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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
Cíntia Beatriz Muller
Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto : uma análise
etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do significado da
identidade jurídico-política de “remanescentes de quilombos”
Porto Alegre
2006
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Cíntia Beatriz Muller
Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto : uma análise
etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do significado da
identidade jurídico-política de “remanescentes de quilombos”
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.
Orientador (a) :
Profa. Dra. Cláudia L. W. Fonseca
Porto Alegre
2006
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Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto : uma análise
etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do significado da
identidade jurídico-política de “remanescentes de quilombos”
Cíntia Beatriz Muller
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.
Orientador (a) :
Profa. Dra. Cláudia L. W. Fonseca
Banca Examinadora:
Dra. Miriam Furtado Hartung – PPGAS/UFSC
Dra. Maria Eunice Maciel – PPGAS/UFRGS
Dra. Daisy Macedo de Barcellos – PPGAS/UFRGS
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Agradecimentos
Agradeço à acolhida e o calor da Comunidade de Morro Alto sem a qual essa Tese não
existiria.
Agradeço aos meus pais Noedi Beatriz e Ademir Pedro pela compreensão e apoio ao
longo desses quatro anos de caminhada, minha irmã Márcia Milene Müller por sua
paciência e solidariedade e meu querido cunhado Fábio pelas dicas sobre a religião afro.
Especial agradecimento a minha avó Helga Maurer Nitsche por permitir que eu
utilizasse seus benefícios de passagem aérea da Varig, o que me possibilitou viver no
Rio de Janeiro em 2004 e estar em casa quase todos os meses em Porto Alegre.
Agradeço minha orientadora Claudia Fonseca por sua dedicação e por estar sempre presente
quando precisei de orientação técnica ou de conselhos de uma amiga e Daisy Macedo de Barcellos
por seu carinho, sua luz e muito mais: sem ela esse trabalho não teria sido possível. Aliás, sem
Daisy Morro Alto não poderia ter sido analisado com tanta ética e dignidade por mim ou por outros
que vieram antes e virão depois. Agradeço Miriam Chagas por compartilhar um campo maravilhoso
como o de Morro Alto desde o ano de 2001.
Agradeço o apoio do historiador Rodrigo Azevedo Weimer e da antropóloga Mariana Balen
Fernandes sem os quais não haveriam tantas descobertas e tanta alegria no ato de pesquisar.
Agradeço a solidariedade e amizade dos colegas do Núcleo de Antropologia e Cidadania da
UFRGS, Cristian Jobi Salaini e Ana Paula Comin, Valéria Assis e Renata Menasche. Agradeço a
solidariedade das queridas colegas de pesquisa sobre as “Construção Social da Legalidade em
Comunidades Quilombolas”, projeto FAPERGS/NACi/2004, Annelise Fróes e Letícia Garcez.
Agradeço à calorosa acolhida por parte da professora Giralda Seyferth e Lygia Sigaud no
Museu Nacional da UFRJ onde cursei disciplinas por um ano e convivi com uma turma de pós-
graduação maravilhosa. Agradeço a Fernanda Piccolo e Wellington, Antonádia Borges e Marcelo
sem os quais o Rio de Janeiro não teria as mesmas cores e as mesmas possibilidades, a Nora Júlia
Arias e a Marina colegas no Museu e em Santa Teresa.
Agradeço as professoras Ilka Boaventura Leite, Delma Peçanha, Ellen Woortman, Maria
Laura Vivieros de Castro, Beatriz Heredia e Denise Jardim, pelos comentários feitos aos meus
artigos durante congressos e reuniões. Agradeço ao professor Alfredo Wagner pelo bom humor e
palavras de incentivo em relação à defesa dessa tese, mesmo sem conhecê-la, e ao professor Ruben
Oliven por sua dedicação em relação a minha turma de doutorado de 2002.
Agradeço ao pessoal do Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos – COHRE,
programa das Américas, Letícia Osório, Emily Walsh e Karla por me fazerem crer, novamente, nas
possibilidades do Direito. Agradeço à jornalista Sinara Sandri pela revisão dessa Tese.
Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa pela bolsa que possibilitou meus estudos e ao
PPGAS/UFRGS, na pessoa da prof. Maria Eunice Maciel, por ter viabilizado meios para que eu
realizasse minha qualificação acadêmica em um dos melhores cursos de Antropologia Social do
país.
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Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto: uma análise etnográfica dos
campos de disputa em torno da construção do significado da identidade jurídico-política
de “remanescentes de quilombos”.
Resumo: Essa pesquisa se coloca o desafio de expor as configurações que atuaram no
campo das discussões em torno da construção do significado da identidade político-jurídica
de “remanescente de quilombos”, desde sua entrada no texto constitucional até sua
apropriação no plano da política estatal gaúcha e, finalmente, com a apropriação e
construção de um sentido pela própria comunidade de Morro Alto, Osório/RS, que
reivindicava esse reconhecimento em 2001. Percorrendo esse caminho, com a intenção de
enriquecer a discussão teórico antropológica, trago ao texto um debate que tenciona: a
perspectiva de abordagem do parentesco pela via da análise das genealogias, tendo em vista
a forma como a comunidade percebe a constituição de suas redes de parentesco, e como
esse tipo de abordagem pode influenciar nas correlações de força que compõem um
território étnico, os marcos de territorialidade e a construção do “sujeito de direitos” no
campo jurídico. O fio condutor desta pesquisa é a compreensão da construção social do
território étnico de Morro Alto dentro das possibilidades políticas e analíticas de um dado
momento histórico e de como o campo jurídico acaba por ditar tendências de abordagem
analítica sobre tais comunidades. São as inovações da possibilidade antropológica de
análise, potencializada pelo método etnográfico, que oferecem novas possibilidades
interpretativas a perspectiva jurídica sobre o tema.
Palavras chave: método etnográfico – identidade social – remanescente de quilombos –
relações de parentesco – território étnico – territorialidade.
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Community of Quilombos of Morro Alto (Brazil): an ethnographic analysis of the dispute
fields around the construction of the meaning of the identity legal-politics of the
"remainders of quilombos".
Abstract: This research sets to itself the challenge to expose the configurations which
played a role in the field of discussions regarding the construction of the legal-political
meaning of “reminiscent of quilombo”; ever since its entrance in the constitutional text up
to its appropriation in the state sphere of the gaucho policy, to, at last, with the
appropriation and construction of a meaning by the community of Morro Alto, Osório, RS,
itself which claims for such recognition in 2001. Throughout this path, with the will to
enrich the anthropological theoretical discussion, I bring to the text a debate, which intends
to produce friction between: the perspective of approach of parenthood by the analysis of
genealogy, bearing in mind the manner how the community perceives the constitution of its
parenthood networks, and how such approach may influence the correlations of power
which comprise an ethnic territory, the marks of territoriality and the construction of
“subject of rights” in the legal field. The streamline of this research is the understanding of
the social construction of the ethnic territory of Morro Alto in the political and analytical
possibilities of a given historical moment and how the legal field ends dictating trends of
analytical approach to such communities. The innovations of the analytical anthropological
possibility, strengthened by the ethnographic method, are the ones that offer new
interpretative possibilities to the legal perspective over the matter.
Key words: etnograpgic method - social identity - reminiscent of quilombos - parenthood
relationships - ethnic territory - territoriality
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Ìndice
1. Introdução.................................................... 09
1.1 Etnicidade: comunidades afetivas e significados compartilhados.............16
1.2 O trabalho de campo e suas especificidades...........................26
1.3 Morro Alto e suas localidades.......................................37
1.4 Povoados que compõem a comunidade de Morro Alto............ 39
1.5 A identidade “remanescentes de quilombos”: nova(s) possibilidades?.....43
2. Legislação sobre “remanescentes de quilombos” no Brasil: um lugar no âmbito
do Estado Nacional.....48
2.1 A conquista tardia dos direitos civis por parte da população negra no Brasil....49
2.2 A Constituição Federal de 1988 e os direitos da minoria afrobrasileira.......56
a) Discussões por parte dos movimentos negros e propostas de Emenda Popular.....61
b) Emendas à primeira versão do texto constitucional......64
2.3 Legislação infraconstitucional: esforços em regulamentar o artigo 68 do ADCT....68
2.4 Um lugar no âmbito do Estado Nação ocidental......74
2.5 Quadro sinóptico da legislação federal sobre remanescentes de quilombos....82
3. Comunidade Negra de Morro Alto: uma comunidade imaginada por alguns e
vivida por outros...........84
3.1 A etnogênese e uma perspectiva difrente sobre o poder.....85
3.2 Um convênio entre governo federal e estadual e três diferentes propostas de objeto:
prelúdio de uma polifonia anunciada.....87
3.3 A posição dos atores em campo.....93
a) Os “agentes”: uma parcela do movimento negro que vai a campo.............93
b) O Ministério Público Federal: “ uma discussão feita sob o ponto de vista do direito, do
jurídico, da propriedade”, com protagonismo das comunidades.....99
c) Os “pesquisadores”: mediadores em diferentes posições....102
3.4 As reuniões em Morro Alto.....106
3.4.1 Apresentando a comunidade.....106
3.4.2 A escolha de um nome para a associação.....118
3.4.3 Definindo quem pode ser sócio da Associação Rosa Osório Marques....121
3.5 Algumas Considerações Finais.....125
4. As relações de parentesco em diálogo com a construção do “sujeito de
direitos”......129
4.1 Descender dos “Herdeiros de Rosa”: segurança em ter uma residência....131
a) Rosa Osório Marques: aquela que doou as terras......131
b) Ser herdeiro do testamento de Rosa: uma vitória no judiciário das décadas de 60 e
70.....135
8
4.2 Descendência: composição no jogo das alianças.......142
a) “Namoro”, “Casamento” e “Filhos”: a história de duas mulheres negras da
comunidade de Morro Alto.....143
b) Maria laurinda da Silva: um “casamento” dentre as décadas de 20 e 30....143
c) Lídia Laurinda da Silva: “namoro” e “casamento” durante as décadas de 40 e 50....149
4.3 Situacionalidade e poderes a partir da estória dos casamentos de oito mulheres da
comunidade negra de Morro Alto.....163
a) Clarinda e Cândida: o casamento como “destino”....163
b) As mulheres que vêm de “fora”.....170
c) Carmem: “aí, eu sei qu enão, não tinha perigo, era um homem muito caprichoso, muito
trabalhador....” 176
d) Raimunda: o início da construção do personagem “Rainha Jinga”.....179
e) Beatriz e Marinete: casamentos modernos ou nem tanto?....183
4.4 Um parentesco para além do sangue.....186
a) Coberta d´Alma: um ritual de morte como constituinte do parentesco....187
b) Interpretações sobre a Coberta d´Alma.....190
4.5 O jurídico e o sangue.......202
4.6 Considerações Finais...213
5. A terra em Morro Alto: significados, sucessão e conflito.....215
5.1 Território e Territorialidades.....215
a) Algumas estórias da comunidade de Morro Alto....220
b) A comunidade e suas reivindicações agrárias.....226
c) A casa e a terra para além do material.....231
c.1) As denominações que se impuseram à comunidade....231
c.2) Denominações de uso corrente....233
c.3) os terrenos dos negros....238
c.4) O “chão da casa de meus pais” e as árvores da memória......252
c.5) O umbigo enterrado e o voltar para “morrer na terra”.....254
5.2 Considerações Finais......257
6. Considerações Finais......258
6.1 Morro Alto: a comunidade de quilombos que deixou de ser.....262
a) Morro Alto e sua origem em uma legislação de caráter “soviético”.....263
6.2 “ Iguais até prova em contrário”: notas sobre a abordagem jurídica sa segregação racial
no Brasil....269
Bibliografia..........274
9
1. Introdução
1.1 Etnicidade: comunidades afetivas e
significados partilhados; 1.2. O trabalho de campo e
suas especificidades; 1.3. Morro Alto e suas
localidades; 1.4 Povoados que compõem a
Comunidade de Morro Alto; 1.5. A identidade de
“remanescentes de quilombo”: nova(s)
possibilidade(s)?
A inspiração para esta pesquisa de doutorado nasceu da necessidade, científica e
pessoal, de aprofundar parte de um estudo iniciado em 2001, na comunidade de Morro
Alto. O resultado final dessa primeira pesquisa foi publicado em 2004 e é referido ao
longo do texto da Tese como Barcellos 2004, essa referência engloba a todos os
pesquisadores, envolvidos no processo de redação do relatório final e escrita do livro.
Nessa tese, me proponho a uma análise etnográfica dos campos de disputa em torno da
construção do significado da categoria “remanescente de quilombos”. A perspectiva de
análise que proponho se desloca de um nível macro para o micro, de um projeto nacional
para um projeto local. Dessa forma, poderia ter chego a qualquer comunidade negra rural
que reivindique o reconhecimento como remanescente de quilombo da mesma forma que
poderia ter trocado o nome da comunidade e das pessoas que foram entrevistadas, sem
alterar contudo a qualidade do debate proposto.
Para tanto, este trabalho se coloca o desafio de expor as configurações que
atuaram no campo das discussões em torno da construção do significado da identidade
político-jurídica de “remanescente de quilombos”, desde sua entrada no texto
constitucional até sua apropriação no plano da política estatal gaúcha e, finalmente,
10
com a apropriação e construção de um sentido pela própria comunidade de Morro Alto
que reivindicava esse reconhecimento. Percorrendo esse caminho, com a intenção de
enriquecer a discussão teórico antropológica, trago ao texto um debate que tenciona a
perspectiva de abordagem do parentesco pela via da lógica da análise das genealogias
tendo em vista a forma como a comunidade percebe a constituição de suas redes de
parentesco e como esse tipo de abordagem pode influenciar nas correlações de força que
compõem um território étnico e a construção do “sujeito de direitos” do campo jurídico.
No penúltimo capítulo, que antecede as considerações finais, quero destacar que há uma
idéia de descendência operando na forma como a herança das terras está sendo
operacionalizada que se constrói na interface da lógica do campesinato e do direito de
sucessão brasileiro e que acaba por ser apreendido pelo processo de territorialização
através da via étnica nessa última década. Dedico um prólogo à análise da repercussão
do relatório de Morro Alto depois de apropriado pela comunidade e pelos poderes
públicos.
O fio condutor desta pesquisa é a compreensão da construção social do território
étnico de Morro Alto dentro das possibilidades políticas e analíticas de um dado
momento histórico e de como o campo jurídico acaba por ditar tendências de
abordagem analítica sobre tais comunidades. Um leitor mais crítico poderia questionar
se não é esse justamente o ônus de ter reconhecida uma dimensão jurídico-política de
uma identidade social mais ampla dos afrobrasileiros. Responderia essa questão
argumentando que é justamente na inovação das possibilidades antropológicas de análise
sobre as relações interétnicas que está a possibilidade de transformação da perspectiva de
abordagem jurídica sobre o tema. Nas considerações finais da tese, dedico um momento
para analisar os argumentos jurídicos empregados para conquistar a suspensão do
11
reconhecimento da comunidade negra de Morro Alto como remanescente de quilombos
através de um ação jurídica chamada Mandado de Segurança. Com isso, quero reafirmar
a necessidade de aprofundarmos o diálogo com o campo jurídico, compreendendo aí,
principalmente, juízes e advogados, trocando experiências de pesquisas e referenciais
analíticos. Por outro lado, no que diz respeito à permanência da comunidade de Morro
Alto em terras ancestrais, essa luta remete às relações sociais de negros, descendentes de
quilombolas ou ex-escravos, com a sociedade envolvente dentro de uma historicidade
particular que lhes possibilitou permanecer ocupando um espaço de expressão do
sentimento de considerar como seu um lugar no mundo. O fluxo de análise dessa tese,
talvez não tenha sido tão diacrônico quanto a riqueza histórica da comunidade mereceria,
porém entendo que a parte histórica do livro sobre o processo de reconhecimento da
comunidade permanecerá, por muito tempo, como o principal documento não apenas da
história de Morro Alto, mas sobre a permanência do negro na região do litoral norte do
Rio Grande do Sul. Quero chamar atenção para o fato de que quando utilizo o termo
história estou me referindo ao termo em seu sentido mais próximo do senso comum,
enquanto utilizo processo histórico para remeter ao sentido mais científico da abordagem
disciplinar.
Essa introdução por si apenas constitui uma parte quase autônoma da tese e por
isso é o capítulo um. Nela estão especificados o objetivo dessa pesquisa, o universo de
análise, as questões de método e a explicação de como os capítulos se concatenam.
Também apresenta referências sobre desenvolvimento do trabalho de campo que se
justapôs ao da escrita do relatório sobre processo de identificação étnica da comunidade
como remanescente de quilombos.
12
Com a derrocada do movimento de reivindicação de terras por parte da população
negra e o advento do governo ditatorial, o contexto da Constituição Federal de 1988
(CF/88) no âmbito da Nova República representou uma oportunidade de constituir um
instrumento jurídico que viabilizasse a apropriação de terras por parte dessa parcela da
população. Por isso, dedico o capítulo dois à análise dos debates em torno da inserção do
art. 68 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF/88 e sobre a
legislação que regulamenta o assunto. A discussão gira em torno da tensão entre os
órgãos públicos federais destinados a questão cultural, Fundação Cultural Palmares, e
aquele destinado a questões de reforma agrária e regularização fundiária, Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A discussão sobre a quem
compete produzir a palavra autorizada sobre o assunto, no âmbito do governo federal,
reproduz a discussão da academia na reacomodação do campo de produção sobre
análises dos assunto. A “resemantização teórica” descreve uma certa migração da
produção dos textos antropológico sobre as comunidades negras rurais no sentido de uma
nova possibilidade de leitura do universo de análise que passa, nos idos dos anos 90, a
constituir um campo específico sobre “remanescentes de quilombos”englobado nos
debates sobre produção de laudos antropológicos. O capítulo três dispõe exatamente
sobre como a identidade “ser remanescente de quilombos” foi apreendida e apropriada
pelo contexto específico local. Nesse capítulo, quis externar a polifonia de interpretações
que giraram em torno da construção de um sentido para a identidade de remanescente de
quilombos. Essa polifonia de interpretações advém não apenas das comunidades mas dos
atores envolvidos no processo de reconhecimento de tais comunidades como
quilombolas. Faço alusão às interpretações do movimento negro e da universidade
quanto ao tema. Por fim, demonstro como, no caso de Morro Alto, a própria comunidade
13
acabou por ditar sua interpretação sobre o tema. No entanto, essa interpretação é
concebida dentro de um dado processo histórico, no âmbito de um procedimento de
territorialização, ou seja, em um dado momento onde as comunidades têm consciência de
seu diálogo com o jurídico e através dele e operacionalizam categorias que lhes
possibilitam uma maior eficácia na operacionalização do discurso. Diversos atores
sociais se impõem no âmbito das comunidades em decorrência do acesso a capitais
sociais e políticos cuja competência operacional detêm e que acentuam a possibilidade de
eficácia do pleito de reconhecimento.
No capítulo quatro, busco analisar como os critérios de definição de quem é
remanescente de quilombos na comunidade de Morro Alto foram influenciados pela
eficácia que tais critérios já haviam alcançado no contexto jurídico. Destaco a ênfase por
parte da comunidade, dos movimentos sociais e, em certos momentos, dos próprios
pesquisadores em parâmetros biológicos de constituição da noção de parentesco e de
descendência que acaba por opor afrodescendentes a afrobrasileiros, como se o
pertencimento racial no Brasil fosse pautado pelo critério da descendência biológica ao
invés do critério de cor (Maggie 1996).
A partir dessa ênfase no biológico, estaríamos diante da confluência de interesses
de Estado, por um lado, que definiria um grupo dentre os afrobrasileiros passíveis de
receber parte do legado de uma dívida histórica e, de outro, do incremento das
possibilidades de um movimento negro transnacional no qual o diálogo com o
movimento negro estadunidense, por exemplo, estaria sendo construído sob bases
comuns ao definir a filiação racial pela ênfase na descendência biológica? (DaMatta
1993) Sem contar que a ênfase na descendência pode representar um mecanismo de
exclusão de indígenas do âmbito do pleito dos remanescentes de quilombos por terras.
14
Em um sentido mais imediato, a impermeabilização da fronteira entre indígenas e
quilombolas definiria a arena de discussão sobre a questão da regularização fundiária das
terras: ou a Fundação Nacional de Amparo ao Índio - FUNAI que é um órgão vinculado
ao Ministério da Justiça, ou ora o Ministério do Desenvolvimento Agrário ora o
Ministério da Cultura como tem oscilado a questão quilombola.
Visando estabelecer o refinamento dos critérios de análise antropológica trago
ao texto histórias de casamentos contadas por mulheres de Morro Alto. Privilegiei as
narrativas que partem delas uma vez que em minha inserção em campo senti que as
conversas com as mulheres fluíam mais “à vontade”, elas mais facilmente
compartilhavam suas experiências íntimas e suas impressões sobre assuntos familiares
que os homens. Apresento a narrativa de Dona Lídia como uma história exemplar onde
ela conta as transformações vivenciadas por sua mãe e por ela na comunidade de Morro
Alto no que diz respeito ao modo de morar, cozinhar, às regras morais de namoro e às
exigências do casamento. No segundo momento trago ao texto histórias de várias
mulheres que recolhi na área de Morro Alto para, por fim, interpretar o que vem a
constituir o conjunto de valores que se está querendo preservar com o casamento.
Como complemento a forma como as relações de parentesco estão sendo
socialmente construídas no âmbito da comunidade de Morro Alto, ofereço um
contraponto onde o critério de constituição do parentesco, o momento do parentesco, não
é o nascimento e sim os rituais de morte. Com uma análise da constituição de relações de
parentesco a partir do ritual da “Coberta d’Alma” quero oferecer uma perspectiva ritual
de construção da relação familiar e demonstrar que no âmbito jurídico, que enfatiza a
descendência biológica como premissa constitutiva do parentesco, o espaço possível para
15
essa forma de expressão é restrito e inoportuno pois altera a lógica de parentesco
pautada pelo paradigma da descendência – princípio que rege o direito de sucessão..
O capítulo cinco discute a construção dos marcos de territorialidade e a
participação do antropólogo na produção de sentido sobre “remanescentes de
quilombos”. Por isso, discuto nele os conceitos de território étnico, territorialidade e
processo de territorialização para pôr em evidência a ênfase em parâmetros ditados pelo
Estado na construção de um sentido para o que vem a ser um “remanescente de
quilombos”. Essa imbricação é necessária tendo em vista a questão da relativa
invisibilidade histórica a que o grupo esteve submetido (Oliven 1996). Os negros de
Morro Alto passaram grande parte de suas vidas sendo identificados como campesinos,
tendo sua identidade social constituída a partir da atribuição de sua condição de exclusão
social e política, levando-se em consideração critérios de classe que subsumiam a
questão étnica. Viver em Morro Alto passou a ser sinônimo de envolvimento com
modalidades de “agricultura familiar” praticada por aqueles que plantam para a
subsistência e mantêm relações de interdependência com a cidade. Como estofo desse
procedimento de territorialização quero destacar a forma como as pessoas que vivem em
Morro Alto apreendem seu espaço como um local onde regras de ocupação do solo que,
segundo crêem, remonta aos antigos escravos ainda são lembradas como importantes.
Por fim, quero destacar que sim o princípio da descendência tem organizado as
relações familiares verticais, mas de forma seletiva através do jogo de representações
(Jodelet 1993) do que vem a ser “herdeiros”. A proximidade entre movimentos de
agricultores e movimento quilombola merece destaque pois é uma espécie de recorrência
em outras áreas quilombolas do país. Em Sapê do Norte, no Espírito Santo, o movimento
quilombola mantém estreita relação com o Movimento de Pequenos Agricultores Rurais;
16
em Alcântara, no Maranhão, representantes do Movimento do Agricultores Sem Terra
participaram, em dezembro de 2005, do Fórum em Defesa do Território Étnico de
Alcântara. Também em Alcântara, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais – STTR sempre apoiou a causa quilombola da mesma forma em que a recíproca é
verdadeira. O atual presidente do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de
Alcântara - MABE, em mais de uma situação, externou, em conversas pessoais, sua
admiração pela capacidade de mobilização do MST. No Rio Grande do Sul, está
ocorrendo uma aproximação entre membros do movimento negro, Via Campesina e
representantes de grupos indígenas nas mobilizações contra expropriação de terras para o
plantio de eucalipto, principalmente na metade sul do estado. Por isso, reforço a
necessidade da utilização do referencial teórico do campesinato ao focar nosso olhar
sobre as comunidades negras rurais pois não é por serem campesinas que tais
comunidades deixam de ser étnicas. Tais dimensões de ser/estar no mundo são
complementares e falta muito pouco para que as entidades dos movimentos sociais
percebam isso.
Por último, no capítulo seis, ofereço ao leitor as Considerações Finais dessa Tese
e uma pequena análise sobre as disputas no campo jurídico que levaram Morro Alto a
deixar de ser considerada como “remanescente de quilombos” no âmbito jurídico. .
1.1 Etnicidade: comunidades afetivas e significados partilhados.
Max Weber (1998), em sua obra mais significativa sobre a questão étnica inicia
sua discussão sobre comunidades étnicas abordando a idéia de “raça” (Weber 1998).
Escrita assim mesmo, posta entre aspas. Dessa forma ao formular sua teoria, desafiou a
crença da transmissão biológica de características hereditárias, comuns na época em que
17
escreveu seu texto. Além de frisar que são os “sentimentos subjetivos” que pautam a
existência ou não de uma comunidade étnica. Acompanhando a construção de seu
raciocínio, a “raça” não conduz necessariamente a uma comunidade étnica mas pode ser
sua “nota característica comum”. Essa nota, a “raça” no caso, pode vir a ser uma forma
de simbolizar sentimentos estruturantes da comunidade étnica e sinais diacríticos que
levam ao estranhamento daquele que possua elementos “heterogêneos”, ou seja,
diferentes do grupo.
A repulsão e a atração sexual, que levam à endogamia, podem ser reforçadas
pelas características raciais socialmente construídas enquanto valor em um processo
amplo, é capaz de contribuir na inculcação de critérios quanto a escolha de parceiros de
forma bastante controlada como, por exemplo, difundindo a ideologia do branqueamento.
Assim, é o estilo de vida com o compartilhar de significados e valores que forma a base
para a “comunização” (Weber 1998:317) de uma coletividade. Essa comunização, ou a
prática de costumes aprendidos com a “educação”, é a chave que pode ensejar os
sentimentos de “honra e dignidade” étnicas. Para Max Weber, porém, as comunidades
étnicas possuiriam “fronteiras rigorosas” (Weber 1998:317) que separariam os costumes
particulares daqueles próprio das comunidades envolventes.
Por outro lado, a identidade calcada nos valores e costumes compartilhados pode,
em certas situações, levar à crença em um parentesco comum. A valorização deste tipo
de crença é reforçada, ainda mais, por populações que possuam lembranças comuns de
emigrações reais como, por exemplo, a colonização ou a “imigração individual”. Essa fé
em um parentesco comum, independente de sua veracidade, pode ser decisiva na
constituição de uma “comunidade política” (Weber 1998:318). Da discussão desses
18
fatores é que Max Weber estabelece o conceito de “grupo étnico” e sua diferença da
“comunidade”:
“Chamaremos “grupos étnicos” aqueles grupos humanos que,
fundando-se na semelhança de um hábito exterior e no dos costumes,
ou de ambos de uma vez, ou em recordações de colonizações ou
migrações, abrigam uma crença subjetiva em uma procedência comum,
de tal forma que a crença é importante para ampliação da comunidade;
porém a designaremos assim [comunidade] sempre que não
representem “clãs”, embora sem levar em conta se existe ou não uma
verdadeira comunidade de sangue” (Weber 1998:318, tradução da
autora).
A exclusão das sociedades organizadas de forma clânica se dá em função de sua
temporalidade e duração. Um grupo étnico é um “momento” que vem a facilitar o
processo de comunização, ao passo que o “clã” é uma comunidade que empreende a
“ação comunitária efetiva”, ele teria uma duração maior no tempo.
Por outro lado, o autor chama atenção para o fato de que além da comunidade e
do grupo étnico existe a comunidade política. A comunidade política e o grupo étnico
possuem, segundo Max Weber, uma situação bastante próxima podendo vir a ser
interdependentes de duas formas distintas: ou a crença em um parentesco de origem
influencia na emergência de uma comunidade política ou a existência de uma
comunidade política pode despertar a crença na origem racial (Weber 1998:318 –319).
Justamente, em nome dessa crença que as solidariedades étnicas surgem de forma mais
arraigada segundo o autor. Acredito que a etnogênese de comunidades que se
reivindicam enquanto remanescentes de quilombos no país segue situacionalmente
ambos os dois paradigmas.
Max Weber, assim, nos oferece os conceitos com os quais poderíamos pensar o
fenômeno da etnicidade: grupos étnicos, comunidades, honra e dignidade étnica,
19
solidariedade étnica, além da distinção entre grupo e comunidade étnica. Porém, tais
conceitos, ousados para o seu tempo, são um tanto centrados em uma situação onde estão
o “nós” e o “eles”, o olhar do autor está direcionado para dentro das unidades de análise.
Fredrik Barth proporá o decentramento da teoria clássica e a aproximação de um outro
enfoque, onde “nós” estamos com “eles” na fronteira.
F. Barth (1969) propõe o deslocamento do enfoque da análise sobre a etnicidade
do seu conteúdo para a sua fronteira, ou seja, o autor busca fugir da ótica do isolamento
de um “grupo étnico” sobre si mesmo, lançando seu olhar sobre os lugares onde ocorrem
as interações entre os grupos étnicos. Tais “fronteiras” permitem o fluxo de pessoas
através de si, potencializando formas de “mobilidade, contato e exclusão” (Barth
1998:188). É esse contato interétnico que vai levar às dinâmicas de “exclusão e
incorporação” que podem transformar sentimentos de pertença ante aos grupos em
contato. Por outro lado, determinadas “relações sociais estáveis”, significativas para os
grupos étnicos, persistem e são mantidas através dessa mesma fronteira social que,
eventualmente, pode apresentar contornos territoriais (Barth 1998:188-195). É na área de
fronteira étnica que se organizam as formas de interação e relações sociais entre grupos
como um marcador de identidade e realce dos critérios de distinção dentre estes mesmos
grupos. Ela delimita um “compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento
(Barth 1998:196) definindo os limites de uma comunidade moral. A fronteira delimita
um espaço no qual pessoas dividem os mesmo valores de identidade, pertença e
diferenciação sobre si e sobre os outros.
Embora para Barth os sinais diacríticos entre os grupos étnicos se transformem
com o tempo e ocorra a fluidez entre as fronteiras, ele defende a “continuidade e a
persistência de tais unidades” (Barth 1998:226) étnicas. A persistência da unidade seria o
20
reflexo da manutenção das diferenças. Já a continuidade ocorreria em função da
permanência do processo de seleção de sinais diacríticos determinantes das fronteiras, ou
seja, embora as “unidades” modifiquem os sinais que distinguem aqueles que são os “de
fora” e os “de dentro”, as “unidades” ressemantizam e atualizam historicamente símbolos
de distinção, por isso as fronteiras sempre existiram.
Acredito que F. Barth tenha construído, em termos analíticos, uma teoria que teve
o mérito de sistematizar a situação inicial dos estudos de antropologia cujos universos de
pesquisa se mantiveram em áreas de contato interétnico. Porém, ao que parece, Barth, ao
tratar de “unidades” étnicas, parece ter dado muito mais atenção às “fronteiras” que
compunham tais “unidades” do que, propriamente, ao processo que constitui tais
“unidades” e as levam a realçar determinados sinais diacríticos de pertencimento. Da
mesma forma, para o autor as fronteiras são porosas, permitindo contatos entre pessoas
que passam de uma “unidade” para outra.
O texto de Fredrik Barth tornou-se fundamental para o estudo de temas
relacionados à etnicidade tendo sido escrito no final da década de 60. Esse texto foi
publicado em 1969 tomando por base as discussões de um simpósio realizado na
Universidade de Bergen (Noruega), em 1967 (Barth 2000:25). No Brasil, Roberto
Cardoso de Oliveira já havia publicado em 1962 um texto que também é um marco nos
estudos sobre etnicidade no Brasil, intitulado “Estudo de áreas de fricção interétnica no
Brasil (Projeto de Pesquisa)” (Oliveira 1998:127-133), mais tarde, em 1963, publicado
sob o título “Introdução: A Noção de Fricção Interétnica”(Oliveira 1998:13-30), onde já
discutia questões muito próximas as propostas do Fredrik Barth com o diferencial de
abordar a fronteira não como algo que existe ad infinitum mas como uma “situação de
fricção interétnica” (Oliveira 1998:128), uma situação de contato e de conflito. Uma
21
“situação” poderá nos levar novamente ao “momento” de Weber e não à questão de uma
continuidade da fronteira, como preconiza F. Barth, mas de rupturas de tempos que se
põem e sobrepõem historicamente.
Objetivamente, uma situação de “fricção” pressupõe que ocorra um encontro de
alteridades. No caso dos negros brasileiros, o contato se daria entre grupos marcados por
uma posição social estigmatizada como subalterna na sociedade colonial e uma elite
nacional racista. Esse contato estaria marcado por situações de junções e disjunções, ou
seja, de tensões contraditórias. Embora a teoria de Roberto Cardoso de Oliveira refira-se
às situações competitivas e conflitivas (Oliveira 1996:128) que marcariam a situação de
fricção no caso do negro, ante a sociedade brasileira, muitas vezes a “fricção” pode ser
marcada por casos onde o racismo brasileiro, introjetado na população negra, colabora
para que o negro se coloque de forma “passiva” nessa área de fricção. Não que a
competição e o conflito não existam, o racismo em si é fato, mas esta estrutura estaria
mascarada, sendo manipulada sob a máscara da cordialidade (Holanda 2002). Uma
análise mais apurada da fricção, chegando às contradições e dinâmicas sociais próprias,
pode ser alcançada a partir da análise das situações de contato como “totalidades
sincréticas” (Oliveira 1996:28), ou seja, a análise sincrônica é que vai fornecer dados
sobre os processos sociais de fricção.
Nos anos 90, Richard Jenkins (1997:90) oferece uma nova leitura da obra de F.
Barth que confere uma ênfase maior ao conteúdo cultural que conforma os grupos, sem
desprezar a questão da fronteira. Para levar a cabo esse tipo de análise o autor destaca
que sob seu ponto de vista a etnicidade é uma espécie de recurso social do qual se faz uso
ou se explora em um contexto variado. Ela é situacional e depende, em parte da
manutenção de fronteiras. A etnicidade é relativa sendo que sua natureza muda de acordo
22
com o contexto de sua mobilização, em uma relação entre grupos. Propondo a
revalorização da análise dos fatores que compõem o “recheio” cultural da etnicidade o
autor, dedica-se a compreensão da influência desse conteúdo para a natureza das
fronteiras dos grupos (Jenkins 1997).
Levar a cabo uma discussão sobre a emergência da etnicidade à luz dos dias
atuais, corresponde ao incremento de um debate em torno de possibilidades progressistas
e emancipatórias (Santos, 2000; Chagas 2005). Ao confrontar uma concepção de Direitos
Humanos dados como universais a uma perspectiva local, podemos perceber o quanto
esses mesmos direitos são concebidos de “cima para baixo” (Santos, 2000). O processo
de emergência étnica possibilita uma abordagem do significado dos Direitos Humanos a
partir do momento em que analisamos a concepção local da categoria remanescente de
quilombos. Dialogando com o institucional, estamos contribuindo para a própria análise
sobre quem é “remanescente de quilombos” e qual o sentido dado à construção do
“sujeito de direito” que acaba preso ao paradoxo “reivindicando-se como diferente se
torna um contemplado pelos direitos universais”.
Uma questão posta é: o “remanescente de quilombos” se reconhece enquanto
sujeito da história? Aliás, o negro brasileiro se reconhece como um sujeito com história?
Levando-se em consideração o que afirma Marilena Chauí, de que a ideologia “não é um
processo subjetivo inconsciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário
produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos”, (Chauí,
1985:78), poderíamos afirmar que o negro no Brasil está passando pelo processo de se
tornar visível enquanto sujeito da história e o mote da reivindicação quilombola é uma
das estratégias de reivindicação possíveis. Após buscar a si próprio como sujeito com
uma história no Brasil, agora passa por um momento no qual sua história está sendo
23
preparada para interagir com setores dominantes da sociedade brasileira, transformando a
concepção de história brasileira, sua história do Brasil.
Não há como omitir que em nosso país os termos “cor” e “raça” são definidores
de aspectos sociais hierárquicos, biológica e culturalmente (Maggie, 1996:228).
“As cores das pessoas no Brasil são referências fundamentais porque,
ao falar nas cores e na ausência de cor, estamos conotando distinções
no social e, ao mesmo tempo, falando de origem, dos vértices de um
indivíduo imaginário que fala de nossos heróis fundadores”(Maggie
1996:233).
O negro brasileiro está posto sob a ditadura do ideal de “branqueamento”, em que
padrões de estética brancos são colocados em realce e considerados superiores
(Bernardino, 2002). A ideologia do branqueamento permeia toda a sociedade de forma
tão intensa que é cultivada em livros escolares sem que muitas vezes, os próprios
professores estejam aptos a reconhecê-la. Por outro lado, falar sobre o racismo brasileiro
passa por uma espécie de tabu, de proibição, que emerge da disseminação do mito da
democracia racial (posição defendida por Freyre, 1973; e analisada de forma crítica por
Damatta, 1993). Através deste filtro, pessoas brancas e negras, são levadas a crer que o
negro teve as mesmas oportunidades sociais que o branco em sua trajetória de ascensão.
Qualquer análise histórica mais detida revela táticas de como o negro, no Brasil,
foi deixado à margem de políticas tidas como “progressistas”. Ao final da escravidão não
houve “qualquer preocupação com o destino da população escrava” (Seyferth, 1996:46) e
as políticas de colonização oficiais e particulares desprezaram a população negra
nacional, tratando-a como uma espécie de “raça inferior” (Seyferth, 1996:47). Aliada à
discriminação racial, o sujeito negro ainda é associado à condição de pobre e miserável,
lugar esse que a própria sociedade lhe confere. Livrar-se deste estigma condena o
indivíduo a construir trajetórias individuais e familiares de ascensão ou o condena,
24
enquanto coletividade, à invisibilidade onde relações pessoais tecem redes de
dependências e reciprocidades com a sociedade branca.
Por outro lado, a comunidade de pretos de Morro Alto reivindica uma identidade
diante da estrutura social e econômica atual. Essas pessoas compõem um campesinato
que passa por modificações. A comunidade de negros de Morro Alto é formada por cinco
bairros rurais que diferentemente estão passando por um gradual processo de
urbanização. Afinal, o isolamento “caipira” é mesmo “uma ilusão” (Queiroz, 1976:13),
diga-se de passagem que o isolamento dos negros no meio rural, pelo menos em suas
relações com o mercado e a igreja, por exemplo, também. Porém, “só se pode
compreender o campesinato como uma camada subordinada, em relação a uma camada
superior, que é a camada senhorial” (Queiroz, 1976). Este mesmo campesinato, mais
tarde, se subordinará a um conjunto de camadas sociais. Tal subordinação existe para a
comunidade de pretos de Morro Alto, principalmente, em relação ao “centro” da cidade
do município de Maquiné, onde se localiza a maior parte das terras da localidade e ao
município de Osório. O caráter desta relação estabelecida entre o camponês e a cidade é
o de “complementação econômica” (Queiroz, 1976:23) que, embora imponha à cidade
uma dependência relativa à produção do campo para manter seus mercados, ainda
mantém o camponês sob a égide da “dominação política” (Queiroz, 1976:23), exercida
pelas cidades. A mesma autora afirma que em termos econômicos, o campesinato se
caracteriza por ter o objetivo de plantar apenas para o consumo próprio ao passo que,
socialmente, compõem uma camada subordinada a sociedade global (Queiroz, 1976:30).
É no cotidiano que esse negro, meio camponês, meio urbano, sujeito da história
enfatiza sua condição de pessoa. É a dimensão na qual a emoção é englobadora: “todos
podem ter sido adversários ou até mesmo inimigos, mas o discurso indica que também
25
são ‘irmãos’” (Damatta, 1985:16). São nos processos do cotidiano que espaços são
construídos e fronteiras são demarcadas “cada sociedade tem uma gramática de espaços e
temporalidades para poder existir enquanto um todo articulado e isso depende
fundamentalmente de atividades que se ordenem também em oposições diferenciadas,
permitindo lembranças ou memórias diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de
organização” (Damatta, 1985:31). É nesse universo cotidiano, fundamentado na emoção,
que as memórias e lembranças têm liberdade para existir por si mesmas e, assim, a
cultura negra pode falar de si de forma dinâmica, sendo transmitida e sucessivamente
atualizada ao longo de gerações.
O cotidiano é o universo de significados mais próximo e familiar ao homem que
nele vive. “A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens
e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo
coerente” (Berger e Luckmann, 1983:35). Ele é um “mundo” onde são construídos
significados, onde as ações são interpretadas conforme os saberes que estão sendo
compartilhados, pois o cotidiano é partilhado com “os outros” (Berger e Luckmann,
1983:46), portanto é uma construção coletiva. Essa mesma construção social é
caracterizada por processos que levam o indivíduo a compartilhar valores e significados
capacitando-o a conviver no grupo específico: é através da transmissão de valores
tradicionais que saberes tradicionais são “ensinados” aos novos membros do grupo.
Por saberes tradicionais, refiro o “conjunto de práticas, normalmente reguladas
por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado”, (Hobsbawm e
Ranger, 1997:09). Esta continuidade em relação ao passado pode ser atualizada de forma
26
a reforçar os significados específicos que a prática tradicional transmite, mas por ser
compartilhada em um universo do cotidiano, realça um conjunto específico de valores. O
“realce” (Poutignat e Striff-Fenart, 1998:167) dado às práticas tradicionais constroem
sinais diacríticos que contribuem para reforçar a identidade negra. A escolha de tal
gramática de distinção étnica é feita ao longo da história de forma variada.
A identidade como define Levi Strauss “é um tipo de foco virtual ao qual é
indispensável que nos refiramos para explicar um certo número de coisas, mas sem que
tenha jamais uma existência real” (Lévi-Strauss, 1977). Ela é construída a partir da
relação com o outro, em uma dialética de semelhanças e diferenças (Oliveira, 1962). Não
estou me preocupando se o ajuste do “foco” (ou da lente) é consciente ou inconsciente,
estou afirmando que ele pode ser, situacionalmente, consciente ou inconsciente para uma
mesma pessoa, dependendo de sua trajetória, visão de mundo e projeto pessoal. “A
identidade étnica não é conservantismo, nem continuidade cultural, nem volta ao
passado, como aparenta. Ela tende a recriar a distintividade em novas situações de
rivalidade, competição e confronto, redefinindo-se em oposição relacional ao novo outro.
Cada momento de redefinição implica o rearranjo dos costumes e das relações”
(Bandeira, 1988:311).
1.2. O trabalho de campo e suas especificidades.
Meu primeiro contato com a Comunidade de Negros de Morro Alto se deu a
partir do trabalho de campo ali realizado, com a finalidade da escrita de um relatório
sobre o reconhecimento desta mesma comunidade, com base no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988.
Mesmo que a inserção desse dispositivo no ADCT possa parecer sob certo prisma
27
ideológico como “exótico, estranho, até mesmo atemporal” (Silva 1996) ele se justifica
conforme exponho capítulo 2.
Tendo em vista as novas possibilidades políticas, passaram a surgir ações no
sentido da busca de proteção às terras oferecida às comunidades “remanescentes de
quilombos” as quais só poderiam ser implementadas após a elaboração de um “relatório
de identificação”. O pedido de reconhecimento no caso de Morro Alto, partiu do
representante da comunidade, que através de órgãos públicos, reivindicou a regularização
fundiária de suas terras e o implemento de políticas públicas específicas que atendam
suas necessidades. Levando em consideração o procedimento de forma mais geral, a
Associação Brasileira de Antropologia e o Ministério Público Federal – Procuradoria
Geral da República ao renovar o Protocolo de Intenção, celebrado em 1987/8, entre
ambas instituições em 1993, acordaram na exigência de laudos, com a participação de
antropólogos, em questões que envolvessem terras de remanescentes de quilombos
(Dória e Oliveira 1996).
No entanto o artigo 68 do ADCT não havia sido regulamentado especificando o
procedimento de titulação, ou seja, não havia um outro dispositivo legal que
especificasse sua aplicação até que em 10 de setembro de 2001 foi expedido o Decreto
3.912 com a assinatura do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O decreto
definia que apenas poderia ser reconhecida a propriedade sobre as terras que “eram
ocupadas por quilombos em 1888 e estavam ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos em 05 de outubro de 1988”. O documento provocou reações
de vários setores da sociedade tendo sido objeto de debates por ocasião da Reunião da
Associação Brasileira de Antropologia de 2002, realizada em Gramado/RS. Ele veio a
acrescentar um fator de tensão a mais ao trabalho de campo que já havia sido iniciado nas
28
comunidades negras gaúchas em setembro de 2001 depois passou a valer como critério a
ser observado no decorrer das pesquisas.
A pesquisa na localidade de Morro Alto teve início no momento em que a mesma
já reivindicava o reconhecimento de sua identidade de “remanescente de quilombos”, ou
seja, em um momento de emergência étnica diante do Estado brasileiro. Esse momento
de efervescência já havia se iniciado há mais de um ano, portanto em 2000, quando
representantes da comunidade passaram a entrar em contato com membros do Conselho
de Desenvolvimento e Participação das Comunidades Negras - CODENE, órgão estatal
vinculado à Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social através do
Departamento de Cidadania.
Com várias áreas identificadas no Estado como locais de prováveis comunidades
de “remanescentes de quilombos” (Anjos 2005; Leite 2005) a União, por intermédio da
Fundação Cultural Palmares, e o governo do Estado do Rio Grande do Sul, através da
Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social, celebraram um convênio. Este
convênio visava realizar o projeto “Identificação, Reconhecimento, Delimitação
Territorial, Levantamento Cartorial e Demarcação de seis áreas de Comunidades
Remanescentes de Quilombos” e foi firmado no dia 13 de julho de 2001. Nele se
acordava a realização de cinco relatórios técnicos que envolviam as áreas de São Miguel,
Rincão dos Martimianos, Morro Alto, Vila Mormaça e Arvinha e a demarcação da
Comunidade de Casca. Este mesmo documento definia o relatório técnico como “o
instrumento que reúne evidências étnicas, históricas, culturais e sócio-econômicas do
grupo que possam atestar um direito ou mesmo, comprovar o desrespeito aos direitos das
comunidades tradicionais, permitindo com isto que se processe a regulamentação
jurídica”. Essa ótica “instrumental” atribuída por parte dos poderes públicos envolvidos
29
sobre a realização da pesquisa conferiu um alto grau de tensão entre os “conveniantes” e
o grupo de pesquisadores que se pautava por uma lógica outra, mais humanística em
detrimento da visão tecnicista do Estado.
Paralelo a esse processo administrativo já se encontrava em andamento, no
Ministério Público Federal uma Representação. Representação é a “faculdade legal
atribuída a alguém, de agir pela parte ofendida, em juízo, por intermédio do Ministério
Público, em certos crimes de ação pública” (Nunes 1999:939). Assim, o presidente em
exercício do CODENE no ano de 2000 mostrou-se interessado em abrir uma
Representação para o caso que envolvia as “comunidades negras de Aguapés (município
de Osório), Morro Alto, Ribeirão e Prainha (município de Maquiné), e as comunidades
do município de Terra de Areia” que seriam afetadas pela duplicação da BR 101. Assim,
teve início a Representação 731/2000 de 04 de dezembro de 2001 que vinha sendo
instruída com documentos desde 14 de dezembro de 2000 por parte do Ministério
Público Federal. A expectativa por parte dos convenientes e do CODENE era de que o
relatório fosse juntado aos autos da representação existente no Ministério Público
Federal.
O Relatório de Morro Alto foi entregue à Secretaria do Trabalho, Cidadania e
Assistência Social, em 19 de novembro de 2002, e à Comunidade de Morro Alto em sua
versão final em 14 de dezembro do mesmo ano. Antes disso, toda a equipe participou de
uma apresentação do relatório para a comunidade onde expôs os principais argumentos
do documento. O documento chamou-se “Comunidade Negra de Morro Alto:
historicidade, identidade, territorialidade e direitos constitucionais” e foi publicado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentro da Série Laudos.
30
Nessa perspectiva, cientes da futura judicialização do relatório, buscou-se compor
a equipe de pesquisa e técnicos que trabalhariam na área de Morro Alto. A equipe de
pesquisa foi composta sob a coordenação da professora Daisy de Macedo Barcellos e
Miriam Chagas. Dessa forma, em 30 de julho de 2001, iniciei minha participação num
campo de embates permeado de tensões que é o campo da pesquisa pericial
antropológica. Da preparação para a pesquisa de campo até a entrega do Relatório final
transcorreram 15 meses e 19 dias, período no qual é impossível quantificar o tempo de
pesquisa de campo e de discussões em equipe com precisão. Em minhas anotações
constam aproximadamente:
· 49 horas participando de discussões sobre a escrita de relatórios com
técnicos da Fundação Cultural Palmares e a Dra. Ilka Boaventura Leite, consultora do
projeto para o Rio Grande do Sul;
· um mínimo de 27 horas em reuniões com funcionários da Secretaria do
Trabalho, Cidadania e Assistência Social, que valeriam uma fabulosa etnografia sobre a
forma como o antropólogo é visto pelos organismos burocráticos estatais;
· cerca de 85 horas de reuniões com a equipe de pesquisa;
· aproximadamente 45 horas acompanhando reuniões na comunidade de
Morro Alto, onde se dava a confluência das questões políticas da comunidade e das
políticas públicas estatais e federal;
· seis dias acompanhando as atividades do Grupo Maçambique de Osório,
nas Festas de Nossa Senhora do Rosário dos anos de 2002 e 2003;
· cerca de 70 horas distribuídas entre: leituras de certidões do Registro de
Imóveis de Osório, juntadas à Representação 731/2000, estudos realizados na Secretaria
de Agricultura do Estado e no Departamento de Terras da capital, pesquisa realizada no
31
Registro de Terras Públicas em Torres, no Cartório do Registro de Imóveis, em Itati e de
Terra de Areia, além de horas transitando entre o Fórum, Tabelionato e a Prefeitura de
Osório; e, por fim
· 137 horas de entrevistas das quais participei que não refletem o total de
horas de entrevistas produzidas pela equipe, entre agosto de 2001 e julho de 2003. Muitas
dessas entrevistas foram realizadas em dupla, principalmente, com os pesquisadores
Mariana Balen Fernandes, Rodrigo de Azevedo Weimer e Cristian Jobi Slaini por
motivos metodológicos empreendidos durante o trabalho de campo.
Como é perceptível, após o término da escrita do relatório continuei os estudos de
campo indo à comunidade para realizar entrevistas em profundidade com pessoas que
não puderam ter suas vozes registradas no momento da escrita do relatório. Estando no
curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul desde 2002 acumulei diferentes papéis: “cientista na produção de um
trabalho acadêmico”; “pesquisadora de campo”; militante em favor dos direitos e das
condições de vida do grupo com o qual convivo” e “profissional com competência muito
específica” (Silva, 1994). Quer em campo, quer na academia busquei manter o mesmo
nível de rigor teórico e metodológico que nos exige a prática da antropologia. Afinal, nas
palavras de João Pacheco de Oliveira: “é por isso que qualificam como ‘perícia’ as
investigações (que o antropólogo chamaria da ‘pesquisa’) empreendidas para a
elaboração de ‘um laudo’, ao qual é intrinsecamente atribuído um elevado grau de
exatidão técnico-científica” (Oliveira 1994).
Não há que discutir, no entanto, que um laudo distingue-se de uma tese. Neste
momento estamos estabelecendo um campo de diálogo com nossos pares, detentores de
um conhecimento em comum, o antropológico, dentro do qual nos propomos a constituir
32
um lócus de discussão teórica, crítica, que contribua para o aprimoramento da disciplina
em si. Além disso, no âmbito do momento da escrita de uma Tese não estamos
submetidos ao grau de pressão política que se estabelece no momento da escrita de um
Relatório. Julgo importante chamar atenção para esses pontos pois ao realizar pesquisa
de campo para a escrita do relatório, já pensava em minha Tese de doutoramento
consciente de que são momentos distintos de minha vida profissional e acadêmica. O
projeto de pesquisa encaminhado ao programa de pós-graduação refletia na época da
seleção o ponto para o qual minha pesquisa convergia em Morro Alto: a compreensão do
significado da terra para aquelas pessoas e os meios de transmissão empregados através
de gerações. A partir do aprofundamento teórico dessa perspectiva é que apresentei o
andamento de minhas pesquisas no exame de qualificação.
A análise construída a partir das observações da campo é a forma clássica de
elaboração do texto antropológico (Malinowski 1984). Tomo por base o paradigma
indiciário, afinal “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios –
que permitem decifrá-la” (Ginzburg 1989:177). Assim, o texto, irá permitir o encontro de
informações que, muitas vezes, fogem da compreensão do próprio nativo para o qual o
modelo por ele enunciado pode não ser o modelo a partir do qual os mesmos agem e
pensam, ou seja, “a interpenetração de sistemas ideais instáveis” (Leach 1996:327). As
descrições coletadas em campo estão e são permeadas desses sistemas. Compreender
essa organização “ideal” do sentido da categoria remanescente de quilombos é parte de
minha busca na construção da tese.
Metodologicamente, as técnicas de coleta de dados de pesquisa empregadas
foram o método etnográfico e a entrevista estruturada. A etnografia, método de pesquisa
clássico em antropologia (Malinowski, 1984), implica na observação direta e participante
33
do pesquisador no cotidiano, nas atividades do dia-a-dia daquele que pesquisa. Na busca
da convivência procuramos nos aproximar dos significados mais íntimos das prática
tradicionais implementadas pela comunidade ora estudada. Isso implica na produção de
diários de campo, onde o antropólogo registra tudo que observa e não tornará,
necessariamente, público, e na produção de registros sonoros e visuais como filmes e
fotografias sempre que possível. É importante que as entrevistas estruturadas sejam
gravadas o que possibilita ao pesquisador que ouça a mesma entrevista várias vezes para
entender o significado de expressões cotidianas estranhas a ele e empregadas no âmbito
da comunicação local. Basicamente, é esse o material que fornecerá os dados de campo,
matéria sobre a qual se debruçará o antropólogo.
A análise de fragmentos de estórias de vida, um dos métodos de análise que
empreguei, pode oferecer armadilhas dependendo da forma como é empregada. Esse
tipo de construção textual foi importante para o desenvolvimento do argumento sobre o
qual discorre essa tese, uma vez que o matrimônio se revelou uma estratégia importante
na busca da preservação e na transmissão do patrimônio familiar, fator decisivo na
construção de um “sujeito de direito”. Além disso, as estórias contadas nos auxiliam a
reconhecer desde regras de namoro até estratégias de casamento que são acionadas por
todo o grupo social. A análise da estória de vida foi necessária para análise dados sobre a
trajetória de pessoas específicas que fornecerão elementos significativos para elucidar o
sentido de valores acionados na vida cotidiana. Porém, sempre levando em consideração
que trajetória é uma noção que diz respeito a “série de posições sucessivas ocupadas por
um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando
sujeito a incessantes transformações” (Bourdieu 2002). Por isso, apenas me senti segura
para levar a cabo esse tipo de análise após ter feito várias horas de pesquisa de campo.
34
Por isso, as entrevistas realizadas com o intuito de analisar fragmentos de
estórias de vida foram realizadas quando os dados sobre a organização social em Morro
Alto já se encontravam relativamente desvelados. Como minha intenção inicial era
compreender qual a relação entre matrimônio e constituição ou transmissão de um
patrimônio familiar, foi muito enriquecedor ouvir das informantes que entrevistei quais
os fatos que elas julgavam estabelecer conexões coerentes com suas histórias de
casamento. Assim, mesmo que compreendamos ao nível acadêmico que “o real é
descontínuo” (Bourdieu 2002:185) foi bastante significativo ouvir e entender como as
mulheres entrevistadas conferiam unidade ao descontínuo, unificando fragmentos.
A idéia do estudo de trajetórias de vida permite que atinjamos, através do
indivíduo, valores sociais compartilhados que permitiriam entender o significado de ser
um detentor de valores tradicionais relacionados às estratégias de parentesco e a
transmissão da terra. Além disso, a análise das trajetórias familiares pode nos fornecer
dados que revelem campos de esquecimento, táticas de lutas que viabilizassem a
ascensão social (Barcellos, 1996), além das trajetórias individuais. Essa micro-análise
permitirá adentrar a um universo onde as vivências apresentam jogos no tempo e no
espaço.
A trajetória “ deveria evocar um movimento temporal no espaço, isto é, a unidade
de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos
formam num lugar supostamente sincrônico e acrônico” (Certeau, 1994: 98). Diante da
preocupação em não confeccionar uma fotografia mas de compreender os arranjos de
vida cotidiana e seus significados é que, analiticamente, compartilho com Certeau a
distinção entre estratégia e tática.
35
“Nele a estratégia refere-se ao “ cálculo (ou a manipulação) das
relações de forças eu se torna possível a partir do momento em que um
sujeito de querer e poder ( uma empresa, um exército, uma cidade, uma
instituição científica) pode ser isolado" (Certeau, 1994:99).
Já a tática diz respeito à
“ ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então
nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. E
por isso jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei
de uma força estranha” (Certeau, 1994:100).
Um aspecto metodológico a ser discutido é a condição de ser uma pesquisadora
branca,alemoa”, realizando pesquisa de campo em uma comunidade formada por
negros. De certa forma fui “enegrecida”, fui preteada” em campo de quatro formas
diferentes, em situações diferentes por agentes diferentes. Em uma situação, uma senhora
negra perguntou a um membro do movimento negro, diante de mim, por que uma branca
estava fazendo pesquisa no meio dos negros. Prontamente disseram a ela que eu era
uma branca de alma negra”, invertendo assim o discurso racista do “negro de alma
branca” que justificava a ascensão social de alguns negros. Em outra ocasião, novamente
um membro negro do movimento negro, que falava com uma senhora com a qual
tínhamos bastante intimidade falou para ela sobre mim:olha só, com esse nariz
‘chimbé’ e com essa boca grossa, se pintar de preto vira negra”.
Por outro lado, Seu Ermenegildo, em uma reunião da comunidade, disse que para
me “pretear” era só passar “uma coisa que os índios usavam para pintar a pele”. Mais
tocante ainda foi a declaração pública de que Mariana, Alessandro e eu, todos
pesquisadores que participaram da escrita do relatório de Morro Alto, éramos todos
filhos de Dona Conceição, conhecida também como Dona Preta, por causa de sua cor e
pelo respeito que a comunidade lhe dedica. Para explicar nossas diferenças quanto a cor
36
da pele ela justificava que eu havia nascido pela manhã, quando o sol não estava muito
quente, Alessandro perto do meio-dia e Mariana ao meio-dia, a brancura de nossa pele
decorria da pouca intensidade de calor do sol. Por mais que a sociedade cubra de
positividade valores fenotípicos classificados como “brancos” e que nossa bibliografia de
pesquisa explore a questão autoritária do “branqueamento” imposto às populações negras
não podemos deixar de lado o inverso, o “preteamento” e suas estratégias que visam,
principalmente, o englobamento ao grupo negro.
Obviamente que ao realizar minha pesquisa em uma comunidade formada por
famílias de pretos não procuro, de forma alguma, eximir-me do caráter político de meu
trabalho, pois, apenas assim, poderia construir uma posição para ele dentro do campo de
debate. Como pesquisadora devo afirmar uma posição no mínimo consciente do racismo
“à brasileira”, existente na sociedade nacional (Damatta, 1993; Maggie e Rezende,
2001).
