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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Brasil à Moda da Casa:
Imagens da Nação na Moda Brasileira Contemporânea.
Débora Krischke Leitão
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Doutor em Antropologia.
Orientador: Profª Drª Maria Eunice Maciel
Porto Alegre
2007
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Resumo
Brasil à Moda da Casa: Imagens da Nação na Moda Brasileira Contemporânea
Percebendo o mundo da moda como lugar de produção e veiculação de sentidos, procura-se
desenvolver uma reflexão a respeito das representações de Brasil e “brasilidades”, e da
atualização e conformação de identidades brasileiras na moda nacional. A partir de pesquisa de
campo realizada no Brasil e na França, visamos compreender as imagens da Nação que são
elaboradas na tentativa de nacionalizar a moda brasileira. Alguns dos elementos analisados
dizem respeito às idéias de um corpo brasileiro erotizado e exotizado, do Brasil como natureza
exuberante e paraíso nos trópicos, e dos usos da “cultura popular” brasileira pela alta moda e
consumo de luxo. Por fim, discute-se a construção do Brasil enquanto outro exótico e o recurso
à nacionalização das temáticas, por parte da moda brasileira, como meio para globalizá-la.
Palavras chave: Moda, Identidade, Nação, Exotismo.
Abstract
Fashioning Brazil: Portraits of the Nation in Contemporary Brazilian Fashion
Conceiving fashion world as a field of production and trade of meanings, our intention is to
think about the representations of Brazil and “brazilianess”, and of the actualization and the
formation of brazilian identities in the country’s contemporary fashion. Starting from a
multisited anthropological research in France and Brazil, we aim the understanding of some
ideas of Brazil created in the process of nationalization of brazilian fashion. Some analysed
elements refers to the idea of an erotic and exotic brazilian body, of Brazil as an exuberant
nature and a paradise in the tropics, and the use by high fashion and luxury consumption of a
brazilian “popular culture”. At last, we discuss the construction of Brazil as an “exotic other”
and the strategy of nationalization of subjects by the brazilian fashion as a way of globalization.
Key-words: Fashion, Identity, Nation, Exotic
Résumé
Brésil à la Mode: Images de la Nation dans la Mode Brésilienne Contemporaine.
Considérant le monde de la mode en tant que champ de production et reproduction de
significations, cette recherche propose une réflexion à propos des représentations du Brésil et
des “brésilienités, ainsi que de l’actualisation et conformation des identités brésiliennes dans la
mode nationale. Ayant comme départ une recherche de terrain au Brésil et en France, nous
envisageons de comprendre les images de la nation qui sont créées dans le processus de
nationalisation de la mode brésilienne. Parmi les questions analysées, il y a celle d’un corps
brésilien exotique et érotique, bien que la perception du pays comme nature exubérante et
paradis sous le tropique, et l’utilisation d’une “culture populaire” brésilienne par la mode et la
consommation du luxe. Finalement, nous examinons la construction du Brésil en tant qu’un
autre exotique, et la nationalisation des thématiques dans la mode brésilienne comme stratégie
pour la globaliser.
Mots-clés: Mode, Identité, Nation, Exotisme.
Agradecimentos
Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de estudos que possibilitou cursar o
doutorado em Antropologia, realizar essa pesquisa e fazer o doutorado sanduíche na França. À
CAPES agradeço igualmente pela disponibilização gratuita do portal de periódicos,
imprescindível para o acesso a bibliografia atual nessa área de estudo.
Agradecimento especial vai para minha orientadora, Maria Eunice Maciel, pelo apoio,
orientações e pelo carinho ao longo desses seis anos de trabalho conjunto.
A todos os professores do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul sou muito grata: todos contribuíram enormemente,
ao longo dos últimos dez anos, com seu conhecimento e sua generosidade, para minha
formação. Em especial, agradeço ao professor Carlos Steil, meu primeiro professor de
antropologia, à professora Daisy Barcellos, minha primeira orientadora de iniciação científica, à
professora Claudia Fonseca, pelo apoio na época difícil das negociações do doutorado
sanduíche, e ao professor Ruben Oliven, presença constante nesses quatro anos de doutorado, e
responsável por me indicar as direções para os estudos sobre consumo. Ainda no PPGAS, Rose
e Alexandre: obrigada por serem tão gentis e eficientes! Obrigada a todos os amigos e
professores que contribuíram para minha formação pessoal e profissional nesses exatos e
ininterruptos dez anos de UFRGS. Não há como dizer que não sentirei saudades imensas de
todos vocês que fizeram parte dos mais importantes anos da minha vida.
Agradeço à Mme. Dominique Veillon pelas orientações, portas abertas e incentivo. Mas
a ela devo sobretudo a oportunidade de participar de seu grupo de pesquisa no Institut d’Histoire
du Temps Présent, onde conheci bons amigos, aos quais também agradeço de coração: Pascale
Berlonquin, perita em cusine Picard e em estilistas africanos; Gérald, que me colocou em
contado com o povo da moda parisiense; Éleonore, a “Rose” do CNRS; Kaya, Véronique,
Jéronime, Florence e Mme. Michele Ruffat. Dentre os amigos do “groupe mode” agradeço
principalmente a Élodie Nowinski, colega e amiga, pelas seríssimas discussões sobre exotismo,
pelas tantas revisões de meus escritos, pelo data show sempre disponível, e por ter me
apresentado Zia. À Zia, petite liloise préférée cujas caretas iluminaram meus dias cinza,
agradeço pela hospitalidade abrasileilada.
Permanecendo do lado de lá do oceano, agradeço a Françoise Vincent-Ricard, que me
recebeu de portas abertas em sua casa e dedicou muitas tardes a “minha formação”, como ela
tanto gostava de dizer. Obrigada, Françoise, pelo ouvido atento, pelas belas cartas escritas à
mão, raras hoje em dia, e pelos ensinamentos que, vindos de quem vem, não poderiam ser
menos sábios. Agradeço também às bibliotecárias do Musée Galliera, com quem convivi
semanalmente durante dez meses, e cuja competência e conhecimento possibilitaram a pesquisa
nos periódicos franceses.
Sem meus amigos eu nada seria. Um obrigado carinhoso vai para o Bill, nosso
camarada! Cada um dos colegas-amigos da turma de doutorado da UFRGS merece um muito
obrigada, em especial Soraya, conselheira telefônica para assuntos acadêmicos e felinos. Sem
poder citar todos os amigos do PPGAS, agradeço aqui a Déa & Bog, Paula, Lu Dios e Ceres
Brum.
Diana, quem conheci por uma dessas belas coincidências da vida, merece um
agradecimento pela amizade, pela compreensão e pela hospitalidade providencial quando da
pesquisa de campo no Rio.
Rosana foi minha interlocutora cara-a-cara, por telefone, skype, email ou msn, e minha
companheira de aventuras antropológicas intercontinentais. Obrigada por tudo, e também por
saber tudo sobre pedras! Mais do que por dividir angústias, te agradeço por dividir sonhos.
Minha amiga Vis, companheira de madrugadas em qualquer fuso-horário, vai ouvir o
que quer: obilé munfiga dotalá éparo datoli genfora tevulé, darling!
Os agradecimentos para o Camilo, antropólogo (mestre e doutor!) por tabela, são
intermináveis: obrigada por suportar minha ausência, minha rabugice, minha bagunça, meus
eternos “sim, mas depois da tese, tá?”, e também por ser perito no scanner! Ao meu pai, pra não
recorrer à repetida historieta das lagartixas, dessa vez vou agradecer pelos bons vinhos e pelas
boas conversas sobre “nosso amigo” Said. Á minha mãe, obrigada pela amizade,
companheirismo, apoio financeiro, e por acreditar em mim em todas as horas. Agradeço
também à família do Camilo pelo apoio e compreensão.
Por fim, agradeço a todas as pessoas que dedicaram algumas horas de suas vidas para
me contar um pouco mais sobre moda e sobre Brasil, aqui e na França. Deixo registrado um
agradecimento especial a Mareu Nietzcke: saiba que tua generosidade fica marcada em mim
mais de um ano depois de passadas aquelas lágrimas ao fim do desfile
Nesses quatro anos de tese todos que passaram pelo meu caminho merecem algumas
palavras de agradecimento. Os que não estiveram aqui nomeados saibam que também a vocês
sou muito grata.
Índice
Primeiros Pespontos..........................................................................................................7
Capítulo I: Entrando em campo no campo da moda.......................................................17
1.1- Com que roupa eu vou pro campo que você me convidou?.....................................20
1.2- Ser VIP e ser groupie: pelas veredas da moda espetáculo.......................................24
1.3- Une carte de visite s’il vous plaît: pelas veredas da moda business........................45
1.4- Année du Brésil Oblige: produtos brasileiros em Paris...........................................52
1.5- Pra francês ver?........................................................................................................55
1.6- Quando o campo (também) é o arquivo...................................................................57
Capítulo II: A constituição do campo da moda no Brasil................................................60
2.1- Rua do Ouvidor: pequena Paris abaixo do Equador................................................61
2.2- Na paulicéia, mais influências francesas..................................................................71
2.3- Industrialização, “progresso” e nacionalismos.........................................................79
2.4- Feiras e shows: nacionalismo com capital estrangeiro...........................................100
2.5- Das boutiques às butiques cariocas........................................................................112
2.6- Quando a moda entra na moda...............................................................................116
2.7- Moda made in Brazil? ...........................................................................................125
Capítulo III: O Brasil é uma paisagem..........................................................................129
3.1- Minha terra tem palmeiras......................................................................................131
3.2- Cartão Postal..........................................................................................................143
3.3- País das mil faces...................................................................................................159
3.4- Os filhos do guaraná...............................................................................................172
3.5- Entre folhagens e balangandãs...............................................................................178
Capítulo IV: A moda “colada” no corpo.......................................................................194
4.1- Nu com a mão no bolso..........................................................................................196
4.2- Mal cabia na palma da mão....................................................................................203
4.3- Cravo e canela........................................................................................................225
4.4- O cabide e o violão.................................................................................................234
4.5- Lifting traseiro........................................................................................................240
4.6- Entre a dádiva e o bisturi........................................................................................252
Capítulo V: Bordando exotismos à brasileira................................................................259
5.1- Oriente-se...............................................................................................................261
5.2- Tão longe, tão perto................................................................................................265
5.3- Conhecer o outro....................................................................................................273
5.4- Cinco sentidos........................................................................................................277
5.5- Palavras e autenticidades........................................................................................282
5.6- Consumir o outro...................................................................................................290
Capítulo VI: Trânsitos da moda.....................................................................................301
6.1- A harmonia social e o chinelo................................................................................303
6.2- Quando o “high-low arrasou” ................................................................................314
6.3- Deu na tevê.............................................................................................................323
6.4- Nacionalizar para globalizar...................................................................................335
6.5- Divulgar lá, vender aqui? ......................................................................................340
Considerações finais......................................................................................................347
Referências Bibliográficas.............................................................................................353
You live wherever you live,
You do whatever work you do,
You talk however you talk,
You eat whatever you eat,
You wear whatever clothes you wear,
You look at whatever images you see...
You’re living however you can. You are whoever you are
“Identity”... of a person, of a thing, of a place.
“Identity”. The word itself gives me shivers.
It rings of calm, comfort, contentedness.
What is it, identity? To know where you belong? To know your self worth?
To know who you are? How do you recognize identity?
We are creating an image of ourselves,
We are attempting to resemble this image...
Is that what we call identity?
The accord between the image we have created of ourselves and... ourselves?
Just who is that, “ourselves”?
We live in the cities. The cities live in us...
Time passes, we move from one city to another, from one country to another.
We change languages, we change habits, we change opinions, we change clothes.
We change everything, everything changes. And fast. Images above all,
(...)
Identity is “out”. Out of fashion. Exactly.
Then, what is in vogue if not fashion itself
By definition, fashion is always “in”
Identity and fashion, are the two contradictory?
Wim Wenders. Notebook on Cities and Clothes.
7
8
A postura das Ciências Sociais com relação aos temas de estudo que dizem
respeito à moda parece ser ambivalente. Por vezes, essas temáticas são tomadas como
periféricas e menos importantes, vistas através de um olhar não despojado de
preconceitos moralizantes e utilitaristas, que as relacionam à futilidade, sem dar espaço
para análises mais compreensivas do que denunciatórias. De outra parte, o interesse em
compreender a cultura material e as relações entre sujeitos e objetos nas sociedades foi
sempre marcante dentro desse campo de conhecimento, sobretudo na Antropologia.
No Brasil, destaca-se a precursora tese de Gilda de Mello e Souza, “A moda no
século XIX: ensaio de sociologia estética
1
”, defendida na Universidade de São Paulo,
em 1950, sob orientação de Roger Bastide. O próprio trabalho de Gilda, entretanto,
como aponta Pontes (2004), foi, quando de sua apresentação, alvo de apreciações
divergentes por parte de crítica e do meio acadêmico da época. Elogiado por sua
inovação temática e igualmente por sua competência analítica, teve, entretanto, sua
“fundamentação empírica” e sua “abusiva liberdade de expressão” (Fernandes apud
Pontes, 2004, p.18) vistas com certa desconfiança, inclusive por seu colega uspiano
Florestan Fernandes
2
.
Ademais dos até então atípicos recursos metodológicos e formais, a própria
temática escolhida por Gilda fora, quando da apresentação do trabalho, “considerada
por muitos – à boca pequena – como fútil” (Pontes, 2004, p.21). A moda, diga-se, por
1
Sendo publicada como livro apenas várias décadas depois. Cf. Mello e Souza (2001).
2
A crítica de Florestan dizia respeito, no quesito “liberdade de expressão”, à forma ensaística, quase
literária, da obra. Convém lembrar, como o faz Pontes (2004), que a trajetória biográfica de Gilda como
contista, assim como suas influências no gosto pela Literatura – o primo, Mário de Andrade, e o marido,
Antônio Cândido –, permitiam-lhe tal perícia e desenvoltura na escrita, fazendo com que sua obra se
afastasse, no aspecto formal, dos modelos esperados – na época – para a apresentação de teses e “tratados
sociológicos”.
9
duas razões, se insere no terreno lodoso dos assuntos “à margem”. Em primeiro lugar,
ela é situada nos assuntos classificados como “da aparência”, termo que, por sua
ambigüidade semântica, por vezes é associado ao “artifício” e à “superfície”, opondo-se
a uma suposta “essência” ou “verdade”. Além da dicotomia entre “ser” e “parecer”, o
segundo ponto que a relega à futilidade é o da oposição entre o “ser” e o “ter”: ela pode
ser freqüentemente relacionada à esfera do consumo, assunto por vezes visto como tão
pouco legítimo quanto àquele das aparências.
O interesse em pesquisar a temática da moda, ainda durante a escrita da
dissertação de mestrado a respeito dos usos e significados da tatuagem contemporânea
3
,
surgiu justamente a partir da percepção de que o estudo das aparências poderia ser uma
perspectiva valiosa para a compreensão de identidades e estilos de vida.
A gênese de tal interesse é, em realidade, dupla. De um lado, pesquisando a
inserção da tatuagem nos padrões de beleza feminina, iniciou-se o contato “empírico”
com o mundo da moda, por meio das entrevistas com bookers e observações em
agências de manequins em Porto Alegre. Por outro lado, inserir a tatuagem no conjunto
englobante das “aparências físicas”, possibilitava pensá-la, teórica e analiticamente,
como semelhante a tantas outras formas de ornamentar o corpo – como as roupas – que,
vestindo-o e revestindo-o, dotam-no de sentidos.
Durante a pesquisa de campo, entretanto, quando o objeto foi sendo delimitado
e solidificado, o viés empírico escolhido afastou-se do vestuário e da roupa,
aproximando a pesquisa da produção de moda e do “mundo da moda”. O conceito de
vestuário é aqui entendido tal qual conjunto ou sistema indumentário onde, a partir de
normas e classificações social e culturalmente estabelecidas, articulam-se as roupas e
são definidas suas formas de uso pelos sujeitos. Para a definição de tal conceito, busca-
3
Para mais detalhes, ver O corpo ilustrado. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003.
10
se inspiração em Yves Delaporte, quando este diz que “le système vestimentaire d’un
groupe donné peut être defini comme un ensemble de pièces et de règles de
combinaison (dont certaines sont impératives et d’autres facultatives)” (2004, p.740).
A moda, por sua vez, é definida por diversos autores (Mello e Souza, 2001,
Waquet & Laporte, 2002, entre outros) como a “mudança” cíclica, não apenas restrita
ao vestuário, mas igualmente abrangindo outros bens de consumo, ou ainda idéias e
comportamentos. Nesse trabalho, entretanto, quando o termo moda é empregado, ele
deve ser entendido como o sistema amplo, institucionalizado e composto por diferentes
esferas, que vão da produção ao consumo de bens (roupas e acessórios) e de idéias.
Debruçando o olhar sobre a moda tal qual se estabelece contemporaneamente,
pode-se dizer que se trata de um mercado de bens simbólicos (Bourdieu, 1998), mas que
têm importante respaldo nas esferas econômicas e que, produzindo e divulgando
símbolos, mas também mercadorias, é filha do capitalismo ocidental.
Seria possível falar, por exemplo, pensando em Barthes (2003), em sistema da
moda. Autores como Kawamura (2005), alegam que apesar de sua obra ser chamada “O
sistema da moda”, Barthes trata ali muito mais de um sistema de vestuário, já que
analisa as regras de combinação de peças de roupas. Uma possível discordância em
relação a esse ponto de vista, no entanto, poderia fundar-se no argumento de que
Barthes, realmente tratando de regras de combinação e uso, o faz a partir da análise dos
discursos das revistas de moda, situando-se, portanto, na produção, divulgação e
legitimação – e não no uso – da moda.
Ainda assim, prefere-se fazer uso nesse trabalho de dois outros conceitos, em
detrimento daquele de “sistema da moda”. Um primeiro conceito seria o de “mundo da
moda”, estabelecido em analogia ao que Becker (1977 e 1982) propõe como “mundo da
arte”, e definindo “mundo” como “a totalidade de pessoas e organizações cuja ação
11
[coordenada] é necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos
caracteristicamente produzidos por aquele mundo.” (1977, p. 10). O mundo da moda,
assim como o da arte, seria composto por um grande número de atores e organizações,
estando entre eles os produtores (artistas ou estilistas), seus funcionários, os
responsáveis pela divulgação de sua produção (a imprensa, a mídia), os responsáveis
pela legitimação de sua produção (donos de galerias/lojas, críticos especializados), e
igualmente seus consumidores.
O segundo conceito aqui utilizado é o de “campo da moda”, tendo como base a
noção de “campo” tal qual proposta por Bourdieu (1988, 1992a e 1992b). Assim,
estende-se por campo
“[...] un réseau, ou une configuration de relations objetives entre des positions [que][...]
sont définies objectivement dans leur existence et dans les déterminations qu’elles
imposent à leurs occupant, agents ou institutions, par leur situation (situs) actuelle et
potentielle dans la structure de la distribution des différentes espèces de pouvoir (ou de
capital) dont la possession commande l’accès aux profits spécifiques qui sont em jeu
dans le camps et [...] par leurs rélations objetives aux autres positions (domination,
subordination, homologie, etc.)” (1992b, p. 73).
Apesar dos conceitos de “mundo” e “campo” não serem sinônimos, como
enfatizam os próprios autores que os cunham (Bourdieu, 1992a, p. 288, Becker &
Pessain, 2006), eles são aqui apropriados em seus elementos comuns: dizem respeito a
um espaço social onde se desenrolam ações coletivas de sujeitos e instituições, gerando
a produção de objetos e idéias e, sendo essa uma de suas características mais
importantes, cuja legitimidade – ou, para Becker, “valor social” – só se dá a partir de
regras internas a eles. Ainda que sempre relacionados a outros campos – ou mundos –,
são esferas relativamente autônomas, no sentido de que as referências (de bom ou ruim,
belo ou feio, brega ou chique, autêntico ou inautêntico) são internamente constituídas e
avaliadas.
12
A moda é aqui entendida, portanto, enquanto esfera de produção cultural,
composta por um conjunto de instituições produtoras de bens culturais com fins
lucrativos, através dos quais se elabora um discurso estético e se veicula significados. A
importância econômica do campo, no Brasil, pode ser percebida pelos números
expressivos da indústria nacional de vestuário. O setor conta, no país com cerca de 18
mil empresas, gerando mais de 1 milhão de empregos
4
. Além desses números, a
configuração de um campo da moda no Brasil e sua importância podem ser percebidos
no florescimento de grandes eventos da área, e na enorme visibilidade dada ao tema
pela imprensa nacional.
Mais do que pelo potencial econômico do campo, entretanto, um estudo da moda
no Brasil se justifica pela sua capacidade expressiva e pela possibilidade de através dela
compreender os sistemas de idéias acionados em sua constituição. Toma-se aqui como
objeto de estudo a moda brasileira em um momento bastante particular de sua trajetória:
esse campo busca, atualmente, visibilidade internacional e, ao mesmo tempo, retorna às
temáticas nacionais, realizando uma verdadeira celebração de “Brasil” e de
“brasilidades”.
Assim, nesse trabalho, será analisado um momento bastante particular da moda
brasileira, nesse iníocio de século XXI. Os discursos sobre ela elaborados, em sua
produção, divulgação e consumo, servirão de ponto de partida para uma discussão a
respeito das representações da nação e de identidades brasileiras. Além da moda
brasileira no Brasil, a pesquisa também tem como foco a divulgação na França, no ano
de 2005 e 2006, dessa moda nacional.
Serão exploradas, dessa maneira, as representações sobre Brasil e brasilidades, e
a forma como são empregadas na construção de uma “moda brasileira”. Trata-se,
4
De acordo com Associação Brasileira de Vestuário (ABRAVEST apud Tessari, 2001)
13
portanto, de falas do Brasil sobre si mesmo, tanto através da moda produzida para o
mercado interno quanto através da moda made in brazil, para exportação. A preocupação
central aqui não é a circulação e a exportação de mercadorias (moda e vestuário) em si, e
sim compreensão das idéias (símbolos, conceitos, imagens e estereótipos) sobre a nação
que são selecionados pelos produtores e mediadores do campo como sendo
representativos de uma “identidade brasileira”, e exportadas e divulgadas internamente
através da moda produzida no e pelo Brasil.
Ainda que para tratar da moda nacional procure-se circular por diferentes
setores, será aqui privilegiada, dentre as esferas que compõem o campo da moda, aquela
do prêt-à-porter e da confecção de luxo. Esse setor é assim nomeado por que, apesar de
não se tratar de alta-costura, que supõe modelos únicos e exclusivos, e sim de “roupas
prontas”, trata-se de um setor que atende a uma clientela de camadas médias altas e altas
da sociedade brasileira, oferecendo produtos de valor elevado e, dependendo do tipo de
produto e do material utilizado, equivalente àquele de muitas grifes internacionais de
prêt-à-porter. Além disso, supõe a criação autoral: mesmo quando a marca não leva o
nome do estilista (ou grupo deles) que produz para ela, seu nome é tão divulgado e
afamado quanto o da marca. Uma terceira característica é o fato de produzir peças em
pequenas quantidades, ao contrário das grandes confecções. Sua principal
particularidade, ademais, é a ativa participação no circuito de legitimação do campo,
apresentando sazonalmente desfiles nos principais eventos de moda e recebendo espaço
no discurso do jornalismo e da crítica de moda.
Também é preciso sublinhar que no trabalho a moda feminina será privilegiada.
Tal recorte de gênero foi dado pelo próprio campo, já que a maioria dos desfiles
observados eram de roupas femininas. Mais além, convém notar que a esfera da moda e
das roupas é, em nossa sociedade, assim como tudo que diz respeito às aparências e à
14
vaidade, freqüentemente associada ao feminino. Nos grandes eventos de moda, portanto,
o número de marcas de roupa feminina é, de maneira geral, bastante superior aquele de
roupas masculinas.
As observações realizadas, assim como as entrevistas a partir das quais o
presente trabalho foi desenvolvido, são descritas no primeiro capítulo da tese. Este, a
diferença dos demais, não se propõe a ser um capítulo analítico e teórico, mas um
espaço de descrição do trabalho de campo. Além de apresentar e justificar as técnicas e
métodos utilizados na pesquisa, discute-se ali questões relativas à inserção nas esferas
pesquisadas, sendo também elaboradas reflexões a respeito do próprio exercício do
trabalho de campo. Por essa razão, nesse primeiro capítulo, a figura do pesquisador se
fará presente de uma maneira particular. Embora a pesquisa de campo tenha sido
realizada no Brasil e na França, dados analisados não serão dispostos de acordo com sua
origem (Brasil/França), e sim de acordo com eixos temáticos e analíticos construídos
para e na pesquisa. Os capítulos seguem, então, essa lógica.
No segundo capítulo, será feito um esboço de como se constitui historicamente,
no Brasil, o campo da moda. O foco principal ali serão as relações entre nacional e
estrangeiro, levando em consideração principalmente as influências francesas, muito
importantes nesse setor, e passando por temáticas relativas às copias, apropriações e
transformações das modas de vestir de alhures no território nacional, bem como pelos –
poucos – momentos em que “inspirações brasileiras” são chamadas à nossa moda. Sem
a pretensão de dar conta de tema tão extenso, que aqui apenas serve de base para o
entendimento da atual configuração do campo, privilegiou-se Rio de Janeiro e São
Paulo por serem, contemporaneamente, os principais centros produtores e difusores do
campo da moda no Brasil.
15
A partir do terceiro capítulo tem início a descrição e análise dos elementos que
são apropriados por essa moda brasileira – que se quer brasileira e sublinha sua
“brasilidade” – como representativos da nação. No capítulo três, discute-se a questão
dos usos da natureza brasileira, assim como de paisagens emblemáticas do país, na
produção de moda nacional. A isso se acrescenta a presença de representações sobre um
“tipo” ou “caráter” nacional brasileiro em nossa moda de vestir, bastante ligado à idéia
da natureza: povo, paisagem e moda nacional se fundem, principalmente, em imagens
de exuberância e excesso.
No quarto capítulo discute-se a importância de uma suposta “corporalidade
tipicamente brasileira” no imaginário nacional e internacional, a partir dos casos
exemplares do jeans e da moda praia. Tais elementos abrem caminho para reflexões a
respeito de nudez, sensualidade e erotismo e, ademais, também lançam idéias sobre o
corpo “natural” e o corpo trabalhado por modificações estéticas e cuidados
embelezadores.
Dentre todos os que compõem o trabalho, o quinto capítulo é aquele onde mais
se fazem presentes dados a respeito do consumo de produtos brasileiros na França.
Procura-se, nesse capítulo, trazer à luz as questões do exotismo, da construção do Brasil
como outro, e da estratégia comercial de vincular a moda brasileira, na França, ao
mercado de produtos exóticos, estabelecendo analogias entre processos semelhantes
envolvendo outras culturas e identidades nacionais.
Já o último capítulo tem como foco os trânsitos que se estabelecem na moda
brasileira. Primeiramente, são analisadas as apropriações, pela alta moda nacional e pelo
consumo de luxo, de uma “cultura popular” brasileira, dialogando com os modelos
propostos pelas teorias clássicas de difusão de gosto. A seguir, discute-se o papel de
intermediários, tanto daqueles profissionais do campo, como jornalistas e críticos de
16
moda, quanto das celebridades midiáticas que compõem o singular star system à
brasileira. Por último, ensaia-se compreender os trânsitos internacionais da moda
brasileira, que envolvem o retorno ao nacional com o objetivo de internacionalizar a
moda, mas igualmente, retornando ao Brasil, a divulgação dessa internacionalização de
nossa moda o mercado interno.
Temática central desse trabalho, transversal a todos os capítulos, é a questão do
“abrasileiramento”, no momento atual desse início de século XXI, da moda de vestir
produzida no Brasil. Procura-se aqui verificar de quais formas acontece tal
“abrasileiramento” das temáticas, situando os elementos mais recorrentes e localizando
certa contradição, interna ao campo da moda no Brasil, entre um movimento de
“nacionalizar” e outro de “internacionalizar” nossa moda.
17
18
Estudar a moda brasileira contemporânea é, como foi dito, estudar um sistema
complexo de produção e difusão de objetos e idéias. O mercado da moda, no Brasil
como em toda parte, engloba e é formado por numerosos e diversos setores e esferas
sociais. Para alcançá-lo, um estudo antropológico não deveria, preferencialmente, estar
restrito a uma única dessas esferas.
Ainda que a Antropologia, enquanto disciplina, tenha tido sua identidade
constituída a partir de seu método particular, a etnografia, que pressupõe a inserção
“total” e por um longo período do pesquisador na comunidade ou grupo por ele
estudado, com a emergência de novos (ou nem tanto) objetos de estudo, seus métodos
tradicionais foram e têm sido repensados. Fazer Antropologia Urbana, por exemplo, em
sua propria sociedade ou cidade de origem, envolve não só a supressão do deslocamento
e do afastamento de sua própria cultura para uma imersão na cultura do outro, mas
igualmente o novo movimento, tão bem descrito por Velho (1978 e 2003), de estranhar
o familiar. Imaginar-se sozinho, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo
seu barco afastar, passa a ser, então, mais um recurso metodológico da disciplina do que
propriamente uma realidade preponderante.
A emergência dos estudos sobre globalização pressupõe, certamente, não apenas
essas duas problematizações metodológicas acima mencionadas, mas uma terceira:
como estudar aquilo que está em toda parte, que não pode ser plenamente compreendido
através da pesquisa em um único lugar, comunidade ou grupo? Certamente tal questão
passa ser pensada pela Antropologia muito cedo, haja vista a necessidade concreta de
“estar ali, ali... e ali” (Hannez, 2003) para os estudos antropológicos sobre migração e
diáspora.
19
Sistematizando o conceito de pesquisas multi-situadas ou multi-localizadas,
Marcus (1998) sugere que seja uma possibilidade adequada para dar conta de objetos de
estudo particulares, não apenas restritos a circulação de pessoas, mas igualmente de
objetos, identidades e significados culturais. Pensando na tipificação proposta por
Marcus, minha pesquisa não se situa no âmbito da circulação de pessoas, e tampouco de
objetos (ainda que esteja próxima deles), e sim naquele denominado pelo como “seguir
a metáfora” que é, segundo ele, o estudo da circulação de símbolos e representações.
Embora possam ser os objetos sua materialização concreta, são os símbolos e as idéias
neles veiculados e à eles atribuidos que aqui me interessam particularmente.
Realizar pesquisa na França, além de no Brasil, possibilita a comparação entre as
representações sobre Brasil lá construídas, a partir da moda brasileira, e as que aqui são
veiculadas. Procuro, portanto, compreender quais representações permanecem
semelhantes e quais são transformadas e reatualizadas nessa “circulação de metáforas”
entre os dois contextos. Multi-situar o campo não diz respeito a apenas
internacionalizá-lo, realizando pesquisa em dois países diferentes (ainda que também
seja uma forma de construí-lo multi-localmente). Mesmo que não tivesse realizado
pesquisa no exterior, o campo seguiria a lógica da multiplicidade. Com vistas a
compreender a moda, foi necessária a aproximação de diversas de suas esferas. Sem a
pretensão de apreender o campo da moda em sua totalidade (o que seria impossível,
mesmo mantendo-me restrita a moda nacional), procurou-se diversificar os lugares de
pesquisa, tentando minimamente ver como o objeto de estudo se constituía na esfera da
produção, da divulgação, naquela dos meios de legitimação, assim como na da recepção
e, ainda que com menor ênfase, na do consumo.
Como será descrito nos subcapítulos a seguir, a técnica de pesquisa privilegiada
foi a observação direta. As observações incluíram, entretanto, conversas com pessoas
20
que participavam das situações sociais observadas e vivenciadas. Além disso, foram
realizadas uma série de entrevistas, e também pesquisa em arquivos de periódicos
brasileiros e franceses especializados em moda, onde buscava-se conhecer os discursos
ali veiculados. Os subcapítulos a seguir tratam da insersão em campo nas diferentes
esferas da moda, trazendo descrições de lugares e situações de pesquisa. Ao contrário
dos outros capítulos desse trabalho, portanto, na totalidade desse primeiro capítulo a
ênfase é dada na experiência de pesquisa, e não na análise de dados.
1.1-Com que roupa eu vou pro campo que você me convidou?
Partindo de um interesse inicial, anterior a constituição do objeto da pesquisa,
em compreender as apropriações do que se chama de “tendências de moda” por
diferentes publicos, foi realizada em uma pequena, mas intensa, expriência de pesquisa
a repeito da cooperativa de costuras e reciclagem Griffe Morro da Cruz
5
.
A Griffe Morro da Cruz situa-se na Vila São José (mais conhecida como Morro
da Cruz), em Porto Alegre, sendo habitada por camadas populares da cidade. O local
onde as costureiras da Griffe se reúnem para produzir suas peças de vestuário, por elas
chamado de “Galpão de reciclagem”, situa-se no alto do morro, bem ao lado da grande
Cruz que dá nome a ele. Este edifício foi cedido às mulheres da cooperativa pela
Paróquia S. José de Murialdo. Junto ao galpão existem pequenas salas que são utilizadas
pela comunidade para eventos locais e educativos. Quando de minha primeira visita, no
ano de 2003, uma das salas era utilizada para a realização de um curso de cortes e
penteados de cabelos em estilo afro.
5
Tal experiência gerou os seguintes artigos: Retalhos, recortes e roupas. In: I Encontro Nacional de
Antropologia do Consumo, 2004, Niterói; e Roupa pronta é roupa boa: reflexão sobre gosto e hábitos de
consumo de produtoras e consumidoras de uma cooperativa de costuras. In: XXIV Reunião Brasileira de
Antropologia, 2004, Olinda.
21
Na parte principal do prédio, onde as costureiras trabalham, há várias máquinas
de costura (em sua maioria doadas por empresas), muitos sacolões de retalhos de tecidos
(também recebidos como doação de indústrias e famílias), alguns banquinhos de
madeira, três araras de roupas e uma bancada, onde ficam expostas peças de vestuário
por elas produzidas.
A Griffe é muito bem vista por organizações não governamentais e instituições
governamentais locais, por ser considerada uma iniciativa de sucesso, criada e mantida
ainda dentro do Morro. Recebeu alguns prêmios nacionais e internacionais, tendo obtido
o primeiro lugar no ano de 2002, no Concurso Latino-Americano de Empreendimentos
Exitosos Liderados por Mulheres, promovido pela Rede de Educação Popular entre
Mulheres da América Latina e do Caribe (REPEM).
Seus produtos são comercializados em butiques particulares e em Lojas da
Etiqueta Popular, uma iniciativa da Secretaria Municipal de Indústria e Comércio da
Prefeitura de Porto Alegre. As peças produzidas pela Griffe são igualmente vendidas em
estandes de feiras e eventos que ocorrem na Capital, por exemplo, nos Mercado Mundo
Mix e no Fórum Social Mundial.
O contato com a Griffe aconteceu por intermédio de uma colega do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia, que havia realizado estágio no posto de saúde e lá
fazia sua pesquisa sobre masculidade e práticas contraceptivas. Convidada para o
campo de outrem, cheguei a perguntar se havia alguma recomendação quanto a roupa
que deveria usar. A resposta, naquele momento, acabou com minhas expectativas a
respeito da existência de algum tipo de ethnographic dress code: ué, vai normal, guria!
Possivelmente influenciada por um imaginário exotizante a respeito do lugar
desconhecido, e certamente influenciada pela chuva há dias ininterrupta, fiz minha
opção indumentária. Atendendo a recomendação da “dona do campo”, fui “normal”:
22
vestido preto de lã, uma capa de chuva e um par de botas pretas tipo coturno, até os
joelhos, amarradas na frente, do joelho ao peito do pé, e com um grosso solado de
borracha. Pensando na chuva e no barro que imaginava encontrar pela frente em meu
lugar de destino, o par de botas parecia ser a peça mais apropriada daquele conjunto de
vestimentas escolhido.
Chegando ao Morro da Cruz, entretanto, a escolha foi posta a prova. Paula
estacionou seu carro perto de uma escola e, ao descermos do carro, minha
“normalidade” começou a ser posta em dúvida. Fomos cercadas por dezenas de
crianças que corriam a nossa volta, rindo muito e apontando para meus pés. Algumas se
apressavam em chamar amigos e parentes, avisando da estranha figura que havia
chegado por ali: “vem ver isso, mãe, não perde!”. Outras apenas riam e não continham
exclamações como “olha as bota dela!”, “que que é isso?” e “parece bota de
brigadiano
6
!”.
Todo o caminho, feito a pé, da escola até o galpão de reciclagem onde
trabalhavam as costureiras, foi permeado por deboches e gozações. Eu, que acreditava
passar minimamente “desapercebida” e não “incomodar”, estava realmente fora de
lugar. Ao entrar no galpão de reciclagem, entretanto, a recepção foi oposta. O primeiro
comentário feito pelas costureiras, após as apresentações, foi algo semelhante a
“adoramos teu visual, é bem o tipo de jeito de vestir do pessoal que compra as nossas
coisas”.
Mas aquilo que nas primeiras horas parecera um elogio, aos poucos tomou novas
formas. Depois de alguma conversa, constato que as costureiras dali, ao contrário do
que pensava, não acham tão bonito assim o estilo de peças que produzem e vendem.
Aos poucos elas contam que não usam as roupas que fazem por considerá-las por
6
Expressão utilizada no Rio Grande do Sul para designar membros da Força Pública Brigada Militar.
23
demais coloridas, feitas de retalhos, muito enfeitadas: “excêntricas”. Segundo uma
delas, “coisa pra criança usar, no máximo, ou então pra gente lá de cima”. Falando em
“gente lá de cima”, estando no ponto mais alto do morro, ela fazia referência às
consumidoras de classes médias e altas, que na realidade moram “lá em baixo”, que
compram seus produtos. E o gosto da “gente lá de cima” pelas bolsas de retalhos, por
elas jocosamente chamadas de “bolsas cabeludas”, e o meu gosto, por extensão, era
visto como duvidoso.
Para compreender quais imagens guiavam esse gosto de classe média a
consumir os produtos da Griffe, foi realizada observação em pontos de venda, onde
entrevistei algumas consumidoras. A totalidade delas era realmente composta por
mulheres de classes médias e altas, universitárias ou profissionais liberais,
freqüentadoras de circuitos alternativos de consumo (tal como feiras ecológicas e feiras
de “moda indepente
7
”), mas igualmente freqüentadoras dos circuitos hegemônicos da
moda (como shopping centers, lojas de grifes famosas e desfiles de moda). Como
abordado nos capítulos seguintes, o produto “popular”, por elas entendido como
“proveniente do povo” e “de acordo com o gosto do povo” (mesmo que não fosse essa a
realidade), e artesanal, era usualmente misturado a peças de marcas famosas e peças
industriais.
Ter conversado com essas mulheres cujas preferências e gostos estéticos se
aproximam, indubitavelmente, dos meus, foi especialmente proveitoso por ter
acontecido apenas depois da experiência no Morro da Cruz. O questionamento a
respeito do meu jeito “normal” de vestir proporcionado pelos deboches e olhares
vividos lá, fez com que fosse possível estar mais atenta ao que eu via e ouvia ali,
7
“Moda independente” ou “moda alternativa” é um termo êmico que diz respeito às roupas que estão fora
dos circuitos comerciais mais “tradicionais”, como shopping centers, e está geralmente referido às peças
criadas por jovens designers locais.
24
daquelas consumidoras de produtos da Griffe que compartilhavam alguns de meus
gostos e escolhas de consumo. Estar fora de lugar lá ajudou a estar menos no lugar ali.
Ainda que a pesquisa tenha tomado novos rumos, quando o objeto de estudo
passou a ser as representações do Brasil veiculadas na moda brasileira contemporânea, a
experiência no Morro da Cruz, além de iniciática, também fornece importantes dados
analíticos. Uma vez que o atual objeto de estudo engloba os usos e apropriaçãos de uma
dita “cultura popular brasileira”, assim como do produto artesanal e socialmente correto,
os dados obtidos na pesquisa realizada junto a Griffe não podem ser deixados de lado.
1.2: Ser VIP e ser groupie
8
: pelas veredas da moda/espetáculo
A observação dos grandes eventos de moda é parte fundamental da pesquisa
realizada para essa tese de doutorado. Uma vez que pensemos a moda enquanto um
campo social no qual têm lugar disputas por poder e representação, tais grandes eventos
de desfiles espetacularizados são significativos porque atuam enquanto peça-chave do
circuito de legitimação: neles as marcas da alta moda brasileira e seus criadores definem
posições e hierarquias, neles as ditas tendências de moda são promovidas e divulgadas,
e é a partir deles que a outra ponta do circuito de legitimação (a imprensa de moda, que
amplia o universo receptor para além do público aos pés da passarela) constrói seus
discursos.
Dentre os eventos desse tipo existentes no país
9
, destacam-se o São Paulo
Fashion Week
10
e o Rio Fashion que acontecem, respectivamente e como está explícito
8
Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portugues: ing. groupie (1967) 'fã de um grupo de rock que
costumeiramente o segue nas turnês; admirador de uma celebridade que vai a praticamente todas as suas
aparições públicas; entusiasta, aficcionado'. Poderia também ter como sinônimo o termo “tiete” e, na
utilizaçao que faço aqui, está referida aos caçadores (ou caçadoras, já que em sua maioria diz respeito ao
gênero feminino) de celebridades.
25
em seus nomes, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Para observar tais eventos,
determinantes perante o objetivo de verificar as representações do Brasil expressas pela
alta moda brasileira, foi realizada pesquisa de campo no Rio de Janeiro e em São Paulo,
nos meses de junho e julho de 2005.
Ainda que o evento de moda espetáculo Donna Fashion Iguatemi, realizado em
Porto Alegre, não faça parte desse circuito central da alta moda brasileira, os dados de
pesquisa obtidos através da observação dele será levado em consideração. A observação
do evento gaúcho foi realizada em primeiro lugar por acontecer na cidade em que
resido, e sua importância na tese deve-se ao fato de ter sido o primeiro evento de moda
espetáculo observado. Foi justamente nele, realizando a princípio uma observação
exploratória e não direcionada, que foi pensado pela primeira vez o objeto da pesquisa
sobre moda brasileira. A reprodução em Porto Alegre, em setembro de 2004, das
coleções desfiladas em junho e julho de 2004 no SPFW e no Rio Fashion, repleto de
referências às identidades brasileiras, foi propulsora do interesse por tal temática.
Antes de adentrar pelas veredas da moda, convém sublinhar que optou-se aqui
por omitir não apenas o nome dos entrevistados, mas igualmente os nomes das marcas
que representam. Tratando-se muitas vezes de funcionários de tais marcas, a divulgação
pública de algumas informações, assim como algumas opiniões omitidas, poderiam ser
vistas como prejudiciais por seus empregadores. Além de evitar, assim, a identificação
de seus funcionários, não se vê a necessidade de mencionar o nome das grifes, já que
não é intenção dar publicidade – positiva ou negativa – para as marcas. Exceção será
9
No segundo capítulo pode-se ver o momento em que surgem de tais eventos no Brasil, assim como
conhecer quais são os mais importantes, realizados atualmente não apenas na região Sudeste, mas em
diversas capitais brasileiras. Ainda que tenha havido essa relativa dispersão geográfica, os eventos do Rio
de São Paulo permanecem sendo os mais importantes do circuito. São eles o mais bem documentados na
imprensa de moda e, invariavelmente, são eles o palco das apresentações inéditas. Os eventos realizados
em outras capitais brasileiras acontecem em datas posteriores aos do Rio e São Paulo, as marcas que
participam são as mesmas, e muito freqüentemente neles são apresentadas exatamente as mesmas
coleções que já foram desfiladas no São Paulo Fashion Week e no Rio Fashion.
10
Ao longo do texto o evento também será referido como “SPFW”.
26
feita quando se tratar de marcas cujos nomes transformam-se quase em um tipo
“genérico”, sinônimo do produto que revendem, como é o caso dos chinelos Havaianas.
Donna Fashion Iguatemi. Porto Alegre, 2004:
Sendo composto por quase quarenta desfiles, o evento aconteceu no
estacionamento de um shopping, em Porto Alegre. Uma área equivalente a 500m2 do
estacionamento do shopping abrigava, além de uma sala de desfiles, dois bares (um
grande e um pequeno) e cerca de 30 mesas com banquetas tipo pufe. O ambiente era
totalmente preto, das paredes ao teto, e mesmo a foração do chão era da mesma cor.
Também havia, em um canto próximo a porta de saída, um estande promocional onde
um carro era exposto. Próximo ao bar, de um pequeno palco, era transmitido um
programa de moda diariamente, às 22h, apresentado por um jornalista/comentarista de
moda gaúcho e uma apresentadora ex-manequim.
Abaixo, vê-se um esquema da distribuição do espaço no local destinado ao
evento:
No pequeno bar, patrocinado por uma grande loja de roupas populares, em
diversos horários havia barmans jovens fazendo performances com copos e garrafas. O
27
grande movimento de público, entretanto, ficava no bar maior. Esse bar, chamado de
“café do lounge”, além de uma série de mesinhas brancas com banquetas da mesma cor,
tinha um grande balcão, todo de vidro fosco com luz interna.
O público do evento era majoritariamente jovem, e, em alguns horários, muito
jovem. À tarde a maioria do público não passava da faixa dos vinte anos. Mais para o
fim da tarde, início da noite, a faixa etária se modificava, mas não ia além dos 50 anos.
As mulheres estavam sem dúvida em maior número, sobretudo à noite. No café do
lounge as mesas estavam quase sempre lotadas de grupos de mulheres bebendo
champanhe nos intervalos entre um desfile e outro.
A sala de desfiles também era decorada em preto, e perto da passarela o logo
iluminado dos patrocinadores do evento. As primeiras filas da platéia são de acesso
restrito a convidados VIP, que trazem sempre consigo uma pulseirinha de néon onde se
lê, justamente, a palavra VIP.
O tratamento dado aos VIPs era realmente VIP, já que seus convites especiais
permitiam que assistessem os desfiles sem entrar na fila. Tal privilégio gerava olhares
reprovadores do restante do público, retribuídos também com olhares e comentários de
alguns desses “muito importantes”, que ironizavam os que esperava na fila, de pé,
durante 30 minutos, para assistir o desfile de três minutos.
Ao contrário dos eventos SPFW e Fashion Rio, entretanto, os privilégios dos
VIPs era muito menor no evento gaúcho, assim como a vigilância na delimitação de
quem é VIP e quem é anônimo e comum.
A fila ordinária era lugar privilegiado para bater papo já que, para os ordinários,
o tempo passado na fila era muito maior. As pessoas com as quais conversei durante o
evento eram por vezes ligadas à indústria da moda, ainda que não VIPs, como lojistas
do interior do estado ou jovens estudantes de cursos de moda e estilismo de faculdade
28
privadas de Porto Alegre. Vez por outra, entretanto, também trocava breves comentários
com adolescentes, minhas vizinhas de fila, que sempre comentavam a respeito dos
atores e modelos que desfilariam a seguir. Elas, as groupies, diziam estar ali pela moda,
mas também e principalmente para ver o “povo da moda”, as celebridades.
Na fila, boa parte das conversas girava em torno das estratégias a respeito de
como conseguir convites ou como entrar de graça nos desfiles. Os convites para os
desfiles, diferentemente dos eventos do Rio e de São Paulo, podiam ser comprados, ao
preço de 20 reais cada um. Os sem-convite, entretanto, uma vez dentro do saguão,
poderiam esperar nma segunda fila (espécie de fila reserva ou “segunda chamada”), e
entrar gratuitamente, caso houvesse cadeiras vazias.
Os desfiles eram tanto de lojistas do shopping quanto de estilistas e marcas
convidados. Os desfiles dos lojistas frequentemente aconteciam à tarde, e os de
convidados, geralmente mais procurados, à noite. Nos dois últimos desfiles (21h e 22h),
raramente havia a presença de “famosos”, e quando havia seus nomes não estavam
citados no programa do evento.
No segundo dia do Donna Fashion Iguatemi houve uma palestra com uma figura
importante do campo da moda, consultora, jornalista e crítica de moda de São Paulo. O
tema da palestra era “tendências de moda”, e supostamente era voltada para lojistas,
fabricantes e profissionais da área da moda.
Fashion Rio. Rio de Janeiro, 2005:
A sétima edição do evento de moda Fashion Rio (verão 2005/2006) teve início
no dia catorze de junho de 2005. O evento, que durou seis dias, começava no fim da
manhã ou início da tarde (dependendo do dia) e se prolongava até pelo menos onze da
29
noite. Como há alguns anos, o Fashion Rio aconteceu no “pátio” do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro (MAM), próximo ao aeroporto Santos Dumont. Os desfiles
aconteciam em quatro salões: “Copacabana”, “Ipanema”, “Corcovado” e “Pão de
Açúcar”, montados em tendas na parte externa do museu.
Além das quatro salas de desfiles havia, na entrada do evento, um amplo espaço
designado como “área de convivência”, que abrigava diversos estandes fechados,
chamados de lounges
11
. Em cada lounge havia um telão onde se via ver os desfiles,
alguns sofás, e normalmente um bar, onde o convidado poderia beber, comer petiscos,
ouvir música (e mesmo dançar) e, sobretudo, ver e ser visto.
A entrada no lounge era restrita aos convidados da empresa, e para entrar em
cada um desses estandes era preciso ter um convite específico para ele. Os lounges,
entretanto, apesar de muito “fechados” e tendo suas estreitas portas vigiadas por
seguranças (que voltavam para possíveis penetras olhares ameaçadores), possuíam
amplas janelas de vidro, para que quem ficasse do lado de fora pudesse observar o que
se passava lá dentro.
A área de convivência nada mais era do que um corredor relativamente estreito,
com um sofá de tecido de cor preta no centro, que dava acesso aos lounges privados.
Conviver, então, implicava estar convidado para pelo menos um dos lounges privados.
Os não convidados, que com algum esforço conseguiram entrar no pátio do museu,
precisavam se contentar em amontoar-se no sofá do corredor e observar a “convivência
alheia” através das janelas/vitrines dos lounges fechados.
Ainda na área de convivência havia um pequeno café, sempre bastante lotado, e
banheiros públicos. No pátio do MAM, além das salas de desfiles e da área de
convivência havia mais dois espaços: o pavilhão do evento Jóia Brasil e do evento
11
Os lounges eram espaços montados por empresas (de telefonia celular, moda e vestário, canais de
televisão a cabo, jornais e revistas) e funcionavam como camarotes.
30
Fashion Business. A distância entre os lugares era muito pequena, mas, mesmo assim,
pelo pátio do museu circulavam carrinhos (estilo carrinhos de golf) que levavam e
traziam visitantes – aqueles que possuíam convites, bem entendido.
Abaixo, uma visualização aproximada do espaço descrito:
Assim como no evento gaúcho, no Fashion Rio havia uma série de “sem
convites”, chamados pelos seguranças de “penetras”. Cabe ressaltar que os “penetras”
diziam estavar lá para ver os “famosos”, para admirar as “celebridades”. Os penetras
eram quase sempre os groupies. Sem desgrudar o olho dos famosos que passavam,
freqüentemente traziam nas mãos máquinas fotográficas e cadernetas para pegar
autógrafos. Assim que o alvo era identificado ele deveria ser abordado. O groupie, além
de transgredir a barreira e estar onde não é convidado, é visto como inconveniente e
incômodo, perturbando a livre circulação daqueles que “realmente fazem parte” do
ambiente.
Os seguranças do evento eram bastante rígidos, abordando, na entrada do
evento, todos aqueles que chegavam e pedindo que os convites fossem mostrados. Tais
abordagens aconteciam mesmo dentro dos corredores do Fashion Rio, tendo como alvo
principalmente os jovens groupies ou aqueles que, em aparência, poderiam ser
31
confundidos com estes. Os que circulavam com naturalidade pelos corredores do
evento, quando não traziam atrás de si fotógrafos e jornalistas, ou caçadores de
autógrafos, chegavam ao evento com carros importados último modelo, vestiam roupas
visivelmente caras e, quando não entravam nos lounges, consumiam no café garrafas de
champanhe, cujo preço pode ao menos ser adivinhado, considerando que uma pequena
garrafa de água mineral ali custava cinco reais.
A garrafa d’água, comprada no bar do Fashion Rio, foi recurso ao qual recorri,
tendando demonstrar naturalidade naquele espaço, driblando as constantes abordagens
dos seguranças do evento que, perante meu ethnographic dress code não adaquado,
confundiam-me com “penetras” e groupies. Era preciso evitar a pergunta “tem
convite?” e a ordem “mostra o convite!” já que, considerando que tal convite nem
sempre existia, sempre geravam enormes constrangimentos e freqüêntes expulsões do
evento.
O público do Fashion Rio, assim como aquele do Donna Fashion, era diverso de
acordo com o horário e com os desfiles do dia. Apesar de os lounges e o café já estarem
sempre cheios no início da tarde, e de o champanhe circular desde esse horário, era à
noite que o pátio do MAM transformava-se em uma grande festa e espaço de encontros.
À tarde o público dos desfiles era composto por um maior número de jovens do
que à noite. O número de “penetras”, entretanto, aumentava ainda mais à noite, porque
era nesse período que aconteciam os desfiles de marcas maiores, que traziam para as
passarelas modelos famosas ou atores “globais”.
Antes de cada desfile se formava na porta dos salões uma grande fila. Era
possível ali identificar diferentes “categorias” de convidados. Havia convidados que já
chegavam com seus cartões magnéticos com lugar marcado. Outros traziam cartões
magnéticos sem lugar marcado, e deviam esperar a entrada dos que tinham o cartão
32
“preferencial”. Ainda havia os que traziam apenas convites impressos que, na porta do
desfile, deveriam ser trocados por outro tipo de cartão magnético, que permitia que se
assistisse ao desfile de pé.
Para os convidados das três primeiras filas dos desfiles havia, sobre as cadeiras,
pequenos presentes, além de uma pasta com o release do desfile e panfletos dos
patrocinadores.
12
Na primeira fila sentavam principalmente jornalistas de moda e atores
ou atrizes famosos. As outras duas filas preferenciais eram reservadas para outras
celebridades, patrocinadores e seus familiares, e clientes especiais, naturalmente
também célebres.
Na porta dos desfiles também havia, geralmente misturados nas filas, alguns
penetras tentando assistir o desfile. Na fila, perguntavam (sempre aos convidados e
nunca aos organizadores) por algum “convite sobrando”, e eventualmente conseguiam
entrar. Outros permaneciam na fila, tentando camuflar-se para entrar, mas eram sempre
barrados na porta, porque sem o cartão magnético não poderiam passar pelas “roletas”.
Mesmo em desfiles em que cadeiras ficavam livres, os que não tinham convites não
puderam entrar.
12
Muitos são patrocinados por grandes empresas, normalmente da indústria têxtil.
Exem
p
lo de convite “cartão ma
g
nético”
33
Com os convites, obtidos através das mais diversas estratégias
13
, foram
observados, no Fashion Rio, onze desfiles: três de moda praia, cinco de pret-à-porter de
luxo feminino, um de pret-à-porter de luxo masculino, e dois de pret-à-porter de luxo
tanto masculino quanto feminino.
Nos intervalos entre os desfiles, no longo período de espera nas filas e algumas
vezes durante e depois dos desfiles, foi possível conversar informalmente com um
grande número de pessoas do público. Essas conversas versavam sobre a moda
brasileira e, na maioria dos casos, sobre a recepção do público daquilo que era
apresentado nas coleções desfiladas no evento.
Foram, igualmente, realizadas entrevistas com funcionários de três grifes. Um
deles era auxilar de criação de marca de moda praia feminina, outro era gerente de loja
própria de uma grife que produz pret-à-porter de luxo (tanto masculino quanto
feminino), e uma terceira que era responsável pela criação dos calçados de uma griffe
de pret-à-porter de luxo exclusivamente feminino. Foi entrevistada, ainda, uma estilista
responsável por coleção de moda feminina vendida em lojas multimarcas.
Ainda no ambiente do Fashion Rio, foi observado o evento Jóia Brasil
14
, então
em sua sexta edição. O pavilhão que o abrigava, ao lado do salão de desfiles Ipanema,
era de entrada livre. Estranhamente o ambiente de maior luxo e ostentação era o único
lugar do evento onde não era necessário ter convites para entrar.
13
Tais estratégias incluíam pedidos formais a antecipados à organização, pedido à amigos, pedido aos
estilistas, e mesmo o procedimento “padrão” do penetra: perguntar na fila de espera por “convites
sobrando”.
14
Uma vez que o objetivo é reconhecer os elementos de brasilidade apropriados pela moda brasileira
contemporânea, e pensando a moda como composta pelo vestuário, mas não apenas a ele restrita, também
os acessórios merecem atenção. No caso das jóias, tal merecimento se reforça por duas constatações. A
primeira é a tradição brasileira da venda de jóias enquanto produto turístico típico do país, uma espécie de
souvenir de nossa natureza - literalmente dela extraído. A segunda é a força simbólica que há na
apropriação de discursos sobre a nação e especialmente sobre a “cultura popular” brasileira feita
constantemente, e até mais ou há mais tempo do que nas modas de vestir, por esse mercado de extremo
luxo.
34
Grande parte das coleções apresentadas fazia uso de pedras brasileiras, algumas
também utilizando materiais orgânicos: madeira e sementes como a jarina, semente
amazônica conhecida como “marfim vegetal”, por sua cor e textura semelhantes as do
marfim.
Uma grande joalheira expôs no evento uma réplica da coroa de D. Pedro II, com
quase três quilos de ouro, 596 pedras e 800 pérolas. A coroa foi executada pela joalheria
a pedido do Ministério da Cultura para que fosse usada em exposições. A coroa original
está desde 1943 no Museu Imperial, em Petrópolis. A mesma joalheria também realizou
uma reprodução autorizada da aliança de casamento de D. Pedro, essa para ser vendida.
Havia um grande setor do Jóia Brasil dedicado à exposição das peças vencedoras
de um concurso de design de jóias promovido por uma mineradora sul-africana com
sede no Brasil. Todas as peças, de autoria de designers brasileiros, tinham como ponto
comum a temática do Brasil. O catálogo da exposição continha não apenas fotografias
das peças, mas também textos escritos pelos autores, onde descrevem brevemente suas
intenções e o argumento que embasa sua criação.
Foto
g
rafia da coroa
,
extraída do
f
olde
r
da
j
oalheria
35
São Paulo Fashion Week. São Paulo, 2005:
Na edição de junho/julho de 2005, o São Paulo Fashion Week comemorava seus
dez anos de existência. O evento aconteceu no prédio da Bienal, no Parque do
Ibirapuera e, desde o primeiro dia da semana de moda, o movimento de automóveis nas
proximidades do prédio era grande.
Em frente ao prédio, perto da porta de entrada, foi instalado um telão, o que
fazia com que se formasse uma grande aglomeração de pessoas que, não podendo
entrar, assistiam aos desfiles do lado de fora. Além de assistir, alguns procuravam
breves momentos de fama: em todos os dias dos desfiles estava em frente ao prédio uma
menina de 15 anos, cabelos cor-de-rosa, e milhares de piercings no rosto. Em duas
ocasiões foi entrevistada e filmada por jornalistas
15
. Também do lado de fora, eram
freqüentes as performances de drag queens, geralmente em duplas.
A estrutura interna do prédio que abrigava o evento era um pouco distinta
daquela do Fashion Rio. Para entrar pela única porta que dava acesso ao prédio era
preciso ter ou convite de desfiles ou convite para algum dos lounges. A atuação dos
seguranças do São Paulo Fashion Week, entretanto, era menos rígida do que a daqueles
do Fashion Rio. Dentro do prédio, algumas jovens comentaram que conseguiam passar
pela segurança, mesmo sem nenhum convite. Outras, do interior do estado de São
Paulo, bastante jovens, vinham acompanhadas da mãe, e tinham conseguido convites
para o lounges de algumas empresas através de amigos dos pais.
Como no Fashion Rio, o objetivo das penetras (mais bem sucedidas do que suas
“colegas” cariocas) era encontrar famosos, que poderiam ser atores, modelos ou mesmo
15
Uma dessas vezes foi para o programa Pânico na TV, que há algumas edições do SPFW costuma fazer
quadros debochando do evento e, como não recebe credenciais de imprensa (o deboche gera isso ou isso
gera o deboche?) veicula quadros curtos que incluem a filmagem de suas expulsões do evento e de suas
brigas com os seguranças.
36
estilistas, para tirar fotos e pegar autógrafos. Ao contrário do Fashion Rio, entretanto, no
SPFW a maioria dos lounges não tinha seguranças nas portas, sendo a “triagem” dos
convidados executada quase sempre por atendentes vestindos(as) com uniforme da
empresa patrocinadora. Os lounges também não possuíam as mesmas janelas de vidro
dos do evento carioca, com exceção daquele de uma gravadora de discos.
Também lá os convites para os desfiles eram cartões magnéticos e, antes de
entrar, passava-se igualmente pela roleta.
A circulação de famosos no SPFW era menor, e as festas no interior dos lounges
pareciam bem menos cobiçadas e movimentadas. Durante o dia os lounges estavam
sempre cheios, principalmente de jovens em busca dos brindes e presentes. Eles eram,
entretanto, espaço de sociabilidade distinta. No Rio, pareciam ser lugar privilegiado das
elites econômicas cariocas, ideal para ver e ser visto, beber champanhe, ser fotografado.
Em São Paulo, o espaço parecia ser mais de encontros de adolescentes e jovens, que
trocavam (na porta, já que nem todos conseguiam entrar) informações sobre como
driblar os atendentes, conseguir convites e sobre os famosos que estavam no prédio.
No São Paulo Fashion Week, os encontros de socialites, jornalistas de moda,
estilistas e “famosos” acontecia muito mais fora do edifício da Bienal, ao lado dele, no
restaurante do Museu de Arte Moderna. Nesse restaurante senhoras se reuniam,
Exem
p
lo de cartão ma
g
nético
37
discutindo desfiles que tinham assistido e programando os seguintes, entre uma garfada
de salada e um gole de champanhe.
Abaixo um esquema da disposição espacial do interior do prédio da Bienal, onde
ocorreu o evento:
1° Andar
3° Andar
4° Andar
2° Andar
38
No SPFW, assim como no evento carioca, foi possível conversar com diversas
pessoas que circulavam pelo prédio e que assistiam aos desfiles, e ouvir comentários
sobre o evento em si, sobre os estilistas que ali desfilam, assim como sobre as coleções
apresentadas naquela edição do evento. Foram observados, ao todo, doze desfiles:
quatro de moda feminina, dois de moda esportiva e moda praia, três de moda praia, dois
de moda feminina e masculina, e um de moda masculina.
No que diz respeito às entrevistas, foram realizadas com um funcionário de grife
de moda esportiva e moda praia, com dois acessores de estilistas responsáveis pela
coleção de uma grife de pret-à-porter feminino de luxo, e com um estilistas que
desfilou sua coleção de moda feminina. As conversas informais com funcionários e
assistentes também foram muito proveitosas para a obtenção de informações (nem
sempre tão oficiais) sobre as coleções e as marcas.
Em razão da empatia desenvolvida com um dos estilistas entrevistados, um
gaúcho há alguns anos estabelecido em São Paulo, foi possível assistir a preparação de
seu desfile, nos bastidores do evento. As impressões a respeito dessa experiência de
pesquisa, redigidas em diário de campo, versam sobre a importância do desfile de moda
e da participação no evento para as marcas brasileiras:
Recebi um presente inesperado e honroso: uma pulseira de papel que as grifes recebem
da organização do SPFW para distribuir para seus funcionários. A pulseira é um
convite. Ela dá acesso aos bastidores do São Paulo Fashion Week, e permite que seu
portador circule e permaneça nos camarins do desfile.
Graças ao bracelete mágico, acompanhei um dia inteiro de trabalho nos bastidores dos
desfiles, observando e fotografando as atividades de assistentes, costureiras, modelos e
cabeleireiros nas horas que antecedem o grande momento do desfile. Trabalham ali
cinco costureiras, duas passadeiras, dois assistentes homens e três assistentes mulheres.
As modelos chegam por volta das dez horas da manhã, quando é feita a primeira prova.
As roupas desfiladas são vestidas nas modelos, e em seus corpos são feitos ajustes:
cortes, costuras desmanchadas, costuras feitas, costuras refeitas. Em alguns momentos
há três ou quatro pares de mãos direcionados para apenas um corpo e uma peça de
roupa.
Pulseira de acesso ao camari
m
39
Depois de fazer a prova e os retoques, cada modelo desfila rapidamente, para que o
caimento da peça seja verificado durante a caminhada. A seguir são fotografadas
fotógrafa que trabalha para o estilista, e despem-se novamente. Elas vão para a sala ao
lado, para a maquiagem e a produção de cabelos. O processo é demorado, e muitas
vezes também há vários pares de mãos trabalhando sobre a mesma manequim.
Ao todo, foram oito horas de trabalho contínuo, e sem que qualquer um dos
funcionários deixasse o ambiente do camarim. Eu mesma, provavelmente já
constrangida por minha inutilidade e contagiada pela produtividade de todos na sala, lá
pelas tantas me percebi sentada no chão
16
a costurar meias enquanto batia papo com os
assistentes. Cada parte do processo ali realizado envolve tempo, e o tempo é contado.
Assim que maquiagem e arrumação de cabelos são terminadas, minutos antes do início
do desfile, as modelos são definitivamente vestidas pelos assistentes.
Após as horas divididas com o estilista e seus funcionários no camarim, horas tensas
que precedem os poucos e definidores minutos do desfile, estava a tal ponto envolvida
no processo que torcia, mesmo sem querer, pelo êxito daqueles com os quais antes
jamais tivera intimidade alguma. Era uma situação limite, possivelmente semelhante
aos momentos que antecedem o desfile de uma escola de samba, um jogo importante
para uma equipe de futebol, a estréia de uma peça de treatro, ou quem sabe até uma
defesa de tese: meses de trabalho e investimento fisico e emocional prestes a serem
postos à prova.
Não tenho dúvidas de que foi esse o desfile que menos teve minha atenção. Meu estado
de espírito tinha sido contagiado pela preocupação e pela tensão das pessoas e do
momento. Estava eu também ansiosa a espera do resultado, de olhos fixos nos olhos do
público, analisando cada pequena reação. E tudo isso estrategicamente posicionada.
Porque se em todos os desfiles que assisti meu lugar era nos fundos, longe dos VIPs, ou
ainda mais frequentemente de pé (o que era péssimo para o conforto mas que acabou,
sem que pudesse prever, me possibilitando fazer belas fotografias), nesse desfile cujos
bastidores tinha acompanhado meu convite era especial: terceira, com direito a papelada
de divulgação e presentinho.
Assim, tão bem posicionada, tinha meu olhar alinhado diretamente com o de uma
importante jornalista de moda com a qual cruzara diversas vezes nessa vereda, entre Rio
e São Paulo, pela moda espetáculo. Já havia sido alertada que a aprovação dela era
definidora.
A expressão de seu rosto, por trás de enormes óculos escuros (e eles fazem parte do
dress code dos críticos de moda, mesmo no ambiente fechado e pouco iluminado do
desfile) não era fácil de ser decifrada. Lá pelas tantas, entretanto, ela abaixa levemente
os óculos para olhar melhor o tecido de uma saia. Com os óculos na ponta do nariz,
rosto levemente inclinado para a direita, franze o cenho e esboça um sorriso. E eu vibro
de alegria.
No final do desfile sigo a risca o que me havia pedido o estilista quando o entrevistei:
presto muita atenção no que diz a letra da última música, entoada na voz de Maria
Betânia. Incomodado com críticas que recebera no passado, críticas essas que diziam
ser sua moda “pouco abrasileirada”, o estilista faz de sua coleção de 2005 uma espécie
de protesto. Ele diz tentar através dela responder as críticas, trazendo elementos
segundo ele “definidores de brasilidade”, como sua moderna estampa op art feita com
formas inspiradas numa vista aérea da ala das baianas de uma escola de samba. Passada
a expectativa e a tensão as quais eu tinha me entregado durante o desfile, observo os
aplausos de pé. E ouvindo atentamente a letra da música de fechamento, não consigo
conter o choro:
16
A fotografia que abre esse capítulo foi feita exatamente nesse momento: ela é meu ponto de vista do
lugar no instante em que costuro meias nos bastidores do desfile.
40
Eu brasileiro confesso / minha culpa meu pecado
meu sonho desesperado / meu bem guardado segredo / minha aflição
eu brasileiro confesso / minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia / tropical melancolia / negra solidão
aqui é o fim do mundo / aqui é o fim do mundo / aqui é o fim do mundo / aqui o
terceiro mundo
pede a benção e vai dormir entre cascatas, palmeiras,
araçás e bananeiras / ao canto da juriti
aqui meu pânico e glória / aqui meu laço e cadeia
conheço bem minha história / começa na lua cheia / e termina antes do fim.
Fotografias dos bastidores do desfile.
SPFW
,
j
ulho de 2005.
41
Fotografias dos bastidores do desfile.
SPFW
,
j
ulho de 2005.
42
Fotografias dos bastidores do desfile.
SPFW
,
j
ulho de 2005.
43
A experiência de participar dos bastidores de um desfile de um grande evento da
moda espetáculo foi reveladora da tensão vivida naquele momento pelo estilista e seus
funcionários, profissionais de moda. Uma boa apresentação da coleção, seguida de uma
boa avaliação por parte dos críticos e jornalistas, pode definir as vendas e, igualmente
ser decisiva para a permanência da marca no evento na estação seguinte.
Bom Retiro Fashion. São Paulo, 2005:
Estrategicamente agendado para os mesmos dias da Feira Nacional da Indústria
Têxtil (FENIT), aconteceu em São Paulo, entre 20 e 23 de junho, o I Bom Retiro
Fashion. Organizado pela Câmara dos Dirigentes Lojistas do Bom Retiro, o evento
tinha com objetivo reunir compradores e mostrar as coleções de algumas lojas do bairro.
O bairro do Bom Retiro é tradicionalmente um local de lojistas de atacado e
varejo, especializado na confecção, principalmente de moda feminina. Ali moda ali
vendida, ao contrário daquela das passarelas, é uma moda popular.
Desde 1970 a imigração coreana vem abrindo lojas na região e, de acordo com o
CDL, atualmente mais de 70% dos lojistas instalados no bairro são coreanos ou
descendentes de imigrantes coreanos. Antes dos coreanos, entretanto, como mostra
Bresser (2001), o bairro é marcado pela presença de imigrantes italianos e judeus, já
desde o fim do século XIX mostrando sua vocação para o comércio têxtil.
Atualmente, todavia, são os orientais que dominam a paisagem do Bom Retiro.
A presença dos coreanos é visível em alguns letreiros e cartazes de lojas e nas
associações de bairro espalhadas pelas ruas principais do Bom Retiro. Tendo o evento
acontecido no mês de junho, na Rua José Paulino, uma das que abriga maior número de
44
lojas de confecção, uma enorme faixa que ia de um lado a outro da rua avisava sobre a
“festa junina coreana”.
O evento do Bom Retiro foi realizado ao ar livre, na Rua Carmo Cintra, entre
José Paulino e Aymorés. O evento movimentou todo o comércio da região. Vinte e seis
lojas desfilaram suas coleções. Os desfiles aconteciam a cada duas horas, das dez da
manhã até as duas da tarde, repetindo-se os mesmos desfiles no dia seguinte, mas em
horários diferentes.
Havia uma grande aglomeração de pessoas assistindo os desfiles, cerca de duas
mil segundo o jornal O Estado de São Paulo do dia seguinte. Junto à passarela havia um
local fechado, com cerca de 50 cadeiras, onde só se poderia entrar com convite.
