, sta alla base della idea di um codice processuale che
non presenti un modello único e generalizzato di tutela, ma adegui i procedimenti
alla realtà delle situazioni tutelate.”
421
Nesse contexto, é possível pensar em eficácias sentenciais plúrimas, como afirmou
Pontes, mas a partir de uma releitura concreta de sua constante quinze, que descartando o
modo matemático de análise da questão, permita visualizar um direito material que, durante o
processo, esteja em constante mutação, porque os fatos não congelam com o ajuizamento da
demanda, permitindo a constante revisão do procedimento em atendimento à necessidade de
realização do direito no caso concreto, sem discrepar das necessidades de respeito ao
contraditório (os direitos materiais de natureza processual). Considerando-se a “ação”
abstrata, como técnica destinada à efetivação de direitos e também a ação, concreta, destinada
a realizar de forma viva a ligação entre o direito material e o processo, para que o último se
movimente de acordo com essas necessidades, é possível reconhecer, ao lado das
formulações, abstratas, eminentemente processuais
422
, o estabelecimento de meios de revisão
constante da forma procedimental, do que já seriam sinais os artigos 273, 461 e 461-A do
Código de Processo Civil, não fosse o senso comum teórico, que lhes retira a plena
potencialidade de aplicação.
421
DENTI, Vittorio. Un progetto per la giustizia civile. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1982. p. 15.
422
Como as questões relativas a prazos, requisitos da petição inicial, exceções processuais (suspeição,
impedimento, incompetência), distribuição do ônus da prova, apenas para citar alguns exemplos.
200
Fundamentado na ação de direito material, como momento ativo do direito, a
adequação do procedimento não se afasta da legalidade; ao contrário, viabiliza a realização do
direito material, compreendido a partir do paradigma constitucional, que não se coaduna com
a previsão de direitos, que não tem potencialidade de realização, porque o que dita tal
adequação é justamente o direito. Também não se afasta do contraditório, quer porque o
direito, em toda a sua realidade dinâmica, é alegado e contra ele o réu se defende, quer porque
essa adequação do procedimento é feita com sua participação e fiscalização. Na verdade, é
isso que fundamenta a possibilidade de o juiz optar por modo de execução não cogitado pelo
autor, sem ferir o princípio da demanda, o que é realidade quando os arts. 461 e 461-A do
Código de Processo Civil são corretamente aplicados – sem falar nas medidas análogas
previstas no Código de Defesa do Consumidor, por exemplo sem que isso corresponda à
violação da congruência entre pedido e decisão (ne eat iudex ultra vel extra petita partium).
Também é esse o fundamento da possibilidade de recurso para alterar um modo de execução
inadequado, proclamado em decisão judicial. Como se faz a avaliação de tal adequação, de
modo autêntico? Buscando, na ação de direito material, sua força impositiva, o modo como o
direito deveria ter se concretizado se houvesse se realizado espontaneamente, sem intervenção
do processo. É o único modo de realizar tutela específica, com todas as vicissitudes do
processo e da vida, que não desconhece que, na hermenêutica, nunca se recupera tudo.
A visão do processo a partir da ação de direito material permite o reconhecimento, o
que ainda sofre resistências, da eficácia executiva, o que remete à existência de uma ação
executiva no direito material e permite o estabelecimento de procedimentos diferenciados,
sem necessidade de previsão pelo legislador do processo, porque pertencente ao conteúdo do
direito material e, por isso, previsto na lei material. O direito contém, em si, a fórmula e a
força de sua realização. Sendo a demanda executiva, por exemplo, a outorga de outra
providência, como a condenação à entrega de coisa ou a ordem para entrega sob o abrigo das
astreintes conduz à ofensa ao direito material, porque a norma de processo dá possibilidade de
o juiz adequar a medida ao caso (art. 461-A, CPC, por exemplo), mas essa adequação não é
escolha do juiz, segundo o que ele entende seja melhor solução para as partes, mas porque o
direito determina que seja de determinada maneira, porque o direito material posto em causa,
em sua atuação, a ação, que é alegada e poderá ser reconhecida no processo, tem essa eficácia,
e não, outra à escolha do juiz.
O mesmo ocorre com a conversão de demandas sumárias em plenárias, ou o inverso.
Ovídio Araújo Baptista da Silva mostra a hipótese relativa às ações de imissão de posse,
convertidas em reivindicatória ou em ações de esbulho, quando diz que, uma coisa é certa,
201
“quando se medita seriamente sobre essas questões: nenhuma conversão de uma
demanda em outra se faz impunemente. Ou essa suposta conversão não passa de
simples correção do nomen iuris equivocadamente indicado pelo autor, que a
doutrina tem como perfeitamente admissível (g. Giannozzi, La modificazione della
domanda nel processo civile, 1958, p. 69), caso em que a suposta ação de imissão de
posse vinha na própria inicial, com todos os elementos identificadores da outra
ação em que ela se deva ‘converter’; ou o juiz realmente modifica a demanda, pondo
em seu lugar outra não proposta pela parte.”
423
Com efeito, reconhecendo-se o valor hermenêutico da ligação entre direito material e
processo, em que a ação de direito material é reconhecida como ponto de aproximação em
que se a identidade e a diferença entre ambos, é possível buscar uma nova forma de
compreender o processo, que permita vê-lo em sua realização continuada de busca da
realização do direito material, sem alterar sua essência, pelas vicissitudes do procedimento
como método lógico-dedutivo ou indutivo, recompondo, a cada passo do procedimento, o
compromisso do juiz e das partes com a realização do direito material, em prol da efetiva
realização do direito em sua dimensão transformadora da realidade e restabelecendo a
confiança no Poder Judiciário, que ocupa lugar cimeiro nessa quadra da história em que do
Estado se exige – e esse é o conteúdo da atual Constituição – prestações positivas, de
transformação em prol da realização dos objetivos constitucionais. Não é possível realizar isso
sem revisar o método, durante todo o tramitar do procedimento. E isso se dá, de inúmeras
formas, sem ferir a legalidade e os direitos fundamentais à defesa. Fundamentadamente,
reportando-se às necessidades dos direitos invocados por ambas as partes: na inicial, na
contestação, na reconvenção e nos demais incidentes –, introduzir no procedimento momentos
destinados a colher sumariamente prova (vistas como argumentos) antes da abertura da
instrução, por exemplo, quando reconheça necessidade de tal providência para decidir acerca
da concessão ou não de pedidos liminares antecipatórios ou cautelares, para além do que
autoriza o art. 342 do Código de Processo Civil, que prevê o chamamento das partes, a
qualquer tempo, para ouvi-las, mas fora das hipóteses do art. 847, I e II do mesmo diploma. É
claro, dir-se-á, há casos em que isso ocorre. Raros, porque o estabelecimento do procedimento
ordinário, com fases estanques, autoriza o juiz a esconder-se atrás do procedimento e do
número de processos, denegando requerimentos de antecipação de tutela, por exemplo,
quando a colheita de elementos de convicção, para o fim da verificação dos requisitos,
sumariamente, poderia alterar sua decisão, permitindo a realização de direito, cuja
verossimilhança não tem como ser demonstrada, senão com tal providência, mas cuja ameaça
423
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Ação de imissão de posse. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 114.
202
de lesão ou agravamento da lesão é real. O que ocorre é que a visão do procedimento, como
elemento necessário a ser vencido para a obtenção da sentença, retira a possibilidade de
efetividade real do processo, por meio do uso de tais providências, simples, tantas vezes
positivadas – como no caso do art. 928 do CPC –, mas sem relevância na prática dos
operadores, porque a visão que tem do processo é de abstração, cuja adequação ao direito
material e suas vicissitudes cambiantes durante o procedimento - é dada a priori pela lei
processual civil.
Essa revisão do procedimento, em atenção ao que se depreende do que indica a ão
de direito material, não trata senão de reconhecer a constitucionalização do processo a partir
do paradigma da concretização de direitos (pretensões).
5.3.5 O problema da certeza e da definitividade como limite negativo à tarefa
hermenêutica que se dá no processo
O apego à certeza e à segurança que caracteriza a modernidade é denunciado por
Gadamer:
“Assim como a investigação moderna da natureza não considera a natureza como
um todo compreensível mas como um acontecimento estranho ao eu, em cujo
decurso ela introduz uma luz limitada, mas confiável, possibilitando assim sua
dominação, da mesma forma o espírito humano, que procura proteção e certeza,
deve opor à ‘insondabilidade’ da vida, a esse ‘semblante terrível’, a capacidade da
compreensão formada pela ciência. Esta deve revelar a vida em sua realidade sócio-
histórica de uma forma tão ampla que, apesar da insondabilidade da vida, o saber
garanta proteção e certeza.”