No entanto, tão pouco pretendo atribuir aos negros um papel passivo, vitimizante,
diante desta realidade. As pessoas que vivem Morro Alto, em seus mais de 120 anos de
“jogos” (Certeau, 1994) buscando a transmissão e manutenção do conjunto de seu
patrimônio familiar são, antes de tudo, batalhadores. Enquanto pessoas que são parte da
sociedade brasileira quero, antes, conferir-lhes um lócus de operadores de estratagemas,
“nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer
em alterar as regras de espaço opressor”, (Certeau, 1994:79). Como um jogador “tático”
(Certeau, 1994:100) que está exposto a um duplo sistema de forças, não excludentes, mas
acionadas e valorizadas situacionalmente: o sistema de classe e o sistema da
discriminação racial (Bandeira, 1988; Barcellos, 1996).
37
1.3 Morro Alto e suas localidades.
Morro Alto localiza-se no litoral norte do Rio Grande do Sul. A comunidade
negra da região encontra-se cindida pelas fronteiras administrativas dos municípios de
Maquiné e Osório. O município de Maquiné possui uma área de 625,2 km², está
localizado a uma altitude de 12 metros do nível do mar e fica a 133 km de Porto Alegre.
Ele está localizado na região do litoral norte do Estado, cujos principais municípios são
Tramandaí e Torres. No ano 2000, o número total de residentes no município, conforme
contagem do IBGE, era de 7304 habitantes, sendo que destes 3703 eram homens e 3601
eram mulheres, distribuídos por 2176 domicílios permanentes. No município, há um total
de 5379 residentes em sua zona rural.
Faixa etária dos residentes em Maquiné - 2000
634
656
1334
1032
1094
881
695
978
0
500
1000
1500
0 a 4 anos de idade 5 a 9 anos de idade 10 a 19 anos de idade
20 a 29 anos de idade 30 a 39 anos de idade 40 a 49 anos de idade
50 a 59 anos de idade 60 ou + de idade
A comunidade de negros de Morro Alto é composta por uma série de localidades
diferentemente classificadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Uma das localidades, Morro Alto, é tratada como “área urbana legal” no censo de 2000.
Já as demais localidades como parte do Espraiado, Ribeirão, Barranceira, Aguapés e
Faxinal do Morro Alto são considerados “aglomerados rurais” no mesmo censo. Morro
38
Alto possui um posto de saúde pública, no qual também funciona um posto de coleta do
correio, estação rodoviária, uma igreja evangélica e outra católica e algumas pedreiras
que exploram a matéria-prima proveniente do morro que dá nome a comunidade. As
contas de luz das casas localizadas no Faxinal do Morro Alto, por exemplo, são deixadas
em dos armazéns desta localidade. É nesta mesma localidade, que merece o status de
“área urbana legal”, ocorre o encontro de duas rodovias que alteraram profundamente o
estilo de vida dos moradores da região: a BR 101 e a RS 407.
Por comunidade, entendo o conjunto de aglomerados, de bairros como os
descritos por Antônio Cândido, que compõem Morro Alto. Para analisar qual o
significado das migrações, realizei entrevistas nas cidades litorâneas de Capão da Canoa
e Osório. Nesta última tive a oportunidade de acompanhar a festa do Maçambique, nos
anos de 2002 e 2003.
1.4 Povoados que compõem a Comunidade de Morro Alto
1
Norte
1
Texto publicado em Barcellos et al. 2004.
39
Aguapés e o “Cantão”: na localidade de Aguapés está localizada a Igreja de São
Benedito onde anualmente ocorre a Festa do Maçambique, realizada sempre em 13 de
maio ou no domingo anterior. A localidade é marcada por um profundo recorte em
termos de uso da terra, sendo que a comunidade negra se espalha do “Cantão” em
direção a Barranceira. O “Cantão” é uma definição utilizada pela própria comunidade
que aponta o local que reunia os negros “trapos”, velhos e os nascidos do período do
ventre livre. O “Cantão” surgia em nossas entrevistas sempre com referência ao local
onde os negros podiam viver no mato, livres de senhores, como o local da “negrada”. Ao
passo que o Ribeirão e o Faxinal do Morro Alto aparentavam ser tão antigas quanto,
Morro Alto, Aguapés e a Barranceira, mas cujas reminiscências históricas e populares
eram mais veladas no decorrer da pesquisa. A Prefeitura de Osório colocou, na
40
localidade de Aguapés, na costa do Morro Alto, uma placa com a denominação
Restinga” para marcar a distinção entre este local, essencialmente negro, e a parte
branca”, colonizada por imigrantes italianos e alemães. A denominação “Restinga”,
além de arbitrária, nada diz às pessoas que moram naquela localidade, soando aos
moradores como uma estratégia de segregação.
Barranceira: nesta localidade encontram-se, principalmente, os descendentes do
ex-escravo Hortêncio e da família Galdino. Os negros desta localidade estão ocupando as
encostas do Morro Alto. Alguns detêm a lembrança de que a BR 101 passou sobre o
local de suas antigas residência, cobrindo os antigos “chãos” de moradias. Outros
guardam na memória a época em que seus terrenos iam até a beira da lagoa da Pinguela.
Na Barranceira, se encontra a capela de Santa Edwiges e de Nossa Senhora do Bom
Parto. Nesta localidade, são vistosfantasmaspor alguns moradores. Barranceira recebe
este nome por ser o único lugar de Morro Alto a ter uma planta que leva o mesmo nome,
uma árvore, de pequeno porte com flores brancas. Nem os negros moradores de Aguapés,
nem os moradores das Barranceiras foram indenizados por ocasião da construção e da
ampliação do atual traçado da BR 101. Além disso, a ampliação do atual leito da BR101,
com aterros realizados na beira da lagoa da Pinguela, provocou o surgimento de uma
pequena localidade denominada, pela prefeitura de Osório, como “Areia”. Este lugar,
segundo as pessoas negras mais antigas da localidade, foi paulatinamente habitado por
pessoas estranhas à comunidade negra local.
Morro Alto: outra face do morro voltada para leste, núcleo semi-urbano onde se
localizam a rodoviária, os “lotes” e as pedreiras. Na Prefeitura de Maquiné, foi fornecido
o seguinte croqui da localidade de Morro Alto:
41
N
à
Croqui da área da localidade de Morro Alta considerada urbana pela Prefeitura do Município de
Maquiné.
As listas das pessoas cadastradas como proprietárias dos “lotes” e dos “terrenos
não foram fornecidas pela Prefeitura de Maquiné. Os negros residem em “terrenos
localizados a oeste do mapa, justamente onde as divisas se mantêm longe da aparência
dos “lotes” brancos. Tais “lotes” são recortados de acordo com as demandas mais
urbanas, localizados ao centro do croqui.
Os negros que vivem na localidade de Morro Alto descendem de ancestrais que
estavam ali desde antes da abolição da escravidão como quilombolas, escravos ou ex-
escravos contemplados pelo legado de Rosa Osório Marques. Essa antiga proprietária de
terras legou aos seus ex-escravos, em disposição testamentária, o usufruto de sua
propriedade na localidade. É interessante observar que durante os trabalhos de campo, a
42
ascendência e as diferentes formas de ocupação originais fizeram diferença. No núcleo
de Morro Alto, a legitimidade da ocupação se deu a partir da reivindicação da condição
de herdeiro de Rosa, em Aguapés e na Barranceira a questão já envolvia uma situação de
permanência que passava pela apropriação do “Cantão”, que servia como local de refúgio
para a população negra.
Passo a descrever de forma mais pormenorizada as áreas que compõem a
localidade de Morro Alto.
Morro Alto : acidente geográfico cujo nome é Morro Alto e denomina toda a
comunidade.
Faxinal e Faxinal do Morro Alto: uma perspectiva mais etnocêntrica pode levar
ao leitor a entender que a denominação Faxinal surgiu em função das estradas que
cindiam o Faxinal e o Faxinal do Morro Alto. Porém, a denominação “Faxinal” é
bastante anterior à construção das estradas. Os faxinais recebem esse nome em função de
um tipo específico de vegetação que crescia nestes locais, bons para fazer vassoura.
Algumas pessoas rememoram o tempo em que naFaxina” só havia mato e que os
italianos quando ali chegaram modificaram toda a vegetação, “retirando até o toco das
árvores”. Afinal, como nos explicou uma das pessoas entrevistadas, “o Morro Alto
pertence à Faxina”.
Ribeirão, “Camboa” e o Esteiral do Borba: Ribeirão é o termo que engloba
estas localidades. A localidade de Ribeirão foi constituída de negros que se
estabeleceram ao redor da antiga casa dos senhores e da “casa grande dos escravos”.
Nesta localidade encontramos duas referências muito interessantes: a primeira, é a de que
ali também teria ocorrido doação de terras de senhores para ex-escravos. A ex-escrava
Floriana, a “Floriana Velha”, teria sido uma das agraciadas por este tipo de doação de
43
terras. A Segunda referência é uma história contada por Dona Amarilis sobre o escravo
Vinícius. A “Camboa é uma localidade praticamente intersticial que marca a passagem
da localidade de Morro Alto para a Ribeirão. Pouquíssimas pessoas utilizaram esta
expressão, o que nos levou a crer que ela se encontra em desuso, merecendo o registro
histórico.
Já o Borba ou o Esteiral do Borba é um pequeno aglomerado de casas de pessoas
da comunidade negra, localizado na beira da lagoa do Borba (margem noroeste da lagoa
do Ramalhete) e ao longo da estrada que recebe o nome de “esteiral”. Uma pessoa da
comunidade comentou que “do casamento [de André e Vicência] nasceu o Borba”,
sendo que ambos, André e Vicência, eram filhos de escravas que viviam nas localidades
que compõem o Ribeirão .
1.5 A identidade de “remanescentes de quilombo”: nova(s) possibilidade(s)?
Acredito não ser surpreendente que, a partir dessa relação interdependente entre
as pessoas que vivem nas cidades e as que resistem no território da Comunidade, a
aproximação com os canais do movimento negro tenha ocorrido a partir daqueles que
estão vivendo Morro Alto, de outras formas, com o Maçambique, por exemplo, nas
cidades. Foram eles, contabilistas, enfermeiras, professores de história, cujos pais e
maridos pertencem a comunidade que perceberam nela o potencial para a mobilização
em torno da identidade jurídica-política de “remanescentes de quilombos”. O processo de
retomada do idioma étnico na localidade decorreu, dentre outros fatores, da valorização
positiva da identidade negra e dos saberes tradicionais que ali existem.
Essa identidade étnica encontra-se na expressão do Maçambique, nas receitas
culinárias passadas entre mulheres através de gerações, no saber tramar o butiazeiro para
44
fazer sua casa, no amar a terra pois nela está a afeição e o sangue de seus parentes, na
transmissão de nomes e de um patrimônio que de imaterial repentinamente se
materializa, do esquecimento das gerações passadas transformando-se em lembrança
(Barcellos 2004). Esse processo de emergência étnica foi potencializado através do
implemento de atividades por parte dos membros da comunidade, envolvidos na
formalização de uma associação que representasse aqueles que estão envolvidos com a
reivindicação desse novo estatuto de “remanescente de quilombos”. Tal esforço
congregou tanto as pessoas que viviam no território reivindicado pela comunidade
quanto aquelas que se deslocaram para a cidades, reinventando Morro Alto em seus
espaços do cotidiano.
A identidade acionada neste contexto “opera, assim, no plano de uma estrutura
macrosocial e é um fenômeno que envolve, necessariamente, considerações no nível
sóciopolítico, histórico e semiótico” (Caiuby 1993:27). Ser “remanescente de
quilombos” torna-se importante para aqueles que reivindicam esse novo plano da
identidade. Ela existe enquanto uma unidade que se manifesta em um momento histórico
específico e não é homogênea pois está cindida por tensões internas. Ao mesmo tempo
em que encontra razões para sentir-se um conjunto, tem uma origem compartilhada, é
perpassada por tensões que advém da sociedade englobante, o racismo, o desemprego, a
desvalorização de sentimentos tradicionais que se relacionam a sua visão sobre o que a
terra representa, e acredita estar construindo um futuro possível em comum. Trata-se de
uma “identidade ‘ampla’ invocada sempre que um grupo reivindica uma maior
visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (Novaes
1993:25).
45
Mas como foi possível construir, sobre esta identidade “ampla” uma concepção
local de “remanescente de quilombos”? Em primeiro lugar a categoria “quilombo” é
uma categoria reivindicada, ressemantizada pelaComunidade de Morro Alto”, pois ao
longo do estudo ficou evidente a existência de identidade coletiva calcada nas
experiências históricas dos núcleos de ex-escravos da região. Além disso, contribuíram
para a construção da categoria fatores como o esforço em manter-se livres dentro da
ordem escravocrata e as histórias de como os antigos proprietários do lugar
desrespeitaram leis como a da proibição do tráfico de escravos de 1830 e do
aprisionamento de indígenas para o trabalho em propriedades. Contribuíram para a
análise dos dados de campo a confluência de dois tempos: um que remetia diretamente ao
passado, diacrônico, e outro que operava com a memória, com as lembranças e
esquecimentos de fatos vividos, ambos sendo investidos na construção de “uma”
espacialidade.
As falas dos entrevistados de Morro Alto tinham uma dupla dimensão na
construção de seu pertencimento: uma que remetia a uma lógica de descendência e outra
que enfatizava a lógica da aliança e que remetia a parentela (Fox 1986). A lógica de
descendência era acionada ao longo das entrevista nas quais era destacada a linha
genealógica que remetia ao ancestral “do tempo dos antigos” na “terra”, ou seja, estava
vinculada a uma ancestralidade e a uma localidade. O vínculo de consangüinidade, real
ou imaginado, embasa o sentimento de pertença e o direito à terra na Comunidade. Por
outro lado, o pertencimento pela resistência no território reivindicado não deixa de estar
presente no momento em que não são encontrados na Comunidade de Negros de Morro
Alto descendentes de outros ancestrais que não do tronco e ramos daquele que reconstrói
a descendência. Se por um lado a descendência perpassa o sentimento de pertencimento,
46
por outro ter vivido, nascido, permanecido ou ter parentes em Morro Alto confere
legitimidade a determinados ramos para que acionem o status de “remanescentes de
quilombos”.
Tendo em vista a ênfase na construção do pertencimento dada ao idioma da
parentela, as entrevistas buscavam englobar ao máximo aqueles familiares que
possibilitaram a permanência na terra de determinados troncos familiares e viviam nas
cidades de Osório, Capão da Canoa, Xangri-lá, Terra de Areia e Porto Alegre. Afinal, a
interação entre eles jamais deixou de ocorrer em função da distância geográfica. Trata-se
de populações em deslocamento que tinham, ao sair de Morro Alto, uma espécie de
“obrigação em retribuir” as dádivas que receberam ao longo do tempo em que ali
permaneceram, lembrando daqueles que ficaram na comunidade e que ali resistiram.
A construção da identidade de “remanescente de quilombos” surgiu em um
momento no qual a Comunidade de Negros de Morro Alto se vê ameaçada pela
duplicação da BR 101 que já separou suas terras uma vez, quando foi construído seu
atual traçado, separando as terras de plantio das terras de moradia. Essa primeira obra sob
a rodovia, remonta aos anos 50 e não trouxe indenizações para os moradores da
localidade. Tendo em vista as constantes expropriações que sofreram, por parte dos
poderes locais, e da ausência de qualquer tipo de indenização quando da ampliação da
primeira rodovia, a “duplicação da BR 101”, construída sob o leito do traçado original,
parece lógico que os negros de Morro Alto tenham buscado construir para si um espaço
político que adicionando a situação de “camponeses” lhes alçava a uma nova categoria
que permitiria ampliar seu espaço de reivindicações: o espaço de remanescente de
quilombos.
47
Essa opção repercute na forma como a comunidade poderá demandar ante às
política públicas. Do âmbito da disputa individual com poderes políticos passa, às
demandas coletivas que potencializam a comunidade para fazer reivindicações em grupo.
Após o reconhecimento, as tensões no que diz respeito as invasões de terra, por exemplo,
que eventualmente ocorram na área deixam de ser um problema entre vizinhos e passam
a ser um problema que envolve uma coletividade, a dos “remanescentes de quilombo”.
De certa forma a luta que os levou à busca de um outro tipo de reconhecimento viabiliza
uma forma de leitura positiva da identidade negra que possuem, ao mesmo tempo em que
assegura a atenção do Estado às necessidades que o segmento camponês reivindica.
Aliás, neste sentido a demanda de reconhecimento veio da busca da preservação do
sentimento de “campesinidade” que só pode ser assegurado, neste momento, com a
conquista de um espaço político que comporte a diferença.
48
2. Legislação sobre “remanescentes de quilombos”
no Brasil: um lugar no âmbito do Estado Nacional.
2.1 A Conquista tardia dos Direitos Civis pela população negra no Brasil. 2.2 A
Constituição Federal de 1988 e os direitos da minoria afrobrasileira: a) Discussões do movimento
negro e proposta de Emenda Popular; b)Emendas à primeira versão do texto constitucional. 2.3
Legislação infraconstitucional: esforços de regulamentar o art. 68 do ADCT. 2.4 Um lugar no
âmbito do Estado-Nação. 2.5 Quadro sinóptico da legislação federal sobre remanescentes de
quilombos
A proposta nesse capítulo é analisar o processo de entrada da categoria
remanescentes das comunidades dos quilombos no corpo de leis do Estado brasileiro, na
década de 80, e os esforços reiterados para sua regularização. A partir dessa investigação,
quero entender o significado dos esforços do Estado Nacional, ao elaborar regras
estabelecendo critérios para expedir títulos de propriedade para uma parcela específica da
população que tem direito à propriedade de suas terras a partir de sua dimensão
identitária. Afinal, ‘identidades’ são rótulos essenciais através dos quais os agentes da
formação do Estado mantêm vigiados os seus súditos políticos, pois não se podem vigiar
pessoas que ora são uma coisa, ora são outra, tendo, por esta mesma razão(...)” (Verdery
2003: 50).
A possibilidade de acionar a identidade social de “remanescentes de quilombos”
surge no universo jurídico brasileiro a partir da promulgação da Constituição Federal
(CF/88), em 05 de outubro de 1988. Antes disso, a categoria “quilombo” já havia sido
judicializada como elemento de ruptura dentro da ordem escravocrata. Essa categoria
inova o ordenamento jurídico nacional ao constituir um sujeito de direito bastante
peculiar, atribuindo a ele capacidade para reivindicar direito de propriedade.
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A legislação constitucional no que se refere aos remanescentes de quilombos teve
sua aplicação regulamentada por diferentes decretos e portarias desde 1988. Decretos
foram instituídos pelo governo federal nos anos 2001 e 2003 com o intuito de estabelecer
parâmetros para a execução do procedimento de titulação das terras dos “remanescentes
dos quilombos”. Portarias, Instruções Normativas e Resoluções partiram de diferentes
Ministérios, Fundações e Institutos, sempre com o intuito de “disciplinar” a matéria.
Além disso, soma-se a essa intrincada gama de disposições legislativas e administrativas,
a possibilidade de que as unidades federativas do país elaborem legislação específica
sobre o assunto, desde que não entrem em conflito com a legislação federal. Porém, antes
de compreender esse emaranhado burocrático que estabelece a forma como os
remanescentes de quilombos irão adquirir a propriedade de suas terras, vale compreender
o porquê da conquista tardia dos direitos civis no país por parte da população negra.
2.1 A Conquista tardia dos Direitos Civis pela população negra no Brasil.
T. A. Marshall analisou de que forma a cidadania atingiu o status de “plena”
através de pesquisas realizadas na Inglaterra. De acordo com a tese desse autor, cidadão
pleno seria aquela pessoa capaz de exercer e gozar seus direitos civis, políticos e sociais.
Direitos Civis são aqueles que recaem sob o indivíduo sendo, por isso, considerados
fundamentais. São as garantias de liberdade de locomoção, de expressão, do sigilo de sua
correspondência, de não ser condenado sem que transcorra o devido processo legal, é o
direito de propriedade e de que a mesma atenda sua função social. A liberdade individual
é o princípio que permeia todos esses direitos, concebidos e imaginados pela primeira
vez, no âmbito do contexto da Revolução Francesa de 1789. A Declaração Universal do
50
Homem é um dos marcos fundadores das garantias fundamentais individuais. O exercício
pleno dos Direitos Civis, porém, não garante o respeito aos Direitos Políticos.
Direitos Políticos são aqueles que asseguram a participação da sociedade no
âmbito estatal e definem a forma dessa participação. De nada vale uma garantia política
de participação popular se a legislação não estabelece os mecanismos através dos quais
essa participação irá ocorrer. Basicamente são direitos políticos o direito da sociedade se
organizar, em grupos de pressão, votar e ser votado, de se estabelecer enquanto partido
político. Os Direitos Sociais, por sua vez, surgiram com o advento das lutas que tinham
por mote principal atenuar o desequilíbrio nas relações entre aqueles que detêm os meios
de produção e os que alienam sua força de trabalho.
Os Direitos Civis, Políticos e Sociais constituem um sistema interdependente cuja
configuração de forças varia entre os Estados Nacionais e sua trajetória de formação
histórica. O modelo de T. A. Marshall, clássico, foi construído a partir da forma como
tais direitos foram, paulatinamente, conquistados e implementados na Inglaterra.
Conforme José Murilo de Carvalho, a seqüência lógica do autor inglês se presta apenas
para ser comparada, por contraste, com o processo histórico de construção da cidadania
no Brasil (Carvalho 2001: 11). Em nosso país, além da sobreposição e inversão da
“cronologia” sugerida pelo cientista inglês, houve, segundo Carvalho, ênfase nos direitos
sociais (Carvalho 2001: 11).
“O fator mais negativo para a cidadania foi a escravidão” (Carvalho 2001: 19). A
dominação colonial conciliou interesses de governo com o de particulares. A princípio, a
monocultura da cana deu substrato econômico ao regime colonial, até meados do séc.
XVII, consolidando a distância social entre senhores e escravos. O deslocamento do eixo
econômico do Brasil colônia para as Minas Gerais acelerou o processo de urbanização da
51
região sudeste do país, caracterizando esse período pela volatilização do controle do
Estado quer sobre os exploradores das minas, quer sobre os próprios escravos.
Concomitante a exploração das minas de ouro e diamante se configurou no
interior do Brasil toda uma rede de comércio que abastecia a região de mineração com
bens de consumo necessários, principalmente gado, para a manutenção de suas
atividades. As regiões do país, cuja economia estava voltada para o mercado interno,
estavam mais sujeitas aos mandos das autoridades locais uma vez que sua produção
econômica pouco interessava para o Império português na fase Mercantilista da
economia mundial, pautada no acúmulo de metais. Todas essas atividades dependiam de
mão-de-obra escrava de índios, os “negros da terra”, e de negros africanos escravizados
(Carvalho 2001).
No Brasil, todos eram proprietários de escravos, desde funcionários da
administração pública até religiosos, produtores rurais ou urbanos que viviam do ganho
de suas “peças”. Ordens religiosas como os carmelitas e os beneditinos, na província do
Rio de Janeiro, possuíam criatórios de escravos (Cunha 1987: 130). A legislação nacional
da época os comparava a animais, eram semoventes, propriedades de um senhor que
dispunha de seus corpos ao bel prazer uma vez que não lhes era assegurado, sequer, o
direito à integridade física, um direito civil (Carvalho 2001: 21), e à compra de sua
liberdade. Em nome do respeito ao direito de propriedade e da relação de cunho privado
que se estabelecia entre senhor e escravo, ainda em 1855, não havia legislação que
obrigasse o senhor a alforriar seus escravos e a interpretação “humanitária” era
questionada por órgãos de assessoria do imperador (Cunha 1987: 129).
Data de 1740, a primeira definição de quilombo de que se tem notícia na colônia.
De autoria do Conselho Ultramarino de Portugal, definia quilombo como “toda a
52
habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não
tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Em 1741, um Alvará de “El
Rei” determinava que fosse gravado um “F”, com espátula ardente, em todo o negro que
fosse encontrado em um quilombo, desde que ali estivesse voluntariamente, caso já
tivesse a marca deveriam lhe cortar a orelha, antes de entrar na cadeia. Essa pena poderia
ser imputada por ordem decrescente de autoridade pelo juiz de fora, por ordinário da
terra ou pelo ouvidor da comarca sem que houvesse a instauração de qualquer processo,
“só pela notoriedade do fato” (Almeida 2002: 47 – 48). Não há que se falar em Direitos
Civis nesse contexto.
Em 1822, adveio a Independência e junto com ela a monarquia e a manutenção do
regime escravista. Carvalho (2001: 27) chama atenção para o fato de que, nesse período,
os proprietários rurais temiam o “haitianismo”, ou seja, que a transição do país rumo à
independência levasse os escravos a se rebelar contra seus senhores, matando-os e
expulsando a população branca do país, a exemplo do que havia ocorrido no Haiti. Esse
temor era bastante coerente com os boatos de “levante” de escravos, pretos libertos e
fugidos que circulavam pela colônia, como em 1756, em Minas Gerais. Em Vila Rica,
acreditou-se que “na quinta-feira santa, 15 de abril de 1756, enquanto divididos os
proprietários se entregassem cuidadosos à prática cristã de visitas às igrejas, os negros
que em grande número todos os anos afluíam a essa festa cairiam sobre eles, matando
todos os homens brancos e mulatos e poupando apenas as mulheres. Já se diziam
indicados os que deviam ocupar altos cargos na direção da capitania” (Rodrigues apud
Carneiro sd: 2001). Esse “boato” serviu para fundamentar o envio da expedição de
Bartolomeu Bueno aos quilombos do Campo Grande, situados ao longo dos rios Grande
e das Mortes e os destruir ao longo de seis meses.
53
A Constituição de 1824 instituiu os direitos políticos dos cidadãos brasileiros e
assegurou eleições para Câmara, de âmbito federal em dois turnos, vereadores e juiz de
paz dos municípios, com mandato de dois anos, em um turno apenas. Escravos e
mulheres não votavam, não tinham direitos políticos. Aos libertos, era garantido o direito
de votar em primeiro turno. No entanto, o voto “era um ato de obediência forçada ou, na
melhor das hipóteses, um ato de lealdade e de gratidão” (Carvalho 2001:35). Ainda em
1824, foi posto fim ao sistema de sesmarias que regulava a apropriação das terras no
Brasil. Até 1850, quando foi promulgada a Lei de Terras, houve uma espécie de “vácuo
jurídico” sobre a matéria, o que acabou por incentivar o sistema de apossamento.
Em 1827, muito mais por pressão da Inglaterra que por uma opção de política
interna, o Brasil ratificou tratado que proibia o tráfico de escravos. Em 1831, o tráfico foi
considerado pirataria. Tais leis e acordos não fora respeitadas. Em 1850, sob pressão da
marinha inglesa que se aproximou da costa brasileira para afundar navios suspeitos de
“pirataria”, o governo brasileiro decidiu interromper o tráfico definitivamente.
Aproximadamente, 4 milhões de pessoas negras foram alvos desse processo de migração
forçada na condição de escravo do início do tráfico até 1850. No momento da
Independência a população escrava somava 1 milhão de pessoas, na abolição perfazia
723 mil (Carvalho 2001: 19, 46, 47).
O alcance e a difusão da escravidão na estrutura social brasileira e sua aceitação
em todo o país até 1888 espelhavam a forma como o direito à liberdade individual era
visto no Brasil. “Tudo indica que os valores da liberdade individual, base dos direitos
civis, tão caros à modernidade européia e aos fundadores da América do Norte, não
tinham grande peso no Brasil” (Carvalho 2001: 49). Porém, José Murilo de Carvalho ao
enfatizar sua análise sobre o fato da população negra ter ou não acesso aos Direitos Civis
54
se descuida do fato de que os escravos não eram considerados juridicamente humanos na
sociedade brasileira, eram animais sujeitos a regimes de engorda e reprodução. Pior do
que ser uma pessoa desprovida de “liberdade individual” é ser uma “coisa”, na maioria
das vezes, destituída do valor de humanidade e da condição de pessoa.
Destaca o autor que os próprios negros logo que libertos se encarregavam de
escravizar outros (Carvalho 2001: 49). Possuir escravos no Brasil colonial era um
elemento constitutivo da noção de pessoa e de ascensão social. Por ser a escravidão
disseminada pela sociedade brasileira, posto em liberdade, o ex-escravo se encarregava
de comprar outros escravos para que sua condição social de livre fosse reafirmada. Além
disso, em um sistema econômico viabilizado pela utilização do braço escravo não é
estranho que o liberto para conquistar sua sobrevivência e a liberdade de outros
escravizados, principalmente de sua família, passasse a jogar de acordo com as regras
vigentes. O liberto que viabilizava a liberdade de outros escravos, mesmo utilizando
escravos para isso, implementava o princípio da liberdade individual de forma
hierarquizada, tal qual vigia na sociedade brasileira da época.
Com a Abolição de 1888, os libertos foram largados a esmo sem acesso à
educação ou aos meios de produção da época pois a Lei Áurea não possuía “cláusula de
igual proteção” (Eccles 1991: 138). Muitos ex-escravos permaneceram nas terras de seus
ex-senhores lhes servindo de mão-de-obra barata, outros retornaram às fazendas de onde
haviam saído passando por um processo de acamponesamento (Carvalho, 2001; Almeida,
2002) ou engrossaram um processo de urbanização desigual, habitando cortiços e áreas
insalubres dos centros urbanos em expansão (Pesavento 1998).
“Se o escravo [e o ex-escravo] não desenvolvia a consciência de seus
direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os
55
direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava
abaixo da lei, o outro se considerava acima” (Carvalho 2001: 53).
Diga-se de passagem a lei também era aplicada e seus efeitos repercutiam
enquanto forma de controle dos livres humildes, da “gentinha” (Cunha 1987: 140).
Após a abolição da escravidão, o governo brasileiro não assegurou nem educação,
importante na teoria de Marshall pois seria uma das vias de conquista da cidadania plena,
nem o direito da população negra à terra. Um dos primeiros atos do governo republicano
foi, ao invés de providenciar políticas de inclusão do segmento recém liberto da
população, queimar “os arquivos da escravidão”. Se a escravidão foi eliminada do Brasil
por ser um obstáculo ao desenvolvimento da sociedade, queimar os arquivos, afirmava
Rui Barbosa, era “homenagear” nossos deveres em relação à “massa de cidadãos que
pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira” (Barbosa apud
Carneiro s/d: 72). Tanto a “comunhão brasileira”, quanto o desejo de muitos ex-senhores
de serem indenizados pela perda da massa servil, motivaram a queima dos arquivos.
Paralelo ao descaso do governo federal em relação aos ex-escravos no período
pós-abolição e, à medida que o regime escravocrata enfraquecia, teorias raciais que
fundamentavam a discriminação reafirmavam cientificamente a hierarquização da
sociedade brasileira. As distinções asseguradas pelo campo jurídico serão reafirmadas
pela medicina. A legislação republicana deixa de fazer menção aos “quilombos” e os
reenquadra como bandidos rurais (Almeida 2002). A frenologia adquiriu contornos
relevantes no campo da ciência penal brasileira tendo como um dos seus maiores
expoentes Nina Rodrigues. Em 1911, foi organizado o I Congresso Internacional das
Raças, no qual João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro,
56
argumentou que o branqueamento era a “saída e solução” para a realidade mestiça da
nação brasileira (Schwarcz ,1993).
2.2 A Constituição Federal de 1988 e os direitos da minoria afrobrasileira.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em outubro de
1988, foi um dos corolários da redemocratização do país. Após o golpe militar de 1964 e
do autoritário Ato Institucional n. 05 (AI 5), de 1968, a década de 80 foi marcada por
diferentes atos de manifestação popular em prol da conquista de espaços de expressão
política. Em 1984, o movimento das “Diretas Já” mobilizou o país no pleito de realização
de uma eleição presidencial com o voto direto. O insucesso da reivindicação popular
resultou na eleição de Tancredo Neves como presidente da república por meio de voto
indireto do “colégio eleitoral”, em 15 de janeiro de 1985.
Com a morte de Tancredo Neves seu vice-presidente, José Ribamar Sarney,
aliado das forças conservadoras assumiu a presidência da república. Foi dado
prosseguimento ao processo de redemocratização do país quando o então presidente
nomeou uma Comissão de Estudos Constitucionais, prometida por Tancredo Neves, que
elaboraria estudos e um anteprojeto de Constituição para colaborar nos debates de
elaboração da nova Constituição (Silva 1993). Em 27 de novembro de 1985, foi aprovada
a Emenda Constitucional n.26 (EC 26), proposta por iniciativa do presidente da
República. A EC 26, ao invés de definir a eleição de uma Assembléia Nacional
Constituinte para a elaboração da nova Constituição, simplesmente converteu a Câmara
de Deputados e o Senado Federal em um Congresso Constituinte.
No bojo do processo de redemocratização, entidades negras buscavam se
consolidar no cenário político nacional. Em 1978 foi organizado de forma sistemática o
57
Movimento Negro Unificado (MNU). Ao longo da década de 80, são implementados
vários Conselhos da Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra – CODENE,
no âmbito dos governos estaduais. No Rio Grande do Sul, o CODENE foi criado pelo
Decreto Estadual n. 32.813 de 04/05/1988 e alterado pelos decretos 33.271 de
1
o
/08/1989, 36.299 de 24/11/1995 e 37.943 de 20/11/1997. Ao Conselho no Rio Grande
do Sul compete promover ações que resgatem a cidadania da população negra, formular
política públicas que atendam às demandas da comunidade negra, respaldar ações
afirmativas, “propor, estimular e apoiar as entidades governamentais e não-
governamentais, na formação e/ou capacitação de equipes interdisciplinares para a
realização de atividades direcionadas à comunidade negra”.
Com o advento da Nova República, José Sarney chegou a propor a implantação
de um Conselho Negro de Ação Compensatória. Esse conselho que atuaria no âmbito
federal jamais saiu do papel. No ano de 1988, em comemoração ao centenário da
Abolição da Escravatura, esse mesmo presidente propôs a criação da Fundação Cultural
Palmares a qual, segundo o então presidente Sarney, “tornaria possível uma presença
negra em todos os setores de liderança desde país” (Telles 2003: 71).
É importante destacar que no âmbito das deliberações do Congresso Constituinte
de 1988, o movimento negro estava organizado e maduro o suficiente para implementar
uma discussão séria em torno de seus interesses coletivos. Porém, da forma como foi
implementado o Congresso Constituinte, através da EC 26, podemos deduzir que não
apenas o movimento negro, mas vários segmentos da sociedade civil foram
surpreendidos e alijados do processo de decisão final do texto constitucional. Mesmo
nesse cenário, a ação de grupos negros organizados permitiu a garantia de direitos
constitucionais importantes.
58
Enquanto direito fundamental, cláusula constitucional pétrea, a prática do racismo
foi considerado crime “inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei” (art. 5
o
. , XLII, CF/88). O crime de racismo, independente de sua
gravidade, não pode ser convertido em multa, espécie de pena administrativa de caráter
pecuniário, e jamais prescreve, ou seja, não importa quando a pessoa tenha praticado o
ato criminoso racista, será sempre passível de punição. Evidentemente, esse inciso é uma
conquista de todos, universalista, mas que sabemos proteger com maior justiça
segmentos minoritários da população.
Os Direitos Étnicos do grupo afro-brasileiro estão assegurados em locais distintos
do texto constitucional: subsumido aos Direitos Culturais e no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. São Direitos Étnicos pois dispõem sobre garantias
destinadas a um grupo, uma coletividade determinada, que se auto-reconhece e é
reconhecida pela sociedade brasileira como portadora de uma identidade peculiar. Estão
englobados pelos Direitos Culturais com caráter mais universalista que garantem o
exercício dos direitos culturais a todos (art. 215, “caput”, CF/88). Os Direitos Culturais
se tornam Étnicos quando protegem uma coletividade específica, geralmente minoritária,
garantindo tratamento diferenciado frente a outros grupos étnicos. No caso dos
afrobrasileiros, a Constituição garantiu a “proteção” de suas manifestações culturais (art.
215, §1
o
) – Direito Cultural de caráter Étnico, além da garantia de seu exercício, apoio,
valorização e difusão (art. 215, caput) –Direito Cultural.
No que diz respeito à constituição do patrimônio cultural brasileiro (art. 216,
CF/88) ocorre caso semelhante ao descrito acima. De forma ampla foi assegurado aos
“grupos formadores da sociedade brasileira” a proteção de seus bens de natureza tanto
material quanto imaterial, incluindo suas forma peculiares de expressar, criar, fazer e
59
viver, criações científicas, artísticas e tecnológicas, obras, objetos documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e, conjuntos
urbanos, sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico (art. 216 e incisos da CF/88). E, especialmente, garante o
tombamento automático de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos. Aqui houve inovação no sentido de que o conceito de
cultura da Constituição se distancia daquele da constituição anterior – engessado na
perspectiva conservacionista de patrimônio tombado – aproximando-se de um conceito
antropológico de cultura (Dória et al. 1996: 11).
Outro local na CF/88 a que estão referidos Direitos Étnicos de grupos
minoritários é no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Sua redação é a seguinte: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos” (Brasil 2005: 107). Não existe no texto legal qualquer
especificação acerca de quais grupos compõem essa coletividade, quilombos, novo
sujeito de direito, criado no âmbito da CF/88. De certa forma, a literatura historiográfica
e antropológica têm demonstrado que, via de regra, o grupo étnico-racial predominante
nos quilombos é o negro, porém são conhecidos casos de quilombos que agregavam tanto
pessoas negras quanto indígenas e brancas, foragidos ou páreas dentro do modelo
hegemônico do sistema colonial ibérico. Como nas leis do Brasil colônia e império, há a
ilusão da homogeneidade subsumida no sentido da categoria juridicamente construída,
porém diferentes arenas de discussão sobre o conceito passaram a ser constituídas a partir
da CF/88.
60
Na década de 80, outra arena de discussão em torno da noção conceitual dos
direitos étnicos passou a ser construída, sendo consolidada ao final dessa mesma década.
Em 1980 foi realizada em Florianópolis/SC a reunião “O índio perante o direito” que
proporcionou um espaço de discussão entre advogados e antropólogos quanto à questão
indígena (Silva 1994). Em 1987/88 foi firmado acordo entre a Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) e a Procuradoria Geral da República, sob a administração de
Manuela Carneiro da Cunha, assegurando o papel de perito ao antropólogo no âmbito dos
processos judiciais e garantindo à ABA a prerrogativa de indicar antropólogos
capacitados para desempenhar esse papel. Durante a elaboração dos primeiros laudos foi
constatado como um dos principais problemas “traduzir em termos jurídicos o
conhecimento antropológico” (Silva 1994).
Em 1990, novamente em Florianópolis/SC, Maria Hilda Paraíso organizou pela
primeira vez um grupo para discussão especificamente sobre laudos antropológicos. Em
1991, foi realizado em São Paulo o seminário “A Perícia Antropológica em Processos
Judiciais”. Participaram do evento as seguintes instituições: ABA, Comissão Pró-Índio
de São Paulo, Departamento de Antropologia da USP, Núcleo de História Indígena e do
Indigenismo, Ministério Público Federal, FINEP e Faculdade de Direito da USP. Um dos
principais objetivos do encontro foi debater “dificuldades, convergências e perspectivas
de estudo, pesquisa e elaboração de laudos periciais” (Silva 1994). No mesmo ano da
publicação dos textos do seminário de São Paulo, o Grupo de Trabalho sobre
Comunidades Negras Rurais da ABA, composto por Ilka Boaventura Leite, Neusa
Gusmão, Lúcia Andrade, Dimas Salustiano da Silva, Eliane Cantarino O’Dwyer e João
Pacheco de Oliveira reuniu-se no Rio de Janeiro.
61
Em 1994 a ABA forneceu a seguinte definição para “remanescentes de
quilombos”:
“Constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela
Antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento
através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou
exclusão (Barth, Fredrik (1969) Ethnic Groups and Boundaries.
Universitest Forlaget, Oslo)” (Silva 1996: 81 – 82).
No que diz respeito à esfera dos movimentos sociais apenas em 1995 foi realizado
em Brasília o I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais. Em 1996, ocorreram
a I e a II Reunião da Comissão Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas,
respectivamente, em Bom Jesus da Lapa/BA e São Luís/MA, quando foi criada a
Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas. Em
1997, foi fundada a ACONERUQ – Associação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas no Maranhão. Em maio de 1998, ocorreu o I Encontro das Comunidades
Negras do Pará (Almeida, 2002: 73). Foram necessários, praticamente, dez anos para que
fosse deflagrado o processo de mobilização em torno da questão quilombola. Chama
atenção, também, o fato de que a mobilização adquiriu visibilidade juntamente com sua
noção de ruralidade. Apenas no Pará o movimento se colocou independentemente dessa
adjetivação restritiva e, entre o final dos anos 90 e primeira década do século XXI, o
movimento adquiriu contornos urbanos.
a) Discussões do Movimento Negro e proposta de Emenda Popular.
A inserção da categoria “remanescente das comunidades dos quilombos” foi
resultado de discussões que ocorreram em diferentes arenas políticas, ora dentre
participantes do movimento negro, ora no âmbito burocrático da assembléia constituinte.
Um dos principais argumentos que fundamentava a discussão sobre a inserção do termo
62
“remanescentes das comunidades de quilombos” era a questão da “dívida” que o Estado
brasileiro teria em relação aos afrobrasileiros em decorrência da escravidão e do
subseqüente abandono pós-abolição. Essa reivindicação partia de uma parcela do
movimento negro para a qual a noção de “dívida” alcançava, também, as marcas e
estigmas (Leite 2000: 11-12)
Antes da apresentação de qualquer proposta no âmbito constitucional surgiu uma
proposta feita pela Casa de Cultura Negra do Maranhão – CCN/MA. Levada à discussão
entre militantes do movimento negro, a sugestão era que fosse elaborado um texto
constitucional que garantisse o “reconhecimento de direito à propriedade nos domínios
territoriais ocupados pelas comunidades negras rurais” (Silva 1996: 13 –14, nota 1).
É importante destacar a perspectiva da CCN/MA. Entre os anos de 1988 e 1989,
estava sendo gestada a redação final do “Projeto Vida de Negro” elaborado com a
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos com auxílio da Fundação Ford. Um dos
reflexos desse projeto foi potencializar a criação da ACONERUQ. Contribuiu, também,
com o fornecimento de subsídios técnicos para a “convocatória dos encontros de
comunidades negras rurais realizados no Maranhão desde 1989” (Almeida 2002: 9). A
execução do projeto contou com a participação de profissionais de várias áreas como
antropólogos, historiadores, advogados, assistentes sociais e pessoas ligadas ao
movimento negro do Maranhão, tendo sido organizado pelo antropólogo Alfredo Wagner
de Almeida.
A proposta colocada em debate pelo CCN/MA possuía avanços, mas também um
fator restritivo. No que diz respeito ao reconhecimento de seus “domínios territoriais”, a
sugestão buscou transcender a noção de “terra” conferindo uma perspectiva muito mais
abrangente ao dispositivo. Dentro da categoria de “domínios territoriais” está englobada,
63
por exemplo, a garantia de acesso aos recursos naturais utilizados pelas populações.
Porém, a construção do sujeito de direito apresentada na proposta, aquele capaz de
reivindicar a propriedade de seus domínios, estava restrito às comunidades negras rurais.
Acredito que a evocação do caráter rural tenha contribuído para a não aceitação da
redação proposta ao dispositivo.
Para Dimas Salustiano da Silva, a vantagem da proposta apresentada pelo
CCN/MA era ter “mais longo alcance, onde a identidade étnica, conferida à condição ‘de
negro’, era proeminente”, (Silva 1996: 14). Discordo, em parte, da conclusão de Silva
pois a categoria “quilombo” já traz em si, implicitamente, a idéia de negritude, sob meu
ponto de vista, associada à resistência. O que a prejudica no atual texto constitucional é o
adjetivo “remanescente”. Particularmente, acredito que a idéia de propriedade dos
“domínios territoriais” teria conferido ao texto constitucional uma perspectiva mais
abrangente e próxima da forma de apropriação dos recursos naturais por parte das
comunidades negras que a “das terras ocupadas” literalmente.
A primeira proposta de redação para o art. 68 do ADCT, formalmente
apresentada à constituinte, foi feita pelo deputado Carlos Alberto Oliveira, o “Caó”, do
Partido Democrático Trabalhista – PDT/RJ, tendo sido apresentada através de Emenda
Popular em 28 de julho de 1987 (Silva 1996). Segundo ela:
“Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas
comunidades negras remanescentes de quilombos, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem
como documentos referentes à história dos quilombos no Brasil” (Silva
1996: 15, grifos em parte do autor).
Chama atenção que na primeira proposta de redação “propriedade definitiva” e
“tombamento” fossem apresentados como indissociáveis, embora o fato de possuir um
bem tombado acarrete uma série de restrições ao exercício do direito de propriedade
64
pleno. O tombamento recairia, prioritariamente, sobre as terras e, em seguida, sobre
documentos, situação inversa a que ficou estabelecida na redação final do texto
constitucional localizado em seção específica que dispõe sobre Direitos Culturais e da
constituição de um patrimônio histórico nacional. Merece destaque a forma como foi
definido o sujeito coletivo de direito: comunidade eminentemente negra, garantindo um
direito étnico, independente de ser urbana ou rural.
Analisado pela Comissão de Sistematização, o artigo proposto através de Emenda
Popular ficou com a seguinte redação:
“Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas
comunidades negras remanescentes dos quilombos, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem
como todos os documentos referentes à história dos quilombos no
Brasil” (Silva 1996: 15, grifos meus).
Dessa forma, grosso modo, foi mantida a intenção do projeto original.
b) Emendas à primeira versão do texto constitucional.
Nesse espírito, foram apresentadas três emendas. Na primeira, datada de 04 de
setembro de 1987, o deputado Aluízio Campos (PMDB/PB) sugere modificações ao
dispositivo que garante a propriedade das terras aos quilombolas tornando-o mais
específico:
“(...) Acrescido de parágrafo único, dê-se ao artigo 38 das Disposições
Constitucionais Transitórias o Substitutivo à seguinte redação:
Art. 38 – Fica reconhecida a posse legítima das terras ocupadas,
durante mais de 10 (dez) anos ininterruptos, pelas comunidades negras
remanescentes dos quilombos.
Par. Único – A lei determinará procedimento sumário para demarcação,
expedição de título de propriedade e registro imobiliário em favor dos
posseiros qualificados para a aquisição do domínio.
PARECER – Pela rejeição, tendo em vista que a Emenda proposta pelo
ilustre constituinte conflita com as diretrizes traçadas pelo Relator
(sic)” (Silva 1996: 15).
65
Na proposta de modificação do art. 38 do ADCT, apresentada por A. Campos, é
explícita a idéia de que não se confira a propriedade à população negra, mas apenas a
“posse legítima” para aqueles que estejam “ocupando” suas terras por mais de “dez anos
ininterruptos”. Esse procedimento apenas transformaria tais comunidades em grupos de
“posseiros qualificados”. Apenas após esse segundo reconhecimento, o primeiro seria sua
identidade, do seu tempo de ocupação, as comunidades poderiam vir a pleitear a
propriedade de suas terras.
Tal proposta contrariava a primeira, sugerida pela Emenda Popular e, por
conseqüência, as diretrizes apontadas pelo Relator: o acesso ao direito de propriedade por
se tratar de “comunidade negra remanescente de quilombos”. Em todo caso, a proposta
de A. Campos apontava para um prazo temporal, ponto constante de discussão quanto à
construção do sujeito de direito como apontarei nas discussões futuras.
A segunda emenda modificativa foi apresentada pelo deputado Eliel Rodrigues
(PMDB/ PA), em 07 de janeiro de 1988. Sua proposta é a seguinte:
“Dispositivo emendado: Art. 25 das Disposições transitórias, do atual
Substitutivo (S3) (sic)
“Suprima-se, do texto do referido artigo, a sua primeira parte, e dê-se
nova redação ao restante do texto citado, dispositivo, de modo que o
mesmo assim se expresse:
“Art. 25 – Ficam tombadas as terras das comunidades negras
remanescentes dos antigos quilombos, bem como todos os documentos
referentes à sua história no Brasil.
“PARECER - A presente Emenda do nobre Const. Eliel Rodrigues
pretende modificar o Art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais
Gerais e Transitórias negando a propriedade definitiva das terras dos
quilombos às comunidades negras remanescentes.
“Alega o parlamentar que a emissão dos títulos de propriedade pelo
Estado criará ‘verdadeiros guetos’ e a prática do ‘apartheid’ no Brasil.
A despeito da preocupação do Constituinte quanto à possibilidade de
segregação social e desigualdade dos direitos civis, a nossa posição não
enxerga esses males, porém apenas objetiva legitimar uma situação de
fato e de direito, isto é, a posse e o domínio das comunidades negras
sobre áreas nas quais vivem, realizam a sua história durante mais de um
século, continuamente, apesar dos atentados e crimes de toda a ordem,
66
praticados contra as culturas, liberdades e direitos (aqui o objetivo da
titulação). Os guetos são fenômenos sociológicos, antropológicos,
filhos da história do Homem e da Civilização, e não obras de escrituras
públicas que apenas oficializam o domínio pleno, justo e continuado de
um povo exilado de sua própria pátria, pela violência e a injustiça. Pela
rejeição da emenda”, (Silva 1996: 15 –16, grifos meus).
Evidentemente, como seu colega de partido, Eliel procura estabelecer critérios
para que as comunidades negras remanescentes dos quilombos adquiram a propriedade
de suas terras via texto constitucional e, para isso, utiliza-se da estratégia do
“tombamento”. Tombar é o ato praticado pelo Estado de colocar sob sua
responsabilidade a manutenção e conservação de bens, móveis ou imóveis, de relevante
interesse público. Se por um lado é apontado o risco da formação de guetos e de uma
política de apartheid por outro o parecerista aponta no sentido de que o dispositivo
constitucional apenas “legitimaria uma situação de fato e de direito”. Há consenso, já no
tempo da constituinte, sobre a existência de comunidades negras cuja origem remonta
aos antigos quilombos, onde posse e domínio sobre as áreas onde vivem remontam
mais de um século.
Por outro lado, o autor destaca que as “escrituras públicas” não geram o
“apartheid” no Brasil. Acredito que o constitucionalista, da forma como constrói seu
argumento, refira-se às escrituras públicas de propriedade conferidas às comunidades
negras, não necessariamente àquelas expedidas aos que expropriaram terras indígenas e
quilombolas. Mesmo agindo dentro da “legalidade”, o regime de terras no Brasil
combinado com a política de higienização dos centros urbanos produziu uma espécie de
apartheid.
“A massa de negros com menor escolaridade e capacitação profissional
seria empurrada mais do que nunca para a periferia, graças a um
intenso esforço de deslocamento forçado e ao reforço das leis contra
67
invasões urbanas. Isso, às vezes era chamado de ‘opção brasileira’,
daria a impressão de que o apartheid havia sido desmantelado, por
causa da não-separação do grupo por raça. Mas o ponto-chave era que o
Africâner volk permaneceria no poder e a África do Sul continuaria
sendo seu estado nacional” (Telles 2004: 161).
E. Telles já em 1994 chama atenção para a segregação residencial que existe no
Brasil. Essa segregação era marcada por deslocamentos, expulsões e realocações,
marcando um processo social de territorialização conflitivo entre a população negra e
branca (Telles, 1994; Leite 2000: 10 – 11). O monopólio dos recursos jurídico e da
administração pública sempre esteve restrito a uma elite hegemônica branca no Brasil.
Essa elite branca de ex-senhores, já nos anos agonizantes do final da escravidão, lançou-
se a tomada dos postos de poder nos municípios onde colocou em prática a mesma
ideologia senhorial na execução de políticas “públicas”.
Podemos perceber o “apartheid” brasileiro como tributário da ideologia da
“democracia racial”: se vivemos em harmonia como podemos colocar a questão racial
em discussão? Nessa tese, se consubstancia, ainda hoje o pretenso “igualitarismo” no
âmbito das decisões jurídicas. Se a propriedade fosse, no Brasil, um direito tão
igualmente distribuído a todos por que deveria o constituinte discutir direito de
propriedade, justamente, com base na posse para a população negra? Podemos imaginar
que ou não se deu chance aos negros de registrar suas terras e adquirir o título de
propriedade ou o tipo de conhecimento jurídico que potencializa a titulação foi
manipulado por uma parcela específica da população ou o tipo de apropriação de terras
praticado pelos negros possuía uma organização tão específica que não era enquadrado
na concepção de propriedade dos brancos, individualizada e pré-concebida nos moldes
ocidentais.
68
Chama atenção que tanto a proposta original quanto as emendas apresentadas
faziam referência às “comunidades negras” e não “aos remanescentes das comunidades
dos quilombos” para garantia à propriedade de suas terras. Ao que parece a redação final
poderá vir a dar margem ao pleito individual pelo direito de propriedade pois aquele que
“resta” da comunidade não é propriamente a comunidade. Essa leitura não é correta. O
sujeito de direito, ou seja, aquele a quem o direito de propriedade foi conferido é um
sujeito coletivo. A interpretação do direito individual está baseada em um paradigma de
ressarcimento econômico vinculado a uma lógica de descendência (aquele que advém da
comunidade remanescente de quilombos) que não encontrou respaldo no âmbito do
próprio judiciário (Pereira 2005). Débora Duprat, procuradora da 6
a
Câmara, que analisa
questões sobre minorias étnicas, ressalta que o art. 68 do ADCT deve ser interpretado no
âmbito da Constituição como um todo, levando em consideração o dispositivo legal que
trata da cultura: um estilo de vida compartilhado e, principalmente, “algo dinâmico que
se renova no dia-a-dia”.
2.3 Legislação infraconstitucional: esforços de regulamentar o art. 68 do
ADCT.
Mesmo sendo o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –
ADCT, auto-aplicável, ele precisava de legislação que tornasse específica a maneira
como seria concretizada essa nova forma de aquisição da propriedade. Para isso, se
sucederam, desde a primeira metade da década de 90, portarias e decretos, visando
estabelecer atribuições e procedimentos que regulamentem esse novo direito à
propriedade. Como veremos é constante a polarização de atribuições entre dois órgãos
públicos federais: a Fundação Cultural Palmares - FCP, vinculada do Ministério da
69
Cultura, e o Instituto Nacional de Reforma Agrária - INCRA, vinculado ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário. Aparentemente, quando as atribuições de titular cabiam à FCP
a mesma era ineficaz ao dispor sobre a propriedade dos imóveis. Quando essa mesma
atribuição coube ao INCRA, o mesmo se mostrou inexperiente em lidar com questões
urbanas e étnicas. Se a questão da etnia transcende os limites entre o rural e o urbano,
questões relacionadas ao direito de propriedade não parecem dar espaço para que se
discuta a alteridade entre grupos étnicos.
Data de 1995 o primeiro esforço de regulamentar a aplicação do art. 68 do
ADCT. Esse ano não é mero acaso, trata-se do ano da celebração dos 300 anos da morte
de Zumbi dos Palmares, morto em 1695. Como não podia deixar de ser, foram expedidas
duas portaria pelo poder executivo: uma da Fundação Cultural Palmares, em 15 de agosto
de 1995, e outra pelo INCRA, em 22 de novembro. Tais portarias eram complementares
e regulamentavam o artigo 68 do ADCT.
A Portaria nº 25 de 15 de agosto de 1995 expedida pela FCP e assinada por Joel
Rufino dos Santos estabelecia “normas” para a elaboração dos trabalhos de identificação
e delimitação das terras em que viviam as comunidades remanescentes de quilombos e
que, segundo o decreto, poderiam “também [ser] autodenominadas Terras de Preto”, (art.
1
o
.). O acréscimo da categoria “Terras de Preto” ao decreto é um marcador da
repercussão das pesquisas implementadas no âmbito das comunidades, principalmente
no Maranhão, onde a categoria é de uso corrente. Era o presidente da FCP quem
designaria o corpo técnico responsável pelas pesquisas que visavam identificar e
delimitar a comunidade quilombola, bem como estabelecer um prazo para isso. A
pesquisa de identificação seria composta por estudos antropológicos (etno-históricos e
sociológicos) cartográficos e fundiários, devendo ser elaborada através de pesquisa “de
70
gabinete” e “de campo”. A participação da comunidade remanescente de quilombos
estava assegurada ao longo de todas as fases do processo.
Em 22 de novembro de 1995, o presidente do INCRA expediu a Portaria nº 307 a
qual, estabelecendo que compete ao INCRA administrar terras públicas, desapropriadas
por interesse social, discriminadas e arrecadadas em nome da União Federal e regularizar
as ocupações “nelas havidas” (texto da Portaria). No item 1 dessa portaria são
estabelecidas as atribuições do INCRA de medir, demarcar e titular as comunidades
remanescentes dos quilombos. Esse título é denominado “título de reconhecimento” no
qual deverá constar a cláusula pró-indiviso, ou seja, há previsão de que o mesmo seja
coletivo e não possa ser cindido em parcelas. A portaria não assegura a participação das
comunidades nesse procedimento, tão pouco faz referência ao procedimento de
identificação e delimitação de atribuição da FCP. Além disso, não explicita se ocorrerá o
registro do “título de reconhecimento” no cartório do registro de imóveis e também não
esclarece se tal título é constitutivo de um direito de propriedade.
A Medida Provisória 1911, de 25 de novembro de 1999 estabeleceu as regras da
reforma ministerial implementada no período. Essa MP redistribuiu competências e
atribuições aos Ministérios. A implementação do art. 68 do ADCT coube ao Ministério
da Cultura, órgão que também recebeu a competência de emitir o título de propriedade a
que faz alusão o art. 68 do ADCT. Com a Portaria 447, de 02 de dezembro de 1999, o
Ministro da Cultura delega ao presidente da FCP poderes para efetivar atos que visem
regulamentar e implementar o art. 68 do ADCT por entender que à Fundação cabe
“promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da
influência da raça negra na formação da sociedade brasileira bem como de promover os
eventos relacionados a esses objetivos”. Toda essa delegação de competência não
71
significava autonomia, pois obrigava o presidente da FCP a comunicar ao ministro da
Cultura “o procedimento administrativo referente ao ato a ser praticado”, ou seja, todas
as ações da FCP deveriam ser formalmente comunicadas ao Ministério.
Valendo-se dessa nova “atribuição”, a presidente da FCP, Dulce Maria Pereira,
expediu a Portaria nº 40, de 13 de julho de 2000, estabelecendo os “procedimentos
administrativos para a identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes
de quilombos e para a delimitação demarcação e titulação das áreas por eles ocupadas”.
Nessa portaria, encontramos as cinco fases do procedimento administrativo que
regulamenta o art. 68 do ADCT e a equiparação das terras autodenominadas “Terras de
Preto”, “Mocambo”, “Comunidades Negras” e “Quilombos” às comunidades
remanescentes de quilombos. Já existia previsão de abertura de processo na FCP quer
provocado por interessado, quer por ela mesma e da participação da comunidade e suas
entidades representativas no âmbito do processo de titulação em todas as suas fases. O
relatório de identificação era formado pelo conjunto dos “aspectos étnicos, históricos,
culturais e sócio-econômicos do grupo”.
Essa portaria também previa uma série de possibilidades de convênios. Para a
elaboração das fases de delimitação, medição, demarcação do território ocupado e o
levantamento dos títulos e registros incidentes na área, a FCP poderia estabelecer
convênios com Ministério da Defesa, Secretaria do Patrimônio da União do Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão, INCRA e qualquer outro órgão da administração
pública de acordo com as exigências da demanda. Essa portaria faz referência à
expressão “território” e determina que a “delimitação territorial e a demarcação serão
realizadas de acordo com a delimitação feita pelos pesquisadores junto com a
comunidade, podendo ser realizado no mesmo período”, (art. 8
o
. da Portaria 40/2000).