Também na “baixa-moda
17
” há, portanto, a figura do VIP. Segundo a gerente de uma
das lojas que desfilava essa área restrita era apenas para grandes compradores
convidados e “celebridades”. Ainda que nenhuma “celebridade” tenha sido vista,
rapazes que assistiam ao desfile, escorados na vitrine de uma loja, garantiam que no dia
anterior tinham visto determinada atriz de uma novela juvenil, outra de reality show e
uma terceira, cantora e dançarina de um grupo de axé music.
As roupas apresentadas nos desfiles eram bastante simples, jeans, camisetas,
roupas de malha, e alguns vestidos de festa. O evento em si, mais do que as roupas, é
que parecia ser a grande atração, e uma festa ao ar livre, capaz de mobilizar, pelas mais
distintas razões, todo o tipo de público.
17
No caso, o comércio popular de vestuário.
45
1. 3 - Une carte de visite s’il vous plait: pelas veredas da moda business
As feiras de negócios de moda e salões da indústria têxtil foram outros eventos
cuja observação é parte fundamental da pesquisa realizada. Nessas feiras, grandes
indústrias e confecções de grande, médio e pequeno porte divulgam seus produtos para
o mercado de moda. São nelas também que se realizam, segundo donos de confecções, a
maioria dos contatos visando negócios de exportação.
Além da observação, estar nas feiras possibilitou o contato com empresários e
funcionários de confecções, para saber um pouco mais sobre essa moda brasileira que é,
ainda que em pequenas quantidades, exportada. Convém destacar que a maioria dos
stands das feiras não representava, ao contrário dos eventos SPFW e Fashion Rio, o
setor da alta moda e do pret-à-porter de luxo.
As conversas com compradores estrangeiros trouxeram material rico para a
análise, possibilitando verificar quais tipos de roupa são preferencialmente negociadas
por esses compradores que, conhecendo os consumidores em seus países de origem,
puderam contar um pouco escolhas de consumo que ali são feitas quando o assunto é
roupa brasileira.
A observação realizada em três feiras têxteis francesas, em Paris, no meses de
setembro e outubro de 2005, também foram têm objetivo semelhante: compreender
como a moda brasileira se apresentou na França, naquele momento, e quais eram os
elementos postos em destaque para atrair o consumidor estrangeiro para o produto
brasileiro de vestuário.
A observação das feiras francesas possibilitou, aliás, contato com valiosas
informações sobre tendências mais gerais da moda internacional daquele período,
46
essenciais para contextualizar a maior visibilidade da moda brasileira no mercado
internacional.
Fashion Business. Rio de Janeiro, 2005:
O Fashion Business é uma bolsa de negócios que acontece paralelamente ao
Fashion Rio. Em junho de 2005 estava acontecendo a sexta edição do evento. Ao
contrário do Fashion Rio, o Fashion Business, por ser uma feira, possui um sistema de
inscrição e ingresso unificados. A entrada é exclusiva para compradores ou pessoas que
trabalham na área da indústria têxtil. Os convites são enviados para a residência do
visitante. No dia de sua chegada ao evento ele deve apresentá-los, e após inscrever-se,
recebe uma única credencial que permitirá sua entrada em todos os dias do evento.
O evento aconteceu durante quatro dias e, segundo estimativa da organização,
até a tarde do último dia já tinha recebido cerca de 7 mil visitantes. O “Fashion
Business verão 2006” abrigou quarenta e dois expositores, fabricantes e grandes lojistas,
de diferentes estados brasileiros, alguns deles também apresentando suas coleções nos
desfiles oficiais do Fashion Rio. Algumas coleções divulgadas no evento de moda
Credencial para
entrada no evento
47
espetáculo eram, portanto, vendidas para multimarcas e distribuidores internacionais no
evento de moda business.
Também havia um setor dedicado aos novos criadores, com sete expositores, um
setor para produtores do estado do Rio de Janeiro, e um setor para pólos
18
regionais.
Cabe ressaltar que quase todos os expositores participavam, em suas regiões, de
projetos promovidos por uma entidade que fomenta o desenvolvimento de micro e
pequenas empresas no Brasil.
Esses projetos geralmente acontecem através da inserção de estilistas ou
designers em comunidades que já produzem artesanato, para “aprimorar”, “atualizar” ou
tornar mais comercial sua produção. A partir da percepção da importante atuação que
têm esses “mediadores”, alguns consultores da instituição, atuantes no campo da
moda
19
, foram entrevistados.
Além disso, foi possível conversar com muitos compradores estrangeiros no
ambiente da feira.
FENIT. São Paulo, 2005.
Aconteceu entre os dias 20 e 23 de junho, no Parque de Exposições do Anhembi,
em São Paulo, a 58ª edição da Feira Nacional da Indústria Têxtil. Essa edição da feira,
18
Algumas entidades estaduais e nacionais de caráter privado e governamental, em conjunto, criam
áreas em determidadas regiões dos estados onde há a predominância de uma atividade ( por exemplo,
malhas na Serra Gaúcha), os pólos. Assim sendo, em torno dessa área gravitam universidades, centros
tecnológicos e fornecedores de materia-prima para as empresas fabricantes que se localizam na
região. Tais entidades adotam práticas de fomento ao desenvolvimento do setor desenvolvido no “pólo”,
criando eventos que apoiem as empresas na participação de feiras comerciais tanto nacionais como
internacionais, capacitação em gestão, capacitação técnica e tecnológica, articulações com bancos para
facilitar empréstimos para aquisição de máquinas, consultoria nas áreas financeira, mercadológica,
produtiva, administrativa e design.
19
A instituição desenvolve projetos em muitos setores, como decoração, artesanato, agricultura, entre
outros.
48
que tinha como slogan “Costurando a moda com História”, contava esse ano com a
direção artística de Paulo Borges (organizador do São Paulo Fashion Week).
O centro de eventos que abrigava a feira era um enorme pavilhão de cerca de
70.000 m2. Devido a altura do pé-direito, tinha-se a impressão de estar em uma feira a
céu aberto. Dentro do pavilhão, cerca de quinhentos estandes de expositores, de
dezessete estados brasileiros, estavam divididos em sete corredores verticais e treze
horizontais. No centro do pavilhão havia um grande espaço de convivência com
poltronas cor-de-laranja e azuis (nas cores do logo do evento) e, ao fundo, uma praça de
alimentação com cinco tipos diferentes de restaurantes.
Visitar a FENIT foi uma experiência especialmente rica para conhecer um pouco
mais sobre a enorme quantidade e diversidade de setores envolvidos na indústria da
moda no Brasil. Apenas estandes de empresas especializadas em máquinas e matéria
prima para a indústria têxtil eram vinte e nove. Esses estandes industriais eram
totalmente fechados e, dentro deles, além do showroom da empresa havia um ambiente
confortável com sofás e café para os clientes.
Também havia uma série de estandes de empresas especializadas em um produto
que parece ser muito valioso no mundo da produção de moda: informação. Tais
empresas vendiam na feira catálogos, livros, assinaturas de revistas especializadas e
serviços de assessoramento.
Os outros setores da feira estavam divididos em “infantil”, “masculino”,
“feminino”, “jeansweare”, “moda praia/íntima/fitness” e “acessórios”. O setor dedicado
a moda praia era bastante grande, e um dos mais movimentados.
Na feira estava montada uma única sala de desfiles. Lá aconteceram apenas dois
desfiles, um no dia 21 de junho e outro no dia 23 de junho. Ambos os desfiles eram
49
coletivos, ou seja, diversas marcas apresentavam seus modelos no mesmo desfile. O
primeiro trazia fabricantes do estado de Goiás e, o segundo, era de jovens criadores.
Salon du Prêt-à-Porter. Paris, 2005:
O Salon do Prêt-à-Porter acontece semestralmente em um grande centro de
convenções e exposições localizado em uma das portas de Paris. Ele reúne 1.500
marcas expositoras, sendo mais da metade delas não-francesas. O espaço físico de três
andares é repartido em vários setores, mas, como já diz o seu nome, ele é uma feira de
negócios de fabricantes de roupas prontas, confecções. Não há, como na FENIT,
indústria têxil e confecção convivendo no mesmo espaço.
A disposição dos “setores” da feira reproduzia, em grande medida, a lógica de
uma loja de departamentos, com seus muitos setores dividos por sexo e por “estilo”:
mais esportivos, mais clássicos, roupas de festa, acessórios. Na feira, cinco empresas
brasileiras de moda expunham seus produtos.
Convite que dá acesso a feira
50
Salon Première Vision Pluriel. Paris, 2005:
Essa segunda feira, ao contrário da primeira, não era de confecção, e sim um
salão da indústria têxtil. Ela é composta, na verdade, por cinco salões: Premiere Vision
(salão de tecidos), Expofil (salão de fios e fibras têxteis), Indigo (salão de estampas e
criação de desenhos), Mod’Amont (salão de acessórios têxteis:fivelas, botões, metais,
etc), e salão Le Cuir à Paris (salão de couros e peles).
Sendo composta por inúmeros outros salões, portanto, ela é pelo menos cinco
veses maior do que a Pret-a-Porter Paris. As empresas brasileiras eram cinco, três no
setor de tecidos Denim, outra em tecidos de lã e uma quinta em malhas. Os estandes
eram todos muito fechados, a semelhança dos estandes da indústria têxtil na FENIT.
Salon Texworld. Paris, 2005:
O salão Texworld foi o único gratuito, localizado no centro de convenções de La
Defense. Na feira havia um amplo espaço dedicado ao Brasil. Já na entrada, a decoração
era feita com enormes recipientes de vidro transparente recheados de maçãs verdes e
flores amarelas. Junto à decoração, também havia o aviso de que o Brasil era o
convidado de honra daquela edição da feira, como já o fora na edição de março anterior.
Convites que davam
acesso aos setores
da feira
51
Os estandes das indústrias têxteis brasileiras ficavam espalhados em dois
andares e, embora fechados, na porta deles eram distribuídos panfletos explicativos e
semi-padronizados, compostos por uma parte exclusiva de informações sobre a empresa
e outra comum, com informações sobre o Brasil.
Os setores mais siginificativos da feira eram, entretando, aqueles dedicados as
tendências, dessa vez apenas compostos por “tendências brasileiras”, como já estava
anunciado no programa da feira e em seu mapa.
O primeiro, no hall C, tinha como pano de fundo um painel onde se podia ler
“Culture, ethnicity, enviroment”. O painel multicolorido, repleto de pinturas, era divido
em três partes. Na parte “Culture” via-se desenhos de um pandeiro, de pessoas fazendo
capoeira, um jogador de futebol, flores, serpentinas, um desenho que remetia ao bumba-
meu-boi, acompanhados de borboletas e, no canto direito, um livro aberto, uma
estrutura de DNA e um microscópio.
Na parte definida como “Ethnicity” via-se desenhos também bastante coloridos
de duas mulheres negras, alguns índios de cocar exibindo pinturas corporais, um
homem branco de terno, algumas araras, uma criança correndo, uma japonesa de
quimono e coque com palitinhos, uma mulher com roupa de baiana e uma dupla de
homens, um mais gordo e outro mais magro, lança em punho, com roupas de espanhóis.
Já na área denominada “Enviroment” havia folhagens, flores e cajus, além de um
enorme cristo redendor e desenhos que fazia alusão as calçadas de Copacabana.
Junto ao imenso painel uma atendente de tailleur verde musco e lenço amarelo,
francesa, distribuía os folhetos “Le Brésil pour tout le monde” e “Brésil, tant de choses
à connaître”, da Associação Brasileira de Indústria Têxtil e do governo do Brasil.
Também ali havia uma arara-expositora onde retalhos de tecidos brasileiros ficavam
expostos ao olhar e ao toque dos que passavam.
52
No hall A, em outro andar, eram apresentadas outras “tendências brasileiras”.
Dessa vez o painel, com alguns dos mesmos desenhos (apenas os maiores), era em preto
e branco, feito com lã preta, formando apenas os contornos dos desenhos, sobre um
tecido branco e rústico. Também ali uma atendente de tailleur verde e lenço amarelo
distribuia os mesmos panfletos. Em vez dos tecidos, dessa vez, havia
bonecos/manequins de plástico vestindo roupas criadas, com os tecidos das marcas
brasileiras que participavam da feira, por nove estilistas brasileiros.
1.5- Année du Brésil Oblige: produtos brasileiros em Paris
Foram realizadas observações em uma série de lojas francesas que revedem
produtos brasileiros, entre os de outras procedências, e em duas lojas “brasileiras”,
dedicadas exclusivamente aos produtos brasileiros. Dentre as lojas francesas, observei
duas grandes e tradicionais lojas de departamentos parisienses, em especial os coins
20
que revendem uma marca brasileira de jeans, uma marca brasileira de chinelos, uma
marca de cosméticos brasileiros e as jóias de uma improtante joalheria brasileira.
Foi possível conversar com as vendedoras dos coins, mulheres e francesas, sobre
os produtos que vendiam, sobre o Brasil, e sobre suas impressões a respeito da venda
desses produtos na França.
No que concerne as lojas “brasileiras”, duas foram observadas. A primeira
delas, situada em região muito turística de Paris, é uma pequena loja onde são vendidos
diferentes tipos de produtos, todos de procedência e/ou temática brasileira. Alguns dos
20
Nessas grandes lojas de departamento o coin é o espaço exclusivo de determinada marca, geralmente
com funcionários próprios que atendem apenas ali, e um ambiente que, mesmo que pequeno e geralmente
não separado por paredes do restante da loja, tem sua decoração própria funcionando como uma espécie
de separação simbólica. O coin não é o equivalente a um setor da loja de departamentos. Na realidade ele
está localizado dentro de um setor como, por exemplo, o coin da joalheria brasileira, que faz parte do
setor luxo da loja de departamentos, ou o coin da marca brasileira de jeanswear, que faz parte do setor
feminino/esportivo da loja de departamentos.
53
produtos ali vendidos são gêneros alimentícios, como feijão preto, farofa temperada,
goiabadas, enlatados, pães de queijo congelados e cachaça.
Outros produtos revendidos na loja eram os de vesstuário e acessórios de moda.
Havia grande quantidade de maiôs e biquínis, a maioria deles nas cores da bandeira
nacional ou bastante enfeitados com estampas e bordados. As calças jeans também eram
ali vendidas, quase todas feitas em tecido jeans com elastano, conhecidas por aqui como
calças jeans strech.
Na loja também eram vendidas camisetas pintadas e bordadas, ou com estampas
impressas, com motivos que sempre remetiam ao Brasil. Os acessórios de moda
expostos na loja eram colares, pulseiras e brincos artesanais, e bolsas estampadas com a
bandeira do Brasil. Além desses objetos indumentários, também havia produtos de
decoração brasileiros, alguns feitos com nossas pedras nacionais, e outros com motivos
religiosos e místicos.
A segunda loja era bastante diferente da primeira. Localizada em uma região
boêmia de Paris, região essa repleta de bares e estabelecimentos noturnos freqüentados
pela juventude descolada da cidade, era espacialmente bastante maior do que a primeira
descrita. Uma grande parte do ambiente era dedicado a produtos de decoração, a
maioria deles de designers brasileiros famosos. Não havia, ao contrário da outra loja,
gêneros alimentícios à venda.
Em termos de vestuário e acessórios, os produtos eram marcas conhecidas e
caras. Havia calças jeans, camisetas e moda praia, mas igualmente outros tipos de peças
de roupas, como vestidos, camisas e casacos. Também havia uma grande quantidade de
acessórios, e a maioria das bijuterias era artesanal. Ainda que certas bolsas fossem
estampadas com a bandeira do Brasil, nem todas o eram. Algumas eram de materiais
54
reciclados (como, por exemplo, lona de barraca e pneus), fuxicos e retalhos. Na entrada
da loja, diversos flyers de festas brasileiras estavam expostos.
Em ambas, conversando com os vendedores, foi possível conhecer um pouco
sobre os produtos vendidos: quais eram os mais vendidos, quais eram as marcas mais
procuradas (se o eram), que tipo de clientela freqüentava o lugar, quem comprava, entre
outros dados.
Fora do ambiente das lojas, mas ainda no circuito de distribuição e produção de
moda brasileira na França, foi realizada entrevista com o distribuidor para a Europa de
uma conhecida marca brasileira de jeans, e também com dois distribuidores de moda
brasileira (de diferentes marcas). As entrevistas foram realizadas em seus locais de
trabalho e também versavam sobre temáticas semelhantes àquelas abordadas junto aos
vendedores.
Por fim, também foram feitas entrevistas com duas consultoras de moda
francesas. Com uma delas, fundadora de um dos primeiros bureaux de estilo
21
do
mundo, foram realizadas três entrevistas, abordando sua experiência de trabalho no
Brasil nos anos sessenta, setenta e oitenta (prestando consultorias para grandes
empresas têxteis) e suas opiniões sobre o atual estado e possível destino da moda
brasileira atual.
A entrevistada, uma senhora de mais de oitenta anos, foi figura fundamental na
história da moda da segunda metade do século XX. Tendo fundado, na década de
cinqüenta, seu bureau de estilo, foi uma das resposáveis por modificações estruturais no
campo da moda, trazendo para a moda industrial as noções de tendência e estilo.
Ademais, foram incontáveis as conversas informais em sua casa, versando sobre moda
brasileira e moda em geral, assim como sobre sua trajetória profissional e pessoal.
21
Um bureau de estilo é uma empresa que fornece serviços de assessoria e/ou elabora “cadernos de
tendências”, onde agrupa elementos – de cores, formas e texturas – que estarão na moda.
55
A outra consultora entrevistada foi, há alguns anos, funcionária do mesmo
bureau de estilo, atualmente autônoma. Sua experiência de trabalho no Brasil teve início
no fim dos anos setenta, mas seu contato com a moda brasileira era mais recente.
Mantendo-se em contato com a produção brasileira, tesmunhou sobre o papel da França
no Brasil e sobre as mudanças percebidas nas últimas décadas no que concerne a
produção de moda brasileira.
1.6- Pra francês ver?
Ainda a pesquisa na França, foram entrevistados treze consumidores franceses,
contatados nas butiques especializadas em produtos brasileiros, bem como nos coins de
marcas brasileiras nas grandes lojas de departamentos em Paris. As entrevistas foram
realizadas com o objetivo de comprender suas escolhas de consumo no que concerne a
compra de produtos brasileiros, os tipos de produtos procurados e as características
elencadas por eles como definidoras do que seria percebido como “moda brasileira”. O
objetivo indireto do recolhimento de tais depoimentos, de fundamental importância para
a pesquisa, é a compreensão das idéias de brasilidade e das representações sobre Brasil
acionadas pelos consumidores franceses.
De todos os entrevistados, apenas quatro eram homens. Dois deles foram
contatados e entrevistados após terem saido dos coins, um deles no de chinelos e o outro
no da marca brasileira de jeans. O primeiro deles era engenheiro, solteiro, e tinha 34
anos. O segundo, também solteiro, era um jornalista (com formação em História) de 30
anos. Os dois moravam em Paris, e a entrevista aconteceu no ambiente da loja de
departamentos.
56
Os dois outros entrevistados homens foram contatados na loja brasileira
“descolada” e a entrevista aconteceu em um café próximo ao estabelecimento. O
primeiro deles, de 40 anos, comprou na loja uma bolsa e uma camiseta para presentear a
namorada e era funcionário de um banco e morava em Paris. O segundo, que morava
em uma cidade próxima a Paris, trabalhava com informática, praticava capoeira,
comprou na loja uma camisa para si próprio, e tinha 28 anos.
Das mulheres entrevistadas uma delas foi contatada no coin da joalheria
brasileira. Ela não realizou nenhuma compra, era funcionária de um laboratório de
análises clínicas, casada, mãe de três filhos adolescentes. Seu marido é advogado e a
família já esteve no Brasil. Outras duas consumidoras francesas foram entrevistadas em
conjunto, junto ao coin da marca de chinelos. As duas tinham 25 e 28 anos, e a primeira
era funcionária administrativa de uma empresa de eventos, enquanto a segunda era
psicóloga, mas trabalhava na mesma empresa de eventos. As duas eram solteiras e
moravam em Paris. Cada uma delas comprou um par de chinelos.
Junto ao coin da marca de jeans, duas mulheres foram entrevistadas. Uma
comprou calça jeans da marca, e a outra apenas olhou e fez perguntas ao vendedor. A
primeira delas era funcionária administrativa de uma indústria de produtos alimentícios
e era solteira. A segunda era funcionária de um restaurante e tinha 27 anos.
Na loja brasileira descolada foram contatadas três consumidoras, sendo as
entrevistas realizadas no mesmo café próximo. Duas delas estavam juntas, uma
comprou um maiô de marca brasileira famosa e um CD de música, e a outra uma
pulseira. A primeira delas trabalhava na área de marketing e tinha 32 anos. A segunda,
de 27 anos, era funcionária de uma galeria de arte e professora de espanhol. As duas
moravam em Paris. Já a terceira entrevistada comprou uma jaqueta jeans (bastante cara)
57
de estilista brasileira conhecida, tinha 32 anos e trabalhava em um museu de arte
contemporânea.
Na outra loja brasileira mais três consumidoras francesas foram contatadas,
todas mulheres. Uma delas comprou uma calça (estilo calça de capoeira), latinhas de
refrigerante (guaraná) e um saco de pães de queijos congelados. Ela tinha 26 anos, era
secretária de uma empresa de telecomunicações e iniciava o aprendizado de português-
brasileiro. Tinha namorado um músico brasileiro há algum tempo e freqüentava festas
brasileiras em Paris. A outra entrevistada era engenheira, tinha 40 anos, e comprou na
loja dois colares e uma bolsa de palha. A terceira entrevistada estava acompanhada de
seu marido, com quem não conversei porque depois de alguns minutos voltou para o
carro que deixara estacionado em frente a loja. Ela comprou uma garrafa de cachaça (e
me pediu sugestões para escolher), uma camiseta e um CD de música brasileira.
1.7- Quando o campo (também) é o arquivo.
Para a construção do capítulo da tese que diz respeito à constituição do campo
da moda no Brasil recorreu-se, de forma constante, a pesquisa em arquivo de periódicos
brasileiros. Tal pesquisa foi realizada antes da pesquisa de campo no Brasil e na França,
nos arquivos do Museu Hipólito da Costa, em Porto Alegre. Além das revistas, outros
documentos consultados para o capítulo em questão foram livros de memórias, relatos
de viajantes e romances de autores brasileiros.
Uma vez que a imprensa de moda tem papel fundante enquanto instância
legitimadora no campo da moda, o recolhimento de material veiculado nela também é
rico dado de pesquisa, e não apenas quando se trata de descrever momento histórico
precedente. Assim, foi efetuado um acompanhamento da imprensa de moda brasileira
58
dos últimos anos, através do recolhimento e catalogação de trechos que fizessem
referências discursivas a moda brasileira com conteúdos e inspirações brasileiras, assim
como aqueles que propunham o contrário: o abandono e o não-uso de tais elemtentos,
estando eles, mesmo assim, sempre referidos e elencados.
Outro filtro utilizado na seleção do material veiculado na imprensa foi a
referência a promoção e ao consumo de moda brasileira no exterior e, principalmente,
na França. Tal material, embora seja abundante em diferentes momentos, é sobretudo
significativo no período do Ano do Brasil na França, assim como nos meses anteriores e
imediatamente posteriores a ele.
Durante os dez meses de estágio de doutorado na França, foi igualmente
realizada uma pesquisa nos arquivos de periódicos de moda do Musée Galliera, museu
da moda da cidade de Paris. Através dessa pesquisa, verificou-se as aparições da moda
brasileira e do Brasil na imprensa francesa de moda nos últimos seis anos.
As revistas trabalhadas foram, principalmente, Elle (que na França é uma
publicação semanal), Vogue Paris e L’Officiel, ambas publicações mensais, sendo que
essa última tem alguns números especiais nas temporadas dos desfiles franceses,
americanos e italianos. O conteúdo das edições dos últimos seis anos de tais revistas foi
integralmente analisado, tendo sido o mesmo procedimento adotado com a publicação
especializada em moda Journal du Têxtil. Os dados ali recolhidos foram transcritos,
uma vez que na biblioteca é proibida ao usuário a fotocópia dos periódicos, assim como
a fotografia da maioria deles, não apenas por motivo de conservação do material mas
igualmente por pressão das editoras (e na mesa de cada pesquisador há, sob o vidro do
tampo, cartas das editoras à biblioteca explicitando a norma) para que as imagens das
revistas, por razão que concernem os direitos autorais, não sejam utilizadas.
59
De forma menos sistemática, foram analisadas outras publicações francesas
encontradas no arquivo, sempre que contivessem dados sobre a moda brasileira. Tais
publicações eram jornais diários, revistas de beleza e saúde, e revistas semanais de
veriedades e notícias.
O objetivo dessa pesquisa nos arquivos de publicações francesas de moda foi
verificar quais são, como e quando são feitas, nos últimos anos, as referências ao Brasil
e a moda brasileira; quais os elementos apresentados pelos periódicos como tendências
de moda (não brasileira, mas tendências gerais) para, posteriormente, comparar com os
elementos definidos como de uma “moda brasileira” e compreender no que diferem e no
que se aproximam deles.
Convém notar que os discursos, freqüentemente citados no trabalho, produzidos
nessas esferas possuem, como aponta Preciosa (2005), uma particularidade formal: o
excessivo uso de adjetivos quando se trata de descrever pessoas e objetos, bem como a
forte presença de termos em língua estrangeira, particularmente o inglês e o francês, e
misturas lingüísticas, tanto no que diz respeito aos textos da imprensa brasileiro quanto
nos da imprensa francesa de moda.
60
61
2.1- Rua do Ouvidor: pequena Paris abaixo do Equador.
O Rio de Janeiro foi, do século XIX até pelo menos meados dos anos de 1920,
quando São Paulo começa a ganhar importância, o pólo de efervescência no âmbito do
consumo de moda e vestuário do País
22
. Tal fato pode ser atribuído a, primeiramente, a
mudança da sede do governo geral para a cidade, em 1763, com a finalidade de
aproximar o centro administrativo colonial das zonas de mineração e das regiões centro-
oeste e sul. Se a urbanização da cidade começa a tomar forma nesse período, vai se
intensificar ainda mais com a chegada da corte portuguesa em 1808. As influências
européias no Rio de Janeiro certamente se devem a vinda da Missão Artística Francesa,
patrocinada por Dom João VI, em 1816, que traz para a cidade pintores, músicos,
arquitetos e outros artistas europeus. Assim, presença da corte na cidade, e a Missão
Artística, provocam grandes transformações em seu cotidiano e em sua vida cultural.
A inglesa Maria Graham (1956, p.187), em seu relato de viagem ao Brasil, comenta
que, em 1822 “[...] a cidade do Rio é uma cidade mais européia do que Bahia ou
Pernambuco.” Outro viajante, Herman Burmeinster (1952, p.42) relata, sobre a cidade
do Rio de Janeiro em 1850:
“O Rio de Janeiro possui caráter inteiramente europeu e seria de todo semelhante às
primeiras cidades da Europa do sul, não fosse aquele grande número de rostos pretos,
morenos e amarelos, que logo lembra o exotismo ao visitante. [...] Os elementos da
população branca não se distinguem mais, pelo seu aspecto externo, do europeu, pois
observam tão rigorosamente a moda em vigor como os habitantes de uma capital do
Velho Mundo.”
Em meados de 1820 começam a ser abertas lojas francesas de moda no Rio de
Janeiro. A Rua do Ouvidor, que é assim denominada desde 1780, já abrigava, antes dos
22
Embora diversos historiadores afirmem isso, é necessário um estudo mais aprofundado sobre o assunto.
Não é o objetivo deste trabalho, mas, pelo que foi encontrado em pesquisas superficiais, podem ser
aventadas hipóteses que também necessitariam ser verificadas tais como a de que a influência francesa se
fazia diretamente nas grandes cidades do Brasil, passando pelo Rio de Janeiro secundariamente ou apenas
em parte, como seria o caso de Porto Alegre e Pelotas, no Sul, durante o “ciclo do charque”, ou Manaus,
no Norte, durante o “ciclo da borracha”. No momento, fica apenas como indagação especulativa.
62
comerciantes franceses por lá se instalarem, alguns estabelecimentos portugueses e
ingleses, dedicados ao comércio de louças, tecidos, e outros gêneros importados.
Joaquim Manoel de Macedo (1988, p.58), relata a chegada dos franceses, ou
melhor, das francesas, e de seu estabelecimento nesta rua:
“De súbito, e como de plano, mas sem que o tivessem consertado, pronunciou-se, de
1821 a 1822, a hégira das modistas francesas para a Rua do Ouvidor. [...] O fato é que
no fim de três ou quatro anos quem queria entender-se com alguma modista francesa ia
à Rua do Ouvidor; que entrou em sua época de florescimento, de encantamento, de
espavento e de esbanjamento, marcada pela hégira, como a era de Maomé, o inventor
das houris e do paraíso endemoninhado por todas as tentações imagináveis. [...] E após
as modistas, à sombra das francesas vieram quase logo franceses abrir, na mesma Rua
do Ouvidor; lojas de fazendas e de objetos de modas, para senhoras e homens, de
perfumarias, de cabeleireiros, etc.”
As lojas francesas da Rua do Ouvidor ofereciam às senhoras tecidos e figurinos
de Paris. Para tanto, cada uma delas tinha ao menos dois sócios, um para atender a
clientela e manter as oficinas de costura, e outro para viajar para Europa (Durand, 1987,
p. 64) para atualizar-se nas novidades da moda e repor estoques.
Ainda que a partir de 1840 já começassem a surgir as primeiras tecelagens de
algodão no Brasil, sua produção era quase exclusivamente dedicada a tecidos pouco
refinados, até mesmo grosseiros, direcionada à sacaria e vestuário para os escravos. A
Rua do Ouvidor não tinha, portanto, qualquer concorrência, e era sempre a eleita para as
compras de moda. A predileção pelas roupas francesas e pela rua são também descritas
por Macedo (1988, p.63), que explica o afrancesamento dos gostos das senhoras, não
apenas no âmbito da moda, mas a partir dele:
“As senhoras fluminenses entusiasmaram-se pela Rua do Ouvidor, e foram
intransigentes na exclusiva adoção da tesoura francesa. Nem uma desde 1822 se prestou
mais a ir a saraus, a casamentos, a batizados, a festas e reuniões sem levar vestido
cortado e feito por modista francesa da Rua do Ouvidor. [...] A rainha Moda de Paris
firmou seu trono na Rua do Ouvidor. [...] Como é sabido, cuidava-se ainda então muito
pouco da instrução do sexo feminino: pois bem; algumas senhoras fluminenses deram-
se logo com interesse e gosto ao estudo da língua francesa. [...] Quase tudo se foi
afrancesando.”
63
Em “Diva”, José de Alencar comenta, sobre a personagem Emília, que
“encomendava ela à sua modista algum elegante vestido, ou comprava qualquer
novidade parisiense recentemente chegada.”
Burmeister (1988, p.53) já havia reparado que os hábitos de compras das
senhoras da “sociedade” carioca seguiam modelos franceses, e comenta que “Todos se
esforçam em imitar, quando possível, a moda européia”. A Rua do Ouvidor, além de ser
o local privilegiado da moda da época, também era lugar de passeios, encontros e
sociabilidade. Pinho (1959, p.251), em sua obra sobre os salões do Segundo Reinado, já
então descreve a Rua do Ouvidor como praticamente um “salão a céu aberto”, sem
“convites, sem horários, sem etiquetas”, onde o movimento acotovelante e urbano
possibilitaria uma espécie de “refúgio de uma sociedade saturada, embriagada de
natureza.”
Também Machado de Assis, no conto “Capítulo dos Chapéus” (1950, p.115),
descreve em um pequeno parágrafo a grande agitação que era a Rua do Ouvidor:
“Chegaram à rua do Ouvidor. Era pouco mais de meio dia. Muita gente, andando ou
parada, o movimento de costume. Marianna sentiu-se um pouco atordoada, como
sempre lhe acontecia. A uniformidade e a placidez, que eram o fundo do seu carácter e
da sua vida, receberam d’aquella agitação os repellões do costume. Ella mal podia
andar por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos, tal era a confusão.”
O reinado da “Rainha da Moda” não é, de forma alguma, breve ou efêmero,
sendo mesmo centenário. Tomou para governar ao seu lado a Av. Rio Branco (antes
conhecida como Avenida Central), e outras ruas próximas, mas manteve seu domínio
até a primeira metade do século XX.
Uma das principais casas de moda da Rua do Ouvidor era a Notre Dame de
Paris. Ela não passa despercebida por Macedo:
64
A loja de modas Notre Dame de Paris, que começou com uma porta e duas vidraças na
antiga casa do Passos, tem hoje doze (contadas as portas e as vidraças) abrindo-se para
a Rua do Ouvidor; as casinhas térreas transformaram-se em vistoso sobrado, cuja
frontaria é iluminada na linha superior por numerosa série de bicos de gás. [...] A loja
Notre Dame de Paris, bem que não seja exclusivamente de fazendas e de modas
francesas para senhoras, é, contudo, principalmente atraidora do belo sexo, e representa
no seu imenso mundo capital avultadíssimo, que deve vencer juros pagos pelos
consumidores e consumidoras; além disso, a loja contém e alimenta numerosa
população de empregados de escritório, de caixeiros às dezenas, de modistas e
costureiras em número elevado, de serventes e criados todos vencendo honorários e
aluguéis.
(1988, p.108)
A mesma Notre Dame de Paris, fundada em 1847, segue de portas abertas por
muitas décadas após a descrição de Macedo. Em 1929, anuncia na Revista O Cruzeiro o
recebimento de Manteux. E ainda em novembro de 1952, segue anunciando na mesma
revista O Cruzeiro, em anúncio de página inteira, onde diz ser “A Catedral da Moda”, e
o “grande Magazin carioca”.
A hegemonia dos modelos franceses de elegância, entretanto, reinam ainda por
muito mais tempo, para além da dinastia da Rua do Ouvidor. Em 1929 a maioria dos
anúncios de estabelecimentos de moda e vestuário na Revista Cruzeiro, fazem
Revista O Cruzeiro, 1929 Revista O Cruzeiro, 1952
65
referências à França, seja através do nome dos estabelecimentos, ou através das
descrições de peças e de sua procedência.
Dentre as casas que possuem nomes obviamente referidos à França (e mais
especificamente a Paris), há a “Au Palais Royal”, situada na Rua do Ouvidor, que
oferece “Modas e Confecções para Senhoras”, a “Parc Royal”, “um templo onde a
belleza se requinta, a graça se sublima e a distinção se consagra”, e a “Chapelaria
Paris”, que anuncia oferecer para a Miss Brasil 1929 um de seus modelos de chapéu.
Revista O Cruzeiro, 1929
66
Os estabelecimentos “Elegâncias” e “A internacional” chamam atenção por
nomear, em seus anúncios, algumas casas de alta-costura francesas, das quais teriam
acabado de receber mercadorias. A “Elegâncias” recebia modelos de diversas casas,
entre elas as ainda muito conhecidas Patou
23
e Lanvin
24
.
Interpretando esse mesmo anúncio da loja “Elegâncias”, Sevcenko
comenta que “As “elegâncias” necessarimente deveriam ser francesas. Note-se o
gigantismo da sombra projetada insinua o acréscimo simbólico com que as roupas e
adereços de luxo fariam qualquer criatura “crescer” desproporcionalmente aos olhos da
sociedade” (1998, p.535).
Outro estabelecimento comercial, denominado “A internacional”, mas
certamente não menos desprovido das tais “elegâncias francesas”, anuncia o
23
Patou nasce em 1880, e se estabelece no mundo da moda logo após a Segunda Guerra Mundial. Torna-
se particularmente conhecido pela simplicidade de seus modelos, mais funcionais e “limpo”, sendo
considerado um dos precursores da “roupa esporte”.
24
Lanvin se estabelece na alta costura (depois de alguns anos produzindo guarnições para chapéus) por
volta de 1901. Tem como especialidade trajes refinados, ricos em ornamentos e bordados. Em 1925 seu
atelier já emprega cerca de oitocentos empregados (Baudot, 2002)
Revista O Cruzeiro, 1929
67
recebimento de “riquíssimo sortimentos para inverno (...) importados directamente das
melhores casas de Paris”, exemplificando com “Rodier” e “Ducharme”.
Já no setor da costura “feita em casa”, os modelos de elegância importados da
França também eram centrais. As colunas sociais de jornais e revista, por exemplo,
divulgando em detalhes as roupas – evidentemente francesas – das elegantes da alta
sociedade, promoviam a difusão dessas “modas parisienses”. Em anúncio de 1892, a
fábrica de máquinas de costura Singer, veicula no Rio Grande do Sul um anúncio que
compara sua produção de máquinhas à quantidade de ferro utilizado no moderno
monumento que é a torre Eiffel, dizendo que “ 30 torres Eiffel se poder construir com o
ferro que a Companhia Fabril Singer tem transformado em machinas de costura!!!”. A
metáfora visual utilizada, entretanto, além de versar sobre o uso de “grandes
quantidades da matéria-prima ferro” e sobre a “modernidade das máquinas”, pode
igualmente ser lida tal qual referência à França que, em termos de costura e vestuário,
não tinha rival.
Revista O Cruzeiro, 1929
68
Convém notar que a alta-costura francesa, que era o modelo de todo o consumo
de vestuário das mulheres da alta sociedade brasileira, nasce por volta de 1850, através
do inglês, estabelecido em Paris, Charles Frederic Worth. O costureiro é considerado o
criador da alta-costura por ter sido o primeiro a ter uma maison, e a seguir uma série de
normas (que depois viriam a ser regulamentadas pela Chambre Syndicale), como por
exemplo apresentar desfiles periódicos de suas criações, e produzir roupas sob medida,
mas criações próprias, e não sob encomendas, como se costumava fazer com costureiras
e alfaiates.
Propaganda da Singer. O Rio Grandense, 1892. Retirado de
Pesavento, Sandra. (coord.) República Verso & Reverso.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989. p. 137.
69
O surgimento das Maisons, na França, é praticamente contemporâneo ao
surgimento dos Grands Magazins
25
, ou grandes lojas de departamentos, que vendiam
em seus setores de confecção, obviamente com um certo atraso, modelos copiados da
alta-costura.
A Casa Canadá, fundada em 1928, junto com algumas das lojas mencionadas,
foi uma das mais importantes no ramo da moda no Brasil. Começa como peleteria, e
apenas em 1944 torna-se casa de roupas femininas, sendo considerada a primeira
boutique do Brasil (Gontijo, 1987, p.123). Coordenada por Mena Fialla e Cândida
Gluzman, chegou a oferecer a clientela seis diferentes desfiles por ano.
Diversos autores (Freyre, 1997, Joffily, 1999, Durand, 1987, Gontijo, 1987, Del
Priore, 2000) mencionam a inadequação dos trajes europeus, até o início do século XX
simplesmente transportados para o Brasil sem qualquer adequação ou transformação às
“condições climáticas” do país. Essa inadequação se dava tanto em termos dos tecidos
empregados, com muita freqüência tecidos grossos e quentes, quanto em termos de
modelos: saias amplas e longas, que se arrastam pelo chão, botinhas altas, homens de
fraque, polainas e camisas de casimiras inglesas.
Gilberto Freyre chega mesmo a descrever as modas importadas como nada
ecológicas ou higiênicas, definindo seu uso como verdadeiro martírio. Diz Freyre que
“A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da França,
sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a um Brasil,
diferente no clima, da França” (1997, p.106).
25
O surgimento dos grands magazins de Paris é brilhantemento descrito por Zola em seu romance Au
Bonheur des Dames, publicado em 1883. O romance acontece entre os anos de 1864 e 1869,
correspondendo ao período em que, fora da ficção, estão sendo inauguradas as grandes lojas, como o Le
Bon Marche (1862), Le Printemps (1865) e La Samaritaine (1869).
70
O “martírio” descrito por Freyre iria atenuar-se, a partir dos anos vinte e trinta
do século XX, sem dúvidas, pelo encurtamento das saias e vestidos e pela exclusão da
obrigatoriedade do uso do espartilho nos modelos de elegância. Essa transformação, que
será abordada no subcapítulo seguinte, não ocorreu, obviamente, como adaptação de
uma moda européia aos trópicos. A modificação, estrutural para a história da moda,
aconteceu lá mesmo no Velho Continente, e só por isso acabou sendo adotada nos
trópicos.
Caricatura sobre as roupas femininas. Final do século XIX.
Retirado de Pesavento, Sandra. (coord.) República Verso &
Reverso. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989. p. 137.
71
2.2- Na paulicéia, mais influências francesas.
O furor pela moda e o comércio de vestuário, em São Paulo, chega algumas décadas
mais tarde do que no Rio de Janeiro. No século XIX, sobretudo em sua segunda metade,
a cidade começa a crescer, graças ao apogeu da economia cafeeira. Apenas no final do
século, entretanto, a elite paulistana deixa as fazendas para morar na capital. No centro
da cidade surgem algumas lojas, cafés e livrarias, ainda que mais timidamente do que o
comércio descrito do centro do Rio de Janeiro.
A Avenida Paulista é às vésperas de 1900, praticamente um conjunto chácaras.
Apenas algumas décadas depois, ela passa a abrigar as grandes casas da elite cafeeira de
São Paulo. A urbanização torna a vida cultural e social da cidade mais ativa, e a
sociedade paulistana ganha, em 1911, o Teatro Municipal, palco concertos e óperas,
mas também do desfile de modas e elegâncias das senhoras da elite paulista.
No centro da cidade, em uma região conhecida como “triângulo” (formada pelo
encontro das ruas São Bento, 15 de Novembro de Direita), por volta de 1910 são
inauguradas algumas lojas de modas, como o Mappin Store
26
e a Casa Alemã. Os
magazines, a exemplo do Rio de Janeiro, funcionam no mesmo modelo de importação
de mercadorias européias, sobretudo francesas. A região do comércio de modas vira,
também à exemplo da capital carioca, local de sociabilidade, ideal para o footing, e para
ver e ser visto.
“Casa Alemã”, em anúncio de 1929 da Revista Cruzeiro, avisa o recebimento de
nova coleção, vinda das maiores capitais européias, principalmente Paris. No anúncio,
há referência ao “luxuoso salão de chá” da loja, que é descrita como “ponto de reunião
26
Fundada em 1913, por dois irmãos ingleses, Walter John e Herbert Joseph Mappin.
(http://www.saopaulocentro.com.br/mappin/mappin.htm
, acessado em maio de 2005.)
72
chic de excelentíssimas famílias”, reforçando o já mencionado papel de lugar de
sociabilidade feminina das lojas de modas.
Na capital paulista a presença de comerciantes de outras nacionalidades além da
francesa era mais visível. Ainda assim, muitos deles faziam-se passar por franceses para
atender ao gosto da clientela. Segundo Durand (1987, p.65), muitos sírios e libaneses,
quando vendiam artigos de luxo para famílias endinheiradas, diziam ser franceses para
impressionar os clientes. Laura de Oliveira Rodrigo Octavio (1974, p.38) também
menciona, em sua biografia, a existência de grande número de costureiras italianas em
São Paulo. Estas, entretando, adicionavam a frente de seus sobrenomes italianos um
providencial “Madame”, ou mesmo afrancesavam o nome, porque a boa a autêntica
modista tinha que ser francesa.
Revista O Cruzeiro, 1929
73
Fenômeno semelhante é descrito por Saulquin (1990) a respeito das primeiras
casas da moda em Buenos Aires. Muitas costureiras italianas trabalhavam junto as
francesas, todas chamadas de “Madame”. Quando à Inglaterra, mais uma semelhança
entre as grandes cidades brasileiras e a capital argentina: os ingleses praticamente
dominavam as modas de homens, a alfaiataria ou a venda de tecidos para trajes
masculinos, mas era muito pouco valorizada no que concerne a moda feminina
(Saulquin, 1990 e Durand, 1987).
Havia em São Paulo, portanto, “Madames-modistas-francesas” das mais
variadas procedências, a exemplo das famosas Mme. Rosita e Mme. Boriska, a primeira
uruguaia, e a segunda húngara.
Apesar de já haver à disposição um comércio de tamanho e qualidade razoável,
certa parte da elite paulista viajava à Paris para vestir-se. Laura Oliveira Rodrigo
Octavio (1974, p.153) conta de seu enxoval, todo encomendado de Paris, por volta de
1917:
“Meu enxoval veio todo da Europa. [...] até panos de copa vieram, tudo marcado com
ponto de cruz; e também vieram os vestidos, inclusive o de noiva. Na lista vinha um
robe chemise couleur banane, ficamos curiosos de saber que novidade era. Realmente
era uma novidade, o primeiro vestido sem cintura marcada, todo em minúsculas pregas-
macho. Vinha outro de voile de algodão mastic. Fui ao dicionário e descobri que mastic
é massa de vidraceiro. Era no fundo um bege claro, um pouco acinzentado. [...] E o
peignoir? Era lindo, de crepe-de-china rosa, com um manto de gaze nas costas. Gostei
de tudo o que veio. [...] O vestido de noiva era de cetim grosso, com uma bonita saia
guarnecida com uma ruche do mesmo cetim na beira e recoberta por outra de filó de
seda também grosso, com pregas largas e debruadas do cetim. O corpo é que era um
pouco pesado, com fichu de filó como a segunda saia.”
Laura Rodrigo Octavio descreve nesse trecho, pontuado por palavras e
expressões francesas
27
, a novidade do vestido sem cintura marcada, provavelmente já se
27
O uso do vocabulário francês no mundo da moda é apontado por Gontijo (1987) e Freyre (1997), e cabe
ressaltar aqui que não se dá apenas nesse período descrito, sendo contemporaneamente também
freqüentemente empregado.
74
encaminhando para a tendência dos vestidos mais tubulares, que vão ter grande impacto
nos anos vinte.
A moda mais andrógina e que dá mais liberdade aos movimentos, surgida por
volta da década de vinte, é, segundo alguns autores (Perrot, 1995, Gontijo, 1987,
Baudot, 2002), fruto das mudanças no papel feminino decorrentes da Primeira Guerra
Mundial, e de um novo estilo de vida europeu, mais relacionado aos esportes e às
atividades ao ar livre. Essa nova onda da moda seria composta por uma série de
mudanças no vestuário, e, obviamente, também no modo de vida da mulher dos anos
loucos, supostamente mais livre, com maquiagem forte, fumando em público e
embalada pelo jazz.
A roupa é mais funcional, menos ornamental, cintura baixa em um conjunto tão
retilíneo que é quase como se não estivesse lá. Cabelos e saias encurtam-se, as canelas
ficam à mostra, e a barra das saias chega quase a roçar os joelhos. A silhueta é afinada e
torna-se retilínea, sem o espartilho. É comum que se fale em um corpo mais livre e
natural, dentro dessa nova linha de silhueta, como aponta Gontijo (1987). Essa liberdade
e naturalidade é, entretanto, muito mais ideal do que real: com a valorização do corpo
mais andrógino, o espartilho é trocado por cintas e maiôs elásticos que comprimem o
quadril e achatam os seios.
75
Desenhos de moda americanos, 1926. Retirado
de: Fashion Design 1800-1940. Amsterdam:
Pepin Press, 2001. p. 288.
76
Porto Alegre, 1930.
Porto Alegre, 1929
77
O ideal da beleza desse modelo é, nos Estados Unidos, representado pelas
flappers, na França, pela garçonne
28
. A nova moda também chega ao Brasil, como se
pode ver através da personagem da “Melindrosa”, imortalizada nos desenhos de J.
Carlos. A melindrosa do cartunista brasileiro tem a forma longilínia da moda da época
e é mais ousada no vestir – já que é uma caricatura – do que a maioria de suas
contemporâneas. Aqui, dois exemplos das melindrosas de J.Carlos, em capas da Revista
Para Todos.
Seu par, também personagem criado por J.Carlos, era o “Almofadinha”, com
trejeitos exagerados, terno bastante justo com ombros estreitos, e um certo ar de
Rodolfo Valentino.
28
Apresentada no romance La Garçonne, de Victor Margueritte (1925).
Revista Para Todos, 1927 Revista Para Todos, 1927
78
O Brasil também vive, na década de 20, as mudanças culturais decorrentes do
movimento modernista, que tem o seu ponto alto na Semana de Arte Moderna de 1922,
patrocinada pelo milionário paulista Paulo Prado, e encabeçada, por exemplo, por Anita
Malfatti, Di Cavalcanti e Brecheret na pintura, Menotti Del Picchia, Guilherme de
Almeida, Graça Aranha na literatura, e Villa-Lobos na música. Segundo Oliven, o
modernismo “[...]por um lado, significa a reatualização do Brasil em relação aos
movimentos culturais e artísticos que ocorrem no exterior, e por outro lado, implica
também em buscar nossas raízes nacionais valorizando o que haveria mais autêntico no
Brasil” (1992).
A mudança de comportamentos decorrente do modernismo, e o nacionalismo sob
forma de busca das origens da nação e da cultura brasileira não parece ter alterado o
campo da moda no país. Se artes plásticas, música e literatura buscam inspiração no
Brasil, a moda continua de olhos fixos na França. Freyre, a esse respeito, provoca:
“Não consta que, contra esse martírio da mulher brasileira, por uma arte tão anti-
brasileira de vestir e calçar, de pentear-se e de adornar-se, tenham protestado os
‘Modernistas’ da célebre Semana de 22 em São Paulo. A explicação é que São Paulo
foi, até cerca de 30, no particular ‘modas de mulher’, tão passiva colônia da França
parisiense como o Rio. Talvez mais que o Rio. Modernistas ricos como o
inteligentíssimo Oswald de Andrade viviam parte do ano em Paris. Paulistas
elegantemente ricos como os Prado não sabiam vestir-se, ter médicos, dentistas,
amantes, senão em Paris.” (1997, p.106)
Ainda sobre a moda e a Semana de 22, comenta Joffily (1999, p.17) que “[...]
durante a realização da Semana de Arte Moderna (ocorrida na verdade nas noites de 13,
15 e 17 de fevereiro de 1922), todos os participantes se vestiam à moda européia.”
É boato reproduzido há pelo menos 80 anos o fato de que, a pintora modernista
Tarsila do Amaral, na abertura da Semana de 22, desfilou a última moda da elegância
francesa, usando um legítimo Paul Poiret
29
. Boato ou verdade, de uma forma ou de
outra o fato de ter-se espalhado (em tom elogioso) e chegado até os dias de hoje apenas
29
Poiret abre sua maison nos primeiros anos do século XX, é reconhecido por suas estamparias pouco
usuais e suas inspirações orientalistas.
79
confirma que os modelos de elegância continuavam os mesmos, ainda importados da
Europa.
Papel de grande importância na moda brasileira dos anos vinte e trinta era
desempenhado, paralelamente as lojas importadoras de vestuário francês, pelas
“andorinhas”. Essas mulheres, assim apelidadas, tinham como função viajar
periodicamente à Europa para não só copiar tendências de moda, mas, muitas vezes,
trazer consigo grandes quantidades de peças prontas para revender à suas clientes no
Brasil. De acordo com Joffily (1989), era um “[...] comércio oficioso, quase feito de
conhecida para conhecida. Mas ditava o bom-gosto da época.” Além da função
comercial tinham, portanto, uma função quase que educativa, no sentido de transmitir a
informação e “educar o gosto” das conterrâneas brasileiras.
2.3- Industrialização, “progresso” e nacionalismos.
A crise de 1929, nos Estados Unidos, se reflete no Brasil, fazendo despencar a
cotação do café e causando grandes prejuízos na economia nacional. A onda de
desemprego é generalizada, muitas indústrias se vêem obrigadas e fechar as portas, e
outras tantas, para resistir, passam a reduzir o horário de funcionamento de cadeia
produtiva, muitas vezes funcionando apenas dois ou três dias por semana.
A partir da Revolução de 30, quando toma o poder Getúlio Vargas, a centralidade do
Estado é fortalecida, e as políticas de industrialização (sobretudo indústria de base) são
as saídas propostas pelo governo para a crise brasileira. O argumento fundamental era
de que, implantando uma indústria de base, o Brasil poderia reduzir as importações e
estimular o crescimento da produção nacional de bens de consumo. A respeito da
centralidade do Estado, nesse período, comenta Oliven:
80
“O nacionalismo ganha ímpeto e o Estado se firma. De fato, é ele que toma a si a tarefa
de constituir a nação. Essa tendência se acentua muito com a implantação do Estado
Novo, ocasião em que os governadores eleitos são substituídos por interventores e as
milícias estaduais perdem força, medidas que aumentam a centralização política e
administrativa [...]” (1992, p.40)
Assim, junto as transformações políticas e econômicas, uma série de
transformações no campo cultural vão modificar a vida cotidiana do país. Uma delas se
dá com a popularização da escuta do rádio. Sobretudo a partir da veiculação dos
primeiros programas de variedades e novelas, o rádio vira mania nacional, com fãs
espalhados por toda parte e adoração dos artistas brasileiros, semelhante ao
encantamento proporcionado pelo cinema.
A vida social, sobretudo a carioca, também é enriquecida com o esplendor dos
Cassinos e espetáculos noturnos. O Cassino de Copacabana, Cassino da Urca e Cassino
Atlântico, atraíam a alta sociedade da época, oferecendo grande variedade de jogos, e
apresentações de famosos artistas nacionais e estrangeiros. Carmen Miranda, por
exemplo, começa sua carreira interpretando músicas de compositores como Ari Barroso,
no Cassino da Urca.
Depois das linhas mais simplificadas e silhueta andrógina dos anos vinte, a moda
da década de trinta, até a Segunda Guerra Mundial, é repleta de brilho e glamour. Os
vestidos voltam a acentuar as curvas femininas, e são longos e justos. A exemplo das
divas do cinema hollywoodiano, as mulheres brasileiras voltam a consumir tecidos
lustrosos e luxuosos para as toilletes próprias para eventos festivos.
A industrialização promovida pelo Estado Novo dizia respeito, como
mencionado, a indústria de base. Dentro dessa linha de raciocínio, diversas indústrias
estatais são fundadas, a exemplo da Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, e da
Indústria Nacional de Motores, em 1943. Também é nesse período criado o Serviço
81
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), em 1942, com o principal objetivo de
formar mão
Com a Segunda Guerra Mundial, as restrições às importações reforçam ainda
mais a necessidade de criar uma indústria brasileira. Com a crise na Europa, por conta
do conflito, outras indústrias têxteis nacionais, como a americana, são obrigadas a
intensificar e aprimorar sua produção, para dar conta do mercado interno.
No entanto, alta sociedade brasileira que continua vestindo as roupas de Paris o
faz, a partir do início da guerra, com maiores dificuldades, já que as comunicações e
viagens à Europa acabam sendo diminuídas.
A Casa Vogue é fundada em 1940 em São Paulo, tendo como proprietário Paulo
Franco. Ela foi uma das mais importantes casas de alta moda do Brasil, conhecida por
suas peles, e por copiar com perfeição modelos franceses. Com a dificuldade em
importar modelos prontos, os estabelecimentos de modas passam a comprar de algumas
casas de alta costura francesas, que continuam funcionando mesmo, as toiles
30
, mais
baratas e mais fáceis de transportar, podendo inclusive ser reproduzidas mais de uma
vez.
Durante a Segunda Guerra Mundial, diversas maisons parisienses fecham suas
portas, mas a Câmara Sindical de Alta Costura, sobretudo através de Lucien Lelong,
consegue negociar para que a produção possa ser minimamente mantida. Segundo
Veillon,
“[...] continuando a produzir belos vestidos de gala para norte-americanas, argentinas,
brasileiras, etc., que não estão em guerra, uma parcela dos ateliês não fará demissões.
[...] Com a alta costura, a França defende uma parte de sua indústria, que é também
parte de sua cultura, pois a maioria das mulheres ricas ou abastadas, do mundo inteiro
se veste, maquia, penteia e enfeita seguindo a moda de Paris e de acordo com a idéia
bem-enraizada de imitar a parisienne.” (2004, p.34)
30
Telas de modelos de vestuário, feitas em algodão muito fino e leve, como uma espécie de molde. Na
maioria das vezes eram feitas apenas para apenas um lado do traje, e o molde precisava ser transposto
também para o outro lado para que se pudesse confeccionar o vestido completo.
82
Apesar das tentativas razoavelmente bem sucedidas de manter uma parcela da
indústria da moda funcionando, as restrições obrigam a Europa a reinventar a partir de
seus modelos de elegância. Os solados de madeira e cortiça, para sapatos femininos, são
uma invenção desse período (Veillon, 2004), e acabam virando moda em outras partes
do mundo, mesmo sem mesma pressão da guerra e da falta de matérias primas.
Após a guerra, em 1947, Christian Dior
31
lança na França uma nova coleção, que
seria batizada, por uma jornalista de moda americana, de New Look. As principal
características dos modelos propostos por Dior nessa coleção são um retorno à
feminilidade perdida durante a guerra (quando as roupas tinham que ser simples, de
cores sóbrias), e uma espécie de “desforra” do mundo da moda, já que os vestidos eram
confeccionados com enormes quantidades de tecidos (algumas saias chegavam a pesar
6 Kg), um exagero antes proibido pelas leis bastante restritivas que regulamentavam a
utilização de produtos têxteis da alta-costura francesa.
Efetivamente, a diferença na silhueta feminina, durante a Segunda Guerra e
depois dela, é evidente. Com o New Look de Dior, a cintura volta a ser bastante
marcada, contrastando com o diâmetro das saias. É preciso lembrar, no entanto, que
fluidez da silhueta não era apenas conseqüente da Guerra. Como foi mostrado
anteriormente, tratou-se de um processo longo, iniciado nas primeiras décadas do século
XX, tendo seu ápice dos anos vinte. O New Look opunha-se, entratanto, não apenas a
fluidez da silhueta, a cintura marcada: ele foi um elogio da abundância, uma espécie de
crítica à praticidade e à utilidade. As fotografias da próxima página mostram algumas
imagens dessa silhueta dominante durante a Segunda Guerra, que surgia como modelo
de roupa já nos anos imediatamente anteriores a esta.
31
Costureiro francês, nascido em 1905. Lança sua primeira coleção em 1947, sob patrocínio do industrial
francês Michel Bousac.
83
Desenhos de moda americanos. 1936.
Retirado de Fashion Design 1800-1940.
Amsterdam: Pepin Books, 2001. p. 386
Modelo de Jeanne Linvin. Paris, durante a Segunda Guerra.
Retirado de Veillon, Dominique. Moda e Guerra. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.
Porto Ale
g
re
,
1940 Porto Ale
g
re
,
1944
84
Abaixo, vê-se a imagem do Tailleur Bar, de Christian Dior. Comparando-se suas
formas àquelas da fotografia da ciclista, é posssível perceber grandes diferenças. Se o
New Look era uma celebração da opulência e da ambundância, ele também
representava, em certa medida, contensão, perda de liberdade e de mobilidade. É
realmente difícil imaginar essa figura feminina de Dior vivendo o cotidiano dos anos
que o antecedem, e, por exemplo, ocupando a bicicleta da ciclista de Lanvin. Por essa
razão, o New Look é comumente referido como um “retorno” da moda a uma imagem
de mulher que anos antes havia sido, em parte, descartada.
Tailleur Bar. Paris, 1947. Retirado
de: Poncha, Marie-France. Dior. São
Paulo: Cosac & Naify, 2000. p.20.
85
A nova coleção de Dior, com todo seu glamour, exuberância e feminilidade,
encanta o mundo do pós-guerra, e faz especial sucesso nos Estados Unidos. Com
algumas transformações, é ele que será copiado, ao longo da década de cinqüenta – e,
no Brasil, ainda no início da de sessenta –, nos vestidos rodados e armados que então
eram moda. Mesmo que sem todo o “refinamento” dos modelos de Dior, a forma e a
silhueta por ele propostas – cintura fina, marcada, e saia ampla e rodada – são mantidas.
Porto Ale
g
re
,
década de cin
q
üenta.
86
A nova silhueta será, assim, copiada por mulheres de diferentes partes do
mundo. O costureiro gaúcho Rui comenta, em sua biografia, o “copista”, dizendo ser
presença comum nos desfiles de moda parisiense dos anos 50:
“Os desfiles eram sempre apresentados nos próprios ateliês dos costureiros e os copistas
eram pessoas dotadas daquilo que eu chamo de mente fotográfica. No instante em que a
modelo passava na sala, o copista tinha de estar gravando no pensamento aquele traje
em todos os seus detalhes. [...] assim funcionava a espionagem industrial para o prêt-à-
porter dos Estados Unidos e de outros países. [...] assim como os jornalistas saíam
correndo dos desfiles para a redação, os copistas também saíam correndo e geralmente
estavam sendo esperados, na saída, por um motorista que os levava a um hotel, onde
então eles desenhavam os modelos que tinham visto, e dali despachavam os desenhos
de imediato, via aérea, para Nova Iorque, Londres, etc. – para serem copiados.” (Shpor,
1997, p. 45)
A partir da Segunda Guerra Mundial, de acordo com Veillon (2004) podem ser
identificadas mudanças na configuração desse campo. Inicia-se ali o processo de
descentralização da moda, com a emergência dos Estados Unidos como outro pólo de
criação e difusão de modas. Iniciando-se no campo através das cópias e licenças,
autonomiza-se pouco a pouco. Embora o centro das atenções ainda seja a França, há um
leve deslocamento para a moda estadunidense. Lojas de departamento de Nova Iorque
ganham espaço, não mais apenas através de cópias francesas, mas através da produção
de alguns criadores locais.
É também no mesmo período é que começa na Itália também a se desenvolver
uma indústria de moda. De acordo com White (2000), graças a grandes investimentos
estado-unidenses se dá, no período, a reconstrução da indústria italiana de vestuário,
gerando por sua vez não uma reconstrução, mas uma construção da Itália enquanto
novo centro de produção de moda. Essa construção implica, por um lado, a definição e
elaboração do que deveria ser um estilo italiano e, por outro, a percepção bastante
prematura de que os novos caminhos no sistema da moda trilhavam para um futuro
onde o espaço para o ready-to-wear e a confecção seria fortalecido. Essa nova moda
87
italiana passa a ganhar maior espaço no mercado internacional, sobretudo depois da
segunda metade da década de 50.
Na edição de 21 de setembro de 1957, a Revista O Cruzeiro assim descreve a
ascensão da moda italiana na época:
“Vem se avantajando de ano para ano a importância da costura Italiana no panorama da
moda. Em Roma está sediada a maioria das casas criadoras da Itália, mas em Milão,
Florença e em outras cidades, costureiros estão se projetanto com brilho dentro de uma
geração pródiga em talentos criadores de moda feminina. [...] Roma é hoje a segunda
capital da moda, pois Paris ainda detém o primeiro posto. Mas os altos preços dos
vestidos franceses ameaçam destruir a alta-costura da Cidade-Luz. Assim, a florescente
alta-costura da península põe em perigo a primazia parisiense dentro da moda.”
Revista O Cruzeiro, 1957
88
Algumas conseqüências desse período, no campo da moda, são fundantes para o
desenvolvimento do cenário que vemos hoje. De um lado, há o nascimento de novos
centros produtores de costura de alta qualidade e, de outro, o desenvolvimento do pret-
à-porter, muito influenciado pelo sucesso do ready-to-wear americano. A pesquisa e o
desenvolvimento, desde os anos 30, dos fios sintéticos pela indústria norte-americana
possibilitaram que, finda a guerra, o náilon e outros tipos de tecidos produzidos de
forma sintética passassem a ser utilizados na indústria têxtil, por seu baixo custo e boa
aplicação em roupas prontas e mais esportivas.
Segundo Gontijo (1987), “ é nesse período que começa realmente a existir moda
no Brasil. Ou, pelo menos, uma adaptação mais conscienciosa do que era ditado por
Paris”. Em 1944, a Casa Canadá, do Rio de Janeiro, transforma-se em “Canadá de
Luxo”. O estabelecimento deixa der apenas casa de peles e vira casa de alta moda para
as elites brasileiras. A imitação da moda européia continua, mas já são feitas adaptações
para sua comercialização no mercado brasileiro. Com uma grande equipe de costureiras,
a Casa Canadá realizou um trabalho de importação de moda pioneiro. Mena Fialla, uma
das fundadoras da Casa Canadá, conta:
“Em 17 de julho de 1944, nós lançamos o primeiro desfile de moda no Brasil. A
Canadá ficava na Av. Rio Branco, 128, e era luxuosíssima. A partir daí passamos a
fazer desfiles de seis em seis meses lançando as nossas coleções. Minha irmã Cândida
viajou mais de setenta vezes a Paris para trazer as idéias que adaptávamos à estação do
Brasil” (Mena Fialla apud Gontijo, 1987)
Nos anos cinqüenta, no Brasil, a moda jovem é fortalecida, impulsionada
sobretudo por inspirações no estilo de vida dos jovens americanos. No Rio de Janeiro,
os playboys de Copacabana desfilam em seus carros “rabo de peixe”, de topete e camisa
de ban-lon. Em São Paulo, é a Rua Augusta, repleta de cinemas, bares, boates,
89
cabeleireiros e lojas, o ponto de encontro da “brotolândia endinheirada” (Doria, 1998,
p.42).
É também o auge da coluna da revista O Cruzeiro conhecida como “As Garotas
do Alceu”. Alceu Penna, criador das famosas “garotas”, foi um desenhista, estilista e
jornalista nascido em Minas Gerais. Além de produzir essa coluna, uma das mais
populares da imprensa brasileira, circulando durante vinte e seis anos, atuou como
correspondente de moda para O Cruzeiro nos Estados Unidos e na Europa. Foi o
primeiro cartunista do Brasil a publicar na célebre revista americana Esquire. Ademais,
colaborou, nos anos quarenta, criando figurinos para Carmen Miranda, já que também
desenhava figurinos para espetáculos dos Cassinos do Rio de Janeiro. Através de seus
desenhos em O Cruzeiro, acaba funcionando como mediador, atuando na adaptação das
modas que via no exterior para o público brasileiro.
Revista O Cruzeiro, 1958
90
A coluna “As garotas do Alceu” trazia imagens de moças vestindo modelos
criados pelo desenhista e estilista, acrescidas de conselhos de moda, beleza e, sobretudo,
comportamento para as moças brasileiras da época.
Revista O Cruzeiro, 1958
Porto Alegre, 1966.
91
A moda divulgada através do cinema americano, também segue influenciando os
gostos das mulheres brasileiras. Vestidos usados por Audrey Hepburn, desenhados por
Givenchy
32
, viram moda por aqui, e “as mulheres da época, sobretudo as de classe
média, iam para o cinema com um papel e lápis para copiar os figurinos dos filmes
made in Hollywood”. (Joffily, 1999, p. 21)
Nova onda nacionalista é produzida, nos anos 50, com o governo de Juscelino
Kubichek. O discurso político de então é o desenvolvimentista, da “modernização” do
Brasil. De acordo com Oliven,
“Os temas do progresso e da modernidade também eram cadentes nesse período.
Tratava-se de vencer nossa condição de subdesenvolvimento, batalha na qual a
indústria era um elemento chave. Surgem indústrias de substituição de importações,
dessa vez de bens duráveis, criando assim uma dependência maior em relação ao capital
estrangeiro.” (1992, p.42)
O investimento dessa vez é na indústria de produção de bens duráveis, mas abre
novo nicho no mercado de consumo brasileiro, para que a indústria têxtil possa se
desenvolver. Entre os anos cinqüenta e sessenta, as malharias e tecelagens brasileiras,
que antes produziam apenas roupas para as classes mais baixas, começam pela primeira
vez a se preocupar com o novo mercado da classe média brasileira, e passam a investir
não mais apenas em tecnologia e máquinas, mas em pesquisa de moda e estilo. Segundo
Joffily (1989), “nesse momento toma força a indústria de moda, de produção nacional,
buscando atender os anseios dessa classe média com algo mais do que meramente
utilitário”.
A situação econômica brasileira era favorável para as indústrias têxteis, e era
hora de começar a investir em publicidade e moda para ter maior acesso ao mercado
brasileiro, oferecendo tanto os tecidos de algodão, já bem situados nesse mercado,
quando os novos fios sintéticos. O acesso ao mercado brasileiro era dificultado,
32
Famoso costureiro francês, nascido em 1927. Foi funcionário de Elsa Schiappareli até abrir sua própria
casa de alta costura, em 1952.
92
sobretudo, pela perpetuação de representações a respeito dos tecidos brasileiros como
produto de má qualidade e “fora de moda”.
Entre os anos cinqüenta e sessenta, no Brasil, constatamos a o fortalecimento (ou
mesmo a emergência) de uma nova profissão, o costureiro de moda. Esses jovens,
comumente filhos da ainda restrita classe média, muitas vezes contanto com a ajuda de
mecenas para ir a Europa estudar, começam a produzir uma “alta costura” nacional.
A nova figura do “costureiro” é bem representada pelo paulista Denner
Pamplona de Abreu. Ele começa sua carreira no Rio de Janeiro, na Casa Canadá, onde
trabalha por um curto espaço de tempo. Em seguida passa a trabalhar no atelier de Ruth
Silveira, também no Rio, e é para trabalhar com esta que se muda para São Paulo.
Participa dos Festivais da Moda da Matarazzo-Boussac, onde é premiado.
Ele foi o estilista oficial de Maria Teresa, esposa do presidente João Goulart, e
considerada por muitos como a mais elegante primeira dama do Brasil. Na imagem de
Maria Teresa, havia uma tentativa de imitar Jacqueline Kennedy, primeira dama dos
Estados Unidos. Como Jackie, que tinha escolhido Oleg Cassini como seu costureiro
oficial, Denner foi o escolhido de Maria Teresa. Além da relação profissional, tiveram
grande amizade, e freqüentavam uma série de eventos sociais juntos, e até mesmo o
costureiro era levado para algumas viagens. Referindo-se ao golpe de 64, Denner
comenta:
“Mas ela não pode ir para o exílio de tailleurzinho azul turquesa! Meu Deus, isso não é
traje para a ocasião... cairia muito melhor um modelo preto. [...] Fiz vestidos para Maria
Teresa para todas as ocasiões. Para recepções, casamentos, funeral, solenidades oficiais.
Só não fiz um vestido para deposição. Como profissional, só posso dizer que o que a
Maria Teresa fez foi um crime.” (Denner apud Doria, 1998, p.23)
Depois do golpe militar, tendo sua imagem diretamente associada a Maria
Teresa, Denner poderia ter enfrentado dificuldade para continuar costurando para a elite
brasileira. Com a roupa errada, Maria Teresa parte. O costureiro, entretanto, continua.
93
Denner preocupou-se com a constituição de uma moda e uma alta-costura
“verdadeiramente brasileiras”, tentando sensibilizar os colegas para a criação de uma
Câmara de Alta Costura no Brasil, à exemplo da francesa, que regulamentasse o setor de
profissionalizasse o ramo da moda. Participou, nos anos sessenta e setenta, das coleções
de moda-show da Rhodia, criando modelos para os tecidos desenhados com
padronagens brasileiras.
Além de ter feito fama por suas habilidades técnicas e sua criatividade como
costureiro, Denner foi o primeiro no Brasil a criar uma personagem para si. É um
costureiro e um showman. Tinha uma vida aristocrática, mordomo, casa com decoração
barroca e organizava as melhores festas de São Paulo, sempre repleta de figuras da alta
sociedade paulista, e de artistas e intelectuais. Sua moda e sua art-de-vivre cheia de
excessos fizeram dele uns dos costureiros mais comentados, tanto criticamente quanto
elogiosamente, do país.