A procura pela superação dessa insondabilidade resultou, pela ontologia cartesiana, na
escolha pelo método e, pois, justamente, onde a certeza e a segurança não poderiam ser
encontradas. Subjaz a idéia de o método não aceitar nada que seja duvidoso e que possa não
ser confirmado pela investigação rigorosamente científica. Ovídio Araújo Baptista da Silva
vem alertando, no decorrer de sua obra, sobre essa ilusão que é surpreendida nos teóricos do
processo e que desemboca na necessidade de regulação normativa dos litígios como tarefa da
jurisdição, o que leva à afirmação da coisa julgada como elemento diferenciador da atividade
203
jurisdicional ou, acrescente-se, à afirmação de que o escopo fundamental da jurisdição é a
asseguração da paz social, e não, a concretização de direitos (pretensões).
Tal raciocínio, como dito, busca no processo algo que ele não pode dar: segurança na
imutabilidade das relações sociais e segurança de que a intervenção jurisdicional ocorrerá
depois de afirmada a certeza. Isso leva à afirmação da jurisdição como atividade declaratória.
Entre todos os que comungam dessa idéia, pode-se citar Celso Neves, para quem a atividade
jurisdicional é atividade de mera declaração, catalogando todas as demais atividades do Poder
Judiciário em neologismos que seriam atividades do juiz, mas não propriamente
jurisdicionais: jurissatisfação, júris-acautelamento, júris-integração, que correspondem às
atividades executória, cautelar e de jurisdição voluntária, às quais não compõem o que o
referido autor chama de jurisdição
424
. Novamente se encontram cindidas jurisdição e
satisfação dos direitos. Isso porque, cartesianamente falando, tudo o que não é conceito, tudo
o que não parte do intellecto não é verdadeiro. Isso, todavia, não se reflete apenas no escopo
perseguido, mas no modo-de-fazer e compreender o direito no campo do processo, e não se
diz nenhuma novidade quando se afirma que, por isso, execução liminar e acautelamento não
são considerados jurisdição e porque a forma como são apreciadas postulações como essas
sempre envolve profunda desconfiança do julgador que reproduz lugares-comuns, para deferir
ou indeferir, sem verdadeiramente fundamentar, como quando diz (in) defiro porque (não)
estão presentes os requisitos da antecipação de tutela ou da medida cautelar. Por que é tão
difícil determinar medidas ou realizar providências ou dar ordens às partes (vale lembrar que
Liebman não admitia essa possibilidade) quando o caso ou as medidas requeridas, por
qualquer das partes (porque antecipação de tutela e cautelaridade estão à disposição de ambas)
fogem ao que costumeiramente acontece, mesmo que os prejudicados exponham argumentos
convincentes e demonstrem a verossimilhança ou a probabilidade de seu direito (mas não a
certeza)? Nesse caso, como alerta Ovídio Araújo Baptista da Silva, quando negada a uma das
partes, medida de sinal contrário é deferida àquela contra quem a medida foi inicialmente
requerida.
Não se pode esquecer de que ser é tempo e que, sendo assim, o que se propõe, aqui, a
partir do ser do direito material, a ação de direito material, é que ela está jogada no horizonte
do tempo e, portanto, não fala ao processo como um ente objetificado que determina, a priori,
o que é o direito material posto em causa, mas, no horizonte da temporalidade, permanece
falando, como linguagem que é, ao processo, o modo como deve realizar-se o direito material
424
NEVES, Celso. Estrutura fundamental do processo civil: tutela jurídica processual, ação, processo e
procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
204
que, no processo, não se liberta do tempo; ao contrário, reconhece-se nele. Durante o
processo, que, como caminho, travessia, tem um destino a concretização de direitos
(pretensões) –, esse ser, entregue ao tempo, exige ação, sempre renovada, de vigilância contra
a perda de seu objeto. E isso exige ação presente e diante de simples verossimilhança ou
probabilidade, diante de dano ainda não ocorrido, mas que prudentemente se verifica possa vir
a ocorrer, para superar o limite imposto pela universalização dos direitos no modelo
obrigacional aliado à incoercibilidade das obrigações e pela conversão em pecúnia dos
direitos quando ingressam no processo que não os em sua essência (o que eles são), mas
como algo a ser transformado. O modelo da litiscontestatio como novação dos direitos, que
lhes muda a essência, compõe o arcabouço téorico inquestionado da doutrina dominante.
A própria noção de tutela cautelar é concebida como instrumento para assegurar a
efetividade da tutela final de um processo, e, como disse Cândido Dinamarco, citado por
Ovídio A. Baptista da Silva, além de representar um instrumento de proteção do processo,
‘não vai ao direito material’ ”.
425
Essa noção de tutela cautelar, pois, demanda uma releitura,
a partir da compreensão hermenêutica da ação de direito material. A pretensão, se necessário
assegurá-la, impõe uma ação preventiva, e essa não é gerada pela necessidade de proteção à
efetividade do processo. É gerada pela própria força imanente ao direito material que sempre
tem potencialidade (exigibilidade) de defender-se de possíveis agressões. Isso porque todo
direito tem pretensão à sua própria higidez, de modo a fazer-se atuar contra ameaças à
realização futura de seu objeto. Essa pretensão, surgida da ameaça que grava o bem, objeto do
direito, gera ação de direito material à asseguração da realização futura do direito. Gera,
portanto, direito material, pretensão e ação de direito material à cautela, à asseguração do
direito material. Esse direito material à cautela independe da necessidade ou possibilidade de
um futuro processo de conhecimento ou de execução futura. Disso resulta a imperatividade do
reconhecimento de que as exigências de indicação da demanda futura, como pressuposto
processual do processo cautelar, bem como a compreensão do processo cautelar como
tendente à asseguração do processo principal não passam de, respectivamente, exigência
ilegítima e inversão do sentido do ser do direito material pelo processo que desvia seu escopo
de transformação social em prol de uma asseguração normativa de si mesmo, como se o
processo fosse um fim em si, um bem que deve ser assegurado à revelia e sobre os escombros
do direito material. Essa doutrina está adequada à afirmação de escopos abstratos para o
425
SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil: Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v. 2. p. 37.
205
processo: Paz social? Educação? Como se garante isso, se não houver a realização dos direitos
materiais (que não se reduzem a direitos privados ou subjetivos) por meio do processo? Que
paz social, se os direitos não se realizam, e aqueles que buscam a tutela de seu direito
sujeitos passivos ou ativos - certamente não podem se contentar com a imutabilidade da
controvérsia, sem que o seu direito, no mundo dos fatos, seja realizado? O que ensinar?
Manutenção do status quo de injustiça real e justiça abstrata, escopos adequados à
necessidade cartesiana da certeza?
Trata-se de reconhecer que, no mundo prático, para que seja possível a efetiva tutela
do direito material - não entendido como ente, mas como ser, e se ser é tempo,
necessariamente o é de modo dinâmico, não-metodológico em prol de sua concretização
pelo ordenamento jurídico, é preciso reconhecer que direito não apenas processual, mas
substancial à cautela.
A existência de um direito substancial à cautela, sustentada por Ovídio Araújo
Baptista da Silva, em seu Curso de Processo Civil, desde 1983 (1
a
edição) e em obras
anteriores, e a necessária inversão do contraditório que traz consigo, vem sendo objeto de
resistência pela doutrina, porque, essencialmente, atua no mundo prático antes e
independentemente de um acertamento final. São as palavras do autor da proposta, em 1983:
“O segundo ponto a esclarecer diz respeito a nosso modo de conceber uma ação
cautelar autônoma, enquanto não dependente de um processo principal. O conceito
de autonomia da ação cautelar prende-se apenas à suficiência da tutela cautelar, a
dispensar o litigante que a obtenha de ajuizar a ação principal, onde o provimento
cautelar venha a ser confirmado ou revogado. Isto, porém, não impede que o réu da
ação cautelar demande, como autor, em ação satisfativa a cassação dos efeitos da
medida cautelar. A autonomia da ação cautelar, quando ela ocorra, deve ser
entendida simplesmente como dispensa para o requerente de ajuizar uma ação
satisfativa.”
426
Vale, então, a pergunta: A necessidade de que tal forma de tutelar os direitos seja
admitida se impõe pela ciência do processo ou pela compreensão do ser do direito material,
proposta aqui por meio da recuperação da ação de direito material? Necessariamente, quem
dita as necessidades de sua realização é a própria ação de direito material em que o ente, o
direito material, é revelado em seu significado, no tempo, seu modo-de-ser no mundo. Olha-
se, portanto, o mundo prático para verificar de que modo a proteção ou concretização dos
direitos (pretensões) deve se dar, e o parâmetro para isso é a forma como teria se realizado se
426
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. v. 3. p. 56.
206
não houvesse objeção. A tarefa da hermenêutica é recuperar isso fazendo do processo a
condição de possibilidade dessa realização, que é um projetar as possibilidades de o direito ser
acautelado de modo a que seja concretizado com o menor prejuízo possível, isto é, com o
menor grau possível de perda de seu conteúdo.
O que ocorre com a satisfação dos direitos por meio do processo é o mesmo. Com
efeito, no campo do processo civil, opera aquele nihilismo caracterizado por Heidegger,
segundo Vattimo, como a redução do ser ao valor de troca”.