72
A Portaria 40/2000/FCP era inovadora no que diz respeito à identificação da área
das comunidades. A identificação e a delimitação deveriam levar em consideração “a
distribuição espacial, seus usos e costumes, as terras imprescindíveis às suas
manifestações culturais e de recursos ambientais” que seriam registrados no banco de
dados da FCP sobre a comunidade. Esse procedimento culminava na expedição de um
título de reconhecimento de domínio, cujo registro no cartório de imóveis não estava
previsto. A Portaria da FCP teve pouco mais de um ano para surtir efeito, tendo a FCP
poucos recursos orçamentários para constituir convênios e investir na titulação das áreas.
O poder executivo, na pessoa de seu presidente da República da época, o sociólogo
Fernando Henrique Cardoso, expediu um Decreto que buscava regulamentar o art. 68 do
ADCT: o Dec. nº 3.912, de 10 de setembro de 2001. Ao que parece, a Portaria 40/2000
tocou em um ponto fundamental quanto à titulação das terras: ampliou a gama
interpretativa sobre quais as terras poderiam ser reconhecidas como território étnico de
quilombos.
O Decreto 3.912/2001 dispõe sobre a regulamentação do procedimento
administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e
para o reconhecimento, delimitação, titulação e registro imobiliário. Curiosamente ele
avança ao prever o registro imobiliário do título porém traz, no mínimo, três grandes
retrocessos. O primeiro deles é usar como critério de identificação das comunidades
remanescentes dos quilombos o tempo de ocupação de seus territórios: de 1888 até 05 de
outubro de 1988, um abuso para aqueles que fossem despejados forçadamente de suas
terras, por exemplo, no dia 04 de outubro de 1988. Outro retrocesso, foi a supressão da
observância dos espaços de usos e costumes como elementos passíveis de definir uma
territorialidade quilombola. E, por fim, o trabalho conjunto entre comunidade quilombola
73
e os técnicos responsáveis pela demarcação da área prevista anteriormente deixava de
estar assegurado sendo que a demarcação seria feita por decreto.
Com a eleição de Luiz Inácio “Lula” da Silva para presidência da República, em
2002, foi instituído grupo de trabalho a partir de um decreto sem número publicado em
13 de maio de 2003 para elaborar outro decreto que substituísse o Dec. nº 3.912/2001.
Antes que fossem apresentados os resultados finais, foi expedido o Dec. nº 4.883/2000
que transferia a competência para desempenhar os atos de titulação das comunidades da
FCP para o INCRA. Os trabalhos desse grupo resultaram na elaboração do Dec. nº 8.447,
de 20 de novembro de 2003. Ele é muito semelhante à Portaria nº 40/2000 da FCP: traz
as cinco fases do procedimento administrativo, estabelece como terras importantes para
as comunidades aquelas necessárias também para sua reprodução cultural e social.
O Dec. n. 4887/2003 assegura o respeito à autodeterminação já consagrado pelo
direito internacional através da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). São considerados remanescentes das comunidades de quilombos os
“grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (art. 2
o
). São as próprias
comunidades que atestam sua autodefinição (art. 2
o
. § 1
o
). O decreto sugere que, para fins
de visibilidade ante o Estado, essa autodefinição seja registrada junto a FCP. Porém, a
autodefinição consagrada internacionalmente independe do registro de qualquer certidão
estatal conforme estabelecido no texto da Convenção 169 da OIT. No Brasil, para os
remanescentes de quilombos há necessidade de uma chancela estatal que muito se
assemelha a uma tutela que concede a identidade ao grupo não pondo, assim, em risco o
direito de propriedade.
74
2.4 Um lugar no âmbito do Estado-Nação.
Dois fatores distinguem os remanescentes das comunidades de quilombos da
maioria dos brasileiros em geral: a necessidade de uma certidão que os “identifique” e a
homogeneidade que se imagina estar encoberta pela denominação. O que quis
demonstrar ao longo desse texto é que existem diferentes dimensões de apropriação e
interpretação da categoria “remanescentes das comunidades dos quilombos” no âmbito
do estado. A identidade é por si só uma metáfora das reivindicações que estão por trás
dela, uma metáfora de luta para os movimentos sociais; alvo de um processo de
“ressemantização” que permite àqueles que a reivindicam não mais se referir ao passado
mas pensar projetos futuro, como destacam antropólogo. Essas são as leituras otimistas
que perpassam o campo de análise.
A cidadania plena é sistematicamente mediada por documentos, na construção do
Estado-Nação. A certidão de nascimento e a carteira de identidade auxiliam a máquina
burocrática na contagem, controle e monitoramento não do povo, da “gentinha”, mas do
cidadão que tem acesso às regras de registro cartorial, aos “benefícios” do estado e paga
impostos, taxas e contribuições. Os titulares de direitos antes de serem capazes de
reivindicar, deviam existir perante o Estado como sujeito de direitos. Os cidadãos do
Estado da época globalizada passaram a se apropriar do direito como forma de garantir
sua sobrevivência e assegurar uma existência mais digna no país onde as relações de
classe continuaram a assegurar a hierarquia da estrutura social brasileira existente desde a
época da escravidão. Atualmente, o direito assumiu uma posição garantista, ou seja, está
sendo acionado para proteger os cidadãos dos abusos do Estado.
75
Para adquirir a propriedade de algum bem imóvel, o cidadão só precisa possuir
uma carteira de identidade (cidadania civil) e um código de pessoa física (cidadania
financeira, de mercado). Dependendo da forma como será adquirida a propriedade,
mediante financiamento, uma carteira de trabalho (cidadania social). No entanto não é o
Estado que cria a pessoa, mas formaliza, chancelando as múltiplas dimensões de
exercício da cidadania, o que vale dizer que o Estado se torna uma espécie de filtro que
confere papéis, vários papéis, os documentos, àqueles que conquistam diferente status
social.
Constitucionalmente é assegurado àquele que vive em uma área urbana o título de
domínio e a concessão de uso das terras de até 250 m², onde viva por cinco anos
ininterruptos e sem oposição de terceiros que a reivindique, utilizando-a para sua
moradia e de sua família. Caso o imóvel se localize na zona rural, é garantida a aquisição
da propriedade por usucapião caso a mesma não seja maior que 50 hectares, nela viva a
pessoa que reivindica sua propriedade tornando-a produtiva. O tempo de ocupação é de
cinco anos. Nesses casos o fator decisivo para a aquisição da propriedade é o fator
tempo.
Em se tratando dos remanescentes das comunidades dos quilombos, o critério
para a aquisição da propriedade se desloca do fator tempo para a qualidade de grupos de
pessoas. Por serem pessoas específicas, reivindicam o direito à propriedade. Essa
dimensão específica da constituição social da identidade está, desde 2003, sendo mediada
por um documento legal: a Certidão de Auto-Reconhecimento. A lógica da construção do
Estado-Nação, que registrava e controlava sua população foi, simplesmente,
transplantada para o interior da nação onde mesmo o auto-reconhecimento precisa da
chancela estatal. Afinal, não é pela existência da certidão que as pessoas são
76
quilombolas, mas por ser quilombolas é que reclamam a expedição da certificação. De
direito civil que garante uma dimensão do exercício da liberdade individual, o direito à
propriedade passou a ser expressão de um direito coletivo cujo exercício se confere a
alguns.
Faço essa digressão pois, como quis deixar claro, já existe um procedimento
específico que regula a forma como os “remanescentes das comunidades dos quilombos”
podem adquirir sua propriedade. Na maioria das vezes são elaborados estudos técnicos
que verificam a ancianidade da posse de áreas que, muitas vezes, suplantam em muito o
tempo necessário para caracterizar um usucapião, urbano ou rural. Agora, além de
comprovar os requisitos técnicos para reivindicar o direito de propriedade, também a
coletividade que o reivindica deve comprovar ser especial em sua “essência humana”.
Estaríamos diante de uma situação capaz de racializar, no sentido de priorizar
descendências biológicas, as discussões em torno de quem são os remanescentes das
comunidades de quilombos?
Ao longo dos anos 90, houve um esforço de discussão entre antropólogos e
responsáveis por elaborar políticas públicas referentes à titulação dos remanescentes de
quilombos como quis demonstrar em meu texto. A referência constante à etnicidade ou
ao processo de etnicização foi estratégica para desconstruir a conotação biológica de
pertencimento coletivo que remetia ao princípio da descendência biológica. A “raça” tem
seu significado variável forjado socialmente sendo valor que serve como amálgama para
o sentimento étnico que possibilita o sentimento de pertença a um grupo e potencializa a
construção de um projeto futuro comum. “Raça” enquanto valor socialmente construído,
não enquanto valor biologicamente dado.
77
Em 1995, a Associação Brasileira de Antropologia chamava atenção para os
riscos do “critério” da descendência. A construção de genealogias poderia ensejar
fracionamentos internos artificiais ao grupo e desconstituir formas sociais de inclusão
que as próprias comunidades mantém ao longo de décadas. “Em suma, as comunidades
de remanescentes de quilombos não podem ser definidas em termos biológicos e raciais,
mas como criações sociais, que se assentam na posse e usufruto em comum de um dado
território e na preservação e reelaboração de um patrimônio cultural e de identidade
própria” (Silva 1996: 84). Essas são as regras de manutenção da propriedade. As regras
de transmissão, porém, estão baseadas em critérios de descendência muitas vezes
subsidiados na noção jurídica de sucessão norteada por princípios de descendência
biológica.
Tradições e direitos costumeiros são reinventados e atualizados em interação quer
com outros grupos no mesmo patamar de hierarquia social ou com a sociedade
excludente. Mesmo as regras de sucessão e descendência das comunidades
remanescentes de quilombos são legitimadas, em parte, com a chancela da eficácia na
transmissão da propriedade conferida pelo direito estatal, afinal as fronteiras sociais são
permeáveis (Barth 2000 e Weber 1998), não apenas aos sinais diacríticos que manipulam
mas também aos sinais que partem do meio social externo constituindo, assim, critérios
comuns de diálogo entre fronteiras. Por isso, em Casca/RS o testamento faz lei entre
aqueles que vivem na comunidade definindo parte das regras de pertença por
descendência e em Morro Alto/RS a eficácia na manutenção da propriedade das terras
por parte da comunidade se deu na década de 60, graças ao fato de que os “herdeiros” de
Rosa Osório Marques conquistaram seu direito de permanecer em parte das terras da
comunidade por descenderem dos ex-escravos contemplados no testamento com terras de
78
sua ex-senhora. Esse modelo de discurso é juridicamente eficaz pois corresponde ao
paradigma de transmissão da propriedade dominante na lógica jurídica: a dos pais que
têm a titularidade de seus bens transferidos para os filhos legítimos.
Outro ponto que destaquei diz respeito a questão da pretensa homogeneidade do
conceito de remanescente de quilombos. No direito, há essa produção de categorias
universalizantes (Eccles 1991; Segato 2004) que pouco lugar reservam à diferença e a
perspectiva de que elas façam referência a uma homogeneidade de pessoas. A área
reconhecida e certificada como pertencente aos “remanescentes das comunidades de
quilombos” em Alcântara/MA tem 85.537,3601 hectares. O território étnico de Alcântara
contemplou toda a configuração de redes de povoados decisivas para a permanência da
população naquela localidade sendo formada por 139 povoados e 12 mil pessoas. Dentre
os grupos sociais com os quais os quilombolas de Alcântara/MA estabeleceram alianças
está o dos caboclos. No primeiro semestre de 2005, houve um foco de discussão com o
Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara – MABE, quando uma de suas
lideranças foi informada por um representante do governo federal que, para titular a área,
seria necessário remover todos aqueles não quilombolas. Logo, logo existirá aqui outro
ponto de conflito e tensão no interior das comunidades.
Talvez a discussão em torno da questão da titulação das terras dos remanescentes
de quilombos esteja submetida a uma outra lógica (que simplesmente se modificou para
se manter a mesma como a estrutura na conjuntura). Manuela Carneiro da Cunha (1987)
expõe que no Brasil a alforria nunca foi um direito do escravo e conferi-la jamais foi um
dever de seu senhor. Não existiu lei que firmasse regras para essa ação que ocorria de
forma costumeira tanto que levava viajantes e estudiosos que vinham ao Brasil a
interpretar que existia uma lei que regrasse o instituto da alforria, tanto era comum a
79
negociação entre escravos e senhores para realizar essa concessão. Ao aprofundar sua
análise sobre porque tal regramento não existia no país, os argumentos que partiam de
diferentes fontes vinculadas ao governo imperial explicavam que o Estado não possuía
autoridade para interferir na relação de propriedade existente entre senhor e escravo.
No entanto, a alforria era concedida e sua concessão era condicionada ao grau de
docilidade e lealdade que o escravo tinha em relação ao seu patrão. Os escravos mais
rebeldes não eram alforriados, mesmo que imprestáveis para o trabalho, eram vendidos
ou enviados para as fazendas mais distantes dos grandes centros. Esses eram elementos
perigosos da escravaria frente a senhores temerosos por sua segurança. Mas a obtenção
de uma carta de alforria, sinônimo de liberdade individual, era negociada e utilizada para
assegurar uma relação de subordinação e dependência entre o ex-escravo e seu ex-patrão.
Era formada, assim, uma massa de clientes-escravos em relação aos patrões.
Atualmente, foi garantido que os “remanescentes das comunidades de quilombos”
poderiam ter a propriedade das terras que ocupam. O direito à propriedade, ao contrário
da alforria, é assegurado em lei que, porém, não é eficaz. Desde a publicação do Dec.
4.887/2003 apenas três comunidades foram tituladas pelo INCRA: Paca, Aningal e Bela
Aurora no Pará. Até o final de 2005, está previsto o reconhecimento do território de mais
170 comunidades, sendo 156 englobadas na grande área do município de Alcântara/MA
e a titulação de mais dez áreas: Parateca e Pau D’Arco/BA; Laje dos Negros/BA;
Kalunga/GO; Brejo dos Criolos/MG; Furnas da Boa Sorte/MS; Conceição das
Crioulas/PE; Ilha da Marambaia/RJ; Boa Vista dos Negros/RN; Morro Alto/RS e
Mocambo/SE. Parateca e Pau D’Arco na Bahia foram tituladas em julho e agosto de
2005. No entanto foi só.
80
O INCRA alega que sua estrutura burocrática não estava preparada para lidar com
uma demanda que envolvia o idioma étnico e que precisaria de tempo para se adaptar ao
novo procedimento de titulação. Já se passaram dois anos desde que o Dec. 4.887/2003
regulamentou os procedimentos para titulação das áreas. Nesse ínterim, porém, o INCRA
já desenvolveu uma “política setorial quilombola no Programa Nacional de Assistência
Técnica e Extensão Rural (PRONATER) e são desenvolvidas ações-piloto para inclusão
destas comunidades no programa “Pronaf Infra-estrutura” que “valoriza as
especificidades das comunidades quilombolas, sua forma própria de organização cultural,
social e de produção; o relacionamento com os elementos da natureza; práticas de gestão
do território e as atividades econômicas predominantes”. É bastante compensador saber
que tal tipo de sensibilidade existe em um órgão estatal como o INCRA, porém essas e
outras políticas poderiam ser acessadas pelas comunidades remanescentes de quilombos
através de seu papel social de pequenos agricultores.
É o direito de propriedade que importa às comunidades. Direito assegurado, mas
não eficaz. O art. 68 do ADCT ao existir enquanto direito, que não é implementado,
produziu uma imensa massa de clientes para o Estado. Especialistas sobre o assunto têm
sido contratados para consultoria em diferentes órgãos de governo. Representantes de
todos os Ministérios foram envolvidos no Grupo Executivo Interministerial para discutir
a relação de Alcântara/MA com o Centro de Lançamento e o Centro Espacial como se
todos estivessem preparados para interferir na localidade com políticas específicas que
não aquelas oferecidas a toda a população brasileira tais como: direito a elaboração de
um plano diretor participativo para o município, educação, saúde, energia elétrica.
Quando o que interessava aos remanescentes das comunidades de quilombos era a
garantia do direito de propriedade definitivo das terras em que vivem.
81
“A lei é como o Estado representa sua própria autoridade e
competência: é uma autodescrição. O direito costumeiro é uma
descrição alternativa. A verdadeira sociedade brasileira oitocentista é
esse conjunto do escrito e do não-escrito, que não se cruzam, um
afirmando relações sem privilégios entre cidadãos equivalentes, outro
lidando com relações particulares de dependência e poder. Coexistem
sem embaraços porque, sendo aliados recortam para si campos de
aplicação basicamente distintos: aos livres pobres, essencialmente, a
lei; aos poderosos, seus escravos e seus clientes, o direito costumeiro.
Aquela é também a face externa, internacional, mas não
necessariamente falsa, de um sistema que, domesticamente, é
outro”(Cunha, 1987:141).
Duzentos anos depois, o escrito e o não-escrito, o direito e sua prática,
inverteram-se: antes não havia direito estatal que garantia a liberdade do escravo, a
alforria, em nome da manutenção do direito de propriedade; hoje é assegurado um outro
direito de propriedade, mas não se respeita a liberdade pessoal de reivindicá-lo. O Direito
e sua ineficácia coexistem com algum embaraço tendo em vista a articulação dos
movimentos sociais e observadores estrangeiros quanto a questão, porém o princípio
continua o mesmo: aos livres pobres e pretos a lei; aos poderosos e seus clientes outros
favores. A face externa, internacional, o Direito, continua a mesma, não necessariamente
falsa, enquanto domesticamente o sistema continua outro.
82
2.5 Quadro sinóptico da legislação federal sobre remanescentes de quilombos.
Legislação Finalidade
Constituição Federal de
1988
Concede aos remanescentes das comunidades de quilombos
o título de suas terras ancestrais.
Projeto de Lei n. 129 de 27
de abril de 1995
Proposto no Senado Federal
Regulamenta o procedimento de titulação de propriedade
imobiliária aos remanescentes das comunidades dos
quilombos.
Projeto de Lei n. 627 de 13
de junho de 1995
Proposto na Câmara de
Deputados
Regulamenta o procedimento de titulação de propriedade
imobiliária aos remanescentes de quilombos.
Portaria 25, de 15 de agosto
de 1995
Fundação Cultural Palmares
– FCP
Elaboração dos trabalhos de identificação e delimitação das
terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos.
Portaria 307, de 22 de
novembro de 1995
Instituto Nacional de
Colonização e Reforma
Agrária – INCRA
Realização dos trabalhos de medição, demarcação e titulação
de áreas quilombolas.
1995 Publicado o primeiro parecer identificando oficialmente uma
área de remanescentes de quilombos (DOU 18/12/1995):
Comunidade Negra de Rio das Rãs/BA.
Estima-se que no Brasil sejam existam 500 áreas de
remanescentes de quilombos.
Medida Provisória 1911, de
25 de novembro de 1999
Transferida ao Ministério da Cultura as atribuições para
efetivar o cumprimento do art. 68 do ADCT, transferindo
para o MinC a competência para titular as terras dos
quilombolas.
Portaria 447, de 02 de
dezembro de 1999
Ministério da Cultura
Atribui ao Presidente da FCP a competência para praticar e
assinar os atos destinados ao efetivo cumprimento do art. 68
do ADCT.
Decreto n. 3912, de 10 de
setembro de 2001
Define critérios e procedimentos para identificação e
titulação dos territórios étnicos.
Vetado o PL 129/95, no ano
de 2002
Veto do Presidente da República ao Projeto de Lei 129/95.
Decreto de 13 de maio de
2003
Constitui grupo de trabalho para rever as disposições do
Dec. 3912/2001.
Decreto 4887, de 20 de
novembro de 2003.
Estabelece o procedimento de reconhecimento, identificação,
delimitação, demarcação e titulação dos territórios
quilombolas.
Instrução Normativa n. 16, Regulamenta o procedimento para identificação,
83
de 24 de março de 2004 –
INCRA
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras quilombolas.
Ação Direta de
Inconstitucionalidade
movida pelo PFL, 25 de
junho de 2004.
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3239)
movida pelo Partido da Frente Liberal que alega a
ilegalidade de dispositivos do Decreto 4.887/2003. A ação se
encontra conclusa com o relator Ministro Cezar Peluso desde
28 de março de 2005.
Portaria 19, de 14 de maio
de 2004 - FCP
Torna público o registro e a certificação de várias
comunidades remanescentes de quilombos, dentre elas:
Morro Alto/RS, Comunidade de Brejo dos Crioulos/MG,
Comunidade de Mocambo/SE e Comunidade dos Herdeiros
da Invernada dos Negros/SC, entre outras.
Portaria 35, de 06 de
dezembro de 2004 - FCP
Torna público o registro e a certificação de várias
comunidades remanescentes de quilombos, dentre elas:
Comunidade de Rio das Rãs/BA, Comunidade da Família
Silva/RS, Comunidade de Invernada Paiol da Telha/PR,
Comunidade de Angelin/ES, coletivamente as Comunidades
de Alcântara/MA, dentre outras.
84
3. Comunidade negra de Morro Alto:uma
comunidade imaginada por alguns
e vivida por outros.
3.1 A etnogênese e uma perspectiva diferente sobre o poder. 3.2 Um convênio
entre governo federal e estadual e três diferentes propostas de objeto: prelúdio de uma
polifonia anunciada; 3.3 A posição dos atores no campo de interlocução, a) Os “agentes
políticos”: uma parcela do movimento negro que vai a campo, b) O Ministério Público
Federal: “uma discussão feita sob o ponto de vista do direito, do jurídico, da
propriedade” com o protagonismo das comunidades, c) Os “pesquisadores”: mediadores
em mediações; 3.4 As reuniões em Morro Alto; 3.4.1 Apresentando a Comunidade; 3.4.2
A escolha de um nome para a Associação. 3.4.3 Definindo quem pode ser sócio da
Associação Rosa Osório Marques. 3.5 Algumas considerações finais.
Após analisar as disposições e debates que construíram um lugar para os
remanescentes de quilombos no âmbito do Estado nacional, capítulo 2, quero
compreender como se deram as conexões específicas no processo de construção local de
um significado para o termo pelos moradores de Morro Alto – essa comunidade será
minha pequena corte (Elias, 2001). Neste capítulo, analisarei reuniões que ocorreram na
comunidade negra de Morro Alto, antes de seu reconhecimento como remanescente de
quilombo pelos órgãos de Estado. Privilegio o espaço das reuniões pois as percebo como
um ritual que coloca em debate perspectivas do “campo político intersocietário”
(Oliveira 2004), ou seja, nesse caso, um espaço de convergência das falas dos diferentes
atores que participaram do processo do reconhecimento de Morro Alto como
85
remanescente dos quilombos, de diferentes atores com legitimidade, conhecimento e
autoridade distintos que se entrecruzam em um momento específico.
As reuniões foram escolhidas por trazerem debates marcantes no processo de
reconhecimento da comunidade e por sintetizarem questões limite no processo de
construção da identidade social dos remanescentes de quilombos. Tomo como ponto de
partida o momento em que os “pesquisadores” passaram a realizar trabalho de campo na
comunidade e foram apresentados, em 18 de agosto de 2001. A visita de pessoas da
Comunidade de Casca/RS ocorreu em uma reunião onde foi proposta a escolha de um
nome para a associação. A terceira reunião escolhida para análise é aquela na qual se dão
os debates em torno da construção do significado da categoria “remanescente de
quilombos” entre pessoas da comunidade, “agentes” e equipe de pesquisa, antropólogos e
historiadores.
3.1 A etnogênese e uma perspectiva diferente sobre o poder.
Banton por sua vez escreveu a “Idéia de Raça”, sobre os estudos realizados nos
Estados Unidos, publicado em português no ano de 1979. No capítulo onde discorre
sobre a Etnogênese, Banton chama atenção para o fato de que os estudos produzidos nos
Estados Unidos antes da década de 60 enfatizaram a natureza e o poder das maiorias, ao
passo que os estudos pós anos 60 desvelaram o “poder que as minorias podiam mobilizar
em condições modificadas” (Bantos 1979:153). Foi na década de 60 que o movimento
negro norte-americano aproveitando-se da melhoria na situação econômica dos migrados
para as cidades, incrementou a comunicação de massa e debilitou controles tradicionais.
Com isso, passou a disseminar ao grupo a consciência de posição da população negra no
âmbito da estrutura social americana que se definia em oposição ao poder dominante
86
branco. Neste contexto, foi fundamental a re-significação do termo raça que passou a ser
acionado como “princípio definidor da pertença ao grupo” (Banton 1979:155), obrigando
o Estado a rever programas governamentais e conquistando uma série de Civil Acts ao
longo da década de 60 (Eccles 1991).
Tendo em vista a cobertura midiática conferida ao movimento negro, foi
difundida a idéia de uma minoria política unida quanto às suas reivindicações. Por outro
lado, no âmbito internacional, a entrada de nações africanas nas Nações Unidas forneceu
novas referências aos negros norte-americanos influenciando em sua nova consciência de
identidade, afroestadounidense. A comparação e a tomada dessa nova percepção de si
mesmos, de si no mundo, forneceu a população negra a noção de “sua diferença como
povo vivendo no quadro dos Estados Unidos” (Banton 1979:158). Trata-se do processo
de etnogênese. O processo que desembocou na etnogênese não teve a devida atenção por
parte dos sociólogos norte-americanos que, desatentos quanto à dinâmica da comunidade
negra, deixaram de perceber os contornos políticos na formação do grupo. No entanto, a
partir de uma base comum de identificação, redes de ajuda mútua e de solidariedade
étnica foram implementadas dentre os membros da comunidade. Articulados enquanto
novo grupo os negros passaram a adquirir uma maior consciência de si fazendo valer sua
posição frente a uma maioria que deixava de reconhecê-los anteriormente.
Seguindo a proposta de Banton de compreender o poder das minorias, o autor
passa a discutir a questão da construção deste conceito. Para ele, as “minorias são
definidas de dois modos diferentes: por si mesmas e pela maioria” (Banton 1979:164).
Por conseqüência da construção do conceito, o autor visualiza uma fronteira dupla:
inclusiva, operando dentro do reconhecimento que os membros das minorias têm uns dos
outros e exclusiva (no sentido de exclusão não de unicidade) que reflete o modo como a
87
sociedade englobante percebe, estereotipa, a minoria como um grupo posto à parte. A
etnia, a religião e a nacionalidade comuns são alguns dos fatores que podem ser
reivindicados tendo em vista a formação de uma fronteira inclusiva. Já a fronteira
exclusiva foi freqüentemente re-afirmada nas crenças acerca da raça. Assim, a minoria
racial surge em função da reação contra a incorporação social de um grupo tendo por
base suas características biológicas hereditárias, ao passo que a minoria étnica trata-se de
um grupo cuja diferenciação encontra-se calcada em uma idéia de descendência comum e
que busca o reconhecimento desta condição por parte do Estado.
No que diz respeito à etnicidade, o autor a compara com a nacionalidade e a
define como uma “qualidade compartilhada” (Banton 1979:168) onde pessoas pertencem
conscientemente a um grupo. O nível de consciência étnica depende em parte do
abandono a identidade na qual nasceu ou pode ser influenciado através da ação de
indivíduos interessados em proporcionar mobilizações em torno da etnicidade visando
interesses materiais específicos “embora não se explique apenas através deles” (Banton
1979:171).
A etnogênese pressupõe um deslocamento na compreensão do que vem a ser
“poder”. Afiliando-se a concepção de poder de Hannah Arendt que “corresponde à
habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é
propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na
medida em que o grupo conserva-se unido” (Arendt, 2001: 36), Banton ao construir uma
identidade coletiva, a partir da etnicidade, percebeu que tal identidade só fazia sentido
como algo capaz de constituir uma parcela de poder suficiente para influenciar o Estado e
a elaboração de políticas públicas. O Estado deixa de ser visto como “mero instrumento
de opressão nas mãos da classe dominante” (Arendt, 2001: 31), passando a ser um lócus
88
de exercício de poder com base na ação política orquestrada por uma minoria
historicamente alijada de participação nos processos decisórios.
3.2 Um convênio entre governo federal e estadual e três diferentes propostas de
objeto: prelúdio de uma polifonia anunciada.
A razão pela qual diferentes atores foram acionados e colocados em interação no
estado do Rio Grande do Sul no ano de 2001 foi a celebração de um Convênio entre a
União Federal, através da Fundação Cultural Palmares, e o Governo do Estado do Rio
Grande do Sul, através da Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social. O
Convênio da Fundação Cultural Palmares foi celebrado conforme prerrogativa da
Portaria/FCP 40 que previa essa possibilidade. O Convênio diz respeito ao “Projeto de
identificação, delimitação territorial, levantamento cartorial e demarcação de seis
comunidades remanescentes de quilombos” ao passo que a minuta apresentada pelo
governo do estado do RS, que descreve o projeto, dá o seguinte título ao projeto: “Projeto
de pesquisa para a produção de relatórios técnicos visando processos de titulação de
comunidades remanescentes de quilombos”.
O projeto da Fundação Cultural Palmares que consta no Convênio previa :
“identificação, reconhecimento, delimitação territorial, levantamento
cartorial e demarcação com vistas à titulação e o registro do título em
cartório de registro de imóveis das seguintes comunidades
remanescentes de quilombos no Estado do Rio Grande do Sul, a seguir
denominadas: Arvinha, município de Coxilha, Vila Mormaça,
município de Sertão, São Miguel, município de Restinga Seca, Rincão
dos Martimianos, município de Restinga Seca, Morro Alto, município
de Maquiné, Casca, município de Mostardas”.
O objetivo final desse projeto era titular as áreas de acordo com o art. 68 do
ADCT para implantar projetos de desenvolvimento sustentável.
89
O projeto do governo do Estado do RS, que consta como Anexo 1 da minuta do
Convênio, afirma o seguinte:
“trata-se de projeto de identificação, reconhecimento, delimitação e
demarcação de seis áreas de terras das comunidades remanescentes de
quilombos e de levantamento e diagnóstico de todas as áreas de
ocupações tradicionais, rurais e urbanas, de populações
afrodescendentes no Estado do Rio Grande do Sul, através da
realização de 5 relatórios técnicos das áreas de São Miguel, Rincão dos
Martimianos, Morro Alto, Vila Mormaça e Arvinha, da realização dos
levantamentos cartoriais, das publicações dos relatórios técnicos no
Diário Oficial da União, da demarcação das terras das comunidades
referidas, contribuindo para a titulação dessas comunidades
remanescentes de quilombos”.
O presidente da FCP, Carlos Alves Moura, e o governador do Estado do Rio
Grande do Sul, Olívio Dutra, assinaram tanto a minuta do Convênio quanto do projeto do
governo do estado do RS, resumido no anexo 1. Para a realização de todas essas ações,
foi estipulado o prazo de seis meses (julho a dezembro de 2001). A definição do objeto
do projeto como foi elaborado no corpo do convênio é mais específico do que aquele
exposto no Anexo. Embora no anexo não conste a Comunidade de Casca no âmbito da
identificação do objeto, há ações previstas para serem realizadas nessa área no item
“Plano de Trabalho” do Anexo 1. O Convênio e o resumo do anexo 1 foram assinados
em 13 de junho de 2001.
Essa ação, no entanto, foi o corolário de outras configurações que estavam sendo
compostas no âmbito do Estado do RS ao longo dos anos de 2000 e 2001 cujo objetivo
maior não era titular as comunidades, mas “estruturar um modelo de desenvolvimento
autogestionário para as comunidades remanescentes de quilombos do RS”. Tomando
como ponto de partida um levantamento feito pelo “Núcleo de Estudos sobre Identidade
Interétnica”(NUER) de 43 áreas “catalogadas” como “terras de pretos”, “comunidades
90
negras isoladas” ou “remanescentes de quilombos”, “o executivo estadual firmou
convênio para o reconhecimento de 10 (dez) destas áreas” como remanescentes de
quilombos. Não existe na minuta do projeto qualquer informação que especifique de que
forma e quais foram os critérios de seleção dessas dez áreas entre as 43 “catalogadas”
pelo NUER/UFSC para esse projeto, tão pouco de como essas dez áreas se tornaram
apenas 6 no termo final do Convênio.
Embora tenha sido gestado em diálogo com o Movimento Negro do Estado do
RS, através do CODENE gaúcho, o projeto de “Organização Sócio-econômica...” teve
inspiração no “Projeto Vida de Negro” implementado no Maranhão desde 1988. Tanto
que ao descrever a organização econômica dos quilombos e os conflitos por eles vividos
cita os seguintes exemplos: problemas para acessar minérios em seu próprio subsolo em
Oriximiná/PA; tensão entre comunidades negras e militares em Alcântara/MA;
construção de barragens em Brumado/BA; especulação imobiliária e exploração de mão-
de-obra camponesa em Frechal/MA. Cita como exemplo de áreas de uso comum os
babaçuais e o jaborandis do Maranhão. Em momento algum, a comunidade de Casca/RS
é citada, quer pelos conflitos fundiários que vivencia, quer por sua organização social
peculiar, ou ainda por ser o primeiro quilombo identificado e reconhecido no Rio Grande
do Sul. Ressalto que o principal objetivo desse projeto era a “constituição do programa
de Economia Popular e solidária auto-sustentável e autogestionária para as comunidades
remanescentes de quilombos do RS”. A equipe executiva do projeto seria composta por:
“coordenador técnico (Anteag), representante do Sedai no Codene, coordenador técnico
do projeto de remanescentes de quilombos no Codene, representante do Decid,
representante do RS Rural, Codene, conselheiros regionais do Codene, representante da
91
UFRGS e Diretoria de Economia Solidária”. Nada é falado sobre a participação das
comunidades na “autogestão” do projeto.
Uma parte do texto do projeto “Organização Sócio-Econômica...” está
reproduzida no Anexo 1, pelo governo gaúcho, que foi juntado ao termo do convênio
celebrado entre FCP e a STCAS em 2001. Ou seja, um projeto de inspiração em outro
que vinha sendo implementado no Maranhão, desde 1988, foi positivamente apropriado
por segmentos do movimento negro no Estado, que pretendiam ir além da mera titulação
das terras e, atrevo a afirmar, que pensavam que a titulação já estava dada ou
acreditavam que investimentos nessa parcela específica da população seriam decorrência
da mera identificação e reconhecimento das mesmas. Após ter sido apropriado pelo
movimento negro do Estado, esse mesmo projeto foi apresentado pelo governo estadual
em outra roupagem para o governo federal que restringiu ainda mais a idéia inicial do
projeto apresentado pelo governo estadual descartando o mapeamento das comunidades
urbanas e rurais proposto pelo Anexo em sua proposição final.
Como a luta pelo direito de nomear é uma luta pelo poder (Bourdieu 2000),
chama atenção, comparando os três documentos (minuta do convênio, anexo ao convênio
e projeto do Codene) como são referidas as “comunidades remanescentes de quilombos”.
No texto do documento da FCP, as comunidades de Arvinha, Mormaça, São Miguel,
Martimianos, Morro Alto já eram remanescentes de quilombos. O convênio previa a
delegação do procedimento administrativo completo ao governo do Estado do RS, com o
registro de título no cartório de registro de imóveis, ou seja, podemos inferir que a
identificação da comunidade se dava por auto-reconhecimento já naquela época.
De acordo com Portaria expedida pela FCP na época equivaliam a
“remanescentes de quilombos” as também autodenominadas “terras de preto”,
92
“comunidades negras”, “mocambos” e “quilombos”, valorizando as definições êmicas
que partiam das comunidades sobre ser “quilombola”. No anexo, em texto do governo do
Estado do RS, as cinco áreas a serem pesquisadas são chamadas de comunidades
remanescentes de quilombos. No entanto, o diagnóstico, segundo produto previsto pelo
governo do RS e que não entrou no texto final do convênio com a Palmares, incidiria
sobre “ocupações tradicionais, rurais e urbanas, de populações afrodescendentes no
Estado do Rio Grande do Sul”. O terceiro projeto, “Organização Sócio-econômico...” do
CODENE/RS, operava dentro do paradigma das terras comunais e da categoria das
Comunidades Negras Rurais. O texto do anexo do governo do estado é que foge do
padrão. Inova no sentido de estender a perspectiva de diagnóstico e mapeamento às áreas
urbanas e rurais. Quando se refere às “ocupações tradicionais” e aos “afrodescendentes”
porém abre o flanco para discussões.
Instituição Categoria Sinônimos
Fundação Cultural
Palmares
Remanescente
de Quilombos
. Comunidades negras rurais;
. Terras de preto;
. Mocambos;
. Quilombos.
STCAS/Governo do
Estado do RS
Remanescente
de Quilombos
.Comunidades tradicionais de
afrodescendentes, rurais e urbanas.
CODENE/MNU/RS Remanescente
de Quilombos
. Comunidade negra rural.
93
O projeto do governo do Estado do Rio Grande do Sul ampliava a interpretação
da categoria remanescente de quilombos de forma bastante radical, deixando explícita a
ênfase na “afrodescendência”. A etnicidade estava sendo vista não como um processo
que se constrói ao longo da relação entre pessoas que se percebem e são percebidas como
diferentes, mas a partir de uma conotação de “descendência”. Embora o CODENE/RS,
enquanto instância burocrática estivesse subsumido a STCAS, ambas instâncias haviam
sugerido projetos separados com finalidades específicas.
3.3 A posição dos atores no campo de interlocução.
A reunião do dia 18/08, realizada em Morro Alto, foi a primeira em que os
pesquisadores tomavam parte, a segunda ocasião na qual a comunidade se reunia e a
quarta visita dos “agentes políticos”, vinculados ao movimento negro e oriundos de Porto
Alegre. Mas quem eram as pessoas que estavam vindo até a “comunidade” e que
comunidade negra era essa? Estávamos todos dando início a interlocuções, conhecendo e
reconhecendo nossos papéis e legitimidades na mediação: como estávamos construindo
esse “campo político intersocietário”? Que figuração de redes de prestígio estava sendo
desenhada a partir desse encontro e quais já estavam concretizadas? Se existe um campo
político, esse mesmo espaço é atravessado por configurações de valores que desenham
fluxos de prestígio e deslocamentos sociais de poder (Elias, 2001).
a) Os “agentes”: uma parcela do movimento negro que vai a campo.
As pessoas denominadas ao longo do projeto de “agentes” já haviam iniciado sua
interlocução com as seis comunidades alvo do convênio antes do trabalho de pesquisa
propriamente dito. As seis pessoas que participaram da reunião de 18 de agosto enquanto
94
“agentes” haviam tomado parte do “Curso de Capacitação para Formadores em Políticas
Públicas: para uma atuação junto às comunidades remanescentes de quilombo” oferecido
pelo CODENE, MNU e STCAS no ano de 2000.
Quando o curso de capacitação foi oferecido, houve uma grande procura. De
acordo com uma aluna de Ciências Sociais da UFRGS que assistiu às primeiras aulas
mas não foi selecionada para continuar a capacitação, “havia cerca de três vezes mais
pessoas inscritas do que o número de vagas oferecidas”. Ainda de acordo com essa
mesma informante, “não existia uma perspectiva sobre o que fazer após o curso, mas
não era para sairmos por aí ‘fazendo’ laudo”.Várias pessoas se interessaram pelo curso
oferecido: negros e brancos, historiadores, enfermeiros, contabilistas, psicólogos,
funcionários públicos e profissionais liberais.
A seleção ocorreu através de uma entrevista individual minuciosa que acabou por
manter no curso pessoas que já integravam os quadros de movimentos sociais. Pode-se
perceber um recorte entre pessoas com filiação partidária – PDT e PT – ou que, além
dessas filiações, pertenciam também ao Movimento Negro Unificado e outras entidades
dos movimentos sociais. Várias pessoas que realizaram o curso eram oriundas das áreas
que pleiteavam reconhecimento como remanescentes de quilombos como, por exemplo,
Morro Alto e Cambará.
De acordo com o presidente do CODENE na época, Nilo Feijó, em notícia
veiculada no jornal Correio do Povo de 18 de outubro de 2000, o curso deveria formar
“agentes” para atuar nas “45 comunidades remanescentes de quilombos no Estado”
tendo como finalidade prestar assessoria para que as mesmas desenvolvessem seus
“núcleos” e conquistassem seus “direitos legais de posse”. Aparentemente, a
preocupação com o desenvolvimento das comunidades vinha antes da preocupação com
95
a titulação das terras dos quilombos. No dia 10 de setembro de 2000, Mozar Dietrich,
Diretor do Departamento de Cidadania da STCAS, informou que um “termo de
cooperação” estava sendo pensado em parceria com a Fundação Cultural Palmares e um
“convênio” com as universidades federais do Rio Grande do Sul, Santa Maria e Santa
Catarina, para “elaboração de estudo antropológico, histórico, jurídico e fundiário” sobre
as áreas. De acordo com a matéria, das 714 comunidades do país apenas 9 teriam sido
tituladas até set/2000. Aparentemente, existia uma linha de continuidade entre o curso de
capacitação, o “termo de cooperação” com a Fundação Cultural Palmares e a atuação
voluntária dos “agentes” junto às comunidades pesquisadas.
O curso de capacitação estava dividido em dois módulos:dulo 1, basicamente
introdutório, e o módulo 2 com ênfase em “Políticas, Planejamento, Gestão e Avaliação”.
As disciplinas que compunham o Módulo I eram: “História do Negro no Rio Grande do
Sul”, com Mário Maestri; “Movimento Negro e a questão das Comunidades
Remanescentes de Quilombos”, José Carlos dos Anjos; “Desenvolvimento e Sociedade”,
com Jalcione Almeida; “Agricultura Familiar”, com Sérgio Schneider; “Disciplina
Recente da Agricultura com Ênfase na Análise Regional”, com Zander Navarro. Já o
Módulo II tinha as seguintes disciplinas: “Políticas Públicas e Desenvolvimento Rural”,
com Ivaldo Gehlen; “Política de Reconhecimento das Comunidades Remanescentes de
Quilombos”, com Ilka Boaventura Leite; “Planejamento Social”, com Ivaldo Gehlen e
Lavois Miguel. As disciplinas somavam um total de 48 horas/aula e foram ministradas no
Centro de Políticas Públicas de Assistência Social e Cidadania – CPPAC na STCAS.
Na “Estrutura Curricular” que encontrei ao longo de minha pesquisa de campo
não constam as filiações institucionais ou a qualificação dos professores que ministraram
o curso. Esse quadro era formado por professores universitários, em sua maioria da
96
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do curso de pós-Graduação em
Desenvolvimento Rural e Sociologia; da Universidade de Passo Fundo, do Departamento
de História; e da Universidade Federal de Santa Catarina, do Núcleo de Estudos sobre
Identidade e Relações Interétnicas. Um corpo docente altamente qualificado para
ministrar disciplinas que durariam apenas 4 horas/aula. Intelectuais voltados,
principalmente, para a questão o “desenvolvimento rural” de tais comunidades: apenas
duas disciplinas diziam respeito aos “remanescentes de quilombos”, uma à política, outra
à história, uma aos movimentos sociais (que também abordava os remanescentes) e as
cinco restantes guardavam relação com planejamento e agricultura familiar. Fica claro o
fluxo de conexão entre academia e movimentos sociais e a ênfase dada à perspectiva
desenvolvimentista da análise dos quilombos.
A capacitação também era um indicativo do deslocamento da atuação do
movimento negro do meio urbano para o rural. Ativistas do MNU que estavam
envolvidos com a questão dos remanescentes de quilombos em 2000 vinham atuando
juntos politicamente desde o início dos anos 90 por ocasião da resistência na
transferência da Vila Mirim. Esse movimento, antes de representar uma cisão, dá conta
da ampliação do raio de atuação do MNU e vai ao encontro de um projeto político outro,
datado do início dos anos 90, chamado “Raça e Território” que se opunha a outro projeto
preexistente no âmbito do movimento chamado “Raça e Classe”, ou seja os “RT’s”
versus os “RC’s”.
O “Projeto Político Raça & Território”, foi proposto pela em 1991, em
Goiânia/GO, e hoje teria alcançado apoio de parcelas do movimento negro de São Paulo
e de alguns estados do nordeste, dentre eles Maranhão. Assinaram o projeto: Benicia
Margareth Ramos, artista plástica; J. C. Gomes dos Anjos, antropólogo; Jorge L. S.
97
Nascimento, químico da executiva do Sindicato do Pólo Petroquímico/RS; Júlio César
Camisolão, coordenador estadual do MNU/RS, e Ubirajara Carvalho Toledo, metroviário
e membro do Sindicato dos Metroviários/RS. Todos os autores são gaúchos com exceção
de J. C. Gomes dos Anjos, natural de Cabo Verde tendo realizado seu mestrado em
Antropologia Social na UFRGS. Há evidente intersecção entre os campos dos
movimentos sociais vinculados, de classe e de raça, e acadêmico, um fluxo que acaba por
se retroalimentar permitindo que os movimentos sociais pensem suas demandas a partir
do referencial teórico acadêmico e que a academia analise e compreenda como e porque
essa apropriação é possível por determinado grupo e eficaz na conquista de suas
reivindicações.
O Projeto RT toma por base enunciados de Deleuze, como o conceito de
“máquina de guerra”, e Bourdieu, citando passagens do livro “Poder Simbólico”. Nele
fica clara a percepção de que a discriminação racial tal qual é acionada no Brasil
funciona como uma espécie de conector de fluxos minoritários de discriminações. O
objetivo do projeto é construir um novo quadro de classificações possíveis, tomando por
base a falência do processo civilizatório branco/ocidental e a insuficiência das categorias
de classe como passíveis de visibilizar uma luta étnica. Dentro dessa nova perspectiva
étnica de luta pelo poder estaria, pari passu, a luta por um território.
De acordo com aqueles que postulam a tese da ênfase na variável étnica a mesma
seria mais adequada para expressar a realidade dos “grupos práticos” no Brasil, embora
uma das criticas que o mesmo grupo faça em relação aos marxistas seja, justamente, o de
atribuir classificações a esses mesmos “grupos práticos”. O território, nesse contexto,
antes de ser um palco possível de disputa seria a própria razão da disputa. Essa disputa
pretende, ao invés de potencializar um projeto do povo negro no Brasil, fornecer as bases
98
para se pensar um “Projeto Nacional do Povo Negro para uma Nação Negra”: “Povo
Negro” constituiriam um “Estado Nação Independente”. Os autores entendem que a
cultura negra já está dada o que configuraria um povo, a autonomia econômica seria
alcançada a partir de políticas compensatórias que o Brasil deve a essa parcela específica
da população sendo o território a parcela que falta para a conquista de uma “autonomia”
de Estado pretendida pela tese. O “Povo Negro” seria o portador de um “novo
humanismo”, sendo as condições mínimas de “aplicabilidade” do projeto: “um povo que
saiba lidar com as diferenças e um território”.
Ao longo do documento, fica explícita uma leitura substancializada do que vem
a ser o “étnico” que, em momento algum é compreendido como um processo socialmente
construído, mas como algo naturalizado e passível de potencializar mobilização política.
As pessoas seriam autoconscientes de sua identidade étnica, como se ela fosse
igualmente relevante para todo o “Povo Negro”, e viveriam essa identidade 24 horas
como se a identidade social não fosse multifacetária, ou seja, a própria constituição da
identidade social pressupõe que a pessoa possua identidades peculiares onde a étnica é
apenas mais uma. Outro ponto que pode ser esclarecedor quanto ao significado do
“étnico” é que mesmo que o projeto se chame “Raça & Território”, as expressões
utilizadas são “luta étnica” e “antagonismo étnico”, ou seja, o étnico está sendo acionado
como sinônimo (ou equivalente) à idéia de “raça”.
A literatura antropológica tem produzido discussões muito ricas sobre a
pertinência (ou impertinência) da confluência mecânica da idéia de “raça”, vinculada a
negritude, e “etnicidade”. Tratamos muito mais de processos de construção identitários
do que conceitos estanques e formatados em si mesmos (Sansone, 2004). Se a identidade
étnica é um constructo social (Sansone 2004: 12) por que seria ela a classificação
99
legítima na substituição de um sistema de classificação por classes? Se a idéia de “raça”,
nesse caso, ao invés de ser tomada como um “processo” se encontra naturalizada, ela o
seria sob que paradigma: da descendência ou da cor?
No entanto trata-se de um processo de racialização tecido sob premissas dos
moldes ocidentais, mesmos moldes que o projeto RT tenta negar. Há correlação entre a
noção etnia/raça e o Estado, ou seja, há a substituição da hegemonia da branquitude pela
da negritude bastante próxima da ideologia da construção dos estados nacionais
europeus/brancos/ocidentais. De certa forma, não podemos negar que tais argumentos
tenham pautado parte do “Curso de Capacitação de Formadores em Política Públicas”,
tanto que um de seus idealizadores ministrava o curso e outro, posteriormente, coordenou
os “agentes” que iriam a campo no âmbito do convênio FCP/STCAS durante pesquisas
de campo. Em Morro Alto, os “agentes políticos” permaneceram indo a campo até a
elaboração do estatuto que contou com a participação ativa de duas “agentes”. Por outro
lado, chamo atenção para o fato de que essa é uma das idéias correntes, pois o presidente
da Associação de Moradores, além de ser da Comunidade de Morro Alto, também
acumulava a competência de um “agente político” sem ser, contudo, do Movimento
Negro Unificado.
b) O Ministério Público Federal: “uma discussão feita sob o ponto de vista do
direito, do jurídico, da propriedade” com o protagonismo das comunidades.
A preocupação da Procuradoria da República em sua participação na reunião de
Morro Alto, no dia 18 de agosto de 2001, era na interface da questão do reconhecimento
da comunidade como remanescente de quilombos e o problema da duplicação da BR 101
que causaria impacto sobre a área. A preocupação com a BR 101 foi relativamente
100
embotada pela demanda de escrita do relatório técnico sobre a área, objeto do convênio
entre a FCP e a STCAS.
Em dezembro de 2000, havia sido constituída na procuradoria da república da 4
a
região (abrange Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) a Representação n.
731/2000, de 04 de dezembro de 2000. Essa representação foi iniciada com o envio de
uma carta pelo então presidente do CODENE, Nilo Feijó, noticiando que as comunidades
negras de Aguapés, Morro Alto, Ribeirão, Prainha e Terra de Areia seriam afetadas pela
duplicação da BR 101. Afirmava que tais comunidades eram remanescentes de
quilombos, não tinham assegurado seu direito de propriedade e não foram consultadas
quanto à duplicação da BR 101, deixando de estipular mecanismos de compensação ou
ressarcimento de prejuízo que por ventura viessem a sofrer.
A Procuradoria da República é obrigada a se envolver nas questões sociais que
dizem respeito às minorias étnicas, não significa tutelar um grupo mas fornecer auxílio
em situações que envolvem lesões ou ameaças de lesão ao direito coletivo de minoria
étnicas. No caso de Morro Alto, Nilo Feijó em sua carta à Procuradoria afirmou que os
“direitos do cidadão” da comunidade estavam sendo desprezados. Direitos dos cidadãos e
não étnicos foram evocados para requerer a ação da procuradoria. De acordo com a Lei
Complementar 75/93 uma das funções do Ministério Público Federal - MPF é o de
defender “os direitos e interesses coletivos, especialmente das comunidades indígenas, da
família, da criança, do adolescente e do idoso” (art. 5
o
.). Ao MPF compete promover
inquérito civil público - ICP e ação civil pública - ACP para a proteção de direitos
constitucionais, do patrimônio público e social, dos interesses individuais indisponíveis,
difusos e coletivos relativos às minoria étnicas (art. 6
o
).
101
Tanto o ICP quanto a ACP têm a participação do MPF sendo que a ACP é
ajuizada na Justiça Federal. O ICP pode ser iniciado a partir de notícia dada por qualquer
cidadão, que pode ser feito por carta. Antes de iniciar um ICP, pode ser aberta uma
Representação para coleta de dados sobre o caso. Já o ICP tem caráter investigativo e
inicia com a certeza de que tenha ocorrido uma lesão de direitos. Assim, no caso de
Morro Alto e das outras comunidades do estado, a participação do MPF em audiência
públicas na área não se tratava de uma “dádiva”, mas de obrigação do órgão. Nessas
audiências eram externadas questões da comunidade e sanadas dúvidas do próprio MPF.
No entanto, as preocupações do MPF eram de cunho jurídico, mesmo que seu conceito
de jurídico não estivesse adstrito À aplicação de leis e ao trâmite de processos sendo,
antes, uma questão judicial e social.
Essa deferência em razão do social também tem uma explicação: o conceito de
“remanescente das comunidades de quilombos” no âmbito do campo jurídico é bastante
tencionado. Poucos são os livros de direito que discorrem sobre o tema. Uma das
definições encontradas no texto jurídico denomina o direito do art. 68 do ADCT de
“Usucapião Singular” e interpreta o texto do mesmo artigo literalmente: remanescentes
de quilombos seriam “os moradores das comunidades formadas por escravos fugidos ao
tempo da escravidão que subsistiram após a promulgação da Lei Áurea” (SILVA 2001).
Além de ficar refém de uma interpretação literal, o autor da análise ainda a restringe mais
pois interpreta a norma de forma restritiva. Para ele, detêm o direito de propriedade
aqueles que “estejam ocupando suas terras” na data da promulgação da Constituição
Federal de 1988. Segundo Cláudio Teixeira da Silva, o fato da constituição “reconhecer”
o direito dos remanescentes atesta a ausência de disposição em produzir direito novo mas
de apenas “autenticar” uma posse antiga, centenária, exercida com ânimo de dono.
102
Dessa forma, a atuação da Procuradoria da República no campo da proteção dos
direitos coletivos das minorias étnicas estava sendo construída a partir da configuração
de fluxos de significados entre comunidade, ativistas do movimento negro e
pesquisadores. Essa permeabilidade discursiva crítica do campo jurídico aos valores de
outros grupos sociais permite que o conceito de “remanescentes das comunidades de
quilombos” se atualize, livrando-se de valores estereotipados do campo jurídico que
remetem à existência dos quilombos ao modelo palmarino tolhendo oportunidade para
que grupos tradicionalmente distantes de centros de poder expressem suas idéias e
conceitos. Porém, a recepção de tais valores inovadores do campo jurídico se dá
flexibilizando o significado de categorias jurídicas preexistentes como propriedade,
posse, ocupação e a própria expressão “remanescentes das comunidades de quilombos”.
c) Os “pesquisadores”: mediadores em diferentes mediações.
“Pesquisadores” tornou-se um termo multifacetado ao longo da pesquisa realizada
em Morro Alto. “Pesquisadores” era a denominação que nos vinculava diretamente com
a academia e nos isentava de uma identidade política explícita, mesmo que algumas
pessoas da comunidade afirmassem que a “pesquisa” decorria da boa vontade de um
governo estadual petista. Os “pesquisadores” eram fundamentais para os objetivos da
Fundação Cultural Palmares e para a Secretaria do Trabalho Cidadania e Assistência
Social pois havia uma legislação que previa a elaboração de estudos técnicos que
permitiriam o reconhecimento das áreas como de quilombos e sua futura titulação.
Os “pesquisadores” eram indispensáveis para a Procuradoria da República, para
mapear a “demanda”, ou seja, definir o objeto da reivindicação da comunidade negra (o
103
território e políticas de proteção ao patrimônio cultural) e quem eram os sujeitos desse
direito (quem eram as pessoas ou a coletividade que reivindicava o estatuto de
remanescente de quilombos) a partir da compreensão do processo histórico vivido por ela
e do processo antropológico da análise de suas formas de organização social (nunca
necessariamente exóticas). Uma das pesquisadoras de nossa equipe era, no momento do
relatório, antropóloga da Procuradoria da República licenciada para realização de seu
doutorado. Essa mesma antropóloga foi autora dos quesitos técnicos encaminhados a
Dra. Ilka Boaventura cuja resposta resultou no laudo de Casca/RS. Para o movimento
negro de uma forma geral, éramos um grupo cuja existência era inevitável para que seu
projeto político maior fosse levado a frente com a implementação de mecanismos de
autogestão e de políticas rurais e, mesmo, de “independência” territorial. Os
“pesquisadores” teriam que cumprir seu papel de traduzir a “comunidade” para outros
campos burocráticos e estatais.
A equipe de pesquisa foi composta por professores e estudantes da UFRGS a
partir de uma primeira nominata apresentada ao final de um seminário para
pesquisadores realizado no auditório da STCAS, pela FCP, nos dias 29 a 31 de julho de
2001. O “Seminário sobre procedimentos de pesquisa para elaboração de relatórios de
identificação de comunidades remanescentes de quilombos”, como o próprio nome já
diz, tinha por finalidade fornecer subsídios técnicos para a análise das comunidades
priorizadas no convênio. Participaram da capacitação pessoas vinculadas a várias esferas
da sociedade: CODENE, MNU, UFSM, UFRGS, PUC, MPF, antropólogos, advogados,
agrônomos, arquitetos, historiadores e outros participantes. A dinâmica do seminário
além de incluir uma breve apresentação de cada participante, individualmente, contou
com um histórico “sobre o reconhecimento das terras de remanescentes de quilombos no
104
Rio Grande do Sul”; uma descrição de cada área a ser estudada e duas palestras sobre a
elaboração de relatórios, uma proferida por Luís F. R. Linhares e a segunda por Ilka
Boaventura Leite.
As discussões no seminário oscilaram entre duas linhas gerais, uma em torno do
método de pesquisa que estava sendo discutido e outra sobre a implementação do
convênio. A princípio, cada equipe deveria contar com dois antropólogos e dois bolsistas.
Pessoas do MNU argumentavam que o trabalho de pesquisa não deveria se restringir à
dimensão acadêmica mas também envolver a atividade política. Nesse momento,
jul/2001, já havia equipes de militantes do Movimento Negro Unificado “trabalhando”
com as comunidades de Casca, Rio Pardo, Restinga e Morro Alto desde abril de 1999. Os
acadêmicos, principalmente antropólogos, chamavam atenção para o fato de que
deveríamos ter sensibilidade em relação às comunidades: “não podemos chegar às
comunidades com uma vara de condão e identificá-las como remanescentes de
quilombos”. Em suma, a tensão inicial se deu para definir qual seria o papel e as
responsabilidades das pessoas que integrariam as equipes, o que oscilava entre a
militância e a academia.
No plano teórico, o seminário empreendeu debates com a participação de dois
especialistas. Um dos palestrantes foi Luís Fernando Linhares, representante da FCP, na
ocasião, engenheiro agrônomo, profissional envolvido com pesquisas em comunidades
negras rurais do Maranhão através da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos,
integrante da equipe do Projeto Vida de Negro, ainda em 2002. Ele buscou contextualizar
a demanda dos remanescentes de quilombos no plano regional e federal, destacou a
necessidade de que se compusessem equipes multidisciplinares para a elaboração do
estudo técnico e de como as análises de profissionais de diferentes áreas assumiam
105
caráter complementar. Segundo ele, basicamente, os estudos abrangeriam três áreas:
antropologia, história e a agroeconomia.
A professora Ilka Boaventura realizou palestra na parte da tarde descrevendo sua
experiência de pesquisa em Casca/RS. Ao longo do seminário, assistimos o vídeo
“Negros do Cedro” sobre o povoado de Cedro em Mineiros/GO. Foram feitas sugestões
de leituras por Linhares, por exemplo: “Grupos étnicos e suas fronteiras”, de Fredrik
Barth; “Terras de preto, terras de santo, terras de índio – uso comum e conflito”, de
Alfredo W. de Almeida.
A dinâmica do seminário e a tensão entre seus participantes indicavam uma
movimentação, um deslocamento, do paradigma teórico de análise sobre as comunidades
negras rurais no sentido das teorias do campesinato para as da etnicidade. O vídeo
“Negros do Cedro” foi realizado em uma comunidade negra rural, uma das primeiras a
ser descritas e pesquisadas por antropólogos em cuja análise teórica o principal conceito
analítico acionado era “bairro rural”, inspirado em Antônio Cândido, no clássico
“Parceiros do Rio Bonito”. O texto de Alfredo W. de Almeida foi o resultado de suas
pesquisas na região nordeste do país, onde cunhou o termo teórico “terras de preto” como
um dos exemplos de posse comunal, o qual passa a ser apropriado como conceito
analítico e que vem a “inspirar” o conceito de “remanescente de quilombos”. Tudo isso
combinado com o texto de Fredrik Barth para quem “grupo étnico são categorias
atributivas e identificadores empregadas pelos próprios atores; conseqüentemente, têm
como característica organizar as interações entre as pessoas”.