Denne
r
na Revista O Cruzeiro
,
1962
94
A costura nacional, entretanto, era um setor minoritário, assim como a própria
figura do costureiro que não contava, ainda nos anos sessenta, com mais de uma meia
dúzia de expoentes. A trajetória de estudar fora, na Europa, e depois voltar para
trabalhar no Brasil, ainda que não tenha sido aquela de Denner, foi a de muitos deles, a
exemplo dos costureiros gaúchos (ainda em atividade), Rui Sphor e Luciano Baron.
Gaúcho de Novo Hamburgo, Rui Sphor conta em sua biografia ter sido o
primeiro costureiro brasileiro a estudar moda em Paris. Vai, na década de cinqüenta,
freqüentar a primeira turma aberta para estrangeiros da Chambre Syndicale de la
Couture Parisienne. Também realiza estágio de aprendizagem junto ao conhecido
chapeleiro M. Jean Barthet. É justamente partindo da chapelaria, ao retornar a Porto
Alegre, em 1954, que começa a se estabelecer e firmar seu nome como profissional da
moda. Conta que, no princípio de sua trajetória, sofria grande perseguição por parte das
modistas já estabelecidas em Porto Alegre, que funcionavam segundo o antigo modelo
de “copistas” porque “desejava, com a costura, fazer uma coisa mais atual, mais
criativa, mais moderna, nada daquelas coisas que se faziam sempre, cheirando a
naftalina, com saber de uniforme” (Sphor,1997, p.123).
Luciano Baron, por sua vez, não vai buscar formação e legitimação em Paris,
mas na Itália, seu país de origem. Seu pai, já antes dele, começa a trabalhar como
costureiro. Tendo a alfaiataria como profissão na Itália, no pós-guerra, nos anos
quarenta-cinqüenta, começou a se dedicar a costura feminina. Ele próprio, então, aos 23
anos volta à Itália. Faz curso em Milão, no Instituto Marangoni, por oito meses e, ao
retornar ao Brasil, assume o ateliê do pai. Realizar parte da formação na Europa era,
segundo ele, o caminho natural para aqueles que pretendiam se aventurar na profissão,
já que “[...] naquela época tudo era muito difícil, então por isso fui para a Europa, fiz
95
esse curso, e então voltei com todo o gás, com todo o entusiasmo, para entrar fazendo
um estilo já costureiro, porque aí já começou a onda do costureiro.”
Pode-se dizer que boa parte da “onda do costureiro” descrita por Baron
aconteceu em conjunto com as estratégias das indústrias têxteis brasileiras que, desde a
segunda metade dos anos cinqüenta, fazem grandes esforços para promover os tecidos
brasileiros e, por extensão, a moda no Brasil.
A estratégia empregada pela Matarazzo, em São Paulo, e pela Bangu, no Rio, foi
agregar valor ao produto através de “Festivais de Moda”. Elas permaneceram, no
entanto, ainda por muito tempo buscando acessorias e parcerias no exterior, sobretudo
em Paris. As iniciativas para promoção dos fios sintéticos e do algodão produzido
nacionalmente foram se encaminhando para parcerias com costureiros e maisons
francesas de renome. Essas parcerias consistiam basicamente em convidar os nomes
mais conhecidos da costura, a princípio apenas da França, para que desenvolvessem
coleções especiais, fazendo uso dos tecidos brasileiros.
Dentro desse movimento, a Tecelagem Bangu faz contratos com Jacques Fath
33
e Givenchy, para que esses criem modelos usando seus tecidos. A Matarazzo, associada
ao grupo do industrial francês Boussac, consegue firmar parceria com Christian Dior, já
que esse era protegido de Boussac, que injetava capital na maison Dior.
33
Costureiro francês, nascido em 1912. Tornou-se muito popular fora da França, sobretudo nos Estados
Unidos.
96
Revista O Cruzeiro
,
1961
97
A divulgação dos eventos na imprensa brasileira, obviamente, eram essenciais
para que a estratégia comercial das tecelagens nacionais tivessem êxito. A Revista
Cruzeiro de 08 de novembro de 1952, divulga a iniciativa da tecelagem Bangu e o
sucesso da parceria com Fath:
“Reproduzimos, hoje, em cor, os modelos que deslumbraram Paris, Rio, São Paulo e
Bahia – Pela primeira vez, na história da moda, um costureiro famoso apresentou uma
coleção com vestidos que não eram franceses – E este mérito coube à Fábrica Bangu,
que trouxe Fath ao Brasil. [...] Inspirando a Fábrica Bangu, desde a confecção dos
tecidos, desenhando a estamparia, Fath criou a coleção de vinte e tantos vestidos que
têm deslumbrado as mulheres de todo o mundo. [...] Dentre os tecidos de algodão, Fath
preferiu o organdi liso ou estampado, os fustões, os não-enruga e as popelina, todos da
Fábrica Bangu.”
Revista O Cruzeiro, 1952
98
O objetivo das associações era ter modelos de maisons francesas conhecidas
produzidos com tecidos brasileiros. Esses modelos não seriam, entretanto, jamais
vendidos ou reproduzidos industrialmente. Não se tratava de uma estratégica de
comercialização, mas de comunicação. No que concerne às coleções criadas pela
Rhodia, como tratarei a seguir, o objetivo era semelhantes. Essas estratégias colocadas
em prática no fim dos anos cinqüenta e começo dos anos sessenta são um tanto quanto
impressionantes por sua modernidade.
Os modelos produzidos e apresentados pela Rhodia, assim como pelas outras
indústrias têxteis, não seriam jamais vendidos. E no caso da Rhodia a complexidade das
estratégias vai ainda mais longe, já que nem mesmo seus tecidos eram vendidos
34
. O
que era vendido era uma idéia: de que se poderia produzir, no Brasil, tecidos de boa
qualidade e que refletissem as tendências da moda. No que concerne a Rhodia, outro
objetivo era o de difundir a aceitação dos fios sintéticos enquanto produtos confiáveis,
consumíveis e desejáveis.
O artista plástico Cyro del Nero (1999), que produziu cenários para os desfiles
da Rhodia, conta a esse propósito que
“O sonho de comprar terminava lá, no desfile. Não vendíamos nada. Faziamos uma
metamorfose do consumo. Nada era como antes: as pessoas não podiam sair correndo
do desfile para comprar. INUTIL: os tecidos, os desenhos, as cores, a elegâcia do
desfile, as luzes do espetáculo – tudo acabava lá. Apenas o novo discurso sobre a moda
podia ser absorvido:não mais o algodão, a lã, mas o fio sintético.”
Uma vez estratégia de comunicação, a imprensa exerceu um papel fundamental
em seu êxito. Todas as indústrias brasileiras que adotavam essa estratégia, com exceção
da Rhodia, apresentavam as coleções em pequenos desfiles muito privados, para poucos
convidados, abertos apenas as convidadas da alta sociedade brasileira. Esses desfiles
tinham lugar nos hotéis mais tradicionas do Rio de Janeiro, como o Copacabana Palace,
34
Até porque o que a Rhodia produz é matéria-prima para a produção do fio sintético, e não tecidos. Ela
está no começo da cadeia têxtil, e não no ramo dos tecidos e menos ainda da moda, da costura ou da
roupa pronta.
99
ou ainda nos clubes da alta sociedade carioca e paulista. Eles não eram mais do que um
evento social do tout Rio e do tout São Paulo.
Mas a clientela que tinham em vista certamente não era formada por essas
mulheres, as brasileiras bem nascidas que continuariam por ainda muito tempo a
comprar suas roupas na Europa. Exatamente nesse ponto a importância da imprensa se
revela. Através dela, mostrava-se para a classe média que os tecidos brasileiros eram de
boa qualidade (ao ponto de serem usados pelas maisons francesas!), e legitimava-se essa
qualidade e adequação com as tendências de moda divulgando a presença das elegantes
da alta sociedade.
Além das parcerias com costureiros estrangeiros, a publicidade de Bangu
também acontecia com o patrocínio, organização e realização de concursos de beleza e
elegância. Tais concursos, realizados muitas vezes nos salões do Copacabana Palace,
eram frequentemente beneficentes e reuniam a nata da sociedade carioca e brasileira. As
senhoras de sociedade atuavam, nos eventos, como juradas da beleza e elegância. Um
desses concursos, que teve início também nos anos 50, ficou conhecido como “Miss
Elegância Bangu”, e também tinha ampla cobertura da imprensa, através da Revista
Cruzeiro.
A Matarazzo, por sua vez, promoveu a partir de 1958 o “Festival da Moda
Brasileiro”, pioneiro no incentivo e valorização da alta-costura nacional, ainda
embrionária. O Festival da Moda Brasileiro premiava criadores de moda do país com os
prêmios “Agulha de Ouro” e “Agulha de Platina”.
A divulgação da produção têxtil brasileira, que tem início nos anos cinqüenta,
continuam sendo promovida ao longo da década de sessenta e princípio dos setenta. O
ápice desse processo seria, sem dúvida, os eventos-show da Feira Nacional da Indústria
Têxtil e da Rhodia.
100
2.5- Feiras e shows: nacionalismo brasileiro com capital estrangeiro.
A Feira Nacional da Indústria Têxtil é criada em 1958, com o principal objetivo
de entrosar e possibilitar interlocução entre os industriais do ramo têxtil no país,
funcionando como um catalisador para os negócios de moda, a exemplo da feira
americana U.S. Trade Fair. Sua primeira edição não alcança o sucesso esperado. A
partir de sua segunda edição, no entanto, de feira fechada para o público especializado
ela se torna aberta e, em parceria com a Rhodia, transforma-se em grande espetáculo
para o público brasileiro.
A Rhodia, multinacional francesa que atua em diferentes áreas industriais, entre
elas a têxtil, chega ao Brasil em 1919. Sua participação na vida cultural do país,
entretanto, atinge grande vulto apenas a partir da década de sessenta, por ocasião dos
grandes shows/desfiles de moda que por ela são patrocinados no país.
O grande investimento financeiro da Rhodia no patrocínio desses espetáculos e
eventos tinha como objetivo introduzir o público brasileiro no uso de fibras sintéticas,
para as quais produziam matéria prima. As coleções de alta-costura desfiladas nos
eventos, portanto, não seriam posteriormente vendidas, copiadas, ou reproduzidas
industrialmente. Elas apenas serviam para agregar valor ao produto fibra sintética
perante uma classe média brasileira que não consumia alta-costura, mas reconhecia o
valor simbólico desta, e poderia vir a consumir os tecidos elaborados a partir da matéria
prima produzida pela Rhodia.
Segundo Doria, essa história tem início quando o publicitário italiano Lívio
Rangan, que chega ao Brasil em 1953, procura a Rhodia para patrocinar um balé:
“Demonstrou [Livio] tal perícia na oferta de vantagens promocionais, que o senhor
101
Berthier, sisudo homem forte da empresa francesa, logo percebeu que estava diante do
diretor de publicidade que lhe faltava na equipe” (1998, p.57).
A incumbência que Livio Rangan recebe da Rhodia, portanto, é de elaborar uma
estratégia para criação de um mercado que queira consumir as fibras sintéticas, no lugar
dos tecidos mais tradicionais, antes considerados mais nobres. Lívio, portanto, precisa
criar um desejo e modificar hábitos. Com essa finalidade, a tática por ele elaborada não
poderia ser mais brilhante.
Tanto um grande montante de capital a sua disposição para colocar seu plano em
prática, Lívio reúne os melhores profissionais das áreas que se fazem necessárias para
trabalhar consigo. Com os espetáculos da FENIT sobre seu comando, as possiblidades
por ele vislumbradas parecem ilimitadas.
Alceu Penna foi o escolhido para desenhar os primeiros modelos, e a maioria
deles. A parceria, que tem início em 1960, com a “Coleção Café”, durou cerca de
quinze anos.
Uma vez que a criação da coleção da Rhodia envolvia inclusive a produção dos
tecidos, eram chamados grandes artistas plásticos do país – como Aldemir Martins,
Volpi, Darcy Penteado, Heitor dos Prazeres, Milton Dacosta, Livio Abramo e Maria
Bonomi – para elaborar as padronagens e estampas, a partir de cores sugeridas por
Alceu, e de temas elaborados por Lívio em conjunto com outros profissionais.
102
Modelos criados para as coleções da Rhodia, expostos no SPFW em junho
de 2005
103
Modelos criados para as coleções da Rhodia, expostos no SPFW em junho
de 2005
104
Peças da coleção da
Rhodia de 1962/1963, com
estampas de Aldemir
Martins.
Revista O Cruzeiro, 1962.
105
Não apenas as artes plásticas as coleções da Rhodia contavam com grandes
nomes. A criação dos roteiros dos espetáculos ficava por conta de Millôr Fernandes,
Flávio Rangel, Torquato Neto, e até mesmo Carlos Drumond de Andrade. Para a
elaboração das coreografias, o bailarino e coreógrafo Lenny Dale era o escolhido. No
quesito música, nada menos do que Gilberto Gil, Tim Maia, Caetano Veloso, Tom Zé,
Rita Lee e Jorge Ben que, de acordo com Doria “teve sua música associada durante anos
aos espetáculos da Rhodia. Foi lá que cantou País Tropical pela primeira vez [...]”
(1998, p.63).
Aproveitando a onda nacionalista da década de 70, a equipe dos shows da
Rhodia produz coleções com motivos clara e explicitamente brasileiros: a adoração ao
tropical, as tradições locais, os traços psicológicos e fisionômicos da população, a
música. Os temas as coleções eram sempre inspirados na beleza do país, na natureza
exótica, nas mulheres e na sensualidade, no futebol, assim como nas festas e tradições
populares.
. As coleções tinham nomes como Coleção Café, 1960; Brazilian Nature, 1962;
Brazilian Look, 1963; Brazilian Style, 1964; Brazilian Primitive, 1965, Brazilian
Fashion Team, 1966; Brazilian Fashion Follies 1967; Brazilian Stravaganza 1969, ou
Nhô
35
Look, 1970, revelando sempre uma grande mistura lingùística. Também foi um
grande espetáculo o “Rio 400 anos”, em comemoração ao aniversário do Rio de Janeiro,
no dia 01 de março de 1965.
Os costureiros convidados para elaborar modelos eram, além de Alceu Penna,
nomes que estavam nesse período ainda despontando, surgindo junto com a própria alta-
costura brasileira, como Denner, Clodovil, Guilherme Guimarães e Rui. Lívio Rangan
35
Fazendo referência à cultura caipira.
106
tinha o ideal, segundo Doria (1998), se promover, se não o nascimento de uma moda de
alta-costura nacional, pelo menos seu fortalecimento e divulgação.
Depois da realização dos shows, as coleções viajam o País, sendo apresentadas
em diferentes cidades. Durand comenta sobre os espetáculos da Rhodia:
“[...] para reforçar ainda mais a ilusão de inspiração nacional da alta costura então
nascente, a Rhodia fez viajar pelo Brasil costureiros, manequins e coleções, de modo a
autenticar sua brasilidade em sítios celebrados como símbolos da nacionalidade, como
Salvador, Ouro Preto e Brasília. Nem Oscar Niemeyer escapou da iniciativa, posando
sorridente entre manequins bem laqueadas na rampa do palácio do congresso, então
recém inaugurado.” (1987, p.78)
Além do acréscimo simbólico oferecido pela costura nacional às fibras sintéticas
da Rhodia, viagens para a Europa e Estados Unidos, para divulgar a coleção
internacionalmente, serviam para consagrá-la e legitimá-la também por aqui.
A parceria com a Revista Cruzeiro era essencial para que os objetivos da Rhodia
fossem atendidos, uma vez que era através dela que voltava ao país e informação (com
imagens!) de que as coleções estavam alcançando sucesso no exterior, em países já
reconhecidos como líderes de moda.
Revista O Cruzeiro, 1961
107
A reportagem da Revista Cruzeiro, de 1961, traz para a leitora/consumidora
brasileira informações sobre o “I Cruzeiro da Moda”, que leva a “Coleção Café” para o
Velho Mundo:
“Coleção Café: as cores, o toque exótico, a bela magia do café do Brasil serão o motivo
para as mais novas criações dos costureiros franceses. E os tecidos brasileiros darão o
grande toque da moda feminina da próxima saison.
Tudo começou quando os diversos tons de verde do grão e das folhas do café, quando
os tons de castanho e marrom dos cafés torrados, as gamas de vermelho de seu fruto
maduro, e o azul puro dos céus dos cafezais do Brasil foram escolhidos como as cores
da moda pelos papas da elegância feminina em Paris.
Depois, juntou-se a isso a imaginação fabulosa dos maiores pintores brasileiros do
momento, que criaram dentro dessa linha os mais belos padrões para a excepcional
qualidade dos tecidos produzidos no Brasil. As seleções Albène, Rhodia e Rhodianyl, e
“O Cruzeiro”, unidos, transformaram tudo isso na maior promoção jamais realizada no
país no campo da moda.
Revista O Cruzeiro 1961
108
Quatro dos mais belos manequins seguiram para Paris. Vão desfilar – na capital da
moda e depois em Hamburgo , capital européia do café – mais de cem modelos criados
exclusivamente para nossa promoção. E criados em Paris...”
Em 1963 é realizado mais um Cruzeiro da moda, dessa vez para um série de
cidades norte-americanas. Este, por sua vez, já é descrito como criação absolutamente
brasileira, levada aos Estados Unidos para divulgar e promover nossos talentos
nacionais da moda.
“Cinco cidades norte-americanas aplaudiram – com calor – a moda brasileira para o
verão 62-63.
Os desfiles de moda da Brazilian Nature vieram revelar, ao lado do sucesso alcançado
pelos tecidos, modelos e padrões brasileiros, a existência de um mercado de amplas
possibilidades nos Estados Unidos para os tecidos brasileiros, tão bem representados,
no caso, pela seleção Rhodia Têxtil. [...] Assim, promovido parta levar aos norte-
americanos, uma visão da capacidade industrial e criadora dos brasileiros no campo
têxtil, o III Cruzeiro da Moda acabaria abrindo um novo “front” para a exportação
brasileira, dando oportunidade aos fabricantes nacionais de tecido de alta qualidade de
penetrarem no mercado norte-americano, para a conquista das divisas reclamadas para o
desenvolvimento do País.
Baseados em temas brasileiros, as cores ardentes da coleção Brazilian Nature resumem
a natureza tropical e os motivos ganham na coleção a universalidade do tratamento de
nível artístico.”
Revista O Cruzeiro, 1963
109
Revista O Cruzeiro, 1963
110
Os “Cruzeiros da Moda” parecem apontar, para além da busca desbravadora por
espaço no mercado externo, mais uma vez o caminho da consagração fora do Brasil
como necessário para o reconhecimento dentro do País.
Apesar dessa semelhança estrutural entre a promoção das coleções da Rhodia e
os eventos realizados por outras tecelagens brasileiras, quanto à forma, a gradiosidade e
as conseqüências, as diferenças gritam aos olhos.
Os eventos da Bangu, ou mesmo da Matarazzo-Boussac, jamais mobilizaram o
público tanto quanto os shows da Rhodia. Permaneciam por demais fechados em si
mesmos, reproduzindo modelos antigos, e chamando para si apenas uma pequena
parcela de elite da sociedade brasileira. Segundo Doria, as mudanças ocorridas na
sociedade brasileira
“[...] punham em xeque a estratégia adotada pela Matarazzo-Boussac em seus desfiles
de moda: por maior que fosse a repercussão, pareciam chás para senhoras entediadas
[...] porque essa sociedade a que se destinavam os desfiles da Matarazzo, a das avant-
premieres teatrais do Municipal e reuniões do Jockey Club, já estava ultrapassada para
o italiano da Rhodia. São Paulo estava pronta para o prêt-à-porter – e quem não se desse
conta da nova realidade ficaria para trás. (1998, p.66)
A partir de 1971, a FENIT muda-se para o pavilhão de feiras do Anhembi, e seu
conselho diretivo, depois de oito anos de prejuízos, decide que a feira deve voltar a ser
fechada, direcionada apenas para produtores de moda, compradores e jornalistas. O
objetivo da estada de Livio Rangan junto ao grupo, entretanto, já estava cumprido. A
FENIT era um grande evento, reconhecido nacionalmente inclusive pelo grande
público.
Em 1972 também a Rhodia encerra seu período de glórias na produção de
eventos culturais no Brasil. Livio Rangan é demitido, e todas as roupas das coleções
desse período são doadas, algumas já em péssimo estado de conservação, ao MASP,
para que supostamente fosse criado o “Museu do Costume”, o que não acontece.
111
No ano de 2003, mais de trinta anos após a doação das peças, é criado através de
parceria entre MASP e ABIT (Associação Brasileira de Indústria Têxtil) o “Instituto da
Moda”. Uma exposição, onde estão presentes algumas peças da Rhodia é promovida no
mesmo ano, comemorativa da inauguração do Instituto. Finda a exposição, nenhuma
outra iniciativa é realizada, e as peças voltam para a “reserva” do acervo do MASP,
dificilmente disponíveis para consulta ou pesquisa.
Quanto aos objetivos alcançados através da promoção dos grandes
desfiles/shows de moda, a Rhodia parece ter alcançado o seu, já que os fios sintéticos
são atualmente amplamente consumidos no Brasil. De acordo com Durand(1987, p.78),
“nylon e poliéster foram logo absorvidos pelo mercado interno, passando de 2% a 17%
de consumo total de fios no país, entre 1958 e 1975.”
Os ideais de Livio Rangan, muito provavelmente compartilhados com os
costureiros envolvidos nos projetos, de fundação e afirmação de uma alta-costura
nacional, entretanto, não parecem ter chegado ao êxito sonhado. A alta-costura
brasileira não tem hoje a expressividade desejada por Rangan, nem fora nem dentro do
país. Segundo Durand,
“Embalada em promoções generosas, mas sem sustentação a médio e longo prazos, a
alta costura brasileira teve brilho efêmero. Assim, sem conseguir livrar-se de uma
antiga e sorrateira rival – a ‘muambeira’ de alta sociedade, que trazia vestidos para
vender às amigas – os jovens ‘criadores’ viram-se desde logo às voltas com um novo e
poderoso adversário: as etiquetas estrangeiras no mercado de prêt-à-porter de luxo.”
(1987, p.79)
É possível pensar, entretanto, que outras conseqüências dos eventos de moda
promovidos pela Rhodia no Brasil tenham importantes para o desenvolvimento da moda
no país. A profissionalizaçao da moda no país é, segundo Bonadio (2005), herdeira
desse período, principalmente dos esforços da Rhodia no que concerne a promoção de
seu produto. De acordo com a autora, duas categorias profissionais nascem no Brasil
nessa época: o fotógrafo de moda e a manequim profissional. As mulheres que
112
trabalhavam como manequim, antes de 1960, não era, em sua grande maioria,
´profissionais. O grupo de manequins da Rhodia foi o primeiro realmente profissional,
conhecido pelo publico, com trabalho fixo, contrato e uma preparaçao corporal
(Bonadio, 2005).
Da mesma forma, antes de 1960 não havia no Brasil a fotografia de moda. A
maioria das fotografias divulgadas nas revistas eram compradas de agências
internacionais, ou então substituídas por desenhos, haja vista os trabalhos de Alceu
Penna para a Revista O Cruzeiro.
Essa conseqüente profissionalização, em conjunto com a mobilização e o
envolvimento do grande público, sempre presente nos shows da Rhodia, foi fundadora
do que hoje vemos no campo da moda no Brasil: o surgimento, não de uma alta-costura
brasileira, mas de uma confecção e prêt-à-porter de boa qualidade e competitivo no país.
Quando entrevistado, Luciano Baron comenta a esse respeito:
“Tudo começou nos anos sessenta, setenta. Foi o grande boom brasileiro, onde surgiram
os nomes, os desfiles, a preocupação das pessoas com moda, começou a se interessar,
começou a achar que era uma coisa bonita. As pessoas começaram a ter acesso. Ou na
própria FENIT, que reunia multidões, e as revistas começaram a se ocupar disso, aí já
vieram novas revistas, depois da Cruzeiro veio a Manchete, e Manequim não sei o que,
a Vogue nacional, desfile. Revistas começaram a surgir, e uma coisa vai movimentando
a outra, uma coisa puxa a outra. E seguimos até hoje, né.”
2.6 - Das bou
tiques às butiques
Muito embora a primeira delas tenha sido, segundo Ruy Castro (1999),
inaugurada em 1961, em Ipanema, é no final da década que surge a maioria das butiques
da Zona Sul do Rio de Janeiro. Seu período de florescimento corresponde, ao mesmo
tempo, a um momento (ainda que breve) de elevação do poder de compra da classe
média brasileira, e de demanda, por essa mesma classe média, por um consumo não
apenas de vestuário, mas de moda.
113
Na França, é também na década de sessenta
36
que as grandes transformações
iniciadas nas décadas anteriores (sobretudo herdeiras daquelas surgidas com a Segunda
Guerra) começam a se estabelecem e se tornam mais visíveis. É então que a moda
moda “sai para a rua”, nas palavras de Yves Saint Laurent, e um fenômeno até então
impensável tem lugar: ela deixa de ser reservada a apenas uma elite social (Veillon &
Denoyelle, 2000) e, de certa forma, democratiza-se. Essa modificação dar-se-ia com o
aparecimento de inúmeros novos setores (a moda jovem, o pret-à-porter, o usos das
novas fibras sintéticas, a moda unissex, as pequenas butiques) e de novos atores: o
estilista (em contraposição ao grand couturier da alta costura), as celebridades difusoras
de moda, os bureaux de estilo responsáveis pela introdução de tendências de moda no
âmbito da confecção de massa, as revistas especializadas e setorizadas.
O que acontecia no Brasil, alguns anos depois, estava em grande sintonia com o
cenário da moda internacional do perído. É com as butiques cariocas que germina o
prêt-à-porter no Brasil. Elas representam, segundo Joffily (1999, p.24) um período de
transição entre a alta-costura, com um pequeno número de consumidoras, para a fase da
confecção. Por serem pequenas, as butiques podiam trabalhar com uma diversificada
gama de peças, com pouquíssima quantidade de cada uma delas, mantendo a qualidade
e conseguindo apresentar tendências novas a cada estação.
Segundo Durand (1987, p.87), a maioria dessas lojas tinha um começo muito
amador. Mulheres que antes nunca tinham trabalhado produzindo moda
experimentavam montar butiques. Apesar de não ter experiência, tinham capital cultural
e bom gosto adequado para iniciar e manter a produção das pequenas confecções. Além
disso, possuíam boas redes de relações, úteis para conquistar clientes e para conseguir
algum espaço na mídia para divulgação de suas coleções.
36
Um excelente cronologia, focada nas mudanças ocorridas nesse período, pode ser encontrada em
Chenoune, Farid. Jalons pour une histoire culturelle de la mode
. In: Bulletin de l’Institut d’Histoire du
Temps Présent. No. 76. Novembro de 2000. Paris. CNRS Éditions.
114
A maioria dessas mulheres, portanto, pertenciam as camadas médias altas, e
tinham como público outras mulheres provenientes quase sempre da mesma classe
social, compartilhando entre si um habitus de classe bastante semelhante.
Muitas das butiques, sobretudo no início dos anos setenta, segundo Abreu (1986,
p.141), procuravam inspiração nos lançamentos da moda européia. Havia, entretanto,
grande preocupação em “interpretar” essas tendências, buscando adequá-las ao gosto e
ao clima brasileiros.
As viagens para a Europa eram freqüentes, e tinham como objetivo trazer
modelos, ou simplesmente informar-se do que estava sendo usado, agora não mais
apenas nos ateliês da alta-costura, mas também nas ruas.
É justamente em uma dessas viagens de “pesquisa de moda” que se reúne um
grupo de “criadores”, donos de butique, que viria a constituir o “Grupo Moda Rio”. A
esse respeito, comenta Marília Valls que
O objetivo do grupo pode ser definido em uma expressão: reunir forças. Já éramos
etiquetas famosas no Rio de Janeiro, centro da moda brasileira. Mas não dispúnhamos
de uma estrutura suficientemente forte para capitalizar esse prestígio. (...) promovíamos
desfiles de lançamento conjuntos – assim podíamos realizar um evento de dimensão
considerável, gastando praticamente o mesmo dinheiro que custaria uma apresentação
desse tipo a uma de nós, isoladamente.
(Apud Joffily, 1989, p.68)
Essa associação de estilistas dispostos na mesma faixa de mercado são, segundo
Durand (1987, p.92), geralmente de curta duração. A própria vida da butique carioca
era, freqüentemente, efêmera. Butiques abriam e fechavam com certa rapidez, e apenas
poucas mantinham de forma mais duradora suas atividades. Embora o período mais
significativo das butiques cariocas tenha ao longo das décadas de setenta e oitenta,
poquíssimas ficaram em funcionamento por todo este espaço de tempo. Diz Ruy Castro
(1999) que “inúmeras butiques abriram, brilharam e fecharam no espaço de um verão”.
A Blu-blu, de Marília Valls, é uma das que por mais tempo resistiu,
permanecendo em funcionamento até pelo menos 1986, pressionada sobretudo pela
115
migração da clientela para o espaço dos shoppings centers que começam a aparecer, e
para as grandes lojas de departamento, que, percebendo as novas exigências do
mercado, passam a trabalhar com produtos de confecção de melhor qualidade.
Além de espaço de consumo, a atuação das butiques da Zona Sul carioca foi
parte da produção de um novo estilo de vida. As roupas produzidas eram muito mais
informais e cotidianas, menos pretensiosas, não apenas direcionadas para um público
necessariamente muito jovem, mas para um público com idéias mais joviais e menos
tradicionais.
Ruy Castro, no verbete “Butiques” de sua Enciclopédia de Ipanema, conta:
“A moda de Ipanema era feita à imagem de sua população: uma gente jovem, bonita,
bronzeada, esportiva, aberta para o novo e com dinheiro para gastar. Mesmo quando
originadas da Europa, as peças eram adaptadas ao jeito local: os biquínis desciam, as
camisetas subiam e as calças Saint-Tropez eram tão abaixo do umbigo que só
precisavam de meio fecho éclair [...]”(1999, p.62)
Uma das principais características das peças de vestuário produzidas era a
capacidade de expressar certa ironia ou deboche para com os valores mais tradicionais,
com os quais a geração que era público consumidor dessas lojas não mais se
identificava.
As camisetas irreverentes, ou os terninhos provocadoramente unissex da Bibba
(1966-1983), são um bom exemplo do tipo de vestuário que fazia sucesso nesse
contexto. A Frágil (1969-1973) também inovava com suas calças tipo pijama, roupas
de tecido de saco e batas indianas.
Outra butique que ajudou a produzir esse fenômeno carioca foi a Anik Bobó
(1968-1980), de visual psicodélico. Nela também havia uma grande profusão de roupas
116
unissex, e as que fizeram maior sucesso foram as calças de veludo amassado, de todas
as cores imagináveis, que pareciam molhadas.
A Blu-blu começou apenas vendendo blusas (daí a origem do nome), mas
acabou abrindo espaço para outras peças de vestuário. Na loja de Marília Valls os
desfiles aconteciam na rua, eram quase happenings, com música, dança, teatro e até
circo.
Fundada em 1972, também em Ipanema, a Company ficou conhecida
nacionalmente, com filiais em diversas capitais. A loja, essa sim especificamente
direcionada para um público jovem, esportista ou surfista, ganhou fama por suas
mochilas, mas também produzia camisetas, bermudas e bonés. A feira Hippie da Praça
General Osório, fundada também nas proximidades de 1970, completava o quadro
pitoresco da região.
2.7- Quando a moda entra na moda.
No Brasil, o mercado de moda que se desenvolveu a partir dos anos setenta e
oitenta está menos ligado à alta-costura. Pode-se dizer que por aqui há o florescimento
de um prêt-à-porter e uma confecção de luxo, que envolvem, não apenas aspectos
comerciais e industriais do vestuário, mas um sistema de moda, tanto em sua criação,
dependente de pesquisa e investimento em tendências, focada numa produção “autoral”,
quanto na sua divulgação, com desfiles sazonais.
Nos anos 80 houve um crescimento da indústria têxtil brasileira, e é criada a
“Cooperativa da Moda” (Braga, 2005, p.60), por iniciativa de um grupo de jovens
estilistas, entre eles os hoje consagrados, Conrado Segreto, Jum Nakao e Walter
Rodrigues. Registra-se no país um grande esforço de aprimoramento técnico e
117
profissional
37
no campo da moda. São feitos investimentos em tecnologia, mas
igualmente são trazidos para o país especialistas que realizam consultorias junto às
industrias texteis e de confecção
38
.
De acordo com pesquisa realizada em arquivo de períodicos brasileiros
especializados em moda
39
, e com o testemunho recolhido junto a produtores de moda
atuantes no campo durante os anos oitenta e início de noventa, o esforço em
desenvolver uma moda propriamente brasileira, no período, estava nesse momento
afastado das referências ao nacional. Buscava-se uma internacionalização e
modernização pela via da anulação do nacional e da neutralizaçao do que pudesse ser
específico do país
40
.
Também a fundadora do bureau de estilo Promostyl relata que a preocupação
brasileira, quando de sua última visita ao país no final da década de oitenta, era a de
adequar-se aos padrões da moda internacional em termos técnicos, mas igualmente de
tendências e conteúdo. Tal procedimento era uma opção (assim como o fora – e voltaria
a ser – a da valorização dos conteúdos nacionais) considerada apropriada para
proporcionar a produção nacional a possibilidade de concorrência, no mercado interno,
com a grande quantidade de marcas internacionais que surgiam.
Esse esforço de internacionalização, ao contrário do que ocorria em décadas
anteriores, dessa vez não parece dizer respeito à cópias explícitas do que era produzido
fora do país. Procurava-se já então a produção de uma moda esforçadamente
independente, e portanto “brasileira”, mas essa procura se dava através da atitude
37
Vale lembrar que nos anos 70 a própria FENIT, quando muda-se do Ibirapuera para o Pavilhão de
Exposições do Anhembi, volta a ser fechada ao público e, de palco de grandes shows, passa a feira de
negócios direcionada espeficicamente para os profissionais do setor.
38
Um dessas especialistas é a fundadora do bureau de estilo Promostyl, que relatou, quando entrevistada,
sua experiência no Brasil no final da década de setenta e nos anos oitenta.
39
No museu Hipólito da Costa, de Porto Alegre, onde foram analisadas revistas como Elle e Cláudia, e
em meu próprio acervo pessoal de revistas Elle (1990-2006)
40
Nesse sentido, pode-se pensar em paralelos com a discussão a respeito da internacionalização das
identidades nacionais como via de modernização, presente em Löfgren (2000).
118
mencionada de despojá-la de conteúdos ou técnicas que remetessem ao Brasil, ao
nacional, procurando produzir e divulgar uma moda neutra, não uma “moda brasileira”,
mas uma moda desprovida da adjetivação concernente à origem, ainda que feita no
Brasil.
Segundo Tessari (2001, p.24), a entrada de grandes grifes mundiais no país,
especialmente a partir de 1995, após a implantação do plano real, fez com que a moda
brasileira procurasse uma qualificação ainda maior, para ser competitiva com as
mercadorias importadas que, com a baixa cotação do dólar na época, se tornavam
financeiramente interessantes para o público consumidor das camadas médias e altas.
Esse prêt-à-porter de alta qualidade, e com investimento em na marca, na grife,
também é impulsionado pela produção e consumo do jeans no país. A calça jeans, uma
mania nacional, é fabricada e comercializada por diversas marcas de confecção de luxo,
como Zoomp, Fórum, Vide Bula, Ellus, entre outras, e tem preço atualmente variando
de algo em torno de 200 reais, até valores que atingem os quatro dígitos.
A força desse boom do “jeansweare” de luxo, portanto, acaba gerando outros
nichos de mercado. Um deles é o das imitações e falsificações de grifes famosas, que
são vendidas tanto em lojas de comércio popular das cidades, quanto em camelôs. No
Saara, região de comércio popular da cidade do Rio de Janeiro, é possível encontrar
cópias de roupas jeans de marcas como Zoomp ou Fórum, onde não apenas os modelos
são copiados, mas mesmo as etiquetas com o nome da grife é falsificada. O valor dos
produtos, é claro, é no mínimo cinco vezes menor do que o do original.
A presença das confecções de luxo nos grandes Shoppings Centers acaba
tonando-os, além de lugar de sociabilidade, passarela de modas. Não é por acaso que a
grande maioria dos eventos realmente importantes da moda brasileira teve seu início em
algum Shopping Center.
119
O atual São Paulo Fashion Week, que está em junho de 2005 em sua 19ª edição,
começou um julho de 1996, no Shopping Morumbi, quando ainda se chamava Morumbi
Fashion. O Morumbi Fashion, por sua vez, já descendia de outro evento de moda,
conhecido como Phytoervas Fashion, lançado em 1990. (Braga, 2005, p.62). O
Phytoervas Fashion, no entanto, tinha uma sistemática bastante diferenciada do atual
evento paulista, já que os desfiles, de tamanho bastante reduzido, aconteciam ainda nos
show rooms das marcas e para um público muito restrito.
Quando é transformado em Morumbi Fashion o evento passa a ser produzido por
Paulo Borges, que se mantém ainda hoje como produtor do São Paulo Fashion Week.
Na primeira edição, os desfiles aconteciam no próprio Shopping Morumbi, e no parque
do Ibirapuera.
Em sua 5ª edição, o Morumbi Fashion passa a acontecer no Jockey Clube de São
Paulo, num espaço mais amplo e mais próprio para receber o público que já estava
numeroso. É em 2001, entretanto, que ele passa a ocupar, duas vezes ao ano, o espaço
da Fundação Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera.
Já o Fashion Rio tem início, em 1996, com a Semana Barra Shopping de Estilo.
A Semana de Estilo já existia antes mesmo de ser Barra Shopping, e era realizada, a
partir de 1993, no Jockey Clube Brasileiro, no centro do Rio de Janeiro. É entretanto
apenas depois que o Barra Shopping assume o evento, que ele começa a ter sua
visibilidade aumentada.
Em 2002, é realizada a primeira edição do Fashion Rio em tendas armadas e
salas montadas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), já nos mesmos
moldes do evento atual.
O campo do varejo de moda nacional tem como característica uma razoável
concentração regional. Segundo Tessari (2001) cerca de cinqüenta por cento da
120
produção nacional e vestuário se concentra na região Sudeste. E não apenas a produção,
mas o mercado de moda, está majoritariamente situado no eixo Rio-São Paulo, onde
acontecem os dois principais eventos do país. A tensão e as disputas entre Fashion Rio e
São Paulo Fashion Week são explícitas. Pelo menos desde os últimos três anos, as
brigas de poder entre as organizações dos eventos vêm estampadas na imprensa, e
correm de boca-em-boca a partir de notas em colunas sociais e boataria.
Apesar da centralidade e maior dimensão dos eventos de moda realizados na
região sudeste do país, outras semanas de moda começam atualmente a brotar nas
capitais de diversos estados brasileiros.
Em Porto Alegre, a partir de iniciativa do Shopping Iguatemi, o mais antigo na
cidade e visivelmente mais direcionado a uma clientela de camadas médias e altas,
acontece, desde 2001, o Donna Fashion Iguatemi. O evento também é patrocinado pelo
jornal Zero Hora, do qual recebe o nome “Donna”, vindo do caderno de moda e
comportamento veiculado na edição dominical do jornal.
Em Curitiba, o Crystal Fashion tem início em 2000, e também é promovido por
um shopping center local, o Shopping Crystal. Em outros estados os eventos de moda
também ganham importância, sendo os principais deles o Dragão Fashion, no Ceará, o
Goiás Fashion Designer, em Goiás, e o recentemente lançado Minas Cult (também
produzido por Paulo Borges), em Minas Gerais, todos reconhecidos e fazendo parte do
calendário oficial de moda da ABIT (Associação Brasileira da Indústria Têxtil).
Recife também entra para o circuito dos eventos de moda com o “Shopping
Recife Fashion”, também patrocinado por um Shopping Center local, e produzido pela
Dupla Acessória, responsável pela organização do Fashion Rio. No mês de agosto do
ano de 2005 o evento de Recife apresenta sua quinta edição, para o qual está previsto
investimento de 2,5 milhões de reais (Muller, 2005).
121
Desde sua primeira edição o São Paulo Fashion Week tem como um de seus
patrocinadores a Rhodia, que também patrocina os eventos Amni Hot Spot, cujo
objetivo é que sejam descobertos e lançados novos talentos da criação de moda.
Os eventos de moda descritos anteriormente também são sem dúvidas feiras de
negócios (paralelamente ao Fashion Rio, por exemplo, acontece o Fashion Business,
uma espécie de bolsa de negócios do setor de moda), mas em moldes muitos distintos
da FENIT, que os tornam mais espetaculares e populares, ainda que o acesso do público
a eles não seja direto, e se dê apenas pelo intermédio da cobertura da grande imprensa.
No São Paulo Fashion Week, por exemplo, fala-se em algumas centenas de
jornalistas de veículos de comunicação brasileiros, e dezenas de estrangeiros. Estima-se
que “[...] em 2001, ela gerou um total estimado de R$ 100 milhões em mídia
espontânea, mais de 2.500 páginas de jornais e revistas e quase 200 horas de
transmissão pela TV [...]
41
Essa explosão midiática da moda brasileira é, ao mesmo tempo, razão e reflexo
do momento em que a moda entre na moda no Brasil. Lê-se sobre moda e fala-se sobre
moda com naturalidade inédita. E durante as semanas dos principais eventos nacionais,
dificilmente a os jornais deixam de publicar páginas e páginas dedicadas a descrever
tanto os desfiles e as peças desfiladas, quanto o público freqüentador.
Além da já extensa cobertura dos veículos de comunicação mais tradicionais, há
também uma importante atuação por parte dos sites (especializados em moda ou de
conteúdo jornalístico, ou simplesmente “portais” de provedores de internet) que
atualizam diariamente as informações sobre todos os desfiles que acontecem nos
grandes eventos.
41
De acordo com o sítio oficial do São Paulo Fashion Week, www.spfw.com.br, acessado em julho de
2005.
122
Revistas de moda, como Elle e Vogue, ou femininas de comportamento, como
Cláudia e Marie Claire, apresentam em suas edições de julho e fevereiro (normalmente
os eventos acontecem em junho e janeiro) muitas páginas a respeito das tendências
lançadas no São Paulo Fashion Week e Rio Fashion.
A Revista Caras, supostamente menos voltada para a moda e mais para a crônica
social, vem publicando uma edição especial a cada temporada, com fotografias de todos
os desfiles do eixo Rio-São Paulo, e comentários da jornalista de moda Regina
Guerreiro.
O comparecimento numeroso de membros do show business (atores, atrizes,
cantores, cantoras, modelos, diretores) e socialites do “tout Rio” (ou São Paulo) fazem
dos eventos muito mais do que encontros profissionais e meio divulgador de trabalhos
do setor de moda. No Rio Fashion e no São Paulo Fashion Week, os flashes dos
fotógrafos estão muito mais direcionados para o púbico dos eventos do que
propriamente para a passarela.
Os convites para ambos os eventos são extremamente disputados. Normalmente
são apenas concedidos para a imprensa credenciada, clientes preferenciais (e
normalmente muito preferenciais, que compram há muitos anos ou que compram
muito), e provavelmente como estratégia de divulgação do acontecimento e da marca,
variados tipos de “celebridades” e do show bizz (do ex-big de programas de reality show
até a senhora da nova sociedade emergente).
Os que ficam de fora da restrita lista de convidados recorrem a amigos, acionam
possíveis contatos, fazem pedidos a organizadores e a grife. Segundo a reportagem da
Revista do Globo de 12 de junho de 2005, que traz como título “Em busca de um
convite: eles se armam de mil e uma estratégias em busca de um tesouro: a chave
mágica que abra as portas dos Fashion Rio”, são comuns também táticas menos lícitas,
123
como comprar de convites falsos e suborno a seguranças. Mentiras a respeito de ser
parente de algum famoso, do mundo midiático ou político, também são freqüentes.
Eloysa Simão (apud Helena, 2005), organizadora do evento, comenta que “é um tal de
primo de figurão que, se fossemos levar a sério, ninguém mais assistiria aos desfiles.”
Além do interesse do público pelos eventos, a presença da moda brasileira em
outros espaços também reforça a idéia de que está sendo construída uma cultura de
moda no Brasil. As livrarias têm sido lugar privilegiado da moda, e foram lançados
recentemente pela editora Cosac & Naïf uma série de livros sobre e de estilistas
brasileiros.
De Carlos Miele, da M. Officer, são dois livros (o primeiro lançado em 1999 e o
segundo em 2001), com fotos de coleções e biografia. Em 2002 foi a vez de Alexandre
Herchcovitch. E em 2003 sai o livro de fotografias produzido em co-autoria por Paulo
Borges e pelo fotógrafo Bob Wolfenson, intitulado “Moda no Brasil por brasileiros”.
Esse último, entretanto, traz mais “brasileiros da moda” do que propriamente “moda no
Brasil”, as fotografias são retratos de figuras do campo, tanto modelos e estilistas
quanto produtores e assistentes.
Outros ambientes em que a moda penetra, no Brasil, são o teatro e o museu. Em
viagem de campo para São Paulo, em novembro de 2004, percebi que estava justamente
indo ver a moda não em passarelas, mas nesses dois espaços da dita “alta-cultura”.
A exposição “Fashion Passion: 100 anos de moda na Oca” aconteceu em São
Paulo, no Parque do Ibirapuera, sob curadoria de Florence Muller. A exposição trouxe
para o público, de julho até dezembro de 2004, uma série de peças históricas da alta-
costura francesa, e dedicou um andar de exposição para a moda brasileira.
Também no teatro, em de 2004, a moda entrou em cena, por conta da montagem
da peça “Mlle. Chanel”, com Marília Pêra atuando no papel da estilista, e figurino
124
emprestado da própria maison francesa. Depois de alguns meses em São Paulo, sempre
com lotação máxima da sala, a peça faz uma temporada em Paris, ainda que encenada
em francês, como parte da programação dos eventos do “Ano do Brasil na França”, em
2005.
O grande número de cursos, não mais apenas técnicos mas também
universitários, preparatórios para profissões ligadas à moda, também podem ser
considerados uma fala importante sobre a importância que a moda assume no país. Ela
se profissionaliza como nunca, sob forma de cursos de nível superior e mesmo pós-
graduação, tanto em capitais brasileiras quanto em cidades menores, mas geralmente de
alguma importância como pólo industrial de vestuário ou calçados.
No País, a primeira faculdade de moda foi a Santa Marcelina, em São Paulo, que
oferece o curso desde 1988. Companheira da moda, nessa mudança de curso técnico
para superior, é a gastronomia. Segundo Knapp (2003), “a profissionalização de setores
em que imperava a intuição coincide com o maior interesse que têm despertado a moda
e a gastronomia no Brasil”.
A maior concentração de faculdades de moda está, sem dúvidas, em São Paulo.
Só no estado são 16 diferentes cursos oferecidos, segundo o portal Universia
42
. O
restante do país, entretanto, não está menos favorecido na área. Há cursos em desenho
de moda ou estilismo em universidades privadas, e também públicas, como as
universidades federais do Ceará e de Goiás, e as estaduais de Minas Gerais e de
Londrina, no Paraná, também contribuindo para a profissionalização do campo.
42
www.universia.br
125
2.8 - Moda made in Brazil
A produção de moda brasileira é tradicionalmente voltada para o mercado
interno e, em termos quantitativos, ainda ocupa posição marginal como exportadora no
mercado mundial. Em termos quantitativos, a maior parte da produção têxtil brasileira
para exportação é voltada para a Argentina, Chile e Estados Unidos. A competição com
países da Ásia, grande produtores/exportadores de vestuário, dificulta a entrada do
produto têxtil brasileiro no mercado externo, uma vez que o custo dos produtos asiáticos
é muito menor do que o das mercadorias brasileiras.
Uma alternativa que parece estar sendo desenvolvida contemporaneamente é a
de aumentar as exportações não em termos de quantidade de produtos, mas de
diversificação e investimento em exportação de mercadorias com maior valor agregado,
mais ligados à moda, e não simplesmente à manufatura têxtil. A estratégia da indústria
nacional frente à exportação relaciona-se portanto à incrementação da qualidade,
design, estilo e propaganda no exterior.
É principalmente a partir do final da década de noventa que os produtores de
moda brasileiros – justamente desses bens de consumo com maior valor agregado -
começam a ganhar prestígio e a aumentar seus pontos de venda no exterior. O jovem
estilista brasileiro Alexandre Herchcovicth atualmente vende suas criações em lojas
multimarcas de Hong Kong, Alemanha, Itália e Inglaterra. Lino Villaventura, que no
país tornou-se mais conhecido pelo grande público por produzir roupas exclusivas de
alta-costura para a apresentadora de programas infantis Xuxa Meneghel, exibe suas
roupas em lojas no Japão, Estados Unidos e Inglaterra. Grife brasileira Forum
inaugurou, em 1999, uma filial nos Estados Unidos para vender os produtos de sua
marca USA Forum Tufi Duek (nome do estilista da marca). A Zoomp inaugurou, em
126
setembro de 2000, showroom exclusivo na França, para vender sobretudo o jeansweare
da marca.
A grife paulista de maiôs e biquínis Rosa Chá, fundada em 1989, atualmente
vende suas coleções em noventa pontos de venda, nos Estados Unidos, diversos países
Europa, Japão e Oriente Médio
43
. No segundo semestre de 2000, a Rosa Chá desfilou
sua coleção na Semana de Moda de Nova Iorque, 7th on Sixth, evento que faz parte do
circuito internacional de moda. Seus produtos são vendidos, nos Estados Unidos, em
lojas como Sack’s e Barney’s. A receptividade do mercado americano aos produtos da
marca pode ser observada pela divulgação de sua moda praia em editoriais de moda das
versões estadunidenses de revistas especializadas em moda, como Vogue, Elle e
Bazaar.
A moda praia brasileira
44
é o carro chefe da atual onda de exportações, e as
empresas com maior visibilidade no exterior são Rosa Chá, de São Paulo, e Salinas e
Blue Man, do Rio de Janeiro. Além da moda praia, outros pólos importantes na
exportação de mercadorias - e de tendências - são o do jeans e do surfwear.
O Brasil é um grande mercado, não apenas produtor, mas também consumidor
de surfwear, figurando entre os cincos maiores mercados mundiais no setor (Fugulin,
2005). Segundo Tessari (2001), cerca de 90% das vendas de produtos de surfwear no
país é voltada para pessoas que não praticam o esporte, e, em sua maioria, moram longe
das praias. Os mercados potencialmente mais fortes estão presentes nos grandes centros
urbanos no país. Tal afirmação parece apontar para a valorização de um estilo de vida
relacionado ao surfe e aos esportes em geral
45
.
43
Amir Slama, estilista criador da Rosa Chá possui ascendência árabe.
44
A moda praia brasileira também será temática abordada no capítulo 4.
45
A emergência de grifes no mercado da roupa para ginástica, como a Brasil Sul (moda entre as
adolescentes de todo o país, e usada não apenas no espaço das academias) também aponta na mesma
direção.
127
Junto à moda praia e ao surfwear, o jeans brasileiro também é elemento
expressivo nas vendas para o mercado externo. A maior parte do prêt-à-porter de luxo
brasileiro possui sempre uma linha de jeanswear, geralmente um pouco mais barata do
que outras peças de roupa pronta de grife (vestidos ou alfaiataria, por exemplo), que
possibilita vendas um pouco menos circunscritas à elite, voltada igualmente para o
público de classe média nacional. A exportação do jeans brasileiro de grife sem dúvidas
é incrementada pelo imaginário construído no exterior a respeito da modelagem singular
da calça produzida no Brasil.
46
Ainda que não me seja possível datar com precisão o momento em que ocorre,
uma transformação importante tem lugar nos últimos anos: há um retorno, por parte da
produção e divulgação de moda no Brasil, à temática do nacional. A partir de pesquisa
realizada em períodicos brasileiros e franceses de moda, percebe-se, de forma
aproximativa, que essa modificação de postura tem início entre 2000 e 2002,
reforçando-se de forma significativa no ano de 2004, no Brasil.
Nos grandes eventos nacionais de moda ocorridos em 2004 e 2005, assim como
na escolha de imagens e discursos a respeito deles por parte da imprensa nacional, vê-se
uma presença hiperbólica de Brasil. Na França, o aparecimento de material divulgando
a moda brasileira é bastante escasso até 2003. Em maio de 2000, entretanto, Vogue
Paris publica notícia, com teor de descoberta, sobre o evento de moda paulista. A revista
diz que “le Brésil redonne à la mode des velleites d`aventures, en s`offrant comme une
terre vierge à exlorer. Un nouvel eldorado? "Jungle is chic!
47
. Na mesma reportagem,
avisa que os estilistas brasileiros contemporâneos estão longe do folclore barulhento e
colorido ao qual por vezes são identificados, seguindo com depoimento de um bastante
46
Essas representações dizem respeito à sensualidade do jeans brasileiro, e serão retomadas adiante.
47
No. 897, maio de 2000
128
conhecido entre eles, que avisa que fazemos outras coisas por aqui além de ir a praia e
usar fio dental. E, ainda, assim jungle é chic.
A partir do fim de 2003, inicio de 2004, a presença de material sobre a moda
brasileira divulgado na França, em termos quantitativos, cresce de forma importante.
Em 2004 e 2005 as aparições, dessa vez com expressiva utilização de elementos
referentes à “brasilidade”, tornam-se abundantes, tendo como seu ápice o período dos
eventos do Ano do Brasil na França. Em junho de 2005, a revista Vogue
48
dedica quase
integralmente sua edição do mês ao “Brûlant Brésil”, e no mesmo mês a revista
L’Officiel
49
realiza reportagem de seis páginas que recebe o título de “Golden Brasil”.
Assim, é nesse duplo movimento de divulgação internacional conjugada com o
retorno às temáticas nacionais, que se apresenta o campo da moda brasileira tal qual
aqui se procura analisar. E são as representações da “nação brasileira”, veiculadas nessa
nova moda nacional, que dão cor e forma para os capítulos a seguir.
48
Vogue Paris. Junho/julho 2005. No. 858
49
L’Officiel. Junho 2005. Pg 103-109.
129
130
Uma vista aérea de Paris. No centro da fotografia o rio Sena e suas pontes, como
sempre, dividem dois mundos. À direita do rio, rive droite, intacta. À esquerda do rio,
uma floresta tropical toma conta da rive gauche. A vegetação abundante e fechada não
deixa ver nenhum edifício. No alto, surgindo em meio a copa das árvores, apenas a torre
Eiffel pode ser identificada. Assim é o primeiro anúncio publicitário que divulga a
chegada de uma marca brasileira de cosméticos na França.
A natureza exuberante, quase arrebatadora, que germina e impregna-se por toda
parte, é uma sedutora representação do Brasil em nossa moda de vestir, assim como é
metáfora do país fora de suas fronteiras. Fauna e flora inspiram diretamente motivos
figurativos em nossas estampas e padronagens. Ao mesmo tempo, a natureza percebida
como molde para um caráter nacional brasileiro (ou como sua segunda natureza), serve
de linha mestra para coser nossa moda, mesmo aquela dita desprovida de
“papagaiadas
50
”.
50
A Revista Veja, em reportagem publicanda em 1º de novembro de 2006, tratando da moda brasileira
contemporânea, sugere o afastamento de nossa produção dos estereótipos “mais batidos”, resumidos ali
Printemps Magazine, abril 2005
131
3.1- Minha terra tem palmeiras
De acordo com Thiesse (2001) o uso da natureza e das paisagens nacionais é
freqüente na construção das nações e das identidades nacionais. No caso brasileiro,
entrentanto, recorre-se não apenas a idéia de “uma natureza” e “uma paisagem” tipicas,
mas igualmente “A Natureza” como constitutiva daquilo que há de mais típico no país.
Corriqueiras são as falas do senso comum e da mídia que nomeiam o Brasil, graças as
suas florestas, como “pulmão do mundo”. Segundo com Murrieta (2001):
“Poucos lugares no mundo são tão identificados com a sua natureza quanto a
Amazônia. Uma natureza que toma dimensões míticas no imaginário popular,
povoando-o de paisagens espetaculares de rios e florestas colossais habitados por
homens “primitivos” e animais “quase-pré-históricos”; todos vivendo num estado
“congelado” de perpétua harmonia com o ambiente que os rodeia.”
É bem verdade que nossa floresta amazônica, ocupando importante parcela do
território brasileiro, tem merecido destaque nesse imaginário que relaciona o Brasil à
natureza. Bem longe dela, entretanto, em grandes centros urbanos do Sudeste do pais,
como Rio de Janeiro e São Paulo, também é a natureza (dessa vez ainda mais idílica e
menos hostil) que brota nos discursos sobre o que há de mais “brasileiro” em nossa
moda.
Em desfile de junho de 2005, no Fashion Rio, uma marca brasileira de moda
praia apresenta coleção de peças com estampas de flores, coqueiros, folhagens e frutas.
Os abacaxis, estampados em tecido de fundo branco de maiôs e biquinis, formavam
conjuntos com colares de penduricalhos que imitavam frutas e, por vezes, o uso de um
enorme brinco (em apenas uma das orelhas das modelos) imitando uma folha gigante. E
se as frutas eram pequenas, acompanhando o tamanho das peças de roupa de praia, o
como “papagaiadas”. A publicação não se furta, entretanto, a recorrer a explicações sobre a “natureza
exuberante” do Brasil para explicar as particularidades de nossa moda “critiva”, “colorida”, “alegre”.
132
cenário do desfile era composto por gigantescas flores amarelas e vermelho-alaranjadas
e folhas verdes. Ainda no mesmo evento, uma marca de moda feminina fez uso de
grandes folhagens e folhas nas estampas das roupas que desfilou.
No evento de moda porto-alegrense, em 2004, a natureza brasileira, dessa vez
ilustrada também por sua fauna, esteve presente em desfiles de duas marcas de pret-à-
porter de luxo. A primeira delas, ao som da música “América do Sul”, na voz de Ney
Matogrosso, mostrou camisetas com araras bordadas em lantejoulas e brilhos e
estampas de folhagens verdes em peças masculinas e femininas. Uma blusa branca, em
seda, trazia a estampa fotográfica de uma onça, em azul. A onça também voltava
estampada, agora em suas cores naturais, em camisetas masculinas. Além da onça,
havia papagaios e tucanos, as vezes estampados e outras vezes bordados em lantejoulas,
espalhados pelas mais variadas peças de roupa.
A outra marca de pret-à-porter de luxo, dessa vez tendo como trilha sonora de
abertura a música “Bate Macumba”, dos Mutantes, apresentou roupas em jeans com
bordados de tucanos. Algumas modelos desfilavam com sacolas de feira recheadas de
Fashion Rio 2005 Fashion Rio 2005
133
frutas aparentemente naturais. Uma delas, bastante famosa, usava um enfeite de cabeça
do qual pendiam flores amarelas e folhagens compridas.
Jornalista gaúcho de moda, gravando um programa de televisão ao vivo no
evento, comenta que
“Quando um estilista coloca as cores do Brasil, nossos pássaros, as nossas borboletas
[...] não há quem não se emocione. [...] a galera está se esmerando em mostrar o nosso
tropicalismo, a nossa brasilidade, as cores que a gente curte no Brasil, a sensualidade da
mulher brasileira”.
Na cobertura feita por revista brasileira sobre os eventos do Rio e São Paulo de
2004, significativa ênfase também é dada as coleções que faziam uso de elementos
brasileiros, como as frutas tropicais, as folhagens e os animais.
Igualmente em caderno especial de moda de dezembro de 2004, jornal paulista
divulga as tendências que estarão em alta no ano seguinte, avisando sobre o “natal
tropical”. Nele há um grande número de peças com estampas que remetem a natureza
brasileira: as mesmas folhagens, pássaros e frutas. Os valores das peças, informação que
Caras Especial Fashion, setembro 2004
134
acompanha sua fotografia, quase sempre ultrapassa os três digitos. Um par de sapatos,
bastante fechados e de modelo simples, sem muitos recortes, forrado de tecido azul
estampado com folhas verdes custa mais de seissentos reais.
Folha de São Paulo, 17/12/2004
135
O luxo inspirado na natureza brasileira também aparece nas jóias em ouro e
pedras produzidas por joalherias brasileiras. Em revista de informe publicitário de uma
grande joalheria nacional, junto a texto que versa sobre vestir-se “de Brasil”, há a
imagem de um colar de pedras que tem suas cores assim descritas: “o verde das
turmalinas e o amarelo ouro das jóias da coleção Purãngaw
51
compõem um cenário que
lembra a riqueza da mata brasileira”.
As pedras brasileiras durante longo tempo foram produto quase turístico do país.
Mesmo quando negociadas a altos valores dentro das grandes joalherias brasileiras,
mantinham um caráter de souvenir do tipicamente brasileiro. Elas, ainda que muitas
vezes polidas e trabalhadas pela mão humana e de acordo com procedimentos técnicos
especializados, encantavam o turista estrangeiro muito mais por representarem a riqueza
da terra, a dádiva da natureza brasileira.
Em uma das lojas brasileiras que visitadas em Paris, havia grande quantidade de
acessórios de moda elaborados a partir de pedras brasileiras. Colares, pulseiras e brincos
multicoloridos espalhavam-se pelas estantes. De acordo com a vendedora da loja eram
um dos produtos mais vendidos, procurados sobretudo por determinado tipo de cliente:
mulheres, européias (nem sempre francesas), de uma faixa etária mais avançada. Em
suas palavras, “senhoras, porque as moças mais jovens acham bonito mas acham meio
over
52
demais”. As “moças mais jovens”, no entanto, consomem acessórios feitos de
outras “jóias da natureza”, dessa vez orgânicas: contas de madeira, sementes, fios de
palha.
Em entrevista, uma dessas consumidoras comenta serem também as sementes
brasileiras um tipo de jóia, um material nobre. E o maior valor estético delas, segundo a
moça, é o fato de terem sido obras da natureza, já que
51
Coleção de jóias cujo design é dito como inspirado em objetos indígenas, como botoques e penas.
52
O tema do excesso será abordado no final desse capítulo.
136
“ [...] toutes les formes, les couleurs, les dessins, les entailles, sont faits par la nature.
C’est un cadeau de la nature. Les dimensions sont irrégulières, on ne peut pas le faire
industriellement dans une chaîne de production. On ne peut pas les reproduire, c’est
unique.”
Material também bastante utilizado na fabricação de tais acessórios de moda é a
jarina, a semente conhecida como “marfim vegetal”. Tal material, algumas vezes
misturado a metais nobres como ouro e prata, foi utilizado em algumas jóias expostas
no Jóia Brasil. Lá, embora todas as peças apresentadas fossem minuciosamente
trabalhadas, tal qual obra de arte, conversando com aqueles que visitavam o evento
quando lá estava, foram numerosos os elogios proferidos as nossas pedras belas e
coloridas, e à jarina, tão em voga, de uma beleza que “deve ser bem aproveitada”.
José Murillo de Carvalho (1998), após historicizar a presença da razão edênica
no imaginário brasileiro, apoia-se em pesquisas de opinião, realizadas no Brasil em
1997, para demonstrar a permanência de tais imagens no país. A manutenção das
representações de nossas belezas naturais, de sua grandiosidade e exuberância, das
riquezas do solo (ao ponto de nos fornecer preciosas jóias naturais!), da amenidade do
clima e ausência de calamidades como constitutivas das qualidades do Brasil, é
explicada por ele a partir de sua oposião ao que chama de razão satânica. A razão
satânica apoia-se, por sua vez, em representações negativas do brasileiro, da pequenez
do humano que habita a grandiosa paisagem natural, refletida na ausência de
positivação de fatores sociais e políticos do Brasil por parte de seus habitantes.
Quase que na contramão da unânime positivação da natureza em detrimento do
trabalho humano, uma mudança acontece, justamente no setor joalheiro, nos últimos
tempos. Algumas dessas grandes joalherias brasileiras, antes sobretudo revendedoras
das “pedras turísticas”, que eram o carro-chefe de suas jóias, passam a criar linhas com
maior investimento em design. Segundo vendedora de uma dessas joalherias, essas
linhas são inicialmente mais voltadas para o mercado interno, mas passam também a
137
vender bem no exterior. Ainda que não sejam mais “pedras com jóias” – e não jóias
com pedras, o já que fundamental da jóia era a própria pedra – tais linhas não deixam de
fazer referência ao Brasil, e tampouco à natureza brasileira.
Em evento de moda brasileira na França, revista promocional
53
de grande loja de
departamentos anuncia a venda de jóias brasileiras. Na fotografia, uma jóia em ouro em
formato de folha, encrustada de pequenas esmeraldas, é, segundo a revista, emblemática
de nossa “joaillerie en ébullition
54
”. Outra revista francesa de moda, falando de
acessórios brasileiros em geral, diz que a moda brasileira tem sobretudo “la fôret, les
indiens, la nature
55
” como inspiração.
É importante ressaltar que estamos aqui tratando de dois movimentos distintos.
Um é aquele que faz uso de matérias-primas naturais e, graças à elas, estabelece sua
associação com a natureza. O outro movimento é aquele que apenas busca inspirações
na natureza, tal qual o uso de imagens de flora e fauna em estampas de roupas, assim
como a utilização de formas que as reproduzem. A inversão operada no campo da
joalheria dá-se justamente na passagem de um movimento ao outro. Na moda de vestir
também os dois processos acontecem.
No Brasil, o recurso associativo entre moda inspirada na natureza e brasilidade
não é menos direto. Em conversa com assistente de estilista que desfila no SPFW,
quando perguntado sobre as estampas privilegiadas, ele diz que “o tropical está na
moda, e o pessoal faz uma coisa bem brasileira, com as nossas plantas e cores, pra
mostrar que é brasileeeeeiro”, movimento que, segundo ele, “é bacana, porque já chega
de só copiarmos de fora [do exterior]”. Ele me lembra também que foi lançada “não por
53
Printemps Magazine, abril de 2005.
54
Expressão que evoca não apenas o nascimento/surgimento do setor, mas igualmente imagens de
explosão e altas temperaturas que, como será tratado ao longo desse capitulo, são fortes no que concerne
as representações sobre nossa moda inspirada em nossa “exuberância” natural e humana.
55
Vogue Paris, junho/julho de 2005.
138
acaso” uma linha de chinelos de borracha com plantas (flores) e animais
56
brasileiros
estampados na sola.
A “natureza luxuriante
57
” brasileira, segundo a imprensa francesa forte fonte de
inspiração para a moda aqui produzida, além de representação do que é o Brasil aos
olhos franceses, também é fruto de nosso próprio imaginário – brasileiro – sobre o país.
A escolha não casual da marca de chinelos pelas estampas de fauna e flora acontece,
certamente, porque tais elementos “funcionam”: a natureza é em grande medida lida
como uma “qualidade brasileira”.
O próprio pensamento social brasileiro, em busca de nossas raízes identitárias,
historicamente se apoiou na idéia de que a natureza - fosse ela, dependendo do contexto
e da época, positivada ou negativada - seria fundante para a construção da nação
brasileira.
Embora essa busca de “raízes nacionais” remeta, segundo Dante Moreira Leite
(2002), em alguma medida já aos tempos coloniais, foi sem dúvida durante o período do
Romantismo que começou a tomar suas formas mais expressivas. Na literatura
brasileira ficcional desse período, é reconhecida a celebração da natureza tropical
56
Mico-leão, onça pintada, peixe-boi, entre outros.
57
Vogue Paris Vacances. No. 2 Julho 2005
Alguns modelos da linha de chinelos Havaianas mencionada.
139
brasileira e do índio, sempre situado num passado mítico e romantizado (como nas
obras de Gonçalves Dias e José de Alencar), como forma de positivar a imagem do
Brasil e, após a Independência, construir um imaginário de identidade minimamente
autônoma com relação a Portugal.
Além do romantismo e nativismo promovido pela literatura, convém ressaltar o
papel fundamental das teorias científicas e produções ensaísticas a respeito do Brasil,
desenvolvidas no final do século XIX e ao longo do século XX, para a elaboração de
narrativas a respeito da nação. Sua importância está antes de tudo no fato de que, em
diferentes momentos históricos e situações sociais, essas narrativas, tanto as otimistas e
positivas quanto as pessimistas, foram e são incorporadas aos discursos do senso
comum, e acionadas como parte do imaginário que o Brasil tem sobre si mesmo. Ponto
comum a quase todas essas narrativas sobre o caráter e a identidade do brasileiro é a
argumentação centrada no binômio “raça / meio geográfico”. Entendida algumas vezes
como uma das pontas de tal binômio, noutras como as duas, a natureza, generosa ou
perigosa, firma raízes na maneira brasileira de pensar o Brasil.
Mas simples representação imagética, no setor da moda, de flora ou fauna em
determinada estampa de roupa é suficiente para remeter, de forma automática e
identificadora, ao Brasil? A natureza pode ser vista como símbolo do país, mas como é
definido, na moda, o que é e o que não é representação da natureza? E qual natureza é e
qual não é imediatamente comunicativa de brasilidade?
Um tucano e uma arara bordados em camiseta talvez deixem menos dúvidas,
mas por qual razão, por exemplo, a bermuda com estampa de coqueiros não pode ser
expressiva de uma moda havaiana, no lugar de brasileira? E o luxuoso sapato forrado de
folhagens não poderia ser influenciado por uma jungle qualquer, imaginada como a que
nos inspira, porém desnacionalizada? A mera utilização de motivos naturais (e não
140
pouco exuberantes), como enormes folhas e folhagens, retratos de onças ou penas de
pavão, basta para que objetos de moda como os abaixo ilustrados sejam representativos
de “brasilidade”?
Vogue Paris, Fevereiro 2005
Vogue EUA, Abril 2006
Vogue Paris, Abril de 2006
141
Tais artigos de vestuário em muito se assemelham aqueles anteriormente
descritos, desfilados no Brasil e que, por suas inspirações na natureza, são entendidos
como “bem brasileiros”. O único ponto comum, entretanto, entre esses seis objetos
agora expostos, além das referências a flora e fauna, é o fato de não serem brasileiros.
Da esquerda para a direita, o primeiro vestido é criação de célebre marca italiana de
roupas femininas e o segundo é obra de um estilista inglês. A primeira bolsa, retratando
uma onça pintada e uma parda, também é de estilista italiano. As últimas três peças,
maiô, vestido e bolsa repletos de grandes folhagens, são de estilistas americanos. A
inspiração de todos eles, de acordo com as revistas onde são divulgados, é tropical, mas
não brasileira.
O uso de tais de imagens da natureza pela moda brasileira poderiam, portanto,
ser percebidos como simples reflexos de “tendências de moda” mais gerais, sem
qualquer referência ao nacional. Os vínculos entre elementos imagéticos que retratam
natureza e o Brasil não são, fazendo um jogo de palavras, “naturais”. Parece ser muito
mais através do discurso midiático, mais especificamente aquele do jornalismo de moda
brasileiro, que se (re)estabelecem semelhantes vínculos.
De acordo com uma revista brasileira de moda, inspiradas na “botânica” do
país-“paraíso”, as estampas de flores e folhagens “desabrocham”:
“Folhas: Ricas, fartas e poderosas, as florestas do Brasil inspiram uma infinidade de
estampas tropicais. A botânica dá o tom em peças de altíssimo verão
Flores: O paraíso é aqui. De todas as cores, formas, tamanhos e espécies, flores se
multiplicam e brotam em todas as vitrines do País.