427
Como exemplo, pode-se
apontar a tutela eminentemente executiva (não se compreende aqui a tutela executória ex
intervallo por expropriação), destinada à realização de direitos absolutos, e não, a dos
obrigacionais (a esses seria destinada a tutela condenatório-executiva), que é descaracterizada
como condenação, do que é exemplo Humberto Theodoro Júnior
428
. Ou é inserida dentre as
modificativas, que compreenderiam as constitutivas e as executivas, como sustenta José
Carlos Barbosa Moreira
429
. Trata-se do fenômeno, denunciado por Ovídio Araújo Baptista da
Silva, da relativização dos direitos absolutos ou absolutização dos direitos relativos, o que
daria no mesmo, em que o ser do direito material é transformado em seu equivalente, dando
lugar à mesma forma de tutela e aos mesmos instrumentos (ações que se incluam na
tradicional classificação tripartite, porque é muito importante manter-se a lógica interna de
uma classificação
430
: para o método científico, todavia, não para a realização do escopo da
jurisdição!).
Naquilo a que se propõe o presente estudo, a existência, ou não, de ações de direito
material executivas não se deve ao parâmetro classificatório da doutrina. Tais ações,
simplesmente, são executivas, porque os direitos de que são o modo-de-ser exigem realização
de acordo com as suas características, o que se projeta como necessidade de determinadas
medidas para concretizá-lo, que existem independentemente do legislador do processo. Com
Ovídio A. Baptista da Silva, conclui-se que assim como
“pode haver executividade criada no plano processual, em outros casos a natureza
executiva da demanda nasce no direito material e o legislador de processo, nesta
427
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: nihilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 5.
428
THEODORO Júnior. Humberto. As vias de execução do código de processo civil brasileiro reformado.
RDCPC , n. 43, p. 31-65, set.-out. 2006.
429
Ambas agrupadas em um conteúdo normativo, como afirma textualmente o autor. MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Sentença Executiva Revista de Processo, n. 114, p. 147-162.
430
Por todos, THEODORO Júnior. Humberto. As vias de execução do digo de processo civil brasileiro
reformado. RDCPC, n. 43, p.54, set-out 2006.
207
hipótese, será impotente para transfigurar-lhe a fisionomia.Casos em que a perda
da executividade depende só de uma regra de direito processual, ao passo que
noutros a natureza executiva da pretensão de direito material impõe-se ao legislador
imperiosamente e acaba por modelar a respectiva ação, no plano processual, ainda
que a lei do processo mantenha silêncio a seu respeito.”
Interessa, para a presente investigação, a referência do autor à existência de
executividade independentemente do processo, já que, na análise aqui pressuposta, não se
nega a possibilidade de criação de eficácias executivas pelo processo, negando-se apenas que
tais eficácias poderiam ser instrumentalizadas de modo a que sua utilização se devesse
unicamente ao processo, sem análise do direito material sobre o qual seria aplicado. A
dimensão processual, com efeito, é mantida, com um novo modo-de-ver os institutos
processuais, que se destinam a concretizar os direitos (pretensões), o que impõe a criação de
técnicas destinadas a criar as garantias para que o processo possa se realizar de acordo com os
parâmetros constitucionais, que delineiam a atividade do Poder Judiciário.
Há, portanto, eficácias que emanam do próprio direito material, e outras que são
construídas pela necessidade de o processo edificar formas para realizar os direitos materiais
(pretensões) carentes de efetivação, em face da vedação da autotutela e da limitação à ação
oriunda dos direitos fundamentais. Não se nega, portanto, o espaço próprio do direito
processual; o que se nega é a possibilidade de ele ser construído à revelia do direito material.
No que tange às ações de direito material, então, estando no direito material, e não, no
processo, pouco importa o que diz dela a classificação processual das sentenças, sendo
necessário que os direitos absolutos sejam tutelados adequadamente, a partir da essência
desses direitos.
Os direitos relativos envolvem direitos de crédito e sua ação, para realizar-se, tem de
ser executiva, mas não pode se dar diretamente (tomar do outro o que é devido), porque tal
conduta não é permitida pelo direito civilizado (proibição que atinge a própria jurisdição, que
não pode, no caso, agir diretamente, porque o bem, objeto da expropriação, está
legitimamente no patrimônio do obrigado, o que a diferencia das executivas reais, em que o
bem está ilegitimamente no patrimônio do usurpador, o que viabiliza a tomada direta da
posse). A isso o processo responde, como técnica, construindo forma para sua efetivação, por
meio da ação condenatória que permite a execução expropriatória.
Essa construção processual, no entanto, tanto na sua feição expropriatória, quanto na
espécie relativa aos direitos obrigacionais infungíveis, exige, ainda, que se supere -
desvelando o ser do direito material, que traz o mundo prático para o campo do processo e
208
permite reconhecer a diferença entre os direitos - a precedência da cognição à execução, o
paradigma da incoercibilidade das obrigações e a conversão do direito ao seu equivalente em
pecúnia.
No campo das obrigações, em pecúnia, por exemplo, não havia como continuar
programando o procedimento, a priori, sem permitir atos executivos que transcendessem as
limitações traçadas pelo revogado art. 588 do Código de Processo Civil
431
, ainda em casos em
que o direito se apresentasse com evidência tal que autorizasse a fundamentação dessas
medidas. Advindo o art. 475-O do mesmo Código
432
, poucas alterações foram incluídas. Além
de suprimir, ao menos legislativamente, o binômio conhecimento-execução e de facilitar a
liquidação de danos e admitir expressamente a caução nos próprios autos, admitiu-se a
possibilidade de chegar aos atos que importem alienação de domínio, mediante caução
idônea. A precedência da cognição em relação à execução, todavia, maior óbice que o
processo impõe ao direito material, não foi alterada. Além disso, a necessidade de caução
suficiente e idônea, para atos de alienação de domínio e levantamento de depósitos em
dinheiro, exige compreensão nas diferentes hipóteses de aplicação, para que o espírito
presente na antiga redação não prevaleça. Novamente, para isso, ter-se-ia de analisar a ação
de direito material, como modo-de-ser desse direito, que se impõe à realização de forma
simplificada ante as suas características. Com efeito, a maior ou menor evidência do direito,
aferida a partir, por exemplo, da maior ou menor idoneidade das razões de recurso, para
determinar a reforma da decisão, devem ser elementos norteadores do arbitramento ou até
mesmo dispensa da caução pelo juiz, que a norma constitucional não admite que nenhuma
lesão ou ameça de lesão a direito deixe de ser objeto de intervenção jurisdicional. Exigir
431
Art. 588 A execução provisória da sentença far-se-á do mesmo modo que a definitiva, observados os
seguintes princípios: I corre por conta e responsabilidade do credor, que prestará caução, obrigando-se a
reparar danos causados ao devedor; II não abrange os atos que importem alienação de domínio, nem permite,
sem caução idônea, o levantamento do depóstio em dinheiro; III fica sem efeito, sobrevindo sentença que
modifique ou anule a que foi objeto da execução, restituindo-se as coisas no estado anterior. Parágrafo único. No
caso do nº IIII, deste artigo, se a sentença provisoriamente executada for modificada ou anulada apenas em parte,
somente nessa parte ficará sem efeito a execução. - (Artigo revogado pela Lei 11.232/2002 DOU
23.12.2005, em vigor 6 (seis) meses após a data de sua publicação).
432
Art. 475-O A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva,
observadas as seguintes normas: I corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exeqüente, que se obriga, se
a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; II fica sem efeito, sobrevindo
acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restiuindo-se as partes ao estado anterior e
liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento; III – o levantamento de depósito em
dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao
executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos. §
No caso do inciso II do caput deste artigo, se a sentença provisória for modificada ou anulada apenas em
parte, somente nesta ficará sem efeito a execução. [...] (Artigo inserido pela Lei 11.232/2002 DOU
23.12.2005, em vigor 6 (seis) meses após a data de sua publicação).
209
caução em determinados casos poderia ser sinônimo de recusa de tutela jurisdicional. O
mesmo se com relação à impossibilidade de execução provisória antes da sentença, em
casos que envolvam obrigações pecuniárias, o que, diante da maior ou menor evidência do
direito, i.e., do reconhecimento do processo a partir do conteúdo e do “ser” do direito
material, pode ser superado, já que certeza não é possível por meio do processo (exceto a
fictícia, a coisa julgada). Pensando nos direitos, em seu modo-de-ser, pode-se lembrar o que
diz Kaufmann, que cita Heidegger, em conclusão à sua obra “Analogia e ‘Naturaleza de la
Cosa’ Hacía uma Teoria de la Compreension Juridica”, dizendo: “Para el pensamiento
desde la ‘naturaleza de la cosa’, vale la frase de Heidegger: (148) ‘En este ámbito nada se
deja comprobar, pero algo se deja mostrar.”