“Aquilo que no nível macro podemos chamar de articulação e
separação corresponde, no nível micro, a conjuntos sistemáticos de
restrições com relações a papéis. Todos esses sistemas têm em comum
o princípio de que a identidade étnica implica uma série de restrições
quanto aos tipos de papel que um indivíduo pode assumir, e quanto aos
106
parceiros que ele pode escolher para cada tipo diferente de transação”,
(Barth 2000:36).
Enquanto equipe de pesquisa, estávamos mediando paradigmas teóricos de
análise que estavam sendo construídos para a situação dos “remanescentes de
quilombos”. Somada esse jogo de justaposições teóricas do campo da antropologia
integraram a equipe de Morro Alto um doutor em história, Paulo Moreira, e dois
bacharéis na mesma disciplina, Rodrigo Weimer e Marcelo Vianna; dois bolsistas um da
graduação da ciências sociais, Cíntia Rizzi, substituída por Cristian Salaini, e outro do
mestrado em antropologia, Alessandro Gomes. Éramos no âmbito da antropologia uma
doutora em antropologia, Daisy Barcellos, duas mestres em antropologia social, Miriam
Chagas e eu, e uma bacharel em ciências sociais, Mariana Fernandes.
Após cinco meses de pesquisa de campo, uma doutora em geografia, Nina
Fujimoto, passou a integrar a equipe. A partir da pressão exercida pelos “agentes” do
MNU, Arnaldo Batista, historiador e membro do movimento negro vinculado ao Partido
dos Trabalhadores – PT, passou a integrar o time dos historiadores. Tendo em vista a
profusão de pessoas que constituía a equipe de Morro Alto passamos a nos considerar
entre si como “pesquisadores”, coordenados por Daisy Barcellos, abolindo o rótulo de
bolsista e outras eventuais classificações que nos foram atribuídas.
3.4 As reuniões de Morro Alto.
3.4.1 Apresentando a Comunidade.
Morro Alto, em sua conotação administrativa localiza-se em Maquiné/RS,
município do litoral norte do Rio Grande do Sul/RS. Enquanto comunidade negra, acaba
107
transgredindo os limites burocráticos e se esparrama por entre morros, como há décadas,
por parte de seu município vizinho, Osório/RS. Colonizada por casais açorianos que
trouxeram consigo seus escravos, foi depois de algum tempo alvo de programas de
colonização do estado quando foram ali instalados alemães e italianos. Após a
escravidão, com a decadência econômica da localidade, os negros permaneceram nas
terras de seus ex-senhores. Algumas terras, deixadas através de herança; outras,
compradas pelos ex-escravos; terras apropriadas pelo uso; terras mantidas através da
resistência ao processo de expansão capitalista. A decadências dos centros coloniais e o
afrouxamento do controle social também foram encontrados por Maria de Lourdes
Bandeira (1988) ao longo de sua pesquisa em Vila Bela e foram, em grande parte,
decorrência dos interesses sociais e econômicos que se dirigiam para os centros urbanos
que se instituíam.
A comunidade de Morro Alto guarda estreitas relações de interdependência com
seus parentes migrados para as cidades. Muitos dos migrados para os centros urbanos
são, hoje, mediadores entre a comunidade e aquilo que acontece em diferentes campos
desde econômicos, sociais, culturais e políticos. Estão mais próximos dos centros de
poder local, como prefeituras, sede de diferentes igrejas e cultos, feiras de comércio,
universidades, enfim, de uma variada gama de recursos. Foi através da relação de
interdependência que se estabeleceu com esses migrados, habituados ao ir e vir entre
fronteiras sociais, que a comunidade de Morro Alto tomou conhecimento da
possibilidade de reivindicar sua identidade como “remanescente das comunidades de
quilombos”.
Quatro desses migrados que constantemente se deslocavam entre Porto Alegre e a
comunidade de Morro Alto realizaram o “Curso de Capacitação para Formadores em
108
Políticas Públicas: para uma atuação junto às comunidades remanescentes de quilombo
oferecido pelo CODENE, MNU e STCAS no ano de 2000. Wilson Marques da Rosa,
funcionário da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, filiado ao PDT,
pelo qual já foi eleito vereador no município de Capão da Canoa, filho de Dona Preta,
primeira professora negra de Osório, e Júlio Ilório, morador da localidade da Prainha e
sua esposa Vera, professora de história em um colégio público estadual de Porto Alegre;
e, Kátia e Adriana, irmãs, estudantes de enfermagem e de contabilidade, residentes em
Porto Alegre, filhas de Dona Ilse, diretora de uma creche, e João Francisco, professor
aposentado, ambos de Capão da Canoa, cujas tias e avó ainda vivem ao lado da ponte do
rio Maquiné, ao lado do Jaguarão. Ao longo da pesquisa, porém, entendemos que não era
por estarem vivendo “fora” da área geográfica da comunidade que eles não estariam
socialmente “dentro” da mesma.
3.4.2 Uma configuração de campos justapostos.
Naquele dia 18 de agosto de 2001 acordei por volta das sete da manhã, em
minha casa em Canoas/RS. Havíamos combinado que eu, Rodrigo Weimer e Cíntia Rizzi
seguiríamos para a reunião da comunidade de Morro Alto no município de Maquiné, de
ônibus, a partir da rodoviária de Porto Alegre/RS. Embora integrássemos uma equipe de
pesquisa parte financiada pelo governo federal, parte pelo governo estadual, ainda não
havíamos recebido dinheiro para realizar as pesquisas de campo. Esse dia era
importante pois o procurador da República responsável pela Procuradoria Regional dos
Direitos do Cidadão iria até Morro Alto em uma audiência pública. Além disso, houve
consenso dentre a equipe de pesquisa de que essa seria uma boa oportunidade para nos
apresentarmos para a comunidade.
109
Deveríamos saltar no Posto Salim e ali encontraríamos os “agentes” que haviam
saído de Porto Alegre em uma Kombi, veículo alugado pela STCAS. Foi o que fizemos.
Chegamos em Aguapés por volta das 12:45h, Rodrigo e eu fomos fotografados por
Cíntia Rizzi nesse momento tendo, sem saber, o morro Morro Alto ao fundo. A escolha
do Posto Salim não foi acidental. Localizado em Aguapés, ainda em Osório, o posto era
próximo da área de pesquisa e tinha um restaurante que servia “à lá minuta” e “espeto
corrido”, local de comida farta é, ainda hoje, ponto de parada de caminhoneiros que
seguiam viagem através da BR 101. Os sete “agentes” que haviam saído de Porto
Alegre nos esperavam almoçando “espeto corrido”. Pedimos a mesma coisa sem termos
noção da enorme quantidade de carne vermelha e salada de maionese que compunha o
“pedido”, horrível para ter que trabalhar logo mais à tarde. Todos tomamos
refrigerante. O motorista almoçou conosco. A reunião começaria às 13h30m, no
quilômetro 95, na localidade do Ribeirão.
As reuniões na comunidade de Morro Alto não ocorriam sempre no mesmo lugar.
Sua localização dependia de uma acomodação das forças sociais internas da própria
comunidade. Poderia ocorrer no “Clube Ribeirão”, administrado ao longo do ano 2001,
por um “branco-preto”, desde que não interferisse nas partidas do campeonato de futebol.
O lugar mais amplo do clube era seu próprio campo de futebol, disputado pela associação
e pelos times. Quando chovia sentávamos todos em uma velha cancha de bocha que
parecia sem uso e ficávamos ali amontoados driblando as goteiras. No clube também
existe uma cozinha com um pequeno salão ao lado: um lugar interditado para reuniões
mas de peregrinação obrigatória ao final de cada reunião.
Outras vezes, as reuniões eram realizadas na casa de pessoas da comunidade. Foi
assim por duas vezes, uma no pátio de sua casa de Edite e outra vez na garagem da casa
110
do Guinho. O problema nessas ocasiões era o barulho dos caminhões que passavam na
BR 101 em frente às casas dessas pessoas e a eventual indisposição com a vizinhança
que estava contra ou a favor da escrita do relatório, mas que não queria ter um carro
estranho estacionado em seu pátio. O clube também era providencial por causa do
estacionamento principalmente para aqueles que vinham de Porto Alegre/RS.
As reuniões ocorriam nos sábados a partir das 13h30m, mas sempre começava às
14h, 14h30m, e terminava, impreterivelmente, às 17h, pois as pessoas precisavam pegar
o ônibus que os transportaria para Osório e Aguapés. O ritmo de final das reuniões era
ditado pelas linhas de ônibus intermunicipais. Esse fluxo de deslocamento era importante
pois nas reuniões da associação, desde o primeiro dia, compareceram pessoas dos
municípios de Capão da Canoa e Osório, vizinhos ao município onde se localiza a maior
parte da área da comunidade de Morro Alto, Maquiné. Como muitas pessoas pegavam
outro ônibus na própria cidade de Osório o horário das 17h era o limite do razoável. O
processo de territorialização pelo qual passava Morro Alto, em busca de seu
reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo, repercutia também nas
periferias urbanas de municípios do litoral norte dentre aqueles que, ao contrário de
buscar nessa identidade autonomia para seu estilo de vida, urbanizado há décadas,
pleiteavam um local para retornar para sua terra ancestral.
Chegamos, Rodrigo, Cíntia Rizzi e eu, ao local da reunião juntamente com os
“agentes” na Kombi. As pessoas ainda estavam um pouco esparsas no que restava do
clube “Ribeirão”. Algumas conversavam entre grupos que, depois fui entender, eram os
parentes que não se viam há algum tempo. Encontramos outro antropólogo, Gervásio,
no local da reunião. Ele havia sido convidado a se juntar a nossa equipe, porém sua
esposa enfrentava uma gravidez de risco naquela época e ele achou por bem não se
111
envolver em mais trabalhos do que aquele com que já estava comprometido. Fomos
apresentados a várias pessoas da comunidade.
Havia 40 pessoas presentes na reunião da associação do dia 18/08 para uma
comunidade com aproximadamente 230 famílias, com um total aproximado de 920
pessoas. Dessas 40 pessoas, 11 eram pessoas de Porto Alegre, representantes de órgãos
de governo, pesquisadores ou ativistas dos movimentos sociais. Das 27 restantes da
“comunidade”, três viviam em Porto Alegre, duas em Osório, duas em Maquiné, cinco
em Capão da Canoa, dez na Comunidade Negra de Morro Alto. A comunidade estava
representada por um quorum de 2,93% de seus moradores. Duas crianças constam como
presentes à reunião mas eu não saberia precisar filhas de quem são. Através da
dispersão espacial das pessoas se tem uma idéia inicial do quanto seus membros vivem
ou em cidades vizinhas do litoral norte ou em Porto Alegre.
Esse percentual irrisório de participação quantitativa não torna as reuniões menos
legítimas. Pelo contrário, a maior parte das pessoas presentes da comunidade, residente
em Morro Alto, eram mediadores de grupos familiares de moradores. A idéia de que a
mediação ocorre apenas por parte daqueles que representam poderes constituídos ao
nível da sociedade ocidental, empoderados em seu contexto pré-concebido como
“moderno” em direção ao “outro” exótico e “tradicional” é etnocêntrica e faz parte de
uma perspectiva colonial.
A comunidade possui seus próprios mediadores, habilitados e experientes no
sentido de proteger os interesses “comunidade”, nem que para isso enfatizem demandas
de parentelas específicas, dentro de uma escala de valores próprios. Esses mediadores
locais, vamos por assim chamá-los por falta de uma expressão mais adequada,
organizam-se dentro das possibilidades permitidas pelas disputas de poder e relações de
112
interdependência intralocal e do local com o centro. Daí uma disputa acirrada para
estabelecer e monopolizar conexões externas, mantendo, assim, canais de interlocução e
de troca privilegiada. São em sua maioria funcionários públicos vinculados às prefeituras
locais (Capão da Canoa, Osório e Maquiné), letrados e na faixa etária dos 50 ou 60 anos.
Há também os líderes tradicionais, os mais velhos da comunidade, aqueles que rolaram
pelo mundo e voltaram para lá.
Decidimos por consenso, e por falta de espaço físico, que seria interessante
realizar a reunião à sombra de uma figueira, no campo de futebol. Sentamos todos em
círculo com cadeiras de latas fornecidas por uma fábrica de cerveja. Alguns sentaram
no chão e outros trouxeram tijolos para com eles organizar bancos. Nós que havíamos
chegado de Porto Alegre/RS fomos apresentados como “técnicos e agentes”
interessados em pesquisar a “memória” e a “etnia” relacionada à “hereditariedade” e
à “linhagem” de acordo com Wilson que fez uma pequena introdução. Novamente se
procederam as apresentações, agora para o círculo de pessoas. Algumas pessoas se
apresentavam e diziam de onde eram: Lagoa do Ramalhete, Morro Alto, Ribeirão.
Mesmo aquelas pessoas que moravam em Capão da Canoa se apresentavam como de
Morro Alto. Uma das pessoas presentes, um homem, da faixa dos 50 anos se apresentou
e disse que era de Encruzilhada do Sul o que causou risos e o comentário “mas tu já
vive há 30 anos aqui, já é daqui”. Pistas sobre como se poderia “pertencer” a Morro
Alto eram apresentadas paulatinamente através de comentários esporádicos.
Após as apresentações chegaram Daisy e Miriam Chagas, pesquisadoras da
equipe de Morro Alto, juntamente com o procurador da República em um carro oficial
da Procuradoria. Chegaram e sentaram-se, todos, junto ao círculo após se
apresentaram. Se falou um pouco do trabalho dos antropólogos e dos historiadores,
113
sobre como seria enfocada a região da comunidade negra de Morro Alto. Acredito que
naquele momento não tínhamos idéia de quão poucas pessoas da comunidade enquanto
territorialidade geográfica, estavam presentes à reunião.
Em dado momento do início da reunião, Manuel Francisco Antônio contou a
história do testamento de Rosa Osório Marques que deixou “sua fazenda” para os “ex-
escravos”, os “herdeiros de Rosa”. Esse antigo testamento já havia sido localizado pela
comunidade desde a década de 60 quando instruiu uma ação judicial e serviu como
prova para garantir a permanência das pessoas descendentes dos ex-escravos daquela
região. Manuel explicou que no testamento estava o nome de sua avó, “não sei se é vinte
ou é dezoito herdeiro, essa eu não tenho certeza bem”, e entregou uma cópia do
testamento retirada do arquivo público de Porto Alegre para que um dos pesquisadores
o copiasse.
O “testamento” e os “herdeiros de Rosa” tiveram importância decisiva na
construção do significado que a comunidade atribuía a categoria “remanescente de
quilombos” e, seguidamente, ao longo de entrevistas encontrávamos pessoas que
elaboravam as teses mais pitorescas sobre suas relações familiares sempre buscando uma
relação ancestral com os ex-escravos agraciados no testamento cuja lista era pública.
Uma das orientações que partiu da Procuradoria da República na reunião do dia
18/08 se deu no sentido de que a aquisição da propriedade dos remanescentes de
quilombos se daria de acordo com o art. 68 do ADCT, seria uma titulação coletiva em
nome da associação, mas poderiam ser definidos lotes individuais internos. A
comunidade estava preocupada com a indenização daqueles que não eram remanescentes
de quilombos, uma questão que estava em efervescência em outros estados do país sendo
discutido os dispositivos jurídicos que permitiriam a indenização de pessoas que não
114
eram quilombolas, mas possuidoras de boa fé das terras identificadas como de
quilombos. Em 2001, tanto a comunidade quanto a Procuradoria da República previam a
ocorrência de problemas fundiários na região, tendo em vista o grande número de
pequenas propriedades que ali vivem.
Outra preocupação externada por parte da Procuradoria da República era com a
organização de uma associação. Quanto mais forte fosse a associação mais força ela teria
para enfrentar uma situação de judicialização do pleito por reconhecimento, conforme o
ponto de vista do procurador da República que esteve presente. Os valores acionados
pelo representante da Procuradoria da República estavam permeados de questão
jurídicas: impactos e compensações por causa da BR 101; regime de administração das
terras da comunidade : coletivo, individual ou combinados; e, a construção de uma
associação quilombola forte para enfrentar a querela jurídica. De acordo com Max Weber
uma preocupação da ordem da burocracia, mas não infundada como poderemos ver em
2004/2005.
Porém, quem assumiu posição destacada na reunião foi Alceu Rosa da Silveira,
franco incentivador da formação de cooperativas habitacionais, vindo de Porto Alegre e
que ficou sabendo da reunião “por acidente”. Em sua concepção deveríamos, a equipe
técnica, elaborar um “anúncio” noticiando o que estava acontecendo em Morro Alto,
para “chamar nossos parentes que não sabem”. Em dado momento, frente ao
constrangimento de algumas pessoas mais velhas que viviam na localidade em falar e
que pareciam estar apenas começando a entender o significado de tudo aquilo, Alceu
assumiu a posição de inquiridor afirmando: “porque eu, a gente olha para estas pessoas
mais velhas e a gente vê, que foram as pessoas que contribuíram, que tem que ser
provocadas. Quer ver, se não provocar, certamente muitos não vão dizer nada”. Alceu
115
começou a fazer uma entrevista, no meio da reunião enfatizando questões sobre a
filiação das pessoas - “o casal [pais da pessoa] era descendente de africanos, eram
negros”, qual o tamanho das terras em que seus avós viviam, “pois naquele tempo tudo
era grande”, comentou Alceu.
Um dos agentes do movimento negro tentou focalizar a reunião na questão da
duplicação da BR 101. Havia pessoas que estavam participando da reunião por se
sentirem impactadas pelas futuras obras de duplicação dessa estrada de rodagem.
Poucas ou quase nenhuma das pessoas das comunidades negras da região (que se
localizam em Osório, Maquiné e Terra de Areia) foram consultadas ou informadas do
tipo de indenização ou compensação que receberiam em decorrência das obras.
Sabíamos que, por parte do então DNER – Departamento Nacional de Estradas e
Rodagens, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) sobre as obras da duplicação já havia
sido realizado, porém muito pouco sabíamos sobre o que o estudo propunha sobre as
políticas mitigatórias de danos. Os antropólogos queriam aproveitar a reunião para
saber mais sobre as histórias que as pessoas tinham para contar. E as pessoas foram
contando suas histórias para o grande grupo pautando, assim, valores que embasaram o
discurso legítimo apresentado ao público.
Dessa reunião tenho registrado o relato de quatro pessoas, três delas falaram ao
grande grupo e com uma mantive uma conversa mais reservada. Quero focalizar a
atenção na fala das pessoas que falaram ao grupo da reunião pois elas ditaram
parâmetros de discurso que encontraram legitimidade na assembléia que ali estava
reunida. Manoel Francisco Antônio abriu as falas relatando o caso do testamento, não
tenho a gravação completa de sua fala mas a de Manoel da Conceição Silveira, seu
vizinho na localidade de Morro Alto que foi o último a falar e que também falou do
116
documento. O testamento como um valor de transmissão abriu e fechou os relatos da
primeira reunião.
A primeira pessoa que falou ao grande grupo foi Maria da Glória, vinda de
Capão da Canoa. Chamo atenção, porém, que uma das pessoas já sabia que Maria tinha
um “relato” a fazer na reunião, ou seja, ela já havia conversado previamente com
alguém e, talvez, tivesse sido trazida para a reunião justamente por causa do “relato”.
Ao falar, ela pôs-se em pé e assumiu uma entonação de voz pausada e clara.
Demonstrava ter desenvoltura para falar em público. Ela iniciou sua fala chamando
atenção para o fato de que sua mãe era do Faxinal do Morro Alto, “nasceu ali” porém
“foi criada lá em Conceição do Arroio” e teria um “terrenão da lagoa ao mar”. Desse
terreno ela teria ficado sabendo por um parente misterioso cujo nome ela não cita. Sua
localização ficava em algum lugar incerto que ia de “Imbé até Arroio do Sal”. Esse
terreno eles perderam para uma advogada, “essa senhora que tava arrumando isso
para eles, de repente não era mais para eles era para ela mesma”. Assim, perdeu-se a
terra do pai de sua mãe.
Por intermédio de seu sogro, que trabalhava para um fazendeiro da região, o
marido de Maria ficou sabendo que a volta do Morro Alto era toda deles: “’por que é
que não pega aquela hectare ali, não pega aquela terra, passando de Morro Alto, aquela
volta de Morro Alto prá lá, aquilo tudo lá é de vocês, tudo é de vocês’, ele citou o nome
das pessoas, ‘é mas aquela parte lá é minha, eu te dou para ti, tu ficas lá’”. Maria não
foi morar ali para não ficar longe de sua mãe e soube que, mais tarde, a terra havia sido
vendida para pessoas de Maquiné, com quem a comunidade guarda uma relação de
conflito. Maria também sabe que na Prainha, “ali em Maquiné, também há alguma
coisa que é da minha mãe, né, mas também a gente parou por aí mesmo, e ficou por isso
117
mesmo”. Maria da Glória encerra sua fala dizendo que o “movimento” é muito
“bonito” e que mesmo que não fosse “válido” para ela, mesmo assim “espera” que
todos “possam aproveitar”.
Outra pessoa que falou ao grande grupo foi Francisco, professor da rede pública
de ensino, também de Capão da Canoa/RS. Ele iniciou sua história contando que “há
quinze anos atrás” ficou sabendo através de um primo, Osvaldo, que a família tinha uma
“área de terra” em Santo Antônio da Patrulha a qual teria lhe sido deixada por seu avô.
Francisco procurou informações sobre a “área” e descobriu no cartório do registro de
imóveis que se tratavam de 35 hectares de propriedade de seu avô que teriam sido
tomados por uma determinada pessoa para exploração de pedra grés. Acabou
descobrindo que a escritura do terreno estava em posse de um advogado de Santo
Antônio da Patrulha que havia passado um tempo, suspenso pela OAB. Esse advogado
inclusive “mostrou, mas não nos deixou tocar na escritura, meu avô tem essas terras,
passou ao meu pai, deixou na guarda de meu pai quando, antes de falecer, e meu pai
passou a mim”.
Por fim, o último a falar, Manoel Francisco retomou a história do testamento de
Rosa Osório Marques. Manoel Francisco foi a pessoa que encontrou o testamento no
Arquivo Público, primeiro o colocaram para copiar o material porém “eles não
quiseram me dar todo o relatório, não quiseram me dar todo o documento”. Após
conversar com o funcionário do Arquivo soube que a “parte que vai no cartório” foi
alterada pelo Zé Marques: quando o “terreno” foi inventariado ele, Zé Marques, não
chamou os ex-escravos para assumir sua parte no testamento de Rosa. Além de não
avisar seus ex-escravos de que a terra lhes pertencia, agora por direito de herança, Zé
Marques ainda “escondeu” mais uma faixa de terra. E finalizou sua fala explicando:
118
que “[Zé Marques] deu aquele terreno, o que dava pro nego naquele tempo era aceito,
[pois] não sabia nada, não sabia lê”, haveria, contudo uma parte oculta, velada, que
caberia aos pesquisadores definir.
Após essa primeira reunião, não foi servido o “café” que se tornou um hábito a
partir das reuniões seguintes. Rodrigo, eu e Cíntia Rizzi não havíamos comprado
passagem de volta para Porto Alegre pois haviam nos garantido que poderíamos pegar
carona na Kombi dos “agentes”. Kátia e Adriana, “agentes”, filhas de Francisco,
foram com seus pais para Capão da Canoa deixando vagos apenas dois lugares na
Kombi. Retornei para Porto Alegre no carro da Procuradoria da República com Daisy,
Miriam, o procurador e um motorista. Como se tornou um hábito, a reunião terminou
por volta das 17h. Paramos para lanchar em Osório/RS. Cheguei em minha casa por
volta das 21h.
3.4.2 A escolha de um nome para a Associação.
A escolha de um nome para a associação de Morro Alto se deu em 22 de
setembro de 2001. Nessa data ocorreu, também, a visita de Diosmar e Ilse, moradores e
da diretoria da associação da comunidade de Casca, acompanhados por representantes do
Movimento Negro Unificado para um troca de experiências sobre o processo de
titulação. Essas pessoas se pronunciaram antes que fosse dada oportunidade as pessoas
de Morro Alto para que falassem. Na fala de Diosmar ele frisou a correlação entre ser
dono” e ser “herdeiro”, uma vez que em Casca também houve um legado de terras aos
negros por parte de uma proprietária, branca, Maria Quitéria do Nascimento. Para
Diosmar, Casca é “terra de escravo” e o testamento vem a comprovar essa condição,
119
afinal ele é “um testamento para os escravos”. (Escravo + Dono < Herdeiro: em Casca as
categorias escravo e dono estão englobadas pela de herdeiros.)
Quando a questão passa a ser fazer valer um direito, que já estaria garantido desde
a época do testamento, é que as terras de Casca passam a ser “terras de quilombo”: “sabe
que a pessoa é fraca, a pessoa é de menos movimento, então eles tão querendo ‘engolir’
as pessoas mais fracas”. E é para evitar ser “engolido” que a comunidade de Casca se
une para reivindicar seu reconhecimento como quilombo. Na compreensão de Diosmar
as terras, após serem reconhecidas como de quilombos, passam a ser “respeitadas” e era
isso que a Comunidade de Morro Alto iria passar a receber, respeito, caso suas terras se
justifiquem e sejam de quilombos.
Na seqüência houve a descrição de como se deu a “trajetória” de regulamentação
da associação de Casca e da importância de que a associação fosse regulamentada para o
desenrolar dos trâmites de reconhecimento da própria Fundação Cultural Palmares, por
parte de Ubirajara Toledo no Movimento Negro Unificado. Cátia, que se reconhecia
como quilombola de Morro Alto e agente do movimento negro, estava conduzindo parte
da reunião e propôs que fossem sugeridos nomes para a associação para que fosse
organizada uma votação para a escolha, afinal, “quando a gente tem um filho acho que a
primeira coisa que a gente quer é colocar um nome. Houve, nesse momento, apenas
uma sugestão e ela partiu do presidente interino da associação, Wilson Marques da Rosa.
Wilson não sugeriu dar o nome de Rosa Osório Marques à associação que se
estava criando, mas o inverso, dar a associação a Rosa Osório Marques. O nome de Rosa
não foi dado a associação, mas Rosa recebeu a própria entidade. Existiria aqui uma troca
de dádivas? Acho que sim. O nome da associação deveria ser dado pois foi Rosa a
pessoa que passou esse testamento”. Por conta desse “ato importante” ele fundamentou
120
que o nome da associação fosse dado a ela. Manuel Francisco, o Manuel “Chico”,
presidente de honra da associação, reforçou esse ponto de vista fundamentando que “o
principal foi ela quem fez, fez a doação”. Cátia sugeriu que se pensasse melhor e a
votação fosse deixada para outro dia. Ilse, secretária da associação, mãe de Cátia, sugeriu
a Wilson que esclarecesse “quem foi essa pessoa”.
Wilson reforçou a idéia de que Rosa Osório Marques teria feito um testamento,
em 1887, para seus “24 escravos”. Para ele, o estudo dos “antropólogos” iria, justamente,
delimitar o tamanho” da fazenda”. Essa “fazenda”, de acordo com Wilson, “é da
Cortiça à Casa de Telha, em Sanga Funda”, no sentido sul-norte, e “da Barra do João
Pedro até pra cima do morro”, no sentido leste-oeste, perfazendo um total de28
[quilômetros] por 12”. Ele prossegue explicando que Rosa “não tem filhos” e, por isso
passa para seus escravos”. Tanto Wilson quanto Manoel “Chico” se autoreconhecem
como descendentes de ex-escravos, herdeiros de Rosa Osório Marques.
O presidente da associação externou, na época, sua visão bastante política do
cenário no qual está se dando a estruturação da associação. Ele afirma que “todos aqui
têm o seu partido”, lembro que Wilson é filiado ao PDT, “o partido que vier dar uma
mão vai estar com o campo livre”, porém deveria lembrar que “todo mundo estará vendo
quem ajudar”, ou seja, um controle social estreito estava sendo feito sob eles. Esse
comentário também era endereçado a Ubirajara Toledo e Arnaldo, ambos presentes na
reunião e filiados ao PT. Obviamente, Wilson percebia o processo todo como de certa
forma vinculado à lógica da política de negociações partidárias. Por outro lado, a
representação de um pertencimento legítimo a Morro Alto, além de passar pela
descendência em relação aos “herdeiros de Rosa”, também estava vinculado ao
trabalhar com a terra”, ou seja, um sentimento de pertença que se construía pela via
121
étnica e de classe. (Escravo < Herdeiro = Dono. Em Morro Alto, a categoria escravo
estava englobada pela de herdeiro que representava, para essas pessoas, a idéia de ser
dono das terras da comunidade).
Em certos momentos de fala, a categoria “herdeiros” estava sendo operada como
uma categoria que afirma uma fronteira interna exclusiva da própria comunidade de
Morro Alto. Em Casca, a categoria “herdeiro” era operada como uma categoria exclusiva
em relação aqueles que não viviam na comunidade. De certa forma, em Casca, a
categoria jurídica de remanescente de quilombo estava sendo acionada para assegurar um
direito que já havia se legitimado através do testamento. Falta saber como essa mesma
categoria estava sendo acionada em Morro Alto.
3.4.3 Definindo quem pode ser sócio da Associação Rosa Osório Marques.
Essa discussão é fundamental para compreender como os diferentes atores estão
colocando em ação paradigmas de interpretação do que vem a ser “remanescente de
quilombos”. Apresentar essa discussão é importante, pois ela rompeu com o tom do
estatuto de Casca, apresentado como um modelo possível a ser seguido. Nesse estatuto
ficou definido que poderão ser associados “os moradores que tiverem propriedade
fundiária em Casca e que também participam da vida coletiva da Comunidade”.
Justamente os dois critérios que sofreram duras críticas em Morro Alto. A questão da
propriedade fundiária foi descartada por unanimidade e com pouca discussão por parte da
assembléia, pois as pessoas de Morro Alto compreendiam que seu pleito envolvia,
justamente, aqueles que não possuíam propriedade.
O artigo 3
o
do Estatuto da Associação Comunitária Rosa Osório Marques havia
sido definido da seguinte maneira em uma reunião de outubro de 2001: “poderão ser
122
associados moradores e co-herdeiros remanescentes de quilombo de Morro Alto e que
também participem da vida coletiva da comunidade”. A questão colocada foi de que a
redação desse artigo teria sido proposta sem discussão com a assembléia presente na
votação do estatuto que simplesmente anuiu calada. A versão de Morro Alto é,
visivelmente, uma adaptação da versão de Casca onde foi acrescido que os moradores
deveriam ser “co-herdeiros remanescentes de quilombos de Morro Alto”. Sob a ótica do
presidente da associação, o estatuto de Morro Alto deveria ser aprovado o mais rápido
possível já que era “copiar uma coisa de lá e passar para cá”. Daisy Barcellos,
antropóloga, tentou argumentar explicando que em Casca houve todo um processo de
discussão na comunidade para se chegar a versão final do estatuto. O presidente da
associação argumentou dizendo que “a luta era a mesma”, “a luta histórica era a terra”.
Cátia, “agente”, chamou atenção que em outras comunidades levam até uma tarde para se
votar um artigo, ao que Wilson respondeu: “o problema é deles levar onze meses para
nascer”.
A pressa de Wilson também é compreensível pois as obras de duplicação da BR
101 estavam para iniciar a qualquer momento. Sua aflição era constituir uma associação
registrada para se impor coletivamente frente ao então DNER e pleitear, além de
reconhecimento, políticas compensatórias para a comunidade. Porém, esse cenário
político não justificava a pressa com que a discussão sobre certos artigo importantes
estava sendo deixada de lado. Outra “agente” chamou atenção para o fato de que naquela
reunião de discussão do estatuto havia mais “agentes” do que “moradores”. Daisy
sugeriu que se desse mais tempo para a comunidade, ao que Wilson respondeu que era
essencial aprovar o estatuto” para tornar “legal o movimento. Como se para que a
mobilização que estava acontecendo ali fosse reconhecida pela sociedade houvesse a
123
necessidade de algum tipo de chancela “legal”, semelhante ao paradigma herdeiro :.
remanescente de quilombo.
A primeira discussão sugerida foi quanto à “participação na vida coletiva”. Os
“agentes” acharam que a expressão explicava muito pouco e os antropólogos a acharam
muito “genérica”. Para o presidente da associação, para que fosse definido algo “forte”,
essa expressão deveria ser suprimida e o direito à associação deveria ficar restrito aos
remanescentes de quilombos”. Uma agente perguntou “o que significa ser
remanescente? Um descendente de terceira, quinta, quarta ordem?”. Uma antropóloga
respondeu “quem reivindicar ser”. Wilson assumiu a palavra e explicou que era “quem se
achasse no direito”, disse que ele poderia ser associado pois “ele era”, agora outros
deveriam “se justificar para nós” da associação. A secretária da associação, mãe das
“agentes” Kátia e Adriana, que coordenavam o processo de votação do estatuto,
estabeleceu a correlação entre co-herdeiros e herdeiros: quem é herdeiro é co-herdeiro.
Uma antropóloga chamou atenção para o fato que a idéia de remanescentes envolve
diretamente aqueles que “resistiram na terra, que têm vínculo com a terra mesmo que
seja através de laço de parentesco ou seja lá como for”.
Essa colocação, curiosamente, foi interpretada como se a pesquisadora estivesse
restringindo o acesso à associação aqueles que viviam na terra e não que guardavam
relação com ela, o que englobaria os que vivem em outros municípios mas participam da
manutenção do território étnico da localidade. Os agentes entenderam que a colocação
era descabida pois “aqueles que foram expulsos dali” teriam direito de “resgatar a terra
por estar “resgatando uma parte da história”, era um “resgate cultural”. Além disso,
deveria ser valorizada “a origem de quem é daqui”. A antropóloga argumentou que a
associação não era o equivalente necessário ao conjunto dos demandantes pois tem outras
124
funções além de pleito territorial. A “agente”, filha de alguém da comunidade que vive
em Capão da Canoa, ela mesma vivendo em Porto Alegre, destacou que quando há
oportunidade de “organizar uma comunidade” e “estar fazendo uma associação”, o
espírito deveria ser de “alcançar” o máximo de pessoas.
As discussões retornaram à questão dos que “participam da vida coletiva” da
comunidade. Wilson interpretou que isso acabariafechando aos remanescentes ”. A
“agente” releu o artigo do estatuto. Daisy questionou o motivo de colocar a expressão co-
herdeiro como definidor de sócio. A “agente” explicou que a palavra co-herdeiro havia
sido colocada no texto como conotação de englobar as categorias “herdeiro direto,
herdeiro indireto”, enquanto a expressãoparticipam da vida coletiva” serviria para
facilitar a associação daqueles que não guardassem “relação consangüínea direta” com
pessoas da comunidade. Não há como negar que um dos valores acionados na construção
do significado de ser remanescente de quilombos na comunidade de Morro Alto passava
pelo princípio da descendência, traduzida na categoria “herdeiros”.
O problema, para o presidente interino da associação, continuava sendo a
questão do coletivo”. Uma pessoa vinculada ao grupo dos agentes sugeriu modificar a
expressão para “aceitos pela comunidade” e uma antropóloga completou: “reconhecidos
como membros da comunidade”. Wilson respondeu “dá na mesma”. Outra “agente”
colocou “que uma professora que tem uma relação direta com a educação também tem
relação com a vida coletiva da comunidade”. Contra esse argumento se colocou que os
enquadrados nessa categoria poderiam simplesmente pleitear um local para viver na
comunidade já que fariam parte dela. A antropóloga disse que essa pessoa deveria
guardar algum “vínculo de identidade, de pertencimento com a comunidade. Em
assembléia, os representantes ali reunidos decidiram retirar a “questão da vida coletiva
125
do estatuto”, pois já constava a noção de “co-herdeiro”. Afinal, na compreensão de todos
na comunidade negra de Morro Alto, as pessoas seriam, de alguma forma, todas
herdeiros.
3.5 Algumas Considerações Finais.
Não podemos negar que o movimento negro, através de seus projetos políticos ou
do universo de sentidos que conferiu a expressão remanescente das comunidades de
quilombos, influencia ou tenta influenciar de alguma forma a concepção que as
comunidades possuem sobre o assunto. Afinal,organizar uma comunidade” não é
pouca coisa, é imaginá-la dentro de um projeto. Não se pode esperar, contudo, que as
comunidades aceitem ser imaginadas de forma passiva. Há um claro processo de
interdependência: o movimento negro, de forma geral, depende das comunidades para
materializar seus projetos imaginados, ao passo que as comunidades dependem do
movimento negro para a solução de questões, algumas relacionadas à consciência de seus
direitos enquanto minoria nacional. Essa relação de interdependência é frouxa. Como o
movimento negro encontra-se fracionado em vários grupos de diferentes concepções e
ideologias, as comunidades podem optar, situacionalmente, em se alinhar a esse ou
aquele grupo. A assimetria das trocas é ambivalente e se dá em planos: no plano local o
movimento negro depende da comunidade para por em prática suas metas; no plano
macro – estadual, no caso – a comunidade depende do movimento negro para dar
visibilidade a sua existência frente à órgãos de Estado e, muitas vezes, representá-la.
Essa configuração também se dá na relação estabelecida entre comunidade e
equipe de pesquisa, com uma diferença: se a comunidade não quiser ou não concordar
em aceitar uma equipe de pesquisadores ou determinado pesquisador, não há relatório,
126
laudo ou qualquer tipo de pesquisa antropológica que possam ser elaborados. Nessa
situação, há um fluxo de reciprocidade assimétrica entre pesquisadores e pesquisados,
porém o empoderamento da comunidade frente a uma equipe de pesquisa é muito grande
e não pode ser subestimado. A relação de interdependência da comunidade com os
pesquisadores e vice-versa é estreita e, na balança das relações de poder, ouso afirmar
que tendem para o lado da comunidade. As comunidades controlam e filtram, em parte,
as informações sobre si mesmas. Afinal se outros podem imaginá-las por que elas não
poderiam imaginar a si mesmas?
Trata-se de uma comunidade, remanescente de quilombos, imaginada por alguns
e vivida por outros que também buscam ter autonomia para se imaginar. No âmbito das
discussões sobre “comunidades imaginadas”, formas modernas de “nacionalismo” foram
identificadas como meras repetições de modelos importados da Europa durante o período
do colonialismo. O Estado-Nação era visto como a única roupagem através da qual a
comunidade imaginada poderia administrar recursos que permitiam a construção de uma
consciência nacional, um dever com a pátria. Pessoas que viviam na Ásia, África e na
América do Sul eram vistas “como meras consumidoras de modernidade” (Chaterjee
2000: 229). Nessa “comunidade imaginada” (Anderson) havia espaços para identificação
de modelos, mas não para a expressão de diferenças. Chaterjee identifica dois
movimentos na instituição de um Estado nacional, na Índia: primeiro, um movimento de
construção do Estado nacional como uma forma de oposição ao colonialismo; segundo, o
movimento de resistência contra a intervenção estatal naquilo que o autor chama “cultura
nacional”. Trata-se da “resistência” contra a “normalização” cultural que criava, dentro
da “comunidade imaginada” de Anderson, locais de subordinação das diferenças.
127
A releitura da teoria de Anderson sobre “as comunidades imaginadas” amplia a
questão e reelabora parâmetros de discussão. Ao invés de manter sua análise atrelada a
dicotomia de campos políticos “da elite” e dos “subalternos”, Chaterjee assinala que
ambos os campos acabam por “moldar a forma emergente” do outro. Reconhecer a
legitimidade de questões da política “subalterna” seria “um reconhecimento, no campo
da elite, de uma presença muito real de uma arena de política subalterna sobre a qual ela
deveria exercer seu domínio, mas que também tinha que ser negociada em seus próprios
termos para fins de produção do consentimento” (Chaterjee 2000: 237). Acredito que
isso tenha ficado claro ao longo da análise que escrevi no capítulo 3. A política nacional
sobre a questão quilombola ao mesmo tempo em que impõe um controle rígido sobre a
forma de construção da identidade coletiva do grupo, dá sinais de que essa é uma área
onde a negociação depende da manifestação das comunidades na construção de suas
demandas. As formas políticas tidas como subalternas não apenas se familiarizaram com
as instituições de “elite” como adaptaram sua forma de agir a elas. As reuniões de Morro
Alto são um exemplo disso, um local estruturado de acordo com reuniões que poderiam
ocorrer no Ministério Público Federal em Porto Alegre.
Nem toda a “comunidade imaginada” caminha no sentido da construção de um
Estado nacional, isso seria se adequar a um modelo hegemônico imposto pela civilização
ocidental. No Brasil, no caso das Comunidade Remanescentes de Quilombos, acredito
que as mesmas querem ver sua “nacionidade” reconhecida como um modelo legítimo e
respeitada como uma diferença que co-existe com outras, mais ou menos legítimas,
dentro do Estado-Nação brasileiro. O termo “nationness” foi utilizado pela primeira vez
por John Boreman que o cunhou por comparação com o nacionalismo. O nacionalismo é
uma gama de “sentimentos conscientes que tomam a nação como um objeto de devoção
128
ativa”, enquanto a “nacionidade” está mais ligada “às intenções e práticas cotidianas que
produzem um sentimento intrínseco e freqüentemente não articulado de pertencer, de
estar em casa” (Verdery 2000).
No caso específico de Morro Alto, a expressão da “nationness” está sendo
construída sobre alguns valores: descendência e relação com a terra são dois deles.
Ambos servem de mote de expressão dessa “nacionidade” cuja importância é realçada
em um campo de interações intersocietário e que acabou por viabilizar a permanência das
pessoas no território de Morro Alto. Como se expressa essa “nationness” e como ela
serviu de base para o processo de territorialização pelo qual passou a comunidade será
analisado no próximo capítulo.
129
4. As relações de parentesco em diálogo com a construção do sujeito
de direitos.
4.1 Descender dos herdeiros de Rosa : segurança em ter uma
residência : a) Rosa Osório Marques : aquela que doou terras para
seus “escravos, digo, ex-escravos e ex-escravas”; b) Ser herdeiro do
testamento de Rosa : vitória no judiciário nas décadas de 60 e 70;
4.2 Descendência : composições no jogo de alianças, a) “Namoro”,
“casamento” e “filhos”: a história de duas mulheres negras da
comunidade de Morro Alto; b) Maria Laurinda da Silva : um
“casamento” entre as décadas de 20 e 30, c) Lídia Laurinda da Silva
: “namoro” e “casamento” durante as décadas de 40 e 50; 4.3
Situacionalidade e poderes a partir da estória dos casamentos de oito
mulheres da comunidade negra de Morro Alto; a) Clarinda e
Cândida : o casamento como “destino”; b) Mulheres que vem “de
fora”; c) Carmem : “aí, eu seu que não, não tinha perigo, era um
homem muito caprichoso, muito trabalhador...”; d) Raimunda : o
início da construção da personagem “Rainha Jinga”; e) Beatriz e
Marinete : casamentos modernos ou nem tanto?; 4.4 Parentesco para
além do sangue; a) Coberta d’Alma : um ritual da morte como
constituinte do parentesco, b) Interpretações sobre a Coberta d’
Alma; 4.5 O jurídico e o sangue; 4.6 Algumas considerações finais.
Sistematicamente a análise do idioma do parentesco é uma das peças-chave para a
compreensão do conjunto de valores morais que funciona nas mais diversas comunidades
étnicas e modernas (Fox 1986:15). O parentesco é fator de coesão social, é através dele
que as pessoas se protegem do anonimato, encontram um lugar no mundo e afirmam
vínculos e obrigações de reciprocidade. Sangue é um dos operadores do parentesco : em
muitas comunidades, “aqueles que partilham nosso sangue partilham de uma parte de nós
próprios e são, por definição os que nos são mais familiares entre todos” (Fox 1986:16).
Mas os casamentos geram alianças, trazendo novos parceiros para o mundo de
“parentes”. Compartilhar de vínculos de parentesco reforça a obrigação de ajuda mútua e
130
os laços de reciprocidade entre grupos familiares, sejam eles compromissos advindos por
aliança ou por relação de filiação, enfim situa o indivíduo em uma “teia” de relações.
Como quis demonstrar no capítulo anterior, um dos focos de discussão sobre a
definição de quem poderia fazer parte da associação dos quilombolas de Morro Alto
girou exatamente em torno do conteúdo da categoria co-herdeiro. Essa categoria, mais do
que englobar apenas as relações de descendência também foi pensada como forma de
englobar as alianças. Por isso, nesse capítulo quero analisar as estratégias e valores
utilizados no recrutamento de parceiros para a efetivação de alianças matrimoniais sem
descuidar de que existe uma dimensão política de recrutamento e outra mais íntima, de
afinidade, baseada nas relações que aproximam os indivíduos uns dos outros.
O sistema de parentesco encontrado em Morro Alto (Barcellos 2004) é cognático
(Fox 1986:176) no sentido de que a descendência é invocada situacionalmente, tanto pelo
lado dos filhos quanto das filhas, todos os descendentes de um determinado antepassado
são incluídos nos grupo. Esse grupo de filiação cognático adquire contornos não
restritivos, ou seja, o parentesco é acionado perante todos aqueles que descendem de um
antepassado comum em situações que demandem a ação de redes de solidariedade, como
no caso da obrigação de prestar alimentos. No caso do acesso à terra, o grupo opera
como pragmaticamente restritivo: os descendentes não se assumem enquanto membro de
todos os grupos com os quais guardam alguma relação de parentesco e se encontram
vinculados a uma base territorial, mas situacionalmente oscilam entre uma linha de
descendência e outra dependendo daquela que, na ocasião, seja capaz de lhe proporcionar
maior segurança na posse de um local de residência.
“O grupo de filiação não restritivo opera suas reivindicações sobre os
domínios de seu fundador, enquanto que os grupos de filiação restritiva
131
operam em relação à posse efetiva de frações desses domínios ou à
residência efetiva nos mesmos” (Fox 1986:195).
Operar um idioma de parentesco fundamentado no princípio cognático
prgamaticamente restritivo é estratégico em Morro Alto: no caso de um grupo tornar-se
demasiadamente extenso para o tamanho da área que ocupa dentro da comunidade está
garantida a possibilidade de uma redistribuição de pessoas entre outros grupos de
parentes que poderão evocar seu direito de acesso à terra. Existe, uma ideologia que
permeia o sistema de parentesco ditando os valores que determinam a situacionalidade
das alianças, dos recrutamentos e das exclusões. No caso dos casamentos, podemos
afirmar que aqueles que firmaram alianças com pessoas de fora da comunidade são os
primeiros a sair da terra do grupo familiar em caso de conflito tendo que utilizar outras
estratégias para permanecer na comunidade como a compra de terras.
4.1 Descender dos herdeiros de Rosa: segurança em ter uma residência.
Como as falas colocaram em evidência no capítulo anterior, ser “herdeiro” é uma
situação valorizada em Morro Alto, é uma garantida jurídica em deter uma residência.
Analiso como foi o processo de empoderamento dessa parcela dos moradores da
comunidade para situar o leitor no campo de discussões sobre as “teias” de relações de
parentesco que trago a seguir.
a) Rosa Osório Marques: aquela que doou terras para seus “escravos, digo, ex-
escravos e ex-escravas”.
Rosa Osório Marques descendia da duas importantes famílias da região do litoral
norte do RS, com terras em Morro Alto, 5
o
. distrito de Osório: os Marques e os Osório.
132
Filha de José Marques da Rosa e de Isabel Maria Osório, Rosa nasceu em 1827 e veio a
falecer em 1887 sem deixar filhos. Ela casou com Ponciano Nunes da Silveira, que
faleceu em 1867 e, antes de casar com Rosa, havia casado com sua irmã Ana Osório
Marques. Um dos irmãos de Rosa e Ana, Pascoal, casou com a sobrinha de Ponciano,
Ana Osório Nunes que faleceu, também sem filhos, em 1859, enquanto o irmão de
Ponciano, José Nunes da Silveira, casou-se com a prima de Rosa, Maria Bernarda
Marques. O adensamento dessa rede de parentesco era estratégico no sentido de manter
as terras familiares sob o domínio de um mesmo a família, controlar o fluxo de prestígio
político local e evitar que fossem definidos os limites claros entre as propriedades que,
embora legalmente registradas, possuíam fronteiras imprecisas (Barcellos, 2004). (Veja
Anexo 1).
As famílias Marques da Rosa e Nunes da Silveira chegaram ao Rio Grande do
Sul, oriundos de Santa Catarina, em Conceição do Arroio (atual município de Osório),
comprando terras no distrito de Morro Alto no ano de 1806. Os irmãos Bernardo
Marques da Rosa e José Marques da Rosa juntamente com o sócio Manuel Nunes da
Silveira compraram as datas concedidas em 1796 a Marcelino Paim de Andrade, Simão
Paim de Andrade, Antônio Paim de Andrade e João de Andrade. Os irmãos Marques da
Rosa eram filhos de um imigrante açoriano vindo da ilha do Arraial e de uma mulher
natural de Conceição da Lagoa, atual Laguna/SC. Bernardo e José trouxeram consigo ao
Rio Grande do Sul alguns escravos que já lhes pertenciam em Santa Catarina. A
manutenção do plantel escravos, iniciado pela família, potencializou a acumulação de
propriedades, por parte dos Marques da Rosa e dos Nunes da Silveira, na região onde
hoje se encontra a comunidade de Morro Alto (Barcellos et al. 2004:39-40).
133
A concessão de terras adquirida pelos sócios vindos de Santa Catarina foi
originariamente requisitada pelos Paim e Andrade e por Andrade no ano de 1804. Essa
requisição dizia respeito às terras nos Faxinais do Morro Alto e se fundamentava no fato
de que todos eram pessoas “extremamente pobres”, que viviam de criar reses em terras
arrendadas e, no caso de Simão, regularizar uma posse que já existia. A expedição da
concessão baseou-se no fato de que os campos foram considerados devolutos. Os limites
das datas concedidas eram: ao norte a Lagoa da Casa de Telhas (atual Lagoa dos
Quadros), a Lagoa do Ramalhete e outra lagoa já extinta que as teria ligado além da
própria divisa do ranchos dos suplicantes que ali viviam; ao leste, o sangradouro que
estabelece a ligação entre a Lagoa das Malvas e a Lagoa da Casa de Telhas; ao sul a
Lagoa do Morro Alto; e, a oeste, o arroio da Eguada. No momento de vender a concessão
aos Marques da Rosa e aos Nunes da Silveira, a divisa da fronteira norte, que se
fundamentava no limite dos ranchos dos primeiros adquirentes da concessão, foi
formalizada a partir do seguinte critério: “uma palmeira que está no Espigão do Morro
Alto” (Barcellos et al, 2004:35-36).
Utilizando-se da imprecisão dos documentos e do vácuo jurídico que regulava a
aquisição da propriedade no Brasil entre os anos de 1822, data do fim do regime das
sesmarias, até 1850, data da Lei de Terras, o limite norte das terras compradas pelos
Marques da Rosa e pelos Nunes da Silveira se expandiu. Nesse período as terras dos
sócios passaram a englobar ao norte, terrenos situados no Ribeirão, Borba, Espraiado e
na Cangalha/Pedras Brancas (Barcellos et al. 2004:41). Os Nunes da Silveira, os
Marques e os Marques da Rosa concentravam-se em locais específicos na área
administrativa do distrito de Morro Alto, então vinculado ao município de Osório, onde
mantinham senzalas e infra-estrutura de produção como atafonas e fornos para a
134
produção de açúcar: os Osório na localidade de Morro Alto; os Nunes da Silveira na
Prainha; os Marques da Rosa na Barranceira; e, os Marques em Aguapés e no Ribeirão.
Rosa era filha de um Marques da Rosa e de uma mulher da família Osório tendo sido
herdeira de parte dos bens de seu marido um Nunes da Silveira. Em 1887, ela dividia
suas heranças com uma profusão de herdeiros, primos (as), irmãos (as), tios (as) que
praticamente tornava impossível definir o que realmente era o “quinhão hereditário” de
cada pessoa (Barcellos, 2004).
O inventário de Rosa Osório Marques contemplou 24 escravos, 11 dos quais
ainda se encontravam vinculados a ela e, indiretamente, a sua família através de contratos
de prestação de serviços. Eram eles: Merêncio, Felício, Ambrósio, Romeu, Sebastião,
Eufrásia, Esperança, Laura, Idalina, Maria e Carlota (Barcellos et al 2004: 91). Outros 13
ex-escravos ocupavam, muito provavelmente, a posição de libertos na época do
testamento: Theodoro; Nazário; Manuel; Polucena; Jacintha; Henriqueta; Fortunato;
Antônio; Isidoro; João; Theresa; Felisberta e Maria Polucena (Barcellos et al 2004:95). O
texto do testamento de Rosa Osório Marques, datado de 1887 e que consta em seu
inventário aberto em 1888, afirma: “deixo para todos os meus escravos, digo, ex-
escravos e ex-escravas cento e oitenta braças de terras de matos que possuo na fazenda
do ‘Morro Alto’, separadamente entre eles para darem uso e fruto passando o destes a
seus filhos e daqueles pela mesma forma sem que possam vender ou permutar”,
(Barcellos et al. 2004:95). A ex-escrava Idalina foi contemplada, ainda, com “cinquenta
reses de criar” (Cópia do Testamento, autos do Processo 175/66/).
Possivelmente, alguns dos herdeiros de Rosa jamais souberam que foram
contemplados com terras por sua ex-senhora. Muitos descendentes desses negros
herdeiros permanecem no território da comunidade negra de Morro Alto, juntamente com
135
outros descendentes de negros que ali viviam antes e depois da abolição. Ao longo do
livro de Barcellos (2004), ficam claras as filiações e descendências de Eufrásia, Jacintha,
Merêncio, cujos descendentes se concentram na localidade de Morro Alto; Theresa, cujos
descendentes se fixaram nas localidades de Morro Alto e Ribeirão; Felisberta, que veio a
se fixar no Espraiado; e Idalina e Polucena que se fixaram no Faxinal do Morro Alto.
Praticamente todos os “herdeiros dos ex-escravos de Rosa” participaram das reuniões
com exceção daqueles que constituíam a linhagem de Idalina pois vivem em uma parte
do território étnico de Morro Alto onde a dependência cotidiana quanto às relações de
trabalho com brancos é diária.
b) Ser herdeiro do testamento de Rosa: vitória no judiciário nas décadas de 60
e 70.
Em 25 de agosto de 1966, a empresa privada do município de Osório/RS
especializada em comércio, agricultura e pecuária, denominada José Agostinelli S. A.
(JASA) moveu uma ação de usucapião tendo como alvo a regularização de uma “gleba
de terras” localizada no “lugar” chamado Morro Alto que ainda se localizava no
município de Osório/RS. A empresa entendia ter esse direito por ter adquirido de Olina
Gonçalves da Silva “a posse e os direitos e ações que a mesma detinha sobre uma área de
terras, formada por campos de cultura e pedreiras”. Essa negociação entre a empresa e
Olina foi registrada através de uma “escritura pública de cessão de direitos”, datada de 04
de dezembro de 1964, em Capão da Canoa/RS, município vizinho a Osório/RS.
A “gleba” adquirida foi assim descrita na petição inicial do processo:
“UMA ÁREA DE TERRAS DE CULTURA E PEDREIRAS, situada
no lugar denominado Morro Alto, distrito de Maquiné, Município de
Osório, com a superfície de duzentos e vinte e três mil trezentos e
136
noventa e nove metros quadrados e oitenta centímetros também
quadrados (223,339,80 m²), com o seguinte perímetro e característicos:
partindo do marco zero, com o azimuth magnético de 95 º 30’, no
extremo sul da propriedade e na divisa desta com terras ocupadas por
João Fame, segue o caminho rumo Norte, no alinhamento da Estrada
Federal, com um percurso de duzentos e oitenta e um metros e oitenta e
cinco centímetros (281m85), até encontrar a estação n º 1, na extrema
sul da propriedade de Ignácio Ramão da Silva; desse ponto, com o
azimuth magnético de 83 º33’, segue o perímetro rumo a Oeste, com
um percurso de quatrocentos e trinta metros e quarenta centímetros
(430m40), até encontrar a estação n º 2; desse local, com o azimuth
magnético de 270 º00’, segue o caminhamento rumo ao norte, com uma
extensão de trinta e quatro metros (34m00), até encontrar a estação n º
3; desse local, fletindo rumo a Oeste, o azimuth magnético de 78 º
28’30”, segue o caminhamento numa extensão de quarenta e três
metros e setenta centímetros (43m 70), até encontrar a estação n º 4;
desse ponto, com ângulo magnético de 185 º 53’, segue o perímetro,
sempre rumo a Oeste, com um percurso de duzentos e oitenta e quatro
metros e quarenta centímetros (284m40), até encontrar a estação n º 5,
desse local, com ângulo magnético de 128
o
.35’30”, na divisa de terras
de Francisco Manoel Antônio, também conhecido com Manoel
Theresa, segue o perímetro rumo sudoeste, com percurso de cento e
cincoenta e um metros e setenta e cinco centímetros (151m75), até
encontrar o marco n º 6; desse local, como ângulo magnético de 102
O
35’, segue o perímetro rumo a Sudeste, numa distância de cento e
sessenta e oito metros (168m00), até encontrar o marco nº 7; desse
ponto, com azimuth magnético de 90
O
, segue o caminhamento um
percurso de trinta e quatro metros (34m00), até encontrar a estação n º
8; desse ponto, com o ântulo de 228
O
22’, segue o perímetro, em linha
reta, na divisa de terras ocupadas por Alípio Cândido da Silveira e João
Famel, com um percurso de seiscentos e cincoenta e oito metros
(658m00), até encontrar o marco zero, que foi o ponto de partida”
(Cópia da Petição Inicia, proc. 175/66 comarca de Osório).
Se o leitor achou a linguagem que descreve a gleba quase ininteligível ainda
chamo atenção para o fato de que a mesma consta na “pública escritura de cessão de
direitos” que Olina e João Júlio, seu genro, vieram estabelecer com a empresa Jo
Agostinelli S. A., assinada a rogo por Bruno Alberto Endress e por testemunhas, já que
nem Olina, nem João Júlio sabiam ler. No mesmo documento de “cessão de direitos”, o
escrivão distrital de Capão da Canoa/RS chama atenção para o fato de que a escritura foi
lavrada na presença do “doutor JoAgostinelli, brasileiro, casado, advogado,
137
domiciliado e residente na cidade de Pôrto Alegre, ora aqui de passagem” (grifo meu,
cópia da escritura de “Cessão de Direitos” lavrada no livro de Contratos do cartório).
Como se José Agostinelli simplesmente estivesse passando por Capão da Canoa/RS para
registrar suas transações em azimuths, ângulos e graus...
A legitimidade de Olina para celebrar esse tipo de transação, sob o ponto de
vista da JASA, estava no fato de que seus pais, Eufrázia Gonçalves da Silva e Roque
Gonçalves, viviam na “gleba” requisitada por mais de 40 anos de forma “mansa, pacífica
e pública”. Além disso, a petição que deu início ao processo destaca que Olina e sua
família mantiveram naquela área “culturas diversas, da mesma forma como exploraram,
direta ou indiretamente, a pedreira ali existente”, tendo construído uma “pequena casa de
moradia” e colocado um cerca “na face que dá frente para a estrada, e perfeitamente
demarcada no restante”. A cerca, evidentemente, fora colocada na fronteira onde o risco
de expropriação era maior, no lado do terreno que fazia divisa com a estrada que foi
construída na época da construção do atual traçado da BR 101. As demais divisas eram
apenas “demarcadas”, pois a possibilidade de compartir as mesmas com os vizinhos era
mais viável.