58
Outra revista de moda, menos sóbria em suas análises, mas não menos
legitimadora no campo (e sobretudo nas escolhas de consumo), fala em “aquarela de
brasilidades” e, de maneira assaz bem humorada, assim descreve as coleções desfiladas
por dois estilistas brasileiros nos eventos de moda de 2004:
58
Revista Vogue Especial Passarelas 2005.
142
“[...] É verdade que os dândis invadiram a Amazônia? [...] floresta não falta na sua
passarela. [...] Não, darling, a nossa very sophisticated ladyo se perdeu. E vai que
vai pela selva adentro. Tanto que – ui! – o forro de um dos casquetos negros vira até
folhagem, em verdade do print verdejante, pura seiva pura
“Sua passarela ferve no melhor estilo “moro num país tropical”, trip que, aliás, de
repente virou uma obsessão-fashion nacional. Parece que – ainda que 500 anos after
Cabral – o Brasil está descobrindo o Brasil. Isso é ótimo. Nossa natureza é uma beleza
(os gringos babam de inveja)”
59
Como diversos autores (Douglas & Isherwood, 2004, Miller, 2002) apontam, os
bens de consumo, ainda que produtos da imaginação e esforço humano, não saem já da
linha de montagem carregando consigo sentidos culturais prontos. Os significados não
são intrínsecos aos bens, e tampouco se encontram completamente constituídos durante
o processo de produção.
Os discursos elaborados por instâncias legitimadoras como a publicidade ou,
nesse caso específico, o jornalismo e a crítica de moda, operam em grande medida a
transferência dos sentidos culturais para os bens de consumo. Classificando,
selecionando e nomeando, tais instâncias, de acordo com McCracken (2003), ajudam a
atribuir aos bens certas propriedades e qualidades existentes no imaginário social.
Segundo Baudrillard (1996), a publicidade funciona como uma espécie de
operador mítico, estando, portanto, longe de um universo onde as ações e discursos se
classificam em verdadeiros e falsos. O discurso publicitário estaria em grande medida
próximo da palavra profética: ele não explica ou propõe sentidos inteligíveis, apenas
classifica e define, produzindo uma síntese artificial do verdadeiro a partir das palavras
(e imagens!) eficientes.
Assim como a publicidade, portanto, a imprensa de moda faz uso de tais
“palavras proféticas”, definindo não apenas o que é consumível ou não, mas igualmente
descrevendo, classificando e nomeando para o leitor (que não esteve aos pés da
passarela) aquilo que foi apresentado. McCracken (2003) entende que a eficiência do
59
Caras Especial Fashion, setembro de 2004.
143
processo de transferência de sentidos se dá por conta da articulação entre os bens de
consumo (com suas qualidades objetivas) e as representações socialmente atribuídas a
eles. Assim, esse processo de transferência só teria fim na apreensão de tal discurso pelo
leitor/consumidor. O autor final de tal processo de transferência seria, portanto, o
consumidor que partilha das mesmas representações culturais utilizadas.
A ação do jornalismo e da crítica de moda, nomeando elementos figurativos
como estampas de folhagens de “natureza”, e imediatamente associando tal “natureza” à
“brasilidade”, só funciona portanto porque tais significados são culturalmente
compartilhados pelo público mais amplo, consumidor dos objetos ali classificados ou
simplesmente das idéias, tendências de moda, através deles materializadas.
3.2- Cartão postal
O uso de elementos que compõem o cenário natural têm sido sublinhado pela
imprensa de moda brasileira e francesa como um dos aspectos que concedem
singularidades a uma moda brasileira. Como foi demonstrado, seu uso não é tão singular
ou especificamente brasileiro. Dada a identificação entre Brasil e natureza no imaginário
social, entretanto, tal classificação, realizada pelo veículo divulgador e legitimador que é
a imprensa de moda, funciona razoavelmente bem.
Outro recurso empregado diz respeito a utilização, sob forma de estampas de
roupas ou como cenário para editoriais de moda ou peças publicitárias, de paisagens
emblemáticas do Brasil. Tais paisagens, ainda que fortes no que concerne a natureza, não
se restringem a ela. Espaço brasileiros considerados de patrimônio histórico (como Ouro
Preto, ou Brasília), ou monumentos (tal qual nosso Cristo Redentor), também povoam
nossa moda. Agora, entretanto, a utilização feita não é mais aquela de uma natureza
144
genérica e sim de um lugar específico e real, ainda isso não o prive de também ser um
lugar imaginado. Essas paisagens típicas brasileiras surgem através de retratos
fotográfico e reproduções em desenhos e pinturas. Do mesmo modo se fazem presentes
na escrita através de referências ou de suas descrições.
A escolha e promoção de paisagens ou lugares típicos é determinante para a
elaboração de identidades nacionais. A identidade nacional é um tipo de identidade
cultural que tem como especificidade o compartilhamento de sentimentos e
representações a cerca de uma comunidade política específica, a Nação.
De acordo com Weber (1994) a nação é uma comunidade de prestígio,
semelhante aos grupos étnicos, já que seria igualmente mantida por um mito de origem
compartilhado. A diferença entre a nação e o grupo étnico residiria no fato de a primeira
ser um projeto político. O autor argumenta que a nação estaria baseada em sentimentos
de prestígio e honra, e em valores compartilhados.
A existência de uma língua comum é critério na definição da nação, mas não é
essencial para sua existência. Compartilhar o mesmo tipo físico também não seria
imprescindível aos membros da nação, para sentir-se como parte de um grupo nacional,
ou para fundar uma nação.
Segundo Weber, a singularidade da nação está no campo político, já que uma
nação sempre tenderia a fazer parte ou a produzir um Estado nacional. A nação
enquanto projeto político, para existir, precisaria de uma missão, um legado para ser
deixado para as futuras gerações, e o compartilhar de um destino comum.
Renan (1994) propõe que se compreenda o nacionalismo como uma forma de
moralidade: uma solidariedade mantida por uma consciência histórica distintiva.
Segundo ele a idéia da nação estaria fundada no passado (através da posse de um legado
de memórias em comum) e no presente (através do desejo de viver juntos no agora, e
145
de perpetuar a herança comum). Ela seria formada por glórias compartilhadas no
passado, e confirmada (Renan fala inclusive na nação como “plebiscito diário”) pelos
desejos compartilhados no presente.
Além das glórias, os sofrimentos compartilhados também auxiliariam na
formação de uma identidade nacional. Haveria grande força na solidariedade construída
a partir do sentimento de sacrifício que foi feito em conjunto, e que se está disposto a
fazer novamente.
Diversos autores (Hobsbawn, 2002, Gellner, 1993, Hall, 2001) situam o
surgimento da idéia de nação na Europa do século XVIII. Ela seria, portanto, uma idéia
moderna, surgida em um momento político e histórico particular europeu, e herdeira de
um sistema de idéias também europeu. De acordo com Gellner (1993), a nação é uma
invenção histórica arbitrária, decorrente dos processos ocorridos na Europa do século
XVIII. Segundo ele, “é o nacionalismo que dá origem às nações, e não o contrário”
(1993). A “Era dos Nacionalismos”, segundo o autor seria mais do que a conjunção da
revelação e auto-afirmação política de uma ou outra nação. O nacionalismo é que,
fazendo uso de culturas e riqueza cultural preexistente, herdadas historicamente, daria
origem às nações.
A nação seria, segundo Anderson (1994), uma “comunidade imaginada”, e um
dos pilares fundamentais para sua existência seria a unificação lingüística, que não teria
tomado a forma que tomou não fosse o advento e a popularização da tecnologia da
imprensa. A nação seria uma comunidade imaginada no sentido de que sua existência
seria fundada nas histórias contadas sobre ela, nas memórias e imagens a partir dela
construídas.
Para o fortalecimento da imagem da nação seria necessário, retomando as
palavras de Weber (1994) sobre o passado comum compartilhado, desenvolver
146
narrativas sobre um tempo passado e uma tradição nacional. Essa tradição pode partir de
elementos existentes na memória coletiva de uma parte da sociedade nacional, mas
freqüentemente será reescrita e adaptada às necessidades da construção de uma fábula
sobre nação.
Hobsbwan (2006) fala em “invenção de tradições”, que segundo ele poderiam
ser tanto adaptações de coisas já existentes na cultura ou mesmo completa invenção.
Essas tradições inventadas, que serviriam para construção desse “passado
compartilhado”, se diferenciariam dos costumes porque contém em si a idéia de
característica imutável, ao contrário do costume, que estaria aberto a inovação e
transformação. Esse passado comum seria frequentemente criado junto com o próprio
Estado-Nação, sendo dado importante para a compreensão do fenômeno nacional.
Dundes (1985) usa o termo fakelore para referir-se a essas tradições inventadas.
O autor analisa a fabricação do poema épico Kevala, e sua aceitação como obra genuína
da cultura sueca. O fakelore seria um material a apresentado como “folclore genuíno”
da tradição nacional, mas que na realidade seria produzido com a específica finalidade
de colaborar na afirmação da identidade e do orgulho nacional.
Outras invenções além do passado comum que serviriam para o estabelecimento
da unidade simbólica da nação seriam, entre outros, um hino, uma bandeira, uma
literatura nacional. Löfgren (2000) refere-se à um verdadeiro “kit faça-você-mesmo-
nação”, ironizando esse inventário de características necessárias para a criação de um
Estado-nacional. Ele elenca, além da língua e da crença em um passado e um futuro
comum, uma cultura popular nacional, um caráter ou mentalidade nacional, valores e
gostos compartilhados, uma paisagem típica da nação, uma galeria de mitos e heróis, e
um conjunto de símbolos, incluindo a bandeira, o hino, e textos e imagens que
materializariam a identidade singular da nação.
147
Em seu desfile no São Paulo Fashion Week de julho de 2005, uma marca de
moda esporte de luxo e moda praia privilegia peças com estampas do Rio de Janeiro. O
release da marca, assim como os posteriores comentários divulgados na imprensa de
moda, versam sobre a utilização de imagens de uma “cidade maravilhosa” dos anos 50,
de um Rio de Janeiro antigo. Na saída do desfile, em um dos cafés do evento, um grupo
de senhoras (acompanhadas de suas netas que vieram do interior de São Paulo para
conhecer o SPFW) comentam o desfile, inspiradas pelas estampas das peças desfiladas e
também por suas formas, segundo elas “maiorzinhas, como a gente vestia na nossa
época”. Uma delas lembra de sua primeira viagem ao Rio de Janeiro: Acompanhando a
irmã mais velha, para cuidar de seus filhos, ela, ainda solteira, conhecera o que chamou
de “Rio de Janeiro dourado”, onde freqüentara a praia e também bailes em clubes da
cidade.
Nesse desfile, espaço-paisagem e tempo-memória se mesclam. No momento
presente, a partir dessa pequena referência a lugar e a época, uma memória pôde ser
reconstruída e narrada. Ela não deve ter sido a única a relembrar. E mesmo aqueles que
SPFW julho 2005
148
não viveram esse tempo-espaço puderam, de alguma maneira, identificá-lo. Seu uso (em
um desfile de São Paulo), provocador de um rememorar individual, funda-se sobre
imagens que, compartilhadas, discorrem sobre tanto sobre o Rio de Janeiro quanto sobre
o passado.
O Rio de Janeiro, de outros tempos ou contemporâneo, certamente é parte de um
elenco de lugares emblemáticos que compõem uma identidade brasileira, impressos em
nossa memória coletiva. Segundo Halbwachs (1997), a memória coletiva é também
construída espacialmente e na relação dos sujeitos com o espaço. Sendo, entretanto,
elaborada e reelaborada sempre a partir do jogo entre passado e presente, ela não se funda
necessariamente apenas num passado vivido.
Esses lugares emblemáticos evocadores de memória podem ser, assim, lugares
que não são conhecidos através da vivência e experiência individuais, e mesmo assim
fazerem parte de um leque de memórias coletivas que é atualizado no tempo presente.
Sua atualização em outro tempo e em outro espaço vai acontecer muito em função dos
jogos políticos e sociais desse outro tempo (agora) e desse outro espaço (aqui). É dessa
forma, portanto, que determinadas paisagens e lugares são escolhidos e se tornam
referência de memória, de patrimônio, e de identidade.
Prédios históricos e monumentos, além dos panoramas e vistas de paisagens
naturais, podem compor essas imagens que remetem a memoria coletiva e identidade. É
nesse sentido que, em campanha publicitária veiculada no Brasil no ano 2000
60
, uma
marca de sapatos usa como cenário para promoção de seus produtos fotografias de Ouro
Preto
61
.
60
Ano em que acontecem as polêmicas comemorações “Brasil 500 anos”, analisadas por diversos autores,
como por exemplo Arruda (1999).
61
A construção de Ouro Preto, enquanto lugar de patrimônio histórico brasileiro, é analisada por
Gonçalves (2002).
149
A referência à cidade de Ouro Preto também foi encontrada na França, em
camisetas que, vendidas em loja brasileira, traziam a estampa dos profetas de
Aleijadinho. Perguntando sobre serem as camisetas “bem vendidas”, e a razão, os
vendedores da loja relatam que, algumas vezes, explicavam ao cliente o que eram aquelas
esculturas. Embora, segundo eles, todos soubessem que se tratasse do Brasil, pelo lugar
onde eram vendidas, “que é do Brasil sabem, até porque vende aqui”, nem todos sabiam
exatamente o que eram e em que parte do Brasil estavam. Na imprensa francesa, durante
o ano do Brasil na França, diversas referências a Ouro Preto foram encontradas.
Mostrando as reportagens para dois consumidores franceses entrevistado, entretanto, seus
Elle Brasil, abril de 2000
150
únicos comentários foram sobre “arte sacra” e, vindo de uma consumidora que trabalha
no meio artístico, sobre “barroco do Brasil
62
”.
Sua automática identificação é menos certa, portanto, do que aquela de outros
cenários, como, por exemplo, o Rio de Janeiro. E tal afirmação não se aplica apenas ao
público francês. Na fotografia de Ouro Preto divulgada no Brasil na publicidade de
sapatos consta, no lado direito e inferior da foto, uma legenda explicativa na qual se lê
“Ouro Preto – MG”.
Nas fotografias, também do setor da moda, onde figura a paisagem do Rio de
Janeiro nenhum tipo de legenda se faz necessário. Apenas as imagens, sejam de vistas
panorâmicas da cidade ou de seu aspecto mais urbano, como o “calçadão” carioca, são
suficientes para estabelecer a referência entre a reprodução imagética do lugar e o lugar.
62
Referências a um “barroco do Brasil” - ou a um “Brasil barroco” - também estão presentes quando se
trata de definir um estilo brasileiro de moda de vestir balizado pela idéia de excesso, temática que será
abordada mais adiante.
L’Expressmag 21 de março de 2005 Elle Brasil , abril de 2000. Vogue Paris, junho/julho de 2005
151
Tal fato deve-se provavelmente ao uso mais constante e mais antigo do Rio de
Janeiro enquanto lugar emblemático do país. Uma vez que a construção de tais lugares
se dá menos pelo vivido e mais pelo imaginado, é justamente através de sua circulação
(sob forma de imagens ou de discursos) que eles se estabelecem como referência ao
ponto de serem imediatamente identificados. De acordo com Thiesse (2000),
“Nous savons aujourd'hui, en regardant une affiche touristique, deviner la destination
proposée. Mais si nous pouvons sans hésitation associer un paysage à un pays, c'est
parce qu'un intense travail de codification de la nature en termes nationaux a été
accompli [...] Comme les monuments historiques, les paysages emblématiques vont
faire l'objet de promotions iconographiques et littéraires, largement vulgarisées ensuite
par la photographie, les cartes postales, les affiches.”
Anderson (2006) por sua vez, a partir de pesquisa em arquivos de fotografias
publicitárias de roupa maculina do final do século XIX, demonstra como a moda pode
também ser palco e veículo para o fortalecimento das relações entre paisagem e
identidades nacionais (e no caso por ela estudado igualmente identidades de gênero). O
tweed, que a autora mostra ser usado tanto em contextos urbanos quanto rurais da época
(ainda que seu uso urbano, na realidade, prevalecesse) era divulgado em fotografias
publicitárias sendo usado em ambientes rurais, geralmente associados à caça, fazendo
referência a uma paisagem escocesa pensada no mundo urbano como a autêntica Escócia.
Dessa forma, além de tentativa de referência ao Brasil (identificando o produto
associado a imagem ou ao cenário como “brasileiro”), o uso de tais lugares emblemáticos
pode ser lido até mesmo como processo, e não resultado, de estabelecimento dessas
associações. Ademais de promover uma moda brasileira, esses lugares apresentados,
sobretudo na França, ajudam a constituir a própria representação do que é o Brasil e de
quais são os seus “lugares de memória”.
A noção “lugar de memória”, como conceituada por Nora (1992), não inclui
apenas o “lugar” no sentido geográfico e espacial no termo. Eles são, de acordo com o
autor, “lieux [...] dans les trois sens du mot, matériel, symbolique et fonctionnel”. Pode
152
ser um lugar de memória, portanto, tanto uma paisagem quanto uma música, ou um
personagem nacional, ou uma receita de comida. Os lugares de memória de que fala
Nora, entretanto, seriam justamente aqueles nos quais a memória sobre o passado é
construída no presente: eles necessitam, no aqui e no agora, ser retratados, discursados,
propositalmente lembrados e comemorados.
O Brasil retratado na moda brasileira, percebido como terra multifacetada,
suscita diferentes tipos de paisagem. Também a arquitetura modernista de Brasília, não
menos lugar de memória e patrimônio histórico brasileiro, é empregada como inspiração
em nossa moda de vestir. Na feira de negócios para exportação Fashion Business uma
série de peças de vestuário feminino (saias, blusas, vestidos) apresentadas eram
decoradas com apliques tipo pachtwork de tecidos, ou bordadas, com desenhos
geométricos. De acordo com os responsáveis pelo estande onde estavam sendo
mostradas eram “símbolos da arquitetura de Oscar Niemeyer”.
O estande, além dessas peças, vendia uma série roupas de crochê, de retalhos,
feitas a mão, e também bijuterias artesanais. A feira Fashion Business agrega pólos
regionais de confecção, e recebe muitos compradores estrangeiros. Nesse mesmo
estande uma compradora mexicana escolhia peças para levar para sua loja no México.
Ela buscava, sobretudo, peças artesanais, que dizia vender em sua loja como
“brasileiras” mesmo que fossem, ali, regionais (vendidas no pólo de Brasília). Também
comprou, entretanto, algumas roupas dessas descritas como inspiradas em Niemeyer,
porque aprendia ali que eram reproduções de algo “brasileiro”.
De acordo com as vendedoras e atendentes do pólo, estavam ali com produtos de
diferentes empresas, grupos e cooperativas, tentando mostrar para o comprador
estrangeiro coisas “típicas e diferentes, que só tem no Brasil”. Brasília e a modernista
arquitetura de Niemeyer tornam-se, assim, também lugares emblemáticos, típicos.
153
No São Paulo Fashion Week de 2005 Niemeyer foi novamente evocado. Em
desfile de pret-à-porter feminino de luxo, onde foram mostrados sobretudo vestidos de
festa, o cenário era composto por imagens da Casa das Canoas. Tais imagens eram
projetadas nas paredes do salão de desfiles, dando a impressão de que o público – a as
modelos que desfilavam as roupas da marca – estavam dentro do ambiente.
A Casa das Canoas, que de acordo com o sitio oficial de Oscar Niemeyer foi
projetada
“[...] em 1951 para sua moradia e da família, é considerada um dos mais significativos
exemplares da arquitetura moderna brasileira, sendo notoriamente reconhecida por
especialistas de história e crítica da arte [...] como síntese apuradíssima e premonitória -
ao iniciar-se a Segunda metade do século - da arquitetura moderna de livre criação
autoral que floresceu na Europa e nas Américas, justamente a partir de então.”
63
Atualmente a casa, localizada no Rio de Janeiro, foi transformada em museu e
está aberta para a visitação do público. Ela é, ou aspiram que se torne, um lugar de
memória.
O sertão também esteve representado como paisagem brasileira regional nos
eventos de moda espetáculo, em desfile de marca de pret-à-porter feminino de luxo do
Fashion Rio. No cenário do desfile havia uma árvore seca, enorme, sem folhas. O chão
é alaranjado, lembrando terra também seca e rachada. As roupas desfiladas eram feitas
em tecido de algodão e linho, sobretudo crus. Algumas peças eram de tecido mais fino e
transparente, tipo gaze. De acordo com estilista de sapatos da marca, a temática da
coleção dessa estação é o “sertão nordestino”, segundo ela porque: “a tendência mundial
para o verão é a África, então a [grife] fez uma releitura da África para o Brasil,
mostrando a nossa África que é o sertão”. Sobre a “nossa África” os comentários do
público, ao final do desfile, versavam sobre “bom retrato do sertão do Brasil”, e a razão
63
Site oficial de Oscar Niemeyer, http://www.niemeyer.org.br/canoas/canoas.htm, acessado em outubro
de 2006.
154
do “bom retrato” era o uso de “cores parecidas, bastante cor terrosa, um aspecto de
sujinho, até nas modelos, e essa cara de seca, árvore morta, chão seco.
64
”.
Na França, as paisagens brasileiras mostradas em nossa moda de vestir são
menos múltiplas. Nos textos das publicações francesas de moda o Brasil autêntico parece
se situar em algum ponto englobado pela triangulação Rio de Janeiro – Amazônia –
Bahia. Se nossa moda busca inspiração no Rio de Janeiro, terra sobre a qual “[...] veille
le Christ Sauver
65
”, também a encontra “du ver Amazone aux turquoises de Bahia [onde]
le colorama claque à l’intense
66
.
64
Referência a maquiagem utilizada no desfile, que dava a pele das modelos aparência de bronzeado não
uniforme, manchado.
65
Vogue Paris Vacances. No. 2, suplemento do no. 858. julho de 2005.
66
Vogue Paris Vacances. No. 2, suplemento do no. 858. julho de 2005.
Fashion Rio
,
j
unho de 2005.
155
Nas entrevistas com consumidores franceses, a Bahia era freqüentemente
referida como o Brasil de influências africanas, não tão conhecido como o Rio de Janeiro,
mas muito apreciado e fornecedor de “bijoux aux coquilles [buzios]” e “rubans Bonfim”.
A Bahia imaginada, que não comporta divisões políticas ou geográficas como “Estado da
Bahia” ou cidade de Salvador, por ser antes de tudo uma Bahia paisagem-simbólica, é
terra de praias bonitas e de “soirées pour danser l’afro-brésilien”. Também é terra da
capoeira, e é justamente a imagem de uma pasaisagem de praia intocada, onde um grupo
de homens negros jogam capoeira, que consta nas camisetas onde se lê “Bahia – Brésil”
vendidas em uma loja brasileira em Paris.
De acordo com questionário elaborado pela versão eletrônica de um revista
francesa de moda, intitulado “Quelle brazilian girl êtes-vous?”, para aquela que é uma
garota-bahia
Le sable, le soleil et la mer, il ne vous en faut pas plus pour être heureuse l’été. Un
petit coup d’huile bronzante, de jolies lunettes de soleil et un bikini rikiki et vous voilà
partie pour une véritable journée de plaisir. Entre deux siestes, vous vous accordez
deux ou trois brasses dans une eau bleue et chaude ou une petite partie de volley avec
les beaux jeunes hommes de la plage.
67
A Amazônia, por sua vez, aparece como lugar de natureza virgem e selvagem,
forêt humide
68
” fonte dos cosméticos brasileiros consumidos na França, lugar de
origem da “ [...] beauté plus naturelle, venue tout droit de la forêt
69
”, habitada apenas
pelos índios cujo corpo, pintado e enfeitado, “parle aux dieux
70
”. Não há, por exemplo,
uma “brazilian girl” amazônica.
Mas os limites geográficos do triângulo podem ser elásticos. São Paulo, por
exemplo, é tida como cidade moderna. Grande metrópole, talvez por essa razão menos
encantadora. Um distribuidor de jeans brasileiro na França conta que em sua primeira
viagem (de negócios) a São Paulo, impressionou-se porque
67
Glamour Paris, http://www.glamourparis.com/index.php?id=4577, acessado em julho de 2006.
68
Match du Monde, março-abril 2005
69
L’expressmag 21 de março de 2005.
70
Match du Monde março-abril de 2005.
156
“São Paulo, c’est une grande ville, je le savais déjà, on m’avait dit chez [marca que
revende], mais voir sûr place a été pour moi un peu frapant. Je sais pas si je l’aime ou
pas. On dirait pas une ville brésilienne, trop urbanisée, trop riche, avec tous ces drôle
de restaurants haute cuisine, [...] les magasins branchés, et plein de japonais.”
É São Paulo, entretanto, o cenário onde uma revista francesa de moda diz
encontrar as mulheres brasileiras realmente bem vestidas. A procura no Rio de Janeiro
foi sem sucesso, já que por lá “sur les plages, de somptueuses beautés multicolorés en
bikini lilliputiens, mais aucune femme elegante à l`horizon
71
”. Já em “Sao Paulo
(prononcer SAN), la quête sera plus aisée car la concentration de richesse y est enorme
[...]”. E ainda que as por lá vivem circulem pela grande cidade “[...]en voiture blidée,
en taxi, en helicoptere ou en jet prive”, quase que para que para manter sua brasilidade
les weekends, elles échappaient vers Bahia, pour refaire leur bronzage”.
Também a “brazilian girl São Paulo” corre risco de, no ambiente menos
brasileiro, perder sua identidade. Sugere-se que ela esteja atenta: “à trop passer votre
temps dans les boutiques, vous en oubliez peut-être le plus important : la plage, le soleil
et le sable chaud!
72
Mais do que uma de suas pontas, o centro do triângulo simbólico certamente não
é outro senão o Rio de Janeiro. É ele, materializado sobretudo por seu Cristo Redentor,
a paisagem brasileira mais autêntica. Nas lojas brasileiras em Paris há um grande
número de camisetas estampadas com imagens do Cristo, algumas vezes sozinha e
noutras rodeado de vegetação. Em uma dessas butiques havia um maiô azul turquesa
que trazia estampa do Cristo Redentor, bem no meio da peça, estando os braços da
figura um pouco abaixo do recorte do busto.
Além do Cristo, outras imagens do Rio bastante presentes são as calçadas de
Copacabana. Na França, apareciam estampadas em camisas e saídas de praia. Ao lado
71
L’Officiel junho de 2005.
72
Glamour Paris, http://www.glamourparis.com/index.php?id=4577, acessado em julho de 2006.
157
das calçadas bicolores, os arcos da Lapa também eram motivo de estampas em
camisetas e apliques de tecidos em bolsas. No Brasil, uma marca de moda praia
desfilou, no Fashion Rio, algumas peças que também tinham sua estamparia inspirada
na geometria das calçadas cariocas.
Também no Brasil o Cristo Redentor é fonte de inspiração para nossa moda. Em
desfile do evento de moda gaúcho, em 2004, algumas manequins carregavam nos braços
grandes estátuas, em arame, do Cristo de braços abertos. Da mesma forma, no especial
de moda de revista brasileira, em sessão onde os estilistas respondem perguntas dos
jornalistas responsáveis pela publicação, lá estava o Cristo. Uma das perguntas feitas a
diversos estilistas era quem é “a cara da sua grife”. As respostas vinham tanto com a
descrição de um tipo de consumidor, por exemplo, “mulher jovem e independente”
quanto personificadas em nomes de famosos brasileiros (atrizes, atores, socialites). Um
dos representantes de uma grife de moda feminina, entretanto, responde a pergunta
Fashion Rio, junho 2005
158
dizendo que a cara de sua grife é “O Cristo Redentor, ele é o nosso ícone e também do
Rio de Janeiro
73
”.
O embaixador do Ano do Brasil na França certamente foi o Cristo carioca. Em
outubro de 2005, durante a nuit blanche
74
, na igreja Notre Dame de Paris foi projetada,
em azul, a imagem de um enorme Cristo Redentor. Das paredes da igreja, sua imagem
circulou pela imprensa francesa de moda, e também pela literatura. Romance que foi
sucesso de vendas na França em 2005, em pouco tempo já escasso nas prateleiras das
livrarias, foi “Corcovado
75
”. De autor francês, a obra mescla ficção e realidade,
contando ao mesmo tempo as peripécias de um marselhês expatriado no Rio de Janeiro
73
Revista Caras especial Fashion. 2005
74
Noite em que a cidade de Paris abriga diversos eventos e caminhadas noturnas e parte do sistema de
transporte funciona.
75
Delfino, Jean-Paul. Corcovado. Paris: Métailié, 2005.
Vo
g
ue Bi
j
oux
,
j
ulho de 2005.
Igreja de Notre Dame, Paris, outubro de 2005.
159
e a história da cidade. Seu protagonista, transformado pelo ambiente – paisagem e
natureza – que o recebe, percorre vários “tipos brasileiros”: encarna o malandro, o
bicheiro, o macumbeiro e o sambista, e mistura sua tragetória com aquela da contrução
do Cristo Redentor.
3.3- País das mil faces
A geografia simbólica triangular da nação, dizendo respeito aos lugares e
paisagens de um Brasil autêntico, pode ser vista como uma transposição espacial da tão
discutida triangulação étnica brasileira. O triângulo das três raças, nossa fábula nacional
(Da Matta, 1997), imagem a qual se recorre frequentemente para definir o Brasil e as
identidades brasileiras, tem, nessa geografia, suas três pontas representadas: a Bahia pode
ser vista como território do Brasil negro, a Amazônia o Brasil indígena, e o Rio de
Janeiro, o Brasil branco e mestiço, a corte e ao mesmo tempo o centro simbólico que
recebe e mistura as duas outras influências.
No pensamento social brasileiro a questão da diversidade étnica (e depois,
cultural), fosse ela tomada como aspecto postivo ou negativo do país, sempre esteve
presente nas construções a respeito de uma identidade brasileira.
Silvio Romero, a partir de uma mistura entre teorias de Darwin, Spencer,
Gobineau e Comte, elabora no final do século XIX “teorias científicas” para explicar a
nação brasileira. Segundo ele, o Brasil estaria praticamente condenado ao fracasso
devido à mistura de raças, a princípio negativa, e ao clima quente do país, que considera
prejudicial à saúde . O caráter do brasileiro, naturalmente apático e sem iniciativa,
segundo o autor, seria fruto da junção dos problemas climáticos e raciais da nação.
Sobre Silvio Romero, Dante Moreira Leite (2000) comenta:
“Como aceitava as teorias racistas e as teorias sobre a insalubridade do clima tropical,
esse nacionalismo será um conjunto de incoerências: num clima ruim, três raças
inferiores estão destinadas a um grande futuro”
160
Mas se Silvio Romero mostra-se descrente para com o Brasil, por outro lado
funda seu nacionalismo num futuro longínquo, e, adaptando as teorias darwinistas à
urgência do momento político da nação, propõe que a “melhora” da “raça brasileira”
deveria acontecer via branqueamento, através da imigração européia. Segundo sua
lógica, a mestiçagem (ainda que contraditoriamente vista por ele como prejudicial) com
o elemento branco acabaria por favorecer o povo brasileiro no futuro, já que a seleção
natural se encarregaria de garantir a sobrevivência dos melhores, para o autor, os mais
brancos ou “branqueados”.
No período anterior, a produção literária do romantismo não estava preocupada
com a presença do negro, e ele parecia nem ao menos existir. Lá estava o branco, e o
índio romantizado. Segundo Ortiz (2003, p.19), “em sua bricolage de uma identidade
nacional, o romantismo pode ignorar completamente a presença do negro”.
Também Euclides da Cunha centra sua análise nas influências da raça e do meio
geográfico para explicar a nação brasileira, de forma bastante explícita mesmo na
nomeação dos capítulos de seu livro Os Sertões, sobre a guerra de Canudos: “A terra”,
“O homem” e “A luta”.
A princípio igualmente inspirado nas teorias científicas européias sobre a
degeneração das raças a partir da mistura, Euclides da Cunha tende a ver a situação do
Brasil com olhos de preocupação. Acompanhando a guerra de Canudos, entretanto,
parece não conseguir conter uma nascente simpatia pelo jagunço. Ele opõe o sertanejo,
forte, “rocha viva da nação”, ao homem do litoral, supostamente mais misturado, com
mais contatos com o estrangeiro e com a vida facilitada pelo clima mais agradável.
A explicação para a virtude do sertanejo, apesar da mistura de raças que dão
origem a ele, vai ficar é claro no clima. Devido às dificuldades da vida no sertão geradas
161
pelo clima inóspito, apenas os mais aptos e mais fortes sobreviveram, gerando a “raça
sertaneja”, aprimorada pela seleção natural.
Segundo Dante Moreira Leite, se para Silvio Romero a solução estava no
branqueamento, para Euclides da Cunha ela estaria num quase “assertanejamento” do
Brasil:
“Euclides supunha que sertanejo constituía uma raça e, a partir dela, o Brasil poderia
desenvolver uma nação autêntica. (...) Para Euclides, o mestiço seria sempre um
desequilibrado, e só a raça sertaneja poderia constituir a raça brasileira”. (2002,
p.247)
Com Nina Rodrigues a problemática da identidade nacional brasileira adquire
caráter ainda mais claramente racista. Em seu primeiro livro, publicado pela primeira
vez nos últimos anos do século XIX, ele discute a posição das raças no Código Penal
brasileiro. Sua visão, pessimista e desgostosa para com o negro o índio, baseia-se
primeiramente na fisiologia do cérebro para explicar o que consideraria fraquezas e
inferioridades das raças não-brancas.
Para o autor, o negro, o índio e mestiço, por constituírem raças inferiores a raça
branca, deveriam ser penalizados diferentemente perante as leis do país. As raças tidas
por ele como inferiores não poderiam ser tão racionais e responsáveis quanto os
brasileiros brancos, e possuiriam uma mentalidade infantil, impulsiva, assim como uma
baixa moralidade.
Além de atribuir inferioridade a uma essência racial do negro e do índio, Nina
Rodrigues também vê de forma pessimista a mistura dessas raças, tanto entre si quanto
com a raça branca. O branqueamento, portanto, não seria uma solução, e traria mesmo
prejuízos ainda maiores para o país.
Nina Rodrigues elabora uma comparação entre as influências dos negros no
Brasil e nos Estados Unidos, e diz que o segundo país teria alcançado maior
desenvolvimento justamente por ser mais rígido no que concerne a mestiçagem. Além
162
da pouca mistura, o clima novamente é acionado para explicar o sucesso norte-
americano:
“Se os Estados Unidos conseguiam progredir, isso se devia ao fato de terem
estabelecido uma separação nítida entre brancos, de uma lado, mestiços e negros, de
outro; além disso, o clima temperado favoreceria os brancos na luta pela vida, enquanto
os trópicos favoreceriam os negros e mestiços.” (Leite, 2002:290)
Embora Dante Moreira Leite (2002, p. 362) e Renato Ortiz (2003, p.40)
identifiquem continuidade entre os trabalhos de Gilberto Freyre e dos outros ensaístas
anteriormente mencionados, a modificação dos conteúdos atribuídos à mestiçagem em
Freyre são evidentemente muito diferentes. Os argumentos sobre a continuidade dizem
respeito sobretudo à preocupação de explicar o caráter nacional, de forma ensaística, a
partir do passado da nação, das raças (no caso de Freyre de povos/culturas) e do meio
geográfico e clima (também muito presentes em Gilberto Freyre).
Gilberto Freyre vai buscar na mestiçagem não a explicação para o insucesso da
nação, mas justamente uma identidade particularmente brasileira. Com ele o mestiço e a
mistura das raças são positivados, e o homem brasileiro, mestiço, por seu caráter e por
sua constituição física, é percebido como possuindo todas as características necessárias
para prosperar no clima e geografia dos trópicos.
O autor idealiza o passado brasileiro, situando no período colonial uma época
onde, apesar da escravidão (ou quem sabe por causa dela) havia uma convivência
relativamente harmoniosa entre negros e brancos, senhores e escravos. Não mais
problema a ser resolvido, como era percebido anteriormente, nosso triângulo racial,
graças a miscigenação que “amaciou, a seu modo, antagonismos entre os extremos”
(Freyre, 2003b), torna-se homogêneo em sua diversidade, e passa a ser visto o
amálgama de sociedade brasileira.
163
De acordo com Freyre (2003a) “a miscigenação que largamente se praticou aqui
corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-
grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”, formando uma sociedade
brasileira híbrida que
“[...] é de todas as da Américas, a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às
relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no
máximo aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado;
no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador
com a do conquistado”.
Nos dois trechos, entretanto, convém sublinhar que o centro do triângulo, lugar
privilegiado da mistura, já então sua extremidade branca. No primeiro trecho, não sem
razão a “casa-grande” é o único dos termos que se repete.
A positivação de diversidade brasileira, e sua transformação de problema em
harmonia, nos trabalhos de Freyre, segundo Ortiz (2003) e Vianna (2004), atendem a
uma espécie de demanda social, num momento (anos 30) em que havia uma
preocupação em fortalecer uma identidade nacional e uma (auto)imagem positiva do
povo brasileiro. Com Freyre o mito das três raças e do Brasil como cadinho da mistura
de povos, agora positivado, pode se atualizar no cotidiano, e o sucesso do país não
precisa estar num futuro tão longínquo.
Ele passa a fazer parte, portanto, de um imaginário social compartilhado e,
enquanto mito, repete-se no dia-a-dia, sendo utilizado (e as vezes transformado) nas mais
diversas situações cotidianas. E nessa produção brasileira de modas de vestir, no
momento presente preocupada em marcar e firmar sua “brasilidade”, ele não fica de fora.
No evento Fashion Business os pólos regionais de confecção recorriam
geralmente a afirmação e celebração de diversidades. Um dos pólos regionais, que
agrupava diversas marcas, seguia, de acordo com seu expositor, uma temática comum: “a
164
mistura de naturezas, culturas, raças, religiões e folclores no Brasil”. O nome mais geral
dado a coleção não a podia resumir de forma mais sucinta: “Brasil, bazar mestiço”.
Nesse bazar mestiço e brasileiro, as peças expostas eram, em sua maioria,
artesanais, misturando tecidos rústicos com outros coloridos e estampados. Havia
também muitas peças feitas com fuxicos e retalhos, além de acessórios de moda como
bijuterias e colares de madeira. Uma das marcas que compunha o pólo expunha, entre
outras peças, algumas com desenhos geométricos (segundo o expositor, inspirados em
pintura corporal indígena) e plumas. Esse pólo, como os outros regionais, não era
composto pelas grandes marcas que desfilavam no Fashion Rio, e sim por pequenas
confecções, mais distantes do consumo de luxo e dos preços de muitos dígitos.
Ainda no Rio de Janeiro, entretanto, o luxo da moda, sob forma de jóias de ouro,
não é menos elogioso a mistura brasileira. No evento Jóia Brasil, em exposição das
peças vencedoras de um concurso que tinha como tema “identidade brasileira”, as
representações de nossa triangulação racial eram recorrentes. E as pontas de nossa
fábula se materializavam justamente em cores, dessa vez não mais de pele, mas de ouro.
165
Em peça intitulada “Etnias”, a criadora diz que faz uso de
“[...] ouro em pó nos tons amarelo, negro e branco, que simbolizam, respectivamente,
nossas origens étnicas: índio, negro e branco. Ao girá-lo, as cores se misturam criando
sempre uma nova forma, representando a miscigenação entre as raças que constituem o
povo brasileiro.”
Na jóia “Miscigenação”, o ato sexual é, como em Freyre (2003b), fundador da
harmonia entre diversidades:
“Miscigenação de um povo, de raças, de cores, o início de uma civilização. O adorno
retrata a união dos corpos, homem branco e índia, homem branco e negra [...] beleza do
povo, resultado de uma raiz tão singular como a do início da colonização do Brasil. [...]
patrimônio de orgulho dessa nação miscigenada, a nação brasileira.”
Em algumas peças recorre-se apenas a uma das pontas do triângulo como
representativa da autêntica identidade brasileira. Esse é o caso do par de tornozeleiras
que recebe o nome “Tornozeleira indígena”. Sem qualquer referência a qual grupo
indígena que o inspira, é dito representação de “nossa verdadeira raiz, resgatanto o
símbolo mais utilizados por aqueles povos: a pena”. Sua imagem, entretanto, poderia
remeter tão bem à Pocahontas quanto à Iracema.
166
Ainda nas inspirações indígenas, marca de moda praia de luxo realizou, em
2003, uma coleção inteira de maiôs e biquinis que tinha como tema “Grafismo
Indígena”.
Tal coleção, talvez por estar entre as primeiras que recorrem ao discurso do
elogio da brasilidade, tornou-se emblemática. Quando um consultor de moda carioca foi
entrevistado, ainda que as perguntas versassem principalmente sobre os usos do
artesanato na moda brasileira, o primeiro exemplo de “bom uso da cultura brasileira” na
moda do país que lhe veio a cabeça foi justamente tal coleção. Segundo o consultor de
São Paulo Fashion Week
,
j
ulho de 2005.
Elle Brasil
,
j
aneiro de 2003.
167
moda, o uso “do índio em nossa moda é necessário por que é o que tem que mais
roots
76
, de mais tradição, e fica uma coisa séria, sóbria”. Quando perguntado sobre a
razão do adjetivo “séria”, ele responde que “não é um festerê colorido, tem um
refinamento porque as pessoas conhecem menos, tem uma tradição cultural”. Tal fato
permite pensar que talvez o índio, nessas instâncias produtoras e consumidoras de alta
moda, ainda ocupe um lugar de “outro exótico”, menos próximo do que, por exemplo, a
cultura negra.
E se a influência indígena é “roots” e “tradição cultural”, a africana é dita como
doadora de “ritmo e alegria” a moda brasileira. Seu aspecto tradição, como mostrarei no
capítulo 6, é o de suas influências religiosas. De forma mais geral, entretanto, ela
contribuiria para a moda brasileira, de acordo com funcionário de uma grife de moda
esportiva e moda praia entrevistado em São Paulo, com “sua força natural, sua
musicalidade muito sensual
77
, uma felicidade muito grande e suas cores cheias de vida”.
Esses eram os elementos, segundo ele, que a marca que representava usava como base
para elaborar, a partir de influências afro-brasileiras, uma moda brasileira.
Ainda na exposição de jóias, também a ponta negra do triângulo racial brasileiro
servia como síntese de identidade brasileira. A partir dela duas jóias foram elaboradas.
A primeira, demoninada “Ritmo-Brasil”, era um anel que reproduzia as formas de um
bongô, e era descrito como materialização da “influência ritmica legada pelas raízes
culturais do povo africano ao povo brasileiro”.
A outra jóia, recorria justamente a influência da religiosidade afro-brasileira, e
era intitulada “Jogo de Búzios”. Não estava, entretanto menos no domínio da natureza,
já que o autor da peça avisava serem os búzios “um tipo de concha do mar que
76
Literalmente, raiz. Algumas vezes utilizado na moda, entretanto, para designar (positivamente)
elementos rústicos.
77
Voltarei a relação entre sensualidade e negritude no capítulo 4, ao analisar as representações sobre a
mulher negra e a mulher mulata.
168
percorrem todo o mundo, trazendo consigo os segredos das águas, da terra, e a energia
de tudo o que existe.”
Na França, a moda brasileira atual é explicada justamente pelo que um dos
consumidores chamou de “multifacette”, que formam no brasil “un ensemble
harmonieux, comme on ne peut même pas rêver ailleurs.”. Dito “vivier éthnique”, o
Brasil é o lugar onde “le temps, ce grand sculpteur, ne cesse depuis cinq siecles
d’entremêler des apports heterogenes pour métisser, comme en témoigne le peuple
brésilien
78
A heterogeneidade étnica do país, que segundo a própria divulgação do governo
brasileiro é “vivida harmoniosamente por seus 180 milhões de habitantes”
79
serviria de
base para a homogeneidade das características nacionais. Já na moda brasileira voltada
para o mercado interno, além das já mencionadas influências do triângulo racial
brasileiro, e da utopia da homogeneidade a partir da harmoniosa convivência de
diversidades, o uso de “tipos regionais” brasileiros também é freqüente naquela moda
que é adjetivada como “brasileira”.
Mas articular diferenças culturais e regionais não é privilégio do Brasil. Thiesse
(2001) descreve elementos utilizados pelo discurso patriótico na constituição de uma
identidade nacional francesa, situando o discurso sobre a diversidades harmoniosamente
articuladas como central nas definições identitárias do país. Segundo ela, a partir de
1870, as diversidades regionais da França, descritas como um todo harmonioso, passam
a compor o que seria a imagem oficial daquela nação. A “unidade na diversidade” só
seria possível, no caso da França, porque a “unidade” já é antiga e sólida, sem muitos
conflitos. De acordo com a autora, haveria uma grande celebração da “province” e das
78
Fashion Daily News, 3 de março de 2005.
79
“Brésil, tant de choses à connaître”. Folheto informativo distribuido em salão têxtil francês (setembro
de 2005) pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e pela Agência Brasileira de Promoção das
Exportações e Investimentos.
169
populações rurais, dos “ethnptypes” e das identidades locais apresentadas como a
“verdadeira França”.
No São Paulo Fashion Week de 2005 uma marca brasileira de pret-à-porter de
luxo, em sua coleção masculina, desfilou uma coleção que tinha como tema o
“cangaceiro”. O cenário é composto por canhões espalhados pela passarela, e uma placa
onde se lê: “Praça do meio do mundo”. No que diz respeito as roupas, muitas peças
eram em couro marrom e cru, e tecidos rústicos e encorpados. Havia igualmente calças
em jeans muito desbotados, dando impressão de sujos, e roupas com tachas metálicas.
Ao mesmo tempo, alguns modelos desfilam com capacetes de futebol americano, de
motociclismo, e com luvas de boxe.
Há um modelo usando na cabeça um chapéu de chifres, e outro trazendo consigo
um berrante, pendurado em uma tira de couro cru atravessada no peito. Também
desfilam rapazes usando chapéus de couro à la Lampião. Algumas roupas são
enfeitadas com penas. As estampas das roupas são flores, rabiscos, xilogravuras, santos
e personagens nordestinos. O couro está muito presente, mesmo sendo essa uma coleção
de verão, e aparece sobretudo em coletes e jaquetas, e misturado ao algodão e à malha.
São Paulo Fashion Week
,
j
ulho de 2005.
170
Os modelos têm o rosto pintado com grafismos pretos, semelhantes a um
moko
80
. Um modelo masculino bastante conhecido desfila para a marca usando uma
armadura feita de uma sela de couro preta, e com os desenhos faciais.
Outra personagem brasileira presente na mesma edição do São Paulo Fashion
Week, igualmente regional ainda que quase ícone nacional, foi a baiana. Ela apareceu
de forma bastante estilizada nas estampas criadas por um estilista brasileiro de moda
feminina. Em entrevista, esse estilista disse-me que procurava nessa sua coleção mostrar
inspirações muito “nacionais”, mas que procurava não recorrer a “lugares comuns”, e
por isso optou por representar sua baiana através de estampa geométrica, na qual sua
imagem poderia ser vista “de cima”, como quando são filmadas para a televisão as “alas
das baianas” de uma escola de samba. Para ele, o uso da baiana materializava a
“brasilidade” da coleção, e era ressaltava o aspecto “divertido e debochado” da sua
moda.
No caderno especial sobre tendências de moda para o ano de 2005 do jornal
Folha de São Paulo, entretanto, a baiana aparece sob forma menos estilizadas.
80
Tatuagens faciais utilizadas pelos maori.
São Paulo Fashion Week
,
j
ulho de 2005.
171
Estampando um biquinhi, vem numa fotografia de uma boneca-baiana, semelhante
aquelas vendidas como souvenir turístico.
Em outro desfile, dessa vez no Fashion Rio, ainda que a baiana-cliché de saia
rodada e arranjo de frutas na cabeça não estivesse presente, as imagens a respeito de um
“tipo nacional”, transformados ali em “tipo baiano”, estavam. Uma marca de moda
masculina preparou uma coleção que, de acordo com funcionária da grife, tinha como
temática “a malemolência do baiano, a malandragem e o jeitinho brasileiro”. No que diz
respeito ao aspecto das roupas desfiladas na passarela, havia uma mistura entre artesanal
e industrial, entre um estilo esportivo de vestir (bermudas, chinelos) e um estilo mais
formal (blazers), e algumas peças traziam estampas que remetiam a religiosidade
popular.
Ainda que o tema da coleção fosse o baiano, os comentários daqueles que
assistiam ao desfile não foram, entretanto, sobre a Bahia. Um grupo de estudantes de
moda, homens e mulheres, comenta na saída que o desfile era de “roupas bem usáveis”,
Folha de São Paulo
,
17/12/2004
172
que tinham “muita brasilidade, tudo a ver com o Rio de Janeiro, com a malandragem
carioca”.
3.4- Os filhos do Guaraná
A diversidade brasileira representada em nossa moda não substitui a presença de
um tipo brasileiro único, emblemático da nação. Ao contrário, ela é frequentemente
vista como geradora desse tipo. Nele são agrupadas características que compõem o
estereótipo de um caráter nacional brasileiro, fruto da tal mistura de raças e culturas. Se
a malandragem mostrada no desfile masculino que há pouco descrevi era percebida por
seus produtores como “baiana”, foi imediatamente recebida pelos cariocas que o
assistiam como “malandragem carioca” e, como se uma coisa levasse naturalmente a
outra, por extensão brasileira.
Convém notar que durante os eventos do Rio e de São Paulo, por diversas vezes,
surgiram comentários sobre disputas entre as duas cidades no que diz respeito a moda.
O evento paulista é mais antigo, e as marcas que desfilam num não podem, por
exigência da organização de ambos, desfilar no outro. As disputas eram sobre qual dos
eventos era mais importante no cenário da moda no Brasil. Do lado paulista, a
importância era justificada por ser o “primeiro e maior”, e por estar “no coração
econômico do país, onde estão todas as indústrias”. Do lado carioca, o evento deveria
ser visto como o mais importante porque “o Rio é que é a cara do Brasil”, ou “ moda
daqui é que é invoadora e brasileira”. Outro comentário, feito no evento carioca pelo
gerente uma das grife (que não produz moda praia) foi que o Rio Fashion dava mais
espaço para os desfiles de maiôs e biquinis já que, afinal, “quem entende de praia somos
173
nós”
81
. No São Paulo Fashion Week, entretanto, havia tantos desfiles desse setor quanto
no evento do Rio de Janeiro.
A própria imprensa de moda brasileira, ainda que não tome partido em tal
disputa e sirva a ambos com igual espaço midiático, anuncia o evento do Rio justamente
sublinhando sua “carioquice” e “brasilidade”. No que concerne ao de São Paulo,
curiosamente, não se menciona em momento algum a existência de uma similar
“paulistice”. Falando do evento do Rio, a revista brasileira de moda o resume como um
“doce balanço”, onde “a diversidade do jeito de vestir à carioca traz ao verão um visual
colorido, sexy e até divertido
82
Na França, assim como a paisagem brasileira de maior destaque é o Rio e seu
Cristo Redentor, também é o carioca o brasileiro que resume o tipo nacional
83
. A
consultora francesa de moda entrevistada, quando lhe pergunto sobre o que acha que
caracteriza hoje a moda brasileira, diz que
“Au Brésil vous avez toute un heritage, tout un passé auquel votre mode s’inspire. Vous
savez si bien vous exprimer par ce coté nature, l’explosion de votre carnaval, la
temperature qui monte dans le climat et dans votre tempérament . Vous êtes festifs,
joyeux, gais et à cause de ça vous avez une mode si fusionante, ludique, pleine en
couleurs et pleine de votre nature aussi. Je disais la mode carioca, mais c’est la mode
brésilienne. Le Brésil est grand, je n’appele plus mode carioca, mais Rio de Janeiro est
l’icone de tout ça, vous savez, le melange entre criativité, une chose festif, inventif,
l’explosion. Nous, dans tous ces pays [Europeus], nous sommes plus serieux, plus
conformes, tandis que là-bas c’est le soleil. Le soleil et la nature, qui est votre nature et
celle de votre mode”
Um tipo brasileiro portador de um “verdadeiro caráter nacional”, algumas vezes
sintetizado no “carioca”, noutras em um “brasileiro” genérico, é presente em nossa
moda, tanto na França quanto no mercado interno. Sua presença coexiste com a idéia da
diversidade da nação e, mais do que antagônico a ela, ele é uma de suas conseqüências.
81
No capitulo 4 a disputa a respeito da autêntica moda praia será retomada, dessa vez estabelecida entre
cariocas e gaúchos.
82
Vogue Passarelas 2004/2005
83
Vale lembrar que o Brasil esteve representado nos desenhos animados da Disney por um papagaio
verde malandro e alegre, com muito “samba no pé”, e que recebeu justamente o nome de José (Zé)
Carioca.
174
Maciel (1995, p.172), tratando dos estereótipos regionais, diz que os tipos
característicos
“[...] sintetizam ou expressam determinadas idéias que os habitantes de uma região têm
ou querem que os outros tenham sobre eles mesmos. O tipo agiria assim dentro de um
sistema de classificação operando com diferenças e estabelecendo distinções a fim de
balizar fronteiras e conhecimentos.”
O tipo brasileiro, portanto, é pensado como herdeiro da diversidade étnica e
cultural do país, diversidade essa bastante presente enquanto definidora de uma moda
brasileira que se diz (e se quer) verdadeiramente brasileira. É justamente através da
heterogeneidade da nação que ele constrói sua alteridade frente ao outro, no caso
estudado, o outro francês. Outro elemento bastante mencionado em sua constituição é a
estreita relação com a natureza do país que, moldadora de seu caráter, acaba também
influenciando sua maneira de vestir e de produzir moda. O tipo brasileiro é visto,
portanto, como resultado da somatória diversidade étnica e cultural mais natureza e
ambiente.
Analisando os casos da identidade nacional canadense e suiça, Kaufman e
Zimmer (1998) apontam que há nos dois países a idéia de que um autêntico caráter
nacional teria sido moldado e influenciado pela natureza dos países. Desenvolvendo o
conceito de “naturalização da nação” – onde a nação, seus habitantes e sua cultura são
vistos como fruto da natureza típica – e diferenciando-o do de “nacionalização da
natureza” – onde a natureza típica é vista como patrimônio nacional, mas não enquanto
agente e influência sobre o homem e a cultura que a habitam – os autores apontam que no
caso dos dois países a equação entre nação e natureza se dá, a partir de determinado
momento histórico, nos termos do primeiro conceito.
A “naturalização da nação”, no caso dos dois países por eles estudados
aconteceria, segundo eles, por duas razões. A primeira seria a percepção da natureza
nacional como grandiosa e exuberante (no caso da Suiça, a força da montanha e, no caso
175
do Canadá, a natureza selvagem e desconhecida). A segunda razão seria justamente a
heterogeneidade étnica e linguística das duas nações. A natureza serve, então, como
elemento unificador das diferenças, sendo aquilo que se compartilha e ao mesmo tempo
cenário onde se elabora, a partir da diversidade, a união em um único tipo ou caráter
nacional.
No caso brasileiro, também parece ser a natureza o grande elo unificador das
diferenças, ao menos nas imagens do tipo brasileiro promovidas em nossa moda de
vestir. O brasileiro típico é visto como fruto da heterogeneidade do país (que muitas
vezes também é percebida como um fato da natureza), e da relação com o ambiente
natural.
De acordo com dois assessores de um estilista que desfilou no São Paulo
Fashion Week sua coleção de moda feminina de luxo, mesmo quando as roupas
apresentadas não fazem referências explíticas ao Brasil, não há como fugir das
inspirações da natureza e do caráter brasileiro:
“Assessor A: se quem produz é brasileiro, sempre vai ter esse jeito brasileiro, desde que
a gente se permita.
Débora: qual?
Assessor B: esse de cores, não? de sensualidade um pouco, mas de cores e alegria, não?
Assessor A: isso, da nossa natureza, a do país e a nossa, nosso jeitinho, nosso jeito
brasileiro.
Débora: que é alegre [o jeito]?
Assessor A: alegre, sempre pra frente, tropical chique.
Assessor B: mais que alegre, hum... é arrebatadora [risos], contagiante, sabe, tem ritmo,
tem gingado.
Assessor A: com essas florestas imensas, com essa paisagem, e vivendo isso no dia-a-
dia, tu não tem como escapar, uma coisa leva a outra
Débora: mas a gente não vive as florestas imensas no dia-a-dia, aqui em São Paulo, né?
[risos]
Assessor A: ah, não né [risos] mas isso tá marcado na gente, a gente já nasce com isso,
uma latinidade mais brasileira. A gente não precisa deixar isso explícito, isso que tu
falou [estereótipos], sabe, não precisa botar palmeira e arara, a gente não faz isso
embora tenha gente fazendo, mas por trás sempre tem um quê, porque é o nosso jeito. ”
A moda brasileira na imprensa francesa é vista como um reflexo da imagem do
país e de seu povo “tropical et heureux [...]d’une gaieté qu’on ne trouve nulle part
176
ailleurs
84
. Essa suposta alegria brasileira seria expressada, em nossa “mode plaisir
85
,
através da alusão a ritmos, criatividade e espírito festivo. Para celebrar tal espírito, em
uma revista feminina francesa, vemos mesmo umpendentif caipirinha”, feito em prata
no formato de um copo com duas pedras esverdeadas em seu interior. O “[...] pendentif
festif [...] représente la boisson fétiche de tous le brésiliens, la caipirinha. A consommer
sans modération
86
Outro aspecto bastante presente nas descrições de nossa moda na França,
conjugado à alegria e ao espírito festivo, diz respeito à informalidade característica.
Essa informalidade é percebida como existente nas relações sociais do cotidiano do país
e também explicaria nossa especialidade em termos de moda, já que no Brasil “les gens
sont toujours en jean et en T-shirt
87
.
Uma vez que se trata da divulgação de uma moda brasileira no exterior, e por
conseqüência da recepção dessa divulgação, a maior parte dos traços característicos
atribuídos ao Brasil e aos brasileiros é positivada. Esses mesmos aspectos, no cotidiano,
podem refletir tanto percepções positivas quanto negativas. Em situação de entrevista,
por exemplo, onde estava procurando justamente ouvir e entender mais a respeito das
representações sobre o Brasil e seu povo, ouvi de meus interlocutores (os mesmos que
me falavam de alegria, festividade e informalidade) reações de surpresa a respeito a
minha pontualidade (um reverso da informalidade?), atípica de brasileiros.
Mesmo dentro do país parece óbvio que apenas os traços positivos sejam
sublinhados em nossa produção de moda. Já que moda é mercado, e o objetivo último é
a venda, é um tanto quanto natural que apenas as qualidades do brasileiro sejam
apropriadas nos discursos sobre uma moda brasileira, ou que aqueles traços que podem
84
L’expressmag, 21 de março de 2005.
85
Le Monde, 7 de agosto de 2004.
86
Mixte, no. 34. julho de 2005.
87
Le monde, 07 de agosto de 2004.
177
servir como qualidade e como defeito sejam sempre vistos apenas em suas dimensões
positivas.
Até mesmo a top model Gisele Bundchen é vista como encarnação das
qualidades brasileiras. Opondo Gisele a estética que dominou o mundo da moda na
última década, conhecida como “heroïne-chic
88
”, revista francesa de moda sublinha que
agora “tout le monde s’arrache cette fille sexy, saine et bronzée, qui a toujours l’air de
s’amuser
89
”. A moda brasileira no exterior se apresenta e é recebida nos mesmos
parâmetros de Gisele, ambas são encantadoras porque divertidas.
Em grande parte das entrevistas realizadas com consumidores franceses, as
referências a moda brasileira, e aos brasileiros, mais constantes eram “alegre”,
“divertida”, “informal”, “festiva”, “explosiva”, “criativa”, “energética” e “ensolarada”.
Uma entrevistada, em cujo depoimento são agrupas diversas dessas qualidades, resume
os brasileiros com as palavras emblemática apropriadas para dar nome a este subcapítulo,
quando diz que:
“[...] Elle [a moda brasileira] est pleine d’energie, une fête en couleurs, et les
imprimés!?! C’est une une mode plus informelle, parce qu’elle n’est pas prétentieuse,
mais en même temps elle est pleine d’exces. J’adore, elle est nouvelle, chaude, pleine
d’energie, elle vient de la nature. Je dis que le brésiliens sont les fils du guaraná, ils
sont l’energie, l’exces, un truc un peu sauvage, la fête, et en même temps de la nature,
le guaraná, c’est la nature. Vous savez qu’ici [na França] les boissons energetiques sont
interdits? Le [marca de energético industrializado, comercializado internacionalmente]
est interdit en France! Vous pouvez imaginer au Brésil? Au Bresil c’est une soda, le
guaraná! Vous êtes les fils du guaraná, toute cette nature, cette energie, le guaraná
c’est ce que vous avez dans le sang!
Seja caipirinha ou guaraná o que nos corre nas veias, nosso caráter nacional
parece ser visto como tendo sua origem na natureza. Já disse Augé (1994) que a cultura
do outro é comumente vista como sua segunda natureza. E é essa natureza, seja pela
88
Expressão muito utilizada no campo da moda, fazendo referência as modelos cuja aparência era
comparada a de viciadas em drogas, muito magras, com a pele clara e com olheiras profundas. Um
exemplo bastante citado dessa estética é a modelo Kate Moss que, para além do aspecto físico, pontuava
sua carreira e fama com eventuais problemas com a lei por conta do uso de drogas, e com diversos
períodos de internação em clínicas especalizadas.
89
Elle France, 14 de fevereiro de 2005.
178
mistura étnica seja pelo clima e pela influência de sua exuberância, é percebida como
doadora de “alegria” para os brasileiros. De acordo com uma distribuidora de moda
brasileira na França, o sucesso de nossa moda por lá estará garantido enquanto através
dela demonstrarmos o que somos, o país da “joie de vivre”. Lúdica, não pretenciosa,
mas ao mesmo tempo não modesta em seus excessos, assim é, dentre as modas de vestir
que criamos, aquela que escolhemos para nomear de “moda brasileira”, espelho do que
acreditam que sejamos no velho continente, mas também do que acreditamos ser em
nossas próprias fronteiras.
3.4- Entre as folhagens e os balangandãs
No Fashion Rio uma marca de moda praia escolhe inusitada decoração para seu
desfile: uma enorme quantidade de bananas naturais. Se a presença da fruta por si só já
era extraordinária, sua abundância era surreal. Caixas de madeira repletas de pencas de
bananas decoravam o fundo do tablado que dava lugar a passarela, e rios de bananas
desenhavam o contorno dos caminhos percorridos pelas modelos
90
. Um conjunto
musical, ao vivo, tocava canções usualmente entoadas por Carmen Miranda. A temática
do desfile fora justamente a “pequena notável”. Em maiôs, biquinis e camisetas havia
estampado o rosto da personagem.
De acordo com uma estilista brasileira de pret-à-porter feminino de luxo,
Carmen Miranda foi o “primeiro fenômeno da moda brasileira, mesmo ela sendo
européia ela mostrou exuberância e propagandeou o Brasil nos sete cantos do planeta”.
Nossa conversa aconteceu após o desfile aqui descrito, desfile esse de marca com a qual
a estilista não tinha qualquer relação. Como as perguntas iniciais das entrevistas sempre
90
No dia seguinte o jornal O Globo publica nota avisando que a exuberante decoração do desfile não fora
desperdiçada: as tantas caixas de bananas trazidas da Bahia para o palco do Fashion Rio seriam doadas
para escolas públicas para reforçar a merenda escolar.
179
versavam sobre o que há de típico numa moda brasileira, a referência dela ao desfile que
acontecera na véspera foi imediata. Segundo a estilista “resgatar a Carmen Miranda foi
uma baita sacada”, porque “ela é cult, é kitsch, com seus balangandãs”.
Carmen Miranda nasce em Portugal, mas vem para o Brasil ainda criança. Ela
faz sucesso como cantora nos cassinos do Rio de Janeiro até que é levada para os
Estados Unidos por um produtor americano de musicais. Rapidamente percorre o
caminho dos shows da Broadway para as telas do cinema. Ela, dita “the brazilian
bombshell”, faz enorme sucesso em Hollywood. De acordo com Ruy Castro (2005), sua
fama estrondosa na América do Norte faz com dezenas de empresas passem a
comercializar produtos de vestuário feminino inspirados nos seus e sob sua licença.
Peças inspiradas nos turbantes, brincos, colares e pulseiras de Carmen são vendidos nas
maiores lojas de departamentos americanas. Ela também vende licenças para a
fabricação de blusas que levam seu nome. Com a moda Carmen Miranda as mulheres
americanas querem comprar os produtos carregados do “it” exótico e tropical da
pequena notável.
Rio Fashion
,
2005
180
A Carmen atriz, primeira sul americana a marcar a calçada do Chinese Theatre
co m suas mãos e pés, atuou em uma dezena de filmes. Em todos eles, entretanto ela
desempenhou exatamente o mesmo papel. Fosse Dorita, Princesa Querida, Chiquita
Hart, Rosita ou Carmen Navarro, em todos os seus filme ela era Carmen Miranda no
jeito de vestir-se, nas canções que entoava, nas danças e nos trejeitos de suas
personagens. E o que definia seu estilo era justamente o excesso, a exuberância.
Cena do filme Bananas is my Business
Cena do filme The Gang’s All Here
Cena do filme Weekend in Havana
181
As personagens de Carmen Miranda constantemente tinham em seu figurino
peças bordadas de lantejoulas, de desenhos coloridos, ou feitas de tecidos metalizados.
Algumas das roupas eram justas ao corpo, desembocando, nas extremidas (barras de
saia ou manga de blusas) em camadas e mais camadas de babados. Mesmo que a única
nudez da brazilian bombshell fosse uma pequena faixa do ventre deixada a mostra, ela
era dita escandalosamente – e explosivamente, de acordo com seu apelido – sensual e
erótica (Castro, 2005) aos olhos do público norte americano. Sua sensualidade não
deveria estar, portanto, na falta de roupa, e sim no excesso de tudo: gestual caricato,
dança com muito rebolado, olhares e piscadelas desenhados por enormes cílios postiços,
boca de grandes dimensões – ainda mais enfatizada pelo uso de batom vermelho vivo.
Cena do filme The Gang’s All Here
182
E já que “quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
91
”, as baianas, cariocas,
argentinas e cubanas interpretadas por Carmen também se enfeitavam com grandes
quantidades de colares e pulseiras. Os brincos, sempre enormes, não ficavam nas
orelhas e sim presos naquela peça de roupa que marcou a figura de Carmen: o turbante.
Seus enfeites, tanto nas roupas quanto nas bijuterias, e sobretudo nos turbantes, eram
com freqüência representações exuberantes da natureza: grandes folhas, folhagens, e
principalmente frutas.
91
Trecho da música “O que é que a Baiana tem?” de Dorival Caymmi, cantada por Carmen Miranda.
Cena do filme Down Argentine Way
Cena do filme The Gang’s All Here
183
Carmen Miranda fica, portanto, marcada no mundo do showbiz e no da moda
como a personificação do excesso dos trópicos. Uma joalheria brasileira lançou, em
2006, uma coleção inspirada na personagem. De acordo com a revista promocional da
empresa, a coleção “em sua homenagem traz peças com sutis releituras de sua
exuberância e resgata o lado cool de sua brasilidade
92
”. Uma das peças da coleção,
pulseira em ouro que recebe o nome de “ginga”, é divulgada na revista como sendo
comercializada por valor não tão sutil em exuberância: vinte e quatro mil reais.
Outros luxos produzidos pela moda brasileira contemporânea também tem sua
exuberância associados à brasilidade. Definido como “pays de tous les excès
93
”, lugar
vibrant et exuberant
94
”, o Brasil produziria uma moda capaz de refletir “la créativité
brésilienne qui a été façonée à l’image d’un pays haut en couleurs, très influencé par la
nature”. Tal moda é percebida pela imprensa francesa como exemplo de umbarroque
grandiloquent”, expressão que transborda excessos. É justamente uma “explosiosion de
tissus/tapisseries surchargés de guirlandes de fleurs, de feuilles et de fruits
95
” que
situaria nossa moda “entre cliché-glamour-kitsch
96
Uma consumidora francesa, tendo comprado em loja brasileira uma jaqueta
jeans repleta de bordados e enfeites, recorre justamente ao termo kitsch para explicar
seu gosto pela moda brasileira. Ela explica que até pouco tempo a moda brasileira era
pouco conhecida na França, e que muito graças ao espaço, ainda que pequeno, dedicado
a ela nas revistas especializadas é que aprendeu que existe uma “nouvelle mode
brésilienne”. Ela relata já ter comprado outros ítens, todos de marcas e estilistas
famosos no Brasil (mas pouco conhecidos na França). A jaqueta comprada, assim como
92
Revista Vogue número especial H.Stern. 2006.
93
L’Officiel, abril de 2004.
94
Fashion Daily News 4 de março de 2005.
95
Madame Figaro, 13 de setembro de 2005
96
Vogue Paris, maio de 2000.
184
a bolsa que descreve como decorada com “rubans colorés, fleurs et fruits en tissu” são,
de acordo com a consumidora, especiais porque representativos desse exagero que é
especialidade dos produtos brasileiros: excêntricos, exuberantes, coloridos.
Dès la premier fois que je l’ai [a jaqueta jeans] vu je suis tombée amoureuse, j’adore
les couleurs, les detailles pailletés, les petits morceaux de tissu fleuri, toute cette
pollution visuelle. C’est sur que je vais pas le porter tous les jours, mais il a l’air très
brésilien, un éloge du kitsch, ce coté nature, en même temps des inspirations favela,
tout plein de petits trucs mignons qui font un ensamble tout à fait exuberant, hereux,
carnaval. On dirait un éloge du kitsch-chic
Covém lembrar que a exposição de divulgação e vendas de moda brasileira que
teve lugar numa grande loja de departamentos parisiense, em 2005, recebeu o nome de
“Frénétique Brésil”, o que não deixa, de alguma maneira, de estabelecer referência com
essa idéia da exuberância. O outro grande magazine que recebeu exposição semelhante,
ainda que não tenha escolhido nome tão significativo para seu evento, estampou no
folheto divulgativo do mesmo a fotografia de uma mulher vestida com o que poderia
chamar, com algumas aspas, de “roupa de baiana”, em certa medida semelhante aquela
que compunha o figurino de Carmen Miranda.
185
Na produção de moda brasileira voltada para o Brasil, também o termo kitsch é
mencionado. Um funcionário de uma grife de moda praia, por exemplo, alega que o uso
freqüente de imagens de “frutas das mais varidas nas estamparias” é feito, nas últimas
coleções da marca, de forma a
“[...]abrasileirar as coleções com esses detalhinhos [sic], que uma consumidora jovem
vai achar engraçadinho, uma mais madura por achar kitsch, bem legal, um abacaxinho
ali, um cajuzinho aqui, uma bolsinha em forma de melancia, mas nada brega, entende?
Kitsch, com bom gosto”
O termo kitsch aparece, portanto, provido de sentido positivo nesses discursos.
Em sua origem, entretanto, o kitsch carrega outros significados. A gênese do termo é
controversa. Já constando o termo no dicionário Houaiss da língua portuguesa, ali o que
é informado sobre ele é que vem do alemão kitsch, que significaria lixo, uma derivação
do verbo kitschen, “varrer a lama ou o lixo das ruas, juntar restos ou objetos inúteis”.
Croci e Vitale (2000), por outro lado, concordando a respeito de sua derivação do termo
kitschen, afirmam que tal termo seria por sua vez criado a partir de outro: yverkitschen,
que remete a imitação e ao inautêntico, podendo ser traduzido de forma livre, nas
palavras das autoras, como algo semelhante a “fazer passar gato por lebre”.