433
Do mesmo modo, no campo das obrigações, é preciso recuperar l’intervento degli
organi giurisdizionali esecutivi teso a restaurare il diritto violato a prescindere dalla volontá
del debitore dell’obligo di fare o di non fare rimasto inadimpiuto.”
434
Em direção a um modo
de atuação jurisdicional, em que
“<esecuzione non é una misura giuridica, ma la sua attuazione>; piú precisamente,
l’attuazione della misura giuridica che consiste nella <restituzione>, e cioé nel
mettere il mondo esteriore nelle condizioni in cui dovrebbe trovarsi ove il precetto
fosse stato osservato.
435
Em direção, portanto, à concretização de direitos (pretensões), desvelando, assim, o
campo das ações de direito material mandamentais, que permitem a realização do direito
material na forma específica, quando o obrigado não cumpre voluntariamente, obrigando-o a
cumprir, por forma específica, através de exigências de males mais graves do que o
adimplemento.
casos, por exemplo, em que o paradigma da incoercibilidade das obrigações, e a
não atuação de meios executivos ou coercitivos nas obrigações pode resultar na evidente
negação do direito no caso concreto. Casos em geral em que o direito a atuar tem relevância
primeva (em casos de prestações positivas ações afirmativas a serem exigidas pelo Estado)
em que a conversão em pecúnia não atinge os objetivos sociais e individuais que a
Constituição impõe. São exemplos ilustrativos: - a má-conservação de estradas, por exemplo,
433
KAUFMANN, Arthur. Analogia y “naturaleza de la cosa”: hacia uma teoria de la comprension jurídica.
Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976. p. 108.
434
CHIARLONI, Sergio. Misure coercitive e tutela dei diritti. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1980. p.2.
435
Ibid., p.12.
210
em que se converte o dever do Estado em obrigação de indenizar os possíveis prejudicados
sem obrigá-lo a efetivar políticas públicas para que danos iguais não se repitam; - ou casos de
fornecimento de prestações positivas na área de saúde, em que a não-intervenção imediata -
no sentido de o judiciário ordenar e fazer cumprir ou se substituir ao órgão estatal
inadimplente na realização do que deveria ter feito - converterá o direito fundamental em
direito obrigacional, i.e., converte direito fundamental em direito a danos, atingindo, com isso,
mais uma vez a dignidade do titular do direito e põe em risco a própria existência do ser
humano. O mesmo se dá no campo dos direitos obrigacionais, em que, por exemplo, em casos
em que a inexistência de cumprimento por uma das partes acarreta, à revelia do prejudicado, a
imposição, pelo inadimplente, de conversão da obrigação original em pecúnia, que, na prática,
equivale a entregar ao inadimplente a escolha entre adimplir ou indenizar, privilegiando o
pólo da relação que age com má-fé e abuso de direito. É a alteração da essência dos direitos,
por meio do processo, que beneficia o inadimplente ou violador do direito, como afirma
Chiarloni, citando Wenger: Il convenuto che ha denaro, può aver tutto; egli non ha bisogno
di restituzione, ogni sentenza che ne lo minacci, con la parola del vilano arrichito: io posso
pagare.”
436
Essa forma de pensar o direito em que o devedor inadimplente tudo pode,
porque pode converter tudo em valor de troca, própria do capitalismo - permite que a
condenação seja universalizada junto com a obligatio, como se disse em outro momento, e
com eles, a diversidade de característica dos direitos é convertida em unidade, no processo.
Assim, o que já foi dito, a técnica domina o ser, e nesse paradigma não há como transformar a
sociedade, concretizando direitos (pretensões).
A negação da existência de ações de direito material e, mais especificamente, das
eficácias mandamental e executiva das sentenças (porque a classificação é atribuída pela
doutrina majoritária ao processo, não ao direito material, como já dito), corresponde ao
abandono paulatino dos interditos do Direito Romano Clássico, desde o período de Justiniano
até os nossos dias, correspondendo, esse paulatino abandono, à dualidade mundo dos fatos e
mundo do direito, tematizada pelo direito como ciência pura. Como diz Ovídio A. Baptista da
Silva, este
“modo de conceber jurisdição é sem dúvida um dos pilares que sustentam o
Processo de Conhecimento, através do qual se consuma a separação entre a atividade
puramente normativa e atividade prática – entre o ‘puro direito’, como dissera
Foschini, e essa função ‘spesso odiosa’ de aplicação prática do julgado, através do
436
CHIARLONI, Sergio. Misure coercitive e tutela dei diritti. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1980. p. 40.
211
processo executório. Como descreveu Friedrich, em síntese memorável, referindo-se
à separação kantiana entre o mundo do ‘ser’ e do ‘dever ser’: ‘A separação radical
do é e deve, dos domínios existencial e normativo, ao qual corresponde a separação
de substância e forma, produz a perspectiva decididamente formal de teoria do
Direito, que não deseja, poder assim dizer, sujar-se no contato com o mundo
concreto’ (Perspectiva histórica da filosofia do direito, trad. do original alemão de
1955, Rio de Janeiro, 1965, p. 190).”
437
Necessário dizer que a nova missão entregue à jurisdição concretização dos direitos
(pretensões) – transforma essa forma de fazer direito, distanciada do mundo prático, em
atividade evidentemente inconstitucional.
Buscar a tematização de identidade e diferença, em seu conteúdo intematizável
infinito, significa restaurar a relação entre o direito material e o processo, em que o método
único seja substituído pela idéia de projeto, em que as diferenças apareçam na identidade.
Assim, ao invés da verdade moderna, una, poder-se-á compreender o sentido do ser dos entes
e, então, buscar os significados possíveis e a resposta adequada para o caso, não a priori.
Significa dizer que a certeza metodológica não é certeza de fato, e que a verossimilhança é
compatível com a natureza dos direitos, porque o que um direito é, aparente ou evidente, certo
ou duvidoso, irradia de seu ser, não do processo.
5.3.6 A concepção do procedimento a partir do direito material posto em causa
Com efeito, a exigência de certeza e ordem na moderna ciência invadem o processo e
desnaturam as características dos direitos - passando a presumi-los, todos, de igual evidência,
ou de igual falta de evidência, quando ingressam no processo - exigindo, em todos os casos, a
mesma ordem para sua concretização: ação do titular do direito, defesa da contraparte,
colheita de prova, sentença de acertamento e execução, como atividade não-jurisdicional,
após a certeza.
As características de um direito, ser ele evidente ou não-evidente, pertencem ao direito
material, não ao processo. Ser ou não ser evidente é expressão do sentido do ser do direito,
não do instrumento. Desse modo, devendo o processo tratar diferentemente direitos
diferentes, necessidade de resgatar essas diferenças e introduzi-las no processo. Afinal, se
437
SILVA. Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica. Rio de
Janeiro: Forense, 2007.
212
todos os direitos devem passar pelo mesmo procedimento para se realizarem, supõe que todos
sejam iguais. É evidente que não são, e a defesa de tais direitos no processo não exige apenas
formas de tutela de urgência; exige também formas de tutela diferenciada desses direitos, o
que pressupõe o reconhecimento, pelo processo, de que o procedimento deve se amoldar ao
ser do direito material, e não, o contrário. Como afirma Denti, o movimento deve ser dal
diritto al processo, dunque: questo è il primo e piú importante significato della riforma, che
tenta di porre nelle mani degli utenti della giustizia uno strumento di tutela coerente con la
natura dei diritti da tutelare.”
438
Ou como diz Ovídio Araújo Baptista da Silva, deve ou pelo
menos deveria, num sistema ideal de tutela jurisdicional, cada procedimento crescer na razão
inversa do grau de evidência do direito submetido à apreciação judicial.”
439
Desse modo, a
própria necessidade de cognição plenária para realização do direito no caso concreto,
mediante ação no mundo dos fatos, e não meramente normativa pela jurisdição, concretizando
os direitos (pretensões), deveria ser ditada pela maior ou menor evidência de um direito
quando ingressa no processo, o que, segundo Ovídio, em continuação ao trecho
retrotranscrito, fora afirmado por Carnelutti, que tratava da necessidade de conceber a
construção de um processo, “a strutura elastica”.
Esse modo de ser do direito material, que dimensiona o processo, não é totalmente
estranho à realidade da legislação processual. Basta verificar que há procedimentos que
respondem, embora não declaradamente, à maior ou menor evidência dos direitos. É o caso de
um trinômio conhecido, mas aparentemente impensado como tal, no campo das obrigações
em pecúnia. Em ordem crescente de evidência: 1) procedimento de natureza condenatório-
executiva; 2) procedimento monitório; 3) procedimento de execução por tulo extrajudicial.