Assim, sobre os direitos de propriedade conquistados por Olina por anos de posse
do terreno, por ela e sua família, é que Agostinelli requereu o usucapião para conquistar e
registrar o título de domínio da área que não se encontrava, segundo ele, inscrita no
Registro de Imóveis. Para fazer prova de suas alegações indicava as seguintes
testemunhas: Plínio Fernandes; Guilherme Francisco Antunes e Adão Caetano dos
Santos que compareceriam acompanhando o advogado da empresa. Pedia, também, o
comparecimento de João Fame, Alípio Cândido da Silveira, Francisco Tereza, Marino
138
Albino, Ramão Inácio da Silveira e Olina, Iraci e seu marido João Júlio que permaneciam
vivendo em uma parte do terreno.
Surpreende que as pessoas que teriam “vendido” seus direitos para José
Agostinelli não tivessem o mesmo grau de confiança que outras testemunhas precisando
da mediação do Estado para que as obrigasse a comparecer ao tribunal. Da mesma forma,
é curioso que o advogado solicitasse a intimação de “Francisco Tereza”, nome informal
de Manoel Francisco Antônio, através do qual ele era conhecido na comunidade de
Morro Alto da forma tradicional e simplesmente informasse o comparecimento de
Guilherme Francisco Antunes, irmão de Francisco Antônio. Fica evidente que a empresa
de José Agostinelli, embora com sede no município de Osório/RS mantinha relações com
pessoas que viviam na localidade de Morro Alto embora não as mantivesse mais com
Olina e seu marido que teriam vendido as terras.
A ação da empresa José Agostinelli – JASA, é contestada em 23 de novembro de
1966 por Maria Thereza Joaquina e por Alípio Cândido da Silveira e sua esposa Aurora
da Conceição Silveira. De acordo com o advogado que assina a contestação essas pessoas
vêm aos autos “por si e pelos demais condôminos, todos herdeiros e sucessores de ex-
escravos” que permaneceram vivendo na área que lhes foi legada a qual jamais foi
dividida tendo permanecido área comum aos sucessores, “sem que houvesse fixação de
posse determinada de uns e outros”. Na interpretação do advogado que defendia os
descendentes dos ex-escravos:
“(...)
“4) o testamento instuiu, digo, instituiu a inalienabilidade até o terceiro
grau. Essa inalienabilidade tem fácil compreensão quando se busca a
intenção da testadora. A testadora tinha em mente, pois tudo leva a essa
interpretação, instituir um patrimônio para seus escravos (pois naquela
época ainda existia a escravatura), onde os mesmos pudessem trabalhar,
ganhar seu sustento e, aqui está a intenção primordial e fundamental da
139
testadora, fixar-se à terra, afim de adquirir um hábito fixação a um
patrimônio, o que jamais tiveram, quer por seus antepassados em seu
país nativo (África), quer ao tempo em que eram escravos. Com esta
inalienabilidade eles forçosamente teriam que fixar-se e através do
tempo se habituariam a tal fixação. Foi, pois, o motivo moral (livra-los
da escravatura) e civilizador a intenção primordial da instituição do
legado. Oxalá, tivéssemos tido mais pessoas esclarecidas como a
testadora e teríamos menos miséria entre os descendentes de escravos.
Deve-se, pois, neste legado, olhar mais para o motivo moralizador e
civilizador da testadora do que propriamente o legado material.
“(...)”, (Petição de Contestação, adv. Sebald Wagner).
O advogado aderiu a uma explicação civilizatória para defender seus clientes. O
que melhor poderia explicar a atitude de uma ex-senhora de escravos do que auxiliar seus
“escravos” a constituir um patrimônio, a ter o hábito de fixar-se, ter e permanecer em um
lugar para si, dentro da lógica patrimonialista do direito? Maria Thereza Joaquina, que
contesta a ação, é tia de Manoel Francisco Antônio e de Guilherme Francisco Antônio.
Trata-se da Rainha Jinga Maria Thereza, filha de Teresa Sibirina da Conceição, uma das
legatárias de Rosa, e de Manuel Antônio Joaquim. Com certeza o membro da parentela
que por sua ancianidade e prestígio social seria a pessoa capaz de unificar a parentela em
torno da questão da manutenção das terras comuns da comunidade, afinal Guilherme era
testemunha da JASA. Alípio Cândido da Silveira e Aurora da Conceição Silveira são
casados e ela é filha de Merêncio Marques, outro ex-escravo cujo nome estava no
testamento de Rosa.
A primeira contestação não nega o direito que Olina tinha em permanecer no
local apenas discorda da possibilidade de que ela viesse a ceder direitos sobre uma área
maior do que aquela que dispunha por direito sucessório. O advogado destaca que Olina
não poderia vender algo que não era seu na totalidade e chama de “maliciosa” a certidão
de cessão de direitos lavrada por José Agostinelli. No dia 28 de novembro, os
140
contestantes voltam ao processo para argumentar que a empresa não pode usucapir área
sobre a qual não consolidou posse pacífica e mansa, área que sequer possui, onde viviam
outras pessoas além de Olina. As testemunhas da contestação são: José Alves, Guilherme
Francisco Antônio, Antônio Francisco, Sebastião Francisco Antônio e Adão Francisco
Antônio. Todos, menos José Alves, sobrinhos de Maria Theresa Joaquina, não por acaso
todos envolvidos na composição do grupo de Maçambiques.
Em 28 de julho 1968, Sebald Wagner passou o processo para outros advogados,
Gilberto Alexandre e Massi Bassani que, em 03 de julho de 1968, repassaram o caso para
Enio Castro da Paz. Sebald, pela localidade na qual assina seu subestabelecimento estava
vivendo em Gravataí. Gilberto e Massi eram advogados de Osório e transferiram o caso a
outro advogado da mesma comarca. Nomeado um perito, o engenheiro agrônomo Wilson
Castro, ele define que a área que caberia a Olina corresponde a 1/342 do total da área
definida no legado de Rosa, ou seja, “considerando que os legatários tivessem recebido
os 404,80 metros de frente, caberia à D. Olina na mesma fração ideal, uma frente
correspondente a 0,937m”. (fl. 3 Laudo de Perícia; Processo 175/66). Além disso, deixa
claro que com os dados fornecidos pelo autor da ação é impossível determinar a exata
localização do terreno a ser usucapido: não há precisão nas demarcações, divisórias nem
no que diz respeito a determinação dos confrontantes. Os marcos referidos na definição
da área são os marcos do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem que havia
desapropriado ali uma pedreira.
Em 28 de dezembro de 1970, o juiz profere a primeira sentença no processo.
Nesse instrumento, com base nos documentos juntados aos autos, o juiz reconhece que
Olina compartia sua posse, ou seja, vivia em condomínio e que acabou cedendo mais do
que realmente possuía. Além disso, o artifício da indefinição das fronteiras das
141
propriedades cedidas e compradas que poderia reverter na demarcação de mais terras do
que o negociado reverteu contra José Agostinelli. Justamente por possuir limites
imprecisos, baseados em pontos infundados, foi impossível especificar qual o terreno ele
estava usucapindo. Nos autos do recurso interposto pela empresa, o promotor público
Sérgio da Costa Franco ao oferecer seu parecer destacou que Olina era uma
compossuidora e que “não seria lícito usucapir em prejuízo de seus comparte herdeiros,
todos, escravos beneficiados por um legado testamentário de 1886” (Parecer do
Ministério Público Apelação Civil, nº 1319/71). O artifício dos limites voláteis,
empregados no século XVIII e XIX nas escrituras de apropriação originária das terras e
que muitas vezes contribuiu para regularizar a expansão das propriedade, reverteu contra
a JASA no julgamento de primeira instância do processo de 1966.
A partir desse processo de 1966, o testamento enquanto um documento se tornou
conhecido pela comunidade. Ser um herdeiro de Rosa assumiu proporções capazes de
assegurar a permanência de seus descendentes na localidade. Por isso, em 2002 ser um
“remanescente de quilombos” que lutava pela terra muitas vezes guardava correlação
com a luta de algumas pessoas da comunidade contra a JASA da década de 60. Ser um
“herdeiro”, um descendente consangüíneo dos ex-escravos de Rosa, torna-se algo
fundamental na estrutura interna do prestígio político da comunidade de Morro Alto,
justamente porque também encontra respaldo na lógica de sucessão jurídica.
É importante destacar que até os anos 60 a comunidade permaneceu na localidade
de Morro Alto mantendo sua organização social sem ter notícias da materialidade do
testamento o que não afetou a implementação e manutenção de seus campos de uso
comum. Aliás, reivindicar a validade do testamento de Rosa Osório Marques, no âmbito
do judiciário, apenas fez sentido porque os descendentes de ex-escravos que viviam na
142
região mantinham uma forma peculiar de apropriação do território negro de Morro Alto,
com áreas de apropriação particulares, próprias aos grupos familiares, e campos de
usufruto comum (Almeida 1987/1988; Gusmão 1991). O documento “testamento” veio a
criar um canal de interlocução externa para a comunidade legitimado pelo campo
jurídico, mas cuja existência não afetou a forma de uso comum do território que a
comunidade já possuía, servindo para valorizar ainda mais as relações consangüíneas.
4.2. Descendência: composições no jogo de alianças.
Nem todas as pessoas que vivem em Morro Alto são “herdeiras de Rosa”, porém
a consangüinidade surgiu ao longo da pesquisa de campo para a escrita do relatório como
um valor importante nas reuniões. A falas transversas, trechos das entrevistas, são
pontuadas por explicações que fornecem pistas que contextualizam o jogo de forças
acionadas no momento em que essas mulheres encontraram seus parceiros. Trata-se de
um exercício de construção da compreensão de como, ao longo de quatro décadas, a
coerção social pautada pelos valores do grupo, travestida de fatalidade, pontuou o
sistema de “escolha” dos parceiros. Assim, ao longo desse momento da tese quero
analisar que valores estão pautando a escolha de parceiros, alianças que serão
importantes na construção social da família e da consangüinidade. Primeiro, porém,
quero trazer a história de D. Lídia para analisar um pouco mais o significado de
“namorar” e “casar” na Comunidade de Morro Alto.
143
a) “Namoro”, “casamento” e “filhos”: a história de duas mulheres negras da
Comunidade de Morro Alto.
D. Lídia ao me contar sua história prioriza sua relação de parentesco matrilinear,
concebendo um modelo próximo do genealógico. Concordo aqui com Barcellos (1996): a
história familiar e a recomposição da memória é apresentada como uma sucessão de
famílias extensas que desemboca no seu próprio grupo e preenche vazios, como a falta de
um pai (1996:131). Assim, a leitura das falas de Dona Lídia não se fez ingenuamente
sem compreender sua prioridade em falar das mulheres de sua família em detrimento dos
homens, de um tio, p. ex., que “some”. É a “seletividade” da memória familiar (Barcellos
1996:134) que está sendo acionada. Os homens têm maior mobilidade social no sentido
de sair de Morro Alto e permanecer fora por um longo espaço de tempo, em destinos que
até hoje são ignorados, ao passo que as ausências femininas, quando ocorrem, são muito
bem justificadas. Além disso, tal qual apontado por Barcellos (1996:146-147), tanto em
famílias urbanas quanto rurais, no processo de construção da família negra, as mulheres
acabam sendo as mediadoras e depositárias da memória. Acredito que Dona Lídia é uma
dessas mulheres.
b) Maria Laurinda da Silva: um “casamento” entre as décadas de 20 e 30.
Maria Laurinda da Silva vivia nas proximidades da Lagoa dos Touros, uma
espécie de pequena enseada originária de uma lagoa maior a Lagoa das Malva, cujo
nome antigo é Lagoa da Prensa, no Faxinal do Morro Alto. Apenas algumas pessoas da
faixa etária dos 70, 80 anos recordam destes nomes e de sua localização no tempo e no
espaço. Nesta proximidade da água doce e dos matos ela residia com sua mãe, Laurinda
Marcíria da Silva, e seus irmãos, Almerinda Laurinda da Silva e Lídio. Próximo deste
144
mesmo grupo, residia o grupo familiar de Silvana com a qual formavam um pequeno
aglomerado de casas. Essas pessoas tinham em comum, além da pobreza de sua condição
camponesa, o fato de serem descendentes de antigos escravos deixados à própria sorte
por seus ex-senhores após a abolição da escravidão, ou antes quando o custo da
manutenção da escravaria tornou-se tão alto que o abandono gradual destes foi mais
tentador e interessante. Assim, como Silvana foi uma escrava, Marcíria, mãe de Laurinda
Marcíria, também o fora.
Os ranchos em que moravam tinham casas, tramadas, a partir das folhas do butiá
que existia em abundância na região, ao contrário do que se dá atualmente. Desta mesma
planta, o butiazeiro, eram confeccionadas as cestas e esteiras que, depois de trançadas,
eram colocadas nas paredes para evitar a entrada do vento. Essa casa fiada em palha de
butiá tinha a estrutura sustentada por pedaços de madeira retirados do mato. Esteiras
cobriam e serviam de cama aos seus habitantes. Gamelas eram confeccionadas da
madeira nativa e nelas, eventualmente, as crianças comiam em conjunto. O mesmo mato
que hoje já não existe mais, foi-se junto com o butiazeiro. Esses ranchos tinham seus
chãos de terra socada. Dentro da casa o que existia era o fogo, sobre ele o gancho no qual
as mulheres colocavam panelas para preparar a comida do dia-a-dia. Aproveitavam
também as brasas para assar o “pão de borralho”, uma mistura de farinha de milho, ovo e
água envolta em uma folha de bananeira verde, enterrada nas brasas que restavam do
preparo das refeições, consumidas pela família no retorno do serviço da roça. Em torno
desse fogo, se reunia a família extensa.
Comia-se muito pouco pão. O trigo era algo reservado apenas para ocasiões
especiais, ao contrário do milho e da mandioca constantemente presentes nas refeições.
Vegetais como o almeirão e a serralha eram conseguidos no gramado, não eram feitas
145
pequenas hortas para plantá-los, como ainda hoje ocorre. A carne de caça como a paca,
uma espécie de porco do mato, era considerada comida dos antigos, consumida desde a
senzala. O cuscuz era, como ainda é, um prato largamente consumido pela comunidade
negra de Morro Alto. Feito a partir da mistura de farinha de mandioca e de, milho deve
ser “temperado” tanto com o açúcar quanto com o sal. A mistura não aceitava ser cozida
diretamente na panela, mas ao vapor. Ao contrário da polenta na qual se mistura a água,
o cuscuz é um preparo esfarelado. Os antigos costumavam fazer o cuscuz no prato:
virando-o amarravam o pano e colocavam bem pouca água na panela, sem nunca deixar
molhar o “umbigo”, a ponta de baixo onde estava o farelo. Além do eventual problema
de molhar o cuscuz, o que estragaria a massa, a queima de panos também era um risco
que se corria.
Maria Laurinda foi trabalhar em Quintão, conforme me conta sua neta, o que
sugere uma intrincada rede de solidariedade reforçada pelas relações de parentesco. Seus
pais, Laurinda e Matias, são primos, respectivamente, filhos de Marcíria e Floripa, ambas
ex-escravas. Matias tem um irmão Inácio, cujo padrinho chamava-se Luís Eufrásia. Com
o passar do tempo, Inácio casa-se com Olina Eufrásia, filha da ex-escrava Eufrásia,
herdeira de terras na localidade de Morro Alto. Infelizmente não sabemos se Luís é
parente de Olina. Porém a manutenção do nome do meio, dentre famílias de ascendência
escrava parece ter sido algo comum na localidade.
146
Ser herdeira de terras na localidade de Morro Alto era algo que transformava
Olina Eufrásia em uma pessoa especial. Com a abolição da escravidão, muitos ex-
escravos migraram para as cidades, porém houve aqueles que ficaram. Dentre esses,
certo número já possuía uma determinada estrutura de ocupação de terras em núcleos
como a das parentelas de Marcíria e Floripa às margens da lagoa dos Touros e o de
Marcelina e Floriana, próximas a lagoa do Ramalhete. Porém, tais pessoas não possuíam
títulos que comprovassem a propriedade das terras ocupadas por gerações. Olina Eufrásia
encontrava-se em situação privilegiada pois sua mãe fora contemplada como
beneficiária, assim como outros ex-escravos, de um legado de terras por parte de Rosa
Osório Marques, sua antiga proprietária. Olina era uma das herdeiras de Morro Alto, com
algo muito próximo a um título de propriedade que lhe conferia alguma segurança quanto
a permanência no território que lhe pertencia.
O irmão de Olina Eufrásia, Manuel Gonçalves, casou com Maria Joaquina, do
município de Quintão. Essa relação também era pautada por antigos laços estabelecidos
entre escravos e ex-escravos dos municípios de Osório e Quintão pois os proprietários de
147
terras de ambas as localidades eram os mesmos. Não era algo estranho aos negros de
Morro Alto manter e reativar as redes de solidariedade que já existiam durante décadas
antes da abolição. Por outro lado, esse fato confirma que as relações entre senzalas e
diferentes grupos de escravos não eram impossíveis e foram mantidas nas décadas após
a abolição. Não seria de causar estranheza o fato de Laurinda Marcírica trabalhar em
Quintão enquanto seu marido, Mathias Floripa, cuidava das crianças e das roças da
família extensa composta de filhos, cunhados e de sua sogra.
Certa feita, quando Maria Laurinda estava com 14 anos, um homem chamado
Barnabé Idalina se “aproveitou” dela no mato. Se por um lado o contexto rural parece
nos levar a imaginar a cena como violenta e rude, há que deixar claro que Maria
Laurinda teve outras três filhas com o mesmo homem. Por outro lado, também estamos
nos referindo a uma comunidade onde, ainda na década de 40, mulheres cujos pais não
permitiam o namoro eram “roubadas”. Tratava-se, de acordo com as entrevistas, de um
“roubo consentido. Assim, não espanta o fato de que Lídia diga, hoje, que sua mãe “quis
aquilo. Barnabé Idalina vivia no Faxinal do Morro Alto onde, ainda hoje, vivem vários
sobrinhos seus, filhos de seus irmãos José e Dinarte. Quando a mãe de Maria Laurinda
retornou de Quintão, encontrou sua filha grávida de Alda Maria. Era final de década de
20.
Depois de Alda ter nascido, passados cinco anos, o mesmo Barnabé Idalina
engravidou novamente Maria Laurinda e a engravidou novamente após outros três anos.
Lídia, que me conta a história de sua mãe, foi a penúltima filha a nascer. Maria Laurinda
já estava perto dos 22 anos de idade com três filhas de Barnabé quando Vó Idalina, mãe
dele, o obrigou a “agarrar” Maria Laurinda e “casar” com ela. Foi um período no qual
Barnabé “cuidava” da família. Ele jamais casou com Maria, mas cuidou dela e das
148
crianças, segundo sua filha, morou com eles e deu-lhes comida. O casamento encontrava-
se vinculado a coabitação e não às formalidades da igreja e do Estado, necessariamente.
Por outro lado, como o desenrolar da história mostra, talvez o casamento
institucionalizado fosse uma relação valorizada e negociada. De alguma forma Maria
Laurinda não era uma parceira preferencial em relação a José Idalina, ele mesmo um
descendente da “herdeira de Rosa” chamada Idalina que se fixou próxima ao Faxinal do
Morro Alto.
Após algum tempo de convívio do casal, começou a fofoca. Um homem chamado
Joaquim, que vivia no Faxinal do Morro Alto, deu início a boatos, ou apenas os relatou
com mais ênfase, de que Alda não seria filha de Barnabé Idalina, mas de Neca Serrano.
Neca Serrano era um homem branco e influente da região, com terras em Morro Alto,
município de Osório, e em São Francisco de Paula, ou de Cima da Serra, daí seu nome.
Barnabé Idalina acreditou na veracidade desta história, talvez por Alda ter pele mais clara
ao passo que Lídia tinha o cabelo “bem pretinho, bem lisinho”. Barnabé foi embora de
Morro Alto com Maria José, uma mulher cuja família vivia em Aguapés, já tinha tido
alguns filhos e “tirados” outros. Ele deixou para trás não apenas Maria e suas filhas mas
Almerinda, Lídio e Laurinda Marcíria que em meio a essa situação veio a morrer. Com o
falecimento da avó materna, a moradia na Lagoa dos Touros, no Faxinal do Morro Alto,
foi abandonada. Maria Laurinda e seus filhos passam a residir com seu tio, irmão de seu
pai, Inácio Floripa e Olina Eufrásia.
149
c) Lídia Laurinda da Silva: “namoro” e “casamento” durante as décadas de 40
e 50.
Na localidade de Morro Alto existiam as casas de barro. A casa de barro era boa
em ambas as estações, mantinha-se fresca no verão e suficientemente quente no inverno.
Estragava mesmo quando os pedaços de barro começavam a cair. Quando isso acontecia,
a matéria-prima para a solução do problema era trazida do morro, do Morro Alto. Não
era necessário abrir buracos no chão, no terreno, era apenas trazer do morro, colocar água
e começar a amassar com os pés. O ponto do barro, quando ele já se encontrava bom o
suficiente para ser posto nas paredes, era dado quando o mesmo deixasse de possuir
bolinhas de “barro cru”. Após dado o ponto era só cobrir o buraco”: “aí pegava aquilo
ali e pá na parede e aí pegava outra e pá e tapava aquele buraco”. A cobertura das casas
era feita de palha, não mais de butiazeiro, mas de “Oricâna”. Para conseguir esse tipo de
palha, era preciso subir o morro. Todos subiam, homens e mulheres, com facões. Após
colhidas, colocavam cinco palmas uma sobre a outra e teciam uma esteira para cobrir a
casa. Esse tipo de cobertura durava, no máximo, três anos.
Nesse tipo de casa o fogão possuía uma estrutura de pedra, recoberta de barro
com ferros que lhe iam em cima. O forno ficava na rua e era nele que se fazia o pão. O
forno em que Olina Eufrásia assava pão tinha uma circunferência aproximada de 2
metros de diâmetro. Para saber a temperatura ideal do forno e não queimar as folhas de
bananeiras, a cozinheira tinha que por o braço dentro do mesmo e contar até 20, caso não
agüentasse chegar aos 20 segundos queimava a folha de bananeira. Essas folhas eram
fundamentais para levar comida ao forno. Consumia-se pão de milho puro ou de milho
com batata caraá, o açúcar utilizado era o do tipo preto, mascavo. Doces como o “melado
de garfo”, espécie de melado mais grosso comido com o garfo, eram comuns nessa
150
região onde se plantava cana-de-açúcar e a quantidade de engenhos não era baixa. Lídia
lembra que veio a cozinhar nesse tipo de fogão.
Maria Laurinda foi viver, com suas três filhas, na casa de seu tio paterno Inácio.
Para Olina (d) e Inácio(c) esse tipo de arranjo não era uma algo estranho. Receber
parentes não era novidade. Inácio é 11 anos mais velho do que Olina e ambos têm dois
filhos Antônio Gonçalves da Silva (j) e Iraci Olina(i). Antônio casou com Aurora Inácia
Marques (k), uma parente distante. Iraci casa-se com João Júlio (h) oriundo do Faxinal
do Morro Alto, mas que fixou residência com a esposa na localidade de Morro Alto. A
localidade de Morro Alto era, em função de ser considerada terra de herdeiros, um local
privilegiado que permitia a fixação de negros na região.
Além disso, permitia que eles se colocassem ante as demandas da sociedade
capitalista com a qual estavam relativamente integrados como exploradores de recursos
naturais. É nessa época que se inicia a abertura das pedreiras nas terras dos ex-escravos
herdeiros de Morro Alto. Olina já criava uma menina chamada Luci (g). Luci é filha da
esposa (f) do irmão de Olina, que vive em Quintão, mas que ele se negou a criar. É
justamente o filho de Olina, Antônio (j), quem abriu as primeiras pedreiras na região. Os
vínculos familiares e as possibilidades de emprego estão configurando redes de
solidariedade, de ajuda, que emergem na memória de Lídia ao narrar sua estória.
151
Porém, Maria Laurinda reside em um lugar que não é seu por “direito” e sua
condição de pobre a obriga, desde cedo, a colocar os filhos para trabalhar. Lídia diz ter
começado a trabalhar na roça dos outros, recebendo por dia aos 7 anos de idade. Lembra
que recebia algo que hoje compara a cinqüenta centavos ou um real por dia de trabalho.
Com 12 anos disse que já morria de vergonha de passar com a enxada por outros rapazes
na estrada indo trabalhar na casa e nas roças de outros. Por isso, ela faz questão de frisar,
eu não sei falar”, pois não pôde freqüentar a escola e tudo o que aprendeu foi nos 15
minutos finais do período noturno da escola em Morro Alto. A professora a esperava pois
ela só poderia ir à escola após servir jantar aos empregados de um dos lugares onde
trabalhava. Hoje, tira suas dúvidas de língua portuguesa em programas de TV que
ensinam a escrever corretamente.
Justamente aos 12 anos de idade, Lídia começou a trabalhar fora da localidade de
Morro Alto, em hotéis de Capão da Canoa. Capão nessa época estava sendo alvo de
especulação imobiliária e grande parte das pedras que saíam de Morro Alto contribuíram
para revestir suas ruas com paralelepípedos. Não apenas as pedras mas também as
mulheres de Morro Alto foram enviadas para trabalhar em serviços domésticos em hotéis
152
que muito bem poderiam ter sido, na época, alojamentos. Dona Lídia permaneceu em
trabalhos desse tipo, ora como cozinheira, ora em serviços para vizinhos, até
aproximadamente os 21 anos quando, então passou a trabalhar para a família Thompson
Flores em Porto Alegre. Embora Lídia estivesse, a maior parte do tempo, trabalhando em
atividades que a mantinham longe de Morro Alto, retornava quer nos períodos em que
estivesse sem emprego ou nos períodos de festa.
Voltava para rever a família, os amigos, mas também para participar dos
momentos de sociabilidade como as festas de 13 de maio, do Maçambique de São
Benedito. Dona Lídia jamais participou do Maçambique de Osório, celebrado na praça da
Igreja Matriz. Nestes momentos de sociabilidade, os namoros eram inevitáveis. Porém
Lídia conta que não ia atrás dos homens, eles que a procurassem. Assim, se alguém que a
estivesse “paquerando” não se aproximasse, ela aguardava. Na etiqueta do namoro, a
iniciativa da aproximação cabia ao homem. Ela relata que “tinha muito medo de errar”.
Lembrava-se constantemente de que seu pai não havia cuidado de sua mãe e, por isso,
dizia: “se Deus quiser eu não vou me entregar para homem nenhum, eu quero casar
virgem”, o que nos leva a crer que os homens eram relativamente insistentes em quanto a
consumação do ato sexual em si. Por isso, ela tomava o cuidado de não sorrir muito nem
falar alto, além de tomar cuidado para saber quais as amigas não eram “risonas”,
espalhafatosas. E enfatiza em sua fala: “eu me corrigia”. Afinal, como Lídia me explicou
ao contar uma outra estória, “as que sobravam casavam com homens mais velhos”.
Mas o rigor excessivo não impediu Lídia de iniciar seus namoros com a mesma
idade em que sua mãe engravidou. Seu primeiro namorado, ela lembra, encontrou aos 14
anos de idade, um rapaz chamado Luís de Livramento, localidade que fica entre Morro
Alto e a cidade de Osório propriamente dita. Recorda que conheceu esse rapaz em uma
153
festa de 13 de maio de maçambique”, mas não podiam se visita pois ainda eram
menores. Ambos namoraram novamente, no maçambique de 13 de maio, um anos
depois. “Aí, depois, ele não veio mais”. Assim, podemos ver que era possível manter um
namoro, ao longo de anos, apenas com base nos encontros durante as festas do
maçambique. A mãe de Lídia a acompanhava nos festejos cuidando dela e, inclusive,
determinando o momento em que ela deveria ir embora dos bailes. Os festejos do
Maçambique eram um mercado matrimonial privilegiado.
Logo em seguida um novo rapaz a cortejou, Adão, “bonito, bem clarinho, cabelo
bom, filho de branco”, das proximidades do Faxinal do Morro Alto de onde sua família
havia saído. Com o passar do tempo, ele mudou sua conduta, passou a propor a
combinação”. A “combinação” consistia em um trato firmado, no caso entre ela e o
namorado, no qual cada um namoraria quem quisesse até a meia-noite e após ambos
deixariam os “namorados” que estavam e voltariam a namorar entre si. Lídia conta que
namorou esse rapaz por cerca de dois anos, pois ela gostava muito dele. Quando ele
propôs a “combinação” uma terceira vez ela aceitou, mas pensou em dar o troco.
Foi em uma festa de 13 de maio, um Maçambique em Aguapés. Ele propôs
novamente a combinação pois tinha uma garota que estava “dando muito em cima” sem
nem, ao menos, levar em consideração a presença de Lídia. Ela aceitou, mas não
namorou ninguém, não encontrou ninguém para namorar, conta ela. A festa começava no
sábado à tarde. Ela conta que viu o namorado passeando com a outra “pra lá e pra cá
na avenida de Aguapés. Adão levou a combinação adiante durante todo o sábado,
incluindo o baile e o domingo. O que deixou Lídia muito enraivecida foi o fato dele
aparecer de dia com a mesma menina. Durante a festa, no domingo, conheceu dois
rapazes de Quintão, um que já tinha namorada. Ela fez amizade com a menina que já
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estava acompanhada para chegar no outro rapaz que estava sem companhia. Durante o
namoro, Lídia recebeu um recado de Adão, por intermédio de um amigo em comum, de
que a combinação tinha acabado. Lídia disse que ignorou o recado. Quando foi embora
Adão passou por ela e ainda disse: “coisa triste a pessoa que não sustenta o que diz!”.
Chama atenção aqui a questão da cor. Ao que parece Dona Lídia se submete a
combinação” com um homem que é branco que, de certa forma, parece não estar
disposto a se expor com Lídia em público. Lídia submeteu-se a essa situação até o
momento em que sua honra entra em perigo, ou seja, até o momento em que as pessoas
da comunidade passam a entender como está se dando o “jogo”. A acusação do rapaz em
relação a ela também é emblemática no sentido de que ela como mulher e negra, mas “de
cabelo lisinho”, deveria cumprir sua parte no trato, mesmo que ele desrespeitasse Lídia,
descumprindo sua palavra.
Namorar, assim, explica Dona Lídia tem suas prescrições. Além da postura da
moça estar submetida a regras sociais, namorar implicava em determinadas proibições.
Não podia beijar ou segurar na mão, os toques corporais eram proibidos. Apenas o ato de
conversar já implicava em um namoro começado e “depois tinha o baile”. No baile
apenas podia dançar com o “namorado” e, da mesma forma, parece ser esse o momento
em que os toques físicos eram postos em prática, mas sob os olhares atentos de mães e
tias. Isso parece implicar em um diálogo muito intenso no que diz respeito ao olhar.
Observa-se sem ser visto, dá-se pistas, recados e localiza-se. Por outro lado, se conversar
já é um namoro começado isso amplia o leque de possibilidades quanto aos parceiros
possíveis ao invés de limitar um grupo com fronteiras rígidas .
Dona Lídia conheceu seu marido em uma festa de pagamento de promessa à
Nossa Senhora do Rosário na qual Seu Ermenegildo participou com o Maçambique. A
155
promessa foi “paga” na casa de Dona Maria Clara, cuja filha Dona Aurora Inácia, era
casada com Antônio, filho de Dona Olina da família que “criou” Dona Lídia. Nessa
época, Dona Lídia namorava um outro rapaz de Quintão que lhe enviava “cartinhas”,
coraçõezinhos” e “brinquinhos”, e ela conta que nem imagina como isso chegava até
ela. Por outro lado, Seu Ermenegildo namorava outra filha de Dona Maria Clara. Esse
pagamento de promessa envolvia, além da dança do Maçambique que não era à noite,
uma novena. Ela conta que se lembra que nessa festa foi servida “galinhada, galinha
frita, bolo e rosca, pão feito em casa e pão feito na panela”. Dona Lídia conheceu aquele
que seria seu futuro marido em um contexto duplamente apropriado para estabelecer um
relação de aliança: no contexto de uma festa de Maçambique e sob o olhar atento da
família extensa.
O namoro de Ermenegildo com a filha de Dona Maria Clara não era aceito por
sua família de forma unânime. Dona Lídia recorda que durante o pagamento de
promessas do Maçambique esteve sentada próxima à então namorada de Ermenegildo e
ao lado de uma tia dele, solteira, que ela não diz o nome. Quando essa “tia” viu seu
sobrinho chegar levantou-se e disse: “Ermenegildo senta aqui !”. Dona Lídia lembra que
a “tia” não gostava muito da atual namorada que ele tinha. E ela me conta: elecomeçou
a conversar comigo e ali nós ficamos, conversando, namorando”. A namorada preterida,
para a qual ele não dedicava atenção, teve um “chilique” e foi chorar no quarto. Pessoas
vieram e chamaram ele para ir até lá conversar com ela, o que Ermenegildo apenas fez
após pedir permissão aos pais da moça. E toda a situação ficou por isso mesmo.
Dona Lídia recorda que voltou a encontrar Seu Ermenegildo no casamento de sua
irmã de criação Luci. A esse tempo, no entanto, já iniciara seu namoro com seu futuro
marido sem comunicar ao pretendente de Quintão. O casamento de Luci foi realizado na
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casa de barro de Olina e iniciou com um baile na sexta-feira no qual Ermenegildo chegou
mais tarde. Isso não impediu que Dona Lídia dançasse com seu pretendente de Quintão,
que ainda não desconfiava da existência de um rival ali de Morro Alto. A namorada de
Ermenegildo também estava no casamento, “muito apaixonada”. Em certo momento do
baile Seu Ermenegildo chega até Dona Lídia e pergunta a ela: “o que eu preciso fazer
prá ganhar uma guria assim, como tu?”. Dona Lídia lhe comunica: “lá, aquele que vem
vindo lá é meu namorado”. Ermenegildo ficou ao seu lado e esperou pelo rapaz de
Quintão. Esse mesmo rapaz acabou por desafiar Ermenegildo e lhe “disse horrores”.
Após algum tempo, o rapaz de Quintão e a filha de Dona Maria Clara, preterida por
Ermenegildo na narrativa de Dona Lídia, vieram a se casar, fixando residência fora da
área de Morro Alto, na cidade de Osório. Como Dona Lídia explicou “casamento é
destino, se casa, às vezes, com quem se conhece mas que nem se pensava em casar”.
Seu Ermenegildo vivia na localidade de Ribeirão ao lado da localidade de Morro
Alto onde vivia Dona Lídia com sua família de “criação”. Se Dona Lídia vivia nas terras
dos herdeiros de Rosa, Seu Ermenegildo vivia no Ribierão mas era primo dos herdeiros
vizinhos de Lídia. O fato dele ter sua residência fora da localidade de Morro Alto não o
destituía da condição de herdeiro. As localidades eram separadas por espaços de matos
que ofereciam matéria-prima para a construção de casas e espaço para expansão familiar
das famílias extensas. Não existia a divisão formal das terras, mas as fronteiras entre
famílias eram demarcadas por espaços intersticiais e roças. A comunicação entre as
localidades se fazia por trilhas que cruzavam os morros ligando Aguapés a Ribeirão, o
Borba e ao Despraiado, e outras onde hoje está o leito da BR 101 que ligava as
localidades de Prainha, Despraiado, Morro Alto e Aguapés e a RS 407 que ligava Morro
alto ao Faxinal do Morro Alto e às proximidades da Lagoa dos Touros.
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A construção das estradas de rodagem sobre as antigas trilhas de tropeiros
utilizadas também por ex-escravos e escravos por volta do final dos anos 40 início dos 50
impactou toda a região hoje chamada de Morro Alto de forma mais abrangente. Além
disso, a especulação imobiliária no litoral norte, especialmente nas praias de Capão da
Canoa e Xangi-lá, levou, como ainda leva, grande número de moradores a trabalhar
nessas localidades. Outra cidade que absorveu mão-de-obra de Morro Alto foi Osório.
Maquiné, ao contrário do Osório, uma cidade bastante mais próxima, parece ter
absorvido o fluxo migratório oriundo da Prainha. Foi nesse momento que Ermenegildo e
Lídia passaram a namorar: ela trabalhando em Capão, ele como operador de máquinas
para a construtora que realizava as obras na antiga BR 101. Não havia impedimento a
que as mulheres saíssem para trabalhar fora da comunidade de Morro Alto em
municípios vizinhos, por isso Lídia seguiu o mesmo caminho.
E foram dois anos de namoro e dois anos de noivado a partir de 1949. O noivado
ocorria naquela época com a formalização do pedido de casamento aos pais da noiva ou,
como no caso de Dona Lídia, à mãe. Não era feita festa. A troca de alianças também não
era algo necessário. A realização do pedido ao responsável pela moça é que era
importante. Dona Lídia relatou que após tornar-se noiva, Ermenegildo foi botar as
alianças” na praia onde ela se encontrava hospitalizada na época. No período em que
namorou Ermenegildo, tinha muita vergonha pois “ela morava em uma casa de barro”
ao passo que ele “numa de tábua”. E foi nessa casa de barro, onde vivia Olina e onde foi
realizado o casamento de Luci que também foi feito o casamento de Dona Lídia. De
acordo com as palavras de Lídia “eu casei com um homem que tinha prestígio”.
O casamento de Dona Lídia foi realizado na cidade de Maquiné, na Igreja de
Santo André Avelino. Naquela época, os casamentos eram realizados nos sábados, tanto
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os realizados no “cartório” quanto os na “Igreja”. Eles ocorriam às 11:00, às 13:00 e às
15:00h. Para casar, a noiva tinha que ter duas roupas: uma para o casamento no cartório e
outra, que era vestida lá na cidade, para o casamento na Igreja. Dona Lídia iria casar às
11:30h, porém naquele dia a “condução quebrou”. A condução em questão era um
“caminhão de carga”, por isso ela foi a última a casar, às 15:00h da tarde.
A noiva contribuía com um enxoval para a morada do casal ao passo que o noivo
entrava com a casa. No caso específico de Dona Lídia e Seu Ermenegildo, ela entrou
com o enxoval e ele com o madeiramento da casa antiga que ambos possuíam no
Ribeirão quando retornaram para Morro Alto entre as décadas de 60 e 70.
No casamento de Lídia foram consumidas cinqüenta galinhas, dois sacos de
farinha de trigo feitos em pão, três porcos assados e cinqüenta bolos, conforme sua
própria contabilidade. Ao que parece, os casamentos em Morro Alto iniciavam na sexta-
feira à noite prosseguiam pelo sábado e, no domingo, as pessoas podiam retornar aos
seus empregos. No casamento de Dona Lídia os porcos assados e as galinhas assadas e
fritas foram consumidos durante dois jantares e um almoço. Ela conta que como seu
casamento foi feito à tarde que ainda deu tempo de servir café após o almoço: “café com
pão e galinha”. As comida foi presenteada da seguinte maneira:
Alimento fornecido Pessoa que fornece o alimento
Galinhas .patroa e
.pai biológico da noiva
Bolos . madrinhas de casamento
. a própria noiva
Porcos . sogro e
. “mana” Dona Tereza
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As galinhas parecem ser presente das pessoas que estão relacionadas com a noiva
de forma menos íntima, no caso, por seu pai biológico, que abandonou sua mãe trocando-
a por outra mulher da comunidade, e sua patroa de Porto Alegre. Os bolos parecem ser
especialidade das mulheres revelando uma certa familiaridade com os vegetais e o forno,
mediadores das relações femininas entre a cozinha e a sociedade. Mas são os porcos que
nos dizem mais. Eles não foram entregues assados, mas “matadinhos e direitinhos” o
que sugere que tenham sido entregues limpos. Os três porcos provêm da família do
esposo, da qual Dona Lídia não deixa de fazer parte, pois a “mana” a que se faz
referência considera Dona Lídia uma irmã enquanto é, também, prima de Ermenegildo.
Estabelecendo obrigações quanto ao parentesco, não apenas entre pais e filhos, no
sentido vertical, intergeracional, mas relações entre “manos” dentro do próprio grupo
geracional que duram a vida toda.
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Dona Lídia é “mana” de Dona Tereza por ter vestido a coberta da alma de uma
falecida irmã desta, ou seja, ocupado o lugar de uma pessoa que morreu na família de
Dona Tereza. Curiosamente, no mesmo dia em que estive na casa de Dona Lídia, Dona
Cândida, outra “mana” de Lídia lhe enviou ovos pois as galinhas de Dona Lídia não
estavam produzindo. Assim, ao que tudo indica, ser “mana” implica em certas
obrigações relativas a alimentos na Comunidade, porém os alimentos são uma dádiva
dada àquelas pessoas que vestiram a coberta da alma, que foram escolhidas por parentes
para ocupar o lugar da pessoa que morreu na família. Sobre esse raciocínio, na
constituição de um parentesco fictício, Dona Lídia e Seu Ermenegildo não deixavam de
ser primos ante a comunidade de Morro Alto.
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Dona Lídia casou no Sábado. No Domingo, foi para Porto Alegre trabalhar
enquanto Ermenegildo foi para Camaquã como operador de máquinas. Levaram 40 dias
para tornar a se ver após o casamento. Nesse meio tempo Dona Lídia cuidava sua irmã
mais nova, “que me foi dada e que era de minha mãe”. A criança em questão se trata de
Ondina. Estava pensando em pegar mais uma criança para criar, afinal faziam dois anos
que estava casada e não ficava grávida. Ela relata que ficava preocupada pois “não se
cuidava” e que os próprios maridos não deixavam as mulheres se “cuidarem” pois “eles
casavam era para ter filhos”. Ela conta que seu marido jamais se queixou pela ausência
de filhos “mas que com os antigos era assim”. O principal objetivo do casamento eram
os filhos para trabalhar na roça e para auxiliar os pais nas mais diversas tarefas. Dona
Lídia conta que ia ao desespero por não ter filhos após seu primeiro ano de casada.
Escondida do marido que trabalhava em Camaquã e que vinha visitá-la de vez em
quando, levando às vezes mais de um mês para procurá-la, Dona Lídia foi ao médico do
sindicato pedir um tratamento para a gravidez. Prontamente o médico lhe receitou banana
do “céu” e maçã, laranja do céu e um “bifezinho”, banho de sol, às 10:00 h da manhã,
por meia hora, vitamina e injeção de “cálcio”. Conta que após o tratamento, a primeira
vez que seu marido “veio passear, deu”. Dona Lídia teve um total de 19 partos, perdeu
um casal de gêmeos e mais quatro filhos pois ela “não segurava mais”. Em uma
oportunidade que a visitei, Dona Lídia me disse que atribuía sua propensão a ter filhos
gêmeos ao fato de comer muita banana gêmea. Ela disse que teve seus filhos homens em
casa com parteira e as mulheres em hospital “pois eu não tinha mais forças”.
A parteira ajudava a mãe no parto: “quando viam a cabecinha elas puxavam”. Na
época em que Dona Lídia teve seus filhos, ao longo da década de 50 e 60, havia duas
parteiras na região de Morro Alto: Chiquinha, a “alemoa”, que atendia nas localidades
162
de Morro Alto, Despraiado e Ribeirão e uma catarinense, no Faxinal do Morro Alto.
Olina, a pessoa que “criou” Lídia atendia quando lhe chamavam, “ela só atendia,
atendia mas não gostava”. Dona Olina atendia, cortava o umbigo e tudo. Há estórias que
relatam os momentos de desespero de uma mãe que vê seu filho se esvair em sangue ao
ter seu umbigo cortado e amarrado errado por uma parteira irresponsável, pois para
amarrar “tem que ser na hora”. O destino que se dá ao umbigo também é importante
pois se enterra o umbigo em “roças” ou numa “mangueira” que é para a criança se
“afeiçoar” aquilo. O maior infortúnio que pode vir a ocorrer com o umbigo de um recém
nascido é “deixar que o rato o coma” pois daí vira ladrão, “diz que é a coisa mais
triste”.
Dos 19 “partos” pelos quais Dona Lídia conta ter passado, relata que até o quarto
vivia fora de Morro Alto. Depois de perder os gêmeos em Rio Grande, onde vivia com
seu marido após sua transferência de Camaquã, ele “assentou, enjoou daquela vida”
ambos vieram de volta para Morro Alto e se estabeleceram nas terras de herança do
marido no Ribeirão. Dona Lídia comenta que passou por um período difícil pois tinha
vários filhos pequenos, não tinha ninguém que a ajudasse e sua mãe, Maria Laurinda,
comportava-se como visita ao ver a filha e os netos. Após todo esse tempo Maria
Laurinda veio a “ajuntar-se com João Júlio, ex-marido de Iraci Olina, filha de Dona
Olina que acolheu a família de Lídia.
Quando pergunto se tem alguma “coisa” que Dona Lídia ficou de sua mãe ela me
responde que não. Conta que embora Maria Laurinda tenha vivido em Morro Alto, no
solo onde Dona Olina lhe acolheu e onde ainda hoje vive seu filho mais moço,Osvaldo,
Maria Laurinda faleceu ali, em sua casa no Ribeirão. Dona Lídia conta que durante três
meses cuidou de sua mãe em casa: lhe alimentava por sonda processando todos os dias
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alimentos no liquidificador, eram trocas e trocas de roupa de cama. Ela estava “na
coma”, e à noite, conta Lídia, não deixava ninguém dormir pois ficava “chamando,
chamando”. Além disso, seu Ermenegildo foi operado na mesma época. Dona Lídia
conta que estava cuidando de dois e às vezes sentia que não cuidava de nenhum.
Enquanto isso, as roupas, as fotografias, as “coisas” eram pegas por Claudia, uma neta
que estaria “carregando as coisas para a casa do pai dela” e por Teresa, esposa de seu
irmão caçula Osvaldo, que ficou com as fotos, “inclusive as minhas fotos e de minhas
irmãs”. Teresa levou roupas, roupas que doou e roupas com que ficou como uma
camisola, por exemplo, já Claudia levou pequenos objetos como louças de cozinha.
Quando faleceu, Maria Laurinda já não possuía mais “bens” além das lembranças.
Após contar essa estória maravilhosa, Dona Lídia disse que lhe deu uma sepultura no
cemitério de Morro Alto, “com fotografia e tudo” e que não “tem” nada que tenha sido
de sua mãe. Nada além da maior parte da memória familiar.
4.3 Situacionalidade e poderes a partir da estória dos casamentos de oito
mulheres da comunidade negra de Morro Alto.
a) Clarinda e Cândida: o casamento como “destino”.
Dona Clarinda Rosa de Souza, Dona França, nasceu em São Francisco de Paula,
sendo a filha mais velha dentre 13 irmãos. Embora sua mãe, Maria José Soares dos
Santos, fosse “serrana” seu pai, Franklin Antônio dos Santos, era “da li”, do Faxinal do
Morro Alto. Ela casou aos 22 anos, em meados da década de 40, após um noivado
desfeito em Capela do Lajeado aos 16 anos. Posteriormente, ela e sua família retornaram
ao Faxinal do Morro Alto onde morou, solteira, por seis anos. Seu marido, o Zeca, José
Rosa de Souza, era natural do Faxinal do Morro Alto, como seu pai. De certa forma,
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poderíamos ser levados a crer na pertinência da troca de mulheres entre localidades
relativamente distantes, não vicinais, como São Francisco de Paula – Morro Alto –
Capela do Lajeado. Ao frustrar a primeira tentativa de aliança realizou-se uma outra, que
reforçou os laços vicinais da família do pai de Dona França. Zeca, José Rosa de Souza
era filho de Rosa Gasparina de Souza, moradora do Faxinal do Morro Alto e neto de
Gasparina, nascida em 1863, escrava de Manuel Antônio Marques.
Ela casou e “fechou a rosca aí ”: residiu no Ribeirão, depois passou a habitar as
ilhas” do delta do Rio Maquiné, primeiro a Ilha do “Selvino, que era dos Rumão”,
depois foi para o Jaguarão, por fim, comprou a terra que ocupa no Cantagalo, na encosta
do Morro Maquiné. Afinal, assim como seu pai Zé não possuía uma terra para chamar de
sua. Na sua opinião, foi “agregada de todo mundo” . Lembra-se que um dos últimos
proprietários de terra, com o qual sua família ficou, apelidou seu marido de “caboclo”.
Os proprietários mudaram, porém a terra e os agregados permaneciam. Mais que isso,
seguiam juntamente com a terra como um acessório, eles simplesmente ficavam
enquanto persistisse o interesse em sua força produtiva. O caboclo nesse caso, único em
que essa expressão foi referida na pesquisa de campo, foi atribuída por um agente
externo à comunidade. Se, conforme a fala de Dona Clarinda, o “Rumão” era “moreno”,
Doutor Zeni, que “caboclizou” seu marido era branco, da mesma forma que Doutor
Osvaldo Bastos, advogado, proprietário da “ilha”.
Na visão de Dona França, casar com Zeca já era o seu “destino”:
“Ent. – E me conta uma coisa Dona... França, como é que a senhora
conheceu o seu marido Dona França?
D.F – Ah, eu já vou te contar do começo, do meu marido, que é tudo
por Deus...
Ent. – Tá.
D.F – A falecida minha mãe quando casou-se,eu tinha um mês,até que
ela mudou-se] para cá. Aí, pagou o meu marido para, foram para
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trabalhar.O falecido meu pai, ele era natural daqui, ela [a mãe] é
serrana,aí ela pagou ele, ele tinha uns doze anos, para me cuidar.
Quando eu fui me embora, eu estava com dez meses, voltei com 22
anos, ia fazer,me casei com 22 ano, ele.
Ent. – Com ele?
D.F – Ele me cuidou, de mim quando eu era pequena, né, e quando eu
vim de lá, eu vim com 16 anos,lá de... e me casei com 22 e fui casar,
com ele que me cuidou.
Ent. – Mas olha só!!Já pen...
D.F – (...) lá no céu se é verdade! Olha, rolei, que fui noiva em cima da
serra com 16 anos, não quis, pra vim casada com....
Ent. – Foi noiva em cima da serra?
D.F – Fui...
Ent. – Que...aonde que a senhora foi noiva...?
D.F – Na Capela do Lajeado!
Ent. – Capela do Lajeado?
D.F – É, do outro lado de lá.
Ent. – De Capela do Lajeado?
D.F – É.
Ent. – E lá na serra a senhora foi noiva...
D.F – Do outro rapaz...
Ent. – Do outro rapaz.
D.F – Eu tinha 16 ano, depois vim me embora, digo, eu não vou deixar
dos meus pais. Eu me casar e ficar aqui sozinha[em Capela do
Lajeado]?
Ent. – Sim.
D.F – Já não era meu destino ?Era pra casar com aquele que me
cuidou desde pequeninha.”
(Entrevista concedida por Clarinda Rosa de Souza,
a Marcelo Vianna e Cíntia Beatriz Muller,
Cantagalo, 08 de setembro de 2001.)
Na fala de Clarinda, ficam evidente alguns fatores. Clarinda teve um noivado que
não deu certo e sua interpretação para isso era que a distância a separaria de seus pais.
Podemos deduzir que casar implicaria, nos valores da época no abandono de sua família
de origem. Existem em seu discurso fatores que nos levam a interpretar que a regra era a
virilocalidade, ou seja, a co-habitação se dava nas dependências da casa do marido.
Porém fica, de certa forma clara, a possibilidade oferecida à noiva em optar por não
166
casar: foi a noiva quem se posicionou contra o casamento e optou por não entrar na
família do ex-noivo.
A estória de Clarinda dá ensejo, também, para uma análise a partir de outra
perspectiva. É curioso que Zeca, o marido que o “destino” lhe deu, tenha permanecido
solteiro no Faxinal do Morro Alto apesar de ser 12 anos mais velho que ela. Isso nos leva
a ponderar sobre duas possibilidades: havia poucas mulheres disponíveis na região na
década de 40 ou Zeca não era um parceiro preferencial no rank de status na comunidade.
Clarinda viveu parte de sua vida em Capela do Lajeado, terra originária de sua mãe. O
retorno de sua família para o Faxinal do Morro Alto parece ser algo que foi decidido de
forma concomitante com a ruptura de seu noivado. Deduzo que sua família era
relativamente pobre para os padrões da época e parece não ter tido terras onde viver.
Ellen Woortmann destaca que o casamento envolvia a questão dos bens de cada
família, ou seja, os interesses envolvidos no arranjo matrimonial. “As negociações entre
as famílias dos noivos são fundamentais para a reprodução de cada patrimônio familiar e
são importantes também para a definição do status da nova esposa após o casamento”
(Woortman 1995;162). É a opulência do patrimônio familiar que irá influir na idade do
casamento dos jovens, aqueles pais que têm possibilidade de transferir parte do
patrimônio ainda em vida a seus filhos tendem a casá-los mais cedo, o contrário se
com os colonos chamados “fracos” cuja força de trabalho dos filhos é significativa na
propriedade. Quanto à questão de gênero, dá-se privilégios a que os filhos e filhas mais
velhos casem antes. Sendo praticada a ultimogenitura os filhos mais velhos são
incentivados a deixar a residência paterna assim que seja arranjado um casamento ideal.
Da mesma forma Zeca ou a família de Zeca, descendentes da escrava Gasparina,
ao que parece foram “expulsos” do Faxinal do Morro Alto. A localidade está na borda,
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na fronteira leste do território da comunidade, hoje em dia. Antigamente, de acordo com
um velho morador da região da Prainha, ali existia “muito mato, porém vieram os
“Bassano” e cortaram tudo, abrindo campo. Se o casamento era o “destino” de Clarinda
e ela já havia evitado um, Zeca, um solteiro que parecia não possuir um “terreno” seu,
poderia ser o parceiro potencial de Clarinda. Some-se a isso o fato de que, de certa
forma, a família de Clarinda já a havia confiado uma vez aos cuidados do futuro esposo,
ou seja, de certa forma Zeca não era um “estranho” à família de França. O casamento
apenas reafirmou laços de confiança preexistentes.
Dona Cândida José de Jesus tem 76 anos. Seu nome de solteira era Cândida José
da Rosa e ela é natural de Aguapés. Seus pais eram “José Domiciano da Rosa” e sua mãe
“Paulina Gaudina da Rosa”, porém Cândida foi criada sem mãe e Esmeraldina dos
Santos ajudava seu pai. Oficialmente, seu pai está registrado como José Domiciano da
Costa, o Zé “Barranceira”. O sobrenome, na região de Morro Alto, obedece a uma certa
mobilidade que está para além do registro nos papéis: da Costa serve, às vezes, para
designar uma pessoa em relação ao seu local de nascimento e/ou residência como sendo
na Costa da Lagoa dos Quadros, por exemplo. O apelido de Zé é outro exemplo.
“Barranceira” é uma localidade que está localizada entre Morro Alto e Aguapés.
Por outro lado, Rosa, Silveira e Nunes eram sobrenomes apropriados
situacionalmente, dependendo do patrão com quem se trabalhava. A movência dos
sobrenomes produziu um sistema de nominação entre os negros da região, no qual o
nome do meio é o que designa o pertencimento familiar de longa duração (Barcelos,
2004) e informa a posição que a “pessoa ocupa na hierarquia social” (Bourdieu, 1962)
interna, da comunidade. Essa situacionalidade do sobrenome não é uma peculiaridade de
Morro Alto, foi encontrada também na região de Restinga Seca (Anjos, 2004). Pertence a
168
um dado momento histórico e , ao que parece, é característico dos grupos de ascendência
étnica negra. Dessa maneira, as pessoas se apropriavam de uma parcela do status de seus
patrões entrando no jogo de acomodação de poderes locais.
Cândida é neta de duas escravas, pelo lado de pai e mãe, respectivamente,
Domiciana e Lucia Juliana, tendo essa última sido liberta e herdado terras localizadas em
Aguapés, no Cantão. Cândida casou com Natalício Hermenegildo de Jesus, do Espraiado,
cerca de 40 anos mais velho que ela. Era filho de Amélia Vitalina de Jesus e
Hermenegildo Luís Francisco. A princípio o casamento de Cândida nos pareceu
incongruente, um homem aproximadamente 40 anos mais velho. Porém em conversas
informais, com outras pessoas da região, descobrimos que Dona Cândida casou grávida.
Assim, se por um lado seu casamento não foi celebrado com seu parceiro preferencial,
por outro, parece ter assumido contornos de uma espécie de “punição”, na qual a honra
familiar foi “salva”.
Para Dona Cândida, a família de Dona Clarinda era uma família de
“posteiros”. “Posteiros” é também a atribuição que ela afirma ter desempenhado seu
marido. Segundo pessoas da comunidade e da própria Cândida, Natalício e ela teriam
sido enganados por seu primo Valério (filho de Florêncio, irmão de “Barranceira”).
Quando casou seu marido tinha um pequeno pedaço de terra e teria sido convencido a
vendê-lo por Valério que vinha se tornando dono dos terrenos no Borba. Aparentemente,
por razões que ainda desconheço, Valério teria procedido ao cercamento das terras
naquela localidade, assim como foi profissionalmente definido como “agrimensor” por
Dona Cândida. Conforme processos jurídicos e relatos de outras pessoas da comunidade,
ela e o marido teriam sido postos ali e tais terras teriam deixado de ser interessante para
seus “proprietários” por cerca de 20 anos. Nesse meio tempo, o dinheiro da venda da
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terra de seu marido foi empregado na compra de comida e mantimentos, uma vez que ela
não recebia dinheiro por “cuidar” das terras. Lembremos que ela casou grávida, aos 16
anos, com um homem de 56 anos.
Dona Cândida relatou como seu casamento foi algo que o “destino
reservou:
“D. A. – Esmeraldina dos Santos, ela é morta também. E os tios dela
moravam aqui. Agora, tu escuta bem, como é que acontecem as coisa.
Eu era desse tamanhozinho e era a companhia dela. Daí, tinha um
moço solteiro, né ? E eu chamava: “- Tio dá benção, dá benção”.
Vocês acreditam, por incrível que pareça, esses anos eu cresci, fiquei
moça e casei com ele. Sem nunca... Prá ti vê o que é o destino.
(...)
Ent. – Qual a idade da sra.?
D. A. – 74, nasci em 1928. É uma data hein ?
Ent. – E quantos anos tinha o seu marido, D. Cândida, quando a sra.
casou com ele ?
D. A. – E agora ? A “papelama” está toda em Osório.
Ent. – Não, mas ele era mais velho que a sra. quanto tempo ?
D.A. – [40 anos, sussurra.]
Ent. – Ah !
D. A. – Mas eu tô dizendo: que eu era criança, assim, e chamava ele de
tio. Então, prá você vê, eu disse casamento é destino. Claro que é, por
mim eu tiro, né, vocês já pensaram ?
Ent. – A sra. disse que conheceu ele quando vinha prá cá ?
D. A. – Sim era companhia dela, prá ela vir na casa dos tios. Os pais
dele eram tios dela.
Ent. – Ah, é?
D. A. – Sim, dessa Esmeraldina.
Ent. – Essa Esmeraldina casou por acaso? Aqui ?
D. A. – Não, casou em Porto Alegre.”
(Entrevista concedida por Dona Cândida José de Jesus,
a Cristian Salaini, Rodrigo Weimer e Cíntia Muller,
Borba, 08 de novembro de 2001.)
Outra forma de exercício do poder na comunidade é o caráter que poderíamos
chamar de punitivo conferido ao casamento. As mulheres mais “rebeldes” são destinadas
aos parceiros de menor status, ou seja, “os que sobravam” e, principalmente, os “homens
170
mais velhos”. Acredito que a existência de homens mais velhos, celibatários, mesmo que
possuidores de terras chama atenção para a existência de uma geração na qual as
mulheres eram escassas, logo sucedida por outra na qual as mulheres que não se
enquadravam no discurso moral da comunidade eram obrigadas a se unir a homens mais
velhos. O casamento como “destino” está nos falando das regras de recrutamento de
parceiros, da existência da expectativa, por parte da família extensa e da comunidade, de
que a mulher deve casar, endossando uma das formas de dominação a que a mulher
estava submetida, ou seja, ao casamento como arena da domesticação da mulher
selvagem e de alternativa de re-enquadramento na moral comunitária por meio da tutela
de homens mais velhos.
b) Mulheres que vêm “de fora”.