Já Binkley (2000) sugere que o termo surja a partir do verbo verkitschen, que
significaria, em um contexto – mercados de Munique – e época – entre 1860 e 1870 –
bastante específicos, o equivalente a “vender ou fazer barato”. Tal explicação se
aproxima daquela proposta por Elias (1998) quando este diz que
The word ‘kitsch’ probably originated in a specialist milieu of artists and art dealers
in Munich in the early twentieth century, being first used to refer to certain ‘sketchs’
which sold well among American tourists. [...] Anyting intended to be sold was said to
be made for Verkitschen, for turning into kitsch
Etimologias controversas a parte, grande número de autores (Binkley, 2000,
Moles, 2001, Croci e Vitale, 2000, Amícola, 2000, Gronow, 1997) concorda que o
186
termo, inicialmente, dizia respeito a noção de imitação, denotando imitação barata e
fácil daquilo que representa distinção de classe. Muito utilizado no campo das artes, o
kitsch seria entendido como cópia de antigos (e fáceis) modelos, opondo-se ao que é
chamado de “verdadeira arte” e “cultura genuína”, essas por sua vez inovadoras,
propostas sempre pelas vanguardas que são, de acordo com Greemberg (1978) o oposto
exato do estilo kitsch.
Umberto Eco (2006) define o kitsch como “estrutura do mau gosto”, dizendo ser
este uma forma de arte já “mastigada”, facilmente consumível, centrada sobretudo na
fabricação de efeitos (geralmente emotivos e sentimentais) no seu público consumidor.
Ainda segundo o autor, por conta de sua falta de conteúdo (deixado de lado em
detrimento da forma), a arte kitsch atinge e sensibiliza o espectador através da repetição
ad infinitum de estímulos sentimentais já reconhecidos e desgastados pelo uso.
Ainda entendido enquanto imitação, mas não necessariamente mais no mundo
das artes, o kitsch seria a emulação grosseira e barata de objetos distintivos, como, por
exemplo, artigos de decoração de interiores, muitas vezes artesanais, nesse sentido
inversões de suas “cópias-kitsch”, essas fabricadas industrialmente ou de forma
massificada. Outros gêneros ainda mais distantes das artes plásticas, como a
alimentação e a gastronomia também podem, de acordo com Gronow (1997), ser
“kitschificados”. Imitações baratas de artigos refinados – e caros – como caviar e
champanhe seriam uma atuação kitsch nas sensibilidades, não mais visuais, mas agora
palatáveis.
No campo da moda certamente esse kitsch-imitação poderia ser percebido
através da cópia de marcas de luxo. Mais do que da reprodução barata de produtos que
levam em si etiquetas imitadoras de tais marcas, poderíamos pensar, como no caso da
arte, no uso de elementos estéticos já consagrados – e por vezes desgastados - por tais
187
marcas distintivas. Tal poderia ser o caso da utilização das correntes douradas das
bolsas Chanel, do carré
97
Hermès, ou das intermináveis repetições de monogramas,
sejam eles CDs
98
, LVs
99
, solitários Vs dourados
100
e Fs conjugado com sua inversão
101
.
O uso repetitivo e redundande de tais elementos, em suas versões baratas e
massificadas, poderia, dentro dessa perspectiva, ser mais um dos desdobramentos da
estética kitsch.
97
Lenço quadrado – daí sua popular alcunha, carré – em seda pura, estampado com padronagens
específicas da quase bicentenária maison francesa Hermès.
98
Christian Dior
99
Louis Vuitton
100
Valentino.
101
Fendi
Correntes douradas das bolsas
Chanel, usadas ao exagero em
suas cópias
Bolsa com monograma
Louis Vuitton.
188
Assim como na moda, nos objetos decorativos o kitsch se caracteriza, voltando à
análise Gronow (1997), pela repetição. Uma vez cópia, faz-se necessário o reforçamento
daquelas características que lhe concedem distinção: se determinada porcelana refinada
é caracterizada por um tipo específico de desenho, sua cópia kitsch terá o mesmo
desenho não necessariamente mal feito, mas, por exemplo, exageradamente grande.
Quase que por ironia, sua inautenticidade pode se revelar bem ali onde reside seu
excesso de autencidade
102
.
As análises tecidas a respeito do kitsch-imitação, apesar de ainda boas para
pensar alguns fenômenos contemporâneos, não tiram dele qualquer carga pejorativa. Ele
ainda permanece categoria acusatória, reveladora da falta de gosto, de tradição, ou de
iniciação. É, entretanto, através de seu excesso e sua repetição que Binkley (2000) tenta
reabilitá-lo. De acordo com o autor, o kitsch, mais do que mera imitação de outras
102
Uma possível correlação poderia ser feita com o que diz Ginzburg (1989) a respeito do paradigma
indiciário. Num bricolage entre as duas perspectivas poderíamos pensar que o falsificador estará tão
preocupado em sublinhar a autenticidade óbvia e consagrada da corrente dourada da bolsa Chanel que
esquecerá daquele jeito muito particular e autoral de retratar uma orelha!
Bolsa imitação da
marca Fendi.
189
formas esteticas, tem uma estética própria. Ele é inovador justamente porque seu
sistema repetitivo faz dele um estilo único, uma estética da redundância.
Muito antes de Binkley, e antes mesmo que Eco (2006) e Dorfles (1990)
reforçassem as classificações do kitsch enquanto mau gosto, Norbert Elias (1998), em
1935, já relativizou sua depreciação. De acordo com o autor outros tantos termos, como
“barroco” ou “gótico”, não tiveram originalmente conotação tão mais positiva do que
aquela conferida ao kitsch na época em que escreveu. A valoração ou depreciação de
tais termos só acontecem ao longo do processo histórico e social e, portanto, podem – e
hão de – sofrer modificações. Num arriscado, porém exitoso, exercício de previsão
futurológica, Elias sugere que o kitsch, filho que é da sociedade industrial e da cultura
de massas, tem grandes possibilidade de, nessa mesma sociedade e ao longo de seu
desenvolvimento, tornar-se, talvez a contragosto de muitos, um qualificativo positivo.
Em 1935 Elias ainda não sabia que até mesmo no campo artístico o kitsch teria
sua vez, como quando a pop art apropria-se de elementos a cultura de massa e, em
alguma medida, do próprio kitsch. No campo do consumo de vestuário e de objetos ao
kitsch também é permitida infiltração, dessa vez inclusive positivada. Os clássicos
modelos de difusão de gosto, cujos trânsitos são sempre percebidos como unidirecionais
e verticais – de cima para baixo – por vezes, entretanto, se invertem em nossos tempos.
Assim, o uso de elementos de um dito gosto popular e, nesse caso, kitsch, chega, no
mundo da moda e do consumo, a tornar-se distinção dentro da distinção. Zombeteiro
destino teria o kitsch que, tentando imitar sinais distintivos, torna-se-ia ele mesmo um
deles.
Retomando as perspectivas mencionadas, é possível concluir que a característica
do kitsch que aqui melhor se aplica é menos seu caráter de imitação e mais aquele do
excesso, da redundância e da exuberância, ainda que ambos estejam, como no caso
190
específico das cópias de marcas célebres, interligados. Também é preciso sublinhar que
este kitsch que se torna distintivo é justamente aquele que contraria outra de suas
características originais. O kitsch enquanto sinal de distinção é utilizado como
demonstração de que o domínio dos códigos do dito “bom gosto” e “elegância” é tão
grande, ao ponto de poder ser subvertido. Ele funciona enquanto brincadeira, jogo
lúdico com os códigos estéticos.
Diversos autores (Binkley, 2000, Greenberg, 1978, Gronow, 1997, Moles, 2001)
que o analisam afirmam, entretanto, que o kitsch é ingênuo e sincero: ele pretende-se
sério e seriamente elegante ou imitação daquilo que o é. Ele não é, em sua origem, um
deboche com o gosto refinado. Ele é visto por esses autores como uma espécie de bom
gosto que fracassou em sua tentativa de ser realmente bom. Ele não é, dentro de tal
perspectiva, propositalmente kitsch, o que o prende novamente na percepção de que não
poderia ultrapassar a qualidade de categoria acusatória. Esse não parece ser o caso,
entretanto, do uso dado ao termo contemporâneamente, sobretudo no campo da moda.
Susan Sontag (1987), escrevendo sobre o camp, o diferencia do kitsch
principalmente no que diz respeito ao segundo ser uma qualidade de objetos materiais e
o primeiro uma sensibilidade que envolve não apenas os objetos mas também uma
performance (o gestual de Carmen Miranda, por exemplo). O camp, entretanto, conteria
ainda mais do que o kitsch – ao menos do seu modelo inicial – um aspecto lúdico e
divertido. Ele nunca se pretende manifestação estética sóbria, séria e nobre. A autora já
nota, além disso, que coexistem dois tipos de sensibilidade camp, a primeira não
intencional e a segunda planejada e proposital.
O excesso de Carmen Miranda é hoje dito kitsch, mas sua intencionalidade
parece ser apenas uma leitura contemporânea de uma estética kitsch séria, sincera e com
pretensões a elegância quando de sua produção. Como a própria brazilian bombshell
191
explicita em certa canção que interpreta no filme “The gang’s all here”, seu excesso já
era, na época, proposital e reconhecido: “I wonder why does everybody look at me and
then begin to talk about a Christmas tree. I hope that means everyone is glad to see the
lady in the tutti-frutti hat.
103
” E, além de proposital e reconhecido, era sem dúvida
planejado enquanto eficaz estratégia de vendas.
Em uma das lojas brasileiras em Paris, a constatação de que o excesso e a
exuberância eram propositalmente veiculados em nossa moda era patente. Muitas peças
industrializadas e originalmente possuidoras de formas e estilos simples, como
camisetas e calças jeans, eram enfeitadas, em momento diferente e posterior aquele de
sua fabricação, com adornos diversos sempre muito coloridos, com texturas diferentes
da do tecido (madeira, contas, sementes), e algumas vezes com brilhos e elementos
metálicos. A preocupação em enfeitar era constantemente mencionada, e não apenas no
que concerne as peças de roupas ali vendidas. A própria apresentação interna da loja
estava em completo acordo com tal proposta, repleta de fitas do Bonfim adornando
prateleiras e estantes.
Quanto ao aspecto lúdico do exagero da moda brasileira, ele se situa exatamente
nesse espaço definido pela vendedora da loja brasileira como de uma moda “alegre e
divertida”. Nossa moda, como disse certa consumidora cuja fala esteve presente em
subcapitulo anterior, não é pretensiosa, mas é exuberante e sabe ser divertida. Talvez
por estar distante da possibilidade de concorrer em pé de igualdade com modas mais
hegemônicas (e pretenciosas), ela procure novas possibilidades através de tal estética
kitsch e brincalhona. Na imprensa francesa, diz-se que sabemos criar um estilo mas
garder le caractere amusant de la mode, ce qui semble etre l’une des caracteristiques
de la brasilian touch
104
”.
103
Musica “The lady in the tutti-frutti hat”
104
Elle France 23 de maio de 2005.
192
Ao mesmo tempo, o exagero estético e a exuberância em alegria e diversão que
permeiam nossa moda são vistos como reflexo de nosso modo particular, e brasileiro, de
ser, herdeiro de nossa natureza também exagerada e exuberante. É possível encontrar aí
um impasse. Estamos entre dois pólos. De um lado nossa estética kitsch é proposital,
uma brincadeira proposta por nós mesmo, artificial e artifício. Por outro lado, é a
natureza exuberante brasileira que molda tal estética privilegiada pelos “filhos do
guaraná”. A própria Carmen Miranda pode ser lida nos mesmos moldes, com todo seu
artifício exótico e redundante trazia em si a alusão à natureza do país, em suas saladas
de frutas e folhagens, e a natureza do povo brasileiro, com sua alegria contagiante e
encantadoramente sensual.
Mais do que uma contradição, tal impasse talvez seja revelador de alguns
mecanismos que a seguir serão retomados. Em certa medida, as representações sobre
exageros estéticos da moda de vestir brasileira na França falam sobre um kitsch (ou um
camp, quando incorpora dimensões de corporalidade e performance) que se deixa
escapar, da mesma forma que o assessor de estilista entrevistado anuncia a
impossibilidade de fugir das influências de nossa natureza “arrebatadora”. Tal
perspectiva, em sintonia com as imagens tecidas a respeito de um corpo
105
brasileiro
também pleno em excessos, mas ao mesmo tempo controlado pela técnica, nos permite
pensar em idéias de Elias (1994) bastante mais difundidas do que seus escritos sobre o
kitsch, que versam justamente a respeito da contensão – oposta ao excesso – e da
civilização – oposta a natureza. Nós, que nos permitimos ser mais natureza, ou que
mantemos ainda forte a tensão entre ambos os pólos, podemos ser vistos como
apartados das próprias classificações que recebem as produções da moda. Nas palavras
105
Esse será o tema do próximo capítulo.
193
de uma revista francesa, um de nossos mais célebres estilistas possui “cette liberté de
ton qui se moque du concept européen de bon ou mauvais gout
106
”.
Por outro lado, tais afirmações lançam outra discussão que será igualmente
retomada a seguir. Esse kitsch, no caso da moda brasileira, talvez seja positivado e
apropriado enquanto estética do outro
107
. E se, na França, o outro é a moda brasileira de
forma geral, que pode se permitir extravazar seu conteúdo kitch, no que concerne a
moda brasileira dentro do Brasil processo semelhante pode ter lugar nos usos, por nossa
alta moda e consumo de luxo, de elementos vistos como pertencentes a uma “cultura
popular” do país.
106
Madame Figaro, 13 de setembro de 2005.
107
O capítulo 5 versará justamente sobre a temática do exotismo.
194
195
No ano de 2004, uma marca brasileira de roupas de ginástica divulgou, em
diversas revistas de grande circulação no país, uma campanha publicitária de página
dupla que trazia duas imagens fotográficas: de um lado, uma escultura em pedra, de
outro, uma bela jovem de longos cabelos castanhos e pele dourada, vestindo peças –
amarelas e debruadas com tecido verde – da grife. Junto da primeira foto lê-se “Paris,
França”. Acompanhando a segunda, a legenda é “Praia do Rosa, Brasil”. Uma frase,
começada na primeira página e terminada na segunda, une ambas as imagens: “cada
país tem a escultura que merece.”
196
É a moda que veste os corpos. Mas, por aqui, a moda também se (re)veste de
corpo. Tendo como epicentro os casos exemplares do jeans e a moda praia, nesse
capítulo o corpo brasileiro apresenta-se como colado na moda nacional contemporânea.
Situando a dimensão corporal como importante face de uma identidade nacional
brasileira, presente inclusive em nosso pensamento social, é preciso frisar igualmente
que esse corpo brasileiro não é um corpo neutro. É um corpo generificado e tem um
fenótipo específico que não é, entretanto, sempre compatível com o corpo da moda.
4.1 - Nu com a mão no bolso
Aspecto determinante no processo de transformação da moda nacional em
“moda brasileira” é a referência a um corpo brasileiro, a uma sensualidade típica e, em
alguma medida, ao desnudamento do corpo. A partir da pesquisa realizada nos arquivos
de periódicos brasileiros de moda, entretanto, não é possível perceber, nas criações
contemporâneas, grande diferença no que concerne esse aspecto. As peças que figuram
nas revistas, selecionadas pela imprensa de moda dentre aquelas apresentadas nas
coleções dos estilistas brasileiros, não parecem, em si, tão mais reveladoras do corpo do
que o eram há dez anos atrás.
Fala-se, todavia, em uma suposta “tomada de consciência” da relação
particularmente brasileira com o corpo e, por conseqüência, da necessidade de desnudá-
lo. Este é apontado por alguns jornalistas de moda como o diferencial que possibilita o
sucesso de estilistas brasileiros. O sucesso agora, principalmente no exterior, é visto
197
como acontecendo a partir do momento em que o corpo, através das roupas produzidas
na alta moda brasileira, deixa-se ver na passarela.
Comentando a coleção de 2004 de um estilista brasileiro, um jornalista de moda,
também brasileiro, sublinha o uso que este faz de recortes, fendas e decotes para,
imediatamente, relatar que foi a percepção de que a presença do corpo se fazia
necessária que deu a ele reconhecimento no exterior
“os decotes maravilhosos, a sensualidade, na verdade ele começou a trabalhar com cor e
decote depois que foi pra Europa [...] quando ele chegou no mercado internacional a
galera dizendo “mas gente, roupa preta no Brasil?”ninguém acreditava, “toda fechada!”.
Daí ele mudou radicalmente o estilo, hoje é um sucesso, ele vende para as melhores
lojas internacionais a sua coleção, brasileira”
O corpo que se mostra, nesse caso, é um corpo sensual e erotizado. Em sua
palestra no mesmo evento de moda, falando de outro estilista brasileiro que nos últimos
anos também tem desfilado coleções no exterior, outra jornalista faz comentário muito
similar. Refere-se igualmente ao uso de cores, e a presença de um corpo que me mostra,
agora de modo mais sensual, de maneira oposta as criações anteriores desse estilista, por
demais fechadas e largas, deixando espaços amplos entre o corpo – a pele e as formas –
e a roupa – o tecido.
Peças de coleções do
estilista. A imagem
esquerda é de 1998, a
direita de 2005.
198
Na França, uma explicação freqüente para tal sensualidade e nudez em nossa
moda é por vezes dada, retomando idéias desenvolvidas no capítulo anterior, através da
menção à “natureza brasileira”, mais propícia ao desnudamento do corpo. É
principalmente o clima e o ambiente que leva o brasileiro a desnudar-se. Para o
distribuidor de jeans brasileiro na França, a moda praia vende melhor do que as calças
jeans brasileiras “[...] Parce qu’on a l’image du string, des tropiques, la plage, Rio, où
tout le monde est à moitié nu dans la rue.”
Embora a suposta nudez brasileira seja freqüentemente atribuída a uma reação
ao clima e, portanto, a natureza, não se trata de uma nudez propriamente “natural” ou
“naturista”. Mais do que em corpo “nu”, é possível falar, nesse caso, em um corpo
“despido”. Isso porque refletir a respeito da nudez nos leva a pensar questões sobre
natureza e cultura.
A nudez situa o corpo numa relação entre o fato natural e o objeto cultural. O
corpo absolutamente nu, despojado dos símbolos que o revestem (roupas, pinturas
corporais, enfeites, ou qualquer outro trabalho sobre o corpo), aproxima-se da ordem da
natureza, onde o homem se confunde com o animal.
A oposição entre nudez e ornamentação pode ser pensada como análoga aquela
que Lévi-Strauss (1991) propõe entre cru e cozido, metáfora de passagem da natureza à
cultura. A nudez, próxima do “cru”, representa o estado que precede a cultura, ao passo
que o uso de enfeites, roupas, pinturas, escarnificações, assim como o cozimento dos
alimentos, pertence à ordem desta.
É bastante comum, em se tratando de textos de ampla divulgação a respeito do
vestuário
108
, encontrar explicações que situam o uso da roupa como uma resposta
108
Assim como outros que ensaiam elaborar uma “psicologia das roupas”, como Fluguel (1966).
199
(funcional) a duas necessidades. Fazendo lembrar Malinowski
109
, a primeira dessas
necessidades é fisiológica – a proteção do corpo – e a segunda, psicológica/cultural,
dizendo respeito ao pudor, a necessidade de encobrir sobretudo os genitais, ou, como
outrora se dizia, “as vergonhas”.
A primeira explicação toma o vestuário e, por extensão, a cultura, como simples
resposta funcional – quase mecânica – à biologia. Faz do homem não mais do que
animal mal acabado à procura de sua pelagem perdida. A segunda explicação não fica
longe disso. Esquece, por exemplo, que pudor e vergonha são categorias que recebem
conteúdos diferentes em cada sociedade ou momento histórico. E que não estão
obrigatoria e automaticamente associadas à sexualidade.
No que concerne a explicação que remete ao pudor, menciona-se
frequentemente, a título de exemplo, o uso dos estojos penianos. Estes são ali
entendidos, tal qual a folha de parreira do célebre casal edênico, como grau zero da
roupa, aquela que serve estritamente para cumprir a função de cobrir os genitais. Pode-
se pensar, entretanto, nos estojos penianos como tendo “função” oposta a de encobrir
pudores. Talvez eles muito mais sugiram e sublinhem do que propriamente escondam.
Usados a partir da passagem à vida adulta, após o rito iniciático que marca justamente
tal passagem, podem explicitar a masculinidade, e não necessariamente encobri-la.
Maertens (1976) sugere inclusive que o estejo peninano seja uma teatralização da
masculinidade. Ele representa, como nos diz Silva (1998) a respeito dos Enenawe
Nawe, um emblema de sexualidade, já que
“[...] o estojo peniano e as tatuagens no ventre e nos seios, adornos de imenso valor na
economia simbólica enawene-nawe, adquiridos através do que podemos denominar
“ritos da sexualidade”. Na puberdade, os meninos devem esperar o crescimento dos
pelos pubianos para ter acesso à vida sexual. Esta transformação física do corpo é
condição necessária, mas não suficiente, para o exercício da sexualidade: precisam além
disso portar um adorno peniano.” (1998, p.80)
109
Sua exposição a respeito das necessidades fisiológicas, psicológicas e culturais pode ser encontrada,
por exemplo, em suas obras “Teoria científica da Cultura” ou “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”.
200
A roupa, assim como os demais objetos que enfeitam e cobrem o corpo, antes de
ser resposta ao pudor sexual ou a necessidade de proteção, é signo de pertencimento a
humanidade, a uma cultura, e a um grupo social. Como Lévi-Strauss (1997a) diz tão
bem a respeito dos Caduevo, para ser Homem é preciso ser pintado. Uma vez decorado,
vestido e pintado o homem exibe sua humanidade. Ou, nas palavras de Maertens,
Le vêtement le plus archaïque ne se preoccupe donc pas essentiellement de couvrir
telle ou telle partie du corps: il suffit q’un lieu du corps passe au symbolique [...] Les
parties génitales ne sont pas nécessairement les premières à être couvertes. [..]en se
privant d’une marque symbolique [os Homens] régressent à l’animalité[...]” (1986, p.
136-137)
Ainda no quesito pudor, convém lembrar que não apenas as mesmas partes do
corpo não são objeto de vergonha, como a própria nudez não é necessariamente
erotizada. É preciso lembrar que “[...] la fesse d’hier n’est pas la fesse d’aujourd’hui, le
sein nu d’Agnès Sorel n’est pas celui que l’on rencontre sur les plages au mois d’août.
(Kaufmann, 2004, p.21)
Muito embora nu e vestido sejam categorias opostas, não são dois pólos
absolutamente fechados em si mesmos. Há, na realidade, um continuum de categorias
intermediárias entre um pólo e outro. Adornos, pintura, roupa debaixo e a própria roupa
de praia por vezes se situam, dependendo da situação social, mais próximos de um pólo
do que de outro. O que dizer então dos pêlos e cabelos? Pertencentes a uma categoria
ambígua, ora são vistos como elemento que veste e reveste o corpo, ora, como diz
Barcan (2004, p.15), tal qual signo da nudez
Porque, se ficar nu também é dito “ficar em pêlo”, é preciso lembrar que essa
imagem do Brasil “fio-dental, praia e corpo” comporta aquela da ausência de pêlos
110
. O
110
A menção a respeito da ausência de pêlos, aqui, diz respeito ao corpo feminino.
201
corpo brasileiro construído nessas representações é um corpo não apenas despido de
roupas, mas um corpo cujos pêlos, especialmente os pubianos, são objeto de técnicas de
depilação precisas e eficazes. Sem dúvida o Brazilian wax, na França conhecido como
épilation maillot brésilien, uma espécie de denominação de origem controlada da
maneira brasileira de depilar os pelos pubianos, é quase tão conhecido
internacionalmente quanto o próprio fio-dental. Depilar-se pode fazer o corpo ficar
“mais nu” (Barcan, 2004, p.21) ou, por outro lado, representar um trabalho – cultural e
social – sobre o corpo, afastando-o da natureza e do animal.
Esse corpo brasileiro não é propriamente um corpo nu porque ele é visto como
culturalmente trabalhado. Suas propriedades eróticas não residem na nudez natural, e
sim no desnudamento, por isso a sugestão de chamá-lo de “despido”. Seu caráter
sensual envolve, por exemplo, as formas de desnudar-se, o que engloba não apenas
corpo, mas corporalidade, gestual e performance. Além disso, mesmo quando
desprovido de roupas, é um corpo, como mostram Goldenberg e Ramos (2002),
preparado e trabalhado para o desnudamento. (Re) veste-se de outros elementos –
adornos, bronzeado, modelagem precisa graças ao body building ou cirurgias estéticas,
depilação, etc. – para apresentar sua nudez. E é justamente ali que reside sua
eroticidade: não como decorrência natural da simples existência corporal, mas como
significado socialmente incorporado, e socialmente atribuído pelo olhar do outro.
A exemplo das comunidades de nudismo, assunto que será retomado adiante, a
nudez cotidiana, banal e “natural” raramente se apresenta, em nossa sociedade, como
sensual ou provocadora do desejo. A nudez natural e completa, à luz do dia, desprovida
de artifícios, é quase clínica, inocente, e mesmo pudica. Uma propaganda, veiculada no
Brasil em 2005, discorre exatamente sobre isso. Trata-se de um anúncio publicitário de
uma famosa marca brasileira de maiôs e biquínis, realizado em conjunto com uma
202
indústria de refrigerantes: o guaraná, aquele mesmo do qual “somos filhos”. Nesse
anúncio, vê-se uma bela moça em frente a um casario multicolorido. Ela veste um maiô
aberto na frente, barriga de fora (espécie de “engana mamãe” invertido), estampado com
desenhos de baianas estilizadas. As alças imitam fitas senhor do Bonfim, mas as
palavras ali impressas são “original do Brasil”. O texto que acompanha a fotografia diz:
“se os portugueses chegassem aqui agora, provavelmente o Brasil se chamaria “MINHA
NOSSA SENHORA!!”
s “portugueses” referidos, ora de tal chegada em nossas terras, depararam-se,
pois, com a nudez. E embora possa ser percebida enquanto tal, tampouco era aquela a
nudez do corpo-natureza. Como já nos conta a famosa carta de Pero Vaz de Caminha
111
,
“Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas
vergonhas [...]”, mas ainda assim
“ambos os dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco e
realmente osso, do comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de
algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do lábio, e
111
Conforme versão publicada na edição atualizada de Castro (1996)
Maiô utilizado na propaganda.
Vogue Especial Passarelas.
Inverno 2005.
203
a parte que fica entre o lábio e os dentes é feita à roque-de-xadrez, ali encaixado de
maneira a não prejudicar o falar, o comer e o beber.” (1996, p.79)
Após o que comenta sobre os cabelos “tosquiados” e “raspados por cima das
orelhas”, sobre os enfeites feitos com penas de aves, e assim por diante.
No anuncio publicitário, no entanto, não é a nudez absoluta que provoca a
exclamação cobiçosa, e sim o desnudamento proporcionado pelo maiô que reveste o
corpo da manequim. Um tipo de desnudamento do corpo que se reveste de erotismo e
sensualidade a nossos olhos de agora.
A discussão a respeito do corpo situado entre o nu e o vestido, entre a natureza e
a cultura, em realidade, parece acompanhar todo este capítulo que diz respeito ao corpo.
Tanto no caso da moda praia, quanto naquele do jeans, e ainda mais no que concerne às
intervenções estéticas que serão objeto de análise no último subcapítulo, esta
problemática aqui iniciada é contemplada.
4.2 – Mal cabia na palma da mão
Um dos carros-chefe da moda brasileira, sobretudo no exterior, é nossa moda
praia. Sua participação nos eventos de moda espetáculo, em ambas as estações
112
, é
substanciosa. No São Paulo Fashion Week, vinte por cento das coleções desfiladas eram
de moda praia. No evento carioca os números são os mesmos, dos trinta desfiles, seis
são de moda praia. Outro aspecto importante de destacar é que a própria moda praia
torna-se, por aqui, parte da alta moda e do consumo de luxo. As grifes que apresentam
suas coleções são famosas no país, e as peças que produzem são de valores tão elevados
quando calças, saias e blusas vendidas pelas outras marcas de prêt-à-porter de luxo.
112
Em diversos países coleções de moda praia são apresentadas apenas nos desfiles de primavera/verão
204
A história da moda praia, tanto a brasileira quanto a internacional, está ligada a
própria história da praia e de sua transformação em espaço de lazer e sociabilidade.
Como mostra Corbin (1997), a invenção da praia acontece como conseqüência de um
movimento, datado da segunda metade do século XVIII, de percepção das “virtudes
terapêuticas”. É no mesmo período que tem lugar outra grande mudança de
comportamentos: exercícios físicos passam a ser recomendados, supostamente trazendo
vantagens físicas e morais (Del Priore, 2000). Os médicos higienistas defendiam sua
prática, argumentando que eram essenciais para "oxigenar as carnes" e alegrar-se graças
ao equilíbrio saudável do organismo. Eram recomendáveis sobretudo às mulheres que,
confinadas ao lar e ao "excesso de tempo livre", estariam fadadas a melancolia ou a
histeria.
Surgindo quase como tratamento medicinal, é sobretudo na virada do século
XIX para o século XX, que as idas a praias passam a ser entendidas como atividade
lúdica e de ócio. De acordo com Grasse (1997, p.8) o nascimento da “temporada na
praia” e do “balneário de lazer” é, na França, fruto de uma nova concepção de tempo
livre trazida pela “terceira semana de férias pagas”.
No Brasil, embora a praia tenha sido o primeiro lugar de encontro entre o
colonizador português e os povos indígenas, por muito tempo ela também esteve longe
de ser considerada espaço de lazer. Foi, isso sim, lugar de trabalho (Farias, 2006), por
onde chegavam mercadorias e por onde, principalmente, saia matéria-prima rumo à
Europa. As praias brasileiras eram áreas sujas e insalubres onde, como diz Freyre
“[...] até os primeiros anos do século XIX eram lugares por onde não se podia passear,
muito menos tomar banho salgado. Lugares onde se faziam despejos; onde se
descarregavam os gordos barris transbordantes de excremento, o lixo e a porcaria das
casas e das ruas; onde se atiravam os bichos e negros mortos.” (2003a, p. 313)
A freqüentação da praia para o ócio, para a sociabilidade e para a prática de
esportes ao ar livre passa a acontecer, por aqui, na mesma época em que na Europa.
205
Parece que, apesar do litoral brasileiro
113
ser exaltado aos quatro ventos e o Brasil ser
imaginado como país onde a praia é por excelência o espaço de lazer, o uso desse
espaço, tal qual entendemos hoje, foi uma invenção importada. A praia e os banhos
também por aqui começam a ser promovidos em nome de seus poderes terapêuticos,
para mais tarde transformar-se em lugar de diversão e sociabilidade.
Os trajes apropriados para freqüentar o novo espaço não eram menos inspirados
naqueles usados na Europa. Quando a praia desponta, os trajes usados pelos banhistas
são fabricados em lã. Além de cobrir boa parte do corpo, eram feitos de trama bastante
fechada e geralmente em cores escuras para que, molhados, não revelassem as formas
do corpo. Tanto os trajes de banho masculinos quanto femininos eram compostos por
conjuntos de saia e blusa. No caso feminino, quando a própria blusa não era tão
comprida e larga, a esse conjunto acrescentava-se uma espécie de saiote (Saillard,
1998), para que a silhueta não ficasse tão demarcada.
113
A própria Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT), faz uso dessa representação do Brasil em
seu folheto de divulgação internacional, no qual se lê: “Du nord au sud, le Brésil offre plus de 8.000 km
de plages, c’est une véritable source d’inspiration qui a permis d’asseoir la réputation de la mode
brésilienne”
Porto Alegre, Mercantil, 1884. Retirado de Pesavento,
Sandra. (coord.) República Verso & Reverso. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 1989. p. 128.
206
O maiô com perninhas (sem saiotes), peça única e colado no corpo – ainda
encobrindo boa parte dele – só torna-se moda na segunda década do século XX
(Kaufmann:2004). Com o passar do tempo, o corpo vai se desnudando na praia, os
maiôs sendo encurtados e seus decotes aprofundados.
Esquerda: França, 1904. Direita: Inglaterra, 1905.
Imagens retiradas de: SAILLARD, Olivier. Les maillots de bain. Paris: Hachette, 1998.
207
Modelo de Elsa Schi
p
arelli
,
1920.
Anúncio de roupas de praia da
Maison Hermès, 1928.
Fran
ç
a
,
1927
Imagens retiradas de: SAILLARD, Olivier. Les maillots de bain. Paris: Hachette, 1998.
208
É em 1946 que Louis Reard apresenta um traje de banho composto por duas
peças, batizando-o, inspirado pelo teste nuclear americano realizado no atol de Bikini,
de biquíni. Diz-se, entretanto, que antes disso, em 1932, o costureiro francês Jascques
Heim teria criado uma roupa de praia de duas peças. Ainda que de proporções maiores
do que aquelas do biquíni de Reard, o traje inventado por Heim também deixava a
banhista com o ventre à mostra. Tal qual verdadeira bomba nuclear, foi, no entanto, o
biquíni que de Reard entrou para a história. Como conta Saillarrd (1998), quando do
lançamento do biquíni seu criador, não encontrando nenhuma manequim que aceitasse
vesti-lo, contratou uma dançarina stripper do Cassino de Paris, Micheline Bernardini,
para apresentar a novidade.
Teste atômico no atol de Bikini.
Bi
q
uíni de Louis Reard
209
No princípio considerado um atentado ao pudor, sendo mesmo proibido seu uso
em diversas praias européias
114
, na década seguinte já pode ser visto nos corpos das pin
ups e mesmo em alguns filmes. Dentre tantas de suas aparições, torna-se inesquecível
na memória cinematográfica, por exemplo, a cena em que Ursula Andrews, em 1962
115
,
sai do mar vestindo um “moderno duas peças” com cinto largo enquanto canta que
Underneath the mango tree me honey and me can watch for the moon”.
No Brasil, é principalmente no final da década de sessenta que seu uso se
espalha.
114
A prefeitura de Biarritz, em 1948, proíbe que qualquer banhista, usando o novo traje duas peças,
permaneça no espaço da praia.
115
No filme “007 contra o satânico Dr. No”
Cena do filme “007 contra
o satânico Dr. No”
Rio de Janeiro
,
1969.
210
Entre as imagens brasileiras que entram para a “memória do biquíni”, se
destacam a de Leila Diniz, grávida em 1971, na praia e de biquíni, e a da tanga
amarrada nas laterais de Rose Di Primo. No caso de Leila Diniz, o escândalo causado,
na época, não dizia respeito propriamente a peça de roupa usada. Como aponta
Goldenberg (1995), a transgressão, ali, dizia respeito a gravidez publicamente celebrada
– numa época em que era, geralmente, escondida e escamoteada –, visibilizando sua
maternidade fora do casamento. O que incomodava não eram as dimensões de seu
biquíni, e sim aquelas de sua liberdade.
Os estilos de biquíni que fazem moda no Brasil são muitos: a tanga, o asa delta,
o sunkini. O mais conhecido internacionalmente enquanto “o biquíni brasileiro” é,
entretanto, o fio-dental.
Da esquerda para a direita: maiô tipo “asa-delta”; parte de cima de biquíni tipo “cortinha”, parte de
baixo de buquíni tipo “tanga”, biquíni tipo “sunkini”. Revista Caras Especial Moda, julho de 2004.
211
Além do grande número de coleções de moda praia desfiladas nos eventos
brasileiros de moda espetáculo, a importância simbólica da roupa de praia entremeia-se
mesmo na moda brasileira não voltada para a praia. No evento paulista de moda, em
junho de 2005, um dos estilistas entrevistados apresentou em sua coleção de verão
algumas peças – como vestidos e saias – inspiradas na modelagem de biquínis.
Na exposição Fashion Passion, o setor dedicado a moda brasileira dispunha boa
parte de seu espaço a moda praia. Ali havia a inúmeras fotografias do Rio de Janeiro
(cabe lembrar que a exposição aconteceu em São Paulo), de corpos femininos usando
biquínis tipo fio dental, além da famosa fotografia de Leila Diniz. Em meio às fotos, lia-
se a frase/legenda: “nossa nudez é democrática”.
São Paulo Fashion Week
,
j
ulho de 2005.
212
Ainda que mesmo dentro do Brasil maiô e biquínis sejam vistos com altamente
representativos do vestuário nacional, é quando se volta para o exterior que, mais do que
nunca, a moda praia toma posição dominante no mercado da moda brasileira. De acordo
com um costureiro gaúcho entrevistado, “[...] o grande sucesso do Brasil lá fora é
principalmente em termos de, primeiro, moda praia. Falar em Brasil tem que falar em
moda praia.”
Na FENIT, um grande número de confecções de moda praia apresentava seus
produtoss. Na feira carioca de negócios de moda, o Fashion Business, o número
Catálogo da exposição Fashion Passion, trazendo
a famosa fotografia de Leila Diniz.
213
também era significativo. Um expositor da FENIT, discorrendo sobre as diferenças
entre Rio e São Paulo nos negócios de moda praia, comenta que embora o Rio de
Janeiro “não seja como São Paulo, o coração da indústria de vestuário, é o lugar de
vender moda praia, tem a aura da praia, do sol, de uma tradição de praia mesmo.”
Muitas das marcas expostas no Fashion Rio, entretanto, vinham de fora do
estado do Rio de Janeiro. Como se pode imaginar, aquelas que apresentavam apenas
moda praia eram, em sua maioria, cariocas ou de outras cidades do estado. Exceção era,
entretanto, um grupo gaúcho que, para o ano de 2005, levou ao Fashion Business apenas
moda praia.
O estande do grupo era composto por quatro grifes gaúchas. Lá havia araras de
roupas de praia divididas por marca (duas de cada lado). Em todas as peças, além da
etiqueta da marca, havia a etiqueta “Brazilian Style”. Havia sobretudo biquínis, e a
maior parte era bastante estampada, muitos em verde e amarelo ou combinações florais
e de folhagens. Segundo uma expositora o pólo gaúcho de moda praia exporta muito,
sobretudo para México e Estados Unidos.
O Rio Grande do Sul, outsider no ramo, ou ao menos no imaginário da praia,
não apresentou-se ali sem enfrentar alguma resistência dos estabelecidos locais. Na
véspera do lançamento do Fashion Business, foi publicada num jornal do Rio de Janeiro
uma curiosa nota sobre a presença dos biquínis gaúchos em terras cariocas:
“Pretensão: o Rio Grande do Sul pretende fazer sombra às
confecções de moda praia do Rio. Os gaúchos vêm para a
sexta edição do Fashion Business, amanhã, no MAM, com
quatro marcas de biquíni.
116
116
Jornal O Dia, 14 de julho de 2005, p. 05.
214
No quesito “corpo brasileiro”, como diversos autores têm mostrado (Goldenberg
e Ramos, 2002; Gontijo, 2002), o corpo carioca é visto quase como seu “tipo ideal”
117
.
Como mostram esses autores, tal imagem é construída principalmente através da
referência a um estilo de vida “carioca”, da praia, dos esportes, da festa e da
informalidade. A moda praia brasileira, colada no corpo, também terá, portanto, mesmo
quando produzida alhures, o Rio de Janeiro como referência. Certamente é por isso que
a consultora francesa de moda entrevistada, em depoimento anteriormente mencionado,
se refere primeiro a uma “moda carioca” para depois falar em “moda brasileira”, assim
como uma revista francesa de moda, em editorial especial sobre biquínis, pergunta a
suas leitoras “et pourquoi pas le Brésil? Echancré, minimal et toujours colore, le style
carioca fait danser toutes les plages
118
”.
Na França, o Brasil é visto como tendo verdadeira perícia no setor de moda
praia. Recomenda-se às consumidoras, portanto, a compra e uso da “[...] tênue fetiche
du pays, le maillot de bain made in Brazil, au savoir-faire reconnu
119
”. Outra consultora
francesa de moda, relatando sua experiência de trabalho junto a marcas brasileiras,
comenta que suas consultorias para as fábricas de moda praia se davam apenas no nível
das estampas, porque nosso savoir-faire brésilien no setor já vem de longa data:
Pour les formes c’est vrai qu’ils étaient plus calés que nous... un côté sexy qu’on
n’avais pas en France. C’est vrai que la mode française aux années soissante-dix
pouvait déjà être folle, mais elle était quand même sage. C’est vrai qu’au Bresil il avait
une fantaisie et une liberté qu’on n’avait pas en France. [...] Tout était ouvert, tout était
possible. Les possibilités multiples qu’on pouvait déveloper là bas. C’était gai, c’etait
ouvert... c’était léger, c’était rapide...
E, sempre referida a esse nosso “côté sexy”, a moda praia brasileira esteve, nos
últimos anos, muito presente na imprensa francesa de moda. Os textos das reportagens,
editoriais de moda e legendas de ensaios fotográficos estavam permeados de adjetivos,
117
Assim como no que diz respeito ao jeito/caráter brasileiro, como analisado no capítulo anterior.
118
Elle France, 25 de abril de 2005.
119
Fashion Daily News, 06 de janeiro de 2006.
215
tais como “minimum”, “réduit”, “archi-mini”, “microscopique”, ou “ultraminimaliste”.
Uma dessas revistas de moda pergunta mesmo se “Un maillot de bain minimum peut-il
refléter l’étendue des tendances de mode?”, esclarecendo em seguida que “Au pays du
Bikini roi, rien n’est impossible
120
Os vendedores das duas lojas brasileiras contam que o maillot de bain brasileiro
realmente agrada, na França, por seu corte, mas também pelas estampas coloridas,
divertidas, e muito “nacionais”. Uma dessas vendedoras comenta que o “biquíni
brasileiro é um paradoxo”, porque ao mesmo tempo em que é “procurado por que é
sexy, cavado, pequeno, as clientes também reclamam dizendo que é sexy, cavado,
pequeno”. Com uma consumidora francesa entrevistada o tal “paradoxo” se apresentou
resolvido da seguinte forma: o biquíni brasileiro é “ très sexy, mais c’est vrai que c’est
un peu trop echancré, ça ne va pas à tout le monde. En tout cas, au niveau string, c’est
vrai qu’avoir un putain de corps brésilien serait plus rassuré”.
Se para usar devidamente o pequeno biquíni brasileiro é preciso ter um belo
corpo brasileiro, é justamente a partir do tal corpo brasileiro que o encantamento do
biquíni é construído, assim como seu tamanho reduzido. Os biquínis que desfilaram nos
eventos de moda não eram assim tão archi-mini, e os que eramo vendidos nas grandes
lojas de departamento parisienses tampouco o eram. Além disso, as marcas brasileiras
de biquíni, quando voltadas para exportação, realizam modificações nas peças,
aumentando um pouco a modelagem e diminuindo as échancrures, para agradar a
consumidora européia, que considera nossa moda praia por demais reveladora do corpo.
De acordo com um estilista brasileiro, “Pra mandar pro exterior mudamos um pouco [o
biquíni]. Na Europa e nos Estados Unidos eles acham tudo muito cavado, muito
pequeno, principalmente as partes debaixo”.
120
L’Officiel junho/julho de 2004
216
Outra estilista brasileira se vê num impasse:
“Não é nada fácil, não... tem que deixar bem brasileiro, mas as calcinhas dos biquínis
têm que ser maiores pra poder vender na Europa. Ela tem que cobrir um pouquinho
mais, então o que tem que fazer é dar uma mudadinha no modelo... e pra que fique bem
brasileiro, daí, como querem, vamos pelas cores e estampas [...] [e] as vezes colocamos
uma etiquetinha com a bandeira.”
Esse biquíni filtrado e modificado para agradar a consumidora européia, em
revanche, mesmo depois de ter sofrido modificações em seu corte, não perde a “aura”
de biquíni brasileiro, haja vista os tantos diminutivos empregados pelas revistas
francesas em sua descrição. As propriedades materiais de nossa moda praia são
modificadas, mas as representações que ela carrega são mantidas. E é exatamente isso
que de antemão uma loja brasileira em Paris avisa em seu anúncio publicitário: “ils [os
estilistas] nous régalent avec ces deux-pièces variant du string à une coupe plus sage,
mais toujours sensuelle”.
Em um aparente paradoxo, as mesmas consumidoras européias que consideram a
moda brasileira por demais reveladora do corpo são muito mais comumente adeptas do
topless, que quase não existe no Brasil enquanto prática costumeira, ao menos no
espaço público da praia. Há algum tempo um caso de topless nas praias do Rio de
Janeiro virou inclusive assunto de jornal, após ter sido alvo de repressão policial
121
. As
revistas francesas parecem saber de tal diferença, contando as leitoras que a mulher
brasileira bronze toutes fesses dehors, mais seins cachés
122
”. Voltamos novamente,
portanto, a questão da nudez.
A prática do topless e as representações que ele mobiliza, em homens e
mulheres, a respeito de corpo, gênero, pudor e sexualidade, foram objeto da pesquisa,
realizada na França, de Kaufmann (2004). Travar contato com seus dados possibilita,
em primeiro lugar, a percepção de quão usual é, na Europa, o banho de sol com os seios
121
Comentado, por exemplo, nas revistas Veja (26 de janeiro de 2000) e Istoé (25 de janeiro de 2000).
122
L’Officiel, junho de 2005.
217
nus. Como ele mostra, o topless acontece tanto no espaço público da praia quanto, ainda
que com menos habitualidade, em outros espaços tão ou mais públicos, como alguns
parques das cidades não balneárias.
Além de seus dados empíricos, suas interpretações a respeito da prática também
são boas para pensar. Ele questiona, por exemplo, a suposta “liberação do corpo”,
promovida e endossada por alguns discursos a respeito do topless. Diz, em primeiro
lugar, que a liberação dos seios comporta grande parcela de controle sobre eles. Da
mesma forma que Goldenberg e Ramos (2002) apontam, discorrendo sobre o
desnudamento do corpo carioca, Kaufmann diz que expor o corpo, nu, publicamente,
não é necessariamente um ato livre. Isso porque não é qualquer corpo que pode ser
exposto.
Embora, na Europa, muitas vezes seios de diferentes idades, tamanhos e formas
estejam a mostra sob o sol, as opiniões dos entrevistados de Kaufmann é de que apenas
os belos seios (entendidos ali como aqueles que são jovens e rijos) têm direito à tal livre
exposição pública, sem que recebem julgamentos estéticos e morais. A moral não diz
respeito apenas a cobrir ou desnudar, mas ao tipo de corpo que será desnudado ou
coberto. Decência e indecência, tanto na pesquisa de Kaufmann quanto nas análises de
Goldenberg e Ramos, dizem, nesse caso, menos respeito a quantidade de corpo que é
mostrada e mais a sua “qualidade”. Indecente não é o corpo nu, e sim mostrar – e ter –
um corpo não cuidado.
Outra interpretação de Kaufmann que interessa particularmente, e que também
diz respeito a liberação versus controle, é aquela que versa sobre o auto-controle de
gestos, sentimentos e olhares. E ele não fala aqui daquele que se desnuda, e sim do
outro que olha. O autor diz que a nudez do topless ensaia ser uma nudez deserotizada,
onde a porção de corpo exposta e o sujeito que decide desnudá-la, tem o direito de não
218
receber olhares desejosos. Junto com a liberdade de desnudar-se (e com o outro
controle, o estético, anteriormente mencionado), vem a obrigação da contensão do
desejo e dos olhares. Nem a nudez deserotizada é, portanto, naturalmente deserotizada.
Inspirando-se em Elias, Kaufman diz que ela exige um processo de auto-controle e
disciplinamento.
Quando analisam comunidades nudistas, Berthe-Deloizy (2003) e Deschamps
(2006) mencionam, igualmente, que se trata de uma situação onde corpo e nudez
tornam-se deserotizados. E lá, mais ainda do que na prática do topless, esse controle
precisa acontecer para a própria manutenção do grupo. Praticar o topless acontece num
ambiente onde o pacto da nudez deserotizada não é necessariamente compartilhado
pelos que convivem ali (na praia, no clube, no parque, na piscina de hotel), por isso há,
como contam as entrevistadas de Kaufman, os olhares incômodos daqueles que não
sabem “se portar direito”.
Na comunidade nudista, ao contrário, o pacto está feito, é manifesto. Estar ali
significa partilhar dele. Salvo quando se é “curioso”, ou “amador” na prática, mas essas
não são figuras bem recebidas, sendo mesmo consideradas contaminadoras do ambiente
“livre e familiar”. Ambas as autoras, falando das comunidades nudistas, mostram como
os discursos elaborados em seu interior versam sobre liberdade física e espiritual,
geralmente articuladas a outras práticas de contato com a natureza, ecologia, consumo
de produtos orgânicos e naturais, etc. Ainda assim, é o pacto do controle dos corpos (e
tocar o outro, por exemplo, pode ser gesto interdito) e das emoções que guia a liberação
do corpo dos entraves das roupas.
A prática do topless funda-se, então, no ideal da liberdade, mas igualmente no
pacto da contensão. A sensualidade do biquíni brasileiro, por outro lado, estrutura-se a
partir de outro consenso: o de que ele, não revelando um corpo nu, mas desnudado, é
219
repleto de propriedades eróticas. Além disso, é possível pensar que, no imaginário
contemporâneo, o erótico esteja inversamente alinhado com a naturalidade do corpo nu.
Mesmo o string, ou fio dental, que é o mais revelador do corpo dentre aqueles
que compõem a gama dos biquínis brasileiros, não expõe o corpo por completo. Ao
contrário de desvelar pura e simplesmente, ele sublinha e aponta os lugares que devem
fazer brotar o desejo. Encobrindo, deixa o corpo descoberto, sugestiona, dirige e diz
onde olhar e desejo devem se focar.
Na pesquisa a respeito da entrada da tatuagem nos modelos de beleza feminina
(Leitão, 2003a), sistemática semelhante se apresentou. O uso do desenho indelével no
corpo como estratégia de sedução, entre as mulheres pesquisadas, só era visto como
adquirindo funcionalidade no jogo de mostrar e esconder. A escolha das roupas a serem
usadas, especialmente aquelas pensadas para o “sair à noite”, em festas, bares e boites,
lugares por excelência do primeiro contato entre os parceiros amorosos, lugares para
“ver e ser visto”, era sempre balizada pelo critério de não desnudar por completo a
marca da tatuagem, e tampouco deixá-la encoberta. Aquela pequena (na maioria das
vezes) parte do corpo que abrigava a tatuagem devia, para revestir-se de eroticidade, ser
adequadamente revelada e ocultada.
Ainda que tratando de outros territórios e tempos, Simmel (1993), discorrendo
sobre o coquetismo e sobre as estratégias femininas de sedução, fala do jogo da
conquista como uma espécie de movimento pendular entre o conceder e o recusar, entre
o revelar e o esconder, que possibilita "a atração do segredo, do furtado, do que não
pode ter duração". Tal estratégia de sedução, funcionando enquanto jogo de artifícios
(portanto, longe do domínio da naturalidade), é comparada por Baudrillard (2001) ao
tromp l’oeil. Seu grande trunfo está em não se deter na simples aparência ou na pura
ausência, mas no eclipse da presença. O encantamento da sedução estaria então, para
220
ele, relacionado com sua ambigüidade e com sua permanência enquanto verdade
suspensa.
A discussão faz lembrar uma historieta contada por Câmara Cascudo (2003,
p.124) em “La maja vestida”. Conta ele que um certo rapaz, em 1950, assíduo
freqüentador das praias cariocas, convivia com corpos femininos desnudos
cotidianamente: “libido infixável na multidão provocante, dispersando a concentração
erótica”. Grande revelação foi para ele, entretanto, encontrar num baile as jovens que
antes, em sua nudez, não lhe despertavam interesse. Vê-las ali, vestidas e com seus
decotes sensuais, “ornadas nas supremas técnicas da atração enleante”, foi fatal para
inspirar-lhe o desejo, numa espécie de “derrota da Maja Desnuda”.
Revelando e ao mesmo tempo velando, o biquíni pode ser mais sedutor do que o
topless, porque nele reside ainda a idéia do segredo, do que existe e se faz saber, mas
não se revela por completo. E, nesse jogo, suscita o desejo de “ver mais”. Ver, por
exemplo, por detrás do biquíni com parte de cima “cortininha”, a “marquinha” da parte
do corpo conservada ao abrigo do Sol.
A marquinha do biquíni, aliás, é território corporal controverso. Na França,
como mostra Kaufmann (2004), é alvo de desprezo. Ela deve ser evitada a todo custo, e
acaba muitas vezes virando o principal “motivo” do topless, nos argumentos pensados e
exteriorizados por aquelas que o praticam. Ela é mesmo referida como repulsiva,
chamada de “mancha” e de “vilaine marque blanche”.
No Brasil sua beleza não chega a ser seja consenso absoluto. Tanto que um dos
estilistas brasileiros entrevistandos, ao seu respeito comenta: “[a marquinha] é sexy,
mas é um tantinho vulgar, uma estética de popozuda
123
, né?”.
123
Gíria originária do chamado funk carioca, indica uma mulher atraente, “gostosa”, mais
especificamente com uma bunda grande e bonita.
221
Ainda que possa ser vista como “deselegante” ou “vulgar” quando medida por
certos modelos estéticos – aqui, o da alta moda, e portanto, o das classes médias e altas
– a marquinha também é frequentemente percebida como erótica. Um funcionário de
uma marca de moda praia que expunha seus produtos na FENIT diz que, para fazer
“bons biquínis brasileiros”, é preciso fazê-los pequenos, justamente por causa da
marquinha. Segundo ele, por aqui a preferência é pelas tangas “com alcinhas fininhas no
quadril, pra deixar bem marcadinho” e pelas partes de cima “daquelas tipo cortininha,
que tapa o bico do seio e deixa a marquinha, porque não tapa o peito todo, deixa uma
marquinha muito sexy que as meninas brasileiras gostam”.
Aquela que na França é referida como “mancha”, por aqui chega inclusive a ser
chamada, através de um diminutivo carinhoso – recurso lingüístico bastante comum no
Brasil, haja vista nossos “Ronaldinhos” – aplicado à palavra marca, de “marquinha”.
Basta folhear as páginas de qualquer revista masculina brasileira para ver que mesmo
ali, onde a nudez feminina impera, os corpos não raramente se apresentam
ornamentados e “vestidos” com as tais marquinhas.
Sendo referida pelo primeiro estilista como “coisa de popozuda”, a marquinha
do biquíni vira inclusive inspiração para um funk carioca, cuja letra diz:
“Agora vira de bruço [sic]
[...] tá calor e tô na praia azarando uma gatinha.
Eu sô muito exigente, eu só quero com a marquinha.
A marquinha é muito sexy.
Gatinha, vou te falar,
vou te passar um óleo pra poder te bronzear. [...]
124
”.
124
Música “Vira de bruço”, da Furacão 2000.
222
São justamente as funkeiras, de acordo com um portal de notícias
125
, que
adeririam a uma nova moda de verão: usar esparadrapo como reproduzir uma
marquinha de biquíni, mais perfeita e uniforme do que a “verdadeira”, e que será
exibida com o uso das calças jeans de cós baixo
126
.
Uma possível interpretação para o particular gosto pelas marquinhas de biquíni
no Brasil é, como sugere mesmo uma revista de moda francesa, a possibilidade de
mostrar e demonstrar, através delas, a pele branca que se esconde por detrás do
bronzeado. A marquinha seria, nesse sentido, uma marca e sinal, impressos no corpo, de
distinção étnica. Ela diria, portanto, “estou bronzeada”, “estou morena”, mas “sou
branca”.
Mais um caminho interpretativo seria considerá-la como marca que torna visível
o próprio processo de bronzeamento. O bronzeado em si é a aparência hegemônica nos
padrões de beleza contemporâneos
127
, sobretudo no Brasil. Ele começa a entrar nos
padrões de beleza na primeira metade do século XX, conjuntamente ao processo de
“liberação” do corpo feminino dos entraves de espartilhos e dos corpos em geral no que
concerne movimentos, prática de esportes, atividades de lazer ao ar livre. Precursora em
muitas outras áreas, Mlle. Chanel foi, ainda muito jovem, uma dessas pioneiras na
exibição da pele bronzeada (Wallach, 2000) nos salões da alta sociedade francesa. Ele
se torna, nesse momento, também sinal associado a boa saúde.
E se antes o bonito era ser pálida, demonstrando pertencimento de classe e
opondo-se aqueles que precisavam trabalhar literalmente de sol a sol, o modelo de se
125
Portal de notícias G1, da Rede Globo. Reportagem acessada em 20 de fevereiro de 2007, disponível no
endereço: http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL2570-5606,00.html
126
O tema do jeans, especialmente desse estilo, será tratado no subcapítulo 4.5.
127
Apesar de continuar sendo o modelo dominante, convém notar que o bronzeado é, atualmente, um
pouco menos in do que o era há alguns anos. Isso porque passou a ser visto, recentemente, como inimigo
da boa saúde da pele quando praticado em excesso, sendo alvo de críticas por parte da dermatologia.
Cresce por aí, por exemplo, a quantidade e variedade de produtos cosméticos de maquiagem que já
contém filtro solar. O próprio crescimento dos produtos auto-bronzeadores pode ser visto como resposta a
nova perseguição feita ao excesso de Sol.
223
inverte, mas não seus conteúdos. Como menciona Bourdieu (1988) a respeito de uma
jovem elite européia, exibir a pele bronzeada deixa de ser sinal de trabalho para, ao
contrário, versar sobre ter privilégio do ócio e do tempo livre, tempo para deixar-se
bronzear-se pelo sol. Pálido, então, é quem trabalha num ambiente fechado, e com raras
oportunidades de ócio e lazer.
À essa interpretação que diz respeito a uma distinção econômica, soma-se aquela
da nova moralidade corporal da qual falam Goldenberg e Ramos (2002). Ter a
marquinha do bronzeado significa dizer: eu me bronzeio, e o faço propositalmente. É o
emblema de autonomia sobre o corpo, e de dedicação e esforço no cuidado dele,
revelando não só a disponibilidade de tempo para isso, mas também a vontade de
dedicar-se ao trabalho sobre o corpo. Mais do que um prazer, como diz Kaufmann
(2004), o bronzeado pode ser vivido como uma obrigação.
A respeito da valorização social do bronzeado, convém notar que Patrícia Farias
(2002), analisando as classificações de cor nas praias cariocas, aponta o bronzeado
como característica extremamente positivada no discurso dos freqüentadores dos
diferentes “postos” em que realizou trabalho de campo.
O bronzeado teria o “mais alto grau de positividade na hierarquia das cores da
praia”, acionado como sinal de beleza, saúde e mesmo signo de distinção entre
freqüentadores e não-freqüentadores. Outra imagem interessante evocada por seus
entrevistados é a de que “todo brasileiro se bronzeia”. A partir dessa afirmação seria
feita a distinção entre o “branquelo”, o “branquinho” e o “gringo”.
O “branquelo” seria aquele que “fica bem bronzeado quando pega sol”, mas não
freqüenta a praia por falta de tempo/oportunidade. O “branquinho” igualmente é capaz
de bronzear-se, mas não o faz porque não gosta da praia. O “gringo”, por sua vez, que
224
estava no pólo mais negativo de juízo estético a respeito da cor, por mais que tome sol
jamais ficará bronzeado, ficando sempre “vermelhão”
128
.
Em realidade, nenhuma dessas interpretações exclui a outra, podendo estar todas
associadas. E, a elas, se acrescenta mais uma: a da marca corporal (como no caso da
tatuagem), que se transforma em fetiche. A palavra fetiche é um galicismo mas, em
francês tem origem na palavra portuguesa “feitiço”. Indo à França e voltando ao Brasil,
ela indica que o desejo está depositado em um objeto ou lugar específico, e nem sempre
considerado “sexual” pela sociedade mais ampla.
É um termo emprestado pela sexologia e psicanálise da antropologia e da
história das religiões (Poutrain e Delmas, 2006). Em sua origem, designava os objetos
de culto das sociedades ditas “primitivas”, a “divinização do objeto” e sua veneração.
Segundo Nye (1999), é Binnet, discípulo de Charcot, que opera a transferência do termo
para o campo do desejo e da sexualidade.
Significa, contemporaneamente, o desejo sexual que se fixa e cristaliza em
determinados objetos, fora dos corpos. É o caso do aficionado por sapatos, ou do
colecionador de roupas íntimas. Pode, também, entretanto, ser fenômeno de
deslocamento do desejo para uma parte do corpo que não é necessariamente sexualizada
e, nesse caso, o detalhe e a parte é que se tornam foco de interesse, afastando a
sexualidade do todo e do conjunto corporal.
De acordo com Borel, as marcas corporais auto-impostas, em nossa sociedade,
são potencialmente “fetichizáveis”, porque
L’anatomie, en se marquant, penetre dans l’ordre fétichiste. Chaque inscription agit
sur l’imaginaire et le fragment touché, investi, devient à lui seul un corps-objet doté
d’une relative indépendence et dont l’éloignement matériel par rapport au sexe paut
varier de façon consideráble.” (1992, p. 22)
128
As reflexões de Farias a respeito do bronzeado e da valorização da pele morena remetem à própria
ideologia da “morenidade brasileira”, questão retomada no próximo subcapítulo.
225
A marca, conferindo um relevo particular a parte trabalhada, a erotiza. E, no
caso das marquinhas feitas graças ao esparadrapo que aparecem para fora das calças das
“popozudas do funk”, a marca brinca, como o biquíni, com o jogo entre nudez e roupa.
4.3- Cravo e canela
O corpo brasileiro que inspira nossa moda é um corpo generificado: ele é
sobretudo feminino. No que diz respeito a seu fenótipo, entretanto, duas contradições se
apresentam. A primeira delas, objeto de análise deste subcapítulo, concerne à cor do
corpo brasileiro. Embora na prática o modelo de beleza dominante, no campo da moda,
seja o da mulher de pele branca e, preferencialmente, olhos claros, nos seus discursos
sobre quem é a mulher brasileira a ideologia da “morenidade” é bastante presente. O
corpo brasileiro imaginado é, então, o da mulher morena. Mas quem pode e quem não
pode ser, no Brasil, “morena”?
Os modelos brasileiros de classificações de cor têm sido tema de reflexão de
diversos autores. Oracy Nogueira (1983 e 1998) sugere uma especificidade brasileira,
em termos de relações raciais, a partir da diferença que estabelece entre “preconceito de
marca” e “preconceito de origem”. Segundo o autor, o preconceito de marca,
predominante no Brasil, teria base em traços físicos, na aparência. Seria a partir de
critérios de aparência (sobretudo cor da pele, mas não apenas) que se daria a
classificação dos sujeitos como brancos ou não-brancos aos olhos dos outros. Uma vez
baseada na fisionomia, essa classificação daria espaço para maiores nuanças, num
espectro continuum de cores que permite intercruzamentos e intermediários entre o
negro e o branco.
226
No que concerne o preconceito de origem, segundo Nogueira (1983), mais
comum nos Estados Unidos, as classificações e tipificações se dão no nível da
ascendência. Uma vez nascido no seio de um grupo étnico, não se pode sair dele. Há
nesse modelo, portanto, uma divisão sem ambigüidades entre negros e brancos. Angela
Gilliam (1995) se refere a esse tipo de classificação racial como “teoria de uma gota
só”, e diz que era por conta dela que, enquanto americana, se percebia como “mulher
negra”, ao mesmo tempo em que era vista, pelos brasileiros, como “mulher mulata”.
Essa fluidez no sistema de classificação de cor no Brasil têm sido objeto de
discussão, sendo freqüentemente usada como argumento para uma crítica das categorias
de cor empregadas nos censos e em outras pesquisas quantitativas. Marvin Harris
(1993) faz uma crítica a essas categorias censitárias dizendo que não dão conta da
especificidade das relações raciais brasileiras, que não são capazes de capturar o que o
Brasil teria de mais peculiar, mais característico, que seria justamente uma ausência de
agrupamentos raciais com fronteiras e limites bem definidos.
Ivone Maggie (1995 e 2002) também diz que as categorias “negro”, “branco” e
“índio”, as três pontas de nosso mítico triângulo racial, não funcionam na vida
cotidiana. São posições apenas existentes na fábula que constitui nossa identidade
nacional. No Brasil, segundo ela, não há homogeneidade classificatória, e as
classificações que uma pessoa recebe sempre dependem de quem a classifica e da
situação em que isso acontece. A exemplo de Macunaíma, as pessoas,
independentemente de seu “heroísmo” ou de seu “caráter”, podem mudar de cor de
acordo com o contexto.
Já Hanchard (1994), usando como exemplo o caso da “Cinderela Negra”
129
, diz
que os sistemas de classificação de cor no Brasil estão ficando cada vez mais bipolares.
129
Filha do governador do Espírito Santo (um homem negro casado com uma mulher branca), vítima do
preconceito racial e mesmo agressão física de uma vizinha em briga começada quando esta vizinha a
mandou “usar o elevador de serviço” por achar que fosse a empregada doméstica de algum morador.
227
A moça do exemplo, apesar de ser filha de um homem negro com uma mulher branca,
teria se classificado como “negra” e assim teria sido referida pela maioria dos que
comentaram o caso. Peter Fry (1996), no entanto, rebate a hipótese de Hanchard,
dizendo haver no Brasil uma espécie de coexistência entre os dois modos. O modo
bipolar ou binário, de um lado, pressupondo raças essencializadas e definido mais pela
ascendência do que pela aparência, é o código utilizado por boa parte do movimento
negro
130
, e funciona muito bem no discurso “politicamente correto”. É, entretanto, o
modo múltiplo de classificação de cor, construído sobre diferentes variáveis (cor da
pele, cor e tipo de cabelo, formato do nariz, espessura dos lábios, etc...) que é acionado
nas relações cotidianas.
Em trabalho anterior (Leitão, 2003b), pesquisando as descrições fenotípicas de
mulheres que se definiam como “morenas” e “mulatas” em um cadastro de encontros
amorosos, também foi grande variedade de classificações encontradas. Elas iam desde
“negra”, “mulata”, “morena” e “branca”, até categorias mais ambíguas como “meio-
mulata”, “mulata com sardinhas”, “mulata tipo exportação”, “mulata da cor do Rio”,
“mulata de pele clara”, “morena-indígena”, “mulata-bronzeada”, “morena-jambo”,
“mulata-jambo-claro”, “jambo-bronzeada”, “morena-tropicana”, “mulata-cor-de-cobre”,
entre outras tantas.
As categorias de cor da pele estavam ali sempre sendo balizadas pelos mais
diversos adjetivos. Frequentemente, por exemplo, recorria-se as “metáforas culinárias”
na escolha dos adjetivos, o que resultava em categorias como “morena-chocolate”,
“marrom-bombom”, “cafezinho com leite”, “morena cravo e canela”, “sorvete de
chocolate”. Além disso, as classificações incluíam uma série de ponderações a respeito
de mudanças sazonais, tais como: “Sou morena, quando tomo sol, minha pele fica
130
Sobre esse assunto ver em KOFES (1996) o debate com os editores da Revista Raça, que dizem que
em sua revista “O mulato não existe, o moreno não existe. Mulato é negro, moreno é negro”.
228
morena jambo típica brasileira, mas no inverno sou mais clarinha”, ou “Sou morena,
pele clara, do tipo que quando tomo um solzinho primeiro fico vermelha depois morena
dourada”.
A idéia da morena e da mulata como “tipo nacional” é muito reivindicada por
Gilberto Freyre (1982, 1997). Em seu ensaio “O amplo aspecto da morenidade
brasileira”, diz ser crescente o amorenamento do povo brasileiro que já poderia, quase
que em sua totalidade, ser caracterizado como moreno. Segundo ele “a morenidade do
brasileiro vai da branca brunette ao moreno que resulte de qualquer grau de acréscimo
de sangue não-caucasiano ao caucásico”, e até “pretos retintos podem vir a ser
chamados no Brasil, hoje, de morenos”. Gilberto Freyre fala mesmo em uma
“metarraça” brasileira (1997), que seria em última instância a “metarraça morena”.
Nelson do Valle Silva (1996), em “Morenidade: modo de usar”, explora
justamente a discussão a respeito da presença cotidiana da ideologia da morenidade
brasileira, sobretudo nos sistemas de classificação de cor. Ele lembra, por exemplo, do
survey da Folha de São Paulo (publicado em 25 de julho de 1995) onde 24% dos
entrevistados classificados como “brancos” pelos entrevistadores se auto-classificavam
como “morenos”. Silva diz que é preciso, entretanto, perceber que a categoria “moreno”
pode, muitas vezes, receber tanta popularidade porque substituiria outra categoria, a de
“pardo”, pouco valorizada na hierarquia de classificações cromáticas.
Mariza Corrêa (1996) fala da figura mítica/imaginária da mulata, e de sua
construção como objeto de desejo e símbolo nacional. De acordo com a autora,
entretanto, essa mulata ideal e onírica, símbolo nacional, não seria uma categoria fluida
como outras figuras presentes nos sistemas de classificação de cor do Brasil. Ao
contrário da morena, categoria abrangente que dá conta de quase tudo, a mulata seria
uma categoria rígida, com um lugar definido ou definitivo.
229
É possível que a rigidez da categoria mulata, como aponta Corrêa, esteja
relacionada ao imaginário que a envolve, que é, em última instância, o da sensualidade.
Tal rigidez, entretanto, não diz respeito às características fenotípicas que podem ou não
associar-se à mulata, porque essas me parecem bastante maleáveis. Em entrevista a uma
jornalista de moda (Galvão:2003), Luíza Brunet – uma morena? – comenta a presença
de modelos brasileiras nas passarelas da moda internacional. Falando sobre Gisele
Bünchen, ela diz: “Apesar de Gisele ter o biótipo da européia, ela é uma mulata branca,
que sabe usar bem sua sedução, o poder feminino”. Aqui, embora uma loira,
descendentes de alemães, possa ser comparada à mulata, o que denota certa
maleabilidade da classificação, não dizendo esta apenas respeito à cor da pele, é
justamente pelo caminho da “sedução”, aquele mesmo apontado por Corrêa como fixo,
que a ligação se estabelece.
Há poucos anos, outra modelo brasileira, muito menos famosa do que Gisele,
causou sensação nas passarelas brasileiras. Nascida em Juazeiro do Norte, a moça foi
finalista de um concurso elaborado por agência de modelos. Chegou aos grandes
eventos da moda espetáculo e virou notícia. Um ano depois, nos eventos ainda se
comentava a respeito da manequim. Uma estilista, por exemplo, disse ser ela
“a mulher brasileira, morena, meio índia e meio negra, uma top com a cara do Brasil,
uma top com a nossa identidade... tavam todos chamando a garota pra desfilar, tavam
todos querendo uma garota com aqueles traços. Ela tem uma cara indígena, uma pele
morena, olhões negros, cabelão escuro, foi uma festa encima dela que fizeram... saiu em
um montão de revistas, tavam falando aí, por aí, que era uma Iracema."
Mas como dizia a estilista, estavam “todos querendo uma” - e apenas uma –
moça com tal fenótipo. A experiência de pesquisa nos eventos de moda mostrou que,
nos corredores, bastidores e passarelas, o fenótipo mais corrente é o da mulher branca,
em sua maioria loira, e de olhos claros. Manequins negras, mulatas ou morenas, sem
dúvida também estão por lá, mas são muito menos numerosas.
230
Cabe aqui um pequeno parêntese a respeito das manequins. Um evento como o
São Paulo Fashion Week, que acontece durante vários dias, agrupa cerca de sessenta
desfiles de moda. Cada um desses desfiles chega a contar com quinze ou vinte
manequins. Ainda que frequentemente elas se “repitam”, participando em mais de um
desfile, o número de moças que ali trabalham é enorme. Dessas, a grande maioria não é
composta por rostos – e corpos – famosos. As tops representam a exceção. São essas
tops, entretanto, as que se “destacam”. Mais do que mostrar as roupas, mostram a si
mesmas na passarela e dão publicidade para a marca que as contrata.