Necessitar-se-ia, então, levar esse fenômeno ao desvelamento, para impedir, como
assinalado, o método de uniformizar tudo, em face da busca da certeza, no campo da ciência
do processo, que não se coaduna com a existência de intervenção da jurisdição com base em
juízos sumários. Por isso, os juízos sumários e terminativos são recusados como o direito
substancial à cautela ou espécies procedimentais de cognição sumária com contraditório
invertido porque a busca da certeza, conceitualizada no processo pela teorização da coisa
julgada, com cuja formação alcança o seu termo normal e definitivo não somente o
procedimento de primeiro grau, mas o processo de conhecimento, tout court (cof. Introdução,
438
DENTI, Vittorio. . Processo civile e giustizia sociale. Milano: Edizioni di Comunità, 1971. p. 264.
439
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Reforma dos processos de execução e cautelar. In: ______. Da sentença
liminar à nulidade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 177.
213
1).”
440
, é alçada a objetivo primevo. Com efeito, acerca desse fenômeno que acompanha a
compreensão das ciências na modernidade, novamente, diz Gadamer:
“A certeza científica sempre tem uma feição cartesiana. É o resultado de uma
metodologia crítica, que procura deixar valer somente o que for indubitável. Essa
certeza portanto não surge da dúvida e de sua superação, mas já se subtrai de
antemão à possibilidade de sucumbir à dúvida. Assim como na famosa meditação
sobre a dúvida, Descartes se propõe uma dúvida artificial e hiperbólica como um
experimento que conduz ao fundamentum inconcussum da autoconsciência, a
ciência metodológica põe em dúvida, fundamentalmente, tudo aquilo sobre o que é
possível duvidar, com o fim de chegar, deste modo, a resultados seguros. [...] Em
Dilthey, a necessidade de algo sólido tem o caráter de uma necessidade expressa de
proteção frente às realidades assustadoras da vida. Mas ele espera alcançar a vitória
sobre a incerteza e insegurança da vida muito mais através da ciência do que através
da estabilização proporcionada pela inserção na sociedade e a experiência de
vida”
441
A certeza aliada à concepção de justiça nominalista em Hobbes - essa última
denunciada por Cassirer, o qual, ao comentar a obra de Hobbes, diz que, para esse autor, a
verdade não radica nas coisas, mas nas palavras, livremente criadas pelos homens (veritas in
dicto, non in re consistit) [...]
442
, o que lembra a cisão entre a palavra e a coisa, em que a
linguagem é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto - justifica a jurisdição
plenária e normativa.
A valorização dos procedimentos de cognição sumária permite o tratamento adequado
às características do direito e poderia ser uma solução que agrega qualidade à prestação
jurisdicional, aliada à possibilidade de menor custo temporal e econômico dos litígios,
permitindo-se, ainda, que a cognição plenária seja deixada à iniciativa da parte que se sinta
prejudicada com a tutela sumária concedida ao direito da outra parte. Desse modo, a
sumariedade da cognição (que não se confunde com a sumariedade meramente procedimental,
criada pelo processo, como nos casos do procedimento sumaríssimo e dos juizados especiais
cíveis, por exemplo) exige que se compreenda que ela não suprime a cognição plenária acerca
do caso, nem ofende o direito ao contraditório e à defesa, apenas altera o modo como essa
440
Trechos da obra de MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense, 1993, p. 106. Na referida obra, p. 4, diz o autor, ainda: Com a formação da coisa julgada, pois, atinge
seu fim normal o processo de conhecimento.”
441
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1. p. 321-322.
442
Citado por SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição jurídica romano-canônica.
Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 101. Em Hobbes, observa-se a concepção de Hermógenes, sustentada contra
Crátilo. PLATÃO. Crátilo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
214
defesa ocorrerá, por escolha e iniciativa da parte que sofreu a medida fundada em sumária
cognição.
Com efeito, juízos de verossimilhança, que permitem tutela dos direitos em menor
custo jurisdicional, são mais adequados aos tempos de modificações rápidas e constantes. E,
com eles, estar-se-ia tratando diferentes direitos de diferentes modos, em atenção ao maior
grau de evidência que demonstram ou à maior necessidade de investigação que exigem e
essas características não são fabricáveis pelo processo: dal diritto al processo, como disse
Denti.
5.3.7 As repercussões da compreensão da ação de direito material no princípio da
demanda e na compreensão da coisa julgada
A ação de direito material como momento dinâmico do direito material expressa o
conteúdo do direito material e da sua correspondente exigibilidade por meio de um verbo.
Todo verbo indica uma ação, e é esse o conteúdo da ão de direito material que se expressa
no processo, pela eficácia que dessa ação promana. Afirma Ovídio A. Baptista da Silva que
todo direito e, correlativamente, todo dever que grava o sujeito passivo, obrigado a
respeitá-lo e cumpri-lo, têm em seu núcleo um determinado verbo especial, através do qual é
possível identificar a respectiva ação (de direito material) que o realiza”.
443
A compreensão desse fenômeno e a constatação de que a ação de direito material traz
o mundo prático ao processo têm repercussões até mesmo na compreensão dos princípios da
demanda e na caracterização da coisa julgada (a partir dos tres eadem).
Com efeito, sendo a ação de direito material alegada por meio do processo, o juiz, ao
reconhecê-la, provisória ou definitivamente (seja por meio de sentença liminar ou por meio de
sentença definitiva) deverá dar ao princípio da demanda a dimensão que ele realmente tem no
processo. Não há de se reconhecer, no referido princípio, a necessidade de o juiz restar
vinculado a pedido incorretamente veiculado, quando a ação de direito material foi
corretamente alegada e, ao depois, reconhecida, no processo. Trazer o mundo prático ao
processo significa vincular o juiz à realização do direito material e, se restar evidenciado que
o interesse da parte, ainda que seu pedido não esteja corretamente deduzido, é realizar a ação
443
SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil: Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v. 2. p. 26.
215
de direito material, de modo a obter a realização de seu direito no caso concreto, não estará o
juiz autorizado a deferir-lhe menos do que isso. Como exemplo, pode-se ressaltar uma ação
de restituição de coisa em que, alegada ação de direito material executiva, em que se afirma
que o demandado está ilegitimamente na posse de um bem que é propriedade do demandante,
a parte peça a condenação do demandado à entrega da coisa. O juiz estará autorizado pelo
direito material que origem à ão de direito material, a proferir decisão de natureza
executiva, e não meramente condenatória, em atenção ao pedido da parte que alegou e
requereu medida para realização de seu direito, realização que deve ser congruente ao direito
material (ao verbo que a traduz) e à vontade manifestada, e não, a um verbo, tecnicamente
inadequado, utilizado no processo. Essa necessidade advém do direito material, e não
significa quebra da congruência. Segundo diz Ovídio Araújo Baptista da Silva, em casos
similares, eventual quebra ao princípio da demanda é mais aparente do que real
444
. O
contrário resultaria se, do requerimento deduzido pela parte, o juiz verificasse que houve, da
parte do demandante, intenção de requerer menos do que poderia, como seria o caso de propor
ação declaratória de débito, ao invés de requerer condenação, ou no caso de invocar uma
causa de pedir, quando poderia invocar outras, que, nesse caso, a parte está limitando sua
demanda segundo interesses que não são dados à perquirição judicial. Nesse caso, no entanto,
não se trata de permitir a atuação jurisdicional de natureza diversa da ação de direito material
de que é titular o demandante, mas de dar-lhe menos, que também é derivação da ação de
direito material alegada, porque o demandante optou por menos, preferindo não exercer o
direito em sua integralidade. Esse reconhecimento seria, então, mais um argumento para a
inadmissão do texto do art. 219, § do Código de Processo Civil, que autoriza o juiz a
exercer direito consubstanciado na exceção de prescrição, em nome do demandado e à sua
revelia.
No que tange ao alcance da coisa julgada e de sua inconseqüente leitura relativizadora,
pode-se fazer construção análoga. Evidente que a separação mundo dos fatos e mundo do
direito, que determina a recusa da ação de direito material, concebe o direito sem fatos. Veja-
se que o suporte fático da norma jurídica é mera descrição conceitual, não é fato, e esse
necessariamente tede se amoldar à estrutura do suporte fático. Sendo assim, a leitura que
se faz dos limites objetivos da coisa julgada, declaradamente ou não, acaba optando pela
teoria da individualização, em que os fatos não interferem na caracterização da causa de pedir,
444
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v.1. p. 51.
216
sendo possível mudarem-se os fatos sem que isso acarrete necessariamente a mudança da
causa petendi”, como descreve Ovídio Araújo Baptista da Silva.
445
Essa forma de visualizar o fenômeno de concreção do direito acaba levando à
necessidade de relativizar a coisa julgada, construção que só pode vir em detrimento da
estrutura do processo e da efetiva realização dos direitos (pretensões), que a decisão sobre
relativizá-la, ou não, ficaria entregue à posição desvinculada do juiz que estaria autorizado a
desconsiderá-la, mesmo que a Constituição Federal a reconheça como direito fundamental
inabolível. Dessa feita, nem mesmo o legislador constituinte pode pretender a tramitação de
projeto de emenda constitucional tendente a aboli-la. Apenas uma ruptura institucional
poderia fazê-lo, mas o juiz, no caso concreto, também poderia, mediante a invocação de
injustiça, consoante decisão paradigmática analisada por Ovídio Araújo Baptista da Silva, no
estudo Coisa Julgada Relativa. O autor cita decisão do Min. Delgado, em que o magistrado
desconsidera a coisa julgada sob o argumento de que
“a grave injustiça não deve prevalecer em época nenhuma’, por isso que ‘a
segurança imposta pela coisa julgada de imperar quando o ato que a gerou, a
expressão sentencial, não esteja contaminada por desvios graves”.