Dona Ângela Reginalda da Silva tem, atualmente, 83 anos. Sua mãe foi
Guilherma Inácia da Rosa e seu pai Sebastião Galdino da Rosa. Dona Ângela tem alguns
apelidos dentre eles “Negra dos Quilombos”, que ela parece não gostar muito, e “mana”
por parte da família dos Tereza. Como descendente da família Galdino, sua infância foi
passada no “Cantão”, local de residência de sua família extensa, onde hoje vive Seu
Sebastião, o “Bastiãozinho”, seu irmão. Ele teve doze irmãos: sete irmãs e cinco irmãos.
Ela descende de escravos e libertos que herdaram terras em Aguapés. Em sua juventude,
Ângela passou algum tempo em Porto Alegre. Nunca especificou exatamente o que fez
na capital, mas o importante é que ela retornou para Aguapés e veio a se casar com
Manuel Hortêncio da Silva, mais conhecido como Manuel Hortêncio, dos Hortêncio,
171
cujos domínios de seu fundador ficava na Barranceira. Ela casou relativamente tarde, aos
31 anos, mas seu marido já tinha 58 anos. Ele faleceu em 1977, aos 84 anos.
“Ent. – E a sra. conheceu seu marido onde ?
D. A. – Vou te contar bem a história, uma história engraçada. Esse
meu marido, quando minha mãe casou , ele tinha dezenove anos e dizia
assim “papai não casa, rouba”.
D.M. – Sabe o que é “roubar’?
Ent. – Não.
D. A. – Roubar moça. “Não casa, rouba”, de brincadeira, né. Eles
eram amigos [o marido dela e seu pai]. Daí, a minha mãe e meu pai, a
minha mãe casou, me construíram, né. Daí sabe, era amigo de minha
mãe e de meu pai, eu chamava de tio, do tempo do benção: “A benção
tio Manuel”, [ela pedindo a benção para o tio, futuro marido]. Quando
ia e vinha do armazém, ele me dava um tostão de bala: “-Quer compra
balinha?”, “-Quero!”[ ela reproduz o diálogo que tinha com Manuel].
“-Qué uma balinha?”, “-Quero!”, “- Vai lá e dá um lencinho prá
Ângela de presente”. Eu era pequena, né ? Depois acabei me casando
com ele.
Ent. – Pois é...
D. A. – Depois de tio virá marido, e nem tio, não era nada.
D.M. – Porque, antigamente, a gente mais era tio, né?
Ent. – Mais era tio, né.
D. M. – É e tinha que dá benção. Ninguém chamava assim, né, pessoal
era mais velho, era tio.
Ent. – Mas, Dona Maria, me conta como é que era esse negócio de
rouba a moça, por que é que se roubava moça?
D. M. – Prá não casa. Às vezes, os pais não queriam o casamento, né.”
(Entrevista com Ângela, a “Negra dos Quilombos”,
Maria, sua prima, e Sebastião, seu irmão, feita por
Mariana Fernandes, Rodrigo Weimer e Cíntia Müller, em
19 de outubro de 2001, Barranceira.)
Dona Ângela mudou-se do “Cantão” para a terra dos Hortêncios na
Barranceira, reforçando nossa teoria de que, via de regra, as residências se estabeleciam
pela regra da virilocalidade. Seu marido tinha pelo menos cinco irmãos de quem ela
lembra. Maria a filha de Avelino Hortêncio, sobrinha de Ângela, é casada com o irmão
desta, Sebastião Galdino: “é minha prima mas chama de tia porque ela é casada com
meu, com o irmão da mãe, né? A família é complicada, né?” (fala de Rosa, filha de
172
Ângela, n. 11 na genealogia da Família Gaudino e Hortêncio que exponho logo em
seguida). Também é interessante, neste caso, a constituição de alianças entre grupos
familiares através da troca de mulheres entre homens que permaneceram no pedaço de
terra da família. Dona Ângela e sua filha são as últimas mulheres do ramo dos
Hortêncios a viverem na Barranceira. Próximo à entrada dos Aguapés, ainda reside um
sobrinho de Manuel Hortêncio, filho de seu irmão João, o “Nenê”, solteiro. Em visita que
realizei a sua casa, ele se negou a ser entrevistado.
Ângela não vê seu casamento como um “destino”, mas como algo
engraçado. Não surge em sua fala o elemento de fatalismo, no sentido do inevitável,
atribuído por Clarinda e Cândida. Bastante pelo contrário, Ângela parece estar nos
dizendo que seu marido aceitou os ditames da etiqueta da época e casou com ela quando
poderia tê-la roubado. Afinal não foi ele que aconselhou o pai de Ângela a roubar sua
mãe? Ângela demonstra que já recebia algum tipo de atenção especial daquele que seria
seu marido desde a infância, no sentido não de ser “cuidada/vigiada” mas de ser
“cuidada/paparicada”.
Novamente, na estória de Ângela, ouvimos a narrativa de uma mulher que
casou com um homem mais velho, mesmo um herdeiro de terras. Ao longo de várias
entrevistas nunca surgiu qualquer comentário desabonatório quanto a vida de Ângela,
muito pelo contrário, ela sempre foi uma referência no conhecimento da vida da
comunidade. Por que Ângela casou com um homem que “sobrou” e que, além disso, era
amigo de seu pai? Acredito que o fato de Ângela ter permanecido um período de sua
vida fora de Morro Alto contribuiu para que perdesse o momento da constituição das
redes de trocas do mercado matrimonial da região. Sua ida a Porto Alegre é cercada
de mistério quanto ao que realizou na cidade, porém o fato de ter retornado sugere seu
173
“insucesso” em permanecer lá. Quanto à recorrência dos parceiros escolhidos entre os
“amigos do pai”, uma geração muito próxima a paterna, comuns nos casos de Clarinda,
Ângela, Carmem, vou aprofundar o assunto ao discorrer sobre o caso de Raimunda que
quebrou a regra da escolha paterna.
Dona Mafalda dos Santos Romão tem “sessenta e poucos anos”, foi criada
próximo da lagoa do Emboava. Seus pais eram João Felomena dos Santos e Cândida
Cristina Salazar. Sua avó foi Felomena. “Ela era negra da cozinha dos Marques”, por
isso ganhou um terreno na entrada de Tramandaí, próximo ao parque General Osório,
que “depois o Seu Romário tirou”. Seu marido, Vilmar da Silva Romão, é filho de
174
Joaquim e Eugênia, sobre os quais não consegui mais detalhes. Em determinado
momento da entrevista Mafalda fala que ela e seu marido são “primos”. Assim, a relação
de parentesco entre Mafalda e seu marido permanece um pouco nebulosa, embora possa
existir ideologicamente. No entanto, a avó paterna de Mafalda, Filomena, foi separada de
suas irmãs que ficaram na Comunidade de Morro Alto, nas localidades de Ribeirão,
Despraiado e do núcleo, Morro Alto.
Quando veio para Morro Alto, já casada, Mafalda passou a residir em um
outro terreno, não no que vive atualmente. Ela foi morar no terreno da família do marido,
mas o terreno era muito apertadinho, eram muitos herdeiros”. Por isso, Seu Vilmar
teve que comprar outra terra (curiosamente no terreno dos Ramão), pois Dona Mafalda
não se habituou a viver com tanta “fofoca”. Ela foi vítima de uma da maiores armas de
ataque das mulheres, a fofoca. Pela conversa que tive com Mafalda, se tratavam de
pessoas “iguais”, como sugere Fonseca (2000: 49), “por toda a parte onde há rivalidade
entre pessoas quase iguais existe fofoca. Em primeiro lugar, no interior das famílias: as
irmãs disputam os favores da mãe, as cunhadas os da sogra. Mas essa rivalidade é
evidente, sobretudo, quando uma pessoa é incapaz de devolver à outra bens emprestados
e favores feitos”, (2000: 49). Além disso, Mafalda era “de fora” da comunidade e seu
grupo familiar não poderia socorrê-la no caso.
Após passar a residir onde vivem hoje, há 40 anos, Dona Mafalda e Seu Vilmar
abriram um “botequinho de comida” onde ela cozinhava. Desempenhou a mesma
profissão de sua avó, porém em cozinhas diferentes, por razões diferentes. Para Dona
Mafalda, foi na festa do Maçambique a ocasião de sociabilidade que permitiu dar início,
publicamente, à corte, ao namoro propriamente dito, uma vez que a forma como Vilmar
175
se relacionava com a família de Mafalda não foi explicitada. O casamento de ambos
parecia ser algo desejado pela família dela.
“Ent.- E seus pais eles viveram a onde D. Mafalda ?
D. J. - Meu pai e minha mãe eu conheci eles ali mesmo. Eu tenho a
lembrança de ter conhecido eles ali. Quando meu pai morreu, eu já era
casada e minha mãe morreu logo em seguida também, onde eu me
casei e vim prá cá.
Ent. – A sra. foi criada por...
D. J. – Fui criada lá! No Emboava.
Ent. – E como é que a sra. conheceu o Seu Vilmar ? Como é que a sra.
conheceu o seu marido ?
D.J. – Ele é um pouco da família.
Ent.- Mas como é que é isso? Como é que se dá esse parentesco ?
D.J. – Ah, a gente se encontrou e ficamos nos conhecendo. A minha
mãe queria muito, o meu pai também e aí nos casamos.
Ent. – Mas se encontraram, assim,num baile...
D. J. – Foi numa festa, numa festa em Osório.
Ent. – A sra. lembra qual foi a festa ?
D. J. – Nossa Senhora do Rosário.
Ent. - O Seu Vilmar era maçambique, dançante ?
D.J. – Não, não, ele não era nunca foi, nós íamos assistir.
Ent. – E foi nessa festa que a sra. então conheceu o seu Vilmar. Foi há
muito tempo isso ?
D.J. – É foi. Há 47 anos.”
(Entrevista concedida por
D. Mafalda dos Santos Romão,
para Paulo Moreira e Cíntia Muller,
Morro Alto, 14 de março de 2002.)
Pela estória de Mafalda podemos nos dar conta de uma outra dimensão da
escassez de mulheres na região, nos idos dos anos 50, e da importância do baile do
Maçambique. Nesse caso, o baile reaproxima parentelas dispersas a partir de critérios
de seleção daqueles que o freqüentam, tal como religiosidade e cor da pele, ampliando o
raio de alcance do mercado matrimonial da Comunidade de Morro Alto. Mafalda e
Vilmar se encontraram no baile em Osório, pois é nessa cidade que se realiza a festa de
Nossa Senhora do Rosário. Esse fato contribui para pensarmos no papel que o baile tem
176
para o incremento das redes de relações familiares e por qual razão isso se dá. Mafalda
vem de fora, mas não é uma completa estranha, é uma “parente” de seu futuro marido.
Ao que parece, o importante era não casar com alguém estranho, não necessariamente
de “fora” de Morro Alto, mas alguém que compartilhasse a mesma gama de valores da
própria comunidade e, não por coincidência, a cor negra de sua pele.
c) Carmem: “aí, eu sei que não, não tinha perigo, era um homem muito
caprichoso, muito trabalhador...”
Dona Carmem vive na Prainha, localidade vizinha a Morro Alto com a qual
mantém uma relação de identidade muito próxima. As pessoas que vivem em ambas as
comunidades participam ou participaram do Maçambique. Assim os casamentos entre
pessoas destas comunidades são constantes. O marido de Dona Carmem, quando ambos
“se acertaram”, havia saído de um relacionamento com uma mulher do Ribeirão.
Euclides Valêncio, filho de Valêncio Ventura de Quadros, passou pelo “despejo das
ilhas”
enquanto vivia com sua primeira esposa, ou seja, ele perdeu suas próprias terras
e retornou para morar na terra paterna. Ele vivia e plantava em campos ocupados por
negros da comunidade de Morro Alto e que, com o cercamento, passaram às mãos de
proprietários brancos. Após esse episódio, ele retornou às terras de seu pai na Prainha,
ocasião em que veio a se “acertar” com Dona Carmem. Dona Carmem tem ascendência
italiana, é branca e benze, também é tida como “louca” por alguns moradores dali,
principalmente seus vizinhos.
Dona Carmem e Seu Euclides Valêncio permaneceram casados por 49
anos, vivendo nas terras que eram do pai de Euclides. Ela tinha 68 anos na época da
177
entrevista e a diferença de idade entre ela e seu falecido marido é de 13 anos. Ela teria
se “acertado” com ele com a idade de 19 anos.
“Ent. – Como é que a senhora veio conhecer o seu marido D.Carmem?
D. I. – Olha, eu vim a conhecer, eu vou contar como é que eu vim a
conhecer. É que naquela época, eu também era casada e tinha
enviuvado, e depois, daí, eu comecei a ver que eu não ia dá conta de
criar sozinha os dois meninos que eu tinha. Eu achei que...se
aparecesse um companheiro bom, eu deveria me acertar com ele pra
dividir...Ai vai e vai, quando me apareceu, até tava na minha casa de
manhã, apareceu duas morenas: a Geni e a Tuja. Foram lá conversar
comigo, porque ele conhecia muito meu pai eles trabalhavam junto na
granja, mas eu não tinha conhecimento. Ele também estava casado,
mas estava separado da mulher dele, e estava sozinho. Daí eu fui, elas
me explicaram direitinho como é que era, aí fui pedir um tempinho pra
pensar...Perguntei se era um homem trabalhador, que não tivesse vício
nenhum...Aí, eu sei que não, que não tinha perigo, que era um homem
muito caprichoso, muito trabalhador...era homem muito bom mesmo,
que não tinha feito de nada. Aí eu acabei aceitando, né ? E daí pra cá,
graças à Deus, eu não me arrependi...
Ent. – Ah, então foram duas pessoas que foram perguntar pra senhora
se a senhora queria...
D. I. – Foram, foram duas pessoas que tiveram lá, de manhã na minha
casa....era uma irmã dele de criação e uma sobrinha dele...que sabiam
que ele tava sozinho, tinha se separado da mulher e precisava de uma
companheira com ele para cuidar do que era dele.
Ent. – E vocês dois não se conheciam então?
D. I. – Não, ele conhecia muito meu pai.”
(Entrevista concedida por Dona Carmem Sabóia de Quadros a
Cíntia Muller e Marcelo Vianna,
Prainha, 08 de setembro de 2001.)
O marido de Carmem era maçambique e o pai dele também o fora. Aquela era
“uma festa da negrada” como conta Dona Carmem. Embora ela tenha a tez clara e seja
filha de pessoas com os nomes de Maria Ângela Maurel e José Savóia, o que poderia nos
levar a crer em uma possível ascendência italiana, ela e seu marido tinham algo em
comum quanto a identidade étnica: bisavós índias. Tanto a avó do pai de Euclides,
quanto a avó do pai de Carmem eram índias. Ambas foram cativas pegas nos matos “a
178
força” e postas para trabalhar nos morros e nas roças. Além disso, ambos
compartilhavam a identidade social de camponeses.
Soma-se a isso o fato de que para o grupo familiar de Carmem mantê-la , viúva e
com filhos, deveria ser difícil. Da mesma forma que para Euclides, novamente um
“amigo do pai” de Carmem, viver sozinho também era. Tal qual nas colônias alemãs do
Rio Grande do Sul, como documentado por Woortmann (1995), aqueles que ficam
sozinhos para além da expectativa da comunidade eram apresentados por outros casais
como parceiros em potencial. Nesse caso, não é a idade que conta mas a necessidade de
manutenção e subsistência de uma parcela da família, no caso, a que envolvia Carmem,
seus filhos e o próprio Euclides. Afinal Euclides não era estranho ao pai da moça, muito
pelo contrário. Da forma como Carmem conta a estória nos leva a entender que ele e
seu pai já haviam elaborado a possibilidade de um “acerto” entre eles.
Neste caso Dona Carmem já tendo dois filhos casa-se com um homem
conhecido de seu pai. Não é uma coincidência o fato de parentas de seu futuro esposo a
procurar estabelecendo uma espécie de mediação, pois, ao que parece, tudo já estava
conciliado. O acordo entre as famílias só foi implementado após a “anuência” de
Carmem que percebe em Euclides as características do esforço para o “trabalho”,
ausência devícios” e “capricho”. É curioso questionar quanto da participação de
Carmem existiu nesse “acerto” que deu origem ao seu “casamento”. Se ela não conhecia
o futuro marido por um lado, por outro, criar filhos pequenos sem a ajuda de um parceiro
não teria sido uma coisa muito fácil e esse fator deve ter pesado em sua avaliação.
Apesar de todos esses “acertos” e táticas de arranjos entre famílias, no
entanto, Dona Carmem é a pessoa que está na terra de seu sogro. É ela quem está no
terreno dos Valêncio na Prainha, talvez assim esteja retribuindo a dádiva de ter sido
179
aceita no grupo familiar. Outros cunhados foram para Capão da Canoa e deixaram o
local. Na época da entrevista uma das filhas de Dona Carmem, Angelina Custódia,
continuava vivendo ali, juntamente com um irmão “solteirão”. Outra havia migrado para
o município de Gravataí em busca de emprego. Na data da entrevista, veio buscar seu
filho que estudava na Prainha, mas queria ir com ela para aquele município. Em suma,
aparentemente a anuência de Dona Carmem ante o seu casamento parece ter significado
muito mais a concordância em se submeter às regras de uma organização social maior,
qual seja, o do arranjo de alianças entre famílias extensas manutenção de relações
sociais, da família extensa e das terras da família.
d) Raimunda: o início da construção da personagem “Rainha Jinga”
Dona Raimunda relaciona sua identidade com o Faxinal do Morro Alto. Seus pais
moravam lá e seu umbigo está enterrado naquela localidade. Filha de um pai bastante
autoritário, cujas surras “deixavam de cama”, Dona Raimunda teve coragem de se
rebelar. Ela mesma é uma descendente dos ex-escravos descendentes de Rosa. Contou-
nos sua história em uma tarde de temporal em Osório, onde vive agora. Estava noiva de
um rapaz de Morro Alto, “do mesmo sangue”, mas não aceitava isso. Assim, quando
encontrou Acrísio, ou Bamba, em um baile de São Benedito, fugiu com ele. Não por
acaso, outro casamento iniciado durante uma festa do Maçambique. Embora ela,
aparentemente, não saiba, de acordo com outros entrevistados, isso causou escândalo em
Morro Alto pela forma rápida com que ela decidiu ir embora com Acrísio para Palmares,
de onde ele era.
Raimunda viveu em Palmares durante alguns anos. Com a doença de sua mãe foi
chamada para voltar a Morro Alto a fim de cuidar dela. Sua mãe faleceu há 30 anos, no
180
início da década de 70, desde então Raimunda vive em Osório, no Bairro Caravágio. A
história de Raimunda seria contada de forma menos intensa se omitíssemos um dos
maiores dramas de sua vida: o fato de não conseguir fazer seus filhos “se criarem”, ou
seja, fazer com que eles vivessem após o parto. Ela perdeu três filhos e da terceira ela
lembra com muita emoção, era uma menina. Dona Raimunda foi para o hospital à noite e
a ganhou, mas a garotinha não sobreviveu. No dia seguinte pela manhã, conforme ela nos
contou, caminhou levando sua filha morta nos braços até Morro Alto, onde a enterrou no
cemitério de Aguapés.
Dona Raimunda é, atualmente, a Rainha Jinga do maçambique. É a autoridade
máxima dentro do grupo, mesmo que alguns a estejam criticando por sua falta de pulso.
A relação com o maçambique estava sendo construída ao longo de sua trajetória familiar.
Seu pai foi um dançante, seu tio “zelador de Nossa Senhora”; Maria Teresa, uma famosa
Rainha Jinga, era sua tia. Assim, quando Raimunda foi morar em Osório, Maria Teresa
lhe chamou para conversar. Além de irmã de seu pai, Teresa era madrinha de Raimunda.
A partir dessa primeira conversa Raimunda, passou a ser pajem de Maria Teresa. Porém,
apesar de todo o status de sua posição de nascimento, não foi conferida à Raimunda a
possibilidade de escolha de um parceiro. Conforme ela nos conta:
“Ent.- Fugiu de casa pra casar Dona Raimunda?!
D. S. – Quem fala sua verdade não merece castigo! Mas eu não queria
o noivo!!! Eu era noiva!
Ent. - Lá de Morro Alto, ele era?
D. S. – O rapaz era lá de Morro Alto e eu não queria o rapaz.
Ent.- Mas por que noivou com ele Dona Raimunda?
D.S.- Porque o papai queria! Naquele tempo o pai era quem mandava.
E eu achei um rapaz, fiquei doida por um rapaz, né?
Ent. – E de onde era esse, que a senhora achou?
D.S.- Era lá de Palmares. E eu dizia:”-Tomara que eu não me case
com o moço daqui”. Porque eu tenho ódio de Morro Alto! Tenho ódio
minha filha!!! Ali eu me criei, casei, criei meus filhos, mas tenho ódio
do lugar!
181
Ent.- Pelas coisas que aconteceram?
D.S.- Aconteceu muita coisa minha filha ! O que aconteceu ali pra
mim, Deus que me perdoe! Aí, apareceu esse rapaz e o papai não
queria. Não se podia levar namorado em casa. Agora, se fosse sangue
dele podia ir, não fosse sangue dele, Deus o livre! Aí, eu não sei o que
deu em mim, não sei o que me deu na cabeça que eu teimei, levei o
rapaz! E ele chegou lá e pediu pro papai a minha mão em casamento.
O meu pai só disse assim ó... (risos): “-O senhor aguarda um
momentinho que eu já venho dar a resposta.” E eu cheguei a ele e
disse: “-Olha Bamba...” – o apelido dele era Bamba, mas o nome dele
era Acrísio, o nome do meu marido. “-Olha, Bamba, te cuida, que o
papai vai te passar o laço!” Ele:“-Não tem importância!”
Ent. - Ele queria casar com a senhora de qualquer jeito!
D.S. – “-Eu não quero ele”. E eu disse : “-Te cuida que tu vai
apanhar, o papai é muito mal criado”. Mas eu avisei... Tá, quando eu
vi que o papai vinha vindo com o laço na mão, né, eu vi que vinha pra
botar laço no pescoço, né? Eu fui pro quarto, me enfiei dentro do
quarto, e abri a janela. Daí diz ele [o pai] assim: “-O senhor faz o
favor de vir aqui na porta da frente.” O falecido [marido] foi, levantou
e foi. “-Tá vendo aquela figueira ali?”/ “-To, tô vendo, sim senhor”/ “-
Não tem aquele galho caído pra banda do arroz?” / “-Tem sim
senhor.” / “-Pois o casamento dela amanhã vai ser laço no pescoço,
dependurado naquele galho e fogo por baixo!” Eu nunca tinha
respondido, aí eu disse: “-Pai, pela vossa misericórdia divina, nunca
lhe respondi meu pai, é a primeira e a derradeira. Isso o senhor não
faz porque eu vou embora!” E já pulei ali e ...(gesto com as mãos) e fui
na casa do mano. Cheguei lá e disse pro mano: “-Maninho, fulano
assim, assim, assim maninho. Pediu o casamento e papai disse que vai
botar a corda no pescoço e ainda botar [fogo?] debaixo. Mano, que
conselho o senhor me dá, Mano? O que é que o senhor diz pra mim
Maninho?” Diz ele assim: “Ô negrinha...” – que toda vida ele me
tratou de negrinha – “...Ô negrinha a tua cabeça é teu mestre! Se a
minha mulher prestasse eu te botava pra dentro de casa, já estava
casada! Mas tu sabe a mulher do Mano.” Aí diz o Mano: “- Eu vou lá
ver quem é esse rapaz!” Aí veio, chegou cá e não era um amigo do
mano?!
Ent- Ah, mas que sorte! E onde é que a senhora conheceu o seu
marido?
D. S.- Uma festa no Aguapés, a primeira festa que nós fomos! Aí, com o
Mano lá, conversou, conversou levou ele lá, nós se conhecemos. Ele me
convidou, mas eu ia mesmo,de um jeito ou de outro!!! (risos) Mas o
pai me matava a pau! O pai quando batia na gente era de botar de
cama. E o pai não escolhia, minha filha! Porrete que achava, [era
com] aquele que batia. Aí de noite... E o pai não dormia! De noite me
levantei, tava todo mundo dormindo, fui lá na cama: “-Te levanta” e
ó... (gesto com as mãos). Me escapei. Eu deixei meu irmão com cinco
anos, fui embora. E não tive arrependimento nenhum!
Ent. - Foi feliz?!
D.S. - Mas feliz ?!? Mas deveria de ter saído há muito tempo! Eu não
agarrei marido, eu agarrei era um pai! Pra mim foi...”
182
(Entrevista concedida por Dona Raimunda, Rainha Jinga,
a Mariana Fernandes e Cíntia Muller,
Osório, 22 de dezembro de 2001.)
Dona Raimunda aparentemente livrou-se do jugo de um pai autoritário fugindo
com seu futuro marido. Isso não implicou em que se livrasse das obrigações familiares
enquanto filha pois seu retorno a Morro Alto ocorreu em função da doença de sua mãe.
Ter cumprido com essa obrigação não lhe trouxe a vontade ou a possibilidade de
permanecer em terras da família dos Teresa. Ter casado com um homem de Palmares,
sem terras em Morro Alto e ter fugido com ele sem o consentimento de seu pai,
desrespeitando uma escolha que passava pelo sangue” foram alguns dos fatores que,
aparentemente, impediram Raimunda de manter-se na Comunidade. De certa forma, ela
rompeu com a possibilidade do incremento da estrutura de solidariedade de sua família,
ela ousou impor suas ações no âmbito da família onde o indivíduo encontra-se
marcadamente subordinado a regras de moralidade bastante definidas. Mais que isso se
num casamento “é a família que se casa com uma família” (Bourdieu 2004), Raimunda
ousou quebrar o jogo das aliança coletivas.
Indo para Osório, Raimunda integrou-se a um território em construção que revia a
relação de pertencimento com Morro Alto, um território expresso de forma metafórica, o
do maçambique. Assim, como esse ritual tem propriedades que permitem inclusive
“acalmar o sujeito” (Barcellos 2004), ou seja, a cerimônia confere uma espécie de
disciplina moral àqueles que a integram. Dona Raimunda também passou por esse
disciplinamento enquanto acompanhava o grupo na condição de pajem e depois, com o
domínio dos fundamentos que norteiam o mesmo, assumiu o papel de Rainha Ginga.
183
e) Beatriz e Marinete : casamentos modernos, ou nem tanto?
Com o tempo, o maçambique foi deslocado da comunidade de Morro Alto para
Osório onde passou a viver a maior parte das pessoas envolvidas com o ritual.
Maçambiques antigos continuam residindo em Morro Alto quase sempre amparados por
um neto que, conforme o costume, retorna a região para cuidar dos avós (Barcellos
2004). Assim, o maçambique que pontua histórias anteriores de namoros, paqueras e
encontros começa a abandonar a cena das histórias narradas que remontam às décadas
de 70 e 80. O ritual deixa de ser um dos fomentadores de encontros em Morro Alto, pois
está atuando dessa forma em Osório onde recria o território de pertença dos migrados e
amplia o raio do mercado matrimonial para aqueles em condições de seguirem as
atividades do grupo. Por outro lado, a autoridade paterna também parece estar se
diluindo com o passar do tempo.
Os encontros são, agora, em bailes e nas festas de igreja que ocorrem na região.
O calendário da Comunidade de Morro Alto oferece bailes, marcados em vésperas de
festas de santos ou as domingueiras, praticamente todos os meses. Exceção são os meses
de janeiro e fevereiro quando a população se desloca para o litoral norte em função de
empregos sazonais. Mesmo assim, a grande festa religiosa de fevereiro é a de Nossa
Senhora dos Navegantes onde as pessoas se encontram em Tramandaí. O calendário de
festas da comunidade está estruturado da seguinte forma:
Mês
Festa
Janeiro
...
Fevereiro Nossa Senhora dos Navegantes
Tramandaí
184
Março São Sebastião
Faxinal do Morro Alto
Abril Páscoa
Procissão até a “cruz de ferro” no Morro
Alto
Maio São Benedito
Aguapés
Junho
...
Julho
...
Agosto São Bom Jesus
Prainha
Setembro São José Avelino
Centro de Maquiné
Outubro Santa Teresinha
Morro Alto
Nossa Senhora do Rosário
Osório
Nossa Senhora do Bom Parto
Barranceira
Novembro
...
Dezembro Natal
O baile, não apenas o religioso, passa a ser um dos palcos de espaço favorável
para a paquera. Dona Beatriz mora com seu marido nas terras do pai dela, no Faxinal
do Morro Alto, onde ela nasceu. Carlos é da localidade do Morro Alto. Ambos se
conheceram em um baile na década de 70.
“Ent. – Me conta uma coisa D. Beatriz, como é que a sra. conheceu seu
marido?
D.B. – Eu conheci dentro de um baile, eu fui, lá em Morro Alto.
Ent. – E onde é que dava baile bom lá em Morro Alto?
D.B. – Era ali, naquele salão ali, perto da rodoviária, ali isso mesmo
ali.
Ent. – Então dava bom o baile ali ?
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D.B. – Dava bom ali.
Ent. – Como é que era o baile ali ? Tinha música ?
D.B. – Tinha música, tinha conjunto, era bom. Sempre nós íamos ali,
naqueles bailes, ali em Morro Alto desde novinha. Ia ali. Eu e minha
irmã ia, aí eu conheci ele ali. É Carlos o nome dele.
Ent. – Então a sra. conheceu lá em Morro Alto. E aqui na Faxina dava
baile D.Beatriz?
D.B. – Aqui dá, só uma vez ou outra. Só quando é festa. Quando é festa
daí dá alguma coisa.
Ent. – Como assim ? Festa de quê ?
D.B. – Festa, assim, de nossa Senhora do Carmo, de São Sebastião.
festa na igreja, no salão, aqui do outro lado da faixa.
Ent. – E esse outro santo como é que é mesmo?
D.B. – Sebastião. Mas esse ano não fizeram a festa dele, é mês de
março. Eu não sei, disseram que iam fazer, mas não fizeram ainda, é
mês de março, agora, a festa dele.”
(Entrevista concedida por Dona “Beatriz”,
para Mariana Fernandes e Cíntia Muller,
Faxinal do Morro Alto, 26 de fevereiro de 2002.)
O encontro de um parceiro por parte de Beatriz em um baile foi bastante
convencional. Similar às situações de Mafalda e Raimunda, diferente era a natureza do
baile que não era o de maçambique. Isso demonstra que, embora a razão do festejo esteja
se transformando, a importância do baile no incremento das troca matrimoniais se
encontra mantido ao longo do tempo.
Já Marinete, cuja mãe, Dona Zilda, vive no Ribeirão, veio a morar em terras que
ela comprou e, no cartório, descobriu que se tratavam de terras registradas no nome de
seu avô, misteriosamente. Marinete trabalhava em uma lanchonete em Osório quando
conheceu seu marido, que casualmente, tem parentes na Prainha, comunidade negra
vizinha. Isso leva a crer que em situações de interação que ocorrem fora de Morro Alto,
os parceiros ainda são escolhidos dentre aquelas “que estão fora” e, de alguma forma,
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fazem parte da comunidade e mantêm relações com migrados que vivenciam um vínculo
identitário com a comunidade.
“Ent. – Tá e uma coisa assim que pode parecer pra ti que não tem
nada a ver, mas pra nós tem...Como é que conheceste teu marido?
D.I. – Quando eu trabalhava na lancheria em Osório.....
Ent. – Não foi em baile.....
D.I. – Eu trabalhava lá, ele era policial me viu, foi assim.....
Ent. – E aqui no Faxinal.....tu é moradora recente aqui, há quanto
tempo.....
D.I. – Já há oito anos.
Ent. – Qual tua idade....
D.I. – 35.”
(Entrevista concedida por Dona Marinete da Rosa Moraes,
para Marcelo Vianna, Mariana Fernandes e Cíntia Beatriz Muller,
Faxinal do Morro Alto, 08 de setembro de 2001.)
4.4 Um parentesco além do sangue
Se a consangüinidade emerge como um valor no momento de definir quem faz
parte da associação de quilombolas, não é por não existir outros vocábulos no idioma do
parentesco, mas porque a linguagem da consangüinidade era a autorizada e
situacionalmente valorizada no momento da interface com a noção de “remanescente de
quilombos” e ideologicamente constituída no instante. Por outro lado, a comunidade
possuía uma forma bastante eficaz de atualizar suas relações horizontais de parentesco
contemplando outras substâncias como aquelas capazes de operar a construção ritual da
parentalidade parentesco.
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a) Coberta d’Alma: um ritual da morte como constituinte do parentesco.
Por tratar-se de um ritual, a análise nos conduz a busca de compreensão de um
sistema simbólico de comunicação que possui uma racionalidade intrínseca aos seus
elementos. Afinal, rituais são “técnicas de informação nas quais a palavra e o
comportamento são indissociáveis e cuja estrutura abriga conhecimentos complexos
sobre a natureza e a sociedade”(Cavalcanti 1983: 32). Na análise sobre a “coberta
d’alma”, será dada ênfase justamente à dimensão comunicativa do ritual que, ao ser
expresso enquanto drama, dá ênfase a valores e relações sociais e acaba por consolidar
um tipo de parentesco ficcional. Para compreender o idioma ritual da “coberta d’alma” é
necessário compreender a trama social na qual ele está mergulhado e do qual também faz
parte. Assim, podemos chegar a algumas considerações sobre as trocas simbólicas que
são implementadas entre os diversos atores sociais, “ dentro de uma suposta área
exclusiva de trocas no ritual que ocultam, pelo menos em parte, uma realidade de
relações de valor social e econômico dentro de uma área de trocas na
sociedade”(Brandão ?:64).
Esse é um ritual religioso católico sendo assim definido pelas pessoas que o
praticam. É sagrado por ser algo que remete a fé cristã. Trata-se de um ritual
desconhecido da igreja católica oficial, pelo menos nos municípios de Osório/RS e
Maquiné/RS. A igreja não deixa de estar indiretamente envolvida no processo ritual, pois
uma das obrigações de quem recebe a “coberta d’alma” é a de assistir a missa de sétimo
dia de falecimento do morto. Isso pode demonstrar que, talvez, a igreja oficial não possua
consciência sobre a forma como a população, não menos fiel, se apropria de seus rituais.
A busca de um relativo distanciamento institucional por parte daqueles que vivenciam a
188
crença no ritual da “coberta d’alma” pode ser justificado, em parte, através da
preservação de um espaço comunitário de controle sobre o trabalho “sagrado”. Assim, a
igreja católica não entraria em conflito com os agentes religiosos populares, quer pela
apropriação do ritual, quer pelo monopólio da interpretação legítima das obras sagradas.
Neste caso, preservaria uma interpretação popular sobre o caminho das almas desde a
morte até seu julgamento.
A “coberta d’alma” é um ritual religioso popular “no sentido de que é praticada
sem a presença de agentes eclesiásticos e é controlada por agentes religiosos
camponeses” (Brandão ...: 69). Os agentes eclesiásticos não participam diretamente do
ritual da “coberta d’alma”, antes, têm seus ritos sagrados “apropriados” pelas pessoas que
crêem na eficácia deste ritual através da missa de sétimo dia ou um mês de falecimento.
No que se refere a Morro Alto e as pessoas migradas para Osório/RS, há de convir que se
tratam de pessoas oriundas de um meio que pode ser denominado rural - campo quando
construído em oposição ao urbano – cidade.
No entanto, o termo cultura popular encontra-se desgastado e “não serve para
enunciar mais do que um complicado emaranhado de coisas diferentes, com lugares e
significados muito desiguais na vida e no pensamento social”(Brandão 1995: 103).
Porém, no caso da “coberta d’alma”, estamos envolvidos com a cultura popular por dois
motivos (Fonseca e Brito): primeiro por resistir em manter, através da ritualização, uma
expressão de religiosidade que independe da igreja católica institucionalizada; e,
segundo, por estar associada a uma dimensão de dominação social onde seus agentes se
encontram relacionados a grupos camponeses ou refratários envolvidos em um contexto,
que no caso, caracteriza-se como de classe e étnico.
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Pluriétnico, pois as pessoas que o praticam encontram-se no entrecruzamento de
um ritual de origem açoriana mas que, enquanto idioma, enquanto comunicação
performática, permite sua apropriação por parte de camadas negras da população. Para
Max Weber, uma das características das comunidades étnicas é possuir “fronteiras
rigorosas” (Weber :317) que separariam habitus e costumes homogêneos daqueles
heterogêneos. Por isso, a identidade de valores compartilhados pode, em certas situações,
levar à crença em um parentesco comum. A valorização deste tipo de crença é reforçada,
ainda mais, por populações que compartem lembranças de emigrações reais como, por
exemplo, a colonização ou a “imigração individual” (Weber :318). Como é o caso dos
negros de Morro Alto que partilham um sentimento de origem comum, no caso a
africana, e de cidades vizinhas que receberam levas de migrantes oriundos daquela
localidade específica.
Embora o ritual da “coberta d’alma” possa ser considerado como um ritual “que
os colonizadores trazem junto com as muitas cruzes e imagens de santos, e de que se
servem tanto para uso próprio, quanto para a conversão forçada de indígenas e africanos”
(Brandão 1985:134), ele define um tempo e um espaço social, tendo em si a marca de
uma situação de “fricção interétnica” passada, de um encontro de alteridades, no caso,
marcadamente religiosa. No entanto, o ritual colaborou na construção de um lócus de
normalização de situações competitivas(Oliveira 1969: 128) e conflitivas (Oliveira
1969:128), características que marcam a “fricção”. O ritual, com seu tempo e espaço
próprio, contribuiu fornecendo subsídios factuais para que a situação de encontro de
alteridade fosse composto, pois sua linguagem é capaz de normalizar e criar um espaço
possível de acomodação de diferenças que, do contrário, apenas poderiam existir em
universos distintos e incomunicáveis.
190
b) Interpretações sobre a “coberta d’alma
Paixão Côrtes (1987), a partir de estudos folclóricos, elaborou uma estrutura
ritual para a “coberta d’alma”. Sua descrição é importante, pois se baseia em entrevistas
realizadas em Osório/RS em que englobou membros da população negra. Segundo ele, a
pessoa que irá vestir a “coberta d’alma” pode ser escolhida pelo próprio moribundo ou
por sua família quando ele não o indica. O convidado pode declinar o convite sem causar
maiores melindres. Via de regra, aquele que recebe a roupa é pobre, podendo ser parente
dos enlutados. É uma pessoa que mantém vínculo de amizade com o falecido e sua
família. Sempre será do mesmo sexo do morto e, necessariamente, deverá ter semelhança
com seu porte físico, podendo ser adulto ou criança, independente da idade. As roupas
que serão entregues, uma muda completa que inclui sapatos, chapéu e roupas de baixo,
podem ser do próprio morto, desde que em bom estado, ou compradas novas
especificamente para esse fim. Tais roupas devem ser condizentes com o clima da época
em que ocorreu o falecimento.
Após aceito o convite para vestir a “coberta d’alma”, aquele que o faz submete-se
ao ritual e suas regras morais. A vestimenta poderá ser entregue na própria sala onde está
sendo velado o morto. Côrtes (1987) chama atenção para o fato de que a entrega pode
ocorrer um ou dois dias após o enterro ou no dia da missa. Conforme descreve o autor,
assim é o momento em que o convidado veste a “coberta d’alma”:
“Procura-se ofertar roupa em bom estado ou conjunto completo, isto é,
se masculino: chapéu, passando pela gravata, casaco com lencinho de
bolso até os sapatos; se de mulher: vestido, véu de igreja, não faltando
as roupas íntimas femininas. O portador da coberta, ao vestir cada peça
da roupa do morto, repete três vezes seguido o que está vestindo. Deve
dizer, por exemplo: ‘Seu fulano, visto seu sapato pela última vez’, etc,
191
embora este objeto, posteriormente, continue a usá-lo normalmente”
(Côrtes 1982:277).
Em algumas localidades específicas, depois de vestir a “coberta d’alma”, é
oferecida a pessoa que a veste uma refeição completa feita com as comidas preferidas do
morto. Com essa roupa, ele deverá comparecer ao ofício religioso tradicional da
localidade, como a missa de sétimo dia ou de um mês; “missa em capela”; “terço-de-
campanha”, rezado no cemitério; “terço-crioulo”, realizado em casa; sempre vestindo a
“coberta d’alma” e comportando-se de forma discreta .
Após a cerimônia, aquela pessoa que recebe a roupa poderá fazer uso dela como
bem entender, desde que a use até puir, sem entregá-la a mais ninguém. Segundo Côrtes
(1987), aquele que recebe a “coberta” pode, inclusive, ir a bailes e festa. Já Ribeiro
(2002) descreve uma situação em que uma pessoa que utilizou a “coberta” para dançar
em um baile teve a mesma tomada de volta pela família enlutada por não ter guardado o
devido “decoro” (Ribeiro, 2002). Assim, podemos perceber que aquele que veste a
“coberta d’alma” tem sua conduta moral tornada alvo de escrutínio por parte da
comunidade na qual vive e deve se submeter a uma etiqueta de comportamento
específica, condizente com a ocasião pela qual passa. Como descreve o autor, ver a
pessoa vestindo a “coberta d’alma” é um momento de forte emoção para a família
enlutada. Segundo Paixão Côrtes, “a pessoa recebedora do referido vestuário fica
simbolicamente ocupando o lugar da pessoa falecida em certos momentos afetivos. É o
caso freqüente dos afilhados. O padrinho do morto ganha um novo afilhado” (Côrtes
1982:278).
Quando iniciei os trabalhos de campo em Morro Alto, foi perceptível o fato de
que as pessoas faziam referência a outros membros da comunidade como “mana” e
192
mano”. São pessoas com mais de 65 anos, nascidas na localidade e que viveram grande
parte de suas vidas como vizinhas e vêem-se como parentes distantes de quarta ou quinta
geração. Todas elas se entendem como pertencentes à comunidade negra de Morro Alto
sendo que algumas vivem hoje em Osório/RS. Quando perguntadas por que chamavam
essa e não aquela pessoa de “mano” ou “mana” recebíamos a resposta: “vesti a ‘coberta
d’alma’ da irmã dele”. E é assim que Dona Ângela, a “nêga dos quilombos”, da
parentela dos Hortêncios, é amana” de Seu Manoel Chico, da parentela dos Teresa. Da
mesma forma, Dona Lídia, da parentela dos Laurinda, é “mana” do mesmo Seu Manuel,
sem ser “mana” de Dona Ângela. O ritual de vestir a “coberta d’alma” costura uma
intricada rede de relações, pois aquele que veste a “coberta d’alma” passa a ocupar o
lugar social na rede de parentesco daquela pessoa que morreu perpetuamente. Tal fato,
gera obrigações para com a pessoa, por parte da família que a convidou.
Dona Lídia vestiu a “coberta d’alma” de duas meninas: uma garota da parentela
dos Teresa e de outra garota, irmã de sua atual vizinha, da parentela dos Domiciana. Isso
nos idos da década de 40. Quando Dona Lídia casou, ganhou os alimentos que ofereceu
em seus dois dias de festa de casamento: farinha de trigo para pães, bolos, galinhas e dois
porcos, ganhou tudo. Um dos porcos foi presente da família do marido, enquanto o outro
veio da família dos Teresa, de cuja filha Dona Lídia vestiu a “coberta d’alma”.
Dona Lídia- Os porcos, o Ermenegildo tinha criação de porco. Aí, o
pai dele deu os porcos, matadinho, direitinho. E a Teresa, lá dos
Aguapés, também me deu um porco.
Ent. –Teresa dos Aguapés?
D. Lídia – É, uma pobrezinha que tem um filho doente.
Ent. – É uma irmã do Seu Manoel Chico?
D. Lídia – Isso, isso, é. Ela me deu, me deu uma leitoa grande de
casamento.
Ent. – Mas por que é que ela deu?
D. Lídia – Por que eeeela, nós, sabe, nós temos assim, oh: quando eu
era pequena tinha morrido uma filhinha deles, dos velhos. Quando
193
morreu, eles me deram a roupinha dela pra mim, aí, então, eles diziam,
então, “coberta d’alma”. Não sei se tu já ouviu falar ? Daí, então,
dava para a pessoa vestir e a pessoa vestia e ficava como filha. Então o
Manuel Chico me chama de irmã. Eu fico até com vergonha quando
(incompreensível.). A Sibirina, “ô mana”; a Maria “ô mana”.
Perguntei a Dona Lídia como é que se escolhia a pessoa que vestiria a “coberta
d’alma”. Ela me explicou que o convidado deveria ter o mesmo tipo físico e a amizade:
“se tu é minha amiga, então se quiserem dar minha roupa para ti, podem dar”.
Momentos antes de D. Lídia ter me contado isso, o filho de sua vizinha lhe trouxera uma
cesta com duas dúzias de ovos, afinal suas galinhas não estavam pondo por um motivo
qualquer. Na verdade, D. Lídia me explicou, estava recebendo os ovos de sua “irmã”.
D. Lídia – E a Teresa é minha irmã, como ela chama, irmã. Assim
como a Antonia, lá do Borba.
Ent. – Como, de quem, como assim?
D. Lídia – A Cândida era filha?
Ent. – É.
D. Lídia - O nome da mãe era Maria... do pai era José.
Ent. – Mas ela vestiu a coberta ?
D. Lídia – Eu vesti. Eu é que vesti a coberta de uma irmãzinha dela. Aí
ficou eu e ela filha dos pais dela, e ela minha irmã. Até hoje nós somos
irmãs. Hoje o filho dela veio me trazer duas dúzias de ovos de casa.
Porque eu não tenho, né? E ela sabia que eu não tenho. Ele veio me
trazer. Ela mandou para mim.
Vestir a “coberta d’alma” gera obrigações de troca de alimentos no sentido da
família do falecido em relação aquela pessoa que ocupa seu lugar social. A pessoa que a
veste já “comeu” pelo morto, durante a refeição ritual. A obrigação de dar alimentos,
neste caso, é a obrigação maussiana de retribuir desempenhada por parte da família do
morto. Afinal, a pessoa que veste a “coberta d’alma” transferiu ao morto “sossego”: caso
a mesma não fosse oferecida e usada, a pessoa que morria não se salvava e ficava com
frio. Tinha que usar a roupa até ela terminar, “quando terminava passava”, ou seja,
194
quando a roupa estava gasta ela “ia” para o morto. Caso não se realiza-se o ritual o
morto, além de não “parar” por causa do frio, poderia retornar para “pedir” como uma
espécie de espírito que vaga, um “fantasma”.
Uma das estórias de “fantasmas” que ouvi foi relatada por um senhor de
aproximadamente 65 anos, nascido em Morro Alto, que vive em Osório/RS. Ele nos
contou que depois de casado, “passou a ver um homem”, cujas aparições ocorriam
sempre, ou em Morro Alto ou muito próximo de lá, como nas Barranceiras. “Não
podíamos sentar” à mesa para o jantar, do “escurecer em diante”. “Ele era um moreno”.
O entrevistado não usa o termo “negro”. “Ele vinha do lado dos pés de laranjeira, no
mesmo rumo da figueira branca”. E esse homem foi aparecendo. “Servia a mesa”,
colocava comida na mesa, e ele “dava um empurrão, caia tudo”. “Isso aí é uma pessoa
que foi morta com fome e ele vem insistir”, ele me explicou. Seu padrinho “chegou lá,
colocou o livrinho”, uma Bíblia, “sobre a mesa e ele veio e, por tudo, não
excomungava”. O entrevistado indagava ao fantasma e o homem respondia “eu não fiz
por onde me matar, mas eu te achei. Quero que você me dê água e o de comer”. O
entrevistado conta que deu um “pratão de comida a ele na porta”. Depois nunca mais
apareceu. “Ele agarrou a jarra de água e foi embora”. Isso acontecia por volta das
21:30h, era só mexer na mesa que ele, a alma, vinha.
Conversando com outra entrevistada em Osório/RS, neta de antigos moradores de
Morro Alto, com cerca de 45 anos, funcionária pública do município, ela disse que não
participa “nem disso(“coberta d’alma”) nem de sessão de matança”, pois ela não
gosta”. Sua mãe vestiu a “coberta d’alma” de uma conhecida há quatro meses, em
outubro de 2003, escolhida pelo seu “tipo físico”. Ela participou da missa de sétimo dia e
comeu “coisa de negro, uma comilança”, comenta sua filha, “comeu galinha com arroz”.
195
Perguntei se sempre se comia galinha com arroz e ela explicou que nem sempre: “se o
morto morreu com câncer”, se ele morreu com fome, se faz sua comida preferida, a
comida que ele pede”. Não foi o caso de seu pai, por exemplo, que esteve sete meses no
hospital e “melhorou de repente”, neste momento “ele pediu a comida que queria”, não
morreu com fome”. Seu tio, irmão de sua mãe, vestiu a “coberta d’alma” de seu pai,
eles tinham o mesmo tipo físico”, após vestido seu tio comeu “galinha com arroz”.
Existe dentre as pessoas da comunidade de negros de Morro Alto e aqueles
migrados para Osório/RS uma forma de compartilhar relações e obrigações que é
instituída a partir do ritual da “coberta d’alma”. Podemos apresentar, de forma
esquemática a seguinte rede de relações:
Família Enlutada Aquele que veste a
“coberta d’alma”
Morto
Oferece a roupa. Recebe a roupa e a usa. Recebe a roupa para não
sentir frio, para se salvar
ou para sossegar.
Oferece a comida. Recebe a comida e a
come.
Sacia sua fome no além
deixando de vir “insistir”,
intervindo no mundo dos
vivos.
Oferece uma missa de 7
o
.
dia.
Assiste a missa vestida
com a “coberta d’alma”.
Faz parte das obrigações
daquele que veste a
coberta para que o morto
se “salve”.
Oferece o lugar daquele
que morreu na família.
Aceita a posição do morto
na família enlutada,
submete-se às relações e
regras de parentesco como
se o morto fosse.
Tem sua trajetória familiar
cumprida por uma terceira
pessoa.
Aquele que veste a “coberta d’alma” cumpre o papel do morto no universo
familiar. É como se a família ficasse incompleta com um determinado falecimento e
tivesse a sua disposição um recurso, não para a instituição de um novo parentesco, não é
uma nova “irmã” que vem para a família, mas para manter um determinado papel “vivo”.
196
Trata-se de um ritual que dá, à família enlutada, um ator que ocupará a posição daquele
que faleceu e cujo principal papel é dar “tranqüilidade” ao morto na sua vida do além.
Assim, tendo em vista os valores implicados pela comunidade na constituição da noção
de pessoa em seu elemento espiritual podemos inferir que uma alma não se salva ou
sossega por pelo menos três motivos:
frio e/ou à fome e/ou à preocupação com a família.
A “salvação” a que as pessoas fazem referência também é algo a ser entendido.
Salvar-se significa ir para o além, ir para um outro local onde estão as almas dos mortos,
de forma a não “insistir”, entrando em comunicação com os vivos. Nas estórias de
fantasmas, “algo bastante sério” para quem os vê, aquele que aparece é alguém que está
com fome”: são ouvidas pessoas que conversam “embaixo de figueiras” acompanhadas
de barulhosde pratos, como em uma cozinha de hotel”. Por outro lado, existem
momentos em que o espírito dos “antigos” são vistos pelos vivos, como ocorre na festa
do maçambique, uma espécie de congada. Um entrevistado contou-nos que consegue
visualizar o dobro do número de dançantes, que são 24, pois vê dançando a alma dos
antigos maçambiques. Existem pessoas e situações, momentos e atores sociais
autorizados a interagir com a alma dos mortos. Tais “assombrações” possuem
necessidades, demandas de satisfação individuais, bastante semelhantes a dos vivos:
necessidades que exigem a saciedade dos sentidos físicos e de valores abstratos como a
devoção por Nossa Senhora do Rosário.
Elias (2001) chama atenção para a percepção sobre aqueles que estão
relacionados com a morte na sociedade ocidental “avançada”. Para o autor existe um
197
grave problema em nossa sociedade que é a “dificuldade que muitas pessoas têm em
identificar-se com velhos e moribundos” (Elias 2001:08). A morte enquanto problema
social, se agrava pela distância social construída entre os que estão morrendo e os vivos.
Porém, a “experiência da morte” é aprendida de forma variável e específica dependendo
da visão de mundo do grupo social. Uma visão imagética sobre a morte e seus aspectos
rituais passam a ser parte integrante da própria socialização da pessoa, da construção de
seu lugar no mundo. Porém, nas “sociedades mais desenvolvidas”, segundo o autor, o
respaldo em sistemas de crenças sobrenaturais que garantiriam proteção contra perigos e
a própria morte foi transferido “para bases seculares de crença” (Elias 2001:13).
De certa forma, o ritual da “coberta d’alma” confere a comunidade de negros de
Morro Alto e Osório/RS, representada pela família do morto e pela pessoa que recebe a
roupa, um idioma performático capaz de expressar a visão da passagem de moribundo ou
morto, dependendo da situação, até aquele que se põe diante de Deus para o julgamento.
O ritual guarda em si a representação da noção de pessoa, compartilhada pelos
envolvidos na cerimônia. O drama da “coberta d’alma” revela a forma como as pessoas
envolvidas lidam com a morte no sentido multivocal do termo: morte social, morte
carnal, morte espiritual. Impossível concebê-la sem levar em consideração suas várias
dimensões diante de tantas necessidades de se pacificar o morto.
Representação da Morte Problemas a serem solucionados
Morte em sua dimensão social. Lugar na família que será ocupado.
Morte em sua dimensão carnal (corpo). A alma não pode sentir nem frio, nem
fome.
Morte em sua dimensão espiritual (alma). A alma terá seu julgamento ou voltará
para “insistir”.
198
A leitura da morte que podemos inferir, a partir da análise do ritual da “coberta
d’alma” praticada pela comunidade, está muito longe de representar ser tranqüila. A
morte pode se dar de forma surpreendente, violenta ou casual, colhendo ao morto
desavisado. A necessidade de aplacar a fome com uma última refeição e de comprar
roupas novas para “transmitir” a alma do morto remete a um passado e um presente de
demandas materiais básicas e que não podiam ser supridas de forma célere pela família
extensa, neste contexto, negra e pobre.
O ritual desempenha em si uma dupla dimensão: ao mesmo tempo em que supre
eventuais necessidades que a comunidade entende que o morto possua, supre as próprias
demandas emocionais dos parentes enlutados em um momento de crise. A solução ritual
coíbe a expressão individual de afeto e sentimento quanto ao falecimento, antes
regulamenta e disciplina essa manifestação. Jantar com a pessoa que veste a “coberta
d’alma”, satisfazê-la dando-lhe cigarros ou frutas, referir-se a ela através do nome da
pessoa que morreu, vê-la como a pessoa que faleceu e dar-lhe seu lugar na família,
contribui para que a família enlutada revele suas emoções através da performance e de
palavras. As famílias que se envolvem no ritual da “coberta d’alma” expõem desse modo
sua crença em uma vida além da morte, de uma vida espiritual que se desenrola em outro
lugar ou na terra mesmo, dependendo do rumo tomado pela alma ao morrer e que a
família pode controlar.
O ritual da “coberta d’alma” é visto como algo praticado dentro da lógica do
catolicismo popular. Porém, de certa forma, também é posto no mesmo patamar de
interdição que uma cerimônia sacrificial por parte de alguns entrevistados, o que remete à
religiosidade afro-brasileira. Ele guarda elementos como a preocupação da família em
enviar uma roupa em bom estado para que o falecido apresente-se em condições diante
199
de seu julgamento, o que implica em uma situação onde a alma pode ser destinada tanto
ao paraíso quanto ao inferno. O que é uma leitura de religiosidade católica. Em momento
algum a alma é referida como espírito, ela é a “pessoa”, “fantasma” ou “assombração”.
Ela não reencarna como em uma perspectiva espírita kardecista ou ela é julgada ou volta
a se comunicar com outros vivos. Existe a expectativa da ressurreição, outro ingrediente
bastante católico. No entanto, a perspectiva de alimentar o morto parece, de certa forma,
aproximar-se das religiões afro-brasileiras onde a comida é uma espécie de mediadora
entre os vivos e os mortos.
“A pessoa é o ponto de convergência de todo esse sistema” (Cavalcanti 1983:42).
Ela é a mediadora entre os mundos visível e invisível, é através dela que é possível
intervir no mundo invisível, a partir do visível. Mesmo assim, a oposição entre o
invisível e o visível é relativa pois algumas pessoas “vêem” os entes desencarnados e
outros já falecidos. A vida humana do corpo ocorre apenas uma vez. Depois, a alma
desencarnada pode ter um rumo duplo: ou ir para seu julgamento em paz ou voltar e
manifestar sua insatisfação no mundo dos vivos. Tal qual percebido por Cavalcanti
(1983) cada homem tem em si uma natureza dupla: o corpo e a alma. Porém, não existe
um peri-espírito, mediador entre passagens e comunicações dos dois mundos, o visível
ou corpóreo e o invisível ou da alma, como crêem os espíritas kardecistas. Ao contrário,
a pessoa encontra-se viva, no sentido carnal, ou desencarnada, quando então é alma.
Estamos diante de um sistema de compreensão da noção de pessoa que é binário, mas
aceita que em determinadas situações, determinados atores possam estabelecer
mediações entre os mundos. A pessoa que recebe a “coberta d’alma” é um desses
mediadores.
200
A pessoa que veste a “coberta d’alma” encontra-se em uma espécie de “entre
mundos”, similar ao estágio liminar descrito por Turner (1969). A pessoa possui um
corpo que pertence ao mundo dos vivos e, momentaneamente, o papel e, porque não
dizer, a “alma” daquele que se encontra desencarnado. Esse tempo liminar da alma só
tem um lugar construído a partir do entendimento da existência de um interregno de
tempo entre a morte e o julgamento da alma. Como um entrevistado nos explicou: existe
um limite de tempo para que o morto vire fantasma. É nesse lapso que o ritual da
“coberta d’alma” é praticado, só assim ele encontra um lugar dentro do sistema de
crença.
A pessoa que participa desse ritual se envolve ativamente na salvação perpétua do
defunto. Sua atuação no drama ritual encenado permite que o morto alcance a salvação e
tenha descanso. Receber e desempenhar o papel de forma competente, observando as
rígidas regras de etiqueta moral, acabam por desencadear a obrigação em retribuir por
parte da família enlutada. Por isso as obrigações de fornecer alimentos se estendem ao
longo de toda a existência física daquele que vestiu a “coberta d’alma”. A rede de
solidariedade formada importa na troca recíproca de benefícios que se pretendem de
mesma magnitude (Mauss 2003). Essas redes implicam, primeiramente, na escolha
daquele que receberá a roupa do morto, cujo decoro ao usar a mesma, para transmiti-la
ao desencarnado, será vigiada por toda a família extensa.
Tais redes de solidariedade são consubstanciadas, de forma mais radical, no
momento em que a pessoa que veste a “coberta d’alma” passa a ocupar o papel familiar
daquele que morreu. As relações de parentesco estabelecem vínculos entre a família
extensa do defunto e a pessoa que veste a “coberta d’alma” instituindo na comunidade
uma rede de parentesco que pode ser transmitida para membros de uma mesma geração,
201
pois indivíduos de uma mesma geração crescem juntas e, via de regra, possuem um tipo
físico parecido: bebês, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Além disso, são pessoas
que compartilham uma etiqueta social semelhante de comportamento que deverá
também ser observada durante o uso da “coberta d’alma”. O esmero na busca em cumprir
o papel social de “irmã”, por exemplo, por parte de Dona Lídia, revela o quanto a
etiqueta na comunidade de Morro Alto era rígida.