A maior parte das manequins, formada por moças pouco conhecidas, recebe
inclusive cachê bastante baixo para desfilar. Estar ali, entretanto, é uma oportunidade
disputada, porque participar do evento “dá currículo”, além de ser uma oportunidade
sem igual de aparecer no mundo da moda. As chances de “aparecer”, se sobressair e
virar top, são mínimas, mas para aquelas que conseguem a recompensa é valiosa:
dinheiro, fama e uma vida glamurosa, diametralmente oposta ao cotidiano difícil das
moças que formam a massa de “corpo-de-obra” dos eventos.
O parêntese se justifica porque aquelas manequins que fogem do fenótipo ideal
são, geralmente, a exceção. E também são geralmente mais afamadas do que as que
compõem a massa indistinta de corpos brancos, perfeitos e lisos. Lisos porque, diga-se,
embora nos últimos anos tenha aumentado muito o número de manequins com –
pequenas– tatuagens, são pouquíssimas aquelas que possuem muitas tatuagens. Essas
poucas, entretanto, são bastante famosas, “destacam-se”. O mesmo acontece com
aquelas que têm algum traço particular no rosto que fuja à norma. Uma manequim com
um nariz grande poderá ter sucesso, mas será apenas ela e mais outras poucas, e será
conhecida por seus “traços exóticos”.
231
Nos bastidores do desfile, a mulher negra que compunha o grupo de manequins
tinha uma postura e um status diferenciado. Era a única que chegou acompanhada de
outras pessoas, que a serviam e ajudavam. Chegou mais tarde do que a maioria, e
enquanto as outras precisavam estar sempre disponíveis para as provas e demais
procedimentos preparatórios, a ela era oferecida a possibilidade de, lá pelas tantas, parar
tudo para que pudesse conversar ao telefone celular. Ela tinha ali uma importância e um
relevo, não fazia parte da grande massa de trabalhadoras da moda.
Isso não quer dizer que a beleza da mulher negra fosse valorizada no meio. Ao
contrário, era justamente porque são em pequeno número que, sempre que for
necessário ou desejado, será essa ou aquela outra negra a chamada para o trabalho.
Outro estilista, quando perguntado sobre a ausência das manequins negras, responde
que
“é bom ter... pra representar bem... pra representar as mulheres brasileiras que são de
tantos tipos! A mistura de raças... é bom... é muito bonita a mulher brasileira, mulata,
Gabriela... é bom ver isso... mas não dá pra exagerar porque chama atenção... viu... na
hora de mostrar a sua roupa você tem que pensar [que] não é a modelo que aparece, é a
roupa, a modelo é o suporte da sua criação”
A manequim é percebida, portanto, como uma espécie de “tela em branco”. A
esse respeito, na pesquisa sobre o aparecimento da tatuagem nos corpos das manequins
foi constatado que ter tatuagens muito grandes já descarta a funcionalidade da moça
enquanto “tela em branco”. E se a tatuagem, nesse caso, chega a ser óbvia, outros
elementos fenotípicos não o são. Na ficha preenchia pelas jovens quando de seu
ingresso em uma das agências de modelos constava, ao lado da informação a respeito da
tatuagem, outro campo pré-definido e padrão que também deveria ser assinalado (com
as opções “sim” e “não”): “tem sardas?”
Segundo disse a booker da agência, a informação era necessária porque, apesar
do uso da maquiagem, uma manequim
232
“sardentinha não vai estar sendo tão neutra, fica com a cara dela nos trabalhos, menos
versátil né... não quer dizer que não vai pegar trabalho, hein! Só consta aí pra gente
estar sabendo, pro cliente saber. Daí... se é um estilo dela que tá procurando, é ela que a
gente chama.”
Embora pareça contraditório que uma manequim negra seja a representação “das
mulheres brasileiras” e, ao mesmo tempo, “chame atenção”, não o é se pensarmos que o
tipo de beleza do campo da moda, nacional e internacional, ainda que se transforme,
permanece muito focado na aparência da mulher branca. Ela pode, é claro,
especialmente no Brasil, ser bronzeada. Mas se não o for também não será problema, já
que em diversos desfiles pintava-se com maquiagem não apenas o rosto, mas também o
corpo das manequins para que aparentassem bronzeado. É esse o caso do desfile
inspirado no “sertão” descrito no capítulo anterior, para o qual as manequins recebiam
uma maquiagem marrom e dourada, dos pés a cabeça.
Ainda no que concerne a contradição entre o imaginário do que é
fenotipicamente a “mulher brasileira” e a aparência na prática, um desfile no evento
gaúcho de moda espetáculo foi bastante emblemático. As peças, repletas de desenhos de
araras, onças e folhagens, eram desfiladas ao som de músicas brasileiras. E enquanto a
letra da música, na voz de Caetano Veloso, dizia “Eu sô neguinha?”, manequins
brancas, pálidas – dessa vez nem a maquiagem bronzeadora fora aplicada – de olhos
azuis e cabelos loiros – propositalmente embaraçados – caminhavam pela passarela.
Pode-se argumentar, como o fez minha “vizinha” de cadeira, quando não contive uma
resposta negativa a pergunta da música, com o lugar comum de que “ah, mas é só que
aqui no Sul [do país] as gurias são brancas mesmo”.
O argumento da “vizinha” não invalida a constatação de que é esse o padrão e o
comum nas passarelas. Além disso, sem sair do mesmo lugar comum de que somos
“todos brancos” no Sul do país, outro comentário habitual no campo da moda é o de que
as manequins gaúchas são numerosas nas passarelas nacionais e internacionais porque
233
temos por aqui muitas loiras, ou morenas-brancas. Independentemente de sua
veracidade, ele informa justamente sobre a preponderância desse padrão como
dominante no campo.
Nos discursos e nas “inspirações” da moda, entretanto, não se hesita em evocar a
“beleza mestiça” da mulher brasileira, as “influências” negras e indígenas. Ainda que
nas passarelas as manequins precisem ser “neutras”, e ainda que neutras signifique ali
“brancas”, a beleza do brasileiro é dita como fundada na mistura.
Na França, a beleza brasileira é, nas revistas de moda, também atribuída à
heterogeneidade étnica do Brasil e à miscigenação. Fala-se emhéritage
morphologique” e que “grâce à ce métissage (...) le corps brésilien est devenu cette
silhouette désirée par le monde entier
131
”.
Nossa beleza corporal, além de nosso caráter, é imaginada, portanto, como
resultado da diversidade étnica do país. A diversidade, como no caso das múltiplas
classificações no que diz respeito à cor da pele, é, entretanto, sintetizada no “tipo
brasileiro”, em alguma medida semelhante aquilo que Freyre vai chamar de “metarraça
morena” (1970), o resultado da mistura de raças (e não mais outra raça, mas algo assim
e além da raça, por isso o prefixo meta). É dentro dessa supervalorização da morenidade
nacional que a “mulher morena” recebe lugar privilegiado nos comentários de Freyre.
O autor (1997) fala de uma ampla valorização da “beleza feminina naturalmente
morena” no Brasil, assim como das “formas e cores de mulheres bronzeadas pelo sol
das Copacabanas”. O orgulho nacional seria o “orgulho da morenidade característica da
pigmentação tropical de grande parte das mulheres brasileiras”.
Talvez seja justamente essa idéia de “metarraça morena”, ainda presente na
forma brasileira de pensar sobre o Brasil, que dê espaço para a multiplicidade de
131
Vogue Paris, junho/julho 2005.
234
classificações de cor no país. E embora nas disputas políticas e por representação o
modo bipolar de classificação venha realmente sendo utilizado – quem sabe ali tenha
maior funcionalidade – no reino das fantasias e dos desejos, como no caso dos cadastros
de encontros amorosos mencionados, ou no das falas sobre a beleza de nossas
Gabrielas, é a multiplicidade de possibilidades de cores e tons que é atualizada
cotidianamente. Ainda que, na prática dos desfiles de moda, o fenótipo dominante não
seja esse, ele sem dúvidas ocupa lugar importante no imaginário brasileiro, sobretudo
quando vinculado aos desejos e a sedução.
4.4- O cabide e o violão
Para além da cor, também as formas do corpo brasileiro representado acumulam
contradições. Antes de, no próximo subcapítulo, entrar na temática do jeans brasileiro,
que traz consigo a mulher brasileira imaginada como corpulenta, especialmente em
certas partes de sua anatomia, convém fazer uma breve consideração a respeito dos
ideais da moda e dos ideais cotidianos no que concerne o “tipo de corpo”. Sabe-se, por
exemplo, que no setor da moda, sobretudo aquela dita “de passarela”, a moda
espetáculo, o tipo físico ideal da manequim é o da mulher muito alta e muito magra.
Tal realidade gerou, em especial no ano de 2006, bastante polêmica e discussão
na mídia. Por conta da morte de uma manequim que sofria de anorexia, colocou-se em
questão o ideal do campo, que foi acusado de exercer e estimular uma magreza
excessiva e exagerada das manequins. A moda espetáculo não tem como público apenas
aquela ínfima parcela da população brasileira que efetivamente a consome, e sim uma
enorme parcela que, através da mídia, recebe seus modelos e padrões. Partindo dessa
proposição, quando das discussões a respeito de anorexia e magreza, considerou-se, por
235
extensão, que os exageros cometidos na moda eram prejudiciais não só para as
manequins, mas para todos aqueles que direta ou indiretamente nelas se espelhavam.
A moda brasileira, por sua vez, elaborou práticas que pudessem, ao menos em
aparência, responder aos apelos da sociedade. Na última edição do São Paulo Fashion
Week, por exemplo, já ouve um controle mais rígido de idade e de peso das manequins.
O organizador do evento, que foi chamado pela imprensa para opinar frente a todas as
movimentações geradas pela morte da manequim, em diversas de suas declarações disse
que previa, para os próximos anos, a exigência de cada uma das moças, para poder
desfilar, apresentasse um dossiê médico e psicológico sempre atualizado.
Ainda que não seja essa a temática desse trabalho
132
, é preciso mencionar que
padrão da manequim excessivamente magra se faz realmente presente em todos os
eventos de moda espetáculo. Tanto nos eventos carioca e paulista, mais hegemônicos no
campo, quanto no evento gaúcho, considerado menos importante no mundo da moda, o
padrão é realmente esse.
Nos eventos de moda business, entretanto, dois tipos corporais de manequins se
fazem presentes. Quando há desfiles do próprio evento, a maioria delas é do tipo muito
magra. Nos estandes, entretanto, quando há pequenos desfiles internos para clientes, ou
simplesmente quando uma que outra manequim, vestindo peças da marca do estande,
fica exibindo as roupas, não é o padrão da manequim excessivamente magra, e sim o da
“gostosa”, com formas mais arredondadas, que aparece.
O evento Bom Retiro Fashion foi especialmente rico para pensar a respeito
desses dois padrões de beleza corporal. O ambiente era muito mais heterogêneo do que
aquele dos grandes eventos de moda espetáculo. Em pé, assistindo o desfile, havia de
tudo um pouco. Desde moças jovens, “descoladas” ou “patricinhas” a senhoras bem
132
Sobre esse tema, ver, por exemplo, o trabalho Morel (2006) que mostra as diferenças entre o padrão
estético das modelos ditas “de passarela”, bastante magras e altas, e aquelas de comerciais, ditas
“cevejeiras”, com um corpo mais volumoso e menos altas.
236
arrumadas que comentavam as roupas, vendedoras e vendedores das lojas da região que
comentavam o “mau gosto” das roupas de seus concorrentes, até um público que não
tem nada que ver com eventos de moda: homens (que já são minoria em tais eventos) de
classes populares, como vendedores ambulantes, taxistas, músicos de rua latino-
americanos, mendigos, e outros mais.
Todos amontoados, tentando enxergar o que acontecia na pequena passarela
armada no meio da rua, conversavam e comentavam o evento e o que viam. As
mulheres comentavam, principalmente, sobre detalhes das roupas. Por parte dos
homens, no entanto, os comentários eram bastante diferentes.
Embora as modelos que ali desfilassem fossem mais corpulentas do que aquelas
que vemos normalmente nas passarelas, ainda assim eram bastante magras. Avisando
que não estavam ali para “ver roupa” e sim para “ver a mulherada gostosa”, os homens
que assistiam o desfile, de pé, no meio da multidão, reclamavam do tipo físico das
manequins que desfilavam. Diziam, por exemplo, “ih... que horror... que magrelinha”,
“ai... cadê mulher? olha o cabidão!” e “ô meu, não vim aqui pra ver isso aí não, que que
eu quero ver pescoçuda branquela dessaí?!”.
Enquanto o corpo da moda é o corpo delgado, o corpo imaginado como típico da
mulher brasileira, objeto de desejo, é aquele sinuoso, cheio de formas e protuberâncias,
definido pela consumidora francesa cujo depoimento já foi mencionado, como um
putain de corps brésilien”, que se resume em “[...] fesses hautes et fermes, [...] cuisses
en béton, [...] abdos parfaits
133
A mesma Gisele Bündchen, descendente de alemães, que é vista como tendo lá
seu “quê de mulata”, também é referida, agora por uma revista francesa, como exemplo
de mulher “carnuda”:
133
Votre Beauté, abril de 2005.
237
Dorée, pulpeuse, éclatante de santé et de bonne humeur, Gisele Bundchen a chas
des podiums les anorexiques blafardes[...] Elle, elle donne dans le genre nature, et la
magie de son pays, qu’elle a toujours dans la peau, ilumine son teint, fait danser as
silhouette, rayonner son sourire
134
Flexível, a mais famosa top model brasileira da atualidade pode, de um lado,
tanto diferenciar-se das “anorexiques blafardes”, quanto ser chamada como exemplo,
pelos organizadores dos eventos brasileiros de moda espetáculo, de mulher com índice
de massa corporal abaixo do recomendado pelos médicos. E ela o foi, constantemente,
ao longo das discussões a respeito das regras impostas nos desfiles, quando diziam, aqui
e acolá, que “se for assim nem a Gisele desfila!”. Nem mulata e nem carnuda, Gisele só
tangenciará essas duas categorias na medida em que for apontada como “mulher
brasileira” ou, como na imagem abaixo, como “a cara do Brasil”. Apenas sendo
entendida enquanto tal, poderá ter essas representações coladas a ela, sempre de maneira
positiva.
134
Macht du Monde, março/abril de 2005.
Elle Brasi
,
j
aneiro de 2003.
238
Não apenas no caso da famosa manequim, mas de forma geral, esse corpo
feminino abrasileirado e sexualizado é também o corpo da mulher morena e mulata.
Antônio Jonas Dias Filho (1996) a partir de estudo sobre o circuito sexual de turismo
em Salvador, mostra como a categoria “morena jambo” é usada pelas prostitutas que
entrevistou como classificação que “alimenta fantasias masculinas e funciona para os
gringos”, por ser imediatamente relacionada a uma sexualidade ativa e exacerbada.
Adriana Piscitelli (1996) preocupada em refletir sobre os discursos da mídia
brasileira a respeito do turismo sexual mostra a maneira erotizada com que a cor é
introduzida nos artigos. Segundo ela, a mídia brasileira, quando trata do turismo sexual,
faz uso de duas imagens opostas e contrastantes: de um lado a prostituta / brasileira /
não-branca / pobre / jovem; do outro o cliente / estrangeiro / branco / rico / mais velho.
Os atributos das mulheres descritas nos artigos cuja temática versa entorno do turismo
sexual são sempre “curvas sinuosas, bundas arrebitadas e peles escuras, em diversas
tonalidades”.
As mulheres, nos folders de agências de viagem analisados pela autora, sempre
aparecem como “parte do pacote”, mesmo que seja apenas em imagens fotográficas de
corpo femininos seminus, exuberantes como a natureza brasileira. O que é vendido,
segundo ela, é sobretudo a sensualidade e volúpia nativas.
Os excessos do corpo da brasileira, assim, dizem respeito a suas formas, mas
também as suas práticas: ele é um corpo erotizado, cuja sexualidade aparece como tão
hiperbólica quanto as curvas. Em nosso pensamento social brasileiro, essa imagem é
bastante recorrente. Ela será, entretanto, tomada como positiva ou como negativa,
dependendo da época e do autor.
Em “Retrato do Brasil” Paulo Prado (2001) cria uma espécie de mitologia
erótica brasileira, situando a identidade nacional e os “traços” nacionais (a melancolia,
239
de que fala) como resultado da embriagante sexualidade que descreve. Em seu livro, as
índias brasileiras, nativas do território nacional, são pintadas como criaturas vorazes e
sedutoras, e de uma sexualidade liberada com relação aos portugueses que chegavam.
Depois delas, Prado descreve a mulher negra como igualmente sensual, porém “mais
afetuosa e submissa”, tomando no “gineceu do colono o lugar da índia”.
Essa sexualidade exacerbada, “hiperestesia sexual”, marcaria, para Prado, a
formação do Brasil enquanto nação não segregada, unida pela luxúria e pelo desejo, que
“aproxima as raças”. E o povo brasileiro, por fim, seria essa mistura lasciva das três
raças. O resultado para ele, entretanto, não é positivo. A tristeza e melancolia que Prado
afirma serem traços do povo brasileiro são resultado do esgotamento que sucede o
excesso sexual e a cobiça do colonizador.
Gilberto Freyre (2003b) também retoma a mítica do passado histórico ligado a
uma sexualidade desenfreada, que chama mesmo de “intoxicação sexual”. Para ele, a
sexualidade, potencializada pelo clima tropical, teria permitido os trânsitos, fluxos e
refluxos entre classes e raças, tendo gerado a mistura racial, “unificadora” da
“civilização dos trópicos”. O encontro das diferenças raciais e sociais, portanto, tem a
alcova como lugar de resolução de suas tensões e disputas e, como resultado,
“metarraça morena”, o povo brasileiro.
A figura da mulata, vista como personificação do desejo, é emblemática do
“amalgamento das diferenças” proposto por Freyre. E se é ela que tem o lugar central no
fenótipo desse corpo brasileiro imaginado, a parte do corpo que ocupa tal posição
quando o assunto são as formas é aquela que Freyre diz ser verdadeira “preferência
nacional”, a bunda brasileira.
240
4.5- Lifting traseiro
A mística que envolve o jeans brasileiro e sua celebração internacional estão,
sem dúvida, fundadas no imaginário da “bunda brasileira”. Trata-se aqui, portanto, de
pensar a respeito do jeans nacional, mas, igualmente, parodiando a música da dupla de
repentistas Caju & Castanha, de refletir sobre “o poder que a bunda tem”. Antes de
entrar propriamente na temática, entretanto, segue alguns breves comentários sobre a
história da calça jeans e sobre as outras narrativas que são associadas a essa peça de
roupa.
As histórias sobre o surgimento da calça jeans sempre agrupam diferentes
narrativas fundadoras, ou o que Toussaint-Samat (1994) chama de “mitolojeans”.
Recebendo uma que outra modificação, como a aparição de um novo ator presente no
processo, uma nova cidade, uma nova origem para os tecidos
135
, todas tem em comum o
fato de atribuir a Oscar Levi-Strauss o papel de herói fundador. E se o personagem é
esse jovem imigrante judeu alemão, o cenário é o Oeste americano em plena “corrida do
outro”. O rapaz teria ido ao Oeste munido de tecido de lona de barraca, proveniente da
empresa de familiares seus, na costa Leste. Pretendia, então, fazer barracas para vender,
mas perante a necessidade dos homens da região, trabalhadores atuando na extração de
ouro, mudou de planos: produziu, com as tais lonas, calças muito resistentes, calças de
trabalho. Esse tipo de calça, que inicialmente era de cor marrom, e não azul, se associou
então a idéia da resistência e, por isso, a roupa de trabalho.
Do trabalhador ao herói, entretanto, foi um curto passo. O jeans virou marca
registrada dos cowboys (na Espanha até hoje esse tipo de calça é chamada “vaqueiro”)
135
O tecido denim, por exemplo, às vezes é dito como um tipo de tecido proveniente da cidade francesa
Nîmes, donde “de Nimes”, que teria se transformado em “denim”. Outras vezes é à palavra jeans que é
atribuída a narrativa de origem. Designando um tipo de tecido de algodão grosso e resistente, o jeans seria
uma derivação da palavra genoese, por ser fabricado em Gênova desde o século XIV.
241
porque, também pela resistência, seria própria para montar a cavalo. Foi imediatamente
incorporada, nos anos trinta e quarenta, aos figurinos dos filmes de faroeste. Inspirando-
se nos heróis vaqueiros-cantores, o uso do jeans foi, já então, incorporado na sociedade
americana. Ele era, entretanto, apenas roupa de “fim de semana” e, do mundo do
trabalho, entrava no do lazer e do ócio.
Seus trânsitos são muitos porque, se do trabalhador passou ao herói, passou
também, a partir da década de cinqüenta, a ser o uniforme da juventude rebelde. Vale
lembrar Marlon Brando e James Dean vestindo jeans com camiseta de algodão. Essa
sim era uma combinação duplamente contestadora. O jeans como símbolo da juventude
e da informalidade, deixava de ser roupa de “fim de semana” e passava ao dia-a-dia. E
a camiseta, antes roupa de baixo, restrita ao mundo da casa e da vida privada, é trazida
ao traje “da rua”.
A calça jeans passa a ser incorporada não apenas por essa “juventude
transviada”, mas por diversos movimentos contra-culturais. Ela é tomada como
princípio unificador, símbolo de igualdade, podendo ser usada por todos. Seu uso pelas
mulheres, como diz Hollander (1996), acaba transformando-o não apenas em roupa que
atravessa diferentes classes sociais e categorias profissionais, mas em roupa unissex,
andrógina.
Hoje a calça jeans é parte do circuito da moda e, embora torne “todos iguais”,
através das diferenças estabelecidas pelas marcas, possibilita que alguns continuem
sendo “mais iguais que outros”. Seus trânsitos se dão em todas as direções. De roupa de
trabalho, o jeans passa ao mundo do lazer. De vestuário de trabalhador braçal, passa ao
figurino do herói, e do herói ao rebelde para, mais tarde, entrar no circuito da moda.
Além disso, de roupa do homem viril do oeste americano, torna-se peça unissex e,
242
atualmente, mesmo permanecendo roupa utilizada por ambos os sexos, tem parte de sua
produção associada ao feminino e a sensualidade.
Comentando a respeito do jeans no Brasil, Friedman (1987) diz que o país é o
segundo maior produtor e o segundo maior consumidor de jeans no mundo, só perdendo
para os Estados Unidos. Tal informação foi repetida pelo distribuidor de jeans na
França, assim como por revendedores das feiras têxteis. O autor, entretanto, mostra
outro aspecto que hoje não é mais a realidade do jeans no Brasil. Ele diz que, por aqui,
embora muitas vezes as calças sejam de produção nacional, são etiquetadas com nomes
da moda internacional, sobretudo francesa, e revendidas no país. São nomes da moda
francesa, muitas vezes provenientes da alta costura, que nem mesmo na França
revendem calça jeans. Tratava-se do fenômeno das licenças: as maisons de alta costura
emprestam seu nome para diversos produtos, perante um pagamento adiantado ou bem
uma porcentagem nas vendas, sem que tenham, na prática, qualquer envolvimento em
sua produção. É exatamente o que acontece, por exemplo, com meias, gravatas, óculos,
e alguns perfumes
136
.
A realidade que Friedman mostra, portanto, é de um Brasil que consome e usa
calça jeans em grande quantidade, mas que, espelhado nos modelos franceses de
elegância, estampa em suas peças a distinção da grife internacional. É a influência
francesa, assim, presente inclusive no setor mais informal da moda. O livro de
Friedman, entretanto, data dos anos oitenta. Hoje a realidade é bastante diversa. O jeans
é atualmente um dos setores em que as marcas nacionais são inclusive mais procuradas
do que as internacionais.
Quase todas as marcas brasileiras de prêt-à-porter de luxo desenvolvem uma
linha de jeanswear em paralelo as suas coleções de vestidos, alfaiataria, e outras peças.
136
Esse é apenas um exemplo, sendo muitas as formas que assume no capitalismo internacional.
243
Essas linhas, ainda que também apresentem peças de valor bastante elevado, no geral
são mais baratas do que as outras roupas que não pertencem ao jeanswear. Mais
curioso ainda é que tal transformação diga respeito não apenas ao consumo interno, que
agora valoriza o jeans como “produto nacional”. As marcas brasileiras de jeans,
atualmente, exportam e procuram seu lugar no mercado externo, e quando o fazem, é
justamente situando as calças como “genuinamente brasileiras”. As influências
francesas no setor, ao menos no que diz respeito às marcas e nomes de marcas, não são
mais tão relevantes. As marcas internacionais valorizadas por aqui são principalmente
as americanas, e mesmo assim, as marcas nacionais ocupam a maior fatia do mercado.
Na exposição Fashion Passion, ainda no setor da moda brasileira, junto aquela
parte da moda praia havia outra dedicada ao jeans. Ele era ali definido como “paixão
nacional”. Nessa parte havia fotografias de moda onde as calças de tal tecido são a peça
principal, uma delas trazia a imagem de Nossa Senhora Aparecida vestindo um manto
jeans, outra, um cacho de bananas forradas de jeans e havia, ainda, uma fotografia de
Tom Jobim, ao piano, vestindo uma camisa jeans. Não é sem razão, também, que para
exemplificar a informalidade típica do povo brasileiro, recorre-se, na França, a menção
de que no Brasil estamos sempre vestindo “jeans e camiseta”.
Catálogo da
exposição
Fashion Passion.
244
Além da referência à dita informalidade, criou-se por aqui uma verdadeira
“mitolojeans”, agora não a respeito de um “herói fundador” ou de um “tempo mágico”,
mas a respeito de “propriedades mágicas” das peças e de um “corpo brasileiro
fundador”. O jeans brasileiro cola-se as idéias de sensualidade e erotismo através das
narrativas sobre uma modelagem singular, capaz de tornar o corpo daquele que o usa
mais bonito.
E a “mitolojeans” à brasileira não circula apenas dentro do país. É justamente ela
que dá propulsão às exportações das marcas brasileiras de jeans. De acordo com o
distribuidor e responsável de imprensa de uma marca importante brasileira para a
Europa, eles tentam, na França, construir a imagem da marca enquanto “O” jeans
brasileiro e sexy, “ qui a des belles formes, qui vous allonge les jambes et qui vous fait
des belles fesses. C’est le jeans que va modeler ton corps, et le rendre plus beau [...] il y
a des modeles qui sont formidables pour cela.”.
Essa estratégia de marketing já pode ser reconhecida na imprensa francesa,
remetendo, de maneira bastante explícita, aos estereótipos sobre o corpo brasileiro e
suas formas:
C’est bien connu, les Brésiliennes vouent un culte à leur popotin, que la majorité entre
elles entretient quotidiennement. Pour mettre en valeur le fruit de tels efforts, elles ont
un accessoire fétiche : le jean, moulant de préférence. [...][o jeans da marca] flatte les
fesses, toutes les fesses, avec précision dans la coupe (...). La magie a un prix, comptez
de 120 à 180E pour vous offrir ce prodigieux lifting arrière!
137
Por parte dos consumidores franceses, a idéia era exatamente a mesma. As
marcas brasileiras de jeans não eram conhecidas, mas o fato de ser brasileira dava à
peça de roupa a capacidade de “corriger les anatomies”. E, segundo funcionário de um
estande de jeans na FENIT, a exportação de nossas calças brasileiras está até
“quebrando paradigmas” nacionais:
137
L’expressmag du 21 mars 2005
245
“Olha só, só pra você sacar. Você sabe, americano não é lá muito chegado em bunda,
não... o negócio é mais peitão... mulher com peitão... mas sabe que a gente exporta pra
lá, né? Eu até ouvi falar, acho que foi na tevê, que depois que as calças jeans do Brasil
chegaram, nossa, os caras até começaram a reparar no traseiro das gringas, sabe?! Tão
gostando de bunda!”
Foi justamente nesses eventos brasileiros de moda business, entretanto, que a
internacionalização do jeans mostrou-se território de disputas discursivas: de um lado,
ele é promovido comercialmente a partir de sua suposta propriedade material de
“modelar o corpo”, deixando-o abrasileirado; por outro lado, é alvo de categorias
acusatórias dentro do país, segundo as quais sua capacidade mágica existe apenas se o
jeans for vestido por um verdadeiro corpo brasileiro. Para usar adequadamente o jeans
brasileiro seria preciso, então, ter um par de belas e verdadeiras nádegas brasileiras.
A proprietária de uma loja mexicana, que vem todos os anos ao Fashion
Business para comprar as novas coleções de moda brasileira que serão revendidas em
sua loja, conta a respeito do jeans:
“Eu vendo para americanas e européias... o que interessa é que seja made in Brazil, tipo
os da Gisele, ou das outras modelos brasileiras. As mulheres compram pra ter um corpo
abrasileirado, pra ter curvas, e uma bunda bonita. Ele pode mudar o corpo de uma
mulher! Ele aperta e levanta o bumbum, modela o corpo, você fica com um bumbum
perfeito.”
A referência as manequins brasileiras, levando à imediata associação da beleza
de todas as mulheres brasileiras, era uma constante, na França, quando o assunto era o
jeans brasileiro. É bem verdade que algumas dessas manequins costumam aparecer em
público usando calças brasileiras, o que é, segundo o distribuir entrevistado, uma
estratégia comercial da marca que ele representa. De acordo com ele, as manequins (e
outras famosas) não são pagas para usar as peças, mas recebem-nas gratuitamente como
presente. Na imprensa francesa de moda, quando, em editorial sobre o jeans, fala-se de
silhouette do Brasil
138
”, quem aparece é Gisele. Ela não está, entretanto, posando para
138
Elle Girl France, 04 de abril de 2005.
246
uma fotografia produzida pela revista: está em situação informal e cotidiana, nas ruas,
clicada por algum paparazzo. E, falando agora de certo tipo de minissaia em jeans – não
são apenas as calças, portanto, que fazem sucesso – diz-se que esse é o “vêtement
fetiche du top brésilien Gisele Bundchen
139
”, perfeito para “dar uma de Gisele
140
”,
informando a seguir onde a peça pode ser comprada.
Nos dois eventos brasileiros de moda business, havia um grande número de
estandes de marcas de jeans. Quase todos distribuíam ali pequenos cartões de visita,
sempre muito semelhantes: a fotografia de uma mulher com um grande bumbum, de
costas, vestindo jeans, costas nuas, pele dourada e cabelos longos. Converso com dois
funcionários de um desses estandes e eles parecem debochar um pouco da tal
“mitolojeans” que versa sobre as “propriedades mágicas”:
“Ah, até parece né... um jeans é que não dá uma bundona pra mulher sem bunda! E
muito menos diminui a bunda de quem é bunduda. Que que é isso! É pior, deixa tudo
chato. [risos] É tecido, né... não é cirurgia plástica. É tecido né... não é engenharia,
tecnologia de ponta. A mulherada vê as gostosas do Rio, modelos, popozudas, querem
ficar igual, acham que o poder ta na calça! Mas não né, o poder tá na bunda da
brasileira, nas verdadeiras bundas brasileiras!”
A disputa entre a calça que fabrica o corpoe a calça que apenas o reveste, vem à
tonam igualmente, quando o assunto é um tipo bem espefícico de calça: a “calça da
Gang
141
”. O “funk carioca”, que ganha visibilidade nacional como fenômeno de moda e
de comportamento nos últimos dois ou três anos, e tem como espaço privilegiado o
“baile funk”, foi, logo de suas primeiras aparições no discurso midiático, relacionado a
um tipo de dança e um tipo de figuro erotizados. Rapidamente, essa peça de vestuário
conhecida como “calça da Gang”, usada pela “popozuda”, torna-se seu emblema.
139
Elle France, 23 de maio de 2005.
140
Mixte, no. 34 julho de 2005.
141
Ainda que se evite mencionar o nome de marcas e de produtos na tese, no caso da “calça da Gang” não
há como fugir disso. Embora “Gang” seja uma loja e confecção carioca, mais do que uma marca, a “calça
da Gang”, no Brasil contemporâneo, transforma-se em uma expressão que significa, antes de remeter a
marca, um tipo de calça muito justa e de cós baixo.
247
A “calça da Gang”, ainda que seja freqüentemente dita “calça jeans”, é, como
explica Mizrahi (2006), fabricada a partir de malha de algodão mesclada com fio de
elastano. Ela “estica”, portanto, tanto horizontal quanto verticalmente, o que lhe permite
ficar muito justa ao corpo. Além disso, por sua cor e aparência, ela simula o aspecto
externo de uma calça jeans. As narrativas a respeito da “calça da Gang” falam sempre
sobre suas propriedades modeladoras: ela, mais do que qualquer outra, transformaria o
corpo da mulher que a usa em um corpo bonito e bem definido, um corpo digno de ser
chamado de “popozuda”. É isso o que se conta, inclusive melodicamente, na música
“Funk da calça da Gang”, do grupo Furacão 2000:
“Popozuda, popozuda, p-o-p-o-z-u-u-u-u-u-da!
Calça da Gang, toda mulher qué.
Uns duzentos reais pra deixá a bunda em pé...
Calça da Gang, toda mulher qué.
Uns duzentos reais pra deixá a bunda em pé...”
Mizrahi, entretanto, a partir de sua pesquisa de campo em bailes funks cariocas,
diz que entre as usuárias que entrevistou a mitologia do corpo fabricado pela calça não
convence, e que “a calça de acordo com quem as usa, não forja um corpo e sim mostra o
corpo como ele é” (2006, p.204). Ainda segundo a autora, o uso da calça não se dá,
Calças tipo “calça da Gang”
248
portanto, por essa sua capacidade de “modelar” o corpo, e sim porque, além de
realmente erotizá-lo por seu aspecto justo e pelo cós-baixo tão revelador – mas não
executor – das formas, suas propriedades materiais – a elasticidade – são “boas para
usar” no ato da dança, atividade central do baile funk.
Se as “calças da Gang” são, na dança, “boas para usar”, sua imediata associação,
fora do baile, com a modelagem do corpo, é “boa para pensar”. Ela suscita exatamente o
mesmo tipo de disputa que a calça jeans brasileira, de maneira geral e sem menção de
qualquer marca específica, evoca, sobretudo no exterior. Independente da “verdade da
calça”, nos dois casos temos uma disputa a respeito da “verdade do corpo”. Os de fora
do baile, mesmo aqueles que consomem a “calça da Gang”, e sobretudo a mídia, vêem a
peça de roupa como artífice do corpo. Suas principais usuárias, as “popozudas”, cujos
corpos servem de espelho para a transformação operada pela calça, avisam, entretanto,
que não há mágica alguma, o que há é corpo já belo e rijo por debaixo da calça. A calça
jeans brasileira, por sua vez, qualquer que seja a sua marca, será vista como “produtora
de corpos” principalmente no exterior, ou por aqueles diretamente envolvidos em sua
exportação.
A marca de jeans, cujo distribuir para Europa foi entrevistado em Paris, está
longe de utilizar, em suas campanhas publicitárias voltadas para o mercado brasileiro, as
mesmas imagens que faz circular na França. Há diversas marcas que o fazem, a
exemplo da Gang, constantemente associada pela imprensa nacional ao “jeans das
popozudas”, e considerado como muito sensual. Mas, na mesma época em que na
França essa marca anunciava que as brasileiras tem um culto ao seu bumbum, ela
construía, no Brasil, uma imagem mais rock’n roll e rebelde, quase andrógina, partindo
de uma representação de mulher bastante diferente. Uma vez integrada no sistema de
exportação, a mudança é visível. A marca toma para si o papel “DO” jeans brasileiro,
249
com todas as suas supostas propriedades únicas, muito mais próximas daquelas
veiculadas pelo “jeans das popozudas” no Brasil, do que de sua própria imagem no
mercado interno.
De acordo com um estilista que, além de desfilar no evento paulista de moda
espetáculo, exporta boa quantidade de sua coleção (que inclui uma linha de jeanswear)
para a Europa, os jeans brasileiros são realmente “especiais” em sua modelagem.
Segundo ele, entretanto, a tal modelagem mágica, transformadora do corpo, tornou-se a
tal ponto mítica, que o simples fato de “ser brasileiro” agrega valor ao produto, porque
cria “a ilusão de ter uma verdadeira bunda, um corpo brasileiro”. Para ele, atualmente,
qualquer calça que traga consigo o emblema de “jeans brasileiro”, será facilmente
colada à imagem do belo, rijo e bem modelado corpo.
Como diria Lévi-Strauss, “il n’y a [..] pas de raison pour mêtre em doute
l’efficacité de certains pratiques magiques” (1997b, p. 192). Mas a eficácia do jeans
brasileiro, assim como aquela da magia, depende da crença. A crença, nesse caso, não
se situa na calça, no tecido, na forma de modelar, e sim nas representações do corpo
brasileiro que estão coladas ao produto.
Assim, corte e modelagem de propriedades mágicas ou não, tecido milagroso ou
ordinário, as imagens do jeans brasileiro estão tão coladas às imagens de um corpo
brasileiro singular quanto o estão essas calças no corpo das mulheres que as usam. De
todos os comentário da imprensa francesa sobre os jeans brasileiro encontrados nos
arquivos de periódicos de moda (cerca de duas dúzias, desde 2003), nenhuma deixa de
fazer referência à “bunda brasileira”. E se no caso dos biquínis os adjetivos utilizados na
França eram sempre diminutivos, no que diz respeito às bundas que são envelopadas
por nossas calças jeans, os adejtivos empregados eram os superlativos. O corpo
250
brasileiro ali representado não é o corpo da moda. Ele é o corpo do desejo, o corpo do
excesso de formas e práticas.
Tanto o jeans quando a moda praia funcionam bem como “produtos típicos” de
uma moda brasileira a partir do momento em que são colados à imagem do erotismo e
da sensualidade. Em um desfile no São Paulo Fashion Week, as duas peças
emblemáticas estavam unidas em uma única inspiração. Uma possível junção dos dois
elementos poderia ser os biquínis feitos em tecido jeans (mais fino e mais leve do que
aquele utilizado nas calças), bastante comuns nas praias brasileiras.
Mas este desfile trazia outra articulação entre jeans e moda praia: calças jeans
com lycra, bastante justas ao corpo, que tinham uma modelagem tipo tanga/biquíni, ou
seja, com recortes vazados no quadril e modelagem exterior feita de maneira a parecer
uma tanga por baixo ou por cima da calça jeans.
Biquíni em jeans. Vogue Brasil, novembro de 2006.
251
Embora ambos, jeans e biquíni, estejam associados à idéia de sensualidade e
erotismo, o jeans é um produto que apenas muito recentemente será vinculado a algo
“típico” da produção nacional. É um novo setor de nossa moda que vem buscando lugar
no mercado internacional. E, embora já esteja bastante consolidado no país, não resta
dúvida de que sua celebração no exterior também ajuda a fortalecer ainda mais seu valor
dentro do Brasil.
Se o biquíni faz pensar nesse corpo brasileiro feminino e naturalmente
superlativo, o jeans, embora também se refira a ele, abre espaço para outras
representações: as que dizem respeito ao corpo construído pelo “jeans-espartilho”, e por
outros tantos procedimentos estéticos. O corpo brasileiro, além de sua beleza natural, é
frequentemente visto como alvo de técnicas ainda mais precisas e eficazes do que a
própria “miraculosa” engenharia do jeans.
São Paulo Fashion Week
,
2005
252
4.6 – Entre a dádiva e o bisturi
Se o “temperamento brasileiro” refletido em nossa moda, como mostrado no
capítulo anterior, é visto como tendo suas origens na suposta estreita relação com a
natureza do país, o corpo brasileiro é alvo de representações ambíguas, que por vezes o
situam no domínio do natural, por vezes da minuciosa e aprimorada técnica (seja ela
médica, esportiva, ou mesmo de modelagem têxtil).
As referências à natureza, no que concerne a beleza e sensualização do corpo, se
dão pelas explicações a respeito da heterogeneidade étnica da população, e igualmente
pelo clima tropical do país, naturalmente propício para o desnudamento do corpo. Na
França, além da “herança morfológica” e “beleza inata” brasileiras, já mencionadas, diz-
se que temos uma “insolante aisance avec le corpo
142
. Em entrevistas realizadas com
consumidores franceses, quando perguntados sobre os biquínis, comentam, junto aos
elogios, sobre um reflexo quase natural da mistura entre o clima tropical e a “rélation
naturelle avec le corps”.
As brasileiras, “belles a se damner, qui font tourner la tête de tous les males de
la planete
e “somptueuses beautés multicolorées en bikini lilliputiens
143
”, não apenas
na França são vistas como naturalmente belas. Estilistas brasileiros e seus funcionários
muitas vezes comentavam que a maior inspiração para se produzir moda no Brasil era
aquela de termos tão lindas mulheres que “sabem vestir de um jetinho natural,
espontâneo porque são bonitas por natureza, que beleza
144
” ou, como disse o
funcionário de um estilista, em discurso bastante ufanista, a população brasileira é
formada pelo
142
Urban Repérages, no. 2. suplemento do À nous Paris. s/d.
143
L’Officiel, junho de 2005.
144
Em alusão a música “País Tropical”, de Jorge Benjor. Convém lembrar que a música, que fala em
futebol, carnaval, e em uma “negra chamada Tereza”, foi composta para o desfile espetáculo de moda
Momento 68, organizado pela Rhodia no Brasil.
253
“[...] povo mais lindo do mundo! A moda celebra isso, essa beleza apoteótica, natural
do povo lindo, o mais lindo, a loirinha ou a negra, as mulheres são lindas... quem não
acha? [...] não daquela beleza forçada e azeda de gringo, são lindas da beleza natural,
forte, das origens... precisa mais?”
A crítica de moda Constanza Pascolato, em um ensaio escrito para uma nova
revista de moda, dedica-se igualmente a “celebrar” a beleza natural do corpo brasileiro,
dito por ela “imperfeito” e da “vida real”, um “encontro da pele com a natureza”:
“A estrutura do corpo nunca vai ser muito harmoniosa, muito menos no Brasil, porque
não combina com o equilíbrio da natureza. [...] o bumbum que fez fama mundial.
Verdadeiro ícone, fruto da mais fabulosa miscigenação de que já ouvimos falar, do mix
racial mais eficiente da história.
145
O “mix racial mais eficiente da história” é o que explica, na França, o sucesso
das manequins brasileiras no exterior, já que
De l’Europe au Japon, tout le monde trouve quelque chose de soi dans le visage de
métissé d’une brésilienne. [...] les tops bresiliennes ont aussi une autre specificité, leur
façon très particulière de marcher sur les podiums. Nous avons ici une culture très
forte de la danse et de la musique, ce qui fait que les tops se déhanchent comme elles
dansent, très naturellement.
146
E se a heterogeneidade étnica explica a “beleza inata”, é o clima – e portanto
novamente a natureza – que explica o desnudamento do corpo que, uma vez despido,
exposto cotidianamente aos olhares, precisa ser cuidado. De acordo com a vendedora de
uma loja de produtos brasileiros em Paris
“[...] no Brasil é muito diferente, né. Tamos ali, no dia a dia, vendo os corpos uns dos
outros, todo mundo se olha... tem que se cuidar, passar um creme, dois cremes, três
cremes [risos] fazer um exerciciozinho pra fortalecer ali, um outro pra endurecer aqui.
Saímos do banho, passamos duuuas horas bezuntando creminho. Vai aparecer, vão
olhar, tem que ser bonito.”
A percepção sobre os cuidados brasileiros para com o corpo, na França, começa
na pele, no banho, e nos produtos cosméticos. Uma publicação francesa fala em
rituel du banho: à l’origine de la relation intime que les brésiliennes entretiennet avec
le corps, on retrouve le banho, le bain, la douche. [...] C’est sou la douche que les filles
145
Revista Key, janeiro de 2006.
146
Photo, junho 2005.
254
se parfument avec de l’eau odorante, des huiles de bain qui impregnent leur peau
humide de senteurs fraiches.
147
Nesse caminho, uma grande loja de departamentos parisiense, em evento
organizado para promover moda e produtos de beleza brasileiros, organizou palestras
explicativas sobre aos “rituais de beleza” brasileiros. Uma dessas conferências sobre os
hábitos estéticos nacionais chamava-se “Intégration de la nature dans la tradition et les
rituels indiens”, e era ministrada por um pajé e antropólogo tupi guarani.
Mesmo o trabalho sobre o corpo, ao menos no que concerne sua limpeza e
cuidado cosmético, não fica longe da natureza. Mas também sobre a prática ginástica
uma publicação francesa encontra, em plena Barra da Tijuca (dentro de um Shopping),
um professor indígena que ajuda as cariocas a cuidar do corpo. A reportagem, intitulada
GYM: Bougez Amazonien”, mostra a fotografia de uma moderna sala de ginástica,
repleta de espelhos, onde um homem, de costas e vestido uma camiseta branca onde se
lê “professor”, dá aulas tendo a cabeça ornada por um enorme cocar. A revista explica:
il dispense ses cours avec la fameuse coiffe en plumes d’oiseaux rares, c’est mieux por
l’ambience
148
”.
O professor indígena ministra, de acordo com a revista, apenas aulas leves. E as
técnicas “leves” não são, aos olhos de outra revista francesa, a “preferência nacional”
quando o assunto é corpo. A revista diz que “les brésiliennes sont pretes à tout pour se
façonner un corps de revê”, e a seguir informa os exercícios ideais, esse “tudo” que
deve ser seguido para conseguir um corpo à brasileira: a capoeira, o forró, o “afro-
brésilien”, e principalmente o “samba-de-no-pé [...][que] n’a pas de rivale pour
sculpter les mollets
149
147
Urban Repérages, no. 2. suplemento do À nous Paris. s/d.
148
Revista Elle Paris, 23 de maio de 2005.
149
Votre Beauté, abril de 2005.
255
O gosto brasileiro pelos exercícios físicos pode ser visto, igualmente, nas
escolhas vestimentárias cotidianas. Nos eventos carioca e paulista de moda espetáculo
o público, em geral, vestia-se de maneira mais elaborada, mas no evento gaúcho o uso
da “roupa de ginástica”, principalmente pelo público jovem, era freqüente. A roupa de
ginástica, no Brasil, sai da academia e do ambiente da prática de exercícios físicos e
torna-se parte do vestuário cotidiano. Isso informa, em alguma medida, certa
informalidade, mas também pode ser visto como emblema do valor que as atividades
físicas e de cuidado com o corpo realmente possuem por aqui.
Durante o ano de 2004, no evento gaúcho, as peças de determinada marca de
ginástica eram uma verdadeira febre entre as jovens. Algumas vezes eram usadas tal
qual roupa cotidiana, outras vezes associadas com essa. É o caso de um bustiê de roupa
de ginástica, cuja sustentação se dava través de grandes alças de elástico (onde se lia o
nome da marca), que era usada por baixo de blusas. As blusas escolhidas deixaria, não
fosse a presença da roupa de ginástica por debaixo, as costas nuas. Ali, entretanto, tudo
o que se via era o encontro, tramado nas costas, das enormes alças de elástico.
Tratando da “corpolatria carioca”, Malysse (2002) diz que a valorização dos
exercícios físicos com o objetivo de modelar o corpo é, em grande medida, uma
especificidade brasileira. Segundo ele, na França, a preocupação maior das mulheres é
com a roupa, e não com o corpo que ela envelopa. As roupas, ainda de acordo com o
autor, são pensadas pelas mulheres francesas como capazes de “disfarçar” as
imperfeições do corpo, enquanto no Brasil elas devem revelar o corpo. Voltando ao
caso do jeans, e a “eficácia e verdade” da magia não estão em questão, apenas a crença
nela, diria que mais do que “revelar”, as roupas devem moldar o corpo, executando
também um trabalho sobre ele. Outros procedimentos, mais invasivos do que os
exercícios físicos ou “rituais do banho”, mas não menos “abrasileirados”, são ditos na
256
imprensa francesa como verdadeira “necessidade” do corpo brasileiro. A mais
importante forma de modelagem do corpo mencionada é a cirurgia plástica estética.
O corpo brasileiro, em publicações francesas, é percebido como modelado e
trabalhado também através das cirurgias plásticas. O Brasil é definido, nas publicações
francesas, como “la patrie de la chirurgie esthétique
150
”, “le deuxième pays plus accro
au bistouri
151
”, ou o lugar onde “corps est sculpté au scalpel”. Nem a bunda brasileira,
tida como naturalmente superlativa, fica de fora, já que para ter “fesses d'enfer” é preciso
recorrer aos implantes, “très connus depuis plus de 20 ans au Brésil, où les belles de
Copacabana en usent et en abusent
152
. Os “abusos” da modelagem corporal são vistos
como quase cotidianos, porque, de acordo com outra revista francesa, “la chirurgie
plastique y est devenue presque aussi simple qu’une séance au spa
153
”.
O olhar francês sobre o tema pode soar como generalizante e um pouco
exagerado, já que, por exemplo, há vinte anos implantes nas nádegas não eram assim
tão “comuns”, e nem todas as “belles de Copacabana” deles usam e abusam. Ele não é,
entretanto, elaborado a partir do vácuo: é verdade que, como mostra Edmons (2002), a
cirurgia plástica é uma prática freqüente no Brasil, atravessando diferentes grupos
etários e mesmo classes sociais.
O corpo brasileiro, ainda que seja dito “natural”, “exuberante” ou “apoteótico”,
não deixa de ser visto como fabricado e trabalhado. Como diz Le Breton (1999), o
corpo, no Ocidente
154
contemporâneo torna-se controlado e mesmo escamoteado.
Segundo ele, na modernidade, a anatomia original, ao contrário do que dizia Freud,
deixa de ser um destino, e o indivíduo crê ter a possibilidade de agir sobre seu corpo
como um bricoleur (Le Breton, 1999).
150
Le Monde, 7 de agosto de 2004
151
Votre Beauté, abril de 2005.
152
L’Officiel, no. 889, outubro de 2004.
153
Vogue Junho / julho de 2005
154
No próximo capítulo será discutido exatamente nosso pertencimento ao “Ocidente”.
257
As cirurgias plásticas estéticas, entre outras modificações corporais auto-
impostas, marcariam o momento alto de dominação sobre o corpo que, graças aos
avanços científicos, torna-se relativamente maleável e sujeito a modificações. Elias
(1996), tratando do processo de longa duração no qual corpos e afetos são educados e
controlados, já nos mostra o paradoxo dos nossos tempos. Segundo ele, é justamente em
uma segunda fase do “processo civilizador”, quando o controle social externo e direto
diminui, que o controle se torna individual, internalizado, sob forma de auto-controle.
Mais do que isso, Elias explica que o aparente “relaxamento” vivido nas sociedades
contemporâneas, onde as regras sociais parecem mais frouxas e onde os corpos estão
mais expostos, desnudos, é seu oposto.
O Brasil não é, portanto, representado como só natureza e excesso. O corpo
brasileiro, tal qual se apresenta, também supõe contensão e controle. Nossa moda pode
ser “excessiva”, desmedida em revelar o corpo, mas o que ela revela é objeto de
controle social. A exigência de “cuidar” da beleza de acordo com normas sociais
precisas rompe com as idéias de afrouxamento e liberdade absoluta.
Sem com isso negar que tais práticas estéticas podem e devem ser vistas
criticamente, convém notar que, por outro lado, também alguns julgamentos que são
feitos sobre elas são “bons para pensar”. O desprezo e a denúncia da “excessiva
preocupação com o corpo” é bastante comum. E a falta de preocupação com as “coisas
do corpo”, ou pelo menos os discursos sobre essa “não preocupação”, não são menos
comuns, sobretudo em alguns meios e setores da sociedade. O “eu não me importo com
isso”, não é menos repleto de sentido do que o “eu me cuido”.
Na medida em que corpo e alma/intelecto/psique são tomadas como entidades
separadas e o segundo pólo é visto como hierarquicamente superior ao primeiro, as
preocupações com o corpo, fazendo parte dos assuntos relativos as coisas “do mundo” e
258
da “matéria”, serão menores ou menos dignas de importância. É a separação entre
aparência e essência que se instaura.
Também é curioso que muitos julgamentos se fundem em críticas a respeito da
“corpolatria”, como é chamada, existir como resposta – apenas – ao olhar do outro. Em
certa medida, o não importar-se, proclamado aos quatro ventos, não procura igualmente
respaldo em olhares alheios?
Com esse pequeno comentário, não está sendo feita uma referência a uma
“moralidade de outrora” ou pensamento religioso que vê com desprezo as “coisas do
corpo”. Trata-se, sobretudo, de uma visão que opõe – e hierarquiza – ética e estética, e
supõe que aquilo que é material ou exterior, como a aparência, seja apenas artifício. Os
ditos populares que circulam a esse respeito são muitos, tais como “quem vê cara não vê
coração”, “beleza não põe mesa”, ou “por fora, linda viola, por dentro, pão bolorento”.
O princípio que neles está contido, aliás, é bastante semelhante aquele que, por vezes,
no campo de conhecimento das Ciências Humanas, relega temáticas de estudo a
“segunda divisão”. Os assuntos da matéria e das aparências, ocasionalmente, também ali
são menos legítimos. E se anteriormente não foi mencionado o mais conhecido dentre
os ditos populares sobre a aparência, pode-se agora sugerir que “as aparências (nem
sempre) enganam”.
259
260
Em carta escrita, em 1871, para o amigo e também poeta Paul Demeny, Arthur
Rimbaud expressa a paradoxal sentença “Je est un autre
155
”. Embora o questionamento
identitário e existencial do poeta dissesse respeito a sua individualidade e fosse uma
reflexão a propósito da criação artística, ele é inspirador enquanto inversão provocativa
dos dois pólos constituintes das identidades. O exótico, tema que abordado nesse
capítulo, é uma constante (re)definição de alteridades e identidades.
O caso específico analisado trata da construção de um Brasil exótico em nossa
moda de vestir nacional e de sua recepção pelo público francês. Tal exotização
ultrapassa a moda, mesmo que a contenha. Por essa razão, não ficarão de fora outros
setores (como música ou comida) que, na França, são articulados com a moda brasileira,
constituintes de nosso exotismo tropical.
Se bem que o discurso francês sobre o exótico brasileiro acabe sendo
preponderante nesse capítulo, já que é nele que está contida a fala de uns sobre outros, o
paradoxo de Rimbaud não pode ser evitado. Mais do que produções européias
inspiradas no encantamento do outro
156
, tal qual os “japonismos” de Manet, trata-se de
uma construção do exótico feita à moda da casa, dentro do Brasil e da produção local de
modas de vestir, ainda que tendo como alvo algumas vezes o público europeu.
Je est un autre na medida em que, mesmo que com fins mercadológicos,
construímo-nos a nós mesmos enquanto o outro.
155
Carta a Paul Demeny datada de 15 de maio de 1871. Disponível em versão digital na Bibliotheque
National de France (http://gallica.bnf.fr/Document?O=101484&T=2). Acessada em outubro de 2006.
156
Optou-se aqui por diferenciar graficamente através do itálico o termo “outro” quando este estiver
referido a “o outro”, “o diverso”, “o exótico”. Embora tal distinção seja habitualmente marcada com a
grafia do “O” maiúsculo (o Outro), tal procedimento, como aponta Burke (2004) tem uma gênese
histórica - e política – precisa: aquela da teoria francesa clássica sobre L’Autre, onde “os outros”,
quaisquer que sejam, têm suas particularidades homogeneizadas em um único Outro não diferenciado.
261
5.1- Oriente-se
É principalmente a partir da pesquisa realizada em arquivos de periódicos
franceses especializados em moda, procurando seus discursos sobre a moda brasileira,
que surge uma constatação assaz curiosa: o Brasil, no imaginário europeu, pode ser
visto como país não ocidental. Embora nos percebamos como país a margem, seja do
ponto de vista econômico ou de difusão cultural, a questão de sermos – ou não –
ocidentais não nos é colocada muito freqüentemente.
Durante as entrevistas realizadas com consumidores franceses de produtos
brasileiros e a observação nas lojas onde tais produtos eram vendidos estava explícito o
caráter exótico daquilo que é divulgado na Europa como moda brasileira. Tampouco
nesses momentos, ainda que neles já se estabelecesse a oposição entre europeu e
brasileiro e a localização desse brasileiro no pólo do outro, questionava-se nosso
pertencimento ao que se entende, no senso comum, como o “Ocidente”. Éramos, sim,
estranhos e distantes, mas era como se ainda nos unisse uma proximidade de matriz
ocidental, língua neolatina e herança cultural européia
157
.
Analisando os periódicos franceses de moda, entretanto, por diversas vezes
apareciam referências ao Brasil como país não ocidental, sempre realizadas com o
intuito de marcar diferenças e reforçar estranhezas. Duas dessas aparições chamam
atenção. A primeira procurava justamente mostrar o Brasil tal qual país múltiplo,
situado além dos estereótipos da diferença aos quais por vezes era confinado. O texto
tinha início, entretanto, com a seguinte construção discursiva: “Visto desde o
Ocidente...”
158
. Ser visto desde o Ocidente, mesmo que nas sentenças seguintes se fale
que além das já conhecidas felicidade do povo, beleza dos corpos e grandeza da
157
Sobretudo francesa, no campo das artes e da moda.
158
Elle France, 23 de maio de 2005.
262
natureza, reina no país a miséria e a violência
159
, revela-se muito mais uma manutenção
do que uma relativização de diferenças.
O segundo exemplo marca com ainda mais clareza a diferença. Falando sobre os
grigris
160
brasileiros, amuletos de sorte, a revista francesa anuncia para sua leitora e
consumidora que sua riqueza e diversidade são infinitas. Nossos amuletos, ricamente
adornados e muito coloridos, por vezes remetendo a uma religiosidade mágica cristã,
por outras a religiosidade afro-brasileira (comumente confundida nessa mesma
imprensa francesa de moda com o vodu), ou ainda com um quê indígena pagão e
primitivo, teriam o poder de enfeitiçar – positivamente – o consumidor europeu
justamente porque estão além (ou aquém?) de qualquer possibilidade de compreensão
por parte “dos ocidentais
161
”.
Fora dos textos impressos no papel da revista, numa entrevista, aquela realizada
com um distribuidor de moda brasileira na França, tal questão se colocou. Falando sobre
a relativa dificuldade que tinha em vender algumas peças de prêt-à-porter de luxo, de
valor bastante elevado, produzidas por estilistas brasileiros, tal distribuidor estabeleceu
uma oposição entre nossos estilistas, ainda pouco conhecidos na França, e os estilistas
“ocidentais”. Ele se referia ali sobretudo a alguns jovens criadores americanos que,
mesmo que não sendo franceses, tinham mais renome internacional. Vendiam suas
peças por sua fama, por seu nome, e não por qualquer referência a sua nacionalidade, o
contrário do que acontece com a moda brasileira.
159
O que, apesar de ser uma realidade, não chega a ser uma enorme revolução em termos de estereotipias,
haja vista recente produção cinematográfica norte americana que, classificada no gênero “terror”, trata da
violência sofrida por turistas estrangeiros no Rio de Janeiro. Ali, além da violência carioca, faz-se uso de
já desgastadas lendas urbanas, tal qual aquela cuja mitologia conta que uma vez adormecidas com
entorpecentes colocados as escondidas em suas bebidas – o famoso “boa noite, Cinderela” – as vítimas
acordam em uma banheira, imersas em gelo, depois de terem-lhe extirpado órgãos vitais, esses vendidos
no mercado negro de órgãos humanos.
160
Palavra utilizada na França para designar amuletos, é a denominação dada principalmente aos
amuletos das Antilhas e da África.
161
L’expressmag, 21 de março de 2005.
263
A distinção eurocêntria entre Ocidente e Oriente, construída não a partir do
colonialismo, mas em conjunto com esse, é objeto da crítica exegética de Edward Said
(2003), a partir da qual desenvolve o conceito – atualmente parte de um léxico cotidiano
inclusive não-acadêmico – de Orientalismo. Seu livro, que recebe o mesmo nome do
conceito-chave nele presente, é publicado pela primera vez em 1978. Enquanto “[...]a
political vision of reality whose structure promoted the difference between the familiar
(Europe, the West, “us”) and the strange (the Oriente, the East, “them”).” (Said, 2003,
p.43), o Orientalismo seria um princípio identificador mas igualmente homogeneizador.
A partir da divisão binária que estabelece, ele coloca na mesma categoria – aquela de
“Oriente” – grande quantidade de povos muito distantes e diferentes entre si.
Mas o Orientalismo para Said é antes de tudo, de acordo com o autor, uma forma
da Europa conhecer aquilo que se nomeia como Oriente.
Orientalism is the discipline by wich the Orient was (and is) approached
systematically, as a topic of learning, discovery and pratice. But in addition I have been
using the word to designate that collection of dreams, images, and vocabularies
avaliable to anyone who has tried to talk about what lies east of the dividing line
(Said, 2003, p.73)
Said vai, em uma perspectiva foucaultiana, pensar conhecimento e discurso
enquanto forma de poder. Assim, as maneiras pelas quais a Europa conhece,
cientificamente ou artisticamente, o outro, o Oriente, são reveladores de seu poder sobre
este. Analisando diversos tipos de discursos nomeados por ele como orientalistas, do
literário de Flaubert ao acadêmico desenvolvido nas Universidades e Escolas, Said
explica que “Such texts can create not only knowledge but also the very realty they
appear to describe” (2003, p.94).
264
O trabalho de Said é bastante controverso, tendo gerado e ainda gerando uma
série de críticas
162
. Aqui seu legado interessa em particular porque permite que se pense
sobre o que o próprio Said (2003, p.49) chama de “imaginative geography”, segundo a
qual “[...] the line separating Occident from Orient [...] is less a fact of nature than it is
a fact of human production”. Mais do que isso, acredito que quando somos nós mesmos
os outros, a simpatia com a proposta teórica e política de Said a respeito de tal divisão
arbitrária e eurocêntrica do mundo dá-se mais facilmente.
Partindo da perspectiva de uma “geografia simbólica”, construída tendo como
base relações de poder, seria possível compreender como o Brasil, extremo ocidente à
margem, pode ser associado a tudo aquilo que é categorizado como “Oriente”. Também
inspirado na proposta teórica de Said, Lins Ribeiro (2002) cunha o conceito de
“Tropicalismo” para referir-se ao uma espécie de Orientalismo aplicado aos trópicos, de
modo geral, e mais especificamente ao Brasil. Para o autor, esse tropicalismo, um modo
de representar o Brasil externa e internamente, teria como seu “par analógico” o
europeísmo, categoria geralmente aplicada a nosso país vizinho, a Argentina. Além de
forma de representar os dois países aos olhos dos outros, ambos são, de acordo com
Lins Ribeiro, “[..] em larga medida, aceitos tanto pelas elites quanto pelas massas dos
dois países, como modo de representar pertencimento aos dois Estados-nações” (2002,
p.248).
A idéia de que não somos, aos olhos europeus, “tão ocidentais”, portanto, nos
situa mais claramente na categoria de outro, possibilitando a transformação de nossos
produtos, nesse caso aqueles de moda e vestuário, em produto exótico. Nós, não
162
Como aquelas de Clifford (1988) e Bhabha (1994), que questionam o uso que Said faz dos conceitos
foucaultianos, além da crítica mais estrutural de Clifford (1988), que acusa-o de fazer uso de ferramentas
e modelos explicativos provenientes da tradição ocidental com o intuito de justamente desconstruir tal
tradição.
265
ocidentais originários de um “extremo ocidente à margem”, ao mesmo tempo familiares
e desconhecidos, somos território simbólico para o exotismo.
5.2- Tão longe, tão perto.
Datado da primeira década do século XX, um dos primeiros esforços em
conceituar teoricamente o exotismo é o de Segalen (1996), em seu postumamente
publicado – e inacabado – Essai sur l’exotisme. Definindo-o enquanto uma estética do
diverso já no subtítulo da obra, o autor propõe que o pensemos essencialmente como
uma forma de reconhecimento da existência do outro. Esse outro em questão,
entretanto, não é única e necessariamente o que está geograficamente distante. O autor,
em repetidas tentativas ao longo de sua escrita, procura estabelecer uma tipologia de
exotismos. Tal repetição talvez indique para o leitor, que tem em mãos uma obra
inacabada, a importância, aos olhos Segalen, de instituir e diferenciar tais tipos de
exotismo.
Sublinhando sua vontade de depurar o exotismo do que ele tem de apenas
geográfico, deixando de lado o “coqueiro e o camelo”, o autor sugere que existam três
tipos de exotismo. O primeiro e mais conhecido é o exotismo geográfico, em que a
distância do outro é dada espacialmente, frequentemente refletida em diferenças étnicas
e culturais. O segundo tipo de exotismo que Segalen enumera é o exotismo temporal ou
histórico. Nele, o exótico costuma situar-se noutro momento histórico, geralmente num
passado ou futuro idealizados. A valorização de um passado idílico pode ser facilmente
entendida como exotismo temporal, mas também as utopias, por exemplo, são um tipo
de atitude exótica aplicada ao tempo futuro. O terceiro dos tipos de Segalen, menos
esmiuçado por ele, seria o exotismo sexual, no qual a diferença se dá sem que haja um
266
afastamento espacial ou temporal. Num mesmo lugar e num mesmo tempo, nele o
estranhamento diz respeito à diferença entre o masculino e o feminino.
O que há de comum entre seus três tipos de exotismo é que todos representam
uma atitude e um olhar a respeito do diverso, do outro, sem que a distância seja
suprimida. Quase sempre uma idealização, o exotismo supõe que o outro possa ser em
grande medida imaginado. Exotismo e conhecimento aprofundado da realidade diversa,
para Segalen, não coexistem. E embora pretenda mostrar que não é exclusivo, declara
que é o exotismo geográfico, sobretudo em sua vertente tropical, já que há pouco
exotismo polar (1996, p. 33), o mais comumente encontrado. Aliado à distância, é nele
que o outro será menos conhecido e mais estimulador da curiosidade.
Maneira de ver e atitude frente aos outros, o exotismo é, ao contrário do racismo,
uma positivação do outro. Seus costumes, seu modo de vida, seus valores, sua
produção, não apenas são dignas de estima, mas mesmo almejadas. Através dele as
características do que é diverso adquirem valência positiva. Mas ainda que se mostre
enquanto celebração do outro, o exotismo talvez não esteja tão distante daquele que em
aparência é seu oposto, o etnocentrismo. Indo da desconfiança à hostilidade, este último
rejeita toda forma cultural que seja diferente da sua própria. É nesse ponto que
etnocentrismo e exotismo se aproximam. Mesmo que difiram em conteúdo, um
valorizando e outro repelindo, ambos tem em comum o fato de ser um enunciado sobre
si próprio ainda mais do que sobre o outro.
Antes de ser desvalorização do outro, o etnocentrismo é o ato de tomar sua
própria cultura como parâmetro absoluto de valor no ato de comparação com culturas
diversas. No exotismo, da mesma forma, o que é valorizado não é propriamente o
outro, mas um ideal que funciona tal qual crítica de sua cultura de referência (Todorov,
2005). Ou, como define Panoff (1986, p.19), elabora-se por meio do exotismo – em sua
267
vertente clássica – uma espécie de “refus du train-train quotidien dans le mode
calfeutré de la bourgeoisie”, trocado por uma liberdade desejada, imaginativamente
situada num outro visto como seu exato oposto. Da mesma forma, no consumo do
exótico não se procura apenas consumir produtos de alhures, mas constantemente
estabelecer, através e a partir deles, diferenças entre eu e o outro, nesse caso específico,
entre França e Brasil.
Graças a algumas particularidades de nossa época, como o sistema econômico
capitalista, a globalização e as inovações tecnológicas em termos de comunicação, no
mundo contemporâneo as distâncias físicas entre diferentes povos vêem-se, de certo
modo, diminuídas. Por conta da circulação de pessoas e, sobretudo, de informação,
qualquer um pode, como sugere Price (2001), ter acesso a qualquer bem de consumo de
qualquer procedência, desde que conte com os recursos necessários para tanto. As
distâncias, mais do que apenas em bases geográficas, fundam-se sobretudo em aspectos
econômicos. A real experiência do exótico não é mais, portanto, exatamente a mesma
vivida por Segalen. Há muito, afinal, especiarias não regulam preços de produtos e
salários, e o Jardin d’Acclimatation de Paris não oferece mais a seu público o
estranhamento de ver “nativos” ameríndios e africanos enjaulados lado a lado com
papagaios e girafas.
Raulin (2000), indo mais além de Price
163
, diz que em nossos tempos exotismo
tampouco rima com elitismo. Outrora signo distintivo, o consumo de produtos exóticos
se democratizou, tornando-se atualmente acessível a qualquer cidadão que viva o
cotidiano das grandes metrópoles. Todavia, sua popularização não representa seu
desaparecimento. A maior proximidade do outro não anula a necessidade de mantê-lo
outro, nem de categorizá-lo seguindo generalizações e estereotipias. E talvez
163
Lembrando, é claro, que esta se refere ao mercado da arte, obviamente mais elitizado do que aquele do
consumo de outros tipos de produtos exóticos, estudado por Raulin.
268
justamente porque, nas ruas da Nova Iorque ou da Londres contemporânea, um chofer
de táxi vietnamita possa levar como passageiro um físico nuclear hindu, sejam
demarcados alguns efeitos de contraste que definem o que é e o que não é outro, o que
é ou o que não é exótico. No encontro das diferenças essas estratégias contrastivas
parecem ser, inclusive, reforçadas. Tais efeitos de contraste, no consumo da exótica e
exotizada moda brasileira, se estabelecem pelo uso de estereótipos culturais e nacionais
que, com efeitos de luz e sombra, definem e tipificam o que é idêntico e o que é
diverso.
Uma das representações associadas pelos consumidores franceses aos produtos
brasileiros é a de que seriam materialização e emblema de um determinado tipo
nacional ou caráter brasileiro. Nossa moda, vista como alegre, divertida, criativa,
energética “fora e acima de qualquer classificação européia de bom e de mau gosto”,
seria um reflexo do povo brasileiro, freqüentemente citado como “informal”, “alegre”,
“livre” e “criativo”.
Discorrer sobre as particularidades do outro sempre levava os entrevistados a
enumerar características, que, sendo percebidas como francesas, representavam seu
oposto. Obviamente trata-se aqui de generalizações e estereotipias tanto a respeito de
uns quanto de outros. E como aponta Burke (2004, p.157), “[...] estereótipos muitas
vezes tomam a forma de inversão da auto-imagem do espectador.” Dessa forma, a
definição do Brasil apresentava-se balizada pela definição daquele imaginado tal qual
seu inverso, o europeu. Retomemos, aqui, a fala daconsultora de moda francesa
entrevistada, mencionada no terceiro capítulo, onde os brasileiros são apresentados
como opostos aos europeus, definidos por ela como “mais conformes”.
269
A moda européia é referida por um consumidor parisiense como “d’une
elegance rafinée, mais sans imprevus, elle ne permets aucune surprise[...]”, ao passo
que os produtos brasileiros são, ao contrário, novos, originais e surpreendentes. Tais
oposições contrastivas estão sempre, portanto, sendo referidas a pares de contrários tal
qual novo versus antigo, alegria versus monotonia, exuberância versus contensão. À
elas soma-se ainda a oposição entre produto industrial versus produto artesanal.