446
E continua o autor:
“A objeção que levanto contra essa proposição começa por questionar a perigosa
indeterminação do pressuposto indicado pelo magistrado, qual seja o conceito de
‘grave injustiça’, análogo àquele proposto por Theodoro Júnior como sendo ‘uma
séria injustiça’.”
447
A defesa da relativização da coisa julgada contraria o próprio objetivo do instituto
conferir segurança às relações jurídicas que foram objeto de decisão pelo Poder Judiciário
deixando a escolha sobre respeitar, ou não, a garantia constitucional, ao arbítrio do intérprete
que, se pode desconsiderar o teor da norma constitucional, não tem limite nenhum.
445
SILVA, Ovídio A. Batista da. Curso de processo civil: Processo cautelar (tutela de urgência.). Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v. 2. p. 491.
446
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Coisa julgada relativa? Studi di diritto processuale civile. Milano, v. I-II-II,
2005. p. 968.
447
Ibid, p. 968.
217
Essa escolha, como foi analisado no Capítulo 3 do presente estudo, deriva do império
da exceção, porque nem ao menos é necessária para que o ordenamento jurídico se proteja de
perpetuar injustiças. Bastaria trazer o fato à compreensão dos limites objetivos da coisa
julgada, para que, pela chamada teoria da substanciação, a correção de injustiças oriundas de
julgados anteriores fosse corrigida pela fundamentação de inexistência de coisa julgada no
caso concreto: o que não existe não precisa ser relativizado. Veja-se que, considerando os
fatos, ou o conjunto de fatos como integrantes da causa petendi, de modo que a sua
substituição por outro conjunto de fatos transformaria a ação primitiva em outra”, poder-se-
ia, da análise da demanda ou seja, dos três elementos que, na verdade, seriam um (fato,
pedido e causa de pedir) reconhecer a ausência de óbice à tramitação de determinada
demanda, porque os fatos nela veiculados o foram objeto da demanda anterior. A
insistência em manter a jurisdição no campo normativo, livre dos fatos, e, portanto,
independente da ação de direito material, gera a necessidade de relativização de direitos
fundamentais inabolíveis, no campo onde a exceção é, pois, como dito, a regra.
Do mesmo modo, se não posso separar fato e direito, não como compreender o
dispositivo da sentença - sobre o qual se produz a coisa julgada, que é uma qualidade que se
agrega ao conteúdo declaratório da sentença, tornando-o imutável sem recurso ao
fundamento ou à causa de pedir, motivo pelo qual, também aí, nesses casos, que a doutrina
considera pertinente resolver por meio da relativização, ter-se-ia a inexistência de coisa
julgada. Trata-se de uma leitura autêntica dos limites objetivos e, em especial, da eficácia
preclusiva da coisa julgada e da identificação das ações para efeitos de análise da formação
dessa imutabilidade, porque é evidente que o que não foi possível argüir na primeira ação não
pode ser alcançado pela eficácia preclusiva.
Para isso, é preciso um retorno ao mundo prático, à dinâmica dos fatos e, portanto, à
ação de direito material.
5.4 DO PENSAMENTO, FONTE DE ALHEAMENTO, À LINGUAGEM,
POSSIBILIDADE DE COMPARTILHAMENTO
Esta fonte inesgotável de alheamento, que é o individualismo, tem profundas
repercussões em todas as áreas. Não é apenas o subjetivismo, o utilitarismo, o relativismo, a
sistematização que concebem a forma com que foi construído o Estado e com que é
218
construído e aplicado o Direito. Ela está entranhada em todos os níveis. Se a fonte do humano
está em sua capacidade de compreensão das coisas, por sua linguagem, pode-se apontar para a
constituição da hermenêutica “como aspecto universal da filosofia e não apenas a base
metodológica das Ciências do espírito.”
448
. Assim, parte-se da idéia da linguagem como
médium universal, porque “ser que pode ser compreendido é linguagem
449
e, se linguagem é
mundo, então, o desvio filosófico para a compreensão do mundo como imagem, como
representação, por meio do indivíduo, que constitui o pensar moderno, vela uma
impossibilidade de compreensão. Daí se origina a necessidade de desconstrução dessa
metafísica, a própria compreensão exige que a presença - o dasein, ou, também, nas palavras
de Heidegger, esse ser que somos nós mesmos - se reconheça como esse ser que está no
mundo e nele deve se compreender com-os-outros. A interpretação do mundo, sua
representação - que parte desse indivíduo fundante na relação consigo mesmo e com o seu
pensamento, porque o seu pensar é a possibilidade de sua existência não fornece qualquer
possibilidade de autenticidade. Isso porque fundar a compreensão em um método em que o
sujeito é senhor dessa representação apenas pode levar a um relativismo em que a
interpretação não está aberta, não está atenta. O compreender, assim como as relações entre os
homens, sua forma de construir suas instituições o Estado e o Direito - para viabilizar uma
construção de ideais coletivos, voltados à superação dos limites ao bem de todos impostos
pelo individualismo egoísta, que sequer reconhece no outro uma possibilidade, exige a
abertura. Abertura como projetar-se. Abertura para o mundo, para o que diz o outro. Por isso,
a compreensão existencial-fenomenológica exige o reconhecimento do Outro, em sua
dimensão autêntica, como espécie, como indivíduo e como comunidade, pois
“todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento
conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento
de pertencer à espécie humana.”
450
Sem isso, não condição de possibilidade de superação do paradigma da
modernidade e construção de uma compreensão sobre o direito que engendre a necessária
edificação de ideais coletivos de responsabilidade, reconhecimento da legitimidade da
448
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1. p. 613.
449
Ibid., p. 612.
450
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, 2006. p. 55.
219
Constituição em seu conteúdo transformador de mundo, em prol de um sentido de bem de
todos, de justiça, sem que o direito e sua falácia de efetividade sejam o que representavam
para Hobbes, o instrumento de dominação de uma elite que dita o que é bom para ela e faz
crer que aquele é o melhor para todos. Esse desvelamento é essencial para uma virada em
direção à relação autêntica entre direito material e processo, em que a aletheia seja possível
por meio da ação de direito material, categoria capaz de retomar a experiência perdida no
campo do direito.
Duas são as condições de possibilidade para essa tarefa. Primeiro, um retorno ao ser,
que é o único que acontece fenomenologicamente
451
e, pois, um retorno ao fenômeno como
encontro com as coisas mesmas, como acontecimento, para que seja recuperada a dimensão
das coisas que são, em um acontecer contínuo, superando a pura presença dos entes e, com
isso, a cristalização dos sentidos que, no caso do Direito, impede o acesso ao mundo da vida,
ao direito não como uma coisa, um ente, que está dado, mas como um constructo a ser sempre
revisado. Segundo, a abertura para o Outro e, pois, para seu sentido no mundo em que o
Dasein é, mas não é só, porque precisa reconhecer o Outro, em sua dimensão de alteridade,
abrindo, assim, a dimensão compreensiva do significado do Outro, que permitirá que se crie a
condição de possibilidade da compreensão. Sem essas dimensões - a dimensão
fenomenológico-existencial e a dimensão da alteridade - não é possível qualquer ato
compreensivo, porque o indivíduo que assim laboraria o faria em uma dimensão de pura
abstração solitária. O direito, dimensão comunitária humana, não é possível nesse caso e
permanecerá pura ilusão, pura ideologia, sempre a serviço do soberano (seja ele a classe
dominante, o Estado, a economia etc.).
Hans-Georg Gadamer afirma que quando
“se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se
esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias.
O que se exige é simplesmente a abertura para a opinião do outro ou para a opinião
do texto.[...] Em princípio, quem quer compreender um texto, deve estar disposto a
deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada
hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do
texto.”
452
451
STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001. p. 216.
452
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São
Francisco, 1997. v. 1. p. 358.
220
É preciso compreender essa afirmação no sentido de seu reconhecimento da
imprescindibilidade da dimensão da alteridade, no reconhecimento e respeito pelo valor do
Outro, não apenas na perspectiva da interpretação de textos, mas na totalidade da
interpretação, que é compreensão do mundo, na relação do homem com as coisas, com os
outros, o que inclui a opinião do Outro, a disponibilidade de ouvi-lo, de se comunicar com
ele, com os textos. Para o direito, a importância desse reconhecimento é radical, não como
discurso fabricado para manutenção do paradigma objetificador/assujeitador, com que se está
acostumado. Essa dimensão é imprescindível na construção do que seja o próprio direito e sua
construção a partir daí, não individual, nem coletiva - mero somatório de individualidades - e,
sim, comunitária.