“Eu tinha medo, eu não dava risada alta. Agora que eu converso alto,
sorriu. Mas tu pensa? Eu era quietinha, assim, se eu sorria eu sabia
como é que sorria. Tinha que saber qual eram as amigas que não eram
risonha, assim, espalhafatosa. Eu me corrigia tanto, que muita gente
dizia assim: ‘como que a Lídia se corrige tanto?’”.
A morte de alguém afeta a organização do grupo doméstico (Fortes 1969). A falta
de uma “irmã” ou de um “pai” pode comprometer a rede de solidariedade e alianças a
serem implementadas ou já existentes, por parte da família que passa, repentinamente,
pelo momento de crise e ruptura representado pela morte. Faz-se necessário que alguém
ocupe o papel moral de “irmã”, não o papel de “fulana, irmã de Manuel”, mas de “irmã
de Manuel”. Aquele que aceita vestir a roupa do morto recebe a incumbência de
desempenhar seu papel familiar mediando a relação da unidade doméstica com a
comunidade sem integrar, contudo, o grupo que irá prover de descendência consangüínea
essa mesma unidade. Nesse sentido, o ritual da “coberta d’alma” forja fronteiras sociais
entre aqueles que compartilham um tipo de visão de mundo e constróem laços de
solidariedade que explicitam a resistência que o ritual revela no entrecruzamento de
diferentes códigos culturais.
202
4.5 O jurídico e o sangue.
Antropólogos vinculados à tradição de estudos britânicos têm desenvolvido
análises que procuram dar conta das conexões pessoais estabelecidas através de relações
compreendidas como de “parentesco”, em diferentes contextos, e o significado particular
que a configuração de tais relações assume, em uma historicidade local. Atualmente, tais
pesquisadores têm utilizado o conceito de “relatedness” como expressão empregada para
se referir às singularidades locais das relações de parentesco e, com isso, revitalizar
teórica e empiricamente os estudos das relações de parentesco.
Relatedness” é um termo de difícil tradução no âmbito da língua portuguesa. Em
inglês ele faz alusão àquilo que está “conected”, “associeted” ou às relações “connected
by kinship” (American Heritage Dictionary, 2001: 706). “Relatedness” diz respeito às
pessoas ligadas por laços de parentesco ou por aquilo que julgam constituir laços de
parentesco. Acredito que a conotação da expressão em inglês esteja intimamente ligada
ao radical “relate”, cujo significado é “1. To narrate or tell. 2. To bring into logical or
natural association. 3. To establish or demonstrate a connection between. 4. to have
connection, relation, or reference. 5. To interact with others” (American… 2001: 705
706).
Existe a possibilidade de tradução do termo para o português como
“conectividade”, sem o perigo de se incorrer em um neologismo (Novo Aurélio 1999:
524). Essa expressão está relacionada aquilo que une ou liga, configurando uma espécie
de trama, de aparentar, ou seja, no sentido de uma relação que estabelece nexo através do
parentesco. É um tornar parente, converter um “outro” em alguém “da família”. Trata-se
de uma trama que transcende o parentesco biológico.
203
As relações de conectividade propõem repensar os termos e a teoria do parentesco
a partir da ruptura com noções pré-construídas, valorizar no idioma local o que diz
respeito ao que é tornar alguém parente ou aparentar. Em suma, a conectividade
característica dessas relações sugere uma espécie de alternativa analítica frente à
oposição entre o biológico e o social nas quais os estudos antropológicos sobre
parentesco tantas vezes se baseiam (Carsten, 2000: 41). Trata-se de reforçar a
importância de estudos sobre arranjos culturais particulares e o significado que eles
estruturam acerca do parentesco (Carsten, 2000: 05).
Busca-se com isso acrescer maior peso à “cultura” na delicada discussão entre
“natureza” e “sociedade”. Nessa discussão a “natureza” perde seu papel central,
fundamental, no discurso sobre parentesco (Strathern 1992; Carsten, 2000). A natureza
passa a ser analisada, cada vez mais, como objeto de intervenção e reinvenção social. No
centro da discussão destes estudos está a desconstrução da “família” como a base natural
da procriação humana (Carsten, 2000: 11). Tais análises tem sido impulsionadas no
estudo moderno das relações de parentesco estabelecido entre gays e lésbicas (Carsten,
2000: 12).
A “desnaturalização” da discussão em torno do parentesco sugere, justamente,
questionar qual a noção de “natureza” que está sendo empregada em nossos estudos. Tal
movimento se empenha em evitar a apropriação acrítica de pré-noções, pois muitos dos
atuais estudos têm focalizado a forma “como discursos e práticas do parentesco, gênero,
etnicidade e nacionalismos envolvem a naturalização da identidade e da diferença”
(Carsten, 2000: 13). Com base em que valores a “natureza” está sendo apropriada? A
“relatedness” ou relações de conexão são dinâmicas e implicam em uma trama de
significados que estão em permanente construção (Carsten, 2000: 18). Isso leva-nos ao
204
abandono definitivo da separação entre os domínios domésticos e políticos-jurídicos que
se interpenetram no cotidiano conformando novas formas de aparentar.
As teorias do “relatedness”, ao enfocarem o significado dos símbolos postos em
relação, são postas em contraste com as formas genealógicas clássicas utilizadas para
representar as relações de parentesco. Como enfoca Bouquet (2000), o jogo de oposição
instituído entre o biológico e o social encontra eco em outra esfera: a divisão entre o
material e o social. Os estudos de “parentesco” estão, em nível acadêmico, no mesmo
patamar daqueles que tratam da política, economia e religião (Bouquet, 2000: 171-172),
ou seja, compõem um campo teórico autônomo. É no que diz respeito a perspectiva da
lógica dos diagramas genealógicos, ou seja, é na correlação entre as “coleções feitas
durante o trabalho de campo etnográfico” e as de museus, que tiveram seu ponto forte
durante o século XIX, que a autora centra sua análise crítica.
Para essa autora, os estudos de parentesco estão permeados por uma espécie de
ideologia da genealogia, um mesmo esquema de pensamento “informou coleções de
museus, tão bem quanto os estudos de parentesco” (Bouquet, 2000: 173). A metáfora da
árvore genealógica foi uma representação vantajosa a partir do momento que expressava
uma noção de tempo que foi expandida no decorrer do século XIX quer por influência
dos estudos geológicos, quer dos arqueológicos e jurídicos. A genealogia figurou como a
possibilidade de “representar a família através da superfície de tempo histórico”
(Bouquet, 2000: 178).
Muitos estudos elaborados sobre “territórios negros” utilizam a metáfora da
árvore nas representações genealógicas. Por outro lado, certa vez um entrevistado em
pesquisa de campo fez referência à figura de um “cipozal” para definir a representação
imagética que possuía das relações de parentesco. Essa representação vai ao encontro da
205
compreensão que Stack (1997) desenvolve sobre redes domésticas, nas quais critérios
culturalmente determinados interferem na construção da noção de parentesco e
“prescreve um membro da família que pode ser recrutado/escolhido em redes
domésticas” (Stack 1997: 321).
As redes se distinguem dos grupos domésticos por terem suas fronteiras mais
fluidas e por não possuírem uma espécie de “núcleo”. Segundo a autora, transformações
de necessidades econômicas, mudanças de estilo de vida e a instabilidade de relações
pessoais são fatores que influenciam na seleção de membros da redes domésticas. Stack
(1997), por exemplo, salienta que o principal foco da constituição de redes é prover as
crianças do grupo de seus cuidados essenciais (Stack, 1997: 321). Porém, tanto o método
quanto os fatores que influenciam na construção dessa noção de “parentela” são
congruentes com os casos que podem ser apontados em “territórios negros” que
descolam-se de sua base geográfica configurando ramificações.
A árvore genealógica, aparentemente, dá conta de um tempo de longa duração
que perpassa situações históricas e oferece aos grupos familiares um esquema de
representação que expressa sua continuidade, porém fixa-se aos grupos domésticos e,
além disso, é unidimensional. A representação através do “cipozal” abre prerrogativa à
idéia de rede de relações de parentesco multidimensional. De certa forma, um esquema
não impossibilita a utilização do outro, curiosamente o “cipozal” cresce e se enreda nos
galhos de árvores e arbustos oferecendo uma metáfora longitudinal de um modelo
alternativo da representação das relações de parentesco. A dispersão do “cipó” depende
da existência das “árvores” e a forma como ele se enreda e se mantém guarda uma certa
conformidade com a disposição e proximidade das próprias “árvores” que o nutrem e
sustentam.
206
Em certas situações, como nas análises de estudos de parentesco referentes a
“remanescentes de quilombos”, as árvores genealógicas seguem um rumo um pouco
previsível. Retroagem ora até pouco antes da abolição da escravatura, ora até o
desembarque de escravos vindos da África. Esse movimento para trás busca, obviamente,
estabelecer uma história da fixação de um grupo familiar em um dado território, muitas
vezes, terminando por revelar de que modo uma dada parcela de terra foi mantida ou
perdida (Chagas, 2005).
Por outro lado, esse mesmo movimento para trás acaba por obedecer a uma
espécie de expectativa jurídica que vai ao encontro da imagem de território étnico
“remanescente”, algo em processo de desaparecimento cuja origem deve ser comprovada
com a construção de um “pedigree”. A apropriação que a lógica jurídica realiza de tais
representações beira o “primordialismo”, no sentido da busca de uma essência que
produza diferença entre o grupo étnico, selecionando indivíduos. É a transformação do
território em patrimônio, cuja transmissão está sendo conformada às probabilidades
jurídicas e que não correspondem, necessariamente, às possibilidades que demandam do
campo. A questão que se coloca para o antropólogo é, na atual conjuntura, até que ponto
as populações “remanescentes” valorizam e podem valorizar “descendências” e o que
isso significa para elas. A representação gráfica da genealogia unifica contextos
ideológicos, oculta relações sociais, por vezes, conflituosas, jogos de poder e valores
culturais que o estudioso tem oportunidade de trazer à luz em seu texto de pesquisa.
Continuemos seguindo o raciocínio de Bouquet. A composição dos acervos de
museus buscou, primeiramente, “mapear e cartografar” o planeta distinguindo tipos
humanos por diferenciação racial (Bouquet, 2000: 179). Algo dessa distinção,
biologicamente estabelecida, transpirava em termos de cultura material. Assim, as
207
coleções de museus da metade do século XIX se valiam da visão genealógica para
conferir legitimidade classificatória e racionalidade às coleções etnográficas. Tratava-se
de um período histórico interessado na operacionalidade e construção das tipologias
raciais.
Representar graficamente genealogias, valendo-se de diagramas, significa tomar
como ponto de partida certas concepções comuns ao método. O próprio diagrama de
parentesco possui uma teoria específica. Concepções de ancestralidade e descendência
são decisivas para a operacionalização do método, mas não são concepções universais ou
significativas para os grupos que estudamos (Bouquet, 2000: 186). Um dos grandes
problemas, a partir do momento em que essas concepções são identificadas, é a
importância ocidental que o nascimento acaba por tomar no âmbito da representação
gráfica da genealogia como definidor do “momento do parentesco” (Bouquet, 2000:
187).
No caso de estudos realizados em “territórios negros”, seguidamente, elaboramos
genealogias que permitem recontar estórias e histórias de grupos familiares. Porém,
juridicamente, o conceito de família pretende ser universalizante, tendo sido
judicializado, nos atuais moldes, no decurso do século XIX e início do XX (Macelin
1996) e, muitas vezes, o antropólogo se encontra em um campo de diálogo cujas
fronteiras entre antropologia e direito são confusas.
No campo do direito, o modelo que se mantém hegemônico é o da família
patriarcal assim como Macelin (1996) chamou atenção para o modelo da família
imaginada como típica brasileira, de classe média alta, branca. De inspiração romana,
(Coulanges) esse modelo se prende a uma espécie de ideal da família biológica, cujo
núcleo reprodutivo é formado pelo homem e pela mulher casados. Grande parte da ênfase
208
conferida a esse modelo se deve ao fato de que ele privilegia linhas de descendência. Tais
linhas têm uma função ideológica, qual seja, a de tornar mais fácil a transmissão de bens
e patrimônio (material e imaterial), ao longo das gerações.
Pesquisas elaboradas sobre “territórios negros”, principalmente aquelas
realizadas em “comunidades remanescentes de quilombos”, fazem uso corrente do
método genealógico. Porém, poderíamos questionar, antes da legitimidade do uso do
mesmo, se ele é uma representação suficiente daquilo que, em campo, as pessoas
entendem por grupo familiar. Corremos o risco de elaborar maravilhosos esquemas
analíticos compreensíveis aos juristas e que, ainda hoje, privilegiam uma compreensão de
continuidade da estrutura de relações que confere importância às linhas de descendência
baseada na noção biológica de sangue. Assim, podemos acabar por elaborar um esquema
analítico excludente de outras relações sociais que deixam de apreender as relações de
compadrio e outras que poderíamos encontrar a partir do “relatedness”, ampliando a
possibilidade de compreensão das noções que os próprios pesquisados têm acerca dos
laços que conformam “parentesco”, próprios ao grupo.
A fuga de esquemas pré-concebido possibilitaria apreender de forma mais
refinada o significado das relações que compõem a conexividade entre pessoas que
compõem grupos familiares negros. Essa possibilidade não significa, contudo, a busca de
um modelo específico, de um tipo familiar peculiar, mas fornece recursos analíticos que
potencializam a compreensão da elaboração das relações de parentesco enquanto um
processo (Macelin 1996 e Carsten 2000). Na maior parte das vezes, ao retornarmos do
campo trazendo conosco “coleções genealógicas” (Bouquet, 2000: 186) que permitem
“visualizar um grupo cultural geograficamente situado”, (Bouquet, 2000: 187 – 188),
209
cuja especificidade apenas tem uma razão de existir quando comparado a uma
diversidade, a um grupo maior, no caso, os afrobrasileiros.
Hutchinson (2000) em sua pesquisa dentre os Nuer publicada em 2000, chama
atenção para os documentos das relações de conectividade que atualizam as fronteiras da
cultura local e as relações com a sociedade maior. A historicidade dos ritmos de tempo
dos próprios Nuer e as transformações sociais as quais estão submetidos enquanto
cidadãos nacionais os remete ao convívio com outras “substâncias e vetores de trocas”
(Hutchinson, 2000:55). É essa convivência que leva aos Nuer a redefinir e
constantemente atualizar aquilo que compreendem como “relatedness” ou suas relações
de parentesco.
Dentre as atuais relações históricas com as quais os Nuer se acham envolvidos
estão incutidas de novas maneiras através das quais os mesmos se vêem e são vistos
pelos outros, em suma, têm influenciado diretamente sua identidade e sua concepção de
pessoa. De acordo com Hutchinson (2000), a compreensão que os Nuer têm acerca do
“sangue” se concilia, atualmente, com novos suportes que incrementam as relações de
“parentesco”. Os suportes analisados pela autora são: “dinheiro”, “armas” e “papéis”.
Tais “papéis” são sentenças, taxas e impostos, documentos cuja incompreensão expõe os
Nuer aos atos discricionários do Estado, às vezes praticados sob forma autoritária. São
documentos que mediam a relação dos Nuer com o Estado. Focalizando sua análise não
apenas sobre como as pessoas interagem mas como certas “substâncias” se movem entre
as pessoas (Hutchinson, 2000: 55), a autora procura compreender qual o papel que
“objetos importados” adquirem ao circular dentre os Nuer.
Tais elementos, identificados como externos ao grupo pela autora, são
importantes pois permitem uma análise no sentido epistemológico contrário à proposta
210
por Evans-Pritchard. Essas novas “substâncias” estão centralizando diferentes dimensões
de conflito pautados por “confusões e desacordos” (Hutchinson, 2000: 57) e que nos
levam, ao contrário do que ocorreu com Evans-Prtichrad, a evocar um paradigma que
foge da busca de explicação de uma totalidade. Para os Nuer o sangue é o portador de
características de personalidade, além de ser a substância que estabelece relação entre o
transcendente e o imanente. Sendo um meio de estabelecer relações com divindades, o
sangue passa de geração para geração. A mistura de sangue, para um Nuer, pode ser fator
de tensões pois a contaminação do mesmo encontra-se associada a homicídios, incestos e
assassinatos.
Uma das formas como se produz sangue é através da comida, “o sangue é
produzido pela comida e a comida pelo sangue” (Hutchinson, 2000: 59). Através de
rituais de comensalidade se celebra o “sangue”, a vitalidade e se produz o “sangue da
irmandade”. “Assim, combinação entre as ideologias da substância e da vitalidade
partilhada – sangue e comida são compartidos – com expectativas de exogamia e paz
comum” (Hutchinson, 2000: 60). A comensalidade, de forma muito semelhante a
religiosidade, desempenha papel importante na composição de redes de solidariedades
em “territórios negros”. Comparte-se a comida para se distribuir os excedentes,
comparte-se a comida dentre aqueles que fazem parte da irmandade. O ato de comer em
conjunto, de nutrir o corpo com um determinado alimento especial, como no caso de
Morro Alto, reforça laços de fé durante os festejos de Nossa Senhora do Rosário e de
coesão do grupo.
A comida tem, assim, um caráter imanente e transcendente no que diz respeito à
conformação de redes de conexividade. Ela liga aos santos consumando uma filiação e
aos semelhantes promovendo a integração simbólica em uma rede de irmãos. O habitar, a
211
comensalidade e a celebração religiosas são alguns fatores que constituem laços
entendidos como de parentesco dentre o grupo. Isso também ocorre, de maneira bastante
explícita, quando uma pessoa viva próxima de uma família enlutada veste as roupas do
morto com a intenção de usá-la até “gastar”, transferindo-a, assim, ao falecido. Esse ato
de solidariedade, praticado da mesma maneira por parte daquele que aceita o encargo de
“gastar” a roupa, quanto pela família que doa a mesma, configura uma relação de
parentesco tanto consangüíneo, quanto por afinidade, pois a pessoa que veste a roupa
passa a “ocupar o lugar do morto” na rede de parentesco do falecido, assumindo filiações
e alianças.
Atualmente, o “papel”, via de regra os documentos, tem sido, para os Nuer, um
espelho do “sangue” (Hutchinson, 2000: 70). A maioria das mulheres e homens Nuer não
sabem ler ou escrever, o que transforma o papel em um símbolo misterioso que
estabelece a mediação entre a comunidade local e os poderes de governo. É, justamente,
tornando-se hábeis ao manipular “papéis” que os Nuer estabelecem relações de
negociação um pouco menos assimétricas com o governo. Por outro lado, “papéis” têm
sido construídos pelos Nuer como uma substância capaz de expressar “distinções íntimas
apesar de sua uniformidade superficial” (Hutchinson, 2000: 70). São estabelecidas
metáforas entre o “papel” e o amor, o esperma e a adoção, ou seja, com o imaginário
sexual-reprodutivo Nuer. Segundo a autora, é por possibilitar a expressão de distinções
abstratas experenciadas que as metáforas acabam por conferir agilidade ao processo de
“identity formation”, ou seja, de formação de identidades (Hutchinson, 2000: 71).
Dentre as populações negras brasileiras que reivindicam uma dada territorialidade
os papéis, principalmente os oficiais, como cadastro de terras no INCRA, sentenças,
partes de antigos processos, recibos de compra de terras e certidões de casamento e de
212
nascimento guardam uma aura de poder e de mistério que marcam as relações entre a
população negra e os poderes de Estado. Os testamentos de antigos senhores que
conferiram terras aos seus ex-escravos ou agregados e o papel daqueles considerados
“herdeiros” dentro da comunidade influenciam o processo de “formação de identidade”
(Leite, 2002; Barcellos, 2004).
Muitos dos descendentes de ex-escravos que foram contemplados com legados ou
heranças de terras por antigos proprietários, hoje, buscam o reconhecimento de seu
território como de “remanescentes de quilombos”, uma demanda que constrói a
identidade etnicidade. Em tais casos, o papel se encontra sendo acionado como a
substância que permite a evocação da “descendência”, nos moldes biológicos e jurídicos,
que legitima a reivindicação de uma dimensão específica da identidade social de tais
populações. Esse processo de formação de identidade é acionado tanto para fora dos
marcos territoriais da comunidade, com o respaldo jurídico, quanto para dentro da
mesma, com base na interpretação que tais populações têm conferido ao valor dos
documentos.
Estudos como o de Hutchison (2000) fornecem novas perspectivas que ampliam
as possibilidades analíticas sobre como as “substâncias” estão influenciando o processo
de constituição do parentesco dentre populações negras e, por conseqüência,
influenciando na construção de critérios de territorialidade. Em alguns casos, como dos
descendentes dos “herdeiros”, a representação de legados e testamentos estariam
instituindo, nas comunidades, parceiros preferenciais e definindo parentelas capazes de
mediar relações entre o sistema local e o sistema nacional. Em outros, o significado da
circulação da comida e das roupas demonstra que estas substâncias são capazes de
instituir laços de parentesco.
213
4.6 Algumas considerações finais.
O desenrolar dos estudos referentes ao campo do parentesco estão apontando para
algumas linhas específicas. É importante o debate teórico que reformulou os paradigmas
de análise dos fenômenos tidos como referentes às relações de parentesco demonstrando
como aquilo que é “natural” é “socialmente” construído, possui um determinado senso de
época e de sociedade. Ao longo dos debates da década de 90 foi acrescida a essa
perspectiva a questão da “cultura” como um ingrediente capaz de trazer à tona a
diversidade de estilos daquilo que as pessoas julgam ser parentesco, mas não apenas isso,
também consangüinidade, afinidade, família, sangue. É nesse ponto, através da
revalorização da cultura e suas implicações quanto à diferença, que as teorias do
parentesco estão se aproximando das teorias da etnicidade. Nesse momento podemos
perceber como são construídas as “cores” do parentesco.
Em relação aos territórios negros, as modernas teorias do parentesco, oferecem
novas perspectivas analíticas na configuração dos espaços de solidariedade e de
expressão da etnicidade, oferecem a chave para a compreensão de suas “cores”. O
parentesco analisado como um processo (Macelin 1996; Carsten 2000) confere
importância a situacionalidade, como, por exemplo, a legitimidade jurídica da
consangüinidade explícita através do processo que visibilizou o testamento de Rosa
Osório Marques, e permite compreender como fatores que transpassam as fronteiras
étnicas influenciam, de forma decisiva, na escolha de novos “parentes”. O deslocamento
do olhar do pesquisador para as novas “substâncias” (Hutchinson, 2000) abre precedente
para que entendamos como certos critérios estão sendo apropriados pelas comunidades
que estudamos e constituindo novas formas de aparentar. Por fim, Bouquet (2000) expõe
214
uma gama de críticas ao método genealógico construído a partir do modelo das árvores
que possibilita avaliar a apropriação que estamos fazendo do mesmo e em que contexto o
estamos empregando.
Enfim, talvez uma das contribuições que a teoria do parentesco possa vir a prestar
aos territórios negros seja a de oferecer novos recursos argumentativos que quebrem com
a busca de um modelo de descendência engessado pelos valores hegemônicos como, por
exemplo, a supervalorização do “momento do nascimento”. Relativizando a importância
ideologicamente atribuída à descendência, apreendendo o significado radical de práticas
culturais e suas “cores” no cotidiano e compreendendo melhor as relações desses sujeitos
de direito. Assim, critérios de territorialidade expandem suas fronteiras e passam a uma
outra dimensão, de um território em rede a um lugar onde se vivencia o parentesco, com
tempo/espaço próprio, tendo como referência um determinado espaço material que é
simbolizado pela terra, suporte parcial do afeto de pertencimento étnico e sobre a qual
trataremos a seguir.
215
5. 0 significado da terra em Morro Alto no processo de territorialização.
5.1 Território e territorialidades; a) Algumas estórias da comunidade de Morro Alto; b)
Morro Alto e as reivindicações agrárias; c) A casa e a terra para além do material; c.1) As
denominações impostas à comunidade; c.2) Denominações de uso corrente; c.3) O terreno dos
negros; c.4) O “chão da casa de meus pais” e as árvores da memória; c.5) O umbigo enterrado e o
voltar para morrer na terra; 5.2 Considerações finais.
Tomando por base a análise do capítulo anterior, identifiquei valores centrais na
concepção de “remanescentes de quilombos” da comunidade: ser “herdeiro” e o
parentesco “consangüíneo”. Quero, agora, analisar de que forma essas concepções
influenciaram na análise de critérios de territorialidade da comunidade de Morro Alto,
afinal aquilo que é jurídico não deixa de estar no sangue.
5.1.Território e Territorialidades.
A noção de território negro é vaga e genérica, englobante de diferentes formas
que a população negra utilizou ao se apropriar de um lugar no mundo. Estudos sobre o
assunto foram desenvolvidos por Nina Rodrigues que classificava os ‘territórios negros”
em território oficial e território conquistado por sublevação; Donald Pierson, Florestan
Fernandes e Roger Bastide que analisaram padrões de ocupação da população negra,
principalmente, nas áreas urbanas também tangenciaram o assunto. Clóvis Moura vai
mais longe e analisa a noção de apropriação do espaço pela população negra através da
ótica “do espaço proibido” (Leite, 1991). É a partir das conclusões desse autor que
“ganha cada vez mais vigor a abordagem que interpreta todas as ações e representações
dos negros como estratégias de sobrevivência e resistência” (Leite 1991: 40).
216
De acordo com Leite (1991), a noção de território negro, por sua abrangência, não
seria a classificação ideal para a análise das “formas de apropriação do espaço por esses
grupos” ( Leite 1991: 42). A autora, há 15 anos, chamou atenção para o risco da
utilização de uma categoria reducionista para definir um fenômeno complexo, cuja
utilização poderia embotar a possibilidade de análise das peculiaridades do processo de
construção de um território étnico. A autora apresenta uma definição para território
negro:
“Um espaço demarcado por limites, reconhecido por todos que a ele
pertencem, pela coletividade que o conforma. Um tipo de identidade
social, construído contextualmente e referenciado por uma situação de
igualdade na alteridade. O território seria, portanto, uma das
dimensões das relações interétnicas, uma referência do processo de
identificação coletiva. Imprescindível e crucial para a própria existência
do social”, (Leite 1991:40-41, grifo da autora).
Na construção desse conceito está implícita a alusão a teoria dos grupos étnicos
de F. Barth (veja introdução) que salienta a construção contrastante de uma fronteira
social étnica, nesse caso reforçando o caráter geográfico dessa fronteira. Com base na
forma de ocupação do território, Leite (1991) sugere a seguinte classificação: território
de ocupação residencial e território de ocupação interacional, ambos podem ser
encontrados tanto em áreas urbanas quanto rurais sendo o segundo mais comum nas
cidades.
Os territórios de ocupação residencial são aqueles onde a permanência, com o
intuito de morar e viver, foi possibilitada pelo implemento de redes de reciprocidades
entre aqueles que neles vivem, baseadas principalmente pelo parentesco, e a população
de entorno, proporcionando ao grupo o compartir de sociabilidades, história comum e
mecanismos de solidariedade. As pessoas que neles vivem permanecem em suas terras
217
ou porque compraram títulos de propriedade porque ali estão por conta de brechas no
sistema jurídico. Os territórios de ocupação interacional se caracterizam por serem locais
fluidos, ou seja, que não possuem uma definição espacial precisa podendo mudar e se
transformar de acordo com a conjuntura na qual o grupo vive. Podem ser destinados a
prática do comércio, lazer, religião e/ou política. As redes de solidariedade e troca tecidas
entre aqueles que compartem o espaço interacional, de acordo com a autora, não se
constroem com base nas em relações de parentesco e vizinhança (Leite 1991:42-43).
O território negro é uma forma de demarcar um espaço onde símbolos e sinais
diacríticos são compartilhados. Trata-se de um lugar, onde não apenas é possível a
expressão da identidade étnica específica mas que, também, enquanto espaço torna-se
constitutivo dessa identidade. A apropriação e manutenção desse espaço por um grupo
específico acaba por demarcar um tipo de fronteira étnica que pode se sobrepor a outras.
“Esta fronteira étnica [território negro], coincidindo em diversos casos com a ocupação
da terra, configura uma apropriação coletiva que é passível de titulação”, (Leite
1996:50). No entanto, aderindo a primeira tese da autora, diferentes formas de ocupação
levam a diferentes tipos de territórios negros: será que todos eles são passíveis de ser
legalmente titulados? Um território é a base geográfica sobre a qual se expressam
diferentes processos de construção da territorialidade: “a territorialidade das
comunidades negras é referida na identidade étnica de cada grupo que as constitui” (Leite
1991:08). A territorialidade negra nesse caso é vivenciada no cotidiano através de
práticas que cunham seu sentido de nacionidade.
A discussão em torno do refinamento da definição de território, territorialidade e
processo de territoralização pode ser enriquecida através da interdisciplinariedade. A
geógrafa Zilá Mesquita (1995: 76) chama atenção para o fato de que o termo território
218
nasce em 1494 de forma correlata com a implantação de uma economia de mercado em
escala mundial. O território é um dos elementos constitutivos do Estado-Nação
eurocêntrico e denota exercício de soberania, exercício de poder político e jurídico. Um
território está impregnado de “valores territoriais” que são definidos através das formas
de expressão da territorialidade (Mesquita 1995:81). A consciência e a vivência cotidiana
da territorialidade permitiriam aqueles que compartem um território elaborar uma noção
de si no mundo, em relação a sociedade envolvente, e daqueles com quem compartilham
valores semelhantes. A consciência territorial poderia levar, como a autora chama
atenção, a redes de territorialidade, ou seja, à configuração de redes de solidariedade
entre aqueles que compartilham valores territoriais semelhantes. A construção social da
territorialidade está submetida a fatores históricos sendo uma forma criativa de percepção
do território (terra). A territorialidade é o processo através do qual se vive um território e
também os valores através do qual ela se expressa. Tais valores são organizados em
interação do grupo étnico com outros valores que partem da sociedade envolvente, dentre
eles valores jurídicos.
A tensão está na correlação jurídica entre território/territorialidade e a dimensão
necessária de sua expressão em um espaço material: a demanda dos “remanescentes das
comunidade de quilombos” é pela propriedade das terras que consideram suas. Estamos
assim diante de um jogo de campos e escalas. Jogo de escalas pois o território traduzido
em termos (materiais) geográficos, importante para o campo jurídico, “é definido como
uma porção de espaço sob controle de um indivíduo ou grupo, delimitado por um
conjunto de relações sociais” (Raffestin e Cox apud Dorfman 1995:100). No caso dos
territórios dos remanescentes de quilombos a análise dos “valores territoriais” poderá nos
dar pistas sobre a escala geográfica do território étnico a ser titulado.
219
Nesse jogo de escalas, matemáticas, cartografias, geografias, geopolíticas que o
antropólogo é tributário e o jurista um inquiridor desinformado, há uma outra dimensão
de discussão: a forma de percepção do espaço enquanto arena multidimensional de
poder. Sob um mesmo território incide uma densa gama de poderes, de relações de
indivíduos e de grupos, “o território é concebido como a vivência do poder no espaço,
numa relação que tenta afetar, influenciar ou controlar ações através do reforço do
controle sobre uma área geográfica específica” (Becker apud Dorfman, 1995:105). O
processo de territorialização decorre assim da confluência de poderes que incidem sobre
o território e que acaba por ditar parâmetros de territorialização em um dado espaço.
O Estado, através de vários órgãos, acaba sendo, como no caso dos
“remanescentes das comunidades dos quilombos”, um dos protagonistas do processo de
territorialização. O reconhecimento do direito de propriedade a que faz jus a coletividade
advém do Estado; a regulamentação, leis, decretos e portarias, que definem os critérios
de identificação e reconhecimento da identidade coletiva da comunidade parte do Estado;
a maior parte do financiamento dos estudos, com vistas à titulação das terras dos
remanescentes das comunidades quilombolas, parte do estado; e, finalmente, a titulação
da propriedade é concedida pelo Estado.
A territorialização é bastante distinta da territorialidade, essa segunda noção
deriva da geografia de tradição francesa, segundo Oliveira (1999) “que destaca,
naturaliza e coloca em termos atemporais a relação entre cultura e meio ambiente”, ao
passo que a territorialização é “um processo social deflagrado pela instância política”
(Oliveira 1999:24). Discordo de Oliveira quanto a sua interpretação da noção de
territorialidade como sincrônica que me parece superada, quer ao ser empregada por
antropólogos ou geógrafos. Concordo, porém, com sua perspectiva da preeminência dos
220
fatores políticos que partem do âmbito do Estado nacional, o processo de territorialização
acaba sendo englobado em um jogo de mão dupla: da comunidade para o Estado e do
Estado para as comunidades, com uma dependência absoluta das segundas em relação ao
primeiro.
Como quis deixar claro nos capítulos anteriores, há uma releitura das ações de
governo por parte dos atores envolvidos no processo de territorialização das
comunidades remanescentes de quilombos e, por outro lado, existe a seleção situacional
de critérios de territorialidade que são considerados relevantes, ou não, pelas
comunidades em seu diálogo com o campo político, acadêmico e jurídico. Passo a
apresentar alguns fatores evocados por pessoas que vivem na comunidade de Morro Alto
na construção de seus marcos de territorialidade.
a) Algumas estórias da Comunidade de Morro Alto
Especificamente, a localidade de Ribeirão nos foi referida como a “África” por
um de seus moradores. Era ali que as reuniões da associação da comunidade tiveram
início, no Clube de Futebol, e prosseguiram sendo realizadas nos pátios de casas dessa
mesma localidade. Poderíamos pensar que, talvez, o grau de tensão social naquela
localidade fosse menor do que nas outras que compunham a comunidade, porém isso não
é verdade. É no Ribeirão onde Sr. Ermenegildo sai para andar às margens da BR 101
armado com uma espingarda de caça, fazendo questão de cumprimentar seus vizinhos
brancos. É ali também que vive uma família branca de ascendência polonesa que querem
expulsar a “negrada da Antônia” do Borba. O que ficou evidente no contexto de
entrevista é que nestas localidades do Ribeirão e do Borba, a apropriação de terras está,
de certa forma, melhor assegurada aos negros através de escrituras públicas de terras e
221
outros documentos. Encontram-se estabelecida, assim, as delimitações das fronteiras
legais entre os negros com “papéis” e os “sem papéis”.
No que diz respeito às fronteiras internas entre as localidades que compõem
Morro Alto, são comuns relatos como os que versam sobre a origem da ocupação do
Ribeirão. Tais relatos buscam explicar porque os descendentes dos ex-escravos da
senzala de um senhor permaneceram ocupando as terras ao redor de sua “casa véia”.
Essa casa antiga, que ficava às margens da BR 101, pertencia ao “sinhozinho” Manduca
Marques, cunhado de Rosa Osório Marques que deixou terras em usufruto aos seus ex-
escravos. Dona Amarílis contou-nos a história de seu avô Teófilo, escravo que pertencia
a esse proprietário e que não se tornou livre pois, juntamente com o restante dos escravos
daquela senzala, não quis receber a “carta de alforria”. Teófilo e outros companheiros na
escravidão teriam recusado receber a liberdade pois não saberiam se “governar”, “eles
não sabia como ia sobreviver”. Em sua narrativa foram várias as pessoas que não
quiseram a alforria. Isso quer dizer que, de certa forma, a estória refere-se ao momento
em que a liberdade é oferecida e ao mesmo tempo negada por parte da sociedade branca
que não formulava alternativas de sobrevivência aos negros alforriados e libertos
Logo após descrever essa situação, Dona Amarilis descreveu-nos o falecimento
do irmão de Manduca Marques, João Antônio Marques, o Marques da “Cria
. Na época
em que João Marques estava morrendo, “ele estava magro e ia morrer”, dona Amarilis
conta que, para aqueles que não quiseram receber as “cartas de alforria”, ele iria deixar
umadistância” em terra, “pra eles não ficar mal”. Para isso ele chamou Vinícius,
escravo da casa
, e o escrivão, que “era da mesma gente” dos Marques, para fazer uma
escritura”. Nesta escritura, segundo ela nos conta, João Marques passaria aos seus
escravos suas terras e confiaria o documento a Vinícius e comenta “não sei o que é que o
222
Vinícius era dele, né?”. Vinícius era “gente escrava também”, muito provavelmente um
filho nascido do relacionamento entre senhor e escrava. Manduca Marques não morreu,
no entanto, a escritura permaneceu com Vinícius.
Quando “Carístio” (Calisto), pai de Cesária casada com Teófilo e avô de D.
Amarilis, ficou sabendo, em um segundo momento, que o “senhor” estava morrendo foi
contar para Vinícius. Esse entrou em tal desespero com a morte de seu “senhor” que
saiu gritando com o papel na mão e rasgou tudo dizendo: O senhor vai morrer, ele não
pode morrer!”. Como não existe cópia dessa escritura, o “terreno” foi transmitido aos
herdeiros legais que passaram a vender as terras aqueles que quisessem um “pedaço”.
Quem quisesse permanecer ali pagava para a família Osório, que era gente “dos
Marques”. E esses parentes e filhos ficaram vendendo terras, nas palavras de Dona
Amarilis, para “os escravos”. Ela lembra que seu avô Teófilo, já velho, ainda trabalhava
na roça. Quando ela questionou o porquê da família ter que plantar, colher e vender a
produção para depois comprar novamente, ele explicou que não quis receber a carta de
alforria junto com “muita negrada” e que, por isso, ainda era um escravo. Justificou-se
explicando que não quis receber a alforria pois não tinha dinheiro nem comida, para
sobreviver. Todos incluindo escravos e alforriados passaram a morar na antiga senzala,
um salão imenso, com repartições e camas a qual Dona Amarilis ainda conheceu na
localidade de Ribeirão. Mantiveram-se na localidade os negros que pagaram pelas terras
para familiares de seu ex-senhor e outros com quem estabeleceram redes de
solidariedade.
Viviam nas fronteiras do mercado. Afinal historicamente alguns negros da região
lograram permanecer livres dentro da ordem escravocrata nos interstícios de
propriedades de senhores brancos como produtores e agregados, ainda durante o período
223
da escravidão (Franco 1983 e Barcellos 2004) ou na terra de seus ex-senhores. Tais
situações não eram novidade no período que antecedeu a abolição no país (Gomes 1993).
Muitos bairros rurais negros estabeleciam relações de troca ou comércio com pequenos
comerciantes de municípios vizinhos. A existência de dois portos lacustres na própria
comunidade de negros de Morro Alto e mais um terceiro, o da Barra do João Pedro, pelo
qual algumas pessoas mais velhas lembram ter escoado sua produção de laranjas, reforça
a interação existente entre a comunidade de negros e as vilas vizinhas e a historicidade de
seus marcos de territorialidade.
A região de Morro Alto caracterizou-se, assim, como palco de entrecruzamento
de ações de diferentes agentes históricos, ex-escravos, negros fugidos, senhores,
pequenos comerciantes. Tais ações possuíam lógicas próprias ante às quais estavam
implicadas diferentes ordens de solidariedade, conflitos, interesses, diferentes ordens de
reciprocidade. Tratava-se de um rede social complexa que possuía múltiplos níveis e que
pôde ser encontrada em determinadas regiões do Brasil (Gomes 1993:54). No período
pós-abolicionista, os negros de Morro Alto estavam voltados à produção das terras que
ocupavam. Com o objetivo de manter uma autonomia relativa a comunidade que já
possuía uma intensa variedade de relações sociais que envolvia ex-escravos, senhores,
quilombolas e autoridades, passou a desenvolver um “campesinato negro”(Gomes
1993:57). Como nos relatou uma moradora daquela região, Dona Edite com
aproximadamente 65 anos, sobre a vida de sua avó: “nada vinha de fora a não ser a
querosene e o sal
. Dessa forma o campesinato, em Morro Alto, pode ser definido
enquanto experiência vivida por agentes sociais específicos, no caso os negros no
período pré e pós-abolicionista, contextualizados dentro de um processo histórico.
224
É na terra de Morro Alto que podemos ler parte de sua história. As localidades
que compõem a comunidade distinguem-se umas das outras em função da tradição da
permanência nestas áreas que remonta aos ex-escravos e negros fugidos, seus ancestrais
fundadores. Assim, “o bairro como um todo pode ser pensado como ‘propriedade
corporativa’ de uma parentela cuja forma organizativa se aproxima de um ‘grupo de
descendência’” (Woortman 1985:193). A “terra dos Teresa”, a “terra dos Gaudino”, a
terra dos Hortêncio” a “terra dos Maria” ou “o terreno de Floriana” são denominações
êmicas que distinguem as áreas de terra apropriadas pelos ancestrais de cada parentela,
trata-se da referência ao fundador mítico.
Com a construção da BR 101, no início da década de 50, esse quadro é alterado.
Junto com a estrada vêm trabalhadores de Santa Catarina que passam a se relacionar com
pessoas dali. Estranhos, portanto, que adentram o espaço comunitário e se alojam na
localidade denominada de Morro Alto. Da mesma forma a ampliação e a pavimentação
da estrada já existente representou a alteração do estilo de vida dos moradores locais. No
que diz respeito ao trabalho, os homens passaram a buscar emprego junto às empreiteiras
que se dedicaram à construção da estrada saindo do espaço da roça. Tal fato alterou a
lógica de trabalho coletivo da terra que existia na comunidade que passou a incorporar
fatores individualistas da relação de emprego. Foi uma transformação radical na prática
dos “pixurús” que praticavam os antigos. Por outro lado, para a mulher a roça passou a
ser um espaço domesticado, pois o plantio e a manutenção da mesma foram transferidos
ao seus cuidados. Com o término das obras na estrada de rodagem os homens de Morro
Alto, agora contratados pelas empreiteiras, passaram a trabalhar cada vez mais longe dali
indo parar em municípios como Camaquã e Rio Grande. A participação dos moradores
da comunidade nesse tipo de emprego contribuiu para a permanência de uma parcela de
225
outros moradores, pais, esposas, filhos e outros irmãos na própria localidade e colaborou
na permanência de uma “campesinidade” ali.
Além de interferir nos processos de produção, a ampliação das estradas também
acelerou o cercamento dos terrenos. Com a visibilidade e valorização que as terras
alcançaram pessoas oriundas da área central do município de Maquiné, de colonização
italiana, passaram a se apropriar de áreas que viam como “desocupadas”. Tais áreas
ocupadas foram, em primeiro lugar, as mais produtivas localizadas junto ao rio Maquiné
e uma das formas como procediam a esse tipo de expropriação foi o registro de terras. Ao
contrário dos brancos, os negros que viviam ali não possuíam a habilidade de lidar com
esse código jurídico específico, embora, em alguma quantidade possuíssem recibos de
pagamento de que haviamcomprado” a terra onde seus ancestrais viviam e que
buscavam permanecer. Assim, não é que não se empenhassem em conseguir assegurar
aquilo que entendiam como seu com títulos, com “papelis” como chamam, mas o
desconhecimento dos meios mais adequados de manter suas terras é que lhes foi omitido.
É a prática da “violência dos papéis” (Woortman e Wortman ...:21).
A despeito do cercamento e das alterações em seu ethos de trabalho, os negros de
Morro Alto implementaram algumas táticas que possibilitaram sua permanência naquela
localidade ancestral. Uma das táticas implementadas foi a de que através de ondas de
migrações para a cidade, daqueles filhos que não podiam mais viver nas terras ancestrais,
os mesmos se mantinham vinculados a obrigação de enviar auxílio aos que ficavam na
comunidade. Dessa forma, se incrementava a relação de interdependência entre o campo
e a cidade. Se um filho, na cidade de Capão da Canoa, dava de presente ao pai uma
roçadeira, esse mesmo filho ia, aos finais de semana, retirar tanto aipim e banana quanto
coubesse no porta-malas de seu carro. Por outro lado, quando grande parte da família
226
migrava para as cidades, principalmente no caso da existência de poucos filhos que
ficassem com seus pais na terra ancestral e tradicional, é comum, em Morro Alto, o envio
de um neto, via de regra um homem, que ajudará os mais velhos que permanecem na
localidade. Assim, a manutenção de uma terra “fundada” por ancestrais que sofreram
com a escravidão preserva o sentimento de pertencer a um lugar no mundo para os
negros dessa comunidade especificamente, estejam eles na cidade, principalmente nos
municípios de Osório e Capão da Canoa, ou no campo em Morro Alto (Barcellos 2004).
Nesses moldes, sair da Comunidade de Morro Alto nada representou além de um recurso
para viabilizar a possibilidade de permanência daqueles que nela ficavam.
b) Morro Alto e as reivindicações agrárias.
A região da comunidade negra de Morro Alto não ficou isolada ante ao cenário
nacional de mobilização em torno das lutas agrárias. Com a ampliação da estrada onde
hoje está o leito da BR 101, na década de 50, houve a valorização imobiliária da região
com a chegada de novos personagens à comunidade. Agregaram-se a esse fator uma
grave crise regional agrícola, que se estendeu dos anos de 1956 a 1965 (Barcellos, 2004),
e o “esgotamento da fronteira agrícola do Estado”, (Eckert apud Barcellos, 2004). Em 16
de setembro de 1963, 250 famílias camponesas acamparam na área onde hoje encontra-se
a localidade de Morro Alto. Mesmo com a repressão policial que levou ao computo de
dez camponeses feridos, permaneceram acampados no local. No dia 19 de setembro, o
acampamento foi cercado e isolado por 100 soldados armados com metralhadoras, as
rodovias de acesso foram bloqueadas e líderes sindicais e repórteres dissuadidos a deixar
a área. As pessoas acampadas passaram a receber alimentos de populares da região e
buscaram marcar uma audiência com o governo do Estado do Rio Grande do Sul.
227
Pessoas que viveram esse momento estão, hoje, empenhadas com o movimento
dos “remanescentes de quilombos”, como por exemplo Sr. Manuel Francisco Antônio,
presidente de honra da Associação Rosa Osório Marques. Ele participou do
acampamento de 1963. Em 19 de novembro de 1963, o governador do Estado expediu
decretos desapropriando três áreas, dentre elas “5200 hectares, com reserva florestal,
localizados em Osório, também ocupados por famílias sem-terra”(Barcellos, 2004: 191).
Com o golpe militar de 1964, os decretos não foram efetivados e o problema agrário no
Rio Grande do Sul foi solucionado de forma autoritária. Muitos dos acampados na região
eram camponeses empobrecidos e negros. Foi nesse momento histórico que a
comunidade negra tomou conhecimento do testamento de Rosa Osório Marques que
conferiu aos seus ex-escravos um legado em terras.
Ao longo da década de 80 surgiram novos temas e personagens tais como sem
terras, seringueiros, atingidos por barragens que “refletiam novas dinâmicas de lutas e
expressavam identidades constituídas no próprio processo de crítica e enfrentamento das
condições vigentes no meio rural” (Medeiros, 2002: 164). O grande mote de discussão
desses personagens era a questão do acesso a terra que colocava em cheque não a
legalidade da propriedade mas a legitimidade de sua apropriação. Com a Constituição
Federal de 1988, os remanescentes das comunidades de quilombos passaram a ter seu
direito de propriedade reconhecido pelo Estado brasileiro com base na idéia de
resistência na manutenção de suas terras ancestrais. Trata-se de um direito étnico, pois
encontra-se calcado na noção de pertencimento a uma comunidade de afeto específica, a
dos afrobrasileiros.
No âmbito das movimentos sociais de mobilização nacional, o movimento dos
“remanescentes de quilombos” não se encontra vinculado ao Movimento dos
228
Trabalhadores Rurais Sem Terra, ou MST, mesmo que ambos reafirmem a identidade
social detrabalhadores rurais”. Acompanhei uma discussão entre uma advogada do
MST que, ao participar de um encontro entre defensores públicos e comunidades negras
rurais e quilombolas, conclamou aos presentes uma “união”, uma “construção de
identidade” para compartilharem os “vinte anos de reivindicações” do MST. Procurou
convencer os presentes, representantes de movimento negro do estado do Rio de Janeiro,
da Fundação Cultural Palmares e de organizações não governamentais, sobre a
possibilidade de construíremuma estratégia de resistência juntos”. A representante da
Fundação Cultural Palmares, presente na ocasião, simplesmente respondeu que
diferentemente das reivindicações do MST as comunidades dos remanescentes de
quilombos são “imemoriais”. Com isso foi acionado no discurso a distinção através da
antiguidade da ocupação negra em comparação com a ausência de um longo vínculo com
a terra por parte daqueles que integram o MST. Outra pessoa da assistência levantou-se e
enumerou o caráter de “patrimônio” que tem a terra quilombola, sua transmissão através
da “herança” e a condição de “trabalhador rural”. Trata-se da tensão instituída entre
identidade e papel social, ou seja, é como se a autodefinição como afrobrasileiro
excluísse a possibilidade de adesão a outros pleitos empreendidos por parcelas da
população que se agrupam em torno de reivindicações políticas cuja mola propulsora se
encontra ancorada em um papel social.
O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988 ampliou a possibilidade de mobilização social em torno do idioma
étnico elevando ao nível nacional um emblema de ação política. Afinal, a função social
da propriedade, garantida pela Constituição de 1988, muitas vezes apenas é observada
pelo Estado e pela sociedade a partir da ação política de grupos de pressão como, por
229
exemplo, o MST e o movimento nacional dos remanescentes de quilombos. No âmbito
das instituições públicas, o INCRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária) é um órgão
que jamais concretizou a finalidade para o qual foi criado. Se o significado que as terras
têm para as comunidades negras é distinto daquela que outros grupos camponeses têm, o
artigo 68 veio a fornecer respaldo jurídico a uma demanda que se arrastava, na questão
fundiária, ao menos desde as décadas de 50 e 60. Curioso é que, de acordo com a
concepção de Eric Wolf, o camponês só o é após se tornar sujeito de direito e sanções
por parte do Estado, o que nos leva a deduzir que reivindicando o reconhecimento de sua
identidade étnica é que os remanescentes de quilombos poderão ser camponeses, já que,
não se enquadram nas lutas agrárias, por possuírem uma percepção diferente da terra.
No que diz respeito ao estudo de populações camponesas negras no Brasil, o
interesse por esse universo de pesquisa específico data da década de 80. Um dos
primeiros trabalhos sobre o assunto foi elaborado por Mari de Nasaré Baiocchi chamado
“Negros do Cedro: estudo antropológico de um bairro rural de negros em Goiás”,
datado de 1983. Sua pesquisa, no entanto, foi elaborada ao longo da década de 60 -70.
Nessa pesquisa a autora conclui que
“A não ser pela cor, não se podem perceber, de forma clara, no estilo de
vida do grupo, aspectos culturais que lhe sejam específicos e que não
façam parte do universo cultural de largas camadas da população rural
brasileira no mesmo plano sócio-econômico. Porém, o grupo tem uma
noção bem clara de sua identidade que se liga, em última instância, a
suas características raciais”, (Baiocchi, 1983: 143, grifo meu).
Maria de Lourdes Bandeira publica, no ano de 1988, “Território Negro em
Espaço Branco: estudo antropológico de Vila Bela”. Nele a autora busca analisar a
situação do negro em relação aos brancos, não buscando encontrar peculiaridades que o
230
tornem um sujeito exótico mas compreendendo como a identidade negra se constrói em
seus parâmetros de valor e honra a partir da sociedade branca:
“Manipulando a condição de raça para classificar diferenças e
estabelecer sua hierarquização na distribuição de ‘honras’ sociais, as
castas raciais mantêm-se organizadas no interesse dos brancos, que dela
retiram vantagens para a sua condição de raça em todos os níveis e
esferas das relações sociais, políticas e culturais” (Bandeira, 1988:
329).
No âmbito da estrutura agrária brasileira, Alfredo Wagner de Almeida produz, ao
final da década de 80, um texto clássico que discorre sobre os sistema de posse comunal
em Terras de preto, terras de santo e terras de índio: posse comunal e conflito”.
Segundo o autor, posse comunal pode ser caracterizada da seguinte forma:
“Fatores étnicos, a lógica da endogamia e do casamento preferencial, as
regras de sucessão e demais disposições, que porventura reforcem a
indivisibilidade do patrimônio daquelas unidades sociais, representam
um obstáculo a que a terra seja livremente colocada no mercado”,
(Almeida, 1987/1988: 43).
Com a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, o artigo 68 do
ADCT deu novo escopo às mobilizações em torno do idioma étnico. Porém, apenas na
década de 90 foi que o movimento das comunidades remanescentes de quilombos adentra
o cenário político nacional. Em 1995 é feito o I Encontro Nacional das Comunidades
Negras Rurais, realizado em Brasília/DF, nos dias 17 a 19 de outubro. No ano seguinte,
são realizadas a I Reunião da Comissão Nacional das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, em 11 e 12 de maio e a II Reunião, em São Luís do Maranhão, em 17 e 18
de agosto de 1996. Nessa reunião, foi constituída a Cnacnrq, ou seja, a Comissão
Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas (Almeida
1997:129).
231
c) A casa e a terra para além do material.
Neste momento do texto quero discorrer sobre uma parte específica do patrimônio
familiar: a propriedade da terra. Inicio expondo ao leitor a heterogeneidade quanto às
formas de se referir à terra quer enquanto local de moradia, quer enquanto lugar de
produção. Assim, busco demonstrar a polifonia no discurso interno dos moradores da
área da Comunidade e como são interpretadas diferentes formas de nomeação de um
mesmo território na construção de seus marcos de territorialidade. Na segunda parte
discorro sobre as táticas empreendidas pelo grupo estudado para assegurar a transmissão
de suas terras ante aos demais membros do grupo, táticas essas tradicionais e invisíveis à
sociedade englobante mas que, como ressalta Alfredo Wagner, reforçam, de certa forma,
a não divisão de parte do patrimônio. Por fim, encerro o capítulo demonstrando como a
propriedade da terra, constitutiva do patrimônio familiar, é transmitida e protegida dentro
do âmbito jurídico através de re-leituras de recursos deste campo a partir da lógica local.
No decorrer da pesquisa de campo, pudemos perceber que determinadas
categorias que serviam para se referir à terra eram empregas de maneiras distintas. As
categorias colônias, sítios e chácaras apresentam variações específicas em distintas
localidades do território de Morro Alto. Já as categorias “terreno”, “lote” e “jardim
estão demonstrando serem utilizadas de maneira mais geral.
c.1) As denominações impostas à comunidade
Os moradores das terras ocupadas das diversas áreas que compõem a comunidade
de Morro Alto se utilizam várias categorias para identificar e se referir a terra. Os
principais fatores que influenciam os padrões de nominação das áreas são as variáveis:
tamanho da área ocupada, a produção e a localidade que ocupam dentro de cada bairro.
232
Dentre estas categorias as que apresentaram maior variação foram às categorias de sítio e
chácaras, sendo a “colônia” uma categoria cujo emprego se encontra mais localizada.
Diversas pessoas empregam a categoria “colônia”, na localidade de Ribeirão, ao
se referir às terras que ocupam na encosta do morro às margens da BR 101. Nela são
mantidas as casas de moradia da família extensa, organizada por blocos familiares, as
roças e os jardins. Tais “colônias”, geralmente, possuem grandes áreas para o cultivo de
banana. Como um morador antigo da região, que vive e trabalha em sua colônia,
explicou: uma “colônia é oitenta braças por setecentos e cinqüenta de fundo”. Ali, as
propriedades e posses terminam no “topo do morro”, cabeceira ou “travessão”, cujo fim
ou cume marcam, para o outro lado, o início da localidade de Aguapés.
Neste mesmo bairro de Ribeirão e do Borba também encontramos negros que
compraram suas terras de ex-senhores ou de seus herdeiros, por recibo. A área de
Ribeirão é a que se localiza na encosta da serra enquanto o Borba é constituído de
campos planos e férteis sendo o local onde a expropriação da terra se deu de maneira
mais acentuada. Estas pessoas acreditavam que de posse de recibos e de escrituras de
cessão de direitos hereditários teriam a propriedade da terra em que viviam, pois a posse
da terra, de fato, já mantinham. Para as pessoas que ali viviam o uso e a posse da terra
acarretavam automaticamente ter sua propriedade.
No Borba encontramos a expressão “chácara”, que engloba o local de moradia
permanente, galpões e área de cultivo e de criação de gado. “Chácara aqui parece se
tratar de uma categoria atribuída de fora, da sociedade branca às representações de
propriedades dos negros. A categoria “terreno” é empregada para se referir à terra
ocupada para habitar, trabalhar, enfim, viver como veremos à seguir. Pessoas que
viveram no Borba e, atualmente, se encontram no Ribeirão empregam a categoria “sítio”
233
para definir o local de moradia e de cultivo de roças, não sendo tão grande em extensão
quanto achácara”. Como a região de Morro Alto é uma comunidade negra com forte
caráter endogâmico o que reforça os laços de parentesco entre aquelas pessoas que a
compõe, podemos concluir que tais categorias passaram a ser referência na comunidade a
partir de diferentes momentos e situações históricas, pelas quais diferentes localidades da
comunidade vivem..
c.2) Denominações de uso corrente
As referências à terra, por parte da comunidade, dá-se, via de regra, pelo uso das
seguintes categorias: oterreno”, a “roça” e o “lote”. A categoria “lote” tem seu
emprego mais presente na localidade de Morro Alto, em vias de urbanização por
iniciativa branca, de uma família específica. Ou seja, está datada e corresponde a um
momento histórico específico da comunidade no qual as terras ancestrais ocupadas pelos
negros de Morro Alto passam a ser parceladas em extensões semelhantes as da cidade. O
“lote” remete ao urbano a para um estilo de habitar que alija a pessoa do contato com a
terra e com as possibilidades de plantio.
A categoriaterreno” é empregada sempre se referindo a uma área de terra de
tamanho tal que comporta os locais de moradia e os locais de produção pecuária ou
agrícola. Esta expressão também possui sua historicidade. Ela é a categoria que dialogou
desde o começo do século com a sociedade branca e marcou uma transição da “terra”
para o “terreno. A categoria “terreno” tem o início de sua utilização marcada pela
violência das medições que ignoraram os negros donos da terra. Uma moradora relatou
lembrar-se de uma medição, ela tem mais de 90 anos, que teria ocorrido quando tinha 6
234
anos, e relata que “mediram a terra, repartiram em terreno”. Essa mesma senhora, cujo
pai hospedou os técnicos responsáveis pelo trabalho, conta que lembra de uma discussão
entre sua família e os hóspedes em função “das tiras de terras” que os negros estavam
recebendo. Essa “tira” foi tudo o que restou daquilo que “os cativero”, os antigos
senhores de escravos da região, “tinham dado” aos negros que ali ficaram, os “donos da
terra” foram, assim, desrespeitados.
Mesmo que a referência ao “terreno” seja feita perante sua materialidade, em
outra dimensão, “estar ocupando” uma área significa poder “mandar” na área, ou seja,
exercer o “governo” do uso do espaço. Assim, moradores do Borba contam que ao
construírem suas residências ali não existia cerca. Nada era cercado ali por volta do ano
de 1944, “era tudo campo, nós mandava tudo”, relata uma moradora. As cercas eram
desnecessárias para estabelecer o poder de mando uma vez que o plantio já o evidenciava
dentre a comunidade, sendo utilizadas para conter o gado que eventualmente investia
contra uma horta. Mesmo que a pessoa entendesse exercer poder de mando sobre o uso
de determinado local, como não havia conseguido legalizar sua posse, exigência esta
cujos caminhos desconhecia, poderia perder a posse que exercia de fato.