A moda brasileira, mesmo em seu gênero mais refinado e luxuoso, precisa de
algum modo remeter a tais imagens do trabalho manual. É nisso, de acordo com a
distribuidora para a Europa de diversas grifes brasileiras de prêt-à-porter de luxo, que
demonstra seu diferencial, já que segundo ela
“Indústria já tem suficiente, não interessa. Tem que mostrar no que o Brasil é bom, que
são suas raízes [...] mesmo no setor de produtos mais haut de gamme o que vende do
Brasil é o lado artesanal, do trabalho manual. A estilista brasileira que tem feito sucesso
na França trabalha dessa forma, com as raízes brasileiras, roupas com toques exclusivos
e muito brasileiros, muita coisa feita à mão, raízes do popular com preços elevados,
coisa de no mínimo 300E, 500E. É quem está no topo, é isso que necessita mostrar.”
Nas duas butiques que vendem exclusivamente produtos brasileiros em Paris, a
parte que diz respeito à moda não foge do artesanal. Além dos acessórios (como
bijuterias, por exemplo), serem sempre visivelmente de produção manual, feitos
geralmente de contas, madeira ou pedras, outros produtos, necessariamente
“industrializados”, recebem “toques artesanais”. As calças jeans, camisetas e moda
praia, nessas pequenas lojas, porção importante de suas vendas e de procedência
brasileira, são customizadas com bordados e pinturas. No que diz respeito as calças
jeans, sobretudo na pequena butique, são bordadas com contas coloridas e pintadas com
motivos gráficos. A moda praia, por sua vez, recebe enfeites de madeira e igualmente
pinturas de paisagens ou bordados de pequenas contas com brilho, algumas vezes
desenhando a bandeira brasileira.
270
Uma consumidora francesa, cliente da pequena butique, conta que quando
realiza suas compras de vestuário (sobretudo calças de capoeira e camisetas), procura
justamente privilegiar aquilo que “tem o toque brasileiro, que seja visível que foi feito
de forma artesanal, que seja natural e tecido cru, embelezadas com pinturas no tecido”.
A associação entre produto brasileiro e produto artesanal pode ser pensada de
diferentes maneiras. Em primeiro lugar, cabe ressaltar sua imbricação com a própria
imagem do Brasil como paraíso nos trópicos e natureza exuberante.
É certamente a partir desse mesmo aspecto que uma grande marca de cosméticos
brasileiros avança em velocidade vertiginosa sua conquista do mercado internacional.
Essa grande marca de cosméticos abriu, em 2005, uma loja no coração de Paris, em rive
gauche. E o local escolhido para tanto é, de acordo com uma consumidora francesa que
trabalha no setor das artes, muito adequada por ser ali que circulam “les parisiens les
plus branchés”, consumidores, por excelência, desse tipo de produto.
Muito embora “les parisiens les plus branchés” estejam, na realidade, um pouco
em toda parte, e importância simbólica da “margem esquerda do Sena” não pode ser
descartada. Abrindo um parêntese, é preciso mencionar que a rive gauche,
historicamente lugar de disputas políticas, por abrigar as grandes universidades, também
se estabelece como a margem onde se dão outras disputas de poder, especialmente no
campo da dita “elegance rafinée” e da moda. É justamente ali que, na década de
sessenta, se estabelecem as primeiras lojas de prêt-à-porter, a novidade da elegância
“democratizada”, como que numa espécie de contra-peso em relação as antigas maisons
de alta-costura de rive droite.
Ainda que atualmente o luxuoso prêt-à-porter francês revendido em rive gauche
esteja longe de ser uma moda e um modelo de elegância democrático, não se pode
esquecer da carga simbólica que, no mundo da moda, a diferença entre as duas margens
271
carrega, como mostra tão bem Bourdieu (2002). Yves Saint-Laurent, por exemplo, que
dizia inspirar-se também nas “modas da rua” (o que representava uma diferença
substancial em relação à elitizada aute-couture), além de abrir sua casa de “roupas
prontas” em rive gauche, vai nomeá-la justamente como “Saint Laurent Rive Gauche”.
Mesmo que já tradicional no campo da moda, a margem esquerda ainda é, sem dúvidas,
o espaço das “novas tradições”.
Voltando a questão o artesanal e do objeto produzido manualmente, pode-se
pensar igualmente que sua associação ao produto “brasileiro” sustente-se em certa
dicotomia, ainda mantida no imaginário, entre uma Europa industrializada e um Novo
Mundo ainda “primitivo”, ou pelo menos não maculado – entendendo tal
industrialização como não necessariamente e não sempre percebida como positiva –
pelo progresso e suas conseqüências. Nesse caso, dois tipos de exotismo se confundem:
aquele que valoriza o outro geograficamente distanciado e o que fantasia qualidades em
certo passado imaginado.
Não estar ainda “maculada” pela industrialização excessiva abre espaço também
para que nossa produção em termos de moda e design (de vestuário mas também de
objetos decorativos) situe-se em outro tipo de consumo que é altamente valorizado no
mercado europeu contemporâneo: o de produtos éticos, ecológicos e socialmente
engajados.
Embora sejamos a “novidade” e o “novo”, nossa novidade está em grande parte
em um retorno às tradições, que se dá através do uso de matéria-prima natural e
ecológica, e através de uma forma de produzir imaginada como menos industrial e mais
artesanal. Mesmo que o artesanato, por definição, seja um modo de produção bastante
específico onde o objeto é feito prioritariamente por uma única pessoa, e sem a
utilização de máquinas, a categoria “artesanal” é utilizada, tanto pelas pessoas
272
entrevistadas na França quanto pelas entrevistadas no Brasil, como maneira de nomear
inclusive produtos industriais, desde que recebam algum tipo de customização,
agregando-se um trabalho posterior à sua produção industrial, feito à mão.
O que é percebido na França como o “moderno design brasileiro”, por exemplo,
é justamente a produção de alguns famosos designers de objetos que é permeada pela
utilização de matéria-prima natural e ecológica, entendida aqui como “reciclada” ou, no
caso das peças de madeira, acompanhadas de certificação do IBAMA onde se lê
“madeira de reflorestamento”. Uma das peças que mais causava admiração nos
consumidores franceses da loja brasileira branché era, por exemplo, um pequeno
banquinho (cujo valor, em Euro, ultrapassava quatro dígitos) feito com um tambor –
reciclado e reaproveitado
164
– de máquina de lavar roupas.
Não é preciso, entretanto, atravessar o oceano para perceber tal associação entre
produto artesanal e/ou ecológico e produto “bem brasileiro”. Contando a respeito da
trajetória de uma estilista carioca, sua amiga, uma produtora de moda relata que
“[...] ela [e estilista] faz uma moda, ela usa a história do artesanato, ela usa a história de
fazer o bordado a mão a fundo, a roupa dela é rústica. E aí se for fazer moda brasileira,
tem essa coisa de fazer a coisa manual, ou a coisa natural, o cem por cento algodão. Ela
só usa tecido cem por cento algodão. No começo ela usava porque não tinha grana, era
isso que podia comprar. Agora tem, mas continua usando, porque deve ter sacado que é
isso que dá certo, foi uma onda que pegou firme.”
A mesma estilista referida ali, entretanto, em entrevista para uma revista
francesa, de outra maneira explica sua escolha pelo tecido de algodão que utilizada.
Sem deixar de fazer a conjugação entre moda brasileira e natureza brasileira, ela explica
seu uso do algodão natural pelo clima, quando diz: “jamais de synthétique, importable
dans notre brûlant pays!
165
164
A elaboração de produtos “reciclados” e “reaproveitados” é algumas vezes associada, na França, a
equação entre “pobreza” e “criatividade” brasileiras.
165
L’expressmag, 21 de março de 2005.
273
Mais um exemplo da associação com o tecido “natural” é a produção de uma
cooperativa têxtil paraibana, expositora no evento de moda business Fashion Rio e
exportadora. A cooperativa, produzindo algodão ecológico, atua em parceria com a
Embrapa, colocando em prática uma tecnologia que permite que o algodão já nasça
colorido (bege, rosado ou esverdeado). Este algodão é utilizado na feitura de peças de
vestuário. Uma compradora mexicana conta que leva consigo diversas peças feitas com
aquele tipo de algodão porque, além da aparência rústica, é um produto ecológico e cuja
história do processo de fabricação pode ser acompanhada de perto. Essa referência a
“história” do produto abre caminhos sobre outra particularidade que faz parte do
consumo dos produtos exóticos, a ser discutida a seguir.
5.3 –Conhecer o outro
Ainda que o consumo do produto exótico estabeleça-se por meio de
representações de um outro exótico idealizado em suas características gerais, a
construção do exotismo requer contato e sobreposição de mundos. O exótico não está
situado no absoluto desconhecimento, mas na tensão entre conhecido e desconhecido,
entre próximo e distante. Aquilo que é estranho demais ou absolutamente desconhecido
dificilmente poderá ser fonte de exotismo já que, para que a elaboração de
representações a respeito do outro aconteça, são necessárias pistas mínimas que
conduzam o pensamento.
O consumo de produtos brasileiros de moda, por parte dos consumidores
franceses, revela-se desejo de imaginar o outro e de conhecê-lo. Consumir o exótico
significa ter acesso a ele, não apenas enquanto objeto, mas enquanto experiência. Não é
sem razão que os vendedores das lojas de produtos brasileiros relatavam a constante
274
necessidade de “contar história, explicar” ou “falar sobre a procedência das peças”, mas
também sobre “como é no Brasil, como é tudo, a moda, as pessoas, a vida, [porque] eles
têm vontade de saber um pouquinho”.
Os vendedores das butiques brasileiras, em geral brasileiros, falavam
confortavelmente sobre o país. Brincavam inclusive, entre si, com o que diziam chamar
jocosamente de “conferência sobre fita do Bonfim”, “conferência sobre Seô Jorgê
166
”, e
assim por diante. O mesmo não acontecia nos coins de produtos brasileiros nas grandes
lojas de departamento parisienses. Ali, os vendedores eram majoritariamente franceses,
e a falta de “capital Brasil” parecia ressentida, já que algumas vezes fui eu mesma
argüida a respeito “das coisas do Brasil”.
Durante as entrevistas com os consumidores franceses, foi possível perceber que
as informações sobre o Brasil não vinham apenas daquilo que lhes contavam
vendedores. Todos os consumidores entrevistados aliavam ao consumo de moda
brasileira o consumo de outros produtos relacionados ao Brasil, discorrendo sobre seu
interesse mais geral, não apenas restrito a moda, pela cultura brasileira. Consumia-se
música brasileira (e informação sobre ela), livros de fotografias, guias turísticos,
artesanato para decoração de interiores, serviços relacionados ao país e inclusive alguns
gêneros alimentícios.
Dois, dos treze consumidores, já haviam feito cursos de “capoeira brasileira”, e
uma delas iniciava-se no aprendizado do idioma brésilien. E, já que quando da
realização da pesquisa vivia-se o Ano do Brasil na França, todos os consumidores que
entrevistei haviam freqüentado pelo menos algum dos eventos (exposições, concertos de
música, festas, desfiles de moda) a ele relacionados.
166
Cantor brasileiro, Seu Jorge, bastante em voga na França durante o ano de 2005.
275
Também a imprensa francesa, discorrendo sobre a moda brasileira, é veículo
para a transmissão de informações que dão cor e forma ao outro e aos bens de consumo
que oferece. Diz-se ali que no Brasil, paraíso de talismãs,
Les afros-bresiliens portent des colliers aux couleurs de leurs divinités (dont la tres
populaire Yemanjá, déesse bleue de la Mer); les catholiques du Nordeste s’enroulent
des escapularios (petites images pieuses) autour du cou; beaucoup reconnaissent le
pouvoir protecteur d’un pendentif figa, en forme de poing serré...
167
As palavras, mesmo que possam ter seu conteúdo questionado, recebem um
formato bastante explicativo, quase didático, fornecendo “histórias para pensar e para
contar”, como disse uma consumidora de Havaianas e cosméticos brasileiros. Ainda no
tema das “histórias para...”, outra consumidora francesa, entrevistada após comprar uma
jaqueta de conhecida estilista brasileira cujo valor, em Euro, há muito ultrapassava os
três dígitos, definiu seu interesse pela moda brasileira como mais um exemplo de seu
gosto pelos
“[...] produits et objets exotiques en général [que] sont des objets qui ont une histoire.
Vous pouvez lire à propos, découvrir des histoires. Si vous voulez acquérir un truc sorti
d’un pays inconnu, vous voulez connaître un peu plus à propos de ce pays, vous voulez
savoir comment les gens vivent là-bas, comment a été produit le truc. [...] C’est ça que
vous achetez. Le plaisir de la découverte, le plaisir de chercher, de chiner, de connaître
l’histoire du truc, et après vous pouvez aussi la raconter.”
O ato de “procurar”, de “garimpar”, assim como o de consumir informação
sobre ou associada aos produtos, em muito aproxima o consumidor do exótico daquele
que Campbell (2005) define como craft consumer. Esse tipo de consumidor, de acordo
com o autor, não é o consumidor de produto artesanal (ainda que por vezes também
possa ser esse seu tipo de produto favorito), e sim o sujeito para o qual o ato de
consumir é artesanal, envolvendo nuanças de elaboração criativa, transformando
mercadorias em objetos personalizados. Seu consumo, mesmo quando os bens
consumidos são originários de produção industrial e massificada, poderá envolver tanto
167
L’expressmag, 21 de março de 2005.
276
escolhas minuciosas e pesquisadas – o “garimpar” – quanto um tipo de aprendizado,
originado da busca de informação.
Embora a construção cultural de narrativas e ideologias sobre os produtos tenha
lugar em todas as sociedades, como sugere Appadurai (1990, p.48) “[...] such stories
acquire especially intense, new, and striking qualities when the spacial, cognitive or
institutional distances between production, distribution and consumption are great.”
Dada a distância entre os pólos consumidor e produtor, no caso da circulação inter-
cultural de bens de consumo, informação e conhecimento são tão circulantes quanto os
próprios bens. Essas informações, que Appadurai vai chamar de “mitologias”, terminam
por ser tão atrativas e consumíveis quanto os objetos.
A alusão ao feito a mão, em Campbell, diz respeito principalmente a um
processo de apropriação, no qual novos significados serão colados aos objetos. Nesse
caso, além da “garimpagem” e do consumo de informação e de “mitologias”, a própria
trajetória do objeto exótico parece propícia à ação do craft consumer. O produto
exótico, distante de seu contexto original, transforma-se em barro maleável para que
novos usos e novos sentidos, tendo em mãos instrumentos como a procura de
informação e a idealização, sejam-lhe atribuídos. Não resta dúvida de que tal
particularidade abre igualmente caminho para críticas a respeito de descontextualização
e deturpação de “verdadeiros significados”, mas nem nós, os outros, parecemos muito
preocupados em localizar, seja lá onde estejam (bem) guardados, tais “significados
verdadeiros”.
277
5.3- Cinco sentidos
Além da vontade de “saber mais”, outro elemento que, conjugado a este, faz
parte do consumo da moda brasileira enquanto produto exótico, é o apelo aos sentidos.
Nas descrições da moda brasileira na França, o acesso ao outro se dá através de
informações quase pedagógicas, mas igualmente através da sugestão de que seja preciso
não apenas conhecer o que não se conhece, mas sentir o que nunca antes foi sentido.
Régnier (2004), tratando do consumo de culinárias exóticas na Alemanha e na França,
explica que uma das particularidades do exotismo é justamente aquela da experiência
sensorial.
Ainda que o produto de vestuário não tenha elos diretos e imediatos com tal
experiência sensorial, ela é freqüentemente acionada em suas descrições. A moda
brasileira é definida por consumidores como “apimentada”, “apetitosa”, “cromática”,
“quente”, entre tantos outros adjetivos que remetem aos sentidos. Na imprensa,
igualmente, em reportagens e editoriais que versam sobre a moda brasileira, fala-se em
“[...] éloge des sens et de la couleur [...], rythmes samba
168
. E o Brasil é localizado
entre “douceurs épicées et rythmes endiablés
169
”.
A questão das cores, no que diz respeito aos processos de exotização, é
especialmente rica. Como mostra Le Breton (2006), a visão é, contemporaneamente e,
sobretudo, na sociedade industrial, urbana e européia, o sentido preponderante. O
próprio rumo tomado pelas ciências médicas, onde a imagem ganha importância em
termos clínicos e analíticos em detrimento de outros sentidos antes igualmente
importantes (basta lembrar do outrora tão comum uso do olfato para, através dos odores
de fluídos corporais, estabelecer diagnósticos), é o exemplo de tal primazia da visão.
168
Vogue Paris, junho/julho de 2005.
169
Femme em ville, setembro de 2004.
278
Ainda no Brasil, a moda brasileira é vista como tendo um de seus diferenciais
fundados no uso de cores “vivas”, “fortes” e alegres. Uma famosa jornalista brasileira,
em palestra direcionada a profissionais da área de moda, além de mencionar a questão
do desnudamento do corpo, relata que determinado estilista brasileiro só conseguiu
fama no exterior quando passou a produzir coleções “verdadeiramente brasileiras”, ou
seja :
“Ele deixou de fazer roupa japonesa [....] tudo preto e tons escuros, e abriu a moda dele
pras cores vivas, as estampas multicoloridas, as cores vibrantes, e foi isso que fez o
pessoal lá de fora [da moda internacional] olhar pra ele com outros olhos, apreciar a
moda dele que agora ficou super brasileira mesmo, de verdade, com o multicolorido
misturado, super forte e super vibrante.”
Em sua reflexão a respeito dos paralelos entre exotismo e cores, Leprun (1990)
lembra-nos do recorrente uso de termos referidos a lugares, animais, plantas ou
produtos exóticos nas nomenclaturas dadas, em francês (mas não apenas), para
diferentes tonalidades cromáticas, citando exemplos como “verde jade”, “camelo”,
“verde palmeira”, ou o curioso “marrom maori”. No mesmo trabalho, a autora ainda
aponta que na Europa do final do século XIX as cores “vivas” não eram, em questões de
vestuário, vistas com bons olhos. A verdadeira elegância estava no uso de cores sóbrias,
preferencialmente escuras, opostas a um excesso cromático pretensamente associado
aos povos “primitivos” e “selvagens”.
Pastoureau, em diversos de seu trabalhos (1990, 1993 e 2002), frisa a
importância de percebermos que não só o significados das cores, mas sua própria
percepção visual e categorização em escalas cromáticas, são dados que historicamente
se modificam. Ele cita, por exemplo, a contemporânea preferência pela cor azul,
baseando tal dado em pesquisas quantitativas feitas na França por empresas de
marketing, e mostra como tal cor não só era tida como esteticamente negativa em outras
279
épocas, como esteve fora de algumas escalas cromáticas, categorizado por vezes como
um tipo de cinza.
As cores fortes não são, portanto, naturalmente exóticas. Tal associação,
entretanto, acontee baseada na oposição entre “alegre” e “monótono” e, provavelmente,
entre “conhecido-novo” e “desconhecido-antigo”. Além disso, também pode estar
fundada no outro par de opostos, aquele da contensão versus excesso. Muito embora o
apelo visual das “cores exóticas”, geralmente cores vivas, seja preponderante nas
descrições da moda brasileira “verdadeiramente brasileira”, ele nunca vem sozinho.
O excesso também pode ser alimentar. E o Brasil, particularmente, embora
apareça sempre no jornalismo político internacional enquanto “país da fome”, é
percebido como lugar de excessos alimentares e abundância de sabores. Um distribuidor
de jeans brasileiro na França, nesse sentido, discorre sobre as carnes que comemos no
Brasil. Ele conta que, em viagem de negócios ao Paraná, foi levado a uma churrascaria,
onde viu tantos tipos de carnes de boi, de variedades que nem imaginava existir. As
frutas abundantes (e também abundantes em cores) também foram mencionadas por ele
como parte de um excesso de experiência sensorial que viveu no Brasil.
Voltando a temática da moda, ela também é algumas vezes descrita com
metáforas alimentares, tal qual “appétisante”, “delicieuse” e “gourmande”, palavras que
outra distribuidora de moda brasileira na França evocou para definir a coleção de verão
de uma conhecida estilista brasileira. Da mesma forma, em seu editorial sobre moda
brasileira, revista de moda francesa escolhe como cenário a cozinha de uma
churrascaria, não apenas mostrando para seu público leitor os excesso de nossas carnes,
mas apresentando-as mesmo cruas. A roupa ali mostrada, preta, justa e de um tecido
semelhante ao vinil, embora não se encaixe nos critérios que comumente são utilizados
para descrever a moda brasileira, não deixa de remeter a imaginação a um vestuário
280
sexualizado, inspirado em uma estética bondage
170
e sado-masoquista. É o excesso das
“carnes” brasileiras que se apresenta en tous ses états.
Além de geradora de “apetites”, a moda brasileira também é vista como trazendo
parfums éxotiques”. Ainda que aqui os sabores/odores exóticos sejam uma metáfora,
no que diz respeito ao consumo dos cosméticos brasileiros não o são. No coin dedicado
170
Tipo de fetiche, comumente relacionado ao sadomasoquismo, onde a fonte de prazer está em
imobilizar e/ou amarrar o parceiro. Em sua estética própria, o corpo não está necessariamente desnudo.
Ao contrário, a pele “natural” é raramente vista, ficando encoberta por “segudas peles”: roupas, muito
justas e inteiriças, de látex, couro ou vinil. O látex é geralmente o material privilegiado, por conta de sua
“aderência” ao corpo.
Vo
g
ue Paris
,
j
unho/
j
ulho de 2005
281
a venda de cosméticos brasileiros de uma grande loja de departamentos, uma das
vendedoras relata que determinados cremes, feitos de frutos brasileiros, são
especialmente procurados porque, fazendo parte do “ritual do banho” brasileiro, trazem
odores até então desconhecidos para os consumidores franceses.
O recurso da experiência sensorial, assim como as informações pitorescas a
respeito do Brasil, pode ser visto como fornecedor em potencial de “material de sonho”,
a ser empregado naquilo que Campbell chama de prazer imaginativo do consumidor
moderno. De acordo com o autor, “a atividade fundamental do consumo [...] não é a
verdadeira seleção, a compra, o uso dos produtos, mas a procura do prazer imaginativo
a que a imagem do produto se empresta” (2001, p. 130).
E se na obra de Campbell tal recurso mental é evocado para explicar o ardor pela
novidade e pelo consumo do novo, uma vez que o novo produto traz consigo a
promessa de uma nova, desconhecida, e potencialmente ainda mais prazerosa
experiência imaginativa, pode-se pensar que, no caso do produto exótico, essa
experiência se potencialize. O exótico, embora necessite situar-se num nível mínimo de
conhecimento – para que seja inteligível – sempre manterá sua ponta de misterioso
desconhecimento.
A experiência imaginada do desconhecido através do consumo da moda
brasileira pode levar o consumidor a lugares nunca antes visitados. Através dos
produtos made in Brazil, consome-se não apenas objetos, mas pequenos fragmentos de
um país distante e imaginado com curiosidade. Com a possibilidade de jogar não apenas
com informações, mas com odores, sabores e apelos visuais e imagéticos, o day
dreaming a respeito do Brasil toma forma, possibilitando que, de certa maneira, através
do consumo dos produtos brasileiros, o consumidor, ainda que em desejo, esteja onde
jamais esteve.
282
Por diversas vezes, os consumidores entrevistados demonstraram o desejo de
conhecer o Brasil, país de que tanto ouviam falar, dizendo que tal desejo havia crescido
especialmente com a visitação de todos os eventos relacionados ao Ano do Brasil na
França. Tais eventos, realizados certamente com esse propósito de divulgação do país
no exterior, também são bons fornecedores de material “imaginativo” para que se
construa, na França, representações a respeito do que é o Brasil.
Outro bom exemplo desse “estar onde jamais esteve” é a corrente utilização, já
analisada no terceiro capítulo da tese, de paisagens emblemáticas brasileiras nas
fotografias publicitárias de produtos, editoriais de moda e, ainda, na estampa de
algumas peças de vestuário. Temos, assim, cheiros, sabores, cenário e atores (os
brasileiros com seu “jeito particular”) para que, através do consumo dos produtos
brasileiros, a experiência do “estar lá sem sair daqui” se complete.
5.5- Palavras e autencidades
O uso de palavras brasileiras em textos e falas francesas a respeito de nossa
moda é um tanto quanto comum. Tratando inicialmente de suas aparições na imprensa
francesa, por vezes, tal recurso lingüístico é empregado sem que o termo venha
acompanhado de qualquer tradução ou explicação, sob forma de expressões como “tudo
bem”, “bum-bum”, “entre na dança”. Talvez ali aplicadas muito mais por sua sonoridade,
dizem respeito ao reforçamento do aspecto curioso e desconhecido do produto exótico.
É preciso sublinhar aqui a importância da sonoridade dos termos, tanto porque
remetem ao apelo que faz o exotismo aos sentidos (ouvir o que nunca se ouviu pode
causar belos estranhamentos), quanto por alguns comentários emitidos pelos
consumidores entrevitados. E não chega a causar surpresa que sensações auditivas,
283
quando desvinculadas de significados, possam ser motivo de estranheza. Assim como
algumas palavras da língua francesa (ou de outra qualquer que seja desconhecida pelo
ouvinte) causam por vezes reações de espanto misturado a curiosidade, é fácil entender
que termos como “andiroba”, “bonitinha”, “cupuaçu”, “abrasileirado” ou “maracujá”,
apenas para citar alguns dos que foram mencionados, sejam escutados tal qual verdadeiro
trava-língua.
A mesma estratégia por vezes comporta usos curiosos quando vistos a olhos
brasileiros. Por exemplo, quando revista feminina francesa utiliza a palavra “mailhade”
171
no lugar de malhada, ou a qualidade de “acachados”
172
para referir-se aos cabelos
cacheados como o cabelo tipicamente brasileiro. Outra presença constante são as
misturas de idiomas, como quando reportagem que promete ensinar truques de
maquiagem “des filles d’Ipanema”, com um “ar de bossa nova”, recebe o título de “Chica
Tropical”
173
. Hispânicos ou lusos, seguidamente somos vistos como sendo todos latino-
americanos, a exemplo de nossa brazilian bombshell, que encarna a América Latina – de
um weekend in Havana a uma night in Rio – sem precisar trocar o figurino.
Ainda que tais equívocos nem sempre cheguem a comprometer o produto
exótico, o recurso mais exitoso da aplicação do idioma brésilien parece ser aquele que
vai ao encontro da “vontade de saber um pouquinho”. Mais numerosa do que as duas
anteriores é, sem dúvidas, a iniciativa onde se usa palavras em português acompanhadas
de sua respectiva tradução.
Como aponta Verdier (1979), a utilização do idioma estrangeiro, no que
concerne o exotismo e os produtos exóticos, concede publicamente, tanto ao objeto ao
qual o termo se refere quanto ao sujeito que a emprega, certo nível de sofisticação e
171
Votré Beauté, abril de 2005.
172
Vogue Paris, no 859, agosto de 2005.
173
Printemps Magazine, no. 18, abril de 2005.
284
erudição. Saber o significado das palavras de que se lança mão e, principalmente, furtar-
se de erros, demonstram, segundo alguns consumidores e vendedores, tais qualidades.
Além de imprimir as qualidades de sofisticação e distinção no consumidor, o
emprego das palavras “nativas” também pode ser visto tal qual atestado de
autenticidade. Mesmo que diga respeito à mesma peça de roupa, o string acumulará
novos encantos se for referido como “fio-dental”. Também com o efeito de reforçar
autenticidades, com grande freqüência adiciona-se ao produto a locução “do Brasil”,
quase que estabelecendo uma “denominação de origem controlada”.
Uma marca brasileira de jeans, por exemplo, reforçando seu pertencimento ao
país, e em conseqüência aquelas propriedades especiais no que concerne a modelagem
do corpo, usa, junto ao nome da marca, a expressão “do Brasil”. No evento de moda
business Fashion Rio também foi possível observar que as marcas de moda praia ali
presentes punham, junto a etiqueta da marca, em papel, pendurada na peça, outra
pequena etiqueta contendo não as palavras “do Brasil”, mas sua versão “em imagem”,
não menos conferidora de autenticidade: uma bandeira do Brasil. Convém lembrar aqui
do que disse uma estilista de moda praia brasileira, cujas palavras aparecem em capítulo
anterior: na tentativa de deixar bem brasileiro, junto a outros procedimentos, como a
escolha da estampa e cores adequadas, costura-se, na peça, uma pequena etiqueta em
tecido contendo a bandeira brasileira. Não é sem razão que um consumidor francês da
loja brasileira descolada comenta que os brasileiros devem mesmo “[...] être fiers de
votre pays, le petit drapeau jaune et vert est un peu partout!”,
Marcar a origem, aqui, se explica pelo fato dos produtos da moda brasileira
serem consumidos sobretudo por causa e em razão de sua origem “brasileira”. Nas
entrevistas realizadas, estilistas ou marcas brasileiras eram pouco conhecidas e, sem que
se fizesse menção a essa informação, falava-se antes de tudo emjeans brésilien”,
285
bikini brésilien”, “coliers brésiliens”, “t-shirt brésilienne”. Tal situação fazia com que,
por exemplo, o distribuidor de jeans brasileiro sublinhasse, em seus releases para a
imprensa francesa, a necessidade de publicar e frisar a procedência “brasileira” das
peças já que, como foi anteriormente mostrado, uma de suas preocupações era a
constatação de que, ao contrário das marcas americanas, as marcas de jeans brasileiro
não tinham seu nome conhecido e reconhecido pelo público.
Como sugere Raulin (2000, p. 22), carregar autenticidade, no caso do produto
exótico, significa levar consigo algum tipo de “[...] marque de son auteur, de as région,
de son époque, c’est-à-dire de as provenance et plus généralement de son origine”,
sendo recorrente a menção de que é aquele o produto genuíno e emblemático de tal
lugar de origem.
Alguns produtos da moda brasileira são, sem dúvidas, mais facilmente colados à
imagem de produto “autêntico” do país. É o caso, por exemplo, daqueles que se referem
à sensualidade e ao erotismo e, igualmente, dos já mencionados produtos artesanais e
naturais. No diz respeito à natureza, um grande selo de autencidade brasileira é, sem
dúvidas, a associação do produto à nossa floresta Amazônica.
O caso de uma determinada marca de sapatos esportivos brasileiros é
emblemático de tal associação. O contato com a marca aconteceu em uma loja de
departamentos parisiense. No setor dedicado aos calçados o produto tinha destaque,
acompanhado de uma pequena placa onde se podia ler: os tênis autenticamente
brasileiros. Sendo a marca completamente desconhecida no Brasil, e na França dita
“autenticamente brasileira”, a menção a ela passou a fazer parte do roteiro das
entrevistas, com o objetivo de compreender o que era sabido ao seu respeito pelos
consumidores e vendedores. Estes contaram longas histórias sobre os calçados da marca
serem produzidos na Amazônia, tendo como matéria prima algodão ecologicamente
286
cultivado e borracha orgânica proveniente da grande floresta. Somando-se à matéria-
prima, de acordo com alguns consumidores, também seu modo de produção era um
diferencial, já que seguiam preceitos segundo os quais cada trabalhador recebe por sua
força de trabalho não uma remuneração “mínima”, mas uma remuneração “justa”. Mais
uma vez, portanto, a referência ao produto não apenas ecológico, mas socialmente
engajado.
Dando continuidade a narrativa fundadora, dizia-se igualmente que os calçados,
jamais comercializados no Brasil e vendidos em butiques bastante refinadas e
“descoladas” de Paris, haviam sido idealizados por franceses. Fazendo turismo na
floresta Amazônica, os responsáveis por tal iniciativa teriam percebido que todo o
potencial da região deveria ser “corretamente” utilizado – uma mitologia, diga-se, um
tanto quanto “civilizadora” – e, a partir de tal constatação, teriam posto em prática suas
idéias. Convém notar que mesmo no Brasil, após o aparente desfecho do mistério,
alguns brasileiros, quando perguntados sobre a marca de sapatos, mostraram-se bastante
seduzidos pela recente fama dos tênis. Suas narrativas sobre a origem da marca eram
bastante semelhantes àquelas elaboradas na França, mas agora acompanhadas de
ressentimentos do gênero “é meu sonho de consumo, pena que não vedem por aqui”.
Fala-se, aqui, num desfecho “aparente” porque esse, como todos os bons
enredos, tomou inesperado rumo em seu desenlace. Muitos meses depois, mitologia
fundadora já sedimentada, alguns profissionais gaúchos do setor calçadista informaram
que tais sapatos não eram produzidos na Amazônia. Bem longe disso, os misteriosos
tênis eram fabricados no Rio Grande do Sul, mais precisamente no pólo calçadista de
Novo Hamburgo. O caso de tais sapatos esportivos, etiquetados como “autenticamente
brasileiros” porque made in Amazônia, faz lembrar o que relata Rabine (2002) a
287
respeito da etiqueta authentic african, do grupo J.C. Penny, cujas roupas eram
produzidas no Paquistão ou nos Estados Unidos, por imigrantes indianos.
É compreensível, entretanto, que as associações entre o produto “autenticamente
brasileiro” e a Amazônia tenham sido estabelecidas. Como foi visto, a Amazônia é
reconhecida na França enquanto emblema do Brasil, formando junto ao Rio de Janeiro e
a Bahia uma espécie de geografia simbólica triangular da nação. Novo Hamburgo, ao
contrário, embora seja uma das maiores cidades exportadoras de calçados do país, não
têm expressividade enquanto símbolo do autenticamente brasileiro.
Os vínculos entre as características materiais do tênis aqui citado, que em
aparência assemelha-se a qualquer outro calçado esportivo de lona com solado de
borracha, e o Brasil, não são imediatos. A mitologia circulante a propósito do produto
existe a partir da combinação entre características vistas, aos olhos de seu público
consumidor, como aceitáveis enquanto “brasileiras” e daquelas que, em sua divulgação,
são atribuídas a ele. Convém notar, entretanto, que sua origem amazônica não era
apenas parte da narrativa de consumidores, sendo divulgada na imprensa francesa de
moda, assim como em publicações especializadas voltadas para os profissionais do
campo
174
.
Nesse mesmo sentido, é preciso dar ênfase ao fato de que as características de
“brasilidade” dos demais produtos brasileiros de vestuário e moda divulgados e
consumidos na França não dizem respeito, necessariamente, a suas propriedades
materiais. A referência ao “brasileiro”, em muitos casos, não diz respeito às peças em
si, mas aos significados que nelas são impressos através dos discursos sobre elas
construídos e divulgados.
174
Por exemplo, o Journal du Textile ou o Fashion Daily News que, ao contrário de revistas como Elle,
Vogue ou L’Officiel, é uma publicação direcionada não para o consumidor e sim para produtores e
demais profissionais do setor.
288
Da mesma forma que a associação entre elementos imagéticos que remetem à
natureza e à “brasilidade” é construída, em grande parte, pela crítica e pelo jornalismo
brasileiro de moda, a autenticidade dos tênis não está em propriedades intrínsecas à
fibra do algodão ecologicamente produzido, e sim em sua associação com palavras e
imagens adequadas. São, portanto, as narrativas tecidas acerca dos produtos que,
adequadamente articuladas com seu aspecto externo e com suas propriedades, conferem
a eles significado e autenticidade.
Examinando o que chama de “narrativas de marcas”, Remaury (2004, p.25), as
define como podendo pertencer a dois grandes tipos: as que se referem ao contexto, por
sua vez subdivididas em relatos ligados ao tempo, relatos ligados a um lugar e relatos
ligados a estados ou etapas da vida; e as que se referem ao sujeito, subdivididas em
relatos que remetem a um personagem, relatos que remetem a um saber-fazer e relatos
que remetem à matéria.
Para pensar o caso dos produtos brasileiros na França, interessam especialmente
os tipos de narrativas de marcas que o autor define como “narrativas de contexto” e,
mais especificamente, aquelas entendidas como “relatos ligados a um lugar”. Esses
relatos, sempre remetendo a determinada localização geográfica, podem ser, de acordo
com Remaury, ancorados tanto em um país, uma cidade, ou uma determinada região. É
esse o caso dos produtos de denominação controladas, particulares e “únicos” de
determinadas regiões ou países, mas é igualmente o caso de outras marcas cuja
referência a um lugar, apesar de claramente demonstrada, parece menos óbvia ou
importante.
Remaury menciona, por exemplo, os subtítulos (ou, no caso, “sub-logotipos”)
que determinadas marcas recebem. Estes são especialmente utilizados por marcas de
luxo, como Prada – Milano, Hermès – Paris, ou ainda DKNY, sigla utilizada nos
289
produtos da marca Donna Karan New York. Ainda que os produtos brasileiros não
vinculem-se a uma espécie de “tradição de luxo local”, como aquela evocada pelos
subtítulos das marcas de luxo, o já mencionado “do Brasil” funcionaria, aqui, também
como um “sub-logotipo” fixador da origem
Igualmente esclarecedora a respeito da importância das narrativas que
acompanham os produtos brasileiros foi a constatação de que muitos daqueles produtos
não eram apenas, ou necessariamente, “brasileiros”. Nas feiras têxteis que tiveram lugar
em Paris, em 2005, podia-se encontrar inúmeros elementos que eram apresentados (no
Brasil e posteriormente na França) como “bem brasileiros” ou “tradutores de
brasilidade”, sendo amplamente utilizados por confecções das mais variadas
nacionalidades. Colares artesanais misturando madeira, sementes e tecidos, roupas feitas
de fuxicos
175
, bijuterias de crochê, entre outros produtos ditos como “retorno ao
nacional” por parte de produtores brasileiros de moda, estavam sendo apresentados, na
mesma época, em estandes da Bélgica, Espanha, Itália, Noruega, Suécia.
Assim, praticamente qualquer categoria de produtos, portadores das mais
diversas características, poderiam ser pensados como potencialmente “brasileiros”,
como o são calçado ecológico e colares de crochê. O biquíni não é “naturalmente”
sensual, o fuxico não é necessariamente “tradição popular brasileira”, e os tênis
ecológicos só são feito na Amazônia se assim acreditarmos.
Cabe aqui voltar às mitologias que acompanham os bens de consumo,
identificadas por Appadurai (1994, p. 45) como sendo de três variedades
176
: aquelas
produzidas por seus distribuidores e revendedores; aquelas produzidas por seus
175
Técnica artesanal do tipo patchwork em que retalhos de tecido, geralmente de cores e texturas
diferentes, são costurados formando “trouxinhas de tecido”. Posteriormente unidas entre si, podem ser
usadas para produzir diversos tipos de peça decorativa (almofadas, tapetes) ou de vestuário (blusas,
bolsas, coletes).
176
Pode-se ver uma transposição da tipologia proposta por Appadurai, aplicada à risca, para a análise de
dados etnográficos no trabalho de Skoggard (1998) a respeito do consumo, no Norte da África, de sapatos
esportivos made in Taiwan.
290
consumidores ou consumidores em potencial; e aquelas produzidas pelos produtores. A
construção do exotismo do produto brasileiro, entretanto, parece acontecer na interface
entre essas três esferas.
Isso, todavia, não isenta de reiterar que a esfera especifica da divulgação é
especialmente digna de consideração no trabalho de produção e veiculação de tais
mitologias, ao menos no que diz respeito à “brasilidade” de nossos produtos brasileiros.
Ainda dentro do Brasil, a esfera do jornalismo de moda, importante na legitimação dos
(bons e maus) gostos, também é atuante no (re)estabelecimento dos vínculos entre
determinadas características de produtos e brasilidade.
5.6- Consumir o outro?
O interesse pela moda brasileira na França acontece, em grande medida, baseada
em sua percepção enquanto produto exótico. Ainda que o período do Ano do Brasil na
França tenha dado especial visibilidade “às coisas do Brasil”, tal interesse funda-se em
uma atração mais geral da moda e de seu público consumidor pelo exótico, e não
necessariamente pelo exótico brasileiro.
Basta recorrer à história da moda francesa para perceber que a afluência de
inspirações exóticas
177
não é, em si, novidade. O costureiro mais célebre em trazer para
a moda sabores exóticos é Paul Poiret que, ainda em 1901, trabalhando para Worth,
propõe um vestido quimono. Poucos anos mais tarde, já em sua própria maison de alta-
costura, produzirá peças como a túnica em seda bege chamada Cairo (Deslandres, 1981)
decorada com bordados coloridos, ou o casaco Ispahan, inspirado em caftans
paquistaneses. Suas influências nem sempre eram, entretanto, procuradas no exótico de
177
Ver o trabalho de Bourde (1991) para uma descrição pormenorizada das ondas de exotismo na
Europa, em diferentes áreas (artes plásticas, literatura, vestuário, alimentação, etc.) e em diferentes
períodos históricos.
291
outros continentes. Após viagem ao leste europeu, Poiret elabora vestidos inspirados em
trajes tradicionais da Polônia e da Rússia.
Outro conhecido expoente da moda a fazer amplo uso das temáticas exóticas em
suas criações é Yves Saint Laurent, que apresentou à Europa dos anos sessenta seus
vestidos bambara, penteados decorados com chifre de gazela e jaquetas sahariennes.
Desenhos de moda de Paul Poiret
,
1915
Saharienne de Yves Sain
t
-Laurent
,
1967 Vestido de Yves Sain
t
-Laurent
,
1967
292
Em todos os casos de recurso ao outro na alta moda francesa, entretanto, convém
notar que este outro aparece apenas como referência ou inspiração. Como aponta
Nowinski (2005), apesar das temáticas serem exóticas – de outras culturas ou de outros
tempos – sempre eram marcadas pelo que a autora chama de uma “occidentalité”,
definida por ela como a permanência de “codes, automatismes, des réflexes de
l’ocidental [...] la culture technique et même esthétique du couturier.
Embora as inspirações fossem alienígenas, a produção e seu produtor não o
eram. Algumas vezes, é bem verdade, se empregava tecidos ou materiais importados de
alhures, mas, ainda nesse caso, trata-se apenas de matéria-prima bruta a ser trabalhada
no interior das maisons, sem sair do circuito da moda européia.
Tal particularidade é típica do campo da moda, assim como talvez o seja do da
Literatura, onde, na mesma época, o exótico inspirava romancistas europeus a sonhar
com Salammbôs e Salomés, sem que fossem lidas, salvo algumas exceções, produções
literárias de outras terras. Em outros setores, como na culinária ou nos objetos
decorativos, essa configuração não se aplica. Nas artes plásticas, talvez com alguma
ousadia, pode-se dizer que o funcionamento seja o mesmo dos dois primeiros campos
referidos. Nesse contexto do início do século XX, arte de alhures apresenta-se mais
como objeto decorativo do que propriamente como arte, enquanto o exotismo nas artes
dar-se-ia em inspirações orientais ou tropicais presentes na própria pintura européia.
No que diz respeito aos usos do exotismo por parte da moda francesa, embora
fossem recorrentes, apresentavam-se de forma bastante diferente do processo aqui
analisado. Ali, voltando ao paradoxo de Rimbaud, je ainda não era un autre.
Até então, o outro era apenas fornecedor de matéria-prima (tecidos, tinturas ou
idéias) para a criação, na Europa, de exotismos. Aquele que tem acesso ao outro é,
sobretudo, o criador. Basta lembrar exemplos como o de Poiret, na moda, ou o de
293
Flaubert, na literatura, que realizavam inúmeras viagens inspiradoras para suas
produções.
Atualmente, entretanto, esse sistema de inspiração exótica e produção européia
coexiste, na moda, com a novidade da entrada na Europa de criações de moda, muitas
vezes produtos de luxo, provenientes de outros pontos do globo. Se antes, na alta moda,
eram os criadores europeus que viajavam para Ásia, África e Américas, hoje são as
criações locais que circulam. Novos estilistas africanos de moda exportam para Europa,
ou dividem seu tempo entre seus ateliês senegaleses e parisienses, como aponta
Berlonquin (2005). E as ondas do asian-chic (Jones & Leshkowich, 2003) espalham,
mundo afora, não apenas criações européias inspiradas na Ásia, mas butiques asiáticas
voltadas para o mercado externo, tal qual a hongkonesa Shanghai Tang.
Dentre os consumidores franceses entrevistados, também se consumia produtos
exóticos (de vestuário e outros tipos) de outras proveniências além da brasileira. A
temática dos “produtos exóticos de outras partes” só foi incorporada no roteiro de
entrevista, entretanto, após ter sido mencionada por uma consumidora. Essa parisiense
de origem eslava dizia-se uma “passionée des jeunes créateurs africains”, mencionando
narrativa, que circula no mundo da moda, segundo a qual uma dessas “jovens estilistas
africanas”, patrocinada um célebre filósofo francês, dava à suas criações o diferencial de
enterrá-las antes de revendê-las.
Nas feiras têxteis francesas, a presença de tal interesse pelo exótico pôde ser
observada, por exemplo, no local reservado a exposição das tendências de moda. Ali
havia um setor demonimado Primitiveland (os outros dois setores que compunham as
tendências, com ares de parque temático, chamavam-se Waterland e Wonderland). Em
Primitiveland via-se uma grande mistura de elementos, africanos, tropicais e asiáticos,
presentes nas estampas das roupas, cores utilizadas, elementos decorativos e cenário que
294
era composto por algumas plantas. Junto à instalação textos explicativos remetiam a
“territórios tribais” e “rituais ancestrais”, “arte bruta”, “natureza das origens”, que
poderiam ser traduzidos na moda através da mistura entre matérias e tons naturais e cores
fortes e vivas, da “presença de formas como boubous
178
e sarouels”
179
, e de acessórios
como colares e pulseiras feitos artesanalmente, a partir de matéria-prima natural,
preferencialmente orgânica.
178
Túnica ampla e longa usada na África, deformação francesa da palavra uólofe mbubb.
179
Calça tradicional da África do Norte, com pernas bufantes fundilho baixo.
Feira Prê
t
-à-Porter Paris
,
2005.
295
Na imprensa francesa, a inclinação para a moda de inspirações étnica também é
bastante presente, e obviamente não apenas quando se trata de moda brasileira. Fala-se,
por exemplo, em “magique éthnique: total look ou petites touches, toutes les tribus de la
mode s’adonnent aux codes éthniques
180
, ou em “indian style”, no qual não é preciso
“[..] s’appeler Pocahontas pour se laisser séduire par ce look ethnochic.
181
.
Em termos de atração pelo exótico e de acesso a ele, a grande diferença me
parece ser, além de sua produção poder agora acontecer ainda in loco, a de sua
popularização, como aponta Raulin (2000). Se o antigo consumidor do produto exótico
antes era necessariamente membro de uma aristocracia ou da alta burguesia, hoje ele,
ainda que permaneça vinculado a certa elite econômica e cultural, poderá pertencer as
classes médias européias. O consumo do exótico ainda está associado à sofisticação,
mas sua difusão e espalhamento são inquestionáveis. Um bom exemplo de sua
democratização é, nas capitais européias, a presença de grande quantidade de
estabelecimento de “comércio étnico”, como o supermercado Tang Frères, em Paris.
Mesmo dentro do mercado brasileiro de moda e vestuário é possível constatar as
referências exóticas e as apropriações de outras “modas étnicas”. Nos arquivos de
periódicos brasileiros de moda, os exemplos foram inúmeros. Eles ilustram, assim,
como, também no Brasil, o gosto flutuante da moda internacional pelas exóticas “modas
étnicas” é apropriado.
Uma revista brasileira de moda do ano de 2006, mesmo período em que na
França as atenções deixaram de lado a moda brasileira para celebrar a África, diz-se que
o “Look África” é o que está na moda, e que “cores fortes, estampas de bicho e
180
Vogue Paris, no 855 março de 2005.
181
L’Officiel, no. 894 abril de 2005.
296
desenhos tribais invadem a moda
182
”. Ainda no mesmo ano, o caderno de tendências de
moda de um jornal paulista anuncia uma “Volta ao mundo no guarda-roupa”, já que “a
moda dá um espetáculo de tradições locais: culturas de diferentes países são influência
para a meia-estação
183
”.
Nos eventos de moda brasileira, paralelo aos festejos que acompanhavam a
“brasilidade” de nossa moda, também a tendência internacional de outras modas
étnicas/exóticas estava presente. No evento gaúcho, que tem a particularidade de ser
patrocinado por uma grande loja de departamentos e que, por isso, recebe o desfile
dessa loja junto aquele das marcas de prêt-à-porter de luxo, tal tendência foi
apresentada de forma quase pedagógica.
Convém aqui mencionar que o desfile da grande loja de departamentos foi
bastante peculiar, como nenhum outro antes (ou depois) observado. Este desfile ela
claramente didático. Nele, todas as tendências de moda que no dia anterior haviam sido
referidas pela jornalista paulista, na palestra direcionada aos profissionais gaúchos de
moda, estavam presentes. Mais do que isso, eram apresentadas uma a uma, através de
uma performance onde os manequins não vestiam roupas da loja de departamentos, e
encarnavam cada uma das tendências.
A seguir, logo após cada performance explicativa, eram desfiladas algumas
peças de roupa que podiam ser compradas na loja. Essas peças, em si, não apresentavam
características que as identificasse clara e imediatamente a tendência mencionada. Era
sobretudo a partir das performáticas e pedagógicas apresentações que as antecediam,
funcionando como um tipo de subdivisão temática do desfile, que tais elementos
estéticos ali chamados como “tendências” eram à elas associados.
182
Vogue Brasil, no. 337, setembro de 2006.
183
O Estado de São Paulo, 12/13 de março de 2006.
297
Aquilo que é dito como “tendência moda étnica” é apresentado numa abertura
composta por uma bailarina que dança, corpo pintado em cor cobre e brilho metálico,
envolta num traje tipo sari indiano, cor de laranja com bordados dourados. Ela também
tem seu corpo, sobre a tintura cobre, enfeitado com sutis desenhos geométricos, em um
tom de marrom que não se diferencia muito do restante de sua pele acobreada. Além
disso, usa um enfeite dourado na cabeça, do qual pendem tiras de pano fino e
transparente. Ela desfila descalça, e seu rosto, também encoberto pela tinta, faz lembrar
uma máscara.
Donna Fashion I
g
uatemi
,
2004
298
As roupas que seguem essa abertura e, portanto, essa tendência, são peças
bastante simples como calças, saias e jardineiras em tecido do tipo sarja, nas cores
marrom, bege, cru, vermelho escuro e laranja
184
, além de batas e vestidos amplos,
ambos bordados.
Mais uma vez aqui, não são as propriedades materiais das peças que conferem
seus significados e sua inclusão em determinadas categorias da moda, e sim a palavra
(e, nesse caso, a imagem e a performance!) profética, apropriando-me novamente da
expressão utilizada por Baudrillard (1996) que a acompanha.
Afastando-nos um pouco do exotismo, outro movimento mais geral da moda e
das práticas de consumo que é apropriado pela divulgação de uma “moda brasileiria” é
o do consumo ético, social e ecologicamente correto. Nas revistas francesas, fala-se nos
produtos relacionados a essa tendência (artesanais, reciclados, naturais) como
especialmente chiques atualmente. Uma revista francesa traz a lista de suas “boutiques
184
Cores que podem ser associadas à rusticidade, próximas aos tons terrosos.
Donna Fashion I
g
uatemi
,
2004
299
éthiques préférées”. Visitando as lojas listadas, foi possível verificar que muitas delas
revendem produtos brasileiros, entre os de outras procedências. A revista descreve o
ambiente de uma das lojas como “ethnique chic et design”, e seus produtos como sendo
das marcas “[...] les plus tendance du commerce équitable” . Além disso, anuncia a
recente “[...] parution du guide du Shopping solidaire à Paris, qui recense 200
adresses
185
. Outra revista fala em “Fantasie bio-chic”, que seria uma homenagem
“[...] stylisé au mythe antimondialiste” e uma “nouvelle douceur écolochic
186
Diversas empresas brasileiras buscam diretamente esse caminho e essa
abordagem. É esse o caso, por exemplo, da marca de calçados esportivos. Outra empresa
brasileira cujos produtos são vendidos na França, nas lojas de comércio ético, que se
destaca por voltar-se exclusivamente para esse público alvo de consumidores, produz
artigos de vestuário em algodão. Suas roupas, ditas feitas de “fibra
justa/igualitária/sustentável”, são vendidas em uma grande butique “engajada” de Paris.
Tal qual a marca de calçados, sua propaganda é de que as peças produzidas não só são
feitas com algodão bio, como aqueles(as) que os produzem são remunerados(as) de
forma justa, idéia também bastante recorrente. Tais roupas, segundo periódico francês
direcionado aos profissionais da moda, são vendidos em 25 pontos de venda, e já
seduziram cerca de 300.000 consumidores franceses.
187
Outros produtos brasileiros, não especificamente direcionados para esse setor,
mas também associados à dubla “produção artesanal / matéria prima natural”, pegando
carona na mania bio-chic têm suas vendas aumentadas. É o caso das bijuterias brasileiras
feitas de sementes e pedras, mas igualmente das peças industriais acrescidas de enfeites e
bordados.
185
L’Express 02 de maio de 2005.
186
L’Officiel no. 891 dezembro de 2004
187
Fashion Daily News, 17 de fevereiro de 2006.
300
Essa idéia de um Brasil que produz amplamente bens de consumo social e
ecologicamente corretos pode parecer, por vezes, surpreendente aos olhos brasileiros. Na
França, entretanto, aparenta já estar bastante solidificada. A onda brasileira de
“reciclagem total” é anunciada por revista francesa como principal característica do
moderno design brasileiro, que busca inspirações no artesanal e na natureza (e também
no cotidiano). Assim, muitos produtos made in Brasil são vistos como jogando as cartas
da “totale recoup’, une tradition nationale [brasileira].”
188
Dentro do Brasil, a valorização de tais tipos de bens de consumo se materializa,
por exemplo, na recente visibilidade dada às cooperativas de costura e reciclagem, como
é o da Griffe Morro da Cruz. De acordo com as consumidoras de produtos dessa
cooperativa, suas escolhas de consumo são guiadas, em paralelo a uma valorização
daquilo que é referido como uma “estética popular”, justamente pela associação entre as
peças ali produzidas, recicladas e elaboradas a partir de retalhos e restos de tecido, e os
bens de consumo ecológicos, social e politicamente engajados.
Em seus discursos, consumir as roupas e acessórios produzidos pela cooperativa
significa, de alguma forma, opor-se a atual configuração do mercado da moda e,
especialmente, ao que é chamado ali de “consumismo”. Esse caráter engajado e
contrário ao consumismo, no entanto, não exclui a participação de tais produtos do
cenário da moda, bem como sua presença nos repertórios de tendências de moda e
consumo e nas instâncias legitimadoras do campo. Pode-se dizer, inclusive, sem a
pretensão de despojá-los de seu mérito e valor, que tais produtos, qualificados por seus
consumidores como emblemas “anti-consumistas”, viram uma verdadeira “febre de
consumo”.
188
L’Expressmag, 21 de março de 2005.
301
302
A fotografia escolhida para a abertura desse último capítulo foi feita em desfile
de moda do Donna Fashion Iguatemi de 2004. Se for olhada com rapidez, talvez pareça
a menos associada, dentre aquelas anteriormente utilizadas, com as temáticas e títulos
dos capítulos que abrem. Aproximando o olhar, entretanto, é possível perceber que,
através do recurso fotográfico utilizado, não se trata de uma única fotografia. São
dezesseis diferentes fotos, em seqüência, onde cada imagem congela uma ínfima fração
de segundo. Ela é particularmente expressiva, assim, por expressar a idéia de
movimento: ela acompanha e registra, quadro a quadro, um curto espaço de tempo no
qual a manequim percorre um pedaço da passarela.
Além disso, ela une, na mesma cena em movimento, a manequim que veste a
roupa criada e apresentada pelo produtor de moda e o público que recebe a informação
que ali é veiculada. Ela metaforicamente versa, em última instância, sobre trânsitos que,
no campo da moda, são múltiplos, e de fundamental importância para sua configuração.
Este capítulo tem como tema central, portanto, os trânsitos que acontecem no
campo da moda brasileira contemporânea. De um lado, são descritas as formas pelas
quais uma “cultura popular” brasileira é veiculada na produção da alta moda e do
consumo de luxo, permitindo igualmente uma discussão sobre como se dá essa
apropriação, sem deixar de apontar as mudanças de significados ali operadas. Na análise
de tais processos, reforça-se a importância dos intermediários do campo, tais como
estilistas, críticos e jornalistas de moda, no desenvolvimento desses trânsitos. Ainda no
que concerne aos intermediários, fundamental importância também é dada as
“celebridades” e “famosos” que, mesmo não sendo detentores dos saberes próprios do
campo da moda e tampouco profissionais no setor, também atuam, através do star
system peculiar que é a televisão brasileira, enquanto mediadores na difusão de gostos e
modas.
303
Por outro lado, ainda tendo como foco os trânsitos da moda, um processo, agora
de maior escala, é analisado: trata-se de um duplo movimento, que engloba todas as
transformações da moda brasileira aqui discutidas e caracterizadas. A primeira face
desse duplo movimento é a busca da nacionalização das temáticas como meio para
globalizar e internacionalizar a moda brasileira; já a segunda é aquela da busca de
visibilidade internacional como meio para legitimar a produção nacional perante o
mercado de consumo brasileiro.
6.1- A harmonia social e o chinelo:
Como parte do movimento de retorno as temáticas nacionais, a alta moda
brasileira começa a interessar-se pela “cultura popular
189
”, inspirando-se nela para a
produção das coleções desenvolvidas. Esse fenômeno, que poderia ser descrito como
movimento “de baixo para cima”, teve início há cerca de dois ou três anos e mantém-se
ainda com firmeza nas últimas coleções lançadas no circuito nacional de moda. Nos
eventos recentemente observados, traz-se para dentro da passarela não apenas o estilo
das ruas
190
, mas o arraial, a cozinha tradicional, o terreiro.
No evento carioca de moda espetáculo, uma marca colocou na passarela
músicos, vestidos de smoking e chinelo de dedo, tocando “Luar do Sertão”. O tema da
coleção de verão 2005/2006 da marca é a cultura popular nordestina e, sobretudo, a
literatura de cordel. As roupas são quase todas em tons muito claros, com rendas e
babados, sempre com a presença de cintos, pochettes e coletes de couro, repletos de
tachas metálicas. As camisetas são estampadas com xilogravuras de cordel.
189
Não se pretende aqui discutir o conceito de cultura popular, sendo aqui utilizado como termo êmico
que aparece nos discuros de produtores de moda, de consumidores e da imprensa especializada.
190
Movimento que, como descrevi no capítulo 2, tem início na década de sessenta e setenta na moda
internacional, envolvendo, na França, principalmente a criação do prêt-porter e o surgimento da “moda
jovem”. Para uma análise aprofundada dessa questão, ver o trabalho de Chevalier (2006)
304
No mesmo evento, outra marca, cujo desfile foi mencionado anteriormente,
mostrou uma coleção que tinha como temática “a malemolência do baiano, a
malandragem, e o jeitinho brasileiro”. A passarela era decorada com azul, como que
representando um mar e, sobre ela, havia dois barcos de madeira, e ao fundo uma
imagem de Iemanjá.
Iemanjá também aparecia na estampa de algumas camisetas, assim como São
Jorge. As cores predominantes do desfile eram o vermelho, acompanhado de São Jorge,
e combinações de branco e azul, com a imagem de Iemanjá. Colares (masculinos) de
miçangas e chapéus feitos em crochê e latinha de refrigerante acompanhavam as peças
desfiladas.
No Jóia Brasil, a temática das jóias apresentadas seguiam a mesma direção. Uma
das peças mais curiosas, denominada “Mucama: raízes africanas”, era um enfeite de
cabeça, tipo turbante, feito em tela de ouro dezoito quilates, e fitas verdes e amarelas,
formando a bandeira brasileira.
305
O pequeno texto, escrito pela autora da jóia para descrever a peça, é
significativo:
“[...] foi inspirada na maneira como as escravas usavam o lenço quando aqui chegavam
e tinham as cabeças raspadas (Debret – Retratos do Brasil). Tal moda foi copiada por D.
Carlota Joaquina e, consequentemente, pela Corte, eternizada por Carmen Miranda,
repetindo-se em ciclos, aparecendo muitas vezes como característica de nosso País.”
Outra versão para a história
191
do adereço de cabeça da princesa portuguesa,
muito difundida, é a de que Carlota Joaquina por aqui chegou usando turbante não para
copiar o adorno das escravas, mas por causa de um surto de piolhos que teria acometido
a embarcação que a trouxe para terras brasileiras. No texto, a vontade de demonstrar a
importância da cultura popular na construção de uma identidade brasileira é explícita.
Nele, não é o piolho, e sim um suposto apreço da corte pela estética popular que “faz a
cabeça” de Dona Carlota.
Como foi descrito no terceiro capítulo, outras jóias da exposição também trazia
tais referências. No metal precioso, o mito das três raças era atualizado. Em jóias com
nomes como “Miscigenação” e “Etnias”, a mistura à brasileira se materializa no uso de
três diferentes cores de ouro.
Em um desfile realizado em São Paulo, na Feira Nacional da Indústria Têxtil, a
mistura nacional, com resultado surpreendentemente harmonioso, é festejada no prêmio
de jovens criadores. Uma jovem estilista assim define sua criação:
“[...] os contrastes, de que o Gilberto Freyre já falava, que compõem o nosso país, vim
trazer todos os absurdos, desde o cetim que se mistura com o algodão, e o lamé que vai
ser lixado e vai ser destruído, que lembra a favela, que lembra o povo [...] esses
absurdos que eram imiscíveis a princípio, mas que vão se misturar dentro na roupa para
representar o que é o país.”
Ainda na cidade de São Paulo, nas passarelas do São Paulo Fashion Week, o
povo brasileiro também desfila magnânimo. Uma marca de moda praia, em seu desfile,
191
Agradeço a professora Sandra Pesavento por apontar tal fato quando do exame de qualificação do
projeto de tese.
306
trouxe Jamelão
192
para cantar na passarela. Já uma de prêt-à-porter de luxo, tanto em
sua coleção masculina quanto feminina, inspira-se no cangaço, mostrando “Lampiões” e
“Maria Bonitas” vestidos com peças de couro cru, tachas metálicas, sandálias rasteiras
de tiras e chapéu de cangaceiro.
Burke (1989, p. 31) analisa a apropriação da cultura popular pelos intelectuais e
elites da Europa Moderna, que justificam seu interesse pelas “coisas do povo” também
na necessidade de registrar uma “cultura em desaparecimento”. O autor procura
compreender como se estabeleceram, ao longo de poucos séculos, movimentos
antagônicos, de distanciamento e aproximação, entre as ditas culturas populares e
eruditas na Europa.
Segundo ele, até meados do século XVI a cultura popular era compartilhada
pelas classes mais altas, era uma cultura de todos, uma “segunda cultura” para os
instruídos e a “única cultura” para os outros. A participação em festas populares,
religiosas ou não, era comum a todas as classes sociais. A partir dos séculos XVII e
XVIII, começa a haver uma retirada das classes altas, que vão deixando gradativamente
de participar da “pequena tradição”, que passa a ser vista como “atrasada” ou “vulgar”,
oposta a moral da ordem e do autocontrole que passa a permear o imaginário das elites.
Com a separação entre a “grande” e a “pequena” tradição, a partir do século
XVIII, o interesse pela cultura popular é retomado, não mais em termos de vivências
compartilhadas, mas agora como apropriação do outro, “exótico”, objeto de estudo e
interesse justamente por sua diferença: o povo é visto a partir de então como natural,
simples, instintivo, irracional, enraizado nas tradições, um novo universo encantado e
romantizado.
192
Apelido do sambista José Bispo Clementino dos Santos, cantor dos sambas-enredo da escola de samba
Mangueira.
307
Essa diversidade e esse exotismo são percebidos como a “fonte da tradição”, que
precisa ser “preservada” e “catalogada”, antes que se acabe, que seja esmagada pela
modernidade nascente. Essa imagem da cultura popular estando sempre em perigo é
ainda contemporaneamente acionada. Segundo Fernandes (2003), o estudo do folclore
muitas vezes parte do discurso de que a cultura popular seria uma espécie de
sobrevivência de elementos ultrapassados pelo progresso (a cultura das elites ou cultura
erudita), relacionada sempre ao mundo rural (oposto ao urbano) e ao passado da nação.
Tal postura frente às manifestações culturais é criticada por diversos autores
(Fernandes:2003, Ortiz:2003, Arantes:1983, Ayala:2003) por, com a justificativa da
“preservação”, não encarar a cultura nacional como processo, que se movimenta de
acordo com contextos históricos e políticos, e sim como objeto rígido ou a ser registrado
e “fixado”.
Ainda que tenha grande presença na moda, não é, entretanto, apenas essa cultura
popular quase folclórica, enraizada num passado imaginado, a única a ser apropriada.
No evento gaúcho de moda espetáculo, em 2004, uma das marcas que apresentou sua
coleção dizia ter como inspiração “o comércio popular da Rua 25 de Março
193
”.
Essa grife, cujos produtos são vendidos a preços que giram em torno de
trezentos reais, trouxe para o evento gaúcho uma coleção repleta de bordados e
penduricalhos – o que inclui algumas bugigangas plásticas made in China – e estampas
coloridas e de diversas padronagens misturadas.
Do lado de cá das passarelas, fora dos grandes eventos, outros exemplos dessa
apropriação do “popular” podem ser observados. Um deles é o atual sucesso das
cooperativas de costura e reciclagem. Nelas, mulheres de grupos populares, com o
193
Essa sua, localizada no centro de São Paulo, é conhecida em todo o país por revender produtos de
preços baixos, alguns em atacado, e abrigar uma série de lojas de aviamentos e materiais para a confecção
caseira de bijuterias. Atualmente, mais do que lugar de amplo comércio popular, tornou-se um centro de
comércio de bugigangas made in China, repleta de vendedores ambulantes além das lojas mais
institucionalizadas que praticam o mesmo tipo de comércio.
308
incentivo de ONGs ou de instituições governamentais, produzem peças para estilistas
do circuito da alta moda. Em outras cooperativas, seus produtos – sem a interferência da
marca do estilista famoso – são vendidos, em lojas próprias ou especializadas, para
consumidores de camadas médias e altas.
A cooperativa onde foram realizadas observação e entrevistas, em Porto Alegre,
é uma destas. As entrevistas com algumas de suas consumidoras versavam sobre os
encantos exercidos pelo “popular” sobre essa “elite fashion”. As principais razões,
enumeradas para a compra e uso das peças, estavam calcadas na valorização da
produção dessas mulheres, vista por elas como diferenciada do “gosto de classe média”:
“E as cores que são vibrantes, tudo super colorido. Não tem essa monotonia do chique-
básico, que diz que todo mundo tem que se vestir de preto, de marrom, de bege. Lá não
tem isso, tem muita cor, muita estampa. Adoro.”
Também na França os produtos brasileiros “reciclados” fazem sucesso,
tornando-se mesmo emblemáticos do que seria uma “moda brasileira”. Ainda que de
valor muito elevado, e produzidos por marcas brasileiras famosas e elitizadas (como é o
caso da jaqueta anteriormente descrita, remetida ao “kitsch brasileiro”), essas peças de
roupa são entendidas como mais autêntica produção de uma cultura popular brasileira.
De acordo com uma vendedora de loja brasileira em Paris, elas são associadas ao Brasil
porque
“[...] a roupa reciclada vem do lixo, ela não desperdiça, é de uma população carente do
Brasil que precisa aproveitar cada pedaço, cada resto de pano, o que não prestaria pra
nada fica uma peça linda, [os consumidores] gostam demais dessa qualidade [dos
brasileiros], criatividade pra fazer lixo virar luxo.”
No que diz respeito às consumidoras porto-alegrenses, os produtos de vestuário
“reciclados” da cooperativa de costura também eram positivados a partir dessa
associação entre o “não desperdício” uma criatividade “típica” das classes populares:
“Acho lindo as bolsas delas porque são feitas de retalhos, tudo é aproveitado! Coisas
que iam ir para o lixo, imagina. Quem tem grana normalmente nem se dá conta que
309
poderia aproveitar melhor as coisas que tem, e desperdiça. Nas bolsas [...][da
cooperativa] tudo é aproveitado!.”
A criatividade, quase que como fruto da necessidade, é vista como sabedoria do
“povo”. Como disse outra consumidora da marca, “Eu gosto dessa coisa de etiqueta
popular, acho o máximo. O que é do povo é bom: roupas boas, comida boa, música boa.
O povo é sábio.”
O movimento de procura do “povo” por parte da moda poderia ser percebido
como uma tendência de democratização dessa esfera, sempre tão fechada em si mesma.
Nos grandes eventos, é clara a vontade de divulgar uma moda que se inspira menos em
modelos importados, supostamente tão supervalorizados pela elite, e mais no nacional,
imediatamente remetido ao “popular”. A harmonia entre popular e alta moda é proposta
pelos produtores de moda, e amplamente aceita por suas consumidoras, que desfilam
nas colunas sociais ou revistas de “sociedade”, com as peças
populares/artesanais/brasileiras.
A procura da “autenticidade nacional” nas coisas do povo não é exclusividade
brasileira. Como apontam vários autores (Hobsbawn, 2006, Burke, 1989), ela já se deu,
ainda que de maneiras diversas, em outros lugares e momentos históricos. Associar
essas “releituras” da cultura popular com harmonia e fusão entre as classes sociais é,
entretanto, uma característica fortemente brasileira. É o que aponta, por exemplo,
Oliven, ao dizer que
Ce qui caractérise le Brésil c’est justement le fait d’être une societé d’immenses
différences sociales et économiques, dans laquelle on vérifie une tendance à
transformer des manifestations culturelles em symboles de cohésion sociale qui sont
manipulés comme formes d’identité nationale.
(2005, p.82)
Tal particularidade da sociedade brasileira é objeto de análise de Fry (1982,
2001) em seu texto sobre a feijoada e o soul food, assim como na revisão que faz dele
vinte e cinco anos depois. O autor discorre sobrea apropriação, típica da cultura
310
brasileira, de certos elementos culturais elaborados por grupos minoritários ou
“dominados” pela sociedade mais geral. Fry explica que tanto o samba quanto o
candomblé, que inicialmente teriam sido perseguidos e reprimidos, acabam por
tornarem-se símbolos nacionais. A feijoada brasileira, que dá nome ao artigo, é
comparada com o soul food americano. E enquanto a primeira transforma-se no prato
típico brasileiro, a segunda, nos Estados Unidos, mantém-se como emblema de
negritude.
Na primeira versão do artigo, o autor argumenta que tal apropriação de traços
culturais “desviantes” pelas classes hegemônicas e pelas elites culturais, serviria, através
de sua “domesticação”, como maneira de conter e normatizar as diferenças. Fry sustenta
que a (auto)representação do Brasil enquanto sociedade harmônica, onde as
manifestações populares – e, no caso específico trazido por Fry, negras – são
convertidas em traços nacionais, teria função de “encobrir” tensões e disputas reais.
Desprovidas de sua identificação com a cultura negra, as manifestações culturais
seriam, para o autor, esvaziadas de seus sentidos “originais” e de seu caráter político,
fundando um imaginário de igualdade que encobre a realidade do racismo no Brasil.
Em sua revisão, entretanto, Fry (2001) sustenta que tal particularidade da cultura
brasileira não pode ser percebida apenas em sua dimensão negativa. O racismo não está
encoberto por nada, é real e visível, mas, segundo ele, coexiste com esse outro modo
diferente, baseado nos ideais da “mistura harmoniosa”, de olhar para as diferenças
raciais:
“O Brasil vive em constante tensão entre os ideais da mistura e do não racialismo ( ou
seja a recusa de reconhecer “raça” como categoria de significação na distribuição de
juízos morais ou de bens e privilégios) por um lado, e as velhas hierarquias raciais que
datam do século XIX, de outro” (2001, p.52)
Muito embora os “resultados” da apropriação dos traços culturais inicialmente
vinculados ao negros pela elite brasileira sejam diversos nos dois tempos da análise de
311
Fry, em ambos se mantém a presença do ideal brasileiro da mistura harmoniosa
enquanto forma do Brasil pensar sobre si mesmo.