Acredita-se que, a partir disso, se poderia projetar a responsabilidade, no sentido de
engajamento, envolvimento e preocupação (ou cuidado para ficar com o existencial
heideggeriano da Cura) dos envolvidos com a prestação jurisdicional, superando a idéia de
método pormenorizado e mecanizado em direção a uma idéia de transformação social, por
meio da concretização de direitos (pretensões) pela via jurisdicional, o que seria uma
revolução em direção, aí, sim, à educação da comunidade no respeito para com o Outro e no
reconhecimento de que o “Outro” tem tanto direito à justiça quanto “Eu”. Poder-se-ia superar,
então, a irresponsabilidade dos juízes e dos operadores do direito de modo geral ao não se
comprometerem com a efetiva satisfação dos direitos na vida, ficando no campo meramente
normativo. A necessidade dessa construção, como é curial, não restaria circunscrita ao campo
jurisdicional propriamente dito, envolvendo todos aqueles que, de uma forma ou de outra,
participam da construção do que é o direito (partes, advogados, públicos ou privados,
membros do ministério público, servidores e auxiliares da Justiça).
Uma nova dimensão de responsabilidade é condição de possibilidade e resultado de
um novo olhar sobre o que é o direito e como se faz a relação entre direito material e
processo, a partir do desvelamento do sentido do ser de uma Constituição construída sobre
valores comunitários. Dessa forma, mais que um interminável conjunto de reformas
legislativas, necessidade de um novo modo de pensar e de fazer o direito, em que se
resgate o mundo prático e, com ele, a dimensão intersubjetiva em que se mantenha
constante vigilância sobre a compreensão porque existe um “compromisso entre sujeito e
objeto no universo hermenêutico.”
453
453
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004. p. 26.
221
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É imperioso reconhecer que o Estado Democrático de Direito, que garante prestações
sociais, não-apenas negativas, mas também, e principalmente, positivas, o qual inaugura uma
nova fase na história do Direito, não se realizará sem que a relação entre direito material e
processo supere suas dificuldades. Isso porque, como é sabido, o foco desviou-se e o Poder
Judiciário assume lugar cimeiro na realização dos valores dessa nova concepção de Estado
que se expressa por meio da Constituição.
A forma de fazer direito, ligada ao vínculo de tranformação social trazido por uma
Constituição embebedora, não se compraz com o arbítrio que se desprende do modo-de-
pensar-e-fazer-direito da era da cnica e da exceção. Ambas, técnica e exceção, são produtos
do individualismo que retirou o homem do mundo, o desvinculou do outro e da realidade,
jogando-o no mundo dos conceitos.
Qualquer superação desse arbitrário - que impede a realização do ideal de
transformação social, porque impede que o Poder Judiciário realize de modo efetivo e
responsável sua missão de concretizar pretensões materiais por meio do processo - exige o
desvelamento dos pressupostos que impedem o acontecer do direito material no processo.
A metafísica, que solta as amarras entre pensamento e ser, fazendo com que se salte
por cima do fenômeno do mundo, é o pressuposto ideológico que, investigado, permite o
desvelamento do estado de coisas em que se encontra a relação entre direito material e
processo. Isso porque apenas subtraindo o mundo prático é possível, à técnica, inverter a
essência das coisas, e, à exceção, fazer predominar a força de lei sem lei e a lei sem força de
lei. Ambos os fenômenos, investigados no campo das relações entre direito material e
processo, apontam a necessidade de descontrução da metafísica, o resgate do mundo prático e
o abandono do “céu dos conceitos jurídicos”.
O céu dos conceitos jurídicos, uma fantasia de Jhering, é habitado pelos puros
teóricos, que não devem perquirir sobre necessidades práticas a serem satisfeitas pelo Direito,
sob pena de comprometer a pureza de suas investigações e, com isso, perder a distinção de
estar entre aqueles que são chamados cientistas.
Nesse “céu dos conceitos jurídicos” não vida, porque nenhum raio de sol penetra, e
nem deve penetrar, porque o sol
222
“es la fuente de la vida, pero los conceptos son incompatibles con la vida y por ende
han menester de un mundo exclusivo, en el que existen en la mas completa soledad,
lejos de cualquier contacto con la vida.”
454
Nesse céu, mundo ideal, o distanciamento da repercussão prática que tais construções
teriam é premissa básica. O contrário inviabilizaria a tarefa maior de depuração dos conceitos
e a construção de uma ciência perfeita, ao modo da modernidade. Em seu sonho, o candidato
é informado sobre a capacidad que se exige de todo aspirante al ingreso en este recinto: la
de construir un instituto jurídico con prescindencia absoluta de su valor práctico, basándose
exclusivamente en las fuentes y en el concepto”.
455
Nessa dimensão, o alijamento do mundo
prático é a premissa básica.
Essa fantasia retrata a dimensão em que se desenvolve o direito enquanto ciência e, em
especial, o processo. A depuração de conceitos, aliada à crença de que uma imaginação
conceitual inventiva, como afirmou Macyntire
456
, seria capaz de debalar a crise, é o que
mantém a relação entre direito material e processo atrelada a uma concepção em que a técnica
domina o ser e o entifica, transformando-o na imagem representativa que dele faz o sujeito e
permitindo, não-apenas, a alteração de sua essência, mas também a transformação constante
dessa essência para o fim de adaptá-la aos preceitos do positivismo. Nele, os espaços de
anomia são os modos de explicar como um determinado sentido, universalizado, pode tomar
feições diferentes, em casos iguais e como situações diferentes podem ter respostas idênticas,
o que direciona o pensamento à compreensão de que a era da técnica é, também, a era da
exceção.
454
JHERING, Rudolph Von. En el cielo de los Conceptos Jurídicos. Una Fantasia, p. 286. In: Bromas e veras
en la jurisprudência. Buenos Aires: EJEA, 1974, p. 281-355. Na fantasia de Jhering, ao morrer ele é
encaminhado ao céu e lhe é comunicado que, em atenção à obra que realizara, na terra, será submetido a um
exame que o habilitaria a permanecer no u dos conceitos jurídicos, no qual vivem os mais admiráveis teóricos
que passaram pela terra. Nesse céu, onde não atmosfera, habitam os conceitos e os teóricos que os depuram,
cada vez mais, em busca da perfeição. Os exames buscarão aferir se o candidato se trata de um verdadeiro
teórico, cuja premissa básica é o aperfeiçoamento dos conceitos, sem ocupar-se de necessidades práticas de sua
aplicação. Essa faculdade diferencia, no sonho/pesadelo, narrado por Jhering com especial sagacidade, os
teóricos, desde o nascimento, porque esses m a capacidade de pensar idealmente, o que constituye la ventaja
peculiar del jurista teórico, y ella consiste en la facultad de desligarse, em el pensar jurídico, de todos aquellos
presupuestos que atañen a la realización práctica de los problemas.” JHERING, Rudolph Von. En el cielo de
los Conceptos Jurídicos. Una Fantasia, p. 286. In: Bromas e veras en la Jurisprudência. Buenos Aires: EJEA,
1974, p. 307. Conforme se familiariza com o ambiente, o teórico-candidato a um assento no u dos conceitos
jurídicos descobre porque aquele lugar não é o seu e, antes mesmo de prestar o exame, rechaça a honra de
partilhar de espaço tão seleto e manifesta sua vontade de ali não permencer.
455
Ibid, p. 289.
456
Consoante citado na nota 175. MACYNTIRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo:
Loyola, 1991, p. 388.
223
Enquanto depuram conceitos, os teóricos não se comprometem com sua repercussão
no mundo da vida e nem ao menos com sua coerência com as situações a tutelar. Os conceitos
são, então, os instrumentos para fabricação do direito material, a partir do processo, o que
abre a possibilidade de que mixagens metodológicas digam que o direito ora é uma coisa, ora
é outra, sem comprometimento com o mundo prático e abrindo a possibilidade do domínio da
exceção.
O retorno à atmosfera, onde brilha o sol, e onde o mundo prático seja retomado em sua
riqueza, é o modo como o presente trabalho propõe a virada em direção à compreensão
autêntica da relação entre direito material e processo.
A ideologia, por trás das concepções de ar rarefeito do mundo conceitual, substituída
pela autenticidade do retorno ao mundo onde as coisas se dão, no qual o intérprete possa
construir sentidos a partir do fenômeno no sentido privilegiado. Compreender, então, os
pressupostos do acontecer do direito material no processo, retornando ao mundo prático,
permitirá a retomada do sentido do método, como caminho para recolocar a questão do
sentido do ser
457
, como forma de superar o domínio da técnica e da exceção. Acrescento, no
presente caso, como caminho para recolocar a questão do sentido do ser do direito material no
processo, e permitir, ao último, a concretização das pretensões de direito material, impositivas
nessa nova quadra da história.