Um “terreno” de negro, assim, representa uma parcela de terra em constante
risco de expropriação por parte da sociedade branca detentora de uma saber técnico
jurídico específico. As estratégias consistiam em realizar o inventário de um grande
proprietário ignorando quem quer que estivesse ocupando a terra. Estórias de senhores
que teriam deixado terras para os negros e que tiveram seu último desejo desrespeitado
por algum familiar inescrupuloso são recorrentes nos diversos bairros que compõem
Morro Alto servindo como metáfora para a consciência do desrespeito sofrido pela
população. Esses herdeiros brancos inventariavam o “terreno de outro, [que] era dos
235
negros”. São justamente aqueles ex-senhores que não reconheciam a propriedade de
terras aos negros que hoje são lembrados como “senhores maus”, por oposição aos
“senhores bons” que doavam terra aos ex-escravos. Tal qual uma Maison, “linhagem e
patrimônio permanecem enquanto passam gerações que a personificam; encarna-se um
nome que não se distingue apenas por um prenome. O nome permanece anexo a
Maison”, (Bourdieu, 1962: 24). A forma como as pessoas, em Morro Alto, se relacionam
com seus “terrenos” se aproxima bastante da Maison, sem confundi-la com a Zadruga.
A palavra “terreno” designa, também, a terra e aqueles aos quais a comunidade
reconhece como verdadeiros proprietários do local ou que sejam as pessoas donas da
terra responsáveis por aquele “terreno”. São essas pessoas que movem ações judiciais
em defesa dos núcleos tradicionais aos quais pertencem. Os “donos da terra” são
homens, representantes da parentela, que “herdam” a posição de liderança no trato com
os poderes públicos tendo em vista, principalmente, dois fatores: letramento e um
período de vivência no qual trabalharam ou mantiveram relações de emprego com
pessoas ou empresas de fora da comunidade. Na comunidade, ter e permanecer na terra é,
tal qual referido por Bourdieu, o dever de agir em propriedade, ou seja, por isso um
direito de propriedade (1962: 23).
São esses homens que possuem o papel de mediadores entre parcelas da
comunidade formada por grupos familiares e, principalmente, o judiciário. Esse fato é,
em parte, reflexo do encontro de duas lógicas: uma coletiva e outra individualizante. A
lógica coletiva exige que as decisões sejam tomadas tendo em vista o grupo familiar e
discutidas por aqueles que o compõem priorizando a audiência dos mais velhos. Porém, a
representatividade exigida ante ao direito de propriedade era, até o advento do novo
código civil de 2001, individual, ou seja, apenas um proprietário por parcela de terra. A
236
princípio, a lei contrastava abertamente com a forma de posse dos “terrenos” em Morro
Alto.
O “lote” é uma parcela de terra semelhante ao terreno, ou data, urbano. Nele está
o local de moradia e os jardins. Esta expressão é utilizada mais comumente na região do
núcleo de Morro Alto, em torno do entroncamento da BR 101 com a RS 407, onde
existe um loteamento, um início de urbanização. O “lote” designa a menor parcela de
terra que uma pessoa pode ter. Na leitura feita por um antigo morador do bairro de Morro
Alto a diminuição de sua terra se deve ao fato de não poder mais trabalhar, estando a
manutenção da mesma imbricada ao seu uso. Por exemplo, um homem negro de idade
avançada cedeu, por ser muito idoso e não poder exercer a agricultura, seu “terreno”,
hoje explorado como pedreira, a um sobrinho e manteve o lugar de moradia, o “lote”.
Assim, fica mais uma vez claro que junto com a terra vem a obrigação, por parte daquele
que a mantém, de fazê-la produzir.
Por outro lado, o “lote, na maior parte das vezes, diz respeito a uma parcela
urbanizada de solo e distingue, onde se localiza o bairro de Morro Alto, a parte ocupada
pelos negros e a parte ocupada pelos brancos imprimindo uma forma de demarcar do solo
completamente distinta. É pelo fato de que não possui um “lote”, mas uma apropriação
tradicional, do tipo que comporta um bloco familiar, uma moradora comentou: sei lhe
dizer que ele não pode passar a escritura porque a casa não é lote, sim é de telha, só
uma ‘tirinha’”. A casa em questão consistia em um “terreno” e, realmente ante a forma
de ocupação coletiva e tradicional a propriedade coletiva, era impossível de ser
registrada. Assim, os atributos da designação “lote” confrontam diretamente com a
forma de ocupação negra na região, impedindo a interação entre as áreas de moradia e as
237
áreas de plantio e criação de gado, além de isolar as famílias obrigando a sua disposição
espacial na forma nuclear.
Já, no que diz respeito à área de plantio, a denominação varia de acordo com a
extensão da área cultivada, com a permanência da cultura e o destino dado à produção.
Quanto à extensão da área cultivada ela pode ir de alguns metros a hectares.
A “roça” é o espaço de plantio por excelência. Ela compõe a paisagem do
terreno” iniciando, via de regra, próxima da casa de moradia. Apenas os “lotes
encontram-se sem uma roça, mas mantém o espaço de plantio de temperos. Planta-se na
roça” frutas e legumes para a subsistência da família que vive na área destinada à
moradia e para aqueles que vêm “nos fins de semana”. Nelas se cultiva café, abóbora e
aipim – tal como amarelo, pêssego e roxo, cujo tempo do plantio até a colheita pode levar
dois anos. A cana e a banana também são cultivadas, geralmente, por aquelas pessoas
que possuem algo como três ou quatro cabeças de gado. Também frutas são plantadas
nas roças tais como abacaxi, jaca, figo, laranja e bergamota. Quanto às distinções dos
papéis de gênero no que diz respeito às etapas do plantio, pudemos observar que a
manutenção cotidiana destas áreas é papel dos homens da casa. Já às mulheres cabe
cuidar das hortas de temperos, pois o cultivo de ervas é tarefa masculina.
Em suma, a “roça” se traduz em um espaço para o plantio sazonal de alimentos
mas que é um espaço permanente de uso e manutenção do solo. Trata-se de plantio de
subsistência praticado por várias pessoas de uma mesma parentela daqueles que
trabalham na terra, cujo excedente da produção, além de ser enviado para Osório e Capão
da Canoa, onde vivem os filhos destas famílias produtoras, também pode ser trocado com
vizinhos ou mesmo vendido. A tradição do plantio por “roças” é algo que se confunde
com a Antigüidade da permanência da área negra de Morro Alto. Os pais daqueles com
238
quem falamos plantavam. São pessoas de 70 ou 75 anos que nos contam que seus pais,
falecidos por volta dos 80 anos, já trabalhavam em roças na região. Parar de trabalhar na
roça” só se justifica pela velhice e pela doença, na ordem do discurso nativo, “agora
também, [ele] não pode trabalhar, está doente, ele sofre do coração, de pressão alta”.
As mulheres, por seu turno, cultivam pequenos “jardins”, em frente das casas.
Eles são verdadeiras farmácias com plantas como alfazema, capim cidró e outros chás.
Além disso, cultivam ali, também, folhagens e flores. Tais espaços revelam-se locais
onde se deposita a marca de relações sociais mais amplas do que as relações de
vizinhança. Folhagens de comadres que vivem em Terra de Areia, Capão da Canoa e
municípios vizinhos são todas cuidadosamente plantadas nestes “jardins” de acordo com
uma disposição estética espacial da “mistura” de plantas. A arruda e a espada de São
Jorge são constantes nosjardins” e vistos, mesmo, em vasos nas casas que visitamos.
As mulheres cultivam folhagens e flores ornamentais que nos falam de suas amizades e
relações de compadrio. É muito importante observar que quando realizamos entrevistas
em Capão da Canoa e Osório, pudemos perceber que ojardim” é um espaço cultivado
por aqueles que saem da comunidade e se instalam em “lotes” urbanos. Sua concepção
faz uma viagem de retorno ao Morro Alto rural e se instala em torno das casas, ornando e
marcando o limite dos lotes.
c.3) Os terrenos de negros
Os locais de moradia de Morro Alto encontram-se estruturados a partir de uma
organização interna por blocos familiares. Afirmar que a interação com a terra se dá pela
apropriação da mesma por tais blocos não significa a mesma coisa que uma apropriação
privada similar à propriedade individual. Oterreno” ou a “terra” corresponde a áreas
239
habitadas e usadas por famílias ou blocos familiares e apropriadas pelo uso. Utilizar a
terra para o sustento ou para o habitar é uma espécie de obrigação para essas pessoas
pertencentes aos ramos de famílias negras cujos ancestrais são rememorados como
fundantes da parentela e os primeiros a se estabelecer naquela região. Os ramos
familiares se diferenciam pela nomeação, encontrando-se inseridos em um sistema de
parentesco cujas regras definem quem permanece e quem sai da área familiar.
A toponímia interna dos “terrenos” ou “terra”, que compõem um todo maior
definido como a área de Morro Alto, carrega em si um nome que se reporta à pessoa mais
antiga que o ocupou, uma espécie de fundador que garantiu a posse e transmissão da
terra. Temos assim, pelo território da comunidade de Morro Alto: terra dos Teresa; terra
dos Inácios; terra de Olina; terra dos Fortes; terra dos Hortêncios, dentre outros. A
maioria destes fundadores, foram ex-escravos que mantiveram um pedaço de terra para
transmitir aos seus filhos.
240
Os terrenos atuais têm origem em áreas de domínio e de uso comum, como os
campos onde o gado de vários proprietários podia pastar livremente quando não havia
cercas. O local de ocupação por blocos familiares a que nos referimos significa um lugar
de moradia exclusivo de um ramo familiar, ou seja, dos descendentes de um ou mais dos
filhos, mulher ou homem, desse antepassado fundador que independe do sexo, mas cuja
importância está no ato de legar a terra. O morar em Morro Alto encontra-se praticado
de uma forma coletiva, uma família extensa que possui membros que habitam
periodicamente casas que são mantidas na comunidade.
De uma forma geral, nas diversas localidades que compõem Morro Alto foi
identificado um mesmo padrão de disposição de casas em áreas familiares. Geralmente,
as casas de uma mesma parentela se estabelecem por gerações na mesma área em que
estiveram pais e avós. As casas obedecem a um padrão de ocupação pautado pela
estrutura familiar. Via de regra, as casas dos filhos são construídas ao redor da de seus
pais que já foram construídas próximas às casas de seus avós. Dessa forma, existe uma
série de pequenos aglomerados de casas onde são encontrados ramos familiares que
descendem de um tronco comum, um ex-escravo comum. Mesmo sendo a regra de
residência multifocal com ênfase na patrilocalidade, a disposição das casas é a mesma. A
casa ancestral ou o “chão” da mesma é mantido como marco da memória e de posse e os
filhos constroem casas ao redor.
A localização das casas atuais, ao redor ou bastante próximo das casas mais
antigas, é um padrão encontrado em praticamente todo o território estudado e que se
traduz em um tipo de apropriação do solo que indica a sua continuidade ao longo dos
anos. Os filhos e os netos sempre estão ao redor das casas de seus antepassados com
outra particularidade: as casas dos antepassados, via de regra, nunca são ocupadas, assim
241
como sobre seus “chãos” nada é construído ou plantado. São os lugares de memória que
compõem a paisagem das moradias de Morro Alto.
Este padrão de ocupação da moradia espelha um tipo de interação com o solo que
se encontra fracionado em blocos. Essa interação se dá na medida em que existem divisas
por roças que distinguem o início e o fim das “extremas” dosterrenos” onde estão tais
blocos familiares. Vizinhos que fazem parte da comunidade negra convivem de longa
data, sabem onde começam e onde terminam as “roças” reconhecendo a autoridade
daqueles sobre a localização das moradias e as plantações. São famílias negras que
compartilham lagoas para o lazer ou a pesca e matos que fornecem ervas para a cura e
madeira.
Os terrenos de Marcelina e Floriana.
A transmissão da terra em Morro Alto opera tendo por base uma série de marcos
espaciais de memória, reconhecidos no interior da comunidade. Para aprofundar esse tipo
de situação vou trazer ao texto a forma como a família do falecido Sr. Ildo Fortes
transmitiu sua propriedade ao longo de quatro gerações. Descendente da escrava
Marcelina Cristina Marques, nascida em 06 de janeiro de 1852, casada com Bibiano
Felizardo Fortes, sua proprietária foi Maria Bernarda Marques. Marcelina teve três filhos
Cipriana Marcelina, Anacleto Bibiano Fortes e André Marcelino Fortes, este nasceu em
22 de maio de 1875. Marcelina faleceu em 1923, contava então com 71 anos. A senzala
de Maria Bernarda Marques, a “casa grande dos negros” como se referem a ela,
localizava-se na Barranceira. Com a Lei do Ventre Livre e o deslocamento das crianças
negras dentro do território da Comunidade de Morro Alto, os filhos de Marcelina e
242
Bibiano acabaram por se fixar às margens da Lagoa do Borba, denominação da margem
nordeste da Lagoa do Ramalhete.
Contemporânea de Marcelina foi Floriana, também escrava da mesma Maria
Bernarda Marques. Companheiras de escravidão e de senzala. Floriana, no entanto, não
logrou se casar com registro da forma como Marcelina o fez, mas teve uma filha
Vicência Floriana Marques, uma “escrava dos Marques”, nascida em 22 de maio de
1879, e um filho Braz Floriano da Rosa. As terras de Floriana “velha” ficavam no
Ribeirão, “no mesmo terreno” onde viveu seu neto Firmino.
André Marcelino Fortes, o filho de Marcelina, casou-se com Vicência Floriana
Marques, filha de Floriana. Juntos eles tiveram cerca de oito filhos: Firmino Vicente
Fortes, Rosa Vicenza, João Vicente Fortes, Eufrázia da Rosa Fortes, Rosa, Lúcia Vicenza
243
Fortes, Antônia Vicenza e Bibiano Vicente Fortes. Após a abolição Marcelina veio a se
instalar nas margens do Borba enquanto Floriana fixou-se no Ribeirão, próximo de onde
encontram-se as terras de seu filho Braz Floriano da Rosa. Firmino Vicente Fortes por
sua vez veio a se casar com Maria Ilda Teodora, são os pais de Ildo Fortes dos Santos
que nos descreve o terreno de seu pai e de seu tio João. Ildo herdou os documentos da
família e, com isso, o dever de preservar e cuidar das terras que herdou de seu pai. Sua
família possui escrituras e recibos de suas terras, além de um processo de reintegração de
posse que seu pai impetrou contra um vizinho. A existência de toda essa documentação
que envolve escrituras, recibos, carnês de pagamento de impostos e registros no INCRA
se deve ao fato de que ali no Ribeirão e no Borba a expropriação e a transação das terras
ocorreram de forma mais intensa do que em outros lugares na comunidade.
Ildo contou que a área toda era de seu tio, João Vicente Fortes, e teria sido
“legalmente” adquirida através de um compra feita de Manuel Marques da Rosa. De seu
tio João, Ildo herdou uma escritura que comprova a propriedade da terra e confirma sua
compra. Além disso ele também possuía uma série de recibos, deixados por seu pai e seu
tio, o mesmo João. Além dessa terra ancestral, Ildo ainda comprou mais “20 braças de
frente, fazendo fundos na vertente geral da serra”, a frente seria na “divisão do Borba”.
O único problema, como o próprio Ildo admite, é que o Borba nunca foi medido. O local
chamado Borba, cuja menção demarca uma fronteira, tem proporções desconhecidas.
Ildo conta que o Borba apenas foi invadido e ocupado, mas jamais medido. Através do
que conseguimos acessar pelas narrativas das netas de Floriana e Marcelina, Eufrázia da
Rosa Fortes, de 83 anos, Antônia Vicenza da Silva, de 86 anos e o bisneto falecido Ildo
Fortes dos Santos, os filhos de Marcelina e Floriana viveram nas localidades chamadas
Borba e Ribeirão. Segundo Eufrázia que nasceu e se criou no Borba, os vizinhos mais
244
antigos de sua família eram os irmãos de sua mãe, Vicência Floriana Marques. Outra
pessoa já nos contou que o local chamado Borba nasceu do casamento de André e
Vicência.
Já o Ribeirão não veio a ser doado aos negros que ali viviam como no caso de
Morro Alto onde um testamento lhes legou o direito de ali se fixarem. Embora também
no Ribeirão houvesse indícios de uma forte ocupação negra que se espalhava pelo
território das antigas fazendas, as terras foram “marcadas” pelos antigos senhores que,
além de demarcar os terrenos, davam a escritura” através do “papelzinho” . Por isso no
bairro do Ribeirão as famílias todas têm “documentos”, porém a área do Borba foi a
primeira a ser expropriada tendo em vista suas terras férteis. Além disso, a construção da
BR 101 fez com que famílias que viviam às margens da Lagoa do Ramalhete se
deslocassem em direção à rodovia que passava a ser um dos principais meios de
transporte da região. Dessa forma, mesmo que o avô de Ildo tenha “a ‘escriturazinha’”,
no entender das pessoas da localidade, ele já era herdeiro daquelas terras por parte de
Floriana. Observe o esquema genealógico de Floriana e Marcelina:
245
Na transmissão do patrimônio da primeira geração para F1, ocorreram certos
fatos ao qual devemos nos referir. Ao que parece os descendentes de Braz permaneceram
no Ribeirão enquanto Vicenza e André se casaram, ambos viveram no Borba,
comunicando parte do patrimônio de Floriana e de Marcelina. Cipriana permaneceu no
Borba, em terras de Marcelina enquanto não se soube notícias de Anacleto. Ao que tudo
indica, ele não chegou a ser considerado um herdeiro das terras do Borba. A hipótese
mais provável é a de que ele tenha migrado.
Eufrásia vendeu seus direitos hereditários sobre a terra sem ter definido a medida,
afinal como ela mesma explicou não sabia o valor que tinha. Rosa migrou para Porto
Alegre como doméstica e não é mais considerada uma herdeira, embora tenha retornado
e viva em terras do Ribeirão próxima das de André, filho de Lúcia Vicenza e de Pedro
246
Cipriano. Antônia vive ainda e está casada tendo ido morar próximo da curva que separa
o Ribeirão de Morro Alto, ao que tudo indica, em terras do marido.
Braz casou-se com Maria Cipriana a qual não sabemos ao certo se é parente de
Cipriana, filha de Marcelina, porém frente a tendência para a repetição do nome do meio
como forma de vincular a parentela podemos crer que existia alguma relação entre elas.
Marcelina, filha de Braz, casou-se com um homem de outra parentela indo viver nas
terras do marido. Affonsina por sua vez permaneceu nas terras de seu pai sendo a
primeira geração do ramo dos Braz, oriundo do tronco de Floriana ou “da raiz dos
antigos”. Rosa Cipriana, única filha cujos descendentes permaneceram nas terras do
Borba, foi a única a manter a ocupação da área, ao passo que Castorina casou-se com um
homem da parentela dos Hortêncios, da Barranceira, indo viver em terras dele.
247
248
Conforme a representação dos terrenos de Floriana e Marcelina, podemos
perceber que na transmissão de F1 para F2, metade das terras permaneceram íntegras, ao
passo que outros 50% foram parcelados entre os irmãos, filhos de André e Vicenza.
Porém, o parcelamento se refere à ocupação pois os descendentes de Castorina ainda
entendem possuir uma parte da herança de sua mãe. Outro fator importante é a
imprecisão na maioria das divisões das propriedades, muitas não possuem cercas sabendo
que o terreno pertencia a um ancestral fundador compartilham a idéia de que o pertença,
independente de ter noção da localização exata de sua herança. Ser herdeiro, mais do que
ter de fato um chão, é compartilhar um sentimento de pertença a um território de origem,
ter consciência de uma terra de onde se parte rumo ao mundo.
249
Rosa Cipriana casou com Reginaldo Desidério cuja família é da Prainha e vive
muito na região também. Anadir Desidério será a pessoa que dará continuidade a
manutenção da herança da terra ocupando, produzindo e mantendo os documentos
antigos que comprovam a propriedade de seus pais e tios. Ele irá se casar com Edite da
parentela de Bibiano, neto de Floriana e de Marcelina. Ambos vivem ainda hoje nas
margens da lagoa do Ramalhete, no Esteiral do Borba, permanecem assim ocupando as
terras de seus ancestrais.
250
Ildo é o representante da parentela no trato dos negócios que envolvem
documentos. Ele herdou os documentos de propriedade de seu pai e de seu tio, João.
Aposentado como auxiliar de laboratório, trabalhou para empreiteiras que construíram a
BR 101. Casou-se com Marina, porém, antes namorou Tereza que veio a se casar com
Osvaldo, irmão caçula de Dona Lídia. Já a família da Marina, a qual teve dez irmãos,
preservando a indivisibilidade do terreno de Braz com a morte de Affonsina e a
subseqüente abertura do inventário “cederam os direitos hereditários” sobre a terra a uma
irmã: Adelurde. Ela e Ildo casaram e vivem em terras que Ildo comprou anexando ao
terreno onde vivia Firmino, pai de Ildo, onde morou Floriana, no Ribeirão.
251
Essa estratégia de eleger uma herdeiro preferencial contribuiu para a manutenção
de parte das terras de Floriana e Marcelina com seu grupo de parentesco. Dentro do
universo interno da comunidade existem códigos capazes que transmitir informações que
identifiquem as parcelas de terra pertencente a cada um dos antepassados fundadores dos
“terrenos” e “terras”. Através do encontro de suportes espaciais da memória, da antiga
252
tradição de enterrar o “umbigo dos bebês do sexo masculino, costume esse que as
pessoas dizem ser “coisa dos escravos”, e também na preservação do “chão” e das
árvores plantadas pelos antepassados, foi possível reconstruir a cadeia de sucessão a
partir da memória de Seu Ildo Vicente Fortes.
c.4) O “chão da casa de meus pais” e as árvores da memória
O simbolismo que enche de significados a questão do “chão” da casa dos pais é
algo muito forte em praticamente todas as localidades que formam Morro Alto. Não se
constrói e não se planta sobre o chão onde outrora moraram os pais e avós falecidos. Esse
ponto de referência bastante comum da memória parece estar oferecendo elementos que
demonstram uma forma de coesão interna e a necessidade da continuidade territorial.
As explicações da comunidade sobre esse costume são de que “isso é uma coisa
que os antigos nos ensinaram, já era coisa dos escravos”, “naquela época ninguém nos
dizia o porquê das coisas”, comentários de Ângela. “Não presta! Tem que construir do
lado”, me disse categórico seu Manuel Chico. É uma fronteira entre o indizível e o
dizível, do confessável e do inconfessável que demonstra o quanto a memória deste
grupo se encontra implícita em gestos e falas que remetem de forma muito discreta a um
crer que não é necessariamente tido como de consonância com o hegemônico.
Talvez o significado do fato de não construir sobre a casa dos antepassados e de
pessoas mais velhas da comunidade tenha se perdido na memória e tenha morrido com os
antigos, os ex-escravos. Ou nós, pesquisadores, vistos como pessoas que não estão
incluídas no cotidiano destas pessoas, que não vivemos na comunidade, não tenhamos
tido acesso. Porém, o sentimento de respeito que as pessoas dedicam a tais lugares
transmite o quanto eles são importantes como locais de memória. Essa casa fechada e
253
esse “chão”, que é terra, são uma espécie de presença ancestral que proporciona a
convivência diária do presente com o passado.
A terra possui assim valor de sangue no qual é inscrito um ciclo de vida. A
mesma terra é sacralizada e remete diretamente a memória ao ancestral que primeiro
ocupou aquele local expressando a permanência do grupo étnico naquela área. O “chão
da casa” compõe a memória na paisagem de moradia de grande parte das famílias de
Morro Alto.
Outra forma de manter a memória dos antepassados e fundadores viva é através
das árvores. Taquareiras, abacateiros, figueiras, timbaúvas possuem tanto significados
práticos como simbólicos. As árvores servem para aparar o vento e fornecer madeira para
a casa e criadouros como as taquareiras. Já a timbaúva escapa desta esfera do prático, é a
árvore do pai de Beatriz, Seu José Idalina, e perguntada sobre para que serviria aquela
árvore Beatriz me respondeu: “essa timbaúva aí, é só prá bonito, só prá enfeite porque
não dá nada dela, as vez ela cai os pedaço”.
Estas árvores pertencem temporariamente às pessoas que as plantaram.
Justamente são de alguém, no sentido de pertencerem a essa pessoa, enquanto ela estiver
viva ou tiver sua casa próxima da árvore plantada. Veja a declaração de uma moradora da
comunidade e compare com o croqui de sua residência a distância que está a nova casa
(fig. 06) em comparação com a árvore que plantou.
“Figueira tem essa aqui, é uma figueirinha, né. Essa aqui era minha
quando a minha casa era bem aqui, eu que plantei essa figueirinha aí.
Foi eu que plantei.”.
Ao aproximar do significado desta fala, podemos inferir que as práticas
individuais, dentre elas a de plantio, deixam de pertencer a uma pessoa e revertem em
254
benefício de um grupo familiar. Ou seja, o poder simbólico que mantém uma árvore do
tamanho de um abacateiro e de uma timbaúva como parte constituinte dos terrenos, por
mais de 50 anos, é algo muito forte. Elas são parte da atualização da memória dos
antepassados. É como estar sempre em contato com algo impregnado de simbolismo que
remete às pessoas que contribuíram na construção da historicidade de Morro Alto, já que
plantado “pelos antigos”. O “chãopor um lado não existe por si só, mas emana uma
energia que representa a presença criadora dos pais. A árvore, por seu turno, é uma
espécie de presença da força genitora capaz de fazer germinar.
É como se fossem duas fases de um ciclo que representa a filiação. Um pautado
pela terra em si e o outro pelo poder, capacidade de plantar e fazer o grão brotar. As duas
fases são representações simbólicas preservadas pelos negros da região como se fosse um
solo e uma árvore sagrada que nasceu das mãos de alguém que já não está presente entre
eles, mas que deixa uma parte de sua presença simbólica ali. As árvores e o chão
traduzem a permanência contínua dos antepassados. É como se todos ocupassem juntos o
mesmo solo, a mesma terra.
c.5) O umbigo enterrado e o voltar para “morrer na terra
Nas localidades que formam o todo maior englobante denominado Morro Alto
existe uma prática que é comum a quase todos os entrevistados: o de enterrar o umbigo
dos recém nascidos. O que atribui características étnicas ao ritual de enterrar o umbigo é
o significado da prática que se encontra ligado à manutenção da origem vinculada à terra.
O umbigo costuma ser enterrado na terra da porta de saída da casa dos pais.
Quando o umbigo é enterrado ao lado de fora da porta da casa, tanto a porta da frente
255
como a da cozinha, a intenção é a de que o filho permaneça na terra ocupada pelos pais
ou perto dela.
Os moradores da comunidade nos explicaram a origem do costume de enterrar o
umbigo como algo muito antigo, “do tempo dos antigos”. Uma moradora nos relatou que
este costume já era praticado no “tempo da escravidão”. Outra moradora chegou a nos
contar que existiam aproximadamente 22 umbigos enterrados em seu terreno “tudo
enterrado, onze filho e onze netos”. Outro entrevistado, ao comentar que seu umbigo
estava enterrado “aqui mesmo”, no pátio onde reside ainda hoje, afirmou que se
enterrava o umbigo para fazer “parador num lugar”. Afinal, como ele próprio concluiu:
“cravasse o umbigo ali, a gente ficava, andava ao redor por ali e não saía”.
O ato de enterrar o umbigo na porta das casas marca o pertencimento à terra de
filhos e netos. É uma espécie de transmissão da continuidade da família no local, onde os
ascendentes manifestam sua vontade de transmitir a ligação com a terra para seus filhos.
Como a franca maioria das pessoas que estão vivendo na região de Morro Alto não
possui títulos de propriedade da terra onde moram há gerações, o que os impossibilita de
utilizar as formas legais de transmissão da propriedade, a transmissão da posse se dá,
tradicionalmente, pelo enterro dos umbigos. Isso vem sendo feito há gerações o que
caracteriza a posse “mansa e pacífica" das terras ocupadas na área onde se deu a
pesquisa.
Esse tipo de transmissão é apenas relativamente eficaz pois, obviamente,
desprotegido pela lei. Assim, se por um lado a área onde se localizam as residências foi
preservada por aqueles que conseguiram resistir na terra, a área de roça e criação de
gado, campos comuns, foi paulatinamente tomada por membros da sociedade envolvente
a partir da apresentação de títulos como sentenças de usucapião, escrituras de compra e
256
venda, certidões do registro de imóveis e formais de partilha, em situações que foram
expostas nos itens 1.5 e 1.6 deste trabalho.
Outra prática reiterada e cujo significado remete à importância dada à terra é ato
de retornar para morrer nela. O fato de ter o umbigo enterrado em determinada localidade
faz com que os moradores de Morro Alto que eventualmente morem em Porto Alegre,
Capão ou Osório, voltem quando já estão velhos. Além da perspectiva econômica, pois
geralmente eles retornam com uma aposentadoria conquistada com o trabalho em hotéis
ou como maquinistas, no caso dos homens, e, assim, garantem o sustento de várias
pessoas de suas parentelas, existe o aspecto simbólico.
“Cíntia – Mas nós estávamos falando dos seus irmãos D. Ângela .
Onde viveu a Olga ?
Ângela – Lá no Canto, lá ela faleceu com dez meses de vida.
Cíntia – E a Lúcia ?
Ângela – Durou 50 anos.
Cíntia – Onde ela viveu?
Ângela – Em Porto Alegre.
Cíntia – Nasceu aqui ?
Rosa – Moravam lá, nasceram aqui, foram prá Porto Alegre, daí veio,
morreram aqui também. É eles nasceram aqui né, aí quando ficaram
moço casaram e forma trabalha, e casaram e ficaram em Porto Alegre,
depois vieram prá cá de novo.”
Nem sempre esse ir e vir, a análise desse trânsito é verbalizada da maneira como
Rosa expôs. Ela surge com o contar da história de um personagem que luta e busca
emprego fora da comunidade e volta para ser enterrado ali. Foi esse o recurso narrativo
utilizado por D. Maria, filha de Felipe, que nasceu em Aguapés mas foi “criado” por um
fazendeiro branco que o deixou sem um tostão aos 60 anos de idade. Através da epopéia
de Felipe que percorre o litoral, saindo de Aguapés, Palmares, passando por Tramandaí e
pedindo para ser enterrado em Aguapésao pé da cruz de ferro do cemitério”, é possível
257
ilustrar um dos casos nos quais a pessoa pediu para retornar à Comunidade de Morro
Alto, no momento de morrer.
5.2 Considerações Finais
Apontar marcos de territorialidade em uma comunidade de remanescentes de
quilombos decorre de uma necessidade legal: para que o território étnico reivindicado
seja titulado ele deve ser identificado. Embora a demanda por titulação parta da própria
comunidade ela não está apta a reivindicar uma dada área simplesmente se reportando ao
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Para que se especifique
o perímetro do território das comunidades existe um procedimento regulamentado
através da Instrução Normativa 20, de 19 de setembro de 2005. São vários os
profissionais que podem estar envolvidos nos estudos demandados pela IN/20 para
elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID: antropólogos,
historiadores, economistas e sociólogos, geógrafos, cartógrafos.
O artigo 68 do ADCT e o Decerto 4.887/2003 que o regulamenta não pressupõem
a participação de técnicos para o detalhamento das áreas, tão pouco a IN/16 antecessora
da IN/20. Uma das vantagens da participação de pessoal especializado na escrita do
RTID é que eles possibilitariam que as reivindicações das comunidades fossem expressas
através de um viés científico. Não se trata de mera tradução mas da normalização do
discurso das comunidades dentro de uma lógica outra que fornece substrato ao próprio
INCRA para embasar suas ações de demarcação e contra-argumentar ações judiciais.
Com o estudo aprofundado da historicidade das áreas e da teia de significados que às
compõem, emergem as estratégias de usurpação do território negro que são expostas
ensejando oportunidades para que áreas perdidas sejam re-apropriadas pela comunidade.
258
6. Considerações Finais
6.1 Morro Alto: a comunidade remanescente de quilombos que deixou de ser: a)
Morro Alto e sua origem em uma legislação de caráter “soviético”; 6.2 “Iguais até prova
em contrário”: notas sobre a abordagem jurídica da segregação racial no Brasil.
O que quis demonstrar ao longo das discussões essa tese foi que os critérios de
territorialidade e a definição de áreas quilombolas são construídas dentro de um dado
processo histórico, na confluência de fluxos de força que se estabelecem através de
negociações implementadas por parte das próprias comunidades, dos movimentos
sociais, das políticas públicas que regulamentam o assunto e da própria comunidade
branca envolvente. Não apenas a identidade étnica é situacional (Barth 1969) e a
comunidade concebida dentro de um dado “momento” (Weber 1922), mas a forma como
se configuram as forças em dado momento histórico acabam por selecionar valores que
irão pautar a construção do território étnico: a disputa do campo gira em torno da
atribuição de um significado possível para a identidade de “remanescente de quilombos”.
O texto dessa tese pretendeu apontar, também, a partir dos dados de campo o teor
das discussões acarretadas pela tensão existente entre o regime de status das
comunidades morais que compartilham valores em comum – sob o qual se assentam os
costumes e tradições - e que se reivindicam como remanescentes das comunidades de
quilombos e o regime de contrato, que norteia o sistema jurídico do Estado-Nação
(Segato 2004).
259
“As lutas simbólicas nada mais fazem do que reconhecer o poder
classificador do Direito, entronizado pelo Estado como a palavra
autorizada da nação, capaz por isso de, não apenas de regular, mas
também de criar, de dar status de realidade às entidades cujos
direitos às entidades cujos direitos garantam, instituindo sua
existência a partir do mero ato de normatização” (Segato 2004:06).
Por isso, apenas o pleito de reconhecimento das comunidades negras como
comunidades remanescentes de quilombos deve ser analisado através do prisma
processualista (Chagas, 229:2005), como todo o contexto em que o pleito se desenrola
deve ser compreendido como um processo. Quando pessoas da comunidade de Morro
Alto se envolveram com o Movimento dos Agricultores sem Terra - MASTER, fizeram
por sentirem-se alijadas no seu direito de propriedade e porque esse era, no início dos
anos 60, o movimento social possível para comportar as lutas agrárias. Porém,
justamente, esse foi o período em que o testamento de Rosa Osório Marques emergiu das
sombras do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul permitindo que parte da
comunidade negra de Morro Alto exercesse seu direito de permanecer e manter sua terra
ancestral. A outra parte dos negros da comunidade, principalmente aqueles que
permaneceram no Ribeirão e no Faxinal do Morro Alto, que não possuíam um
documento que lhes legasse juridicamente, com chancela da sociedade branca, suas terras
foram paulatinamente expropriados ou se viram obrigados a recomprar aquilo que já
possuíam.
No final dos anos 80 com a redemocratização do país, a reivindicação do direito
de propriedade através do reconhecimento identitário como “remanescente de
quilombos” conferiu aos negros brasileiros uma possibilidade de assegurar o domínio de
suas terras. Além de enfrentar uma relação política turbulenta que não consegue conciliar
a diferença, afrobrasileira, como garantidora de um direito universal, direito à
propriedade, espelhada no jogo de desencontros entre o INCRA e a FCP, a coletividade
260
negra passa por uma série de estudos que lhes confere cada vez mais papéis de
reconhecimento: primeiro, uma certidão emitida pela FCP reconhece a identidade
quilombola; depois, uma portaria emitida pelo INCRA reconhece o limite de seus
territórios; e, por fim, esse mesmo Estado, confere a eles o título de propriedade.
Poderíamos dizer que não existe apenas um pleito de reconhecimento identitário por
parte dos remanescentes de quilombos como há, por parte do governo federal, uma super
valorização desse reconhecimento que acaba sendo conferido em várias etapas. Trata-se
dos afrodescendentes selecionados dentre a totalidade dos afrobrasileiros como
merecedores de reparação de uma dívida histórica.
As comunidades negras rurais, ressemantizadas em “remanescentes de
quilombos” em um movimento teórico muito bem documentado por Arruti (2002),
acabam por ditar parâmetros possíveis como critério de existência. Acredito, como expus
no capítulo 3, que não há uma surpresa muito grande ao percebermos que tais parâmetros
podem ser aqueles através do qual a coletividade logrou consolidar um campo de diálogo
mais seguro com a sociedade branca como, no caso de Morro Alto, através do idioma
jurídico do testamento (e da lógica de sucessão). Essa lógica de construção de um
significado para a identidade remanescente de quilombo acaba por encontrar eco no
campo jurídico, justamente o lócus de discussão onde pode ser concretizada a conquista
da identidade reivindicada – e solapada (como exponho ao final desse capítulo). Quero
dizer com isso que não apenas o reconhecimento identitário se torna dependente da
competência com a qual as comunidades passam a atribuir um significado, um estofo
cultural (Jenkins 1997) à identidade de remanescente de quilombos, mas também a
competência com a qual o governo federal e outros entes legitimados pelo Estado, como
o Ministério Público Federal, tratam a questão.
261
Conquistar um lugar dentro do Estado Nação brasileiro torna-se uma proeza não
apenas para o estudioso que pesquisa com tais comunidades, mas para as próprias
comunidades cujos significados locais nem sempre encontram tradução no campo social
com o qual têm que estabelecer interlocução. Por isso, no capítulo 4 trouxe ao texto um
debate sobre como as pessoas que se reivindicam enquanto remanescente de quilombos
estão submetidas a tensão paradoxal existente entre as relações de parentesco construídas
a partir de relações consangüíneas e de afinidade. Quis, assim demonstrar como a
comunidade moral de Morro Alto aciona mecanismos que atenuem e relativizam a tensão
universal entre parentes consangüíneos e afins. Tais prática, no entanto, embora sejam
parte do processo social de construção das relações de parentesco, muitas vezes, não são
valorizadas pelo campo jurídico. A “construção de um sujeito de direito”, que muitas
vezes encontra reflexo na lógica da descendência biológica do direito de sucessão pode
ser relativizada a partir da investigação de outros valores que ditam regras para a
constituição do parentesco por afinidade.
Enquanto, no capítulo 5 da tese busquei consolidar conceitos analíticos como
território, territorialidade e processo de territorialização para, a partir deles, discutir a
construção de seu conteúdo com as vantagens da abordagem etnográfica. Nessa
discussão quis demonstrar que existem fronteiras que podemos e devemos, como
antropólogos, ultrapassar para consolidar conteúdos e significados possíveis como forma
de expressar um certo pluralismo no jurídico:
“O que isso implica – algo suficientemente revolucionário para a
maioria dos acadêmicos – é uma expansão das formas de discurso
estabelecidas, no caso em questão, dos discursos de antropologia e
direito comparativo, para que possam comentar de uma maneira válida
assuntos que lhes são normalmente estranhos, no caso em questão a
heterogeneidade cultural e a dissensão normativa” (Geertz 1997:341).
262
A constituição de tal pluralismo não deve, como afirma Geertz, ficar restrita ou
aos “discursos sistematizados dos tribunais superiores ou etnografia tribal”, ou seja, não
se fixar ao excessivo rigor da disciplina de um discurso hegemônico nem ao exotismo da
diferença a ser evidenciada sob pena de que não tenhamos “realmente” um “objeto
antropológico”. Mas está, justamente, na possibilidade de um fazer antropológico que ao
compreender a reinvenção do cotidiano pelas comunidades quilombolas não apenas o
traduz em moldes acadêmicos como trata com dignidade aqueles que, ao invés de se
expressarem dentro dos parâmetros do Estado nacional, fazem-no construindo um espaço
para si dentro da Nação buscando ser, em sua identidade étnica reconhecida,
simplesmente brasileiros.
Ao escrever essas considerações finais, as discussões em torno das dimensões e
dos critérios de territorialidade tomados por base para a escrita do relatório do processo
de identificação da comunidade de Morro Alto continuam. A comunidade colocou-se,
novamente, na fila de espera do INCRA na busca de dois laudos que complementassem a
área de seu território étnico. Um antropólogo, membro da Associação Brasileira de
Antropologia, acusa, sistematicamente, a equipe de Morro Alto de “recortar” o território
que seria, por direito, da comunidade.
6.1 Morro Alto: a comunidade remanescente de quilombos que deixou de ser.
Vou analisar, agora, peças da ação que desconstituiu o caráter de “remanescente
de quilombos” da comunidade negra de Morro Alto no contexto jurídico e como a
interpretação do direito de propriedade, em moldes universalistas, foi decisivo para levar
a essa atitude.
263
a) Morro Alto e sua origem em uma legislação de caráter “soviético”.
No mês de outubro de 2004 um advogado, Nestor Fernando Heins, entrou com
aproximadamente cinco ações de mandado de segurança contra o presidente da Fundação
Cultural Palmares por diferentes motivos. Um deles foi ter assinado a Portaria 19/2004.
Essa Portaria serve para “REGISTRAR no Livro de Cadastro Geral n º 001 e
CERTIFICAR que conforme o Declaração de Auto-reconhecimento e os processos em
tramitação nesta Fundação Cultural Palmares, as Comunidades, a seguir, SÃO
REMANESCENTES DOS QUILMBOS: I. COMUNIDADE DE MORRO ALTO,
localizada no município de Maquiné, Estado do Rio Grande do Sul, registro n º 001, f.
03; (...)”. (Müller et all 2005:93). Esse registro gerou uma “Certidão de Auto-
Reconhecimento”, expedida pela FCP e entregue solenemente à Comunidade de Morro
Alto em março de 2004. Essa ação foi movida por um grupo de onze pessoas e uma
sucessão: Adão Manoel Rodrigues; Adelir Alcides Rostirolla; Angelita Raubach Vieira;
Augusta Fernandes Negruni; Elizabeth Sulzdach Kath; José Teixeira de Souza; Ermindo
Henrique Gayer; Lairton Gayer; Lauro Ervino Gayer; Lucinda Gayer; Pedro Cardoso de
Lemos;e, a Sucessão de Walter Marques de Medeiros.
O tipo de ação escolhida foi o Mandado de Segurança - MS, uma ação que visa
parar ato praticado por autoridade coatora, no caso, o presidente da FCP, que ao assinar a
Portaria 19/2004 teria praticado, conforme a petição inicial, uma “lesão ao direito líquido
e certo à propriedade e ao contraditório, ínsito ao devido processo legal de que são
titulares os impetrantes em face da decisão administrativa contida na Portaria”, (fl. 45 do
Agravo de Instrumento, 2004.04.01.057365-8). Em suma, embora a portaria seja parte
integrante de um procedimento previsto no Dec. 4887/2003 que prevê um momento
específico para a contestação – ou seja, para o contraditório – o advogado a atacou.
264
Várias foram as alegações de que em Morro Alto não há um quilombo. Os
impetrantes do MS alegaram que possuem áreas urbanas e rurais situadas na localidade
de Morro Alto, que exercem nelas suas atividades profissionais relacionadas ao cultivo
da terra e que estão “ligadas” às terras através de sucessivas gerações. Das pessoas que
vivem em Maquiné/RS a maioria é de agricultores das localidades de Aguapés, Faxinal
do Morro Alto e do Ribeirão do Morro Alto, sendo um deles pecuarista. Tais pessoas
alegam que nunca tiveram conhecimento de que “tenha havido a instalação de quilombos
ou qualquer tipo de grupos étnicos afro-descendentes ou remanescentes do período
escravocrata” sobre as suas propriedades no momento da promulgação da Constituição
Federal de 1988 ou a qualquer tempo. Um dos primeiros movimentos argumentativos do
campo jurídico foi descaracterizar o fator tempo no que diz respeito a continuidade da
“ocupação” no sentido de desconstruir a legitimidade da comunidade em reaver suas
terras perdidas. O tempo legitima a aquisição da propriedade desde que não haja qualquer
tipo de problema em deter consigo o bem.
Os agricultores continuam alegando que há em Maquiné uma “agitação no
sentido de criar a condição de uma eventual existência de quilombo na região”. A
organização e a mobilização política em torno da reivindicação da identidade político-
jurídica dos remanescentes de quilombos são travestidos pelo argumento da “agitação”,
algo que remete ao sentido de desordenado e desprovido de sentido. Trata-se, segundo o
advogado, de um verdadeiro “conflito étnico” que foi instaurado pelos “órgãos públicos”
“onde todos viviam em harmonia, sem qualquer incidente ou litígio decorrente desta ou
daquela ascendência racial”. A partir da publicação da Portaria, teria sido instalada a
“incerteza, a desconfiança, a hostilidade e a intranqüilidade para todos os moradores de
Maquiné”. A reivindicação da certificação do auto-reconhecimento e a possível aquisição
265
de propriedade levou ao conflito, de acordo com o advogado, atrapalhando as bases da
“democracia racial” que, sob o ponto de vista da universalidade formal, existe na
sociedade.
Medeiros (2004) chama atenção para o alto preço que os movimentos pela
criminalização do preconceito e da discriminação racial pagam pela crença na existência
de uma “democracia racial” por parte do judiciário. Juízes, muitas vezes tendem a
(pré)julgar os casos de racismo ou de discriminação como “pouco freqüentes e
desimportantes” (Medeiros 2004:121) uma vez que advêm de uma “cultura” da
democracia racial. Outro ponto a destacar é a retórica da inversão das assertivas sobre a
definição do sujeito discriminado:
“Por tudo isso a chamada Lei Caó é considerada por alguma, da mesma
forma que a lei Afonso Arinos, um entrave à efetiva emancipação dos
afro-brasileiros, uma vez que se presta igualmente a que um
discriminado seja ele próprio taxado de racista, como Jorge Silva
constatou ao examinar alguns casos de discriminação racial
denunciados à Justiça do Rio de Janeiro” (Medeiros 2004:121)
A crença na “democracia racial” implica em que ao invocar a diferença étnica
diante do judiciário, a acusação de quem é alvo de discriminação se inverte. É por essa
lógica manipulatória que ao reivindicar o direito de propriedade pelo auto-
reconhecimento como remanescente das comunidades de quilombos aqueles que o fazem
passam a ser tachados como os “agitadores” que instauram o “conflito racial” na região
em que vivem. A acusação formal, ou a reivindicação explícita de direitos, quebra a
etiqueta da cordialidade étnica que mantém os negros em um dado lócus social.
Convivendo juntos mas permanecendo como pessoas que tem possibilidades diferentes
de acesso aos meios jurídicos a ordem da hierarquia social está preservada.
No caso dos remanescentes das comunidades de quilombos, o risco de
questionamento da legitimidade do exercício do direito de propriedade dos não negros
266
põe em cheque a igualdade formal e a democracia racial. Afinal as pessoas que entraram
com a ação tiveram suas terras “incluídas, de forma indistinta e indeterminada, como
áreas sucessíveis de perda da propriedade, por suposta existência de quilombos”. A
declaração da existência do quilombo de Morro Alto teria “afetado o valor dos imóveis”
e impede que os proprietários “vendam” os mesmos “pois não há negócios que se
aventurem a adquirir propriedades assim gravadas”. A Portaria 19/2004, conforme
alegam, põe em risco o art. 5 º XXII da Constituição Federal atacando o direito de
propriedade que corre o risco de ser, conforme alegam, destituída sem o devido processo
legal.
A petição alega que o Dec. 4.887/2003 “parece ter sido gestado no malsinado
direito soviético ou nos piores momentos de ditaduras em nosso próprio País”. Define o
decreto como “ilegal”, “monstrengo”, acusa o mesmo de criar a figura do
“reconhecimento, por auto-atribuição”. Afirma que o decreto “se pretende normativo”
mas que foi criado “ao delírio de mentes transtornadas pela vocação autoritária e com tal
desconhecimento e desprezo ao ordenamento jurídico” que põe em risco “todos os
brasileiros adeptos ao regime democrático”. Para parar com esse tipo de violação os
agricultores não-negros de Morro Alto apresentam o Mandado de Segurança, chamado
de “remédio heróico” pelo advogado e pede, em suma, para que a “Administração”, ou
seja a Fundação Cultural Palmares, apresente quais são e quem compõe a comunidade de
Morro Alto com base não no critério de auto-reconhecimento mas da “trajetória histórica
própria dotada de relações territoriais específicas”.
O direito de propriedade que estaria sendo violado pelos efeitos da Portaria
19/2003 seria aquele de caráter mais amplo, assegurado pela Constituição. Conforme
expõe o advogado das partes, Pinto Ferreira, jurista que discute o sobre direito
267
constitucional, interpreta que o direito de propriedade assegurado pela Constituição tem
caráter mais amplo do que aquele da esfera do direito civil que garante usar, gozar e
dispor de um bem pois, no âmbito constitucional, o direito de propriedade tem “conteúdo
econômico-patrimonial”. Assim, o direito de propriedade de que trata a constituição
protegeria os direitos reais e também os direitos pessoais do cidadão, como aqueles
advindos do direito de dispor de crédito, por exemplo, com isso, o direito à propriedade
protegido pela constituição abrangeria o direito objetivo, da pessoa sobre a coisa, e o
subjetivo, da pessoa em relação às obrigações que recaem sobre a coisa. O jurista Celso
Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins completam explicando que direito de propriedade
constitucional só poderia, de acordo com esses teóricos, sofrer restrições impostas pela
própria constituição e não por mera “lei”.
Porém, ao mesmo tempo em que o direito de propriedade tem uma definição mais
“ampla” no âmbito constitucional o advogado infere que, quanto aos direitos étnicos
assegurados aos remanescentes de quilombo o “legislador restringiu qualquer
possibilidade de interpretação ampliativa”: a abrangência da interpretação do dispositivo
constitucional depende do sujeito que o invoca. De acordo com o raciocínio do
advogado, no que diz respeito aos quilombos, o direito de propriedade se restringiria a
parcela de terra que os mesmos “estejam ocupando”, “que detenham a posse de suas
terras”.
A elaboração das assertivas referentes aos quilombos implica em suprimir a
história, o tempo, da análise dos fatos que fornecerão lastro a apreciação jurídica do
direito de propriedade que as comunidades pleiteiam em prol daqueles que o contestam.
Trata-se de uma disputa pelo direito de proferir a palavra autorizada no sentido de quem
tem legitimidade para oferecer a “verdadeira” versão da história. Extirpa-se dessa forma
268
o contexto de como se deu essa “ocupação”, ou seja, justamente, a diacronia da
permanência das comunidades em seus territórios étnicos. Se por um lado, para os
quilombolas, há uma luta pela apropriação e reconstrução da memória da história negra
(Barcellos 2004; Chagas 2005), para aqueles que defendem um direito de propriedade de
caráter universalista a história é algo desvalorizado, pois já se pressupôs a existência de
uma “democracia racial” e de uma igualdade formal que assegura a todos “chances” para
reclamar seus direitos.
A eficácia plena do direito de propriedade é posta em risco pela história e pela
comprovação da existência do racismo no âmbito das relações “igualitárias” de caráter
jurídico, objeto de pesquisas antropológicas. Trazer o critério de grupo étnico para a
análise do direito de propriedade permite a relativização do mesmo e coloca em questão a
ilusão do igualitarismo formal no âmbito do direito. Por isso, o pedido de proteção da
propriedade dos agricultores afinal eles estariam sofrendo as conseqüências do decreto:
“lesão já há e a iminência de lesão mais grave se anuncia com irreparabilidade dos danos
sofridos ou que vierem ser suportados, pela perda da propriedade, sem o devido processo
expropriatório, sem indenização e com o desenraizamento profissional e existencial dos
impetrantes”. A relação desses agricultores e pecuaristas com os negros da localidade
não é explicada, tão pouco a forma como esses proprietários adquiriram a propriedade de
seus imóveis, a propriedade está dada.
A juíza substituta federal da 6
a
. Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Sul,
Ana Salete Algorta Latorre, não aceitou o pedido dos autores afirmando que não ficou
provado, junto com as alegações, o “perecimento do direito alegado”, o direito de
propriedade, podendo a questão ser decidida em sentença não em caráter liminar como
queriam o que anteciparia os efeitos do pedido de suspensão da Portaria. Os advogados
269
recorreram, em 17 de dezembro de 2004, e remeteram a mesma peça técnica, com os
mesmos argumentos para o Tribunal Federal da 4
a
Região. O desembargador federal
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz relata e a 3
a
turma decidiu por unanimidade que
“no que concerne ao fumus boni juris, é este evidente, pois o Decreto 4.887/2004, em
princípio, viola a garanti ado art. 5
o
., XXII, da CF”. A Portaria 19/2004 deixou de valer
para Morro Alto por força do “risco” que o Dec. 4.887/2004 pode por ventura impor a
manutenção do direito de propriedade de alguns moradores da região. Morro Alto é uma
comunidade composta por 400 famílias negras, mas a ação do Mandado de Segurança
protege o direito “líquido e certo” de 11 pessoas e de um conjunto de sete herdeiros, em
um total de 18 pessoas brancas.
6.2 “Iguais até prova em contrário”: notas sobre a abordagem jurídica da
segregação racial no Brasil.
Embora a criminalização da discriminação racial tenha ocorrido no Brasil, em
1951, antes dos Estados Unidos, tais países sempre tiveram uma abordagem distinta
acerca da questão racial a partir do Estado: o “problema racial” foi cada vez mais
visibilizado nos Estados Unidos e não no Brasil. Eccles (1991) chama atenção para o fato
de que a despeito das atitudes de vanguarda da legislação brasileira em relação aos
estadunidenses isso não proporcionou qualquer forma de ação eficaz no sentido de
promover a inclusão dos afro-brasileiros nas esferas de poder da sociedade brasileira.
Nos Estados Unidos, depois da década de 60, principalmente, abordar a questão racial
através da legislação era algo comum, ao contrário do Brasil. Entre nós paira não apenas
o espectro da “democracia racial” – que influencia descaradamente algumas esferas do
judiciário como expus acima – enquanto sistema ideológico mas, também, a visão
270
hierárquica que coloca o branco em um status social superior ao do negro (Damatta
1993).
Peter Eccles (1991:137) discorre sobre a “tese de que o sistema jurídico brasileiro
não conseguiu garantir o princípio da não-discriminação contra os negros, não obstante
ter sido historicamente neutro com respeito a raça, garantindo a todos igual proteção da
lei”. Para ele a “incorporação da democracia racial na estrutura jurídica, como
evidenciado pela Lei Afonso Arinos, não levou a uma revolução nas atitudes dos
brasileiros” (Eccles 1991:137). Acredito que, analisando o material que discorre sobre os
remanescentes de quilombos, podemos propor uma reformulação dessas teses no sentido
de que: 1) é justamente a neutralidade do sistema jurídico brasileiro quanto a questão
racial que tornou ineficaz as iniciativas de garantir a não-discriminação, 2) essa
neutralidade e a crença na ilusão da “garantia a todos de igual proteção legal” reforça a
manutenção das posições sociais implementadas na hierarquia de valores da sociedade
brasileira; e, 3) a incorporação do mito da “democracia racial” na estrutura jurídica foi, e
é, um dos pilares sobre os quais assenta ainda hoje o fundamento de atitudes jurídicas
segregacionistas.
Analisar a forma como o sistema judiciário, composto aqui por advogados,
promotores e juízes, aborda a questão dos direitos atinentes aos “remanescentes de
quilombos” é uma ocasião ímpar para se compreender a lógica dos valores através dos
quais está sendo configurada a visão jurídica sobre a questão racial. Ímpar no sentido de
que a maior parte da legislação não-discriminatória no país opera na esfera criminal a
questão dos territórios étnicos, ao contrário, é matéria que diz respeito ao direito civil.
Como afirma Eccles (1991:137) “’Culpados até prova em contrário’ o título deste artigo,
refere-se, num primeiro nível, diretamente ao tratamento específico, extralegal, que o
271
sistema dispensa aos negros, das ruas à delegacia de polícia e aos tribunais de justiça”.
No direito civil o equivalente seria “iguais até prova em contrário”. O socialmente
incluído nas relações sociais em posição de exclusão se manterá em seu “lugar” no jogo
de posições do processo judicial sem que existam mecanismos jurídicos de compensação.
No campo jurídico há a neutralização das diferenças sociais pois a naturalização da
premissa “juntos mas diferentes”, bastante discutida por Da Matta, não é questionada ou,
sequer, levada em consideração.
Se na argumentação do advogado é a reivindicação do direito de propriedade com
base em uma dívida histórica em relação aos afrobrasileiros que causa o “conflito
étnico”em Morro Alto, na sentença do julgamento isso sequer é citado pois é justamente
a possibilidade jurídica de reivindicação que evidencia a diferença, garantido pelo Dec.
4.887/2003 e atrapalha a “harmonia” em que convivem as raças, ao menos em
Maquiné/RS, e, por sua vez, coloca em risco o direito de propriedade. É a inversão dos
preceitos a partir do qual a diferença é inscrita no campo jurídico que coloca a questão
racial em evidência: iniciativas como a Lei Caó e a Lei Afonso Arinos invocavam a
premissa universal da não discriminação levando a iniciativas individuais. Nas
reivindicações que dizem respeito aos remanescentes de quilombos há uma inversão a
inscrição da diferença/desigualdade dentro de um direito universal (o direito de
propriedade) se dá pela via coletiva onde um grupo étnico é definido.
Disso decorre a ênfase da argumentação do advogado para que sejam apontados
quais os indivíduos possuem “trajetória histórica própria” para se caracterizarem
enquanto remanescentes de quilombos. Quem são esses diferentes dentre os desiguais
que merecem receber atenção especial por parte do Estado frente à reivindicação de um
direito universal (o de propriedade) é a grande questão (não apenas jurídica mas também
272
antropológica). E é o esforço em respondê-la que coloca em cheque a ideologia da
democracia que fundamenta parte da neutralidade jurídica frente às questões raciais. A
existência de um espaço legal para a expressão da diferença é que acaba por subverter a
igualdade formal em que está baseada a atuação do judiciário.
O interessante é que no campo do direito internacional conforme aponta Peter
Eccles a concreção de princípios universais é a regra. O standard funciona, à grosso
modo, assim, “os indivíduos têm o direito de não serem discriminados e de receberem
igual proteção das leis” (Eccles 1991:146). Outra via, menos usual no direito
internacional, é a da proteção de grupos minoritários que “baseia-se no reconhecimento e
proteção das minorias como grupos distintos, bem como dos direitos coletivos dos
membros individuais desses grupos” (Eccles 1991:146). O caso dos remanescentes de
quilombos no Brasil é o tipo de proteção que se assemelha a essa segunda modalidade de
desenvolvimento de recurso de proteção das minorias.
Voltemos ao caso de Morro Alto. A suspensão da Portaria 19/2004 foi solicitada
judicialmente através de um procedimento jurídico, um tipo de ação, denominado
Mandado de Segurança com caráter liminar e cláusula de “inaldita altera pars”. Ou seja,
para os autores o risco ao qual estava exposto seu direito de propriedade – com a
desvalorização das mesmas, por exemplo – era algo tão fremente que não poderiam
esperar uma sentença judicial, a desvalorização de suas propriedades deveriam cessar de
imediato – por isso o caráter liminar – deveria cessar de forma tão imediata que a parte
contrária não deveria ser ouvida, “inaldita altera pars”. Apenas em um segundo
momento o advogado pede para que a “autoridade coatora”, a presidência da Fundação
Cultural Palmares preste “informações”. Ou seja, a alegação dos não-negros de que não
lhes foi assegurado direito de defesa ao verem suas propriedades declaradas como
273
quilombo, pelo poder executivo, é utilizado para garantir que os negros não se defendam
na esfera do judiciário.
Podemos pensar então em outra pergunta: se os negros tiveram seu status de
quilombolas reconhecido pelo Estado sem a oitiva daqueles que são proprietários,
poderiam os proprietários requerer que o Estado deixe de reconhecer os negros enquanto
quilombolas sem ouvi-los? Talvez a indagação seja: por que dependeriam os negros de
Morro Alto da anuência de seus vizinhos para requerer o reconhecimento de sua
existência, enquanto minoria étnica, no âmbito do Estado Nação do qual talvez façam
parte, sem que essa mesma minoria seja ouvida para atestar a legitimidade do direito de
propriedade exercido por determinadas pessoas? O papel social de proprietários,
agricultores e pecuaristas, confere uma condição de status hierárquico as pessoas que se
sobrepõe à identidade política-jurídica de remanescente de quilombos. E isso vai ao
encontro de outra forma como se manifesta o racismo no Brasil: o da segregação
habitacional e a manutenção do direito de propriedade.
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