Essa harmonia brasileira de convivência das diferenças é comumente trazida à
tona quanto se trata da divulgação dos produtos brasileiros de moda na França. Ela está
bastante vinculada, por exemplo, a idéia da informalidade que permeia as relações
sociais do país, expressada no comentário a respeito do uso do jeans e da camiseta, “por
todos” e em toda parte.
Sua materialização mais completa, entretanto, é vista como acontecendo através
dos chinelos Havaianas. Nas revistas franceses, é o chinelo o maior símbolo do gosto
brasileiro – universal, enquanto traço nacional – pelas “coisas populares”, e o fio
condutor capaz de costurar, em harmonia, uma sociedade tão cheia de disparidades.
Chamadas de “les tongs star” e “tong mythique
194
”, as Havaianas são ditas como
Vénérée par les tops comme par les habitants des favelas, la tong brésilienne est
devenue la favorite des Occidentales branchées. [...] L’icône nationale qui met les
pêcheurs du Nordeste, les gamins des favelas, les Indiens d’Amazonie et les
mannequins fortunés sur un (nu-) pied d’égalité
195
No Brasil, entretanto, o “pé de igualdade” não é o mesmo. E embora a idéia de
“sociedade harmoniosa” persista, ela se apresenta, mesmo nos discursos, como um
ideal. Até porque, diga-se, se há harmonia e trânsito permanente, a presença de uma
“cultura popular” brasileira na alta moda não seria fenômeno extraordinário ou digno de
nota da imprensa especializada e tampouco dos estilistas. A apropriação é vista como
novidade e como elemento positivo da “nova moda brasileira” a ser considerado, de
acordo com o que comenta uma estilista brasileira entrevistada:
“O que eu acho que é finalmente estão dando atenção para o que temos de brasileiro, o
povo, a cultura popular tão rica, é gratificante deixar essas referências aparentes, deixar
transbordarem. A nova moda brasileira é assim, estamos olhando pra baixo, caçando
fontes inspiradoras na riqueza criativa do Brasil, no cordel brasileiro, no sertão
brasileiro, nas artes do bordado do Brasil, nas lendas populares. [...] Você pode ver cada
194
Revista Printemps, abril de 2005.
195
L’expressmag, 21 de março de 2005.
312
um, ver o que está sendo feito, é puxar a cultura popular, a moda brasileira é
democrática, vai das religiões africanas até a estética da favela.”
Os movimentos descritos, de “olhar para baixo” e “puxar” supostamente para
cima, fazem lembrar o que Simmel (1988) chama de trickle down, ainda que sob forma
aparentemente invertida. Fazendo em seu nome alusão a força da gravidade, o modelo
trickle down proposto por Simmel tem como objetivo explicar a propagação, em
diferentes camadas sociais, das tendências de moda e gostos.
É um modelo de difusão de hábitos de consumo bastante semelhante àquele
desenvolvido por Veblen (1987), baseado igualmente na idéia de “emulação” como
motor de disputa por distinção, gerando, por outro lado, novos mecanismos de
conservação de poder. A teoria de Simmel defende, portanto, a existência de dois
princípios conflitantes nas sociedades, que agem como engrenagem das mudanças e
inovações no que concerne o vestuário: o princípio da imitação e o da diferenciação.
As mudanças no vestuário (e as sucessivas ondas da moda) dar-se-ião quando
uma classe social tenta imitar outra mais alta em seus hábitos indumentários, e passa a
usar seu tipo de vestuário. A reação dessa classe mais alta é a de diferenciar-se
novamente, inventando outra moda. É importante ressaltar, entretanto, que, segundo
Simmel, esse efeito só pode ser observado tal qual seu modelo quando se tem em foco
grupos próximos e relacionados, ainda que com uma fronteira e limite bem
estabelecidos entre eles. Criados pela elite, os gostos no que concerne a moda seriam
copiados pela classe imediatamente inferior, e em seguida por outra ainda menos
favorecida. Cada classe, depois de ter sua “moda” copiada, deixaria de usá-la, e
inventaria (ou copiaria) outra como estratégia de distinção.
Essa interpretação a respeito das mudanças na moda também é de certa maneira
partilhada por Bourdieu (2002). O autor diz ser o vestuário, por excelência um conjunto
313
de bens simbólicos perecíveis, onde há mudança sazonal praticamente com data
mercada e fixa, uma ruptura obrigatória, gerada por tais modelos de distinção.
A respeito dos ciclos e retornos de modas ou de tipos de vestuário, Bourdieu
(2002) diz também serem reflexo dessa engrenagem onde a disputa entre classes é o
motor. Segundo ele, os retornos só acontecem quando se acabam o que chama de
“reutilizações secundárias do desclassificado para fins de classificação”. Essas
reutilizações nada mais são do que as imitações: quando uma moda se torna demodée
para uns, para as classes mais altas, ainda assim poderá por algum tempo ser usada
como sinal de distinção pelos usuários menos bem posicionados socialmente.
Para o autor, é apenas quando essa determinada moda perdeu o poder de
distinção pelas classes mais baixas que anteriormente a haviam copiado, que pode voltar
a ser usada pelas classes altas e manter sua funcionalidade enquanto sinal distintivo.
Essa seria a essência dos retornos (Dorfles, 1990), do “kitsch” e dos revivalismos, que
sempre tornam a trazer a tona “velhos estilos”, com o sinal invertido, como no caso do
kitsch, ou sob uma nova capa: neogótico, neoclássico, neoromântico, e assim por diante.
Embora o modelo de Simmel não esteja mais tão up to date, sendo objeto de
crítica de muitos daqueles que se dedicam a compreensão de fenômenos relacionados ao
consumo
196
, permanece como referência freqüente em muitos estudos sobre a moda
197
.
Uma possível explicação para que a aplicação do modelo de Simmel se faça mais
presente nos estudos sobre moda do que naqueles sobre outras esferas do consumo é
que, de fato, no campo da moda conserva-se a estrutura piramidal no que diz respeito à
produção do (bom) gosto. Mesmo com o declínio real da alta costura, ela ainda se
mantém simbolicamente em posição hegemônica, funcionando como uma espécie de
“protótipo” da criação.
196
É o caso, por exemplo, de Slater (1997), Campbell (2001), Miller (2001) e Craine (2006)
197
É ele que dá corpo, por exemplo, ao fundador trabalho de Gilda de Mello e Souza (1999), primeira – e
ousada – tentativa, no âmbito da Ciência Social brasileira, de estudar as modas de vestir.
314
Além disso, ainda que o setor de prêt-à-porter seja mais “democrático” do que a
antiga couture, abrangendo público consumidor maior, ele reproduz sua estrutura,
dando lugar central ao estilista/criador, sublinhando a idéia de autoria, e fazendo uso das
passarelas da moda espetáculo como espaço de divulgação e legitimação. Nesse sentido,
os fluxos da alta moda podem ser percebidos como potencialmente “de cima para
baixo”. E é por isso que trazer o “popular brasileiro” para essa esfera pode apresentar-se
como uma suposta inversão do modelo. A inversão, todavia, é apenas aparente. Como
será exposto a seguir, a valorização das temáticas nacionais e populares na moda
brasileira não implica a configuração de um trickle down às avessas.
6.2- Quando o “high-low arrasou”
Para problematizar o caráter, em aparência, invertido do modelo clássico de
difusão de gostos, tal qual se apresenta na apropriação da cultura popular brasileira pela
alta moda nacional, parto de dois focos analíticos principais. O primeiro deles concerne
à especificidade formal dessa apropriação. O segundo diz respeito ao papel dos
intermediários, entendidos enquanto jornalistas e críticos especializados, ou
“tradutores”, como consultores de moda e, em certa medida, estilistas.
É preciso ressaltar, em primeiro lugar, que a entrada dessa “cultura popular” na
moda brasileira se dá através de uma transformação de significados. Passando de um
setor a outro, de uma classe social a outra, os sentidos dos elementos ali empregados são
modificados. O que é chamado de “cultura popular” pelos estilistas e criadores, assim
como pela imprensa especializada, deve ser objeto de questão. Os elementos que tomam
para uso em sua produção são geralmente pequenas facetas de uma “tradição”, retirada
de seu contexto, quase como uma fotografia em close, apartada do todo que a compõe.
315
Indo mais além, muitas vezes os elementos apropriados são apenas estereótipos do
popular, reatualizados na passarela. O cordel, estampado na camiseta, deixa de ser
“cordel” para ser referência ao nacional.
Analisando os movimentos de apropriação, que podem ser tanto da classe
dominante tomando como emblema manifestações culturais de grupos não hegemônicos
quanto, ao contrário, de grupos populares que se apropriam de manifestações culturais
antes reservadas às elites, Oliven sublinha que:
“Il existe em comum entre ces deux mouvements l’appropriation des expressions d’un
groupe determine, leur recodification et leur introduction dans un autre circuit, où les
éléments sont dotes d’une nouvelle signification.” (2005, p.70)
A apropriação de tais traços ditos populares parece se dar, no caso específico da
moda brasileira, pela via da exotização. Assim como no caso do kitsch, as temáticas
“bem brasileiras” entram como estratégia distintiva mais do que como
“democratização”. Como diz Canclini, “[...] o tradicionalismo é hoje uma tendência em
amplas camadas hegemônicas e pode combinar-se com o moderno, quase sem conflitos
[...]” (2006, p.206).
No universo das classes médias e jovens brasileiras, Ceva (2001), demonstra
bastante bem um processo de exotização a e mistificação do popular, através de seu
estudo sobre o gosto pelo “forró” por parte de jovens universitários cariocas. O forró, no
caso estudado pela autora, vira consumo cultural “altervativo” e traço distintivo. Da
mesma forma, as elites fashion brasileiras apropriam-se de elementos que associam ao
popular, mas revestem-nos de outros sentidos.
A exemplo disso, uma revista brasileira que se dedica a divulgação da vida
social e pessoal dos “famosos” relata, em reportagem intitulada Made in Brazil, que
“com conforto e personalidade, a atriz [brasileira] decorou seu cantinho [no Brasil]
316
usando cores vibrantes e objetos exóticos e folclóricos
198
”. Na fotografia, uma jovem e
célebre atriz brasileira posava junto a uma mesa onde se via um computador portátil e
uma série de pequenas figuras esculpidas em barro (um boi, um grupo de mulheres
negras), visivelmente artesanais, dessas que se pode encontrar em “feirinhas” de
artesanato nos quatro cantos do país. Embora no Brasil, de forma geral, um notebook
ou a posse dele – seja em sua raridade mais exótico do que tais esculturas, ao que
parece, eram elas os “objetos exóticos e folclóricos” ali referidos. Parodiando Georges
Condominas (2006), que nomeia de L’exotique est quotidien seu relato etnográfico e
biográfico sobre uma aldeia vietnamita, nesse caso, o cotidiano que é vira exótico.
Outro exemplo desse processo é o de uma loja brasileira de produtos de luxo
que, tanto em sua sede no Rio de Janeiro quanto naquela de São Paulo, revende junto a
vestidos de grandes marcas internacionais e nacionais, cujos valores chegam aos cinco
dígitos, bens de consumo definidos como de “registro popular
199
”. Visitando essa
butique, no ano de 2005, realmente foi possível ver in loco roupas que custavam trinta
mil reais, expostas lado a lado com pequenas garrafas pet do Guaraná Jesus
200
,
pacotinhos de biscoito Globo
201
e alguns brinquedos usados da década de oitenta que,
apesar das péssimas condições de conservação, custavam pequenas fortunas. Assim
como no caso do kitsch, a apropriação de tais elementos parece ser mais um jogo
possível a partir do completo domínio dos códigos de (bom) gosto, do que propriamente
abertura ou recusa de tais códigos.
No caso da cooperativa de costura e reciclagem, suas consumidoras, diziam estar
o valor do produto naquilo que acreditavam ser uma “estética popular”, definida em
termos de “cores fortes” e uso de retalhos e restos de tecido – doados por instituições de
198
Revista Flash Amaury Junior, n. 138, 2005.
199
Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 2004.
200
Uma marca maranhense de guaraná. O refrigerante contido na garrafa é cor de rosa.
201
Os biscoitos Globo existem desde a década de cinqüenta e são vendidos nas praias do Rio de Janeiro.
317
caridade, empresas e particulares – que “transformam lixo em luxo”. Também ali existe
essa exotização do popular, e os produtos consumidos interessam por serem capazes de
expressar a diferença. Além disso, o uso ideal e adequado de tais produtos é importante
em sua inserção no domínio do bom gosto. Para que a “brincadeira” com os códigos de
elegância funcione, ela tem que ser executada de uma maneira específica.
Deve-se, sobretudo, associá-la a um conjunto indumentário maior, onde apenas
uma peça seja “destoante”, mantendo (e fortalecendo) a idéia do contraste. Uma das
consumidoras conta, por exemplo, que costuma usar sua bolsa de retalhos em festas,
justamente quando veste uma roupa alinhada e elegante:
“usei a minha bolsa amarela para ir em festa, e fica o máximo, todo mundo bota o olho
e só tu tem, dá um toque especial para o visual, principalmente se tu estiver toda
arrumada e daí usa junto uma bolsa de retalho. É tudo de bom.”
No evento carioca de moda espetáculo, a brincadeira com o registro popular
estava fundada em sai mescla com outros elementos considerados próprios ao gosto das
elites. Uma moça gaúcha que acompanhava um desfile de moda masculina, quando
perguntada sobre um desfile, diz que
“as camisetas são o melhor do melhor, eu usaria... uma camiseta vermelhona, com esse
baita São Jorge... imagina só que show, com um terminho perto ajeitatinho e um saltão
vermelho? Totalmente the best. [e quando pergunto se não é “muita mistura”, responde
que] não... taí a diversão, quando tu vê um cara todo arrumado e de Havaianas, tá cheio
por aqui, não é o máximo?”
Aquilo que aparenta ser “muita mistura” é, na verdade, um tipo de associação
entre peças de roupa que, na composição do look, é atualmente chamado no mundo da
moda de hi-lo ou high-low. Trata-se essencialmente da idéia de mesclar peças que,
separadas, seriam vistas como opostas. Esse mesmo termo é utilizado para designar a
mistura entre tecidos finos (como seda ou cetim) com outros mais rústicos (como o
algodão cru, o jeans, ou a chita), a mistura entre o artesanal e o industrial, e como disse
318
uma jornalista de moda, “o refinado, elegante, com o pop”. Cabe ressaltar aqui que o
pop” mencionado abrange uma ampla gama de significados, podendo ser
exemplificado, retomando as palavras da estilista, pela “fitinha do Bom Fim”, “o funk
carioca” ou por personagens de desenho animado, saídos da cultura de massas.
Em palavras que deram título a esse subcapítulo, o funcionário de uma marca
paulista de prêt-à-porter de luxo, assim definiu o que viu na passarela de outro desfile:
“O [estilista] arrasou, menina, uma loucura aquelas roupas, você não achou? A sala [de
desfile] foi ao delírio... o high-low arrasou! Loucura... o que era aqueles linhos o com
cetim cor-de-laranja, os bordados graúdos, rústicos, nos vestidos vaporosos,
femininos...”
Partindo de uma analogia entre moda e linguagem, Lurie (1997) diz que as peças
de vestuário funcionam como palavras, compondo uma frase ou uma mensagem. Tal
como na fala, há o uso de estrangeirismos, revivals de modelos antigos, uso de gírias,
coloquialismos e ironias. Mas para que esses “recursos do idioma fashion” funcionem
adequadamente, devem ser usados junto com outros elementos já consagrados. O uso de
apenas uma peça de um desses termos, mesclada a outras “neutras” de provocação,
representaria sofisticação.
Adotar, então, uma peça percebida como de outro universo – o das classes
populares, por exemplo, ou o “brasileiro”, se pensarmos na moda brasileira na França –
seria trazer para a mensagem, entendida como o conjunto indumentário, um grau certo
sofisticação. Nas apropriações de um popular brasileiro pela moda brasileira, apresenta-
se o jogo que Lurie descreve, de inserção do estrangeirismo no visual completo e
acabado, que passa uma mensagem através de outro idioma – o de um suposto gosto e
estilo de vida das classes médias e altas.
Um conjunto composto apenas por estrangeirismos, ou só com revivals de peças
antigas não funcionaria como sofisticação, tornaria a aparência teatral e a mensagem
perderia a coerência. Pode-se pensar aqui, por exemplo, no estilo de inspiração
319
vintage
202
, bastante em voga contemporaneamente, que só vira fashion quando
mesclado a peças tidas como “modernas”. O uso de algumas peças “de fora” podem
funcionar como as “audácias aceitáveis” que Bourdieu (2002) aponta como freqüentes
nas coleções de estilistas do campo da moda, interessados na ironia, fantasia, na
liberdade e na novidade.
Voltando a experiência junto à cooperativa de costuras, é importante sublinhar
que fazer uso de uma peça de roupa ou acessórios ali produzidos, comunica uma série
de significados, mas não faz com que suas consumidoras compartilhem do gosto e
estética “popular”, ou do gosto e estética das mulheres que as produzem, no alto do
morro onde a cooperativa está situada. Ao contrário, reafirma valores e anseios de seu
próprio grupo. Esses objetos comunicam outros significados quando associados a outros
elementos: outras peças de vestuário, estilos de corte de cabelos e maquiagem, postura e
gestual. Por vestir uma peça produzida pela cooperativa, nenhuma dessas mulheres
consumidoras de classe média “corre o risco” de ser confundida com uma moradora do
morro. Inclusive porque, como foi mostrado em trabalho anterior (Leitão, 2004), as
peças ali produzidas não são usadas por suas produtoras e, ao contrário de serem vistas
como “gosto local”, são percebidas como “coisa que a gente rica que gosta”.
Seria necessário, portanto, colocar em xeque a idéia de que um movimento
completamente inovador, de baixo para cima, teria lugar na moda brasileira
contemporânea. A busca de inspirações na cultura popular pela alta moda não
configuraria grande novidade ou inversão. O popular que vira fonte de inspiração é
exotizado e permanece dentro dos padrões de gosto das classes médias e altas. O
processo de valorização da alta moda brasileira no exterior, através dos filtros do
202
Para uma análise pormenorizada desse estilo, consultar o trabalho de Kras (2006) a respeito das
escolhas indumentárias de consumidores de “roupas de brechó”.
320
exotismo, parece ser bastante semelhante, havendo apenas uma mudança de escala. O
povo é o exótico da elite fashion brasileira, e o Brasil o exótico do europeu.
Isso não significa, entretanto, que se trata de um processo maquiavélico de
dominação. É preciso apenas sublinhar que, apesar da aparente transformação, o registro
acionado permanece sendo o dos modelos de elegância das classes altas, principais
detentoras dos “saberes” da moda. Na cooperativa de costuras, por exemplo, o gosto da
classe-média alta por seus produtos, imaginados como “bem populares”, não gerava
efeitos assim tão perversos. Era graças a ele, inclusive, segundo as costureiras, que
podiam sustentar as famílias e ter o “prazer” de abrir o primeiro crediário em lojas de
produtos “verdadeiramente populares” (industrializados, massificados, de baixo custo),
que vendiam roupas mais a seu gosto, do centro da cidade.
O segundo ponto que rebate a aparente inversão do modelo de gostos “de cima
para baixo” diz respeito a atuação, no mundo da moda, dos intermediários. McCracken
(2003) já sugere que a percepção de sua importância, de modo geral, é fundamental para
qualquer tentativa de reabilitação da teoria trickle down para as sociedades ocidentais
contemporâneas. Quando Simmel escreveu seu modelo trickle down não tínhamos um
sistema da moda tão complexo e repleto de setores diferenciados e grupos de mediação.
A figura do jornalista e do crítico de moda, por exemplo, não existia, e tampouco as
publicações especializadas, ou outros fornecedores de serviços que atualmente se fazem
presentes no setor, como os consultores de moda e os personal stylist.
No caso aqui analisado, o papel desses mediadores é fundamental na
configuração do processo descrito. É graças a eles que o “povo” vai para a passarela
porque, em última instância, é um povo por eles inventado, e objeto de inúmeras
adaptações. O povo com apelo comercial é justamente o povo retratado através dos
321
estereótipos do popular e que, além disso, precisa ser sempre “lapidado” de acordo com
os gostos da classe alta consumidora.
O popular por si só é visto como tendo grande potencial, baseado em um saber-
fazer quase ingênuo, que precisa ser desenvolvido e “melhorado”. De acordo com um
estilista gaúcho,
“ [...] o nosso artesanato aqui, por influência local, da pobreza e da miséria que é o
nosso país e suas regiões, ele é grotesco, ele é grosseiro. As pessoas continuam fazendo,
é um modo de sobrevivência, aquelas rendas do Ceará, que se vê nas ruas, que se vê nas
praças, aos borbotões. Então a gente percebe que eles conhecem a maneira de fazer,
mas falta o toque, falta uma influência cultural melhor, alguém que diga olha, mas isso
aqui, o fio tem que ser melhorado, o ambiente de trabalho tem que ser melhorado [...]
Sabem fazer o material, mas não sabem concluir de uma forma apropriada.”
A produção popular não pode ser, portanto, imediatamente transposta para a
produção de moda. As duas categorias não se equivalem, não são vistas como estando
no mesmo patamar. Ela pode servir como inspiração para a criação, ou ser adaptada
pelo estilista. Em palestra proferida em Porto Alegre, sobre tendências para o ano de
2005, uma jornalista de moda paulista é questionada pelo público a respeito dos usos do
artesanato popular pela moda. Sem pestanejar, ela avisa:
“[...] é, está super in... [...] não é sem razão que os estilistas usam trabalhos artesanais de
comunidades populares diferentes. Mas tem uma coisa, isso não é moda, não é qualquer
artesanato popular que é moda, e pra usar precisa ser moda, precisa aprender a fazer isso. A
Rocinha, com a Cooparoca
203
, por exemplo, aprendeu a fazer isso muito bem.”
O espaço dado às próprias comunidades, como no evento carioca de moda
business, também só existe após um processo de adaptação. Todos os pólos regionais de
moda com estande no evento vinham com apoio de uma instituição brasileira que
estimula e colabora para a inserção da produção local no mercado nacional e
internacional. De acordo com uma produtora de moda carioca, envolvida nas atividades
203
Uma cooperativa de costuras e de reciclagem carioca. Foi uma das primeiras do país a surgir, há
alguns anos, no discurso midiático.
322
de tal instituição, o papel do mediador, consultor-estilista, seria o de aprimorar a
criação, agregando à ela possibilidades de mercado e gosto mais refinado:
“Então o pessoal diz, ah, aqui nos temos uma trama de uma tear, ele [estilista] vai lá e
cria uma trama legal com aquele tear, que normalmente seria tudo muito cafona,
porque o pessoal não tem cultura [...] então ele vai lá e cria uma trama super diferente.
E encaixa aquilo no mercado. Quando começou a crescer isso, o pessoal de moda
começou a se interessar. [...]Vai uma estilista lá e fala pô, esses bordadinhos cafonas, o
que que eu posso elaborar dessa cafonice para ajudar esse pessoal? E me ajuda também
[...]As pessoas estão usando um pouco isso pra dizer olha como eu sou legal, mas é um
negócio, ele vai lá, compra, paga e vende. Eu mando fazer as minhas coisas no interior,
daí elas ganham, ou ganho, mas neguinho bota isso na mídia como se ele estivesse
salvando o país da pobreza. ”
Essa produção que é fruto das iniciativas de comunidades locais e cooperativas,
como foi visto, não será amplamente consumida sem antes passar pelos filtros que
regulam o (bom) gosto hegemônico. Para ser transformado em comercial, o produto
deve ser adaptado ao gosto médio. Além disso, o valor agregado ao produto, além
daquele de “jogar” com o hi-lo, é, como disse a produtora carioca no depoimento acima,
o de situar seu produto no âmbito dos bens de consumo social e politicamente
engajados.
A partir desses dois pontos descritos, pode-se pensar que o movimento não
acontece invertido, “de baixo para cima”. Nesse campo ele permanece, em grande
medida, nesse campo, ainda semelhante modelo de difusão “de cima para baixo”, já que
o gosto dominante, tomado como referência, é justamente o das classes médias e altas.
O caso da moda brasileira é, portanto, bastante diferente daquele do samba, tal qual
descrito por Vianna (2004). Não há verdadeiramente contato e relação entre os mundos
diversos, ao menos no que diz respeito a apropriação do “povo” pela alta moda
nacional, já que há a forte presença dos intermediários responsáveis por escolher e
filtrar quais elementos serão tomados como referência. Imaginando uma analogia com a
feijoada de Fry (1982, 2005), o caso da moda brasileira estaria mais próximo de um
323
experimento de cozinha fusion
204
, onde um chef famoso – e de preferência estrangeiro –
ensaia dar sofisticação à feijoada substituindo o porco por haddock defumado.
6.3- Deu na tevê
Mas se os modelos de difusão não sofrem grande alteração com a entrada das
“coisas inspiradas no povo” no mundo moda, em outros processos eles se
problematizam. Outros intermediários, além dos profissionais do setor da moda, atuam
de maneira significativa da difusão das tendências e dos gostos. Esses difusores de
modas são, principalmente, os famosos e as celebridades da mídia. Sua interferência no
mundo da moda se dá de duas formas: por um lado, através de seu trabalho, na
televisão, aquilo que usam torna-se moda; além disso, sua presença é constantemente
chamada aos eventos da alta moda brasileira, onde atuam como legitimadores das
marcas e publicizadores da moda, de maneira geral.
A importância das celebridades midiáticas é objeto da análise de Morin (1989),
quando este se dedica a escrever sobre as estrelas de cinema. O autor descreve,
primeiramente, como se constituiu o star system hollywoodiano. A primeira estrela
nasce, segundo ele, em 1910, por conta da concorrência entre as produtoras de cinema
americanas. O star system, para Morin, é esse sistema que elaborou-se em Hollywood a
partir de então, funcionando tal qual uma “máquina de fabricar, manter e promover
estrelas” (1989, p.77). As estrelas, nesse sistema, eram realmente fabricadas, e os
filmes nos quais atuavam eram geralmente pensados para elas, girando em torno delas.
Inclusive a brazilian bombshell, Carmen Miranda, serve-nos mais uma vez como
excelente exemplo. Em qualquer de seus filmes, mudasse de nacionalidade ou nome,
204
Sobre a cozinha fusion, ver o trabalho de Maciel (2004).
324
permaneceria sendo Carmen Miranda. Gêmeo do capitalismo e impossibilitado de viver
sem ele, no star system “a estrela é uma mercadoria total: não há um centímetro de seu
corpo, uma fibra de sua alma ou uma recordação de sua vida que não possa ser lançada
no mercado” (1989, p.76).
Como o próprio Morin aponta, o star system hollywoodiano não é mais como se
apresentava quando de seus primórdios. As estrelas são hoje menos deliberadamente
criadas, e, sobretudo, os filmes, salvo raras exceções, não giram mais entorno de sua
figura. Ao contrário disso, um ator receberá melhores avaliações da crítica, quanto mais
diversificados forem os papéis que desempenhar nas produções cinematográficas.
Apesar da modificação na estrutura do sistema, como nota o autor, as estrelas e
celebridades não deixam de ser modelos nos quais o público se inspira.
Não resta dúvida, igualmente, que os setores onde diferentes tipos de
celebridades atuam, se ampliou e diversificou. A fama não está mais restrita a
Hollywood, e hoje também jornalistas, executivos de sucesso, manequins, escritores,
entre tantos outros profissionais, apresentam-se na mídia enquanto modelos no qual o
público deve-se espelhar. Tanto quanto no antigo star system, muitas dessas
celebridades continuam sendo “mercadorias”, na medida em que endossam e
promovem, direta ou indiretamente, todo o tipo de bens de consumo.
Segundo McCracken (2005), as celebridades, endossando com sua fama
determinadas mercadorias, atuam como potencializadoras do processo de transferência
de sentidos culturais para os bens de consumo. O autor explica como, nos Estados
Unidos, quase todas as marcas que se possa pensar se associam a determinadas
“estrelas”. De acordo com ele, entretanto, inúmeros são os casos de fracasso em tais
associações, pois não é a simples referência a uma celebridade que é eficaz no processo
de transferência. Para que o processo funcione, é preciso antes de tudo que os
325
significados culturais estejam colados primeiramente a imagem desta celebridade, e que
sejam compatíveis com o tipo de produto que endossam.
No Brasil, embora também os tipos de celebridades sejam diversificados – e
podemos incluir aí os jogadores de futebol –, o principal motor de “famosos” é, sem
dúvidas, a televisão nacional. As novelas brasileiras, produto nacional até mesmo
exportado, atuam de maneira significativa da difusão das tendências da moda e na
divulgação dos produtos.
Uma das maneiras através das quais se apresenta sua atuação é o merchandising.
Nele, a emissora de televisão é paga para divulgar, durante a novela, determinadas
marcas de produtos. Como sugere Durand (1988), trata-se de bem aproveitar,
economicamente, “o intervalo entre um intervalo comercial e outro”. Detendo-se na
prática do merchandising, Ramos (1991) menciona que, além da divulgação de produtos
em pequenas situações cotidianas que não influem na trama da novela – uma lata de
creme-de-leite cujo rótulo fica aparente, a rápida visita de um personagem a uma loja,
um sapato com o qual determinado personagem presenteia outro –, coexiste uma
divulgação ainda mais explícita, que influi nos acontecimentos da novela e funde-se a
sua narrativa. Um dos exemplos citados pelo autor é o da elaboração de um personagem
especialmente para o merchandising: em determinada novela, uma jovem vai trabalhar
em uma indústria de jeans, e a partir desse momento o jeans se faz presente, de maneira
constante, na própria trama desenvolvida.
Como mostram diversos autores que estudam o fenômeno das telenovelas
brasileiras (Leal, 1986, Hamburger, 2005, Buarque de Almeida, 2002), apesar da
audiência do programa ser composto, sobretudo, por um público feminino e de classes
populares – a Rede Globo, por exemplo, define que seu público alvo prioritário no que
diz respeito as novelas é o da chamada “classe C” (Hamburger, 2005) – ele pode ser
326
considerado um elemento que atravessa a sociedade brasileira. Segundo Hamburger,
“muitas vezes o próprio ato de assistir novela reúne na mesma sala telespectadores de
grupos diferentes, como, por exemplo, empregadas, patroas e crianças” (2005, p.74).
Na opinião de um costureiro gaúcho entrevistado, a influência da novela sobre o
consumo de vestuário “vai levando todo mundo”, muitas vezes independentemente até
do grupo etário ao qual o consumidor pertence:
“É que aqui, aparece não sei em qual novela, e pronto. A Globo faz moda, lança moda
no Brasil [...] Se massifica, é o óclinhos, a meia, o sapato, é a saia, né. [...] aqui é uma
corrente que vai levando todo o mundo, é uma coisa estouro da boiada, quem não tiver
aquilo lá não ta com nada. E não é só menininhas não, mães, e até algumas avós.”
Além do merchandising direito, outra conseqüência das novelas na difusão de
determinados produtos de vestuário, se dá de forma menos proposital. É o caso dos
figurinos ali utilizados, vestidos por algum personagem, e que muitas vezes se tornam
modismos temporários. O exemplo mais conhecido dentre esses fenômenos da peça de
figurino que se transforma em “febre de consumo”, é o das meias de lurex listradas
usadas por Sônia Braga, por baixo de um par de sandálias de salto, na novela Dancing
Days. Ainda que a meia tenha se tornado emblema, todo o figurino da personagem
virou modismo. A própria atriz conta, no livro publicado por Marília Carneiro,
figurinista da rede globo, que
“Por causa da famosa cena de Dancing Days, quando Júlia Matos [ sua personagem]
volta da Europa, fomos muito criticadas pelas atrizes mais conservadoras e algumas
pessoas do high society. Elas ficaram indignadas porque acharam que Júlia tinha que
ser ‘chique paetê e não poderia usar de jeito nenhum aquele macacão. [...] [no entanto]
na época da novela fui a uma festa e simplesmente todas as mulheres estavam vestidas
de Júlia Matos.” (Carneiro 2003, p.37)
Uma revista feminina brasileira que veicula “moldes” para corte e costura, em
diversas edições publica peças inspiradas nos figurinos das personagens das novelas.
327
Nem todas as personagens cujo figurino é copiado, convém dizer, representam
na tela a imagem da mulher refinada de uma elite econômica brasileira. A maioria dos
“sucessos” surge, inclusive, na pele de personagens bastante “populares”, ou daquelas
que passam por um processo de ascensão social. Lembremos, por exemplo, de duas
personagens vividas por Regina Duarte em duas novelas distintas: a Viúva Porcina, da
novela Roque Santeiro, que tinha como marca um conjunto indumentário caricato e
Revista Manequim, especial “Novela”. Novembro de 2006
328
exagerado, mas cujas pulseiras e prendedores de cabelo “fizeram a cabeça” de diversas
brasileiras durante o período; e, mais uma vez enfeitando cabeças, os laçarotes da
personagem Maria do Carmo, de Rainha da Sucata, que, de acordo com a figurinista
Marília Carneiro, “foram parar até nas cabeças mais elegantes” (2003, p.39).
No ano de 2004, no evento Donna Fashion, o modismo saído da novela voltava,
como no caso de Dancing Days, aos pés. A personagem imitada, uma manicure de um
subúrbio carioca, que tinha como traço particular querer “aparecer” e procurar a fama a
qualquer preço, usava saias curtas acompanhadas de meias grossas cuja altura
ultrapassava os joelhos. Geralmente estampadas ou coloridas, tais meias podiam ser
vistas cobrindo as pernas (jovens, é verdade) de grande número de mulheres.
Mesmo havendo ali certo recorte etário, não havia um recorte de classe social.
Isso porque, após virarem modismo, as tais meias eram produzidas e revendidas pelas
mais diferentes marcas, das mais populares e baratas (ou as “sem marca”) até as mais
caras e conhecidas. No mesmo ano de 2004, no Rio de Janeiro e em São Paulom as
meias, já então conhecidas – a partir da associação direta com o nome da personagem
como “meias da Darlene”, eram vendidas em diferentes locais de comércio de vestuário.
No Rio de Janeiro, essas meias 7/8 de algodão multicolorido eram revendidas na
região de comércio popular conhecida como “Saara”, e na rádio local avisava-se:
“temos as meias da Darlene!”. Em São Paulo, estavam um shopping center bastante
luxuoso da cidade. Na vitrine da loja especializada em meias, uma página de revista
colada ao vidro trazia a fotografia da atriz usando as longas meias coloridas, o que, de
alguma maneira, também era um aviso semelhante aquele feito pela rádio popular: eles
também tinham “as meias da Darlene”.
Ainda que, como aponta Ramos (1991), alguns personagens pobres das
telenovelas vivam em condições mais confortáveis do que muitos “ricos” do mundo
329
real, não há dúvida de que a personagem da manicure e seu figurino, assim como os
outros modismos das novelas que atravessam fronteiras de classe, estejam longe de
representar aquilo que habitualmente se pretende como “topo” da pirâmide de difusão
de gostos. A novela, um fenômeno de cultura de massa, não poderia atuar, portanto,
através da clássica difusão vertical dos gostos e escolhas de consumo.
Além da difusão direta que acontece através dos modismos veiculados na
“telinha”, outro papel importante é conferido às celebridades televisivas. São eles que,
atualmente, publicizam os grandes eventos da moda espetáculo no Brasil e, ao mesmo
tempo, com sua presença aos pés da passarela, legitimam determinadas marcas
brasileiras de alta moda.
Em todos os eventos de moda espetáculo havia a presença de “famosos” de
ambos os lados da passarela. Para eles eram freqüentemente reservadas as cadeiras das
fileiras mais próximas da passarela. Sendo convidados vip dos estilistas, não era sem
razão que estavam situados lado a lado dos mediadores mais “clássicos” do campo, que
são os jornalistas e críticos de moda. Ambas as categorias de convidados, ali,
desempenhavam a mesma função enquanto legitimadores do campo da moda. Do lado
de cima da passarela, freqüentemente esses famosos, cuja origem e perpetuação da fama
é bastante variável – indo do participante de reality show à atriz de teatro, passando pela
namorada de jogador de futebol –, também eram contratados para desfilar, junto com as
manequins profissionais.
330
Embora sua presença fosse uma constante em todos os eventos, havia certa
variabilidade em seu número. No evento paulista os famosos não eram tantos e, quando
apareciam, estavam sobretudo sentados aos pés da passarela, assistindo aos desfiles. No
evento carioca as celebridades se espalhavam como em nenhum outro: assistiam a
apresentação das coleções, desfilavam, e principalmente circulavam pelos corredores,
festas e lounges. Foi no evento gaúcho, contudo, que o maior número de “famosos”
Revista Caras
,
27/01/2006
331
midiáticos participava exclusivamente dos desfiles junto às manequins. E ainda que em
todos os três sua presença fosse chamariz para o público das groupies
205
, no evento
gaúcho tal particularidade se dava de forma mais explícita. No próprio programa do
evento, junto ao nome da marca e ao horário do desfile, constava impresso o nome da
“celebridade” que desfilaria. Estavam ali como chamariz para o desfile.
Durante o tempo do desfile, o público permanece geralmente sentado e em
silêncio, a exceção, é claro, do final do desfile, quando o estilista sobe ao palco e recebe
os aplausos. Quando e se o desfile inclui famosos, no entanto, o procedimento não é o
mesmo. Assim que a celebridade começa a desfilar, o público, principalmente aquele
205
Como descrito no subcapítulo 1.2.
Pro
g
rama do evento Donna Fashion
,
contendo o nome das celebridades convidadas.
332
mais jovem, levanta-se, acena com as mãos, fotografa e grita muito. O famoso, por sua
vez, retribui interagindo com o público, acenando, batendo palmas, mandando beijos,
ou, quando de maneira mais “tímida”, simplesmente agradecendo com um meneio de
cabeça. Um desses momentos de euforia do público, tendo lugar no Donna Fashion, foi
retratado nas imagens abaixo:
A presença dos famosos nos desfiles, quando de trata de chamá-los para desfilar
junto às manequins profissionais, é alvo de opiniões contraditórias por parte dos
estilistas. Por um lado, dizem que tal procedimento “desprofissionaliza” o evento,
transformando-o, como disse um estilista, em “só mais um evento do show bizz”. Outro
333
estilista comenta que não costuma adotar tal prática por considerá-la “até
desqualificadora, parece que estamos implorando por audiência, apelando à fama dos
outros”.
O mesmo estilista que falou em desprofissionalização, entretanto, vê traços
positivos nessa penetração das celebridades midiáticas nos eventos de moda. Segundo
ele, é graças a isso que os convites para os desfiles tornam-se tão disputados, já que os
famosos de todos os tipos levam para o lugar “um público muito maior, não só da
moda”. Ainda de acordo com o estilista, esse público, a princípio apenas interessado em
ver um ator famoso ou uma cantora de sucesso e, quem sabe, fotografá-los e caçar
autógrafos, poderia, como conseqüência do “estar ali”, desenvolver um gosto pelas
coisas da moda. Aumentar o número e diversificar a variedade do público presente é
visto como maneira de “construção e afirmação de uma cultura de moda no Brasil”.
Em termos de divulgação, a presença dos “famosos” também atua
positivamente. Eles chamam a imprensa não especializada – principalmente aquela das
revistas de fofoca – para os eventos, divulgando-os para o grande público. Como afirma
o funcionário de uma marca de alta moda, “o designer precisa ficar conhecido... a grife
precisa ir pra boca do povo”. Não é o povo, no entanto, quem consome a grife, mas é ele
quem também consome as informações que circulam sobre ela.
O mundo da alta moda hoje, portanto, está, como aponta Rocamora (2002), um
pouco distante do lugar dado a ele por Bourdieu (1988), quando é comparado com a alta
cultura. A moda brasileira une-se a cultura de massa e procura tornar-se conhecida entre
um público bastante amplo e diversificado, não apenas restrito a uma elite econômica e
cultural. A justificativa para tal fato não está, entretanto, em argumentos que diriam ser
a moda brasileira, mesmo em sua versão mais luxuosa, uma moda à margem. Não resta
334
dúvida, de que se trata realmente de uma moda à margem, mas tal conduta de voltar-se
para a cultura de massa não é exclusividade brasileira.
A moda internacional tem adotado o mesmo procedimento, frequentemente
chamando para suas campanhas publicitárias os “famosos”, atores, cantores e – também
fora do Brasil – jogadores de futebol. Mesmo a haute couture, que seria o topo da
pirâmide se tomássemos o modelo clássico de difusão de gostos, recorre a tais práticas.
Os próprios costureiros, sucessores das grandes maisons parisienses, aliás, tornaram-se
verdadeiras celebridades midiáticas e ídolos pop, a exemplo de Karl Lagerfeld, a frente
da Chanel desde 1983, e Tom Ford, escolhido para suceder Yves Saint Laurent.
Convém lembrar igualmente que a moda internacional, seja a alta costura
francesa ou o prêt-à-porter de luxo, retira parte significativa de seus ganhos através das
licenças. Os produtos licenciados, não fabricados pelas maisons, mas portando seus
nomes e logotipos, ainda que sejam bens de consumo voltados para consumidores de
alto poder aquisitivo – um par de óculos Prada, por exemplo, não sai por menos de
duzentos euros e, no Brasil, pode chegar a dois mil reais – são muito mais acessíveis do
que as roupas – mesmo no setor de “roupas prontas” – produzidas pelas mesmas
marcas. A menos, é claro, que se trate de roupas produzidas sob licença, o que também
acontece com grande freqüência.
A alta moda transforma-se, portanto, em um mercado globalizado, onde
produtos, muitas vezes associados à cultura de massas, circulam globalmente. Mesmo
que seu consumo esteja muito longe de se democratizar, sua apropriação enquanto
símbolo se dá, atualmente, por um público muito maior. Haja vista todo o mercado de
falsificações (Leitão & Pinheiro Machado, 2006) que se elabora em seu entorno.
335
6.4- Nacionalizar para globalizar
No que diz respeito aos trânsitos internacionais da moda brasileira, o movimento
da busca de visibilidade internacional que teve lugar na última década encontra-se em
grande interface com o retorno às temáticas nacionais. A tentativa de firmar-se nesse
campo, essencialmente “moderno
206
”, internacional e globalizado, acontece, como foi
mostrado ao longo dos capítulos anteriores, sob forma da presença quase hiperbólica de
imagens sobre Brasil nas coleções apresentadas.
De acordo com as discussões elaboradas por diversos autores (Appadurai, 1994,
Smith, 1994, Lins Ribeiro, 1999, Oliven, 1992), uma das conseqüências do processo de
globalização, caracterizado inicialmente pelo que se costuma chamar de
“atemporalidade” e “desterritorialização”, foi um renascimento das identidades locais.
Com a ampla circulação internacional de pessoas, idéias e mercadorias, colocou-se, em
um primeiro momento, a questão a respeito do perigo homogeneizador dessa nova
forma de proximidade. Hoje, entretanto, acredita-se que haja uma convivência entre os
dois processos. Em certa escala, realmente há o ideal da homogeneidade, mas isso não
impede, e inclusive estimula, que se reforcem as falas locais e particulares. Com a
globalização, pode-se dizer que local e global surgem em uma nova relação.
O capitalismo transnacional e a globalização, certamente, atuam como motor
propulsor da redefinição de relações internas e externas (Lins Ribeiro, 1999). A
globalização motivou, há algum tempo, dúvidas a respeito da obsolescência e do fim
dos Estados Nacionais” (Smith, 1999) mas, em seu curso, mostrou-se, a um só tempo,
englobante – afinal, se não são todas as nações que dela participam, geralmente é o que
206
Diversos autores (Lipovetsky:2001, Kawamura:2005, Entwistle:2002) apontam para a impossibilidade
de dissociar a moda, tal qual o sistema que conhecemos hoje, da modernidade ocidental. Também
Rainho (2002) situa o fenômeno da moda como não apenas “moderno”, mas fruto da vida urbana e das
relações sociais que se estabelecem nas cidades.
336
vislumbram – e reforçadora de particularidades. Como diz Oliven (1992), “Esse
processo de mundialização da cultura, que dá a impressão de que vivemos numa aldeia
global, acaba repondo a questão da tradição, da nação e da região”.
A volta da moda nacional às “coisas brasileiras” situa-se, portanto, nesse registro
mais geral dos fluxos internacionais. Sublinhar (ou reinventar) particularidades
nacionais, nesse caso, significa poder apresentar-se, perante o mercado global – em
alguma medida interessando nas “particularidades” dos outros – a partir do diferencial
competitivo “brasileiro”. Um consultor de moda, quando lhe pergunto sobre a atual
vontade de mostrar o Brasil, responde que esse processo representa justamente uma
estratégia comercial.
“Não é nem história de querer, você entende? É uma questão de necessidade...
sobrevivência. Vai fazer o que? Vender blusas mal acabadas a um dólar? Alguém pode
concorrer com a China? Para entrar no outro nicho de mercado, dos ricos, você vai ter
que se diferenciar, daí arruma um jeito. Se fizer igualzinho ao que já fazem, por que vão
comprar você?”
É na junção entre esses dois processos, busca de visibilidade internacional e
retorno aos conteúdos locais, que se configura a produção local do exótico brasileiro.
Não resta dúvida, portanto, que tal procedimento, inspirado na percepção de que o
exótico faz parte de uma série de tendências de moda contemporaneamente valorizadas,
visa atrair olhares da moda internacional para nossa produção de modas de vestir.
Na criação de um exotismo brasileiro, nossa moda recorre ao uso de elementos
culturalmente associados à dimensão da autenticidade e da tradição. Reforçam-se
estereótipos sobre um corpo brasileiro erotizado, um caráter nacional muito
influenciado por nossa natureza exuberante, uma determinada cultura popular brasileira
autêntica, entre tantos outros. Ao mesmo tempo, tais estereótipos são aliados a novas
representações, como a de que o Brasil pode tornar-se importante produtor de modas
337
“étnicas” e exóticas, assim como de bens voltados para o consumo ético, ecológico e
socialmente engajado.
A associação entre moda brasileira e produto exótico não acontece, no entanto,
apenas quando nossa moda atravessa as fronteiras do país. Os discursos sobre procurar
raízes e voltar-se para as tradições nacionais discorrem justamente sobre o desejo de
construir nela algo que possa ser autêntico e típico. Segundo as palavras de um estilista
paulista, “chega de copiar, tem que fazer bem brasileiro, é isso que está bacana”.
Fazer “bem brasileiro”, entretanto, em alguma medida, é construir autenticidades
alçadas por parâmetros que certas vezes pendem para o pitoresco, o “turístico”.
Reinventamos nossas tradições, nessa moda brasileira que se quer nacional, através de
modelos semelhantes àqueles explicitados por Hobsbawn (2006), onde são
estabelecidas continuidades com um determinado passado histórico (aquele que nos
serve), e onde novos elementos são percebidos como existentes “desde sempre”.
Mas nosso exotismo, elaborado a partir da reinvenção da nação e de seus traços
característicos, não é percebido como exotismo apenas aos olhos europeus. Por aqui
também “o exotismo brasileiro é o futuro”, como disse certo estilista que desfila suas
coleções nos grandes eventos de alta moda do país. E embora a exotização seja
claramente percebida pelos produtores de moda como estratégia que dá bons resultados,
ela não parece ser jamais sentida como embuste. Fala-se em “fugir de estereótipos e
papagaiadas”, mesmo quando se recorre a eles. Mais do que isso, positiva-se a marcação
das diferenças exóticas do país como sendo recurso dotado das “melhores intenções”,
essencial para “deixar de ser colonizadinho que só copia dali e copia daqui”.
As contradições que acompanham os discursos a respeito dessa moda brasileira
“bem brasileira” são constantes. Em quase todas as entrevistas realizadas com os
produtores de moda, pontuava-se a importância de mostrar um Brasil que vai além do
338
binômio samba-futebol, de não se permitir “escorregar em estereótipos”, e de não
apresentar-se como “Brasil pra turista”. Ao mesmo tempo, elementos bastante
semelhantes aos enumerados como aqueles que deveriam ser evitados, eram os
utilizados, tanto na prática quanto nos mesmos discursos que os negavam. Um
funcionário de uma marca brasileira de prêt-à-porter de luxo, por exemplo, falando de
sua marca, diz que
“A gente faz e quer deixar o lugar comum, o óbvio. Se falam em moda brasileira é
aquilo lá que todo mundo sabe de Braz
il com “zê”
207
, uma imagem padrão, forçadinha,
com bunda e festa, futebol... (...) a gente quer fazer uma moda “brasileira” que é feita
por brasileiros, daí é brasileira. Aí que vai ser feita com um jeito brasileiro, com muita
alegria, sensualidade, latinidade. Com uma vontade de Brasil.”
Mesmo na imprensa francesa, espaço preferencial da “exotização” da moda
brasileira, as tensões e os “poréns” permeiam textos e depoimentos. Uma loja parisiense
que revende produtos brasileiros é celebrada por sua capacidade de mostrar “une vision
moderne [ do Brasil], loin des clichés parisiens limitant souvent ce pays-continent à la
musique, la fête et la plage.
208
”, e a proprietária de uma loja/marca de roupas brasileiras
declara a um periódico francês que “Nous continuerons à produire au Brésil, mais nous
ne voulons pas être cantonnées à l’esprit Brazil et grigri
209
”.
Um estilista gaúcho, que desfila no São Paulo Fashion Week foram, pontuou seu
depoimento com reflexões a respeito dessas contradições e ambiguidades. Ao passo que
firmava seu posicionamento de que ainda éramos por demais espelhados nos padrões
europeus da moda, fazendo uso do termo “colonizadinhos”, e que precisávamos buscar
uma moda particularmente nacional, “bem brasileira”, também se dizia farto de “penas,
lantejoulas e araras”.
207
Convém lembrar aqui que o subtítulo de um evento de moda gaúcho que aconteceu em 2005 era
exatamente “Do Brasil para o Brazil”.
208
Urban Repérages, no. 2. suplemento do À nous Paris. s/d.
209
Journal du textile, 30 de janeiro de 2006.
339
Perguntando sobre o paradoxo entre não poder copiar, de um lado, e evitar
servir-se de estereótipos brasileiros, de outro, ele responde que “nem sempre isso é
antagônico”, havendo mesmo uma convergência entre as duas atitudes, porque “dizer
que faz moda brasileira porque usa penas e lantejoulas e estampa de arara é se manter
‘colonizadinho’, é seguir copiando, agora estereótipos e imagens que o europeu tem da
gente.”
Tornar-se “indepentende”, como dizem pretender aqueles que produzem a moda
brasileira contemporânea, não é processo simples, fácil e linear, sobretudo num campo
onde são justamente essas “referências européias” que definem padrões de gosto. Uma
das possibilidades vislumbradas para tanto foi a de aspirar transformar-se em outro, em
exótico, tentando agradar, a um só tempo, o mercado interno e externo. Essa
possibilidade, entretanto, também não é simples, e abre espaço para a presença de tais
tensões e contradições. As ambigüidades existentes entre discurso e prática, e em
muitos momentos internas aos discursos, parecem revelar que transformações no campo
estão em curso, e não terminadas ou sedimentadas.
O recurso do retorno às tradições e autenticidades brasileiras é, a um só tempo,
extremamente vendável e percebido, tanto pelos estilistas como pela crítica brasileira de
moda, como caminho necessário para o desenvolvimento de uma moda nacional e
autônoma, mesmo que, como disse, à sua maneira, o estilista gaúcho, em muitas
ocasiões se baseie em parâmetros e visões européias sobre o país. E a permanência,
nesse campo, de padrões europeus, especialmente franceses, de gosto e elegância, talvez
possa explicar como seja possível olhar para si próprio e, voltando ao paradoxo de
Rimbaud, ver un autre.
A própria percepção de que é preciso “internacionalizar” a moda brasileira para
profissionalizá-la é mais um exemplo de que as instâncias conferidoras de legitimidade
340
estão situadas principalmente fora do país. Isso não quer dizer, todavia, que estejamos
apenas constante e reiteradamente “copiando” modelos europeus, até porque muitos
desses modelos já foram apropriados internamente, repensados e reatualizados. Quando
a moda brasileira se propõe a transformar-se em exótica (e para isso realmente não tem
como deixar de levar em consideração sua imagem refletida no olhar do outro), elabora,
ela mesma, uma crítica a respeito de suas próprias práticas.
6.5- Divulgar lá, vender aqui?
Se o trânsito internacional mais visível da moda brasileira contemporânea é o de
voltar-se para dentro, para os temas brasileiros, com o objetivo procurar reconhecimento
além-mares, convém notar que se trata, possivelmente, de uma via dupla. Isso porque a
vontade de “fazer bem brasileiro” não anula o reconhecimento de que as instâncias
definidoras do que fará sucesso, no mundo da moda, estão fora do Brasil. Não são os
criadores brasileiro, apesar de sua fama no país, que definem se “o azul está na moda
este ano
210
”.
Esta realidade não é negada pelos produtores de moda brasileiros. Como disse
uma consultora de moda carioca, a moda brasileira precisa manter-se informada a
respeito das tendências internacionais, porque
“A verdade é que quem direciona o que vai acontecer na moda, em termos de dinheiro,
capital, mas também idéias, é a Europa. Um pouquinho os Estados Unidos, mas mais a
Europa mesmo. [...] não tem como pensar que somos independentes disso, por mais
legal que seja o que fazemos pra rolar sucessofora tem que estar antenado com o que
lá estão querendo e fazendo.”
É preciso perceber, portanto, que a própria valorização das particularidades
nacionais, posição tomada pela moda brasileira, é ela mesma uma dessas “tendências
210
Como ironiza Barthes (2003) quando trata da arbitrariedade dos discursos da moda.
341
internacionais”. Enfatizando a hegemonia dos “velhos centros” difusores de moda, um
estilista gaúcho entrevistado chega mesmo a questionar a existência de uma moda
propriamente brasileira, dizendo que
“[...] é tão difícil falar em moda brasileira, se fala muito em “moda brasileira”,
genericamente, mas não existe moda brasileira. Existe uma moda internacional, em que
todo o mundo se baseia. No fundo no fundo o grande ponto de partida ainda é Paris,
Milão, Roma, Firenze. Na França está centralizado em Paris, na Inglaterra é Londres,
Estados Unidos é Nova Iorque, agora na Itália se divide em Milão, Roma e Florença.”
Quando a moda nacional “bem brasileira” é celebrada no Brasil, é justamente a
sua presença nesses centros hegemônicos que recebe destaque. Na imprensa brasileira
de moda tal fato é bastante noticiado. Diz-se, por exemplo, em publicação especializada
voltada para os profissionais do setor, que a “Moda brasileira [está] em foco: eventos na
França destacam trabalhos de estilistas e designers do país
211
”.
Não é apenas nas publicações “profissionais” que se noticia a moda brasileira
“agradando” o público internacional. Em uma das principais publicações brasileiras de
moda, voltada sobretudo para o público consumidor, são reproduzidas, em miniatura,
catorze diferentes reportagens veiculadas na França sobre a moda brasileira, mostrando
que naquele que é conhecido por ser o “país da moda”, nossa produção nacional é
reconhecida e valorizada. Os títulos das páginas que versam sobre o sucesso brasileiro
no exterior recebem palavras emblemáticas, tais quais “Paris de verde-amarelo. [...] Deu
samba na Lafayette: invasão verde-amarela no templo de consumo francês
212
”.
Também algumas empresas têxteis divulgam, sob forma de anúncios
publicitários veiculados em revistas de moda de grande circulação, suas participações
em eventos acontecidos na França. O público alvo desses anúncios, certamente, é o
consumidor brasileiro, e seu objetivo é demonstrar as qualidades internacionalmente
211
WF + Varejo, julho de 2005.
212
Vogue Brasil, agosto de 2006.
342
reconhecidas da marca e do produto. Mais do que o reconhecimento “internacional”,
sublinha-se o reconhecimento da França, como no caso do anúncio publicitário, datado
do ano de 2004, abaixo reproduzido:
A mesma indústria têxtil, em 2005, produz outro anúncio com o mesmo objetivo
de divulgar sua participação das feiras francesas. No anúncio mais recente, mostra-se
articulada a três estilistas brasileiros de renome que estarão, eles também, participando
da feira. A iniciativa, além de colar o nome dos estilistas ao dessa indústria, e de
anunciar sua internacionalização, certamente contribuem para divulgar no país o
reconhecimento desses estilistas brasileiros no exterior. Fazendo alusão ao nome da
feira, Première Vision, lê-se, na peça publiciária de página dupla, a palavra
“visionnaires” referida, ali, a empresa têxtil, mas igualmente aos criadores brasileiros.
Além da palavra, em francês, a letra “a” que a compõe tem a forma de uma torre Eiffel,
Vo
g
ue Brasil
,
j
aneiro de 2004.
343
símbolo turístico e “lugar de memória” parisiense, explicitando ainda mais a relação
estabelecida entre o produto/marca/estilista e a “capital da moda”.
A própria associação brasileira de indústria têxtil veicula, em outra revista
brasileira de moda de grande circulação, anúncio publicitário próprio, avisando que o
setor têxtil brasileiro está “produzindo” e “exportando” “para o mundo todo”.
Elle Brasil
,
j
aneiro de 2005.
Vo
g
ue Es
p
ecial Passarelas
,
inverno 2005.
344
Anunciar, dentro do país, que se está exportando, portanto, promove, através da
divulgação do reconhecimento internacional, a legitimidade perante o mercado interno,
nacional.
Antes mesmo do início do Ano do Brasil da França, que foi 2005, e muito meses
antes de qualquer participação da moda brasileira no evento, um jornal nacional já
avisava seus leitores que os estilistas brasileiros estavam indo ao exterior em busca do
reconhecimento:
“C’est si bon... a moda brasileira! Paris é a capital da moda, todo mundo sabe. Mas o
Brasil também está na moda e vai mostrar seu jeitinho de ser fashion para os franceses
no Ano do Brasil na França. Voilà!
213
Pode-se estabelecer aí uma comparação entre o atual movimento da moda
brasileira de mostrar-se reconhecida no exterior e aquele que acontecia, quatro décadas
atrás, como parte das estratégias de comunicação da multinacional francesa Rhodia.
Como foi descrito no segundo capítulo da tese, visando conquistar o público nacional
consumidor de “fios sintéticos”, a multinacional patrocinava, no Brasil, grandes shows-
desfiles de moda. Os conteúdos, de acordo com o air du temps da época, eram sempre
muito nacionalistas. Levava-se, após terem acontecido os desfiles no Brasil, as coleções
ao exterior, no que era chamado de “Cruzeiros da Moda”.
Muito embora não seja possível encontrar nos periódicos franceses de moda da
época, o que foi constatado através da pesquisa nos arquivos do Musée Galliera,
qualquer referência a esses eventos de “moda brasileira”, no Brasil eles eram noticiados
com grande estardalhaço. Na imprensa brasileira contava-se que a moda nacional
ganhava admiradores em Paris, capital da moda, e que no exterior eram reconhecidos
seu valor, sua criatividade, e sua qualidade.
213
Jornal do Brasil, 19 de dezembro de 2004.
345
Nas divulgações noticiadas pela revista O Cruzeiro, as viagens das coleções
brasileiras ao exterior eram acompanhadas em sua integralidade. As fotografias das
manequins entrando e saindo dos aviões eram, elas mesmas, publicadas. Claro que se
pode imaginar que, na época, a viagem de avião simbolizava algo moderno, era sinal de
reconhecimento. Mas tal procedimento, mais do que isso, tinha em vista dar ao público
brasileiro, no fundo o principal alvo da estratégia de divulgação das coleções no
exterior, a sensação de participar integralmente da viagem.
Atualmente, apesar das viagens de avião terem se tornado mais banais e
cotidianas, sobretudo se pensarmos na elite brasileira potencial consumidora de nossa
alta moda nacional, repete-se o mesmo procedimento. Antes de “alçar vôo” rumo ao
principal evento de moda brasileira em Paris, os estilistas que fizeram parte da comitiva
de divulgação da moda nacional, concederam uma entrevista coletiva a imprensa. A
entrevista, fotografada e divulgada de forma massiva, foi realizada justamente dentro do
avião que os levaria para a França.
Com esse pequeno esboço de comparação, portanto, pode-se dizer que se a moda
brasileira vai ao exterior, é porque ela retorna ou Brasil ainda mais legitimada. Foi
exatamente esse retorno que, no final do ano de 2005, depois de toda a celebração
internacional, noticiou um jornal gaúcho, anunciando que as temáticas brasileiras
estariam mais uma vez presentes no evento – patrocinado pelo jornal, bem entendido –
de moda espetáculo gaúcho: “A moda verde-e-amarela está voltando para casa. Depois
de dar um giro pelo mundo, as tendências inspiradas em terras brasileiras formam a base
da maioria das coleções de verão
214
Ainda que o interesse pela moda brasileira tenha, na França, sido significativo, a
importância dada a ele aqui mesmo, no Brasil, foi superdimensionada. Os consumidores
214
Caderno Donna. Zero Hora, 25 de setembro de 2005.
346
franceses entrevistados realmente interessavam-se pela moda do Brasil e a consumiam,
mas igualmente consumiam outros produtos “exóticos” de outras proveniências e
nacionalidades. Convém notar, igualmente, que o contato com os entrevistados
aconteceu nas lojas de produtos brasileiros, o que por si só revela seu gosto pelas coisas
do Brasil, uma vez que ali estavam.
O não reconhecimento, na França, dos estilistas brasileiros por seus nomes
próprios ou pelo nome de suas marcas, entretanto, já indica que a moda brasileira está
longe de ser assunto tão central na “capital da moda”. Ainda que exótica e encantadora,
ela permanece à margem. Dentro do Brasil, no entanto, apesar da grande circulação de
marcas estrangeiras, a moda nacional adquiriu enorme importância.
Uma estilista brasileira, durante entrevista, comenta que
“Tem marcas que fazem de tudo, de tudo, pra estar lá fora. As vezes conseguem colocar
dois, três biquínis a venda numa loja famosa, outras vezes as peças ficam lá nos balaios,
não saem tanto quando imaginavam. Isso não muda nada, vão voltar dizendo
“vendemos em Cannes”, “vendemos em Nova Iorque”, é um cartão de visita que
funciona. Eu acho que até algumas lojas que abrem, de marcas brasileiras fora, podem
sair no prejuízo, pode não compensar as vendas lá, mas não importa se dá pra manter a
fachada dizendo que é etiqueta internacional. As mulheres que compram um jeans da
[marca brasileira], um vestido, um maiô, elas tem grana, elas viajam... se elas
encontram a empresa, o estilista nacional lá fora, nossa, logo pensam ah, é sinal que é
bom mesmo, até aqui chegou.
Assim como a nacionalização das temáticas tem por objetivo ganhar visibilidade
no exterior, portanto, é essa mesma visibilidade no exterior que proporciona à moda
brasileira a legitimidade frente a seu mercado consumidor. O trânsito que diz respeito a
“inspirar-se aqui” para “aparecer lá”, então, completa-se com o retorno ao Brasil, onde o
“divulgar lá” ajuda a “vender aqui”.
347
348
Entendendo a moda como lugar de produção e veiculação de sentidos, procurou-
se, nesse trabalho, descrever e analisar um momento da particular da moda brasileira
contemporânea. Tal momento, que data do início do século XXI, caracteriza-se pela
busca, nesse campo social, de visibilidade internacional através da divulgação de sua
produção no exterior, sobretudo na França. Igualmente, é caracterizado pela inserção de
temáticas nacionais, através de referências ao Brasil e às identidades brasileiras, na
produção cultural elaborada pelo mundo da moda brasileira. Procurou-se aqui, portanto,
compreender de que forma foi elaborado, no campo da moda brasileira, um
“abrasileiramento” de nossa moda de vestir.
Por meio de pesquisa de campo multi-situada, na qual foram realizadas, na
França e no Brasil, observações, entrevistas e recolhimento de material da imprensa de
moda, foram identificados os elementos elencados como definidores dessa
“brasilidade”, e procurou-se compreender sua utilização por parte do mundo da moda.
Elemento muito recorrente, apresentado em diversas variações, é a referência ao
país como natureza exuberante e paraíso nos trópicos. Essa “Natureza brasileira” toma
forma em imagens de (e discursos sobre) fauna e flora, mas igualmente em utilizações
de paisagens emblemáticas da nação, que englobam patrimônio histórico, nossos
lugares da memória. O recurso à natureza, é preciso sublinhar, convergiu com
tendências da moda internacional, nas quais as inspirações “verdejantes” povoaram
roupas nas passarelas do mundo todo. Por aqui, entretanto, foram identificadas pelas
instâncias legitimadoras – o jornalismo e a crítica de moda – e pelo público consumidor,
como referências ao nacional.
Também é, em grande parte, essa relação estabelecida entre natureza e
identidade nacional que funda as representações sobre um “tipo” ou “caráter” nacional
brasileiros, tão exuberante – alegre, festivo, divertido, porém exagerado – quanto as
349
florestas nacionais. Por essa razão, a moda brasileira contemporânea é comumente
aproximada de um estilo kitsch, caracterizado como uma estética do excesso e da
redundância.
O corpo brasileiro que envelopa esse caráter nacional é também representado
pelas idéias do excesso e da exuberância. A moda brasileira, para que seja dita “bem
brasileira”, precisa estar referida ao corpo, seja através de seu desnudamento ou através
de sua modelagem. A partir dessas constatações, é possível pensar nesse corpo
brasileiro despido como constantemente transitando entre a natureza e a cultura. A
moda praia, tida como savoir faire nacional, discorre justamente sobre a questão do
desnudamento, e da “cola” que se estabelece entre corpo e identidade nacional. Esse
corpo brasileiro, assim como o tipo nacional, tem como tipo ideal o Rio de Janeiro,
configurando-se aí inclusive disputas as respeito daqueles que podem ou não melhor
representar o país através da “autêntica” moda praia.
Outro caso exemplar, que também cola a identidade no corpo, é o jeans
brasileiro, mercado relativamente novo e menos “estabelecido” do que aquele da moda
praia. No caso do jeans, as particularidades não dizem respeito à nudez, mas a uma
modelagem singular, corretora de anatomias, capaz de deixar os corpos
“abrasileirados”. O jeans é, assim como a moda praia, lugar de disputas discursivas.
Tais disputas discorrem, no caso da calça, sobre “a verdade da calça” –sua modelagem
especial – e “a verdade do corpo” – aqui entendidas como as qualidades “superlativas”
desse corpo brasileiro imaginado.
Ainda na questão do corpo, algumas contradições se verificam. Tal corpo
brasileiro imaginado, e freqüentemente inspirador das produções da moda nacional, em
cor e forma difere do corpo da moda. Nos discursos, ele é um corpo moreno ou mulato,
de formas arredondadas e anatomia exuberante. Na prática, levando-se em consideração
350
a aparência fenotípica predominante nos “corpos-de-obra” da moda (o das manequins
de passarela), se apresenta como um corpo muito magro, e predonimantemente branco.
Além de corpo, caráter e natureza, outros estereótipos nacionais reatualizados na
moda brasileira contemporânea dizem respeito aos usos de uma “cultura popular”
brasileira, e uma criatividade típica, gerada sobretudo pela necessidade e pobreza local:
já que não temos, inventamos. Tais elementos são freqüentemente lidos como inversões
dos modelos clássicos de difusão de gosto, mostrando como no Brasil “as coisas do
povo” são englobantes do nacional, e revelando uma harmoniosa configuração social,
materializada no uso “universal” e “transversal” dos chinelos Havaianas.
Procurou-se mostrar, entretanto, que tal inversão, por conta das formas pelas
quais tais apropriações são estabelecidas, e pelo fundamental papel dos intermediários
que atuam na tradução e adaptação do “popular” ao gosto das classes médias e altas, é
apenas aparente. Justamente os intermediários, entretanto, configuram em outra esfera,
senão uma inversão, ao menos uma transformação dos modelos tradicionais de difusão
de gostos e tendências de moda. Trata-se da importância, no que concerne às modas de
vestir nacionais, dada à televisão, à novela e às celebridades.
Como resultado dessa releitura dos estereótipos nacionais já consagrados e
difundidos no imaginário nacional, elabora-se uma exotização do Brasil, tanto para o
mercado externo – francês – quanto para o próprio mercado interno. O Brasil é
transformado, ainda em território nacional, em outro exótico que, exatamente em sua
estranheza, é potencialmente gerador de desejos de consumo.
Tal processo de exotização, entretanto, não se dá de forma simples, comportando
uma série de ambigüidades e contradições. No próprio discurso da moda verifica-se a
ambivalência em relação ao uso de dos estereótipos nacionais. Por vezes, identificados
enquanto tal, são considerados caricaturais e fechados em si mesmos, devendo ser
351
evitados. Em outros momentos, acabam sendo aceitos como caminho necessário para
internacionalizar e singularizar a moda nacional.
A procura das referências ao nacional mostrou-se, aqui, como principal recurso
empregado atualmente para dar visibilidade à moda brasileira no exterior. Nacionalizar
e abrasileirar são caminhos percorridos com a intenção de globalizar. Por outro lado, o
movimento de “olhar para dentro” para “ser olhado lá fora”, comporta um retorno. Uma
vez que instâncias mais representativas da moda internacional, apesar da contemporânea
descentralização do campo, ainda se encontram fortemente enraizadas na França,
divulgar a chegada de uma moda brasileira em Paris é estratégia comumente empregada
para legitimar a produção nacional perante o mercado interno. Recorre-se, assim,
também ao “ser olhado lá fora” para “vender aqui”.
As contradições e ambigüidades encontradas nesse processo de abrasileiramente
da moda nacional indicam, sobretudo, que trata-se de um movimento em construção, e
que o campo, formado por sujeitos e instituições preocupados em refletir sobre sua
produção e atuação, está constantemente se repensando.
Apesar da reatualização de uma série de estereótipos do Brasil, é possível
verificar que, mais do que uma reificação de antigas imagens, elabora-se no campo da
moda novos sentidos. A inserção no mercado internacional, por exemplo, procura
romper com velhos padrões, que associavam o país ao papel de mero exportador de
matérias-primas inacabadas. O que é buscado, através da globalização da moda de vestir
brasileira, é a conquista de um espaço num setor diametralmente oposto: o da alta moda
e do consumo de produtos de luxo. Divulga-se, por exemplo, em conjunto às
inspirações nas imagens já difundidas sobre o país, os investimentos em design e
tecnologia, procurando situar a produção em um setor de alto padrão.
352
Além disso, é possível verificar que a partir dos elementos já consagradas, são
elaboradas novas roupagens. Com eles, é possível estabelecer a associação entre a
produção da moda brasileira e tendências muito contemporâneas da moda internacional.
Esse é o caso, por exemplo, da inserção do país no mercado de bens de consumo
ecológica e socialmente engajados. Caso semelhante é o da associação ao mercado de
modas étnicas e exóticas, que em sua nova vertente, a do exotismo produzido
localmente – e não mais produzido na Europa por meio de inspirações no outro distante
– também é muito contemporâneo.
Nossa moda de vestir, portanto, para tornar sua produção singular e diferenciada,
dedica-se a uma processo de reinvenção do Brasil. Recorrendo à metáfora da natureza,
pode-se dizer que, imaginando e construindo suas próprias “raízes”, o mundo da alta
moda, no Brasil, vislumbra a produção de novas “flores e frutos”.
353
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