Recolocar a questão do sentido do ser, desse modo, impõe o desvelamento daquilo que
não se mostra numa primeira aproximação que é, justamente, o que permanece velado pela
força impositiva da tradição, que se constitui em tudo aquilo que se impõe sem precisar de
fundamentação. Desse modo, a retomada do mundo prático exige o desvelamento do que
permanece velado nas posições que recusam a existência da ação de direito material, taxada
de slogan, anacronismo, inútil repristinação de conceitos superados, ou, ainda, resquício
medieval e bárbaro.
A ação de direito material, por isso mesmo, é uma aposta paradoxal, de retomada do
movimento entre o velar e o desvelar-se aletheia - do sentido do ser desse ente que é o
direito material. A ação de direito material é o sentido do ser desse ente que é o direito
material agora em constante movimento. Ela, então, é a categoria
458
hermenêutica capaz de
457
STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude. Ijuí: Unijuí, 2001, p. 169.
458
Segundo Heidegger, Existenciais e categorias são as duas possibilidades fundamentais de caracteres
ontológicos. O ente, que lhes corresponde, impõe, cada vez, um modo diferente de se interrogar primariamente:
o ente é um quem (existência) ou um que (algo simplesmente dado no sentido mais amplo).” HEIDEGGER,
Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2006, p. 89. Na
fenomenologia hermenêutica, então, Denominamos os caracteres ontológicos da presença de existenciais
224
recuperar o mundo prático, condição de possibilidade para concretização efetiva das
pretensões de direito material que não logram realizar-se espontaneamente. A aposta é
paradoxal, porque o sentido é recuperado, justamente no lugar no qual, segundo todas as
possibilidades de sentido, ele não se encontraria: a busca, no mundo prático, daquilo que se
perdeu na construção do céu dos conceitos jurídicos, que tomou conta do processo e o tornou
insensível às necessidades para as quais ele foi criado.
Trata-se de uma mudança de rumo radical no modo-de-compreender-e-fazer-direito,
viabilizando o Estado de transformação social. Tudo isso quer dizer que não se acredita em
medidas legislativas “inovadoras”, capazes, a partir de agora, de mudar o mundo e estabelecer
a justiça, a celeridade, a diminuição do número de contendas, a realização de direitos, como
quem tira um coelho da cartola. Medidas inócuas construídas para serem inócuas em um
mundo de mônadas solitárias e de excluídos. Nesse mundo, em que direitos fundamentais
esperam realização, o próprio direito, por não viabilizar essa realização, perde legitimidade.
Não é possível construir o “novo” sobre o velho alicerce o individualismo. A superação da
realidade abstrata do mundo como imagem, a concretização da compreensão de que a
sistematização só é possível onde não haja um projeto, onde o “eu”, só é possível em
contraposição ao “tu”, é operação imprescindível para a construção de qualquer mudança e
para a recuperação de dimensões perdidas: a dimensão da paz, da justiça, da alteridade, da
comunidade.
A dimensão do tempo precisa ser resgatada. Não se pode pretender mudar a realidade
nefasta da relação entre direito material e processo, em que o sujeito solipsista - o juiz, o
servidor cartorário, o advogado, a parte - não assuma a sua responsabilidade. Não serão
súmulas vinculantes ou tentativas de industrialização de sentenças como a que se no citado
artigo 285–A do Código de Processo Civil que irão diminuir o número de processos e
permitirão aos juízes o julgamento refletido das causas. As soluções não são para hoje, o
eterno presente da modernidade, exigem microrrevoluções, paulatinas mudanças no
pensamento das pessoas. Por isso, a dimensão da responsabilidade (do cuidado) é tão
importante, imprescindível.
As posições salvacionistas têm por fim permitir a eterna espera de que o mundo mude,
seja salvo, quem sabe ainda hoje. A relação entre direito material e processo espera ser salva
porque eles se determinam a partir da existencialidade. Estes devem ser nitidamente diferenciados das
determinações ontológicas dos entes que o têm o modo de ser da presença, os quais chamamos de categorias
(N9).” HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006, p. 88.
225
todos os dias, por súmulas vinculantes, sentenças em série, limitação de recursos em modo
abstrato.
Na relação entre direito material e processo, a dimensão do cuidado exige o olhar ao
fenômeno, no qual se inicia o desdobramento do ser do direito, no qual os envolvidos sejam
pessoas que colocam parte de sua vida em julgamento, no qual, portanto, todos devem se
portar com responsabilidade, e não simplesmente a partir de suas simples vontades solipsistas
e desvinculadas do mundo, criando abstrações, imagens, no lugar das quais deveriam estar os
fatos.
Por tudo isso, remendos legislativos não levarão a lugar algum. Desconhecer a
potência e a força do direito material negando a ação de direito material é atitude que
continuará impedindo a possibilidade do acontecer do direito material no processo, no qual,
nos caminhos do método, ele perde sua essência, sua própria existência, por vezes. Por isso
não uma proposta legislativa construída ao final do presente trabalho. Não se achará um
anexo, com a fórmula mágica que levará o processo à efetividade. O lugar da efetividade não
se adjetivando o direito, o lugar da efetividade está na compreensão do substantivo direito
que, compreendido assim, a partir de sua força imanente, poderá realizar-se, permitindo à
técnica, ao processo, sua própria realização, também, no que ela é.
Essa mudança de compreensão é uma tarefa interminável, sempre revisada, pois
enquanto o processo continuar atemporal, universal e unívoco, continuará reproduzindo
sentidos com suas próprias características e os direitos padecerão de realização. O processo,
como o direito, continuará perdendo legitimidade.
A proposta é de um novo olhar sobre o processo. Um olhar que recupere a dimensão
do cuidado, como dedicação, como responsabilidade. Um olhar que recupere o Outro como
constituidor de mundo, e não como negação. Um olhar em que não haja o esquecimento do
que se discute em nome do método, da celeridade e da economia processual, forças antitéticas
que levam ao esquecimento de que todo direito é direito de alguém e que esse alguém não
pode ser esquecido em nome da dimensão das impessoalidades autor e réu. Um olhar que
reconheça que a decisão é uma decisão sobre o mundo de alguém e de todos, como
comunidade.
Por esse motivo, a viravolta em direção à hermenêutica filosófica se com o retorno
ao mundo. Recupera o mundo como linguagem. A linguagem deixa de ser uma coisa que se
interpõe entre o sujeito (intérprete) e o objeto da interpretação e passa a ser constituidora de
mundo. A linguagem, com a qual vem a tradição, não é um instrumento, é condição de
possibilidade. Ela é mundo. O mundo assim, vem à fala, e as coisas mesmas podem ser a
226
medida e o parâmetro. Como advertiu Hiedegger: Significância é a perspectiva em virtude
da qual o mundo se abre como tal.”
459
Sendo assim, a linguagem não pode ser construída
arbitrariamente. Nesse paradigma, em que a linguagem não é instrumento, o mundo deixa de
ser um reflexo do pensamento e é recuperado em sua dimensão autêntica e intersubjetiva.
A afirmação da ação de direito material, como linguagem que fala ao processo, pois
ela é o modo-de-ser do direito material, permite que a relação entre direito material e processo
retome sua capacidade de construção de sentidos autênticos e de concretização de pretensões.
Ela é o pressuposto do acontecer do direito material no processo, uma aposta paradoxal, mas
verdadeiramente fundamental, que se dará a partir de uma virada na compreensão em
direção à hermenêutica filosófica, porque com ela o que foi alijado o mundo prático é
retomado, permitindo que o direito material seja realizado em sua essência, aquilo que ele é, e
não uma imagem refletida de seu ser, nem uma essência ideal pronta a ser extraída.
Permitindo, então, que a ação de direito material, que foi alijada da relação que é objeto das
presentes refexões a relação entre direito material e processo - possa ser a medida e o
parâmetro, informando o processo sobre as necessidades concretas das pretensões de direito
material, impede-se o predomínio da cnica e da exceção. Com isso, o direito material,
concreto, não apenas normativo, retoma força impositiva, viabilizando-se a concretização de
seu conteúdo por meio do processo, cuja esfera não é negada, mas retomada em uma
dimensão autêntica, em que sua própria essência é receber e doar, concretizando pretensões,
satisfazendo-as, interferindo no mundo prático. O processo, assim, resgata sua dimensão
ontológica. É justamente isso: A aposta paradoxal que aqui se faz, na busca da superação da
ideologia e da construção da autenticidade, retoma a ação de direito material, como forma de
resgate do mundo prático, que permite que a tarefa da interpretação e da compreensão se
como aplicação, em que o modo-de-ser do direito material possa impor-se no processo,
transformando-o e, com isso, transformando mundo.
A presente aposta no resgate da ação de direito material, acredita, com Heidegger, nas
palavras do poeta Höderlin: “onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva.”
460
459
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco,
2006, p. 203.
460
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2006, p. 31.
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